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JAMES FERREIRA MOURA JUNIOR ANTONIO AILTON DE SOUSA LIMA

ROCHELLY RODRIGUES HOLANDA DANIELE JESUS NEGREIROS


JAMES FERREIRA MOURA JUNIOR ANTONIO AILTON DE SOUSA LIMA
ROCHELLY RODRIGUES HOLANDA DANIELE JESUS NEGREIROS

AS INFORMAÇÕES CONTIDAS NOS CAPÍTULOS DESTA OBRA SÃO DE RESPONSABILIDADE


DOS AUTORES E DAS AUTORAS RESPONSÁVEIS.
AS IMAGENS APRESENTADAS NESTA OBRA FAZEM PARTE DO BANCO DE IMAGENS DA
MANDALA COMUNICAÇÃO.

FORTALEZA - CE
2022
CONSELHO EDITORIAL:
COORDENADORA
CAROLINA COSTA BERNARDO (UNILAB)

MEMBROS
TADEU LUCAS DE LAVOR FILHO (UFC)
JÉSSICA SILVA RODRIGUES (UFC)
ANTÔNIO FABIO MACEDO DE SOUSA (UFC)
MARIA APARECIDA ALVES SOBREIRA CARVALHO (UFC)
LUISA MARIA FREIRE MIRANDA (UFC)
NATACHA FARIAS XAVIER (UFC)
LARISSA FERREIRA NUNES (UFC)
LORENA BRITO DA SILVA (UFC)
ELÍVIA CAMURÇA CIDADE (UFC)
MÁRCIA KELMA DE ALENCAR ABREU (URCA)
ÉRICA ATEM GONÇALVES DE ARAÚJO COSTA (UFC)
BÁRBARA BARBOSA NEPOMUCENO (UFC)
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.

COORDENAÇÃO EDITORIAL
JAMES FERREIRA MOURA JUNIOR

REVISÃO DE TEXTO
MARCELA TOSI

NORMALIZAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
MANDALLA COMUNICAÇÃO & DESIGN

PLANEJAMENTO VISUAL
MANDALLA COMUNICAÇÃO & DESIGN
@mandallacomunicacao

PROJETO GRÁFICO, CAPA, LETTERINGS E DIREÇÃO DE ARTE


SÂMILA BRAGA

COLAGENS - ABERTURAS DE CAPÍTULOS E EDITORAÇÃO


THALIA SILVA

FICHA CATALOGRÁFICA

CATALOGADO POR DANIELE SOUSA DO NASCIMENTO CRB-3/1023

A939 AUTORITARISMO E PRECONCEITO [LIVRO ELETRÔNICO]: DISCUSSÕES


INTERSECCIONAIS
DE RAÇA, CLASSE E GÊNERO NO BRASIL / ORGANIZADORES, JAMES
FERREIRA
MOURA JÚNIOR ... [ET AL.]. – FORTALEZA: MANDALA, 2022.
277P. : IL. COLOR. ; 19 MB ; PDF
INCLUI BIBLIOGRAFIA.
ISBN 978-65-00-43987-8

1. AUTORITARISMO - BRASIL. 2. RACISMO. 3. PRECONCEITO –


ASPECTOS
SOCIAIS. I. MOURA JÚNIOR, JAMES FERREIRA. II. LIMA, ANTÔNIO
AILTON DE
SOUZA. III. HOLANDA, ROCHELLY RODRIGUES. IV. NEGREIROS, DANIELE
JESUS.
V. TÍTULO.

CDD 321.9
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
JAMES FERREIRA MOURA JR,ANTONIO AILTON DE
SOUSA LIMA, ROCHELLY RODRIGUES HOLANDA E
DANIELE JESUS NEGREIROS 08

01 DISSECANDO O BINÔMIO
AUTORITARISMO-PRECONCEITO:
UM CONVITE A LEITURA
CAROLINA MARIA COSTA BERNARDO 09

02 TEORIAS CONTEMPORÂNEAS
SOBRE O AUTORITARISMO E A
DOMINÂNCIA SOCIAL
FELIPE VILANOVA, DAMIÃO SOARES DE ALMEIDA-
SEGUNDO, JAMES FERREIRA MOURA JÚNIOR, ADOLFO
PIZZINATO E ANGELO BRANDELLI COSTA 13

03 PERSPECTIVAS SOBRE A
PERSONALIDADE AUTORITÁRIA
A PARTIR DO BRASIL: UM
DIÁLOGO
DEBORAH CHRISTINA ANTUNES E
ROCHELLY RODRIGUES HOLANDA 28

04 ENTRE DEUSES E
MONSTROS: ENSAIO
SOBRE NEOLIBERALISMO E
CONSERVADORISMO NO BRASIL
EM CRISE
FERNANDO SANTANA DE PAIVA E
MARIANA DE ALMEIDA PINTO 46

05
A PREMISSA DA NORMALIZAÇÃO
NO CONSERVADORISMO
BRASILEIRO: UMA ANÁLISE A
PARTIR DA MILITARIZAÇÃO DA
EDUCAÇÃO
IANA GOMES DE LIMA, RICARDO BOKLIS
GOLBSPAN E GRAZIELLA SOUZA DOS SANTOS 68
06 ANÁLISE PSICOSSOCIAL
DO BOLSONARISMO:
CONTRIBUIÇÕES DA LEITURA
DE IGNÁCIO MARTÍN-BARÓ
ACERCA DA VIOLÊNCIA NA
AMÉRICA LATINA
JOÃO PAULO PEREIRA BARROS, LUIS FERNANDO DE
SOUZA BENICIO E DAGUALBERTO BARBOZA DA SILVA 88

07 NEGACIONISMO, DEMOCRACIA
E A PANDEMIA DE COVID-19
NO BRASIL: QUANDO A
DESINFORMAÇÃO É ARMA DE
EXTERMÍNIO
JANAINA CAMPOS LOBO 108

