Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
FORTALEZA - CE
2022
CONSELHO EDITORIAL:
COORDENADORA
CAROLINA COSTA BERNARDO (UNILAB)
MEMBROS
TADEU LUCAS DE LAVOR FILHO (UFC)
JÉSSICA SILVA RODRIGUES (UFC)
ANTÔNIO FABIO MACEDO DE SOUSA (UFC)
MARIA APARECIDA ALVES SOBREIRA CARVALHO (UFC)
LUISA MARIA FREIRE MIRANDA (UFC)
NATACHA FARIAS XAVIER (UFC)
LARISSA FERREIRA NUNES (UFC)
LORENA BRITO DA SILVA (UFC)
ELÍVIA CAMURÇA CIDADE (UFC)
MÁRCIA KELMA DE ALENCAR ABREU (URCA)
ÉRICA ATEM GONÇALVES DE ARAÚJO COSTA (UFC)
BÁRBARA BARBOSA NEPOMUCENO (UFC)
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.
COORDENAÇÃO EDITORIAL
JAMES FERREIRA MOURA JUNIOR
REVISÃO DE TEXTO
MARCELA TOSI
NORMALIZAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
MANDALLA COMUNICAÇÃO & DESIGN
PLANEJAMENTO VISUAL
MANDALLA COMUNICAÇÃO & DESIGN
@mandallacomunicacao
FICHA CATALOGRÁFICA
CDD 321.9
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
JAMES FERREIRA MOURA JR,ANTONIO AILTON DE
SOUSA LIMA, ROCHELLY RODRIGUES HOLANDA E
DANIELE JESUS NEGREIROS 08
01 DISSECANDO O BINÔMIO
AUTORITARISMO-PRECONCEITO:
UM CONVITE A LEITURA
CAROLINA MARIA COSTA BERNARDO 09
02 TEORIAS CONTEMPORÂNEAS
SOBRE O AUTORITARISMO E A
DOMINÂNCIA SOCIAL
FELIPE VILANOVA, DAMIÃO SOARES DE ALMEIDA-
SEGUNDO, JAMES FERREIRA MOURA JÚNIOR, ADOLFO
PIZZINATO E ANGELO BRANDELLI COSTA 13
03 PERSPECTIVAS SOBRE A
PERSONALIDADE AUTORITÁRIA
A PARTIR DO BRASIL: UM
DIÁLOGO
DEBORAH CHRISTINA ANTUNES E
ROCHELLY RODRIGUES HOLANDA 28
04 ENTRE DEUSES E
MONSTROS: ENSAIO
SOBRE NEOLIBERALISMO E
CONSERVADORISMO NO BRASIL
EM CRISE
FERNANDO SANTANA DE PAIVA E
MARIANA DE ALMEIDA PINTO 46
05
A PREMISSA DA NORMALIZAÇÃO
NO CONSERVADORISMO
BRASILEIRO: UMA ANÁLISE A
PARTIR DA MILITARIZAÇÃO DA
EDUCAÇÃO
IANA GOMES DE LIMA, RICARDO BOKLIS
GOLBSPAN E GRAZIELLA SOUZA DOS SANTOS 68
06 ANÁLISE PSICOSSOCIAL
DO BOLSONARISMO:
CONTRIBUIÇÕES DA LEITURA
DE IGNÁCIO MARTÍN-BARÓ
ACERCA DA VIOLÊNCIA NA
AMÉRICA LATINA
JOÃO PAULO PEREIRA BARROS, LUIS FERNANDO DE
SOUZA BENICIO E DAGUALBERTO BARBOZA DA SILVA 88
07 NEGACIONISMO, DEMOCRACIA
E A PANDEMIA DE COVID-19
NO BRASIL: QUANDO A
DESINFORMAÇÃO É ARMA DE
EXTERMÍNIO
JANAINA CAMPOS LOBO 108
08 “INDÍGENAS DESALDEADOS” E
“INDÍGENAS INTEGRADOS”: A
VIA ADMINISTRATIVA COMO
ESCALADA DE MEDIDAS DE
CONTRAVENÇÃO AOS DIREITOS
DOS POVOS INDÍGENAS NO
CONTEXTO PANDÊMICO DA
COVID-19
CAROLINE FARIAS LEAL MENDONÇA, RHUAN CARLOS
DOS SANTOS LOPES, CLAUDETE DA SILVA BARBOSA
TRUKÁ, FRANCISCO GLEIDISON CORDEIRO DE LIMA
KARÃO/JAGUARIBARAS E RENATO SANTANA 125
09 PROTAGONISMO NEGRO E
INCÔMODO BRANCO: DIÁLOGOS
INTER-RACIAIS NO CONTEXTO
UNIVERSITÁRIO DO BRASIL
CONTEMPORÂNEO
GEÍSA MATTOS E IZABEL ACCIOLY 148
12
“IDEOLOGIA DE GÊNERO” E
AUTORITARISMOS POLÍTICOS
JOÃO GABRIEL MARACCI-CARDOSO, DAMIÃO SOARES
DE ALMEIDA-SEGUNDO E ADOLFO PIZZINATO 192
13
ELITISMO, ENCARCERAMENTO
EM MASSA E AS DISPARIDADES
NO JULGAMENTO: TRAJETÓRIA
HISTÓRICA E TEORIAS
EXPLICATIVAS
DAMIÃO SOARES DE ALMEIDA-SEGUNDO, JAMES
FERREIRA MOURA JÚNIOR, ANGELO BRANDELLI COSTA
E ADOLFO PIZZINATO 214
14
PRÁTICAS DE OPRESSÃO,
ESTIGMA E DISCRIMINAÇÃO
VIVENCIADOS POR PESSOAS
EM SITUAÇÃO DE RUA EM
FORTALEZA
CARLOS EDUARDO ESMERALDO FILHO,
ANDRÉA FERREIRA LIMA ESMERALDO E
VERÔNICA MORAIS XIMENES 233
15
MOBILIDADE SOCIAL E O
PRECONCEITO CONTRA POBRES:
EVIDÊNCIAS DE UMA CHAVE
INTERPRETATIVA
PAULO DE MARTINO JANNUZZI 254
C
otidianamente matam-se mulheres, pretos,
gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, traves- CAROLINA
MARIA COSTA
tis, pobres, indígenas, lideranças de movi- BERNARDO
mentos sociais, pessoas em situação de rua
e tantos mais. São mortes físicas e simbólicas
decorrentes da violência ou da negligência
de um Estado e de uma sociedade racistas,
sexistas, machistas e classistas. Cotidiana-
mente nos matam! Esse extermínio não só
do corpo, mas também do conhecimento e
da cultura pela negação das existências plu-
rais vem sendo denunciado há décadas por
diversas e atentas vozes de pesquisadoras
e pesquisadores que investigam as formas
como os autoritarismos e os preconceitos
sustentam a sociedade.
10
nização, do controle social; das justificativas de eliminar
ameaças à segurança nacional, de fortalecer a economia,
de promover o bem-estar social.
11
Estas impõem desvantagens àqueles e àquelas que são
classificados pelo ideal de pureza (o padrão hegemônico
localizado historicamente no tempo e no espaço) como os
estranhos e/ou os impuros. São os indivíduos com maior
presença nas trágicas estatísticas de exclusão, morte, fome,
evasão escolar, desemprego, assassinato.
Não podemos mais não saber, não conhecer, não nos im-
plicar e não reconhecer os problemas decorrentes das prá-
ticas autoritárias e preconceituosas. Um Estado se faz por
instituições e por pessoas que agem na estrutura. Este livro
nasce do desejo de abordar, a partir de várias perspecti-
vas das Ciências Humanas, as evidências sutis e escancara-
das das violências e opressões que tornam nossa sociedade
desigual e injusta. Por isso, reúne artigos que nos ajudam
a aprofundar o conhecimento para construir os caminhos
de lutas e de resistências frente à urgente necessidade de
transformação social e humana.
12
13
02.
INTRODUÇÃO
U
m dos principais temas investigados no
FELIPE
campo da Psicologia Social desde o século VILANOVA
XX é o preconceito e seus preditores (ADOR-
NO et al., 1950). Em meio às tentativas de DAMIÃO SOARES
compreendê-los, diversos estudos condu- DE ALMEIDA-
SEGUNDO
zidos entre os anos 1950 e 1990 apontaram
que diferentes formas de preconceito eram JAMES FERREIRA
perpetradas simultaneamente pelos mes- MOURA JÚNIOR
mos indivíduos (ex., ALLPORT, 1954; BIERLY,
1985). Dificilmente um indivíduo tinha atitu- ADOLFO
PIZZINATO
des negativas apenas em relação a estran-
geiros, por exemplo. Em geral ele também
tinha atitudes negativas em relação a gays, ANGELO
BRANDELLI
lésbicas, bissexuais, negros e até mesmo COSTA
roqueiros (ADORNO et al., 1950; DUCKITT,
2001). Convencionou-se então chamar de
preconceito generalizado a tendência a ter
sentimentos negativos em relação a diver-
sos grupos simultaneamente (DUCKITT; SI-
BLEY, 2007; HADARICS; KENDE, 2018; HOD-
SON; MACINNIS; BUSSERI, 2017).
14
(DUCKITT et al., 2010): o Tradicionalismo, definido como a
tendência a apoiar padrões e valores morais tradicionais (ex.,
castidade); o Conservadorismo ou Submissão à Autoridade,
definido como a tendência a se submeter de maneira acrítica
a autoridades em geral (ex., líderes políticos); e o Autoritaris-
mo, definido como a tendência a apoiar medidas punitivas
severas (ex., pena de morte). Já a Orientação à Dominância
Social pode ser definida como uma atitude social que reflete
um desejo de manutenção de hierarquias sociais nas relações
intergrupais (SIDANIUS et al., 2001).
15
estudos foram avançando, o objetivo inicial foi extrapolado
e a concepção de preconceito generalizado foi modificada.
16
alvo de preconceito de quem tem altos níveis de autoritaris-
mo. Já o objetivo motivacional da Orientação à Dominância
Social é a manutenção da dominância e do poder sobre ou-
tros grupos (DUCKITT; SIBLEY, 2017). Por isso, o conjunto dos
grupos que mais deixam nítida a assimetria de dominância
(isto é, os grupos percebidos como degenerados) tendem a
ser alvo de preconceito de quem tem altos níveis desta atitu-
de. O conjunto dos grupos dissidentes tende a ser alvo tanto
de quem tem altos níveis de autoritarismo quanto de quem
tem alta Orientação à Dominância Social porque alguns gru-
pos dissidentes podem ameaçar a segurança coletiva (ex.,
manifestantes) e outros podem deixar nítida a assimetria de
dominância (ex., feministas). Eses grupos podem portanto
ser alvo tanto de quem tem altos níveis de Autoritarismo de
Direita quanto quem tem altos níveis de Orientação à Domi-
nância Social (DUCKITT; SIBLEY, 2007).
PREDITORES DO AUTORITARISMO
DE DIREITA E DA ORIENTAÇÃO À
DOMINÂNCIA SOCIAL
Além de investigar o que o Autoritarismo de Direita e a Orien-
17
tação à Dominância Social predizem, os estudos do Modelo
do Processamento Dual Cognitivo-Motivacional da Ideologia
e do Preconceito buscaram investigar o que antecede e pre-
diz essas duas atitudes. Foi proposto que crenças de que o
mundo é um lugar perigoso e imprevisível são preditores sig-
nificativos do Autoritarismo de Direita (DUCKITT et al., 2002).
Por meio de experiências ao longo da vida de socialização
que reforçam que o mundo é um lugar ameaçador, instável
e inseguro, os níveis de autoritarismo do indivíduo tendem
a aumentar e se manter estáveis ao longo do tempo (SIBLEY;
DUCKITT, 2013). Já a Orientação à Dominância Social tende
a ser significativamente predita por crenças de que o mundo
é um lugar competitivo em que os fortes vencem e os fracos
perdem (DUCKITT et al., 2002). Assim, experiências ao longo
da vida de socialização que reforçam a importância da vitó-
ria, da dominância e do poder sobre os outros, tendem a au-
mentar os níveis de Orientação à Dominância Social e man-
tê-los estáveis (SIDANIUS; PRATTO, 1999).
18
ciosidade; Neuroticismo; Amabilidade e Extroversão; COSTA;
MCCRAE, 1992) há três traços que se sobressaem: a Abertura
a novas experiências, a Conscienciosidade e a Amabilidade. A
Abertura a novas experiências (definida como gosto por ex-
periências novas e não convencionais) e a Conscienciosidade
(definida como organização e disciplina) tendem a impactar
os níveis de Autoritarismo de Direita (DUCKITT; SIBLEY, 2017).
Um indivíduo com baixa Abertura e alta Conscienciosidade
tende a apresentar altos níveis de autoritarismo porque tais
traços refletem a preferência por ordem, estrutura, estabili-
dade e segurança (COSTA; MCCRAE, 1992). Tais preferências
estão diretamente relacionadas às bases motivacionais do au-
toritarismo (DUCKITT et al., 2010), motivo pelo qual a relação
entre autoritarismo e personalidade é encontrada. Já a Ama-
bilidade (definida como lealdade, generosidade e modéstia)
tende a impactar os níveis de Orientação à Dominância So-
cial. Um indivíduo com baixa Amabilidade tende a apresentar
altos níveis de Orientação à Dominância Social porque bai-
xos níveis desse traço refletem a falta de humildade e de so-
ciabilidade grupal (COSTA; MCCRAE, 1992). Leva-se por sua
vez à crença de que o mundo é um lugar competitivo onde
se deve buscar vencer e ocupar posições socialmente domi-
nantes a qualquer custo.
19
ser obedecidos sem questionamento, VILANOVA et al., 2018,
p.1316); contestação à Autoridade (ex., Estudantes de colégios
e universidades devem ser encorajados a desafiar, criticar e con-
frontar autoridades, VILANOVA et al., 2018, p.1315) e Autori-
tarismo (ex., Do jeito que as coisas estão indo nesse país, serão
necessárias medidas severas para endireitar os meliantes, os
criminosos e os pervertidos, VILANOVA et al., 2018, p.1315).
A validade e a fidedignidade do instrumento já foram ates-
tadas por estudos transversais (VILANOVA et al., 2018; VILA-
NOVA; KOLLER; COSTA, 2019) e longitudinais (VILANOVA et
al., 2019), sendo adequada para utilização no Brasil.
20
degenerados é composto por Pessoas pouco atraentes fi-
sicamente, Pessoas obesas, Pessoas que simplesmente não
estão no padrão esperado de aparência ou desempenho, Pa-
cientes psiquiátricos, Deficientes mentais, Pessoas que sim-
plesmente parecem ser “perdedores”, Pessoas desemprega-
das e Nordestinos. Deve-se apresentar estes grupos aos
participantes e pedir que avaliem, em uma escala Likert de
1 (sentimentos muito negativos) a 7 sentimentos muito po-
sitivos), quão positivos ou negativos são seus sentimentos
em relação a esses grupos. O modelo proposto apresen-
tou bons índices de ajuste aos dados (CANTAL et al., 2015),
sendo adequada para utilização no contexto brasileiro.
21
vantagem você é capaz de conseguir). Por meio de sua
adaptação será possível avaliar, no contexto brasileiro, o
impacto da crença de que o mundo é perigoso no Autori-
tarismo de Direita e o impacto da crença de que o mundo
é competitivo na Orientação à Dominância Social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em conclusão, o Modelo do Processamento Dual Cogniti-
vo-Motivacional da Ideologia e do Preconceito propõe uma
articulação entre conjuntos de grupos alvos de preconceito,
atitudes sociais e traços de personalidade. Por meio de expe-
riências ao longo da vida de socialização, determinadas cren-
ças sobre o mundo e determinados traços de personalidade
vão sendo formados e posteriormente impactam o precon-
ceito em relação a conjuntos de grupos socialmente percebi-
dos como perigosos, dissidentes e degenerados. Há diferen-
tes instrumentos que podem ser utilizados para a condução
de pesquisas acerca do modelo no contexto brasileiro, sendo
uma área promissora para estudos futuros.
22
de pesquisa que poderiam ser investigados, mas alguns de-
les poderiam ser: Qual o impacto de cada componente do
Autoritarismo de Direita em cada conjunto de grupos alvo
de preconceito proposto pelo modelo? Os membros da po-
pulação LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis) são situa-
dos em qual conjunto de grupos alvo de preconceito? Dado
que a maioria dos estudos sobre o modelo foram conduzi-
dos com adultos, os resultados apontados pela literatura se
mantêm quando adolescentes são investigados?
REFERÊNCIAS
ADORNO, T. et al. The Authoritarian Personality. New York:
Harper, 1950.
23
the Scale of Prejudice Against Sexual and Gender Diversity in
Brazil. Journal of Homosexuality, v. 63, n. 11, p. 1446-1463,
2016.
24
nality and social psychology, v. 83, n. 1, p. 75, 2002.
25
nism. Journal of Research in Personality, v. 47, n. 1, p. 116-
127, 2013.
26
rial da versão brasileira da escala Right-Wing Authoritaria-
nism. Trends in Psychology, v. 26, p. 1299-1316, 2018.
27
27
03.
INTRODUÇÃO
A
Personalidade Autoritária” é o título de uma
obra fruto de uma extensa pesquisa empírica DEBORAH
CHRISTINA
sobre o preconceito nos Estados Unidos da ANTUNES
América nos anos 1940. Frente ao crescimen-
to do antissemitismo, a ideia dessa pesquisa ROCHELLY
remonta os anos 1930 e ao surgimento do RODRIGUES
HOLANDA
Instituto de Pesquisas Sociais dentro da Uni-
versidade de Frankfurt, em torno do qual um
grupo de intelectuais surgiu em busca de re-
fletir as contradições de uma época em que,
a despeito das condições materiais para a su-
peração de uma vida de escassez, adere sub-
jetivamente ao mal. Esse grupo de intelectu-
ais ficou conhecido como Escola de Frankfurt,
muito embora não formassem exatamente
uma escola de pensamento em sentido es-
trito. Com a expansão do nazismo na Euro-
pa, esses intelectuais se exilaram nos Estados
Unidos para onde migraram o Instituto du-
rante a Segunda Guerra Mundial e onde de-
ram continuidade às pesquisas sobre o clima
cultural de uma sociedade capaz de fomen-
tar de modo objetivo e subjetivo violências,
discriminações, preconceitos contra grupos
minoritários específicos que a integram. Tais
elementos surgiram não apesar da organiza-
ção da sociedade, mas justamente por conta
de ela ser como é, a ponto de carregar em si
mesma uma sempre latente (ou não tão la-
tente assim) possibilidade de holocausto.
