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Wanda Helena Mendes Muniz Falcão

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A CONCESSÃO DE REFÚGIO A INDIVÍDUOS LGBTI. / Manoela Silvestre Fernandes (MPSC) Pág. 7

A ATUAÇÃO INTERNACIONAL DO BRASIL NO TEMA DOS DIREITOS LGBT: PROTAGONISMO EXTERNO E


OBSTÁCULOS INTERNOS / Renan Batista Jark (UFSC) Pág. 27

A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DAS MULHERES REFUGIADAS À LUZ DA PERSPECTIVA FEMINISTA /


Vivianne Soares Barbosa (UnB) Pág. 46

COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL: UM MECANISMO EFICAZ PARA RECUPERAÇÃO DE ATIVOS


DESVIADOS POR MEIO DE FRAUDES / Alice Costa Lima Salz (UVA-RJ) e Alexandre Aparecido da Silva
Ferreira (UFRJ) Pág. 62

MIGRAÇÃO E DIREITOS: O CASO CRIANÇAS YEAN E BOSICO VERSUS REPÚBLICA DOMINICANA E A


EFETIVIDADE DAS SENTENÇAS DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS / Juliana Melo
Tsuruda (PUC-SP) Pág. 79

OS DIREITOS HUMANOS E OS DIREITOS DA CRIANÇA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS / Giovanna Ayres


Arantes de Paiva (SanTiago Dantas-SP) Pág. 96

REFLEXIONES EN TORNO A LA COMPRENSIÓN DEL ORDEN INTERNACIONAL CONTEMPORÁNEO DESDE EL


CONCEPTO DE “RESPONSABILIDAD DE PROTEGER” / Pablo Cesar Rosales Zamora (MRE/Perú) Pág. 111

REFUGIADOS E AS FRONTEIRAS POLÍTICAS E JURÍDICAS: A UNIÃO EUROPEIA E SEUS DESAFIOS AO


CENÁRIO ATUAL / Patrícia Susana Baía da Costa Colaço Machado e Jorge (Universidade de Coimbra-
Portugal) Pág. 128

TERRITÓRIO E NACIONALISMO, FRONTEIRAS E LIMITES: A ATUAÇÃO ILIMITADA DO ESTADO / Mariana


Martins de Almeida (UFSC) Pág. 149

THE DIGITAL SINGLE MARKET (DSM) AS AN ALTERNATIVE TO ENHANCE THE EUROPEAN INTEGRATION
PROCESS / Lucas Baggi de Mendonça Lauria (UnB) e Saphíria Aoi Shimizu (UnB) Pág. 166

UNIVERSALISTAS E RELATIVISTAS: POR UMA ORDEM PÚBLICA (INTER)NACIONAL / Emily Garcia (UEL) e
Bruno Ferreira de Souza (UENP) Pág. 180

Artigos convidados

O ESTADO NA AGÊNCIA DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS: O CASO DO BRASIL NO COMEÇO DO SÉCULO


XXI / Roberto Rodolfo Georg Uebel (UFRGS) Pág. 198

TUTELA DOS DIREITOS DAS MINORIAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E NO SISTEMA


INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS (SIDH) / Jan Marcel de Almeida Freitas Lacerda (UFT) e Érick
de Freitas Mendes (FDSM-MG) Pág. 213

Artigos premiados no I Congresso Brasileiro da ANET (realizado nos dias 10 e 11 de novembro de 2016)

A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL COMO UM INSTRUMENTO NO COMBATE AO CRIME DE LAVAGEM DE


DINHEIRO / Joice Martins da Costa (PUC-MG) e Thiago Filipe Martins Bicalho (PUC-MG) Pág. 234

BREVES APONTAMENTOS A RESPEITO DA REGULAÇÃO INTERNACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR: DA


GÊNESE À ATUALIDADE / Patrícia Costa Anache (Universidade de Coimbra-Portugal) Pág. 248

INGERÊNCIA E IMPOSIÇÃO: INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS A SERVIÇO DAS GRANDES POTÊNCIAS


/ Hércules Kuster dos Reis (UniBH-MG), Mayra Gomes Jesuíno (UniBh-MG) e Thaís Eleutério Miranda de
Oliveira (UniBH-MG) Pág. 263

Artigos provenientes do Programa de Iniciação Científica da ANET

A INSUFICIENTE POLÍTICA MIGRATÓRIA BRASILEIRA: DILEMAS ECONÔMICOS E JURÍDICOS / Vivianne


Wanderley Araújo Tenório (UFAL) Pág. 277

OS REFUGIADOS TRABALHADORES NA ALEMANHA: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS / Letícia Cristina


Pereira de Castro (UFF) Pág. 292
7

A CONCESSÃO DE REFÚGIO A INDIVÍDUOS LGBTI 1


THE POSSIBILITY OF REFUGE TO LGBTI INDIVIDUALS

Manoela Silvestre Fernandes2


Data de submissão: 06/09/2016
Data de aceite: 21/11/2016

RESUMO

O presente artigo objetiva analisar a possibilidade do deferimento do refúgio aos integrantes


do grupo LGBTI, em função da discriminação e estado de vulnerabilidade que apresentam em
certos países, bem como apresentar os critérios delineados nos Estados que os recebem por
conta dessa condição. Verificar-se-á quais os instrumentos de proteção legal que dispõem
estas minorias sexuais no século XXI e quais os mecanismos de procedimento para essa
garantia. A pesquisa será de natureza bibliográfica, com base em documentação jurídica e
estatística, disponíveis em documentos oficiais publicados por governos, organizações
governamentais e não governamentais que tenham como escopo a proteção de minorias
sexuais e a proteção do refugiado.
Palavras-Chave: Refúgio; Minorias Sexuais; LGBTI; Direitos Humanos.

ABSTRACT

This article aims to analyze the criteria for determining refugee status, with emphasis on the
possibility of granting refuge to members of the institute of LGBTI group. We will analyse
which protective instruments can these sexual minorities have in the XXI century and what
procedural mechanisms can guarantee their rights. The research will be bibliographical, based
on legal documentation and statistics available in official documents published by
governments, governmental and nongovernmental organizations that have the scope to
protection of sexual minorities and refugee protection.
Keywords: Refugees. Sexual Minorities. LGBTI. Human Rights.

1 INTRODUÇÃO

O estudo do fenômeno migratório constitui em si mesmo um tema de grande


complexidade ante a dimensão psicossocial e histórica que lhe está subjacente. A


1
Artigo alterado no dia 18 de dezembro de 2016, devido ao pedido de inclusão do nome do autor Dionathan
Ysmael Rodrigues da Silva no corpo de referências utilizadas. A autora encaminhou arquivo com a retificação e
pediu perdão pelo equívoco incorrido. A Comissão Editorial da Revista Diplomatize republica o texto com a
alteração solicitada. Reiteramos que a ANET e os integrantes do periódico (Comissão Editorial e Conselho
Editorial) em comento se eximem de responsabilidade acerca do conteúdo publicado nesta edição.
2
Aluna do Curso de Especialização em Direito Processual Penal na Escola do Ministério Público de Santa
Catarina. Graduada em Direito e em Relações Internacionais pela Universidade do Sul de Santa Catarina
(UNISUL). Advogada. E-mail: silvestre.manoela@gmail.com
8

compreensão de tal fenômeno exige uma profunda reflexão que abrange diversas áreas do
conhecimento (RAMALHO, 2013).
A migração contemporânea é motivada por diferentes circunstâncias e fatores ligados
a uma sociedade globalizada, marcada pelos desequilíbrios sócio-econômicos, pela violência
e intolerância (MILES; CARLET, 2016).
A perseguição e a hostilidade por questões sexuais e/ou de gênero não é um novo
fenômeno. Temendo ofensas, torturas e até mesmo a própria vida, milhares de indivíduos
LGBTI3 (Lésbicas, Gays, Bisexuais, Transexuais e Intersexuais) são obrigados a deixar suas
casas, fugindo de governos que não são capazes ou não as queiram proteger desta
estigmatização social. Em solicitações baseadas na orientação sexual 4 ou identidade de
gênero5, é importante fazer uma análise das formas de discriminação perpetradas pelo Estado
ao não proteger os indivíduos contra certos tipos de violência.
Verifica-se, portanto, que em muitos Estados ainda inexiste vontade política para
instituir mecanismos de proteção à estas pessoas. Em grande parte dos países, o governo
tolera a violação reiterada de direitos das minorias sexuais, isso quando não assume, ele
próprio, o papel de violador de direitos dessas minorias, permitindo legalmente a
discriminação e deixando-os nesse limbo de pessoas sem asilo e sem proteção jurídica. Dessa
forma, muitos dos indivíduos LGBTI (sobre)vivem com tratamentos desumanos e graves
discriminações no seu dia-a-dia.
É nesse contexto que se insere o presente estudo, que busca analisar a possibilidade
da concessão do refúgio àqueles que sofrem perseguição em razão de sua orientação sexual,
bem como averiguar quais políticas protetivas legais estes tem na condição de refugiados no
século XXI.
Os moldes da ação internacional em prol dos refugiados foram estabelecidos pela
Liga das Nações e conduziram à adoção de um conjunto de acordos internacionais. Hoje, o
principal instrumento de proteção jurídica aos refugiados é a Convenção relativa ao Estatuto
dos Refugiados de 1951, a qual, apesar de não tratar expressamente das minorias sexuais, vem


3
O ACNUR adotou a expressão “pessoas LGBTI”, com o objetivo incluir uma ampla gama de pessoas que
temem ser perseguidas por motivos de sua orientação sexual e/ou identidade de gênero. (ACNUR, 2011).
4 Considera-se “orientação sexual” como “[...] uma referência à capacidade de cada pessoa de ter uma profunda
atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um
gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas”. (Yogyakarta Principles in Action, 2007).
5
Considera-se “identidade de gênero” como “[...] estando referida à experiência interna, individual e
profundamente sentida que cada pessoa tem em relação ao gênero, que pode, ou não, corresponder ao sexo
atribuído no nascimento, incluindo-se aí o sentimento pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha,
modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de
gênero, inclusive o modo de vestir-se, o modo de falar e maneirismos;” (Yogyakarta Principles in Action, 2007).
9

sendo interpretada a incluir certos grupos de indivíduos não imaginados pelos autores da
Convenção à época.
Trata-se de orientação da ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados), que homossexuais e outras minorias sexuais podem ser elegíveis para o estatuto
de refugiados com base em perseguição devida ao seu pertencimento a um grupo social
particular. Todavia, tal entendimento não encontra-se pacificado em decisões de tribunais
administrativos estrangeiros, eis que sujeita-se à interpretação particular dos países
signatários.
Logo, este estudo também busca apresentar esta divergência, mostrando quais os
contornos das principais políticas protetivas a refugiados LGBTI no séc. XXI. Portanto,
investigar-se-á promoção destes direitos não apenas de um ponto de vista formal (análise dos
dispositivos normativos vigentes), mas também sob um plano material (estudo da existência
de políticas protetivas efetivas e suas questões procedimentais). Cuida-se não apenas dos
direitos de liberdade, mas também dos direitos sociais, econômicos e culturais, sempre com
enfoque nas especificidades do grupo LGBTI, em situação de refúgio.
A pesquisa será de natureza bibliográfica, com base em documentação jurídica e
estatística. Também será utilizada a técnica do estudo de caso, através do contato com
documentos oficiais publicados por governos, organizações governamentais e não
governamentais que tenham como escopo a proteção de minorias sexuais e a proteção do
refugiado.

2 REFÚGIO

2.1 Oorigem histórica e definição legal

A situação dos refugiados e refugiadas é, sem dúvida, uma das mais precárias a que
fica sujeito o ser humano. Extremamente vulnerável, distante de tudo o que
habitualmente sustenta as relações e a estrutura emocional e afetiva de uma pessoa,
o refugiado se depara com os desafios de quem só tem a alternativa de recomeçar a
própria vida, com a força das boas lembranças e da terra de origem, com a
experiência dos difíceis momentos que o expulsaram de sua pátria e com a
esperança de que alguém, um país, uma comunidade, o acolham e lhe protejam, pelo
menos, o grande bem que lhe restou, a própria vida. (SOARES, 2012, p. 36).

O fenômeno do refúgio é tão antigo quanto a humanidade. Por razões políticas,


sociais, religiosas ou culturais, milhões de pessoas já tiveram que deixar suas pátrias e buscar
proteção internacional em outros países. (BARRETO, 2010). Uma simples pesquisa histórica
é capaz de identifcar que o refúgio já existia na Grécia antiga, em Roma, Egito e
10

Mesopotâmia. Segundo Bezerra (2013), em épocas alhures, o refúgio era marcado pelo
caráter religioso, em geral concedido nos templos e por motivo de perseguição religiosa.
Jubilut (2007) cita exemplos de refugiados ao longo também da Idade Média:

Primeiramente com os judeus expulsos da região da atual Espanha, no ano de 1492,


em função da política de europeização do reino unificado de Castela e Aragão –
iniciada após a reconquista deste da dominação turca – que levou à expulsão da
população apátrida, não totalmente assimilada e que contabilizava 2% do total da
população, em função de esse reino ter a unidade religiosa como uma de suas bases
constitutivas. E, logo em seguida, de Portugal, país no qual buscaram refúgio. A tal
população agregaram-se quatro outros grupos. Primeiro os muçulmanos expulsos
dessa mesma região durante o curso do século XVI, por serem nacionais do Império
Otomano, que emergia como rival dos Estados ibéricos no mediterrâneo e poderia
ameaçar a segurança militar desses, caso decidisse proteger seus nacionais que
viviam no exterior, como no episódio da revolta dos muçulmanos em Granada,
quando esses contaram com o apoio militar dos otomanos. Segundo, os protestantes
dos Países Baixos, de 1577 à década de 1630, em um total de 14% da população da
região, mais uma vez por razões religiosas, dado que o Estado possuía uma religião
oficial, em torno da qual gravitava o ideal de homogeneidade ideológica, à qual os
protestantes não aderiram.

Todavia, a proteção institucionalizada dos refugiados - por meio de um instituto


jurídico - somente aparece com força no início do século XX, quando a comunidade
internacional se deparou com a fuga de milhões de pessoas em busca de segurança,
ameaçadas pela guerra mundial que eclodia.
Com efeito, logo após o fim da Primeira Guerra Mundial, a problemática dos
refugiados tomou proporções alarmantes, pois nesse período surgiram os primeiros problemas
de movimentos massivos e a necessidade de a comunidade internacional definir a condição
jurídica dos refugiados e realizar atividades de socorro aos mesmos (SOARES, 2012).
A efetiva proteção internacional dos refugiados surge, portanto, com Liga das
Nações. Durante esse período, a proteção aos refugiados era garantida de maneira pontual
para cada caso novo que surgisse, eis que os Estados consideravam os refugiados como uma
questão temporária e emergencial que teria fim tão logo terminassem as hostilidades.
(SOARES, 2012).
Do ponto de vista formal, os esforços internacionais de assistência aos refugiados
iniciaram-se no ano de 1921, quando o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV)
organizou uma conferência internacional para discutir o caso dos refugiados russos, eis que
por conta da Guerra Civil Russa de 1918 a 1921, mais de um milhão de pessoas encontravam-
se deslocadas. O CICV apelou ao Conselho da Liga das Nações para se responsabilizar por
um Alto Comissariado para os Refugiados Russos e designar um respectivo Alto Comissário,
posto assumido por Fridtjof Nansen. Dentre as competências do Alto Comissatiado, estavam
a de definir a situação jurídica dos refugiados, organizar sua repatriação ou reassentamento
11

para os países que aceitassem recebê-los, providenciar trabalho e prestar socorro e assistência
consonante às sociedades filantrópicas (IKMR, 2014).
Em 1922, como muitos refugiados de origem russa haviam sido “desnacionalizados”
e se encontravam apátridas ou sem documentos nacionais, o “Ajuste Relativo à Expedição de
Certificados de Identidade para os Refugiados Russos”, mais conhecido como “Passaporte
Nansen”, lhes devolveu personalidade jurídica, sendo o primeiro documento internacional de
identidade destinado a refugiados. Porém, o Ajuste de 1922 ainda não definia o conceito de
refugiado e não permitia aos portadores do Passaporte Nansen o retorno incondicional ao país
que o expedira (IKMR, 2014).
Segundo dados do IKMR (2014), no ano de 1924, o “Plano Relativo à Expedição dos
Certificados de Identidade para os Refugiados Armênios” estendeu a este grupo o direito de
usufruir do Passaporte Nansen e de ser objeto da proteção jurídica da qual os russos já se
beneficiavam. Todavia, somente em 1926, após a promulgação do “Ajuste Relativo à
Expedição de Certificados de Identidade para os Refugiados Russos e Armênios”, definiu-se
o que se deveria entender por refugiados russos e armênios, como forma de destaca-los dos
demais, por conta da sua extrema vulnerabilidade. Aos poucos, instrumentos legais mais
elaborados foram assinados, como em 1928, durante a “Conferência Intergovernamental
Relativa aos Refugiados Russos e Armênios”. Dentre os documentos, destacam-se: o “Ajuste
Relativo ao Estatuto Jurídico dos Refugiados Russos e Armênios”, “Ajuste Relativo à
Extensão a outras categorias de Refugiados de Certas Medidas Tomadas em Favor dos
Refugiados Russos e Armênios”, para abranger refugiados turcos, assírios e assimilados, que
passaram, então, a ser conhecidos como “Refugiados Nansen”; e o “Acordo Relativo às
Funções dos Representantes do Alto Comissariado para Refugiados da Liga das Nações”.
Mesmo não dotando de força jurídica vinculante, estes documentos foram a primeira tentativa
de se formular, em termos jurídicos, um estatuto legal para os refugiados (IKMR, 2014).
Conforme Soares (2012), o ano de 1938 foi marcado pela criação do Alto
Comissariado da Liga das Nações para os Refugiados, que tinha como objetivo ampliar e
centralizar em um único órgão a proteção aos refugiados à nível global. Entretanto, com a
eclosão da Segunda Guerra Mundial, o Alto Comissariado da Liga não conseguiu cumprir
todos os seus objetivos de proteção aos refugiados. Em 1946 tem-se a extinção da Liga das
Nações e, consequentemente, do Alto Comissariado da Liga.
No ano de 1950 é criado o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
(ACNUR), uma instituição apolítica, humanitária e social que, de acordo com o seu Estatuto,
12

teria como função assegurar a proteção internacional dos refugiados e buscar soluções
duradouras para essa problemática (ACNUR, 2016).
Mundial e as convulsões verificadas no mundo, a Guerra Fria e os movimentos de
libertação nacional provocaram o deslocamento de milhares de pessoas em busca de um país
onde o regime político-econômico fosse-lhes favorável. Uma das consequências da
confrontação entre a Europa Ocidental e a Europa Oriental foi precisamente a adoção pelos
países do Ocidente de instrumentos destinados a garantir proteção legal àqueles que
conseguissem emigrar em busca de refúgio.
Conforme Soares (2012, p. 46), esse desejo dos Estados ocidentais de proteger os
novos indivíduos resultou na Conferência de Bermudas, que ampliou a proteção internacional,
definindo como refugiados “[...] todas as pessoas de qualquer procedência que, como
resultado de acontecimentos na Europa, tiveram que abandonar seus países de residência por
terem em perigo suas vidas ou liberdade, devido a sua raça, religião ou crenças políticas”.
(BARRETO, 2010, p. 14).
Não se pode olvidar também dos esforços feitos pela então recém criada Organizacão
das Nações Unidas (ONU), que em dezembro de 1949, decidiu, por 36 votos a favor, 5 contra
e 11 abstenções, criar o Alto Comissariado para os Refugiados (ACNUR), que iniciou suas
atividades em 1º de janeiro de 1951, com prazo inicial de três anos.
As funções primárias do ACNUR foram estabelecidas em duas vertentes:
proporcionar proteção internacional aos refugiados; procurar soluções permanentes para o
problema dos refugiados, colaborando com os governos para o repatriamento voluntário ou a
integração local. Embora tenha sido garantido à agência o direito de angariar contribuições
voluntárias, os EUA conseguiram com que estas ficassem sujeitas à aprovação prévia da
Assembleia Geral, tornando o ACNUR dependente de um reduzido orçamento administrativo
do órgão e de um pequeno fundo de emergência. (IKMR, 2014).
Assim, dependente de contribuições voluntárias, principalmente dos Estados
participantes, e não dispondo de recursos extras para implementar um programa de
repatriamento, o orçamento anual do ACNUR de cerca de 300 mil dólares era escasso ao
ponto de seu primeiro Alto Comissário Gerrit Jan van Heuven Goedhart afirmar que corria-se
o risco do trabalho de seu comissariado restringir-se a “administrar o sofrimento” dos
refugiados. (IKMR, 2014). Até que em 1954 foi criado o Fundo das Nações Unidas para os
Refugiados (UNREF), a fim de custear os projetos em países críticos como Áustria,
República Federal da Alemanha, Grécia e Itália, com contribuição financeira dos EUA. A
rígida oposição inicial da URSS com o ACNUR também começou a mudar em meados dos
13

anos 50, facilitando a admissão às Nações Unidas de vários países em desenvolvimento, os


quais reconheciam a potencial utilidade do ACNUR para os seus próprios problemas com
refugiados. (IKMR, 2014).
Como o problema dos refugiados não tinha sido resolvido após o término da 2ª
Guerra Mundial, os Estados sentiam a necessidade de um novo documento internacional que
definisse os contornos da condição jurídica dos refugiados. De acordo com Ramos (2014), o
principal instrumento de proteção aos refugiados – a Convenção relativa ao Estatuto dos
Refugiados - foi concluído em Genebra, em 28 de julho de 1951, e teve como base o conceito
de refugiados estabelecido na Conferência de Bermudas.
Ao invés de formular acordos ad hoc para situações específicas dos refugiados como
ocorrera anteriormente, optou-se por um instrumento jurídico único contendo a definição
geral das pessoas que deveriam ser consideradas como refugiados. Porém, durante o processo
de elaboração da Convenção, o termo “refugiado” provocou controvérsia, pois os Estados
buscaram restringir a definição ao que estavam dispostos a assumir como obrigações legais.
Concordaram, enfim, com uma definição geral do termo “refugiado”, aplicável
universalmente, centrada no conceito do temor fundado de perseguição. Todavia,
inicialmente, a Convenção possuía uma limitação temporal (para acontecimentos ocorridos
antes de 1º de janeiro de 1951) e geográfica da definição de refugiado (somente para os
eventos ocorridos na Europa). (MULLER, 2012).
A Convenção de 1951, “Carta Magna” dos refugiados, enunciou os direitos e os
deveres dos refugiados, assim como as obrigações dos Estados, estipulando padrões
internacionais de tratamento. Estabeleceu também os princípios que promovem e
salvaguardam os direitos dos refugiados, em matéria de emprego, educação, residência,
liberdade de circulação, acesso aos tribunais, naturalização e segurança contra o regresso a
um país onde possam ser vítimas de perseguição (princípio do non-refoulement ou princípio
da não devolução). (IKMR, 2014).
Ainda, o ano de 1951 foi também marcado pela criação do Comitê
Intergovernamental Provisório para Movimentos Migratórios da Europa (PICMME), para
apoiar a movimentação de imigrantes e refugiados da Europa com destino aos países
ultramarinos de imigração, tornando-se posteriormente a Organização Internacional para as
Migrações (OIM). (IKMR, 2014).
A crise na Hungria em 1956 foi a primeira grande emergência em que o ACNUR
esteve envolvido e trouxe à tona o problema dos menores desacompanhados: quando as
14

crianças refugiadas fogem por sua conta, ou se separam das famílias durante a fuga, tornam-se
altamente vulneráveis e também são abrangidas pelo mandato da agência. (IKMR, 2014).
Destaque também foram as guerras de independência dos países africanos, que
originaram crises de refugiados e ampliaram a atuação do ACNUR no decorrer da década de
1960. Refletindo a percepção da comunidade internacional quanto ao caráter mundial do
problema dos refugiados, foi elaborado um novo Protocolo em 1967, removendo a imitação
temporal e, assim, estendendo o âmbito da Convenção de 1951 aos “acontecimentos ocorridos
antes de 1º de janeiro de 1951”. (MULLER, 2012).
Em 1969, a Organização da Unidade Africana (atual União Africana), com a
participação do ACNUR, elaborou a sua própria convenção relativa aos refugiados do
continente africano. Em vigor desde 1974, estabeleceu a chamada definição ampla de
refugiado, ao considerar como tal “qualquer pessoa que, receando com razão, ser perseguida
em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas
opiniões políticas, se encontra fora do país da sua nacionalidade e não possa, ou em virtude
daquele receio, não queira requerer a proteção daquele país.” (ADUS, 2016).
No ano de 1984, a definição ampliada da OUA foi acolhida também pela Declaração
de Cartagena, ao contemplar como refugiados as pessoas que fugiram dos seus países porque
a sua vida, liberdade ou segurança foram ameaçadas pela violência generalizada, a agressão
estrangeira, os conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras
circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública (BARRETO, 2010).
Ainda, conforme Barreto (2010, p. 16), a Declaração de Cartagena foi responsável
por estender o conceito não só para aquela pessoa que em razão da raça, nacionalidade, sexo,
grupo social ou opinião política tenham temor fundado de perseguição, mas também àquelas
cujos países de origem tenham entrado em processo de grave crise política e social e tenham
permitido violência generalizada, violação de direitos humanos e outras circunstâncias de
perturbação grave da ordem pública. Em Cartagena, segundo o autor “se deu um caráter atual
ao tema do refúgio, que hoje está mais vinculado aos temas tratados nessa Declaração do que
aos previstos na Convenção de 1951, porque tornou a Convenção mais ampla e flexibilizou de
maneira positiva o conceito de refugiado.”

2.2 O refúgio no século XXI

Em 2004, vinte países latino-americanos, incluindo o Brasil, assinaram, na Cidade do


México, a Declaração e o Plano de Ação do México, a fim de fortalecer a proteção dos
15

refugiados através da busca de soluções duradouras, destacando a importância da cooperação,


da solidariedade e da divisão de responsabilidades entre os países da América Latina.
Atualmente, o instituto do refúgio encontra-se consolidado, com regras e princípios próprios,
ancorados em tratados e documentos internacionais com os quais os Estados se
comprometem. (IKMR, 2014).
Em novembro de 2006, na cidade de Yogyakarta, Indonésia, foi realizada uma
conferência coordenada pela Comissão Internacional de Juristas e o Serviço Internacional de
Direitos Humanos. Tal encontro, que contou com especialistas de 29 Estados, teve como
objetivo a elaboração de um conjunto de princípios jurídicos internacionais sobre a aplicação
da legislação internacional às violações de direitos humanos baseadas na orientação sexual e
identidade de gênero, com intuito de dar mais clareza e coerência às obrigações de direitos
humanos. Ao fim dessa conferência, foi aprovada uma carta de princípios sobre a aplicação da
legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de
gênero, os chamados Princípios de Yogyakarta (CAYE, 2009).
O Princípio 23 cristaliza o direito de buscar e obter refúgio em razão de uma
perseguição relacionada à orientação sexual e/ou identidade de gênero, in verbis:

Toda pessoa tem o direito de buscar e de desfrutar de asilo em outros países para
escapar de perseguição, inclusive de perseguição relacionada à orientação sexual ou
identidade de gênero. Um Estado não pode transferir, expulsar ou extraditar uma
pessoa para outro Estado onde esta pessoa experimente temor fundamentado de
enfrentar tortura, perseguição ou qualquer outra forma de tratamento ou punição
cruel, desumana ou degradante, em razão de sua orientação sexual ou identidade de
gênero. (ACNUR, 2011, p. 184).

Esses documentos, entretanto, não possuem caráter vinculante, cabendo aos Estados
acatar ou não as recomendações à sua legislação interna. Dentre os países que seguem as
sugestões do ACNUR e dos Princípios de Yogyakarta, concedendo refúgio por orientação
sexual e identidade de gênero, estão, entre outros: Alemanha, Argentina, Brasil, Bélgica,
Canadá, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Holanda, Reino Unido e Suécia. (ANDRADE,
2016).
3 MINORIAS SEXUAIS: QUEM SÃO?

O presente artigo tem por escopo a análise da possibilidade da concessão do instituto


do refúgio às minorias sexuais e os critérios adotados pelos principais Estados e Organizações
Internacionais. Portanto, para melhor compreensão do objetivo exordial, será apresentado a
seguir os conceitos do acrônimo LGBTI que os distinguem de outros grupos sociais,
16

possibilitando um melhor entendimento acerca de suas postulações de refúgio por fundado


temor de perseguição.
3.1 Terminologia

O uso do acrônimo LGBTI no presente estudo busca abranger todos os tipos de


solicitação relacionada à orientação sexual e/ou identidade de gênero. Os conceitos de
orientação sexual e identidade de gênero foram estabelecidos nos Princípios de Yogyakarta e
essa terminologia também é empregada nos países que seguem os princípios.
A orientação sexual de um indivíduo diz respeito à:

[...] capacidade de cada pessoa de sentir uma profunda atração emocional, afetiva e
sexual por pessoas de um gênero diferente do seu, ou do seu mesmo gênero, ou de
mais de um gênero, assim como a capacidade de manter relações íntimas e sexuais
com essas pessoas. (ACNUR, 2011, p. 184).

Já a identidade de gênero se refere à:

[...] vivência interna e individual do gênero como tal e como cada pessoa sente
internamente essa vivência, a qual pode ou não corresponder com o sexo que foi
determinado no momento do nascimento, incluindo uma vivência pessoal do corpo e
outras expressões de gênero, como roupas, o modo de falar ou de se portar
(ACNUR, 2011, p. 185).

A orientação sexual e a identidade de gênero são conceitos amplos que deixam


espaço para a auto-identificação, não devendo serem confundidas. A primeira envolve a
atração afetiva e/ou sexual que uma pessoa manifesta em relação à outra e subdivide-se em
três tipos majoritários de orientação sexual: Heterossexual, Homossexual (Gays e Lésbicas) e
Bissexual.
A segunda compreende a percepção íntima que uma pessoa tem de si como sendo do
gênero masculino, feminino ou de alguma combinação dos dois, independente do sexo
biológico. A identidade traduz o entendimento que a pessoa tem sobre ela mesma, como ela
se descreve e deseja ser reconhecida. Envolve os conceitos de transexual e intersexual.
(SECRETARIA DA JUSTIÇA E DA DEFESA DA CIDADANIA, 2014). Todos os conceitos
apresentados serão melhor delineados abaixo.

Uma mulher lésbica é aquela cuja atração física, romântica e/ou emocional é
direcionada de modo permanente a outras mulheres. De fato, lésbicas estão mais propensas a
sofrer violência por parte de atores não-estatais, sendo comuns relatos de agressões com fins
17

de “estupro corretivo”, retaliação violenta por parte de seus antigos companheiros ou maridos,
casamento forçado e diversos crimes cometidos em nome da “honra” dos seus familiares,
principalmente em países com forte cultura religiosa e opressora aos direitos das mulheres
(ACNUR, 2011).
O termo “gay” é utilizado para descrever um homem que possui uma atração física,
romântica e/ou emocional permanente por outros homens. Todavia, o termo também pode é
utilizado para descrever tanto homens quanto mulheres gays (lésbicas), os denominados
homossexuais em um sentido lato. Segundo dados da ACNUR (2011, p. 185), os homens
gays preponderam numericamente dentre as solicitações de refúgio baseadas na orientação
sexual e identidade de gênero. Geralmente, homens gays são mais visíveis que outros grupos
LGBTI na vida pública de diversas sociedades e podem se tornar o alvo de campanhas
políticas negativas. Por conta da sua orientação sexual, homens gays estão propensos ao risco
de serem agredidos nas prisões, no exército e em outros ambientes ou postos de trabalho
tradicionalmente dominados por conceitos machistas.
Bissexual diz respeito ao indivíduo que é fisicamente, romanticamente e/ou
emocionalmente atraído tanto por homens quanto por mulheres. A bissexualidade é uma
identidade única que requer um exame em seus próprios termos. Em alguns países a
perseguição pode ser dirigida expressamente contra condutas gays ou lésbicas, mas abranger
ao mesmo tempo atos de indivíduos que se identificam como bissexuais. Os bissexuais
costumam descrever a sua orientação sexual como “fluida” ou “flexível”. (ACNUR, 2011).
Transgênero diz respeito às pessoas cuja identidade de gênero e/ou expressão de
gênero diferem do sexo biológico ao qual lhe foi atribuído ao nascer. O transgênero é uma
identidade de gênero, e não uma orientação sexual, de modo que o indivíduo transgênero pode
ser heterossexual, gay, lésbico ou bissexual. Indivíduos transgêneros se vestem ou agem de
formas que geralmente são distintas daquelas que a sociedade esperaria de uma pessoa com o
sexo que ela recebeu ao nascer. Por não se enquadrarem na percepção binária de ser um
homem ou uma mulher, eles podem ser percebidos como uma anormalidade perante as
normas e valores sociais. E é essa não-conformidade que os expõe ao risco de sofrerem
violência e discriminações. (ACNUR, 2011).
Em geral, os indivíduos transgênero são marginalizados e suas narrativas podem
revelar experiências de violências e grave ameaças físicas, psicológicas e/ou sexuais. Quando
a sua autoidentificação e aparência física não combinam com o sexo especificado nos seus
documentos de identidade oficiais, as pessoas transgênero correm ainda mais riscos de
preconceito. A depender do país de origem, a retificação dos registros civis com fins de
18

alterar o gênero de nascimento pode se tornar um processo praticamente impossível, além de


envolver uma série de ajustes pessoais, legais e médicos (ACNUR, 2011).
Por fim, o termo intersexo diz respeito a “uma condição na qual o indivíduo nasce
com uma anatomia reprodutiva ou sexual e/ou com padrões cromossômicos que não se
enquadram nas noções biológicas típicas de um homem ou uma mulher.” (ACNUR, 2011,
p.187). Antigamente, pessoas com essas condições eram reconhecidos como “hermafroditas”.
Importante ressaltar que um indivíduo intersexo pode se identificar tanto como homem quanto
como mulher, podendo, ainda, ter diferentes orientações sexuais, como gay, lésbica, bissexual
ou heterossexual.
Por conta da sua anatomia atípica, algumas crianças intersexo não são registradas
pelas autoridades ao nascerem, o que pode resultar em uma série de riscos associados e
privações de direitos humanos. Em alguns países, um intersexo pode ser visto como algo
maligno ou parte de uma feitiçaria, o que pode levar toda a família a se tornar alvo de
violência e discriminação. Assim como indivíduos transgênero, os intersexo correm o risco de
sofrerem preconceito ou perseguição durante o período de transição para o gênero escolhido,
porque é possível que, por exemplo, os seus documentos de identificação não indiquem o
gênero escolhido (ACNUR, 2011).
3.2 Institucionalização e criminalização da homossexualidade

Conforme Andrade (2016), atualmente 76 Estados criminalizam atos sexuais


consentidos entre pessoas do mesmo sexo, sendo que do número total, 35 são países africanos
e 26 asiáticos (ILGA, 2015 apud ANDRADE, 2016). A pena de morte por relações sexuais
entre pessoas do mesmo sexo acontece em 6 Estados: Iraque, Irã, Mauritânia, Arábia Saudita,
Sudão e Iémen, além de doze estados do nordeste da Nigéria e em partes do sudeste da
Somália (ILGA, 2015 apud ANDRADE, 2016). Nestes lugares, portanto, além de poderem se
defrontar com homofobia familiar, gays, lésbicas, bissexuais e transexuais enfrentam
perseguições e punições de ordem política, jurídica e/ou religiosa, sustentadas pela homofobia
estatal.
Segundo Bomfim (2011) é difícil calcular o número exato de países que
criminalizam a orientação sexual homoafetiva, pois quase nenhuma dessas leis cita o
vocábulo “homossexualidade” (termo cunhado somente em 1860) ou “atos homossexuais”,
sendo que a terminologia utilizada difere entre os diversos sistemas legais.
Importa salientar, entretanto, que mesmo que o Estado não criminalize atos afetivos
e/ou sexuais entre pessoas do mesmo sexo, mas, ainda assim, pessoas tenham fundado temor
19

de perseguição em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero, a concessão de


refúgio se aplica. Andrade (2016), cita como exemplo o caso da Rússia, onde a
homossexualidade não é considerada crime desde 1993, mas há uma série de restrições aos
direitos de gays, lésbicas, bissexuais e transexuais. Ou seja, ainda que a homofobia não seja
institucionalizada, a sociedade civil continua a perseguir homossexuais e transexuais e a
polícia nacional não oferece a proteção necessária à esses indivíduos. Nesses contextos,
portanto, a migração internacional – ou “sexílio” – se coloca como uma alternativa desejável,
e a solicitação de refúgio como uma possibilidade.

4 REFÚGIO E O CONCEITO DE FUNDADO TEMOR DE PERSEGUIÇÃO

Nas últimas décadas, a Organização das Nações Unidas (ONU) e o Alto


Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), têm se manifestado cada vez
mais em preocupação com a prevalência da discriminação e exclusão baseadas na identidade
de gênero e orientação sexual. Indivíduos do grupo LGBTI, segundo as Nações Unidas, são
vulneráveis a diversas violações de direitos humanos, como a violência homofóbica, estupro,
assassinatos e discriminação generalizada no acesso a serviços básicos como saúde, educação
e habitação (MULLER, 2012).
De acordo com Teixeira (2015, p. 25 apud ANDRADE, 2016):

Tradicionalmente, os estudos migratórios partem de pressupostos heterossexistas e


genéricos: os migrantes são tratados como uma massa universal de sujeitos
heterossexualizados e sem distinções de gênero, que migram apenas por questões
econômicas. Por esta perspectiva, a sexualidade não só não motiva a migração como
não seria afetada por esta.

A expressão “fundado temor de perseguição” é o elemento chave para a atual


concessão do refúgio, refletindo o ponto de vista dos autores da declaração em relação aos
elementos constitutivos do conceito de refugiado. Com ela, substitui-se o método anterior de
definição de refugiado por categorias ou nacionalidades pelo conceito geral de “temor” em
razão de um motivo relevante. Por se tratar de conceito subjetivo, a definição contempla um
elemento pessoal que deve ser considerado a partir de cada caso concreto, isto é, da pessoa
solicitante de refúgio. Assim, a determinação da condição de refugiado fundamentar-se-á,
principalmente, não em um julgamento da situação objetiva do país de origem do solicitante,
mas na avaliação das declarações por ele prestadas acerca das discriminações sofridas no seu
dia a dia. (BERNARDES, 2010).
20

De fato, a Convenção de 1951 optou por não conceituar o que entende por
“perseguição”, apenas afirmando ser o refugiado a pessoa que “temendo ser perseguida”
cruza uma fronteira internacional. Feller (2001 apud REIS e MENEZES, 2014) sustenta que
não existir, na Convenção, uma definição de se termo “perseguição” é indicativo do fato de
que suas formas são variadas.
O elemento “temor” – que é um estado de espírito e uma condição subjetiva – é
limitado pelo requisito “fundado”. Isso significa que não basta averiguar apenas a situação de
medo do solicitante para que seja reconhecida a condição de refugiado, mas se esse estado de
espírito amendontrador encontra fundamento em uma situação objetiva. A expressão
“fundado temor” contém, portanto, um elemento subjetivo e um outro objetivo e, para
determinar se esse receio fundado existe, ambos os elementos deverão ser levados em
consideração (ACNUR, 2011).
Uma avaliação do elemento subjetivo é inseparável de uma apreciação da
personalidade do requerente, já que as reações psicológicas dos diferentes indivíduos podem
não ser as mesmas em condições idênticas. Algumas pessoas podem ter convicções políticas
ou religiosas tão fortes que, se viessem a delas abdicar, suas vidas se tornariam intoleráveis.
Outras pessoas, por outro lado, podem não possuir convicções tão marcantes. Umas podem
tomar uma decisão impulsiva para fugir, outras podem planejar cuidadosamente a sua partida.
(ACNUR, 2011).
Quanto ao elemento objetivo, é necessário avaliar as declarações feitas pelo
solicitante. Segundo a ACNUR (2011), as autoridades competentes para determinar a
condição de refugiado não estão obrigadas a avaliar as condições existentes no país de origem
do requerente. No entanto:

[...] as declarações do solicitante não podem ser consideradas em abstrato, devendo


ser analisadas no contexto da situação concreta e dos antecedentes relevantes. Um
conhecimento das condições objetivas do país de origem do solicitante – ainda que
não seja um objetivo em si mesmo – é um elemento importante para a verificação da
credibilidade das declarações prestadas. Geralmente, o temor do solicitante pode ser
considerado como fundado se ele consegue demonstrar, de modo razoável, que a sua
permanência no país de origem se tornou intolerável pelos motivos previstos na defi
nição de refugiado, ou que, por esses mesmos motivos, seria intolerável retornar ao
seu país de origem. (ACNUR, 2011, p. 13).

No entanto, a ACNUR (2011) alerta que a perseguição pretérita não é um pré-


requisito para o reconhecimento da condição de refugiado e, de fato, o fundado temor de
perseguição deve ser baseado na avaliação da situação que o solicitante teria que enfrentar
caso fosse devolvido ao seu país de origem. Ademais, é prescindível que as autoridades locais
21

tenham conhecimento sobre a sua orientação sexual e/ou identidade de gênero antes da fuga
do país de origem
Não existe uma definição universalmente aceita de “perseguição” e as diversas
tentativas de se formular essa definição obtiveram pouco sucesso. Do Artigo 33 da
Convenção de 1951 pode-se inferir que a ameaça à vida ou à liberdade em virtude da raça,
religião, nacionalidade, opiniões políticas ou pertencimento a um grupo social específico é
sempre caracterizada como perseguição. Outras violações graves aos direitos humanos – pelas
mesmas razões – também poderiam caracterizar perseguição. (ACNUR, 2011).
Ademais, o solicitante pode ter sofrido várias medidas que, por si só, não constituem
perseguição (por exemplo, diversas formas sociais de preconceito), as quais podem estar
combinadas com outros fatores adversos (como ambiente de insegurança generalizada no país
de origem ou uma crise política instaurada). Em tais situações, os diversos elementos
envolvidos podem, se considerados conjuntamente, levar o solicitante a um estado de espírito
que pode justificar o fundado temor de perseguição por “motivos cumulativos”. Logo, não é
possível estabelecer uma regra geral quanto aos motivos cumulativos que podem tornar válido
o pedido de reconhecimento da condição de refugiado. Isso dependerá necessariamente de
todas as circunstâncias, incluindo os contextos específicos em termos geográficos, históricos e
culturais (ACNUR, 2011).
No caso específico dos indivíduos LGBTI, menções a ameaças de grave abuso ou
violência são comuns. Violência física, psicológica e sexual, inclusive estupros, em geral
preenchem o requisito da constatação de uma perseguição. O estupro, em particular, já foi
identificado como uma ferramenta de “intimidação, degradação, humilhação, discriminação,
punição, controle e destruição da pessoa. Assim como a tortura, o estupro é uma violação da
dignidade humana (ACNUR, 2011, p. 191).
Ainda, países com forte valoração à normas sociais e religiosas, inclusive a chamada
“honra familiar”, geralmente estão dentre as maiores origens de indivíduos LGBTI que
solicitam refúgio. Apesar de a “mera” desaprovação familiar ou comunitária não constituir
uma perseguição, ela pode ser um fator importante no contexto geral que fundamentou a
solicitação. Quando a reprovação familiar ou comunitária, por exemplo, se manifesta na
forma de ameaças de violência física grave ou de assassinato por parte de membros da família
ou da comunidade em geral, cometido em nome da “honra”, aí então as ações poderiam
claramente ser classificadas como perseguições (ACNUR, 2011).
Outras formas de perseguição incluem o casamento forçado ou de crianças e
adolescentes, gravidez forçada e/ou estupro conjugal. Na maioria dos casos relativos à
22

orientação sexual e/ou identidade de gênero, essas formas de perseguição são utilizadas como
um meio de negar ou “corrigir” a não conformidade. Lésbicas, mulheres bissexuais e pessoas
transgênero sofrem ainda mais risco de sofrer esses tipos de violência em razão de
persistentes desigualdades de gênero que restringem a autonomia na tomada de decisões sobre
sexualidade, reprodução e vida familiar. (ACNUR, 2011).
Segundo Andrade (2016), o fundado temor de perseguição também influencia no
próprio pedido de refúgio. Isso porque muitos solicitantes não conseguem revelar sua
orientação sexual logo no início, relacionado ao fato da dificuldade de falar sobre o tema. De
acordo com Oliva (2012, p. 25) “Nem sempre os solicitantes de refúgio sentem-se
confortáveis para tratar abertamente do assunto, o que dá ensejo a uma aparente ausência de
credibilidade”. Esse receio em falar sobre o assunto pode vir a dificultar o processo de
solicitação de refúgio:

[...] a dificuldade que para muitos dos requerentes é falar da sua orientação sexual,
pois é sentida por muitos como um “segredo bem guardado” que terá sido a origem
de muita discriminação e violência. Efectivamente, o tempo e o modo no qual o
requerente refere a sua orientação sexual é um dos elementos de análise no processo
que provoca dificuldades no processo (VIEIRA, 2011, p. 55 apud ANDRADE,
2016, p. 8).

Entretanto, apesar de uma tendência generalizada de reconhecimento da população


LGBTI à possibilidade de pedido de refúgio, existem resistências institucionais fortes, bem
como dificuldades diversas na persecução real dos pedidos para esta população, como as
referidas acima (VIEIRA, 2011).
Isso pode derivar do fato de que a Convenção de 51 não estabeleceu um órgão
responsável pela interpretação dos critérios de concessão de refúgio. Por conta disso, o
ACNUR divulga diretrizes a fim de orientar controvérsias advindas da interpretação desses
critérios. As diretrizes do ACNUR servem como orientação legal de interpretação para
governos, organizações internacionais, juristas e operadores do Direito, assim como para
funcionários do ACNUR no que tange a determinação do status de refugiado.
(NASCIMENTO, 2016).
Merece destaque a “Diretriz Sobre Proteção Internacional N. 09 – Solicitações de
Refúgio baseadas na Orientação Sexual e/ou Identidade de Gênero no contexto do Artigo
1A(2) da Convenção de 1951 e/ou Protocolo de 1967 relativo ao Estatuto dos Refugiados”,
exposta na obra “Manual de Procedimentos e Critérios para a determinação da condição de
refugiado”, de elaboração do ACNUR no ano de 2011.
As Diretrizes do ACNUR sobre perseguição baseada no gênero reconhecem que:
23

Solicitações de refúgio baseadas em orientações sexuais diferentes contêm um


elemento de gênero. A sexualidade ou práticas sexuais de um solicitante podem ser
relevantes para o pedido de refúgio quando ele ou ela tiver sido submetido a uma
ação persecutória em razão da sua sexualidade ou práticas sexuais. Em vários desses
casos, o solicitante se recusou a aderir aos papéis sociais ou culturais defi nidos, ou
ainda se recusou a atender às expectativas de comportamento atribuídas ao seu sexo.
(ACNUR, 2011, p. 189).

Tal diretriz, ainda, refere que outras razões podem ser aplicáveis, o que vai depender
do contexto político, religioso e cultural da solicitação. Por exemplo, ativistas e defensores de
direitos humanos LGBTI (ou pessoas percebidas como ativistas/defensores) podem vir a
solicitar refúgio com base na opinião política ou religião se, por exemplo, o ativismo
promovido por eles for visto como uma manifestação contrária às visões e/ou práticas
políticas e religiosas dominantes. (NASCIMENTO, 2016).
Por fim, insurge mencionar que informações específicas e relevantes a respeito da
situação e do tratamento de indivíduos LGBTI no país de origem muitas vezes inexistem. Isso
não deve levar automaticamente à conclusão de que a alegação do solicitante é infundada ou
de que não existe perseguição aos indivíduos LGBTI naquele Estado. A capacidade das
organizações internacionais e de outros grupos em monitorar e documentar os abusos contra
indivíduos LGBTI permanece limitada em muitos países. O aumento do ativismo tem sido
repelido em ataques contra defensores dos direitos humanos, o que os impedes de conseguir
aumentar a capacidade de documentar as violações, eis que muitos países evitam mencionar
esses acontecimentos por conta de estigmas relacionados às questões que envolvem
orientação sexual e/ou identidade de gênero. Portanto, é fundamental evitar tirar conclusões
automáticas tendo como base informações sobre um ou outro grupo; entretanto, elas podem
servir como indicação da situação do solicitante em certas circunstâncias. (ACNUR, 2011).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A temática dos refugiados e sua proteção jurídica vem sendo cada vez mais discutido
no campo do Direito Humanitário Internacional. Entretanto, no interior do centro dos estudos
das migrações internacionais, um tema comumente marcado pela invisibilidade é o que
tenciona a questão das minorias sexuais e de gênero, eis que tratadas de forma tão divergente
pelos governos a fora. (SILVA, 2015).
Em geral, é comum observar relatos de integrantes do grupo LGBTI que sofreram ao
menos algum tipo de ameaça, violência ou coação física e/ou psicológica, além de tentativas
de “estupros corretivos” ao redor do mundo, principalmente países árabes e africanos, sendo
24

relatado casos em que tal perseguição é muitas vezes institucionalizada e permitida pela
própria legislação do país, além de ser cominada penas cruéis e/ou de morte (SILVA, 2015).
Buscando fugir desta realidade é que muitos optam por migrar para outros países, em
anseio a uma vida mais digna, ao respeito à seus direitos humanos básicos e à sua segurança
física. Entretanto, ainda que haja ampla discussão no espaço acadêmico sobre a inclusão dos
direitos das minorias sexuais, pouco enfoque jurídico recai sobre o instituto do refúgio com
base nessas discriminações.
Apesar de uma tendência generalizada de reconhecimento da população LGBTI no
acesso facilitado à possibilidade de pedido do refúgio, existem resistências institucionais
fortes, bem como dificuldades diversas na persecução real dos pedidos de asilo para esta
população.
Porém, verifica-se que em muitos Estados, com destaque àqueles do ocidente
europeu e do continente americano, já possuem casos de concessão de refúgio por motivos de
fundado de temor de perseguição a indivíduos LGBTI, mesmo que em pequenos números. No
entanto, a aplicação da definição de refugiados ainda é inconsistente nessa seara.
Insurge como fundamental o papel do ACNUR no reconhecimento das minorias
sexuais como elegíveis para o Estatuto do Refugiado com base na perseguição por seu
pertencimento a esse grupo social tão particular. Suas orientações são essenciais para o
reconhecimento dessas pessoas como sujeitas a ofensas, tratamentos desumanos ou a grave
discriminações por conta da sua orientação sexual ou identidade de gênero e, assim, possível é
a concessão de asilo.

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27

A ATUAÇÃO INTERNACIONAL DO BRASIL NO TEMA DOS


DIREITOS LGBT: PROTAGONISMO EXTERNO E OBSTÁCULOS
INTERNOS

THE INTERNATIONAL AGENCY OF BRAZIL REGARDING THE LGBT


RIGHTS: EXTERNAL LEADERSHIP AND INTERNAL OBSTACLES

Renan Batista Jark1


Data de submissão: 20/10/2016
Data de aceite: 21/11/2016

Resumo

Esta pesquisa está situada no campo da Análise da Política Externa e dos direitos humanos
voltados para o coletivo LGBT. Ancorada pelo método exploratório, o presente artigo irá
examinar como vem ocorrendo o processo de inserção internacional do Brasil no que tange a
temática LGBT, principalmente nos mecanismos da ONU. Para tal, pretende-se analisar quais
atores domésticos estão envolvidos nesse processo e como eles contribuem para os avanços
dessa agenda. A fim de alcançar o objetivo proposto, dividiu-se o presente trabalho em três
seções. Inicialmente será feita uma exposição breve do regime internacional de direitos
humanos, com ênfase no recente tratamento para o público LGBT que é conferido pela ONU.
Buscar-se-á apresentar como a atuação brasileira no Conselho de Direitos Humanos da ONU,
assim como em conferências onusianas de direitos humanos, fortalecem o protagonismo
brasileiro no tema em questão. Em seguida, serão identificados os principais atores, oficiais e
não-oficias, impulsionadores ou inibidores dessa agenda, que influenciam no protagonismo
internacional brasileiro. A partir dessa apresentação, buscar-se-á entender na terceira seção
sobre quais fundamentos se constrói o posicionamento do Brasil nessa matéria. Por último,
serão feitas as considerações finais, delineando-se alguns possíveis interesses que favoreçam a
atuação do Brasil frente à luta por esses direitos na arena internacional.

Palavras-chave: Política Externa; Direitos Humanos; LGBT.

Abstract

This research is situated in the field of Foreign Policy Analysis and in the studies of Human
Rights of the LGBT. Anchored by an exploratory method, this article will examine the
process of international involvement of Brazil with respect to the LGBT agenda, specially in
the UN mechanisms. For this, it is intended to analyze which domestic actors are involved in
such process and how they contribute to the progress of that agenda. In order to achieve the
proposed objective, this work is divided into three sections. First it will be made a brief
presentation of the international regime of human rights, emphasizing the recent recognition

1
Mestrando e graduado em Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail:
renanjark@gmail.com
28

for the LGBT people addressed by the United Nations. It will be presented how the Brazilian
initiatives in the UN Human Rights Council, as well as in the UN conferences of Human
Rights, strengthen Brazil’s leading role in the issue at hand. In the next section it will be
identified the key players, official and non-official, drivers and inhibitors of this agenda,
which may influence in the Brazilian international leadership in this subject. Based on this
presentation, in the third section it will be sought to understand on what grounds the Brazilian
position in this matter is built. Finally, the final considerations will be made, outlining some
possible interests that favor the performance of Brazil regarding such rights in the
international arena.

Key words: Foreign Policy; Human Rights; LGBT.

1 INTRODUÇÃO

De maneira exploratória, o presente artigo irá examinar como vem ocorrendo o


processo de inserção internacional do Brasil no que tange a temática LGBT, principalmente
nos mecanismos da ONU. Para tal, pretende-se identificar quais atores domésticos, oficiais e
não oficiais, estão envolvidos nesse processo e como eles contribuem para os avanços dessa
agenda.
Os direitos LGBT2 (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros)
compõem uma parcela da agenda dos direitos humanos que tem ganhado crescente
repercussão e espaço dentro das organizações internacionais. Dentre as instituições que
habitualmente atuam na proteção dos direitos humanos, o Conselho de Direitos Humanos
(CDH), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU), vem se tornado um importante
promovedor e protetor de direitos relacionados à orientação sexual e identidade de gênero3
nos Estados-membros dessa organização.
Carrara (2012) afirma que, apesar do caráter doméstico e originalmente desenvolvido
no contexto sociopolítico dos Estados, as políticas sexuais têm sido crescentemente
estruturadas no nível internacional, resultantes de compromissos estabelecidos em
organizações internacionais. A natureza dessas políticas é complexa e sofre influencia de
2
Os direitos LGBT são aqueles direcionados à proteção das minorias representadas por esse acrônimo.
Constituem-se como uma forma de direito à sexualidade, conforme nomeia Kuwali (2014). Por isso, “o direito à
sexualidade apresenta uma reinvindicação positiva pela sexualidade como um aspecto fundamental do ser
humano, o qual é central para o completo desenvolvimento da personalidade humana e para o gozo dos direitos
humanos, incluindo a liberdade de consciência e a proteção à integridade física. ” (KUWALI, 2014, p. 26,
tradução livre).
3
De acordo com os Princípios de Yogyakarta (2007, p. 7), a orientação sexual é “uma referência à capacidade de
cada pessoa de ter uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do
mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas”. Já a
identidade de gênero pode ser concebida como “a profundamente sentida experiência interna e individual do
gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso
pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios
médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e
maneirismos”.
29

valores sociais produzidos por “[...] crenças religiosas, valores morais, princípios legais e
posições políticas.” (CARRARA, 2012, p. 185).
Internacionalmente, a proteção jurídica das minorias sexuais4 se origina de
instrumentos como a Carta Internacional dos Direitos Humanos5, o principal instrumento
jurídico internacional em questão de direitos humanos, o qual estabelece, por exemplo,
proteção normativa contra discriminação6 e tratamentos desumanos7. Todavia, uma parcela de
indivíduos da comunidade internacional, normalmente conhecidos por LGBT, ainda são
perseguidos por seus Estados, inclusive aqueles que já assinaram e ratificaram pactos de
direitos humanos. Como assevera Donnelly (2011), apesar dos direitos humanos terem sido
amplamente internacionalizados, a sua aplicação e cumprimento são de responsabilidade dos
Estados. Ainda em 2016 são 74 os Estados que possuem leis que criminalizam essas minorias.
Nos casos mais extremos, as penas podem ser prisões perpétuas ou até a morte (CARROLL,
2016).
Regionalmente, nas Américas são ainda 11 países8 que ainda adotam alguma forma de
criminalização contra homossexuais. Apesar disso, as Américas e a Europa são as regiões do
mundo onde há maior avanço em termos de proteção legal para os LGBT. Merece ser
sublinhado um recente avanço alcançado na Organização dos Estados Americanos (OEA)
pela aprovação, em 2013, da ‘Convenção Interamericana contra toda forma de discriminação
e intolerância’. Quando em vigor, esse será o primeiro instrumento jurídico internacional de
caráter vinculante a condenar a discriminação baseada em orientação e identidade de gênero.
Dentre os países que atuaram ativamente para a sua aprovação, notabiliza-se o Brasil
(CARROLL, 2016; PATRIOTA; BAIRROS; NUNES, 2013).
No Brasil, apesar de não haver leis criminalizantes para as minorias sexuais, a
violência e o cometimento de crimes contra os LGBT é preocupante9 (BRASIL, 2012).

4
Em 2007, um grupo de especialistas militantes e juristas em direitos humanos lançou os Princípios de
Yogyakarta, uma compilação de direitos humanos voltados para a Orientação Sexual e Identidade de Gênero.
Apesar de se caracterizarem como um importante instrumento jurídico referente às minorias sexuais, tais
princípios não têm caráter vinculante (O’FLAHERTY; FISHER, 2008).
5
O instrumento jurídico denominado Carta Internacional dos Direitos Humanos é composto pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos e dois Pactos de direitos humanos: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU, 2001).
6
Artigo 2o da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 2001).
7
Artigo 5o da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 2001).
8
01 na América do Sul e 10 na América Central, principalmente no Caribe anglófono. São eles: Antígua e
Barbuda, Barbados, Belize, Dominica, Granada, Guiana, Jamaica, São Cristóvão e Neves, Santa Lúcia, São
Vicente e Granadinas e Trindade e Tobago (CARROLL, 2016).
9
No Relatório sobre violência homofóbica no Brasil, a Secretaria de Direitos Humanos aponta que em 2012
houve pelo menos 3.084 denúncias de 9.982 violações relacionadas ao público LGBT. Entre esses, os números
apontam para 4.851 vítimas e 4.784 suspeitos. É importante frisar que esses são apenas os números registrados
pelo poder público e que as estimativas indicam que o número de indivíduos violentados pela sua condição
30

Sublinha-se também a ausência de legislação doméstica para proteger esse coletivo em vários
assuntos. Além disso, no Brasil

[...] a legislação civil e penal sedimentou diversos princípios católicos (a


exemplo da indissolubilidade do casamento e punição do adultério e do
aborto) e foi omissa em relação aos comportamentos sexualmente
‘desviantes’ estes restritos ao campo de atuação da saúde pública (SANTOS,
2011, p. 67).

Em paralelo, como se pretende abordar no presente trabalho, o Brasil vem assumindo


um caráter ativo nessa pauta nos fóruns internacionais.
A fim de alcançar o objetivo proposto inicialmente, dividiu-se o presente artigo em
três seções. Após essa introdução será feita uma exposição breve do regime internacional de
direitos humanos, com ênfase no recente tratamento para o público LGBT que é dado pela
ONU. Buscar-se-á apresentar como a atuação brasileira no Conselho de Direitos Humanos da
ONU, assim como em conferências onusianas de direitos humanos, fortalecem o
protagonismo brasileiro no tema. Em seguida, serão apresentados os principais atores,
impulsionadores e inibidores do tema, que influenciam no protagonismo internacional
brasileiro. A partir de sua apresentação, buscar-se-á entender na terceira seção sob quais
fundamentos se constrói o posicionamento do Brasil nessa matéria. Por último, serão feitas as
considerações finais, delineando-se alguns possíveis interesses que favoreçam a atuação do
Brasil frente à luta por esses direitos na arena internacional.

2 A AGENDA LGBT NAS NAÇÕES UNIDAS E A INSERÇÃO BRASILEIRA

A internacionalização dos direitos humanos é um evento recente e que se fortalece no


pós-guerra. A Carta das Nações Unidas, em contraste com a póstuma Convenção da Liga das
Nações, introduz a promoção dos direitos humanos como um dos pilares da ONU e, em
grande medida, eles serão uma das características da ordem mundial que as potências
ocidentais buscarão consolidar nas décadas seguintes (DONNELLY, 2011). A Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH), desde 1948, se firma como o principal instrumento
de proteção aos direitos que, sob o resguardo dos Estados, devem ser garantidos a todos
indivíduos. Posteriormente, os dois pactos de direitos humanos adotados em 1966 - o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,

LGBT seja maior (BRASIL, 2012). Além disso, de acordo com o Trans Murder Monitoring (TMM) Project, o
Brasil ocupa a liderança num ranking de países como o que apresenta o maior número de crimes reportado
contra pessoas transexuais e transgêneras, que entre 2008 e 2014 foi 689 (TGEU, 2015).
31

Sociais e Culturais - oferecem proteção de caráter vinculante aos Estados do sistema onusiano
(ONU, 2001). Contudo, os direitos humanos são responsabilidade principal dos Estados e,
portanto, a falta de coerção dos mecanismos internacionais remete a essas instituições o papel
de apenas monitorar e fazer recomendações (DONNELLY, 2011).
Assevera Donnelly (2011) que, num contexto de término da Guerra Fria, a década de
1990 presencia avanços importantes no regime de direitos humanos, como a criação de um
Alto-Comissário da ONU para Direitos Humanos, a mudança nas práticas de intervenção
humanitária e o estabelecimento de Tribunais ad hoc para o julgamento de crimes de guerra
(Iugoslávia e Ruanda). Pode-se destacar também que, nesse contexto, é evidenciado um
crescimento da presença de temas relacionados à questão de gênero e sexualidade nos fóruns
da ONU e em conferências sociais (CORREA, 2014). Dessa forma,

[...] nos últimos 20 anos, as questões de gênero e sexualidade têm sido cada
vez mais debatidas em arenas das Nações Unidas, sendo este um dos
principais efeitos do ciclo de conferências sobre as questões sociais da
década de 1990, em particular a Conferência de Viena de 1993 sobre os
Direitos Humanos, a Conferência do Cairo de 1994 sobre População e
Desenvolvimento e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher em Pequim,
em 1995, e suas revisões periódicas (CORREA, 2014, p. 175).

O tema da discriminação baseada na orientação sexual foi tratado formalmente pela


primeira vez na Conferência Mundial de Pequim (1995), mas suas propostas foram rejeitadas
por delegações islâmicas. Na Conferência Mundial de Durban (2001) essa temática foi
novamente abordada (BRASIL, 2004). Assim,

Durante a Conferência Mundial de Durban, o Brasil introduziu o tema da


discriminação sobre a orientação sexual em plenária, bem como um
diagnóstico sobre a situação nacional e uma lista de propostas, ambos
incluídos no relatório nacional. A proposta brasileira para a inclusão da
orientação sexual entre as formas de discriminação que agravam o racismo
foi apoiada por várias delegações, sobretudo, do continente europeu.
Entretanto, não foi incorporada ao texto final da Declaração de Plano e Ação
da Conferência de Durban (BRASIL, 2004, p. 13).

Em 2006 é criado o CDH, órgão da ONU que sucede a antiga Comissão de Direitos
Humanos. O CDH, que responde diretamente à Assembleia Geral da ONU, tem como
objetivo a promoção da proteção universal dos direitos humanos. É encarregado pela
elaboração de recomendações acerca de situações graves de violação desses direitos e também
segue a premissa de auxiliar na incorporação dos direitos humanos em todo o aparato
institucional onusiano. Suas reuniões são periódicas e sua composição é de 47 Estados-
membros (UNITED NATIONS, 2016b).
32

O Brasil foi eleito membro da Comissão dos Direitos Humanos pela primeira vez em
1977. Destaca Alves (2008) que a motivação inicial para participar dessa Comissão, ainda em
um contexto de ditadura, foi defensiva e com o intuito de lidar com problemas de imagem
devido às acusações proveniente de ONGs e de outros Estados do ocidente de que o Brasil era
um Estado violador de direitos humanos. Ao mesmo tempo, ela contribuiu para uma
reorientação política do Brasil que se mostrava necessária (ALVES, 2008). Assim,

[...] na medida em que o Brasil lutara contra o nazismo na Segunda Guerra


Mundial, fora Estado fundador das Nações Unidas e partidário convicto dos
direitos humanos, é possível dizer que a atividade brasileira como membro
da CDH acabou por representar, pouco a pouco, a retomada de uma linha
progressista e liberal de nossa política, nacional e exterior, que havia sido
longamente interrompida. Pois quando da adoção da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, o Brasil era não
somente um Estado constitucional democrático, mas também um dos países
com discurso mais avançado na matéria (ALVES, 2008, p. 185).

Moravicsik (2000) apresenta uma explicação para a participação de Estados em


regimes de direitos humanos. Para o autor, a escolha em participar desses regimes reflete os
interesses nacionais que governam o Estado naquele momento. Estados em que a democracia
foi recém-estabelecida têm maior chance de participarem desses regimes (se comparados com
as democracias mais antigas), principalmente daqueles que envolvem instrumentos jurídicos
vinculantes (e não somente declaratórios), porque viabilizam uma estratégia de trancamento
(lock in) da regra democrática através de um constrangimento internacional para o
cumprimento dos direitos humanos. Logo, o objetivo seria tanto o de consolidar as
instituições democráticas (atreladas a princípios dos direitos humanos) como também o de
fortalecer sua estabilidade e credibilidade em relação a possíveis ameaças não democráticas,
garantindo uma segurança frente a incertezas políticas futuras (MORAVCSIK, 2000). Essa
razão seria uma explicação do porquê de a redemocratização brasileira ter acompanhado um
amplo processo de assinatura de tratados e participação em fóruns de direitos humanos.
Também destacam Risse e Sikkink (1999) que a incorporação de normas de direitos
humanos possibilita a diferenciação entre os Estados liberais e democráticos dos que são
autoritários e violadores daquelas. Além disso, os autores afirmam que, apesar de no geral os
Estados adentrarem os regimes de direitos humanos por uma motivação instrumental e
estratégica dos governos em relação à pressões domésticas e transnacionais, a incorporação
dessas normas cria um processo de transformação identitária do país e, independente das
motivações iniciais, as normas passam a fazer parte das crenças e da identidade local.
33

Alves (2008) divide a participação do Brasil no CDH em até cinco momentos:


conservador e defensor da soberania e da não ingerência em assuntos internos (1978-1984),
de transição (1985-1989), de adesão aos instrumentos internacionais (1990-1994), de
valorização do sistema internacional de direitos humanos e atuação direta e participativa
(1995-) e um hipotético e último denominado pelo autor de valorização apreensiva (2006-).
O Brasil tem se mostrado um ator chave dentro do CDH, distinguindo-se por sua
atuação participativa e baseada no princípio de promoção dos direitos humanos10 (BORGES,
2014). O desempenho internacional do Brasil no tema da sexualidade é visto como pioneiro e
protagonista11 (CORREA, 2014). O CDH aprovou em 2011 a Resolução 17/19, a primeira das
Nações Unidas a versar especificamente sobre o tema da orientação sexual e identidade de
gênero. Originalmente proposta pela África do Sul e Brasil, ela expressou “grave
preocupação” pelas reincidentes perseguições estatais e não-estatais sofridas pelas minorias
sexuais em vários Estados-membros da ONU e demandou a realização de um estudo e
relatório sobre essas violações de direitos humanos. A partir do relatório, recomendações
foram elencadas a todos os Estados, como aumentar a proteção de indivíduos LGBT contra
violência homofóbica e transfóbica, revogar leis que criminalizam as minorias sexuais,
prevenir o tratamento cruel e desumano contra esses indivíduos que se encontram detidos,
proibir a discriminação baseada na orientação sexual e identidade de gênero e proteger as
liberdades de expressão, associação e reunião pacífica (UNTIED NATIONS, 2011a, 2011b;
ONU, 2013, p. 13).
Em 2015, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos publicou
um segundo relatório sobre o tema, em resposta à Resolução 27/32 do CDH (apoiada pelo
Brasil). Ele sinalizou alguns avanços no tema pelos Estados12 e também atentou para a

10
A organização Conectas (2010, p. 74 apud MILANI, 2011, p. 48) sublinha alguns importantes momentos de
participação do Brasil no CDH: “[...] visita ao Brasil do presidente do Conselho de Direitos Humanos e presença
do presidente Lula na sua 11a sessão; reeleição do Brasil para o conselho em 2008, com mandato de três anos,
até 2011; introdução, pelo governo brasileiro, de cinco das propostas levadas a votação e copatrocínio de 36,
além de participação no mecanismo de Revisão Periódica Universal de 48 países, fazendo comentários,
perguntas e recomendações aos países revisados.”
11
Patriota (2013) ressalta a atuação internacional do Brasil na temática em questão do Brasil em uma série de
contextos: o lançamento dos Princípios Yogyakarta na ONU em 2007; a apresentação conjunta do Brasil e
outros 66 países da Declaração sobre Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero na
Assembleia Geral da ONU em 2008; o copatrocínio do Brasil e mais 12 países pelo Painel de Alto Nível sobre o
fim da violência e das sanções penais com base em Orientação Sexual e Identidade de Gênero em 2010; diversas
intervenções conjuntas do Brasil em referência à violência baseada na orientação sexual e identidade de gênero
em sessões do CDH; a proposição, ao lado da África do Sul, da já mencionada Resolução 17/19 no CDH; a
iniciativa brasileira pela aprovação da Resolução nomeada ‘Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade
de Gênero’ pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (AGOEA); e a adoção Convenção
Americana Contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância durante uma AGOEA em 2013.
12
Como a descriminalização da homossexualidade em 03 países, a extensão de leis anti-discriminação para os
LGBT e a possibilidade do exercício da união estável entre casais homoafetivos (UNITED NATIONS, 2015).
34

manutenção de grave violência contra esses coletivos13 (UNITED NATIONS, 2015). Além
disso, uma recente Resolução aprovada pelo CDH em 2016, através da qual se estabelece a
criação de um posto especial independente que atuará com direitos LGBT nesse Conselho
exemplifica outro avanço do tema neste órgão da ONU. O Brasil também foi um dos
proponentes dessa Resolução (UNITED NATIONS, 2016a).
Feita essa breve exposição, segue-se para a identificação dos principais atores
domésticos que interferem na agenda em questão.

3 ATORES DOMÉSTICOS INFLUENTES NA AGENDA LGBT

Assume-se no presente trabalho a ideia de que o interesse nacional é plural e que a


política externa é constituída de forma também plural (MILANI, 2011). Portanto,

[...] a partir do momento em que a política externa passa a afetar mais


diretamente uma porção significativa da população, um grupo cada vez mais
amplo de cidadãos tende a se interessar pelas decisões tomadas nesse âmbito
do governo e, além disso, a demandar maior transparência nas ações de
política externa (MILANI, 2011, p. 38).

Enfatiza Milani (2011, p. 40) que, em nível governamental, estão envolvidos na


formulação e implementação da política externa brasileira os seguintes atores: Poder
Executivo Federal; agências de relevância nacional, regional e local (atuantes no plano
internacional); entidades subnacionais; o Poder Legislativo (Senado e Câmara dos Deputados)
e o Poder Judiciário. Já em um nível não governamental: partidos políticos; ONGs;
organizações empresariais e sindicatos; meios de comunicação e opinião pública; think
thanks; organizações religiosas; e grupos étnicos. Para Milani (2011, p. 42), “[...] a ampliação
dos atores e a ruptura com o insulamento burocrático do Itamaraty aproximam a política
externa das políticas públicas domésticas.”
Milani (2011) também afirma que o Brasil ocupa uma posição de destaque no regime
internacional de direitos humanos, com iniciativas nas áreas de refúgio, saúde, racismo e
discriminação, combate à fome, entre outras. No presente trabalho, destaca-se que as políticas
voltadas às minorias sexuais também ocupam uma posição de destaque na agenda
internacional do Brasil.
Para Carrara (2012, p. 186) a agenda das minorias sexuais no Brasil é demandada por
uma rede múltipla e complexa de atores sociais (promovedores e inibidores de pautas LGBT),

13
Assassinatos, tortura, detenções arbitrárias, discriminação nos serviços de saúde e de educação, no emprego,
etc. (UNITED NATIONS, 2015).
35

como ONGs, agências governamentais, partidos políticos, membros do Congresso, juízes,


juristas, centros de pesquisa universitários, agentes de mercado, agências de fomento à
pesquisa, organizações religiosas e sociedade profissionais.
Em um contexto de maior participação de forças da sociedade civil na política, é
válido frisar o papel de duas forças antagônicas que se confrontam na temática da
sexualidade. Isso porque essa oposição se manifesta nas ideias que transitam e ganham força
no Governo Federal. São elas os movimentos sociais de militantes e ativistas LGBT e o
movimento religioso.
Em relação ao movimento ativista homossexual, afirma Santos (2011) que é com a
fundação do grupo Somos em São Paulo, em 1978, que a luta política desse coletivo é
iniciada no Brasil, apesar da repressão da ditadura e das dificuldades próprias de coesão
interna no grupo. Contudo, na década de 1990 é que o grupo se rearticula em nível nacional e
vários encontros passam a acontecer14.
Apesar dos avanços que recentemente impulsionaram os movimentos sociais LGBT
no Brasil, ainda há uma força contrária manifestada majoritariamente pelos princípios
religiosos enraizados na cultura e na construção política do Brasil. Lembra Green (2000, p.
456) que a religiosidade cristã tradicional brasileira condenou a homossexualidade como
imoral ou pecaminosa para a sociedade brasileira de forma hegemônica por muito tempo,
influenciando inclusive o trabalho na área da saúde de médicos e psicólogos. A partir dos
anos 1970 é que ativistas gays e lésbicas conseguem trazer uma contraposição à essas ideias,
dando força a um discurso que se oporá ao religioso, dominante até então.
É notável, nessa construção, o apoio de ideias provenientes do movimento de ativistas
LGBT dos Estados Unidos, Europa Ocidental, os quais já contribuíam para o movimento de
ativistas e de outros países da América Latina como Argentina, Porto Rico e México
(GREEN, 2000). Enfatizam Risse e Sikkink (1999) que o estabelecimento de redes de atores
domésticos e transnacionais influencia diretamente na difusão de normas internacionais de
direitos humanos e exerce pressão (de dentro e de fora) para que os governos assumam
compromissos internacionais no sentido de ampliar esses direitos. Por isso, deve-se
mencionar que há influência dos movimentos internacionais de direitos LGBT sobre os
ativistas, juristas e militantes domésticos, assim como há apoio da transnacionalidade da
religião para a formulação de demandas específicas.

14
Assevera Santos (2011) que em 1995 ocorre no Rio de Janeiro a 17a Conferência da Associação Internacional
de Gays e Lésbicas (ILGA), em torno do qual aconteceu um debate sobre a legalização da união estável
homoafetiva. No mesmo ano essa proposta foi transformada em projeto de lei por Marta Suplicy (PL no. 1.1151).
36

Assevera-se que,

Nos anos recentes, o crescimento dramático das formas de cristianismo


evangélico e pentecostal inseriu um novo fator no cenário religioso
brasileiro. As crenças fundamentalistas desses grupos protestantes
fortaleceram o discurso tradicional anti-homossexual da Igreja Católica. No
fim dos anos 80, os deputados evangélicos uniram-se com aqueles que
abraçavam a visão católica sobre a homossexualidade para opor-se a uma
emenda constitucional proibindo a discriminação baseada na orientação
sexual. Nos anos 90, essa coalizão continuou a bloquear propostas no
legislativo a favor dos direitos de parceria civil. (GREEN, 2000, p. 456-457).

Além da religião, é destacável que o estigma da epidemia da AIDS também contribuiu


para os preconceitos criados contra esse movimento (GREEN, 2000).
Em geral, o acesso das demandas LGBT no governo e sua consequente efetivação em
políticas públicas aconteceu principalmente através dos partidos de esquerda. Ademais, é
válido destacar uma presente participação de grupos do movimento LGBT na formulação de
documentos das recentes políticas públicas para esse público (IRINEU, 2014).
O exercício do Governo Federal em relação às pautas LGBT caminha em paralelo
com as divergentes ideias religiosas e ativistas. Enquanto notabilizam-se avanços no
Executivo e no Judiciário, o Legislativo opera de forma mais conservadora (CARRARA,
2012).
A Assembleia Constituinte, por exemplo, falhou perante as demandas de incorporação
da orientação sexual e identidade de gênero entre as condições de discriminação que deveriam
ser protegidas pelo poder público (CARRARA, 2012). Em tempos recentes, também chamam
a atenção os vários projetos de lei que tratam de forma direta ou indireta sobre a questão do
reconhecimento legal da união estável homoafetiva e da proteção contra discriminação
baseada em orientação sexual e identidade de gênero que tramitam, sem avanço, no
Congresso Nacional (SANTOS, 2011). Ressalta Santos que o principal empecilho para o
desenvolvimento dos direitos LGBT no Congresso é a chamada bancada evangélica15
(SANTOS, 2011). Concomitantemente, é importante mencionar a existência da proteção

15
Para Santos (2011, p. 183), “Eles se posicionam contrariamente a qualquer projeto de lei que garanta direitos
aos homossexuais, ou mesmo que mencione estes como ‘sujeitos de direitos’. [...] as igrejas evangélicas vêm se
constituindo como importantes atores na arena política brasileira, principalmente no período pós-constituinte.
Elas provaram grande capacidade de transferir sua influência religiosa para a arena política, haja vista o sucesso
de diversas candidaturas de membros destas ordens religiosas aos cargos de deputados e senadores (a exemplo
da Igreja Universal do Reino de Deus e da Assembleia de Deus). A participação de candidatos evangélicos na
arena política ocorre basicamente no Poder Legislativo e em virtude da grande capacidade de arregimentação de
votos, estes seriam amplamente ‘cortejados’ por diversos candidatos a cargos executivos, de partidos das mais
diferentes matizes ideológicas. Apesar das diferenças existentes entre as diversas denominações religiosas que
compõem o universo das igrejas pentecostais, haveria uma convergência de opiniões e interesses no que
concerne a dois temas de cunho moral: legalização do aborto e o reconhecimento legal das uniões entre pessoas
do mesmo sexo”.
37

contra discriminação baseada em orientação sexual na Constituição de vários estados e


também em legislações municipais (BRASIL, 2004).
Em complemento, o Executivo concretiza alguns avanços para os LGBT. Já na década
de 1980 destacam-se algumas políticas governamentais focadas na prevenção e tratamento do
HIV/AIDS. Todavia, foi principalmente a partir do Governo Lula que surgiram as primeiras
iniciativas voltadas de forma específica ao público LGBT, como o Programa Brasil sem
Homofobia, vinculado à Secretaria de Direitos Humanos, que resultou na realização de duas
Conferências Nacionais sobre o tema. Em 2009 foi estabelecido o Plano Nacional de
Promoção dos Direitos LGBT. Em 2011 foi criado o Conselho Nacional de Combate à
Discriminação e Promoção dos Direitos LGBT e em 2013 foi estabelecido o Sistema
Nacional de Enfrentamento a Violência contra LGBT e Promoção de Direitos, o qual visava
estabelecer programas de apoio população em termos de suporte jurídico e psicológico
(CARRARA, 2012; IRINEU, 2014). Dentre as competências do Conselho Nacional LGBT
destaca-se a articulação “[...] com órgãos e entidades, públicos e privadas, nacionais e
internacionais, visando o intercâmbio sistemático sobre promoção dos direitos LGBT.”
(IRINEU, 2014, 207).
Em resposta ao silêncio do legislativo que por muito tempo negou direitos às minorias
sexuais, em 2011 o Supremo Tribunal Federal adotou uma decisão que reconheceu a união
estável homoafetiva no Brasil (MUNHOZ; MARTA, 2011).
Após esse breve levantamento dos principais atores domésticos influentes na agenda
LGBT, parte-se para uma análise dos fundamentos que baseiam a formação do
posicionamento brasileiro em sua política externa na presente temática.