08 “INDÍGENAS DESALDEADOS” E
“INDÍGENAS INTEGRADOS”: A
VIA ADMINISTRATIVA COMO
ESCALADA DE MEDIDAS DE
CONTRAVENÇÃO AOS DIREITOS
DOS POVOS INDÍGENAS NO
CONTEXTO PANDÊMICO DA
COVID-19
CAROLINE FARIAS LEAL MENDONÇA, RHUAN CARLOS
DOS SANTOS LOPES, CLAUDETE DA SILVA BARBOSA
TRUKÁ, FRANCISCO GLEIDISON CORDEIRO DE LIMA
KARÃO/JAGUARIBARAS E RENATO SANTANA 125

09 PROTAGONISMO NEGRO E
INCÔMODO BRANCO: DIÁLOGOS
INTER-RACIAIS NO CONTEXTO
UNIVERSITÁRIO DO BRASIL
CONTEMPORÂNEO
GEÍSA MATTOS E IZABEL ACCIOLY 148

10 DO LUTO À LUTA: ESTRATÉGIA


TEÓRICO-POLÍTICA DE
MOBILIZAÇÃO FEMININA E
NEGRA A PARTIR DO PROJETO
MULHERES NEGRAS RESISTEM
EM FORTALEZA- CE
MONA LISA DA SILVA E ARIADNE RIOS 168
11
MULHERES NEGRAS: FORMAS
DE RESISTÊNCIA CONTRA O
RACISMO E AUTORITARISMO
VERA RODRIGUES 180

12
“IDEOLOGIA DE GÊNERO” E
AUTORITARISMOS POLÍTICOS
JOÃO GABRIEL MARACCI-CARDOSO, DAMIÃO SOARES
DE ALMEIDA-SEGUNDO E ADOLFO PIZZINATO 192

13
ELITISMO, ENCARCERAMENTO
EM MASSA E AS DISPARIDADES
NO JULGAMENTO: TRAJETÓRIA
HISTÓRICA E TEORIAS
EXPLICATIVAS
DAMIÃO SOARES DE ALMEIDA-SEGUNDO, JAMES
FERREIRA MOURA JÚNIOR, ANGELO BRANDELLI COSTA
E ADOLFO PIZZINATO 214

14
PRÁTICAS DE OPRESSÃO,
ESTIGMA E DISCRIMINAÇÃO
VIVENCIADOS POR PESSOAS
EM SITUAÇÃO DE RUA EM
FORTALEZA
CARLOS EDUARDO ESMERALDO FILHO,
ANDRÉA FERREIRA LIMA ESMERALDO E
VERÔNICA MORAIS XIMENES 233

15
MOBILIDADE SOCIAL E O
PRECONCEITO CONTRA POBRES:
EVIDÊNCIAS DE UMA CHAVE
INTERPRETATIVA
PAULO DE MARTINO JANNUZZI 254

SOBRE OS AUTORES 271


APRESENTAÇÃO
ste livro é fruto do financiamento público pelo Edital
Universal 28/2018 executado pelo Ministério da Ciên- JAMES
cia, Tecnologia, Inovações e Comunicações – MCTIC e FERREIRA
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e MOURA JR
Tecnológico – CNPq. Entendemos que a organização
dos capítulos ao trazerem diferentes nuances sobre ANTONIO
autoritarismo no Brasil é um ato de resistência. Apesar AILTON DE
do recrudescimento da onda conservadora no país SOUSA LIMA
e da diminuição do financiamento para o desenvol-
vimento da ciência, conseguimos produzir uma obra ROCHELLY
com autores e autoras de diferentes instituições bra- RODRIGUES
sileiras com o compromisso de questionar os movi- HOLANDA
mentos conservadores, autoritários e preconceituo-
sos de parcela da sociedade. DANIELE
JESUS
Igualmente, temos contribuições que apontam es- NEGREIROS
tratégias de resistência para construção de uma
sociedade mais justa e menos hierárquica a partir
dos movimentos negros, feministas e indígenas.
Com ênfase em discussões sobre os marcadores
sociais de raça, classe e gênero, promovemos co-
nhecimento crítico e implicado com as realidades
sociais de pessoas que vivenciam processos de
opressão e subalternização.

Compreendemos que a produção de conhecimen-


to é coletiva, assim como as estratégias criadas
para desmantelar a estrutura autoritária da socie-
dade brasileira. Concebemos que o autoritarismo
se fundou no sistema colonial, assim repercutindo
ao longo dos séculos, no desenvolvimento dos pre-
conceitos que constituem as mais diversas formas
de opressão. Portanto, destacamos que tais aspi-
rações autoritárias resultaram no desenvolvimento Fortaleza e
de preconceitos que constituem o racismo, o sexis- Redenção,
mo, machismo, entre outros. Esperamos que essa Ceará,
obra possa fornecer insumos para o questionamen- Nordeste,
to dessa realidade violenta, assim como apontar Brasil,
caminhos e formas de existências mais igualitárias, 20 DE MARÇO
equitativas e justas. DE 2022
01.

C
otidianamente matam-se mulheres, pretos,
gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, traves- CAROLINA
MARIA COSTA
tis, pobres, indígenas, lideranças de movi- BERNARDO
mentos sociais, pessoas em situação de rua
e tantos mais. São mortes físicas e simbólicas
decorrentes da violência ou da negligência
de um Estado e de uma sociedade racistas,
sexistas, machistas e classistas. Cotidiana-
mente nos matam! Esse extermínio não só
do corpo, mas também do conhecimento e
da cultura pela negação das existências plu-
rais vem sendo denunciado há décadas por
diversas e atentas vozes de pesquisadoras
e pesquisadores que investigam as formas
como os autoritarismos e os preconceitos
sustentam a sociedade.