29
sa Sociais em parceria com o Grupo de Pesquisa sobre Opi-
nião Pública da Universidade da Califórnia em Berkeley, re-
cebeu inúmeras críticas quando da época de sua publicação:
sua cientificidade foi colocada em questão pela aproximação
com a psicanálise por uma perspectiva positivista de ciência,
sua criticidade foi questionada pela utilização de metodolo-
gias quantitativas por aqueles que apontavam aí uma con-
tradição com os pilares da Teoria Crítica da Sociedade, sua
metodologia e possibilidade de generalização dos resultados
foram questionados pelos grupos escolhidos como sujeitos
da pesquisa e seus resultados foram questionados por quem
gostaria de continuar com sua crença de que o antissemitis-
mo e toda a barbárie a ele vinculada eram fenômenos exclu-
sivamente alemães (SMITH, 1954; 1997; WOLFE, 2005).
30
ção de exilados – nas cidades de Nova Iorque e San Diego e
no México – que puderam desenvolver suas teses mais mar-
cantes, quanto porque a retomada do projeto de uma Teoria
Crítica na Europa foi impedida pelas tendências políticas e
sociais atuais e é na América Latina que grande parte desse
trabalho ainda resiste.
***
DEBORAH - Venho nos últimos anos acompanhando o que
apenas na aparência se mostra como ascensão de práticas
de violência contra diversas parcelas da população brasilei-
31
ra: indígenas, mulheres, negros, LGBTQIA+... Digo aparência,
porque essas práticas não são propriamente recentes. É com
profunda tristeza, mas não surpresa, que olho para nossa in-
feliz realidade política e social atual. Quando iniciei meus es-
tudos sobre “A Personalidade Autoritária”, fui instigada pela
minha incompreensão a respeito de situações de preconceito
que vivenciei muito jovem por ser mulher e esses estudos me
lançaram para uma compreensão mais ampla da sociedade
em que vivemos. Naquela época, em que realizei meus estu-
dos de graduação, não havia espaço para as questões sobre
o feminismo, o movimento negro, o movimento LGBTQIA+
ou o movimento indígena. O caminho possível era recorrer
àquilo que figuras de autoridade do norte global já haviam
pensado sobre as questões do preconceito. Você sabe que
hoje a situação é um pouco diferente, porque essas questões
têm ganhado também cada vez mais espaço na Universida-
de, o que pra mim mostra ainda a potência de uma compre-
ensão dialética e materialista da história.
32
meramente sujeitadas) - não conseguimos dar um salto para
outra forma de estar no mundo. Talvez isso seja um trabalho
de uma vida inteira.
33
entendia tão nitidamente como agora que a internet não
era o único fator novo para o crescimento desse ódio. Nun-
ca tinha viajado de avião, sabe? E achei que seria muito di-
ferente, até foi, mas coincidentemente em 2013 viajei pela
primeira vez e foi estranhamente familiar. Ouvi sotaques
como o meu viajando para o outro lado do país. Vi pessoas
de tantas cores e visivelmente tão nervosas quanto eu, era
tudo novidade. Da poltrona de trás no saguão do aeropor-
to escutei uma mulher dizer: ‘’É, isso agora parece uma ro-
doviária’’. Que absurdo, quem disse que pobre pode viajar
de avião? O tom indignado das ruas em 2013, na Copa de
2014, no golpe em 2016 não foi uma resposta sobre a cor-
rupção política. Se isso fosse levado em conta não teríamos
o atual presidente eleito... A insatisfação naquele momen-
to foi com uma parcela populacional historicamente vulne-
rabilizada que começou a dividir a sala de aula com o filho
do grande empresário. Foi com pessoas alçando patamares
não vistos até então. Muita coisa caminhou desde que você
esteve na graduação, mas esse ambiente permissivo à di-
versidade ainda tem muitos problemas. Portas foram aber-
tas, oportunidades foram facilitadas, mas parece que até no
lado mais progressista das ideias, o pensamento preconcei-
tuoso resiste e de um modo nada velado.
34
mais um evento histórico. Evento parece ter a sonoridade de
algo que acontece de forma atípica, não? Eventual. Só que
essa forma de tratar a história como não sendo nossa, o não
reconhecimento do nosso passado, o hábito de estudar mais
sobre a Europa do que sobre nosso país contribui pra isso.
35
“cidadão de bem”, é justamente aquele que mais se adequa
a essa forma de vida fabricada. Tem coisa mais assustadora
que cruzar com um sujeito que se diz um “cidadão de bem”?
Que se diz em favor de um modelo patriarcal de sociedade,
de família? Que se orgulha em dizer que “bandido bom é
bandido morto”?
36
para “salvar” essas terras de sua depravação, exerceram eles
mesmos – e continuam exercendo – os mais horríveis atos
de barbárie, genocídio.
37
fícil compreensão. Quem fica confortável encarando seus
próprios demônios? Eu não fico.
38
blemas” da democracia para tentar aboli-la?
39
tura permissiva ao ódio e ao preconceito, isso retroalimenta
o autoritarismo e vice-versa. Daí se a gente não faz uma crí-
tica radical, como você bem coloca, não dá pra avançar.
40
narrativas históricas plurais que com muito sangue e sofrimen-
to alicerçaram o país que comemora ditadores e genocidas.
41
o Código de Ética do Psicólogo e, se alterado, abriria espaço
para terapias de “reorientação sexual”, a “cura gay”. A gente
pensa que esse tipo de discurso sempre está mais longe, em
Brasília, outro estado, outra região, mas não. Estudei com vá-
rios religiosos, eles se formaram, muitos terminaram a facul-
dade defendendo que a homossexualidade seria uma pato-
logia. Eu ouvi isso mais de uma vez. Claro, nem sempre tem
a ver com religião, mas muito tem a ver com intolerância.
42
grande problema é somente a Covid-19, se sentem saudo-
sas de uma realidade que já era muito problemática e que
não vai ser superada com o fim da pandemia, pelo contrário.
A natureza e a humanidade têm sido destruídas pelo capi-
talismo e por nós e, no fim das contas, tudo se esgota. Se
cabe ter esperança de algo, espero que possamos romper a
cordialidade com a barbárie cotidiana dos nossos tempos,
permissiva à violência, ao ódio e ao preconceito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O crescimento e a difusão de posições políticas autoritárias
incitam que tenhamos de nos contrapor politicamente a
esse fenômeno e, ao mesmo tempo, que possamos com-
preendê-lo enquanto estrutura social que demanda refle-
xão crítica e histórica em profundidade. Não é recente a
compreensão de que o contexto social e político é decisi-
vo para a expansão do autoritarismo (ADORNO; HORKHEI-
MER, 1985; ADORNO et al.,1969), mas a análise de carac-
terísticas psíquicas apresentadas em indivíduos que se
identificam e anseiam por relações de poder baseadas na
força bruta e na opressão é parte essencial à compreensão
da mentalidade potencialmente fascista. Nesse sentido, a
Psicologia é fundamental à História. Ao traçar uma “tipolo-
gia” da personalidade autoritária, ainda que com ressalvas
e valorosas discussões sobre a limitação e a complexidade
desse termo, Adorno et al. (1969) propõem uma aborda-
gem dinâmica e social para conceitualizar a confusa per-
sonalidade humana em sua diversidade, de acordo com
sua própria estrutura, a fim de compreendê-la em profun-
didade (ADORNO, 2019).
43
borar configurações sociais cujas potencialidades superem a
tendência fascista. Para tanto, é necessário estudar o reflexo
dessas dinâmicas intrínsecas à nossa subjetividade, visto que,
na mesma medida, reside em nós também a antítese para a
mimese que busca autoconservação a qualquer custo.
REFERÊNCIAS
ADORNO, T W. Teoria da semicultura. In: RAMOS-DE-OLIVEI-
RA, N. (org). Quatro textos seletos. Araraquara/São Carlos:
Unimep/UFSCar, 1992.
44
Zahar, 1970, p. 85-106.
45
45
46
04.
O
INTRODUÇÃO
velho mundo agoniza, um novo mundo tarda
a nascer, e, nesse claro-escuro, irrompem os FERNANDO
SANTANA DE
monstros” (Antonio Gramsci) PAIVA
47
trução de alternativas à ordem vigente.
RADICALIZAÇÃO NEOLIBERAL EM
UM BRASIL NADA DISTÓPICO
The Handmaid`s Tale – O conto da Aia é uma série televisiva
que foi lançada no ano de 2017. Trata-se de uma narrativa
distópica que nos apresenta o grande império estaduniden-
se transformado em Gilead – Estado teocrático e militarizado
–, ancorado em uma tacanha interpretação do velho testa-
mento bíblico. O contexto de emergência deste novo modo
de governo está ligado a uma crise de moralidade que fora
interpretada por uma facção religiosa como sendo um mal
a ser extirpado e que que estava ligado ao declínio ético da
vida no país. Nesse sentido, após um atentado terrorista que
ceifa a vida do presidente dos Estados Unidos, esse grupo re-
ligioso assume o poder e instaura um Estado de horror, vio-
lento e autoritário direcionado a todas e todos considerados
desviantes e anormais, sendo ainda reservado um espaço de
maior crueldade para as mulheres. A personagem principal,
Offred, interpretada pela atriz Elizabeth Moss, assume o pa-
pel de uma “handmaid”, que teria a função de procriar para
manter os níveis demográficos da população.
48
intelectuais neoliberais do século XX, o economista e filóso-
fo austríaco Friedrich Hayek advertira-nos certa vez sobre a
necessidade de edificarmos uma sociedade onde impere a
ordem sem a necessidade de condução. A incorporação de
uma ordem que representa uma ética de vida sem contes-
tação pode dizer respeito a um mecanismo de subjetivação
próprio do sistema neoliberal (e do próprio capitalismo em
geral), que contribui na produção não apenas de um novo
modo de produção econômica, mas associa-se, sobretudo,
à edificação de uma nova sociabilidade, e, portanto, na fa-
bricação de um novo sujeito a partir da instauração de uma
nem tão nova razão do mundo (DARDOT; LAVAL, 2016).
49
indivíduo é tomado como o centro essencializado de certa
potência de vontade, a ideia de social é esvaziada de senti-
do. Não necessitamos do Outro! Apenas para uso, abuso e
bel-prazer! Em relação à política, impera a necessidade de
seu desmantelamento, de sua negação e enfraquecimento.
Esse sentimento antipolítica é tipicamente observado em
modelos de governo autoritários, em que a dimensão polí-
tica de nossa existência é subsumida à modelos de gover-
nos draconianos e antidialógicos. Ou seja, prevalece a pre-
missa de que o confronto e a disputa de ideias que ocorre
no cenário político não deve ser estimulada, em detrimento
à imposição de uma única estética de existência.
50
e na construção de saídas coletivas para o enfrentamen-
to das relações de exploração, opressão e espoliação que
Marx já denunciava em pleno século XIX.
51
branco do norte global.
52
Entretanto, vale salientar que alguns lemas vociferados mun-
do afora, tais como “França para os franceses”, ou “Polônia
Pura, Polônia Branca”, são parte do arsenal do discurso de uma
extrema-direita radical pelo mundo. No Brasil, o retrógrado
lema “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” tem sido
estrategicamente utilizado pelos adeptos da ala bolsonaris-
ta que apresenta congruência com tais lemas mundialmente
em ascensão. Curiosamente, a versão brasileira apresenta o
substantivo Deus, que não pode ser desconsiderado como
um símbolo de poder e que atinge parte considerável do elei-
torado brasileiro, em especial, o segmento que se identifica
com o neopentecostalismo de resultados, que se conforma
como um dos principais grupos de sustentação deste (des)
governo em marcha no Brasil atualmente.
53
to da população parecem se configurar como ingredientes
necessários para a manutenção de um modo de produção
e reprodução social que conquista corações e mentes de
setores da população brasileira e mundial.
54
sentidos são aqueles que historicamente sempre estiveram
em posições de poder e privilégios ou que com eles se iden-
tificam: homens brancos, heterossexuais e classes economi-
camente mais abastadas. A ameaça sentida por tais grupa-
mentos a partir da perda de poder de consumo e mesmo
a igualdade limitada que tem sido conquistada por grupos
historicamente à margem (negros, gays e as pautas de di-
reito e reconhecimento) mobilizaram o que Brown (2020)
descreve como o ressentimento experimentado a partir da
neoliberalização do cotidiano da vida social.
55
pacidade de produzir alternativas e soluções para si e edi-
ficar um mundo para se viver, tendo em vista os fracassos
de pensarmos em um mundo justo em meio às desigual-
dades forjadas pelo sistema capitalista.
56
constitutivas da sociedade de classes, tem alcançado pata-
mares alarmantes. Apesar de expressivas e incontestáveis,
são distintas as formas pelas quais a pobreza e as desigual-
dades são compreendidas, prevalecendo, em nome da ci-
ência, mas também do senso comum, concepções (ideo-
lógicas) que retiram suas bases econômicas e estruturais e
apostam, direta ou indiretamente, na individualização e na-
turalização como ferramentas para explicar a existência e
persistência de tais fenômenos sociais.
57
(IBGE), alcançou 14,6% no primeiro trimestre de 2021 -, na
precarização do trabalho e na inflação dos preços dos ali-
mentos e produtos básicos para subsistência são alguns dos
elementos que apontam para um prognóstico nada favorá-
vel para a vida de milhares de brasileiros e brasileiras que, há
décadas (e séculos), sobrevivem à base de incertezas, desas-
sistência e precariedade.
58
sonância com os interesses do mercado.
59
age a fim de mistificar a historicidade dos acontecimentos e
designar à Deus e/ou a forças naturais a explicação e “cura”
dos problemas sociais (MARTÍN-BARÓ, 2017). O autor parte
dessa análise compreendendo o peso histórico e cultural do
cristianismo no continente e, especialmente, o pensamento
conservador que predomina no interior e expansão das igre-
jas, desde o papel da Igreja Católica na empreitada imperia-
lista de colonização e extermínio dos povos do sul global,
assim como já sinalizava para a progressiva expansão das
igrejas (neo)pentecostais (MARTÍN-BARÓ, 1989).
60
fiéis a partir de investimentos milionários no
televangelismo, nos cultos e filiais, sustentados
“na oferta especializada de serviços mágico-
-religiosos, de cunho terapêutico e taumatúr-
gico, centrados em promessas de concessão
divina de prosperidade material, cura física e
emocional e de resolução de problemas fami-
liares, afetivos, amorosos e de sociabilidade”
(MARIANO, 2004, p. 4).
61
nos marcos da atual conjuntura tem ressoado de forma nefas-
ta na já fragilizada democracia brasileira. Se o campo das polí-
ticas públicas e sociais caminha sob disputas a passos lentos e
sinuosos desde sua legitimação pós-Constituição de 88, como
sinalizamos, no cenário atual gestado por Bolsonaro e seu fiel
Ministro da Economia, Paulo Guedes, os retrocessos tornam-
-se ainda mais escancarados. Dentre os impactos do desman-
telamento das políticas em curso, novamente destacamos o
que cabe à proteção social: o afunilamento cada vez maior do
acesso aos programas sociais, o que reforça a seletividade e a
focalização; a manutenção do viés clientelista como sustento
de uma política de transferência de renda rebaixada, em subs-
tituição a ampliação de empregos formais e estáveis; e o fo-
mento ao terceiro setor e à ótica filantrópica e assistencialista
em detrimento da perspectiva de direitos, ao passo em que
se avança em projetos como as (contra)reformas trabalhista,
administrativa e previdenciária, o que configura, como discute
Cohn (2020), uma verdadeira política de abate social.
62
religião se evidencia quando percorremos pela imbricação
entre assistência social e filantropia, tendo como destaque
a atuação histórica das instituições religiosas (em especial
cristãs) frente aos pobres, o que tem ganhado novas roupa-
gens e controvérsias diante do pacto aqui destacado entre
neopentecostalismo e neoliberalismo. Como discute Gabatz
(2013), o movimento neopentecostal ressignifica a concepção
de pobreza na perspectiva de cultuar a riqueza material, bus-
cando se diferenciar da trajetória caritativa da Igreja Católica.
Ainda assim, o desenvolvimento de projetos socioassisten-
ciais aos mais vulneráveis não deixa de compor o arsenal das
igrejas neopentecostais, sendo parte, inclusive, da estratégia
de cooptação dos subalternos a partir de uma ética (neolibe-
ral) empreendedora e meritocrática (ROSAS, 2012). As lide-
ranças neopentecostais têm se mostrado eficientes em as-
sociar o histórico assistencialismo filantrópico brasileiro com
um renovado discurso que – supostamente – retira o pobre
da posição de demérito e passividade, encorajando-o a ado-
tar uma postura ativa e “inovadora” para se lançar no merca-
do e “correr atrás” por conta própria – mas sob a unção de
Deus – de sua prosperidade espiritual e terrena vinculada à
ascensão social. Estado para quê? Estado para quem?