4 AS BASES DA CONSTRUÇÃO DO POSICIONAMENTO BRASILEIRO NA


AGENDA LGBT

Para se entender como se constrói o posicionamento brasileiro acerca da agenda


LGBT é importante mencionar que, apesar da crescente participação de atores na formulação
da agenda da política externa, o modelo institucional vigente concentra o poder de agenda nas
mãos do Presidente da República, representando o Executivo (PINHEIRO, 2003). Mais ainda,

[...] dentre as inúmeras fases que eventualmente constituem o processo de


tomada de decisão em política externa, o Itamaraty retém em suas mãos as
fases de definição do problema, identificação das alternativas, decisão e
implementação, ficando nas mãos do Congresso apenas a deliberação sobre
38

a decisão e a adesão (ou não-adesão), ou seja, a prerrogativa da ratificação


ou do veto (PINHEIRO, 2003, p. 58).

Essa lógica é consoante com a a percepção de ‘progressismo’ no Executivo e


conservadorismo do Legislativo nas pautas de gênero e sexualidade. O aumento do apoio
nacional na ONU nessas pautas é concordante com o avanço, ainda que incipiente, das
políticas públicas nacionais no Executivo16. Em complemento, a baixa autoridade que o
Legislativo tem em matéria de política externa é também consoante com o distanciamento do
tipo de posicionamento que a bancada evangélica defende internamente nos fóruns
internacionais.
Ressalta-se que há uma crescente participação da sociedade civil na formulação de
políticas públicas, o que é válido para as políticas nacionais LGBT. Em paralelo a esse
aumento, é possível enfatizar um crescente aparecimento do tema aqui estudado nas
apreciações do Brasil em fóruns multilaterais de direitos humanos. Nacionalmente, Gómez
(2011) defende que a gradual participação da sociedade civil no governo nacional foi muito
importante para as estratégias nacionais de resposta à epidemia HIV/AIDS, por exemplo. No
âmbito internacional, a participação da sociedade civil foi importante para a formulação dos
posicionamentos em conferências internacionais de direitos humanos, como a de Durban.
Assim,

Com base na articulação e consultas feitas junto à sociedade civil


organizada, o Governo Brasileiro levou o tema para a Conferência Regional
das Américas, realizada em Santiago do Chile, em 2000, preparatória para a
Conferência de Durban. A Declaração de Santiago compromete todos os
países do continente com texto que menciona a orientação sexual entre as
bases de formas agravadas de discriminação racial e exorta os Estados a
preveni-la e combatê-la (BRASIL, 2004, p. 12).

Simultaneamente, não se pode deixar de levar em consideração que outros temas


avançam em paralelo às pautas de direitos LGBT, os quais podem ter influência direta sobre a
decisão de se aprofundar nos posicionamentos internacionais sobre essa matéria17.
Valença e Carvalho (2014) asseguram que a política externa brasileira se dirige por
um esforço histórico em alcançar dois objetivos: autonomia e um papel significativo na

16
Não se pretende ignorar o questionamento crítico com que Pinheiro (2003) aponta para o distanciamento do
Legislativo no que tange a política externa. Apontamentos indicam que o processo decisório internacional teria
maior visibilidade se contasse com a maior presença dos parlamentares.
17
O Brasil atingiu um status de protagonista pelos seus programas de saúde no tema HIV/AIDS, como o que
envolve a distribuição gratuita de medicamentos antirretrovirais, desde 1991. A visibilidade internacional foi
bastante positiva para o país e os avanços levaram o país a deixar de ser receptor para se tornar doador de ajuda
desde 2003. É pertinente mencionar que houve campanhas específicas para a comunidade LGBT que indicam
avanços específicos para esse coletivo nas estratégias de saúde (GÓMEZ, 2011). Portanto, outros temas podem
ter influenciado no aparecimento e fortalecimento da agenda LGBT na política externa brasileira.
39

política internacional. A postura que se assume no presente artigo é de que que o


posicionamento do Brasil frente à questão LGBT é tanto reflexo do ativismo destes e de seus
aliados como também uma forma de protagonismo brasileiro em fóruns multilaterais de
direitos humanos. Por isso, percebe-se nuances da política externa instrumental (como meio
de se avançar no desenvolvimento interno) e também de se posicionar perante a comunidade
internacional. Entretanto, essas duas estratégias se influenciam mutuamente, ou seja, ganhos
pelo protagonismo internacional podem exercer pressão externa e viabilizar transformações
nas estruturas domésticas. Como mencionam, Dauvergne e Farias (2012, p. 914, tradução
livre) em relação a um discurso da Presidente Dilma Rousseff, “A política externa de um país
é mais do que projeção na arena internacional. É também um componente essencial do projeto
de desenvolvimento nacional, especialmente em um mundo que é cada vez mais
interdependente.”
A política externa brasileira também se baseia nos princípios da Constituição Federal,
como a prevalência dos direitos humanos nas suas relações internacionais. Contudo, é
interessante a reflexão de Volpon (2014, p. 14) que, em referência ao governo de Lula
defende que:

Acredita-se que a política externa brasileira relativa aos direitos humanos,


nesse período, tenha sido pendular, isso significa dizer que o governo tendeu
a se posicionar pró-direitos humanos quando lhe conveio e/ou a se
posicionar de modo blasé, ignorando violações de direitos humanos de
países potenciais parceiros e optando por um discurso de conciliação e
diálogo e de não acusações direitas, quando os interesses estratégicos
falaram mais alto (VOLPON, 2014, p. 14).

Ou seja, o princípio da soberania nacional e a contrariedade a intervenções


humanitárias têm um maior peso do que o princípio dos direitos humanos no que tange a
política externa do Brasil (ENGSTROM, 2012). Por isso, pode-se entender que é quando não
afetam interesses estratégicos que a política de direitos humanos tem seu devido espaço.
Algumas ressalvas merecem ser feitas em relação ao que nesse trabalho foi nomeado
de ‘protagonismo brasileiro’ nas agendas LGBT. Em primeiro lugar, é significativo explicitar
que não é só internamente que existem essas incongruências nas políticas de direitos
humanos. Em seu posicionamento externo, elas também são evidentes. Em 2013, por
exemplo, no mesmo ano em que apresentou a declaração conjunta contra as violações de
direitos das pessoas LGBT em uma sessão do CDH, o Brasil se absteve em expressar
preocupação diante de uma Resolução russa pela ausência da orientação sexual e identidade
40

de gênero como base de discriminação dentro os aspectos de proteção nos Jogos Olímpicos
que estavam para acontecer (CORREA, 2014, p. 177).
Em segundo lugar, deve-se frisar a seletividade do Brasil em assuntos de direitos
humanos. Borges (2014) destaca que o Brasil tem uma participação ativa e foi considerado
um ator chave em Resoluções de direitos humanos no CDH. Uma das vantagens do Brasil é
sua capacidade de interlocução com outros países e sua busca pela solução pacífica de
controvérsias. Ao mesmo tempo, a postura do Brasil é vista como bastante seletiva e, em
alguns casos, politizada, evitando interferir em assuntos que dizem respeito à violação de
direitos humanos por outros Estados18. O Itamaraty possui uma tradição da política externa
brasileira de não-intervenção em questões de violações de direitos humanos em outros países
(MILANI, 2011).
Engstrom (2012) assevera que nos Governos recentes (Lula e Dilma), o papel do
Brasil no regime internacional de direitos humanos foi bastante questionando, tanto pela
presença contínua de violações de direitos humanos no âmbito doméstico quanto pela
incerteza do papel das potências emergentes perante esse regime. Apesar da participação ativa
do Brasil para a Resolução do CDH em 2011, o autor aponta que em outros temas de direitos
humanos e em termos de iniciativas para esse regime, o Brasil foi bastante inativo. Isto é, o
avanço com que a questão LGBT vem sendo abordado pelo Brasil não necessariamente
representa avanços em outras áreas de direitos humanos (como a justiça de transição e a
respectiva postura brasileira frente às decisões da Corte Interamericana) (ENGSTROM,
2012).
Finalmente, deve-se tomar cuidado para os perigos do pinkwashing, conceito utilizado
principalmente como crítica ao Estado de Israel que, através de campanhas midiáticas que
investem na promoção de Israel como um país gay-friendly, ‘limpa’ sua imagem de país
violador de direitos humanos do povo palestino (BENTO, 2016). Este trabalho está longe de
assumir que essa seja a posição oficial do Brasil em relação aos LGBT. Além disso, o Brasil
ainda está distante de ser uma referência de país protetor dos LGBT. Todavia, é indispensável
conceber os direitos humanos como amplos e, logo, suas diferentes interseccionalidades
devem progredir de forma conjunta, jamais uma em detrimento de outra. Mais ainda, deve-se
advertir que políticas públicas voltadas para o mascaramento de violações de direitos
humanos contribuem para uma conotação negativa dos movimentos sociais pró-LGBT, mais
os prejudicando do que auxiliando.

18
Borges (2014) se refere a Resoluções do CDH que tratam da Coreia do Norte, Sri Lanka, Irã, República
Democrática do Congo e Sudão, entre 2006 e 2011.
41

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo teve por objetivo introduzir um debate acerca da atuação brasileira na
agenda LGBT. Ainda se está muito distante de se assumir posturas definitivas acerca de quais
são os interesses por traz do crescimento dessa pauta pelas delegações diplomáticas brasileiras
nos mecanismos internacionais de direitos humanos. Contudo, nessa conclusão, pretende-se
traçar alguns cenários hipotéticos, os quais não necessariamente precisam ser percebidos
como isolados.
Um cenário mais otimista pode ser formulado sob a ótica do interesse brasileiro em se
consolidar como um real promovedor de direitos humanos internacionais, baseado em uma
lógica que já é histórica na política externa brasileira (à exceção da ferida histórica marcada
pelos tempos de ditadura). Mais do que melhorar a posição internacional do Brasil, essa
promoção pode angariar ganhos internos. A atuação promotora desses direitos pode fomentar
uma pressão externa para facilitar a superação de entraves no legislativo. Ademais, uma
forma de se ampliar o arcabouço protetivo doméstico específico para as minorias sexuais é
assumindo compromissos internacionais como a mencionada assinatura da Convenção
Interamericana contra Discriminação. Isto é, num cenário em que o Legislativo dificulta
avanços protetivos nessa pauta, uma possível consequência da inserção brasileira nessa
questão é que a assinatura internacional de tratados de direitos humanos pode ser incorporada,
após a devida aprovação das casas do Congresso, como emenda constitucional (BRASIL,
2004).
Um cenário mais pessimista conduz à percepção dessa agenda como uma forma de
limpeza da imagem brasileira como violadora de direitos humanos, um certo pinkwashing.
Essa agenda possibilita que o Brasil protagonize uma imagem de promovedor de direitos
LGBT, contrabalanceando deficiências em outras áreas de direitos humanos. Mais do que
isso, ela permite que o Brasil consiga ganhos em outras áreas viabilizados pela sua melhor
inserção no sistema multilateral de ideário liberal-democrático. Ademais, ela corrobora com a
ideia de que o Brasil faz um uso pendular da agenda de direitos humanos, utilizando-a de
forma pragmática e de acordo com as demandas estratégicas do governo.
Finalmente, é possível traçar um cenário intermediário, no qual os interesses resultam
de um conflito interno entre posições antagônicas. Politicamente, a disputa social entre
ativistas e religiosos se manifesta no Governo Federal. Essa é uma das razões por que
questões de sexualidade avançam no Executivo e no Judiciário e retrocedem no Legislativo.
42

Esta disputa social não é puramente nacional, visto que ela está atrelada a movimentos
transnacionais (as ONGs de ativistas e as próprias religiões), as quais movimentam suas
pautas de forma transcendental entre o local e o global. A religião e as ONGs são
empoderadas em movimentos transnacionais, ganhando força externamente e sendo
impulsionadas internamente. Em complemento com a hipótese da busca pelo protagonismo
externo, é indispensável destacar que as políticas públicas internas também são importantes
mecanismos para melhorar a imagem externa do país. Contudo, não se pretende diminuir a
força dos militantes da sociedade civil que desejam ter suas pautas assumidas pelo governo.
Por esse ângulo, a política externa representa tanto aspectos da imagem que o Brasil almeja
perante a sociedade internacional (a de um país moderno e promotor dos direitos humanos)
como também reflexos de demandas internas em um contexto em que a sociedade civil
consegue levar suas demandas para o Executivo, principalmente para o Ministério das
Relações Exteriores. Ademais, essa agenda avança com a atuação de partidos de esquerda no
poder, os quais possibilitam maior participação de ideais sociais em sua constituição.

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46

A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DAS MULHERES REFUGIADAS À


LUZ DA PERSPECTIVA FEMINISTA

THE INTERNATIONAL PROTECTION OF WOMEN REFUGEE IN THE


LIGHT OF A FEMINIST PERSPECTIVE

Vivianne Barbosa Soares1

Data de submissão: 05/10/2016


Data de aceite: 21/11/2016

Resumo
A questão dos refugiados e o comprometimento dos Estados quanto a sua proteção são assuntos
muito aludidos na agenda internacional atual. No entanto, poucas são as reflexões existentes
sobre como essa proteção é falha ao tratarmos das mulheres refugiadas. Com isso, o presente
artigo pretende analisar a simbiose entre direitos humanos e o instituto do refúgio quando
voltados a salvaguarda dessas mulheres. Almeja-se ponderar sobre a atual condição desses
dispositivos jurídicos e tecer uma argumentação que corrobore que, para a maximização da
proteção feminina, é imperativo que se remodele tais dispositivos sob a ótica de uma perspectiva
de gênero. Para isso, duas questões serão abordadas aqui: o escopo de definição do que é ser um
refugiado pela Convenção de 1951 e também as violações de direitos humanos ocorridas no
âmbito dos centros de detenção dos requerentes de asilo.
Palavras-chave: Refugiados; Direitos humanos; Mulheres; Gênero.
Abstract
The issue of refugees and the commitment of States to protect them are very alluded concerns on
the current international agenda. However, there are few existing reflections on how this
protection is defective when dealing with women refugees. Thus, this article aims to analyze the
symbiosis between human rights and the refugee institute when aimed at safeguarding these
women. It intends to reflect on the current condition of these legal provisions and weave an
argument that corroborates that, to maximize protection of women, it is imperative to remodel
such devices from a gender perspective. For this, two questions will be addressed here: the
definition of the scope of what being a refugee by the Convention of 1951 means and also the
human rights violations occurring within the facilities for detention of asylum seekers.
Keywords: Refugees; Human rights; Women; Gender.

1 INTRODUÇÃO

                                                                                                                       
1
 Graduanda  em  Relações  Internacionais  pela  Universidade  de  Brasília  (UnB).  E-­‐mail:  vivianne.bsoares@gmail.com  
47

Após 1945 o instituto do refúgio foi estabelecido. Isso se deu devido a afirmação plena
dos direitos humanos em face dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, originando uma
percepção por parte dos Estados de que uma cooperação transnacional seria crucial para a
proteção das pessoas que migraram forçadamente (MENEZES; REIS, 2014). Por esse motivo, a
vinculação entre direitos humanos e o instituto de refúgio é incontestável. Esse nada mais é que a
internacionalização lacto sensu daqueles, visto que a responsabilidade da proteção humana passa
a ser compartilhada pela comunidade internacional a partir do momento que um Estado falha em
cumprir tal obrigação. Flávia Piovesan ( 2001, p. 37) define que:

A proteção internacional dos refugiados se opera mediante uma estrutura de


direitos individuais e responsabilidade estatal que deriva da mesma base
filosófica que a proteção internacional dos direitos humanos. O Direito
Internacional dos Direitos Humanos é a fonte dos princípios de proteção dos
refugiados e ao mesmo tempo complementa tal proteção.

Ou seja, para que haja o entendimento de que os indivíduos necessitam de uma proteção
internacional como a do refúgio faz-se necessário compreender que, a princípio, o indivíduo
possui direitos natos, afirmados historicamente. Isto é, o fenômeno transnacional da migração
forçada, via instituto de refúgio, é um fenômeno que possui em seu cerne os direitos humanos e
suas violações. Corroborando tal argumentação é possível citar dois marcos jurídicos importantes:
Primeiro, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que especifica em seu Artigo
14 a garantia do asilo como um desses direitos naturais ao afirmar que “todo ser humano, vítima
de perseguição, tem o direito de procurar e gozar de asilo em outros países” (ONU, 1948, p. 9); e
também, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), que entende que
os indivíduos que deixaram seus países de origem em busca de proteção internacional o fizeram
principalmente por terem tido seus direitos humanos colocados em risco naquele território
(ACNUR, 1995)2.
Assim, é imprescindível salientar que as violações de direitos humanos não estão
restritas ao país de origem do solicitante, mas também podem estar presentes em sua jornada de
trânsito e na chegada aos países receptores. Isto é ainda mais verdadeiro quando tratamos de
grupos vulneráveis como mulheres. Quanto à própria afirmação jurídica da condição de refugiado,

                                                                                                                       
2
“Decidir que um indivíduo possui um fundado temor de perseguição é, na verdade, concluir que um ou mais de
seus direitos humanos básicos não estão sendo respeitados” (ACNUR, 1995, p. 2, tradução própria).  
48

o parágrafo 35 da Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, no âmbito da IV Conferência


Mundial sobre a Mulher, de 1995, explicita que ao chegar aos países de asilo, o grupo encontra
dificuldades para ter tal condição reconhecida. Além disso, uma pesquisa realizada pela Anistia
Internacional (AI) descreve relatos de mulheres que passaram por abusos físicos, exploração
financeira, assédio sexual e estupros por parte de traficantes, seguranças de centros de detenção e
também por outros refugiados, inclusive em território europeu (ANISTIA INTERNACIONAL,
2016).
Dessa forma, o presente artigo pretende se voltar para as experiências das mulheres
refugiadas depois da partida de seus países de origem, demonstrando que uma abordagem de
gênero nos Direitos Humanos e no regime de refúgio deve ser incorporada para a maximização
da proteção feminina. Inicialmente almeja-se abordar a discussão sobre a possível necessidade de
criação de uma sexta categoria de refugiados, a de gênero. Ambos os argumentos, a favor e
contra a criação, serão levantados. Contudo, ambiciona-se demonstrar que a primeira trará uma
maior proteção às mulheres. Em um segundo momento, serão brevemente expostas as violações
de direitos humanos nos países receptores, focando principalmente nos acontecimentos ocorridos
nos centros de detenção, hoje muito utilizados por Estados considerados polos de atração
migratória.
2 EXPERIÊNCIAS FEMININAS E O CONCEITO DE REFUGIADOS
Ao migrar para além das fronteiras nacionais, devido um fundado temor de perseguição,
a mulher inicia uma jornada em busca de proteção. Esta jornada está condicionada e inserida em
uma sociedade internacional dominada pelo masculino. Simone de Beauvoir (1949) argumenta
em um de seus livros que a representação do mundo, assim como o próprio mundo, é obra do
homem, e que estes o descrevem de acordo com seus pontos de vista. Os Direitos Humanos e o
instituto de refúgio não estão aquém desse modus operandi. Como demonstra Pamela Goldberg
(1993), tradicionalmente a doutrina dos Direitos Humanos centrou-se nas experiências
masculinas, que teriam sido utilizadas como indicadores e como a norma formadora de garantias.
Assim, a autora defende que, devido a essa perspectiva masculina, muitas violações de direitos
humanos baseadas no gênero são marginalizadas.
Portanto, podemos dizer que a própria definição de refugiados dada pela Convenção de
1951 parte de um quadro de vivências masculinas, e que a ideia de uma linguagem neutra é tão
ilusória quanto inverídica. A Convenção define o escopo de “refugiado” como aquele que
49

Devido a um fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião,


nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua
nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da
proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país
no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos,
não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele (ONU, 1951).
O fato de não haver qualquer referência no documento sobre uma perseguição
fundamentada no gênero3 deixa as mulheres sujeitas a diferentes interpretações do que se coloca
como “grupo social”. Assim, como não se reconhece suas experiências de perseguição, estas
passam por maiores obstáculos para a obtenção da condição de refugiado do que os homens
(JUAN, 2014). Em outras palavras, a proteção internacional não pode ser obtida prontamente
pelas mulheres, a não ser que os motivos que as fizeram deixar seus países de origem sejam os
mesmos ou análogos às razões pelas quais os homens fogem (POPE; STAIRS, 1990). Em suma,
perseguições e violações de direitos humanos sofridas pelas mulheres, simplesmente por sua
condição de gênero4, são muitas vezes negligenciadas devido a essa construção androcêntrica da
definição clássica de refugiado.
Com isso, adentramos em uma discussão sobre a ontologia do conceito. Enquanto
muitos defendem a inclusão de uma nova categoria que contemple esse tipo de perseguição
exclusiva às mulheres, outros tão-somente argumentam pela necessidade de uma interpretação
que adote uma abordagem sensível ao gênero no momento da análise das solicitantes como
membros de um grupo social (JUAN, 2014).
Aqueles que advogam pela última proposta têm como um dos pilares de sua
argumentação as Diretrizes sobre Proteção Internacional Nº1 (2002), elaborada pelo ACNUR.
Tal documento sugere que, ainda que não se faça nenhuma menção específica ao gênero na
acepção de refugiado da Convenção, é amplamente reconhecido no sistema internacional que a
questão de gênero pode influenciar e até determinar o tipo de perseguição, e que, por isso, não
seria necessária a adição de uma nova categoria. O que essa argumentação falha em reconhecer é
o fato de que, como antes já explicitado, as tradições jurídicas, as interpretações legais e os
próprios decision-makers estão inseridos em um sistema patriarcal. A esfera pública internacional

                                                                                                                       
3
Será utilizado aqui o conceito de gênero exposto por Anker e Lufkin (2003), que afirma que “gênero” no contexto
dos Direitos Humanos refere-se às divisões socialmente determinadas dos papéis entre homens e mulheres, às noções
de feminino e masculino socialmente construídas e às resultantes disparidades de poder que moldam e definem a
identidade da mulher e seu status dentro da sociedade.  
4
Estas violações podem incluir, mas não são limitadas a: violência doméstica, escravidão sexual, abortos forçados,
esterilização forçada, mutilação genital, tráfico, violência sexual, abuso e estupros, dentre outros.    
50

ainda é um espaço em que o desequilíbrio de poder entre homens e mulheres prevalece, fazendo
com que questões como esta não sejam tão incontestáveis e evidentes como sugerido pelo
ACNUR no documento.

Jubilut (2007) argumenta que a definição de grupo social não é precisa e que sua
inclusão na Convenção visou exatamente essa plasticidade. Isto se deu para que houvesse uma
aplicação homogênea do instituto de refúgio, manejando o conceito quando fosse necessário
proteger indivíduos que não se enquadrassem nas categorias tradicionais. Assim sendo, a autora
ainda afirma que a adoção da classe “grupo social" foi um ato residual, maleável e, por
conseguinte, garantidora da justiça efetiva aos refugiados. No entanto, apesar dessa argumentação
de forma implícita afirmar que a adaptabilidade do conceito teria o poder de se moldar às
necessidades das mulheres quanto às formas de perseguições que lhe únicas, reluta-se a tratar tal
proposição de forma tão otimista e efetiva.
Primeiramente, a categorização generalista das mulheres como um grupo social é
controversa, o que pode resultar no indeferimento das reinvindicações de refúgio. Jubilut (2007)
afirma que, para se definir um grupo social deveríamos nos atentar a três elementos. Um deles diz
respeito à própria identificação do grupo como um coletivo, isto é, a existência de um sentimento
de pertencimento, uma coesão a ele intrínseca. Todavia, isto não acontece. É demasiada a
diversidade existente entre as mulheres, o que as faz não se identificarem uma com as outras e,
por essa razão, entende-se que tratá-las como uma entidade social única é ignorar essas diferenças
sociais e de classe existentes (PHELAN, 1989), rejeitando a noção de interseccionalidade5.
Além disso, situar as mulheres como um grupo social per se reitera a posição de
impotência e marginalização destas (FOOTE, 1994), uma vez que subordina as mulheres a se
adequarem as normas masculinistas de definição de refúgio, ao invés de visibilizar suas vivências
de gênero. Isto implica em atestar que os problemas encontrados pelas mulheres refugiadas são
apenas uma variação dos problemas masculinos, o que não é verdadeiro. Abortos forçados,
estupros, mutilação genital, dentre outros, não possuem paralelos com a experiência masculina, e

                                                                                                                       
5
Interseccionalidade pode ser entendida como a interconectividade, coexistência ou sobreposição de diferentes
identidades sociais e sistemas de opressão, discriminação ou opressão. Kimberly Crenshaw, ao longo de suas obras,
define o conceito como uma maneira de se analisar as consequências da interação entre diversas formas de
subordinação como, por exemplo, o sexismo, o racismo, o patriarcalismo, o elitismo, etc.
 
51

não nomear tais violações pelo que são trivializa a opressão de gênero, colocando-a como menos
lesiva do que perseguições por motivos de raça ou religião (MACKLIN, 1993).
Para combater tais críticas, muitos defensores dessa tese argumentam que a inclusão das
mulheres como grupo social não deve ser feita de forma a tratá-las genericamente ou por uma
configuração universal, mas sim por meio de conjuntos mais restritos (MACKLIN, 1995) como,
por exemplo, “mulheres togolesas que se opõem a prática de mutilação genital tida como tradição
no país” 6 . Entretanto, entende-se que essa subcategorização provoca uma banalização da
violência de gênero, afastando a questão do cerne da Convenção e ocultando ainda mais o
problema. Sendo assim, o que se depreende é que, a contenção das perseguições de gênero dentro
da categoria “grupo social” conduz sempre a uma negação e invisibilização das mulheres como
requerentes de refúgio. Somente a inclusão de uma nova classe na Convenção de 1951 pode
garantir a eficácia necessária para a proteção dessas mulheres, além de acarretar em uma
mudança global na percepção dessa necessidade. Como expõe SCHENK (1994, p. 303),
Determinações da ONU no campo dos direitos humanos carregam forte
autoridade persuasiva e exercem uma influência considerável sobre as
formulações das leis nacionais. Alterar a definição da ONU de "refugiado" para
incluir uma categoria de gênero iria remover o preconceito de gênero existente e,
provavelmente, criar uma mudança global abrangente no tratamento das mulheres
na lei de asilo.
Outras críticas quanto a essa inclusão enunciam sobre a dificuldade de se alterar a
Convenção de 1951, devido sua característica burocracial. Inegavelmente, a compreensão de um
novo critério para a concessão da condição de refugiado seria uma ação burocrática e complexa,
dado o fato da Convenção ser fruto da cooperação internacional de diversos países, com
interesses heterogêneos, principalmente quando se trata da agenda migratória. Contudo, escolhe-
se contemplar a Convenção e os Direitos Humanos como organismos vivos, em que a nova
incorporação seria uma evolução natural dos institutos de proteção internacional da pessoa
humana. A própria história da Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados
corrobora isto. Inicialmente esta possuía um recorte de espaço e tempo7 que restringia quem

                                                                                                                       
6
Faz-se referência aqui ao caso da jovem togolesa Fauziya Kasinga, que em 1994 pediu refúgio nos Estados Unidos
por temer ser compelida a mutilação genital em seu país. Seu caso inicialmente foi negado devido a Corte de
Apelação americana nos casos de migração acreditar que todas as mulheres de sua tribo são pressionadas à
circuncisão e que ela não estaria sendo perseguida individualmente. Somente em 1996, em um processo de recurso
jurídico, que a solicitante foi reconhecida como refugiada, nas bases de “um grupo social particular”. O processo está
disponível para consulta em: https://www.justice.gov/sites/default/files/eoir/legacy/2014/07/25/3278.pdf
7
A Convenção de 1951 foi redigida para lidar com a situação pós Segunda Guerra Mundial, o que fez com que o
escopo do documento se restringisse a indivíduos prejudicados por tal evento. A Convenção enunciava que o termo
52

poderia ser abrangido por tal instrumento legal. Somente em 1967 que a criação de um Protocolo
adicional ocorreu, universalizando a proteção dos refugiados.

Outros instrumentos de soft law8 também podem ser aqui citados como evidência dessa
constante necessidade natural de desenvolvimento e aperfeiçoamento do instituto de refúgio. A
Declaração de Cartagena de 1984, por exemplo, ampliou ainda mais a definição de refugiado,
passando a incluir no aparato de proteção indivíduos que sofreram graves e generalizadas
violações de direitos humanos. E, apesar de ser um documento não vinculativo, a Declaração foi
incorporada a legislações de diversos países, inclusive a do Brasil, e hoje é o alicerce jurídico
para o deferimento de diversos solicitantes, principalmente os nacionais da Síria. À vista disso, a
inclusão da nova categoria seria uma evolução natural e não um distúrbio à ordem jurídica
internacional. Conclui-se, portanto, que a adição traria mais benefícios do que uma mera
reinterpretação da Convenção.

3 EXPERIÊNCIAS FEMININAS E A CHEGADA NO PAÍS RECEPTOR

Posto isto, enquanto aguardam a determinação jurídica da sua condição de refugiado no


país de asilo, muitos solicitantes são submetidos à detenção. Esse procedimento, que tem sido
uma tendência crescente nas últimas décadas, é um exemplo de como métodos internos dos
países receptores podem “contrariar seus comprometimentos concernentes a direitos humanos e à
proteção internacional” (MENEZES, 2012, P. 97).
Muitos são os marcos jurídicos que tratam sobre o assunto: A Declaração Universal dos
Direitos Humanos garante o direito à liberdade e a segurança pessoal, além de declarar que
nenhum indivíduo deve ser submetido a detenções arbitrárias (DUDH, 1948); O Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) e a Convenção Internacional sobre a
Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias
(1990) também reforça esses direitos. Além disso, o direito à liberdade também é garantido por

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
“refugiado” se aplicaria a qualquer pessoa que temesse ser perseguida por razões de raça, religião, nacionalidade,
grupo social ou opiniões políticas desde que essa perseguição fosse consequência dos acontecimentos ocorridos antes
de 1º de janeiro de 1951.
 
8
Soft law, ou direito flexível, são normas sem força vinculativa, ou seja, que não tem caráter obrigatório. Essas
normas são desprovidas de atributos jurídicos em relação aos signatários e, portanto, não acarretam em obrigações de
direito positivo aos Estados. Em suma, essas regras têm valores normativos menos constringentes que o das fontes
jurídicas tradicionais, como o caso dos tratados.
 
53

referências legais regionais como o Artigo Sétimo da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (1969), o Artigo Quinto da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das
Liberdades Fundamentais da Europa (1950) e ainda o Artigo Sexto da Carta Africana dos
Direitos Humanos e dos Povos (1990). Para mais, outros dispositivos de soft law mais específicos
ao instituto do refúgio, como as Diretrizes do ACNUR sobre Critérios e Padrões para a Detenção
de Solicitantes de Asilo e Refugiados (2012), expressam a opinião de que a prática da detenção
deve ser tida como exceção, e não como regra no sistema internacional, por causar danos aos
detidos.
Fica claro, então, que a detenção é prejudicial a todos os migrantes. Porém, no caso dos
refugiados, a privação da liberdade e os aspectos físicos dessa prática, que inclui celas, staff
uniformizado, etc. reascende as vivências de tortura e de abusos sofridos por eles em seus países
de origem, podendo até mesmo afetar a saúde mental desses indivíduos (HASSAN; KATONA;
ROBJANT, 2009). Esses danos são ainda mais graves quando tratamos da experiência das
mulheres refugiadas. Isso se dá devido ao sistema de detenção ter sido projetado dentro de um
imaginário estereotipado de quem seria o típico requerente de asilo: um homem e, de preferência,
jovem (ASYLUM AID, 2002). Com isso, nesses ambientes restritivos, as necessidades
específicas das mulheres são reconhecidas em um grau ainda menor do que na sociedade em
geral, ao mesmo tempo em que o comportamento social e as estruturas de poder se reproduzem
de forma mais intensificada, dilatando o sentimento de impotência (PENAL REFORM
INTERNATIONAL, 2015). Isso se reflete na atualidade quando observamos que centros que
levam em consideração uma abordagem sensitiva de gênero são quase inexistentes. Infere-se,
portanto, que os riscos de maus-tratos, tortura e outras formas de violações de direitos humanos
enfrentados pelas mulheres quando detidas não tem recebido atenção suficiente da comunidade
internacional. É essa deficiência que essa seção do artigo pretende sanar.
Primeiramente, é imperativo abordar a não conformidade com a regra de separação entre
homens e mulheres nesses ambientes9. Muitas das instalações detentivas existentes hoje são
mistas, o que torna o ambiente ainda mais desconfortável e intimidante, sobretudo se pensarmos

                                                                                                                       
9
Esse princípio é proposto pelas Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não-
Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras (Regras de Bangkok), redigido pelas Nações Unidas em 2010.
Essas regras têm como foco o sistema prisional, não abarcando os centros de detenções específicos para a migração.
Contudo, o ACNUR em seu relatório de Diretrizes para Detenção cita tal documento como parâmetro a ser seguido
no caso da detenção de migrantes, solicitantes de asilo e refugiados.
 
54

pela percepção das vítimas de perseguição de gênero que estão a buscar asilo. A Anistia
Internacional (2016) expõe que, em alguns centros, todos os detidos compartilham os mesmos
banheiros e salas de banho, e muitas mulheres relataram serem observadas pelos homens
enquanto utilizavam esses espaços. O sentimento de insegurança dessas mulheres era tanto que
muitas tomavam medidas extremas, como não comer ou beber, para evitar ir aos banheiros
(ANISTIA INTERNACIONAL, 2016).
Para mais, em um estudo conduzido nas instalações mexicanas, muitas mulheres
entrevistadas relataram terem sofrido abusos físicos e verbais, além de constarem casos de
assédio sexual (DIAZ; KUHNER, 2008). Também é possível encontrar registros de episódios de
estupros, tanto por parte dos solicitantes homens, quanto pelos funcionários. Em outubro de 2015,
a Austrália concedeu o direito de aborto a uma solicitante vítima de estupro. A refugiada somali
de vinte e três anos havia sido estuprada dentro do centro de detenção offshore do país, na ilha de
Nauru (THE TELEGRAPH, 2015). Uma reportagem do Daily Mail (2015) também versa sobre o
assunto, só que concernente aos centros de detenção na Alemanha: segundo o jornal, uma carta
assinada por diferentes Organizações Não-Governamentais foi enviada ao governo alemão. Nesta
havia referência a inúmeros relatos de estupros, abusos sexuais e um aumento de prostituição
forçada, reforçando que a violência de gênero é um problema sistemático nessas instituições, e
não casos isolados (DAILY MAIL, 2015). É imprescindível evidenciar aqui que a maioria dos
casos de violência não são denunciados, o que não nos permite dominar a real dimensão dessas
agressões. No entanto, mesmo que as provas concretas da existência de tais atos estejam reféns da
cultura do silêncio10, é evidente a presença de agressões verbais, físicas e sexuais nesses locais.
Mais do que isso, as necessidades médicas nem sempre são atendidas, especialmente nos
casos de grávidas e de saúde reprodutiva. O tipo de alimentação e os períodos controlados das
refeições afetam o bem-estar e prejudicam o período gestacional (CUTLER; MCLEISH;
STANCER, 2002). Muitas mulheres não são levadas a suas consultas pré-natais, não têm
ecografias e nem acesso direto a uma parteira ou médico especializado durante o seu tempo em
detenção (GRAHAM, 2016). Além do que, o próprio encarceramento leva a um estresse que
pode ser nocivo ao feto (GRAHAM, 2016).
                                                                                                                       
10
Faz-se referência, aqui, ao problema sistemático de subnotificação de crimes sexuais e de violência contra a
mulher de forma geral. A baixa taxa de denúncia se deve a uma conjuntura social que culpabiliza a vítima desses
crimes, as coibindo de registrarem suas queixas. Quando tratamos de mulheres solicitantes de asilo, a cultura do
silêncio é agravada e reafirmada pelo medo de terem seus requerimentos negados e de, assim, terem que deixar o
país em que buscam proteção.    
55

Deste modo, o que se conclui é que essa conduta realizada pelos Estados receptores de
migrantes, principalmente quando feita sem se ater as particularidades de gênero, nada mais é do
que uma violação contínua dos direitos humanos dessas mulheres. Ou seja, a privação da
liberdade desconsidera a simbiose entre direitos humanos e refugiados, ferindo a proteção que se
almejava obter pelo instituto do refúgio (MENEZES, 2012).
Para sanar tal problemática, algumas medidas de caráter urgente devem ser tomadas
pelos Estados: primeiramente, é imperativo procurar alternativas a detenção, especialmente para
as mulheres grávidas, mas, caso esta ainda seja utilizada, é imprescindível que as instalações
sejam segregadas entre homens e mulheres; além disso, todo o quadro de funcionários deve obter
uma educação de gênero, ou seja, um treinamento que lhes proporcione uma visão holística da
experiência dessas mulheres em seus países de origem e suas necessidades específicas;
programas de saúde mental e aconselhamento também devem ser fornecidos, além de cuidados
médicos especializados no caso das grávidas e; Quaisquer alegações de abuso devem ser
investigadas pelas autoridades competentes e as vítimas protegidas, com pleno respeito ao
princípio de confidencialidade. Estas são algumas medidas que podem ser feitas de imediato para
que se cesse a violação de direitos humanos dessas mulheres. É indispensável que se pare de
analisar essas pessoas como criminosas ou como possíveis riscos à segurança nacional e se ater
ao fato que, devido sua história de vida, o encarceramento é um procedimento abusivo e
contraditório com a retórica de Direitos Humanos propagada pelos Estados.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pretendeu-se nesse artigo avaliar a proteção internacional dada às mulheres refugiadas


sob um olhar crítico-feminista, salientando que a construção jurídica dessa salvaguarda teve
como base princípios masculinistas que lesam a efetividade da mesma. Em virtude do que foi
refletido e elucidado conclui-se que a única maneira de se ampliar o amparo jurídico dessas
mulheres é levar em consideração suas experiências sui generis. Especificamente no instituto do
refúgio, isso se daria, na prática, por meio da criação de uma sexta categoria na acepção de
refugiado dada pela Convenção de 1951 e também pela implementação de políticas gender-
sensitive nos países de asilo.
Em vista dos argumentos apresentados, entende-se que a adição da classe “gênero”
como uma forma de perseguição crível para obtenção da condição de refugiado suprimiria a
56

desproporção intrínseca ao instituto de refúgio quando tratamos de homens e mulheres. As


dificuldades encontradas por essas últimas ao tentarem se adequar à Convenção, quando na
realidade, tal documento não possuí atributos eficazes para tal, seriam atenuadas. Ou seja, não
mais seria necessário traçar paralelos entre as experiências masculinas e femininas, quando
claramente estas são distintas e inigualáveis, dada a sociedade patriarcal em que estamos
inseridos. Assim, verificar-se-ia uma maior visibilidade das violações de direitos humanos
sofridas unicamente pelas mulheres. Mais do isso, o comprometimento dos Estados com a
diminuição do gap existente entre gêneros seria reforçado, uma vez que as vivências desses
indivíduos seriam colocadas em patamares idênticos de importância.
Entende-se, portanto, que somente com essa assimilação seria possível uma modificação
de comportamentos sexistas que minam a proteção do instituto de refúgio e dos direitos humanos.
Por conseguinte, uma elevação da sensibilização sobre as questões de igualdade de gênero
ocorreria, acarretando em uma consciência informada das necessidades específicas às mulheres.
Tais necessidades específicas foram sublinhadas neste artigo por meio de uma análise das
violações de direitos humanos ocorridas dentro dos centros de detenção. O panorama apresentado
citou diversas situações preocupantes sofridas pelas mulheres nesses ambientes, e por isso,
pleiteou-se pela urgência de alterações no sistema detentivo, quando não a própria extinção desse.
Dessa maneira, tentou-se ressaltar que é imperativo que se comece a contemplar as
deficiências de tais dispositivos jurídicos e políticas migratórias, visto que estes têm sua gênese
em princípios patriarcais, e assim, demandam por um aperfeiçoamento e um desenvolvimento
progressivo que maximize a salvaguarda das mulheres. Em suma, conclui-se que no estado da
arte em que se encontram, os direitos humanos e o instituto de refúgio, pecam em efetividade ao
não trazer melhorias guiadas pelo prisma da perspectiva de gênero.

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“Gender” Category to the International Definition of “Refugee”. Indiana Journal of Global
Legal Studies, v.2, n.1, p. 301-344, 1994.

STAIRS; POPE. No Place Like Home: Assaulted Migrant Women's Claims to Refugee Status
and Landings on Humanitarian and Compassionate Grounds. Journal of Law and Social Policy,
v. 6, p.148-225, 1990.

THE TELEGRAPH. Australia refugee rape crisis: Malcolm Turnbull must get these women off
Nauru fast, outubro de 2015. Disponível em: http://www.telegraph.co.uk/women/womens-
life/11926260/Australia-refugee-Nauru-rapes-Malcolm-Turnbull-must-help-these-women.html.
Acesso dia 25 de setembro de 2016.
62

COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL: UM MECANISMO


EFICAZ PARA RECUPERAÇÃO DE ATIVOS DESVIADOS POR MEIO
DE FRAUDES
 
INTERNATIONAL LEGAL COOPERATION: AN EFFECTIVE RECOVERY
OF ILLICITLY ACQUIRED ASSETS MECHANISM

Alice Costa Lima Salz1


Alexandre Aparecido da Silva Ferreira2

Data de submissão: 09/10/2016


Data de aceite: 21/11/2016

“Cada um de nós é, neste mundo moderno globalizado, guardião do


seu irmão ou irmã. Foram muitas as vezes que falhamos esta
exigência moral.” – Nelson Mandela

Resumo

A expressão Cooperação Jurídica Internacional decorre da ideia de que a efetividade da


jurisdição, nacional ou estrangeira, pode depender do intercâmbio não apenas entre órgãos
judiciais, mas também entre órgãos administrativos, ou, ainda, entre órgãos judiciais e
administrativos, de Estados distintos. No presente trabalho apresentamos a Cooperação
Jurídica e seus diversos mecanismos, com fito a posicionar o leitor no cenário atual de
assistência entre países. Após, focamos em nosso principal objeto de estudo: a Cooperação
Jurídica Internacional para Recuperação de Ativos, que busca garantir restauração dos
patrimônios atingidos pelas formas mais diversificadas de fraudes. Para tal fim, vale-se
predominante do Direito Internacional e Penal. Tendo em vista esse conhecimento, sob o
escopo de aniquilar tal atividade ilícita, faz-se mister entender a participação ativa dos mais
diversos países e seus mecanismos de assistência mútua, observando-se a natureza do crime,
do dano e das especificidades de seus respectivos ordenamentos jurídicos. Diversas
instituições, tanto do Direito Privado quanto do Direito Público, participam desse processo
utilizando recursos tecnológicos, intelectuais e forenses, técnicas investigativas que são
aprimoradas para superar os meios empregados pelos agentes criminosos na lavagem de
capitais. No entanto, o livre uso de recursos e ações é restrito devido ao respeito que os atos
de investigação devem prestar às garantias fundamentais positivadas na Constituição e nos
                                                                                                                       
1
Discente de graduação em Direito na Universidade Veiga de Almeida (UVA). Estagiária na Defensoria Pública
do Estado do Rio de Janeiro (DPE/RJ). E-mail: alicesalz@yahoo.com.br
2
Discente de graduação na Faculdade Nacional de Direito (FND) da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Estagiário na Defensoria Pública da União (DPU). E-mail: alexferreira@ufrj.br  
63

Tratados Internacionais com os quais o Brasil firmou compromisso. Portanto, a recuperação


de ativos envolve uma miríade de atuações e cuidados que estão sobre a base constitucional
garantidora dos Direitos Fundamentais, preservando-os.
Palavras-chave: Recuperação de Ativos; Direito Penal; Fraude; Cooperação Jurídica
Internacional; Direitos Humanos.

Abstract

International legal cooperation expression stems from the idea that the effectiveness of the
jurisdiction, domestic or foreign, may depend on the exchange not only between judicial
courts, but also between administrative agencies, or even between judicial and administrative
agencies of different States. We present legal cooperation and its various mechanisms with
aim to position the reader in the present scenario of assistance between countries. After, we
focus on our main object of study: International Legal Cooperation for Asset Recovery, which
seeks to ensure restoration of heritage sites affected by the most diverse forms of fraud. To
this end, it is predominantly the International and Criminal Law. Given this knowledge, under
the scope of annihilating such illicit activity, it is very important understand the active
participation of various countries and their mutual assistance mechanisms, observing the
nature of the crime, the damage and the specific characteristics of their respective legal
systems. Several institutions, both private law as Public Law, participate in this process, using
technological, intellectual and legal resources, investigative techniques that are improved to
overcome the means employed by criminal agents in money laundering. However, the free
use of resources and actions is restricted due to the respect that the acts of investigation must
provide the fundamental guarantees written in the Constitution and international treaties to
which Brazil signed an agreement. Therefore, the asset recovery involves a myriad of actions
and care that are on the constitutional basis of fundamental rights, preserving them.
Keywords: Asset Recovery; Criminal Law; Fraud; International Legal Cooperation; Human
Rights.

1 INTRODUÇÃO

Viver no século XXI é ter a sensação de habitar um mundo sem fronteiras. Através das
inovações tecnológicas podemos em horas ultrapassar continentes, nos pegar escolhendo
produtos da Ásia no conforto do sofá da sala. O modelo capitalista encurtou espaços
geográficos, tornando o mundo uma pequena arena global. Através do desenvolvimento dos
sistemas de comunicação por satélites aprimoramos a informática, transportes e telefonia.
Hoje há uma grande interligação econômica, política, social e cultural. Criamos um aparato
técnico que intensificou as relações socioeconômicas mundiais.
64

Um fato interessante para a esfera jurídica que se pega frente a um novo desafio é o
aumento da litigiosidade com características internacionais, ligadas à esfera cível e penal.3 É
preciso proteger os brasileiros, que cada vez mais vão ao exterior, e é preciso, também,
combater os crimes transnacionais, cometidos por um grupo ou rede que pratica atividade
ilícita, visando ganhos financeiros particulares e não tendo sua atuação restrita a apenas um
país.4
Torna-se necessário indagar: como garantir o cumprimento da jurisdição, uma vez que
esta está reduzida aos limites territoriais de cada Estado soberano? Como assegurar que as
pessoas possam exercer seus direitos que vão além-fronteiras? Em suma, como afiançar que
não haja impunidade e inaplicabilidade da Justiça no novo paradigma de internacionalização
das relações privadas? Daí a Cooperação Jurídica Internacional, nosso objeto de estudo, que
cuida criar e manter uma rede de proteção mundial para impedir a falta de punição nos casos
de crimes que ultrapassam divisas. No entanto, não só tal proteção está diretamente ligada à
de garantias fundamentais e Direitos Humanos, principalmente após o escopo proeminente
que lhes foi dado pela nossa Carta de 1988, como com valores consagrados desde a
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
A Cooperação Jurídica Internacional surge “como reflexo da preocupação dos Estados
em mitigar os efeitos negativos da globalização no que se refere à concretização da Justiça nas
relações internacionais”.5

2 DIREITOS HUMANOS, GARANTIAS FUNDAMENTAIS E COOPERAÇÃO


JURÍDICA INTERNACIONAL

Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo conheceu as atrocidades cometidas pela


Alemanha nazista. A comunidade mundial percebeu que era necessário fazer um documento
que especificasse direitos individuais, de forma clara e precisa, para dar efeito aos Direitos
Humanos. Com isso, nasceu a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
A sociedade ocidental moderna, em diferentes níveis, delineia-se a partir dos valores
presentes nessa Declaração, que traz as garantias mais básicas dos seres humanos, como o

                                                                                                                       
3
 ARAÚJO, Nadia de. “Importância da Cooperação Jurídica Internacional para a atuação do Estado brasileiro no
plano internacional”. Disponível em: <http://nadiadearaujo.com/wp-content/uploads/2015/03/A-
IMPORT%C3%82NCIA-DA-COOPERA%C3%87%C3%83O-JUR%C3%8DDICA-INTERNACIONAL-
PARA-A-ATUA%C3%87%C3%83O-DO-ESTADO-BRASILEIRO-NO-PLANO-INTERNO-E-
INTERNACIONAL.pdf> Acesso em 08/10/2016
4
 REUTER, P. & PETRIE, C., 1995
5
  SAADI, Ricardo Andrade; BEZERRA, Camila Colares. “A Autoridade Central no exercício da Cooperação
Jurídica Internacional”.
65

impedimento à escravatura, tortura, proteção à honra e à reputação, à propriedade, o direito à


segurança social e, ainda, a garantia de ter, no plano internacional, uma ordem capaz de tornar
plenamente efetivos os direitos e as liberdades enunciadas nesse valioso instrumento.
A evolução tecnológica permite grandes avanços em qualidade de vida, mas abre
portas para as formas delituosas internacionais como os crimes de evasão de divisas, o de
tráfico internacional de pessoas e órgãos, o da escravidão, que ainda perdura em muitos
países, inclusive no Brasil, e o da corrupção, que impede o emprego do dinheiro público no
seu verdadeiro destino e colabora fortemente para a manutenção de desigualdades sociais, são
crimes perpetrados por verdadeiras quadrilhas transnacionais. Tais delitos são cometidos
objetivando a riqueza fácil, despreocupando-se com os seres humanos e seus direitos mais
básicos. Daí a preocupação global em impedir que tais crimes ocorram e que os ativos,
ilicitamente obtidos, sejam aproveitados pelos criminosos
Tais ativos desviados são transferidos por meio de várias jurisdições, passando por
centros financeiros offshore antes de chegar à sua destinação final. Um verdadeiro trabalho de
dissimulação para adulterar a origem ilícita dos ativos, tentando escondê-los do Estado e das
vítimas lesadas, também tentando obstar investigações e condenações. Estamos a falar da
lavagem de capitais, que causa graves escoriações nas bases das garantias fundamentais e dos
Direitos Humanos, motivo pelo qual somente uma comunhão efetiva entre países pode refazer
o caminho do dinheiro e achar os malfeitores.
Aqui se delineia a pergunta de partida que dará norte a toda nossa pesquisa: como a
Cooperação Jurídica Internacional pode contribuir por meio de seus mecanismos jurídicos
para a recuperação de ativos obtidos a partir de condutas delituosas?

3 COOPERAÇÃO JURÍDICA PENAL INTERNACIONAL E RECUPERAÇÃO DE


ATIVOS

Dado o aumento da prática dos crimes transnacionais em razão dos fatores que
apontamos, são necessárias contramedidas estatais para a efetivação da jurisdição e que os
delitos sejam alcançados pela Justiça. Todavia, antes de prosseguir, devemos salientar que a
Cooperação Jurídica Internacional não é uma prática recente, sendo conhecida pelo nosso
Judiciário desde a época imperial por meio de cartas rogatórias e sentenças estrangeiras entre
Brasil e Portugal.
Dos órgãos responsáveis pela prestação jurisdicional é necessária uma comunicação
constante e ampla troca de informações entre eles, o que leva a um incremento das ações de
66

caráter legislativo, jurisprudencial e doutrinário nos mecanismos de Cooperação Jurídica


Internacional, uma vez que a recuperação de ativos envolve uma verdadeira cadeia
multijurisdicional, sendo, assim, matéria de Direito Penal Internacional. Como informa o
professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro Carlos Eduardo Japiassú (2009, p. 4):

Modernamente, o Direito Penal Internacional, ao mesmo tempo que busca a


formulação de princípios normativos internos e internacionais para a regulação das
condutas individuais violadoras da boa convivência internacional, procura também o
estabelecimento de normas convencionais (bilaterais, multilaterais, regionais e
universais) e internas que permitam a transferência de um Estado a outro, de
processos criminais e pessoas condenadas, a extradição, a execução de sentenças
penais estrangeiras, bem como o aparecimento de outros meios de cooperação
penal internacional.

No nosso estudo estamos preocupados com a recuperação de ativos provenientes de


fraude, conduta dolosa de enganar outrem para obter ganhos ilícitos, podendo a vítima ser
uma pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado. Na visão de Mark S. Kenney
(2009, p. 9):

[...] o delito de fraude é cometido quando uma pessoa ou companhia


desonestamente, para ganhar algo ou provocar perdas, faz uma falsa representação,
indevidamente não revela informações ou abusa secretamente de uma posição de
confiança.
Fraudar é burlar, iludir, trapacear. Boa parte dos denominados “crimes de colarinho
branco”6 possuem um elemento de fraude. Tais crimes são aqueles definidos por Edwin
Sutherland (1949) como os cometidos “por uma pessoa respeitável e de alta posição social de
Estado no exercício de suas ocupações”, crimes econômicos que envolvem recursos públicos
e/ou particulares, transferidos entre várias jurisdições que, conforme já defendemos, são
potenciais causas de desvio de capitais destinados à garantia dos direitos sociais mais básicos.
Dada a intelectualidade maliciosa presente nesses tipos penais, é necessário o emprego
de técnicas superiormente agudas que possam dar sucesso à recuperação dos ativos desviados.
Nesse cenário, a mesma globalização usada para o mal é aquela que fornece aparatos técnicos
e de rápida comunicação que permitem aos operadores da lei a elucidação e punição de
agentes que praticam delitos como lavagem de capitais, espionagem econômica, fraudes
governamentais, falências fraudulentas, fraudes em seguros, sonegação de impostos, fraudes

                                                                                                                       
6
 Conceito elaborado em 1939, pelo criminólogo Edwin H. Sutherland, para designar os crimes cometidos por
pessoas com respeitabilidade e de classe social elevada, no curso de suas ocupações ou utilizando-se do know
how de suas profissões. Via de regra, são cometidos em um contexto empresarial, sem violência física e visando
a ganhos financeiros. Para mais informações, consultar SUTHERLAND, Edwin H. White colar crime: the uncut
version. New Haven: Yale University Press, 1985.
67

financeiras, uso de informações privilegiadas, atos envolvendo suborno e propina, além de


uma infinita sorte de condutas ardilosas que podem levar à expropriação indevida de capitais.

4 PRINCÍPIO DA CONFIANÇA

Antes de adentrarmos nos casos concretos e formas de cooperação internacional para


recuperação de ativos é primordial informar que, para que ela exista, haja entre os países um
princípio norteador, o da confiança.
A organização jurídica da sociedade tem como ponto de partida o reconhecimento da
realidade do outro e a consideração dos seus problemas como suscetíveis de resolução pela
intervenção dos poderes públicos, o que permite a remoção dos obstáculos que impeçam ou
dificultem a realidade da igualdade e da liberdade. Dessa forma, a confiança é concretizada
através do esforço da solidariedade, que fundamenta e justifica o instituto da Cooperação
Jurídica Internacional.
Para que haja a efetividade da jurisdição no âmbito da Assistência Jurídica
Internacional é necessário que o princípio em tela seja o norte para a relação entre Judiciários
de diferentes países, da mesma forma que é entre juízes de uma mesma nação. Eis o
mandamento da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) que materializa
tal princípio:

Art. 15. Será executada no Brasil a sentença proferida no estrangeiro, que


reúna os seguintes requisitos:

a) Haver sido proferida por juiz competente;


b) Terem sido as partes citadas ou haver-se legalmente verificado a revelia;
c) Ter passado em julgado e estar revestida das formalidades necessárias
para a execução no lugar em que foi proferida;
d) Estar traduzida por intérprete autorizado;
e) Ter sido homologada pelo Supremo Tribunal Federal.

Em relação à alínea “e” do supracitado artigo da LINDB, observa-se, porém, a


seguinte mudança em nossa Constituição, ocasionada pela Emenda Constitucional nº 45/2004,
que assim dispôs no art. 105, I, i, da CRFB:

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

I – processar e julgar, originariamente:


i) a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às
cartas rogatórias.
68

Tendo em vista o exposto acima, a competência para a homologação das sentenças


estrangeiras passou para o Superior Tribunal de Justiça - STJ, em função da vigência da EC nº
45/04. Seria, a partir de então, necessário que o STJ incorporasse os avanços já alcançados
pelo Supremo Tribunal Federal - STF e se adequasse às conquistas verificadas nos Tratados e
Convenções Internacionais, bem como assimilasse a moderna doutrina sobre o tema e os
ensinamentos acadêmicos.
A complexidade social, fruto da intensa mutabilidade das relações humanas no tempo
e no espaço, é que gera a necessidade de se estabelecer essa relação de confiança entre as
nações. “Nesse contexto, a confiança manifesta-se como um instrumento de redução desta
complexidade social, à medida que aumenta as possiblidades para as experiências e as ações”
(MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2012).

5 OS MECANISMOS TRADICIONAIS DA COOPERAÇÃO JURÍDICA PENAL


INTERNACIONAL

Como antes destacado, a cooperação jurídica entre Estados não se trata de fenômeno
moderno. Os países reconhecem o significado da atuação em conjunto no sentido de conferir
maior eficácia à atividade jurisdicional desenvolvida nos seus respectivos territórios. Nesse
sentido, alguns mecanismos, seja por força do costume ou de tratado, passaram a incorporar-
se, com maior frequência, à prática da cooperação jurídica interestatal. Das modalidades mais
tradicionais de assistência jurídica internacional podemos citar a carta rogatória, a
homologação de sentença, a extradição e a transferência de presos. Falaremos de cada uma
delas a seguir.

5.1 Carta Rogatória

Destina-se ao reconhecimento e cumprimento de decisões interlocutórias da justiça


estrangeira. Para ser cumprida, precisa ser autorizada pelo STJ (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA,
2012); é caracterizada como um instrumento de tramitação por meio de canais diplomáticos.
Ela é o veículo de transmissão de qualquer pedido judicial, podendo ser de caráter
cível ou penal. Trata-se de um pedido formal de auxílio para a instrução do processo, feito
pela autoridade judiciária de um Estado a outro. Entretanto, é necessário haver o deferimento
para o cumprimento das investigações rogadas, isto é, compete ao STJ conceder o exequatur à
determinada carta rogatória, verificando se esta não atentará contra a soberania do Estado
brasileiro, conforme o disposto no art. 6º da Resolução nº 9 do Superior Tribunal de Justiça:
69

não será homologada sentença estrangeira ou concedido exequatur à carta rogatória que
ofenda a soberania ou a ordem pública.
O crescimento do crime organizado global, com ramificações em mais de um país,
passou a ter um combate mais efetivo com o deferimento pelo STJ dos pedidos que contêm
medidas de caráter executório na área penal, bem como na cível. O tribunal utiliza, com
frequência, na sua fundamentação as normas das convenções internacionais multilaterais,
como a das Nações Unidas de combate ao crime organizado e, ainda, outras de caráter
bilateral.
A cooperação na área penal tem sido alvo de grande discussão entre o STJ e o STF, o
qual, apesar de não mais ser o responsável pela Cooperação Jurídica Internacional, tem sido
provocado através de habeas corpus (HC). Como exemplo, podemos citar o caso do
julgamento da CR 1457, em que houve a concessão de exequatur a um pedido proveniente da
França, que continha diligências que importaram na quebra do sigilo bancário do interessado.
Este arguiu a impossibilidade do deferimento da carta rogatória por representar, a seu ver,
violação ao seu direito fundamental de ir e vir. O Supremo Tribunal Federal negou o pedido,
pois, de acordo com o relator, a carta rogatória era um ato de mero auxílio judiciário e que em
nada feria a liberdade de ir e vir do paciente. Tal atuação do STF como sucedâneo do STJ não
fora previsto pela EC nº 45/04, o que poderia fazer ruir a ideia de celeridade dentro da
cooperação e em instância única.
Uma novidade vinda da RES nº 9 do STJ sobre as cartas rogatórias é referente à
permissão expressa para a supressão da oitiva da parte interessada nos pedidos em que a
rapidez da diligência fosse crucial ao seu cumprimento e essa intimação viesse frustrar a
cooperação internacional. Esses casos são, em sua maioria, de natureza penal, quando se está
procurando investigar fatos criminosos e obter informações sigilosas, ou nos quais o prazo
para o cumprimento é pequeno (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2012).

5.2 Homologação de Sentença Estrangeira

Trata-se da questão da circulação internacional dos julgados, efetivando-se o bom


funcionamento do sistema internacional. A homologação de sentenças estrangeiras mostra-se
indispensável para o reconhecimento e para a execução de provimento jurisdicional de
autoridade estrangeira no território do Estado requerido, promovendo a sua eficácia e o
respeito aos direitos adquiridos no exterior. Tal validação dessas sentenças possibilita a
produção de efeitos jurisdicionais dentro do território nacional.
70

O sistema adotado pelo Brasil é o de delibação, pelo qual não se questiona o mérito da
decisão em sua matéria, a não ser para a verificação dos requisitos formais, se há ofensa à
ordem pública, aos bons costumes e à soberania nacional. Estabeleceu-se, portanto, o
processo de contenciosidade limitada, não sendo permitido discutir outras questões fora
daquelas expressamente delimitadas.
Os pressupostos para a homologação das sentenças estrangeiras são:

a) A sua prolação/pronunciação por juiz competente;


b) A citação do réu ou a configuração legal de sua revelia;
c) O trânsito em julgado do ato sentencial homologando, assim como o
cumprimento das formalidades necessárias à sua execução no lugar em que
foi proferido;
d) A autenticação, pelo consulado brasileiro, da sentença homologada e a
tradução oficial dos documentos.

A RES nº 9 do STJ apresentou uma novidade, que é a possibilidade de concessão de


tutela de urgência durante o processamento do pedido de homologação, o que não era
admitido pelo STF. A tutela de urgência compreende a antecipação de tutela e a medida
cautelar, cuja característica principal é a provisoriedade, decisão tomada para se evitar danos
graves e de difícil reparação. As tutelas de urgência vêm sendo utilizadas com frequência
pelos operadores do Direito, consistindo em um mecanismo fundamental para a segurança
jurídica nos processos judiciais. Porém, a sociedade clama por garantias e mecanismos legais,
com o objetivo de apaziguar os conflitos. Sendo assim, tais tutelas cumprem sua função
social, desde que atendam aos princípios da efetividade processual e da segurança jurídica.7
O que distingue o instituto da carta rogatória do da homologação de sentença
estrangeira é o fato de que esta se destina ao reconhecimento autônomo da decisão judicial de
caráter definitivo, enquanto que aquela se presta, essencialmente, ao reconhecimento e
cumprimento de decisões interlocutórias da Justiça estrangeira.8

5.3 Extradição

                                                                                                                       
7
  MOTA, Tércio de Sousa; MOTA, Gabriela Brasileiro Campos; SOUSA, José Laércio de. “Tutela de urgência:
análise da efetividade jurisdicional”. Disponível em: <www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?artigo_id=8911&n_link=revista_artigos_leitura>. Acesso em 08/10/2016.
8
  TOFFOLI, José Antonio Dias; CESTARI, Virgínia Charpinel Junger. “Mecanismos de Cooperação Jurídica
Internacional no Brasil”. Diponível em: <www.agu.gov.br/page/download/index/id/1070064> Acesso em
08/10/2016.
71

É o ato de um Estado entregar um indivíduo para outro Estado competente o suficiente


para realizar o processamento e a aplicação de eventual punição. Tal modalidade de
cooperação é contemplada em inúmeros tratados internacionais, mas, mesmo na ausência de
instrumento internacional, poderá também ser solicitada com base no princípio da
reciprocidade. Tal princípio consiste na permissão da aplicação de efeitos jurídicos em
determinadas relações de Direito quando estes mesmos efeitos são aceitos igualmente por
países estrangeiros. Segundo o Direito Internacional, implica o direito de igualdade e de
respeito mútuo entre Estados, tendo servido de base também para atenuar a aplicação do
princípio da territorialidade das leis.
Dentro da matéria de extradição, a doutrina estabelece que, na ausência de um
Tratado, existe o dever moral, ou mesmo a obrigação internacional, de assistência interestatal
no ato de entrega dos criminosos ao seu juízo natural para que sejam julgados e castigados, se
for o caso (OEA, 2016).
A questão da extradição é exposta em diversos dispositivos legais da Lei 6.815/80
(Estatuto do Estrangeiro). Como exemplo concreto, podemos citar o caso de Cesare Battisti,
ex-militante do grupo armado e de extrema esquerda Proletariados Armados pelo Comunismo
(PAC), acusado pelo governo italiano pela prática de quatro homicídios, recebendo pena de
prisão perpétua.
Na iminência de ser extraditado, ele fugiu para o Brasil. A condição de refugiado foi
requerida por ele junto ao Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), indeferida em
um primeiro momento, mas concedida em fase de recurso pelo ministro de Estado da Justiça.
Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do pedido de extradição, entendeu,
preliminarmente, a ilegalidade do ato que concedeu a condição de refugiado a Battisti,
decidindo pela extradição, mas condicionando-a a homologação do Presidente da República.
O STF, portanto, não se manifestou definitivamente sobre tal pedido de extradição, tendo
meramente o declarado viável.
O então Chefe do Poder Executivo Federal, Luiz Inácio Lula da Silva, em seu último
dia de mandato, manifestou-se contrariamente à decisão do Supremo, negando a extradição do
italiano, pois considerou tratar-se de matéria atinente à soberania nacional, no campo das
relações internacionais.9

5.4 Transferência de presos


                                                                                                                       
9
  DELLOVA, Adriana Souza. “Breve análise sobre o caso Cesare Battisti”. Disponível em: <www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10375> Acesso em 08/10/2016.
72

Tal modalidade possui caráter humanitário. Transfere-se o condenado estrangeiro para


seu Estado natal, sob a perspectiva de que tenha uma reabilitação mais efetiva,
proporcionando, de certa forma, uma reintegração social.
O Ministério da Justiça diz que a ONU tem insistido na indispensabilidade desse
método de cooperação, fazendo com que seja difundida a proposta de transferência de presos
como método moderno de reeducação, no intuito de fortalecer o alicerce de reconstrução
pessoal do preso diante da perspectiva de uma vida futura livre no convívio social.10 É um ato
que depende da vontade do preso, devendo ele solicitar à autoridade competente a sua
transferência.
Existem as transferências ativa e passiva. A primeira ocorre quando um brasileiro que
esteja cumprindo pena imposta por sentença estrangeira já transitada em julgado em outro
país solicita ser transferido para um estabelecimento prisional no Brasil, seu país de origem.
Já a segunda acontece quando um estrangeiro preso no Brasil solicita sua transferência para
seu país de origem para cumprir o restante da pena imposta pela Justiça brasileira.
Esse instituto foi introduzido no Brasil através de tratados e tem sido utilizado como
natureza administrativa, não sendo necessário passar pelo procedimento de homologação da
sentença estrangeira pelo STJ. Facilita-se a Cooperação Jurídica Interestatal, fazendo com que
a proteção internacional aos Direitos Humanos seja desenvolvida.
Pode-se dizer que a transferência de condenados não vê só o lado punitivo como
também a possibilidade de uma melhor reintegração destes dentro da sociedade.11 Observa-se,
portanto, simultaneamente o caráter retributivo e preventivo da pena, sendo que o primeiro
observa tanto o aspecto moral e ético quanto a necessidade de reparar o direito por causa do
surgimento do crime, restabelecendo-se a ordem, enquanto que o segundo, nesse caso,
abrange a questão da prevenção especial positiva, a qual visa justamente ao tratamento e à
ressocialização do apenado.

6 CLASSIFICAÇÕES DA COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL

Os autores classificam a cooperação judiciária internacional quanto à posição do


requerente e quanto ao meio utilizado. Dessa forma, o auxílio poderá ser ativo ou passivo,
formal ou informal/direta.

                                                                                                                       
10
  JALES, Lycia Cibely Porto. “Transferência de presos em Cooperação Jurídica Internacional”. Disponível
em:<www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=14557&revista_cade
rno=16> Acesso em 08/10/2016.
11
 Idem.
73

A cooperação internacional ativa ocorre quando há necessidade por parte da


autoridade brasileira da assistência de agentes públicos de outros Estados soberanos para
obter informações cruciais para instrução de processos judiciais em território nacional. Como
exemplo temos a necessidade de colheita de depoimento de uma testemunha que vive em
outro país, ou ainda a obtenção de documentos que comprovem a real propriedade de um
bem.
Já na cooperação passiva, perceberemos a presença da necessidade estrangeira para
que a prestação jurisdicional seja efetiva. Ou seja, um outro país faz a requisição ao Brasil. É
necessário observar se a jurisdição estrangeira não contraria o ordenamento jurídico
brasileiro, principalmente no que já citamos quanto à Lei de Introdução às Normas de Direito
Brasileiro (LINDB). Assim, a cooperação se dá através da realização de atos públicos
nacionais, sejam eles administrativos ou jurisdicionais, para a efetivação da prestação
jurisdicional estrangeira.
A cooperação poderá ser classificada, ainda, como informal/direta ou como formal. A
primeira ocorre quando a medida solicitada pode ser prestada diretamente à autoridade
requerente, não necessitando da intervenção do Poder Judiciário. Já a cooperação tida como
formal ocorre naqueles casos em que é exigida a institucionalização da via escolhida, seja
para assegurar a validade de uma prova, seja para garantir a validade de um ato a ser
executado, casos em que se faz imprescindível a intervenção judicial para sua execução.
À frente poderemos perceber, nos estudos de caso, as peculiaridades dos pedidos
jurídicos internacionais, por via administrativa, através de acordos multilaterais.

7 NOVO MECANISMO DE COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL:


AUXÍLIO DIRETO
Hoje os procedimentos para a execução de cartas rogatórias e sentenças estrangeiras
estão tornando-se obsoletos por conta da necessidade de respostas mais rápidas aos pedidos
formulados. Haja vista tal situação, surgiram algumas iniciativas que procuram efetuar essas
respostas de forma mais direta. Daí vem a atuação do mecanismo do Auxílio Direto ou
Assistência Direta.
Procura-se agilizar os procedimentos de cooperação tradicional por causa da
morosidade a eles associada. Tal instituto permite levar a cognição do pedido diretamente ao
juiz de primeira instância, tornando-se desnecessário o juízo prévio de deliberação do STJ.
Houve um crescimento exponencial no número de pedidos de cooperação jurídica que
o Brasil requer (cooperação ativa), o que mostra a prevalência deste país como solicitante de
74

cooperação. Os pedidos que saem de nosso território se dirigindo para uma autoridade
estrangeira representam mais de 85% da totalidade.
No Brasil, embora o pedido possa ser transmitido diretamente à Autoridade
Central brasileira, há a necessidade da ordem judicial para seu cumprimento. A intervenção
judicial pode ser dispensada quando a situação não seja de molde a exigi-la, como, por
exemplo, se o requerimento for de informações disponíveis sem a necessidade de intervenção
judicial. Temos exemplos nos casos que estudaremos à frente, em que a cooperação se dá por
via administrativa.
Na área penal, o auxílio direto tem sido utilizado quando previsto em Tratado. Como
exemplo, em um pedido de sequestro de bens em uma carta rogatória, o STJ decidiu que,
como não havia uma decisão na origem, seria desnecessário o juízo de delibação do tribunal e
o cumprimento da ordem poderia ser pela via do Auxílio Direto.
Podemos afirmar que o mecanismo em questão busca um meio efetivo para a razoável
duração do processo, direito fundamental ligado à concretização de um processo justo e
eficaz, em respeito à dignidade da pessoa humana.
Com a previsibilidade legal do procedimento do Auxílio Direto, poder-se-á tornar ágil
o intercâmbio não apenas entre órgãos judiciais, mas também entre órgãos administrativos ou,
ainda, entre ambos, de Estados distintos. O dever do jurista é o de buscar soluções para que
possam ser eliminados, ao menos em parte, os males acarretados pela demora do processo.12

8 ANÁLISE DE CASOS CONCRETOS

8.1 CASO DANIEL BIRMANN – PEDIDO DE COOPERAÇÃO JURÍDICA


INTERNACIONAL ATIVA INFORMAL

A Advocacia-Geral da União (AGU) demonstrou a existência de evidências de uma


tentativa de ocultação da real propriedade de um iate e assegurou sua apreensão. O bem
estava avaliado em R$ 60 milhões. A Receita Federal, após fiscalização, levantou elementos
que fizeram crer que a embarcação pertencia a Daniel Birmann, empresário multado em R$
243 milhões pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) em 2005 por ter dilapidado o
patrimônio da empresa SAM e prejudicado seus acionistas minoritários em benefício próprio.
Foi a maior penalidade já aplicada pela CVM.

                                                                                                                       
12
 JÚNIOR, Márcio Mateus Barbosa. “O auxílio direto como meio de efetividade do direito à razoável duração
do processo”. Disponível em: <www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10333>. Acesso em 08/10/2016.
75

Mas o penalizado vinha conseguindo driblar, até então, as tentativas da Procuradoria


Federal Especializada junto à Comissão (PFE/CVM) de obter o montante referente à
autuação. Os procuradores federais responsáveis tinham dificuldade para localizar o
empresário, que não tem residência fixa, e só haviam conseguido bloquear contas bancárias
brasileiras com valores irrelevantes, num total R$ 548 (quinhentos e quarenta e oito reais).
A embarcação foi apreendida pela Receita Federal na Bahia porque navegava em
situação irregular, sem pagar o imposto de importação. Chamado de Big Aron, o iate estava
registrado em nome de Tango Bravo Maritime Ltda., com sede nas Ilhas Man, um paraíso
fiscal. Os fiscais da Receita descobriram, no entanto, que o bem era usado com regularidade
por Birmann e concluíram existir indícios suficientes para presumir que o empresário seria o
verdadeiro dono do iate.
A PFE/CVM (Procuradoria Federal Junto a CVM) foi acionada e ingressou com uma
ação pedindo a apreensão da embarcação para pagar a dívida do investidor com a Comissão.
Os procuradores destacaram que a medida era urgente, pois a situação fiscal do iate já havia
sido regularizada e a embarcação poderia ser liberada pela Receita a qualquer momento. O
pedido foi feito após diversas ações de Cooperação Jurídica Internacional que trouxeram
arcabouço probatório sobre a real propriedade do Iate.
Criada em 1983 a partir de uma associação interamericana fundada em 1978, a IOSCO
conta hoje com representantes de mais de 100 países cobrindo quase a totalidade da
capitalização do mercado de valores mobiliários mundial. A organização tornou-se o principal
fórum internacional para as autoridades reguladoras dos mercados de valores e derivativos,
hoje é reconhecida como o standard setter internacional em matéria de mercado de capitais. A
CVM é membro fundador da IOSCO e participa de vários comitês, grupos de trabalho, bem
como do Conselho Diretivo (IOSCO Board). Para aprimorar o cumprimento de sua missão,
foi criado em 2002 o Memorando Multilateral da IOSCO (MMoU), que se transformou no
principal instrumento para assistência recíproca em investigações para fins de enforcement. A
CVM tornou-se signatário pleno em 2009 e utilizou o acordo multilateral para obter os dados.
A IOSCO tem sede na Espanha e 200 integrantes, dentre eles membros associados,
afiliados e ordinários. Seu “Anexo A” traz 64 países signatários, da América Latina temos
Brasil, Colômbia, México, Peru e Uruguai, além do Chile no “Anexo B”.
A decisão favorável é resultado de atuação conjunta entre a Procuradoria Federal
Especializada junto à CVM (PFE/CVM), a Procuradoria-Regional Federal na 2ª Região
(PRF2) e o setor de cooperação internacional da CVM. De acordo com as unidades, a
cobrança de multa administrativa aplicada pela comissão constitui garantia da efetividade das
76

regras do mercado de capitais no Brasil e garante as regras de transparência e governança no


ambiente corporativo do país.
O caso é verdadeiro exemplo da Cooperação Jurídica Internacional ativa, onde o
Estado requerente é o Brasil, por meio das procuradorias da Advocacia-Geral da União.
8.2 CASO EDUARDO CUNHA - PEDIDO DE COOPERAÇÃO JURÍDICA
INTERNACIONAL PASSIVO FORMAL

Através do Ofício nº 99, de 1º de outubro de 2015, endereçado à Procuradoria Geral da


República- PGR e subscrito por parlamentares do Partido Socialismo e Liberdade – PSOL,
que buscava informações sobre a transferência para o Brasil do procedimento criminal
instaurado pelo Ministério Público da Confederação Helvética, para apurar supostos crimes
atribuídos ao Deputado Federal Eduardo Cunha, ex presidente da Câmara dos Deputados, foi
possível a apreciação de pedido de Cooperação Jurídica Internacional, na modalidade passiva:
Documentos enviados pelo Ministério Público Suíço às autoridades brasileiras
apontam o caminho de dinheiro supostamente repassado a contas bancárias atribuídas ao
presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e familiares no país
europeu.
No total, as supostas contas de Eduardo Cunha na Suíça, indicam as investigações,
receberam depósitos de US$ 4.831.711,44 e 1.311.700 francos suíços, equivalentes a
aproximadamente 23 milhões de reais.
No dia 30 de setembro de 2015, o Ministério Público da Suíça enviou ao Brasil os
autos da investigação sobre o presidente da Câmara por suspeita de lavagem de dinheiro e
corrupção passiva, informou a PGR no ofício. As investigações começaram em abril de 2015
na Suíça e resultaram em bloqueio de valores.
A transferência do procedimento criminal para o Brasil observou a Lei Federal Suíça
de Cooperação Internacional de 1981 e tratado bilateral em matéria penal.
Os dados enviados pelo Ministério Público suíço às autoridades brasileiras indicam
que a mulher de Eduardo Cunha, Claudia Cordeiro Cruz, usou parte do dinheiro transferido às
supostas contas da família no país europeu com o pagamento de despesas feitas por cartão de
crédito que somam US$ 841 mil (R$ 3,1 milhões na cotação atual) entre os anos de 2008 e
2015.
Com a transferência do processo, a Suíça renunciou à sua jurisdição para a causa, que
passa a ser do Brasil e de competência do Supremo Tribunal Federal (STF) porque, devido à
condição de deputado federal, Cunha teria prerrogativa de foro e só poderia ser investigado,
no Brasil, com autorização do STF.
77

Cunha foi investigado no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados após ter
afirmado que não tinha contas no exterior à Comissão Parlamentar de Inquérito que apurava
crimes contra o patrimônio da Petrobras.
Em 12 de setembro de 2016 o mandato parlamentar de Eduardo Cunha foi cassado
pelo Plenário da Câmara dos Deputados. O processo contra Cunha teve origem em uma
representação protocolada pelo PSOL e também pelo partido político Rede Sustentabilidade.