O presente livro é resultado de um precio-


so trabalho de dedicação ao entendimento
dos fenômenos sociais, históricos, políticos e
psíquicos daqueles que são alvo e daqueles
que são agentes das práticas autoritárias e
preconceituosas, bem como à análise destes
fenômenos em si. São 14 capítulos que nos
apresentam uma vasta abordagem contem-
porânea destes assuntos que afetam nossas
vidas de maneira não mais sustentável, como
foi em momentos da história humana.

O autoritarismo, presente nos sistemas to-


talitários e também fora deles, deu base ao
maafa africano, ao holocausto alemão e aos
“terrorismos” estadunidenses, para citar al-
guns exemplos. Práticas autoritárias estive-
ram lado ao lado da colonização, da higie-

10
nização, do controle social; das justificativas de eliminar
ameaças à segurança nacional, de fortalecer a economia,
de promover o bem-estar social.

Na contemporaneidade, estão presentes em governos como


o do atual presidente Jair Bolsonaro, no Brasil, e de Donald
Trump, nos Estados Unidos. São práticas explícitas nos dis-
cursos e nas ações que insultam os direitos civis e sociais;
difamam pessoas já marginalizadas por suas identidades de
classe, gênero, raça, sexo; ridicularizam as desigualdades eco-
nômicas; ameaçam a democracia; promovem o ódio; criam
desinformação; justificam-se em nome de Deus; e mostram
intolerância e irritação em resposta a qualquer questiona-
mento sobre suas condutas.

Os exemplos das condutas de chefes de Estado são refleti-


dos nas diversas formas relacionais da sociedade, envolven-
do indivíduos e instituições. São dolorosas as experiências de
quem está sob os agenciamentos das práticas autoritárias e
preconceituosas nas esferas da vida individual e/ou coletiva:
se você é mulher e está diante de um homem; se você é um
homem gay e está diante de um homem cis hetero; se é pre-
to e está diante de um branco; se está em grupo de jovens da
periferia e entra em shoppings de bairros da elite; se é pro-
gressista e está diante de um conservador. Nessas e em tan-
tas ocasiões, você, provavelmente, vivenciará tensionamen-
tos e conflitos classistas, sexistas e raciais resultantes de uma
ordem imposta pelas discriminações diretas e indiretas que
ocorrem no campo do público ou do privado.

Os preconceitos nas relações humanas naturalizam exclusão,


segregação e desigualdades porque são corriqueiramente
tratados apenas como opiniões individuais, generalizadas,
apressadas, desfavoráveis, hostis, sem fundamento sobre al-
guém ou um grupo que não se conhece. Conceitualmente, o
preconceito é isso, julgar e fazer juízo de valor de um fenô-
meno, pessoa ou coisa sem conhecer.

Contudo, se olharmos atentamente para as situações nas


quais os preconceitos sistematicamente se manifestam,
observamos práticas discriminatórias motivadas por con-
ceitos de ódio, repúdio, nojo, intolerância e indiferença.

11
Estas impõem desvantagens àqueles e àquelas que são
classificados pelo ideal de pureza (o padrão hegemônico
localizado historicamente no tempo e no espaço) como os
estranhos e/ou os impuros. São os indivíduos com maior
presença nas trágicas estatísticas de exclusão, morte, fome,
evasão escolar, desemprego, assassinato.

As condutas preconceituosas e autoritárias contra os estra-


nhos e/ou impuros (mulheres, pretos, gays, lésbicas, traves-
tis, pobres, indígenas) não são reações às meras opiniões
individualizadas, mas sim aos conceitos contra aqueles que
o poder hegemônico “autoriza” –por meio de suas institui-
ções – conceituar, eliminar, matar, excluir (seja simbolica-
mente ou materialmente). Estamos diante de um problema
que precisa ser denunciado, não somente na perspectiva
do mal às vítimas, mas principalmente na perspectiva dos
agenciamentos do opressor (seja ele o sistema, ou a es-
trutura, ou as pessoas).

Quem é o autoritário, a autoritária, o preconceituoso e a pre-


conceituosa dentro das relações sociais, institucionais, pesso-
ais? Qual grupo racial, de gênero, de classe, de sexo gerencia
as práticas discriminatórias com base nos preconceitos para
a manutenção dos privilégios materiais e simbólicos? Quais
são os instrumentos do racismo, do conservadorismo, do mi-
litarismo, do neoliberalismo, do negacionismo, do elitismo
utilizados para a manutenção dos conceitos contra pessoas
e grupos sociais específicos?

Não podemos mais não saber, não conhecer, não nos im-
plicar e não reconhecer os problemas decorrentes das prá-
ticas autoritárias e preconceituosas. Um Estado se faz por
instituições e por pessoas que agem na estrutura. Este livro
nasce do desejo de abordar, a partir de várias perspecti-
vas das Ciências Humanas, as evidências sutis e escancara-
das das violências e opressões que tornam nossa sociedade
desigual e injusta. Por isso, reúne artigos que nos ajudam
a aprofundar o conhecimento para construir os caminhos
de lutas e de resistências frente à urgente necessidade de
transformação social e humana.

12
13
02.

INTRODUÇÃO

U
m dos principais temas investigados no
FELIPE
campo da Psicologia Social desde o século VILANOVA
XX é o preconceito e seus preditores (ADOR-
NO et al., 1950). Em meio às tentativas de DAMIÃO SOARES
compreendê-los, diversos estudos condu- DE ALMEIDA-
SEGUNDO
zidos entre os anos 1950 e 1990 apontaram
que diferentes formas de preconceito eram JAMES FERREIRA
perpetradas simultaneamente pelos mes- MOURA JÚNIOR
mos indivíduos (ex., ALLPORT, 1954; BIERLY,
1985). Dificilmente um indivíduo tinha atitu- ADOLFO
PIZZINATO
des negativas apenas em relação a estran-
geiros, por exemplo. Em geral ele também
tinha atitudes negativas em relação a gays, ANGELO
BRANDELLI
lésbicas, bissexuais, negros e até mesmo COSTA
roqueiros (ADORNO et al., 1950; DUCKITT,
2001). Convencionou-se então chamar de
preconceito generalizado a tendência a ter
sentimentos negativos em relação a diver-
sos grupos simultaneamente (DUCKITT; SI-
BLEY, 2007; HADARICS; KENDE, 2018; HOD-
SON; MACINNIS; BUSSERI, 2017).