63
ponsabilização social do Estado vem como mote da agenda
neoliberal emplacada de particular maneira pelo fundamen-
talismo religioso, o usufruto do mesmo a mando dos inte-
resses políticos e ideológicos em cena se faz presente em
diferentes frentes. Nesse sentido, as organizações neopen-
tecostais tem surfado com maestria na turbulenta onda que
representa a inserção histórica do terceiro setor nas políti-
cas sociais brasileiras, se colocando na disputa da gestão e
diretrizes de serviços (e recursos) públicos de saúde e tam-
bém socioassistenciais, assumindo a execução de diferentes
programas de “combate” às expressões da questão social,
tais como a insegurança alimentar, o consumo de drogas,
o desemprego e a vivência de pessoas em situação de rua,
guiados sobretudo por premissas e práticas conservadoras
e assistencialistas que contam com um forte voluntarismo
a serviço de uma determinada doutrinação religiosa e, por
conseguinte, política (SILVA; COSTA, 2007).
64
CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS
A atual conjuntura brasileira e mundial vem marcada pelo
protagonismo de projetos reacionários que assumem uma
falsa posição antissistêmica, vide o processo de ascensão
de Jair Bolsonaro e outras figuras extremistas ao poder, e
imputam desafios ainda maiores para a disputa de projetos
efetivamente alternativos à ordem social vigente. A cres-
cente lógica neoliberal articulada ao ideário conservador,
ao mesmo tempo em que intensifica as mazelas sociais, tem
cumprido um papel de solapar a construção de horizontes
coletivos que mirem na resolução dos problemas sociais em
suas raízes, notadamente atreladas ao modo de produção e
sociabilidade capitalista. Ainda assim, sabemos que o pre-
sente se constitui num todo histórico e vem demonstrando
seus dinamismos e possibilidades.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, R.; MONTEIRO, P. Trânsito religioso no Brasil. São
Paulo em Perspectiva, v. 15, n. 3, p. 92-101, Jul. 2001.
65
política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filo-
sófica Politeia, 2020.
66
LACERDA, JR., F.), Crítica e libertação na Psicologia: estudos
psicossociais. Petrópolis: Editora Vozes, 2017, p. 173-203.
67
68
05.
INTRODUÇÃO
N
este capítulo, apresentamos algumas questões
referentes ao conservadorismo brasileiro na IANA GOMES
Educação, entendendo de que tal conservado- DE LIMA
rismo é uma resposta à ampliação de direitos
sociais de grupos minoritários. Nesse sentido, RICARDO
temos como objetivo argumentar que há no BOKLIS
GOLBSPAN
atual conservadorismo da Educação brasilei-
ra um viés normalizador, embasado em um GRAZIELLA
passado “ideal”. Neste ensaio, enfocamos es- SOUSA DOS
pecialmente duas categorias que, em nossas SANTOS
CONSERVADORISMO NA
EDUCAÇÃO BRASILEIRA
Nos últimos anos, especialmente a partir de
2014, as escolas públicas, por meio da figura
69
de seus professores e professoras, têm sofrido duros ata-
ques (MIGUEL, 2016; PENNA, 2017). O movimento Escola
sem Partido (EsP), que ganha notoriedade neste período,
foi um dos grandes responsáveis por organizar tais investi-
das, incitando a denúncia de professores e professoras por
meio, centralmente, de duas pautas: “ideologia de gênero”
e “doutrinação ideológica” (MIGUEL, 2016). Docentes come-
çaram a ser expostos em redes sociais, por meio de grava-
ções realizadas por estudantes em sala de aula e de prints
de postagens de suas redes sociais privadas. Entendemos
que o EsP foi importante para a criação de um cenário de
desconfiança em relação aos e às docentes o que, por sua
vez, favoreceu a proliferação de políticas de controle do tra-
balho de professores e professoras.
70
Como principal eixo estruturante desse movimento no Bra-
sil, tem-se, segundo Lacerda (2019), a direita cristã, que se
articula com outros grupos e constitui um ideário em torno
da “família tradicional”, do militarismo, do anticomunismo
e de valores de mercado. Ademais, podemos arguir, a partir
de alguns estudos (LACERDA, 2019; CASIMIRO, 2018; MOLL,
2010; 2015), que enfrentamos atualmente um conservado-
rismo capaz de rearticular aspectos historicamente conser-
vadores em nossa sociedade.
71
servadorismo se articula. Assim, passa a ser veiculado um
discurso com uma perspectiva romântica em relação ao pas-
sado, muito semelhante à visão que Apple (2003) estudou
no contexto estadunidense na década de 1980. Tal qual no
Brasil atual, naquele momento grupos conservadores esta-
dunidenses organizavam respostas à ampliação de direitos
sociais ocorrida, especialmente, nas décadas de 1960 e 1970.
Tais grupos afirmavam ser necessário recuperar um passado
no qual um “‘verdadeiro saber’ e a moralidade reinavam su-
premos, onde as pessoas ‘conheciam o seu lugar’ e em que
as comunidades estáveis, guiadas por uma ordem natural,
protegiam-nos dos estragos da sociedade” (APPLE, 2003, p.
57). Nesse sentido, tais setores atacavam, ainda, o multicultu-
ralismo, entendendo o “outro” como um perigo para os “va-
lores tradicionais”. Uma das exigências, assim, passou a ser
um Estado cada vez mais forte, regulando os corpos, como é
o caso em relação aos professores e às professoras, passan-
do de uma “[...] ‘autonomia permitida’ para uma ‘autonomia
regulamentada’ à medida que o trabalho dos professores
torna-se extremamente padronizado, racionalizado e ‘poli-
ciado’” (APPLE, 2003, p. 62).
72
evangélicas enviadas por Ronald Reagan durante o período
da Ditadura cívico-militar no Brasil. Desde então, acompanha-
-se uma disseminação dessas igrejas, dos programas de rádio
e, assim, dos princípios evangélicos no contexto brasileiro.
Portanto, grupos religiosos, de modo especial evangélicos,
constituem um braço importante do movimento conservador
brasileiro, o que é identificado, por exemplo, na atuação da
bancada evangélica na Câmara dos Deputados, a maior frente
parlamentar temática em funcionamento e que tem logrado
cargos e influências políticas importantes. Outro exemplo é
que movimentos centrais para o atual conservadorismo bra-
sileiro recebem financiamento de instituições estaduniden-
ses de direita (CASMIRO, 2018). Essas relações nos parecem
centrais e têm sido orientadoras para nossa pesquisa em an-
damento sobre políticas educacionais conservadoras.
73
sua campanha eleitoral, Bolsonaro fez discursos pregando o
fim do comunismo (REUTERS, 2018), hostilizando a população
indígena (G1, 2018), atacando a população negra, ridiculari-
zando a comunidade LGBTQIA+ (EL PAÍS, 2018) etc. Uma de
suas principais bandeiras eleitorais foi a “limpeza ideológica
da escola” - o que particularmente nos interessa neste texto.
Assim, um avanço conservador na área da Educação, que já
vinha se consolidando, ganhou ainda mais legitimidade com
a eleição de Bolsonaro.
A “NORMALIZAÇÃO”
E O “MEDO DO OUTRO”
Um dos nossos argumentos, a partir da retomada proposta
sobre a disseminação crescente do conservadorismo na Edu-
cação brasileira, é de que a escola ocupa um lugar estratégico
tanto para garantir a reprodução de práticas conservadoras,
quanto para a interrupção desses movimentos (APPLE, 2017).
As disputas em torno das políticas educacionais indicam jus-
tamente essa centralidade.
74
Educação, a qual implica uma perspectiva homogênea e pa-
dronizada dos conhecimentos escolares e, também, da Educa-
ção (MOREIRA; CANDAU, 2003). Sabemos, como indica Seffner
(2009), que o aparelho escolar se estrutura em uma diversida-
de de procedimentos, rituais, rotinas, obrigações e códigos de
direitos e deveres. Esses são constituídos a partir da exclusão
e da classificação dos alunos de acordo com estigmas sociais,
no sentido de conservar a visão monocultural da escola, con-
tribuindo e legitimando a reprodução social em termos de
classe, raça, gênero e sexualidade. Portanto, os “outros” – po-
bres, negros, indígenas, mulheres, pessoas LGBTQIA+, etc. –,
na medida em que passaram a penetrar cada vez mais no uni-
verso escolar, têm desestabilizado, ainda que minimamente, a
lógica excludente hegemônica – o que, na ótica conservadora,
justifica as reações que temos acompanhado.
75
tes” ou os “problemáticos” serão, em princípio, as mulheres,
as pessoas não brancas, as não heterossexuais ou não-cristãs
(LOURO, 2011). Na escola, essas práticas classificatórias são
recorrentes e têm sido relatadas em nossa literatura, como
é o caso das opressões de manifestações homossexuais (SE-
FFNER, 2009), da separação de culturas afro ou indígenas
em relação ao calendário ou ao currículo “regular” da escola
(GOMES, 2005) ou os modos de disciplinamento e avaliação
que decorrem da lógica monocultural da escola, baseada na
cultura burguesa (BOURDIEU, 2013).
76
faces mais emblemáticas desse processo. O
processo de militarização da Educação públi- É fundamental
que se faça a
ca já estava em curso dadas as iniciativas de diferenciação
77
tivas semelhantes de militarização das escolas 2019. Disponível
em: <https://www.
já em curso em alguns estados e no Distrito gov.br/planalto/
Federal) se alicerça em princípios conserva- pt-br/acompanhe-
o-planalto/
dores. Estes, como temos observado, podem discursos/2019/
discurso-do-
ser vistos em ao menos três eixos de atuação: presidente-da-
78
percentuais revelam ainda mais os resultados de anos de
racismo estrutural no país, expondo índices ainda maiores
de crianças e jovens pretos e pretas nessas regiões (MO-
REIRA, 2017). Assim, a militarização trata, em boa medida,
de um projeto de escola para negros pobres, considerados
aqueles que fracassam nos estudos e requerem formas mais
adequadas (rígidas) de gestão (ou controle).
79
Os excertos, extraídos do extenso rol de transgressões tipifi-
cadas nos documentos, revelam uma cultura escolar padro-
nizada, vigiada e controlada. Há uma ênfase na valorização
do civismo e na retomada do culto aos símbolos nacionais
e às práticas militares. A ideia de disciplina escolar assume
uma perspectiva hierárquica, com viés punitivista, haja vista
que as condutas são compreendidas a partir de uma lógi-
ca da transgressão. Comportamentos desviantes da norma
estabelecida são tomados como infrações leves, modera-
das e graves, para as quais há a respectiva sanção previs-
ta nos regimentos. As medidas pedagógicas disciplinares,
comuns no ambiente escolar democrático, são substituídas
por Termos de Ajustamento de Conduta, revelando, inclusi-
ve, uma importação da cultura e da linguagem policial para
a escola. As escolas militarizadas se efetivam, assim, como
uma alternativa para o controle dos jovens e das jovens, das
culturas juvenis e da diversidade, especialmente de grupos
subalternizados e negros.
80
jeitos também é reprimida a partir de um “medo do outro”
e em nome de um projeto de reforma da Educação baseado
no passado idealizado, que se aproxima da organização es-
colar proposta durante o regime militar.
81
O padrão de vestimentas, cabelos e adereços das alunas é pres-
crito no documento, o que não ocorre na mesma proporção
no caso dos alunos. É importante mencionar, ainda, que o regi-
mento prevê o padrão de vestimenta e conduta de meninos e
meninas, evidenciando uma lógica binária, que ignora a diversi-
dade de gênero, étnica, cultural, religiosa e de orientação sexual
existentes nas comunidades escolares. A imposição de padrões
rigorosos de vestimentas e comportamentos, bem como a ti-
pificação de condutas inadequadas e suas respectivas sanções
explicitam o sufocamento da diferença, do multiculturalismo,
da diversidade, da livre circulação de ideias e crenças.
82
Nossa perspectiva, portanto, procura contribuir para que as
questões de opressão de classe, raça, gênero, sexualidade,
entre outras, na escola sejam centralizadas no debate da po-
lítica educacional, especialmente em tempos de reações tão
significativas dos campos autoritários de nossa sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O avanço do conservadorismo no Brasil e nas políticas educa-
cionais é um fenômeno significativo, sobre o qual se faz ne-
cessário continuidade e aprofundamento de estudos e pesqui-
sas. No Brasil, a exemplo do que ocorreu nos Estados Unidos,
o movimento conservador é resgatado e rearticulado diante
do avanço de políticas e de direitos sociais de grupos histo-
ricamente marginalizados. Argumentamos que as conquistas
legais obtidas especialmente a partir dos anos 2000 no âmbi-
to dos direitos foram decisivas para a mobilização de grupos
conservadores, os quais passam a perceber tais avanços como
ameaças ao status quo e à manutenção de seus privilégios.
83
Assim, por meio da “normalização” e do “medo do outro”,
passa-se a justificar uma série de políticas educacionais que
reiteram posições de privilégios. Cabe ainda ressaltar que es-
tas duas categorias utilizadas como lentes analíticas neste tra-
balho reforçam o conceito de conservadorismo com o qual
temos operado em nossas pesquisas: a defesa, por parte de
grupos hegemônicos, da manutenção de um status quo – que
é tanto cultural (em termos de valores morais e conhecimen-
tos escolares) quanto econômico (em termos da manutenção
de posições de classe em nossa sociedade).
REFERÊNCIAS
APPLE, M. As tarefas do estudioso/ativista crítico em uma
época de crise educacional. Pedagógica. Unochapecó, v.1,
n.30, jan/jun.2013a.
84
Escolas Cívico-Militares - Ecim nos estados, nos municípios e
no Distrito Federal. Diário Oficial da União: Seção: 1, Brasília,
DF, n. 247, p. 167, 28 dez. 2020.
85
GOMES, N. L. Educação e relações raciais. Refletindo sobre
algumas estratégias de atuação. In MUNANGA, Kabengele
(org.). Superando o Racismo na escola. 2a edição revisada.
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Con-
tinuada, Alfabetização e Diversidade, 2005, p. 143 a 154.
86
MOLL, R. Reaganetion: a nação e o nacionalismo (neo)con-
servador nos Estados Unidos (1981-1988). 2010. 265 f. Disser-
tação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação
História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.
87
88
06.
O BOLSONARISMO
COMO EXPRESSÃO
NEOFASCISTA NO
CENÁRIO SOCIOPOLÍTICO
BRASILEIRO: NOTAS
O
INTRODUTÓRIAS
objetivo deste ensaio é discutir psicossocial-
mente o bolsonarismo a partir de coordena- JOÃO PAULO
PEREIRA
das analíticas apresentadas pelas reflexões de BARROS
Ignácio Martín-Baró acerca da violência e da
guerra no contexto latino-americano. Tendo LUIS FERNANDO
em vista a relevância de problematizar as re- DE SOUSA
BENICIO
lações entre violência e autoritarismo no Bra-
sil, tomamos o bolsonarismo como objeto de DAGUALBERTO
análise neste capítulo por considerá-lo um BARBOZA DA
SILVA
emblema das peculiaridades das condições
de emergência e das expressões da ascensão
da extrema-direita no Brasil na atualidade O
bolsonarismo será considerado nesta discus-
são como um espectro político sedimentado,
sobretudo, a partir da campanha presidencial
de 2018. Ou seja, não se subsume o bolsona-
rismo à figura pessoal de Jair Messias Bolso-
naro, já que agrupa, sob tal significante, ato-
res políticos diversos em um certo momento
histórico (NUNES, 2021).
89
grupos religiosos fundamentalistas com ampla capilaridade
social (REIS, 2020; REIS, 2021). Como heterogêneo espectro
político e coletivo, o bolsonarismo aglutina também distintas
matrizes discursivas, tais como militarismo, empreendedoris-
mo meritocrático, ultraliberalismo, anti-intelectualismo, an-
ticomunismo, anticorrupção e conservadorismo, bem como
moralidades comuns ligada ao individualismo, punitivismo,
ódio às lutas vistas como “identitárias” e defesa da ordem
acima das leis que configuram o Estado Democrático de Di-
reito (NUNES, 2021).
90
nacionalistas e símbolos da pátria, mas hasteando, na prá-
tica, bandeiras ultraliberais que exaltam o mercado e des-
montam o Estado Social à proporção que fortalecem um
Estado Policialesco e Punitivo-Penal para reprimir segmen-
tos subalternizados e grupos que defendem pautas ligadas
ao campo dos direitos humanos.
91
em questões sobre os aspectos psicossociais da violência, as
condições e efeitos de seu transbordamento, os fundamen-
tos, os objetivos, os métodos e as consequências de aspectos
psicossociais da lógica da guerra adotada em cenários auto-
ritários e de intensificação de opressões. Destacar, portanto,
alguns pontos-chave da discussão de Martín-Baró no campo
da Psicologia Social sobre aspectos psicossociais da violência
ajuda a ilustrar suas contribuições teórico-epistemológicas e
ético-políticas para a produção de conhecimento crítico e im-
plicado em Psicologia Social. Seus estudos sobre a violência
enfocaram três questões principais: (a) as definições teóricas
de violência, seu caráter histórico e suas manifestações par-
ticulares; (b) os efeitos psicossociais da violência; e (c) a rela-
ção entre guerra e violência (MARTINS; LACERDA JR, 2014).
92
tural, conjuntural e subjetiva constituem a violência cultuada
e propagada pelo bolsonarismo? Como a institucionalização
da mentira se relaciona aos fundamentos, objetivos, métodos
e efeitos da lógica de guerra e da produção de inimigos arre-
gimentados pelo bolsonarismo?
A VIOLÊNCIA BOLSONARISTA:
ARTICULAÇÃO DE ASPECTOS
ESTRUTURAIS E CONJUNTURAIS
DA REALIDADE PSICOSSOCIAL
BRASILEIRA
Martín-Baró (2017) assinalou que o transbordamento da vio-
lência no contexto de crise psicossocial em El Salvador se ma-
nifestava em três níveis: criminal (assassinatos), bélica (conflitos
armados) e repressiva (violência exercida pelo aparato militari-
zado estatal). Tais níveis também estão presentes no contexto
de acirramento da violência nos últimos anos no Brasil, o que
mostra que esse fenômeno deve ser analisado considerando
também suas continuidades históricas e suas ameaças à real
consolidação da democracia em contextos latino-americanos.