9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desenvolvemos o estudo com o objetivo de apurar se a Cooperação Jurídica
Internacional é mecanismo contributivo à repressão das mais diversificadas práticas
criminosas que perpassam múltiplas jurisdições.
Somente através da difusão do conhecimento produzido pela comunidade acadêmica
internacional, bem como pelo estudo das múltiplas realidades que caracterizam as relações
entre soberanias, torna-se possível o desenvolvimento e aprimoramento de instrumentos
eficazes no combate aos crimes transnacionais.
Os criminosos utilizam-se de artifícios tecnológicos, da inventividade advinda da
globalização para atingir seu intento delitivo. É necessário que o Direito acompanhe as
mutações das modalidades criminosas, para que o tempo não torne obsoleta e ineficaz,
principalmente, a lei penal. Daí a importância, inclusive, do Direito Internacional, que
oxigena as relações entre países, permitindo a rápida troca de informações e auxílio mútuo em
investigações.
São diversos os mecanismos que apresentamos, com o fito de apresentar o atual
cenário de colaboração internacional. Focamos na Recuperação de Ativos, principalmente,
por acreditar que os crimes caracterizados como de colarinho branco, que envolvem o
elemento fraude, são potenciais violadores de Direitos Humanos, porquanto muitas vezes
envolvem o desvio de dinheiro público.
Por isto, torna-se imprescindível a colaboração entre países: o descaminho do dinheiro
público favorece as mais diversificadas formas de desigualdades sociais. Operacionalizar a
Cooperação Jurídica Internacional para Recuperação de Ativos, em nossa análise, é garantir a
proteção e efetivação dos direitos mais elementares à condição humana, dentre eles, a vida.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Nadia de. Importância da Cooperação Jurídica Internacional para a atuação


do Estado brasileiro no plano internacional. Diponível em: <http://nadiadearaujo.com/wp-
78

content/uploads/2015/03/A-IMPORT%C3%82NCIA-DA-COOPERA%C3%87%C3%83O-
JUR%C3%8DDICA-INTERNACIONAL-PARA-A-ATUA%C3%87%C3%83O-DO-
ESTADO-BRASILEIRO-NO-PLANO-INTERNO-E-INTERNACIONAL.pdf.> Acesso em
08/10/2016.

BARBOSA JÚNIOR, Márcio Mateus. O auxílio direto como meio de efetividade do direito
à razoável duração do processo. Disponível em: <www.ambito-
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08/10/2016.

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MOTA, Tércio de Sousa; MOTA, Gabriela Brasileiro Campos; SOUSA, José Laércio de.
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Cooperação Jurídica Internacional no Brasil. Diponível em:
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Información para la Asistencia Mutua em Materia Penal y Extradición. Princípio de
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JALES, Lycia Cibely Porto. Transferência de presos em Cooperação Jurídica


Internacional. Disponível em:
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7&revista_caderno=16> Acesso em 08/10/2016.
79

MIGRAÇÃO E DIREITOS: O CASO CRIANÇAS YEAN E BOSICO


VERSUS REPÚBLICA DOMINICANA E A EFETIVIDADE DAS
SENTENÇAS DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS

MIGRATIONS AND RIGHTS: THE CASE OF CHILDREN YEAN E


BOSICO VERSUS DOMINICAN REPUBLIC AND THE EFFECTIVENESS
OF THE SENTENCES FROM INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN
RIGHTS

Juliana Melo Tsuruda1


Data de submissão: 19/10/2016
Data de aceite: 21/11/2016

Resumo
A imprensa internacional denuncia milhões de migrantes em situação de vulnerabilidade em
todo o mundo. Na América Latina, identificamos na República Dominicana uma histórica
discriminação de pessoas com ascendência haitiana, que por não terem sua nacionalidade
reconhecida, têm denegado seu acesso aos direitos econômicos, sociais e culturais. Esta
violação de Direitos Humanos e, especialmente, do disposto no Pacto de São José da Costa
Rica, deu origem ao caso Crianças Yean e Bosico versus República Dominicana que, embora
tenha sido exemplarmente sentenciado, ainda está aberto, colocando em questão a efetividade
das sentenças internacionais do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.
Palavras-chaves: Migração; Discriminação; Proteção à criança; Direitos econômicos, sociais
e culturais; Efetividade das sentenças internacionais.

Abstract
The international press denounces million of migrants in vulnerable situations worldwide. In
Latin America, we have identified historical discrimination of people with Haitian descent in
Dominican Republic, which their nationality, was not recognized and then they have denied
their access to economic, social and cultural rights. This violation of human rights and
especially the provisions of the Pact of San José of Costa Rica gave rise to the case children
Yean and Bosico versus Dominican Republic, although it has been exemplarily sentenced, it
is still open, putting in question the effectiveness of International sentences in the inter-
American system of protection of human rights.
Keywords: Migration; Discrimination; Child protection; Economic, social and cultural rights;
1
Mestre em Direitos Humanos pela PUC-SP. Professora assistente da graduação e do programa de pós-
graduação em Direito da PUC SP. E-mail: julianatsuruda@hotmail.com.
80

Effectiveness of international sentences.

1 INTRODUÇÃO
O caso “Crianças Yean e Bosico versus República Dominicana” merece especial
atenção não apenas por tratar-se da primeira oportunidade em que a Corte Interamericana de
Direitos Humanos apreciou a violação e o alcance do direito à nacionalidade, como também
há que ser estudado pela importância e atualidade de seu tema de fundo, que é a discriminação
sofrida pelos migrantes, que penaliza, mais gravemente, mulheres e crianças.
Nossa exposição se guiará para alcançar a compreensão da sentença da Corte,
seguindo a lógica da cronologia dos fatos, isto é: do recebimento da petição pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, providências adotadas e envio do caso à Corte, até a
última resolução de supervisão de cumprimento da sentença proferida pelo órgão julgador do
sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.
Nesse percurso, buscaremos compreender quais os artigos da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos foram violados e, para além deles, sob quais fontes
normativas e materiais des droits de l’homme que amparou-se a Corte para construir sua linha
de argumentação e condenar não somente a República Dominicana, como também a prática
de denegar direitos fundamentais a migrantes e grupos vulneráveis.
Ademais, no exame deste caso, ao verificar o lapso temporal entre a prolatação da
sentença e o seu cumprimento, encontramos fortes razões para questionar se os atuais
mecanismos de execução dos julgados da Corte Interamericana contribuem ou não para a
efetividade dos direitos humanos no continente, como veremos a seguir.

2 O CASO DAS CRIANÇAS YEAN E BOSICO


O primeiro marco temporal deste caso data de 05 de março de 1997, quando
Dilcia Yean tinha 10 meses de idade e Violeta Bosico contava com a idade de 12 anos, que
suas famílias compareceram com a organização não governamental “El Movimiento de
Mujeres Dominico-Haitianas (MUDHA)” ao Cartório do Estado Civil de Sabana Grande de
Boyá, na República Dominicana, requerendo o registro tardio de seus nascimentos e tiveram o
pedido denegado pela Oficial do Estado Civil, a autoridade registral competente, sob a
alegação de que eram insuficientes os documentos apresentados pelas famílias.
Na República Dominicana, à época dos fatos, o Registro Civil e seus Oficiais
eram subordinados à Junta Central Eleitoral, órgão que estabelece onze requisitos para o
81

registro tardio de nascimento, os quais a Oficial do Estado Civil considerou que as famílias
das crianças Yean e Bosico não haviam cumprido.
Em princípio, da decisão da autoridade registral caberia recurso à Promotoria, que
levaria o caso ao conhecimento de um juiz de primeiro grau de jurisdição. Tal possibilidade
fora observada pelas vítimas, que recorreram ao Promotor em 11 de setembro de 1997. Em 20
de julho de 1998, ele confirmou a decisão da Oficial do Estado Civil, pautando-se, desta vez,
não mais em 11, mas sim em 12 requisitos para realização do registro tardio.
Como não cabia recurso da decisão do Promotor e, no caso em tela, apenas ele
teria legitimidade para acionar o juízo de primeira instância, não havia possibilidade das
famílias recorrem ao Poder Judiciário. Também não seria efetivo nenhum recurso para a Junta
Central Eleitoral que, em outras oportunidades, confirmara a negativa do registro tardio para
crianças indocumentadas. Ademais, as decisões da Junta Central Eleitoral, de acordo com a
lei dominicana, são irrecorríveis.

a) Dilcia Yean
Dilcia Oliven Yean nasceu em 15 de abril de 1996 no posto de saúde do
município de Sabana Grande de Boyá, na República Dominicana. Sua mãe, Leonidas Oliven
Yean era dominicana mas tinha ascendência haitiana por parte de pai. O pai da menina Dilcia,
que até à época da sentença não mantinha contato com a filha era, também, haitiano.
Em 2003, quando a Comissão Interamericana de Direitos Humanos encaminhou o
caso à Corte, Dilcia já frequentava o “Colégio Alegría Infantil”, em Sabana Grande de Boyá.
A menina, durante o processo na Corte, narra em suas declarações prestadas ao tribunal, seu
sonho de ser advogada, quando crescer, a fim de poder ajudar as pessoas que precisem desse
tipo de auxílio.

b) Violeta Bosico Cofi


Violeta Bosico Cofi nasceu em 13 de março de 1985, na Maternidade do Seguro,
em Sabana Grande de Boyá, na República Dominicana. Embora sua mãe, Tiramen Bosico
Cofi, tenha nacionalidade dominicana, assim como a genitora de Dilcia Yean, também tem
ascendência haitiana. Outra semelhança há em relação ao pai de Violeta, Delima Richard, que
tal como o pai de Dilcia, possui nacionalidade haitiana.
Violeta morou no “Batey Las Charcas” com sua mãe e irmãos até 1992, onde
começou a estudar, o que foi possível por não terem lhe exigido certidão de nascimento para
frequentar a escola.
82

Até a data da sentença Violeta havia mudado de residência duas vezes com sua
irmã, Teresa Tucent Mena: a primeira para o “Batey Verde” ou “Batey Enriquillo”, onde
ficaram até 1993, e finalmente para o “Batey Palavé”, que é fora da Capital do país. Foi nessa
última cidade que a menina frequentou escola, mas só pôde estudar até a terceira série do
ensino básico: no final de 1998, teve a matrícula na quarta série negada, por não apresentar o
registro de nascimento que, de fato, não tinha.
Assim, entre os anos de 1998 e 1999 Violeta acabou frequentando o ensino
noturno, que é dirigido à adultos, onde conseguiu estudar a quarta e a quinta séries. Em que
pese ter continuado seus estudos, a metodologia da escola noturna não era adequada para sua
faixa etária, não apenas por estudar com adultos maiores de 18 anos e não ao lado de crianças
de sua idade, mas também porque a jornada escolar, em geral, contava apenas com duas horas
e meia de aula de aula. Ademais, no ensino noturno duas séries eram feitas em um ano, em
condições de aproveitamento, portanto, muito inferiores àquelas do ensino diurno.
Em 2005, Violeta iniciou os estudos no ensino secundário. Na época da sentença
cursava o segundo ano no “Colégio Monoguayabo. Fato relevante é que, além da qualidade
inferior de ensino a que teve acesso, na contagem total, Violeta Bosico não pôde frequentar a
escola ao longo de um ano, devido ao fato de não possuir documentos. Um dado marcante é
que em seu depoimento à Corte, declarou que “espera ser a primeira de sua família a ir à
universidade” (OEA, Corte Interamericana, 2005).

3 DISCRIMINAÇÃO NA REPÚBLICA DOMINICANA


Como vimos, o Caso das Crianças Yean e Bosico versus República Dominicana
narra a história de crianças indocumentadas que, embora tenham nascido em solo dominicano,
em razão das condições excessivamente rígidas estabelecidas pelo Estado para o
reconhecimento de sua nacionalidade, não têm acesso à prestações estatais básicas como
educação, saúde e assistência social, além de suas famílias nutrirem o temor de, a qualquer
momento, serem deportadas ao país de onde vieram seus ascendentes e as condições de vida
são notoriamente piores.
Como a República Dominicana e o Haiti ocupam, sem outros países fronteiriços,
uma ilha isolada na América Central (IBGE, 2015), depois dos Estados Unidos da América, é
aquele país o destino mais frequente dos emigrantes haitianos (INSTITUTO MIGRAÇÕES E
DIREITOS HUMANOS, 2015).
A imigração de haitianos para a República Dominicana, no entanto, nem sempre
foi mal recebida. Durante os períodos de intervenção dos Estados Unidos na República
83

Dominicana, no século XX, houve grande estímulo para que os haitianos imigrassem para o
país a fim de trabalhar como mão de obra na colheita da cana de açúcar (OCDE, 2010).
Muitos dos quase 100.000 imigrantes haitianos que foram a trabalho à República Dominicana,
sobretudo até a década de 30, acabaram constituindo família no país, vindo a ter filhos e netos
nascidos em solo dominicano (OEA, Corte Interamericana, 2005).
Estes imigrantes e sua prole de ascendência haitiana, passaram a erguer moradias
ao redor das zonas de plantação de cana de açúcar, regiões muito precárias em serviços
estatais que, durante os períodos de fortes chuvas, chegam a ficar dias a fio isoladas das
cidades. Ademais, o conjunto de suas moradias, os chamados “batey” ou “bateyes”,
constituem verdadeiras favelas construídas com restos de materiais dos canaviais
(VATICANO, 2015).
Para o julgamento do caso a Corte levou em consideração o Relatório de
Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento -
PNUD, de 2005, que apontou as precárias condições de vida dos imigrantes haitianos e seus
descendentes, na República Dominicana, para os quais sobravam apenas os trabalhos mais
pesados, precários e perigosos.
Além da dramática exclusão social sofrida pelos dominicanos indocumentados de
origem haitiana, nesse caso em particular, o Estado denegou o registro tardio de nascimento
para crianças que nasceram em território dominicano, fato que, segundo o Artigo 11 da
Constituição da República Dominicana, seria suficiente para lhes assegurar a nacionalidade
com base no preenchimento do critério do ius solis.
Sem o reconhecimento da nacionalidade dominicana, Dilcia Yean e Violeta
Bosico ficaram em situação de apatridia. A proteção das pessoas apátridas, dos refugiados e
dos deslocados internos é um tema de preocupação do Departamento de Direito Internacional
da Organização dos Estados Americanos, a OEA, impulsionado a adoção de 12 resoluções
sobre a temática, desde o ano de 1999, pela Assembleia Geral da Organização dos Estados
Americanos (OEA, Departamento de Direito Internacional, 2015).
Outro destaque sobre o direito de imigrantes e grupos vulneráveis aos seus
documentos é o “Programa de Universalização da Identidade Civil nas Américas”, que atende
pela sigla PUICA e tem como objetivos: a) universalização e acessibilidade do registro civil e
direito à identidade; b) fortalecimento das políticas instituições públicas e legislação dos
países; c) participação cidadã e sensibilização; d) identificação de melhores práticas; e, e)
promoção da cooperação internacional e regional através do “Conselho Latino-americano e do
84

Caribe de Registro Civil, Identidade e Estatísticas Vitais” (OEA. PROGRAMA DE


UNIVERSALIZAÇÃO, 2015).
Referido Conselho já pronunicou-se sobre a dificuldade para se obter o registro
civil na República Dominicana, país onde o sistema registral não é autônomo, mas vinculado
ao sistema eleitoral (OEA, CONSEJO LATINOAMERICANO , 2015) .
A situação de apatridia, em si mesma, é uma porta fechada aos direitos
fundamentais, pois sem vínculo jurídico-político com um Estado, com exceção de alguns
direitos que este porventura atribua aos estrangeiros em trânsito pelo país e, portanto, também
aos apátridas, esse grupo de pessoas sofre restrição no acesso à uma vasta categoria de
direitos, do voto à educação. Em sua sentença, a Corte pontua a nacionalidade como “um pré-
requisito para o exercício de determinados direitos” (OEA, Corte Interamericana, 2005).
No alegado entendimento da Oficial do Estado Civil, confirmado pelo promotor e
pela Junta Central Eleitoral, as famílias das crianças Yean e Bosico não conseguiram
preencher todos os requisitos da lei dominicana para o reconhecimento de sua nacionalidade,
mas por não haver um recurso claramente previsto na legislação interna para estas decisões, o
caso não poderia ser levado à apreciação do Poder Judiciário.
No curso do processo, a Corte apurou que a maioria das crianças dominicanas de
ascendência haitiana ficam indocumentadas até a realização do “registro tardio”. A razão é
que além da maioria viver nos “bateyes”, local que não costuma abrigar equipamentos
estatais como postos de saúde, suas famílias têm medo de se apresentar a qualquer funcionário
público, mesmo da área médica, e acabarem sendo deportados. Afinal, sabe-se que

A República Dominicana realizou deportações de haitianos e de dominicanos de ascendência haitiana


independentemente do status migratório dessas pessoas no país. Nestes casos as decisões foram tomadas sem
procedimento de averiguação prévio. Em alguns casos, as deportações alcançaram dezenas de milhares de pessoas, como
ocorreu nos anos noventa (OEA, Corte Interamericana, 2005).

Segundo a Constituição dominicana, os únicos casos de crianças nascidas no país


que não atendem ao critério do ius solis para terem a nacionalidade dominicana reconhecida,
são os filhos de estrangeiros em missões diplomáticas no país ou de pessoas em trânsito no
território dominicano, hipóteses que não correspondiam ao caso das crianças Yean e Bosico
(OEA, Corte Interamericana, 2005), que ficaram em situação de apatridia por 4 anos e 4
meses desde a primeira negativa do Estado.
A lei dominicana trazia uma série de requisitos para o registro tardio, variando de
acordo com o marco dos 13 anos de idade. Na sentença, diferentes listas de requisitos são
85

juntadas: aquela apresentada, pelo Estado, perante a Comissão; aquela em que o Promotor
apoiou-se para denegar o encaminhamento do caso ao Poder Judiciário; aquela que os
representantes obtiveram e levaram à Comissão, além de outras estabelecidas por Resoluções
da Junta Central Eleitoral.
Assim, verificando o conteúdo das listagens, podemos elencar como requisitos
para o registro civil tardio de pessoas maiores de 13 anos, na República Dominicana, a
apresentação de: a) certidão de batismo da criança; b) declaração de nascimento expedida pela
clínica ou hospital onde o parto foi realizado, ou ainda, a certidão do Prefeito indicando o
local do nascimento; c) cédulas de identidade dos pais ou certidão de óbito, em caso de
falecimento; d) certidão de casamento dos pais, caso sejam casados; e) certidão de não
inscrição em outros registros civis do local onde nasceu; e, f) fotos 2X2. Para os menores de
13 anos, além das fotos, costuma-se requerer: a) declaração da clínica ou hospital do
nascimento, ou do Prefeito, indicando onde a criança nasceu; b) documentos dos pais: cédula
de identidade, cédula eleitoral ou passaporte; e, c) certidão da Igreja, atestando o batismo ou
não batismo do menor.
Ainda, a leitura da sentença demonstra que os requisitos acima mencionados
podem variar, acrescentando a declaração juramentada de testemunhas de mais de 50 anos de
idade, em se tratando do registro tardio de menores de 13 anos e, também, deixando brechas
para que o Estado denegue o direito ao registro, ainda que todos os requisitos sejam
cumpridos. Não há clareza, portanto, de quais são os documentos necessários para realização
do registro tardio. As listas apresentadas no processo não são unificadas.
Com requisitos não uniformes, não é difícil para o Estado implantar política
discriminatória, criando dificuldades para o registro das crianças de ascendência haitiana e,
em alguns casos, chegando a deportar suas famílias.
Este caso evidencia que na República Dominicana, o procedimento do registro
tardio, ao menos até à época da sentença, era um fim em si mesmo e não um mecanismo
instrumental para o gozo de direitos.
Refutando a alegação da Oficial de Estado Civil que denegou o registro tardio às
crianças Yean e Bosico afirmando que seus pais, trabalhadores haitianos imigrantes, eram
estrangeiros em trânsito no país, a Corte também usa como fonte para sua sentença o
“Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos na República Dominicana” de 1999,
elaborado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que contabilizava, naquela
época, mais de 500.000 trabalhadores haitianos indocumentados, sendo que a maioria já
86

estava no país há 20 ou 40 anos, com família constituída (OEA, COMISSÃO


INTERAMERICANA, 1999).
Outra fonte normativa dos direitos humanos empregada pela Corte na construção
de sua linha argumentativa foram os trabalhos do Comitê dos Direitos da Criança das Nações
Unidas, que já havia se pronunciado contra a discriminação sofrida pelas crianças
dominicanas de origem haitiana (NAÇÕES UNIDAS. COMITÊ, 2001).

4 O PROCESSO NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS


Embora a Comissão tenha recebido a primeira petição dos representantes contra a
República Dominicana em 28 de outubro de 1998 e registrado-a sob o nº 12.189, podemos
dizer que a denúncia foi realizada em três momentos distintos.
Em 28 de outubro de 1998 Genaro Rincón Miesse e Solain Pierre do MUDHA,
apresentaram petição narrando a negação do Estado em conceder o registro de nascimento às
vítimas. Depois, em 27 de abril de 1999, no que podemos compreender como um segundo
momento da denúncia, Genaro - representante do MUDHA -, María Claudia Pulido -
representante do Centro pela Justiça e o Direito Internacional, o CEJIL - e as senhoras Laurel
Fletcher e Roxana Altholz - representantes da International Human Rights Law Clinic, School
of Law (Boalt Hall), University of California, Berkeley, denominada “Clínica de Direito
Internacional dos Direitos Humanos” -, apresentaram a denúncia em inglês com pedido de
medidas cautelares. Finalmente, em um terceiro e último momento, em 11 de junho de 1999, a
Comissão recebeu a versão final da denúncia, em espanhol, apontando os artigos violados da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos e da Declaração Americana de Direitos e
Deveres do Homem.
Em março de 2000 a Comissão realizou audiência a fim incentivar a resolução
amistosa do caso, mas o Estado não se mostrou inclinado a aceitar as condições dos
representantes.
Foi em 22 de fevereiro de 2001, através do Relatório nº 28/01, que a Comissão
declarou a admissibilidade do caso e decidiu que faria o exame de mérito, pautando-se no fato
de que o Estado apontava o não esgotamento dos recursos internos, mas não dizia, com
clareza e objetividade quais eram esses recursos e contra quais decisões eles seriam cabíveis.
Tendo em 24 de agosto de 2001 promovido outra reunião para incentivar a
solução amistosa, sem obter resultados, em 27 de agosto do mesmo ano convocou uma
audiência de mérito sobre o caso.
87

Em 1º de outubro de 2001, afirmando ter aceitado a solução amistosa, o Estado


informou à Comissão que concederia as certidões de nascimento às crianças Yean e Bosico,
ignorando, contudo, todos os outros pedidos feitos pelos representantes.
Assim, em 15 de novembro de 2001 a Comissão realizou a audiência sobre o
mérito do caso, na qual os representantes afirmaram que a concessão das certidões, àquela
altura dos acontecimentos, já não seria suficiente. Seria necessário que o Estado reconhecesse
publicamente as violações perpetradas, arcasse com as indenizações e adotasse medidas de
não repetição.
A Comissão aprovou o Relatório de Mérito nº 30/03 em 06 de março de 2003,
oportunidade em que recomendou ao Estado a realização de tudo quanto havia sido requerido
pelos representantes, os quais, após serem comunicados pela Comissão sobre o conteúdo do
Relatório de Mérito em 21 de abril de 2003, solicitaram que o caso fosse submetido à Corte.

5 A SENTENÇA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS


O caso das crianças Yean e Bosico versus República Dominicana foi submetido à
Corte Inetramericana de Direitos Humanos em 11 de julho de 2003. A Comissão, nessa
oportunidade, requereu a responsabilização internacional do Estado pela violação dos direitos
reconhecidos nos Artigos 3, 8, 19, 20, 24 e 25, todos em consonância com o Artigo 1.1 da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Em sua manifestação, os representantes do Estado, adicionalmente à lista de
violações apresentadas pela Comissão, também alegaram o desrespeito dos direitos
consagrados nos Artigos 5, 12, 17, 18, 21, 22 e 23 da Convenção, também denominada Pacto
de San José da Costa Rica. Ademais, entenderam como violados os direitos elencados nos
Artigos VI, VII, VIII, XII, XVII, XIX, XX e XXIII da Declaração Americana de Direitos e
Deveres do Homem.
A audiência perante o órgão julgador do sistema interamericano de proteção dos
direitos humanos ocorreu em 14 e 15 de março de 2005, quando a Corte declarou-se
competente para conhecer o caso, uma vez que a República Dominicana é parte da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos desde 19 de abril de 1978 e reconheceu sua competência
contenciosa em 25 de março de 1999.
Quanto ao procedimento, todas as exceções preliminares do Estado foram
afastadas pela Corte, quais sejam: não esgotamento dos recursos de jurisdição interna, não
cumprimento da Solução Amistosa apresentada pela Comissão e acolhida pelo Estado e a falta
de competência rationne temporis do órgão julgador.
88

Ao final da análise do mérito, a Corte considerou violados os direitos de Dilcia


Oliven Yean e de Violeta Bosico Cofi à nacionalidade e à igualdade perante a lei,
consagrados nos Artigos 20 e 24, ambos relacionados com os Artigos 19 e 1.1 da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, além do direito ao nome e ao reconhecimento da
personalidade jurídica, reconhecidos pelos Artigos 3 e 18 da Convenção, igualmente em
consonância com os Artigos 1.1 e 19.
Também considerou como violado o direito à integridade pessoal de Leonidas
Oliven Yean, mãe da menina Dilcia, e Tiramen Bosico Cofi e Teresa Lucent Mena,
respectivamente, mãe e irmã da menina Violeta, previsto no Artigo 5 da Convenção
Americana, em relação ao Artigo 1.1 que trata da obrigação de respeitar direitos.
Em seu voto fundamentado, Cançado Trindade apontou que a Corte poderia ter
ampliado seu entendimento e contribuído para tornar mais efetiva a proteção dos direitos
humanos, se reconhecesse também a violação ao Artigo 2º da Convenção Americana, que
trata do dever de adotar disposições de direito interno, e também a violação do Artigo 1º,
isoladamente considerado.
Como vimos, até a entrega de suas certidões de nascimento, em 2001, as crianças
Yean e Bosico estavam em situação de apatridia. Para sentenciar o caso, além da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, a Corte também se valeu da Convenção para a Redução
dos Casos de Apatridia que, no entanto, a República Dominicana havia assinado mas não
havia ratificado.
Pronunciando-se sobre os múltiplos e não objetivos critérios para a realização do
registro tardio, a Corte teceu importantes considerações em relação às pessoas de ascendência
haitiana que veem negado seu direito à nacionalidade pela simples alegação de que seus pais
são trabalhadores imigrantes em trânsito:

“De acordo com o indicado acima, e levando em consideração o direito à


nacionalidade dos filhos de pessoas migrantes na República Dominicana em relação
à norma constitucional pertinente e aos princípios internacionais de proteção dos
migrantes, a Corte considera que:
a) o status migratório de uma pessoa não pode ser condição para a concessão da
nacionalidade por parte do Estado, já que sua qualidade migratória não pode
constituir, de nenhuma forma, uma justificativa para privá-la do direito à
nacionalidade nem do gozo e do exercício de seus direitos;
b) o status migratório de uma pessoa não se transmite a seus filhos;
c) a condição do nascimento no território do Estado é a única a ser demonstrada
para a aquisição da nacionalidade, no que se refere a pessoas que não teriam
direito a outra nacionalidade, se não adquirem a nacionalidade do Estado onde
nasceram” (OEA, Corte Interamericana, 2005).
89

Sobre o procedimento de registro tardio, a Corte também consignou que “Os


requisitos exigidos para provar o nascimento no território devem ser razoáveis e não podem
representar um obstáculo para se ter acesso ao direito à nacionalidade” (OEA, Corte
Interamericana, 2005).
Entendendo que o Estado violou direitos dispostos na Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, a Corte estabeleceu reparações a serem realizadas, além da cessação
das consequências da violação.
Não houve condenação por dano material, uma vez que nem a Comissão, nem os
representantes fizeram pedido nesse sentido. No tocante à indenização por dano imaterial,
considerando o fundado temor de deportação, a apatridia e o prejuízo escolar de Violeta
Bosico, a Corte condenou o Estado a indenizar tanto à criança Bosico quanto à criança Yean,
na quantia de 8.000 dólares americanos para cada uma. Em relação às mães das vítimas e à
irmã de Violeta Bosico, a Corte considerou a própria sentença como uma medida de reparação
por danos imateriais.
Ainda, a Corte condenou o Estado a publicar pelo menos uma vez, no prazo de
seis meses a contar da notificação da sentença, tanto no diário oficial quanto em jornal de
circulação nacional, as seções da sentença intituladas “Fatos Provados” e “Pontos
Resolutivos”.
Como medida de não repetição, a Corte também condenou o Estado a realizar ato
público de reconhecimento de sua responsabilidade internacional pelos direitos violados neste
caso, também no prazo de seis meses a contar da notificação da sentença, que além de ser
divulgado nos meios de comunicação - que a Corte exemplifica como rádio, imprensa e
televisão -, deveria contar com a presença de autoridades, das vítimas e seus familiares, bem
como dos representantes2.
Quanto à adoção de medidas, observando que o Estado modificou sua legislação
interna sobre registro tardio durante o processo no sistema interamericano de proteção dos
direitos humanos, a Corte aponta a necessidade do Estado implementar um programa para
capacitar e formar seus funcionários em direitos humanos, a fim de que “seja promovida a
cultura de tolerância e não discriminação” (OEA, Corte Interamericana, 2005).
Ademais, quanto ao direito à educação primária, a Corte aponta que ele deve ser
garantido de forma gratuita à todas as crianças, qualquer que seja sua ascendência ou origem.

2
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso das crianças Yean e Bosico versus República Dominicana.
Sentença de 08 de setembro de 2005, p. 76/77. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/index.php/mapa-
interactivo>, conforme consulta em 05 de abril de 2015.
90

Sobre as custas e gastos, a Corte condenou o Estado ao pagamento de 6.000


dólares americanos à Leonidas Oliven Yean e Tiramen Bosico Cofi, mães das vítimas, a fim
de que repassem o valor à MUDHA, ao CEJIL e à Clínica de Direito Internacional dos
Direitos Humanos, para lhes compensar todas as despesas com o processo.

6 UM BILAN DOS 10 ANOS DA SENTENÇA


Mesmo tendo modificado sua legislação interna, a República Dominicana
mostrou-se esquiva ao cumprimento da sentença, razão pela qual, ao pedir sua interpretação,
valendo-se do disposto no Artigo 68.4 do Regulamento do órgão julgador (OEA. Corte,
Regulamento, 2015), indicou que não havia comprovações de que a criança Violeta Bosico
fosse, de fato, dominicana e colocou em dúvida maternidade de Dilcia Yean, razão que, se
procedesse, lhe retiraria o direito à nacionalidade do país. Ademais, entre outras colocações, o
Estado afirmou que as crianças Yean e Bosico não ficaram, de fato, em situação de apatridia,
porque poderiam ter requerido a nacionalidade haitiana, que tinham direito. Em decisão de 23
de novembro de 2006, a Corte julgou improcedente o pedido de interpretação da sentença
(OEA, Corte, Sentença de Interpretação, 2006).
Feito este procedimento, iniciou-se a fase de execução do julgado, que é a
supervisão do cumprimento de sentença, conforme nomenclatura dada pelo Regulamento da
Corte.
Segundo o Artigo 69.1. do referido Regulamento, o procedimento vale tanto para
as sentenças quanto para as demais decisões do órgão julgador do sistema interamericano de
proteção dos direitos humanos, e se desenvolve através da apresentação de relatórios estatais e
das observações ou comentários por escrito a estes relatórios por parte das vítimas ou dos seus
representantes. A Comissão, por sua vez, apresenta observações tanto em relação aos
relatórios dos Estados quanto às observações ou comentários das vítimas ou dos respectivos
representantes.
Contudo, para o acompanhamento da implementação de suas decisões, a Corte
não fica restrita à sistemática de relatórios: de acordo com o Artigo 69.2. de seu Regulamento,
ela também pode requerer perícias, ou ainda, como dispõe o Artigo 69.3., pode convocar
audiências para as quais deverão comparecer o Estado e os representantes da vítima e na qual
a Comissão será chamada para dar um parecer.
Reunindo todas as informações que julgar pertinentes para avaliar o cumprimento
da sentença, a Corte, na forma do Artigo 69.4. determina o estado do cumprimento de sua
decisão e emite as resoluções que julga pertinentes.
91

Em sua última Resolução, de 10 de outubro de 2011, a Corte verificou que ainda


estavam pendentes de cumprimento duas obrigações de fazer relacionadas na sentença, quais
sejam: realização de ato público de reconhecimento da responsabilidade internacional e
pedido de desculpas à vítima Dilcia Yean e seus pais, bem como à vítima Violeta Bosico, à
sua genitora e à sua irmã, ocasião em que deveriam estar presentes autoridades do Estado,
demais familiares das vítimas, seus representantes no sistema interamericano e que deveria ser
divulgado por meios de comunicação como rádio, televisão e jornal. Outro ponto da decisão
não cumprido pela República Dominicana foi no sentido de adotar medidas legislativas e
administrativas a fim de regulamentar o procedimento e os requisitos de aquisição da
nacionalidade dominicana para aqueles que têm apenas declaração tardia de nascimento.

7 EFETIVIDADE DOS JULGADOS DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS


HUMANOS
Se em sentido filosófico efetivo equivale à real (ABBAGNANO, 2012), para o
direito, a efetividade corresponde ao quarto plano do ato normativo, para além da vigência,
da validade e da eficácia (BARROSO, 2013) .
Assim, podemos compreender que uma sentença efetiva é aquela que se realiza
em sua plenitude: que sai do mundo abstrato para se tornar tangível no mundo prático.
A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, além de ser vinculante
assim como todas as suas decisões, na forma do já mencionado Artigo 68.1. da Convenção
Americana, também encontra argumentos para ser cumprida pelos Estados à luz da
Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (KRSTICEVIC, 2009).
Referida Convenção prevê a observância do pacta sunt servanda em seu Artigo
26 - princípio que obriga que as partes cumpram de boa fé todo tratado em vigor; conforme
seu Artigo 27, o dever das partes de não invocar disposições do direito interno para justificar
o inadimplemento dos tratados; e, como dispõe o Artigo 46, a possibilidade do Estado invocar
a incompatibilidade do direito interno com o tratado apenas caso este tenha sido contratado
ilegitimamente, e que isto tenha sido evidente para todos os demais Estados (NATIONS
UNIES, 1969).
Embora a boa-fé deva prevalecer em todos os compromissos estatais, de modo
que o Estado que reconhece a competência contenciosa da Corte Interamericana de Direitos
Humanos cumpra integralmente suas sentenças, prevendo eventual dificuldade, o Artigo 65 da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos dispõe que:
92

Artigo 65 - A Corte submeterá à consideração da Assembléia Geral da


Organização, em cada período ordinário de sessões, um relatório sobre
as suas atividades no ano anterior. De maneira especial, e com as
recomendações pertinentes, indicará os casos em que um Estado não
tenha dado cumprimento a suas sentenças (OEA, 1969).

É preciso nos perguntarmos, contudo, se este mecanismo de submissão à


Assembleia Geral da OEA de relatórios informando sobre Estados que não deem
cumprimento às decisões da Corte contribui ou não para a efetividade dos direitos humanos.
O ex-juiz Manuel E. Ventura Robles, exemplificando a questão com o caso
Hilaire, Constantine, Benjamin e outros versus Trindad e Tobago, afirma que depois da
sentença proferida em 21 de junho de 2002, o Estado ignorou completamente os pedidos da
Corte para apresentação de relatório informando o cumprimento da mesma, o que levou o
órgão julgador a reportar o caso à Assembleia Geral da OEA, na forma do já mencionado
Artigo 65 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (VENTURA ROBLES, 2005).
A Assembléia Geral manteve-se silente sobre o relatório de não cumprimento da
sentença da Corte (VENTURA ROBLES, 2005).
Este desfecho causou tamanha consternação no juiz Manuel E. Ventura Robles -
como certamente causa em todos nós, informados sobre o cruzar de braços da OEA - que o
magistrado passou a questionar a efetividade do Artigo 65 da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos:

Mas, ademais, cabe questionar também por qual razão o artigo 65 da


Convenção Americana, que assinala a obrigação da Corte de informar
a Assembleia Geral da OEA das sentenças não cumpridas, não incluiu
um procedimento e uma instituição dentro da organização, com a
responsabilidade de implementar tal disposição (VENTURA
ROBLES, 2005).

Continuando sua preleção, o magistrado questiona a razão pela qual a Convenção


Americana sobre Direitos Humanos, inspirada na Convenção Europeia, também não absorveu
o modelo de supervisão permanente do cumprimento de sentenças por um órgão político, que,
no caso europeu, dá-se através do Comitê de Ministros do Conselho da Europa (CONSELHO
DA EUROPA, 2015).
No sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, quem cuida da
supervisão do cumprimento da sentença é a própria Corte, que só tem oportunidade de levar
os Estados não cumpridores de suas determinações para a Assembleia Geral da OEA durante
a sessão anual, que, como sugere o nome, ocorre uma vez por ano.
O juiz lembra que Cançado Trindade, enquanto presidiu a Corte Interamericana,
levou a questão à Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos do Conselho Permanente da
93

OEA. Em conferencia de 05 de abril de 2001 Cançado Trindade propôs um projeto de


protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, voltado ao procedimento e ao
fortalecimento do sistema de proteção dos direitos humanos no continente. A proposta
desejava acrescentar ao Artigo 65 da Convenção, o seguinte parágrafo: “A Assembleia Geral
os remeterá ao Conselho Permanente, para estudar a matéria e transcrever um relatório, para
que a Assembleia Geral delibere a respeito” (VENTURA ROBLES, 2005).
Assim, o Conselho Permanente da OEA, órgão previsto no Artigo 53 “b” e
Artigos 80 à 92 de sua Carta (OEA, Carta, 2015), faria as vezes do Comitê de Ministros do
Conselho da Europa, órgão político e permanente que o sistema europeu possui para
acompanhar as decisões da Corte Europeia de Direitos Humanos. A grande diferença entre
deixar as coisas como estão, isto é, apenas nas mãos da Assembleia Geral, e instituir o
procedimento obrigando este órgão a enviar tudo para o Conselho Permanente, estaria no fato
de que se permitiria um acompanhamento regular do cumprimento da decisão da Corte por
órgão que é político, de modo que quando o relatório deste Conselho, sobre o caso, chegasse à
Assembleia Geral, está já teria em mãos tudo o que precisa para, enfim, tomar a medida
cabível, qual seja: exortar o Estado que ainda não cumpriu a decisão da Corte, a cumpri-la.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O caso das crianças Yean e Bosico versus República Dominicana merece destaque
por trazer à tona a violação do seu direito a ter direitos. Sem o reconhecimento da
nacionalidade, a relação jurídica dos direitos humanos e também a dos direitos fundamentais
fica incompleta, pois, se de uma lado, a pessoa é sempre credora das abstenções ou prestações
que caracterizam as obrigações tanto no campo dos direitos humanos, quanto no campo dos
direitos fundamentais, como exigir que seus direitos sejam respeitados se não há um polo
passivo bem definido do outro lado do liame obrigacional? É o que acontece nos casos de
apatridia, a efetividade dos direitos humanos e também dos direitos fundamentais fica
comprometida.
Enquanto crianças indocumentadas, seu acesso à direitos básicos como educação e
saúde também foi prejudicado, além das famílias terem de conviver com o temor de, a
qualquer momento, serem deportadas, isto é, levadas contra sua vontade ao país de origem de
seus ascendentes.
O direito à nacionalidade deveria ser reconhecido pelo Estado sem o
estabelecimento de condições tão difíceis e custosas de serem cumpridas, que parecem existir
94

para impedir o preenchimento de seus requisitos, especialmente neste caso, em que o Estado
dominicano, em sua Constituição, estabelece o critério do ius solis.
O Estado, no caso das crianças Yean e Bosico, fez do procedimento para o
registro do nascimento e, portanto, do reconhecimento da nacionalidade um fim em si mesmo,
violando o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica das vítimas e perpetuando atos
discriminatórios contra a população de origem haitina.
Depois de condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Estado
continuou olvidando seu dever de boa-fé e o cumprimento do pacta sunt servanda, isto é, sua
obrigação de cumprir a sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Quando os países não cumprem as sentenças, em todo ou em parte, o caso não é
arquivado, gera o procedimento de supervisão de cumprimento de sentença que funciona
através da sistemática de relatórios que, se não atendidos, não geram maiores consequências
para os Estados e, tampouco, efetividade para as decisões em favor das vítimas. Isto porque a
Convenção Americana prevê que os casos de não cumprimento sejam levados à Assembleia
Geral da OEA que se reúne anualmente e nem sempre se pronuncia sobre os relatórios da
Corte. Há, assim, muito o que se conquistar em termos de efetividade para o processo
interamericano de direitos humanos.

REFERÊNCIAS

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<http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/8b6939f8b38f377a03256ca200686171
/5badd06cd1f945778325736b00610dad?OpenDocument>, conforme consulta em 05 de abril
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conforme consulta em 05 de abril de 2015.COMISSÃO INTERAMERICANA DE
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Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Disponível em:
95

<http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/d.Convencao_Americana_Ratif..htm>, conforme
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_______. Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos na República Dominicana.


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CRC/15/Add.150, de 21 de fevereiro de 2001, pars. 22 e 26 apud Corte Interamericana de
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p0MTAtl-Hjjd19PMBAKlmb4&hl=pt-
BR&sa=X&ei=jKEhVeSqBIifgwTer4GwCg&sqi=2&ved=0CDYQ6AEwBA#v=onepage&q=
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Internacional. Apátridas. Disponível em:
<http://www.oas.org/dil/esp/apatridas_resoluciones.htm>, conforme consulta em 05 de abril
de 2015.
96

OS DIREITOS HUMANOS E OS DIREITOS DA CRIANÇA NAS


RELAÇÕES INTERNACIONAIS

HUMAN RIGHTS AND CHILDREN’S RIGHTS IN INTERNATIONAL


RELATIONS
Giovanna Ayres Arantes de Paiva1
Data de submissão: 05/10/2016
Data de aceite: 21/11/2016

Resumo
Recentemente, a questão dos Direitos Humanos e, especialmente, dos direitos da criança tem
ganhado cada vez mais espaço entre os assuntos abordados pelas Relações Internacionais e
pela Segurança Internacional. Sobretudo na segunda metade do século XX e início do século
XXI, temas como proteção de civis em conflitos armados, garantia do direito à liberdade de
expressão, direito à alimentação, à saúde e a uma vida segura ganharam maior repercussão no
cenário internacional. Mesmo assim, observamos que atualmente ainda existem muitas
violações a esses direitos e garanti-los a todos os cidadãos é um desafio para a comunidade
internacional. Diante desse cenário em que as crianças sofrem diversas violações a seus
direitos todos os dias e em diferentes países, o objetivo deste texto é mostrar que, apesar da
preocupação com os direitos da criança no campo das Relações Internacionais e da Segurança
Internacional ser recente, suas raízes estão nos princípios liberais que lançaram as bases dos
Direitos Humanos e, posteriormente, se desenvolveram e se aprimoraram de acordo com a
realidade internacional. Destacamos aqui a importância que tais princípios tiveram para trazer
a preocupação com os Direitos Humanos e com os direitos da criança para o cenário
internacional, porém não esquecemos que ainda há muito o que se fazer para que tais direitos
sejam, de fato, assegurados e que os princípios liberais sejam seguidos à risca.
Palavras-chave: Direitos Humanos; direitos da criança; Relações Internacionais.

Abstract

Recently, the issue of human rights and especially children’s rights has gained more and more
space among the issues addressed by the International Relations and International Security.
Especially in the second half of the twentieth century and twenty-first century, issues such as
protection of civilians in armed conflict, guaranteeing the right to freedom of expression, right
to food, health and a safe life gained greater impact on the international scene. Still, we note
that currently there are many violations of these rights and guarantee them to all citizens is a
challenge for the international community. In this scenario in which children suffer many
violations of their rights every day and in different countries, the aim of this paper is to show
that, despite the concern for children's rights in the field of International Relations and
International Security is recent, its roots are in the liberal principles that laid the foundations
of human rights and subsequently developed and improved according to the international
reality. Here we highlight the importance of such principles had to bring the concern to
                                                                                                                       
1
Mestre e Doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais
“San Tiago Dantas” (UNESP/UNICAMP/PUC-SP). Graduada em Relações Internacionais pela UNESP. E-mail:
giovanna.aap@gmail.com.
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human rights and children’s rights to the international scene, but we do not forget that there is
still much to be done so that such rights are indeed assured and liberal principles are followed
to the letter.
Keywords: Human Rights; Children’s rights; International Relations.

1  INTRODUÇÃO

A questão dos Direitos Humanos introduziu-se nas Relações Internacionais a partir


de princípios liberais, elaborados principalmente no século XVIII por pensadores como Locke
e Kant. Sendo assim, teóricos da Ciência Política e das Relações Internacionais utilizaram tais
ideias para se pensar o sistema internacional, ou seja, como os princípios liberais se
aplicariam na sociedade internacional, como manter esses princípios no âmbito internacional,
em meio a realidades tão distintas.
O ideal de manter uma sociedade internacional que respeitasse os mesmos princípios
liberais básicos influenciou significativamente diversos mecanismos internacionais de busca
por cooperação como a Liga das Nações e a Organização das Nações Unidas (ONU).
Depois da Primeira Guerra Mundial e, sobretudo depois da Segunda Guerra -
marcada por um genocídio que chocou a sociedade e consagrou os EUA como uma potência -
, abriu-se o caminho para se desenhar as bases de uma sociedade internacional, de uma moral
universalizante e dos Direitos Humanos. Atualmente, a ONU considera os Direitos Humanos
um dos temas prioritários de sua agenda de ação e de sua agenda de Segurança Internacional.
A partir do estabelecimento dos Direitos Humanos como um assunto essencial no sistema
internacional, outro tema relacionado a este também ganhou destaque: os direitos da criança.
Sobretudo a partir da segunda metade do século XX, os direitos que todas as crianças
possuem passaram a ganhar atenção especial da ONU e de seus Estados membros.
Desse modo, o objetivo deste texto é mostrar que, apesar da preocupação com os
direitos da criança no campo das Relações Internacionais e da Segurança Internacional ser
recente, suas raízes estão nos princípios liberais que lançaram as bases dos Direitos Humanos
e, posteriormente, se desenvolveram e se aprimoraram de acordo com a realidade
internacional. Destacamos aqui a importância que tais princípios tiveram para trazer a
preocupação com os Direitos Humanos e com os direitos da criança para o cenário
internacional, porém não esquecemos que ainda há muito o que se fazer para que tais direitos
sejam, de fato, assegurados e para que os princípios liberais sejam seguidos à risca.
Ressaltamos ainda que a análise aqui apresentada é importante para estabelecer um
maior intercâmbio entre as áreas de Direitos Humanos e Relações Internacionais que se
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complementam e são essenciais para entendermos como os Direitos Humanos são atualmente
entendidos em um cenário tão complexo e diverso como é o sistema internacional. Dessa
forma, o grande desafio da sociedade internacional – composta por atores tão distintos quanto
ONGs, Estados, grupos armados, indivíduos – é traçar valores e princípios que sejam
respeitados mundialmente.
A fim de concretizar a análise pretendida, o estudo de princípios liberais, teoria das
RI e documentos sobre Direitos Humanos e direitos da criança serão de grande importância.

2 OS PRINCÍPIOS DE DIREITOS HUMANOS NO CAMPO DAS RELAÇÕES


INTERNACIONAIS

O tema dos Direitos Humanos na área de Relações Internacionais tem suas origens
nas concepções da natureza humana que se criaram e que depois embasaram as primeiras
teorias clássicas das RI. Kant (1989) e Locke (2002) trazem postos-chave para se pensar o
liberalismo político, influenciando assim a concepções liberal e neoliberal. A noção kantiana
do direito à dignidade humana como um dos passos para se alcançar a “paz perpétua” faz
parte das ideias básicas que, anos mais tarde, culminariam no estabelecimento dos Direitos
Humanos. Ademais, o autor reforçou a ideia de um “direito cosmopolita”, no sentido da
hospitalidade entre os povos, lembrando que, mais do que cidadão de um Estado, o ser
humano é cidadão de uma “sociedade cosmopolita”.
Kant não chega a propor um Estado mundial, mas uma aliança entre povos livres,
organizados em Repúblicas, visto que essa forma de governo priorizaria a liberdade dos
membros dos Estados, a dependência da lei e a igualdade entre os cidadãos. A proposta
kantiana de uma “federação de Estados” inspirou a noção de uma “sociedade mundial” capaz
de unir-se em prol da liberdade humana. É essa ideia que influencia, pelo menos em tese, a
criação de organizações como a Liga das Nações e, posteriormente, a Organização das Nações
Unidas. Mesmo que Kant escreva com um formalismo notável, os pressupostos que ele
lançou serviram de base para concepções liberais da sociedade e tentativas de colocar em
prática algumas de suas ideias. Portanto, o autor deixa sua contribuição ao mostrar que é
possível existir um direito universal através de um envolvimento jurídico entre as nações e
seguindo certos preceitos que evitem futuras guerras.
Não só Kant, mas também Locke tem um papel relevante na consolidação de
pressupostos liberais. O autor defendeu que “os homens são por sua natureza livres, iguais e
independentes” (2002, p. 68) e que:
99

Embora a terra e todos os seus frutos sejam propriedade comum a todos os


homens, cada homem tem uma propriedade particular em sua própria pessoa;
a esta ninguém tem qualquer direito senão a ele mesmo. O trabalho de seus
braços e a obra das suas mãos, pode-se afirmar, são propriedade dele (2002,
p. 30).

Nessa passagem estão contidas duas premissas importantes: o direito à liberdade e o


direito à propriedade. Nota-se a exaltação do indivíduo como um sujeito de direitos próprios e
inalienáveis. Locke ainda ressalta o indivíduo como uma categoria que merece proteção
especial, pois é dotado de razão:

Ora, pela lei fundamental da natureza, deve-se preservar o homem tanto


quanto possível, quando nem tudo se pode preservar, devendo dar-se
preferência à segurança do inocente; e pode destruir-se alguém que nos
mova a fazer a guerra ou que manifeste inimizade à nossa existência pelo
mesmo motivo que se pode matar um lobo ou um leão, uma vez que tais
pessoas não se sujeitam a lei comum da razão [...] (2002, p. 23).

É essa ideia de liberdade e direitos do ser humano está presente também na


Declaração de Independência dos EUA; na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
fruto da Revolução Francesa; na Carta da ONU e na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, constituindo a base para se construir um tratado sobre os Direitos Humanos.

2.1 O fortalecimento da questão dos Direitos Humanos na agenda internacional

Na Declaração de Independência das EUA, inspirada por princípios liberais, consta


que: “[...] todos os homens são criados iguais, sendo-lhes conferidos pelo seu Criador certos
Direitos inalienáveis, entre os quais se contam a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade”
(EUA, 1776). Mais tarde, a Revolução Francesa também se baseia nesses princípios para
reivindicar os direitos básicos, o que pode ser visto através da Declaração de Direitos do
Homem e do Cidadão, original de 1789, a qual reafirma que “Os homens nascem e são livres
e iguais em direitos” (FRANÇA, 1789, art.1.º). Esses direitos seriam “a liberdade, a
propriedade, a segurança e a resistência à opressão” (1789, art. 2.º), sendo que a liberdade é
aqui entendida como “poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos
direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos” (1789, art. 4.º), e por “propriedade”
entende-se que “Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser
100

privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob
condição de justa e prévia indenização”(1789, art. 17º ).
Não é de se surpreender que, mais de cem anos depois, o ex-presidente
estadunidense Woodrow Wilson reavivasse alguns desses princípios morais para legitimar as
ações estadunidenses e que estes pontos traçados pelo presidente influenciariam fortemente os
chamados Direitos Humanos.
Wilson foi o vigésimo oitavo presidente dos EUA, eleito em 1912 e reeleito em
1916. Como presidente, ele liderou o país durante a Primeira Guerra Mundial e formou um
discurso à favor da Liga das Nações, embora o próprio Senado estadunidense tenha sido
contra o ingresso dos EUA na Liga.
O ex-presidente exaltava uma comunidade de paz que, no lugar do equilíbrio de
poder, priorizaria a “segurança coletiva internacional”, na qual os governos democráticos
possuiriam um conceito de ameaça em comum e concordariam quanto às sanções impostas ao
Estado que contrariasse a paz mundial (NASSER, 2010).
Conforme Wilson ressalta em seu discurso:

Nós falamos agora, com certeza, em termos muito concretos para admitir
qualquer outra dúvida ou pergunta. Um princípio evidente atravessa todo o
programa que delineei. É o princípio da justiça para todos os povos e
nacionalidades, e seu direito de viver em igualdade de condições de
liberdade e de segurança com os outros, sejam eles fortes ou fracos (THE
WOODROW WILSON PRESIDENTIAL LIBRARY & MUSEUM,
tradução nossa)2.

Os pensamentos e ações de Wilson impactaram a sociedade internacional e a forma


de enxergar a segurança e a paz. Apesar de essa concepção ter influenciado a formação da
Liga das Nações, os EUA não fizeram parte dessa tentativa de organização internacional.
Com um dos principais países fora dos esforços para se estabelecer uma organização com os
princípios que o próprio Wilson enfatizou, a Liga das Nações tornou-se inviável (NASSER,
2010).
A questão dos Direitos Humanos e da formação de uma sociedade internacional
ganhou mais atenção, de fato, depois da Segunda Guerra Mundial. Os crimes cometidos
contra o direito internacional e o posterior julgamento pelo Tribunal de Nuremberg – que
condenou crimes de guerra cometidos pelos alemães – vieram a confirmar a existência de
uma moralidade a ser preservada.
                                                                                                                       
2
No original: “We have spoken now, surely, in terms too concrete to admit of any further doubt or question. An
evident principle runs through the whole program I have outlined. It is the principle of justice to all peoples and
nationalities, and their right to live on equal terms of liberty and safety with one another, whether they be strong
or weak”.
101

Em 1945 foi criada a ONU, seguindo a ideia de Kant de uma confederação de


Estados. Depois do fracasso da Liga das Nações, a ONU – agora sim com a presença dos
EUA em uma posição de relevância, como membro do Conselho de Segurança – passou a
representar o ideal de aliança entre as nações. Na Carta das Nações Unidas consta que:

Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações


vindouras do flagelo da guerra, que, por duas vezes no espaço da nossa vida,
trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos
fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na
igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações
grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o
respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes de direito
internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e
melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla, resolvemos
conjugar nossos esforços para a consecução desses objetivos. (ONU, 1945)

Três anos após sua criação é lançada a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
que em seu preâmbulo afirma:

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os


membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o
fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos
resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da
Humanidade[...]
Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades
é da mis alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso, a
Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Diretos
Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as
nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade,
tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da
educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades [...] (ONU,
1948).

Tanto na Carta da ONU, quanto nesta Declaração, a Organização lembra os


“flagelos da guerra” e que o desrespeito aos Direitos Humanos resultou em “atos bárbaros”.
Isso mostra a influência do impacto da guerra para legitimar a defesa os Direitos Humanos
como “ideal comum”, aceito por toda a comunidade internacional. A Declaração ainda
ressalta que “Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros” (1948,
art. XVII) e que todos têm “direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua
dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade” (1948, art. XXII).
No campo dos estudos das Relações Internacionais, a questão dos Direitos Humanos
foi até mesmo incluída na agenda de Segurança Internacional da ONU. Assim, a Organização
interpreta que violações aos Direitos Humanos – em suas mais diversas formas como
102

catástrofes humanitárias, falta de liberdade de expressão, falta de acesso à igualdade, à saúde


– podem ser consideradas ameaças à Segurança Internacional.
A ONU ainda reconhece que “Os direitos humanos tornaram-se fundamentais para o
discurso global sobre paz, segurança e desenvolvimento”, que “Há um consenso global de que
graves violações dos direitos humanos não devem ficar impunes” e que:

O organismo da lei internacional dos direitos humanos continua evoluindo e


expandido para tratar de questões emergentes de direitos humanos tais como os
direitos das pessoas idosas, o direito à verdade, um ambiente limpo, água e
saneamento e comida (ONU, on-line)

Com essa expansão da área abrangida pelos Direitos Humanos, as Nações Unidas
ainda criaram o cargo de Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos em 1993 e o
Conselho de Direitos Humanos em 2006 (ONU, on-line).
Não só a Segunda Guerra Mundial provocou uma maior cobrança da sociedade
internacional sobre os Direitos Humanos, mas também muitos conflitos que emergiram na
década de 1990 – como o da Bósnia-Herzegovina, Somália e Ruanda – reacenderam a
discussão sobre a proteção dos civis em conflitos e fizeram com que a questão dos Direitos
Humanos, Direito Internacional Humanitário, terrorismo e crianças-soldado entrassem para a
agenda de segurança da Organização como temas prioritários que, até então, não eram
tratados como questões de primeira importância para a Segurança Internacional.
Foram tomadas medidas como a criação dos Tribunais Penais ad hoc para a antiga
Iuguslávia e para Ruanda, ambos criados por demandas do Conselho de Segurança como
forma de julgar crimes de guerra e dar uma resposta às vítimas. Isso tudo em uma época em
que emergiu uma preocupação maior para garantir a segurança do ser humano. Em 1994, por
exemplo, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) utilizou o termo
Segurança Humana para se referir às ameaças cotidianas – como o subdesenvolvimento, a
pobreza, a fome, a falta de acesso à saúde – que acabam afetando negativamente a vida do ser
humano e violando seus direitos básicos. Assim, confere-se maior grau de importância aos
Direitos Humanos, pois aquilo que os ameaça é considerado um problema de Segurança
Internacional que merece especial atenção por parte da comunidade internacional, legitimando
até mesmo intervenções em nome da proteção de tais direitos.
Portanto, as consequências da Segunda Guerra Mundial, a legislação internacional da
ONU sobre Direitos Humanos e a inclusão do tema na agenda de Segurança Internacional
foram fatores que fizeram com que questões ligadas aos Direitos Humanos ganhassem uma
proporção inédita.
103

2.2 Os direitos da criança no contexto internacional

Um tema relacionado diretamente aos Direitos Humanos que ganhou destaque em


âmbito internacional foram os direitos da criança. Primeiramente, é necessário lembrar que,
ao longo dos anos, a criança esteve sempre exposta a diversas violações a seus direitos. A
criação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) – órgão da ONU criado em
1946 – mostra como a preocupação com o bem-estar da criança já estava presente no pós-
Segunda Guerra Mundial. Nesse contexto, o UNICEF tinha o objetivo de zelar pelas crianças
que sofreram consequências da Guerra como fome, doenças, traumas físicos e psicológicos.
Entretanto, mesmo após a criação do UNICEF, as crianças continuaram sendo alvos de
violência, maus tratos, exploração sexual, exploração do trabalho e guerras. Sobretudo no
final do século XX e início do século XXI, podemos observar que as crianças foram vítimas
de diversos conflitos como aqueles em Serra Leoa, Iuguslávia, Libéria, Bósnia, Sudão, Síria,
entre outros. Ou seja, onde quer que alguma forma de conflito esteja presente a criança pode
ser afetada negativamente.
Os danos aos quais as crianças estão expostas em um conflito são diversos: elas são
utilizadas como soldados; podem perder toda a sua família em um conflito e ficarem
desamparadas; sofrem com as instabilidades políticas e econômicas dos governos locais que,
muitas vezes, não conseguem fornecer às crianças seus direitos mais básicos; sofrem com a
violência deliberada que não poupa civis; são vítimas de abusos sexuais, físicos e
psicológicos; e, sobretudo atualmente, vemos cada vez mais crianças refugiadas e apátridas,
tendo que deixar seus respectivos países de origem com o objetivo de se estabelecerem com
suas famílias em outras nações que ofereçam melhores condições de vida.
O caso do menino sírio, Aylan Kurdi, que foi encontrado morto em uma praia da
Turquia é mais um exemplo de como as crianças ainda são expostas a perigos em contextos
de conflitos armados. A imagem da criança repercutiu na mídia e despertou a atenção da
comunidade internacional para os perigos que as crianças que emigram enfrentam. Mais
recentemente, outra imagem também de um menino sírio se espalhou pelo mundo: a foto
mostra o menino, Omran Daqneesh, coberto de sangue e poeira, após ser resgatado dos
escombros de um bombardeio em Aleppo. Apesar de tais imagens chocarem a sociedade
internacional, sobretudo por mostraram crianças sofrendo as consequências dos conflitos,
sabemos que essas não serão as últimas fotos de crianças em meio a catástrofes humanitárias.
Diante de tantas violações aos direitos das crianças, é importante ressaltar que houve
um esforço – por parte da ONU e de diversos Estados – para se estabelecer uma legislação
104

internacional de proteção da criança. Desse modo, a criança passou a ser vista como uma
categoria humana especial que merece uma proteção diferenciada que é assegurada por
determinados documentos internacionais.
A Declaração de Genebra de 1924 anunciava a necessidade de garantir uma proteção
especial às crianças, no entanto consistia mais em um documento que expressava a intenção –
e não a obrigação – de protegê-las (LEAGUE OF NATIONS, 1924). Somente com o término
da Segunda Guerra Mundial e a posterior criação da ONU e do UNICEF é que a proteção da
criança foi reforçada. Em 1948, as Nações Unidas haviam garantido na Declaração Universal
dos Direitos Humanos os direitos e liberdades dos seres humanos sem nenhuma distinção
(ONU, 1948), e a Declaração dos Direitos da Criança, de 1959, complementou essa ideia,
reafirmando alguns meios básicos para garantir o desenvolvimento da criança, tais como
alimentação, saúde, proteção e assistência, além de conclamar a sociedade internacional a
reconhecer e ajudar a garantir tais direitos. Segundo a Declaração:

[...] a criança, por motivo da sua falta de maturidade física e intelectual, tem
necessidade de uma proteção e cuidados especiais, nomeadamente de proteção
jurídica adequada, tanto antes como depois do nascimento. (ONU, 1959,
Preâmbulo).

Esse documento ressalta, sobretudo, a passividade da criança devido à sua


incompletude física e intelectual e, justamente por isso, sua necessidade de maior proteção.
Tal proteção especial foi reafirmada através de dois instrumentos: o Pacto Internacional sobre
os Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, ambos de 1966. O primeiro garantia que “[...] qualquer criança [...] tem direito às
medidas de proteção que exija a sua condição de menor” (ONU,1966a, art.24) e o segundo
assegurava que “Os Estados devem também estabelecer limites de idade, sob os quais fique
proibido e punido por lei o emprego assalariado da mão-de-obra infantil.” (ONU, 1966b, art.
10). A Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1973, também
reforçou essa ideia, visando instituir um instrumento geral sobre a matéria a fim de abolir
totalmente o trabalho infantil (OIT, 1973).
A Declaração sobre Proteção de Mulheres e Crianças em Situação de Emergência ou
de Conflitos Armados, de 1974 (ONU, 1974), e os Protocolos Adicionais I e II da Convenção
de Genebra, assinados em 1977, proibiam a participação de menores de 15 anos nas
hostilidades e dedicavam especial atenção à proteção das crianças no artigo 77 do protocolo
adicional I (ONU, 1977a; 1977b), principalmente em épocas de guerra.
105

Convergindo com a Convenção de Genebra, em 1989, a ONU adotou a Convenção


sobre os Direitos da Criança (CDC) que, em seu artigo 38, estabelece que os Estados devem
se comprometer a não incorporar crianças com menos de 15 anos nas forças armadas
(UNICEF,1989). Ademais, o documento determina no mesmo artigo que os Estados “[...]
devem tomar todas as medidas possíveis na prática para assegurar proteção e assistência às
crianças afetadas por um conflito armado” e “No caso de incorporação de pessoas de idade
superior a 15 anos e inferior a 18 anos, os Estados Partes devem incorporar prioritariamente
os mais velhos” (UNICEF, 1989, art.38). A Convenção destaca-se, sobretudo, por sinalizar
maior possibilidade de autonomia e participação da criança ao determinar que:

Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou


privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos
legislativos, devem considerar, primordialmente, o melhor interesse da criança.
(UNICEF, 1989, art. 3).

Além disso, cita que:

1 – Os Estados Partes devem assegurar à criança que é capaz de formular seus


próprios pontos de vista o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos
os assuntos relacionados a ela, e tais opiniões devem ser consideradas, em função da
idade e da maturidade da criança.
2 – Com tal propósito, proporcionar-se-á à criança, em particular, a oportunidade de
ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer
diretamente quer por intermédio de um representante ou órgão apropriado, em
conformidade com as regras processuais de legislação nacional. (UNICEF, 1989, art.
12).

Essa abordagem garante maior poder de participação da criança na sociedade,


estabelecendo que ela deve participar na determinação de quais são seus interesses,
contrastando com a concepção da criança somente como vítima e passiva que consta na
Declaração dos Direitos da Criança. O documento ainda estipula que “criança é todo o ser
humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a
maioridade mais cedo” (UNICEF, 1989, art.1). Essa definição estabelece um padrão de 18
anos, mas dá margem para lembrar que cada país tem sua própria legislação e direito de
definir o que se entende por criança.
Os anos de 1990 e 2000 também trouxeram mudanças significativas para a proteção
da infância devido a publicação de documentos que conferiram maior atenção às crianças. O
Estatuto de Roma, de 1998, estabeleceu como crime de guerra “Recrutar ou alistar crianças
com idade inferior a quinze anos nas forças armadas nacionais ou utilizá-las para participar
ativamente nas hostilidades” (ICC, 1998, p. 8), ou seja, o emprego de crianças-soldado passou
a ser, oficialmente, um crime de guerra.
106

Outro documento importante é a Convenção 182 da Organização Internacional do


Trabalho, de 1999, sobre a Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e a Ação
Imediata para sua Eliminação, que reconhece o recrutamento de crianças em conflitos
armados como uma das piores formas de trabalho infantil (OIT, 1999). O Protocolo
Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo ao envolvimento de crianças
em conflitos armados, que passou a ter validade em 2002, também merece destaque, pois
recomenda aos Estados que menores de 18 anos não sejam recrutados à força, tampouco
participem das hostilidades (ONU, 2000). Os Princípios de Paris (UNICEF, 2007a) e os
Compromissos de Paris (UNICEF, 2007b) reforçam o Protocolo e endossam a prevenção do
recrutamento de crianças em conflitos armados e o combate à impunidade daqueles que não
respeitam os direitos das crianças.
Nota-se que o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança
relativo ao envolvimento de crianças em conflitos armados diverge da Convenção sobre os
Direitos da Criança, visto que propõe que a idade de recrutamento seja elevada para 18 anos
em todos os países.
Observamos que, no século XX, começava a se desenvolver uma legislação de maior
proteção da criança em situações de conflitos armados. Porém, as medidas de proteção das
crianças, ressaltadas nos documentos citados, não conseguem aplicar padrões universais do
que é a criança e abranger com efetividade todas as situações pelas quais ela passa,
principalmente, em conflitos armados. O próprio conceito de criança é problemático no
sentido em que categoriza por critério de idade processos que, muitas vezes, são culturais,
psicológicos e sociais. Dessa forma, vemos que, apesar do esforço da comunidade
internacional para garantir direitos universais aos seres humanos de forma geral e, em
especial, às crianças, ainda é complexo fazer com que todos os Estados se comprometam com
a proteção da criança e é um desafio fazer com que elas sejam poupadas durante os conflitos
armados que ocorrem nos mais diversos países e de formas tão distintas.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme visto, a necessidade de proteção especial da criança através de


documentos internacionais surgiu somente no século XX como resultado de uma maior
preocupação global com os Direitos Humanos. Embora seja um tema recente no campo das
Relações Internacionais, os Direitos Humanos e o direito da criança têm suas raízes nos
107

princípios liberais que já estavam presentes na sociedade internacional e influenciaram


diversos estudos nas RI.
Concluímos que, de fato, tais princípios liberais foram essenciais para moldar o que
hoje conhecemos por Direitos Humanos e direitos da criança. O ideal de que todos os seres
humanos possuem direitos intrínsecos como a liberdade e a igualdade fez com que surgisse
formalmente uma legislação que garantisse os direitos inalienáveis de todos os seres humanos
e fez com que grande parte dos Estados concordasse em se comprometer a garantir tais
direitos.
Sabemos que um dos desafios da comunidade internacional é chegar a consensos. A
anarquia do sistema internacional torna difícil fazer com que Estados com sistemas políticos e
realidades tão distintas convirjam em assuntos que afetam todas as nações. Nesse sentido, o
estabelecimento de uma legislação internacional sobre Direitos Humanos – aceita por grande
parte dos Estados membros da ONU – já é um êxito. Pelo menos em teoria, existe um esforço
dos Estados para garantir direitos básicos aos seus cidadãos. Do mesmo modo, a garantia de
direitos especiais às crianças demonstra que também existe um reconhecimento global de que
as crianças sofrem abusos constantes e existe urgência em protegê-las.
Porém, na prática, vemos que nem sempre esses princípios liberais são suficientes
para gerar a proteção que a população necessita. Muitas vezes, os estadistas ignoram aquilo
que está escrito na legislação internacional ou só ratificam acordos e tratados de proteção dos
direitos dos seres humanos por pressões internacionais e para mostrar que fazem parte de uma
comunidade internacional que se preocupa com o bem-estar do ser humano. Assim, passam
uma falsa mensagem de que todos terão seus direitos garantidos sem distinção de idade, classe
social, gênero, etnia. Justamente por isso é tão importante discutir temas relacionados a
Direitos Humanos e direitos da criança em âmbito internacional, visto que não podemos
esquecer que legislações não garantem ações eficazes e a proteção dos Direitos Humanos não
pode ficar apenas no plano teórico.

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.
 
111

REFLEXIONES EN TORNO A LA COMPRENSIÓN DEL ORDEN


INTERNACIONAL CONTEMPORÁNEO DESDE EL CONCEPTO DE
“RESPONSABILIDAD DE PROTEGER”

REFLEXÕES EM TORNO À COMPREENSÃO DA ORDEM


INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEA A PARTIR DO CONCEITO DE
“RESPONSABILIDADE DE PROTEGER”

Pablo César Rosales Zamora1


Data de submissão: 07/10/2016
Data de aceite: 21/11/2016

Resumen

Uno de los conceptos que es objeto de los debates contemporáneos del Derecho Internacional es
la “Responsabilidad de Proteger” (R2P). El presente trabajo de investigación pretende explorar en
qué medida la R2P permite una nueva explicación de la soberanía y la interacción de los sujetos
de la comunidad internacional. En este marco, se analizará, en primer lugar, el concepto de
soberanía responsable y, en segundo lugar, la colaboración de los sujetos del Derecho
Internacional para el fortalecimiento de la R2P del Estado. Para el presente estudio, se emplearán
las resoluciones y documentos del Secretario General, la Asamblea General y el Consejo de
Seguridad de Naciones Unidas, que estén relacionados a este concepto.

Palabras clave: Comunidad internacional; R2P; Soberanía responsable; Intervención


humanitaria.

Resumo

Um dos conceitos que é objeto dos debates contemporâneos do Direito Internacional é a


“Responsabilidade de Proteger” (R2P). Esta pesquisa tem a finalidade de explorar em que medida
a R2P permite uma nova explicação da soberanía e a interação dos sujeitos da comunidade
internacional. Nesse marco, analisa-se, primeiro, o conceito de soberania responsável e, segundo,
a colaboração dos sujeitos do Direito Internacional para o fortalecimento da R2P do Estado. Para

                                                                                                                       
1
 Magíster en Ciencia Política y Gobierno con mención en Relaciones Internacionales por la Escuela de Gobierno y
Políticas Públicas de la Pontificia Universidad Católica del Perú. Asesor legal en el Ministerio de Relaciones
Exteriores de Perú. E-mail: pablo.rosalesz@pucp.pe    
112

este estudo, empregam-se as resoluções e documentos do Secretário-Geral, da Assembléia Geral,


do Conselho de Segurança das Nações Unidas, referidos ao conceito.

Palavras chaves: Comunidade internacional; R2P, soberania responsável, intervenção


humanitária.

1 INTRODUCCIÓN

El surgimiento de la R2P ha servido para confirmar una comprensión del orden


internacional con y más allá del Estado. A nivel estatal, este concepto apuesta por una soberanía
responsable y, respecto de la comunidad internacional, asume como premisas tanto la ilegalidad
de la intervención humanitaria (o intervención sin autorización del Consejo de Seguridad) como
el papel preponderante que cobra la colaboración de diversos sujetos internacionales no estatales
para hacer frente a los llamados “crímenes atroces”, que son los crímenes de lesa humanidad,
crímenes de guerra, genocidio y depuración étnica.
Para fundamentar este planteamiento, en la primera parte de este trabajo se estudiará la
evolución de la R2P, bajo el entendimiento de este concepto como una nueva puesta en
consideración del individuo desde el plano internacional. En este punto se sostendrá que, pese a
estar contenido en un instrumento de soft law, la R2P refuerza una comprensión del orden
internacional en clave de Derecho Penal Internacional.
En la segunda parte, se analizará cómo la R2P da lugar a un nuevo entendimiento de la
soberanía que se expresa en un mínimo irreductible de obligaciones internacionales para los
Estados. Finalmente, se evaluará cómo es que si bien el Estado asume un rol central en el
discurso de la R2P, otros sujetos de Derecho Internacional – entre ellos, principalmente,
Naciones Unidas – pueden ejercer un papel relevante, no solo para el fortalecimiento de las
obligaciones del propio Estado, sino para la prevención general de los crímenes atroces.

2 EVOLUCIÓN DE LA R2P A LA LUZ DE LA HUMANIZACIÓN DEL DERECHO


INTERNACIONAL
En primer lugar, es preciso evidenciar algunas premisas que permiten avizorar cuál es el
alcance que se maneja aquí de “orden internacional” y de R2P. Respecto al primero, cabe citar a
De Bartolomé Cenzano (2002, p. 87), quien ha sostenido al respecto que:
113

el orden […] hace referencia a un estado ideal de las cosas, a un realidad idónea
para mantener el equilibrio […] [;] el orden social es aquel estado de la sociedad
en el que existe una norma en virtud de la cual esta se encuentra organizada […].

El orden de una realidad está emparentado con un alto nivel de organización destinado a
un funcionamiento adecuado de sus elementos. El Derecho juega un papel fundamental en esta
configuración. Siguiendo el razonamiento de este autor, en el plano internacional, el orden se
definiría por aquellas normas que son expresión jurídica de los valores de la comunidad
internacional. Sería ese “estado ideal de las cosas” el que predica una interacción pacífica entre
los miembros que alberga esta comunidad. En ese sentido, con orden internacional, se hace
referencia, fundamentalmente, a aquellos principios jurídicos bases del Derecho Internacional
que atañen a todos sus sujetos y que permiten una interacción pacífica2.
Desde tal lectura, deben destacarse dos valores esenciales del Derecho Internacional
para la R2P. El primero es la protección del ser humano y, el segundo, el respeto a la soberanía.
Ambos valores constitucionales del Derecho Internacional (CARRILLO SALCEDO 1995, p. 13
– 22), plasmados en la Carta de Naciones Unidas, no necesariamente aparecen en sintonía, como
advirtió en su momento el ex Secretario General Kofi Annan (2000, párrafo 217). Y es que, por
un lado, los Estados tienen obligaciones internacionales de protección de derechos humanos,
pero, cuando las incumplen, al punto de permitir la comisión de crímenes internacionales, la
soberanía basada en el principio de no intervención se alza como un límite.
En este contexto, la R2P participa de la humanización del Derecho Internacional3, que
refiere al proceso ciertamente revolucionario de considerar nuevamente al ser humano en todo su
valor y dignidad en el plano internacional, reconociéndosele la calidad de sujeto de Derecho
Internacional. Desde el plano de la obligatoriedad internacional, supone la relativización de los
límites impuestos por la positivización voluntarista del Derecho - centrado únicamente en el
Estado -, a la construcción de un Derecho Internacional general a partir de la Carta de Naciones
Unidas, tratado que tiene, entre sus finalidades centrales, “reafirmar la fe en los derechos
                                                                                                                       
2
Tomuschat (1999, p. 161) señala que el orden internacional puede aparecer, a primera vista, como un conjunto de
principios sin ninguna relación entre sí. No obstante, si se ve con más detalle, se observará que se trata de “(…) a
true system, which has its axiomatic premises from which most rules of detail are derived”. Por su parte, Dupuy
(2002, pp. 59 - 66) maneja una concepción de orden internacional que admite este aspecto pero incluye, entre otros
elementos, la presencia de tratados multilaterales y organizaciones internacionales.
3
Es un proceso del que han dado cuenta varios importantes juristas, entre ellos, el profesor T. Meron (2003) y el juez
de la Corte Internacional de Justicia y expresidente de la Corte Interamericana de Derechos Humanos, A.Cançado
Trindade (2006).
114

fundamentales del hombre, en la dignidad y el valor de la persona humana, en la igualdad de


derechos de hombres y mujeres y de las naciones grandes y pequeñas”.  
En este aspecto, no solo ha evolucionado con la presencia de tratados de derechos
humanos en el plano universal y regional, sino también con la aparición de instrumentos de soft
law cuyo impacto es relevante, no desde la obligatoriedad (TRACHTMAN, 2013, pp. 294 - 295),
pero sí en la manera de construir un discurso de cómo se concibe el orden internacional, como
ocurre con la resolución 2625 (XXV) de 19704 y los párrafos 138 y 139 del Documento Final de
la Cumbre Mundial de 2005, referentes a la R2P.
La discusión en torno a la R2P se origina con el informe titulado The responsibility to
protect de la Comisión Internacional sobre Intervención y Soberanía del Estado5 de 2001 y que
constituyó una respuesta a los problemas del Consejo de Seguridad frente a situaciones que
planteaban graves dilemas humanitarios, como Kósovo o Ruanda, en plena década de los
noventa. Este cuestionamiento no había florecido anteriormente porque el Consejo de Seguridad
estaba atrapado y casi inutilizado por las tensiones entre Estados Unidos y la Unión de
Repúblicas Socialistas Soviéticas (DUPUY, 2002, p. 325 - 326). Es solo en la etapa de la post
Guerra Fría que el Consejo de Seguridad empieza a experimentar sus reales potencialidades como
órgano con responsabilidad primordial en el mantenimiento de la paz y seguridad internacionales.
Fue también así, en esta nueva etapa de liberación, que sus limitaciones saldrían a flote.
Ante atrocidades como las mencionadas, el Consejo de Seguridad no reaccionó como se
esperaba. En Ruanda, el genocidio de los tutsis por los hutus (1994), se debió, en gran medida, a
que este órgano principal de Naciones Unidas no reforzó la operación de mantenimiento de la
paz, ya presente en el terreno, ni autorizó el empleo de la fuerza armada. Respecto a Kósovo
(1999), pese a los conflictos étnicos que había entre albano-kosovares y serbios y la calificación
de esta situación como “amenaza a la paz”6, el Consejo de Seguridad tampoco autorizó ninguna
operación militar de rescate. Frente a este escenario, algunos autores como Simma (1999, pp. 1 –
22) consideraron que la Organización del Tratado del Atlántico Norte (OTAN) ingresó a
territorio kosovar sin autorización del Consejo de Seguridad pero legítimamente; para otros
autores, como Cassese (1999, p. 23 – 30), en cambio, la actuación de la OTAN fue solo

                                                                                                                       
4
También conocida como « Declaración relativa a los principios de Derecho internacional referentes a las relaciones
de amistad y a la cooperación entre los Estados de conformidad con la Carta de las Naciones Unidas ».  
5
 En adelante, CIISE.  
6
Ver Resolución 1199 (1998) del Consejo de Seguridad de las Naciones Unidas.
115

justificable desde un punto de vista ético, sin que ello salve su disconformidad con el Derecho
Internacional al vulnerar el sistema de seguridad colectiva.
Como demuestran estos ejemplos, la estrategia y respuesta del Consejo de Seguridad ha
dejado mucho que desear y, en esta línea, refuerza la idea de que es necesario alcanzar una
reforma integral de este ámbito de la Carta. En esta línea, el derecho de veto y el peso de los
intereses nacionales de cada uno de los miembros permanentes se han erigido como los
problemas de fondo en la invocación del Capítulo VII para hacer frente a tragedias humanitarias.
La respuesta ha sido el concepto de R2P que, en esta perspectiva, solo puede concebirse como un
intento tímido de reforma en el plano del mantenimiento de la paz y seguridad internacionales,
porque no es propiamente una norma internacional que modifique la Carta, pero que no debe
descartarse, porque es una oportunidad para evaluar la relación de fuerzas en el plano de la
sociedad internacional.
El concepto de R2P ha ido incorporándose gradualmente en el discurso de Naciones
Unidas a través de diversos documentos. Y esta evolución debe observarse con cuidado. Primero,
recaía, de acuerdo a CIISE (2001), en causas como “grandes pérdidas de vidas humanas” y/o
“depuración étnica a gran escala”. Luego para el Grupo de alto nivel sobre las amenazas, los
desafíos y el cambio (2004, párrafo 203), la R2P recaería en el genocidio y otras matanzas a gran
escala, la depuración étnica y las graves infracciones del Derecho Internacional Humanitario.
Hasta aquí, esta evolución revela que se estaba buscando un mínimo común sobre el cual haya un
consenso en materia de protección. Posteriormente, en el informe Un concepto más amplio de
libertad: desarrollo, seguridad y derechos humanos para todos de 2005, se reemplazaría las
matanzas a gran escala por crímenes de lesa humanidad; se mantendría el genocidio y la
depuración étnica; y se dejaría de mencionar a las graves infracciones del Derecho Internacional
humanitario.
En septiembre de 2005, con el Documento Final de la Cumbre Mundial, se llega al
consenso actual que es el de genocidio, crímenes de guerra, crímenes de lesa humanidad y
depuración étnica frente a lo cual el Estado es responsable de prevenir. Como señalan los
párrafos 138 y 139 de este documento de la Asamblea General,
Cada Estado tiene la responsabilidad de proteger a su propia población del
genocidio, los crímenes de guerra, la depuración étnica y los crímenes de lesa
humanidad. […]
116

La comunidad internacional, a través de Naciones Unidas, también tiene la


responsabilidad de usar los mecanismos diplomáticos apropiados, humanitarios
y cualquiera que sea de índole pacífica, de acuerdo con los capítulos VI y VIII
de la Carta para ayudar a proteger a las poblaciones del genocidio, los crímenes
de guerra, la depuración étnica y los crímenes de lesa humanidad. En este
contexto, estamos dispuestos a adoptar medidas colectivas, de manera oportuna
y decisiva, por medio del Consejo de Seguridad […].