A partir dos anos 1990 alguns estudos co-


meçaram a apontar que havia duas atitudes
sociais que juntas explicavam até 50% da va-
riância do preconceito generalizado em dife-
rentes países (MCFARLAND; ADELSON, 1996;
SIBLEY; ROBERTSON; WILSON, 2006): o Au-
toritarismo de Direita (ALTEMEYER, 1981) e a
Orientação à Dominância Social (PRATTO et
al.,1994). O Autoritarismo de Direita é uma
atitude social composta por três dimensões

14
(DUCKITT et al., 2010): o Tradicionalismo, definido como a
tendência a apoiar padrões e valores morais tradicionais (ex.,
castidade); o Conservadorismo ou Submissão à Autoridade,
definido como a tendência a se submeter de maneira acrítica
a autoridades em geral (ex., líderes políticos); e o Autoritaris-
mo, definido como a tendência a apoiar medidas punitivas
severas (ex., pena de morte). Já a Orientação à Dominância
Social pode ser definida como uma atitude social que reflete
um desejo de manutenção de hierarquias sociais nas relações
intergrupais (SIDANIUS et al., 2001).

Por serem atitude sociais, o Autoritarismo de Direita e a Orien-


tação à Dominância Social podem apresentar diferenças a
depender do contexto social investigado. Por exemplo, se
examinada nos Estados Unidos, a correlação entre Orienta-
ção à Dominância Social e apoio à agressão é significativa-
mente diferente de quando é avaliada entre árabes (HENRY
et al., 2005). De maneira similar, o Autoritarismo de Direita
apresenta uma quantidade diferente de dimensões no con-
texto brasileiro quando comparado ao contexto americano.
Enquanto nos Estados Unidos ele é composto por três dimen-
sões, no Brasil ele é composto por quatro dimensões (VILA-
NOVA et al., 2020): Tradicionalismo; Submissão à autoridade;
Autoritarismo; e Contestação à autoridade. A última dimen-
são é específica do contexto brasileiro e avalia a tendência a
protestar, desafiar e contestar autoridades no geral.

A RELAÇÃO ENTRE AUTORITARISMO


DE DIREITA, ORIENTAÇÃO
À DOMINÂNCIA SOCIAL, E
PRECONCEITO
Em 2001, foi proposto um modelo teórico que integrou o
Autoritarismo de Direita e a Orientação à Dominância Social
na relação com o preconceito: o Modelo do Processamento
Dual Cognitivo-Motivacional da Ideologia e do Preconceito
(em inglês, Dual Process Motivational Model of Ideology and
Prejudice) (DUCKITT, 2001). O seu objetivo inicial era inves-
tigar os efeitos complementares e específicos que o Auto-
ritarismo de Direita e a Orientação à Dominância Social têm
sobre o preconceito generalizado. Entretanto, conforme os

15
estudos foram avançando, o objetivo inicial foi extrapolado
e a concepção de preconceito generalizado foi modificada.

Por meio de estudos utilizando análise fatorial (ex., ASBRO-


CK; SIBLEY; DUCKITT, 2010; DUCKITT; SIBLEY, 2007), con-
cluiu-se que embora diferentes formas de preconceito es-
tivessem correlacionadas em algum grau, os sentimentos
em relação a alguns grupos tendiam a se correlacionar sig-
nificativamente mais do que a outros. Por exemplo, os sen-
timentos em relação a terroristas tendiam a se assemelhar
mais aos sentimentos em relação a traficantes de drogas do
que em relação a pacientes psiquiátricos (DUCKITT; SIBLEY,
2007). Formava-se assim conjuntos distintos de alvos do
preconceito, tendo sido proposta a existência de trÊs des-
ses conjuntos (DUCKITT; SIBLEY, 2017): (i) o conjunto com-
posto por grupos percebidos socialmente como perigosos
(ex., terroristas e membros de gangue); (ii) o conjunto com-
posto por grupos percebidos socialmente como dissidentes
(ex., feministas e manifestantes); e (iii) o conjunto compos-
to por grupos percebidos socialmente como degenerados
(ex., pacientes psiquiátricos e desempregados).

Buscando atingir o objetivo inicial do modelo, investigou-


-se como o Autoritarismo de Direita e a Orientação à Do-
minância Social prediziam o preconceito em relação a cada
conjunto. Concluiu-se que o preconceito em relação ao con-
junto de grupos percebidos como perigosos era exclusiva-
mente predito pelo Autoritarismo de Direita, o preconceito
em relação ao conjunto de grupos percebidos como dege-
nerados era exclusivamente predito pela Orientação à Do-
minância Social e o preconceito em relação ao conjunto de
grupos percebidos como dissidentes era predito por ambas
as atitudes sociais (DUCKITT; BIZUMIC, 2013; SIBLEY et al.,
2010). A razão para cada atitude ter predito o preconceito
diferentemente reside em seus objetivos motivacionais, isto
é, o que se busca atingir por meio do Autoritarismo de Di-
reita ou da Orientação à Dominância Social.