93
também apontaram para o fato de que a violência em ascen-
são em contextos autoritários tinha, dentre seus fatores cons-
titutivos, um fundo ideológico (sustentador de desigualdades)
e um contexto possibilitador (ligado à institucionalização da
violência e à fortificação de grupos armados e instrumentos
mortíferos) a partir dos quais a violência passa a encontrar
sentido e se banaliza inclusive no âmbito das experiências
singulares dos sujeitos. Tal prisma analítico nos ajuda a pen-
sar que a violência intrínseca ao bolsonarismo se constitui na
articulação de aspectos macropolíticos, de caráter estrutural
e conjuntural, e micropolíticos, ligados aos afetos e aos pro-
cessos de subjetivação produzidos nesses contextos.
94
ca necropolítica que, além do racismo e da lógica escravista e
patriarcal, aproveita-se de outras feridas históricas não cicatri-
zadas, tais como o mandonismo, o patrimonialismo, a corrup-
ção e a naturalização da intolerância (SCHWARTZ, 2019).
95
condições para o seu desenvolvimento tem sido a articulação
entre capital e militarização, não havendo incompatibilidade
entre ditadura e neoliberalismo. No Brasil, esse fenômeno
ganha expressão a partir do desapreço histórico da elite bra-
sileira à democracia. Como exemplo atual disso, podem ser
citadas as “motociatas” durante a pandemia e diversos outros
atos públicos bolsonaristas clamando por intervenção mili-
tar, decretação de estado de sítio, fechamento de instituições
como o STF e o Congresso Nacional, pondo em suspeição
o sistema eleitoral brasileiro, com público majoritariamente
branco, masculino e de classe média, que usam, cinicamente,
a pauta da defesa da “liberdade de expressão” para a defesa
da liberdade de opressão de grupos subalternizados.
96
Além dos aspectos de cunho macropolíticos, estruturais
e conjunturais, isto é, do fundo ideológico e do contexto
possibilitador, tal como aborda Martín-Baró (2017), é ne-
cessário considerar um terceiro fator constitutivo aponta-
do por aquele psicólogo social para transbordamento da
violência: a equação pessoal, nas palavras dele, ou, como
trabalharemos, o plano micropolítico dos afetos mobili-
zado para configurar a adesão subjetiva ao ethos violento
bolsonarista. Ou seja, para pensar o bolsonarismo como
expressão do extremismo neofascista no Brasil, importa
analisar o circuito de afetos relacionados à adesão sub-
jetiva de parcela significativa da população a discursos e
práticas autoritárias que o caracterizam.
97
O fortalecimento dessa retórica antissistema e sua utilização
por grupos de extrema direita conseguiram mobilizar um con-
junto de crenças e modulações de afetos que se propunham
a “acolher” esses grupos sociais subalternizados lançados ao
desemprego, ao esgotamento e ao desamparo social frente
ao acirramento de desigualdades, o que é uma dentre as vá-
rias explicações para a adesão de populações empobrecidas
ao bolsonarismo, a despeito de sua grande preocupação em
favorecer elites econômicas e políticas. Ao mesmo tempo, tal
retórica antissistema conseguiu aglutinar segmentos da classe
média e da elite branca e cis-heteronormativa, caracterizada
pelo reacionarismo moral e que, por isso, sentia-se ameaçada
por governos de esquerda e pelas políticas afirmativas. Toda
a retórica antissistema aparecia sob a falácia de “combate à
corrupção” política e a comportamentos “corrompidos”, lo-
calizados, não por acaso, nas existências cujas performances
fogem ao modelo cis-hetero-patriarcal-elitizado que se vi-
sava “conservar”. Isso criou um modelo de identificação que
gerou uma figura mistificada junto a qual os seus apoiadores
se reconhecem e se sentem autorizados a também agir de
forma violenta e intolerante.
98
larização social” no Brasil, segundo a qual se torna necessário
a aglutinação de um dos polos em uma comunidade moral
autointitulada “cidadãos de bem”. Tal comunidade moral, por
sua vez, constitui-se através de códigos binários, tais como
bem x mal, nacionalistas x globalistas, éticos x corruptos, ci-
dadãos x bandidos, e da militarização não só da política ins-
titucional como também das relações cotidianas. Além disso,
vale-se da universalização do próprio padrão moral (cishete-
ropatriarcal) e de discursos anti-estatizantes, mobilizando e
acolhendo sujeitos que se sentiam ameaçados ou preteridos
pelas agendas políticas de governos e partidos de esquer-
da, à semelhança do que ocorreu também nos EUA durante
a eleição de Trump (BROWN, 2019). Não é à toa o uso fre-
quente da retórica antipolítica e anti-intelectual e de ataque
a discursos que consideram, pejorativamente, como “politi-
camente corretos” (ALONSO, 2019; STANLEY, 2019; ABRAN-
CHES et al, 2019; LACERDA, 2019).
99
fortalecer políticas repressivas e aumentar a solidariedade e
a coesão do grupo interno. Não obstante, sua função política
seria canalizar as crenças em uma direção desejada, criando
um parâmetro de sociedade de “nós” e “eles”.
100
pela clandestinidade e pela impunidade, além do próprio ter-
rorismo estatal, do desaparecimento de lideranças sindicais,
da explosão de comitês e do assassinato de lideranças polí-
ticas. Com nítida influência de Fanon em seus debates sobre
guerra e saúde mental, Martín-Baró destacou como a pro-
dução de sofrimento tinha uma configuração psicossocial e
se relacionava, histórica e politicamente, com as formas de
dominação imperialista-colonial.
101
da realidade de guerra suja analisada por Martín-Baró, gosta-
ríamos de destacar um de seus métodos, a mentira institucio-
nalizada, tendo em vista sua relação com duas estratégias que
saltam aos olhos no modus operandi bolsonarista: o uso de
fake news e a retórica negacionista. O que escreve Martín-Ba-
ró (2017, p.280) sobre a mentira institucionalizada no contexto
de crise psicossocial em El Salvador se assemelha às operações
Nesse ambiente de mentira institucionalizada, é produzida
retóricas comuns ao bolsonarismo no contexto brasileiro:
uma verdadeira inversão orwelliana das palavras. Matar se
converte em um ato louvável, enquanto atender o necessi-
tado se torna uma ação subversiva; a destruição de hospitais
é celebrada como um serviço à pátria, enquanto dar aten-
ção médica às vítimas da guerra é algo condenado como
uma prática terrorista; ignorar e ainda louvar a violência
bélica é virtude cristã ou demonstração de nacionalismo,
mas denunciar os atentados ou condenar as violações aos
direitos humanos vira uma ‘instrumentalização da fé cristã’
ou manifestação própria de ‘maus salvadorenhos’
102
do a partir de uma rede complexa, que envolve “gabinete
do ódio”, financiamentos nebulosos, alvos de investigações
no poder legislativo e judiciário, atuação de influenciado-
res digitais para engajamento e capilaridade dessas desin-
formações, uso de robôs nas redes sociais e bombardeio
de compartilhamentos em aplicativos de mensagem. Toda
essa maquinaria de notícias faltas e ódio contribuiu nega-
tivamente para o agravamento da pandemia do Covid-19.
Nesse período, as fake news ajudaram a sustentar uma retó-
rica negacionista; disseminaram minimização da pandemia
e das mortes; descredibilizaram as medidas de prevenção
com eficácia científica, tais como uso de máscara, distan-
ciamento social e vacina; e defenderam medidas ineficazes,
como imunidade de rebanho, isolamento vertical e medi-
camentos para o tratamento precoce.
IMPLICAÇÕES ÉTICO-POLÍTICAS
DA PSICOLOGIA NA DEFESA DA
DEMOCRACIA BRASILEIRA E EM
TEMPOS BOLSONARISTAS: O QUE
AINDA PODEMOS APRENDER COM
A PSICOLOGIA DA LIBERTAÇÃO DE
MARTIN-BARÓ?
De acordo com Martín-Baró (2017), uma Psicologia da Liber-
tação se caracterizaria a partir da realidade latino-americana,
e não apenas sobre e para a América Latina, definindo suas
questões pelos problemas populares e orientando sua práxis
para a transformação da realidade psicossocial das opres-
103
sões. Pontuar isso é importante pois buscamos, com foco no
cenário sociopolítico brasileiro, em que recrudescem práticas
autoritárias engendradas pelo bolsonarismo e pelas lógicas
que lhe sustentam, atentarmo-nos ao acirramento da violên-
cia e das tendências autoritárias que ameaçam a democra-
cia no Brasil, considerando a atualidade psicossocial desses
fenômenos e também a complexa história das opressões no
país. Diante disso, apresentamos abaixo algumas implicações
ético-políticas da Psicologia na defesa da democracia brasi-
leira frente ao bolsonarismo, inspirando-nos nas reflexões da
Psicologia da Libertação de Martín-Baró.
104
quereria que a Psicologia: “a) assuma a perspectiva das maio-
rias oprimidas; b) desenvolva pesquisas sistemáticas sobre a
realidade dessas maiorias; e c) utilize de forma dialética esse
conhecimento, comprometendo-se com os processos históri-
cos de libertação popular” (MARTÍN-BARÓ, 2017, p. 55)
REFERÊNCIAS
ALLIEZ, E.; LAZZARATO, M. Guerra e Capital. São Paulo: Ubu,
2021.
105
neta, 2020.
106
Municipais, 2019.
107
107
108
07.
P
INTRODUÇÃO
arece oportuno começar este texto com o
axioma de Hannah Arendt (2016), no ensaio JANAINA
CAMPOS LOBO
Verdade e Política, publicado em 1967, o qual
revela que as mentiras são muitas vezes uti-
lizadas como substitutos de meios mais vio-
lentos, porque podem facilmente ser consi-
deradas como instrumentos relativamente No dia 24 de
inofensivos do arsenal da ação política. Con- março de 2020,
o presidente Jair
sidero essa sentença um bom gancho para Bolsonaro, em
pronunciamento
refletirmos sobre o caso brasileiro. Desde 26 nacional em rádio e
109
em decorrência da Covid-19 em agosto de guerra química,
bacteriológica e
2021. Mas, qual a relação entre a mentira e radiológica. Será
110
Brown sentencia que tais governos “endossam a autorida-
de enquanto ostentam desinibição social e agressão pública
sem precedentes” e ainda compartilham um ódio à Ciência
e à razão ao rejeitarem, abertamente, “afirmações baseadas
em fatos, argumentação racional, credibilidade e responsabi-
lidade”, além de desprezarem a política e os políticos, embora
paradoxalmente manifestem “uma feroz vontade de potên-
cia e ambição política” (idem).
111
nas instituições representativas à progressão do populismo.
Segundo Przeworski, a equação capitalismo mais democra-
cia carrega consigo uma disfunção, pois no capitalismo a
desigualdade cresce de maneira constante, a não ser que
seja neutralizada por ações do governo. Assim, o pretenso
equilíbrio do capital em arranjos democráticos seria sempre
oscilante: não há uma receita hábil que conjugue igualdade
política, fundamento da democracia, com a desigualdade
econômica, consequência do capitalismo. Nesse sentido, o
que temos assistido é uma ofensiva neoliberal sem prece-
dentes, combinada com um gradativo aumento de gover-
nos reacionários, os quais contam com um apoio popular
substancial. Assim, parece interessante seguir as indicações
de Przeworski, as quais apontam que retrocessos democrá-
ticos podem estar em curso, mesmo quando não há viola-
ções imediatas de constitucionalidade.
112
eleições com quase sessenta milhões de votos? O jogo, pa-
rece lógico, não inicia nas urnas do segundo turno de 2018,
mas lá no longínquo 2011, quando mais de cinquenta mil
pessoas marchavam contra a corrupção, impulsionados pelo
escândalo do mensalão. A socióloga ngela Alonso (2019) é
precisa ao localizar temporalmente esse germe que parece
ter originado, ou melhor, publicizado a criação do que ela
nomeia de “comunidade moral bolsonarista”, a qual é er-
guida com padrões dicotômicos de organização do mundo
– bem/mal, cidadãos de bem/bandidos, éticos/corruptos.
O fato é que a candidatura e a vitória de Jair Bolsonaro em
2018 coroam um período que teve como marco a destitui-
ção da presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Para Luis Felipe
Miguel (2019, p. 180), a chegada de Bolsonaro à presidência
encerra o golpe contra Rousseff com um “extremismo di-
reitista”. É a partir disso que veremos uma “degradação do
debate público, a ampliação da violência seletiva das insti-
tuições e o retorno da intimidação aberta como instrumento
de luta política”, prossegue Miguel (idem, p. 181). Trata-se
de um país em flagrante colapso.
113
eram sobremaneira compartilhados em canais oficiais do go-
verno federal, tendo como expoentes desse negacionismo
representantes eleitos e porta-vozes do governo brasileiro.
114
internet e, especialmente, nas redes sociais (GIUSTI; PIRAS,
2021, p. 03). Trata-se, indiscutivelmente, da difusão massiva
de dados falsos, através de meios digitais, o que na verda-
de é a novidade dos nossos tempos.
115
cias podem ser devastadoras.
116
bolsonarista atuou enquanto arma de extermínio?
117
tante frisar que em outubro de 2020, a OMS
publicou os resultados do estudo Solidarity ,
o qual afirma que nenhuma das drogas estu-
dadas (incluindo cloroquina e hidroxicloquina)
reduziu a mortalidade em nenhum subgrupo
de pacientes nem teve efeitos na iniciação da
respiração artificial ou na duração da interna-
ção hospitalar.
118
editaria uma medida provisória para destinar 2,5 bilhões
de reais para participar do consórcio Covax Facility, que era
uma das iniciativas criadas pela plataforma ACT Accelerator.
119
no federal, por exemplo, publicou nas redes sociais um avi-
so que afirmava que eram raros os casos fatais provocados
pela Covid-19. Mayra Ribeiro, secretária de Gestão do Tra-
balho e da Educação no Ministério da Saúde, por sua vez,
em meio ao descontrole da pandemia e da falta de oxigênio
em Manaus-AM, continuava indicando o uso da cloroqui-
na. Isso para não citar as inúmeras aparições em ambientes
públicos do presidente e seus asseclas sem uso de máscara
e sem distanciamento social.
120
era da pós-verdade e como esse vínculo está erodindo pro-
cessos democráticos no Brasil, além de fomentar uma políti-
ca de extermínio através da desinformação.
121
culação de notícias e de opiniões. E isso tem demonstrado
uma fratura nas democracias, na medida em que há um
colapso de informação, o qual tem minado, inclusive, elei-
ções democráticas. Como afirmou Lydia Polgreen (2019),
em um artigo publicado no The Guardian, há um abalo na
confiança nas instituições e nos leva a um mundo no qual
qualquer um é livre para escolher seus próprios fatos. Mas
se não há fatos, não há lei.
REFERÊNCIAS
ALONSO, A. A comunidade moral bolsonarista. In Vários au-
tores. Democracia em risco? 22 Ensaios sobre o Brasil de
hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
122
EMPOLI, G. Os engenheiros do caos. São Paulo: Vestígio, 2020.
123
Zahar, 2020.
124
124
125
08.
S
INTRODUÇÃO
em conseguir avançar judicialmente em seus
propósitos anti-indígenas, o governo de Jair CAROLINE
FARIAS LEAL
Bolsonaro tem adotado a via administrativa MENDONÇA
como escalada de medidas de contravenção
aos direitos dos povos indígenas. Neste arti- RHUAN CARLOS
go, iremos analisar duas ações engendradas no DOS SANTOS
LOPES
contexto pandêmico da Covid-19 que revelam
o uso de classificações coloniais e concepções
CLAUDETE DA
integracionistas, oriundas do período da dita- SILVA BARBOSA
dura militar brasileira, com fins de excluir po- TRUKÁ
126
rio de tortura e ódio, impactaram diretamente as formas de
existência desses. Esse, infelizmente, não é um processo en-
cerrado no passado, tendo em vista que estruturas racistas,
manifestadas no silenciamento histórico de evangelização,
educação eurocêntrica e negação de direitos, ainda se fazem
constantes e, por vezes, apresentam-se de formas veladas.
127
tas executadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), depois
convertido na Funai, entre as décadas de 1910 e 1980.
128
aos avanços de fronteiras econômicas sobre territórios indí-
genas (FERREIRA; MIGUEL, 2021).
129
Portanto, o indigenismo estatal, enquanto
conjunto de ideias, tem longa trajetória histó-
rica na formação do Brasil, o que extrapola os
limites da administração e reifica ideias este-
reotipadas sobre os povos indígenas (RAMOS,
2013). Como será apresentado nas seções se-
guintes, há uma ascensão das categorias e in-
terpretações herdadas do indigenismo estatal
anterior à CF de 1988, como conjunto ideo-
lógico de cunho evolucionista/racista mani-
festo em diferentes ações do Ministério da
Saúde, do Ministério da Justiça e no Judiciá-
rio. Dentre eles, o caso do Marco Temporal
é exemplo de relevância.
CRIMINALIZAÇÃO DOS
POVOS E VIOLAÇÃO DOS
DIREITOS À PROTEÇÃO E
AO TERRITÓRIO Sobre o Marco
Temporal indicamos
Em meio ao surto pandêmico da Covid-19, o as seguintes leituras:
atual presidente da Funai – oriundo dos qua- Coletânea de
texto produzidos
dros da Polícia Federal (PF) – Marcelo Augusto pelo Instituto
Socioambiental,
Xavier da Silva, para negar a assistência jurídi- disponível em
130
nai. [...] Em resumo: Casos de invasão
de propriedade particular por indí-
genas integrados não geram atuação
judicial da PFE Funai em prol dos gru-
pos invasores. Isso seria fomentar fu-
turas condenações da entidade indige-
nista brasileira por apoio a essas ações
ilícitas, ainda que as mesmas sejam de-
nominadas de “retomadas” e o objetivo
seja forçar a demarcação territorial, que
segue rito próprio previsto em decreto
presidencial.” (Grifos nossos).