Sin embargo, el desarrollo de la R2P no se detiene aquí. Posteriormente, el Secretario


General ha ido estudiando en varios informes desde el 2009 hasta la fecha, los aspectos
medulares de la R2P y ha invocado a los Estados a participar de los debates en el seno de la
Asamblea General. Esto muestra un compromiso, al menos discursivo, de la organización
internacional por buscar una mejor protección a las potenciales víctimas de los crímenes
internacionales.

3 LOS CRÍMENES ATROCES Y LA R2P: LA COMPRENSIÓN DEL ORDEN


INTERNACIONAL EN CLAVE DE DERECHO PENAL INTERNACIONAL

La evolución alcanzada por el Derecho Penal internacional es expresión clara y neta de


la humanización del Derecho Internacional porque se deja de considerar al individuo como un
ente receptor de derechos, para también admitir su calidad como sujeto pasible de obligaciones
internacionales, al poder ser responsable penalmente por la comisión de crímenes internacionales
(HAFNER, 2011, pp. 339 - 347).
Al delimitar a la R2P de acuerdo con categorías penales se ha pasado de la consideración
de las intervenciones a partir de la actuación de los Estados y su responsabilidad internacional a
construir un discurso que admite, al menos implícitamente, la responsabilidad de los individuos
en el plano del Derecho penal internacional. Ello sería un ejemplo reciente de lo que Cançado
Trindade (2006, p. 122) llama la revolución jurídica del Derecho Internacional contemporáneo, la
cual consiste en volver a considerar al individuo como sujeto destinatario de la norma jurídica.
Y es que los crímenes comprendidos en la R2P son, en el fondo, “los crímenes más
graves de trascendencia para la comunidad internacional en su conjunto”7, calificación
proveniente de la distinción hecha por la Corte Internacional de Justicia en la sentencia
Barcelona Traction (1970, párrafo 33). Esta frase del Estatuto de Roma implica que tales

                                                                                                                       
7
Artículo 5.1 del Estatuto de Roma.
117

crímenes no solo son preocupación aislada de un Estado, sino que su relevancia abraza a toda la
comunidad internacional.
Por este motivo, desde una perspectiva histórica, el consenso sobre la R2P no hubiera
sido posible sin la entrada en vigor del Estatuto de Roma el 1 de julio de 2002. La razón de la
mención de crímenes internacionales en el concepto del R2P de septiembre de 2005, se debe a
que los Estados han identificado el carácter de aspiración universal que tiene el Estatuto de Roma
que parte de reconocer, en su preámbulo, que “esos graves crímenes constituyen una amenaza
para la paz, la seguridad y el bienestar de la humanidad”.
No obstante, un aspecto del discurso que no queda desadvertido es que la depuración
étnica se mostraría como el único elemento que se mantendría a lo largo de la evolución de la
R2P, pese a poder ser subsumido por cualquiera de los otros crímenes atroces (BELLAMY, 2014,
p. 3).
Si se hace el contraste entre los párrafos 138 y 139 del Documento Final de la Cumbre
Mundial y el Estatuto de Roma se descubre que, aparentemente, el segundo no consideraría como
crimen internacional a la depuración étnica y por ello podría sostenerse que no hay una correcta
asimilación del Derecho Penal Internacional en la R2P, además de no mencionarse el crimen de
agresión. Sin embargo, la depuración étnica es una categoría histórico política que rememora
sucesos como los de Srebrenica y que, jurídicamente, puede ser asimilada a tipos penales que sí
se hayan plasmados en el Estatuto de Roma, como el de “deportación o traslado forzoso de la
población”, hecho individual del crimen de lesa humanidad (artículo 7.1.d) y también del crimen
de guerra, sea en un conflicto armado no internacional (artículo 8.2.e.viii), o en uno internacional
(artículo 8.2.b.viii).
Respecto al crimen de agresión8, la falta de consenso sobre este crimen a nivel del
Documento Final de la Cumbre Mundial condujo a su ausencia. Sin embargo, no puede decirse
que la prohibición del acto de agresión no tenga ninguna relación con la R2P. En primer lugar, la
R2P parte de un contexto que es el artículo 2 párrafo 4 de la Carta de Naciones Unidas, en el que
se plantea la prohibición general al jus ad bellum. La R2P como tal no supone, por tanto, la
autorización irrestricta del empleo de la fuerza, sino que encomienda al Consejo de Seguridad
que sea este órgano quien autorice las medidas coercitivas (BELLAMY, 2014, pp. 13 - 14). De
                                                                                                                       
8
Presente también en el Estatuto de Roma, pero respecto al cual la competencia de la Corte no funcionará sino con
el cumplimiento de las disposiciones del artículo 15 bis de la enmienda RC/Res. 6 sobre el crimen de agresión,
adoptada en Kampala el 2011.
118

esta manera, la prohibición del acto de agresión se erige como el marco apropiado en el que se
autorizan las medidas de la comunidad internacional para responder a los crímenes atroces.
Teniendo en cuenta estas nociones, se pasará a analizar las consecuencias teóricas de la
R2P para con el Estado y la comunidad internacional.

3.1 La soberanía responsable


El párrafo 138 del Documento Final de la Cumbre Mundial concreta la inspiración de la
“soberanía como responsabilidad”9, al señalar que “[c]ada Estado es responsable de proteger a su
población del genocidio, los crímenes de guerra, la depuración étnica y los crímenes de lesa
humanidad”. Esta es una afirmación que, de acuerdo con el Secretario General (2009, párrafos 2
– 3; 2013, párrafo 6), encuentra una base firme en el Derecho Internacional y que acude a
diversas obligaciones internacionales provenientes del Derecho Internacional de los derechos
humanos o el Derecho Internacional Humanitario, entre otros. Por lo tanto, no habría una
novedad propiamente de contenido, pero sí de cómo este se organiza.
Cabe destacar que, en sí, la referencia a varios crímenes internacionales atentaría contra
el intento de expresar una única obligación jurídica en la soberanía responsable. Salvo por el
crimen de genocidio, no existe una formulación de obligaciones internacionales dirigidas al
Estado. La prevención de este crimen se expresa nítidamente en el artículo 1 de la Convención
para la Prevención y Sanción del Delito de Genocidio de 194810, pero además, cabe destacar que
la Corte Internacional de Justicia (2015, p. 42, párrafo 87) ha considerado que la prohibición del
genocidio es una norma imperativa del Derecho Internacional general. En esa línea, se puede
deducir que, en tanto sea una norma de jus cogens, es exigible para los Estados prevenir su
vulneración.
Respecto al crimen de lesa humanidad, este se define en el Estatuto de Roma como un
ataque grave o sistemático dirigido contra una población civil11. En este caso, los intereses
jurídicos que protege son, a nivel individual, los derechos a la vida, la salud, la libertad y la
dignidad de las víctimas (WERLE 2011, pp. 468 – 469). La ausencia de un tratado que exija a los
Estados prevenir la comisión de los crímenes de lesa humanidad se puede suplir con la
                                                                                                                       
9
La idea de la “soberanía como responsabilidad” puede ser atribuida, históricamente, a Francis Deng, antiguo
Representante del Secretario General para los Desplazados Internos (Glanville, 2013, p. 174).
10
El artículo 1 señala que “las Partes contratantes confirman que el genocidio, ya sea cometido en tiempo de paz o en
tiempo de guerra, es un delito de derecho internacional que ellas se comprometen a prevenir y a sancionar”.
11
Artículo 7 del Estatuto de Roma.
119

jurisprudencia del Tribunal Penal Internacional para la Ex Yugoslavia que, en la sentencia de


primera instancia del caso Kupreškić (2000, párrafo 520), ha manifestado que,

la mayoría de normas del Derecho Internacional Humanitario, en particular


aquellas que prohíben los crímenes de guerra, los crímenes de lesa humanidad y
el genocidio son normas perentorias del Derecho Internacional o jus cogens, es
decir, de un carácter inderogable y primordial12.

Por su parte, los Estados deben cumplir con sus obligaciones de Derecho Internacional
Humanitario (SECRETARIO GENERAL, 2013, párrafo 7) y prevenir, por tanto, la comisión de
los crímenes de guerra, que son aquellos actos que van en contra el Derecho Internacional
humanitario en el contexto de un conflicto armado internacional o no internacional. El problema
no solo es que se considere si el escenario en específico ha dado lugar a un conflicto armado, sino
que el Estado sería responsable de prevenir los crímenes de guerra en ese contexto13.
En suma, la falta de prevención de los crímenes atroces supondría la vulneración de
normas perentorias del Derecho Internacional general.

3.2 La comunidad internacional y la R2P

Un aspecto que resulta importante determinar, para comprobar la coherencia del


discurso respecto al Estado, es pensar el concepto de R2P desde el principio de igualdad
soberana. La soberanía responsable debe ser vista a la luz de este principio porque parece ser que,
partiendo de las concepciones que deforman a la R2P, habría algunos Estados más responsables
que otros. La pregunta que inmediatamente aparece es ¿quiénes serían estos Estados más
responsables?, interrogante que puede subdividirse en dos: ¿si los miembros permanentes del
Consejo de Seguridad son más responsables? y ¿si los Estados con gobiernos inefectivos14 no
tienen ninguna responsabilidad de proteger a su población?
Respecto a la primera interrogante, el derecho de veto que tendrían los miembros
permanentes parece romper la igualdad soberana no solo a nivel del Consejo de Seguridad, sino
en relación a todos los demás Estados. Si antes cada Estado podía intervenir libremente porque
                                                                                                                       
12
Traducción propia.
13
Puede que, durante un conflicto armado, haya espacios territoriales que no estén bajo control territorial del Estado.
14
Es mejor emplear esta terminología que la de “failed State” (Moscoso de la Cuba, 2011, p. 146). Debe advertirse
que este término ha sido acusado de ser polisémico y de manejarse bajo una influencia neocolonialistas. Muchos
autores lo han descartado del lenguaje del Derecho Internacional Público.
120

tenía el jus ad bellum, ahora solo el Consejo de Seguridad puede emplear la fuerza o
autorizarla15. Ello alberga un desequilibrio que no puede dejar de observarse: la actuación del
Consejo de Seguridad depende de la decisión de sus miembros permanentes. Los intereses
políticos juegan como una variable en contra de la independencia del Consejo de Seguridad
frente a sus miembros permanentes (y no permanentes) e impiden que la R2P se beneficie de una
mejora estructural del sistema de seguridad colectiva.
La R2P, al no haber logrado impulsar una reforma del Consejo de Seguridad, no parece
generar un cambio a la hora de considerar la igualdad de los Estados. Ahora bien, en base a la
advertencia del Secretario General de leer la R2P a la luz del Derecho Internacional, este
concepto no debería servir como excusa para considerar que unos Estados son más responsables
que otros, porque esto conllevaría a un fácil rompimiento de la prohibición de la amenaza o el
uso de la fuerza.
Respecto a la segunda sub-interrogante, el hecho que un Estado no tenga un gobierno
efectivo no podría ser usado como subterfugio para considerar que son “incapaces” de proteger a
su población y, por tanto, una autorización a otros Estados para “protegerla”, vulnerando otros
principios del Derecho Internacional. En este sentido, este supuesto parece conducir a una posible
vía de intervención armada, cuestión que parece alejarse de la idea de la R2P, según la cual la
comunidad internacional buscaría reforzar la soberanía antes que ir en contra de ella
(SECRETARIO GENERAL, 2009, párrafo 10.a).
Que la R2P parta de la prevención estatal de los crímenes atroces demuestra que, en esta
concepción del orden internacional, el Estado no deja de ocupar un sitio relevante en este orden.
Sin embargo, la R2P no resuelve, pero sí advierte sobre la necesidad de algún tratado en el que se
plasme, por ejemplo, la prevención de crímenes de lesa humanidad.
Si bien el concepto de R2P toca un punto neurálgico del Derecho Internacional como es
el de la soberanía, su impacto no termina ahí. El Documento Final de la Cumbre Mundial
menciona a “la comunidad internacional”. En esta medida, esta también participa de la R2P, al
contar con la responsabilidad de “ayudar a proteger a las poblaciones del genocidio, los crímenes
de guerra, la depuración étnica y los crímenes de lesa humanidad”16.

                                                                                                                       
15
Salvo los casos de legítima defensa (artículo 51 de la Carta) en los que el Estado que recibe el ataque deberá
notificar inmediatamente al Consejo.
16
Ver el párrafo 139 del Documento Final de la Cumbre Mundial.
121

Para entender la participación de la comunidad internacional, debe traerse a la memoria


la clasificación que hace el Secretario General sobre la R2P. En su informe Hacer efectiva la
Responsabilidad de Proteger (2009, párrafo 11), señala que la R2P se compone de los siguientes
pilares: el primer pilar, referido al Estado y a su responsabilidad de proteger; el segundo pilar que
atiende a la comunidad internacional y su ayuda para el fortalecimiento de la capacidad de
proteger del Estado; el tercer pilar, centrado en las medidas autorizadas por el Consejo de
Seguridad. Este esquema será importante para este punto porque permite adentrarnos a cómo se
da la participación de la comunidad internacional desde la R2P – segundo y tercer pilar –. Para
ello, se verá la contribución de las Naciones Unidas y luego la participación de otros sujetos.
Respecto a las Naciones Unidas, existe un número considerable de resoluciones del Alto
Comisionado de Naciones Unidas para los Derechos Humanos o del Consejo de Derechos
Humanos en que se mencionan a la R2P. Algunos relatores especiales del Sistema Universal de
Derechos Humanos han aludido a este concepto. Por ejemplo, la ex Experta Independiente sobre
Cuestiones de las Minorías, Gay Mc Dougall (2010, párrafo 68), ha indicado que la R2P es un
principio “de importancia primordial para la protección de las minorías”. El Relator especial
sobre la situación de los derechos humanos en la República Árabe Siria (2013, párrafo 18),
también ha exigido a las autoridades sirias que “cumpla[n] con su responsabilidad de proteger a
su población”.
En relación al tercer pilar, el propio Consejo de Seguridad ha aludido a la R2P en varias
de sus resoluciones, entre las más conocidas se encuentran la resolución 1674 (2006) y 1973
(2011). No solo ha reiterado el concepto - como en la resolución 2150 (2014)17 -, sino que ha
empezado a especificarlo en torno a diversos problemas relativos al mantenimiento de la paz y
seguridad internacionales como la protección de civiles en los conflictos armados18, a los
migrantes19, contra el mal empleo de armas pequeñas y ligeras20 y contra los actos terroristas21.
                                                                                                                       
17
El Consejo de Seguridad ha aprobado la resolución 2150 de 16 de abril de 2014 como parte de la conmemoración
del genocidio en Ruanda. En ella, reafirma nuevamente el contenido de los párrafos 138 y 139 del Documento Final
de la Cumbre Mundial, al señalar lo siguiente: “Exhorta a los Estados a que reiteren su compromiso de prevenir y
combatir el genocidio y otros crímenes graves conforme al Derecho Internacional, reafirma los párrafos 138 y 139
del Documento Final de la Cumbre Mundial 2005 (A/60/L.1), relativos a la responsabilidad de proteger a las
poblaciones del genocidio, los crímenes de guerra, la depuración étnica y los crímenes de lesa humanidad, y recalca
la importancia de tener en cuenta las enseñanzas aprendidas del genocidio de 1994 contra los tutsis en Rwanda”.
18
Ver Resolución 1706 (2006) relativa a la situación en Sudán.
19
Ver Resolución 2095 (2013) relativa a la situación en Libia.
20
Ver Resolución 2117 (2013) relativa a armas pequeñas y ligeras.
21
Ver Resolución 2170 (2014) relativa a las amenazas a la paz y seguridad internacionales causado por actos
terroristas.
122

Aunque la presencia de la R2P ha llevado a que el Consejo de Seguridad mencione más


seguido a los crímenes internacionales, debe matizarse esta afirmación porque también lo ha
hecho fuera de la R2P e incluso antes de ella. Como ejemplo de lo primero, la resolución 2134
(2014) sobre la situación de la República Central Africana, el Consejo de Seguridad indica que

Alarmado por el creciente ciclo de violencia y represalias y de degeneración en


una escisión religiosa y étnica en todo el país, lo cual podría derivar en una
situación incontrolable en la que podrían ocurrir delitos graves conforme al
Derecho Internacional, en particular crímenes de guerra y crímenes de lesa
humanidad.

Como ejemplo de lo segundo se puede mencionar la depuración étnica y su


reconocimiento en Bosnia y Herzegovina por la resolución 787 (1992). Por su parte, antes de la
constitución del Tribunal Penal Internacional para Ruanda, el Consejo de Seguridad señaló en su
resolución 935 (1994) que expresaba

[…] una vez más su más profunda preocupación por las constantes
informaciones de que en Rwanda se han cometido violaciones sistemáticas,
generalizadas y flagrantes del Derecho Internacional Humanitario, incluidos
actos de genocidio.

Estos ejemplos muestran que la R2P ha servido al Consejo de Seguridad para tratar las
categorías penales internacionales más asiduamente en sus resoluciones.
Otro de los grandes problemas de la R2P en la relación Estado y comunidad
internacional bajo el tercer pilar es su propia definición para efectos del principio de no
intervención. La literatura y los Estados han confundido a la R2P con la intervención humanitaria
o con la intervención para el rescate de nacionales en el extranjero. La intervención humanitaria,
a veces, se asimila a una especie de lienzo al cual cada autor le da los colores que quiere. Sin
embargo, existe un cierto consenso en la doctrina que la intervención humanitaria es una
intervención contraria al Derecho Internacional, es decir, aquella intervención unilateral o sin
autorización del Consejo de Seguridad para proteger a una población de otro Estado frente a
violaciones masivas de sus derechos humanos esenciales (KOLB, 2003, p. 208).
Por su parte, si la intervención se invoca en base a la nacionalidad se considerará que es
un rescate de connacionales en el extranjero sin autorización del Consejo de Seguridad. Un
ejemplo de ello ha sido que Vladimir Putin justifique intervenir, a comienzos del 2014, para
123

rescatar a las comunidades ruso hablantes en Crimea (SALMÓN y ROSALES, 2014, pp. 190 -
192).
El tercer pilar de la R2P va más allá de estas dos figuras. Sin embargo, en la práctica, no
solo puede ser confundida, sino mal empleada o distorsionada por miembros permanentes del
Consejo de Seguridad. Esta actuación no solo afecta las intenciones positivas que se refugian en
la R2P para con el plano del mantenimiento de la paz y seguridad internacionales, sino que
demuestra que la institución en la cual se apoya, el Consejo de Seguridad, sufre una crisis que
relativiza los esfuerzos de encontrar un consenso para una respuesta adecuada frente a los
crímenes atroces.
Por último, en relación a los otros sujetos pertenecientes a la comunidad internacional,
estos no son nombrados por el Documento Final de la Cumbre Mundial, lo que puso en duda
sobre quiénes estarían comprendidos bajo el segundo pilar. El Secretario General (2014, párrafos
20 - 27) ha identificado algunos de los sujetos de la comunidad internacional que participarían en
fortalecer la capacidad de prevención del Estado desde sus respectivas funciones. Así se tiene,
además de las Naciones Unidas, a la Unión Africana, la Corte Penal Internacional, el Banco
Mundial, entre otros. Cada una de estas organizaciones internacionales se relacionaría con los
Estados de acuerdo a sus propios tratados o normas, pero también previniendo y respondiendo a
situaciones que involucran crímenes atroces.
Ahora bien, este intento de congregar a la comunidad internacional a partir de la R2P
puede resultar problemático, dado que las dinámicas existentes de los tratados constitutivos de las
organizaciones internacionales citadas pueden estar pensadas bajo lógicas distintas; y, en segundo
lugar, que la R2P, al no necesariamente tener contacto con el quehacer diario del sujeto
específico, debilitaría los avances en la prevención en el marco de la R2P.

4 REFLEXIÓN FINAL

Para finalizar, es importante indicar que si bien el Documento Final de la Cumbre


Mundial ostenta el carácter de soft law, ello no impide que la R2P participe en el proceso de
humanización del Derecho Internacional y exprese la preocupación de la comunidad
internacional ante la comisión de crímenes internacionales. En este contexto, el orden
internacional, entendido como valores estructurales de la comunidad internacional, se puede
124

comprender a partir de la prevención de crímenes atroces que recoge la R2P, la cual expresa un
consenso básico de qué se entiende por intraspasable para los Estados en relación a la protección
del ser humano.
La R2P no solo brinda la posibilidad de reflexionar sobre una soberanía “humanizada”,
sino que también permite un acercamiento a cómo se configura la comunidad internacional en
pro de la protección del ser humano. Ahora bien, este concepto no logra alterar las dinámicas de
poder al interior del Consejo de Seguridad y deja, por tanto, en la misma situación de siempre al
principio de igualdad al interior de Naciones Unidas, mostrándose aún insuficiente para una
protección adecuada de las poblaciones. Es una aspiración, no una práctica. La R2P muestra, por
tanto, un camino hacia el cual parece apuntar el Derecho Internacional y que requiere
urgentemente el compromiso de los Estados: la consideración del individuo como destinatario de
normas internacionales y su protección eficaz y adecuada por encima de cualquier interés político
particular.

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128

REFUGIADOS E AS FRONTEIRAS POLÍTICAS E JURÍDICAS: A


UNIÃO EUROPEIA E SEUS DESAFIOS AO CENÁRIO ATUAL1

REFUGEES AND THE POLITICAL AND JURIDICAL FRONTIERS: THE


EUROPEAN UNION AND ITS CHALLENGES TO THE CURRENT
SCENARIO

Patrícia Susana Baía da Costa Colaço Machado e Jorge2


Data de submissão: 08/10/2016
Data de aceite: 21/11/2016

Resumo
Este ensaio procura observar as interações complexas na problemática dos refugiados que,
num mundo de hegemonia global dos direitos humanos como sinónimo de dignidade humana,
são na atualidade absolutamente contestáveis. As adversidades existentes no complexo do
atual Médio Oriente, atuam nesse sentido. Na verdade, temos de compreender os efeitos de
um conjunto de poderes, alianças e influencias, temos de ter em conta a luta pela supremacia
disputada pelas potências da região e correspetivos regimes: o Maxerreque que se estende à
parte oriental do Mundo Árabe, complementar a Magrebe (desde o Egito até ao Iraque e a
Península Arábica) e que compreende todos os países árabes situados a leste da Líbia, a
Arábia Saudita, monárquica, muçulmana e alauita, a Turquia republicana, muçulmana e
sunita, o Irão, uma teocracia muçulmana (não árabe), xiita, e Israel, republicano e judeu,
próximo da ortodoxia. Ou seja, por outras palavras, neste evidente cenário de permanentes
conflitos, deparamo-nos com os povos desta grande região africana, esses manipulados ao
sabor dos interesses estratégicos ou apenas locais, entregues ao autoritarismo de regimes
fortemente repressivos da liberdade e da cidadania onde impera a subjugação, o desemprego,
a pobreza extrema, e a ausência de infraestruturas públicas, geram no seu seio os radicalismos
extremistas que o fracasso da primavera árabe veio acentuar.

Palavras-Chave: Migrações irregulares; Refugiados; União Europeia; África; Médio Oriente.

Abstract
This workpaper demand to observe the complex interactions in the problem of refugees that in
a world of global hegemony of human rights as a synonym for human dignity, they are in
absolutely contestable today. Existing adversities in the complex of the current Middle East,
they act accordingly. In fact , we have to understand the effects of a set of powers , alliances
and influence , we have to take account of the struggle for supremacy disputed by the powers

1
Artigo escrito em português lusitano. Autora portuguesa.
2
Mestre e Doutoranda em Direito na Universidade de Coimbra/Portugal. E-mail: patriciacolaco75@gmail.com
1
129

of the region and correspectives regimes: the Mashreq extending to the eastern part of the
Arab world , complement Maghreb ( from Egypt to Iraq and the Arabian Peninsula ) and
comprising all Arab countries east of Libya, Saudi Arabia, monarchical , Muslim and Alawite
,Turkey Republican , Muslim and Sunni , Iran, a Muslim theocracy ( non-Arab ) , Shia , and
Israel , republican and Jewish , close to orthodoxy. That is, in other words, in this obvious
scenario of permanent conflicts, we find the people of this great African region, manipulated
by the taste of the strategic interests or just local interests, delivered to authoritarianism
strongly repressive regimes of freedom and citizenship which reigns subjugation,
unemployment , extreme poverty, and the lack of public infrastructure, generate within it the
extremist radicalism that the failure of the Arab spring has widened.
Keywords: Irregular Migration; Refugees; European Union; Africa; Middle East

1 INTRODUÇÃO

A questão dos refugiados especifica que é aquela em que nos sentimos mais à vontade
para falar tem por vínculo os países do Maxereque. Tem a ver com o Médio Oriente e é um
assunto onde ainda não existe muita produção científica, muito trabalho feito sobre estas
questões, não só pelo facto de haver muito recato em torno das mesmas, como também pelo
facto de estarmos a lidar com uma sociedade com realidades em permanente mudança, e isto
torna muito difícil esta mesma avaliação.
Lidando com a questão dos refugiados, há um conjunto de coisas que nos entram todos
os dias pelos meios de comunicação, e que, embora muito filtradas, normalmente, tendem a
dar-nos a reconhecer três questões fundamentais:
a) A questão dos números: quotidianamente temos que lidar com números e é assim
que se olha tendencialmente para o problema dos refugiados. Numa lógica eurocêntrica de
olhar para a perspetiva dos refugiados, há sempre um limiar para tentar perceber o que são
números sustentáveis e insustentáveis.
Estamos muito presos a algumas imagens nas quais somos uma espécie de atores que
simplesmente observam, mas que não se assumem como partes integrantes nestes problemas
que vão emergindo. Apesar da instabilidade se dever a razões de escolha politicas, de vontade
politica, continua-se a perspetivar o problema no domínio das fronteiras. Para muitos se ele
está nas fronteiras não temos que lidar com ele!
Aconteceu assim com os fluxos de África Subsaariana (WOOD, 2014) e agora com os
fluxos do Médio Oriente ou países do Maxereque, e em particular a questão Síria, que
também tem ajudado a tapar muitas outras situações que são igualmente dramáticas.
Sabemos que hoje temos 60 milhões de refugiados no mundo, que a população de
refugiados sírios ultrapassou a maior população de refugiados que conhecíamos na história,
que era a Palestiniana, e sabemos que hoje já ultrapassa os 6 milhões de refugiados.
130

Na realidade os refugiados sírios se quisermos chamar-lhes refugiados, não são


somente 6 milhões, são bem mais do que isso. Só dentro do próprio território e aqui não são
refugiados serão deslocados, temos 8 milhões de pessoas, o que consiste em dizer que tudo
isto merece algum debate e alguma reflexão.
Começou a ser verdadeiramente um problema quando houve gente em número a
chegar às fronteiras europeias.
b) A questão dos fluxos: outra lógica de enquadramento será a dos fluxos, quais são
os fluxos, quais as massas de população que se vão deslocando e em que direção;
c) A questão das trajetórias: perceber quais são as expressões que existem para as
sociedades em função das suas trajetórias e em cada momento da história nestes fluxos de
refugiados.
Estas são mais ou menos as três linhas que temos e pouco mais se explora. Além disto,
é o que vamos conhecendo numa perspetiva quantitativa, ignorando completamente, a
diversidade, as razões, as causas, as responsabilidades que estão associadas.
Portanto, do ponto de vista de quem faz pesquisa e do ponto de vista de quem está no
campo a procurar fazer trabalho sistemático nesta matéria, faltam também de forma muito
precisa outras dimensões.
Para o caso, falta o enquadramento desta realidade numa dimensão qualitativa para
percebermos estes fenómenos migratórios. É uma dimensão dispendiosa não apenas na sua
vertente metodológica de estudo, como também, de trabalho, seja em que área for e onde
esteja.
A dimensão das metodologias, ou métodos usados, referem-se a como nos chega a
informação, quais os critérios, as variáveis e quais os indicadores.
Temos uma série de dados fornecidos por atacado, e é isso que nos oferecem todos os
dias, ignorando-se completamente uma situação que neste contexto é uma questão essencial,
que é a questão das mudanças sociais inerentes a cada um destes processos, e que
normalmente, são traduzidas como uma espécie de naturalização.
Ainda assim, conseguimos ter alguma imagem, ainda que fotográfica, da mudança
social e dos impactos nas sociedades, quando olhamos para casos muito específicos. Por
exemplo, se pensarmos no caso do Líbano, é uma espécie de país exceção, mas ao mesmo
tempo também corresponde a um padrão para analisarmos estas questões.
Permite-nos olhar para aquilo que são impactos imediatos, contudo, acabamos por não
ter nenhuma análise de fundo sobre mudanças socias a médio termo ou a longo termo. Pura e
simplesmente isto não existe.
131

As mudanças imediatas são percetíveis quando visualizamos casos concretos, como o


do Líbano, do caso europeu, ou da união europeia que é outra coisa diferente.
O Líbano é percetível porque falamos de um país que do ponto de vista da
reorganização territorial e da organização propriamente dita em termos das suas
infraestruturas (sistema escolar, de saúde ou da própria administração pública) é pequeno.
Tem 19 comunidades religiosas, uma população dividida entre metade católicos e a outra
metade muçulmanos e tem uma democracia muito peculiar do ponto de vista da definição do
poder, em que o Presidente da República é alguém sempre católico, o Primeiro- Ministro é
sempre alguém sunita e o Presidente da Assembleia da República é sempre alguém xiita.
Portanto, uma sociedade multicultural, que tem modelos de organização muito específicos e
que por isso, tem condições muito específicas na receção dos refugiados.
Assim, quando analisamos o caso referenciado, conseguimos entender mais ou menos
algumas das implicações que a entrada de refugiados tem para as sociedades, uma vez que é o
país do mundo que tem o maior número de refugiados.
Quando falamos em termos proporcionais, falamos de um país que tem pouco mais de
4 milhões de habitantes e que neste momento tem seguramente à volta de 2,5 milhões de
refugiados. Portanto, é uma relação de um para dois. Se formos analisar os registos oficiais, a
relação é de 50%. Ou seja, os registos não cobrem toda a população refugiada que chega ao
Líbano, e, portanto, começasse a discutir as questões das mudanças sociais.
Perguntamos: “Como é que um país como este, que quer equilíbrios estáveis, passa a
ser instável no momento que mais de metade da população é maioritariamente refugiada de
sírios? Mas também composta de uma percentagem muito grande de refugiados palestinianos,
e onde de repente se percebe a incapacidade de responder a esta quantidade de fluxos.
Ainda assim, as pessoas recebem maioritariamente os refugiados nas suas casas,
obedecendo a uma razão histórica de rejeição de campos de refugiados, ao contrário de outros
países. Esta razão histórica tem a ver com os refugiados palestinianos que “ab initio” seriam
temporários, mas que contudo, e com o tempo viriam a tornar-se definitivos. Por isso, nem a
sociedade, nem as autoridades libanesas aceitam a instalação de campos.
Quando de repente se tem um fluxo massivo de população, começasse a perceber o
porquê de uma sociedade com limitações na absorção de refugiados. Sendo este fluxo
maioritariamente sunita, entende-se que ao entrar numa sociedade heterogénea do ponto de
vista da composição religiosa, e habituada a viver com os seus equilíbrios, se depare com um
conjunto de problemas na sua receção e mesmo aceitação.
Isto tudo, para sucintamente se dizer, que a maior dificuldade que temos, é ter excesso
132

de números e uma extraordinária ausência de análise qualitativa, para além da ausência até
mesmo das questões mais básicas de metodologia, que nos levaria seguramente a um melhor
entendimento de como nos chegam os números na atualidade e porque não chegam outros.
Seja em que contexto for e quando analisamos a realidade dos refugiados, devemos ter
sempre em conta quais os mecanismos de produção que estão inerentes à informação a dados
que se recebe. Igualmente os factos classificatórios assumem aqui um papel predominante.
Não descuremos que estas classificações não são inocentes, nunca o foram, não será agora
que o irão ser.
Entende-se a ideia dos factos classificatórios na questão dos refugiados, quando por
exemplo entramos no Líbano e criamos incidentes diplomáticos de cada vez que usamos a
palavra refugiados. Observe-se que neste território a palavra que deve ser usada é a de
«deslocados» e não refugiados (ABREU, 2006). Entra-se numa questão não apenas de
semiótica mas também numa questão cultural enraizada, e por isso, para além de todas as
definições jurídicas que possamos ter, leva-nos ao impedimento de dissociarmos daqui as
questões culturais e de vivência em sociedade, nomeadamente de como estas sociedades
interpretam e como assimilam estas populações.
Interrogamo-nos novamente, o que é que faz a distinção entre um refugiado e um
deslocado? Será atravessar a fronteira?
Independentemente da questão jurídica, uma vez que esta nos obriga a pensar que
refugiado é aquele que requerer asilo, a maior parte destas pessoas nem requerem
rigorosamente nada, fogem simplesmente. Portanto, se não ficarmos vinculados a uma
definição jurídica muito restrita, conseguimos uma outra dimensão, que é como as sociedades
percecionam e assimilam estes fluxos de população (parlamento europeu, 2006).
Uma das batalhas que se trava permanentemente entre as autoridades libanesas e as
autoridades europeias, é a própria questão da classificação das populações em questão. Depois
existem outras questões que têm a ver não apenas com estas massas de população, mas
também com as especificidades dentro de cada uma das comunidades, e da imensa
heterogeneidade que existe no contexto da população refugiada.
Desde logo, nós não estamos habituados a olhar para o Médio Oriente e ver
comunidades católicas, estamos sim, habituados, a olhar para o Médio Oriente e ver uma
massa de população muçulmana. Neste plano, podemos até falar de uma disputa de linguagem
relativamente às minorias, que se verifica nomeadamente quando falamos sistematicamente
nos cristãos do Oriente (que nos causa alguma impressão) dos orientais cristãos (já aqui não
nos cria tanta interrogação e dúvida).
133

A fragmentação das próprias comunidades cristãs do Iraque (se estamos a falar de


pessoas ou de uma comunidade inteira) e como as mesmas são entendidas, também constitui
outro exemplo de subjetividade linguística e interpretativa de valores e conceitos.
Outro paradigma a ser analisado no presente trabalho é a política de tratamento dos
refugiados em qualquer país da União Europeia. Se abandonarmos a ideia dos países do
Maxereque e nos centrarmos neste procedimento europeu, constatamos que invariavelmente
esta questão é tratada como se de fluxos de população composta por sujeitos passivos se
tratasse.
É muito fácil analisarmos isto de uma perspetiva que nem sequer é intencional, mas
como os factos o comprovam, a política europeia reveste-se de um carater de aceitação ou
rejeição dos refugiados, que em casos extremos, integra uma componente de superioridade
face às comunidades que se deslocam. É como se não tivessem vontades, se não tivessem
história, se não tivessem sexo, idade, se não tivessem família, e contexto.
A maior dificuldade quer do ponto de vista analítico, quer do ponto de vista de
intervenção politica, é o facto de desconstruirmos sistematicamente a ideia de que as politicas
ou as análises devem ser desenhadas tendo à nossa frente ou ao nosso lado sujeitos que são
tão ativos como nós e que não se trata de populações passivas.
Se nós assumirmos que não lidamos com sujeitos passivos, se assumirmos que são
cidadãos como qualquer cidadão, teremos então que pensar num conjunto de questões que
nunca são pensadas, as questões de intervenção politica e de muita da análise a ser feita. Por
exemplo, nunca se coloca a questão de como é que são formulados os processos de tomada de
decisão de quem decide sair. Teoricamente quem foge de uma situação de guerra ou outra,
nunca decide nada. Por muitos, é até considerada como uma espécie de fenómeno natural,
uma intervenção divina.
É como se ninguém decidisse rigorosamente nada, não tivesse nenhum processo de
tomada de decisão relativamente à saída ou à sua vida. Como estamos habituados a olhar para
números, fluxos e trajetórias (que são as dimensões que nos dão todos os dias), depois
olhamos para a situação dos refugiados ignorando sistematicamente o papel das redes sociais
nestas populações. Quando falamos em redes sociais falamos das redes familiares,
profissionais, comunitárias, tribais, entre outras.
Pode-se olhar para um imenso número de perspetivas mas há uma ausência total de
redes sociais e do papel das redes sociais quando olhamos para os refugiados. Depois, ignora-
se também, as decisões e as escolhas, porque se sabe de antemão que estas decisões e escolhas
estão normalmente dependentes das circunstâncias. Contudo a questão é: pelo facto de
134

existirem circunstâncias específicas e haver uma sujeição a constrangimentos, não quer dizer
com isto, que as escolhas e as decisões não sejam tomadas no contexto onde claramente
existem constrangimentos e onde há circunstâncias específicas.
Outro ponto importante é quando se ignora que estamos a falar de pessoas que têm
aspirações na vida como qualquer pessoa. E, mais silenciada ainda, é a questão da estratégia.
Nenhuma destas pessoas tem uma definição de estratégia para a sua vida como qualquer
comum dos mortais. A estratégia é uma coisa que está eliminada a partir do momento que
decidem deixar o seu território e abandonar a sua casa, seja porque circunstância ou por que
razão for.
Há muitas perguntas possíveis num mar de perguntas que deveriam ser
sistematicamente colocadas quer do ponto de vista da investigação ou da pesquisa, quer do
ponto de vista de quem faz trabalho politico.
Desde logo, perceber nestas comunidades por muito numerosas que sejam, dado que
são heterogéneas e diferenciadas, se estas se compõem de realidades diferentes, e em que
medida as pessoas ou os grupos que as integram, podem ou não podem exercer uma escolha
no que toca não só à temporalidade (destino de chegada, seja ele temporário ou definitivo)
como também à decisão que é tomada.
Não ajuda em nada a forma como os próprios mídia constroem os fluxos, seja em
resultado daquilo que é uma intervenção direta das instituições públicas, seja mesmo os
caminhos que são pré-definidos ou de certa forma condicionados pelas organizações
internacionais que estão no território, tais como a ACNUR (1992; 2011), UNICEF, entre
outras.
Predomina aqui um conjunto de fatores que nunca são tidos em conta, nomeadamente
como se opera a escolha do destino num contexto de guerra, quais os tipos de alterações que
existem, ou como são as relações existentes do ponto de vista das relações de género e das
relações intergeracionais. Se afetam ou não as decisões das pessoas, ou como é que elas são
alteradas em função das decisões que são tomadas. Também como é que as relações de género
intergeracionais afetam os próprios movimentos das pessoas, das famílias ou das
comunidades.

2 UNIÃO EUROPEIA

A União Europeia, o conjunto de economias mais abastadas do mundo, cuja razão de


ser foi a solidariedade e interdependência, vai dando respostas em tempo e generosidade
135

muito diferentes.
Do nosso lado, sobredeterminamos o desfecho mesmo que não encontremos nenhuma
solução para os problemas. Não precisamos de ter nenhuma resposta, nenhuma solução para
sobredeterminar aquele que vai ser o desfecho de muitas histórias, seja ele temporário ou
definitivo.
Sobredeterminamos o desfecho em função de várias questões, nomeadamente em
função dos regimes que vigoram nos países de entrada/receção. O facto de se ter ou não ter
legislação ou estatutos consagrados de refugiado, ou estatuto de asilo, ou seja o que for, faz
toda a diferença, antecipa ou pode forçar um desfecho que é só um meio de caminho, mas
pode forçar esse desfecho.
A forma como os regimes políticos do lado dos países de acolhimento vigoram e se
organizam, caso do Líbano, da Jordânia, da Grécia, da Macedônia, da Dinamarca, ou da
Suécia, e apesar de podermos encontrar padrões que nos sejam comuns, determinam também
se vão ser criadas diferenciações ou não, se vão criar mais hierarquizações ou não, bem como
a forma como serão percecionadas as comunidades e as populações que nos procuram.
Ao criar diferentes categorias de migrantes, e isto é uma coisa que é comum a todos os
países recetores, independentemente da sua cultura e do regime politico, a verdade é que
todos criam estas categorias e impõem diferenciações entre o que são os refugiados, os
deslocados, os económicos, e por aí adiante.
Qualquer categoria que seja feita é uma categoria que acaba por produzir novas formas
de estratificação e diferenciação social. Sabemos que nas comunidades de acolhimento ou de
rejeição, infelizmente há uma regularidade social, ou seja, são aquelas que têm menos
condições económicas que têm que se adaptar mais às regras que são impostas, e que têm que
desistir mais dos seus projetos migratórios.
Esta teoria prevalece porque não consideramos que independentemente da condição
socioeconómica possa existir um projeto de vida das populações refugiadas. Para os
esmagadores pensamentos quem não tem dinheiro não tem vícios.
A Europa faz esta diferenciação continuamente, e reproduz um conjunto de divisões
que já existem na sociedade, e que não deixam de existir, mesmo quando não estamos a lidar
com comunidades que estão deslocadas ou que são refugiadas em resultado de contextos de
guerra ou de privação total de condições materiais.

2.1 Questão Jurídica


136

No meio disto tudo, entra sempre a questão jurídica, andamos sempre com a
burocracia ao lado, o que é ótimo. Ainda melhor é eurocracia, porque ajuda sempre a apanhar
tempo para não fazer nada, e para ter todas as desculpas para a inércia.
Perdemos muito tempo a debater coisas, e nisto estamos a falar de asilo, ou percurso
temporário, ou de trânsito (há muitos países que são de transito e não são de acolhimento). Há
definições múltiplas de trânsito, onde se incluem as definições dos próprios autores, dos
próprios agentes que se deslocam, e ainda as definições dos países onde chegam as pessoas.
Se não tivermos uma ideia comum, princípios mínimos comuns que permitam ter
ferramentas para lidar com estas situações, iremo-nos sempre deparar com uma situação como
aquela que vivemos atualmente, em que a esmagadora maioria desta população é considerada
refugiada e entendida como tal, quanto mais não seja por definição.
Podemos até não ter uma base jurídica ou outra para aceitarmos a maior parte desta
população, contudo deverá existir um estatuto comum, perante o qual, haja um
reconhecimento e condições específicas de sobrevivência para este tipo de população.
A realidade mostra-nos o inverso. A sua situação é permanentemente reversível.
Este carater reversível de refugiado que justifica-se pela ausência de ferramentas,
instrumentos, definições concretas, sejam boas ou más. Até podíamos criticar o estatuto
europeu de asilo (TRIANDAFYLLIDOU, 2014), ou o estatuto europeu de refugiado, mas
infelizmente não o podemos fazer, porque não existe. Portanto, não existindo definições
concretas que permitam a porosidade dos próprios conceitos, das terminologias, das
classificações que nós fazemos das pessoas, originamos uma faça uma cama perfeita para o
medo.
A reversibilidade do estatuto de refugiado, é de tal ordem, que nós não temos nenhum
pudor em achar normal que se possa confundir o debate entre refugiados e terroristas. A falta
de porosidade vai até esse ponto e a reversibilidade do estatuto também.
Se não há direitos associados, se não há o mínimo de direitos, de condições para que
os possamos questionar ou não, toda a fronteira estará aberta para mudar de uma categoria à
outra, consoante seja o discurso dominante ou a verdade do discurso dominante.

2.2 Questão política e instituições

A oposição clara que se começava a manifestar em 2011 com a Primavera Árabe,


derrubando vários regimes ditatoriais no Médio Oriente, contraposta aos equilíbrios existentes
na própria sociedade síria advindos da diversidade e heterogeneidade que lhe são inerentes,
137

permitia ainda assim o convívio entre vários sectores: o sector da sociedade laica; dos
movimentos feministas, existentes em poucos países da região.
Por isto, se pensava que na altura, os conflitos se tivessem resolvido por si mesmos,
através de uma resolução encontrada dentro da própria Síria pelos diferentes atores, de forma
democrática.
Um país assente num regime democrático, que não é muito comum, em que se tem um
Presidente legitimado por eleições, havendo manifestações, havendo oposição, tudo nos
levava a crer que se poderia resolver de forma democrática.
Contudo, as instituições europeias com o intuito meramente obsessivo e ideológico,
acabaram por concentrar na Síria todos os problemas, e daí a primeira decisão e a mais
fundamental no processo da Síria foi a decisão europeia de enviar orçamento para todos os
grupos de oposição, desvalorizando completamente o carater desses grupos de oposição, e
aqui claro está, que houve um processo de ingerência direto.
Não foi criada uma guerra no sentido tradicional, mas foi criada uma guerra civil por
outros meios, denunciando desta forma, a total irresponsabilidade na forma como decisões
umas atrás das outras foram tomadas no sentido de armar as chamadas forças democráticas
sírias ou de oposição democrática.
Acabou-se, por se armar as ditas forças de oposição democrática como também os
grupos que vinham do Iraque e que se haviam deslocado do Iraque, e que, por sua vez,
estavam concentrados na Síria. Atualmente se encontram concentrados na Jordânia e na Líbia.
Através de uma lógica de califado, estes grupos tinham interesse em fazer uma disputa
territorial muito para além daquilo que nós conhecemos, tendo acabado por dar origem a
conflitos direcionados para as próprias populações.
Elencamos a título de exemplo o ISIS – um grupo militar jihadista, que se aproveitou
da confusão politica e social para ganhar força e poder. Motivados pelo objetivo de criar um
califado islamita, totalitário, rapidamente se tornou num dos grupos terroristas com maior
impacto dos últimos tempos.
Utilizando com mestria as modernas técnicas de propaganda, publicita as torturas,
execuções em massa e sucessivos ataques letais e civis, criando uma onda de terror e
ganhando enorme visibilidade.
Face a isto facilmente chegamos à conclusão que fomos os maiores promotores da
criação do auto proclamado Estado Islâmico, armámos estes grupos quando eles tinham a
força, a vontade, a estratégia e o plano, mas não tinham armamento necessário.
Depois também acabámos por armar até a própria Al qaeda do Levante e a Al-Nusra,
138

um grupo que tem o mesmo tipo de intervenção que tem o Estado Islâmico ou o auto
proclamado Estado Islâmico.
Do que se pensou, que poderia supostamente ser resolvido por vontade e determinação
do povo sírio, acabou por se tornar numa enorme guerra civil, à qual, se veio a juntar,
posteriormente, a ocupação de grande parte do terreno dos grupos terroristas.
A população da Síria ficou encurralada entre o exército do regime de Assad, grupos
radicais e extremistas.
Com uma população de quase 22 milhões de pessoas em 2011, assistiu desde essa data
à deslocalização de mais de 12 milhões de pessoas, sendo que dessas, mais de 4 milhões
foram forçadas a abandonar o país, ao que se soma 95% dos refugiados que fugiram para os
países vizinhos: Turquia 1,5 milhões; Líbano 1,1 milhões; Jordânia 600 mil e o Egito com
142 mil.
Confrontados com o enorme fluxo de refugiados (PARLAMENTO EUROPEU,
2013), muitos países europeus recusam-se a aceitar e fecham os olhos à situação que eles
próprios criaram. Em 2014, toda a União Europeia aceita 420 mil refugiados. No início de
2015 a Alemanha face à crise que tinha entre mãos, aceitou receber 800 mil refugiados,
contudo, e só no final de setembro deste mesmo ano, é que se chegou finalmente a acordo
(sem unanimidade) para receber cerca de 120 mil refugiados.
Aprova-se também o investimento no apoio aos países vizinhos da Síria, e o reforço
com cerca de mil milhões de euros para o ACNUR e Programa Mundial Alimentar, para
fazerem frente ao drama humanitário.
Em 2016, os líderes da União Europeia chegaram a acordo com a Turquia sobre o
mecanismo de apoio a refugiados. Todos os migrantes que entrassem ilegalmente na Grécia
regressariam à Turquia. A agência de refugiados da ONU diz que um acordo provisório
fechado entre a Turquia e a União Europeia para por fim à migração descontrolada para a
Europa violaria leis internacionais.
Sob o acordo, a Turquia receberia de volta migrantes ilegais (BBC, 2016) chegando a
ilhas gregas, em troca, a União Europeia acolheria refugiados sírios que estivessem em
campos na Turquia. A implementação deste acordo viria a começar posteriormente à Amnistia
Internacional ter levantado o dedo às autoridades turcas, com a acusação das mesmas estarem
a enviar sírios de volta para o seu país em guerra, transformando tudo isto numa clara e grave
violação do direito internacional.
Por sua vez, o governo turco no seguimento do seu acordo com a Grécia já garantiu
que todos os refugiados que não fossem sírios seriam reenviados, enquanto os sírios seriam
139

colocados em campos de refugiados, permanecendo aí, aguardando a integração na União


Europeia do chamado plano “um-por-um”. Ou seja, em troca do acolhimento das referidas
pessoas, a Turquia viu a ajuda financeira europeia ser aumentada e até subscreveu a
possibilidade de se reabrir as negociações a propósito da sua adesão à União Europeia.

3 PRINCÍPIO DO NON REFOULEMENT À LUZ DO ÚLTIMO ACORDO


A análise do princípio do non refoulement3 no processo deste ultimo acordo com a
Turquia: direito à vida e à integridade física, é colocado em causa. Este princípio que
encontra assento expresso no Direito Internacional (Jus Cogens), prevê a obrigação de todos
os Estados consagrarem, garantirem e protegerem os direitos humanos de todos os indivíduos
que se encontrem sob a sua jurisdição, sejam eles cidadãos nacionais, ou cidadãos de países
estrangeiros – incluindo migrantes - independentemente do seu estatuto, bem como
refugiados, e proíbe a transferência de uma pessoa para um país onde existam razões de
acreditar que será sujeita a tortura ou a tratamentos e penas cruéis, desumanos ou degradantes.
Foi oficialmente consagrado na Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (CRSR) em
1951 e por força da sua origem jusinternacional “non refoulement” e de acordo com o artigo
19.º, n.º 2 da CDFUE, “ninguém pode ser afastado, expulso ou extraditado para um Estado
onde corra sério risco de ser sujeito a pena de morte, tortura ou a outros tratos ou penas
desumanas ou degradantes”
A CRSR fornece a base para o tratamento de refugiados, e o seu artigo de maior
relevância é o artigo n.º 33.º, n.ºs 1 e 2 que refere: 1. Nenhum dos Estados Contratantes
expulsará ou reconduzirá ('refouler') um refugiado sob qualquer forma, para as fronteiras dos
territórios onde a sua vida ou liberdade sejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião,
nacionalidade, pertença a um determinado grupo social ou opinião política4.
Face à lentidão de processos políticos ainda que ineficazes para encontrar uma
solução, o apoio dos refugiados tem sido impulsionado pelas sociedades civis dos Estados.

3
Sobre o referido princípio, conferir: CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. A jurisdição
extraterritorial da CEDH. 2011. Disponível em: <http://www.refworld.org/docid/4e31312d0.html>. Última
visita: 21 nov. 2016.
CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Hirsi Jamaa e outros v. Italy (Aplicação n.º
27765/09). Parágrafos 85, 87, 90, 139, 140 e 141.
SUPREMO TRIBUNAL DOS ESTADOS UNIDOS. Caso Shaughnessy v Mezei, 345 US 206 (1953). 1953.
Disponível em: <http://www.refworld.org/docid/4152e10024.html>. Última visita: 21 nov. 2016.
4
Artigo 3.º, parágrafo 1 da Convenção de 1984 contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou
Degradantes, também proíbe explicitamente devolver quando houver razões substanciais para crer que a pessoa
esteja em perigo de ser sujeito a tortura.. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convention Against
Torture and Other Cruel, Inhuman or Degrading Treatment or Punishment. 1984. Tradução nossa.
140

Entre os Estados-membros não há acordo em criar estratégias mais eficientes devido também
à situação mercantil com os refugiados e aos concorrentes interesses e compromissos
históricos dos diferentes países europeus em relação a África. A Inglaterra não participa na
Frontex (BALDACCINI, 2010).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por isto, num quadro das respostas urgentes, em primeiro lugar está obviamente a
premissa de que temos que perceber questões muito básicas do funcionamento da
Humanidade.
Nenhuma arma que matou seja em Londres, Bagdad, Beirute, Damasco, Alepo,
França, é uma arma que não seja de marca europeia ou americana. Talvez aqui esteja a raiz
mais urgente do problema que ninguém quer lidar com ele.
A outra questão urgente tem a ver com o próprio papel da Turquia neste processo. Nós
podemos falar com as diferentes autoridades destes países e até com muita regularidade,
sejam autoridades do ponto de vista organização do território do Estado, sejam autoridades
religiosas, que todas elas dirão “Afastem lá a ideia de que isto é uma guerra dos Muçulmanos
contra os outros, ou dos Muçulmanos contra os católicos ou cristãos”.
Portanto, é uma guerra que não se pode dizer que seja de potências regionais, está
mais generalizada dado que cada uma das potências regionais tem os seus aliados, e onde a
Turquia desempenha um papel fundamental, nomeadamente de agente duplo no escoamento
do crude que é explorado por 12 poços de petróleo situados na Síria e no Iraque pelo auto
proclamado Estado Islâmico, e que é obviamente a seguir ao armamento, a maior fonte de
financiamento.
Os países europeus compram este crude a preços baixíssimos e contribuem dessa
forma para o financiamento. Outra urgência, passa pelo acolhimento das pessoas que nos
procuram. Quando começamos a questionar se temos ou não temos capacidade na União
Europeia, em 28 países, para acolher um milhão de refugiados, é porque já perdemos o chão
na maior parte das coisas. Nem sequer em termos comparativos se pode justificar a falta de
capacidade de absorção. O Líbano tem 2 milhões de pessoas, e se nós fossemos a fazer a
comparação em termos da população, seria a mesma coisa que ter 5 milhões em Portugal. Ou
se fossemos a fazer a comparação em termos da área do território era a mesma coisa que ter
20 milhões de refugiados em Portugal.
Portanto, já nem é pela questão territorial ou pela questão da população ou de
comparação com estes países que tudo se justifica. A Jordânia tem 30%, o resto à volta não
141

existe (convínhamos), a Turquia que tem quase 3 milhões de refugiados mas que é uma
população maior e mais diluída, não tem o mesmo peso como tem a sociedade libanesa ou
jordana. De facto, a questão em causa e à qual se deve dar atenção, é ao processo que de
fronteiras que está fechado. A União europeia tem de perceber que a esmagadora maioria das
pessoas que sai, sai para fugir à guerra, ao terrorismo, ou até para tentar encontrar uma
solução de vida, não tendo nenhum gosto em ser estranho na terra dos outros, porque ninguém
os quer, a verdade é esta.
O acordo último da Turquia sob este ponto de vista, é absolutamente vergonhoso,
porque é a assunção clara por escrito e formal, que não os queremos e portanto os
recambiamos para a Turquia, que por sua vez faz jogo duplo, e ainda pagamos para isto.
Pagamos e gastamos muito mais do que gastaríamos a receber os refugiados em
condições minimamente dignas, esta é que é a questão.
A fatura que se paga à Turquia é muito mais elevada do que essa do referido
acolhimento, a primeira tranche é de três mil milhões de euros, a segunda mais três mil
milhões. Ou seja, pagamos todos para recambiar para Turquia. Para um país que não tem
nenhuma obrigação em respeitar os direitos humanos. A única obrigação que tem em matéria
de respeito pelos direitos humanos para refugiados, prende-se com os refugiados europeus,
sendo a única Convenção assinada.
Assim, nós criámos dentro do espaço europeu uma espécie de Guantanamo, para o
qual, viríamos a assumir o pagamento para a sua existência. É grande a hipocrisia para não
aceitarmos estes refugiados com o lema de “ou fica na Turquia ou é recambiado à origem, vão
lá morrer longe, desde que não vejamos está tudo em ordem!”.
Esta hipocrisia é tão grande que a não-aceitação de um milhão de pessoas, tem em
troca, a flexibilização de oitenta milhões dos vistos para os cidadãos turcos poderem circular
na Europa como cidadãos europeus. A falsidade dos poderes dominantes chega a este ponto,
conseguem convencer as pessoas do despacho de um milhão de pessoas, que constituem uma
ameaça, e que por isso, preferem flexibilizar os vistos de oitenta milhões do que receber um
milhão nos países da União Europeia. Nesta fase, o que aqui se associa à imagem de ameaça e
terrorismo são os refugiados não são os turcos.
Em relação às questões humanitárias, infelizmente continuamos a fazer exatamente o
que sempre fizemos, que é outsourcing. Fizemos outsourcing em relação aos migrantes da
África Subsaariana quando tínhamos amigos espetaculares no Norte de África – Benali,
Kadafi. Mubarak, e portanto concretizava-se as compras de outsourcing. Através destas, não
se calculava quantas pessoas eram mortas, as que não chegavam ao outro lado, e como eram
142

tratadas. Desde que fossem contidas no Norte do Mediterrâneo para os europeus estava tudo
bem. Havia de vez em quando alguns problemas, nomeadamente quando alguém tinha a
ousadia de se atirar ao Mediterrâneo e muita gente perdia a vida neste mar. Paralelamente
continua-se a perder.
Com o fim destes regimes ditatoriais estamos na realidade a dar continuidade ao
sistema da espécie de outsourcing com base nas organizações internacionais. Desde que se
segurem os 2 milhões no Líbano, 1 milhão na Jordânia, o lema é transferir o máximo possível
de apoios comunitários a todas as organizações que operam no terreno, mesmo que as pessoas
já não consigam viver no meio do lixo, da falta de água, da falta do mínimo de condições. E,
estamos a falar de países bastante mais pobres do que qualquer país da União Europeia.
Portanto, desde que se segurasse as pessoas nestes territórios estaria tudo bem, o problema, foi
quando de facto estes territórios começaram a ficar esgotados. Este problema surgiu por
questões de esgotamento do próprio território e da capacidade de absorção, e as organizações
internacionais não sabem viver bem com isto, nem lidam bem com isto. Criou-se uma lógica
de profissionalização e de dependência da catástrofe e do desastre, para a sobrevivência das
organizações. Não se fala com os dirigentes das organizações internacionais, seja a UNRA
que lida com os refugiados palestinianos, seja a ACNUR, seja a UNICEF, e contudo, ninguém
está contente com a presente situação.
Toda esta tragédia humanitária pressupõe ter uma resposta de urgência, temporária,
limitada no tempo e limitada no espaço. Não é suposto imperar a permanência, sendo certo
que o que existe, é o estado de permanência, do caos humanitário.
O que falta aqui é a vontade politica e mais do que esta é rever basicamente os acordos
internacionais que foram feitos, no sentido, de os pôr em prática, e que supostamente devam
vigorar relativamente ao respeito pela vida, pela dignidade humana. Tudo muito esquecido
porque há sempre negócios que falam mais alto do que o respeito por estas premissas,
desvaloriza-se o que é relativo ao ser humano – respeito pelo ser humano.
Em relação às fontes de informação é possível a manipulação das redes. Não devemos
ser provocatórios mas de facto o medo verdadeiro deverá ser tendencialmente mais dirigido
aso mídia do que à manipulação feita pelas redes sociais. O que passa pelas redes sociais, pelo
menos, não tem a chancela de dizer que é a informação oficial rigorosa, e que tem que
corresponder a um conjunto de padrões.
O que nos deve assustar mais na boa verdade, é a manipulação organizada e esta é
muito mais esmagadora, dado que nos permite aceitar numa lógica de medo, que o acordo que
mexe com a Turquia, é razoável. É praticamente a mesma manipulação que aceitou votar o
143

encerramento do Espaço Schengen. Quando falamos de refugiados e de deslocados, associa-se


a um problema de segurança, de um problema de terrorismo, e deduzimos “Vamos lá fechar
fronteiras”.
No entanto, este procedimento que é aceite pelas pessoas como sendo uma medida
essencial no combate ao terrorismo, não tem evitado nenhum atentado terrorista no espaço
europeu. Como contrassenso ao cerrar de fronteiras no Espaço Schengen, falemos da
manipulação de informação que aceita o registo de passageiros aéreos (votado e aprovado) e
que constitui uma coisa inacreditável. Todos nós iremos passar pela figura de suspeitos de
sermos terroristas. Perdemos nossas liberdades, um conjunto de direitos e a capacidade de
mobilidade que temos. A livre circulação de pessoas passa ser uma fantasia, e, quando se
fazem sondagens de opinião, por exemplo, sobre o Passanger Name Record (PNR) – Registos
dos Passageiros, a maioria das pessoas é favorável a este sistema.
Isto é aceite socialmente ficando para trás todos os voos privados, os charters e os
voos das grandes companhias, porque de facto entre gente rica não há quem faça terrorismo,
nem lavagem de dinheiro, nem corrupção, como todos nós sabemos!
Vamos gastar, não sabemos ao certo, quantos milhões de euros num registo, que nos
tolda as liberdades e que nos tolda a privacidade em nome do combate ao terrorismo. Tudo
que for em nome do combate do terrorismo, vende-se.
Outro ponto importante e que merece atenção, é o facto, de que, todos temos
conhecimento das situações que se estão a passar no território europeu, sabemos da
quantidade de refugiados que está a ser colocada em campos de concentração. Sabemos o que
se está a passar na Macedónia de coserem a boca às mulheres e crianças, porque estas como
toda a gente sabe, gritam muito e pedem muitas coisas. Sabemos do confisco das joias na
Dinamarca, sabemos do confisco de tudo o que são bens na Áustria. Sabemos da selva em
Calé no coração de França e da situação dos refugiados, onde as pessoas vivem na lama, e não
fazemos nada em concreto para alterar todas estas situações.
Estas situações têm uma dimensão geopolítica muito forte, por um lado temos de
pensar no conflito sírio e nas negociações do processo de paz, nas conversações de Genebra e
a rotura das mesmas, e por outro que as fronteiras estão a estreitar-se por causa das questões
geopolíticas e de geoestratégia. Do lado europeu as fronteiras estão-se a fechar, do lado sírio
também se cerram mas por razões geopolíticas e geoestratégicas.
Visualizamos o Líbano que é pequeno e as suas fronteiras estão fechadas, porque
como já se analisou, a sua capacidade, esgotou-se. Depois temos Israel, a Jordânia com as
fronteiras estão fechadas porque 30% da população já é refugiada. A norte temos os bravos
144

curdos e temos a Turquia que acabou de assinar um acordo com a União Europeia, e mesmo
assim tem quase 3 milhões de refugiados.
Por isto, começam a chegar à Europa. O Iraque está ainda em guerra, e tem mais
refugiados do que tem a União Europeia no seu conjunto.
Por sua vez, o Irão tem duas missões neste momento: 1) reposicionar-se em termos
geopolíticos a partir do acordo nuclear que assinou com os EUA, e portanto, longe de se
meter em grandes complicações. Este reposicionamento resitua-se no contexto da comunidade
internacional, e assim, não intervém grande coisa. Vai tentando e enquanto ninguém vê,
destruir algumas bases. Utiliza-se dessa lavagem de imagem, desse reposicionamento,
mantendo obviamente ligações com o regime de Bashar Al assad. Ainda recentemente nas
eleições para o Parlamento sírio no dia 13 de maio de 2016, não foi surpreendente que o
partido de Al Assad tivesse tido 80% dos votos (70% de participação dos territórios que estão
livres).
Se formos para a Península Arábica e nestes termos se falarmos da Arábia Saudita, ou
se falarmos dos Emirados Árabes Unidos – Qatar a título de exemplo, constatamos que são o
caminho, que traz as armas da França, da Inglaterra e dos EUA, e as faz chegar ao Estado
Islâmico e aos Russos.
Os refugiados por causa deste jogo duplo, começam a vir para a Europa, não têm mais
para onde ir, e portanto o conflito a ser de algum tipo é um conflito regional com ramificações
mundiais. É por isto que não há políticas comuns europeias a este nível. Os próprios países
europeus estão divididos nas suas vinculações regionais e nas opções que tomam, e neste
contexto é difícil encontrar alguma solução a não ser que haja vontade politica e uma posição
de força em relação a quem pode lidar com as causas e com as consequências.
E sobretudo não fazer como a França fez na semana dos atentados, atribuir o
equivalente à ordem do Infante ao príncipe saudita. Razão: deveu-se ao aumento significativo
da colaboração comercial entre os dois países nos últimos dois anos, tendo por base a eventual
venda de armamento e que permitiu equilibrar de certa forma, a balança comercial francesa.
Por outro lado e sob uma visão eleitoral, na Europa radica uma base social de apoio da
extrema-direita francesa, que é muito feita, pelas comunidades de imigrantes. Temos tido um
desvio do ponto de vista ideológico, de tal forma, que se aproxima cada vez mais das
cedências de uma direita conservadora mas que não é tradicionalmente xenófoba e racista
para tratar evitar o crescimento desta corrente, e assim esta cresce e a outra não. Destroem-se
no entanto outros setores de pensamento da sociedade.
Nos espaços de decisão à escala europeia, há uma ausência crónica da democracia, e
145

que é preciso resgatar. Não há nenhuma legitimidade na tomada de decisões, não há nenhuma
transparência. A política é um facto consumado, e os órgãos que têm mais poder, são cada vez
mais degenerências dos órgãos que compõem a arquitetura europeia. Falamos do Eurogrupo e
do Banco Central Europeu, nomeadamente quando este último atua fora do seu mandato, tem
muito mais poder do que o Parlamento ou Comissão Europeia. Isto é um mecanismo muito
perverso que cria dependência e assim quem está no poder não tem interesse em devolver esse
poder a quem deve estar, nas mãos das pessoas e dos cidadãos.
Em Portugal até ao inicio do ano de 2016, tudo o que foram reuniões no Conselho
Europeu em matéria de refugiados, até ao início do ano de 2016, em nada lucraram para que a
posição do Governo português tivesse sido dignificante na integra. Viu-se com muitos bons
olhos o facto a ideia de aceitar não só, o sistema de quotas para a entrada de refugiados em
Portugal, como triplica-las. Este país exige uma imensa quantidade de registos, não se
sabendo na plenitude até para o que servem.
Talvez para resolver esta burocracia e desbloquear a vinda destas pessoas, fosse
favorável passarmos a acolher os núcleos familiares completos, dado que não se podem trazer
as pessoas à força, sobretudo quando estas têm vínculos familiares e de conhecimento de
outros países. A questão da reunificação familiar é fundamental, ou se não for familiar, que
seja de comunidades de pertenças.
Muito menos burocracia e optar por uma lógica que seja distinta desta distribuição
numérica, e tentar construir uma lógica de agregados familiares onde as comunidades inteiras,
ou do que resta destas, tenha a possibilidade de escolha.
Concluindo, continuamos imbuídos numa lógica securitária, de não-aceitação e de
construção mais fácil e agilizada.
Esta tal europa dos valores, europa económica ou dos diretos humanos, neste
momento, não existe. Todos os seus pilares fundamentais podem ser postos em causa.
Apesar de todas as políticas regionais desenvolvidas o epicentro da crise migratória
situa-se no sul do Mediterrâneo e parece reunir o conjunto de fatores que a fará perdurar no
tempo: autocracias e Estados falhados, regimes opressivos e povos ansiosos de liberdade,
guerras religiosas e hostilidades tribais, opulência ofensiva e pobreza extrema, povos
dispersos e perseguições a esmo. Crime e impunidade. Armas. Muitas!
Fogem do Iraque, da Síria, da Líbia, do Afeganistão, do Iémen, de Marrocos, de Mali,
etc. Fogem à guerra, à injustiça e à pobreza. Explorados por quadrilhas traficantes, veem a sua
vida ameaçada até atingirem a cortina europeia da Itália, Grécia, Bulgária ou Espanha.
Chegados a um país europeu vêem-se confrontados com burocracias e costumes estranhos
146

bem como com o receio de parte da população dos países de receção que veem a sua
identidade cultural ameaçada e as finanças locais sobrecarregadas.
É neste cenário que a União Europeia deve tomar a iniciativa (autoproteora) de
persuadir os principais atores da cena política internacional, com diferentes e por vezes
divergentes interesses na região, para a emergência de uma intervenção conjunta no sentido
de pacificar e desenvolver o continente africano sob pena de agudização dos conflitos. E não
criar acordos absolutamente ilegítimos do ponto de vista da dignidade humana, com o fim
único de atender aos demais interesses legítimos dos lobbies políticos.

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149

TERRITÓRIO E NACIONALISMO, FRONTEIRAS E LIMITES: A


ATUAÇÃO ILIMITADA DO ESTADO

TERRITORY AND NATIONALISM, BORDERS AND BOUNDARIES:


THE UNLIMITED ROLE OF THE STATE

Mariana Martins Almeida1


Data de submissão: 20/10/2016
Data de aceite: 21/11/2016

Resumo

A presença atuante do Estado tanto no controle dos limites territoriais quanto nas
construções sociais de nacionalidades e identidades desperta curiosidade pela estratégia
assumida por esta instituição e pelas consequências dessa tentativa de unidade. A
consolidação do elemento territorial e a criação do sentimento de nacionalismo foram
ambos conduzidos pelo Estado, a fim de garantir sua legitimidade e o sucesso no
estabelecimento de um modelo a ser seguido. O processo de consolidação do atual
modelo e sua relação com a esfera doméstica e demais atores perpassou momentos
históricos, sofreu transformações, criações, invenções e sobreviveu a diferentes
contextos, porém sem perder a essência do Estado como agente decisivo.
Palavras-chave: Estado; fronteiras; limites; nacionalismo; identidade

Abstract
 
The active presence of the State in both boundaries control and the social constructions
of nationalities and identities arouses curiosity by the strategy adopted by this institution
and the consequences of this attempt of unity. The consolidation of the territorial
element and the creation of a sense of nationalism were both conducted by the State to
ensure the legitimacy of this institution. The consolidation process of the current model
and its relationship to the domestic sphere and other actors pervaded historical
moments, has been transformed, created, invented and survived different contexts, but
without losing the idea of the state as the decisive agent.
Key-words: State; borders; boundaries; nationalism; identity

1 INTRODUÇÃO
Em “Policing Borders, Producing Boundaries – The Governmentality of
Immigration in Dark Times”, Didier Fassin expõe a interdependência entre dois

                                                                                                                       
1
Mestranda e graduada em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
E-mail: almeida.marianamartins@gmail.com
150

fenômenos: borders (fronteiras) e boundaries (limites). A ‘antropologia das fronteiras’ e


a ‘sociologia dos limites’ são domínios de pesquisa que foram desenvolvidos em
campos distintos. O autor concebe o termo ‘fronteiras’ a partir de uma tradição
durkheimiana e weberiana, consistindo em limites territoriais que definem entidades
políticas (Estados2) e sujeitos legais (cidadãos), enquanto que ‘limites’ são entendidos
como construções sociais que estabelecem diferenças simbólicas (entre classe, gênero
ou raça) e produzem identidades (nacional, étnica ou comunidades culturais). O objetivo
do autor é articular ambos os fenômenos e entender as formas de governabilidade entre
eles. Fassin admite que esta distinção seja insumo de diversas pesquisas nas ciências
sociais, que problematizam a constituição de entidades a partir desses dois fenômenos.
Partindo do pressuposto de que a migração é a incorporação da articulação das
‘fronteiras’ e dos ‘limites’3 e que a combinação de ambos é indispensável para entendê-
la, propõe-se o exercício de problematizar a atuação do Estado nestas duas esferas.
Entende-se também, conforme alertado por Fassin, que o significado de ‘fronteiras’ e
‘limites’ se altera profundamente frente ao espaço e ao tempo, e que a tendência
investigada pelo autor é de um movimento de politização das fronteiras e de produção
destes limites, gerando impactos diretos em todas as esferas relacionadas ao fenômeno
da migração.
Considerando a complexidade de contribuir às ciências sociais, pela necessidade
de balizar a pesquisa em termos históricos, sociológicos, políticos, antropológicos,
sociais, entre outros, entende-se como primordial um diálogo interdisciplinar, reforçado
por movimentos também nas demais ciências sociais, que clamam pelo diálogo entre as
disciplinas que compartilham, por vezes, problemas de pesquisa análogos ou
complementares. A coexistência e a complementaridade das ‘fronteiras’ e dos ‘limites’
sob a ótica da atuação do Estado exigem a problematização do próprio conceito e da
própria conformação desta entidade, constituindo um exercício propício à
multidisciplinaridade.
No que tange ao papel do Estado frente às ‘fronteiras’, as constantes propostas
de definição do Estado demonstram seu valor como objeto de pesquisa e sua percepção
como sendo condicionada à realidade, a exemplo das definições propostas desde

                                                                                                                       
2
Uma possível definição de Estado, para ser compreendida ao longo do trabalho, é proposta por Charles
Tilly, que entende a coerção como elemento que caracteriza o Estado. Tilly o define como uma
organização que faz uso da coerção e exerce uma prioridade manifesta sobre todas as outras organizações
dentro de extensos territórios.
3
KEARNEY, 1991.
151

Maquiavel até definições mais atuais e ainda em desenvolvimento – que já contemplam


as novas dinâmicas inter, intra e supra-estatais dos cenários locais e globais, pautados
por novos enfoques e atores. O processo de construção do Estado também constitui um
domínio de pesquisa, visando a uma organização sistemática de elementos históricos
que constituem esta instituição, atrelada ao aspecto territorial. Neste sentido, serão
destacadas as visões de Philip Bobbitt e Kalevi Holsti, cujas pesquisas versam sobre a
construção do Estado num panorama regado a noções históricas, capazes de propor uma
organização da criação, desenvolvimento e estabelecimento desta instituição. Esta
construção é condicionada à disputa de forças regionais e globais por poder e soberania,
fazendo uso de seus pilares como motores da manutenção de sua própria existência. A
contribuição de Bobbitt versará sobre a incorporação do elemento territorial na
concepção do Estado, a partir de guerras e conflitos, se aproximando da noção de
‘fronteiras’ de Fassin. Já Holsti, trará o processo de formação do Estado a partir de
elementos além da guerra e coerção, enfatizando o protagonismo das idéias e dos mitos
na criação de identidades, como sendo artifícios que sustentaram a legitimidade do
Estado, se aproximando da noção de ‘limites’ de Fassin.
Ainda, mais especificamente no que diz respeito ao papel do Estado frente aos
‘limites’, a relação a ser explorada se dará sob o manto do nacionalismo, um dos pilares
da instituição estatal, também reconhecido como objeto de pesquisa das ciências sociais.
Para entender a definição de ‘limites’ proposta por Fassin – construções sociais que
estabelecem diferenças simbólicas (entre classe, gênero ou raça) e produzem
identidades (nacional, étnica ou comunidades culturais), destaca-se a curiosa exploração
do conceito de nacionalismo de Eric Hobsbawm e Benedict Anderson através das
noções de ‘tradições inventadas’ e ‘comunidades imaginadas’. Tais noções destacam a
artificialidade dos elementos que sustentam o nacionalismo, especialmente por se
pautarem sobre criações e invenções baseadas em sentimentos particulares com vistas a
invocar um sentimento coletivo. Esta artificialidade, construída através de elementos
culturais como símbolos, bandeiras, hinos e língua, permeia o próprio processo de
construção e conformação do Estado, por ser sua parte constituinte – e possui
conseqüências diretas no processo de socialização de comunidades distintas, por opor,
através de uma lógica binária, o ‘eu’ e o ‘outro’; o ‘eu’ e o ‘estrangeiro’.