O objetivo motivacional do Autoritarismo de Direita é a ma-


nutenção da segurança coletiva (DUCKITT; BIZUMIC, 2013).
Por isso, o conjunto dos grupos que mais tendem a ameaçá-
-la (isto é, os grupos percebidos como perigosos) tende a ser

16
alvo de preconceito de quem tem altos níveis de autoritaris-
mo. Já o objetivo motivacional da Orientação à Dominância
Social é a manutenção da dominância e do poder sobre ou-
tros grupos (DUCKITT; SIBLEY, 2017). Por isso, o conjunto dos
grupos que mais deixam nítida a assimetria de dominância
(isto é, os grupos percebidos como degenerados) tendem a
ser alvo de preconceito de quem tem altos níveis desta atitu-
de. O conjunto dos grupos dissidentes tende a ser alvo tanto
de quem tem altos níveis de autoritarismo quanto de quem
tem alta Orientação à Dominância Social porque alguns gru-
pos dissidentes podem ameaçar a segurança coletiva (ex.,
manifestantes) e outros podem deixar nítida a assimetria de
dominância (ex., feministas). Eses grupos podem portanto
ser alvo tanto de quem tem altos níveis de Autoritarismo de
Direita quanto quem tem altos níveis de Orientação à Domi-
nância Social (DUCKITT; SIBLEY, 2007).

No caso do Autoritarismo de Direita, além do objetivo geral,


cada uma de suas dimensões tem um objetivo motivacional
específico (DUCKITT et al., 2010). A dimensão Tradicionalis-
mo tem o objetivo motivacional de manutenção da morali-
dade tradicional, a fim de evitar mudanças sociais abruptas
que gerem insegurança com relação aos valores sociais ade-
quados. A dimensão Submissão à autoridade tem o objetivo
motivacional de manter a coesão e a harmonia social, a fim
de evitar mudanças sociais que ameacem o consenso social.
Por fim, a dimensão Autoritarismo tem o objetivo motiva-
cional de manter o controle social coercitivo, a fim de evitar
ameaças diretas à segurança e ao bem-estar social. A partir
de cada objetivo motivacional específico seria possível hipo-
tetizar quais dimensões do Autoritarismo de Direita predizem
preconceito em relação a quais conjuntos de grupos. Todavia,
não há muitos dados acerca de qual dimensão prediz pre-
conceito em relação a quais conjuntos de grupos (para um
exemplo, ver DUCKITT; BIZUMIC, 2013).

PREDITORES DO AUTORITARISMO
DE DIREITA E DA ORIENTAÇÃO À
DOMINÂNCIA SOCIAL
Além de investigar o que o Autoritarismo de Direita e a Orien-

17
tação à Dominância Social predizem, os estudos do Modelo
do Processamento Dual Cognitivo-Motivacional da Ideologia
e do Preconceito buscaram investigar o que antecede e pre-
diz essas duas atitudes. Foi proposto que crenças de que o
mundo é um lugar perigoso e imprevisível são preditores sig-
nificativos do Autoritarismo de Direita (DUCKITT et al., 2002).
Por meio de experiências ao longo da vida de socialização
que reforçam que o mundo é um lugar ameaçador, instável
e inseguro, os níveis de autoritarismo do indivíduo tendem
a aumentar e se manter estáveis ao longo do tempo (SIBLEY;
DUCKITT, 2013). Já a Orientação à Dominância Social tende
a ser significativamente predita por crenças de que o mundo
é um lugar competitivo em que os fortes vencem e os fracos
perdem (DUCKITT et al., 2002). Assim, experiências ao longo
da vida de socialização que reforçam a importância da vitó-
ria, da dominância e do poder sobre os outros, tendem a au-
mentar os níveis de Orientação à Dominância Social e man-
tê-los estáveis (SIDANIUS; PRATTO, 1999).

Não apenas as experiências ao longo da vida de socialização


tendem a aumentar os níveis das atitudes sociais. Manipu-
lações experimentais que aumentam a percepção de que o
mundo é perigoso também podem aumentar o nível de Au-
toritarismo de Direita, assim como manipulações experimen-
tais que aumentam a percepção de que o mundo é competi-
tivo tendem a aumentar o nível de Orientação à Dominância
Social (DUCKITT; FISHER, 2003; ONRAET; DHONT; VAN HIEL,
2014; PERRY; SIBLEY; DUCKITT, 2013). Como as atitudes pre-
dizem preconceito, é possível que também os níveis de pre-
conceito sejam influenciados pelo aumento da percepção de
perigo e de competição. Entretanto, ainda não há estudos
experimentais investigando o processo de mudança da per-
cepção, de mudança dos níveis das atitudes sociais e de sua
reverberação no preconceito.

As experiências ao longo da vida de socialização tendem a


impactar não só os níveis das atitudes sociais como também
formar diferentes traços de personalidade. Hipotetiza-se que
alguns traços de personalidade tendem a estar mais relacio-
nados ao Autoritarismo de Direita e à Orientação à Domi-
nância Social. No caso da teoria dos Cinco Grandes Fatores
da Personalidade (Abertura a novas experiências; Conscien-

18
ciosidade; Neuroticismo; Amabilidade e Extroversão; COSTA;
MCCRAE, 1992) há três traços que se sobressaem: a Abertura
a novas experiências, a Conscienciosidade e a Amabilidade. A
Abertura a novas experiências (definida como gosto por ex-
periências novas e não convencionais) e a Conscienciosidade
(definida como organização e disciplina) tendem a impactar
os níveis de Autoritarismo de Direita (DUCKITT; SIBLEY, 2017).
Um indivíduo com baixa Abertura e alta Conscienciosidade
tende a apresentar altos níveis de autoritarismo porque tais
traços refletem a preferência por ordem, estrutura, estabili-
dade e segurança (COSTA; MCCRAE, 1992). Tais preferências
estão diretamente relacionadas às bases motivacionais do au-
toritarismo (DUCKITT et al., 2010), motivo pelo qual a relação
entre autoritarismo e personalidade é encontrada. Já a Ama-
bilidade (definida como lealdade, generosidade e modéstia)
tende a impactar os níveis de Orientação à Dominância So-
cial. Um indivíduo com baixa Amabilidade tende a apresentar
altos níveis de Orientação à Dominância Social porque bai-
xos níveis desse traço refletem a falta de humildade e de so-
ciabilidade grupal (COSTA; MCCRAE, 1992). Leva-se por sua
vez à crença de que o mundo é um lugar competitivo onde
se deve buscar vencer e ocupar posições socialmente domi-
nantes a qualquer custo.