131
do agronegócio, das madeireiras e das mineradoras sobre as
Terras Indígenas (TI’s) permanecem os mesmos. Na lei maior,
não há categorização de tipos de indígenas e trata-se de uma
grave deturpação jurídica definir a atuação da Funai, ou de
qualquer outro órgão do governo, a partir de uma categoria
de índio concebida de maneira ideológica, racista e voltada
exclusivamente ao favorecimento dos interesses privados na
exploração de terras públicas.
132
O conceito de ocupação tradicional assentado
na CF de 1988 é uma mudança de paradigma
fundamental por assegurar aos povos os direi-
tos territoriais sobre as áreas fora de suas pos-
ses em virtude de esbulho comprovado, grila-
gem, ocupação de má fé, entre outras formas
de violência praticadas contra populações in-
dígenas, tradicionais e do campo.
133
de que elas podem ser divididas em
duas categorias: privadas e públicas.
134
A violência que acompanhava os atos de “conversão” (os
“descimentos”, as “tropas de resgate”, as “guerras justas”)
só pode ser minimizada e esquecida porque segue – nar-
rativamente – os relatos sobre a antropofagia, os prisionei-
ros destinados à morte, os ataques e mortes de colonos e a
descrição do martírio de missionários. Para ser esquecido,
o genocídio tem que figurar como uma simples e merecida
reação a atos de uma maldade desmedida e inexplicável,
que legitimam a hipótese de uma natureza má daquelas
populações autóctones, que assim precisariam ser venci-
das e subjugadas, para depois poderem ser domesticadas
e transformadas (OLIVEIRA 2016, p. 19)
135
Porém, em tempos de pandemia de Covid-19,
em paralelo à atuação anti-indígena do po-
der Executivo brasileiro, a perspectiva inte-
gracionista ressuscitada na política indigenis-
ta ganhou contornos acentuados – mesmo
que inconstitucionais, como vimos acima. As
medidas de enfraquecimento das pautas in-
dígenas, mesmo em órgãos que deveriam se
dedicar à atuação juntamente com esses po-
vos, acontece de forma articulada e tem como
efeito o extermínio genocida. A falta de efe-
tivação da construção da política diferencia-
da de atenção à saúde indígena, conforme a
demanda dos povos indígenas na atualidade,
é uma das manifestações desses atos omissi-
vos (ARAUJO JUNIOR, 2021).
136
Apib apontam que no caso da assistência à
saúde no contexto da pandemia, a distinção
entre “integrados” e “índios puros”, “desalde-
ados” e “aldeados”, gera uma onda de subno-
tificações porque a Sesai apenas contabiliza
em seus boletins estatísticos uma parte das
pessoas infectadas ou mortas, deixando pul-
verizado nos números gerais do SUS os indí-
genas que vivem em contexto urbano.
VIOLÊNCIAS SILENCIOSAS
NO ACESSO À SAÚDE:
EXEMPLOS A PARTIR
DA AMAZÔNIA E DO
NORDESTE
A violência perpetrada pelo Estado contra os
povos indígenas durante a pandemia da Co-
vid-19 demonstra a estreita associação de um
passado colonial com o pensamento hege-
mônico contemporâneo. Analisando o “per- Realizada por
manente estado de guerra” contra os povos videoconferência,
em 09 de abril de
indígenas, João Pacheco afirma que, 2020.
137
[...] a transformação da população au-
tóctone, antes livre e autônoma, em su-
balterna, processo indissociavelmen-
te violento e arbitrário, respondeu aos
interesses econômicos dominantes,
como a apropriação da terra e a obten-
ção de mão de obra, articulada com a
consolidação da classe dirigente e de
uma estrutura de governo (PACHECO
DE OLIVEIRA, 2016, p. 17).
138
Coordenação das Organizações Indígenas
da Amazônia Brasileira (Coiab) a esta altu-
ra eram 16 mortes por Covid- 19 confirma-
das. Destes óbitos, apenas cinco constavam
nos boletins da Sesai. Assim, os outros 30
mil indígenas que vivem em Manaus ou no
seu entorno, foram lançados no colapso do
sistema público que enclausurou Manaus
em uma bolha de morte. Conforme afirma
a representante da Copime, naquela altura
os indígenas precisavam “de um hospital de
campanha para os indígenas que vivem em
Manaus e no entorno. São muitos doentes
com os sintomas de covid-19 sem testes, sem
cuidados médicos”. Desse modo, longe das
estatísticas, os indígenas que vivem na cida-
de enfrentam a pandemia sem o subsistema
de saúde e submetidos à roleta russa dos
efeitos do vírus em cada organismo.
139
decisão da Sesai em criar categorias de indí-
genas é um caso de racismo institucional:
140
A situação acima apresentada se estende
para outras regiões, inclusive quando a va-
cina contra a Covid-19 começou a ser apli-
cada. No Nordeste, começaremos com o
caso do povo Karão Jaguaribaras no estado
do Ceará, por três vezes declarado extinto
(BASTOS, 2020) manifestaram a quebra do
silêncio no início dos anos 2000. A partir
de então, buscam diálogo com os órgãos
de Estado e, efetivamente, começam a vir a
público em 2018. Conforme afirma Merremi
Karão, a “quebra de silêncio é o momento
em que rompemos a amnésia social provo-
cada pelo projeto colonial e evidenciamos
em público nossas lutas, é o momento de
ecoar as vozes silenciadas pelas violências
à além de nossos lares”. Localizados nos
municípios de Aratuba, Capistrano, Baturi-
té e Canindé, no estado do Ceará, os Ka-
rão Jaguaribaras relatam a dificuldade de
ter acesso ao pleno direito aos serviços de
saúde diferenciada para os povos indígenas.
Durante a pandemia de Covid-19, somente
uma das aldeias, o Kalembre Feijão, rece-
beu os atendimentos referentes à vacina-
ção. Contudo, isso ocorreu somente como
resultado amplo da Arguição por Descum-
primento de Preceito Fundamental (ADPF)
nº. 709, movida pela Articulação dos Povos
Indígenas no Brasil (Apib).
141
indígenas e com participação destes (APIB, 2020). Dessa for-
ma, esta ação serviu de base jurídica para que diversos Indí-
genas não ficassem desassistidos no acesso à saúde diferen-
ciada, corrigindo a dificuldade que em alguns casos ocorriam
a anos e que relegavam muitos à própria sorte.
142
indígenas se deparam com ações de instituições religiosas.
Atuando de formas mansas de conquista, como é o caso da
evangelização, levaram à recusa da vacina contra Covid-19, a
despeito das articulações para acesso a todos os grupos. Se-
gundo nota publicada pela Associação Brasileira de Antropo-
logia (ABA), no Ceará, “cerca de 600 indígenas Tremembé se
recusaram a receber a vacina instigados por pastores” (ABA,
2021, p. 1). A prática se repetiu na Bahia, na Reserva Indíge-
na Tuxá de Rodelas, às margens do Rio São Francisco; assim
como entre os Xavante e outros grupos indígenas no Mato
Grosso do Sul, Amazonas e Acre. Segundo as informações
recebidas pela Comissão de Assuntos Indígenas e o Comitê
de Antropólogos/as Indígenas da ABA, diferentes povos in-
dígenas foram alvos de
143
lógica colonialista do Estado confronta e fragiliza os enten-
dimentos de vida dos indígenas.
CONCLUSÃO
Neste capítulo debatemos dois tipos de ações realiza-
das pelo Estado brasileiro no contexto pandêmico da Co-
vid-19. Nos dois casos, relativos à direitos territoriais e à
saúde, expõe o reiterado uso de classificações coloniais
e concepções integracionistas, há muito excluídos do or-
denamento jurídico brasileiro.
144
específicos, acabou restrita pela Constitui-
ção aos tempos de ditadura.
REFERÊNCIAS
ABA - Associação Brasileira de Antropologia.
Estratégia de desinformação sobre a vaci-
nação põe em risco vidas indígenas. Dis-
ponível em: http://www.portal.abant.org.
br/2021/02/09/estrategia-de-desinformacao-
-sobre-a-vacinacao-poe-em-risco-vidas-indi-
genas/ Acesso em 17 ago. 2021.
145
terpretação constitucional. In BRASIL. Povos Indígenas: Pre-
venção do genocídio e de outras atrocidades. Brasília: MPF, p.
360-386, 2021.
146
Brasília: MPF, p. 10-38, 2021.
147
148
09.
INTRODUÇÃO
O
insight que originou o presente texto nos che- GEÍSA MATTOS
gou a partir de uma situação de tensão em sala
de aula, ao discutirmos os processos de racia- IZABEL ACCIOLY
lização de pessoas brancas, no Brasil contem-
porâneo. A aula fazia parte de um curso eletivo,
ofertado em 2019 no Programa de Pós-Gradu-
ação em Sociologia da Universidade Federal
do Ceará. O curso, Racismo e Branquitude,
introduzia o debate acadêmico sobre privilé-
gio branco naquela universidade, em um mo- Professora do
Programa de
mento no qual a categoria branquitude estava Pós-Graduação
149
amplas no país. Em 2019, negros e negras já
representavam 50,3% do total de estudantes Curso ministrado
por Geísa Mattos
nas universidades públicas (IBGE, 2019), gra- em parceria com
Ana Ramos-Zayas,
ças à lei nº 12.711/2012, que instituiu a po- Professora do
150
REDO; GROSFOGUEL, 2009).
Essa percepção foi
151
de reprodução do conhecimento acadêmico,
com base em experiências bastante concretas Na primeira versão
deste texto, a ideia
que vivenciamos, assim como nos possibili- era contrapor nossas
autobiografias
tou vislumbrar estratégias para a superação para explorar os
152
pel que a intelectualidade branca assume nessa renovação,
bem como as especificidades dos contextos locais, permea-
dos pelos debates globais.
***
A SOLIDÃO DE SE PERCEBER NEGRA
NA UNIVERSIDADE DE HOMENS
BRANCOS E MULHERES BRANCAS
IZABEL - Eu fui mãe durante a adolescência e precisei in-
terromper os estudos por muitos anos. Apenas em 2014,
aos 26 anos, entrei na universidade. A minha turma foi
uma das primeiras com ações afirmativas: 50% dos alunos
ingressavam por ações afirmativas e 50% por ampla con-
corrência. Ainda assim, havia apenas três pessoas negras
na turma, contando comigo, e eu ainda me sentia muito
sozinha nesse espaço. Nessa época, eu trabalhava durante
o dia e estudava à noite, por isso tinha que levar meu filho
para a universidade. Os momentos que a gente tinha jun-
tos eram as noites, na hora da aula, e o final de semana.
153
Portanto, em geral, os professores – brancos
– me tratavam de duas maneiras. O primeiro
grupo era extremamente condescendente
e tinha falas como “Coitadinha, não precisa
fazer o trabalho final. Você é negra, trabalha
e tem filho. Eu repito a sua última nota”. Para
esses professores, eu não teria capacidade de
render e, então, eles não exigiam conteúdo
de mim. O segundo grupo, por sua vez, era
aquele que queria “tirar o meu couro”, isto é,
do tipo que queria exigir o máximo de mim.
Encontrei professores que faziam exigências
desconsiderando quem eu era, a minha his-
tória.
AUSÊNCIA DE CRITICIDADE
DE PROFESSORES E
PROFESSORAS BRANCAS
QUANTO A AUTORES
RACISTAS
GEÍSA - Eu cheguei ao nível máximo de for- Izabel costuma dizer
mação em Sociologia no Brasil, o doutorado, que eles têm o perfil
154
almente. É muito interessante, porque, hoje,
quando a gente vê a emergência das ques-
tões raciais no Brasil, é como se a gente se
espantasse: “mas se o racismo sempre es-
teve nas relações, por que ele não era um
tema?”. Todavia, hoje é fácil entender o mo-
tivo: os intelectuais são brancos e, para eles,
a questão racial não era uma questão.
155
objetos de pesquisas eram negros – como da ausência de
intelectuais negros e negras nos currículos. Além disso, es-
tudantes negros e negras estavam praticamente ausentes da
universidade e só passaram a entrar nela no começo do sécu-
lo XX.
OS “CLÁSSICOS” E A
“EPISTEMOLOGIA DO PONTO ZERO”
IZABEL - Estava pensando na minha experiência com o Gil-
berto Freyre também. Fiz o curso “Pensamento Social Bra-
sileiro” e a gente leu “Casa-grande & Senzala”. Na época, a
condução que a professora branca fez não trazia essa leitu-
ra crítica ao autor. Pelo contrário, havia um modo elogioso.
Eu lembro que aquilo foi muito violento pra mim, mas eu
não conseguia encontrar espaços com os outros estudantes
pra fazer a crítica. Realmente, era uma solidão muito grande.
Posteriormente, reencontrei o Gilberto Freyre na pós-gradu-
ação, em São Paulo. Quando eu fui pra São Paulo, havia a so-
brecarga da questão racial, aliada ao fato de eu ser do Nor-
deste; juntava tudo. No final desse curso, a professora trouxe
o Gilberto Freyre como se dissesse: “Olha! Estou rompendo
paradigmas, trazendo um nordestino para o trabalho final
da disciplina”. Ela ficou chocada com o meu trabalho final,
pois o artigo “pingava sangue”, eu critiquei demais o Gilberto
Freyre, de forma dura e fundamentada. Acho que consegui
amadurecer e me colocar já no mestrado, me posicionando.
No entanto, foi muito complicado perceber a branquitude,
inclusive, nos estudos sobre violência.
156
sobre a universalidade, fala-se do branco; mas ao se falar do
negro, é algo específico.
157
era aluna da graduação e achei buscando no
Google, um professor e professora também
consegue fazer isso.
ESCRITA VISCERAL,
AUTOCURA E TORNAR-SE
SUJEITO DE SUA PRÓPRIA
HISTÓRIA
GEÍSA - Eu também reconheço que, pelo fato
de também não ter tido essa formação, ape-
nas recentemente passei a incorporar autores
negros (incluindo mulheres negras e latinas)
nos cursos que eu ofereço. Essa percepção,
porém, me veio também com muita força,
quando eu fui fazer um intercâmbio na Uni-
versidade de Yale, onde fiz o curso Personhood
in the Americas, com a professora Ana Ramos-
-Zayas. Nesse curso, encontrei autores lati-
no-americanos discutindo exatamente essa
universalidade do pensamento ocidental ba-
seada no pensamento eurocêntrico.
158
eram as críticas que vinham nas notas à margem dos traba-
lhos. Eu lembro que quando eu fui pra Antropologia e resolvi
escrever do jeito que eu escrevo, as coisas começaram a fluir
e comecei a ficar feliz com o meu trabalho.
159
naquele lugar que eu sentia ser tão frio, tão distante de tudo
que se parece com o Brasil. E eu pensava, por que o Paulo
Freire não está na bibliografia dos nossos cursos de Ciências
Sociais? Paulo Freire não fala só sobre educação, fala sobre
transformação social, e as lições que ele dá, inclusive sobre
descolonização do conhecimento, são essenciais para a for-
mação na área de Humanidades de modo geral. Nos Estados
Unidos, todos os estudantes de Ciências Sociais e ativistas
com quem eu conversava tinham lido Paulo Freire. Muitos
estudantes universitários no Brasil não leram.
160
enorme dificuldade em se reconhecer brancos e brancas, em
primeiro lugar, e, depois, em reconhecer o racismo institu-
cional no espaço universitário. Penso que esse é o primeiro
reconhecimento que nós, professores e professoras brancas,
temos que fazer. Primeiro que somos brancos e brancas, se-
gundo que somos racistas, porque o racismo não é uma ques-
tão pessoal, não é uma questão “ah eu sou uma má pessoa,
porque eu sou racista”, não é isso. É uma cultura, está imbri-
cada em nós. Mesmo que não se pense sobre isso; na ver-
dade, quanto menos se pensar sobre isso, mais racistas nós
vamos ser.
161
sobre ele, olhe para ele, converse com ele, porque é esse
incômodo que vai dar pistas, inclusive para pessoas bran-
cas saberem o que fazer com isso.
162
nascimento. Eu acho que a gente vai tirando camadas; é do-
loroso, é muito doloroso, mas é muito necessário. É preciso
tirar as camadas para poder se renovar. Tirar essas velharias,
essas poeiras todas que nos impedem de ser melhor.
163
IZABEL - Eu acho que temos que fortalecer organizações
como o Fórum de Negras e Negros, para que eles consigam
ter energia pra continuar pressionando os professores e pro-
fessoras. E é pressionar mesmo, porque, com alguns profes-
sores e professoras, apenas a sensibilização não adianta, é na
pressão e essa pressão tem que acontecer. É preciso falar no
primeiro dia de aula: “Não, professor ou professora. Vamos
ver aqui a ementa, vamos discutir juntos a ementa” ou “Olha
esse autor ou autora aqui, que tal esse ou essa, vamos incluir
isso aqui, vamos olhar a diversidade dessa ementa”. Eu acho
que isso é muito importante.
164
IZABEL - Exatamente. Adota-se um discur-
so meritocrático, que é um discurso branco,
para justificar, muitas vezes, o seu próprio ra-
cismo. Dizem assim: “Que pena, ele não está
aqui porque não conseguiu” e desconsideram
várias questões. É engraçado que todo mun-
do que consegue é branco ou branca, mas
ignoram a questão do privilégio branco, que
vai favorecer aquela pessoa para estar sem-
pre ali.
REFERÊNCIAS
e línguas. A ideia
de quilombo
permanece presente
165
Durham: Duke University Press, 2015.
166
GRACIA, J. et al. Forging People: Race, Ethnicity, and Natio-
nality in Hispanic American and Latino/a Thought. Indiana:
University of Notre Dame Press, 2011, Capítulo 1 e 2.
167
168
10.