2 CONCEBENDO E CONSTRUINDO O ESTADO ATRAVÉS DE


‘FRONTEIRAS’ E ‘LIMITES’
152

2.1 Estado, poder e território: O caráter fronteiriço do Estado

Fazendo uso da memória como um exercício de imersão através da prática social


de trazer o passado ao presente4, a Paz de Vestfália é comumente apreciada como um
marco histórico na conformação do modelo de Estado. Em “A Guerra e a Paz na
História Moderna”, Philip Bobbitt explora o processo de construção do Estado.
Essencialmente, três grandes modelos são depreendidos da proposta do autor, quais
sejam o Estado Principesco, o Estado Régio e o Estado Territorial. Através de eventos
históricos, que invocam não só a memória como também a construção social do que se
conformou como verdade histórica, Bobbitt retorna ao século XVI, no período anterior
à Paz de Vestfália (1648). O modelo de Estado conformado nesse período prévio à
eclosão da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) é idealizado como o ‘Estado
Principesco’, configurado pela disputa de poder entre instituições religiosas e lideranças
nobres, cujas dinâmicas de poder à época estavam atreladas a condados e principados –
caracterizados pela fragmentação social.
O enfraquecimento do escopo internacional da Igreja e do Sacro Império
Romano teve duas importantes consequências nesse processo. Primeiramente, auxiliou a
configuração da vigência do Estado Principesco, que coexistiu com um cenário de
constantes disputas religiosas, dinásticas, territoriais e comerciais que culminaram na
Guerra dos Trinta Anos. Os esforços na assinatura de tratados com vistas a findar os
conflitos, em 1648, é o que ficou consagrado como a Paz de Vestfália, que acarretou a
nova ‘modalidade’ de Estado – o Estado Régio. Em segundo lugar, há uma
consequência moral dessa queda da visão predominantemente católica, até então
compreendida como universalmente válida: o rompimento com a religião, claramente
percebido na transição do Estado Principesco para o Estado Régio (e reforçado pela Paz
de Vestfália) gerou consequências no que tange aos valores dominantes das sociedades.
Habermas5 pondera que a transição para sociedades plurais ocasiona dificuldades na
atribuição dos comandos morais, uma vez que estes não podem mais ser justificados do
ponto de vista de ‘Deus’. A transição para um mundo com pontos de vista plurais, com
deslocamento da autoridade das doutrinas religiosas exige um desenvolvimento e
construção de uma ‘nova’ moral – papel esse que coube à ciência e ao Estado, gerando
                                                                                                                       
4
RAMOS, 2010
5
The Inclusion of the Other, 1996
153

consequências diretas nas singularidades dos povos e sociedades, uma vez que o
estabelecimento de um padrão fortalecia uma lógica binária, entre o ‘eu’ e o ‘outro’; o
‘certo’ e o ‘errado’; o ‘eu’ e o ‘estrangeiro’.
Naturalmente, essas ponderações datadas e precisas são um exercício de
concentrar dados históricos numa espécie de compilação de eventos, a fim de explicar
determinado processo. Entende-se que essas séries de eventos foram processos
sucessivos, complexos, com envolvimentos de diversas camadas da sociedade. Os
esforços em compilar esses eventos e reproduzir suas grandes conseqüências devem ser
entendidos como uma tentativa de, a partir da organização dos dados, interpretar os
principais elementos e atores que contribuíram nas transições que acarretaram a
formação dessa instituição concebida como Estado. Isto posto, a partir da exposição de
Bobbitt, considera-se que a Paz de Vestfália ‘inaugura’ uma modalidade de Estado
denominada pelo autor como Estado Régio.
O Estado Régio, concebido basicamente após a Paz de Vestfália, compreende
um modelo voltado à alimentação de seu próprio poder. Com o rompimento com a
religião (como forma de exercício de poder direto), dá-se a expansão das fontes de
legitimidade constitucional do Estado, que eram baseadas antes apenas na herança ou na
conquista. As principais características dessa modalidade seriam a existência de um
exército permanente; a centralização da burocracia; o estabelecimento de um sistema de
tributação regular; a conformação de políticas de Estado; a atribuição da liderança da
Igreja ao rei – significando também uma submissão do povo à religião deste rei. Essa
evolução, frente ao modelo de Estado Principesco, demonstra mudanças não só nas
configurações de poder, mas também na centralização de uma instituição já poderosa,
em vias de englobar o território como elemento central (terceiro modelo de Estado),
como bem defendido pelo autor. Essas novas configurações de poder exigiam
legitimidade por parte da população, sendo esta uma das fontes de poder do Estado. Aos
poucos se percebeu que para angariar essa legitimidade era necessário um engajamento
sólido, forte e uníssono, capaz de defender não só o direito de governar de seu líder,
mas também defender seu território. A maneira com que os Estados encontraram para
conseguir esse engajamento será problematizada mais adiante. Por ora, destaca-se
apenas a necessidade de adicionar a este processo de transição a busca por legitimidade
das ações do Estado através do engajamento da população.
A terceira estrutura de modelo de Estado de Bobbitt vem a ser o Estado
Territorial, modelo que mais se aproxima da configuração do sistema de Estados
154

atualmente. Suas principais premissas são a indivisibilidade; a preocupação constante


com fronteiras (à época, com destaque à importância das questões comerciais, como
base tributária e definidora da legitimidade estatal); a dependência em vigorosos
sistemas comerciais através de uma sociedade de Estados ativa e engajada; e, por fim, o
objetivo de cunho territorial e estadista, opondo-se aos objetivos dinásticos, pessoais e
religiosos dos modelos anteriores – cujas discórdias eram em grande parte motivadas
também pelo direito à sucessão.
De fato, Bobbitt se propõe a discorrer acerca dos processos de formação dos
Estados (europeus), e apresenta abordagens que contemplam o papel da guerra na
conquista de territórios, ou seja, na concepção dos Estados. Para Bobbitt, a guerra não é
uma patologia: ela é a condição natural do Estado. Sua exposição o leva a fazer parte de
um debate – que também inclui outros pesquisadores, que põe em pauta se foi o Estado
territorial que possibilitou um exército profissional ou se a mudança nos meios de
guerra (acarretada por esses exércitos) que fizeram do Estado territorial uma
necessidade. Entender o processo de evolução da construção do Estado, que levou à
consolidação de um modelo universalmente difundido, requer entender não somente o
‘que’ (através de interpretações analíticas e narrativas das consequências desse
processo), mas também o ‘como’ (através das estratégias que o Estado fez uso para se
garantir como um projeto nacional, justificando a legitimidade de suas ações). Bobbitt
nos permitiu entender o ‘que’, e Holsti nos permitirá entender, em parte, o ‘como’.

2.2 Estado, cidadania e nacionalismo: O caráter simbólico e identitário do Estado

O processo de formação do Estado analisado sob a ótica do conflito é explicativo


no sentido de entender a mudança nas próprias dinâmicas de guerra. Assim como o
Estado sofreu transformações e evoluções ao longo dos séculos, a natureza e as
dinâmicas dos conflitos também passaram por transformações. Holsti, em “The State,
the War and the State of War” explora um termo cunhado como ‘guerras do terceiro
tipo’, defendendo que além dos motivos tradicionais de guerra, tais como a busca pela
hegemonia ou pela balança de poder entre os Estados, o cenário do pós-Guerra Fria é
pautado por conflitos e guerras entre os povos.
Holsti reafirma a tendência refletida pela obra de Bobbitt, qual seja a
proliferação de pesquisas relacionadas à formação dos Estados europeus, conformando
uma vasta literatura que demonstra a complexidade, a longa duração e as
155

particularidades desse processo. O fato do sistema de Estados europeus conformar


apenas sua vertente política complexa, dedicada às guerras e à burocracia, reforça a
presença do conflito nas análises – especialmente ao se atribuir à guerra o nascimento e
o esfacelamento de Estados. Conforme exposto por Bobbitt, a concepção de território
como elemento estatal é recente, datando entre os séculos XVII e XVIII, com os
Estados Régio e Territorial. Para Holsti, ao longo da história humana houve uma fluidez
em relação às jurisdições políticas do Estado, tendo sido necessárias demarcações
formais através de tratados devido à centralização do poder (também refletidas pelas
conformações de Estado Régio e Territorial), de modo que somente no século XIX as
fronteiras dos Estados europeus encontravam-se bem definidas em termos de jurisdição.
Nesse sentido, o state-making, ou seja, o processo de construção do Estado foi uma
empreitada extensa, complexa e, por vezes, uma reação em cadeia – e pode ser
considerado recente. De fato, os cientistas que se debruçaram nas pesquisas de formação
do Estado europeu enfatizavam elementos como guerras, coerção, comunicação e
línguas. A crítica de Holsti surge, portanto, em relação à negligência dessas abordagens
em não considerar elementos como as idéias e os mitos, que sustentam a legitimidade
das ordens políticas e as comunidades em que estas ordens se baseiam:
Historicamente, lideres de comunidades políticas basearam seu direito
de governar em combinações de religião (a exemplo da doutrina do
direito divino nas monarquias), virtudes, herança, conquistas
(particularmente o heroísmo na guerra), raça, linhagem, e como mitos
para justificar o imperialismo norte-americano e europeu, as ideias
paternalistas das ‘missões civilizatórias’. (HOLSTI, 1996, p. 45,
tradução nossa)

O exercício das regras do Estado passou a ser cada vez mais questionado,
constituindo a hipótese e o desafio de Holsti para o próximo século: o papel da
cidadania e da nacionalidade em definir uma comunidade política e seu direito sobre
ela. Esse papel, de imediato, suscita questões como a legitimidade e autoridade da
sociedade em ser considerada um membro da ordem política. Concomitante a essa
evolução no processo de formação dos Estados, destaca-se a emergência dos teóricos
contratualistas, como bem destacados por Holsti, que trazem elementos como o
individualismo e a cidadania (através do Contrato Social firmado entre o indivíduo e o
Estado). Ainda assim, o cidadão não se torna protagonista nem sujeito, mas sim apenas
parte de uma estrutura hierarquizada – passivo e alheio às definições que tangem as
questões relacionadas aos ‘limites’. A concepção de cidadania, neste contexto de
156

formação do Estado, é definida em termos de residência vinculada às fronteiras


territoriais do Estado – e não em termos de nacionalismo, religião, língua ou etnia. Ou
seja, a interpretação de que a cidadania está mais vinculada a aspectos de direitos
políticos, torna os aspectos econômicos, religiosos, familiares, lingüísticos (e outras
questões que possam ser interpretadas com um cunho pessoal), pertencentes à esfera
individual, e estariam além do alcance e da responsabilidade do Estado. Porém, neste
processo de formação do Estado com base na cidadania e na individualidade, percebe-se
a falta de algum elemento que forneça um laço mais forte que, nas palavras de Holsti,
forneça a ‘cola’ emocional e sentimental nesta relação entre cidadania, individualidade e
Estado: o que nos leva ao nacionalismo.
A interpretação do nacionalismo como um sentimento que une os membros do
Estado é considerada um fenômeno recente. Holsti cita as elites da Revolução Francesa
como uma das primeiras manifestações políticas cujo cunho nacionalista tenha feito o
papel de ‘cola’ para permitir ao Estado que firme as bases de sua comunidade. Para o
autor, o nacionalismo só se tornou um sentimento enraizador ao longo do século XIX,
pois antes disso as manifestações de identificação se davam, principalmente, através da
religião – não havia noção de pertencimento, nem consciência de ser membro de uma
nação, no sentido moderno que concebemos. Se havia algum tipo de identidade, à
época, esta se dava numa esfera bastante local e atrelada às particularidades e lideranças
locais. Neste sentido, o caso francês é emblemático: todas as adversidades, obstáculos,
dificuldades, forças inertes e contrapontos que havia para atingir uma ordem apenas
colaboravam para um ambiente desorganizado, confuso, impotente, configurando um
Estado que até o século XIX era uma expressão territorial geográfica (‘fronteiras’), mas
não uma nação (‘limites’): “O indicador chave de uma nação (uma língua comum) foi
uma criação do Estado francês entre 1536 (quando Francis I a declarou como língua
oficial) e hoje” (HOLSTI, 1996, p. 49, tradução nossa). A própria noção de
pertencimento do campesinato francês à ‘nação francesa’ só ocorreu em meados do
século XIX, e esta noção de pertencimento baseada em outros elementos (que não o
nacionalismo) se espalha em outras localidades:
Em seu estudo baseado na auto-identificação entre 1840 e 1950,
alguns resultados surpreendentes aparecem. Luxemburgueses, por
exemplo, se auto-identificaram como alemães durante todo o século
XIX. Ucranianos não faziam ideia do que Ucrânia significava: eles se
auto-identificavam como rutenos ou russianos, e não sem frequência
como russos ou poloneses. Macedônia não existia como uma
comunidade social e sentimental. Imigrantes do Império Austro-
157

Húngaro se auto-identificavam em termos de regiões, vales, cidades, e


não como algum tipo de ‘nacionalidade’. (HOLSTI, 1996, p. 50,
tradução nossa)

A ‘nação’, como um fenômeno enraizador seria, portanto, bastante recente na


Europa. Holsti destaca que, de fato, se olharmos para as elites, elas conformavam um
movimento bastante uniforme, e foram responsáveis por padronizar a educação, a língua
e, ao promover mitos históricos, através de uma variedade de políticas (incluindo
medidas coercitivas), visava assimilar diversos grupos. “Os Estados europeus e várias
elites criaram sentimentos. Eles não eram primordiais nem originais. Nacionalismo é
um processo, e não um evento ou fato histórico de um dado tempo e local” (HOLSTI,
1996, p. 50, tradução nossa). A figura dos líderes políticos e determinados movimentos
manipularam símbolos, inventaram doutrinas e se suportaram em sentimentos
enraizados para sustentar seus objetivos, que iam desde o Estado de bem-estar social até
justificativas de guerra. Os objetivos do Estado não teriam se sustentado sem um apelo
popular sentimental e uma mobilização patriótica, substituindo o ‘localismo’ por uma
noção de comunidade nacional, o nacionalismo – representando a ideia de ‘limites’, de
Fassin.
Ao definir nacionalismo como uma série de doutrinas, bem como expressões de
sentimentos e identidade, Holsti destaca que a manifestação desse termo varia através
do espaço e do tempo. A partir da definição do termo ‘nacionalismo’ é possível
depreender algumas problematizações, sendo as principais delas o questionamento de
quem constitui a nação e, a partir desta resposta, o que dizer e fazer a respeito de quem
não constitui. Refletir a partir desta problematização levanta uma série de possibilidades
de aproximação e distanciamento. Por exemplo, ao mesmo tempo em que inclui, a
língua tem o poder de excluir, facilmente conformando uma lógica binária entre o ‘eu’ e
o ‘outro’. Outros elementos como etnia, cultura e religião (ou uma combinação desses
elementos, como sugere Holsti), se juntam à língua para justificar uma comunidade
política, fornecendo identidades e diferenças simbólicas entre estas comunidades. Outro
ponto importante de ser destacado diz respeito, ainda, às conseqüências desse binarismo
que se estabelece com o nacionalismo. Ao olhar para o Estado civil, Holsti destaca que
os direitos são garantidos ao indivíduo, e não a grupos. Já os preceitos do nacionalismo,
com sua lógica binária, e passível de ser excludente, ao conformar a base da
comunidade política, gera dúvidas quanto à sua capacidade de garantir direitos iguais,
especialmente no que tange ao ‘outro’. Ao interpretar o outro como sendo um reflexo de
158

alguma minoria (étnica, religiosa, cultural), percebe-se a incompatibilidade de


convivência pacífica e justa entre as minorias nacionais e o Estado nacional.
Apesar de a obra ser datada de 1996, o cenário previsto por Holsti para as
conseqüências da exclusão política das minorias ainda se aproxima da realidade atual,
vivenciada por indivíduos e Estados do sistema internacional – especialmente se
pensarmos sob a lógica das ‘fronteiras’ e dos ‘limites’ e em como o Estado é atuante em
ambas. Nesse sentido, esse sentimento de exclusão (refletida através da ausência de
noção de pertencimento ao projeto nacionalista) levaria a processos que desafiariam a
legitimidade do Estado, buscando respostas à repressão, como a secessão ou até mesmo
o genocídio – casos comuns na realidade atual. Contudo, as respostas também podem
partir do Estado. Ao citar a Iugoslávia, Holsti busca demonstrar a conveniência de se
admitir uma nacionalidade ora singular, ora plural, através do discurso de uma liderança
política que intitulava os iugoslavos como um só povo, a despeito de sua composição
sérvia, croata e eslovena. Com isto, outra brilhante conclusão que ainda se aplica aos
desafios atuais diz respeito à percepção de que o cidadão é constante, enquanto um
nacional é variável. A reflexão vem desse embasamento do Estado, como uma unidade
territorial, numa questão variável (nacionalismo), muito mais do que numa questão
constante, permanente (cidadania). A utilização do nacionalismo como ferramenta de
garantia do exercício dos direitos do Estado foi controversa, e de acordo com Holsti,
trouxe mais guerras do que paz. O autor destaca casos como a França e os Estados
Unidos, cujo Estado se embasou mais em princípios de cidadania do que nacionalismo –
entendendo-se por cidadania um conceito mais vinculado aos direitos civis (individuais)
do que às proximidades étnicas, linguísticas ou religiosas, que são as bases do
sentimento nacionalista.

3 A CONSTRUÇÃO ARTICIFIAL DO NACIONALISMO

3.1 As ‘tradições inventadas’ de Hobsbawm

Diferentemente das Relações Internacionais, cuja origem teórica se atribui à


busca de respostas e tentativas de entender as dinâmicas conflitivas entre os Estados (no
contexto do sangrento século XX), a Antropologia se propõe como uma ciência
investigativa do indivíduo, empírica ou teoricamente, cujas bases remontam a séculos
anteriores. Haja vista seu propósito e objetivo, o conflito não possuía papel central na
159

disciplina, até a partir da década de 1940, quando surge a perspectiva de considerar o


conflito como agregador de valor às análises e também ao entendimento do conflito
como parte da sociedade.
Esse movimento de valorizar o conflito influenciou pesquisas no sentido de
investigar as noções de nacionalismo a partir da hipótese de artificialidades na
construção e no estabelecimento dessas noções. A conseqüente lógica binária de
pertencimento ou não àquele modelo pré-estabelecido é uma realidade ainda vivenciada
nos dias de hoje, ainda que numa sociedade globalizada, que pressupõe interações
crescentemente complexas, mas que assume prerrogativas de pertencimento local com
base em um sentimento – artificialmente criado. Nas décadas de 1970 e 1980 surgiram
diversas pesquisas convergentes, buscando investigar a construção social dos elementos
simbólicos e culturais que compõem a sociedade, e a artificialidade com que sua criação
foi concebida, visando à legitimação das ações das elites ou do Estado, a exemplo dos
trabalhos “Inventing Society”, de Eric Wolf (1988); “The Symbolic Construction of
Community”, de Anthony Cohen (1985); “The Invention of Culture”, de Roy Wagner
(1975); “Imagined Communities” (1983), de Benedict Anderson e “The Invention of
Tradition” (1983), de Eric Hobsbawm. A fim de expor a artificialmente construída
noção de pertencimento, baseada em elementos atrelados à cultura e à tradição,
Hobsbawm desconstrói a visão do nacionalismo como algo natural, posicionamento que
converge com a contribuição de Holsti:
Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas,
normalmente reguladas por regras tática ou abertamente aceitas; tais
práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores
e normas de comportamento através da repetição, o que implica,
automaticamente, uma continuidade em relação ao passado.
(HOBSBAWM, 1997, p. 9)

Hobsbawm defende que a relação estabelecida com o passado, através das


tradições, é caracterizada pela artificialidade, e a garantia da manutenção dessa tradição
é o exercício de repetição. A necessidade de estabelecer uma continuidade com o
passado é a ferramenta para gerar o sentimentalismo necessário que desenvolverá a
noção de pertencimento, alimentada por Hobsbawm ao demonstrar que “muitas vezes,
‘tradições’ que parecem ou são consideradas antigas, são bastante recentes, quando não
são inventadas” (HOBSBAWM, 1997, p. 9). As sociedades, como também já retratado
por Bobbitt e Holsti, eram pautadas por conflitos e disputas, o que dificultava uma
aplicação ‘universal’ das tradições. Mas, haja vista que era necessário criar um laço
160

(mais especificamente uma ‘cola’, conforme exposto por Holsti) entre o Estado e o
indivíduo, o meio o qual estes pesquisadores atribuem esse engajamento é através do
sentimento de nacionalismo pautado na cultura e nas tradições, que promovem a noção
de pertencimento.
Isto posto, Hobsbawm diferencia as ‘práticas antigas’ das ‘práticas inventadas’.
As ‘antigas’ seriam caracterizadas por medidas específicas e coercitivas, enquanto as
‘inventadas’ seriam mais gerais, vagas, atreladas a sentimentos (para garantir um maior
alcance). A criação de elementos como bandeiras, hinos, festas folclóricas e a tentativa
de uniformização da língua constituem iniciativas que proclamam uma identidade e uma
soberania, capazes de revelar o passado, pensamento e cultura de uma nação –
contribuindo para a explicitação das diferenças simbólicas e identitárias das sociedades,
contribuindo para o fortalecimento do projeto nacionalista e fortalecendo a lógica
binária do ‘eu’ e do ‘outro’.

3.2 As ‘comunidades imaginadas’ de Anderson

A contribuição de Anderson acerca do nacionalismo parte da investigação de


como o nacionalismo induziu a noção de pertencimento através das ‘comunidades
imaginadas’. Seu trabalho se situa em meio à referida proliferação de pesquisas que
estudam não só a artificialidade, mas também investigam outros elementos que
compõem as origens da nação e do nacionalismo. Um pouco mais profundo do que a
artificialidade dos símbolos e tradições (foco de Hobsbawm), e como uma crítica de
como manifestações anteriores6 fracassaram em definir uma teoria acerca do
nacionalismo, Anderson se aproxima mais de uma tentativa de entender a complexidade
e a construção do nacionalismo, a partir de uma definição própria, e problematiza os
elementos que compõem essa definição. O objetivo de sua obra é fornecer uma
interpretação mais satisfatória capaz de entender a ‘anomalia’ do nacionalismo, na qual
a artificialidade é um dos elementos.
Para Anderson, o conceito de nacionalismo se baseia fortemente em uma
legitimidade emocional, difícil de definir cientificamente – o que justifica a ausência de
teorias que expliquem o nacionalismo. A nacionalidade (ou a qualidade da nação) seria
um artefato cultural de uma classe particular. O autor se indaga profundamente acerca
das transformações deste significado ao longo do tempo, concluindo que a criação desse

                                                                                                                       
6
Nesse contexto, Anderson faz uma crítica mais específica ao Marxismo.
161

artefato foi uma reação a forças históricas que, uma vez criadas, puderam ser
suplantadas em outros contextos e terrenos sociais. A definição de nação proposta pelo
autor seria, portanto, “uma comunidade política imaginada como inerentemente limitada
e soberana” (ANDERSON, 1989, p. 23, tradução nossa). A partir dessa definição,
Anderson explora todos os pontos mencionados (comunidade, imaginada, limitada e
soberana), a fim de entender o fenômeno.
Imaginada porque os membros desta nação, ainda que seja pequena, não
conheceram nem conhecem todos os seus compatriotas, mas tem uma noção de
comunhão e compartilham lembranças (fabricadas, falsas, criadas – ou seja, artificiais),
apesar da ausência de contato direto ou proximidade não só com os membros da
comunidade, mas também com a realidade; limitada porque possuem fronteiras que a
separa de outra nação; soberana porque o conceito nasceu em uma época de
substituição do sistema governamental monárquico para o Estado soberano, sendo o
princípio da soberania um sinônimo de garantia da liberdade buscada; por fim, se
imagina como comunidade porque independente das diferenças, a nação deve se
conceber com um companheirismo profundo, como uma fraternidade – que justificaria,
como bem destaca o autor, o fato de milhões de pessoas matarem e estarem dispostas a
morrer por imaginações tão limitadas.
Anderson aprofunda a origem dessa construção do nacionalismo através de uma
série de processos atrelados à cultura, ao patriotismo, ao imperialismo, à origem da
consciência nacional e à função da memória e do esquecimento. No que diz respeito à
origem da consciência nacional, sua instrumentalização deu-se através da comunicação,
e foi viabilizada através da criação de línguas comuns, atreladas aos processos de
desenvolvimento industrial e dos sistemas de produção em transformação. A condução
desse processo teve participação do Estado (como anteriormente mencionado por
Holsti) e das elites industriais que, juntamente à mídia, como bem destaca o autor,
conformaram as ‘línguas impressas’, que criaram a base da consciência nacional.
A natureza desse processo carrega consigo um caráter de projeto nacional, uma
vez que se dá através da ação de diversas camadas da sociedade, com um foco principal,
e constrói um dos principais pilares que atualmente conformam uma nação: a língua.
Uma vez padronizada e com uma amplitude angariada nos quatro cantos do território
nacional (sendo o próprio território outra etapa do projeto nacional, aceita como pilar da
nação através de mudanças e transformações na própria conformação do Estado), a
língua torna-se um meio comum para difusão de ideias, valores e compartilhamento de
162

informações, servindo a uma infinidade de propósitos – inclusive de exclusão e


distanciamento.
Ter a sociedade como objeto de pesquisa requer socialização com a prática,
exercício que se dá de distintas maneiras entre as disciplinas das ciências sociais. O
contato com o passado é indispensável para entender o presente e tentar projetar o
futuro. Em geral, fazer uso do passado é corriqueiro, pois fornece o embasamento
necessário para a pesquisa. Neste sentido, outro domínio de pesquisa na Antropologia
versa sobre a memória, e consequentemente, sobre o esquecimento. Porém, nem sempre
a memória foi concebida como um tema na Antropologia. Por muitas décadas, as
definições clássicas de cultura não permitiam à disciplina enxergar a memória como
objeto de estudo e condição prática da etnografia (FABIAN, 2010). Foi num contexto
de crise pós-colonial que, de acordo com Fabian, os antropólogos tiveram que
reconhecer na cultura popular (e suas mais variadas manifestações) a importância da
memória e da recordação como peças fundamentais para entender as práticas sociais e
culturais. Considerando que atos de lembrar e esquecer são processos (RAMOS, 2010)
o elemento crucial que traz à tona a menção da memória nessa digressão acerca das
comunidades imaginadas de Anderson é a memória como a arte de transmitir7.
Neste sentido, a exploração de Anderson acerca da memória e do esquecimento
como partes essenciais do projeto nacional demonstra a conveniência da utilização da
memória ora como uma ferramenta que sustenta tradições e culturas (colaborando como
insumos para a criação de identidades e do sentimento do nacionalismo) ora como
ferramenta que condiciona o esquecimento (mantendo vivo somente o que for
convergente ao interesse do projeto atual). Ou seja, o autor considera esse laço entre
memória e esquecimento como uma campanha historiográfica sistemática, lançada pelo
Estado a fim de ora esquecer, ora recordar, conformando um arcabouço sentimental e
tradicional na construção das genealogias nacionais.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

                                                                                                                       
7
Com o objetivo de atualizar o ‘estado da arte’ acerca das diferentes perspectivas no campo de estudos da
memória e do esquecimento na Antropologia, Ramos faz uso da obra de Paul Connerton (1989), que parte
da premissa de interpretar a memória como a vivência e o conhecimento do presente em relação ao
passado, sustentada através do tempo. Ao interpretar a memória como a arte de transmitir, Connerton
coloca que “a persistência de imagens e conhecimentos do passado, imprescindíveis para nosso
desenvolvimento social, são comunicados através de práticas mais ou menos ritualísticas, e incorporados
como hábitos em nossas ações cotidianas”.
163

Com mais força no core da agenda internacional, a questão da migração se


manifesta de diversas formas. Para os Estados, toma o espaço especialmente das
políticas públicas e das políticas de segurança, através da manutenção de seus ‘limites
territoriais a fim de garantir sua definição como entidade política’; para a sociedade,
requer o exercício de empatia e integração, e promove curiosidade em relação a este
‘outro’ (essas percepções podem se manifestar de diversas formas, como repulsa,
aceitação, indiferença); para as organizações não governamentais, os deslocamentos
provocam demanda direta de trabalho na alocação, reassentamento, fornecimento de
suprimentos de necessidade básica e ações burocráticas e operacionais para administrar
estes deslocamentos – de maneira reativa; para as instituições, a convivência entre as
‘construções sociais que estabelecem diferenças simbólicas (entre classe, gênero ou
raça) e produzem identidades (nacional, étnica ou comunidades culturais)’ provoca uma
necessidade de revisão das normas vigentes, que ditam os valores morais universais a
uma sociedade essencialmente plural.
A complexidade da questão da migração pode ser estudada sob a ótica de
quaisquer ciências sociais. A problematização é interminável e cheia de possibilidades e
intersecções. Contudo, o objetivo deste presente trabalho foi avaliar o papel do Estado
em dois fenômenos classificados e definidos por Fassin, quais sejam as ‘fronteiras’ e os
‘limites’. A percepção da presença atuante do Estado em ambos foi a inspiração e a
motivação inicial, e se confirmou ao longo do trabalho. Em relação às ‘fronteiras’,
entende-se o território como um objetivo e uma consequência da atuação do Estado,
especialmente considerando seu processo de construção e seus interesses como
instituição. Independente da teoria a ser utilizada, há uma concepção de alcance
universal que une o conceito de Estado com território, a partir de uma lógica estimulada
inclusive a partir da própria definição de Estado, atrelada a aspectos geográficos. Já em
relação aos ‘limites’, o papel do Estado ganha um espaço mais plural e controverso –
especialmente se entendermos ‘limites’ como o meio para conquistar, garantir ou
manter as ‘fronteiras’, hipótese que se pretendeu e se confirmou neste trabalho.
A atuação do Estado no projeto nacionalista e sua conseqüente busca por
padronização da sociedade (através da instituição artificial de elementos e símbolos que
se traduzem em tradições e culturas) gerou constrangimentos, repressões e limitações no
que diz respeito à pluralidade natural das sociedades – haja vista a interpretação de
Holsti da ‘nação’ como sendo um fenômeno recente e artificialmente criado para
garantir o sentimento de unidade e enraizamento, se contrapondo às noções que
164

concebem essa noção de pertencimento como algo natural e voluntário, atrelado a


outros elementos.
Toda a produção destacada acerca da invenção da cultura e das tradições
provocou uma curiosidade para entender esse fenômeno, especialmente frente às
conseqüências que essa construção social e política do nacionalismo traz para a esfera
da pluralidade da sociedade (característica da migração). Entender os objetivos
estratégicos do Estado e o uso (ou melhor, invenção) da cultura, tradições e identidades
como ferramenta de legitimidade de suas ações e coesão social é o que se buscou
mostrar através das contribuições de Bobbitt, Holsti, Hobsbawm e Anderson numa
leitura do papel do Estado sob a ótica das ‘fronteiras’ e dos ‘limites’. A atuação de
novos atores (sociedade civil, organizações não-governamentais, instituições), além do
Estado, olhando para um cenário mais contemporâneo, ora desafia, ora fortalece o
Estado como instituição de controle. Desafia quando deixa clara a necessidade de
repensar o regime vigente de Direitos Humanos, que se mostra hoje um reflexo dos
Estados ocidentais (os mesmos que ‘exportaram’ seus modelos de Estado-nação para os
demais continentes); fortalece quando, ao buscar autonomia e legitimidade, esses novos
atores provocam a securitização de questões sociais e humanitárias, a exemplo da
crescente governamentalidade das questões de migração. Ou seja, em ambas as esferas o
Estado segue atuante, com estratégias e artifícios próprios, a fim de se manter ativo na
politização das ‘fronteiras’ e na produção dos ‘limites’. Por fim, quase trinta anos
depois, a percepção de Anderson ainda se faz atual: “resulta uma consolação
melancólica observar que a história parece estar confirmando a ‘lógica’ de comunidades
imaginadas melhor que seu próprio autor”.

REFERÊNCIAS

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Memory and Forgetting. In Imagined Communities: Reflections on the origin and
spread of nationalism. London, 1983

BOBBIT, Philip. A Guerra e a Paz na História Moderna. Rio de Janeiro: Campus,


2003.

COHEN, Anthony. The Symbolic Construction of Community. London, Routledge,


pp. 97-118, 1985.
165

FABIAN, Johannes. “Memórias da memória: uma história antropológica”. In: REIS,


Daniel Aarão et al., Tradições e modernidades, Rio de Janeiro: Editora FGV, pp. 13-
28, 2010.

FASSIN, Didier. Policing Borders, Producing Boundaries. The Governmentality of


Immigration in Dark Times. Annual Review of Anthropology. Vol. 40, p. 213-226,
Out 2011.

HOLSTI, Kalevi J. The State, War, and the State of War. Cambridge, UK:
Cambridge University Press, 1996.

HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A Invenção das tradições. Rio de Janeiro:


Editora Paz e Terra, 1997.

KEARNEY, Michael. Borders and boundaries of state and self at the end of empire. J.
Hist. Soc. pp. 52-74, 1991.

RAMOS, Ana M. Perspectivas antropológicas sobre la memoria en contextos de


diversidad y desigualdade. Alteridades, 21 (42): pp. 131-148, 2010.

TILLY, Charles. Coercion, Capital and European States, AD 990 – 1990. Cambridge
and Oxford: Basil Blackwell, 1990.

WAGNER, Roy. A Invenção da Sociedade. In A Invenção da Cultura. São Paulo:


Cosac Naify, pp. 165-202, 2010.

WOLF, Eric. Inventando a Sociedade. In: Feldman-Bianco, B. e Ribeiro, G. L..


Antropologia e Poder. Contribuições de Eric Wolf. Brasília, EdUnb, 2003.
166

THE DIGITAL SINGLE MARKET (DSM) AS AN ALTERNATIVE TO


ENHANCE THE EUROPEAN INTEGRATION PROCESS
 

O MERCADO DIGITAL ÚNICO (MDU) COMO ALTERNATIVA PARA


REFORÇAR O PROCESSO DE INTEGRAÇÃO EUROPEU

Lucas Baggi de Mendonça Lauria1

Saphíria Aoi Shimizu2

Data de submissão: 05/10/2016


Data de aceite: 21/11/2016.

Abstract
This paper is concerned with one of the most topical issues in contemporary European integration
framework: how to enhance it in order to foster a greater economic growth? This article will
present a brief assessment of the current European integration model, evaluating its greatest
problems and the commonly suggested solutions to address them. As results, it was found that the
widely suggested policies, such as reduction in public expenditure linked with a pension reform,
and an increase in contributions from members are not enough to mitigate EU’s challenges. The
Digital Single Market, as a multifaceted policy, seems to be a third way to enhance the European
Integration process, making it more deliverable and appealing to the population.
Keywords: Digital single Market; European integration; economic growth.

Resumo
O presente artigo preocupa-se com um dos principais tópicos no quadro de integração europeu
contemporâneo: como melhorá-lo para fomentar um maior crescimento econômico? Esse
trabalho irá apresentar uma breve avaliação do atual modelo de integração europeu, analisando
seus maiores problemas e opções comumente sugeridas para solucioná-los. Como resultado,
concluiu-se que as políticas amplamente sugeridas, como a redução dos gastos públicos ligada à
reforma previdenciária e o aumento das contribuições dos membros não são suficientes para
mitigar os desafios da União Europeia. O Mercado Digital Único, como uma política

                                                                                                                       
1
Graduando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: lucasbaggi@gmail.com
2
Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: saphiria.shimizu@gmail.com  
167

multifacetada, parece ser uma terceira via para melhorar o processo de integração europeu,
tornando-o mais palpável e acessível à população.
Palavras-chave: Mercado Digital Único; integração europeia; crescimento econômico

1 INTRODUCTION

Nowadays, Europe is going through a fragile economic and political moment. Challenges
as the Greek financial crisis and Brexit make European Union rethink its policies. Knowing that
the implications of those challenges will certainly affect the European integration process, this
paper is concerned with one of the most relevant issues in contemporary European integration
framework: how to enhance it in order to foster a greater economic growth? The current scenario
makes clear that the answer to this question is not easy to find. In the face of such question, this
article will present a brief evaluation of the current European integration model, its greatest
problems and the commonly suggested solutions to address them.

This study was triggered by the observation that the widely suggested reforms to
overcome the European integration challenges, such as the reduction of public expenditures, or
the increase in contributions by other member-states, have not been enough to create a
sustainable economic stability. Hence, this analysis aims to present an alternative public policy as
a possible solution to mitigate those challenges, the digital single market (DSM).

This paper is divided in two major sections. The first one addresses a historical
perspective regarding the European Union integration process. It addresses the two most
suggested economic policies since the first financial crisis suffered by the EU former countries,
when they were to establish it in 1991 and 1992, during the Maastricht concertations. The
commonly suggested policies presented in this section are all contractionists, such as public
expenditure reduction, pension and labor taxes reform and increase in contributions from EU
members, since they are more divulged as being the most appropriate economic package to be
implemented to mitigate the European financial crisis. The second, in turn, attempts to show that
contractionist measures are not enough to promote a sustainable economic stability, since fiscal
matters are not everything and the public opinion matters. It addresses the DSM as a great
alternative for Europe to mitigate its crisis.

Supposedly, the DSM would boost European competitiveness and promote long-term
growth rates. As a multifaceted policy, it is supposed to help EU to address a wider range of
168

socioeconomic problems, including long-term issues such as problems related to (i) efficiency of
labor markets, (ii) improvement of welfare public policies, which have been hit by the debt
burden and long-term spending pressures, and (iii) demographics control. As a last brief
consideration regarding the DSM, perhaps the most important one, the section presents that the
DSM is expected to transform the European integration in a more deliverable and appeal process
to the population, making them understand the importance of regional integration in its most
everyday actions. If only contractionist are not enough, why and when those sort of policies
started to be suggested?

2 EUROPEAN INTEGRATION AND COMMON SUGGESTED POLICIES

European integration formally began on April 18, 1951, as the European Coal and Steel
Community (ECSC) was created by the signature of the Treaty of Paris (EUR-LEX, 2010).
Composed by Luxembourg, West Germany, Belgium, France, Netherlands and Italy, the
Community’s main goal was to promote free circulation of coal, steel and also free access to
sources of production among its members. Its creation was motivated by the desire of
establishing peace right in the aftermath of the Second World War II. As the two raw materials
were at the basis of the French and German economies, the realizers of the ECSC believed that it
should abolish the possibility of another war and thus encourage further European integration
(EUR-LEX, 2010).
On March 25, 1957, another hallmark was promoted by the same six countries: the Treaty
of Rome. It aimed to promote a customs union in order to eradicate barriers to the movements of
goods and factors within its territories. In 1979, the participants of the Treaty of Rome alongside
with Denmark and Ireland took another step towards a deep integration. The establishment of the
European Monetary System (EMS) exchange rate mechanism, by which they started operating a
formal network of mutually pegged values, was an important act to attract more economies to the
integration framework. In the subsequent years, some considerable economies were incorporated
to it, such as Spain, Britain and Portugal.

In February 1992, in the middle of a financial crisis, the Maastricht Treaty was
closed with the provision of promoting a supranational structure. As an attempt to address the
economic problems originated in the lack of integration, the agreement provided that a single
European currency and a Central Bank would be established no later than January 1, 1999. By
169

1993, all 12 countries then part of the European Union ratified the Treaty. On January 1, 1999 (as
determined by the Maastricht Treaty), the Euro was introduced to the financial market as an
accounting currency, making the European integration framework reach the economic union
status, undoubtedly the most advanced stage of integration already seen. Since that time,
contractionist and cyclical fiscal policies, such as reductions in public expenditures and increase
in contributions, have been presented as solutions to political and economic challenges regarding
the European Union integration, mainly with respect to mitigation of fiscal imbalances. The
reason for this kind of policy have been widely suggested can be found in two major historical
facts: the crisis of the neoliberal creed and the Asian financial imbalances. Both economic
experiences encouraged the employment of economic cyclical measures, characterized by
contractionist policies and austerity. However, how effective have they been to mitigate the EU
fiscal problems and to enhance its integration framework?

2.1 A contractionist fiscal policy as a widely suggested solution

As economic growth in the European Union remains modest, an immediate suggested


measure to restore is occasionally the reduction of public expenditure. In 2014, public spending
took 48,2% of the EU’s GDP. What is most remarkable is the share of public expenditure
allocated to social protection. According to data from Eurostat (2016), in 2014 the percentage of
EU’s GDP to social protection was 19,50%, clearly higher than other categories, such as
education or health, for example. Within this, pensions are the paramount expenditure, since 25%
of the EU citizens depend on it, considering the fact of an increasing ageing population
(EATOCK, 2015). In this context, sustainable pension reforms are widely defended in order to
remove the pressure on working groups and control the budget.
170

Source: prepared by the authors with data retrieved from Eurostat (2016).

After Brexit, this growth will become even more hindered, since EU may lose part of its
commercial attractiveness and face uncertainties, driving investors away. Furthermore, UK was
the second largest net contributor to the EU’s budget (GLOBAL COUNSEL, 2015). Public
expenditure reduction, or alternatively, higher contributions from other European states would,
thus, become a mandatory action to avoid a generalized stagnation or recession.

2.2 Public expenditure reduction

Since the 2007-2008 financial crisis, public expenditure in the European Union increased
3,5%, reaching 49% of the GDP in 2013 (EUROPEAN COMMISSION, 2014a). In this period,
only 5 countries could stabilize their spending or managed public accounts to reduce it, namely,
Bulgaria, Lithuania, Hungary, Poland and Romania. It is estimated that, in order to restore its
economic growth, EU will need to reduce its public expenditure by 42% (DJANKOV, 2016).
Being a contractive fiscal policy, public expenditure reduction is expected to lead to a
faster economic growth by increasing private investment. Theory shows that, when there is a
spending reduction (or, alternatively, increase in taxes), real government deficit also diminishes.
The reduction in the government deficit is supposed to decrease the interest rate, leading to a
greater investment in the private sector, which, in turn, counterbalances the public sector public
deficit (BLANCHARD, 2011). Nevertheless, in the EU context, a weak policy coordination and
asymmetric intra-euro adjustment between member-states hamper its effective implementation.
Moreover, this coordination has been difficult since national policymakers have acted in order to
promote their own country’s interests, rather than presenting a collective thinking (DARVAS;
LEANDRO, 2015).

Although an increase in tax levels is also a component of a fiscal policy, Alesina, Silvia,
Perotti, and Schiantarelli (2002) argues that it has a less significant impact than a spending cut.
Additionally, these authors argue that in order to be effective, a contractive fiscal policy must be
linked with the labor market, since changes in the public wage bill and in government transfers
171

present a greater impact. Therefore, an increase in public spending led by an increase in


government employment or in government wages creates a substitution effect, changing an
individual’s preference towards a choice in working at the public sector, rather than in the private
sector. Thus, there is a reduction in the private sector’s profits, causing a fall in private
investments. When the spending is financed by increase in taxes, private sector workers may
react to it by working less or demanding higher wages. Again, the same phenomenon happens: a
reduction in private sector’s profits and investments (ALESINA et al., 2002). In the following
subsection, a deeper analysis on labor market reforms will be conducted.

2.3. Pension reform and labor taxes reduction

Although each member state is responsible for its own pension system, pension reform
has been present in the EU agenda since the 1990’s, mainly due to the increasing population over
64 years old and low birth rates. The changes go towards a better work-retirement balance and
the encouragement of a greater private savings. Therefore, in order to ease the pressure on the 15-
64 years old population group, there is an attempt to enhance the employability of older citizens,
as well as a limitation of early retirement and extension and increase of statutory pension ages
(EATOCK, 2015). In this sense, promoting an environment where labor supply is high (not only
for older workers but also for young persons) is a crucial measure to stimulate the economy,
especially after the late 2000s financial crisis. Hence, the next step is labor tax reduction, as
stated by Europe 2020 strategy: “[...] Member States should seek to shift the tax burden from
labor to energy and environmental taxes" (EUROPEAN COMMISSION, 2010, p. 26).

Where labor tax is high, employers are less willing to hire unskilled people, lowering
employment rates among this group. Additionally, consumption, property and environment taxes
are still low, which represents an obstacle for growth. In order to promote an environment with
high possibility of less experienced or low-skilled people be hired, European Commission
proposed a reduction in labor taxation across the EU states. Labor taxation comprises employer’s
and employee’s social security contributions and personal income tax (PIT) (EUROPEAN
COMMISSION, [s.d.]).

In general terms, it is possible to argue that the level of taxes and unemployment are
positively related. Thus, an increase in taxes leads to an increase in unemployment, since there
will be a reduction in job supply. Who bears the burden of labor taxes are mainly determined by
172

the elasticity of wages to taxes (EUROPEAN COMISSION, 2015). According to Melguizo and
Gonzáles-Páramo (2013), European countries presented a high wage to taxes elasticity (-0,70),
meaning that workers bear 70% of taxes. This elasticity is even higher in Nordic countries, where
wage variations can compensate almost entirely all tax changes.

Empirically, in order to achieve its objectives, European countries have implemented tax
reforms since 1997, when Spain was the first country to cut social security payroll taxes for those
workers affected by long-term unemployment. Soon after, France and Germany also adopted
social contribution reductions, which, in turn, were offset by an increase in value-added taxation
(VAT) (MELGUIZO; GONZÁLEZ-PÁRAMO, 2013). Hence, an employment stimulation is
expected to boost consumption, dynamizing European economy and raising income levels.

Nevertheless, when labor taxes reductions are compensated into an increase in VAT, there
may be some social impacts, since the tax applied has a regressive characteristic, still
representing a heavier burden on the poorest (unemployed or retirees) (EUROPEAN
COMISSION, 2014b). Additionally, an overall consumer goods price hike may be translated into
a short-term inflationary effect. The lack of conformity in the implementation of this policy
across the EU states also hinders its effectiveness. In fact, between 2000 and 2011 only three
countries, namely, Germany, Sweden and Estonia followed the recommendation of reducing
labor tax and, at the same time, increase consumption tax (EUGÉNE et al., 2013). Other
countries reduced both the taxes, or, on the contrary, increased their tax bases.

2.4. Increase contributions from the EU members

As aforementioned, the Brexit raised the importance of increasing contributions from


member-states, in order to offset the budget loss caused by the leave of one of the major
contributors of the EU. To be effective and bring positive outcomes, this must be made
simultaneously with public spending reductions (GLOBAL COUNSEL, 2015). However, a
number of issues make it difficult to be executed. First of all, a lack of political will and the
preference of countries in pursuing their own national interests rather than those of the bloc turns
this action into almost an impossible mission. The rise of euroscepticism also represents a barrier.
In a context where contractionist policies are valued, an increase in contributions is seen with
criticism by European citizens, raising the opposition to the EU as a whole (WRIGHT, 2016). In
the following section, the importance of public opinion will be discussed.
173

3 CONTRACTIONIST POLICIES AND THE IMPORTANCE OF PUBLIC


OPINION: WHAT PIGS’ CRISIS AND “BREXIT” CAN REVEAL

The effects from the global financial crisis have impacted Europe in two different periods.
From 2007 to 2008, the world witnessed the worsening of the European fiscal imbalances,
originated in 2001. From 2001 onwards, Portugal, Ireland, Greece and Spain, the so called
PIGS, have not been able to comply with the conditions required by the EU economic
convergence criterions, incurring in deficits, which contributed to the generation of a fiscal
crisis.
The Lehman Brothers’ bankruptcy, in September 2008, considerably intensified the fiscal
imbalances, promoting instability in the European banking sector. As the EU economic
reliability on the US financial system was a clear hallmark, the market implosion of short-term
credit securitized subprime mortgages caused a general collapse of the European financial
system (WOODRUFF, 2014 apud VIEIRA et al., 2016). Although the European Central Bank
(ECB) firstly made ample credit available, this sort of measure had insignificant effects in the
mitigation of the problem. The collapse of asset values, which were caused by the mortgage-
backed securities from the US and also by the effects of the property bubble in Ireland and Spain
(WOODRUFF, 2014 apud VIEIRA et al, 2016), continued to grow. In face of the impending
economic chaos, European governments reacted by bailing out their banking sectors, running
out an array of contractionist policies.
The second stage of the financial crisis started in 2009, when the size of the Greek
financial imbalance was made public. This fact is labelled as one of the major hallmarks of the
European financial crisis, since it disseminated an array of uncertainties regarding the
advantages of being integrated. The financial imbalances witnessed by fiscal authorities became
manifest when the attempts of refinancing sovereign debt on acceptable terms became difficult
or even impossible (WOODRUFF, 2014 apud VIEIRA et al, 2016). As a reaction, the ECB,
from 2010 onwards, has expanded bailout programs, intervening in sovereign debt markets in
order to hold down interest rates. That said, it is important to question: were the contractionist
measures and interventions enough to promote sustainable economic stability on PIGS until
today?
Although public expenditure reduction, with a pension reform, and increase in taxes may
work as economic policies to recover an economy, data shows that only contractionist measures
174

were not enough to promote a sustainable economic stability, but only to mitigate the effects
from the European fiscal imbalances. The reason is that is extremely difficult to maintain
contractionist policies in the long run, because there is a significant pressure on public
expenditure.
Taking again the PIGS example, there is the Portuguese recovery, which does not seem to
be permanent due to an array of reasons (LYNN, 2015). Beyond the currently political
instability, caused by ideological conflicts between the center-right government and leftist
opposition, it is possible to see negative foreign trade indicators and the rising of unemployment.
In addition to that, it can be noted that Portugal’s greatest problem is still the government debt-
to-GDP ratio, which has greatly increased from 2012 onwards (OECD, 2016).
Greece, in turn, presents an even worst situation. Although it has received billions in
bailout programs, the crisis scenario persists until today. Greece received two bailout packages
in conjunction with the requirement of an array of austerity policies. However, it quickly
became clear that packages and its required policies would not be enough, on the contrary, the
required austerity, according to Krugman and Stiglitz (BBC, 2015), only aggravated the Greek
situation, promoting a tax increase that, until today, had no significant effect to mitigate the
Greek crisis.
Although the situation in Spain and Ireland is turning better, there is no reason to affirm
that they, promoting only contractionist policies, have reached a sustainable economic stability,
since it has been very difficult to implement this kind of policy. As Greece, these countries are
passing through a transition period, facing population protests regarding those measures and
their effects. What is important to point out is that those populations, from Portugal, Ireland,
Greece and Spain, protest without having clearly defined the advantages of being integrated into
the European Union, promoting a gradual weakening of the integrationist ideal.
The greatest benefits from the EU integration framework, beyond the advantages from the
Schengen area, do not seem to be appealing to most part of EU population. The challenges and
difficulties of integration, on the contrary, appear to be dormant to them, raising the possibility of
another “exit” from the economic union, as it happened to Britain.
According to numerous international medias, Brexit was influenced by a widespread
political ignorance. As stated by the Washington Post journal (2016), in the immediate aftermath
of the vote, Britain presented a massive spike in internet searches asking questions regarding the
175

EU and its benefits, such as “Why should we leave the EU”. The petition on the British
Parliament website calling for a revote has shown a “Regrexit” movement from a great part of
British’ population, since it collected over 3.4 million signatures (FUNG, 2016). This number is
considerable because, although the Parliament does not have to grant it, it is required to consider
any petition that gets over 100,000 signatures. Once again, the advantages of being integrated
into the European Union do not seem to be clear, appeal and deliverable to the public opinion,
fact that, in Britain, promoted the exit, a considerable blow to the EU ideal of an even closer
integration.
Hence, it becomes clear that the EU needs to promote changes on its integration model to
foster a deeper integration, consequently acquiring a greater economic growth. To mitigate
economic challenges related to integration difficulties, those changes should be delineated
beyond the increase in taxes or the implementation of contractionist measures, such as the
reduction of budgets and a pension reform, or since these sort of policies, as presented above, had
only short term effects and, sometimes, negative outcomes. As shown, only the aforementioned
two types of policies are not enough to foster economic growth, being necessary a third way.
Therefore, the EU should promote supranational public policies, changing its integration
framework always bearing in mind the importance of a well-informed public opinion, mainly
about the advantages of being integrated. However, what would be the best way to do so? The
digital single market seems to be a possible solution.

4 THE DIGITAL SINGLE MARKET (DSM) AS A THIRD WAY TO ENHANCE


THE EU INTEGRATION PROCESS

The current challenges related to the EU integration process require a comprehensive


action across different policy areas. Europe needs a new economic opportunity to promote a
takeoff process in its economies, so they can mitigate financial imbalances and boost long-term
growth rates and competitiveness (EUROPEAN POLICY CENTRE, 2016). Through the DSM,
markets can be created in fields and sectors where there is a great potential yet not exploited,
fostering the creation of competitive advantages yet not exploited. The Digital Single Market
would be an excellent tool to provide consumers and companies advantages from lower prices,
higher quality and comprehensive possibility of choice. Consequently, it would be a great way to
foster innovation, since with low importation prices firms can acquire technology to promote
176

better products and feed the established cycling, contributing even more to the lowering of prices.
Further, this innovation would promote scaling and increase their global competitiveness, leading
European Union to a sustainable increase in growth and jobs. This cycling would feedback by the
good externalities perceived by the population, government and market, since companies in all
sectors, after watching their growth, would be incentivized to invest and exploit the potential of
information and communication technologies, gradually enhancing the DSM`s cycle, as shown
below:

The DSM cycle

Source: authors
4.1 How to make it feasible and appeal to the population in the short run?

According to European Policy Centre (2016), an array of policies is necessary to establish


the DSM as tool to promote the cycle feedback previously mentioned. With respect to the
European public opinion, it becomes clear that it must be sensitized and informed about the
benefits from integration that the DSM could bring, avoiding political ignorance, which brings to
177

the European Union more challenges to be mitigated. Therefore, transparency should be the most
important policy to be fostered. It is paramount to make the DSM goal widely visibly in order to
achieve companies and citizens’ engagement. To do so, public hearings, educational initiatives
and inclusion programs to the enhancement of e-skills would be the right ways to make the
establish the DSM, a solution constructed by mutual participation of civil society and
government.

Relating the confidence of businesses and citizens to use the platform, European
authorities must create a legal framework to prevent cyber-criminal activities, which would
enforce citizens’ power to require investigations regarding any EU consumer rights’ violations;
establish a set of harmonized consumer rights which would be applicable throughout the EU;
make mandatory for companies and consumers to be transparent online and electronically
contactable, with profiles and respective evaluations about security, quality, payments and other
topics; promote the business environment through tax incentives to the acquisition of ICT
equipment and to the establishment of public-private partnerships between companies and
government, promoting innovation; simplify the tax burden and the payment system for e-
commerce; and, lastly, but not least, establish a single standard for all activities required to
perform e-commerce, such as electronic payments, signatures and contracts (EUROPEAN
POLICY CENTRE, 2016).

All the previous information presented, it is possible to conclude that, with the DSM, the
benefits from the EU integration would be appeal to the population, strengthening the sense of
togetherness in everyday actions, for instance, through a mobile payment. The EU regulation
would be change to a pro-business regulation, transforming states into facilitators of innovation,
growth, and coordination among EU members, reducing the costs to cooperate in order to
promote supranational public policies.

5 FINAL CONSIDERATIONS

In order to restore economic growth, several cyclical policies have been implemented.
The attempt to reduce public spending by creating a link with the labor market did not prove to
be as effective as expected, due to two main reasons that can be applied to all the aforementioned
policies: the weak coordination between member states in implementing the measures, in part
explained by the particularities of each country; the lack of political will in adopting the
178

European Commission’s recommendations, in which the policy makers clearly favors their own
national interests; and the public opinion against the adoption of those policies. The same
ineffectiveness can be noticed to the increase in contributions from the EU members. Therefore,
as presented, cyclical policies are necessary, but are not everything, since the public opinion
matters for the integration stability. The Digital Single Market, as a multifaceted policy, seems to
be a third way to enhance the European Integration process. Bearing in mind all the
aforementioned aspects, if implemented along with the commonly suggested contractionist
policies, the DSM has great potential to promote a sustainable growth to Europe from 2020
onwards or even before. The reason is simple, it sensitizes public opinion, promotes innovation,
sustainable growth, new competitiveness advantages and jobs, making European integration more
deliverable and appealing to the population in its most everyday actions.

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180

UNIVERSALISTAS E RELATIVISTAS: POR UMA ORDEM


PÚBLICA (INTER)NACIONAL

UNIVERSALISTS AND RELATIVISTS: FOR NA (INTER)NATIONAL


PUBLIC ORDER

Emily Garcia1
Bruno Ferreira de Souza2
Data de submissão: 04/10/2016
Data de aceite: 21/11/2016

Resumo

A ordem pública, entendida como o contexto de normal legalidade, é analisada, no


presente artigo, em relação com suas interlocuções com o direito interno e os direitos
humanos. Visando demonstrar a impossibilidade de uma ordem pública internacional,
em razão das diferenças culturais existentes.
Palavras-chave: Ordem Pública; Constituição Federal; Direitos Humanos.

Abstract

Public order, understood as the normal legal context, is analyzed in this article, in
relation to their dialogues with national law and human rights. Aiming to demonstrate
the impossibility of an international public order, because of cultural differences.
Keywords: Public Order; Federal Constitution; Human rights.

1 INTRODUÇÃO

O conceito de pós-modernidade é um dos mais debatidos na atualidade. Existem


debates desde a existência de uma pós-modernidade até sobre do que se trataria. Um dos
maiores críticos do tema, atualmente, é o sociólogo polonês Zygmunt Bauman.
Em entrevista a Folha de São Paulo, questionado sobre o porquê da preferência
pelo termo ‘’modernidade líquida’’ ao invés do termo ‘’pós-modernidade’’, Bauman
esclareceu que o termo pós-modernidade sugere duas conclusões. A primeira, correta,
de que as condições de vida estão diferentes. E a segunda conclusão, errônea, de que a
modernidade "terminou" e já estaríamos em uma nova era. Entende, por isso, que o
conceito de "modernidade líquida" evita esse último erro e ‘’enfatiza que somos tão,

1
Aluna do Curso de Especialização em Filosofia Política e Jurídica pela Universidade Estadual de
Londrina (UEL). Graduada em Direito pela PUC-PR. E-mail: emily.eg@hotmail.com
2
Especialista em Direito Constitucional Contemporâneo pela UENP. Graduado em Direito pela
Universidade Estadual de Maringá. Advogado.
181

senão mais, modernos quanto nossos pais e avós’’ (FOLHA DE SÃO PAULO, 2007).
Baumann acrescenta ainda a seguinte observação:

Os governos são capazes de aparecer como guardiões da segurança e


salvadores de catástrofes indizíveis, que, de outro modo, sem sua
vigilância e empenho, poderiam afetar seus súditos, enquanto os
partidos de oposição desenvolvem um "benefício próprio" ao
convencer os cidadãos de que os verdadeiros perigos são muito
maiores do que os governos deixam perceber. Jogar com os
sentimentos de insegurança e os medos resultantes se torna hoje o
principal veículo de dominação política. (FOLHA DE SÃO PAULO,
2007)

Nesse contexto, estabelecendo diferenças pontuais entre esses dois supostos


períodos (moderno e pós-moderno), Sergio Salomão Shecaira sintetiza que a
modernidade teria sido marcada pela industrialização, divisão social do trabalho,
distinção do proletariado como classe que se constitui motor da história, nascimento
epistemológico da individualidade (SCHECAIRA, 2006).
Enquanto a pós-modernidade, por sua vez, passa por uma forma transnacional de
produção, marcada pela acentuação da concorrência no mercado de trabalho, pela
existência de um processo comunicativo global, pelo surgimento de modos
transnacionais de vida, processos econômicos percebidos como globais, destruição
ambiental que transcende fronteiras territoriais de países e continentes, crises e guerras
vivenciadas por todos os povos (SCHECAIRA, 2006).
Daniel Sarmento (SARMENTO, 2012, p. 320), por sua vez, define a
modernidade como um período em que houve a ‘’aposta na razão como instrumento de
emancipação social’’. Ressaltando que, embora tenham origem anterior a modernidade,
os direitos humanos e o constitucionalismo são também construções tipicamente
modernas. A crise da modernidade teria decorrido da sua obsessão pela generalização e
racionalização, a qual não seria o suficiente para a compreensão das sociedades
contemporâneas. Nesse contexto, visando à flexibilidade, teria se desenvolvido as
ferramentas da pós-modernidade, quais sejam:

No novo modelo, ao invés de impor ou proibir condutas, o Estado


prefere negociar, induzir, incitar comportamentos, o que torna o seu
Direito mais “suave” (soft law). Parte-se da premissa de que a
intervenção normativa do Estado tende a perturbar o funcionamento
dos subsistemas sociais. Prefere-se a auto-regulamentação de mercado
ou dos subsistemas sociais à hetero-regulamentação estatal. Na
resolução de conflitos, ganham importância os instrumentos
182

substitutivos da jurisdição estatal, como a arbitragem e a mediação. A


separação entre Estado e sociedade civil, nesse contexto, torna-se mais
tênue e nebulosa do que nunca. (SARMENTO, 2012, p. 320)

Em vista disso, a ordem pública tem seu conteúdo alterado, pois independente da
discussão sobre a existência ou inexistência da denominada pós-modernidade uma
constatação é unânime: a sociedade passa por mudanças. Dessa forma, as relações
estabelecidas dentro dessa sociedade são diferentes, mais velozes e clamam por um
novo tratamento jurídico para eventuais conflitos. A postura do Estado, com o aumento
das relações internacionais e uso de formas alternativas de solução de litígios, tende a
alterar e o próprio conceito de ordem pública é mitigado, principalmente pelos direitos
humanos. Nesse sentido, alguns autores defendem que a soberania estatal seria mitigada
pelo processo de internacionalização dos direitos humanos (PIOVESAN, 2013, p.191).
A compreensão do contexto atual e suas complexidades são relevantes para
entender a nova dinâmica na qual se insere o direito internacional privado e a
compressão de sua intersecção com o direito interno e os direitos humanos, ambos
tendo como núcleo o respeito à dignidade da pessoa humana.
Durante muito tempo, os Estados, traumatizados com o período de guerras,
buscaram proteger a sua soberania. Nesse panorama, a solução encontrada pelas
sociedades do segundo pós-guerra para superar o positivismo legitimador dos regimes
totalitários, foi o resgate de valores, e o instrumento utilizado foram às constituições
contemporâneas, caracterizadas pelo alto grau axiológico, num fenômeno conhecido
como pós-positivismo (neoconstitucionalismo), caracterizado pela institucionalização
da moral ou moral constitucionalizada.
No direito constitucional contemporâneo discute-se a existência de dois
processos. Um deles é o processo de internacionalidade da Constituição, fenômeno que
decorre da internacionalização das relações jurídicas e sociais compartilhando a ideia de
Constituição para além das fronteiras nacionais. Nesse contexto, enquadram-se temas
como o direito comunitário da União Europeia, direitos internacionais dos direitos
humanos e lex mercatória.
A lex mercatória possui grande relevância para a compreensão da alteração da
sistemática do direito internacional privado, pois se trata de uma lei do comércio
internacional que, em muitos casos, limita a liberdade estatal, tendo em vista que em um
cenário de globalização, os Estados nacionais ao correrem o risco de serem
abandonados por investidores e empresas são muitas vezes forçados a adaptar o seu
183

ordenamento jurídico às imposições da lex mercatoria, tornando restrita, assim, as


opções do Estado (SARMENTO, 2012, p. 114).
O segundo fenômeno observado é a constitucionalização do direito
internacional, que provoca um movimento inverso ao anterior, ou seja, a acoplagem de
regras internacionais nas ordens nacionais, como exemplo pode ser citado o artigo 5°,
§3° da Constituição Federal de 1988. Destacando-se também, dentro desse fenômeno, a
discussão sobre o controle de convencionalidade, segundo o qual a lei brasileira deve
respeito não apenas a Constituição (controle de constitucionalidade), mas também deve
respeito aos tratados internacionais (controle de convencionalidade).
Daniel Sarmento, dentro desse novo contexto, trata sobre a existência das
denominadas Constituições Privadas, como exemplo tem-se as comunicações digitais
(internet), as quais dariam origens a determinadas normas que teriam papel similar ao
das constituições estatais na política nacional.
Dessa maneira, no bojo das relações cibernéticas teriam sido criadas normas
privadas superiores, que não possuem origem no estado nacional nem em organismos
internacionais. Sarmento citando Gunther Teubner — principal expositor dessa teoria
— acrescenta que as constituições privadas seriam diversas e teriam origem em uma
multiplicidade de subsistemas autônomos da sociedade-mundo, as quais seriam
desvinculadas de Estados, mas possuiriam certas características próprias das
constituições, como exemplo a supremacia em face de outras normas produzidas na
mesma área (SARMENTO, 2012, p. 115).
É nesse sentido, portanto, que o presente artigo se desenvolve, pretendendo
analisar a ordem pública e sua interlocução com o direito interno e os direitos humanos,
tendo em vista a discussão entre relativistas e universalistas e as mudanças na sociedade
moderna/pós-moderna.

2 DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

O Direito Internacional Privado é ciência jurídica a fim de definir princípios,


critérios, normas, a que deve satisfazer a busca de soluções adequadas a conflitos de
relações jurídico-privadas internacionais.
Para Gustavo de Ferraz, sinteticamente, Direito Internacional Privado é o “ramo
do Direito que se ocupa de regular as relações jurídicas que irradiam efeitos em mais do
que um ordenamento jurídico.” (FERRAZ, 2012)
184

Informações importantes traz Ferrer Correia, jurista português, acerca da


concepção de Direito Internacional Privado (in: FERRAZ, 2012). Segundo o autor, é o
ramo da ciência jurídica onde se procuram formular os princípios e regras conducentes à
determinação da lei ou das leis aplicáveis às questões emergentes das relações jurídico-
privadas de caráter internacional e, bem assim, assegurar o reconhecimento no Estado
do foro das situações jurídicas puramente internas de questões situadas na órbita de um
único sistema de Direito estrangeiro.
Nesse interim, há resolução, essencialmente, de conflitos de leis no espaço em
determinada situação de direito privado, fixando o direito aplicável. Ou seja, seu
objetivo não é resolver a quaestio juris, propriamente dita, mas indicar o ordenamento
jurídico (nacional ou estrangeiro) que resolverá a questão.
O objeto do direito internacional privado, hoje, dada a relevância de motes
públicos, também abrange questões de ordem pública, tais como trabalhistas, fiscais,
financeiras, cambiais, administrativas, e, até mesmo, penais.
O direito internacional privado resolve conflitos de leis no espaço referentes ao
direito privado; indica qual direito, dentre aqueles que tenham conexão com a lide sub
judice, deverá ser aplicado.
O objeto da disciplina é internacional, sempre se refere às relações jurídicas com
conexão que transcende as fronteiras nacionais. Desta forma, alguns pontos são
analisados pelo direito internacional privado, que são a questão da uniformização das
leis, a nacionalidade, a condição jurídica do estrangeiro, o conflito de leis, como já
citado, e o reconhecimento internacional dos direitos adquiridos pelos países.
O direito estrangeiro é aplicado segundo imperativo legal, previsão da norma
nacional, conquanto não se dá arbitrariamente à conveniência do magistrado. Vale a
pena ressaltar a importância dada aos tratados e convenções internacionais celebradas
pelo Brasil, equiparando-se ao direito federal.
Algumas regras para a aplicação do direito estrangeiro são a recepção formal, a
recepção material ou mesmo a aplicação sem incorporação, que é a aplicação da norma
jurídica sem sua integração.
Assim como existem regras de aplicação, também existem limites, como o
princípio da ordem pública. Tratam-se de princípios estruturantes, que, por serem base
do Direito, são capazes de tornar ineficazes normas em plena validade. Cabe a
ilustração do dito anteriormente com a exposição do art. 17, LINBD.
185

Art. 17. As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer
declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a
soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.

Ou seja, há submissão das normas, aqui se fala do direito estrangeiro, mas é


máxima também válida a qualquer outra norma, aos princípios de ordem pública.
Exemplo comum citado pelos doutrinadores do Direito Internacional é o caso do
casamento poligâmico possível em países de cultura muçulmana, mas, cuja sentença,
não seria homologada em terra brasilis, fazendo-se válido o primeiro casamento e
tornando os demais ineficazes.
Outro exemplo se dá com a fraude à lei, em que se usa um conflito de normas
regidas por ordenamentos diferentes, para se beneficiar. Nesse aspecto, portanto,
necessário analisar a aplicação do direito internacional e seus limites.

3 APLICAÇÃO DO DIREITO ESTRANGEIRO E SEUS LIMITES

Antes de qualquer afirmação acerca da aplicação do direito estrangeiro,


necessário se faz a estruturação da norma de direito internacional privado. Pois bem, é
norma indicativa ou indireta, já que não resolve o conflito, mas aponta o ordenamento
que o resolverá, se norma interna ou se norma estrangeira.
A norma de direito internacional privado tem duas partes, o objeto de conexão e
o elemento de conexão. O objeto de conexão descreve a matéria indicativa, ou seja,
fatos que serão alvo da incidência normativa (por exemplo, a celebração de um contrato,
cuja incidência será de norma interna ou norma estrangeira).
O elemento de conexão é o elemento da norma que possibilita o direito aplicável
(por exemplo, o domicílio dos contratantes). Com ambas as partes conhecidas, o
magistrado conhece dos elementos para reconhecer o direito aplicável ao caso.
Valério Mazzuoli (MAZZUOLI, 2011) propõe o seguinte problema: num
processo de separação judicial perante a justiça brasileira, as partes discordam em
relação à partilha dos bens e se essas, antes de contraírem núpcias, tiveram domicílio na
Suíça, o juiz e os advogados das partes precisam atentar para tal fato, pois a causa tem
conexão (elemento da norma de direito internacional privado) internacional, portanto,
aplica-se a regra do art. 7º, §4º, LINDB.
A norma brasileira do direito internacional sobre regime de bens não esclarece,
em momento algum, como o juiz no Brasil, procederá a partilha desses bens, indicando
186

exclusivamente o direito suíço como o direito aplicável ao processo sub judice que corre
no Brasil. Feitas tais considerações, pode-se dar o passo adiante quanto à aplicação do
direito estrangeiro, que pode ocorrer de forma direta ou indireta.
Nos casos em que o elemento de conexão remeter ao direito estrangeiro, as
norma estrangeiras são aplicadas diretamente pelo magistrado brasileiro. A aplicação
indireta diz respeito às homologações realizadas em sentenças estrangeiras. Gustavo
Ferraz afirma o seguinte:

Ainda que a aplicação do direito estrangeiro seja requisito do Direito


Internacional Privado, e que o ordenamento jurídico brasileiro aceite
tal situação; verifica--se que há limites a tal aplicação visando,
sobretudo, a manter a aproximação entre os valores sociais e o Direito.
No Direito Internacional Privado brasileiro os principais limites são:
1) ordem pública, 2) fraude à lei, 3) instituição desconhecida, 4)
reciprocidade e 5) princípio do nacional lesado (FERRAZ, 2012).

Paulo Henrique Portela (2011), trabalhando o instituto da ordem pública, leciona


que a ordem pública refere-se aos aspectos fundamentais de um ordenamento jurídico e
da própria estrutura do Estado e da sociedade. Nesse sentido, abrange também as noções
de soberania nacional e de bons costumes. A incompatibilidade da norma estrangeira
aplicável a um conflito com a ordem pública impede sua incidência.
Dessa maneira, é fundamental entender o que seria ordem pública, qual seu
conteúdo e como se dá a sua construção dentro de um determinado Estado e de uma
determinada cultura.

4 PRINCÍPIO DA ORDEM PÚBLICA

É a mais abrangente exceção à aplicação do direito estrangeiro, envolvendo


tanto a aplicação direta quanto a indireta. Esse limitante, além da ordem pública,
engloba a soberania e os bons costumes, nos termos do art. 17, LINDB.
De forma conceitual, a ordem pública pode ser tratada como o conjunto de
valores sociais de uma sociedade em determinado local num dado tempo. E que, apesar
de os valores estarem impregnados de subjetivismos, seu conceito também deve ser
trabalhado na forma objetiva, depreendido da ordem social e inspirado pela ordem
jurídica vigente, especialmente no que diz respeito às hipóteses de aplicação, já que se
trata de aplicação excepcional.
187

Não há como versar sobre o aludido princípio sem expor a doutrina de Jacob
Dolinger, que afirma ter a ordem pública tríplice nivelação no ordenamento
(DOLINGER, 2005).
O primeiro nível ocorre, pela ordem pública, o impedimento da vontade
individual prevalecente sobre os interesses da maioria. Percebe-se que se trata de um
caráter eminentemente interno.
No segundo nível, tem por fim afastar a expectativa de ter a pretensão julgada no
Brasil de acordo com lei estrangeira. A aplicabilidade diz respeito à análise de que a lei
estrangeira apta a ser aplicada exala valores diversos da sociedade nacional, o que
causaria um choque cultural, ofendendo bons costumes e a soberania.
Para Dolinger, “a lei que choca, que é incompatível, que escandaliza, esta lei é
distante, foge completamente da ideia básica de proximidade, e por isto, não pode ser
aplicada” (DOLINGER, 2005).
Já no terceiro nível, Dolinger afirma que “em grau de natureza gravíssima, a
ordem pública irá ao ponto de impedir a aceitação no foro de situações já consumadas e
consagradas no exterior” (DOLINGER, 2005).
Nesse último nível, chega a se negar até mesmo o direito adquirido, pois há uma
afronta incomensurável ao sistema político-jurídico do Estado, e que, portanto, rejeita o
reconhecimento do direito.
São os casos, por exemplo, como a da já citada cultura muçulmana, que permite
vários casamentos. Outro exemplo ocorria até 1977, em que não se aceitava a
homologação de sentenças estrangeiras que concediam o divórcio, pois, à época,
afrontava a ordem pública em seu terceiro nível.
Recentemente, um novo exemplo a ser dado é a virada jurisprudencial no
referente à cobrança de dívida de jogo de azar contraída no exterior em local em que se
trata de atividade lícita. Com a edição da Emenda Constitucional 45, de 2004, conhecida
como Reforma do Judiciário, a competência do Supremo Tribunal Federal (STF) de
julgar os casos de homologação de sentenças estrangeiras ou de cartas rogatórias passou
para o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Havia entendimento consolidado no STF,
encabeçado pelo ministro Sepúlveda Pertence na Carta Rogatória 7.426, relatada em
1996, de que não era possível a cobrança de dívida de jogo contraída no exterior por
ferir a ordem pública, sendo excepcionado por um voto histórico do Ministro Celso de
Mello (exposto mais abaixo). Essa questão se alterou a partir de 2005, com a passagem
de competência para o STJ.
188

É sabido que no Brasil, as dívidas de jogo constituem obrigações meramente


naturais. Não sendo exigíveis judicialmente. Em análise da Carta Rogatória n° 10415
em que um brasileiro contraiu dívida de jogo no exterior, a questão da ordem pública,
entendida como a base social, política e jurídica de um Estado, embasou a discussão. O
Min. Marco Aurélio faz o seguinte questionamento:
É o caso de indagar-se, à luz dos valores em questão: o que é capaz de
colocar em xeque a respeitabilidade nacional: a homologação de uma
sentença estrangeira, embora resultante de prática ilícita no Brasil,
mas admitida no país requerente, ou o endosso, pelo próprio Estado,
pelo Judiciário, de procedimento revelador de torpeza, no que o
brasileiro viajou ao país-irmão e lá praticou o ato que a ordem jurídica
local tem como válido, deixando de honrar a obrigação assumida?

Assim, o Ministro Marco Aurélio analisando os dois ordenamentos jurídicos: a)


o brasileiro no qual é proibido o jogo de azar e b) o norte-americano no qual é
permitido. Considerou a contrariedade entre ambos e sopesando a previsão dos dois
ordenamentos, quais sejam: a pretensão de cobrança de dívida inexigível em nosso
ordenamento e o enriquecimento sem causa por parte do embargante, que abusou da boa
fé da embargada, situação essa repudiada pelo nosso ordenamento, entendeu que
deveria, no caso, prevalecer à procedência pela exigibilidade da dívida do jogo, pois o
enriquecimento indevido perpetrado de má-fé se mostra em conduta mais atentatória à
ordem pública, no sentido que lhe dá o Direito Internacional Privado, do que a cobrança
da dívida de jogo.
O Ministro citou ainda julgamento do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em
embargos infringentes no qual a Desembargadora Revisora Dra. Adelith de Carvalho
Lopes proferiu o primeiro voto divergente que formou na corrente majoritária, deixando
consignada a incidência, na espécie, do artigo 9º da Lei de Introdução ao Código Civil.
Segue a ementa:

DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO.DÍVIDA DE JOGO


CONTRAÍDA NO EXTERIOR. PAGAMENTO COM CHEQUE DE
CONTA ENCERRADA. ART. 9º DA LEI DE INTRODUÇÃO AO
CÓDIGO CIVIL. ORDEM PÚBLICA. ENRIQUECIMENTO
ILÍCITO.1. O ordenamento jurídico brasileiro não considera o jogo e
a aposta como negócios jurídicos exigíveis. Entretanto, no país em que
ocorreram, não se consubstanciam tais atividades em qualquer ilícito,
representando,ao contrário, diversão pública propalada e legalmente
permitida,donde se deduz que a obrigação foi contraída pelo acionado
de forma lícita.2. Dada a colisão de ordenamentos jurídicos no tocante
à exigibilidade da dívida de jogo, aplicam-se as regras do Direito
Internacional Privado para definir qual das ordens deve prevalecer.O
189

art. 9º da LICC valorizou o locus celebrationis como elemento de


conexão, pois define que, "para qualificar e reger as
obrigações,aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem."3. A
própria Lei de Introdução ao Código Civil limita a interferência do
Direito alienígena, quando houver afronta à soberania nacional, à
ordem pública e aos bons costumes. A ordem pública, para o direito
internacional privado, é a base social, política e jurídica de um Estado,
considerada imprescindível para a sua sobrevivência, que pode excluir
a aplicação do direito estrangeiro.4. Considerando a antinomia na
interpenetração dos dois sistemas jurídicos, ao passo que se
caracterizou uma pretensão de cobrança de dívida inexigível em nosso
ordenamento, tem-se que houve enriquecimento sem causa por parte
do embargante, que abusou da boa fé da embargada, situação essa
repudiada pelo nosso ordenamento, vez que atentatória à ordem
pública, no sentido que lhe dá o Direito Internacional
Privado.5.Destarte, referendar o enriquecimento ilícito perpretado
pelo embargante representaria afronta muito mais significativa à
ordem pública do ordenamento pátrio do que admitir a cobrança da
dívida de jogo.6. Recurso improvido.

Dessa forma, a dívida de jogo contraída em local no qual se trata de atividade é


lícita possibilita a respectiva cobrança do valor no Brasil como forma de se evitar o
enriquecimento indevido. Não ofendendo, assim, a ordem pública.
Destaca-se também, a título de exemplo, o caso do arremesso de anões na
França, caso apontado como paradigma na discussão sobre direitos fundamentais na
Europa, esse caso acrescentou os conceitos de moralidade e de dignidade da pessoa
humana ao conceito de ordem pública, exsurgindo, nesse aspecto, a importância dos
direitos humanos como novo parâmetro para o conceito de ordem pública no direito
internacional privado da pós-modernidade (SCHAEDLER, p. 50). Nesse sentido,

Os direitos humanos seriam as novas ‘ normas fundamentais’ e esses


direitos incluídos nas constituições influenciariam o novo direito
privado, a tal ponto de o Direito assumir um novo papel social, como
limite da intervenção do Estado, como protetor do indivíduo e como
inibidores de abusos, mas como incentivador de uma ação afirmativa
do Estado para alcançar a equidade e a igualdade material entre todas
as pessoas na nova sociedade multicultural (JAYME apud
SCHAEDLER, p. 51).