COMO INVESTIGAR O MODELO DO


PROCESSAMENTO DUAL COGNITIVO-
MOTIVACIONAL DA IDEOLOGIA E DO
PRECONCEITO NO BRASIL
A fim de investigar o modelo no contexto brasileiro, é neces-
sário utilizar instrumentos adaptados e validados que men-
surem cada um dos seus componentes. Para mensuração do
Autoritarismo de Direita no Brasil é recomendado o uso da
versão proposta por Vilanova et al. (2018), que consiste em
uma adaptação para o contexto nacional do instrumento pro-
posto por Duckitt et al. (2010). Os quatro componentes do
Autoritarismo de Direita no contexto brasileiro são avaliados
por esse instrumento: Tradicionalismo (ex., As pessoas deve-
riam ter os seus próprios estilos de vida mesmo se isso torná-
-las diferentes do resto da sociedade, VILANOVA et al., 2018,
p.1316); Submissão à autoridade (ex., Nossos líderes deveriam

19
ser obedecidos sem questionamento, VILANOVA et al., 2018,
p.1316); contestação à Autoridade (ex., Estudantes de colégios
e universidades devem ser encorajados a desafiar, criticar e con-
frontar autoridades, VILANOVA et al., 2018, p.1315) e Autori-
tarismo (ex., Do jeito que as coisas estão indo nesse país, serão
necessárias medidas severas para endireitar os meliantes, os
criminosos e os pervertidos, VILANOVA et al., 2018, p.1315).
A validade e a fidedignidade do instrumento já foram ates-
tadas por estudos transversais (VILANOVA et al., 2018; VILA-
NOVA; KOLLER; COSTA, 2019) e longitudinais (VILANOVA et
al., 2019), sendo adequada para utilização no Brasil.

Já a Orientação à Dominância Social pode ser mensurada por


meio da versão proposta por Vilanova et al. (no prelo) da es-
cala SDO7. Ela consiste em uma versão adaptada do instru-
mento proposto por Ho et al. (2015), que é contrabalanceada
com itens pró e contra traço. Alguns exemplos de itens são:
Deveríamos fazer o possível para assegurar condições iguais
para os diferentes grupos e Alguns grupos de pessoas são sim-
plesmente inferiores a outros na sociedade (VILANOVA et al.,
no prelo). A medida também apresentou bons índices de va-
lidade e fidedignidade (VILANOVA et al., no prelo), sendo
adequada para utilização no contexto nacional.

Quanto aos conjuntos de grupos alvos de preconceito pro-


postos pelo modelo, recomenda-se a utilização do instru-
mento proposto por Cantal et al. (2015). O estudo buscou
avaliar se os conjuntos de grupos alvos de preconceito
propostos internacionalmente (DUCKITT; SIBLEY, 2017) se-
riam reproduzidos no Brasil. Chegou-se à conclusão de
que o conjunto de grupos percebidos socialmente como
perigosos é composto no contexto brasileiro por Pessoas
que fazem nossa sociedade perigosa para outros, Crimino-
sos violentos, Motoristas bêbados, Pessoas que ameaçam a
segurança da nossa sociedade, Membros de gangue, Trafi-
cantes de drogas, Políticos e Pessoas que se comportam de
maneira imoral. Já o conjunto de grupos percebidos so-
cialmente como dissidentes é composto por Pessoas que
criticam as autoridades, Manifestantes, Pessoas que causam
discórdia em nossa sociedade, Ateus, Ativistas dos direitos
homossexuais, Feministas, Prostitutas e Ambientalistas. Por
fim, o conjunto de grupos percebidos socialmente como

20
degenerados é composto por Pessoas pouco atraentes fi-
sicamente, Pessoas obesas, Pessoas que simplesmente não
estão no padrão esperado de aparência ou desempenho, Pa-
cientes psiquiátricos, Deficientes mentais, Pessoas que sim-
plesmente parecem ser “perdedores”, Pessoas desemprega-
das e Nordestinos. Deve-se apresentar estes grupos aos
participantes e pedir que avaliem, em uma escala Likert de
1 (sentimentos muito negativos) a 7 sentimentos muito po-
sitivos), quão positivos ou negativos são seus sentimentos
em relação a esses grupos. O modelo proposto apresen-
tou bons índices de ajuste aos dados (CANTAL et al., 2015),
sendo adequada para utilização no contexto brasileiro.

Outra possibilidade é utilizar escalas que mensurem precon-


ceito contra grupos específicos em vez das dimensões do
preconceito generalizado. Alguns exemplos são a Escala de
Racismo Moderno (SANTOS et al., 2006), a Escala de Precon-
ceito de Classe (ALMEIDA SEGUNDO, 2019), a Escala Revisada
de Preconceito contra a Diversidade Sexual e de Gênero (COS-
TA et al., 2016), a Escala de Atitudes Negativas sobre Afemina-
ção (RAMOS; CERQUEIRA-SANTOS, 2019) e o Inventário de
Sexismo Ambivalente (FORMIGA; GOUVEIA; SANTOS, 2002).
Assim, pode-se testar o poder preditivo do Autoritarismo de
Direita e da Orientação à Dominância Social em relação ao
preconceito contra grupos minoritários específicos.