INTRODUÇÃO
E
m março de 2018, o assassinato da vereadora MONA LISA DA
Marielle Franco desencadeou uma onda de SILVA
dor, indignação e necessidade de transfor-
mar o luto em luta. Foi assim que o projeto ARIADNE RIOS
Mulheres Negras Resistem se constituiu: da
experiência da “dororidade”, termo cunha-
do pela ativista negra Vilma Piedade (2017)
para falar da experiência da dor que une e
aproxima mulheres negras.
169
essa que insiste em apagar a existência da população negra
como elemento formador do Ceará (RATTS, 2016) implican-
do, assim, a sub-representação desses sujeitos e os entraves
às políticas de promoção da igualdade racial.
170
rios dos homens brancos (44,4%). Já no que diz respeito
à educação, embora as mulheres negras apresentem me-
lhores indicadores que os homens negros, a taxa de con-
clusão do ensino médio dos homens brancos (72,0%) era
maior que a delas (67,6%).
171
discutir sobre mulher negra e poder, aponta que:
172
de nossas re-existências, partimos da construção do “Sou
porque Somos”, “Nossos passos vêm de longe”, e é atra-
vés desse alinhamento político que nossas superações ao
racismo, sexismo, machismo e patriarcado se fazem pos-
síveis, pois quem “sabe de onde vem sabe para onde vai”.
Somos mulheres negras, que exercemos nosso protagonis-
mo feminino e negro no estado que nega a existência da
população negra, e na sua capital, marcada pela exclusão
da população negra (RODRIGUES et al., 2020, p. 13).
173
ra e atriz, na ocasião de sua vinda, presenteou a todas/os
que estavam presentes em nossa aula inaugural 2020. Seu
poema “Não vou mais lavar os pratos”, nos instiga a refle-
tir sobre o lugar que querem as mulheres negras. Gonzalez
(1984, p. 226) pontua que:
174
universidades públicas federais e internacionais, como é o
caso da Universidade da Integração Internacional da Luso-
fonia Afro-Brasileira (Unilab).
175
com um público externo. Assim, aplicamos técnicas que aliam
a experiência vivenciada enquanto mulheres negras com o
referencial teórico-político que permita reflexão e aplicação
do conteúdo desenvolvido.
176
bém se encontravam outras regiões do Ceará. Assim, tive-
mos mulheres oriundas de Quixadá e Guaramiranga, no Ce-
ará; mulheres dos estados de Recife, Maranhão e São Paulo;
bem como mulheres que se encontram em outro país, como
em Portugal. Dessa forma, fomos capazes de perceber que
a potência de nossos encontros atravessou bairros, cidades,
estados e até fronteiras nacionais.
177
Nesse sentido, reiteramos que resistimos e seguiremos re-
sistimos diante de toda e qualquer violência que atente
contra nosso direito de existir dignamente, tais como o ra-
cismo, o fascismo, o sexismo e a misoginia. Por isso tam-
bém, nos posicionamos em defesa da democracia e assim
marchamos em 2018, juntamente com diversos movimen-
tos sociais e grupos políticos, contra um projeto de Estado
que atentava e atenta contra lutas sociais históricas, como
é a luta antirracista, especialmente na dimensão protago-
nizada pelas mulheres negras. Que nosso aquilombamen-
to feminino, negro e nordestino siga como resposta ao
governo genocida e que não nos façamos esquecer que
Mulheres Negras Resistem. Resistimos!
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, S. O que é racismo estrutural? Letramento, 2018.
178
GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revis-
ta Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.
179
180
11.
INTRODUÇÃO
A
palavra autoritarismo nos remete a formas
de governo em que o exercício do poder VERA
RODRIGUES
se dá pela repressão política, pela intimida-
ção da oposição e pela violação de direitos
humanos da população em geral. A teórica
política Hannah Arendt em sua conhecida
obra “As origens do totalitarismo”, publica-
da em 1951, estabeleceu as bases para uma
análise sobre o período histórico marcado
pela 1ª Guerra Mundial e pelo antissemitis-
mo na perspectiva do que seriam regimes
totalitários, a exemplo do caso da Alema-
nha nazista. A partir dessa contextualização,
ela também busca diferenciar ou delimitar
as fronteiras possíveis entre totalitarismo e
autoritarismo. Neste último, a centralidade
na figura da autoridade, da liderança má-
xima – comum a ambos os regimes – seria
acrescida no autoritarismo de apatia, des-
politização e daquilo que poderíamos as-
sociar a um “comportamento de manada”
ou “obediência cega” de sujeitos que, ins-
pirados nessa liderança, comportam-se de
maneira homogênea, acrítica e reprodutora
desse mesmo ethos autoritário.
181
A raça foi uma tentativa de explicar a existência de seres
humanos que ficavam à margem da compreensão dos eu-
ropeus, e cujas formas e feições de tal forma assustavam
e humilhavam os homens brancos, imigrantes ou conquis-
tadores, que eles não desejavam mais pertencer à mesma
comum espécie humana. Na ideia da raça encontrou-se a
resposta dos bôeres à “monstruosidade” esmagadora des-
coberta na África — todo um continente povoado e abar-
rotado de selvagens — e a justificação da loucura que os
iluminou como “o clarão de um relâmpago num céu sere-
no” no brado: “Exterminemos todos esses brutos!” Dessa
ideia resultaram os mais terríveis massacres da história: o
extermínio das tribos hotentotes pelos bôeres, as selva-
gens matanças de Carl Peters no Sudeste Africano Alemão,
a dizimação da pacata população do Congo reduzida de
uns 20 milhões para 8 milhões; era o que é pior, a adoção
desses métodos de “pacificação” pela política externa eu-
ropeia comum e respeitável. (ARENDT, 1951, p.199)
182
nos resta a postura coletiva de “esperançar”, mesmo diante
de uma pandemia como a Covid-19 ou da quase ausência
de perspectiva de retomar o caminho de uma frágil demo-
cracia e de tentativas ainda insuficientes de implantar po-
líticas de Estado, não meramente de governo, capazes de
enfrentar desigualdades abissais. Essa postura não pode e
nem deve ser romântica e/ou ingênua, mas construída em
uma base coletiva que perpasse a sociedade como um todo.
Onde vamos buscar inspirações e estratégias para dar con-
cretude a esse “esperançar”? Especialmente quando aquilo
que nos atinge, como é o caso do racismo, é expresso não
só pelo autoritarismo que vem de cima, mas também re-
produzido no cotidiano em uma interface entre instituições
e sujeitos que se sentem legitimados pelo que vem de cima
para exercer essa mesma lógica?
FORMAS DE RESISTÊNCIA
AO RACISMO COMO PRÁTICA
AUTORITÁRIA
Esse cotidiano vivido por quem tem a pele preta implica, qua-
se sempre, um lugar social em que o enfrentamento ao racis-
mo não cessa. É incorporado a uma rotina de vida em que não
ter a pele “alva” o faz ser a pele “alvo” com frequência, como
já expresso pelo rapper Emicida na música “Ismália” no álbum
AmarElo. Neste sentido e deste lugar de quem tem a pele pre-
ta, quero aqui relatar episódios em que estive direta ou indire-
tamente envolvida enquanto pesquisadora da área de Antro-
pologia das Populações Afro-brasileiras e/ou militante da luta
antirracista, especialmente da luta das mulheres negras.
183
dêmica silencia raça e gênero”. Nesse convite à desobediência
podemos perceber que o cotidiano de professoras negras nas
universidades é atingido por práticas autoritárias de racismo,
exercidas pela branquitude, que buscam silenciá-las no fazer
científico ou na tomada de decisões quando ocupam postos
de gestão. Sobre isso as autoras nos dizem o seguinte:
184
Federais (Reuni), implantado em 2007 e que possibilitou
a criação de universidades e institutos federais para além
dos centros urbanos do Sul e Sudeste, contemplando as-
sim municípios das regiões Norte e Nordeste do país. Isso
possibilitou o acesso de uma primeira geração de estu-
dantes universitários com um perfil mais próximo da re-
alidade brasileira: negras(os), indígenas, egressos da es-
cola pública e filhas(os) de trabalhadores rurais e/ou do
subemprego característico das capitais.
185
de vírus e moléstias, o jugo racial permanece. A ciên-
cia contemporânea denuncia essas visões reducionistas
e racistas, e muito já se falou e se escreveu a respeito.
Então, a que propósito serviria um discurso tão delibera-
damente enviesado?” (...) “Por essas razões, nosso com-
promisso com a ciência que mobiliza mudanças sociais;
com um país diverso em sua plenitude, ou simplesmente
com a formação de médicos(as), historiadores(as), soci-
ólogos(as), antropólogos(as), engenheiros(as) e outros
bacharéis e licenciados que, antes de fazerem jus ao tí-
tulo de “doutor(a)”, farão jus a serem chamados e tra-
tados como seres humanos. Esses, sim, serão homens e
mulheres de ciência. (RODRIGUES; SARAIVA, 2016)
186
Figura 1
Divulgação do E-book Território, Raça/Cor e gênero
187
nos convidou a filósofa e militante Sueli Carneiro, em abril
de 2019. Naquela ocasião, durante o FestiPoa Literária, even-
to de literatura em que era homenageada no Salão de Atos
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ela se mani-
festou sobre o tema violência e racismo. Segundo Sueli, há
uma “absoluta e crescente violência racial, que se manifesta
de diferentes formas, e que tem a sua forma mais extrema
no genocídio de jovens negros” (CASTRO, 2019). De acordo
com a filósofa, esse não era o país que sua geração preten-
dia entregar para as gerações futuras:
188
geracional, mas plenas na análise de conjuntura
que fazem, evidenciou a necessidade da manu-
tenção de uma atenção constante e redobrada
com a perversidade do racismo. Nas palavras
de Sueli Carneiro, durante o FestiPoA em 2019,
o que temos pela frente: “Organizem-se, é em
legítima defesa, porque não há mais limite para
a violência racista” (CASTRO, 2019).
189
chamada de imediato? Ou se outros populares ti-
vessem decidido fazer justiça? Não dá para disso-
ciar esse episódio do fato de que a cada 23 minutos
um jovem negro como ele é assassinado no Brasil.
REFERÊNCIAS
AmarElo [música]. Intérpretes: Emicida, Majur e Pabllo Vittar.
(Sample: Belchior - Sujeito de Sorte). São Paulo, Laboratório
Fantasma, 2019.
190
GONÇALVES, A. S. Estado “Democrático e de Direito” para
quem? Identidades para uma construção de democracia para
a população negra no Brasil. In Winnie Bueno [et al]. Tem sa-
ída? Ensaios críticos sobre o Brasil. Porto Alegre, RS: Zouk,
2017, p. 137-246.
191
192
12.
A
INTRODUÇÃO
pesar da recente consolidação dos estudos
de gênero e sexualidade no Brasil a partir de JOÃO GABRIEL
MARACCI-
diversas áreas do conhecimento (ex., Ciências CARDOSO
Sociais, da Saúde e Exatas) e das conquistas
no campo dos direitos sexuais e reprodutivos
DAMIÃO SOARES
no país, são crescentes os ataques e os re- DE ALMEIDA-
trocessos (PIZZINATO; ALMEIDA-SEGUNDO; SEGUNDO
193
exemplo dos ataques conservadores antigênero no Brasil,
é discutido o caso do material educativo que foi nomeado
de “kit gay”. No último tópico de discussão, argumenta-se
como os ataques à educação sexual têm servido como ban-
deira política dos grupos conservadores para, na conclusão,
expor as possíveis razões para o uso dessa estratégia.
NOVOS AUTORITARISMOS DE
DIREITA E A OFENSIVA ANTIGÊNERO
As formas contemporâneas de autoritarismo político no Bra-
sil, mas também em outros países, têm em seus eixos privi-
legiados as temáticas da diversidade sexual e de gênero. Em
uma perspectiva histórica, podemos considerar que essa não
seria uma articulação recente em nosso país. No período da
última ditadura civil-militar (1964-1985), por exemplo, pes-
quisas apontam para a perseguição sistemática a homosse-
xuais, transexuais e travestis como políticas de Estado, volta-
das à promoção da heterossexualidade e da cisgeneridade
como pilar moral do ideal de nação e cidadania do regime
(GREEN, 1999; OCANHA, 2018; QUINALHA, 2018).
194
minance Orientation; SIDANIUS; PRATTO, 2001) é uma atitude
de apoio à formação e à manutenção de hierarquia entre gru-
pos sociais. Pessoas que aderem à SDO tendem a perceber o
mundo como um lugar competitivo em que a sobrevivência
depende da obtenção de poder, domínio e superioridade so-
bre outros grupos. No campo dos estudos de gênero, a SDO,
por exemplo, está relacionada com a defesa da manutenção
de relações hierarquizadas entre os gêneros e também a não
aceitação de avanços sociais relacionados às pessoas (ou ao
grupo) LGBTQIA+ por ameaçarem a hierarquia social.
195
e seus respectivos representantes políticos. Jair Bolsonaro, no
Brasil; Donald Trump, nos Estados Unidos; Viktor Orban, na
Hungria; Andrzej Duda, na Polônia e Recep Erdogan, na Tur-
quia, são personagens corriqueiros nessas análises.
196
tentação da heterossexualidade como uma orientação na-
tural do desejo. São muitas as publicações e os eventos re-
lacionados à igreja católica que atuam no fortalecimento de
tal retórica, tomando destaque obras como O Sal da Terra:
Cristianismo e Igreja Católica no Século XXI, escrita em forma
de entrevista com o cardeal e futuro papa emérito Joseph
Ratzinger e o jornalista Peter Seewald (1997); The Gender
Agenda: Redefining Equality, de Darly O’Learly (1997); e Ide-
ologia de Gênero: Neototalitarismo e a Morte da Família, de
Jorge Scala (2011). Nos três exemplos, a noção de ideologia
passa a ser utilizada como um viés pejorativo para se referir
a temáticas como a sexualidade e o aborto, visando a pro-
teção de instituições supostamente em ameaça, tomando
foco prioritário a família heteronormativa.
197
lica para movimentos de novos autoritaris-
mos, conjugando pautas anteriormente não No entanto,
gostaríamos de
relacionadas, unidas em nome do combate destacar que, embora
o presente texto
ao problema comum da suposta dissolução aborde as articulações
198
mobilizações antigênero pode ser acompa-
nhado em diferentes situações políticas tra-
vadas ao longo da última década. Trata-se
do chamado “kit gay” – nomenclatura que
ilustrou, primeiramente, um viés pejorativo
contrário a um projeto de confecção de ma-
teriais de combate à homofobia nas escolas,
expandindo-se, ao longo do tempo, como
um significante capaz de articular o pânico
sobre o gênero em diferentes campos, per-
formando um suposto elo de conexão con-
tra o largo campo de ameaças imposto às
crianças em idade escolar, comumente no-
meado como “doutrinação” ou “imposição
ideológica” (MARACCI, 2019).
199
nos anti-homofobia no país. O “kit gay”, para
Bolsonaro, imporia a homossexualidade para
crianças, destituiria a autoridade familiar na
educação dos filhos e os tornaria “presas fá-
ceis para pedófilos” (MARACCI, 2019).
200
reitos civis –, a cultura do desagendamento nas políticas
públicas. Segundo os autores:
201
xualidade e políticas públicas no Brasil, à medida que o sintag-
ma “ideologia de gênero” foi decisivo no contexto da votação.
Maria Rosado-Nunez (2015) aponta a participação de líderes
católicos e evangélicos na agremiação contrária ao “gênero”,
que tomou palco nesse período, reiterando o viés teológico
para uma separação rígida e inflexível entre homens e mu-
lheres e para um ideal heteronormativo de família. Na esteira
dessas reflexões, Naira Pinheiro e Fernanda Coelho demons-
tram o alastramento da retórica da “ideologia de gênero” a
partir da votação do PNE, tendo como fundamento um repú-
dio às “teorias de gênero”. Ambas as autoras já demonstram
como o discurso de matriz católica encontrou um terreno fértil
no Brasil no encontro com comunidades religiosas de ordem
evangélica, atualmente diretamente implicadas no processo
de sustentação dos discursos autoritários do atual regime.
202
campanha. Em entrevista ao Jornal Nacional,
por exemplo, ele apresentou o livro Aparelho
Sexual e Cia como um exemplar do fatídico
“kit gay”, mesmo que esse livro não constasse
como elemento do projeto vetado em 2011.
A nomenclatura, dessa forma, passa a abarcar
elementos distintos, estabelecendo uma su-
posta conexão entre eles. Livros, eventos, ma-
teriais pedagógicos estaduais, federais, mu-
nicipais, públicos ou privados, passam a ser
entendidos como o mesmo “kit gay”, como
exemplares da mesma “ideologia de gênero”.
203
que o fomento às pesquisas sobre famílias e
políticas públicas deve fortalecer a instituição
familiar no ambiente acadêmico, contrapon-
do-se à suposta degradação da família em
trabalhos realizados em universidades acer-
ca da diversidade sexual e de gênero. Des-
sa forma, se o documento oficial referido ao
MMFDH e ao MEC apresenta uma aparência
de neutralidade, é nas apresentações públi-
cas do projeto que emerge a preocupação
vigente: que as universidades fortaleçam um
ideal heterossexual de família e protejam as
crianças contra a nefasta “ideologia de gê-
nero”. Como dizia Alves no primeiro mês de
governo, trata-se da expectativa de que en-
traríamos em uma nova era, na qual “menino
veste azul e menina veste rosa”.
204
rica antigênero de modo geral consolidou-se, também, na
retirada progressiva de termos como “gênero” e “sexualida-
de” dos documentos oficiais sobre Educação no Brasil. Um
exemplo desse procedimento se dá no ano de 2017, com a
formulação da Base Nacional Curricular pelo Ministério da
Educação, que delimitava os parâmetros curriculares para a
educação infantil brasileira. O documento foi apresentado à
imprensa contendo menções à “orientação sexual” e “identi-
dade de gênero”, em um viés de promoção de direitos e re-
dução do preconceito homofóbico e transfóbico – o que ge-
rou resposta negativa de comunidades conservadoras e seus
representantes parlamentares. Três dias após a divulgação, o
texto foi publicado oficialmente sem nenhum desses tópicos,
mencionando apenas, de modo abrangente, “preconceitos
baseados nas diferenças de gênero” (SEMIS, 2017).