Erik Jayme ao ser questionado sobre qual seria a herança do direito privado para
o século XXI respondeu sobre a ‘’necessidade de preservação da autonomia e da
liberdade das pessoas garantindo transparência e informação, as quais considera a chave
da autodeterminação daquele que é sujeito de direito’’ (SCHAEDLER, p.54).
Nesse aspecto, em que o direito é percebido como parte da cultura dos povos,
Flávio Tartuce citando Claudia Lima Marques, ao tratar da teoria do dialogo das fontes
190

defendida por Erik Jayme, dispõe que, o direito se altera na pós-modernidade,


manifestando-se o pluralismo na multiplicidade de fontes legislativas a regular o mesmo
fato. O direito internacional privado ganha importância, tendo em vista que é
basicamente esta a sua função, indicar entre inúmeras normas de diferentes países qual
será a aplicável ao caso concreto. É um direito indicativo. (MARQUES apud
TARTUCE, 2012)
Esse pluralismo visa à proteção do indivíduo, os quais muitas vezes são difusos,
como no caso de relações de consumo ou de demandas ambientais, na pluralidade de
agentes ativos de uma mesma relação, como os fornecedores que se organizam cadeia e
em relações extremamente despersonalizadas. Acrescente-se a isso, o pluralismo na
filosofia e nos direitos à diferença, nos quais o diálogo é que legitima o consenso, onde
os valores e princípios têm sempre uma dupla função (MARQUES op cit TARTUCE,
2012).
A ordem pública, por isso, deve ser analisada com base em parâmetros
mínimos, levando-se em consideração os valores sociais consagrados na Constituição
para não se recair em arbitrariedade judicial e em respeito aos direitos humanos,
observando-se a multiplicidade de culturas existentes.

5 ORDEM PÚBLICA NACIONAL SOB A PERSPECTIVA DA CF/88

A evolução dos direitos dentro de um contexto positivista de Estado foi


importante para o reconhecimento dos direitos fundamentais, que são os direitos
humanos positivados por determinado Estado (COMPARATO, 2010).
Dado importante é a observação de que a incorporação dos direitos humanos
dentro do ordenamento interno não se deu de maneira legal, mas por direta proteção
constitucional, vide o extenso e não taxativo rol de direitos dos primeiros arts. da
Constituição Federal, vale citar o art. 5º, que não se trata apenas de direitos individuais,
mas direitos fundamentais, pois protegidos pela impossibilidade de abolição – cláusula
de pedra (MENDES, 2014).
Tais direitos, ditos humanos e universais, mas que cultua origem ocidental
estritamente, se estabeleceram, portanto, no cume dos sistemas de normas, passando a
ter força cogente sobre o resto do sistema abaixo dele.
Utilizando das novas técnicas de cláusulas abertas, a Assembleia Constituinte de
1987, diante dos direitos fundamentais, deixou seus conceitos e aplicação abertos,
191

exigindo trabalho hermenêutico, o qual dá atualidade e eficácia à norma constitucional


segundo o caso concreto.
A partir dessa estrutura criada, esses direitos positivados de forma fulgente na
Constituição situam o conteúdo conceitual de ordem pública, que, no caso concreto,
impossibilita a aplicação da lei estrangeira, exatamente por violar esse conteúdo, que foi
construído com a base plural constitucional, cujo objetivo é a proteção dos preceitos
básicos da sociedade.
E é dentro desse raciocínio que o magistrado decide pela não aplicação da lei
estrangeira, mas pela lex fori, sempre com a devida motivação, requisito de nulidade da
decisão.
Deve-se observar que ao se falar em norma, está se trabalhando com regras e
princípios. Ora, os princípios são importantes elementos axiológicos do ordenamento,
em especial os princípios constitucionais.
Não é outra a conclusão de todo o dito senão a de que a ordem pública são os
valores morais das sociedades, que são construídas dentro do núcleo essencial os
direitos fundamentais. Cabe o esclarecimento que o núcleo essencial dos direitos
fundamentais é aquele caráter mínimo do direito que não pode ser afetado sob pena de
descaracterizar o próprio direito (MENDES, 2014).
Essa construção torna o sistema harmônico, pois cria um diálogo entre os o
núcleo essencial dos direitos fundamentais e a ordem pública nacional, o que evita a
imutabilidade do conceito de ordem pública, já que esta anda aos passos dos direitos
fundamentais, reflexo da sociedade.

6 POR UMA ORDEM PÚBLICA (INTER)NACIONAL

O já citado Jacob Dolinger prega a ideia de que a ordem pública caminha para
uma universalidade. Assim, para ele, num futuro próximo, haverá uma ordem pública
internacional. Sua teoria é contestada pela doutrina relativista.
O universalismo impõe certa singularidade na sociedade global, estabelecendo
determinados imperativos para todas as organizações existentes, nacionais ou
internacionais. O relativismo é uma tese filosófica, portanto, que se contrapõe ao
universalismo, pois defende que os sistemas morais não têm validade absoluta, já que
são variáveis de cultura para cultura.
192

O que é defendido não é a adoção do universalismo irrestrito, nem do


relativismo que não confere o caráter universal dos direitos humanos, mas a construção
de um “universalismo sóbrio” (KERSTING, 2003) que minimize os direitos humanos e
seja imune ao particularismo ou relativismo, o que ocorre quando, numa situação
multiculturalista, o conceito de direitos humanos possui chances de ser reconhecido
além das fronteiras de cada Estado. E, para tanto, este conceito tem que ser
desenvolvido com um significado independente da coloração cultural e com força de
hermenêutica cultural.
No que se diz respeito aos direitos humanos, existe cada vez mais a simbiose
entre direito internacional e direito interno. O dogma da soberania estatal absoluta está
cada vez mais se relativizando dentro de um novo papel de uma justiça globalizada
orientada pela proteção internacional dos direitos humanos. Cada vez mais atua-se
dentro do direito internacional, em nome de uma comunidade internacional e
relativizando o conceito antigo e ultrapassado de soberania estatal (de Bodin).
Importante puxar pela memória, principalmente nessas linhas em que se dedica
aos direitos humanos, que eles, quando positivados, passam a direitos fundamentais, e
estes constituem importante elemento conceitual da ordem pública.
Uma preocupação atual é o choque civilizatório, e como fazer algo universal
dentro de uma multiplicidade de culturas. Para o autor sociólogo Boaventura de Sousa
Santos

fugiríamos aqui de um localismo globalizado ou mesmo de um


globalismo localizado. Defendo aqui o universalismo de confluência,
de ponto de chegada e não de ponto de partida, defendo o que Bhikhu
Parekh chama de universalismo pluralista não etnocêntrico, baseado
no diálogo entre as culturas. Lembro autores como Amartya Sen, que
busca o diálogo entre direitos humanos e valores asiáticos, Abdullah
Armed Anna’im, que busca o diálogo entre islamismo e direitos
humanos. E volto ao tema do diálogo entre as culturas, volto ao tema
do respeito à diversidade e volto à idéia de Amartya Sen, para quem
nós temos que transitar do lema do pós-11 de Setembro, que era o
choque civilizatório - crash of civilization - para a ideia do diálogo
civilizatório - dialogue among civilization. Lembro, ainda, Gadamer,
para quem o diálogo quando é exitoso nos toca, mexe conosco, deixa
algo em nós e por isso o diálogo exitoso tem uma força
transformadora (SANTOS, 2003).

De fato não é simples conciliar, mesmo que seja num mínimo ético, várias
culturas. No entanto, o que se busca está nas brilhantes palavras de Boaventura de
193

Sousa Santos, que defende uma concepção multicultural dos direitos humanos inspirada
no diálogo entre culturas a compor um multiculturalismo emancipatório.
O multiculturalismo emancipatório é posterior ao multiculturalismo pós-
colonial. Fundamenta-se, desse modo, em uma relação entre a política da igualdade e a
política da diferença. Essa é a característica que diferencia esse novo multiculturalismo
proposto por Boaventura, em relação às lutas da modernidade ocidental do século XX,
as quais se assentam na busca pela igualdade.
Boaventura explica que há a ideia de que sendo todos igual é fundamental que se
dê uma redistribuição social, sendo através da redistribuição que se alcança a igualdade.
Essa política da igualdade centrada na diferenciação de classe ignorou outras formas de
desigualdade, como as étnicas, de orientação sexual entre outras.
Dessa forma, a emergência, atualmente, está entre essas novas lutas que trazem à
tona a política da diferença, a qual, afirma Boaventura, não se resolve pela
redistribuição, como ocorre com a política da igualdade, mas pelo reconhecimento.
Nesse sentido, conclui Boaventura de que é fundamental que o multiculturalismo
emancipatório tenha por pressuposto o fato de que todas as culturas são diferentes
internamente, permitindo assim que dentro de cada cultura haja resistência e diferença
(GANDIN, p. 12).
Boaventura, em publicação atual, escreve que as teologias possuem importância
na recuperação da humanidade tendo em vista que a memória de Deus faz parte da
história dos povos oprimidos e de suas lutas de libertação (BOAVENTURA, 2013, p.
105-106).
A diferença também faz parte da sociedade, dessa maneira o respeito a cada
cultura é a nova luta no pós-moderno, dentro daquilo que Boaventura denomina por
política da diferença.
Dessa forma, no novo Direito Internacional Privado pós-moderno o
multiculturalismo e o universalismo são valores fundamentais para a pessoa humana,
tendo em vista o respeito a diversidade a todos os tipos de cultura e a aceitação do novo,
preservando como parâmetro a dignidade da pessoa humana como núcleo do sistema
(SCHAEDLER, 2012, p. 43).
O conteúdo da ordem pública, portanto, é construído dentro da sociedade com
todas suas peculiaridades (igualdade e política da igualdade e diferença e política da
diferença). No entanto, corre-se o risco daquilo que hoje é conhecido como
194

Judicialização das demandas, ou ativismo judicial, no qual grandes anseios sociais são
levados ao judiciário para alteração de estado de coisas que caberia a outros poderes.
Nesse âmbito, torna-se importante o estabelecimento de limites para a atuação
do Judiciário tendo em vista que as relações sociais, internas e internacional, permeadas
pela cultura são as definidoras reais do que seja ordem pública, não o judiciário.

7 CONCLUSÃO

Conclui-se que o direito internacional privado atua no conflito de leis no espaço


a partir de regras de extraterritorialidade, criando ocasiões de aplicação da lei
estrangeira em detrimento da lei nacional.
Ao aplicar a lei estrangeira, hipótese em que a norma alienígena é invitada à
solução do caso concreto, causando, portanto, efeitos internos, pode a decisão atentar
contra preceitos morais cogentes, pois quando a solução proposta é distinta da solução
que daria a lei nacional.
A proteção da ordem pública consiste exatamente em evitar decisões contrárias
aos preceitos morais quando da aplicação da lei estrangeira. Numa primeira abordagem,
caberia uma crítica quanto ao conteúdo conceitual de ordem pública, já que vem
carregado de uma bagagem histórica de uma sociedade plural, e a substância da ordem
pública seria preenchida por análise casuística do magistrado.
Mas, como exercitado neste trabalho, a motivação do que é decidido é elemento
nuclear da manifestação jurisdicional, bem como sua compatibilidade com a
Constituição Federal, e o conceito aberto de ordem pública tem a importante função de
amoldar-se às novas situações criadas numa sociedade rica de relações como é a
brasileira.
De todo o exposto também se extrai que não cabe mais um julgamento simplista
envolto o sistema em regras, pois a ordem pública tem máxima de princípio, assim
como todo o ordenamento de estrutura axiológica.
O que não se confunde com o tratamento excepcional da ordem pública, em que
não tratada como regra. Nesse caso, fala-se que a ordem pública é remédio excepcional
no que diz respeito, não ao seu conteúdo (conteúdo principiológico), mas à sua
aplicação.
Por fim, existem tentativas de busca por um direito internacional global, ou seja,
um direito comunitário e globalizado, que atuaria de forma generalizada e dentro de
195

uma ordem pública comum e internacional. Tal proposta depende de uma composição
entre as sociedades, pois haveria conflitos criados pelas diferentes visões de mundo, e,
nessa discussão, digladiam-se universalistas e relativistas, aqueles no prélio por uma
ordem global única, e estes na defesa por autodeterminação das soberanias.

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198

O ESTADO NA AGÊNCIA DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS: O


CASO DO BRASIL NO COMEÇO DO SÉCULO XXI

THE STATE IN THE AGENCY OF INTERNATIONAL MIGRATIONS: THE


CASE OF BRAZIL IN THE BEGINNING OF THE 21ST CENTURY

Roberto Rodolfo Georg Uebel1

Data de submissão: 12/10/2016


Data de aceite: 21/11/2016

Resumo
Considerando o aumento dos fluxos migratórios internacionais com direção ao Brasil a partir
do ano de 2010, bem como a necessidade da atuação estatal em relação a tais fluxos, suas
demandas e problemáticas, o presente artigo abordará sucintamente a agência do Estado
brasileiro em relação às migrações, tendo como base a sua fundamentação teórica (do Estado
em si) e hipóteses sobre o seu papel de agente/agência no fenômeno imigratório
contemporâneo. Este artigo-ensaio é resultado inicial de pesquisa de doutoramento em
Estudos Estratégicos Internacionais, que busca igualmente trazer a discussão da problemática
imigratória na formulação, discussão e ampliação da política externa brasileira nos governos
democráticos de Lula da Silva e Dilma Rousseff, isto é, entre os anos de 2003 e 2015.
Palavras-chave: Estado; Agência; Migrações Internacionais; Brasil.

Abstract
Considering the increase in international migration flows towards Brazil from 2010 and the
necessity of state action in relation to these flows, their demands and issues, this article
summarizes the Brazilian state agency in relation to migrations, based on its theoretical
background (of the state itself) and the hypotheses about its role of agent/agency in the
contemporary immigration phenomenon. This article-essay is an early result of doctoral
research in International Strategic Studies, which seeks also to bring the discussion of the
issue of immigration in the formulation, discussion and enlargement of Brazilian foreign
policy, in the democratic governments of Lula da Silva and Dilma Rousseff, namely between
the years of 2003 and 2015.
Keywords: State; Agency; International Migrations; Brazil.

1 INTRODUÇÃO

As migrações internacionais são um fenômeno social com repercussões econômicas,


políticas, demográficas e culturais significativas à civilização e à própria história da
humanidade, além de elencarem elementos constituintes desta humanidade, a saber: os
territórios, nações, povos (reunião e união de famílias), Estados e o próprio Sistema

                                                                                                                       
1
Mestre em Geografia (UFRGS), Especialista em Gestão Pública (UFSM), Doutorando do Programa de Pós-
Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Graduado em Economia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Pesquisador do Laboratório de
Estudos Internacionais (LEIn/UFSM) e do Laboratório Estado e Território (LABETER/UFRGS). E-mail:
roberto.uebel@ufrgs.br
199

Internacional. O filósofo e cientista social alemão Friedrich Engels talvez foi o teórico que
melhor compreendeu o papel das migrações na formação das famílias e do próprio Estado na
sua obra principal “A origem da família, da propriedade privada e do Estado” (2009).2
Tendo em atenção a importância das migrações internacionais – sem distingui-las
num primeiro momento entre imigrações, emigrações, refúgios e asilos – a pesquisa intitulada
“A inserção estratégica do Brasil na América Latina como fator de atração dos fluxos
imigratórios em massa durante os governos Lula da Silva e Dilma Rousseff (2003-2015)” e
em fase de qualificação no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos
Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, utilizar-se-á dos fundamentos
teóricos do Estado para a compreensão das atuações de dois governos recentes no Brasil, a
saber, de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff.
Esta pesquisa tem como tema principal a inserção estratégica do Brasil na América
Latina e atração dos fluxos imigratórios durante os governos Lula da Silva e Dilma Rousseff,
no período compreendido entre os anos de 2003 e 2015, coincidente com o aumento das
migrações internacionais em direção ao país e com o momento onde se verificou uma nova
demanda e atuação do Estado brasileiro em relação aos imigrantes e à própria política
migratória brasileira – a última vez fora entre o final do século XIX e início do século XX em
relação aos imigrantes europeus e japoneses.
Dentre a problemática que se apresenta nesta pesquisa é o papel do Brasil como
Estado atraente dos fluxos imigratórios de latino-americanos vis-à-vis sua inserção
estratégica, se observada sua política externa integracionista no continente ou por causa dos
questionamentos apresentados no parágrafo anterior.
Problematizar e vislumbrar a questão imigratória neste período específico de 2003 a
2015, então, serve como aporte para a interpretação da integração regional de Estados
estratégicos da América Latina, bem como para a inserção da política externa desses países,
no caso desta pesquisa o Brasil, na grande agenda internacional de migrações e integração, já
que não consegue-se encontrar outra explicação e hipóteses para este fenômeno do boom
imigratório de latino-americanos para o Brasil nas últimas duas décadas.3
                                                                                                                       
2
  Cita-se Engels como uma referência a este estudo introdutório, dadas as suas contribuições ao entendimento
sobre o papel das famílias na formação do Estado, seja na sua concepção à época ou nos dias de hoje. Quando se
infere que as migrações familiares compreendem o ínterim dos fluxos migratórios contemporâneos – agora com
outras roupagens, como por exemplo, a liderança das mulheres no núcleo familiar no que se refere à
sustentabilidade econômica doméstica – é essencial o debate trazido pelo filósofo alemão. Se os Estados na
contemporaneidade pensam e buscam a otimização da gestão migratória, como no caso clássico do Canadá e,
mais recentemente do Brasil, com base nos núcleos familiares, a leitura de Engels se faz necessária.
3
A hipótese do boom imigratório foi levantada pela primeira vez pelo brasilianista e pesquisador da
Universidade de Stanford, professor Herbert S. Klein, que em 2013, durante relato concedido ao autor deste
200

Destaca-se ainda nesta problemática a divisão em quatro eixos ou pilares que


potencializaram os fluxos específicos de imigrantes latino-americanos em direção ao Brasil,
influenciados, a saber, pela própria mudança de agenda dos governos Lula da Silva e Dilma
Rousseff, como a participação do Brasil na Missão das Nações Unidas para Estabilização do
Haiti (MINUSTAH), o Programa Mais Médicos, os programas de concessão de bolsas de
estudo e pesquisas, que facilitam o ingresso das migrações familiares e inserção direta dos
migrantes no mercado de trabalho e, por fim, a própria propagandização do país nas redes
migratórias inter-regionais e do trabalho, assim como ocorrera de forma semelhante nas
grandes migrações europeias para o país entre o final do século XIX e início do século XX,
com finalidades e repercussões diferentes.
Para a execução desta pesquisa, centraliza-se a discussão em quatro hipóteses
principais, correspondentes a cada um dos capítulos previstos no sumário provisório do
projeto citado:
1ª) A retomada dos fluxos migratórios internacionais em direção ao Brasil, que
estavam estabilizados ou em declínio até 2003 (Gráfico 1), e o surgimento de novos fluxos de
imigrantes, ambos de latino-americanos, acentuados a partir da crise internacional de 2007
deu-se por causa da inserção estratégica do país na América Latina e a mudança de sua
política externa para o continente após 2003.4

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   
artigo para a sua dissertação de mestrado, elencou os indícios que caracterizariam este fenômeno em curso no
Brasil: a diminuição das emigrações de brasileiros, o aumento das migrações de retorno, o aumento acima da
linha de tendência das imigrações, a ocorrência de novos fluxos (principalmente de haitianos e de imigrantes da
costa oeste africana) e variáveis intervenientes internas, como o cenário econômico e laboral favorável do Brasil,
a inserção estratégica do país justamente nestes países emissores de imigrantes e a retomada da discussão da
nova Lei de Migrações. Posteriormente, autores como Rosana Baeninger e Helion Póvoa Neto, autoridades nos
estudos migratórios no Brasil, passaram a discutir este boom em suas pesquisas e obras, além de se tornar termo
corriqueiro na literatura acadêmica, em dissertações e teses defendidas a partir de 2014, como os casos de Uebel
(2015) e Faria (2015) e as obras referenciais de Souza (2015) e Redin e Minchola (2015).
4
As estatísticas tabuladas pelo autor que embasam este aumento dos fluxos imigratórios podem ser conferidas e
baixadas de forma gratuita nesta página: https://www.dropbox.com/sh/fg7dq7xq6gj2049/AAC0bhS-
eurv0vpTHSeBfjIta?dl=0. Os dados foram obtidos junto à Polícia Federal, Ministério da Justiça e Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística por meio da Lei de Acesso à Informação.
201

Gráfico 1 – Série histórica do número de imigrantes no Brasil – 2000;2007-2014.


Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Departamento de Polícia Federal, Ministério do Trabalho e
Emprego – Dados compilados e tabulados por Uebel (2015).

2ª) Houve uma mudança no padrão das imigrações de latino-americanos entre os


governos Lula da Silva e Dilma Rousseff, influenciados pelas mudanças na política externa
migratória do Brasil5, potencializando o ingresso de determinados grupos, como de centro-
americanos e caribenhos no governo de Dilma Rousseff, e de imigrantes de países fronteiriços
no governo de Lula da Silva.
3ª) A inserção estratégica do Brasil e sua atração aos potenciais imigrantes tem como
base quatro pilares: a participação do país em missões humanitárias no Haiti (atraindo
imigrantes do Caribe); o Programa Mais Médicos (atraindo imigrantes de Cuba e América
Central); os programas de cooperação e concessão de bolsas de estudo e pesquisa (atraindo
imigrantes da América do Sul); a propagandização do país pelas redes migratórias e
internacionais do trabalho (atraindo imigrantes de toda a América Latina, mas em especial do
Mercosul).
4ª) As imigrações de latino-americanos para o Brasil durante o período de 2003 a
2015 se sobrepõem a um padrão de ciclo migratório de crescimento-estabilização-declínio,
conforme prevê a literatura convencional (HATTON; WILLIAMSON, 1998; ROSIÈRE,
2007), potencializadas pelos quatro pilares da hipótese anterior.

                                                                                                                       
5
Dentre os autores que sustentam estas mudanças na política externa migratória do Brasil, cita-se Moreira
(2015), Siciliano (2013) e Ventura (2014), esta última uma das principais referências nos estudos de política
imigratória no Brasil voltada às Relações Internacionais.
202

Nesse sentido, nas seções a seguir se fará uma breve discussão sobre a
fundamentação teórica do Estado em si e o papel desempenhando pelo Estado brasileiro em
relação às migrações internacionais na contemporaneidade, por fim, trazendo o debate que se
espera aprofundar nos governos de Lula da Silva e Dilma Rouseff, e sua política externa de
cunho migratório, já que não há no Brasil uma delimitada política (i)migratória
nacional/Estatal.6
2 O ESTADO: CONCEPÇÕES E AS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS

A concepção de Estado tem passado por muitas transformações desde que este
fenômeno político nasceu na pré-modernidade. Para traçar esta linha de transformação é
necessário fazer uma breve digressão desde os seus primórdios para que se possa
compreender o tipo de construção que se possui hoje. O conceito de Estado aparece pela
primeira vez nas obras de Maquiavel7 “O Príncipe” (1513) e “Discursos sobre a primeira
década de Tito Lívio” (1531), sob o termo de stato (status) que falava de um poder central
para a modernidade. Posteriormente, Bodin, no livro “Os Seis Livros da República” de 1576
(BODIN, 1961), acrescenta a este conceito emergente a teoria da Soberania, como sendo “o
Estado-que-legisla”.
O Estado Absolutista, por sua vez, surge nos séculos XVI e XVII, em países como a
França, Espanha, Reino Unido e Áustria. Porém, esta forma de Estado foi sendo desgastada e
transformada por processos políticos de extrema importância histórica como a Revolução
Inglesa (1642-1651), a Revolução Americana (1776) e Francesa (1789), assim como através
da contribuição de diversos pensamentos teóricos desenvolvidos durante o Iluminismo por
Hobbes, Locke, Spinoza, Montesquieu e Rousseau, dentre outros (VALENCIA; 2003).
O Estado moderno, como Estado-Nação, foi surgir apenas no século XVIII,
desenvolvendo-se durante todo o século XIX e na primeira metade do século XX, chegando a
seu apogeu nas décadas de 50, 60 e 70, como Estado de bem-estar social (MARAVALL,
                                                                                                                       
6
De importante relevância aos estudos transnacionais, como se propõe este trabalho, é importante frisar que
vigora no Brasil desde 1980 o Estatuto do Estrangeiro, a legislação oficinal que trata da temática migratória,
construída, portanto, ainda sob o pensamento de securitização nacional vigente à época da Ditadura Militar. Em
relação ao refúgio, a legislação remonta ao ano de 1997, sendo uma das mais modernas do mundo, conforme o
Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, contrastando assim a forma como o Estado brasileiro
age em relação a estes dois temas migratórios. Em 2014 tentou-se formular uma “Estratégia Nacional de
Migração” por meio da realização da 1ª Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio, que não logrou
avanço em virtude da instabilidade política que se instalou no Governo Federal e suas instituições a partir do
final de 2014 e a mudança de governo em 2016. Nesse sentido, não se pode falar que há uma “política
(i)migratória nacional” unificada e estabelecida, mas sim ações pontuais por parte do Comitê Nacional para os
Refugiados, Conselho Nacional de Imigração e outros órgãos estatais, como o próprio Itamaraty.
7
Se utiliza como referência para este estudo as edições de “O Príncipe” de 2010 (MACHIAVELLI, 2010) e
“Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio” de 2007 (MACHIAVELLI, 2007).
203

1972; FOSSAERT, 1996). Esta forma de Estado, por sua vez, foi construída com base na
formação de uma sociedade nacional, organizada em várias instâncias por um poder político
central e hegemônico. A unidade nacional era mantida através do exercício do poder Estatal
sobre as relações econômicas, sociais e culturais que dela faziam parte, muitas vezes de forma
impositiva e violenta, procurando manter a coesão e a ordem dentro do seu território e a
integração de sua população.
Porém, após séculos de transformações, que o acompanharam concomitantes à
realidade de sua época, o Estado apresenta hoje uma face diferente, por assumir características
que não mais coincidem com as que o definiam, como, por exemplo, a identificação com a
célula da Nação e a busca da satisfação das políticas keynesianas do bem-estar social. Hoje, o
Estado tenta adaptar-se às necessidades de uma realidade política e econômica diferente,
construída principalmente pelas transformações do mercado internacional.
Desde a época em que Hobbes (2003) elaborou a clássica definição de Estado, este
tem passado por uma série de mudanças na sua estrutura social e política. A imigração, pode
ser compreendida como um dos agentes que possibilitou esta transformação, na medida em
que agrega elementos importantes à construção do Estado-nação, elementos estes, contidos na
presença de uma população estrangeira em solo nacional e todas as implicações culturais,
políticas, jurídicas, econômicas e sociais que ela é capaz de suscitar. Portanto, levando em
consideração estas múltiplas dimensões, sobre as quais o fluxo migratório estende seus
efeitos, analisa-se cada um destes elementos à luz do impacto que eles exercem sobre o
Estado Nacional.
A grande mobilidade dos fluxos migratórios internacionais ocasiona a
desterritorialização8 da população que compõe o Estado-Nação, um componente fundamental
para a compreensão do Estado trazido pela Geopolítica e pela Geografia Política. A população
migrante, em seu deslocamento, carrega consigo a bagagem cultural, étnica e religiosa, que
lhe desenha a própria identidade, como também, as heranças sociais e econômicas da terra
natal (possivelmente as causas que impulsionaram a emigração).
Todas estas características, emprestadas do país de origem, o imigrante leva consigo
para a realidade que lhe espera no país de recebimento. Segundo Abdelmalek Sayad (1988), a
imigração pode ser considerada como a presença no seio da ordem nacional de indivíduos

                                                                                                                       
8
Conceito trazido da Geografia que aborda, de forma sintetizada, como uma quebra de vínculos, uma perda de
território, um afastamento dos territórios, havendo assim, uma perda de controle das territorialidades pessoais ou
coletivas, uma perda de acesso a territórios econômicos, simbólicos, espaciais. Este conceito está fortemente
ligado à ideia de transnacionalismo; posto isto, levando-nos inclusive à indagação do uso do termo “migrações
transnacionais” ao invés de “migrações internacionais”. (HAESBAERT, 2003).
204

não-nacionais (i. e., de estrangeiros ou de nacionais de outra nação, de outra ordem nacional)
e a emigração, simetricamente, seria a ausência da ordem nacional, de nacionais pertencentes
a essa ordem, ou seja, o imigrante é aquele que representaria a presença estrangeira no país de
recebimento e o emigrante, por sua vez, é aquele ausente que se encontra no país estrangeiro.
De maneira especialmente complexa, ressalta-se a situação da população estrangeira
irregular, que por sua condição, encontra-se à margem de qualquer cidadania, perfazendo
estatísticas incertas. Esse grupo de indivíduos encontra-se alheio à terra natal e, virtualmente,
deslocados no país de acolhimento, vivendo nele sem, porém, fazer parte dele. Isso não
implica, todavia, que tanto o Estado receptor quanto o de origem não tenha responsabilidades
sobre esta população e não lhe deva a prerrogativa de certos direitos e garantias.
Em contrapartida, a desterritorialização deste grupo de indivíduos, não é motivo para
que estes se furtem de cumprir com determinados deveres e nem evita que o Estado possa
exercer sobre eles seu poder executivo. A duplicidade destas afirmações marca, sem dúvida, a
complexidade decorrente da tentativa do Estado em administrar a situação destes indivíduos e
determinar qual a extensão de sua responsabilidade sobre eles, mesmo sobre aqueles que se
encontram clandestinamente estabelecidos em seu país.
Em relação ao o território, enquanto elemento formador do Estado pode-se
compreendê-lo, de forma simplificada, como o espaço onde o Estado exercita sua jurisdição e
ainda, onde se estabelece a soberania de um país. Isso significa, que pela análise política deste
elemento, conclui-se que sua definição transcende as características da dimensão e limites
físicos geográficos.
Porém, atualmente, as fronteiras mundiais são muito mais difusas e permeadas por
diversos elementos transnacionais diferentes, como as empresas multinacionais, transferências
de bens e valores, deslocamento de seres humanos, etc. A crise atual do conceito de território
deve-se, principalmente, à transnacionalidade característica dos elementos da globalização.
A territorialidade estatal vive um tempo de instabilidade, pois o Estado, apesar das
alterações sofridas pelo sistema internacional, continua em sua posição clássica (centrada no
território), manifestando em razão disto, uma inconformidade com as necessidades imposta
pelo mundo globalizado. Porém, apesar do Estado-Nação estar atravessando um momento
crítico, de questionamento de sua estrutura, pode-se dizer que não é uma situação absoluta. O
Estado ainda é a célula fundamental para assegurar o estabelecimento da ordem jurídica e
social das migrações internacionais.
Talvez o Estado esteja tentando proteger sua capacidade de se autodeterminar e de
manter a independência política (capacidade de tomar as próprias decisões). A estratégia do
205

retorno ao fortalecimento dos elementos clássicos, é uma reação previsível do Estado, do


ponto de vista da Ciência Política. Todavia, a influência externa, o impacto dos fluxos
transnacionais e a consequente corrosão da Soberania, são fenômenos recorrentes no atual
Sistema Internacional, o que torna este tipo de medida paliativa (MAHLKE, 2005).
O Governo de um Estado é, portanto, responsável pela administração da população e
território que compõe o país. Porém, os princípios da legalidade e da legitimidade dos quais o
Governo deve estar investido para administrar as questões referentes à imigração, bem como
sua capacidade de construir políticas efetivas de gestão do fenômeno migratório, também
merecem ser discutidos. A legalidade, por sua vez, é o respeito às leis constituídas, conferindo
segurança à população, baseada na certeza da efetividade legal. Já a legitimidade, por sua vez,
é a legalidade qualificada pela aceitação ou negação do poder exercido pelo governo sobre os
seus governados, carregando em si um conjunto de preceitos morais e filosóficos que validam
ou invalidam o exercício deste poder.
O grande desafio de gerir esta situação está em encontrar instrumentos eficazes
capazes de atender às demandas destes agentes. E, para o Estado, convém que estes
instrumentos não comprometam sua autonomia. Apesar da concorrência emergente de muitos
outros atores, o Estado hoje ainda conserva seu status de principal agente no sistema
internacional, tanto perante a ótica da Teoria Realista das Relações Internacionais, que o
considera como o único e principal ator e agente (conforme será visto na próxima seção),
como na percepção da Teoria Construtivista (MIELNICZUK, 2015), a qual inclui maior
variedade de agentes atuando no sistema internacional, como peças chaves do
desenvolvimento e transformação das estruturas políticas e sociais, dentre elas, das migrações
internacionais.

3 BRASIL: AGÊNCIA E GERÊNCIA ESTATAL DAS MIGRAÇÕES

Apresentadas as bases empíricas e hipotéticas da pesquisa proposta, bem como as


concepções de Estado que pretendem-se utilizar no produto final, agora nesta parte discutir-
se-á o papel do Estado como agente das migrações internacionais e quais são as contribuições
dos principais clássicos da Ciência Política para esta discussão, que passa desde uma dialética
histórica até os debates contemporâneos pós-modernistas e pós-construtivistas (DURAND;
LUSSI, 2015).
206

Antes de tudo, é importante não apenas para esta pesquisa, mas também para a
compreensão do papel e do funcionamento do Estado9, a distinção entre “agência” e
“gerência” estatal no trato das migrações internacionais. Por agência estatal, infere-se um
Estado que atua e possui um papel ativo nas questões migratórias, deste o controle fronteiriço,
concessão de vistos e nacionalidades, até questões mais subjetivas, como a atração do país por
mecanismos convencionais ou não-convencionais, tais como missões humanitárias,
programas de intercâmbio e recrutamento de profissionais, etc. A agência do Estado invoca
uma participação ativa, constante, delineadora e catalizadora das questões e problemáticas que
envolvem as migrações.
Já a gerência do Estado aponta uma atuação muito mais limitada e passiva, que seria
aquela advogada pelos idealizadores do Estado mínimo, tendo este apenas o papel de
controlar os fluxos migratórios e nada mais além disto. É interessante notar que na
contemporaneidade, se analisados os dados trazidos por Arcarazo e Wiesbrock (2015), há
uma clara percepção de Estados que são ora mais agentes, ora mais gerentes das migrações
internacionais.
Um exemplo de Estado agente é o Canadá, que possui uma histórica política
imigratória voltada ao recrutamento de imigrantes e que atua em todas as searas e
circunstâncias desde a seleção do imigrante até a sua total inserção na província acolhedora e
na empresa que trabalhará. Neste diapasão, Hawkins (1998) tornou-se uma importante
referência teórica nas discussões do Estado como um agente das migrações internacionais,
trazendo o modelo canadense como um exemplo que posteriormente foi seguido por outros
países, tais como Austrália e Nova Zelândia e, de certa forma, adotado em partes pelo próprio
Brasil.
De outro lado, quando pensado um Estado gerente das migrações internacionais, os
exemplos são variados e distintos de acordo com a intensidade, finalidade e frequência desta
gerência. Por exemplo, Rocha-Trindade (1995), uma das principais autoras sobre a Sociologia
das Migrações, que também poderia ser categorizada como Ciência Política das Migrações,
coloca que Estados Unidos, Alemanha, França e Reino Unido são Estados gerentes das
migrações, mas com personalidades únicas nas gestões e políticas imigratórias.
O Estado brasileiro estaria, segundo a hipótese da pesquisa, em um meio-termo entre
um Estado agente e gerente, já que apresenta fortes elementos das duas formas, ora
potencializados em determinados casos, como nas migrações de refugiados sírios e de
                                                                                                                       
9
Sobre estes conceitos e suas aplicações em políticas públicas, além de suas personificações recentes na
América Latina, mais especialmente no Brasil, sugere-se a consulta ao artigo de Ranincheski e Castro (2013).
207

imigrantes econômicos haitianos. Uebel (2016) chegou a identificar um redirecionamento da


política externa imigratória brasileira para o caso dos haitianos, onde houve uma clara
mudança do trato estatal-institucional nos últimos três governos democraticamente eleitos do
Brasil.
Portanto, o desafio para a pesquisa em andamento é testar, já no produto da tese
doutoral, a hipótese de que o Estado brasileiro ou inaugura uma terceira forma de trabalhar as
migrações internacionais, com uma mescla entre o Estado agente e o Estado gerente, ou está
inserido em uma categoria nova dentro das mais diversas existentes nos Estados gerentes.
Logo, este será um dos pilares centrais da investigação, que necessariamente contará
com a profunda análise teórica da formação das políticas estatais de imigração de outras
nações e organizações, especialmente dos Estados Unidos, Canadá, União Europeia e Reino
Unido (não apenas por este ter iniciado um processo de desvinculação da UE, mas por
historicamente ter um papel de gerência migratória distinto ao dos demais países europeus).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste ensaio – baseado na proposta de pesquisa para tese doutoral na


temática das migrações internacionais para o Brasil – vislumbrou-se nas três seções possíveis
agências e demandas de compreensão do Estado ante às problemáticas advindas dos processos
imigratórios contemporâneos.
Na primeira seção, que discorreu sobre a proposta de pesquisa, bem como seu
problema central e hipóteses prévias, fica clara a necessidade de maior compreensão do
Estado, como entre central na promoção, gestão, acolhimento e entendimento das migrações
internacionais, já que estas começam inevitavelmente a partir da própria imagem que o Estado
– futuro receptor – passa ao potencial migrante.
Neste sentido, fica claro, ainda que não aprofundado o estudo, que o Brasil como
Estado-Nação representante de um poder regional influente – e quase hegemônico na América
Latina –, acabara por atrair dezenas de milhares de imigrantes, em especial os haitianos, nas
duas primeiras décadas do século XXI. Ações exclusivas empenhadas pelo Estado brasileiro,
destacando-se a sua liderança na MINUSTAH, comprovam esta afirmativa de atratividade
pelo Estado.
Já na segunda seção discutiu-se acerca dos aportes teóricos do Estado e suas
conexões com as questões de soberania, território e governo, principalmente, visto que estes
também se ligam às migrações internacionais não apenas como passivos, mas também ativos
208

na seleção, encaminhamento e repulsa dos imigrantes, variando conforme os preceitos de cada


Nação.
Assim, teóricos considerados clássicos como Engels e Hobbes, possuem uma
contribuição fundamental para a interpretação dos fenômenos migratórios quando amparados
sob à égide do Estado, ao passo em que os próprios migrantes, antes de tudo, são homens que
formam as famílias, a propriedade privada, a sociedade e, por fim, o próprio Estado.
Fica claro, deste modo, que uma compreensão dialética e aprofundada das Teorias do
Estado e das próprias abordagens da Ciência Política e Sociologia no que tange a sua
constituição, formação e absorção por parte da sociedade, fazem-se necessárias para um
estudo de tamanho proposto como este no ínterim das Relações Internacionais. Além disso, o
entendimento do Estado por parte da academia de Relações Internacionais deve passar
obrigatoriamente pela leitura e uso destes clássicos e outros, como Rousseau, Locke,
Bourdieu, etc.
Tendo como base o Estado, seja nos preceitos clássicos ou pós-
positivistas/construtivistas (ONUF, 1998; ZEHFUS, 2001; SMITH, 1996), a seção terceira
discutiu dois conceitos fundamentais advindos das Ciências Administrativas: o Estado agente
e o Estado gerente. Permeados nas teorias clássicas até a contemporaneidade, tais conceitos
demonstram qual o grau de atividade ou passividade de determinado Estado em relação a
determinado tema, neste caso, das migrações internacionais num study case brasileiro.
Esta discussão da seção terceira, portanto, acaba por inquirir qual seria a
categorização do Estado brasileiro no caso específico de latino-americanos e caribenhos que
migraram para o país no começo do século XXI. Há indícios – que serão discutidos na tese
doutoral – de que o Estado, aqui ultrajado por políticas governamentais e redirecionamentos
estratégicos, ora age como um agente das migrações, ora como apenas um gerente destes
fluxos.
Em suma, depreende-se que é indispensável – tanto para a discussão como para o
sucesso da análise dos resultados e testagem das hipóteses – o estudo e compreensão do
Estado, sua teoria, formação, atuação e categorização, no que tange as pesquisas de migrações
internacionais. Não é por pouco que estudos semelhantes são pré-requisitos nos pares anglo-
saxões, franceses e alemães, que tanto diferenciam-se na forma de análise das migrações, mas
que possuem por base o Estado-Nação, o ponto de partida.
Não se pode, portanto, ignorar o alcance do Estado, seus agentes, gerentes e políticas
quando se fala em migrações internacionais, ainda mais em potências emergentes como no
209

caso do Brasil, onde na maioria das vezes o Estado sobrepõe-se ao governo nas discussões e
trato das problemáticas e políticas que, originalmente, seriam tratadas pelo governo soberano.
Em períodos de crises institucionais, políticas e de ameaças à Democracia, por meio
de golpes (ou impeachments irregulares), é justamente o Estado que merece maior atenção e
dedicação de pesquisa, pois este é o único garantidor da soberania, da ordem democrática –
quando prevista – e de todas as políticas advindas do governo, seu gestor, dentre elas, as que
agem e gerenciam as próprias migrações.

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213

TUTELA DOS DIREITOS DAS MINORIAS NO ORDENAMENTO


JURÍDICO BRASILEIRO E NO SISTEMA INTERAMERICANO DE
DIREITOS HUMANOS (SIDH)1

PROTECTION OF MINORITIES RIGHTS IN THE BRAZILIAN LAW AND


THE INTER-AMERICAN HUMAN RIGHTS SYSTEM (IHRS)

Jan Marcel de Almeida Freitas Lacerda2


Érick de Freitas Mendes3
Data de submissão: 18/10/2016
Data de aceite: 21/11/2016

Resumo

O presente artigo tem por objetivo analisar a tutela das minorias no ordenamento jurídico
brasileiro e no Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), principalmente na
Constituição Federal de 1988 e na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e seu
protocolo adicional em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Para tanto,
adota-se o método de abordagem dedutivo e utiliza-se de técnicas de pesquisa qualitativas. A
pesquisa será dividida em quatro partes: primeira, aborda-se os conceitos de direitos humanos
e fundamentais, com enfoque nesses como instrumentos de garantia dos direitos das minorias;
segunda, analisa-se o SIDH e sua atuação no continente americano em defesa dos direitos
humanos; e terceira, problematizar a efetividade da proteção das minorias e o papel dos
ordenamentos jurídicos nacional e internacional para isso. Com isso, observa-se a
complementariedade entre o ordenamento brasileiro e o SIDH na proteção dos direitos
humanos fundamentais dos grupos minoritários.
Palavras-chave: Minorias; Constituição Federal; SIDH; Brasil; OEA.

Abstract

This article aims to analyze the protection of minorities in the Brazilian legal system and the
Inter-American Human Rights System (IHRS), mainly in the Federal Constitution of 1988
and the American Convention on Human Rights (ACHR) and its additional protocol on
Economic, Social and Cultural Rights. To this end, we adopt the deductive method of
approach and makes use of qualitative research techniques. The research will be divided into
four parts: First, it addresses the concepts of human and fundamental rights, focusing on those
                                                                                                                       
1
O presente artigo é resultado de estudos junto ao Grupo de Pesquisa Sapere Aude, da Faculdade de Direito do
Sul de Minas.
2
Professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e Doutorando em
Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre e Graduado em Relações
Internacionais pela UEPB. Pós-graduado em Direito Internacional pela Estácio. Graduado em Direito pela
Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Email: janmarcellacerda@uft.edu.br
3
Graduando em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Email: erickfmendes@gmail.com  
214

instruments as complementary for the minorities rights; second, it looks at the IHRS and its
operations on the American continent in defense of human rights; and third, it debates the
effectiveness of the protection of minorities and the role of national and international legal
frameworks for this. Thus, there is complementarity between the Brazilian legal system and
the ISHR in the protection of fundamental human rights of minority groups.
Keywords: Minorities; Federal Constitution; IHRS; Brazil; OAS.

1 INTRODUÇÃO

Muito embora o ordenamento jurídico brasileiro seja estruturado em torno de uma


constituição garantidora de direitos fundamentais, a realidade fática nos mostra que no plano
material tais garantias são frequentemente violadas e até mesmo negligenciadas por parte do
Estado. Sobretudo, essas violações são comuns em relação a determinados grupos de pessoas,
que nem sempre representam uma minoria numérica, mas possuem diferenças étnicas,
linguísticas, culturais dentre outras, que os marginalizam diante de uma maioria, também não
necessariamente numérica, mas que, de alguma forma, detém o controle e impõe sua vontade
aos demais.
Nesse contexto, não se pretende com este artigo encontrar a origem destas violações
aos direitos fundamentais dos grupos minoritários. Tampouco dissertar sobre a importância da
atuação do Estado brasileiro em criar ações que ao menos diminuam a ocorrência destas
transgressões que, na maioria das vezes decorrem de sua própria inércia, mas sim destacar os
mecanismos de defesa existentes.
O que se pretende é demonstrar a relevância dos direitos fundamentais constantes na
Constituição Federal de 1988 (CF/88) e dos direitos humanos decorrentes de tratados e
convenções internacionais, especialmente a Convenção Americana de Direitos Humanos e seu
protocolo adicional na defesa dos direitos das minorias quando no caso de suas transgressões.
Sobretudo, a complementariedade para a proteção das minorias por meio desses dispositivos
jurídicos nacional e internacional.
Para tanto, adota-se o método dedutivo de abordagem da pesquisa, buscando
primeiramente partir da abrangência dos direitos humanos e dos fundamentais para então
especificar os direitos minoritários na Constituição Brasileira atual e no Sistema
Interamericano de Direitos Humanos (SIDH). A pesquisa é qualitativa, com utilização de
revisões literárias e documentais sobre a temática estudada.
Sendo assim, o artigo em primeiro plano delimita os contornos doutrinários acerca dos
direitos fundamentais, humanos e sua incorporação em nosso ordenamento jurídico. Há
também uma breve análise conceitual da expressão minorias, sem diferenciá-la dos grupos
215

vulneráveis nos quais se enquadrariam os homossexuais, as mulheres e outros tantos grupos


que são vítimas deste pensamento anacrônico, que, na maioria das vezes se justifica na inércia
do Estado e os marginalizam em detrimento de outros grupos.
Em segundo momento, detalha-se o SIDH, já que se visualiza o sistema regional de
proteção dos direitos humanos como ambiente jurídico complementar de garantia de direitos,
com destaque para os das minorias. No terceiro momento, observa-se e problematiza-se a
garantia dos direitos das minorias nos instrumentos nacionais e internacionais estudados.
Posto isto, é importante salientar para o fato de que, até que o Estado promova
políticas públicas que efetivem no plano material a igualdade preconizada na Constituição de
1988 e nos Tratados Internacionais por ela incorporados, faz-se relevante identificar os
mecanismos de defesa que as minorias possuem no nosso ordenamento jurídico e até mesmo
fora dele.

2 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS: A GARANTIA DOS


DIREITOS DAS MINORIAS

A afirmação dos direitos humanos decorre de um processo evolutivo histórico,


essencialmente cumulativo, cujo fundamento de validade é a dignidade da dignidade da
pessoa humana, que é um atributo natural de que todo ser humano deveria gozar e, por isso,
valor máximo que orienta sua interpretação. Os direitos humanos são direitos inerentes a
todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma,
religião ou qualquer outra condição.
Nos dizeres de Sarlet (2012, p.18), os direitos humanos guardam relação com os
documentos de direito internacional, posto que eles se referem àquelas posições jurídicas que
se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com
determinada ordem constitucional. Assim, os direito humanos aspiram à validade universal,
para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional
(internacional).
Este processo de internacionalização dos direitos humanos que interpreta os direitos da
pessoa humana como sendo seara do direito internacional ganha uma relevância ainda maior
com a proclamação da Declaração Universal de Direitos Humanos, em 10 de dezembro de
1948, enquanto o mundo ainda sentia os efeitos da segunda guerra mundial. Posteriormente,
essa Declaração juntamente com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) e
seus dois protocolos facultativos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
216

Culturais (1966) são importantes diplomas jurídicos internacionais responsáveis pela


internacionalização dos direitos humanos e, juntos, formam a chamada Carta Internacional
dos Direitos Humanos.
No continente americano, a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem,
de 1948, foi o marco inicial do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH). Em
conjunto com a Carta Constitutiva da OEA (1948) e a Convenção Americana de Direitos
Humanos (1969), tem-se a construção do SIDH e de sua estrutura regional de proteção dos
direitos humanos. Foi através da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) que
foi instituída a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) como órgão
jurisdicional do sistema e a criação da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH)
como órgão judicial autônomo em relação à OEA. Com isso, a partir da atuação desse sistema
regional e de seus instrumentos jurídicos que este artigo busca observar as garantias dos
direitos das minorias também nesse âmbito de proteção.
Desse modo, os direitos humanos positivados em instrumentos jurídicos internacionais
e regionais estabelecem direitos específicos para a defesa dos grupos minoritários. Conforme
o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, em seu artigo 27, traz o dispositivo
mais utilizado para promoção e garantia dos direitos das minorias, já que postula que:

Nos Estados em que existam minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, as


pessoas pertencentes a essas minorias não devem ser privadas do direito de
ter, em comum com os outros membros do seu grupo, a sua própria vida
cultural, de professar e de praticar a sua própria religião ou de empregar a
sua própria língua (ONU, 1966).

Por sua vez, os direitos fundamentais seriam aqueles direitos do homem juridicamente
garantidos, com limitações de tempo e espaço, com vistas a estabelecer direitos, garantias e
deveres aos cidadãos. Ao contrário dos Direitos Humanos, que possuem um aspecto de
validade universal, os direitos fundamentais possuem limitações de tempo e espaço. Segundo
Canotilho (1993, p.517), os direitos fundamentais seriam aqueles objetivamente vigentes em
uma ordem jurídica concreta, seriam os direitos do homem, jurídico-institucionalmente
garantidos e limitados espaço-temporalmente.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prevê em seu corpo a
existência de diversos direitos e garantias fundamentais que podem ser encontrados por todo o
seu texto, especialmente em seu Título II “Dos Direitos e Garantias Individuais”, capítulos I,
II, e IV. Para além disto, a Constituição incluiu os direitos e garantias fundamentais em seu
rol de cláusulas pétreas, impondo limites materiais ao poder de reforma, de modo que tais
217

direitos não possam ser objeto de deliberações tendentes a aboli-los. Ressalte-se, que dentre as
Constituições brasileiras, a de 1988 é a única em que os direitos humanos foram
expressamente estabelecidos como sendo um dos princípios que regem as relações
internacionais das quais o Estado brasileiro faça parte, conforme inteligência do artigo 4º,
inciso II (BRASIL, 1988).
A CF/88 também traz em seu artigo 3º que: “constituem objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil: IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (BRASIL, 1988). Já no
caput do artigo 5º, ela aponta que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (BRASIL, 1988).
Cabe mencionar, ainda, que, além destes dispositivos, existem aqueles que punem a
discriminação dos direitos e liberdades fundamentais, a exemplo do artigo 5º, XLI, da CF/88
(BRASIL, 1988). Assim sendo, são direitos e garantias para a proteção dos indivíduos, quer
seja por ser parte da minoria ou da maioria.
Nesse contexto, pode-se dizer que a doutrina utiliza a expressão direitos fundamentais
para se referir aos direitos do homem incorporados na constituição de um determinado
Estado. Já a terminologia direitos humanos para definir aqueles direitos do homem que
traduzem um sentido universal, contidos basicamente em Tratados ou Convenções
Internacionais, que ultrapassam os limites dos Estados Nacionais, de modo a garantirem uma
proteção internacional.
A proteção dos direitos humanos e as garantias fundamentais são pressupostos
essenciais de um Estado Democrático de Direito, orientando a interpretação de todo o seu
ordenamento jurídico. Desta forma, toda a atuação do Estado deve estar orientada por leis e
no sentido de promover a igualdade para todos os seus cidadãos, ainda que façam parte de
certas minorias. De acordo com Rocha (1996, p. 87), o significado de minoria seria:

Não se toma minoria no sentido quantitativo, senão no de qualificação


jurídica de grupos contemplados ou aceitos com um cabedal menor de
direitos, efetivamente assegurados, que outros, que detém o poder [...] na
prática de direitos, nem sempre significa o menor número de pessoas. Antes,
nesse caso, uma minoria pode bem compreender um contingente que supera
em número (mas não na prática, no respeito etc.) o que é tido por maioria.

Por ser o Estado um instrumento para a consecução da dignidade da pessoa humana,


não se pode permitir que grupos minoritários sejam tratados de forma prejudicial, em razão de
sua orientação sexual ou de diferenças de gênero, étnicas, culturais, linguística ou quaisquer
218

outras. Além da Constituição federal de 1988, existem normas infraconstitucionais para a


proteção das minorias, como as Leis 7716/89, que define os crimes resultantes de preconceito
de raça ou de cor, e a 2889/56, a qual define e pune o crime de genocídio. Desse modo, a
garantia dos direitos das minorias consiste nas normas que protegem as minorias de um
Estado.
Portanto, tanto os direitos humanos quanto os fundamentais servem precipuamente
para limitar o arbítrio que o Estado possui em relação aos seus indivíduos, de modo a garantir
a dignidade da pessoa humana. A República Federativa do Brasil está vinculada aos direitos e
garantias fundamentais constantes em seu ordenamento jurídico, bem como aos direitos
humanos constantes de tratados e convenções internacionais que tenham sido ratificados e
incorporados ao seu ordenamento. Com isso, além da proteção fundamental da Constituição e
leis estatais, este artigo busca abordar também os instrumentos jurídicos do direito
internacional como âmbitos complementares de garantia dos direitos humanos, especialmente
os dos grupos minoritários e no sistema de proteção dos direitos humanos da OEA.
Ainda que os direitos fundamentais sejam aqueles objetivamente vigentes em uma
ordem jurídica concreta, eles não se limitam aos que já estão incorporados no texto
constitucional, pois de acordo com o artigo 5º, parágrafo 2º da Constituição Federal (1988), os
direitos já existentes não excluem aqueles decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados ou dos tratados em que o Estado brasileiro faça parte (BRASIL, 1988).
Muito embora o parágrafo terceiro do artigo 5º, incluído pela Emenda Constitucional
45, estabeleça que os tratados e convenções internacionais de direitos humanos no Brasil que
forem aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos
votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. O parágrafo
segundo do mesmo artigo permite que, ainda que não sejam aprovados pelo quórum
qualificado, eles poderão ser incorporados no nosso ordenamento jurídico, porém não mais
com status constitucional (BRASIL, 1988).
Em decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal (STF), quando do julgamento do
Recurso Extraordinário nº. 349.703-1 de 2008, concebeu o status normativo supralegal dos
tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, o que significa que trata-se
de uma norma que está abaixo da Constituição Federal e suas emendas, mas está acima das
demais leis, no caso de o tratado ou convenção internacional que versar sobre direitos
humanos não ser aprovado pelo quórum qualificado (BRASIL, 2008). Neste sentido, David
Araújo e Nunes Jr (2013, p. 278) prelecionam que:
219

[...] é possível entender que há dois tipos de tratamento dos tratados


internacionais e convenções que veiculem direitos humanos, segundo a atual
jurisprudência do STF. A primeira, para os tratados aprovados por decreto
legislativo regular (maioria simples), que atribui aos tratados status
supralegal. A segunda, preconizada pelo atual §3 o art. 5° que atribui aos
tratados status constitucional, desde que obedecido o rito de aprovação mais
rigoroso (dois turnos e 3/5).

Vale ressaltar que, entre os anos de 1964 a 1985 esteve instalada no Brasil uma
ditadura militar, na qual os direitos fundamentais e os direitos humanos foram desrespeitados,
tais como o direito à vida, à liberdade, à intimidade, à manifestação do pensamento, às
ideologias, as convicções políticas, dentre tantas outras formas de violações aos direitos
humanos. O Brasil passava por um momento em que os Tratados de direitos humanos não
eram assinados, sob a alegação de incompatibilidade desses com a ordem vigente no país.
(AGGELEN, 2008, p. 591).
Essa situação somente se encerrou com o fim do regime militar em 1985, que acabou
por ensejar um processo de redemocratização do país, o que tornou a proteção dos direitos
humanos uma política de Estado e com proteção constitucional positivada. Nesse aspecto, é
relevante e notória a importância da Constituição Federal de 1988, haja vista que, além da
proteção que ela trouxe para as garantias e direitos fundamentais, trouxe, também, a
possibilidade de tratados e convenções internacionais que versem sobre direitos humanos
serem incorporados em nosso ordenamento jurídico com aplicabilidade imediata e status
constitucional ou supralegal, conforme for o caso.
Ademais, é importante salientar para o fato de que, apenas a Convenção Internacional
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo (promulgados pelo
decreto 6.949 de 25 de agosto de 2009) foram incorporados com status constitucional
(BRASIL, 2009). Assim, evidencia-se o fortalecimento das garantias fundamentais para uma
minoria representada pelas pessoas com deficiência. Os demais tratados e convenções
internacionais ratificados pelo Brasil possuem status supralegal, por isso a importância do
parágrafo segundo do artigo 5º, da Carta Magna, que permitiu a incorporação de importantes
diplomas na defesas dos direitos Humanos. No mais, tais garantias às minorias podem
também ser institucionalizadas no âmbito regional das Américas, por meio da OEA e do seu
sistema de proteção dos direitos humanos.

3 A OEA E O SISTEMA PROTETIVO DOS DIREITOS HUMANOS


A Organização dos Estados Americanos (OEA) é uma organização internacional
fundada em 1948, por meio da constituição de sua carta constitutiva (OEA, 1948). De acordo
220

com o artigo 1ª, da Carta da OEA, o objetivo da organização é a manutenção de uma ordem
de paz e justiça, de promover a solidariedade, de intensificar a colaboração e de defender a
soberania, a integridade territorial e a independência nas Américas (OEA, 1948). A OEA é
um organismo regional inserido no sistema da Organização das Nações Unidas (ONU), mas
age de forma autônoma.
É composta por 35 Estados membros do hemisfério americano e “constitui o principal
fórum governamental político, jurídico e social do Hemisfério” (OEA, 2015). O Sistema
Interamericano é caracterizado por ser uma rede de disposições e instituições, as quais
objetivam os princípios basilares da democracia, dos direitos humanos, da segurança e do
desenvolvimento (OEA, 2015). Esses são os objetivos essenciais para a organização e foram
estabelecidos por uma estratégia quádrupla, já que se apoiam mutuamente e estão
intrinsecamente interligados. Assim: “por meio de uma estrutura que inclui diálogo político,
inclusividade, cooperação, instrumentos jurídicos e mecanismos de acompanhamento, que
fornecem à OEA as ferramentas para realizar eficazmente seu trabalho no hemisfério e
maximizar os resultados” (OEA, 2015).
A OEA vem elaborando normas jurídicas de direito internacional público e privado,
bem como dando sequência aos ambientes de aplicação dessas normas. Ou seja, a organização
atuam em relações entre os Estados e entre esses e o os indivíduos (ARRIGHI, 2004, p. 89).
Segundo Arrighi (2004, p. 86), dentre as contribuições ao direito, a defesa dos direitos
humanos e dos sistemas democráticos merecem atenção e destaque, pois, mesmo que
recentemente criados, são importantes campos e instrumentos do direito internacional público,
com significativa contribuição significativa desenvolvimento do direito.
Além do mais, a Organização regional não apenas cria as normas, mas também
constitui instrumentos jurídicos para a aplicação eficaz de suas normas, com “a capacitação
dos principais atores implicados em processos desse tipo” (ARRIGHI, 2004, p 91). Sendo
assim, a OEA é o mais alto nível político e técnico, ou ainda jurídico, com um conjunto de
instâncias e uma Carta constitutiva. Em suma, a organização tem aparatos jurídicos
internacionais que criam uma agenda jurídica para a região (ARRIGHI, 2004, p 91).
Esses instrumentos jurídicos são relevantes na aplicação, monitoramento e efetivação
das normas vigentes, com a criação de mecanismos de acompanhamento de cumprimento das
normas, como programas, comissões, comitês consultivos e tribunais (ARRIGHI, 2004, p 92).
Para Arrighi (2004, p. 92): “estes mecanismos podem ser órgãos específicos, instituídos
expressamente, ou meios mais flexíveis, como a apresentação periódica de relatórios por parte
dos Estados e sua avaliação por instâncias técnicas ou políticas”. Isto é, são os casos aqui
221

estudados do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), agindo por meio da


Comissão e Corte Interamericanas de Direitos Humanos.
Vale pontuar a importância da Comissão Jurídica Interamericana da OEA e sua missão
no desenvolvimento do direito internacional nas Américas. Por meio do estabelecimento de
suas funções nos artigos 99 e 100 da Carta da OEA, a Comissão tem capacidade de iniciativa
e diferentes formas de ação, podendo propor convenções, leis uniformes, conferências, etc.
Além do mais, é um mecanismo de consulta jurídica dos órgãos políticos da OEA (ARRIGHI,
2004, p 50). Desse modo, a Comissão Jurídica Interamericana contribui consideravelmente
para o desenvolvimento do direito internacional público e privado, inclusive foi responsável
pela proposta inicial da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH).
De acordo com Arrighi (2004, p. 99), o continente americano ainda convive com
graves violações de direitos humanos e até pouco tempo atrás os órgãos políticos da OEA
estiveram ausentes na denúncia dessas violações. Mesmo assim, os Estados foram elaborando
normas e criando instituições regionais para proteger os direitos dos indivíduos, assim como
reconhecendo a falta de proteção oferecida apenas pelo direito nacional, buscando suprir as
falhas e as carências desse direito doméstico através das normativas internacionais.
A proteção dos direitos humanos é uma obrigação estatal por excelência, desde a
incorporação desses direitos nas constituições ocidentais no pós Revolução Francesa e
Revolução Americana. Contudo, com os acontecimentos do século XX, principalmente a
proliferação de ditaduras europeias e latino-americanas, a violação desses direitos foi
recorrente e alertou ao mundo que o direito nacional não era mais suficiente para garanti-los.
Em consequência, a proteção dos direitos humanos passou a ter também a sua
responsabilidade compartilhada internacionalmente. Isto posto, forneceu-se margem à
promulgação da Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU e, pouco tempo antes
dela, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, demostrando a preocupação
regional do continente americano com esses direitos dos indivíduos (ARRIGHI, 2004, p. 99).
A supracitada Declaração regional de Direitos Humanos foi preparada pela
anteriormente mencionada Comissão Jurídica Interamericana, existente antes da OEA e
instrumento das Conferências Internacionais Americanas. Segundo Arrighi (2004, p. 100-
101), a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 1989, pronunciou-se a respeito da
competência para interpretar a declaração e defendeu que essas normas obrigam todos os
Estados membros da OEA, já que os Estados partes da Carta da Organização estão igualmente
obrigados pela Declaração Americana.
222

Além do aumento do papel e das funções da Corte, a Comissão Interamericana de


Direitos Humanos também ganhou autonomia e autoridade dentro da OEA. A Comissão era
inicialmente um órgão apenas da organização, estabelecido na Carta Constitutiva, em 1967,
por meio do Protocolo de Reformas de Buenos Aires. Em seguida, passou a ser também órgão
competente de julgar violações à Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH),
adotada em 1969 e configurada como um dos principais instrumentos do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos (ARRIGHI, 2004, p. 100). Sendo assim, a conjunção
dessas normas e de seus instrumentos formou um sistema regional de proteção dos direitos
humanos.
Para Ramanzini (2014, p. 38), o SIDH é composto por dois órgãos jurídicos e objetiva
regular a observância dos padrões internacionais de direitos humanos. Desse modo, a autora
observa que grande gama dos trabalhos produzidos sobre SIDH são estatocentristas e, ao
adicionar outros atores internacionais, há uma crescente expansão nos estudos sobre a
influência dos atores transnacionais, como as redes transnacionais de advogados e as ONGs,
na promoção, fiscalização/monitoramento e até acionamento do SIDH. Entretanto, igualmente
como a autora, este estudo foca na variável explicativa internacional para analisar o sistema.
Apesar das críticas de diversos autores sobre a baixa capacidade do SIDH em intervir
na condução política do âmbito da OEA, é importante aceitar que, como pontuado por
Ramanzini (2004, p. 39), a organização já passou por um processo de ser usada como
instrumento da política externa dos EUA e a relação entre a organização e o SIDH nem
sempre foi positiva em termos de cooperação. Contudo, o SIDH mostrou habilidade para
superar esses obstáculos e vem construindo oportunidade de ultrapassar os limites
institucionais originários, as pressões dos Estados e os constrangimentos das estruturas da
OEA, buscando autonomia em relação aos Estados e ampliando suas funções e suas missões.
Assim como analisado por Ramanzini (2004, p. 49), este estudo compreende que a
alteração das funções, atividades e padrões do SIDH e de seus instrumentos jurídicos são
considerados ganhos de autonomia institucional, reforçando a autoridade e o poder desses
instrumentos jurídicos internacionais em direitos humanos, pois não poderiam ser
considerados resultados de pressão dos Estados membros da organização. Ao passo que o
Sistema, a partir de seu próprio desenvolvimento institucional consegue moldar os
comportamentos dos Estados em relação às recomendações da CIDH e às decisões da Corte
de IDH, há incrementos e desdobramentos institucionais amplificadores de suas capacidades
de atuação no continente americano (RAMANZINI, 2014, 15). Isto posto, a importância dessa
estrutura e de sua atuação prática para a proteção das minorias nas Américas.
223

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos ou Pacto de São José da Costa Rica
proporciona a consolidação de um regime de liberdade pessoal e de justiça social, inserida no
continente americano. Nas palavras de Moraes (1997),
Importante ressaltar algumas previsões da Convenção Americana de Direitos
Humanos - Pacto de San José da Costa Rica, de 22-11-1969, que
reafirmaram o propósito dos Estados Americanos em consolidar no
Continente, dentro do quadro das instituições democráticas, um regime de
liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos direitos
humanos essenciais (MORAES, 1997, p. 39).

Outro aspecto relevante a ser pontuado, é a diferença entre essa Convenção e a


Declaração Universal dos Direitos do Homem, bem como é diferente também da Declaração
Americana de Direitos e Deveres do Homem, pois essa Convenção traz instrumentos jurídicos
claros para o julgamento e monitoramento da situação dos direitos humanos nos Estados
americanos. A Convenção é disposta da seguinte maneira: “Os 82 artigos do referido Pacto
dividem-se em três partes: Deveres dos Estados e Direitos Protegidos; Meios de Proteção e
Disposições Gerais e Transitórias” (MORAES, 1997, p.39).
Neste contexto, este artigo ressalta também que esses direitos fundamentais dispostos
na Convenção Americana também se encontram positivados em diversos incisos da
Constituição Brasileira de 1988, que representa o marco do regime democrático frente ao
regime militar ditatorial do período anterior. Consequentemente, ficou reconhecida como uma
das constituições mais avançadas no mundo no tocante ao respeito aos direitos dos seres
humanos, já que dispõe da dignidade da pessoa humana como princípio do Estado e do
ordenamento brasileiro (art. 1, inciso III) (BRASIL, 1988; MORAES, 1997).
Para Ramanzini (2014) e outros estudiosos do SIDH, a CADH foi o instrumento de
direitos humanos mais ambicioso e amplo já desenvolvido por um sistema internacional. A
Convenção ampliou consideravelmente o conteúdo da Declaração Americana de Direitos e
Deveres do Homem (1948) e ainda modificou o sistema de direitos humanos ao instituir uma
Corte regional, com autoridade técnica jurídica para julgar as transgressões de direitos
humanos. Assim sendo, a Corte é um tribunal internacional especializado em direitos
humanos e componente do SIDH, ajudando esse sistema a ganhar autonomia da OEA e a
consolidar-se como estrutura poderosa e com agência na responsabilização dos Estados por
violações de direitos humanos no continente americano (essencialmente aos Estados que
ratificaram a sua competência) (RAMANZINI, 2014, p. 47). Portanto, o SIDH passou por
uma mudança e o que antes era um sistema declaratório, passou a ser um sistema protetivo.
224

Anos após, foi firmado um protocolo adicional à Convenção em Matéria de Direitos


Econômicos, Sociais e Culturais, mais conhecido como Protocolo de San Salvador, assinado
em 17 de novembro de 1988, no Décimo Oitavo Período Ordinário de Sessões da Assembleia
Geral, em San Salvador, El Salvador (OEA, 1988). Esse dispositivo de permissão de adição
de protocolo é verificado no artigo 77 da Convenção, ao qual se permite incluir
progressivamente outros direitos e liberdades (OEA, 1969).
É nesse protocolo adicional à CADH em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais que os direitos das minorias são citados claramente, pois podemos elencar, por
exemplo: direito de não discriminação (artigo 3); direito dos idosos (artigo 9 e 17); direito das
pessoas portadoras de deficiência (artigo 9 e 18); direitos culturais (artigo 14); e direito das
crianças (artigo 16) (OEA, 1988). Outro protocolo adicional foi o relativo à Abolição da Pena
de Morte, adotado em 1990 (ARRIGHI, 2004, p. 102).
Portanto, a CADH é um importante instrumento na defesa dos direitos humanos,
especialmente aqui destacados os das minorias. Foi ratificada pelo Brasil em 1992 e, assim,
devidamente incorporada em nosso ordenamento jurídico, na forma do parágrafo segundo do
artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, bem como integra e dá substância normativa ao
SIDH.
De acordo com o mais recente entendimento do STF (2008), esse diploma
internacional foi recepcionado com status supralegal e firmou-se como um instrumento
jurídico de direito internacional importante na complementação da garantia dos direitos dos
humanos no continente americano. No presente artigo são destacados os direitos dos grupos
minoritários dos Estados Americanos e, assim, das Américas.
Em suma, o sistema interamericano de proteção aos direitos humanos tem como
origem histórica a Carta da Organização dos Estados Americanos, de 1948, bem como na
Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, também de 1948. Porém, tem como
instrumento específico de proteção dos direitos humanos na CADH de 1969, que entrou em
vigor apenas em 18 de julho de 1978, quando obteve o mínimo de 11 ratificações dos Estados
membros (ARRIGHI, 2004, p. 101). Quando aos instrumentos políticos e jurídicos
estabelecidos nessa Convenção, são estabelecidos como meios de garantia e acesso aos
direitos humanos fundamentais dos grupos minoritários dos Estados americanos.
Nessa conjuntura de avanços e problemas dos instrumentos jurídicos do SIDH e diante
da realidade fática das minorias que nos mostra um acentuado histórico de exclusão social que
tolhe direitos e garantias fundamentais, sobreleva-se a importância de que a Comissão e Corte
sejam capazes de ampliar as possibilidades de acesso à justiça. De modo a garantir que a
225

igualdade e a não discriminação, que estão previstas tanto em textos normativos


interamericanos de direitos humanos quanto na Constituição Federal de 1988, sejam sentidas
no plano material, como será visto no próximo tópico.

4 A PRÁTICA DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS DAS


MINORIAS

Ao longo da história nacional, verifica-se que existem diversos grupos de pessoas que
são subjugados em relação a outros, em razão de suas diferenças étnicas, culturais,
linguísticas dentre outras. Os Direitos Humanos e fundamentais – ou ainda Direitos Humanos
Fundamentais – não devem limitar-se ao indivíduo considerado isoladamente, eles devem ser
compreendidos como sendo inerentes aos indivíduos pertencentes aos chamados grupos
minoritários. Uma das funções básicas de uma República Democrática de Direito é garantir o
direito das minorias. Em sentido próximo, Piovesan (2013, p. 98) nos diz que as democracias
precisam proteger os direitos das minorias e assegurar respeito às liberdades civis
fundamentais.
Tanto a Constituição da República Federativa do Brasil quanto o Sistema
Interamericano de direitos Humanos (SIDH) são importantes diplomas na defesa dos direitos
das minorias. Embora não façam menção expressa à terminologia “minorias”, eles asseguram
mecanismos de defesa no caso de transgressões de direitos de grupos minoritários por parte
do Estado.
Ainda que no plano material a realidade fática das minorias careça de efetividade,
pode-se dizer que a Constituição Federal, por meio dos princípios por ela adotados, garante às
minorias tratamento que não as desfavoreça, e assegura a igualdade de todos perante a lei
(artigo 5º, da CF). A exemplo, pode-se citar as ações afirmativas, que são políticas públicas
feitas pelo governo ou pela iniciativa privada com o objetivo de corrigir desigualdades
historicamente acumuladas; garantir a igualdade material aos grupos tidos como minoritários,
valendo-se para tanto, de preceitos constitucionais, como no caso das cotas raciais que
reservam vagas em instituições públicas ou privadas para grupos específicos classificados por
etnia. Sendo assim, agindo de forma complementar à lei, as políticas das ações afirmativas
ajudam na efetivação dos direitos das minorias.
Entretanto, mesmo presentes de forma implícita na Carta Magna, ocorrem
transgressões aos direitos humanos que são garantidos às minorias, o que nem sempre pode
ser resolvido no âmbito do Direito interno. Desta forma, os mecanismos internacionais podem
226

ser muito importantes, como forma de assegurar o cumprimento de preceitos essenciais


inerentes à pessoa humana e, assim, agir de forma complementar na defesa dos direitos
humanos, mais precisamente das minorias. Neste sentido, Ramos (2012, p.156) pontua que:

Todavia, não é possível esquecer que mesmo democracias consolidadas


passam por conjunturas de pânico e podem sacrificar os direitos de minorias,
como se viu na luta antiterror no pós-11 de setembro nos Estados Unidos e
em outros países europeus, o que torna indispensável a adesão dessas
democracias aos direitos humanos internacionais e seu consequente
monitoramento.

Com isso, pode-se interpretar que, para os intentos do presente artigo, a Convenção
Americana de Direitos Humanos (CADH) garante mecanismos de defesa no caso de
transgressão de direitos dos grupos minoritários por parte do Estado, de modo a permitir que
as partes consigam rever as decisões proferidas pelo Estado ao qual fazem parte ou no caso de
inércia destes.
Como evidenciado por Santili (2008, p. 146-147), podemos destacar direitos
assegurados às minorias em dispositivos da Declaração Americana e da CADH, como:
I. Artigos 2º da Declaração e 1º da Convenção asseguram a igualdade perante a lei
para todos, sem distinção de raça, sexo, língua, crença ou qualquer outro fator;
II. Artigo 24 da Convenção prevê a não discriminação; artigo 3º da Declaração
determina a liberdade de religião, assim como o artigo 12 da Convenção;
III. Artigo 4º da Declaração adota a liberdade de expressão, adicionando ao artigo 13
da Convenção que proíbe apologia ao ódio nacional, racial ou religioso, incitando a violência;
IV. Artigos 5º da Declaração e 11 e 14 da CADH protegem a todos em sua vida
privada;
V. Artigos 8º da Declaração e 22 da Convenção garantem liberdade de circulação e o
direito de escolha do local de residência;
VI. Artigo 12 da Declaração traz o direito à educação. Esse direito não é abarcado na
CADH, mas em seu protocolo adicional, o Protocolo de San Salvador;
VII. Artigo 13 da Declaração e artigo 14 do Protocolo de San Salvador determinam o
direito a participar da vida cultural da comunidade e também protege a propriedade
intelectual;
VIII. Artigos 18 da Declaração e 8º da CADH estabelecem o direito a julgamento justo
e a um tradutor ou intérprete se necessário;
IX. Artigo 20 da Declaração e 23 da Convenção preveem o direito de voto e de
participar do governo;
227

X. Artigo 22 da Declaração estabelece a liberdade de associação, com o intuito de


promover, exercer e proteger os seus legítimos interesses políticos, econômicos, religiosos,
sociais, culturais, econômicos, trabalhistas ou de outra natureza”. Previsão similar no artigo
16 da CADH.
Fica evidenciado, então, que tanto em plano mais amplo do SIDH – Declaração
Americana e Carta da OEA – quanto em plano mais específico – CADH e demais documentos
do mais amplo – há direitos assegurados aos grupos minoritários nas Américas. A Comissão e
a Corte estão recorrentemente lidando com proteção e garantias de direitos das minorias,
como em alguns casos submetidos ao sistema protetivo de direitos humanos da OEA, por
exemplo:
I. Caso do Povo Saramaka versus Suriname, com sentença da CorteIDH de 28 de
novembro de 2007: a Corte reconheceu a personalidade jurídica coletiva do Povo Saramaka e
garantiu direitos coletivos para esse grupo minoritário do Suriname. O caso foi peticionado à
Comissão, mas não teve solução e foi remetido à Corte. Foram determinadas indenizações
monetárias ao povo tribal dos Saramakas, por causa de danos ambientais e uso dos recursos
naturais pelo Suriname. O Povo Saramaka foi compreendido como possuidor de
características similares aos dos povos indígenas, com diferenças sociais, culturais e
econômicas diferentes da comunidade nacional do Suriname e reconhecido o direito coletivo
da propriedade, fundamentado na tradição comunitária (CORTEIDH, 2008);
II. Caso Villagrán Morales e outros versus Guatemala, com sentença da Corte de 19
de novembro de 1999: o tribunal interamericano condenou o Estado a pagar uma indenização
aos familiares de cinco menos de rua que foram mortos por policiais do Estado. A Guatemala
também foi induzida a promover reformas no ordenamentos jurídico do país para que
possibilitasse uma maior proteção das crianças e dos adolescentes, assim como construísse
uma escola em memória dos mortos. A Comissão Interamericana também teve uma atuação
importante, pois emitiu um parecer sobre a condição jurídica e a situação dos direitos
humanos fundamentais das crianças e dos adolescentes na Guatemala, em 2002.
(CORTEIDH, 1999; SILVEIRA; ALMEIDA, 2014, p. 270);
III. Caso Gonzáles e outras versus México, sentença da Corte de 16 de novembro de
2009: o Estado Mexicano foi condenado pelo desaparecimento e morte de várias mulheres na
Ciudad Juarez, com a argumentação de que a omissão do Estado estava contribuindo para a
cultura de violência e discriminação contra a mulher. Também ficou determinado que o
Estado deveria investigar os crimes por meio da questão de gênero e adota-se medidas de
combate a discriminação. (CORTEIDH, 2009; SILVEIRA; ALMEIDA, 2014, p. 270);
228

IV. Caso Atala Riffo e filhas versus Chile, com sentença da CorteIDH de 24 de
fevereiro de 2012: o Chile foi responsabilizado por tratamento discriminatório contra Karen
Atala Riffo, pois o judiciário do país determinou que a custódia das crianças ficassem com os
país em virtude da Karen conviver, após o divórcio, com uma pessoa do mesmo sexo dela.
Assim, a Corte atendou com o Chile violou o princípio da igualdade e da não discriminação
presentes na Convenção Americana. (CORTEIDH, 2012; SILVEIRA; ALMEIDA, 2012, p.
270-271);
V. Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni versus Nicarágua, com
sentença da Corte de 31 de agosto de 2001: foi reconhecido o direito sobre as terras, por meio
de um direito coletivo da propriedade, fundamentado na tradição comunitária dos Sumo.
(CORTEIDH, 2001; SILVEIRA; ALMEIDA, 2014, p. 271);
VI. Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa versus Paraguai, com sentença de 17
de junho de 2005: a Corte garantiu o acesso ao serviço de saúde do Paraguai, mas a partir de
uma perspectiva cultural, que respeitasse as práticas curativas da Comunidade indígena e a
medicina tradicional. (CORTEIDH, 2005; SILVEIRA; ALMEIDA, 2014, p. 271);
VII. Caso Comunidade Indígena Xákmok Kásek versus Paraguai, com sentença de 24
de agosto de 2010: o Estado Paraguai foi condenado por não respeitar o direito à vida,
propriedade comunitária e proteção judicial dos Xákmok Kásek. O direito à terra de forma
coletiva, como preceituado no artigo 21 da CADH, foi violado, bem como o Estado não
promoveu a proteção dessa comunidade. (CORTEIDH, 2010; SILVEIRA; ALMEIDA, 2014,
p. 271);

Desse modo, pode-se observar a recorrente solicitação do SIDH pelos grupos


minoritários dos Estados Americanos, como os casos supracitados dos povos tribais, das
crianças e dos adolescentes, das mulheres, dos homossexuais e dos povos indígenas.
Pretendeu-se nos casos retratados nesse artigo exemplificar a importância do SIDH e seus
instrumentos jurídicos na proteção das minorias, mas não fora, esgotados aqui os demais
casos que recorrentemente são jugados em pró das minorias na Comissão e na Corte.
Além da já citada Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), o Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (que também detém status supralegal no
ordenamento jurídico brasileiro), em seu artigo 27 deixa claro que as pessoas pertencentes a
grupos minoritários por questões étnicas, culturais ou linguísticas, não poderão ser privadas
do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural,
de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua. Para o presente artigo, o
229

alcance dos direitos humanos internacionais devem ser interpretados de forma ampla,
dialogando com outros instrumentos jurídicos internacionais e podendo utilizar também de
outros dispositivos em tratados internacionais de direitos humanos, contudo, a interpretação
mais recente da Corte é que deve-se interpretar em conjunto com a CADH (CHIRIBOGA,
2006, p. 50-51).
Após o esgotamento dos recursos nacionais ou diante da inércia do Estado, quando no
caso de transgressão aos direitos humanos de um determinado grupo minoritário ou de vários
deles, o grupo que teve seus direitos violados no âmbito de proteção do sistema
interamericano poderá peticionar à Comissão, já que o acesso a ela se dá por meio de uma
petição. O peticionamento junto a ela pode ser feito por qualquer pessoa, grupos de pessoas,
entidades não governamentais reconhecidas no território de um ou mais estados que
pertençam à OEA, ou pelo próprio Estado. Todavia, como já foi dito, o pedido feito estará
sujeito ao juízo de admissibilidade da Comissão, que poderá obstar o prosseguimento sem
analisar o mérito. Além disso, a CIDH pode impedir também o prosseguimento do processo
internacional para a CorteIDH, o que pode limitar os direitos dos grupos minoritários, já que a
parte fica limitada ao crivo apenas da Comissão para que sua petição possa ser levada à Corte
para que possa ser julgada.
O SIDH mantém sua comissão e corte, diferentemente do que aconteceu com o
Sistema Europeu de direitos Humanos que, com o advento do Protocolo número 11, de 1º de
novembro de 1998, a Corte e a Comissão daquele sistema regional foram substituídas pela
Corte Única Europeia, que passou a ter a função direta de admissibilidade e de exame quanto
ao mérito ou julgamento dos casos a ela apresentados, podendo o indivíduo peticionar
diretamente à Corte (MAZZUOLI, 2010, p. 38-39). Quer dizer que, para muitos estudiosos do
tema e para o presente artigo, na prática é um avanço para o acesso à justiça dos grupos
minoritários.
Ainda que não possa ser interpretado como um grau de recurso para decisões
proferidas no âmbito dos ordenamentos jurídicos dos Estados, o SIDH é um garantia que se
tornou essencial a consecução da dignidade da pessoa humana, principalmente para os grupos
minoritários dos Estados Americanos. Tornou-se, portanto, um ambiente jurídico que já se
incorporou aos indivíduos e aos atores nacionais e internacionais protetores dos direitos
humanos fundamentais das minorias, como é o caso da atuação recorrente das Organizações
Não-Governamentais (ONGs) protetoras de direitos humanos na proposição de processos aos
SIDH e na denúncia de violações in loco.
230

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os grupos tidos como minoritários possuem diversos mecanismos de defesa quando


no caso de transgressões a direitos humanos fundamentais, tanto em perspectiva jurídica
nacional quanto no âmbito internacional. Embora não esteja presente o termo minorias na
Constituição Federal de 1988 e no Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) –
especialmente a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem e na Convenção
Americana de Direitos Humanos (CADH) –, há diversos dispositivos contidos que asseguram
direitos aos grupos minoritários.
Os ordenamentos jurídicos nacional e o interamericano (ou ainda internacional) são
úteis ao fim a que se propõem, mas carecem de efetivação, podendo e devendo serem
aperfeiçoados. Como, por exemplo, no caso da Corte Interamericana que poderia aceitar o
peticionamento direto das vítimas e passar a ter a função direta de admissibilidade e de exame
dos casos quanto ao mérito ou julgamento, sem que seja necessário sempre o crivo da
Comissão. No âmbito nacional, as políticas públicas das ações afirmativas e as leis específicas
de proteção à minorias podem complementar a aplicabilidade das leis e da Constituição,
garantindo maior proteção a esses grupos vulneráveis.
Neste ponto desta pesquisa, é inevitável mencionar que os mecanismos apresentados
neste artigo assumem um caráter paliativo, posto que não são capazes de frear a
marginalização daqueles que, de alguma forma, possuem uma fragilidade perante uma
maioria opressora. Assim como o sistema protetivo de direitos humanos da OEA deve ser
compreendido como complementar ao ordenamento jurídico nacional, sendo acionado em
caso de esgotamento das vias judiciais do Estado e, com isso, evidenciando as violações de
direitos humanos fundamentais ocorridas dentro dos sistemas jurídicos dos Estados.
Ficou evidenciada a importância das Organizações Internacionais e seus mecanismos
de proteção dos direitos humanos, permitindo que grupos minoritários possam reivindicar
seus direitos, como é o caso da OEA e de seu SIDH. Inclusive a Comissão e Corte estão
recomendando e decidindo casos sobre a violação de direitos das minorias nas Américas,
como em casos de proteção de grupos tribais e indígenas, crianças e adolescentes,
homossexuais, entre outros. Diversos atores inseridos nesse sistema protetivo, como as ONGs
e as redes de advogados, também são relevantes ao proporcionar às minorias o acesso à
justiça, possibilitando a formulação de petições e acionamento do SIDH.
Entretanto, diante dos problemas político, econômico, social e cultural do Brasil e dos
demais Estados Americanos, os mecanismos que asseguram direito às minorias, que muito
231

embora sejam paliativos, são muito importantes na defesa contra violações ou ameaças a
direitos. Mesmo apesar de serem recentes e terem problemas de efetividade, os instrumentos
jurídicos apontados no presente artigo, tanto nacionais quanto internacionais, são os
mecanismos existentes para que as minorias possam se proteger do arbítrio ou inércia dos
Estados.