Em relação à avaliação da percepção do mundo como peri-


goso ou competitivo, ainda não há instrumentos adaptados
para o contexto brasileiro que mensurem esses construtos.
Recomenda-se a adaptação do instrumento proposto por
Perry, Sibley e Duckitt (2013), que apresentou evidências
de validade e fidedignidade mais robustas em compara-
ção a outras versões (ex., PERRY; SIBLEY, 2010). Ele é com-
posto por 10 itens que avaliam crenças de que o mundo é
perigoso (ex., Any day now chaos and anarchy could erupt
around us. All the signs are pointing to it. Em português: O
caos e a anarquia podem eclodir a qualquer momento. To-
dos os sinais estão apontando nessa direção) e 10 itens que
avaliam crenças de que o mundo é competitivo (ex., The-
re is really no such thing as “right” and “wrong”. It all boils
down to what you can get away with. Em português: Não
há “o certo” e “o errado”. No fim, tudo se resume a qual

21
vantagem você é capaz de conseguir). Por meio de sua
adaptação será possível avaliar, no contexto brasileiro, o
impacto da crença de que o mundo é perigoso no Autori-
tarismo de Direita e o impacto da crença de que o mundo
é competitivo na Orientação à Dominância Social.

Por fim, o último componente do modelo a ser considera-


do é a personalidade. Recomenda-se que, caso haja tempo
suficiente disponível, utilize-se o Inventário de Personalida-
de Neo Revisado (COSTA; MCCRAE, 2007), composto por
240 itens que avaliam os Cinco Grandes Fatores da Perso-
nalidade. Caso o tempo disponível seja reduzido, recomen-
da-se a utilização dos Marcadores Reduzidos para a Avalia-
ção da Personalidade no Modelo dos Cinco Grandes Fatores
proposto por Hauck Filho et al. (2012). Ambas as medidas
apresentam evidências de validade e de fidedignidade no
contexto brasileiro, podendo ser utilizadas para avaliar seus
impactos no modelo. Como a maior parte dos estudos sobre
o modelo utilizaram os traços de personalidade dos Cinco
Grandes Fatores, recomenda-se a utilização deles também
no contexto brasileiro, a fim de aumentar a comensurabili-
dade com os estudos internacionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em conclusão, o Modelo do Processamento Dual Cogniti-
vo-Motivacional da Ideologia e do Preconceito propõe uma
articulação entre conjuntos de grupos alvos de preconceito,
atitudes sociais e traços de personalidade. Por meio de expe-
riências ao longo da vida de socialização, determinadas cren-
ças sobre o mundo e determinados traços de personalidade
vão sendo formados e posteriormente impactam o precon-
ceito em relação a conjuntos de grupos socialmente percebi-
dos como perigosos, dissidentes e degenerados. Há diferen-
tes instrumentos que podem ser utilizados para a condução
de pesquisas acerca do modelo no contexto brasileiro, sendo
uma área promissora para estudos futuros.

Algumas questões podem ser elencadas como direções para


estudos futuros sobre o Modelo do Processamento Dual Cog-
nitivo-Motivacional da Ideologia e do Preconceito. Evidente-
mente não se busca fazer uma lista exaustiva de problemas

22
de pesquisa que poderiam ser investigados, mas alguns de-
les poderiam ser: Qual o impacto de cada componente do
Autoritarismo de Direita em cada conjunto de grupos alvo
de preconceito proposto pelo modelo? Os membros da po-
pulação LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis) são situa-
dos em qual conjunto de grupos alvo de preconceito? Dado
que a maioria dos estudos sobre o modelo foram conduzi-
dos com adultos, os resultados apontados pela literatura se
mantêm quando adolescentes são investigados?

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27

27
03.

INTRODUÇÃO

A
Personalidade Autoritária” é o título de uma
obra fruto de uma extensa pesquisa empírica DEBORAH
CHRISTINA
sobre o preconceito nos Estados Unidos da ANTUNES
América nos anos 1940. Frente ao crescimen-
to do antissemitismo, a ideia dessa pesquisa ROCHELLY
remonta os anos 1930 e ao surgimento do RODRIGUES
HOLANDA
Instituto de Pesquisas Sociais dentro da Uni-
versidade de Frankfurt, em torno do qual um
grupo de intelectuais surgiu em busca de re-
fletir as contradições de uma época em que,
a despeito das condições materiais para a su-
peração de uma vida de escassez, adere sub-
jetivamente ao mal. Esse grupo de intelectu-
ais ficou conhecido como Escola de Frankfurt,
muito embora não formassem exatamente
uma escola de pensamento em sentido es-
trito. Com a expansão do nazismo na Euro-
pa, esses intelectuais se exilaram nos Estados
Unidos para onde migraram o Instituto du-
rante a Segunda Guerra Mundial e onde de-
ram continuidade às pesquisas sobre o clima
cultural de uma sociedade capaz de fomen-
tar de modo objetivo e subjetivo violências,
discriminações, preconceitos contra grupos
minoritários específicos que a integram. Tais
elementos surgiram não apesar da organiza-
ção da sociedade, mas justamente por conta
de ela ser como é, a ponto de carregar em si
mesma uma sempre latente (ou não tão la-
tente assim) possibilidade de holocausto.

Esse estudo financiado pelo American-Jewish


Committee, realizado pelo Instituto de Pesqui-

29
sa Sociais em parceria com o Grupo de Pesquisa sobre Opi-
nião Pública da Universidade da Califórnia em Berkeley, re-
cebeu inúmeras críticas quando da época de sua publicação:
sua cientificidade foi colocada em questão pela aproximação
com a psicanálise por uma perspectiva positivista de ciência,
sua criticidade foi questionada pela utilização de metodolo-
gias quantitativas por aqueles que apontavam aí uma con-
tradição com os pilares da Teoria Crítica da Sociedade, sua
metodologia e possibilidade de generalização dos resultados
foram questionados pelos grupos escolhidos como sujeitos
da pesquisa e seus resultados foram questionados por quem
gostaria de continuar com sua crença de que o antissemitis-
mo e toda a barbárie a ele vinculada eram fenômenos exclu-
sivamente alemães (SMITH, 1954; 1997; WOLFE, 2005).