205
Impedir a discussão sobre esses temas no am-
biente escolar é boicotar o acesso, por parte
das crianças e dos adolescentes, a informa-
ções e discussões importantíssimas, como so-
bre sexualidade, identidade de gênero, vio-
lência contra a mulher, abuso sexual infantil
e configurações de família não heteronorma-
tivas. Isso representa um obstáculo ao aces-
so à educação em direitos humanos (estabe-
lecida pelo Plano Nacional de Educação em
Direitos Humanos, em 2006) e uma violação
ao pleno exercício dos Direitos Sexuais.
206
so, é esperado que a inserção dessas discussões diminua o
preconceito contra a diversidade sexual e de gênero e a dis-
criminação da qual são alvos as pessoas LGBTQIA+ (ALMEI-
DA-SEGUNDO; VILANOVA; PIZZINATO, 2021). A inclusão no
currículo escolar desses temas em um plano nacional de edu-
cação permitiria uma mudança no nível cultural, o que pode
afetar estruturalmente este problema no longo prazo e, por
conseguinte, se contrapor aos modelos autoritários.
207
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Salientar a diversidade como uma violação da norma tradi-
cional de gênero e sexualidade e colocar o “gênero” como
um inimigo perigoso e imprevisível garante o apoio daque-
les identificados com o autoritarismo de direita. As ofensi-
vas contra o “gênero” no Brasil têm alimentado a percepção
das minorias sexuais como uma ameaça - pela não adesão
aos estereótipos de gênero, encarado como um desafio às
normas tradicionais. O tradicionalismo e a agressividade au-
toritária (também chamada apenas de autoritarismo) são os
principais preditores da autoidentificação como de direita em
nosso país (VILANOVA et al., no prelo). Pessoas que aderem
ao tradicionalismo são especialmente sensíveis às normas so-
ciais relativas à aceitação da diversidade, esta é a dimensão
do autoritarismo que de forma mais estável se associa com
o preconceito contra minorias sexuais e de gênero. No Brasil,
o apoio a padrões e valores morais tradicionais parece ser o
fator chave para a compreensão da relação entre religiosida-
de e o preconceito contra a diversidade sexual e de gênero
(VILANOVA; KOLLER; COSTA, 2019).
208
REFERÊNCIAS
ADORNO, T. et al. The Authoritarian Personality. New York:
Harper, 1950.
209
judice. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2017, p.
188-221.
210
O’LEARLY, D. The gender agenda: redefining equality. La-
fayette: Vital Issues, 1997.
211
ROSADO-NUNEZ, M. J. A “ideologia de gênero” na discus-
são do PNE. A intervenção da hierarquia católica. Horizonte
- Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v.
13, n. 39, p. 1237-1260, 2015.
212
SUN, W. H. et al. Assessing participation and effectiveness of
the peer-led approach in youth sexual health education: Sys-
tematic review and meta-analysis in more developed coun-
tries. The Journal of Sex Research, v. 55, n. 1, p. 31-44, 2018.
213
214
13.
N
INTRODUÇÃO
o Brasil, as relações sociais são historicamente
marcadas por um colonialismo arraigado no DAMIÃO SOARES
DE ALMEIDA-
racismo e no autoritarismo. Por exemplo, no SEGUNDO
campo das relações raciais, apesar dos gra-
ves efeitos contemporâneos da escravidão e
JAMES FERREIRA
da política de branqueamento que se seguiu MOURA JÚNIOR
após a abolição da escravatura, o racismo ain-
da é negado por muitos devido ao mito da
ANGELO
democracia racial, i.e., a crença de que a for- BRANDELLI
mação miscigenada do povo brasileiro teria COSTA
215
de (CNJ, 2018), que formam uma verdadeira nobreza toga-
da – uma elite econômica e política que ocupa há gerações
os principais cargos nos tribunais e escritórios de advocacia,
administrando a justiça no Brasil (ALMEIDA, 2014).
216
Destacam-se as teorias que focam na raça (ex., ALEXANDER,
2012), as que focam na classe (ex., JOHNSON, 2017; WAC-
QUANT, 2001) e as que integram ambas as explicações (ex.,
COIMBRA, 2001; STEFFENSMEIER; ULMER; KRAMER, 1998).
Já as teorias cujo enfoque é mais psicológico têm como base
processos grupais de categorização social a partir de fatores
ideológicos e de preconceito, com destaque para o Modelo
do Processamento Dual Cognitivo-Motivacional da Ideologia
e do Preconceito (DPM, do inglês Dual Process Motivational
Model of Ideology and Prejudice) (DUCKITT, 2001) e a Teoria
da Justificação do Sistema (TJS; JOST et al., 2010).
AVANÇOS E DESAFIOS NA
PESQUISA SOBRE A TOMADA
DE DECISÃO JUDICIAL
O princípio da igualdade orienta o ordenamento jurídico bra-
sileiro e as decisões judiciais deveriam se basear apenas no
que a lei determina, segundo as características factuais de
cada caso. A tomada de decisão por influência de qualquer
critério que não esteja estabelecido em lei viola os princípios
constitucionais que regem o processo judicial (ZAFFARONI;
PIERANGELI, 2015). Porém, há um extenso campo de pesquisa
que tem verificado que essas decisões são resultado de uma
complexa interação entre as características do julgador (ex.,
nível socioeconômico, raça/cor, atitudes, crenças, valores), os
aspectos legais (ex., tipo de crime, a forma como foi pratica-
do) e os aspectos extralegais do caso (ex., características do
acusado e da vítima) (BAUMER, 2013; DEVINE; CAUGHLIN,
2014). As evidências indicam que a parcialidade da atuação
dos julgadores prejudica especialmente as pessoas negras e
pobres (ex., ADORNO, 1994, 1995, 1996; SPOHN, 2014).
217
Pesquisadores de diversas áreas do conhecimento têm rea-
lizado investigações sobre a tomada de decisão no âmbito
jurídico, principalmente sobre os aspectos que levam à dis-
paridade nas sentenças diante de casos semelhantes, ou mes-
mo, iguais. Nas pesquisas produzidas, as disparidades socior-
raciais foram as que mais receberam atenção. Ao longo dos
anos, observam-se cinco ondas históricas de debates e es-
forços analíticos, teóricos e metodológicos para compreen-
der o fenômeno (FRANKLIN, 2017; MITCHELL, 2017; SPOHN,
2015; WOOLDREDGE et al, 2015; ZATZ, 1987).
218
analisada isoladamente (WOOLDREDGE et al, 2015). Porém,
a cada etapa, as desvantagens vão se somando, o que leva a
disparidades significativas nos resultados dos processos para
diferentes grupos sociais. Além disso, observou-se que a in-
teração de algumas variáveis afetava a sentença, por exem-
plo, a interação entre raça, condição econômica e o tipo da
ofensa (SPOHN, 2015; ZATZ, 1987). Identificou-se que os ne-
gros, em relação aos brancos: recebiam sentenças mais lon-
gas, tinham menor probabilidade da possibilidade de fiança
e tinham maior probabilidade de condenação. De forma ge-
ral, as contribuições dos estudos da terceira onda convergem
no que diz respeito ao efeito cumulativo da discriminação ao
longo das etapas do processo de julgamento.
219
sentença final de condenação ou absolvição (BAUMER, 2013).
Atualmente, esses estudos têm buscado abordar os efeitos
cumulativos (ou moderadores) decorrente da interação en-
tre variáveis como raça, gênero, idade e nível socioeconômi-
co ao longo dos estágios de processamento judicial (WOOL-
DREDGE et al, 2015). Para tanto, têm feito uso de rigorosos
métodos de análise, maior qualidade das medidas e amostras
representativas de diversas nações, como Portugal, Estados
Unidos, Holanda e Rússia (ALMEIDA-SEGUNDO, 2019).
TEORIAS SOCIOLÓGICAS E
DISPARIDADES NO JULGAMENTO
Duas distintas perspectivas têm se voltado para a análise do
sistema de justiça penal e seus autoritarismos. A primeira de-
las segue uma abordagem genealógica das instituições que
investiga a complexa rede de saber-poder-subjetivação em
torno da produção do sujeito e das tecnologias de controles,
pondo em questão as políticas criminais e sua relação com
os modos de existir (FOUCAULT, 1999). Já a segunda tem
como objetivo subsidiar mudanças nas políticas e nas práti-
cas penais atuais – a maioria dos estudos da decisão jurídica
pertence a esse enfoque. A principal diferença dessa abor-
dagem para a genealógica é que ela não se detém, de forma
imediata, na proposição de alternativas às políticas criminais,
mas na urgência de se elaborar políticas criminais alternati-
220
vas, por exemplo: o fortalecimento do direito penal mínimo,
a mediação extralegal dos conflitos, as penas alternativas à
prisão, as propostas de reformas legais de descriminalização,
a garantia de direitos humanos básicos para os encarcerados,
os processos efetivos de ressocialização, o estabelecimento
de uma polícia comunitária não militarizada, entre tantas ou-
tras (ex., ADORNO, 1996; BAUMER, 2013; SPOHN, 2015; ZA-
FFARONI; PIERANGELI, 2015).
221
do práticas discriminatórias, inclusive quanto à aplicação de
penas, pois os sujeitos com essas características são perce-
bidos como intrinsecamente desviantes, perigosos e disfun-
cionais. No Brasil, Coimbra (2001) integrou as explicações so-
bre raça e classe ao relacionar a hipertrofia do Estado penal
com a construção social de classes perigosas, marcadamente
os negros, os pobres e os imigrantes, sobre quem recai se-
veramente o controle coercitivo. Com base em estereótipos
que associam essas populações à periculosidade, ao crime e
à violência, é criada uma congruência raça-classe-crime que
posiciona, especialmente, os jovens negros pobres como ini-
migos a serem combatidos.
222
especialmente os cargos de magistratura e os de sócio em
escritórios de advocacia são ocupados majoritariamente por
homens, brancos, de famílias com excelente renda e escola-
ridade, com parentes que também atuam em profissões ju-
rídicas e residentes no Sul e Sudeste do país.
223
preconceito variam em diferentes sociedades e que os indi-
víduos dentro das sociedades variam no nível de preconceito
(DUCKITT, 2001). Dessa forma, busca integrar fatores sociais e
intergrupais (ex., competição intergrupal, ameaça ou desigual-
dade), bem como diferenças individuais (ex., personalidade,
motivações ou crenças ideológicas) na explicação de como as
atitudes preconceituosas surgem e são sustentadas tanto para
os indivíduos quanto para as sociedades. Sua proposição prin-
cipal é a de que duas orientações motivacionais básicas dis-
põem os indivíduos a serem geralmente preconceituosos ou
tolerantes (DUCKITT; SIBLEY, 2017). No entanto, essas orienta-
ções seriam ativadas em grande parte por fatores situacionais
e intergrupais socialmente compartilhados (como competição
intergrupal, ameaça e desigualdade). Dessa forma, fatores in-
dividuais e sociais ou intergrupais operariam juntos para gerar
preconceitos, os quais são específicos (i.e., compartilhados e
dirigidos, contra alvos específicos que variam entre socieda-
des) e generalizados (i.e., os níveis de preconceito variam en-
tre os indivíduos de uma sociedade).
224
distintos. O RWA é definido como uma atitude social basea-
da na ameaça dos objetivos motivacionais da segurança co-
letiva, controle, estabilidade e ordem, que reflete o grau em
que as pessoas se submetem às autoridades estabelecidas,
mostram agressividade em relação a grupos com os quais
não se identificam e apoiam valores morais tradicionais (AL-
TEMEYER, 1981; DUCKITT; SIBLEY, 2017). Pessoas com alto ní-
vel de RWA possuem cronicamente a crença saliente de que
o mundo em que vivem é perigoso, caótico e imprevisível (ao
invés de seguro, estável e previsível). Já a orientação à domi-
nância social (SIDANIUS; PRATTO, 1999) é uma atitude moti-
vada pela competição em torno dos objetivos motivacionais
de poder, dominância e superioridade, que reflete o apoio à
formação e à manutenção de hierarquia entre grupos sociais.
Indivíduos com alto nível de SDO possuem a crença croni-
camente saliente no mundo como um lugar competitivo em
que é necessário obter poder, domínio e superioridade sobre
os outros para sobreviver.
225
desigualdades e desvantagens e o favorecimento de grupos
dominantes em detrimento do próprio grupo (para uma re-
visão ver FRIESEN et al., 2018; e JOST; BANAJI; NOSEK, 2004).
A principal diferença da teoria de justificação do sistema (TJS)
em relação ao DPM é o esforço em fornecer uma explicação
mais elaborada para as situações em que as pessoas se co-
locam em uma posição de defenderem o status quo quando
isso parece contrário aos interesses individuais ou grupais.
226
NE; CAUGHLIN, 2014; DUCKITT; SIBLEY, 2017; FRIESEN et
al., 2018; JOST; BANAJI; NOSEK, 2004).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar da existência de uma ampla literatura internacional
no estudo das disparidades no julgamento e sobre a repre-
sentação sociorracial no sistema penitenciário, com quase
100 anos de tradição, no Brasil, existem poucas pesquisas
que buscam explorar os processos que atuam na construção
dessa desigualdade. Pesquisadores têm investigado o porquê
das atitudes negativas frente a indivíduos e grupos. Em uma
perspectiva abrangente, mais social, a atuação do Estado e
das instituições acaba por promover um contexto favorável à
discriminação. O encarceramento em massa, que atinge majo-
ritariamente populações marginalizadas, funciona como uma
política de segregação dos indesejados, as classes perigosas.
Além disso, simultaneamente, características individuais liga-
das à categorização grupal por motivações ideológicas e de
preconceito recebem influência dessa política de exclusão e
impactam nas decisões dos julgadores nos tribunais.
227
especificamente, das abreviações perceptivas que aliviam a
tomada de decisões em contextos complexos ou ambíguos.
Assim, os julgadores estão predominantemente sujeitos a
vieses e acabam tendo sua decisão influenciada por fatores
contextuais e individuais.
REFERÊNCIAS
ADORNO, S. Crime, justiça penal e desigualdade jurídica: As
mortes que se contam no tribunal do júri. Revista USP, n. 21,
p. 132-151, 1994.
228
ALEXANDER, M. The New Jim Crow. Ohio St. J. Crim. L., v.
9, p. 7, 2011.
229
perimental social psychology. San Diego: Academic Press,
2001. p. 41-113.
230
justice and legitimacy: The Ontario symposium. Hillsdale:
Erlbaum, 2010, p. 173-203.
231
rial da versão brasileira da escala Right-Wing Authoritaria-
nism. Trends in Psychology, v. 26, p. 1299-1316, 2018.
232
233
14.
A
INTRODUÇÃO
s pessoas em situação de rua (PSR) são carac-
terizadas pela falta de moradia regular, he- CARLOS
EDUARDO
terogeneidade, pobreza extrema e multipli- ESMERALDO
cidade de privações e violações de direitos FILHO
humanos (ESMERALDO FILHO, 2021). A maio-
ria dessas pessoas exerce alguma atividade ANDRÉA
FERREIRA LIMA
remuneratória, que em geral são atividades ESMERALDO
autônomas e com pouca estabilidade, como
reciclagem, jardinagem, guardar e lavar car-
VERÔNICA
ros e pedir. Ademais, Pimenta (2019) aponta MORAIS
algumas situações vivenciadas por essa po- XIMENES
234
tura capitalista e, no plano micropolítico, as múltiplas opres-
sões, caracterizadas pelo desejo de morte e de extermínio,
que mantém o status de grupos privilegiados (AMORIM et
al, 2019).
235
para além de uma perspectiva individualista, ou seja, não só
como um tratamento injusto, mas como um processo social
e estrutural que contribui para manter as relações de domi-
nação e as diferenciações sociais. A discriminação é parte do
conceito de estigma, primeiramente definido pelos gregos
para se referir a marcas corporais que distinguiam aqueles
que deveriam ser evitados devido a alguma forma de rebai-
xamento moral. Segundo Goffman (1988), os estigmas são
atributos de certos indivíduos marcadores de descrédito e
depreciação, que prejudicam o reconhecimento e aceitação
social na medida em que em muitos casos os atributos são
vistos como fraqueza ou desvantagem individual. Dessa for-
ma, com base na crença de que o estigmatizado não é pro-
priamente humano, abre-se espaço para várias formas de
discriminação.
236
como objetivo descrever a realidade de opres-
são vivenciada pelas pessoas em situação de
rua de Fortaleza (Ceará) com ênfase nas ca-
tegorias estigma e discriminação.
CAMINHOS DA
METODOLOGIA
Esse capítulo está relacionado com uma pes-
quisa maior “Pessoas em situação de rua: pro-
cessos psicossociais relacionados à pobreza,
à estigmatização e à violação de direitos” ,
desenvolvida pelo Núcleo de Psicologia Co-
munitária (NUCOM) da UFC, a qual gerou
uma tese de Doutorado (ESMERALDO FILHO,
2021). No presente trabalho serão apresenta-
dos somente os dados relacionados a opres-
são, discriminação e estigma – sendo a discri-
minação uma das categorias utilizadas para
compreender as práticas de opressão no con-
texto das ruas. Trata-se de uma pesquisa com
delineamento misto, com uso das abordagens
qualitativa e quantitativa.
237
mínimo de 18 anos de idade e ter morado na rua por pelo
menos seis meses. Foram aplicados 285 questionários, dos
quais 236 foram considerados válidos. Dos 236 participantes,
118 (50%) eram usuários do Centro Pop do bairro Centro; 74
(21,4%), do Centro de Convivência; 24 (10,2%), do Centro Pop
do bairro Benfica; 12 (5,1%), do projeto Corre pra Vida e oito
(3,4%), da Casa do Povo de Rua.