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A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL COMO UM INSTRUMENTO NO


COMBATE AO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO

INTERNATIONAL COOPERATION AS A TOOL IN FIGHTING THE


CRIME OF LAUNDERING MONEY
Joice Martins da Costa1
Thiago Filipe Martins Bicalho2
Data de submissão: 13/10/2016
Data de aceite: 21/11/2016

Resumo

O artigo faz uma abordagem sobre a utilização da cooperação jurídica internacional como um
instrumento indispensável para a investigação dos crimes de corrupção. São abordados
diversos aspectos da cooperação jurídica internacional e seus instrumentos. Em seguida, é
tratada a criação do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica
Internacional (DRCI) e a importância da cooperação internacional no combate ao crime de
lavagem de dinheiro. Finalmente, é feito um estudo de caso a partir da experiência do caso
“Lava Jato”.
Palavras-chaves: Direito Internacional; Globalização; Cooperação Internacional; Cooperação
Penal Internacional; Lava Jato.

Abstract
The article makes an approach on the use of international legal cooperation as an
indispensable tool for the investigation of corruption crimes. In the case, covers various
aspects of international legal cooperation and international criminal cooperation. Then expose
the creation of the Department of Assets Recovery and International Legal Cooperation
(DRCI) and the importance of international cooperation in combating money laundering.
Finally, it made a case study from the “Lava Jato” case experience.

                                                                                                                         
1
Pós-Graduada em Direito Internacional pelo Centro de Direito Internacional – CEDIN e Mestranda em Direito
Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). E-mail:
joicecostadireito@gmail.com
2
Mestrando e graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogado. E-mail:
bicalho13@hotmail.com  
235

Keywords: International Law; Globalization; International Cooperation; International


Criminal Cooperation; Lava Jato.

1 INTRODUÇÃO

É indubitável que a existência de um mundo globalizado requer no seio jurídico


normas que viabilizam as relações jurídicas que, inevitavelmente, não se processam apenas
dentro de um Estado soberano. Com isso, tratando-se de litígios processuais, torna-se
necessário cooperar e requerer a cooperação de outros Estados para que seja possível a
satisfação das demandas judiciais. O instrumento utilizado para esse fim é a Cooperação
Internacional.
Apesar de que o tema da Cooperação Internacional não seja recente, apenas nos
últimos anos os operadores do direito têm se preocupado com a questão, talvez devido aos
escândalos de corrupção nos quais políticos e empresários brasileiros tem se envolvido. Em
virtude disso, a Cooperação Jurídica Internacional tem sido utilizada como um instrumento
para combater o crime organizado, e mais especificamente a lavagem de dinheiro. Isso ocorre
porque o instituto propõe um vasto intercâmbio pertinente à investigação criminal e a busca
de provas, que são requeridas pela autoridade brasileira aos países que são utilizados pelos
criminosos para a efetivação do crime. Inclusive, o crime de lavagem de ativos é atualmente a
principal atividade do crime organizado. Anualmente, movimenta-se cerca de 5% do PIB
mundial de forma clandestina.
Perante esse quadro, com o intuito de combater o crime organizado, o Brasil, através
do Decreto 6.061/2007, criou o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação
Jurídica Internacional (DRCI). A competência desse órgão é analisar os pedidos de
cooperação jurídica internacional pertinente ao tema, bem como tornar mais eficaz a
recuperação de ativos de origem ilícita para desestimular a propagação do crime de lavagem
de dinheiro. Dessa forma, julga-se necessário o estudo da Cooperação Internacional como
instrumento de combate ao crime de Lavagem de Dinheiro, principalmente, considerando que,
atualmente, vivenciamos a utilização desse instrumento para investigação do caso Lava Jato3,
que será estudado oportunamente.

                                                                                                                         
3
O nome do caso, “Lava Jato”, decorre do uso de uma rede de postos de combustíveis e lava a jato de
automóveis para movimentar recursos ilícitos pertencentes a uma das organizações criminosas inicialmente
investigadas. Embora a investigação tenha avançado para outras organizações criminosas, o nome inicial se
consagrou. A operação Lava Jato é a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro que o Brasil já teve.
Estima-se que o volume de recursos desviados dos cofres da Petrobras, maior estatal do país, esteja na casa de
236

No primeiro capítulo será feita uma analise conceitual da cooperação jurídica


internacional, apontando suas principais características e classificação. Posteriormente, a
segunda parte trata especificamente da cooperação penal internacional, ocasião em que serão
expostos os principais mecanismos utilizados para esse tipo de cooperação entre os países.
Num terceiro momento, o foco recai sobre a cooperação como instrumento que visa combater
e punir o crime de lavagem de dinheiro. Por fim, a operação “Lava Jato” é utilizada como
exemplo de cooperação penal internacional do Brasil com, até então, 36 países. As
considerações a respeito do caso “Lava Jato”, apesar de breves, buscam demonstrar tanto o
sucesso da operação quanto a problemática envolvendo alguns procedimentos realizados pelas
autoridades responsáveis.

2 A COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL

A globalização é um processo de aprofundamento internacional da unificação


econômica, social, cultural e política dos países, que se intensificou no final do século XX e
início do século XXI. Ao estudar a Cooperação Jurídica Internacional, verificamos que a sua
subsistência é um fenômeno da globalização. Com a abertura das fronteiras, surge a
necessidade de tratar assuntos que envolvam a soberania de dois ou mais países.  
Segundo o Departamento De Recuperação De Ativos E Cooperação Jurídica
Internacional (2012): “O alargamento e aprimoramento da cooperação jurídica internacional
surgem como reflexo da preocupação dos Estados em mitigar os efeitos negativos da
globalização no que se refere à concretização da Justiça nas relações internacionais.”
David McClean, Professor da Universidade de Oxford, relata que a Cooperação
Internacional tem desenvolvido rapidamente nos últimos anos, vejamos:

The scale of that activity which forms the subject matter of this book,
international co-operation in civil and criminal matters, has grown quite
dramatically in very recent years. It increasingly engages the attention of
lawyers in private practice, in the offices of corporate legal counsel, and in
government service. […] There is now a set of well-established techniques
and procedures for co-operation in civil and commercial proceedings,
together with a very much more recent growth of international agreements,
bilateral, regional and multilateral, in which those techniques and procedures
are extended and developed for use in the field of criminal investigations,
prosecutions, and to trace and seize the proceeds of crimes. The latter area is
developing so rapidly, and sees so many new initiatives, that its shape is still

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           
bilhões de reais. Soma-se a isso a expressão econômica e política dos suspeitos de participar do esquema de
corrupção que envolve a companhia. (http://lavajato.mpf.mp.br/entenda-o-caso. Acesso: 19 de julho de 2016).
237

relatively unclear and the techniques are still being refined; but they are
firmly based on the much longer experience gained through co-operation in
the civil area. (McCLEAN, 2002, p. 03)

Dessa forma, podemos dizer que a Cooperação Jurídica Internacional nada mais é do
que um acordo realizado entre países, possibilitando que os Estados partes desse acordo
requeiram quando necessário a sua jurisdição interna, diligências, medidas administrativas e
judiciais para instruir seus processos criminais ou cíveis.
No entendimento de Cervini e Tavares (2000), a Cooperação Jurídica Internacional é
denominada de tal forma pelo fato de remeter a ideia de igualdade entre os Estados.
Consequentemente, todo o procedimento é realizado com base nos princípios da igualdade,
cooperação, autodeterminação dos povos e equidade.
Carolina Yumi de Souza refere-se à cooperação jurídica internacional como:

[...] um intercâmbio entre estados soberanos, destinando-se à segurança e à


estabilidade das relações transnacionais. Tem por premissas fundamentais o
respeito à soberania dos Estados e a não-impunidade dos delitos. Em sentido
lato, engloba todos os atos públicos (legislativos, administrativos e
judiciais). [...] compreende os atos judiciais não decisórios, de mera
comunicação processual (citação, notificação e intimação) e decisórios, além
daqueles destinados à instrução probatória. (SOUZA, 2008)

No tocante a classificação da cooperação jurídica internacional, Cestari e Toffoli


entendem que:
A cooperação jurídica internacional pode ser classificada nas modalidades
ativa e passiva, como os lados de uma mesma moeda, que são vistos de
acordo com aposição de cada um dos Estados cooperantes. A cooperação
será ativa, quando um Estado (Requerente) formula a outro (Requerido) um
pedido de assistência jurídica; a cooperação, por outro lado, será passiva,
quando um Estado (Requerido) recebe do outro (Requerente) um pedido de
cooperação. A cooperação jurídica internacional também pode ser
classificada em direta e indireta. Esta, para ser efetivada, depende de juízo de
delibação, como é o caso da homologação de sentença estrangeira e das
cartas rogatórias. A cooperação direta é aquela em que o juiz de primeiro
grau tem pleno juízo de conhecimento. Trata-se da assistência direta. Ainda
em relação à classificação, a cooperação jurídica internacional pode ocorrer
em matéria penal ou em matéria civil, a depender da natureza do processo ou
procedimento em trâmite no Estado requerente. (CESTARI; TOFFOLI,
2009)

A Cooperação Jurídica Internacional pode ser ativa ou passiva. Será ativa quando o
Estado requerer ao outro Estado um pedido de cooperação, e será passivo quando o Estado
receber esse pedido do Estado requerente.
238

Pode-se ainda, classificar a Cooperação Jurídica Internacional em direta e indireta. A


direta ocorre quando o juiz de primeiro grau tem pleno juízo de conhecimento; já a indireta,
para ser efetivada, depende de juízo de delibação, como ocorre com a homologação de
sentença estrangeira e das cartas rogatórias.
Ainda sobre a classificação, a Cooperação Jurídica Internacional atua nas searas do
Direito Penal ou Direito Civil. No que diz respeito ao Direito Civil, são requisições advindas
de cidadãos, empresas ou autoridades judiciais que, na maioria das vezes, se configuram na
comunicação de atos processuais, na obtenção de provas, de documentos ou de informações.
No âmbito penal, os pedidos baseiam-se em carta rogatória e auxílio direto que visam cumprir
citações, intimações, notificações, atos de investigação ou instrução e ainda, algumas medidas
constritivas de ativos, como bloqueio de bens e valores no exterior.
Nesse diapasão, a partir das informações expostas, partiremos especificamente para os
estudos sobre a Cooperação Jurídica Internacional na esfera Penal e como a Cooperação
Internacional é utilizada para combater o crime de Lavagem de Dinheiro.

3 A COOPERAÇÃO PENAL INTERNACIONAL


Com a expansão dos meios de comunicação e com a facilidade de atravessar as
fronteiras nacionais, a globalização também contribuiu para a transnacionalização do crime.
Essa nova perspectiva possibilitou, principalmente quanto ao crime organizado, a
internacionalização de práticas delituosas aliada a uma tecnologia de ponta.
Inevitavelmente, a transnacionalização do crime organizado tornou-se uma
preocupação internacional, uma vez que coloca em risco a paz e a segurança doméstica.
Dentre esses crimes, podemos citar o tráfico de pessoas, o tráfico de entorpecentes, o tráfico
de armas e animais, a pornografia, o terrorismo, o comércio ilícito de bens físicos e os crimes
de lavagem de dinheiro. Assim, faz-se necessário a existência de uma cooperação jurídica
penal internacional entre os países para que haja uma punição efetiva dos agentes criminosos.
Ao conceituar a Cooperação Jurídica penal Internacional, Cervini dispõe que:

[...] pode ser esquematizada funcionalmente como um conjunto de atividades


processuais (cuja projeção não se esgota nas simples formas), regulares
(normais), concretas e de diverso nível, cumpridas por órgãos jurisdicionais
soberanos, que convergem (funcional e necessariamente) em nível
internacional, na realização de um mesmo fim, que não é senão o
desenvolvimento (preparação e consecução) de um processo (principal) da
mesma natureza (penal), dentro de um estrito marco de garantias, conforme
o diverso grau e projeção intrínseco do auxílio requerido. (CERVINI, 2000,
p. 51)
239

Quanto aos instrumentos da Cooperação Penal Internacional, podemos citar a carta


rogatória, o auxílio direto, a transferência de presos e processos, a homologação de sentença
estrangeira e a extradição. No entanto, considerando que o foco do nosso estudo é a utilização
da Cooperação Jurídica Internacional no combate ao crime de Lavagem de Dinheiro,
interessa-nos apenas o estudo sobre a carta rogatória e o auxílio direto, uma vez que são os
instrumentos mais utilizados pelo instituto.

3.1 Carta Rogatória

A Carta Rogatória é utilizada quando há necessidade de um Estado parte (requerente)


solicitar ao outro Estado (requerido) a efetivação de atos, diligências, medidas cientificatórias,
que não possuem cunho executivo.
Ainda no tocante a definição, Pontes de Miranda (1972, p. 183) observa que:

Carta Rogatória é o ato de solicitação do juiz de um Estado à justiça de outro,


para que tenha efeitos no território estrangeiro algum ato seu, ou que algum
ato se pratique, como parte da sequência de atos que é o processo. A citação,
por exemplo, faz-se no Estado estrangeiro, mediante acolhida legislativa ou
judicial do Estado estrangeiro; mas para figurar no processo como ato do juiz
do Estado que rogou fosse feita.

No entanto, para que seja possível o cumprimento da Carta Rogatória no Estado


brasileiro, é obrigatório a analise do pedido pelo Superior Tribunal de Justiça, para verificar
se o pedido acarreta ou não problemas de ordem pública e de soberania nacional. Esse
procedimento é chamado de juízo de delibação.
De acordo com o Ministério da Justiça, temos dois modelos de Cartas Rogatórias: a
diplomática e a proveniente de Tratados Internacionais. A primeira é a utilizada nos países
com que o Brasil não possui Tratados ou Convênios. A segunda atua com base no que foi
estipulado no Tratado Internacional firmado entre os Estados partes. Para essa situação, há
uma Autoridade Central responsável para observar todos os requisitos do pedido da Carta
Rogatória, bem como recolher as provas e enviá-las ao Estado requerente.

3.2. Auxílio Direto

O Auxílio Direto é um instrumento novo utilizado pela Cooperação Jurídica


Internacional com o objetivo de agilizar a tramitação dos pedidos junto à autoridade
240

competente. Isso se torna possível porque o instituto dispensa o juízo prévio de delibação do
STJ, direcionando o pedido para o juízo de primeira instância. Paulo Abrão Pires Júnior
(2012, s/p) entende que:

[...] o Auxílio Direto, é um mecanismo novo, que permite levar a cognição


do pedido diretamente ao juiz de primeira instância, sendo desnecessário o
juízo prévio de delibação do STJ. A tramitação desses pedidos é coordenada
pela Autoridade Central brasileira designada em cada tratado firmado. O
Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica
Internacional da Secretaria Nacional de Justiça exerce o papel de autoridade
central para a maioria dos tratados em que o Brasil é parte, permitindo maior
celeridade e promovendo o acompanhamento necessário do cumprimento
dos pedidos.

Esse mecanismo constitui-se de duas formas: administrativo ou judicial. O Auxílio


Administrativo destina-se ao intercâmbio direto entre órgãos da Administração Pública ou
entre juízes estrangeiros e agentes administrativos nacionais, por exemplo, investigações
conjuntas como Ministério Público ou autoridades policiais. Já o Auxílio Administrativo
judicial é um procedimento de jurisdição voluntária destinado ao intercambio entre juízes, por
exemplo, os atos de comunicação processual ou atos de natureza probatória.
Consoante ao Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica
Internacional (DRCI) – autoridade responsável por analisar e processar o Auxílio Direto –
realizou um levantamento no período de 2004 a 2010, no qual se concluiu que houve um
aumento de 40% no número de pedidos de cooperação tramitando no Ministério da Justiça,
evidenciando uma tendência no crescimento da cooperação. Ainda, frisa-se que no ano de
2010 e 2011, 85% dos pedidos saíram do Brasil para uma autoridade estrangeira, ou seja, há
uma maior tendência do Brasil atuar na esfera de cooperação internacional como Estado
requerente.4

4 A COOPERAÇÃO PENAL INTERNACIONAL COMO UM INSTRUMENTO NO


COMBATE AO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO

A lavagem de dinheiro é considerada um crime moderno. Seu desenvolvimento deu-se


com mais ênfase na década de 1920 devido ao caso Al Capone5. A partir desse episódio,
notou-se o surgimento de várias organizações criminosas que passaram a se sustentar com o
                                                                                                                         
4
Dados retirados do Manual de Cooperação Jurídica Internacional e recuperação de ativos, ano 2012.
5
Alphonse Gabriel "Al" Capone (Nova Iorque, 17 de janeiro de 1899 — Palm Beach, 25 de janeiro de 1947) foi
um gângster ítalo-americano que liderou um grupo criminoso dedicado ao contrabando e venda de bebidas entre
outras atividades ilegais, durante a Lei Seca que vigorou nos Estados Unidos nas décadas de 20 e 30.
241

fornecimento desses produtos ilegais. Os valores ilícitos advindos desses produtos eram
convertidos em valores lícitos. Al Capone foi o exemplo mais famoso do crime de lavagem de
dinheiro, ele acabou recebendo uma pena de onze anos e multa de oitenta mil dólares
(SANTOS, 2009).
Com a expansão do crime de Lavagem de Dinheiro, na década de 1980 alguns países
começaram a tipificar o crime de Lavagem de Dinheiro. Isso ocorreu devido à criação do
GAFI6 no ano de 1989 que tinha como escopo integrar e coordenar políticas internacionais
para combater as origens de dinheiro ilícito.
No caso do Brasil, o crime de Lavagem de Dinheiro foi tipificado no ano de 1998 por
meio da Lei 9.613. Posteriormente, com a expansão do combate universal da corrupção, o
Brasil ratificou três convenções internacionais sobre o tema: Convenção Interamericana
Contra Corrupção (Decreto 4.410/2002); Convenção das Nações Unidas Contra Corrupção
(Decreto 5.687/2006); e a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional (Decreto 5.015/2004).
A Convenção Interamericana Contra Corrupção foi firmada em Caracas, Venezuela,
no dia 29 de março de 1996. Seu escopo é fortalecer os mecanismos necessários para
prevenir, detectar e punir a corrupção, inclusive, foi o primeiro instrumento que trata tanto de
medidas preventivas como de medidas punitivas consoante ao crime de corrupção.
Quanto a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional
(Convenção de Palermo), foi realizada pela Organizações Unidas no ano de 2000. Essa
convenção trata-se das medidas necessárias para combater e prevenir o crime organizado
transnacional.
Já a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, foi adotada pela Assembleia
das Nações Unidas no ano de 2003. Trata-se de um dispositivo no qual detalha e regulamenta
a cooperação internacional de forma mais extensiva. Um dos pontos mais importantes dessa
convenção refere-se à concordância de que os países signatários terão de cooperar um com os
outros em todos os aspectos em prol do combate a corrupção, por exemplo, no que diz
respeito à investigação e acusação de criminosos, apoio a detecção, congelamento, apreensão,
confiscação de produtos advindos da corrupção e principalmente, a concordância em
recuperação de bens, que são extremamente necessários para o desenvolvimento social.
(MEDEIROS, 2012)
                                                                                                                         
6
O Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI/FATF) é
uma organização intergovernamental cujo propósito é desenvolver e promover políticas nacionais e
internacionais de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo
(http://www.coaf.fazenda.gov.br/, acesso em 25 de julho de 2016).  
242

4.1. A importância da Cooperação Penal Internacional no combate aos crimes de


lavagem de dinheiro

O crime de Lavagem de Ativos é atualmente a principal atividade do crime organizado


em todo o mundo. Segundo Gomes (2012), é a essência da macrocriminalidade 7 que
movimenta anualmente cerca de 5% do PIB mundial de forma clandestina. Ressalta ainda que
o crime de Lavagem de Dinheiro ocasiona o desequilíbrio econômico mundial devido às
oscilações e alterações que reflete no setor financeiro. Além disso, prejudica o
desenvolvimento da sociedade como um todo, pois impede o Estado de desenvolver,
prejudica os órgãos públicos e coloca em risco a estabilidade da democracia. Com isso, surge
a necessidade de uma cooperação internacional, regulamentada geralmente através de
Tratados ou acordos, para que seja possível o combate universal e efetivo dos crimes de
Lavagem de Dinheiro.
A necessidade se dá principalmente devido a incapacidade que o Direito Penal e o
Direito Processual Penal possuem de punir os crimes transnacionais. E para isso, o Direito
Internacional atua através dos Tratados e acordos Internacionais como um instrumento para
possibilitar o combate ao crime organizado, através da Cooperação Jurídica Internacional.

5 A UTILIZAÇÃO DA COOPERAÇÃO INTERNACIONAL PENAL NO CASO LAVA


JATO

As investigações do caso “Lava Jato” iniciou-se no ano de 2014. O uso desse termo
consagrou-se porque era usada uma rede de posto de gasolina e de lava jatos de automóveis
para movimentar recursos ilícitos advindos de uma organização criminosa que estava sendo
objeto de investigação.
A primeira fase das investigações ocorreu na Justiça Federal de Curitiba. Foram
encontradas quatro organizações criminosas lideradas por doleiros. Em seguida, o Ministério
Público Federal (MPF) descobriu um gigantesco esquema criminoso de corrupção envolvendo
a Petrobras. Segundo o MPF, grandes empreiteiras organizadas em cartel pagavam propina
para executivos da estatal e outros agentes públicos. O valor da propina variava de 1% a 5%

                                                                                                                         
7
Macrocriminalidade é o crime organizado semelhante a uma empresas que, combina pessoas, capitais e
tecnologia para a consecução de determinados fins, sob a orientação de um chefe, que se equipara a um
empresário próprio.
243

do montante total de contratos bilionários superfaturados. Esse suborno era distribuído por
meio de operadores financeiros do esquema, incluindo doleiros investigados na primeira
etapa. (BIASETTO, 2016)
Logo em seguida, vários escândalos internacionais foram descobertos envolvendo a
estatal. Dentre eles, foi a suspeita de que a Petrobras superfaturou a compra da refinaria de
Pesadena, nos EUA. O caso foi delatado por um ex-diretor, Paulo Roberto Costa.
Esses fatos desencadearam um enorme número de investigações que necessitaram da
participação de vários agentes públicos e empreiteiros em diversos países da América e da
Europa. A investigação só foi possível devido a Cooperação Jurídica Internacional realizada
entre os países envolvidos na corrupção.
De acordo com Biasetto (2016), O MPF registrou 108 pedidos de Cooperação
Internacional com 36 países, alguns deles conhecidos paraísos fiscais. Estima-se que a
operação já recuperou cerca de R$ 5,3 bilhões de reais e que R$ 2,4 bilhões são bens que
estão bloqueados na Suíça na espera de ordem judicial para que esses valores retornem aos
cofres públicos brasileiros.
Mediante esses dados, Sérgio Moro, juiz responsável pelo processo na primeira
instância, citado por Casado (2016), dispõe que a Cooperação Jurídica Internacional é
fundamental na recuperação de ativos:

Se os países não cooperam, simplesmente não se tem a prova do crime, e não


se tem a possibilidade de recuperar esses ativos. É certo que parte do
caminho do dinheiro foi descoberto através da colaboração de alguns desses
indivíduos, que resolveram colaborar com a Justiça, mas, como se sabe,
mesmo quando se tem essa colaboração, é sempre necessária ter a prova
dessa colaboração, e essa prova às vezes é baseada nessa prova documental
dos registros bancários.

Com o mesmo entendimento, o secretário de Cooperação Internacional da


Procuradoria-Geral da República, Vladimir Aras, citado por Casado (2016), afirma que:

Ao lado dos acordos penais e dos acordos de leniência, da atuação


coordenada com outros órgãos públicos na jurisdição civil e penal, as
medidas de persecução probatória transnacional têm grande relevância em
casos complexos. O mundo hoje é mais cooperativo contra o crime graças a
um marco normativo global mais claro e mais eficiente. (CASADO, 2016)

No dia 4 de setembro de 2015, os resultados obtidos na operação com a recuperação


de valores localizados no exterior foram apresentados na Convenção das Nações Unidas
contra a corrupção em Viena, Áustria. Estavam presentes representantes de 140 países que se
reuniram a fim de programar estratégias e procedimentos para a recuperação dos ativos
244

desviados dos cofres públicos. Conforme indica o Ministério Público Federal (2016): “O caso
Lava Jato foi apresentado como exemplo de sucesso na identificação de dinheiro depositado
em contas bancárias no exterior e na adoção de procedimentos céleres para a devolução
imediata dos valores.” Para a Procuradora Regional Denise Neves Abade, o Brasil ganhou
credibilidade no cenário internacional após da criação da Secretaria de Cooperação
Internacional (SCI), o que facilitou a resposta dos pedidos de cooperação internacional penal.
Contudo, as ações realizadas durante a operação geraram questionamentos por parte de
juristas. Documentos com dados bancários, de contas na Suíça, de um dos envolvidos no
esquema de corrupção foram obtidos de forma que acabou por driblar exigências legais.
Brasil e Suíça são signatários de um tratado de cooperação jurídica em matéria penal. O
Decreto 6.974/2009, que promulgou o tratado, exige que todo pedido e autorização para
cooperação internacional penal, para ser considerado legal, passe, necessariamente, por o
único órgão competente previsto no decreto, qual seja, a Secretaria Nacional de Justiça do
Ministério de Justiça (VASCONCELOS, 2015).
O MPF trouxe os documentos bancários a partir de um pen drive, sem autorização ou,
sequer, pedido ao Ministério da Justiça. O ato só seria legal se seguisse a seguinte rota:

O Ministério Público Federal no Paraná faz um pedido de informações para


a Secretaria de Cooperação Jurídica internacional da PGR, que encaminha
tal demanda ao Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação
Jurídica Internacional do Ministério da Justiça, que, por sua vez, faz uma
solicitação às autoridades suíças. (VASCONCELOS, 2015).
 
Vladmir Aras, ao ser questionado sobre o recebimento direto pelo MPF dos
documentos, sem cumprir os tramites legais, declarou que são corriqueiros e comuns os
contatos diretos entre as autoridades internas e externas. Por outro lado, juristas da área penal
discordam da visão de Aras. Pedro Estevam Serrano, Fábio Tofic Simantob e Lenio Streck
destacam que a forma como os dados bancários foram obtidos, sem passar pela autoridade
central competente do país, podem trazer nulidade a tudo que foi produzido a partir de sua
obtenção, sendo utilizado o princípio dos frutos da árvore envenenada. Este princípio,
recepcionado no ordenamento jurídico brasileiro, exige que todos os procedimentos e provas
advindos de um ato ilegal devam ser considerados também ilegais.
Assim, apesar dos avanços percebidos na “Lava Jato”, o caminho mais curto utilizado
por órgãos públicos brasileiros pode acabar contaminando parte da operação.  A punição
dos agentes criminosos e a recuperação dos ativos provenientes da operação “Lava Jato” está
sendo possível devido à existência da Cooperação Jurídica Internacional, e isso é muito
245

positivo. Mas é fundamental que os limites da norma sejam respeitados em todos os


procedimentos.  

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um mundo globalizado onde inexistem fronteiras para o crime, especificamente


quanto ao crime de lavagem de dinheiro, faz-se necessário a existência de mecanismos
internacionais para coibir sua propagação e possibilitar a investigação e recuperação de ativos.
A Cooperação Internacional atualmente é utilizada para viabilizar o intercâmbio entre
os países que almejam investigar, recuperar e coibir os atos de corrupção que ultrapassam a
sua jurisdição interna. Esse instituto fornece instrumentos como a carta rogatória e o auxílio
direto que são utilizadas pelos Estados para solicitar ao outro a efetivação de atos, diligências
e medidas cientificatórias sem cunho executivo.
A importância do estudo da Cooperação Internacional se consubstancia na sua
utilização para combater o crime de lavagem de dinheiro que, como fruto da globalização,
expandiu-se pelo mundo, sendo necessária a cooperação entre os países para combatê-lo.
O presente trabalho demonstrou que apesar de, em alguns momentos, inexistirem leis
específicas sobre a Cooperação Internacional, o instrumento tem sido utilizado com eficácia
para recuperar os ativos e investigar os crimes de lavagem de dinheiro.
Expôs-se a utilização da Cooperação Internacional para investigar e recuperar ativos
advindos do caso “Lava Jato”, demonstrando uma crescente eficácia do instituto no plano
nacional e internacional.
Porém, é preciso que os atos do poder público sejam pautados pela transparência e
cumprimento à lei, a fim de que os avanços de uma operação não acabem se tornando um
retrocesso nas garantias dos envolvidos relacionadas ao princípio do contraditório e da ampla
defesa alcançado à duras penas nos últimos séculos.  
Obviamente que por se tratar de um instrumento recente no ordenamento jurídico
brasileiro, ainda há várias celeumas e lacunas para dirimir. Cabe observar que, apesar de ser
um número ínfimo comparando com o montante de valores destinado a lavagem de dinheiro,
cerca de R$ 5,3 bilhões de reais já foram recuperados e 2,4 bilhões de reais em bens estão
bloqueados na Suíça aguardando ordem judicial para retornarem aos cofres públicos
brasileiros. De certa forma, esses números mostram que a Cooperação Internacional tende a
crescer e ser um instrumento eficaz no combate ao crime de Lavagem de Dinheiro.
246

REFERÊNCIAS

BECHARA, Fábio Ramazzini. Cooperação Jurídica Internacional em Matéria Penal.


Eficácia da prova produzida no exterior. São Paulo: Saraiva, 2011.

BIASETTO, Daniel. Lava-Jato: cooperação internacional já recuperou cerca de R$ 5 bilhões.


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recuperou-cerca-de-5-bilhoes-19447776#ixzz4GsyVz8Lp>. Acesso em: 26 jul. 2016

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248

BREVES APONTAMENTOS A RESPEITO DA REGULAÇÃO


INTERNACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR: DA GÊNESE À
ATUALIDADE

BRIEF NOTES ABOUT INTERNATIONAL NUCLEAR ENERGY


REGULATION: GENESIS TO PRESENT AGE

1
Patrícia Costa Anache
Data de submissão: 09/10/2016
Data de aceite: 21/11/2016

Resumo

O presente estudo tem por objetivo analisar, à luz do ordenamento e da doutrina jurídico-
internacional, os institutos do direito nuclear, o que se fará com ênfase na embrionária
regulação internacional de energia nuclear advinda desde sua primeira atuação, em 1954. A
partir daí, após breves apontamentos da evolução da normatividade internacional que trata
sobre energia nuclear, discorrerá sobre as consequências dos três maiores acidentes nucleares
ocorridos na arena global, notadamente o que ocorreu em 1986 na usina nuclear de
Chernobyl, na então União Soviética, sendo este um importante marco para atual geração de
Nuclear Power, cujas implicações contribuíram para a evolução da regulação internacional de
energia nuclear da atualidade. Neste contexto, este artigo visa descrever a construção da
realidade do ordenamento jurídico atual sem debater controvérsias jurídicas ainda existentes.
Espera-se que o leitor interessado, não familiarizado nesse quesito do sistema internacional
vá, assim, obter uma compreensão mais equilibrada desse sistema regulatório, notadamente
sobre as questões críticas de quais as medidas foram tomadas pela comunidade internacional
para evitar futuros acidentes nucleares e minimizar os danos caso eventualmente vierem a
ocorrer. Busca-se, assim, primeiramente, a compreensão do aparato jurídico internacional
sobre o tema, e na sequência, uma análise mais detalhada e crítica dos diversos fatores que
influenciaram e ainda influenciam o processo, bem como considerações em torno da
sustentabilidade.
Palavras-chave: Direito Nuclear; Energia Nuclear; Regulação Internacional; Panorama
Global; Sustentabilidade Ambiental.

Abstract

This study examine the nuclear law institutes in the planning of legal and international
doctrine which focus in international regulation of nuclear power arising from its first
performance, in 1954. From there after the development of international normativity that
deals with nuclear energy, this article will talk about the consequences of three major nuclear
accidents in the global arena, especially after 1986 at Chernobyl nuclear power plant in the
                                                                                                                         
1
Mestre e doutoranda em Direito pela Universidade de Coimbra/Portugal. Graduada em Direito pela
Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal/MS. Advogada. E-mail:
pateanache@gmail.com
249

Soviet Union. It was an important framework for the current generation of nuclear power,
which have contributed to the evolution of international regulation of today's nuclear power.
In this context, this article aims to describe the construction of the reality of the current law
without debating remaining legal disputes. It is expected that the interested reader, unfamiliar
in this regard the international system go thus get a more balanced understanding of this
regulatory system, particularly on the critical issues of which measures were taken by the
international community to prevent future nuclear accidents and minimizing if damage may
eventually occur. Search is, therefore, first, the understanding of the international legal
apparatus on the subject, and following, a more detailed and critical analysis of the various
factors that influenced and still influence the process and considerations around sustainability.
Keywords: Nuclear Law; Energy Law; Nuclear Regulatory Systems; Global Overview;
Environmental Sustainability.

1 INTRODUÇÃO
A energia nuclear, cujo fundamento de produção de eletricidade decorre da geração
de uma enorme quantidade de energia em virtude de fissão ou fusão nuclear do urânio ou
tório, tem sido cogitada em substituição de outros tipos de matrizes energéticas alimentadas
pelo fornecimento de combustíveis fósseis. Desde sua primeira atuação, em 1954, essa tem
sido uma das maneiras mais eficazes de contribuição ao desenvolvimento sustentável.
Não obstante, apesar dos inúmeros benefícios decorrentes da utilização da matriz
energética nuclear, sobretudo por ser um meio de produção de energia limpa, enfatizados em
razão da necessidade de redução da emissão dos níveis de carbono e da demanda crescente no
suprimento de energia em proporções mundiais, sua inserção no mix energético de um Estado
requer uma análise ponderada em relação à consonância da estrutura interna institucional,
legislativa, técnica e científica com os desafios inerentes ao uso da energia nuclear.
Por ser um meio de produção que exige elevada técnica e perfeição em seu
funcionamento para que seus altos riscos radiológicos sejam minimizados, o desenvolvimento
da indústria energética nuclear exige cuidado por parte não apenas do país em que dela se
utiliza, como também de todos os atores nela envolvidos, haja vista que os efeitos altamente
nocivos da radioavidade ou da radiação ionizante que por ventura venha dela decorrer,
atingem não só o meio ambiente, como a toda coletividade, e se estendem a curto, médio e
longo prazo o alcance local, nacional e transfronteiriço.
Levando-se em consideração que ainda não há no ordenamento jurídico internacional
um regulamento padrão ou conjunto de jus cogens que sirvam de standarts mínimos a serem
respeitados na atuação da referida matriz energética, é imperioso e urgente que um corpo de
normas internacionais sirvam como base regulatória nuclear. De modo a garantir plena
eficácia a esse meio de produção energética, é de se considerar que o futuro da energia
250

nuclear somente avançará através de uma estrutura jurídica global, robusta e concentrada, que
garanta não só o direito à informação, transparência de atuação das usinas nucleares, uma
ativa administração pública supervisora a inspecionar e revelar atos que eventualmente
possam trazer riscos de funcionamento ou perigos em sua atuação, mas que principalmente,
seja garantidora de uma eficiência energética com riscos minimizados, com standards
internacionais padronizados e vinculativos, e que esteja totalmente alinhada com a
sustentabilidade ambiental.
2 PERSPECTIVA GERAL DAS ATIVIDADES NUCLEARES
O desenvolvimento sustentável, enquanto desenvolvimento que visa satisfazer as
necessidades do presente sem prejudicar a capacidade de satisfação das necessidades das
gerações futuras apresenta-se como o desafio global das sociedades hodiernas. Por seu turno,
o crescente consumo de energia e a alarmante crise ecológica que o mundo atravessa na
atualidade, alertam-nos para urgência de se criar políticas energéticas que visem beneficiar as
fontes de energias limpas em prol as matrizes energéticas habituais, finitas e altamente
prejudiciais, tanto para meio ambiente como para o próprio ser humano.
A energia é a força motora das civilizações modernas, e os serviços energéticos são
essenciais não só para contribuírem a incrementar a estabilidade social mediante a melhoria
na qualidade de vida, mas também a rentabilidade econômica. O setor energético ocupa um
lugar importante na economia mundial e, precisamente com a crise do câmbio climático, há
um revival de possibilidades da matriz energética nuclear como fonte de energia alternativa,
já que é altamente lucrativa e apresenta vantagem inolvidável de, além dos custos de
construção e manutenção das centrais nucleares, não implicar emissão de qualquer tipo de
poluição (LOVERLOCK, 2004).
A energia nuclear, cujo funcionamento consiste, de forma simples, na energia liberada
dos núcleos atômicos (do urânio ou tório) que se desintegram radioativamente num cenário de
fissão ou fusão, foi utilizada para fins pacíficos pela primeira vez em 1954, quando então
entrou em operação a estação comercial de geração de energia nuclear Obnisk, na antiga
União Soviética. Desde então, em razão da instabilidade no fornecimento de combustíveis
fósseis, países como Inglaterra, Estados Unidos, França, Japão e Rússia iniciaram programas
nucleares, que posteriormente foram paulatinamente ampliados. Contudo, tendo em vista que
da ascendente produção energética nuclear advieram acidentes nucleares nas estações de Tree
Miles Island (Estados Unidos/1979), Chernobyl (Ucrânia/1986) e, mais recentemente, em
251

Fukushima (Japão/2011)2, as perspectivas vindouras da matriz energética nuclear figuraram


como objeto de uma série de questionamentos pautados na segurança e proteção nuclear das
correspondentes instalações e atividades dessa produção de energia (BRYCE, 2010).
Na tentativa de evitar que mais insucessos como os acidentes supracitados
sobreviessem, tendo em conta que não havia ainda nenhuma orientação normativa a ser
seguida pelo setor que ora se comenta, as diversas centrais nucleares espalhadas no mundo
uniram-se com o escopo de se autorregularem, estabelecendo um padrão e controle mútuo
entre si a serem respeitados (PONTIER, 2013)3.
Isso porque, bem sabiam que uma indústria nuclear era refém da outra, e sem o
estabelecimento de um padrão normativo a ser respeitado e seguido pelas diversas centrais
nucleares, o eventual acidente nuclear em uma central prejudicaria sistematicamente as
demais, como reação em cadeia ocasionada por falta de criteriação e standarts mínimos de
confiabilidade e segurança, o que poderia minar todo o mercado do setor energético nuclear
da arena global. Desta feita, dessa união estabeleceu-se um organismo regulador privado, em
1980, denominado Institute of Nuclear Power Operations, que em 1989 se transformou em
ente regulador privado global denominado World Association of Nuclear Operators – WANO
(PLAZA, 2011).
Que as atividades nucleares são atividades especialmente conflitantes é algo cuja
demonstração requer pouco esforço. Não obstante, percebe-se que, embora haja riscos
impostos pelo uso da energia nuclear, e concretizados pelos acidentes passados, afora
minorias contrárias, o cenário nuclear da atualidade tem se superado, e sobrevive com
integrantes que ratificam suas posições quanto à manutenção das respectivas centrais
nucleares, aos quais são somados novos participantes com planos de início, expansão ou
retomada de projetos de geração de energia nuclear (LOVERLOCK, 2004).
Atreladas vantagens de ordem ambiental, viabilizando o alcance das metas fixadas
pelos Protocolos de Kyoto e Paris4, o interesse em salvaguardar a produção energética nuclear

                                                                                                                         
2
Para maiores informações a respeitos de ambos acidentes nucleares, confira respectivamente:
<http://www.worldnuclear.org/info/Safety-and-Security/Safety-of-Plants/ThreeMile-Island-accident/ e
http://www.world-nuclear.org/info/Safety-and-Security/Safety-of-Plants/Chernobyl-Accident/>. Acesso em 15
de setembro de 2016.  
3  A obra de Pontier agrega vários contributos que analisam, através de diferentes e enriquecedoras perspectivas,

a relação entre a democracia e o direito da energia nuclear, concluindo, de forma sucinta, que o desenvolvimento
deste, e do respectivo corpo normativo, influencia positivamente o melhor desenvolvimento possível da
democracia ao pugnar, por exemplo, uma participação ampla dos cidadãos, no quadro de uma discussão aberta,
na construção do referido corpo normativo.  
4
 Tratam-se respectivamente dos Protocolos assinados na Conferência das Partes dos anos de 1997 e 2015. Vide:
<http://www.unece.org/fileadmin/DAM/cefact/recommendations/kyoto/welcome.htm> e
252

tem se baseado em três premissas principais: segurança energética, oportunidade de deter uma
matriz cujo enorme fornecimento de eletricidade requer uma pequena quantidade de
combustível, e dinamização econômica (SILVA, 2014).
A realidade contemporânea da energia nuclear traz indicativo de que 16% da energia
consumida mundialmente é de origem nuclear, provenientes de aproximadamente 442
reatores distribuídos por mais de 30 países que produzem eletricidade nuclear de forma
segura, fiável e com impacto ambiental bem abaixo da média comparado com outras fontes
geradoras de energia. De fato, essa é uma porcentagem considerável, tendo-se em conta que
se trata de uma alternativa energética recente. Não obstante, esses dados poderiam ser ainda
maiores, não fossem as complexidades de aceitação social e os desafios em relação à
estruturação internacional institucional, legislativa e técnica inerentes ao uso da energia
nuclear (COLVIN, 2004).
O desenvolvimento da indústria nuclear exige por parte não apenas do país que dela
alimenta sua fonte energética e respectivos operadores, como também de todos os atores nela
envolvidos, ausência imprescindível de falhas na sua operacionalização. Isso porque, os
efeitos altamente nocivos causados pela radioatividade ou radiação ionizante, em decorrência
de liberação de material radioativo, causada por erros técnicos no procedimento energético
nuclear, em relação á saúde e a vida humana, bem como ao meio ambiente, estende-se a curto,
médio e longo prazo, e são de alcance local, nacional e transfronteiriço (LEAL, 2016).

3 INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS: DESAFIOS NORMATIVOS


A imprescindibilidade na determinação de critérios de proteção e segurança nuclear
em caráter geral, principalmente após os acidentes nucleares supracitados, implicou na edição
de uma série de instrumentalidades normativas e reguladoras internacionais, sem que estas, no
entanto, tivessem força impositiva, mas apenas com caráter de orientação e incentivo
internacional, isto é, não prevê mecanismos coercitivos e sancionatórios quanto ao seu
cumprimento por parte dos Estados signatários, imputando ‘obrigações’ e ‘responsabilidades’
aos Estados, em cuja jurisdição é utilizada a produção de energia nuclear, as quais denotam a
necessidade de estabelecimento de padrões de elevado nível de proteção e segurança nuclear
na referida matriz energética por parte de todos os envolvidos, ainda que preceitos se dirijam
diretamente aos países (LEAL, 2016).

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           
<http://www.unece.org/sustainable-development/climate-change/unece-at-cop21.html>. Acesso em 15 de
setembro de 2016.
253

Como caráter ilustrativo, referencia-se a alguns acordos que se concretizaram desde


então: Convenção sobre a notificação rápida de um acidente nuclear, ocorrida em 1986,
Convenção sobre assistência em caso de acidente nuclear ou emergência radiológica, ocorrida
em 1987, Convenção sobre proteção física de materiais nucleares, também em 1987 – com
significativas emendas em 2005, Convenção sobre segurança nuclear, ocorrida em 1996 e na
Convenção conjunta sobre a segurança da gestão do combustível irradiado e a segurança da
gestão dos resíduos radioativos, ocorrida em 20015.
Com essas Convenções, o cumprimento, bem como o aprimoramento por parte dos
Estados contratantes de seus respectivos preceitos, tais como a obrigação de desenvolvimento
de uma estrutura legislativa e regulatória interna, que incorpore as disposições de proteção
nuclear elencadas acima, como também a criação de um organismo regulador internacional
com efetiva independência aos demais órgãos responsáveis pela promoção de energia nuclear,
passou a ser verificado através de revisões especializadas chamadas peer reviews
(WASHINGTON, 1997).
Pode-se dizer que se tratam tais revisões de reuniões periodicamente realizadas pelas
partes contratantes e secretariadas pela Agência Internacional de Energia Atômica
(International Atomic Energy Agency – IAEA), cujo escopo é a análise quanto ao
cumprimento pelos signatários dos dispositivos da Convenção, por meio dos relatórios
apresentados por cada qual acerca das medidas implementadas nesse sentido. Em
contrapartida, são realizadas recomendações de aprimoramento por parte dos demais
signatários, cujo standarts sinalizam consenso internacional (WASHINGTON, 1997).
De fato, a realização de revisões especializadas viabiliza não somente a observância
das disposições da Convenção, desenvolvendo quadro interno de proteção em matéria nuclear
por parte dos Estados, mas também promove dinâmica ao próprio texto do instrumento ao
permitir propostas de implementação de medidas no sentido de aprimorá-lo, obstando,
contudo, a sua constante alteração6.
Muito embora haja consenso internacional nessas orientações normativas, e de fato
pode-se afirmar que as medidas de fiscalização e incentivo muito colaboram para evitar
discrepâncias no cenário energético nuclear, há que se informar – e isso sim é critério
preocupante – que existem complexidades no cumprimento desses padrões, uma vez que a

                                                                                                                         
5
Para maiores informações, vide Treaties, Conventions and Agreements Related to the IAEA's Work:
<https://www.iaea.org/publications/documents/treaties>. Acesso em 21 de setembro de 2016.  
6
A par de tais instrumentos, em matéria de proteção nuclear foram editados outros, como a Convenção de Viena
sobre responsabilidade civil por danos nucleares e a Convenção de Paris sobre responsabilidade de terceiros no
domínio de energia nuclear.
254

falta de investimento ou manutenção em tecnologias utilizadas nas centrais nucleares induzem


determinadas centrais ao descaso, levando-a incorrer aos potenciais riscos consequentes dessa
inércia que pode ser tanto por parte do Governo como por falta de incumprimento contratual.
Como se pode observar, há um desafio normativo regulamentador internacional no
âmbito da matriz energética nuclear, cujo manifesto da importância do direito e da
administração pública devem tender ao desenvolvimento e viabilidade do mercado nuclear,
sobretudo no que se trata de segurança nuclear e padrões de confiabilidade no pleno
funcionamento dessa matriz energética. Para que haja prosperidade no referido setor, esse
desafio deve convencer a coletividade com argumentos maduros e concisos de que há
segurança no mecanismo de produção energética nuclear e consequentes atos, devendo-se
também assegurar que se oferece toda a informação a respeito dos riscos com a máxima
transparência (LOVELOCK, 2004)7.
Tendo em conta que a desregulamentação no setor é potente causadora de crises, sem
olvidar, há urgente necessidade de se introduzir mecanismos de previsão e precaução
normativa que sejam capazes de analisar os valores dos riscos e as possibilidades dos diversos
danos radiológicos (assim como a incidência social e ambiental) que a matriz energética
nuclear pode desencadear caso não haja standarts mínimos internacionais a serem cumpridos
e respeitados como força normativa vinculante (RODRIGUES, 2016).
No âmbito dessa temática, entende-se que uma das possíveis soluções para criteriação
do procedimento regulamentador ordinário intensificado na escala internacional de
normativas nucleares, é pautar-se na intervenção administrativa de um órgão internacional
dotado de poderes suficientemente capazes de equivaler a orientação normativa em caráter de
juscogens e standart internacional, cujas diretrizes deverão ser robustas e sólidas na constante
busca de, através de normativas positivas, e fiscalização intrínseca, minimizar os riscos que se
implicam nesta atividade, respeitando os critérios adotados pelas companhias privadas.
No ponto, essa questão merece ser ratificada com a ideia de que, primeiramente, a
estrutura interna legislativa e regulatória seja moldada a partir de três conceitos de padrão
internacional: safety, security e safeguards, isto é, proteção nuclear, segurança nuclear e
salvaguarda  (IAEA, 2005).
A definição de safety, fundamental para o entendimento da construção do regime
nuclear internacional, nomeadamente na temática tratada, é atrelada aos riscos da
                                                                                                                         
7
Sobre a questão normativa e a defesa da energia nuclear, pode-se citar LOVELOCK, que defende que os riscos
potenciais do uso da energia nuclear não tem força perante os danos causados pela poluição do ar e do
aquecimento global. Ademais, reconhecendo a importância da transparência e da participação do público, veja o
instrumento europeu relevante: <http:??www.nuclear-transparency-wacht.eu/>
255

radioatividade. Isso, porque consiste na proteção do ser humano e do meio ambiente face aos
riscos da radiação ionizante, bem como em um elevado nível de proteção nuclear das
instalações e consequentes atividades que dão ensejo a tais riscos, cuja presença se dá em
circunstâncias normais e anormais, ou seja, em consequência desses riscos. Deste modo, as
medidas de proteção nuclear, devidamente inseridas na legislação e regulação interna, serão
destinadas a prevenir tais incidentes e a mitigar os efeitos dele decorrentes.
Quanto ao conceito de security, este deverá nortear a prevenção, detecção e resposta
de atos de sabotagem, roubo, acesso não autorizado, transferência ilegal ou a outro ato
malicioso que envolva material nuclear, substâncias radioativas ou até mesmo respectivas
instalações que colocam em risco ou potencialmente possam causar danos ao ser humano.
Em relação a safeguards, trata-se estritamente a respeito do uso pacífico do
combustível nuclear, devendo-se consistir em medidas de verificação por parte do IAEA
acerca do cumprimento dos standarts (dos compromissos firmados) por parte dos Estados que
os obsta de utilizarem material nuclear no desenvolvimento de armas ou arsenais nucleares e
dispositivos explosivos (IAEA, 2005).
Esta visão da atuação de um órgão regulamentador internacional no domínio
administrativo da matriz energética nuclear da arena global alcança um status primordial,
quando se cogitam temáticas transversais à questão do desenvolvimento sustentável,
socioeconômico e cultural de uma nação que adota viés da matriz energética nuclear, tais
como: rentabilidade econômica, política industrial, desenvolvimento científico e tecnológico,
sustentabilidade financeira e ambiental, entre tantas outras (FEDERICO, 2011).
Este fenômeno estrutural, fruto da pós-modernidade vivenciada em rede, permite
minimizar vetores causadores da crise regulatória, papel de ameaça permanente ainda na
sociedade que carece de informações a respeito dos inúmeros benefícios e vantagens que se
extrai da matriz energética nuclear quando esta se encontra fundamentalmente pautada em
diretrizes normativas robustas e fiáveis, e tenha como seus principais reflexos a própria
aceleração do processo de globalização normativo internacional e a ampliação do pluralismo
jurídico tanto no âmbito interno dos Estados como também transnacional.
Nesta propositura, um dos objetivos da regulamentação internacional de energia
nuclear é justamente o de despertar o debate sobre a importância da lógica do Nuclear
Governance, no contexto de cooperação entre Estados, operadores, reguladores,
pesquisadores, fornecedores e demais organizações, exigida na operacionalização de todo o
ciclo de instalações e atividades nucleares, especialmente de normativas e regulamentos das
estações de geração de energia nuclear (KOOIMAN, 2003).
256

Na verdade, a Nuclear Governance, inerente ao desenvolvimento da indústria nuclear,


constitui a própria interação estabelecida entre as partes nela envolvidas, que permeada pela
cooperação, transparência e confiança mútua, é direcionada a solucionar problemáticas,
suscitadas no âmbito nuclear, envolvendo uma das áreas inseridas nos conceitos de safety,
security e safeguards (IAEA, 2012).
Isso posto, a outra temática que compõe núcleo do debate, qual seja, encontrar uma
resposta aos desafios impostos pela escassez de recursos energéticos, pela crescente
dependência externa e pelos problemas ambientais, pode-se argumentar que, em sede de
energias limpas, a política da matriz energética nuclear assume três objetivos estratégicos,
quais sejam: garantia da segurança no aprovisionamento da energia, no intuito de reduzir a
dependência face a fontes de energias poluentes da atmosfera, ou dependentes exclusivamente
de forças da natureza, promoção de uma política ambiental responsável e, por fim, mas não
menos importante, alcançar uma matriz energética inovadora, capaz de captar novos
investigadores e ajustar a produção e consumo de energia aos ideais propostos, de modo a
superar os principais entraves ao desenvolvimentos desta energia: segurança, resíduos
radioativos e o risco dos acidentes e dos conflitos armados nucleares.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das premissas supracitadas, é possível sistematizar que, tendo em vista que no
regime nuclear global é em especial direcionado à proteção, segurança e salvaguarda nuclear,
e constituído por uma série de instrumentos e standarts internacionais, códigos de conduta e
orientações normativas cujo cumprimento é preponderantemente voluntário por parte dos
atores internacionais nele inseridos, o principal e mais central ponto a ser levantado é que o
cenário nuclear mundial está pautado nas deficiências do próprio regime que ensejaram tal
evento.
Levando-se em conta a evolução normativa e conceitual nuclear, pautando-se no
desenvolvimento significativo que se sucedeu após os gravames ocasionados pelos acidentes
nucleares mundiais, denota-se ainda que tal estrutura normativa demanda de um constante
aprimoramento, de modo a refletir o cumprimento dos elevados níveis de proteção nuclear
que precisam ser considerados e respeitados e, por conseguinte, de segurança e salvaguarda
nuclear, de modo a assegurar a tutela do ser humano e do meio ambiente face aos
abomináveis riscos causados pela radioatividade.
Com essa premissa, verifica-se que necessário se faz o entendimento da
regulamentação internacional de energia nuclear numa dupla dimensão, enquanto conceito de
257

viés político-institucional e na vertente normativa internacional, em que a Global Nuclear


Governance em seu papel institucional internacional deverá assumir a responsabilidade de ser
o ente internacional orientador e originário de normativas internacionais vinculativas aos
Estados que se utilizam da matriz energética nuclear, que por sua vez deverão ser respeitadas,
cumpridas e operacionalizadas mediante um conjunto coordenado de políticas públicas
internas e transfronteiriças.
Em verdade, referidas pretensões subestimam as exigências que implicam o início e o
desenvolvimento de um programa nuclear bem sucedido, tais como a necessidade de uma
sólida infraestrutura em termos de recursos humanos, educação, pesquisa, indústria,
tecnologia, cooperação internacional e capacidades financeiras e regulatórias, bem como a
garantia da disponibilidade de suporte técnico e de fornecimento de equipamentos e serviço
de qualidade durante todo o ciclo de vida de uma central nuclear.
Em face da supracitada dimensão instrumental normativa internacional, responsável
pela dinâmica regulamentar das normativas internacionais a respeito da energia nuclear, a
problemática que se deslinda é que, afora a carência na disposição de elementos essenciais à
implementação de uma indústria nuclear que siga à risca o padrão convencionado
internacionalmente, outro fator que prejudicaria o cumprimento por parte dos atores
internacionais, em especial os padrões de proteção nuclear, seria seu caráter de soft law.
Isso porque o contexto em que tais princípios e toda a extensão da ordem nuclear são
erigidos é permeada pela governança nuclear na qual a solução de questões como a definição
de níveis de proteção nuclear, manifestos por parâmetros internacionais se dá a partir de um
consenso entre as partes, que por ela decida e seja dotada de poderes coercitivos e
sancionatórios. Inclusive pelo fato de participarem no processo de formulação e tomada de
decisões é que sua tendência ao adimplemento voluntário das obrigações assumidas é muito
maior.
Traçadas tais considerações, insta-se a propositura de uma Global Nuclear
Governance, cujo escopo irá promover o desenvolvimento de meios para mitigar os atuais
riscos existentes na produção de energia nuclear, o aprofundamento da dimensão endógena ou
procedimental do estudo em questão, também tende a abordar o desafio global da
sustentabilidade.
Tendo em vista que todas as problemáticas suscitadas no cenário nuclear internacional
perpassam pela nuclear governance, a fim de serem eventualmente solucionadas, é nela que
deverá restar todo o suporte normativo de um regime nuclear direcionado à tutela do ser
humano e do meio ambiente face os riscos da radioatividade, sendo pois, endereçado nas três
258

áreas que integram o conceito de mitigar riscos: proteção, segurança e salvaguarda nuclear.
Logo, a coordenação e cooperação de esforços na dinamização e evolução da ordem nuclear
internacional implicam no aprimoramento da própria instrumentalização institucional desse
ente, isto é, na incorporação harmônica dos standarts internacionais com os princípios de
good governance, promovendo progresso através da utilização pacífica da energia nuclear
através da cooperação internacional dos países terceiros e organizações internacionais.

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263

INGERÊNCIA E IMPOSIÇÃO: INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS A


SERVIÇO DAS GRANDES POTÊNCIAS

INTERFERENCE AND IMPOSITION: HUMANITARIAN


INTERVENTIONS AT THE SERVICE OF GREAT POWERS

Hércules Kuster dos Reis1


Mayra Gomes Jesuíno2
Thaís Eleutério Miranda de Oliveira3

Data de submissão: 12/10/2016


Data de aceite: 21/11/2016

Resumo

A partir de uma contextualização histórica pode-se aferir que é na proeminência do


humanitarismo no Sistema Internacional que o direito internacional humanitário e as
intervenções humanitárias surgem, trazendo junto a si diversos dilemas e paradoxos. Como
ações coercitivas, as intervenções são realizadas contra/em um Estado por este estar
infringindo uma norma ou um princípio estabelecido no Sistema Internacional, que visam a
proteção de indivíduos de outros Estados, por meio do uso da força militar e que tenham seus
direitos fundamentais restringidos ou extirpados. Contudo, essas práticas possuem diversas
características que provocam debates e discordâncias sobre seus meios e fins, principalmente
devido a seu caráter politizado. Além disso, há grandes discussões acerca de suas
particularidades coercitivas e das influências econômicas aos quais as intervenções são
subordinadas. Desta forma, este artigo busca analisar as intervenções humanitárias, a partir do
conflito em Biafra - que é de suma importância nos debates sobre crises humanitárias após a
Segunda Guerra Mundial.
Palavras-chaves: Intervenções; Coercitivo; Biafra.

Abstract

From a historical context can infer that is the prominence of humanitarianism in the
International System that international humanitarian law and humanitarian interventions arise,
bringing together the many other dilemmas and paradoxes. As coercive actions, interventions
are carried out against / in a state for this is infringing a standard or an established principle in

                                                                                                                       
1
Graduando em Relações Internacionais no Centro Universitário de Belo Horizonte. E-mail:
herculeskuster@hotmail.com
2
Graduanda em Relações Internacionais no Centro Universitário de Belo Horizonte. E-mail:
mayragomesjesuino@outlook.com
3
Graduanda em Relações Internacionais no Centro Universitário de Belo Horizonte. E-mail:
thata.eleuterio@gmail.com
264

the International System, aimed at individuals protection to other states, through the use of
military force and have their fundamental rights restricted or cut off. However, these practices
have different characteristics that provoke debates and disagreements about its means and
ends, mainly due to its politicized. In addition, there are big discussions about their
enforcement characteristics and economic influences to which interventions are subordinated.
Thus, this article aims to analyze the humanitarian interventions from the conflict in Biafra -
which is very important in debates on humanitarian crises after the Second World War.
Key Words: Interventions; Coercive; Biafra.

1 INTRODUÇÃO

A prática humanitária pode ser encontrada, dependendo da interpretação histórica,


em diversos momentos, porém alguns antecedentes são cruciais para o entendimento do
fenômeno na contemporaneidade. Pode-se identificar como base do humanitarismo moderno
o ideal de caridade/solidariedade. Segundo Esteves (2010), ao longo do século XVIII, o
sistema internacional passou por um processo de secularização das práticas caritativas, uma
vez que deixaram de ser objeto apenas da Igreja e passaram a ser incorporadas pelo Estado.
As justificativas utilizadas para sustentar essa apropriação foram a regulação por
parte do Estado e a limitação do poder da Igreja. A caridade e a filantropia passaram a ser, em
certa medida, instrumentos de política pública e a sustentar um dos aspectos centrais do
processo de emergência do humanitarismo moderno que, nas palavras do próprio autor, é “a
assimetria constitutiva entre quem conduz o processo do cuidado e quem é o objeto desse
processo” (ESTEVES, 2010. p, 16). As dimensões desse processo de “estatização da
caridade” aparecem, principalmente, no surgimento das leis dos pobres, descritas na obra de
Bentham (1791 apud Esteves, 2010), que claramente estava convencido da responsabilidade
estatal em promover o alívio da pobreza a partir de duas máximas: “humanidade comum” e
“segurança pública” (ESTEVES, 2010).
Nesta lógica, nasceu na língua inglesa o vocábulo “humanitário”, que foi difundido
pelo mundo e passou a se referir “àqueles que se propunham de uma maneira ou de outra a
aliviar o sofrimento humano em geral ou fazer avançar a raça humana”, conjuntamente
com uma “cultura da sensibilidade” para com o outro (CALHOUN, 2008 apud ESTEVES,
2010). Esteves (2010) afirma que esta cultura da sensibilidade, juntamente com a conotação
dada a esse vocabulário, passou a possuir intrínseca associação a uma lógica de processo
civilizatório, pois levava em consideração certo tipo de desenvolvimento humano restrito, que
delimitava quais sociedades o possuíam ou não. Nesta perspectiva, a compaixão e a relutância
em infligir sofrimento humano passaram a serem características de quem é considerado com
civilidade, ou seja, civilizado.
265

De fato, como percebeu Elias, até o início do século XX, o conceito de civilização,
como um conceito dinâmico, que implicava a ideia de processo, terminava por
mitigar as diferenças regionais e nacionais a bem da expansão de uma espécie de
autoconsciência europeia ou ocidental representada, sobretudo, pela própria
conduta individual. É essa última acepção que permite relacionar humanitarismo e
civilização; mais que isso, permite relacionar à ação humanitária em seu sentido
moderno, às perspectivas evolucionistas e modernizantes que marcaram o
liberalismo oitocentista (ESTEVES, 2010, p. 13).

E, desta forma, a definição entre barbárie e civilidade foi sendo difundida no interior
dos Estados europeus, reforçando o processo de governamentalização por parte dos Estados
nas questões sociais e na sociedade europeia internacional que se expandia rumo a uma
sociedade internacional (ESTEVES, 2010). Como cita Bellamy (1994), referenciando o
escritor John Stuart Mill, na lógica liberalista de autonomia dos indivíduos e das virtudes do
laissez-faire, as intervenções passaram a serem necessárias por parte dos Estados ou dos
“indivíduos de bem” no intuito de proteger aqueles que não possuem autonomia e liberdades
fundamentais. Desde então, a humanidade cindiu em dois grupos: os indivíduos autônomos e
autogovernados, e aqueles que deveriam ser governados (ESTEVES, 2010).

Assim, enquanto que na periferia do nascente sistema de Estados europeu, as


práticas humanitárias, uma vez apropriadas pelos Estados, iriam se revestirem de
um caráter civilizador, no centro desse sistema tais práticas serão
institucionalizadas segundo a lógica dos Estados Nacionais (ESTEVES, 2010, p.
26).

Sendo assim, é na proeminência do humanitarismo no sistema internacional que o


direito internacional humanitário surge, trazendo junto a si diversos dilemas e paradoxos. O
marco dessa criação é a batalha de Solferino, contada por Henry Dunant (apud ESTEVES,
2010), levando-o a chamar a atenção às necessidades de cuidados em relação aos soldados
em tempo de conflito. Em 1863, com essa preocupação latente, Dunant ajuda a criar o Comitê
Internacional de Ajuda aos Feridos, que posteriormente se torna o Comitê Internacional da
Cruz Vermelha (CICV), e uma conferência internacional que estabeleceu a primeira
Convenção de Genebra, fazendo desses marcos para a regulamentação de guerra e para a
projeção das práticas humanitárias para o campo do jus in bello4 (ESTEVES, 2010).
As quatro Convenções de Genebra, que foram criadas a partir do movimento de
Dunant, buscam hoje, através do Direito Internacional Humanitário, assegurar regras que
pretendam, por razões humanitárias, minimizar os efeitos dos conflitos armados. Objetivam
proteger aqueles indivíduos que não participam ou que deixaram de participar do conflito,
                                                                                                                       
4
Jus in bello são os direitos que regulam o direito de guerra, diferentemente do jus and bellum que abrange o
direito à guerra (ÁVILA; RANGEL, 2009).
266

como “civis, ex-combatentes, pessoal da saúde e do serviço humanitário, soldados feridos e


doentes, prisioneiros de guerra e outras pessoas privadas de sua liberdade” (CICV, 2016).
Durante a Guerra Fria, como explica Esteves (2010), ocorreram várias crises
humanitárias no sistema internacional que tiveram um impacto significativo sobre as
intervenções. Neste contexto, o autor afirma que as décadas de 1960, 1970 e 1980 foram
marcadas pelo uso político das intervenções humanitárias, fato esse bastante recorrente no
pós-Guerra Fria. Até 1977, aproximadamente, as intervenções eram destinadas apenas à
proteção de nacionais em cenários de conflito internacional e após as inúmeras crises, como a
de Biafra, a opinião pública mundial passou a clamar para que as práticas humanitárias
fossem aplicadas aos indivíduos considerados desprotegidos. Em meio a esse processo, as
práticas humanitárias passaram a ser desenhadas sobre a tela dos direitos humanos, sendo
reconfiguradas em termos de uma antropologia liberal. Essa grande diferença é percebida na
mudança da concepção sobre o objeto de proteção das intervenções, como ficaram sendo
chamadas (ESTEVES, 2010).
Anteriormente, para o CICV, o lugar de vulnerabilidade era ocupado pelos civis ou
pelos combatentes feridos, aos quais foi conferido o status de neutralidade. Para os Médicos
Sem Fronteiras esse lugar seria ocupado pelas as vítimas de desastres naturais e de conflitos
armados. Desse modo, o objeto de proteção das intervenções passou a ser qualquer indivíduo,
pois todos são percebidos como dotados de direitos e garantias fundamentais e universais.
Assim, as intervenções humanitárias (como ficaram condicionas a serem chamadas) passaram
a ser doutrinadas por um ponto de vista exclusivo: humano e cristão (ESTEVES, 2010).
Para se discutir as intervenções, faz-se necessário a conceitualização do que seriam
as mesmas. A autora Martha Finnemore (2003), conceitualiza as intervenções humanitárias
como ações coercitivas contra um Estado por estar, este, infringindo uma norma ou um
princípio estabelecido no sistema internacional. Tais ações são sempre feitas por outro Estado
ou por um grupo de Estados, ou seja, são ações que visam a proteção de indivíduos de outro
Estado, por meio do uso da força militar, que tenham seus direitos fundamentais restringidos
ou extirpados (FINNEMORE, 2003). Bull (2002), em seu livro “Intervation in World
Politics”, também conceitua as intervenções humanitárias como ações coercitivas feitas por
agentes e Estados que estão envolvidos com as causas da intervenção ou possuem um papel
predominante no sistema internacional, a fim de restaurar a ordem dentro de um Estado para
que o problema não transborde e afete a estabilidade do sistema (VALENÇA, 2009).
267

Sendo assim, pretende-se nesse artigo entender algumas particularidades das


intervenções humanitárias do sistema internacional, a partir da Guerra Civil do Biafra até o
cenário pós Guerra Fria, a fim de analisar seus dilemas.

2 GUERRA DO BIAFRA

A Guerra da Biafra foi uma guerra civil que ocorreu na Nigéria de 1967 a 1970 entre
elites políticas de grupos étnicos, em torno de uma competição sobre recursos econômicos e
políticos. De forma sucinta, o conflito iniciou-se após o golpe arquitetado por um grupo de
oficiais de origem étnica Igbo (cristãos) que mataram o primeiro ministro Sir Abubakar, se
aprofundando com um contra golpe por oficiais mulçumanos que culminou na perseguição
contra os Igbos. Em seguida, como resultado dessa fragmentação interna, após massivas
perseguições e massacres aos Igbos - que se concentravam na região sudoeste do país -, os
biafrenses declararam sua independência da Nigéria. A partir disso, o governo federal
nigeriano se opôs e começou o conflito. O conflito foi liderado – em ambos os lados –
exclusivamente por generais e oficiais africanos (OLIVEIRA, 2014). Instalado o conflito, o
governo central da Nigéria, passou a adotar uma estratégia de completo bloqueio das linhas de
abastecimento da região da Biafra por via terrestre. Cerca de um milhão de pessoas morreram
de fome provocada pelo bloqueio (ESTEVES, 2010).
Os insurgentes conseguiam suas armas principalmente através de grupos
mercenários, e de forma bem mais tímida de países como a França que possuía uma relação
complexa com o governo nigeriano. Contudo, ao final, depois dos bloqueios e do massacre
que os Igbos sofreram, a expectativa das lideranças da Biafra era encerrar o conflito pela via
diplomática (ESTEVES, 2010). Apostaram no reconhecimento internacional para a solução
do conflito. Isso fez com que o conflito passasse a ser apenas uma tensão já que os briafenses
não possuíam mais a capacidade de manter operações militares. A situação atingiu certo
limiar no que diz respeito aos confrontos (CICV, 2008).
O conflito em Biafra é de suma importância às crises humanitárias e as ajudas
humanitárias após a segunda guerra mundial na periferia do sistema internacional. Na
verdade, até os anos de 1970 tais questões eram tratadas apenas por canais bilaterais
promovendo agenda dos governos envolvidos. Não que ate os dias atuais não tenham
finalidades parecidas. Sendo assim, a partir de Biafra, como também de Bangladesh, Etiópia e
Camboja, é possível perceber a proeminência principalmente das organizações não
governamentais no alivio de desastres humanos, sociais e ambientais (ESTEVES, 2010).
268

Em um primeiro momento, questões são levantadas sobre o conflito e giram em


torno da legitimidade do DIH: as tensões iniciaram-se em 1967, porém a Nigéria já havia
ratificado as convenções de Genebra em 1961, ou seja, ela reconhecia os preceitos
estabelecidos. Entretanto, por questões de poder e interesses econômicos, o governo do país
praticamente passou por cima dos seus preceitos. O artigo 3º - já citado anteriormente –
estipula que as pessoas que não tomem parte diretamente nas hostilidades, sejam tratadas com
humanidade e sem nenhuma distinção de carácter (CICV, 2008). Porém as atitudes adotadas
pelo governo nigeriano podem ser comparadas a genocídios. Cerca de um milhão de pessoas
morreram de fome com que os bloqueios impostos (ESTEVES, 2010). Além disso, é preciso
ressaltar o caráter universal empregado nas convenções de Genebra, que não exige que
necessariamente um Estado ratifique-as para que as siga.
Neste sentido, ao perseguir uma minoria étnica e evitar que mantimentos básicos à
sobrevivência chegassem à população da Biafra que não tomaram parte diretamente das
hostilidades, como: crianças e idosos, o Estado estava claramente desrespeitando os aspectos
normativos que regem tanto os direitos humanos – como princípios básicos universais –
quanto ao direito internacional humanitário explícito nas convenções de Genebra – que prevê
situações especifica dentro da lógica dos DH -, por interesses próprios governamentais.
Quando se percebe que a Biafra era uma região rica em áreas petrolíferas, o
desrespeito a cláusula da neutralidade expressa pelo direito internacional humanitário aos
doentes, enfermos, entre outros também é um fato que chama bastante a atenção. Para autores
como Alex de Waal (1997) apud Esteves (2010), Biafra foi um divisor de águas para as
práticas humanitárias contemporâneas, pois chamou a atenção para as principais aporias que a
ação humanitária enfrenta ate os dias atuais. Um dos maiores desafios do direito internacional
humanitário é coordenar e compatibilizar as atividades humanitárias e o respeito pela pessoa
humana com a ordem pública dos Estados e os interesses dos interventores (BAPTISTA
2004).
De certa forma, esses acontecimentos reforçam as inúmeras críticas acerca dos
organismos internacionais, que muitas vezes tem suas margens de ações restritas ao plano do
discurso fazendo com que as mesmas sejam relacionadas ao fracasso. A ONU, também como
um organismo capaz de intervir, demonstrou uma atitude acintosamente ausente, devido à
posição de interesse das potências comandantes do Conselho de Segurança. Todavia, as ações
humanitárias visando à proteção aos indivíduos em tempo de conflito, deveriam ser pautadas
na imparcialidade e não na promoção de agendas. Apenas algumas organizações não
governamentais puderam coordenar e executar algum tipo de ajuda humanitária para a Biafra,
269

principalmente da imensa propaganda sobre o conflito que a mídia internacional propagou.


Embora a luta pela independência da região já estivesse perdida, fotos das crianças atingidas
pela fome passaram a estampar os principais jornais internacionais. Cerca de 3.000 crianças
morreram (ESTEVES, 2010).
Acredita-se que a falta de participação da ONU e a falta de mecanismos para que o
CICV conseguisse chegar ao local, se dá por uma falta de interesse das potências mundiais em
intermediar o conflito. As ações humanitárias em Biafra terminaram por apontar importantes
questões acerca da natureza, dos procedimentos e do uso para fins políticos das mesmas, o
que nos leva a uma terceira indagação sobre a parcialidade política. Durante o conflito, o
cenário internacional era pautado na dinâmica bipolar entre as superpotências URSS e EUA.
As ações humanitárias desse período, como um todo, foram marcadas por
intervenções extremamente políticas para exercer influências de alinhamento ideológico e não
necessariamente pela dimensão das necessidades. Entretanto, mesmo havendo uma divisão de
alinhamentos no sistema internacional o Reino Unido, a URSS e os EUA apoiaram o governo
nigeriano para promover suas agendas e seus interesses econômicos. A Região do Biafra era
uma localidade rica em recursos naturais, mais especificamente de petróleo. Grande parte dos
países Africanos também apoiava o governo federal nigeriano com receio de que houvesse
transbordamento do conflito e isso atrapalhasse a coesão de seus Estados. De forma geral,
essas questões de interesses, sufocaram possíveis preocupações com as implicações
humanitárias da região (ESTEVES, 2010).
Neste sentido, Martha Finnemore (1996) defende que desde a criação do CICV e do
Direito Internacional Humanitário, as práticas humanitárias compreendem a díade estratégica
humanitária. Ou seja, as ações humanitárias são utilizadas como instrumentos que contribuem
para interesses dos Estados pináculos. É importante ressaltar, que a influência internacional
neste caso não descaracteriza o conflito como não internacional. Acredita-se que em um
período recente da história, devido à propagação da globalização, das relações de
interdependência, do fenômeno do spill overs entre outros fatores contribuíram para que os
conflitos internos não sejam isentos do jogo de poder da política internacional. É isso chama a
atenção para outras questões mais amplas, como o caráter civilizador das intervenções
humanitárias, o principio da não inferência em assuntos internos, e da responsabilidade de
proteger quando um Estado não consegue assegurar ou não quer direitos fundamentais.

3 SEGURANÇA HUMANA
270

Para muitos autores, como Silva (2011); Donnelly (2003); Bellamy e Wheeler (2008)
e Valença (2009), com a nova ordem mundial estabelecida ao final da Guerra Fria, as
intervenções humanitárias passaram a ser cada vez menos legítimas e mais violentas. No
decorrer da Guerra Fria, as intervenções eram mais ideológicas do que, de fato, questões de
segurança internacional, porém, já apresentavam o uso da força como instrumento.
Entretanto, é no pós-Guerra Fria que o uso da força passa a ser intrínseco às práticas dos
Estados intervenientes, a partir da articulação de duas instâncias discursivas, a estratégica
(para benefício do próprio Estado interveniente) e a humana (para benefício da pessoa
humana), que legitimam a ação humanitária. Sendo assim, é notório que o quadro de
inseguranças existentes no sistema internacional passou a ser visto algo com maior
complexidade e profundidade, abandonando-se a discussão entre poder e paz, apresentadas
pelas teorias realistas e idealistas. Este é um problema que perpassa diferentes esferas das
relações internacionais, desde o indivíduo até sistema internacional (BUZAN, 1984).
Com maior amplitude, pode-se dizer que a ideia de construção da paz foi acrescida
ao conceito de segurança internacional, ou seja, a dimensão dos direitos humanos foi
incorporada às operações de manutenção da paz (DONNELLY, 2008). É importante destacar
que outros temas foram incorporados aos direitos humanos na busca pela paz mundial.
Dentre estes temas estão a democracia, a cooperação e a integração, a prosperidade e o
desenvolvimento. Passou a existir, então, um vínculo entre direitos humanos, democracia,
desenvolvimento e segurança5 (ESTEVES, 2010).
Desta forma, pode-se dizer que o fim da Guerra-Fria alterou os paradigmas relativos
à segurança internacional. Como afirma Buzan (1984), além da alternância de paradigmas,
houve um movimento de mutação em relação a concepção do que seria segurança, sendo que,
a partir disso, começa-se a se falar de segurança humana. O conceito de segurança humana,
assim como o de desenvolvimento humano, foi cunhado nos relatórios produzidos pelas
Nações Unidas no interior do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), em 1993 e 1994, por Mahub ul Haq. Inicialmente, pode-se dizer que o conceito de
segurança humana, como afirma o próprio Mahub ul Haq (2007) apud Esteves (2010),
presumia que poderia haver uma tensão entre as aspirações individuais e a estrutura política
dos Estados, que são caracterizados por uma diversidade étnica e cultural imensa. Esse

                                                                                                                       
5
Segundo Esteves (2010), o estabelecimento desses vínculos se encontra no documento intitulado “Uma agenda
para a paz”, que trata da democracia liberal, bem como no documento intitulado “Uma agenda para o
desenvolvimento”, que trata do nexo da segurança com o desenvolvimento. Para maiores informações vide:
http://funag.gov.br/loja/download/916-Comissao_das_Nacoes_Unidas_para_
Consolidacao_da_Paz_Perspectiva_Brasileira.pdf
271

conceito foi construído sem qualquer concordância formal da ONU. Entretanto, ao longo da
década de 1990, ele sofreu algumas mudanças (ESTEVES, 2010).
A ONU, atualmente, possui uma comissão específica para segurança humana, o que
demonstra, na prática, a realocação dos direitos humanos com ponto central da agenda de
segurança mundial. De acordo com esta comissão, a segurança humana é necessária, pois é
uma resposta à pobreza crônica, à violência étnica, ao terrorismo internacional, às crises
financeiras, às alterações climáticas e ao tráfico humano. A comissão, ainda, defende que
ameaças à dignidade humana não podem ser combatidas através de mecanismos não
convencionais (como na atuação de Organizações Não Governamentais), por isso a
necessidade de ser criar relações de interdependência entre o desenvolvimento, os direitos
humanos e segurança internacional (CHS, 2003). É de suma importância apresentar o que se
entende como segurança humana na atualidade, principalmente para os órgãos internacionais.
Segundo a comissão de segurança humana da ONU, sua definição é:
A segurança humana significa proteger as liberdades fundamentais - liberdades que
são a essência da vida. Significa proteger as pessoas de ameaças críticas (graves) e
penetrante (generalizada) e situações. Significa usar processos que construir sobre
os pontos fortes e aspirações das pessoas. “Isso significa a criação de sistemas
políticos, sociais, ambientais, econômicos, militares e culturais que, juntos, dão às
pessoas os blocos de construção de sobrevivência, subsistência e dignidade” (CHS,
2003, p.4)6

A partir disso, como afirmam Bellamy e Wheeler (2008), os anos 1990 passaram a
ser chamados de os “anos de ouro para o ativismo humanitário”. Os autores argumentam que
a noção de que os assuntos humanitários são mais importantes do que a soberania passa a
comandar a política internacional. Isto significa dizer que, nos anos 1990, as intervenções
passaram a ser identificadas como imprescindíveis à proteção de estrangeiros, diferentemente
da conotação anterior, como apresenta Esteves (2010), ao contextualizar a história da
emergência do humanitarismo moderno até o período da Guerra Fria. Em contrapartida, esse
mesmo período foi, também, o período em que ficou evidente a utilização dessas mesmas
intervenções humanitárias como instrumento de balança de poder, caso dos genocídios de
Ruanda, em que o mundo permaneceu alheio ao ocorrido. Com isso, fica claro que, no pós-
Guerra Fria, os Estados ocidentais tomaram a liderança no avanço de uma nova forma de
intervenção armada (BELLAMY; WHEELER, 2003).

                                                                                                                       
6
Human security means protecting fundamental freedoms – freedoms that are the essence of life. It means
protecting people from critical (severe) and pervasive (widespread) threats and situations. It means using processes
that build on people’s strengths and aspirations. It means creating political, social, environmental, economic,
military and cultural systems that together give people the building blocks of survival, livelihood and dignity.”
(Tradução Própria).
272

É necessário destacar que, durante os anos de 1990, alguns Estados, como Rússia,
China, Índia e outros membros do movimento não alinhado às ideias ocidentais imperialistas,
foram contrários às práticas humanitárias, da forma como se desenvolviam, e à interferência
de assuntos internos, que infringia a soberania dos Estados. Contudo, ao final da década,
esses mesmos Estados relutantes passaram a aceitar as intervenções, desde que autorizadas
pelo Conselho de Segurança da ONU ou em casos de genocídios em massa. Porém, é
pertinente considerar que o Conselho de Segurança da ONU é uma instituição extremamente
politizada e é difícil a afirmação de que haja imparcialidade nas suas decisões (BELLAMY;
WHEELER, 2003).
Nesse contexto, surge uma das primeiras preocupações acerca da temática, como
retratado por Bull (2002), que se centra na ideia de que as intervenções em assuntos internos
não necessariamente terão um propósito claro. A ação pode advir de um objetivo obscuro de
uma potência com a finalidade de influenciar ou restringir a influência de outra potência em
um determinado lugar. Alguns exemplos dessa afirmação de Bull (2002), sobre possíveis
abusos, são a intervenção francesa em Ruanda, em 1994, e a intervenção no Iraque, em 1991,
pelo exército americano, britânico, francês e holandês. Existem evidências de que motivos
políticos dos Estados podem ser considerados seus grandes motivadores, trajados de práticas
humanitárias e, em casos em que não houve interesses nacionais em jogo, a opinião pública
pode ser considerada o grande estopim. Com isso, uma análise aprofundada sobre os reais
motivos das efetivas intervenções, principalmente as articuladas por líderes ocidentais, de
maneira alguma podem ser apontadas como um impulso exclusivo, embora haja evidências
de humanitarismo (BELLAMY; WHEELER, 2003).
Pode-se dizer que os direitos humanos, a democracia e o desenvolvimento passaram
a estar mais fortemente conectados, a partir do momento em que se tornaram pautas de
segurança de segurança internacional. As transformações sistêmicas fizeram com que esses
temas, presentes nas chamadas políticas soft, ganhassem destaque na agenda internacional de
segurança no contexto pós-guerra (BARROSO, 2006). O caráter securitizado dos direitos
humanos, da democracia e do desenvolvimento, bem como os temas ambientais, após a
Guerra Fria, surgiu com o início das discussões de revisitação da conceituação de segurança.
Nesta época, havia a necessidade em se afastar as questões de segurança internacional das
premissas realistas, que as restringiam a aspectos apenas militares e estratégicos. Assim,
ficou evidente que assuntos tangentes à segurança internacional são construídos pelas relações
sociais.
273

Para Buzan (1991), o debate sobre segurança colabora para a emancipação humana,
pois as ameaças à segurança não se originam apenas na esfera militar, mas também nos
setores políticos, econômicos, societais e ambientais (TANNO, 2003). Como evidência tem-
se a Conferência de Viena, de 1993, onde nota-se que o Conselho de Segurança passou a
conferir aos direitos humanos um papel de influenciador da manutenção da segurança
(HERNANDEZ, 2010). Assim, esses elementos cederam espaço à ocidentalização e têm sido
propagados como ideais universais. O direito de ser independente e soberano passou a
nortear os Estados, extirpando a miragem em um dia pertencerem à sociedade europeia
civilizada (BUZAN, 2014). Compreende-se que o universalismo passou a ser uma prática
discursiva de ideais, supostamente universais, apresentados como pensamentos hegemônicos,
sendo o principal debate ideológico do século XXI (SANTOS, 2013). De fato, o
universalismo se apresenta como uma prática de alguns Estados, que se colocam em posição
de superiores, em uma prática imperialista, que impõe ao resto do mundo seus códigos de
conduta, suas intepretações de mundo, de modo muito similar à conduta de padrão
civilizacional da chamada sociedade europeia internacional, durante o século XIX (BUZAN,
2014; GONG, 1984).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das informações levantadas, compreende-se que as intervenções e suas


finalidades são abarcadas por um conjunto de pressupostos ocidentais. Analisando a história,
desde o episódio de Biafra durante a Guerra Fria até o cenário atual, é pertinente concluir
que, em geral, as intervenções estiveram a serviço dos interesses das grandes potências. Todas
as culturas, de leste a oeste e de norte a sul, tendem a caracterizar os seus valores como os
mais importantes, mas apenas “a cultura” ocidental os impõe de forma incisivamente como
universal (WALLERSTEIN, 2007). Desta forma, enquanto os direitos humanos, a democracia
e o desenvolvimento forem utilizados com um sentido universal, eles serão formas de
legitimação de poder, de modo que a colocação de Huntington (2010) sobre o “choque de
civilizações” se fará plausível (SANTOS, 1997).
Como pode se inferir, desde o início do humanitarismo moderno, a sua prática foi
regida por uma determinada visão sobre o mundo, aquela que se origina em quem tinha uma
situação de poder sobre os demais, o que se assemelha bastante do período colonial. As
intervenções humanitárias são formas contemporâneas de se tentar moldar outro país a partir
de ideais como a democracia, o desenvolvimento e os direitos humanos, todos eles
considerados ideais pós-coloniais. Esses preceitos substituíram valores coloniais como o da
274

evangelização e da aculturação, entretanto, podem todos fazer parte de um único conjunto de


ideais universais, doutrinadores, construídos a partir da realidade das potências mundiais.
Acredita-se na importância da democracia e dos direitos humanos e, certamente, na
visão que os considera como importantes evoluções no interior do sistema internacional.
Contudo, os países que se encontram em posições de pináculo mundial, muitas vezes,
utilizam-se desses preceitos para fazer prosperar os seus objetivos. Desse modo, compreende-
se que é possível dizer que as intervenções são instrumentos políticos para propagar seus
valores, partindo do pressuposto que são universais e hegemônicos, não podendo ser mudados
para adaptarem-se as realidades distintas.
O caráter político das intervenções traz inúmeras dificuldades, até mesmo no que diz
respeito à sua legalidade. Há grandes dúvidas sobre o limiar entre os motivos para se intervir e
a real necessidade dessas intervenções. Até mesmo ao relacionar o momento em que a
segurança humana passa a fazer parte da agenda de segurança internacional, cria-se uma
conotação política ao fenômeno das intervenções humanitárias. Neste sentido, percebe-se,
claramente, uma relação desse fenômeno com os fenômenos relativos ao colonialismo. No
colonialismo também os países mais poderosos (Estados colonizadores) se utilizavam do
discurso do benefício daqueles em situação de menos desenvolvimento, com fins de
exploração.
A partir dessas considerações, acredita-se que seria pertinente uma pesquisa mais
aprofundada sobre a possibilidade de as intervenções humanitárias serem consideradas uma
nova forma de colonialismo, e se há base teórica para tal afirmação.

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Acesso em: 10 nov. 2015
277

A INSUFICIENTE POLÍTICA MIGRATÓRIA BRASILEIRA: DILEMAS


ECONÔMICOS E JURÍDICOS 1

THE INSUFFICIENT BRAZILIAN MIGRATORY POLICY: ECONOMIC


AND LEGAL CHALLENGES
Vivianne Wanderley Araújo Tenório2
Data de submissão: 14/10/2016
Data de aceite: 21/11/2016

Resumo
A realidade brasileira confronta com o cenário mundial em relação ao crescente aumento do
número de migrantes internacionais. O Brasil não está caracterizado como um país que dispõe
de uma legislação oportuna aos fluxos migratórios, mas sim como um país que burocratiza o
processo de chegada de novos imigrantes. Além de um ordenamento jurídico carente, as
políticas de compartilhamento dos dados referentes a matérias de Migrações e
Desenvolvimento são limitadas e dificultam o entendimento dos pesquisadores da área. O
presente artigo pretende abordar a temática da insuficiência legislativa frente às necessidades
jurídicas do estrangeiro, além de demonstrar as consequências da atuação do estrangeiro na
economia brasileira. Para tal foram traçados o perfil desses imigrantes, bem como suas
disposições no território brasileiro.
Palavras-chave: Migração; Política migratória; Economia brasileira

Abstract
The Brazilian reality confronts the international numbers regarding migration, Brazil is not
characterized as a country that has a convenient legislation to migratory flows, but as a
country that bureaucratizes the arrival process of new immigrants. In addition to a poor legal
system, the limited data sharing on Migration and Developments hampers researchers’ work.
This article aims to analyze the issue of legislative failure regarding the foreigners needs in
Brazil, and it demonstrates the impacts of immigrants in the Brazilian economy. In order to
achieve better results, the profile of these immigrants in Brazilian territory was drawn.
Key words: Migration; Migration Policy; Brazilian economy
                                                                                                               
1
Artigo produzido a partir da pesquisa desenvolvida no Programa de Iniciação Científica da ANET, edição
2015/2016.
2
Graduanda em Direito na Universidade Federal de Alagoas (UFAL). E-mail: viviannewat@gmail.com  
278

1 INTRODUÇÃO
As questões que envolvem matérias como Migração e Desenvolvimento apontam para
a necessidade da adoção de políticas governamentais que proporcionem maior bem-estar para
a sociedade. Independente do estatuto legal, indivíduos, sejam estrangeiros ou não, devem ter
seus Direitos Humanos Fundamentais assegurados e protegidos, de acordo com os tratados
internacionais vigentes.
O cenário do século XXI em contexto mundial, revela uma segunda fase da
globalização, intitulada pelo atual secretário-geral da Organização das Nações Unidas(ONU)
como a “Era da Mobilidade”( BAN KI-MOON, 2009).
Refugiar-se de situações conflitantes, como ambientes terroristas proporcionados por
guerras civis, ou tão somente para buscar melhores oportunidades de vida, associados a uma
maior liberdade de circulação entre territórios são alguns dos motivos que levam as pessoas a
saírem de seu país de origem ou residência habitual e optarem por novas realidades. Essa
inserção, em comunidades distintas, provoca tensões sociais e exige aparatos político-
jurídicos para regular tal situação. Ban Ki-moon ressalta então a importância de promover os
direitos dos migrantes 3.
Apesar da configuração internacional apontar dados que indicam o elevado número de
migrantes internacionais, a realidade brasileira indica que apenas 0,3% da população é
composta por estrangeiros, cifra pouco significativa tendo em vista que a média mundial é de
3% (MARTIN, 2016). O Brasil não está caracterizado como um país que dispõe de uma
legislação favorável à imigração. A burocratização proporcionada pelo Estatuto do
Estrangeiro, de 1980, então vigente no Brasil, é um impasse para que ocorra um significativo
aumento dos fluxos migratórios para o território brasileiro.
Um ambiente jurídico despreparado acoplado às falhas administrativas do setor
executivo brasileiro caracterizam um cenário de crise que contribui para mascarar a chegada
dos novos fluxos de estrangeiros, além de promover uma dicotomia entre os discursos que
debatem quanto à receptividade, ações xenofóbicas pontuais e a integração dessas pessoas.
Ao longo deste artigo serão feitas breves caracterizações dos perfis dos imigrantes que
dirigem-se ao Brasil, a partir do século XX, apontando números coletados desde 1900 até a
pesquisa mais recente feita em 2012. Isso será feito por meio da coleta de dados
disponibilizados pelo Conselho Nacional de Imigração, Ministério da Justiça, Ministério das

                                                                                                               
3
O termo migrante deve caracterizar os indivíduos cuja decisão de migrar for tomada livremente por esses, a
fim de melhorar suas condições materiais, bem como sociais (OIM, 2009).
279

Relações Exteriores, Polícia Federal, bem como pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). Uma análise levando em consideração a relação entre a mão de obra
estrangeira e a economia brasileira, teve por base os dados mais atualizados concedidos pelo
Ministério do Trabalho, Emprego e Previdência Social.
Tendo em vista a amplitude do conteúdo e a limitação encontrada diante da frágil
sistematização de dados, foi entendido como necessário restringir as críticas à duas regiões
opostas: Sudeste brasileiro, em especial o estado de Sao Paulo; e o Nordeste, destacando a
zona conhecida como MATOPIBA. Essa terminação é referente a faixas reconhecidas pelo
Governo Federal, em específico pelo Ministério da Agricultura do Brasil como uma das
últimas fronteiras agrícolas do mundo, divisão que compreende os estados do Maranhão,
Tocantins, Piauí e Bahia.
O potencial encontrado, nesses estados do Nordeste, implica no reconhecimento de
áreas que ao longo da historia foram pouco valorizadas, e que agora a partir dos recursos
avançados proporcionados pela globalização em soma com alguns métodos desenvolvidos em
especial por imigrantes, possibilitarão uma nova caracterização da região.
É possível compreender por meio da literatura, que tradicionalmente a região Sudeste
recebe mais imigrantes, enquanto o Norte e Nordestes do Brasil, são compreendidos como
regiões caracterizadas como tipicamente expulsivas.
As duas regiões foram ressaltadas por apresentarem divergências quanto ao estímulo e
receptividade quanto à chegada de grupos estrangeiros, sendo importante compreender que
existe um favoritismo permeando as movimentações para esses locais que recaem diretamente
sobre a economia brasileira. A variedade no setor de serviços e as oportunidades disponíveis
no estado de São Paulo, por exemplo, atraem inúmeros migrantes, enquanto a possibilidade de
expansão de novos projetos com incentivos do Governo Federal, estimulam o direcionamento
de investidores e imigrantes para a área compreendida como MATOPIBA.
O objetivo deste trabalho será realizar um compêndio acerca do panorama da
migração no Brasil, questionando as políticas migratórias adotadas no país e suas relações
com os âmbitos econômicos e jurídicos, estimulando o debate quanto a essas questões, sem
pretender esgotar o tema.
Por políticas migratórias, entende-se que são políticas públicas que discorrem acerca
da regulação de seu vínculo com os estrangeiros que se encontram em determinado território,
bem como com os seus nacionais que estejam sob a jurisdição de outro Estado (SICILIANO,
2001).
280

2 CARACTERIZAÇÃO DOS MIGRANTES NO BRASIL, DO SÉCULO XX AOS


DIAS ATUAIS
Compreender o perfil do migrante que escolhe o Brasil como destino, é fundamental
para a elaboração de políticas públicas mais assertivas que estimulem uma convivência sadia
entre os residentes locais e os estrangeiros.
Condicionantes internos ou externos justificam a movimentação de migrantes para o
Brasil. Dentre os condicionantes endógenos, devemos ressaltar que grupos de migrantes são
incentivados indiretamente a sair do seu país de origem por causa de conflitos políticos
internos, que geram inseguranças naqueles que convivem com tal situação, como é o caso de
migrantes provenientes de países do Oriente Médio, por exemplo.
Instabilidades econômicas, desastres naturais, busca por melhores condições de vida e
elevadas taxas de desemprego também são levados em consideração como fatores que
motivam a saída dos estrangeiros de sua terra natal. Com a crise econômica mundial em 2008,
inúmeros indivíduos sentiram-se motivados a sair de regiões como Europa e Estados Unidos,
e buscaram países que mesmo abalados com tal situação ainda possuíam oportunidades de
emprego e melhores condições de vida. Em relação a esse critério de motivação, merece um
destaque os migrantes portugueses, que, por apresentarem maior afinidade com a cultura
brasileira, consagraram-se como os que mais se destinavam para o Brasil4.
Ainda classificados como endógenos, catástrofes naturais que modificam
inesperadamente o ambiente antes viável, condicionam grupos a movimentarem-se para
outras regiões.
Após o terremoto ocorrido em 2010 no Haiti, diversas levas de migrantes
direcionaram-se para o Brasil, o que levou à criação de um visto humanitário5, para residir
legalmente em terras brasileiras. Tendo em vista o desastre, inicialmente a burocratização do
processo de obtenção do visto foi reduzida, facilitando a instalação desses estrangeiros no país
em questão. Entretanto, as consequências dessa fatalidade estão sendo a longo prazo,
consequentemente com a falta de eficiência nos métodos do processo que envolvem os
haitianos no Brasil, a permanência desses voltou a ser uma querela, uma vez que a demanda

                                                                                                               
4
Em 2012, 277.727 era o número de imigrantes portugueses permanentes registrados no território brasileiro.
Fonte: Polícia Federal, 2013.
5
Em janeiro de 2012, criou-se no Brasil o chamado “visto humanitário”, por meio da resolução 97 do Conselho
Nacional de Imigração (CNIg). É expedido pela embaixada brasileira no Haiti, com o objetivo de evitar que os
haitianos busquem rotas de imigração operadas por organizações criminosas. Inicialmente era previsto o limite
de 1.200 concessões de vistos por ano, limite este que foi revogado posteriormente, em abril de 2013, pela
Resolução 102 do CNIg.
281

de estrangeiros excedeu as expectativas previstas pelo setor executivo brasileiro (MARCEL,


2015).
Quanto aos fatores externos, entende-se como o estímulo proporcionado pelo país
receptor aos grupos de migrantes.
O gráfico 1.1 indica o número de imigrantes permanentes no Brasil em 2012,
destacando os países de origem com maior quantidade de indivíduos. No total foram
contabilizados 938.833 imigrantes com visto permanente6.
Gráfico 1.1

Fonte: Polícia Federal, 2013 (site: oestrangeiro.org)

Em relação a políticas externas diretas que promovam a vinda de estrangeiros, o Brasil


não dispõe de medidas eficazes, e ainda por cima, adota posturas seletivas que tentam recrutar
imigrantes qualificados advindos de países desenvolvidos, como por exemplo, os europeus,
excluindo aqueles caracterizados por seus perfis com rendas salariais mais baixas, bem como
promovendo uma seleção étnica.
Ainda que possua suas políticas migratórias restritivas, o Brasil é compreendido como
um país que contém sólidas instituições democráticas e que apresenta relativamente poucos
conflitos, o que é atraente para os estrangeiros. Ademais, soma-se a isso o grande crescimento
econômico do país e sua posição entre as dez economias mundiais.
Apesar de suas vantagens quanto ao seu posicionamento espacial, vale ressaltar que o
Brasil dispõe de vastos pontos de fronteiras com os países da América do Sul, abrangendo
                                                                                                               
6
Tendo em vista que esses dados excluem os imigrantes em situação irregular, os solicitantes de refúgio, os
refugiados; não é possível limitar os debates aos números apresentados na tabela, uma vez que se levarmos em
consideração a totalidade dos imigrantes dispersos ao longo do território brasileiro, o número a ser contabilizado
será bem maior.
282

quase que em totalidade os países dessa região, excluindo apenas Chile e Equador; esses
elementos, por si só, não são suficientes para atrair mais estrangeiros, como aponta os estudos
realizados pelo IBGE(2010), que indicam que aproximadamente dos duzentos milhões de
habitantes, apenas uma porcentagem mínima entre 0,3% e 0,4% correspondem à população
estrangeira que reside no Brasil.
O gráfico 1.2 indica o declínio ocorrido entre os anos de 1900 e 2010 em relação a
porcentagem comparativa entre estrangeiros e naturalizados diante da população total
brasileira, indicando uma tendência em reduzir a quantidade de estrangeiros no território.
Gráfico 1.2

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2010.

3 DISPOSIÇÃO DOS ESTRANGEIROS NO TERRITÓRIO BRASILEIRO NO SÉC.


XXI
Ao longo do território brasileiro é possível deparar com estrangeiros nas mais variadas
regiões, e as proporções geográficas extravagantes associadas a um limitado e ineficaz
sistema de coleta de dados dificultam os trabalhos de pesquisadores ou mesmo curiosos
acerca da matéria do posicionamento dos estrangeiros no Brasil.
Efetuar a polarização entre duas regiões com realidades distintas, no caso Sudeste e
Nordeste brasileiros, facilitará a compreensão do leitor acerca da dicotomia existente quanto à
receptividade e instalação dos migrantes.
Inicialmente serão elencados os pontos que favorecem a instalação de imigrantes na
região Sudeste, com enfoque no estado de São Paulo, que com o passar dos tempos resultou
em acúmulo de estrangeiros nesse sítio.
283

Em posição contrária, o Norte-Nordeste indica baixas cifras quanto à instalação de


imigrantes em tal região. O enfoque será na delimitação territorial nomeada como
MATOPIBA, expressão resultado de um acrônimo criado com as iniciais dos estados do
Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

3.1 Concentração de Imigrantes na Região Sudeste


Historicamente a região Sudeste tem tendência a receber uma maior quantidade de
estrangeiros desde a configuração do Brasil como colônia, tendo em vista que o governo
brasileiro estimulava a vinda de imigrantes, por meio de propagandas, além de proporcionar
auxílio no translado, tendo em vista que navios saiam regularmente de várias cidades
europeias para os portos de Santos ou do Rio de Janeiro, objetivando que esses imigrantes
configurassem uma mão de obra mais barata para trabalhar em especial nas lavouras de café e
posteriormente nas indústrias( FARIAS, E, et al, 2000).
Excepcionalmente, entre as ondas migratórias de 1871 a 1930 dos quatro milhões de
estrangeiros que chegaram ao território brasileiro, 60% desses se dirigiram para o estado de
São Paulo. A maioria dos imigrantes dessa leva era composta de europeus advindos de países
como Portugal, Itália, Espanha e Alemanha, por exemplo7.
Desde então o estado tornou-se referência, visto que a propaganda do Brasil como
sendo um país de oportunidades, direcionava as levas de estrangeiros para essa região, e cada
vez mais passou a receber novas demandas de imigrantes, movidos principalmente por fatores
endógenos, como refugiados de guerras civis, conflitos religiosos, posições políticas ou
mesmo crises econômicas.
A pluralidade de culturas que foi sendo instalada nessa região ao longo do tempo,
colaborou para um crescimento acelerado da área, que passou a demandar mão de obra não
somente da população local, mas também dos imigrantes, traçando um panorama político-
econômico que mais tarde seria compreendido como região mais desenvolvida do Brasil.
Além disso com a caracterização do contexto globalizado, a facilidade de chegar a
essa área, tendo em vista um maior número de aeroportos, zonas portuárias ou rodoviárias, é
mais um atrativo para os estrangeiros.
Apesar dos dados coletados nos últimos anos que compreendem um declínio quanto à
chegada de grupos migrantes no território brasileiro, é fundamental entender que diariamente

                                                                                                               
7
PARISE, Paolo. Trânsito Humano e acolhida na cidade de São Paulo. Missão Paz. São Paulo: 2015. Dados
adicionais e estatísticas da Missão Paz estão disponíveis em: <http://www.missaonspaz.org/#!estatsticas/c176s>.
Acesso em 13 mar. 2016.
284

são recebidos novos sujeitos provenientes dos mais diversos países que devem ser amparados
juridicamente e atualizados nos sistemas de catalogação de dados.

3.2 A recaracterização da Região Nordeste

Tipicamente compreendida e exemplificada por uma literatura que caracterizava a


região como um ambiente típico de expulsão dos moradores locais, para outras regiões
brasileiras, o Nordeste está adotando uma nova postura frente a sua história.
Com novas tecnologias e a possibilidade de produção agrícola em larga escala, o
Governo Federal, juntamente com o Ministério da Agricultura do Brasil compreenderam que
é possível modificar o cenário tipicamente expulsivo da região e associá-lo a uma nova
realidade que envolve atração de grupos estrangeiros, bem como uma mudança do “status
quo” da população local.
Estados localizados no Nordeste brasileiro que anteriormente enviavam bastante mão
de obra para os demais, como, por exemplo, São Paulo, adaptar-se-ão para utilizá-la em seu
próprio ambiente, por meio de políticas que irão mesclar o incentivo dos governos locais com
os métodos elaborados pelos estrangeiros.
O estímulo que será proporcionado aos moradores locais refletirá sob uma ótica de
progressos, tendo em vista que com o projeto desenvolvido pelos órgãos governamentais,
além de promover melhorias significativas quanto ao desenvolvimento da região, nessa nova
geração será procurado estimular a integração entre os avanços e a população que ali reside,
procurando cessar a então estagnação em posição crítica que a comunidade estava sujeita.
O desenvolvimento territorial estratégico, incitado pelo governo, procurará
reconfigurar o posicionamento da mão de obra estrangeira na zona referida.
Diferentemente do que ocorre na região Sudeste, a vinda de estrangeiros para o Norte
e Nordeste brasileiro poderá ser caracterizada como uma consequência dos condicionantes de
políticas externas adotadas pelo Brasil, uma vez que não ocorrerá de maneira espontânea e
descontrolada como ocorre nas demais áreas, pois o estrangeiro que se destinará à tais áreas
dispõe de um perfil previamente traçado.
O perfil do estrangeiro que o governo brasileiro estimula a vinda para essa região é
justamente dos qualificados nas áreas que irão exercer suas atividades, em especial na
agricultura. Líderes globais em serviços de financiamento para alimentação, agronegócio e
seus respectivos representantes, como por exemplo, a multinacional holandesa Rabobank
(RABOBANK, 2016), são os alvos da nova estratégia política brasileira.
285

Esse novo fluxo migratório já seria uma consequência da superpopulação disposta nas
regiões que são tipicamente destinos dos migrantes. Thomas Malthus(1798), economista
britânico, que pesquisava acerca do crescimento populacional classifica essa consequência
como inevitável da ascensão das imigrações.

4 A INCIDÊNCIA DA MÃO DE OBRA ESTRANGEIRA NA ECONOMIA


BRASILEIRA
O Brasil ocupa a oitava posição entre as maiores economias mundiais, superando Itália
e Canadá, e em perspectiva regional é a maior economia da América Latina, de acordo com os
dados fornecidos por instituições que calculam as movimentações econômicas, tendo sua
posição reconhecida por meio da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e
Desenvolvimento, em 2016(FMI, 2016) .
Um dos fatores que favorecem o posicionamento de destaque é a inserção da mão-de-obra
estrangeira nos mais variados setores econômicos brasileiros. Sabe-se que com o afluxo de
imigrantes por volta de 1920, um incremento tanto em setores primários, quanto em processos
mais elaborados como em setores industriais, foi possível graças aos conhecimentos técnicos
advindos dos estrangeiros que chegaram às terras brasileiras(Missão Paz, 2015). A utilização
dessa categoria trabalhista somada aos recursos que seus componentes dispunham
colaboraram para um significativo avanço da economia brasileira.
Com a participação estrangeira, cifras positivas acerca das estatísticas econômicas do
Brasil acumularam-se no decorrer dos anos, indicando que a introdução da mão de obra
estrangeira ao invés de prejudicar o crescimento da economia local, como asseguram os
discursos odiosos de alguns conservadores ou mesmo extremistas, ela caminhou em paralelo
proporcionando uma diversificação dos setores laborais, bem como um desenvolvimento para
a sociedade que a introduziu no mercado de trabalho.
É fundamental compreender no entanto, que apesar dos significativos avanços, o trabalho
do estrangeiro em solo brasileiro é compreendido através de um entendimento dicotômico.
Ainda que dados indiquem sua relevante contribuição para a economia brasileira, o
posicionamento do brasileiro aponta que apesar de serem favoráveis à chegada de estrangeiros
nesse país, eles sentem-se ameaçados com a possibilidade de terem que disputar as vagas de
empregos com a mão de obra migrante(MARTIN, 2015)8.
Entretanto não é esse medo, ou mesmo o receio que caracteriza o entendimento referido
acima, mas sim os diferentes níveis de atenção, que são destinados aos mais variados
 8                                                                                                              
Matéria baseada na pesquisa realizada pela Secretaria de Assuntos Estratégicos em 2015.
286

imigrantes. No Nordeste, por exemplo, ainda que o governo adote um burocrático processo
para a chegada de imigrantes no território em sua totalidade, nessa região ele estimula a vinda
de imigrantes e faz questão de contabilizar direta e indiretamente as contribuições econômicas
que os estrangeiros proporcionam. A expectativa é que os investimentos estrangeiros diretos
direcionados a zona do MATOPIBA atinjam cifras elevadas, atraindo a atenção do Governo.
Por outro lado a frequente chegada de imigrantes na região Sudeste associada a uma
fragilidade das instituições responsáveis pelas coletas de dados colaboram para mascarar a
influência do trabalho estrangeiro, nessa localidade, em especial nos estados do Rio de
Janeiro, São Paulo e Minas Gerais que acumulam um maior número de imigrantes.
As duas regiões foram ressaltadas por apresentarem divergências quanto ao estímulo e
receptividade de grupos estrangeiros, sendo importante compreender que existe um
favoritismo permeando as movimentações para esses locais que recaem diretamente sobre a
economia brasileira.
Essa atenção oferecida em proporções inversas, que são direcionadas a partir do
interesse governamental, configurando uma arquitetura institucional de acolhimento, o que
indica mais uma das temáticas que são silenciadas pela adoção de uma frágil política
migratória brasileira.

5 POLÍTICA MIGRATÓRIA VIGENTE NO BRASIL


Após traçar um panorama acerca do perfil, bem como da situação do estrangeiro que
reside no Brasil, é necessário compreender como o aparato jurídico assegura a promoção dos
direitos humanos fundamentais e regulamenta tanto a permanência do sujeito em terras
estrangeiras, bem como as relações interpessoais entre a figura do migrante e o próprio
brasileiro, com destaque especial para as consequências desse relacionamento no âmbito
econômico.
A orientação da política migratória brasileira é regulada por uma legislação específica
intitulada de Estatuto do Estrangeiro. A lei nº 6815/1980 que define a situação jurídica do
estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração e dá outras providências quanto
a matéria de migrações no território brasileiro, foi elaborada em período ditatorial e é
caracterizada como uma norma compatível a regimes de segurança de países desenvolvidos,
tendo em vista que não dispõe de considerações econômicas. Considerando que o Brasil está
em processo de desenvolvimento, não tendo logrado ainda os dados que sejam compatíveis a
caracterização desse como um país desenvolvido, a lei vigente é compreendida como rígida e
obsoleta por não atender as necessidades locais demandadas.
287

A lei não segue as diretrizes convencionadas pelos tratados e acordos internacionais


em relação a matéria de Direitos Humanos Fundamentais, tampouco destaca a importância da
proteção e a efetiva aplicabilidade desses, preocupando-se exclusivamente com segurança.
O texto normativo, por outro lado, tem seu conteúdo limitado quanto a disposição de
diretrizes profissionais que orientam e regulam o trabalho dos estrangeiros ao longo do
território brasileiro.
Os institutos responsáveis pelo processo de reconhecimento da permanência do
estrangeiro em solo brasileiro, são a Polícia Federal, o Ministério da Justiça, o Ministério do
Trabalho e Emprego, assim como o Ministério das Relações Exteriores, entretanto a ausência
de ordem operacional entre esses institutos colabora para a caracterização de um processo
burocrático, onde a morosidade do sistema jurídico desestimula o estrangeiro quanto à sua
devida regulação aqui no Brasil. Além disso, a própria rigidez da lei dificulta a regularização
para aqueles que entraram no país indocumentados.
Ademais das imposições jurídicas, dentro da esfera de políticas migratórias devem ser
compreendidas àquelas que objetivam atrair os indivíduos de variadas nacionalidades para o
território em questão. O Brasil mais uma vez caracteriza-se como um país com políticas
externas insuficientes, pois não atraem imigrantes nas proporções almejadas pelos
responsáveis envolvidos na questão.
A publicação de guias legais explicativos elaborados pelo Ministério de Relações
Exteriores, que têm como objetivo apresentar as possibilidades de investimento no território
brasileiro deixam lacunas e levantam questionamentos pois não condizem com os dados reais,
não podendo ser caracterizadas como elementos oportunos que colaboram para a promoção da
Diplomacia econômica, financeira e comercial com variados países.
Dando continuidade a lógica do raciocínio quanto à crítica sobre a insuficiente política
migratória adotada no Brasil, chegamos no elemento que dificulta ainda mais o entendimento
sobre a matéria de Migrações e Desenvolvimento nesse território. A frágil política de
compartilhamento de dados então vigente indica que as instituições responsáveis sobre o tema
não se atualizam proporcionalmente a chegada dos imigrantes nas mais diversas regiões, pois
não há delimitação de competências entre os órgãos jurídicos destinados a exercerem tal
função.
Ainda que aprovado em 2015 pela Comissão de Relações Exteriores e Defesa
Nacional o projeto de lei do senado 288/13 que configura a nova Lei de Migração,
substituindo o rígido e limitado Estatuto do Estrangeiro do período da ditadura militar, a lei
ainda não foi promulgada e passa por um período crítico, visto que a instabilidade política
288

instalada no Brasil desde 2014, ouvida a necessidade da efetiva vigência da nova lei,
protelando sua tramitação pelas casas do poder executivo.
A nova lei que atualiza o Estatuto de Estrangeiro em relação às migrações foi
elaborada pelo senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), e além de atualizar a
nomenclatura de estrangeiro para migrante, insere a matéria no contexto internacional dos
Direitos Humanos incorporando três princípios gerais: interdependência, universalidade e
indivisibilidade.
O projeto de lei ainda discorre sobre a proteção dos brasileiros no exterior, promoção
do reconhecimento acadêmico e do exercício profissional no Brasil, além de repudiar práticas
de deportação ou mesmo expulsão coletivas. No geral, a nova lei implicará no acesso
igualitário aos bens públicos, segurança, educação, saúde e à jurisdição.
Apesar dos visíveis avanços quanto aos elementos que configuram a nova Lei de
Migração, tanto nas áreas trabalhistas como humanitárias, ela não versa sobre a
responsabilidade da catalogação de dados pelas instituições jurídicas.
A adoção de uma nova lei não esgota a temática de migrações, visto que
constantemente devem ser elaboradas políticas específicas que sejam capazes de discorrer
sobre a atração e retenção do estrangeiro e seus investimentos, por meio de iniciativas sócio-
governamentais que sejam assertivas e devidamente institucionalizadas.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Abdelmalek Sayad (1998) aponta que o entendimento quanto à condição do
imigrante e sua instalação no país escolhido, bem como a classificação temporal dessa
mudança pode ser compreendida por meio de um entendimento dicotômico. A situação do
imigrante portanto, pode ser classificada como um estado provisório ou mesmo duradouro.
Independente da presença do caráter de provisoriedade, os governos de países
receptores devem apresentar políticas públicas assertivas e eficientes que possibilitem a
inserção desses indivíduos na nova realidade sociocultural, além de assegurarem o
cumprimento dos direitos a esses sujeitos, em especial na matéria de Direitos Humanos. Essas
políticas migratórias devem ser capazes de atrair a vinda de imigrantes e proporcionar
estímulos que viabilizem a integração desses grupos no território estrangeiro.
No Brasil, as políticas aqui adotadas são classificadas como insuficientes, tendo em
vista os motivos abordados ao longo do artigo. O principal elemento que dificulta e limita a
descrição e entendimento acerca dos fluxos migratórios que optaram por desembarcar em solo
brasileiro, é justamente a ineficiência presente diante da utilização dos métodos de coleta, por
289

elas assimiladas assim como a sistematização dos dados, dada de maneira desorganizada,
além é claro de uma lei ultrapassada e da ausência de políticas migratórias atrativas para a
vinda de estrangeiros qualificados, que tanto são almejados pelo governo brasileiro.
Diante dessas limitações impostas pela escassez de dados sobre a influência da
atividade migratória tanto no campo sociológico, como também no econômico, o complexo
estudo sobre essa matéria torna-se ainda mais fatigante.
Analisar distintas esferas de incidência da ação estrangeira em regiões
tradicionalmente opostas, como é o caso do Sudeste e Nordeste brasileiros, aponta o quão é
importante a vigência de uma legislação que incida corretamente ao longo do território, com
efeitos legais que correspondam devidamente às demandas sociais, sejam nos aspectos
jurídicos ou mesmo econômicos.
O breve esforço acerca do perfil do estrangeiro, assim como a observação quanto às
estatísticas depreendidas do objeto de estudo por meio da utilização de métodos empíricos,
aponta que políticas migratórias assertivas devem discorrer para além das seguranças
jurídicas, incorporando também medidas que correspondam às necessidades econômicas e
dispondo de estratégias geopolíticas que atuem diretamente nos anseios sociais.
Finalmente é possível inferir que políticas migratórias públicas necessitam de
organização no planejamento e na execução dessas, delimitando as devidas competências a
partir da correta institucionalização dos órgãos, atrelado a uma adoção de eficientes políticas
de atração, integração e compartilhamento de informações; colaborando assim para uma
melhor estruturação social capaz de acolher corretamente os estrangeiros que se destinam para
essas comunidades.

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UNCTAD. World Investment Report – 2015. 25º Ed. Nova Iorque e Genebra: 2015.

 
 
 
292

OS REFUGIADOS TRABALHADORES NA ALEMANHA:


PROBLEMAS E PERSPECTIVAS1

REFUGEES WORKERS IN GERMANY: PROBLEMS AND


PROSPECTS
Letícia Cristina Pereira de Castro2
Data de submissão: 20/09/2016
Data de aceite: 21/11/2016

RESUMO
O presente artigo tem por objetivo discutir de forma crítica a condição jurídica dos
trabalhadores refugiados na Alemanha. Para os efeitos deste artigo, entende-se
refugiado como aquele que se encontra fora do seu país de origem devido a fundados
temores de perseguição, seja política, racial, religiosa, por nacionalidade, participação
em grupos sociais ou opinião política, e que não tenha a possibilidade de voltar ao seu
país de origem. O método utilizado foi o indutivo, com farta pesquisa bibliográfica e
documental. Para tanto, analisar-se-á de forma empírica a perspectiva histórica das
ondas migratórias na União Europeia, a crise migratória no bloco e na Alemanha no
século XXI e os Tratados Internacionais sobre Migração e Direitos dos Trabalhadores
dos quais a Alemanha é signatária, além das perspectivas desses imigrantes para o
futuro.  
Palavras-chave: Trabalhadores; Refugiados; Alemanha.
ABSTRACT

This article aims to discuss critically the legal conditions of refugees workers in
Germany. For the purposes of this article, refugee is someone under a well-founded fear
of being persecuted for reasons of race, religion, nationality, membership of a particular
social group or political opinion, is outside the country of his nationality, and does not
have the possibility to return to their country of origin. The method used was the
inductive, with extensive bibliographic and documentary research. The article will
examine empirically the historical perspective of the migratory waves in the European
Union, the migration crisis in the bloc and in Germany during the XXI century and the
International Migration and worker’s rights conventions in which Germany is a
signatory, as well as the perspectives of these immigrants for the future.

Keywords: Workers; Refugees; Germany.


 

                                                                                                                       
1
Artigo produzido a partir da pesquisa desenvolvida no Programa de Iniciação Científica da ANET,
edição 2015/2016.
2
Graduanda em Relações Internacionais na Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: letícia-
cris@hotmail.com.    
293

1 INTRODUÇÃO  

Os fluxos migratórios documentados na Europa se iniciam no século XIV e se


estendem até os dias de hoje. Após a Segunda Guerra Mundial, com a devastação
causada nos países europeus, houve uma onda de deslocamentos que só foi interrompida
em 1973, com a crise do petróleo, quando os países europeus restringiram suas políticas
migratórias. Cria-se, então, uma imagem xenofóbica na Europa Ocidental, dando-se
início ao que ficou conhecido com “imigração zero”. Destacam-se três períodos
importantes de imigração na Europa durante o século XX: imigrantes de antigas
colônias, reunificação familiar e imigrantes provenientes de países comunistas (após a
derrocada do modelo soviético). Já no século XXI, como se verá a seguir, os fluxos se
diversificaram (NUNES, 2012).  
As migrações do final do século passado e início deste século são caracterizadas
como tráfego transoceânico. Quando sociólogos e antropólogos descobriram o
transnacionalismo, os historiados perceberam que essa não era uma prática nova,
havendo muitas semelhanças entre o passado e o presente (WALDINGER, 2004)
Estudiosos de migrações transnacionais reiteram que vivemos em um mundo
cada vez mais governado por um modelo "trans" ou um modelo de direitos humanos, de
forma que os imigrantes podem agora ter mais liberdade para percorrer suas longas
rotas. Segundo Waldinger, no entanto, essa lógica não faz sentido para todos os tipos de
migrações, está concentrada apenas nos refugiados. Para Hanna Arendt e Aristide
Zolber, o refugiado é um produto do mundo moderno. O refugiado se diferencia dos
outros migrantes, pois, caso não consiga refúgio em um local seguro, corre risco de
morte.
Salt e Almeida dividem a Europa em três grupos: Europa Ocidental (França,
Alemanha, Reino Unido, Holanda, etc), Europa do Sul (Portugal, Espanha, Grécia, etc)
e Europa do Leste (Bulgária, Polônia, Rússia, etc). No início do século XXI houve uma
estabilidade no número de imigrantes na Europa Ocidental, com exceção do Reino
Unido e da Irlanda, que obtiveram um crescimento no número de estrangeiros devido,
respectivamente, ao aumento dos migrantes laborais e ao crescimento econômico. Na
Europa do Sul, a imigração cresceu em Portugal e na Grécia devido à implantação de
programas que regulamentavam os vistos de trabalhos para imigrantes. Na Europa do
Leste, houve um aumento do fluxo nesses países, porém é difícil analisar devido à falta
de dados conclusivos (NUNES, 2012, p. 6)
294

Dentre os imigrantes atuais estão os imigrantes permanentes, os trabalhadores


contratados, os profissionais transeuntes, os imigrantes clandestinos e os refugiados, o
que demonstra diferentes motivos para a imigração, deixando claro a complexidade e a
pluralidade das migrações na Europa. Um dos maiores problemas que a Europa tem de
enfrentar com esses fluxos migratórios são as migrações ilegais. Em 2009, havia por
volta de 4.5 milhões de imigrantes ilegais (incluindo refugiados) dentro do território
europeu. Para lidar com esse problema, é necessário unir esforços de todo o continente,
o que se torna difícil devido à crise econômica. Nunes acredita que a solução está na
ajuda econômica aos países de onde saem esses migrantes, de forma que o problema
possa ser sanado em sua base, uma vez que, quando o país está em ordem, não é
necessário sair dele (NUNES, 2012).
Nos últimos anos, houve um reconhecimento maior da importância da migração
laboral, apesar de esta poder impactar tanto positiva como negativamente a economia de
um país. Os estrangeiros que ocupam um setor que exige elevadas qualificações e
carece de mão de obra interna; ou os estrangeiros que fazem parte da população ativa,
preenchendo alguns setores trabalhistas, em um país de população envelhecida, são
melhores recebidos. Por esse motivo, a legislação de alguns países se tornou mais
permissiva, de modo a captar mão de obra estrangeira qualificada. No entanto, a maioria
dos imigrantes faz parte de um contingente que busca a imigração visando a obter
melhores condições de vida. Ou seja, são pessoas com pouca ou nenhuma qualificação,
mesmo que sejam refugiados. Antigamente, esses imigrantes eram vistos de forma
positiva, pois ocupavam empregos que a população nacional não queria ocupar.
Atualmente, eles não são mais bem-vindos, pois, com a crise econômica na Europa, os
níveis de desemprego aumentaram e a falta de emprego chegou para a população
nacional. Essa questão atual alimenta o sentimento de xenofobia, uma vez que a
população nacional acredita que a falta de empregos é causada pelos imigrantes
(NUNES, 2012).
Os dados da MIPEX (Migrant Integration Policy Index) mostram que o acesso
ao mercado de trabalho pelos imigrantes na União Europeia ainda é bastante restrito.
Os países que mais oferecem condições são Suécia, Portugal e Espanha; de outro lado,
os que menos oferecem são Polônia, Malta e Letônia. A União Europeia é mais
acessível na aquisição de residências de longa duração e no reagrupamento familiar.
Com relação à aquisição de nacionalidade e participação política, cada país tem um
índice distinto dentro da Europa Ocidental e da Europa do Leste. Os dados ainda
295

mostram que a discriminação, apesar de percorrer toda a União Europeia, é mais


acentuada no Leste. A questão do racismo não costuma ser incluída nos discursos
políticos, prejudicando algumas políticas de integração (NIESSEN apud NUNES,
2012).

2 POSICIONAMENTO E POLÍTICAS DA UNIÃO EUROPEIA DIANTE DAS


MIGRAÇÕES  

O Tratado de Maastricht, em 1992, e a formação da União Europeia, em 1993,


permitiram a abertura das fronteiras internas e intensificaram ainda mais o fechamento
das fronteiras externas. A integração europeia diferenciou os imigrantes comunitários
dos imigrantes estrangeiros (SILVA; AMARAL, 2013).
A questão da imigração estrangeira é vista como um problema para a Europa,
sendo reconhecida pelo Programa de Tampere (1999-2004) e pelo Programa da Haia
(2004-2009). Mesmo recentemente, em 2010, com a reforma dos Tratados da União
Europeia, essa problemática ainda se manteve. O Programa de Estocolmo, que substitui
o Programa da Haia, estabeleceu algumas prioridades para a UE entre 2010 e 2014.
Dentre elas, estão: segurança, liberdade e justiça no âmbito interno. Para além disso, o
Programa estabeleceu o controle das migrações e da clandestinidade, com foco no
mercado de trabalho e no equilíbrio demográfico (SILVA; AMARAL, 2013).
Dessa forma, só quem é considerado capacitado pode ingressar no espaço
Schengen, para então residir e trabalhar na Europa. Para os outros, rechaçados, só é
possível adentrar o espaço europeu de forma clandestina, através das redes
internacionais de tráfico de pessoas, o que explica a quantidade de imigrantes
irregulares em cárcere nos Centros de Internação de Estrangeiros.
Alguns programas europeus de integração para os estrangeiros não são
eficientes, pois determinam que os imigrantes devam seguir padrões culturais rígidos,
além de serem submetidos a um forte nacionalismo. Esses programas funcionam como
políticas utilitaristas de assimilação cultural que acabam por afastar os imigrantes, e não
integrá-los. Os imigrantes passam por um processo de capacitação com prazo. Quando o
prazo acaba, são obrigados a voltar a seus países de origem, deixando o passado para
trás como se nada tivesse existido. Portanto, a "relação bidirecional" que a UE procura é
nada mais que uma falácia. Além disso, a integração também depende da condição
jurídica do estrangeiro. Para a UE, o imigrante só pode se integrar se for documentado.
Os países da UE têm diferentes tipos de programa de integração de imigrantes
296

estrangeiros; e esses programas só incluem estrangeiros (ou seja, extracomunitários) que


possuem estatuto jurídico definitivo. Os imigrantes irregulares não podem ser
integrados.
O principal obstáculo à integração, segundo a Comissão Europeia, é o acesso
insuficiente ao emprego. Na Alemanha, até 2005, o mercado de trabalho só era acessível
aos cidadãos da UE e aos nacionais de outros países que possuíssem uma autorização de
residência vitalícia. Essa autorização só era dada após cinco anos de residência legal na
Alemanha ou aos detentores do estatuto de refugiado. Todos os outros estariam
legalmente impedidos de trabalhar naquele país.
A Europa tem uma grande preocupação em manter seu território seguro, justo e
livre, o que acaba por criminalizar as imigrações irregulares. Esse posicionamento abre
caminhos para as redes de tráfico internacional de pessoas, além de outras violações dos
direitos humanos. Os programas de integração são unilaterais, predominando a
identidade nacional do estado membro, subjugando o imigrante às normas e aos
interesses nacionais. Percebe-se, então, que esses programas de integração são
fracassados, pois desconhecem as culturas estrangeiras. Assim, os guetos (bairros
próprios para imigrantes) que são formados integram melhor o imigrante do que as
políticas públicas governamentais. Segundo Silva e Amaral, a contradição entre o
discurso e a prática causa efeitos contrários aos resultados esperados pela gestão
internacional das migrações.
Os imigrantes hoje radicados na Europa, com exceção das pequenas
comunidades migrantes no sul do Mediterrâneo, na maior parte dos casos, ingressaram
no bloco através de um visto turístico e permaneceram mesmo após seus vistos terem
vencido. Assim, percebe-se que a cooperação para o desenvolvimento eleva os
movimentos migratórios entre os países (SILVA; AMARAL, 2013).

2.1 Posicionamento alemão diante da atual crise europeia  

Em 2015, o mundo viu acontecer a maior crise migratória de refugiados. A


maior parte dos migrantes que fugiam de guerras ou perseguições foi em direção à
Europa. A União Europeia se manteve dividida em relação à recepção dos refugiados.
Enquanto a Hungria teve um posicionamento bastante violento e restritivo, a Alemanha
se mostrou receptiva. A Alemanha foi o país líder em aceitar pedidos de asilo, tendo 47
mil pedidos aprovados. Por outro lado, a sociedade civil, principalmente das pequenas
297

cidades alemãs, se posicionou de maneira xenofóbica. Em setembro de 2015, houve


incêndios em albergues para refugiados e manifestações contrárias por parte da
população. Os grandes partidos alemães e a chanceler Angela Merkel condenaram a
violência ocorrida.
A Alemanha, além de ser signatária da Convenção relativa ao Estatuto dos
Refugiados (Convenção de 1951), tem um artigo próprio da Constituição alemã
direcionada aos solicitantes de refúgio, ou asilo - como é denominado na Europa. Esse é
o único artigo da Constituição que não inclui alemães. O artigo 16 fala sobre o Direito
de Asilo para os perseguidos políticos.
Apesar de a União Europeia constituir instituições próprias, além de uma
política de segurança, moeda e cidadania comuns, ela ainda não chegou a um consenso
sobre as políticas de imigração em seu território. Isso ocorre devido à soberania dos
Estados-Membros, que ainda não conseguiram encontrar uma solução comum de
gerência das migrações (SILVA; AMARAL, 2013).
Merkel propôs a recepção obrigatória e equitativa dos migrantes pelos países da
União. No entanto, vários países do leste se opõem a essa medida. A Alemanha também
pediu à Comissão Europeia um plano de distribuição de 160 mil refugiados de acordo
com a capacidade financeira de cada país do bloco. O vice-chanceler, Sigmar Gabriel,
criticou os outros países, dizendo que eles sempre participam quando se trata de receber
dinheiro, mas quando é para arcar com responsabilidades nenhum deles quer se
envolver.
No que toca ao tratamento normativo do tema, a Convenção de Dublin obriga o
refugiado a candidatar-se para asilo no primeiro Estado-membro do Acordo Schengen
em que adentrar, impedindo-o de apresentar candidatura em vários Estados. Em virtude
dessa previsão, a Alemanha criticou países como a Grécia e a Itália por incentivarem os
refugiados a buscarem permanência em outros países e não apresentarem candidatura
em seu território. A Alemanha passou a registrar os refugiados vindos de outros países,
mudando seu protocolo, e não notificou a UE. Essas atitudes começaram a perturbar
seus vizinhos. Alguns estudiosos acreditam que a posição alemã diante da crise põe em
risco a existência da União Europeia, visto que defende seus interesses em detrimento
dos interesses da UE. O bloco tentou criar uma nova política de imigração, porém não
obteve sucesso.
A Alemanha é um país que necessita de imigrantes. Pesquisas mostram que a
população alemã tende a diminuir com o passar dos anos. A taxa de desemprego
298

atualmente é uma das menores do mundo, além de haver muitas vagas em aberto que
não foram ocupadas pela população. O país precisa de imigrantes para que a queda no
número populacional não afete o mercado de trabalho.

2.2 Migração como direito humano  

A xenofobia e a necessidade de um Estado conquistar o outro, determinando sua


cultura e sua economia, ferem o direito de migração no mundo. Em relação aos
refugiados, é preciso que se entenda que a guerra e a perseguição não deixam outra
opção para esse ser humano. Migrar não significa melhorar de vida. Migrar significa
sobreviver. A situação caótica das ondas migratórias para a União Europeia dificulta
que os Estados assimilem a problemática da situação que os refugiados têm enfrentado.
De acordo com Kieran Oberman, existem muitos argumentos que dizem que o
Estado pode escolher ter ou não estrangeiros em seu território. Dois desses argumentos,
que justificam o direito de excluir imigrantes, são culturais e de justiça distributiva. O
argumento de justiça distributiva diz que caso um Estado acolha imigrantes, este
processo causará uma anomalia nas políticas redistributivas, além de reduzir os salários
dos mais pobres. Por sua vez, o argumento cultural diz que caso o Estado acolha
imigrantes, estes poderão eliminar a cultura do país de acolhimento, sendo substituída
pela cultura dos imigrantes.
No entanto, estudos já mostraram que as migrações não têm nenhum impacto
nos salários dos nacionais do país acolhedor. Na visão do autor, apenas duas situações
justificariam as restrições aplicadas a migrações: quando os custos são bastante graves
ou quando não há nenhum meio plausível de evitar estes custos.
Se a imigração ameaça destruir a cultura de um país, então as restrições à
migração também tentam ser justificadas. O mesmo acontece a nível nacional quando
um grupo de cultura minoritária está ameaçado de desaparecer. Entretanto, o desejo de
manter um Estado homogêneo culturalmente não pode justificar as restrições à
migração. Não é porque os nacionais se incomodam com a vasta gama cultural em seu
local de residência que os deslocamentos serão restringidos. O direito humano a
migração deve ser respeitado mesmo quando os territórios podem sofrer profundas
mudanças culturais.
Para Kieran Oberman, quando a imigração ameaça diminuir os salários dos mais
pobres ou desestabilizar os programas de bem-estar social, o Estado poderia aumentar
os impostos sobre os cidadãos mais ricos ou dos migrantes. O dinheiro arrecadado seria
299

usado para financiar os programas de bem-estar e aumenta os salários da população.


Para ele, a imigração pode pagar a si própria. Ele ainda defende a ideia de que os
imigrantes podem se integrar a sociedade do país acolhedor, a fim de que a questão da
ameaça cultural deixasse de ser uma ameaça (OBERMAN, 2013).  
Segundo o autor, uma das políticas mais importantes que reduziriam os custos de
restrições à imigração seria a criação de maiores oportunidades em países pobres. Se os
países pobres fizessem reformas extremamente necessárias, como acabar com a
corrupção, e se os países ricos implantassem termos comerciais mais justos,
cancelassem dívidas e dessem mais ajuda externa; ao longo do tempo, a questão
migratória poderia ser solucionada, ou pelo menos, reduzida. Assim, seria seguro para
os países ricos abrirem suas fronteiras.
Dessa forma, é fácil perceber que as pessoas se veem no direito de migrar de
acordo com seus interesses nas tomadas de decisões, de forma pessoal e livre de
restrições estaduais. Da mesma forma, os Estados se veem no direito de excluir esses
migrantes de acordo com os custos que esta migração causará. Essas ideias definem o
direito humano de migração.
Os países que mais recebem migrantes limitam cada vez mais as oportunidades
de migração legal e a passagem pelas fronteiras. Como as taxas de migração são muito
elevadas, os migrantes acabam recorrendo a práticas clandestinas, levando diferentes
formas de dívidas para variados atores. Um estudo da migração chinesa para os EUA
mostra que as essas pessoas que pagaram altas taxas pelo serviço de migração não estão
livres de dívidas. Esses migrantes adquirem empréstimos de amigos, parentes, entre
outras pessoas, a fim de financiar sua estadia no país de acolhimento. Muitas vezes, os
contrabandistas ainda pressionam as famílias dos migrantes para pagar altas taxas,
deixando os migrantes sob uma pressão moral para reembolsar sua família. Outra
pesquisa mostra que essas dívidas deixadas para os familiares permitem que o migrante
se sinta vulnerável ao trabalho forçado dentro do país acolhedor. A intimidação e o uso
de ameaças de violência contra os membros de sua família são usados como
mecanismos de controle sobre os migrantes devedores. (DAVIDSON, 2013)
A questão da dívida é de extrema importância para a experiência dos migrantes,
principalmente quando aliadas a essas restrições. Desistir do país acolhedor muitas
vezes é desvantajoso, uma vez que alguns estão demasiadamente endividados. A
Human Rights Watch observa que muitos imigrantes que trabalham com serviço
doméstico ou na construção civil, na região do Golfo, se sentem abusados com as
300

dívidas relacionadas ao recrutamento e que devem ser restituídos aos agentes de


trabalho, bancos ou agiotas. Esses trabalhadores se tornam muito endividados a
agências de recrutamento. Associado aos regulamentos de imigração, esses migrantes se
tornam extremamente dependentes de empregados e vulneráveis a violência, maus
tratos e práticas coercitivas.
Existe uma reciprocidade entre os traficantes e suas vítimas. O senso de
compromisso que as vítimas têm para com os traficantes torna difícil o esforço de se
combater o tráfico. Em alguns países europeus, as autoridades resgataram mulheres de
traficantes, mas essas mulheres acabaram voltando para cumprir suas obrigações (como
a prostituição) para seus patrocinadores. Assim, o conceito de “tráfico” acaba deturpado
a partir do momento que existe essa relação recíproca entre traficante e traficado. Essa
situação de tráfico vira um “tráfico de livre escolha” usando “escravos voluntários”.
As políticas de imigração dos países que dependem do trabalho migrante são
projetadas para impedir o acesso desses trabalhadores aos mesmos meios de acesso e
circulação ao mercado de trabalho dos trabalhadores nacionais. Dessa forma, embora o
direito internacional caracterize o tráfico como um subconjunto da migração
clandestina, a migração legal de cunho trabalhista pode causar sérias restrições nas
liberdades dos trabalhadores, gerando relações desiguais de poder.

3 OS PARTIDOS POLÍTICOS, A MÍDIA E OS CIDADÃOS  

Em 2005, a Alemanha implantou uma Lei de Imigração, com disposições que


regulam a entrada, o pedido de refúgio e a residência dos imigrantes no país. Em 2007,
houve algumas alterações na Lei, que reforçaram a segurança interna e regularam os
casamentos forçados, além de tentar integrar os imigrantes legais.
A coligação conservadora CDU/CSU, encabeçado por Angela Merkel, expõe
dois argumentos contra a Lei de Imigração: deve-se limitar a entrada de migrantes
trabalhadores em tempos de alto desemprego e é necessário integrar os imigrantes que
já estão no país antes de admitir mais estrangeiros. Após o 11 de setembro, surgiu um
terceiro argumento voltado para as questões de segurança e antiterrorismo. O que mais
se discute no partido é se a imigração sobrecarrega a infraestrutura social, como o
sistema de ensino; é possível perceber, no entanto, que a discussão não está muito
centrada na questão do abuso do sistema de bem-estar alemão (BOSWELL; CHOU;
SMITH, 2005)
301

No período de 2001 a 2004 a mídia alemã articulou as preocupações sobre os


impactos da migração nos âmbitos socioeconômico, cultural e de segurança. Os três
principais jornais demonstraram suas diferentes opiniões. São eles o Bild-Zeitung, de
posicionamento right-of-center, que tem o maior número de vendas na Alemanha; o
Frankfurter Allgemeine Zeitung (FAZ), conservador e centrista; e o periódico de centro-
direita, Die Welt. O Bild-Zeitung, através de uma concepção populista, viu a Lei de
Imigração como um meio de impedir a entrada dos solicitantes de refúgio a favor dos
interesses alemães. O jornal defendia a ideia de que a Alemanha deveria restringir os
falsos solicitantes de refúgio e criminosos de imigração clandestina e admitir os
imigrantes econômicos. Foram divulgadas por eles estatísticas que mostravam alta
proporção de estrangeiros envolvidos na criminalidade, principalmente crimes contra as
mulheres, acusando de machista a cultura desses imigrantes. Já em outro artigo, o
periódico sugeriu que o envolvimento desses estrangeiros com a criminalidade era
ligado à fatores socioeconômicos e não de nacionalidade, vindo a relatar um declínio
nos crimes cometidos por estrangeiros entre 2002 e 2003.
O jornal Die Welt, por sua vez, demonstrou suas preocupações com o fato da
Alemanha se comprometer a receber mais de 500 mil estrangeiros por ano, pois apontou
como um problema os padrões de comportamento dos imigrantes, a área em que eles se
localizavam no país, a taxa de criminalidade entre eles e a dificuldade de conhecer a
cultura alemã e ter um bom desempenho escolar. Além disso, o jornal destaca o fato de
os imigrantes se debruçarem sobre os benefícios sociais alemães.
Já o jornal FAZ publicou uma série de artigos em que defende que o Islã é
incompatível com a Constituição alemã e representa uma ameaça para a segurança
nacional. De acordo com eles, a entrada de pessoas não europeias na Alemanha
contribui para a desintegração da sociedade. O jornal questiona se o imigrante está
realmente preparado para se inserir em uma comunidade de valores diferentes a ponto
de firmar laços de nacionalidade.
Pesquisas de opinião feitas em 2004, na época da Lei de Imigração, mostram que
os cidadãos alemães possuem um sentimento anti-imigração. A pesquisa do Instituto
Forsa demonstra que 46% eram contra a permissão de entrada de mais imigrantes e 12%
eram a favor. 41% do Oriente da Alemanha e 36% do Oeste afirmam que já há muitos
imigrantes no país. Já outra pesquisa, realizada pelo Instituto Allensbach de Pesquisa de
Opinião Pública mostra que 54% dos entrevistados acreditam que os estrangeiros que
302

estão na Alemanha não estão interessados em assimilar a cultura alemã e 43% acha que
os estrangeiros são mais violentos que os alemães (BOSWELL; CHOU; SMITH, 2005).
A partir das pesquisas foi possível perceber que a população alemã se mostra
mais preocupada e intolerante com os imigrantes econômicos do que com os refugiados
e solicitantes de refúgio. Dessa forma, observa-se que os alemães estão mais focados
nos desafios do mercado de trabalho. No entanto, pesquisas mostram que o fluxo de
estrangeiros tem pouco ou nenhum impacto nos salários e nos empregos da população
nativa. Esse impacto só ocorreria caso as habilidades dos estrangeiros fossem similares
às dos nativos, ou se esses imigrantes fossem capazes de trabalhar a custos mais baixos
onde há trabalho excedente; e esses fatores raramente acontecem.
Normalmente, os migrantes econômicos e os refugiados têm habilidades
complementares às dos nativos e se ocupam dos cargos que são rejeitados pela
população nativa. Ademais, os sindicatos procuram garantir que os trabalhadores
estrangeiros recebam salários e condições de trabalho compatíveis às dos trabalhadores
nativos.

3.1 A Questão Trabalhista na Alemanha  

Segundo o Artigo 12 da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha


(Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland),
(1) Todos os alemães têm o direito de eleger livremente a sua
profissão, o lugar de trabalho e o de aprendizagem. O exercício da
profissão pode ser regulamentado por lei ou em virtude de lei.
(2) Ninguém poderá ser obrigado a determinado trabalho, salvo no
âmbito de uma tradicional e geral prestação de serviços públicos
obrigatórios, igual para todos.
(3) Trabalhos forçados só são admissíveis no caso de penas privativas
de liberdade impostas por sentença judicial.
(ALEMANHA, 2011, p. 22)
O texto da lei é claro em assegurar direitos aos trabalhadores. Não obstante,
esses direitos trabalhistas não funcionam igualmente para os estrangeiros. De acordo
com Everaldo Gaspar, a dualização do assalariado é uma prática que, iniciada na década
de 70, diversifica as condições salariais instituídas aos trabalhadores. Esses
trabalhadores, em grandes quantidades, são geridos a partir de horários de trabalho e
salários diferenciados, mesmo trabalhando em um mesmo local. A terceirização de mão
de obra nas empresas favorece a convivência de pessoas muito diferentes, submetidas à
diferentes estatutos, porém à condições e qualificações profissionais semelhantes. A
terceirização em cascata constitui uma “reserva” de trabalhadores vivendo em condições
303

precárias, com um salário bastante baixo. Dessa forma, os trabalhadores se veem


obrigados a morar em locais precários e trocar constantemente de emprego, sempre
procurando algo melhor. (ANDRADE; D'ANGELO, 2014).
Segundo David Harvey (apud Andrade e D'Angelo, 2014, p. 69), a terceirização
é uma estratégia, tanto econômica quanto política, bastante potente de semear o caos no
Direito do trabalho, pois desordena seus princípios e seus alicerces de forma sutil. A
terceirização torna menos visível a exploração da mão de obra; e, por isso, é
considerada por ele como uma fraude.
Na Alemanha, com a crise migratória, a população alemã tenta buscar soluções
para a integração dos estrangeiros através da inserção destes no mercado de trabalho e
na sua consequente conquista de independência econômica. Alguns políticos pensam
em alterar as leis para abrir espaço aos solicitantes de refúgio. O vice-ministro das
Finanças, Jens Spahn, e o chefe de governo da região de Sajonia-Anhalt, Reiner
Haseloff, ambos do CDU (partido conservador de Angela Merkel) defendem a ideia de
que os refugiados sejam incluídos na lei que diz que nenhuma pessoa pode ser
contratada por menos de € 8,50 por hora. Assim, o acesso dos solicitantes de refúgio e
refugiados ao mercado de trabalho seria mais fácil.
Em contrapartida, Michael Fischer, do sindicato Verdi, diz que é a favor da
integração dos refugiados, mas não concorda com esse posicionamento de Spahn e
Haseloff, defendendo que o salário mínimo e as tarifas setoriais devem ser mantidas
para evitar que essas decisões humanitárias modifiquem o sistema trabalhista alemão.
O uso de trabalho forçado por imigrantes ilegais pode constituir um processo de
escravidão moderna, como aponta Bridget Anderson. Isso se deve graças à exploração
da condição de ilegal, criando um vácuo de atuação da proteção do trabalhador, mesmo
com a condenação de tal prática. Como o imigrante ilegal precisa buscar meios de
sustentação, acaba por se submeter a processos empregatícios degradantes e se sente
distante de apoio da justiça justamente por seu papel “invisível” diante da noção de
cidadania. Esse aspecto é muito promissor para os empregadores que se aproveitam
desse tipo de mão de obra e contribuem para a exploração de imigrantes ilegais.
(ANDERSON, 2008)
Anderson aponta ainda que a questão da exploração do trabalho do migrante não
reside apenas no eixo da economia informal. Algumas práticas de inserção dos
migrantes no mercado de trabalho constituem padrões próximos de uma realidade não
304

verdadeiramente próspera ao imigrante, mas são amparadas pelo Estado de maneira


ambígua.
A condição do migrante no mercado de trabalho está intimamente ligada à noção
de “não cidadão” e as regulamentações trabalhistas pouco rigorosas, tidas como um
“acalento” e uma boa alternativa à pobreza e à insegurança, na verdade, são armadilhas
mais profundas e devem ser combatidas para que o tratamento do imigrante seja
efetivamente mais frutífero e garanta uma assimilação social menos penosa para os
mesmos. A autora ressalta a importância de se separar as noções trabalhistas do estatuto
de imigração, de modo a regulamentar de maneira mais eficiente esse aspecto da vida
dos imigrantes.  
É necessário, então, reestruturar o controle migratório e posicionar o discurso da
migração na esfera do que é político, não possibilitando a legitimação de políticas
ligadas à migração que não passem por uma intensa discussão política e questionar,
acima de tudo, o papel do Estado diante desse arranjo. Questionar as classificações de
migrantes e como o Estado determina a efetividade da população migrante é crucial,
mais do que buscar terminologias como “vilões” ou “vítimas”.

3.2 Projetos e assistência aos refugiados  

O Goethe Institut coordena alguns projetos voltados aos refugiados. Eles


disponibilizam um Phrasebook for Refugees, uma espécie de folheto para ajudar nos
primeiros paços na Alemanha, através de palavras e expressões criado para falantes da
lingua árabe. Além disso, o Instituto criou um aplicativo que ajuda os recém-chegados
(Ankommen) com informações básicas. Eles também providenciam sessões de cinema
para as crianças refugiadas e o Festival de Literatura de Munique, promovendo o
diálogo através da literatura.
O Federal Office for Migration and Refugees (BAMF) promove programas
esportivos; projetos para promover a integração e prevenir a violência e a criminalidade
entre os jovens; além de programas especiais para mulheres, com o intuito de ensinar a
lingua alemã e a debater questões relativas ao planejamento da vida cotidiana, saúde e
educação para os filhos.
Com relação ao acesso à saúde pública, existem três fases que dependem do
estado e do tempo de permanência do imigrante na Alemanha. Quando este chega no
país, é concedido à ele um abrigo em um centro de acolhimento conduzido por um dos
estados alemães, onde será processado um pedido de asilo e serão realizados exames
305

básicos de saúde. Após, o requerente de asilo será realocado para um Conselho, que é
responsável por conceder benefícios básicos de habitação, alimentação, saúde. O acesso
regular à saúde só será disponível quando o requerente de asilo tiver seu pedido aceito
ou após 15 meses no país, independente de seu status. "Indivíduos no último grupo não
são apenas aqueles que ainda estão à espera de uma decisão, mas também aqueles com
uma decisão negativa que ou não podem ser expatriados por diversos motivos ou estão à
espera de expulsão."
A Lei Federal exige que todos os migrantes recém-chegados façam exames para
tuberculose; e em alguns estados mais populosos também recebem vacinação e uma
primeira avaliação médica, a fim de controlar a propagação de doenças transmissíveis,
como é o recomendado pelo Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças.
Já com relação ao trabalho, é a autoridade de imigração que decide quando dar a
permissão de trabalho da Agência para o Emprego para o refugiado. Após quatro anos
residindo na Alemanha, não é mais necessário solicitar essa autorização. Todo acesso ao
mercado de trabalho depende do status de residência do refugiado e existem vários
títulos de residência. Os refugiados que vivem em instalações de recepção (entre seis
semanas e seis meses), por exemplo, não tem direito de ser empregado.
Outra organização alemã que trabalha a favor dos direitos dos refugiados é a Pro
Asyl. A organização se diz interessada em proteger os refugiados e os direitos humanos.
Eles se opõem a movimentos racistas e pressionam o governo com relação às políticas
de asilo na Alemanha. A organização destaca a dificuldade dos refugiados de conseguir
emprego, devido à “regra de prioridade” colocada pelo governo, no qual o cidadão
alemão sempre terá prioridade nas vagas de emprego.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS  

O fim da crise dos refugiados e da ajuda humanitária ainda não é visível. As


principais guerras da atualidade, como na Síria, não têm previsão de serem
solucionadas. As perspectivas para os refugiados ainda são caóticas. Consequentemente,
a demanda por emprego também não deve diminuir entre os trabalhadores refugiados.
Mas deve-se compreender que, primeiramente, o refugiado precisou migrar por questões
de sobrevivência e não para alcançar um novo emprego. O trabalho é necessário para
todos, mas não é o principal, ou seja, aquela pessoa não está ali para tomar o trabalho de
um nacional.  
306

Não se pode esquecer que a proteção internacional dos refugiados parte de um


contexto ocidental, pós Segunda Guerra. Na época, o refugiado era o europeu. No
século XXI, a questão muda de cenário. O refugiado é o árabe, é o africano, de uma
cultura incessantemente rejeitada durante séculos. Com a ascensão do terrorismo e do
medo do desconhecido, as populações se mostram cada vez mais fechadas à ajudar
umas às outras.
Também é verdade, no entanto, que o número de organizações humanitárias e o
número de pessoas que se envolvem em questões como migrações e estudos
transnacionais também crescem. Desta forma, o conhecimento se mostra como a chave
para a mudança e para o entendimento dos movimentos e das novas necessidades que a
globalização nos trouxe. É verdade que a quebra de barreiras na comunicação e a
velocidade nos meios de transporte facilitou as trocas entre uma nação e outra, mas
também dificultou a segurança nacional e a desconfiança de um país com o outro.
Como não se vê soluções para o fim das guerras e das migrações, é preciso partir do
pressuposto que o mais viável atualmente é fazer políticas de migração as mais
satisfatórias para todos. Por conseguinte, a integração é o meio mais exequível de
absorver todas as culturas e proporcionar condições de vida favorável.
Quando um refugiado é integrado em uma sociedade, aprende outra língua,
intercambia sua cultura e seu modo de viver, e assim também o fazem os cidadãos deste
país, é possível criar um ambiente harmonioso. Além disso, o refugiado pode conquistar
novas qualificações e colocar em prática suas qualificações obtidas no país de origem.
Quando os migrantes chegam a este patamar, é possível lidar com os nativos de igual
para igual.
As imagens dramáticas divulgadas pela mídia não podem ser o único instrumento de
mobilização da população para a questão dos refugiados. Só o fato de uma pessoa em
sofrimento ter fugido da tragédia que a amedrontava e chegar a uma nova nação, já dá
algum tipo de perspectiva para essa pessoa, que antes não tinha nenhuma. É
fundamental que a própria população e o Estado acolhedor sejam mais humanos e deem
boas expectativas para eles, e que as Convenções e Tratados já firmados deem
verdadeiras responsabilidades para todas as nações.  

REFERÊNCIAS
307

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A cor verde, escolhida para esta edição, simboliza nosso desejo de um mundo com mais solidariedade e amor ao próximo.
#ForçaChape

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