238
pessoas agem como se fossem melhores do que você?; As
pessoas agem como se tivessem medo de você?; As pessoas
agem como se pensassem que você é desonesto?; e As pes-
soas agem como se pensassem que você não é inteligente?.
239
senciais, sendo uma no Centro Pop e outra
na quitinete onde residia uma participante. O
acesso aos entrevistados foi possível devido
ao apoio de parceiros, com destaque para o
coordenador do Centro Pop do Centro e in-
tegrantes do Coletivo Arruaça, que indicaram
pessoas com vivência recente da situação de
rua e que tinham disponibilidade para fazer
a entrevista por chamada de vídeo.
240
pecificamente, nas perguntas da Escala de Discriminação Co-
tidiana e também nas entrevistas individuais, em que relatam
de forma mais aprofundada os seus pensamentos e senti-
mentos. A junção dessas duas formas de escuta compõe a
complexidade dessas situações vivenciadas por esse grupo.
241
que você é desonesto?” e implicam em formas mais sutis
de discriminações, relacionadas ao Fator de Rejeição Pes-
soal com média entre 2,97 e 3,36. Já no que diz respeito ao
Fator Tratamento Injusto, que implica em comportamen-
tos de discriminação mais abertamente ofensivos, o item
que apresentou média mais alta foi “Você é tratado(a) com
menos respeito do que as outras pessoas?” (M=2,83), que
trata do desrespeito contra a PSR. No entanto, as maiores
médias nos itens de Rejeição Pessoal não significam que
não haja também discriminação abertamente ofensiva, ten-
do em vista que todos os itens referentes ao Tratamento
Injusto apresentaram médias acima de 2,0.
Tabela 01
Resultados dos itens da Escala de
Discriminação Cotidiana
Itens da Escala de Discriminação Cotidiana M DP Rara Ocasional Frequente
As pessoas insultam você? 2,20 1,84 41,3 27,0 30,8
As pessoas agem como se pensassem que
2,82 1,85 25,3 27,8 45,6
você não é inteligente?
Você é tratado(a) com menos simpatia do
2,62 1,88 31,6 26,6 40,9
que as outras pessoas?
A pessoas agem como se pensassem que
2,97 1,89 26,6 19,8 52,7
você é desonesto?
Você é tratado(a) com menos respeito do
2,83 1,95 29,5 19,8 49,4
que as outras pessoas?
Pessoas ameaçam ou provocam você? 2,00 1,86 44,3 26,6 27,8
As pessoas agem como se fossem
3,36 1,78 19,0 19,4 60,8
melhores do que você?
Em lojas, restaurantes, ou em outros ser-
viços, você é mais mal atendido(a) do que 2,57 2,03 36,3 18,1 44,7
as outras pessoas?
As pessoas agem como se tivessem medo
3,09 1,87 22,8 22,4 54,0
de você?
242
po discriminado. Corroborando essa interpretação, França e
Monteiro (2004) fazem uma revisão das formas de racismo,
distinguindo o preconceito flagrante, que seria mais explícito,
do preconceito sutil, que se caracteriza menos pela atitude
direta de discriminação e mais pela não expressão de emo-
ções positivas em relação ao exogrupo.
243
ponente do estigma não deve ser entendida como uma
atitude individual. Nesse sentido, Parker e Aggleton (2001)
chamam a atenção para a necessidade de evitar análises
individualizadas do estigma, que se tornaram comuns após
as análises de Goffman (1988).
244
eles pensam, tá entendendo? É assim (Alex)
245
Os processos de discriminação, nesse caso, são apontados
como decorrentes do fato de viver na rua combinado com
formas de discriminação racial, geracional e de orientação se-
xual. De forma geral, a pobreza e a discriminação impactam
na autorrelação dos indivíduos, que acabam interiorizando a
imagem negativa atribuída pelo restante da sociedade, a qual
os coloca como responsáveis pela sua condição de pobreza
(REGO; PINZANI, 2013).
246
dar e apoiar familiares doentes, o mais comum é que o estig-
ma e a discriminação contra pessoas com HIV e AIDS ocorra
dentro dos seus próprios lares (PARKER; AGGLETON, 2001).
247
tivas não conseguiu captar a discriminação racial, a divisão de
grupos por gênero demonstrou diferenças na média de discri-
minação. Nesse aspecto, a estigmatização em função da raça
está presente na população em situação de rua, pois, ao reali-
zarmos análises estatísticas considerando somente a amostra
de participantes homens, foi possível encontrar diferenças sig-
nificativas de percepção de discriminação cotidiana na com-
paração entre o homem branco e o homem negro em situa-
ção de rua. O Teste t de Student t(228)=-2,215; p>0,05) indicou
diferença estatisticamente significativa, demonstrando maior
média de discriminação social em homens negros (M=3,02;
DP= 1,36) em comparação aos homens brancos (M=2,42; DP=
1,26). Isso demonstra que, ainda que o estigma da situação de
rua pareça mais visível, a discriminação racial também deve
ser considerada como uma forma mais intensa de opressão.
Pertencer a mais de um grupo oprimido, como é o caso das
mulheres negras em situação de rua e usuárias de substâncias
psicoativas, implica em efeitos ainda mais devastadores em
termos de discriminação (SKOSIREVA, et al., 2014).
248
tizados que outros. Nesse sentido, a combinação das aná-
lises estatísticas e qualitativas indica que o rótulo “pessoa
em situação de rua” se conecta a outros estereótipos, re-
metendo a atributos como raça, gênero, pobreza, crimino-
so/a, drogado/a, orientação sexual, transtorno mental, HIV
e outras doenças. O fato de estar em situação de rua por si
só já implica uma significativa estigmatização, que se torna
ainda mais forte quando combinada com outros atributos
marcadores de opressão. Daí se explica a maior média de
Discriminação Cotidiana de alguns participantes da amos-
tra, tais como homens negros em comparação aos brancos,
soropositivos, pessoas com transtorno mental e outros.
249
seus consequentes processos ideológicos (PEREIRA; TORRES;
ALMEIDA, 2013). A Escala de Discriminação Cotidiana é um ins-
trumento importante na medida em que capta a percepção de
discriminação; no entanto, nem todas as situações de discri-
minações são necessariamente percebidas pelas pessoas em
situação de rua. Mendes, Ronzani e Paiva (2019), por exemplo,
encontraram relatos de uma pessoa em situação de rua que, a
princípio, afirmou nunca ter sofrido discriminação; no entanto,
ao longo de sua narrativa, trouxe vários exemplos de discrimi-
nação, como a recusa de um pedido de água ou comida ou a
invisibilidade relatada no fato de não ser vista por transeuntes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo almejou descrever a realidade de opressão vi-
venciada pelas pessoas em situação de rua de Fortaleza e
como achados mais proeminentes temos a confirmação da
discriminação como produtora de sofrimento para as pes-
soas em situação de rua; a rejeição pessoal como dimen-
são que se manifesta em hierarquização social; a relação
entre a rua e os estigmas vinculados à criminalidade como
reforçadores da naturalização do desrespeito àqueles que
vivem nas ruas; e o entrelaçamento entre a discriminação
pela condição de rua e outras de cunho estrutural, que to-
davia se mantém encobertas.
250
REFERÊNCIAS
AMORIM, A. K. A.; NOBRE, M. T.; COUTINHO, A. F. J.; OLIVEI-
RA, L. P. Direitos Humanos e População em Situação de Rua
Investigando Limites e Possibilidades de vida. In NOBRE, M.
T.; AMORIM, A. K. A.; MEDEIROS, F. C.; MATOS, A. C. V. Vozes,
imagens e resistências nas ruas. A vida pode mais. Natal:
EDUFRN, 2019.
251
é por isso que eu moro na rua. Os “sem-teto”: Moradores ou
transgressores?. Cadernos Metrópole., v. 16, n. 32, p. 609-
623, 2014.
252
Revista de Ciências Sociais, V.19, n.1, p. 82-104., 2019
253
254
15.
O
INTRODUÇÃO
preconceito contra grupos sociais específicos
é um traço cultural antigo e persistente na his- PAULO DE
MARTINO
tória humana. Reveste-se, por vezes, com fun- JANNUZZI
damentos religiosos, políticos e até mesmo
científicos para justificar a discriminação e a
violência contra aqueles que são vistos como
intrusos, inferiores ou diferentes. Pretos, indí-
genas, pessoas com deficiências, migrantes,
homossexuais e pobres foram e continuam
sendo alguns desses grupos sociais invaria-
velmente discriminados ao longo de séculos
em muitas sociedades (SOUZA, 2019).
255
editoriais e matérias da grande imprensa ao tratar do Bolsa
Família (LEITE et al, 2019) ou das ações afirmativas para in-
clusão no ensino superior (CAMPOS et al, 2013).
256
gerir que a sanha persecutória contra pobres, negros e ou-
tros grupos tem relação com o ritmo e a intensidade das
mudanças sociais ensejadas pelos “20 anos gloriosos” das
políticas públicas no país, em particular com programas
de natureza redistributiva.
257
POLÍTICAS PÚBLICAS E A
MOBILIDADE ASCENDENTE NOS
ANOS 2000
Embora intensa ao longo dos anos de formação urbano-in-
dustrial, a mobilidade social experimentada pela maior parte
dos trabalhadores do país foi de curto alcance. Como apontou
Pastore (1979), a mobilidade teria se concentrado na base da
pirâmide social, em que muitos ascenderam pouco e poucos
ascenderam muito, e ficado circunscrita aos grandes centros
urbanos do Centro-Sul, em especial São Paulo, Rio de Janei-
ro e Brasília. Para os volumosos fluxos de trabalhadores de
enxada que chegavam do campo, as oportunidades ocupa-
cionais acabaram se restringindo às ocupações de baixa re-
muneração e qualificação no mercado de trabalho urbano,
na prestação de serviços, nos serviços domésticos e na cons-
trução civil. Ainda assim, pelos efeitos do “Milagre Econômi-
co” do final dos anos 1960, metade – 52% – dos indivíduos
(homens, responsáveis dos domicílios, com idade entre 15 a
74 anos) tiveram trajetória ascendente no mercado de traba-
lho. Somente 4% dos indivíduos estava em posição pior na
escala sócio-ocupacional entre o primeiro emprego e aquele
então ocupado em 1982 (Gráfico 1).
258
diversificados, como os bancos comerciais e públicos e a in-
dústria metalmecânica paulista (JANNUZZI, 2002).
Gráfico 1
Indicadores de Mobilidade Social segundo
anos de levantamento
Chefes homens de 15 a 74 anos – Brasil 1982, 1996 e 2014
60.0%
52.0% 52.2%
50.0%
45.9%
44.1%
41.5% 39.7%
40.0%
30.0%
20.0%
12.6%
10.0% 8.1%
3.9%
0%
Ascendente Descendente Imóvel
259
gos que se registrou nos 17 anos entre 1985 a 2002. A recu-
peração dos investimentos públicos em infraestrutura, assim
como os privados, criou um volume expressivo de vagas na
Construção Civil em todo o país, abrindo oportunidade de
ocupações não apenas de baixa qualificação (como as de
serventes de obra), mas também ocupações de qualificação
média e técnica (como ladrilheiros, mestre de obras e técni-
cos de edificação). O setor foi fortemente influenciado pela
construção de moradias populares e equipamentos públi-
cos – escolas, postos de saúde, centros de assistência social,
praças esportivas etc. –; pela duplicação e recapeamento de
rodovias; e pelas obras de saneamento e pavimentação ur-
bana, com repercussões sobre os segmentos da economia
(CARVALHO, 2018; DWECK, 2019).
260
fermeiros, auxiliares de enfermagem, médicos e outros pro-
fissionais da Saúde, assistentes sociais, psicólogos e advoga-
dos nos Serviços Socioassistenciais, etc. Entre 2004 e 2014, o
número de servidores públicos municipais foi de 3,6 milhões
para 5,5 milhões, uma ampliação de 54%. Em municípios de
pequeno e médio porte (até 50 mil habitantes) a expansão
foi ainda maior, especialmente nas Regiões Norte (124%) e
Nordeste (61%) (DAPP, 2018).
261
Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, pela
implementação do Programa Universidade para Todos (Prou-
ni) e pela expansão do Fundo de Financiamento Estudantil
(Fies) (CAMELO et al, 2018).
262
as escolas do Sistema S e dos Institutos Federais, com elenco
de cursos mais aderentes às demandas dos mercados regio-
nais de trabalho (MONTAGNER; MULLER, 2015).
263
Tabela 1
Indicadores de Mobilidade social intrageracional
segundo estrato sócio-ocupacional
Chefes homens de 15 a 74 anos – Brasil 1982, 1996 e 2014 (%)
264
Teria sido possível tal mudança de perfil, sem a política de
cotas de raça/cor e de egressos de escola pública? Sem a
ampliação de vagas de Educação Básica e Ensino Médio
nas periferias e Brasil profundo sem as condicionalidades
do Bolsa Família e os recursos do Fundeb? Sem os em-
pregos criados pelo investimento público na construção
de creches, unidades de saúde, centros de referência da
Assistência Social? Sem as oportunidades criadas com as
vagas de Ensino Técnico e universidades pelo interior do
país, em especial no Norte e Nordeste?
Gráfico 2
Indicadores de Mobilidade social intrageracional
ascendente segundo raça/cor
Chefes homens de 15 a 74 anos – Brasil 1982, 1996 e 2014
90.0
80.0 77.4
70.0
57.0 56.3 59.4
60.0
47.7 48.9
50.0 45.4 44.3 46.0
41.8
40.0 36.4
33.1
30.0
20.0
10.0
0.0
Brancos Pretos Pardos Amarelos
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A intensidade da mobilidade sócio-ocupacional é um aspec-
to pouco destacado nas análises dos impactos das políticas
públicas no país entre 1994 e 2014. Talvez, frente a mudan-
ças sociais tão expressivas e tangíveis como a mitigação da
fome e a redução acentuada da pobreza, da desigualdade e
do trabalho infantil, a ascensão sócio-ocupacional de meta-
de dos brasileiros (em relação ao primeiro emprego) pareça
ser um resultado menos significativo. Não é. Trata-se de uma
reversão do padrão de mobilidade vivenciada anteriormente,
nos anos 1980 e 1990, não por acaso chamadas de “décadas
perdidas”, quando a imobilidade e o descenso sócio-ocupa-
cional haviam aumentado em relação ao período de forma-
ção urbano-industrial do país, dos anos 1940 aos 1970.
265
A reversão do padrão de mobilidade nos anos 2000 – em re-
lação ao observado nas décadas de 1980 e 1990 – está asso-
ciada à combinação virtuosa entre o dinamismo do mercado
de trabalho pelo país e as oportunidades criadas pelas políti-
cas públicas. Diretamente, contribuíram as políticas que am-
pliaram vagas nas escolas, públicas ou não, e as que favore-
ceram o acesso ao Ensino Técnico e Superior, como as ações
afirmativas e as de assistência estudantil. Indiretamente, tam-
bém foram fundamentais para chegada de mais jovens aos
anos finais do Ensino Médio, as políticas de Educação e Saú-
de, assim como de Assistência Social, aí incluído o programa
Bolsa Família. Essas políticas criaram, inclusive, significativas
oportunidades de trabalho pelo país, em locais onde o em-
prego informal no comércio ou nos serviços era um destino
inexorável para maioria de jovens.
266
O preconceito estrutural da sociedade brasileira, latente e
razoavelmente contido até final dos anos 2000, escapou da
lâmpada, do armário, da Caixa de Pandora e ganhou vida nas
mídias sociais e no cotidiano do país. Pobres, pretos e peri-
féricos passaram a ser constrangidos com maior frequência,
sem qualquer escrúpulo e, pior, com menor acesso a políti-
cas sociais protetivas.
REFERÊNCIAS
ANDIFES - Associação Nacional dos Dirigentes das Institui-
ções Federais de Ensino Superior. V Pesquisa Nacional de
Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos (as)
das IFES – 2018. Brasília, 2019.
267
Brasileira de Monitoramento e Avaliação, Brasilia,1: p. 66-
95, 2011.
268
255-278, jul./dez. 2002.
269
270
SOBRE OS AUTORES
ADOLFO PIZZINATO - Professor Adjunto do Departamen-
to de Psicologia do Desenvolvimento e da Personalidade da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: adolfopi-
zzinato@hotmail.com
271
CARLOS EDUARDO ESMERALDO FILHO - Doutor em Psico-
logia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Professor
do Centro Universitário Unifanor Wyden, membro do Nú-
cleo de Psicologia Comunitária (NUCOM) da UFC. Estuda
temas relacionados a Psicologia Comunitária, Pessoas em
situação de rua, Processos Psicossociais da Pobreza, Hu-
milhação, Vergonha, Estigma, Preconceito e Discriminação.
Email: cefilho@gmail.com
272
dade contemporânea” - UFC. Graduada em Psicologia pela
Unesp/Bauru, mestre em Educação e doutora em Filosofia
pela UFSCar. Pós-doutora em Filosofia pela UFABC. Coor-
denadora do Grupo de Pesquisa Nexos/NE (CPNq). E-mail:
deborahantunes@ufc.br
273
(Estados Unidos). Email: graziella.santos@ufsc.br
274
to de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psi-
cologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Coorde-
nador do VIESES: Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre
Violência, Exclusão Social e Subjetivação. Bolsista de Pro-
dutividade em Pesquisa Nível 2 do CNPq. Email: joaopaulo-
barros@ufc.br
275
editor do jornal Porantin e assessor de comunicação do Con-
selho Indigenista Missionário (CIMI-DF). E-mail: renato.rena-
to25@gmail.com
276
Acadêmicas da ABPN - Associação Brasileira de Pesquisado-
res Negros(as). E- mail: vera.rodrigues@unilab.edu.br
277
278