Ainda hoje há aqueles que acreditam que apenas se pode


chegar a resultados confiáveis sobre um fenômeno se o pes-
quisar desde dentro de sua manifestação mais extrema. A isso,
Adorno (1995) respondeu em certa ocasião que muito pior
do que o antissemitismo declarado e manifesto é aquele que
persiste na democracia e arruína, assim, sua potencialidade
de realização, tornando os campos de concentração realida-
des não reconhecidas, mas ainda existentes nas chamadas
sociedades democráticas. Afinal, subúrbios, guetos, favelas,
periferias, comunidades marginais porque lançadas sempre
para mais distante das cidades gentrificadas, onde o Estado
realiza seus massacres, chacinas, genocídios cotidianamente
não são a sobrevivência persistente dos campos de concen-
tração? Ou ainda, não são os campos de concentração o re-
flexo mais exato de uma sociedade que se organiza pela es-
cassez, pobreza, discriminação, luta pela sobrevivência?

Na América Latina, mais especificamente no Brasil, há quem


questione a leitura de uma obra estadunidense produzida em
coautoria por um intelectual alemão como uma das chaves
para a busca de compreensão sobre as nossas bases autori-
tárias do preconceito de raça, de classe e de gênero. Soaria
tanto como um anacronismo, quanto como uma forma de
dar continuidade à nossa colonização intelectual. É preciso
reconhecer, contudo, que, como argumentaram Gandler, Ruíz
e Cargnelutti (2021), esta teoria provavelmente não teria re-
sistido se não fosse nas Américas: tanto porque foi na condi-

30
ção de exilados – nas cidades de Nova Iorque e San Diego e
no México – que puderam desenvolver suas teses mais mar-
cantes, quanto porque a retomada do projeto de uma Teoria
Crítica na Europa foi impedida pelas tendências políticas e
sociais atuais e é na América Latina que grande parte desse
trabalho ainda resiste.

Porém, a resistência desse trabalho, de maneira potente, quer


dizer, como possibilidade de resistência à barbárie que per-
siste aqui e agora – o que inclui nossas Universidades – é co-
dependente da forma como nos aproximamos e elaboramos
suas ideias a partir das nossas terríveis e dolorosas experiên-
cias de autoritarismo em todas as esferas da vida. É na supe-
ração desse autoritarismo que perpassa as produções inte-
lectuais, como promessa, que realizamos nossas reflexões a
seguir na maneira de um diálogo.

O diálogo como forma de criação de conhecimento foi esque-


cido pela tradição cientificista. Se ele nos remonta aos gregos,
como Sócrates e sua paideia (há quem diga que os diálogos
foram uma lição de Diotima cujo conceito de Eros também
foi o assumido por Sócrates no Banquete), também nos re-
monta, de modo mais próximo, às sabedorias dos povos tra-
dicionais, ao tempo da elaboração e da experiência frente ao
que nos acontece. A escuta necessária, o silêncio carregado
de saber, o dizer com e como quem vive o pensamento. Vi-
vendo esse pensamento nos propomos aqui caminhar juntas
na direção dessa construção, sem figuras de autoridade, mas
como composições que em sua tessitura buscam fazer surgir
nossa realidade a partir tanto de nossas leituras filosóficas,
quanto de nossas leituras sobre nosso mundo. Esse diálogo
é um diálogo real, que realizamos dentro das possibilidades
de uma cotidiano de trabalho remoto durante o segundo ano
de pandemia de Covid-19 e terceiro de governo Bolsonaro,
época de intensificação da experiência de barbárie e sofri-
mento nas diversas dimensões da vida no Brasil.

***
DEBORAH - Venho nos últimos anos acompanhando o que
apenas na aparência se mostra como ascensão de práticas
de violência contra diversas parcelas da população brasilei-

31
ra: indígenas, mulheres, negros, LGBTQIA+... Digo aparência,
porque essas práticas não são propriamente recentes. É com
profunda tristeza, mas não surpresa, que olho para nossa in-
feliz realidade política e social atual. Quando iniciei meus es-
tudos sobre “A Personalidade Autoritária”, fui instigada pela
minha incompreensão a respeito de situações de preconceito
que vivenciei muito jovem por ser mulher e esses estudos me
lançaram para uma compreensão mais ampla da sociedade
em que vivemos. Naquela época, em que realizei meus estu-
dos de graduação, não havia espaço para as questões sobre
o feminismo, o movimento negro, o movimento LGBTQIA+
ou o movimento indígena. O caminho possível era recorrer
àquilo que figuras de autoridade do norte global já haviam
pensado sobre as questões do preconceito. Você sabe que
hoje a situação é um pouco diferente, porque essas questões
têm ganhado também cada vez mais espaço na Universida-
de, o que pra mim mostra ainda a potência de uma compre-
ensão dialética e materialista da história.

ROCHELLY - Confesso que não lembro o que veio primeiro:


a vivência de situações de preconceito ou me perceber como
alguém que poderia ser preconceituosa. Por que, no fim das
contas, também é isso: estudar sobre a personalidade auto-
ritária é se perceber enquanto alguém que, em alguma ou
várias medidas, também é preconceituoso, autoritário... Sou
uma mulher branca, cisgênero, lésbica e de uma classe so-
cial mais baixa. Como se fala isso? Parece muita informação,
mas se a gente não faz esse exercício de dizer de onde vem,
parece que todo mundo vem dos mesmos lugares, tem as
mesmas histórias e não é disso que se trata.

DEBORAH - Eu demorei para entender o que vivi ali tão cedo


como preconceito, misoginia. Mas, olhando em retrospecto,
vejo claramente que aquelas experiências me levaram aos
estudos sobre “A Personalidade Autoritária”. Nesses estudos
pude também compreender que o preconceito é a forma de
sociabilidade na qual estamos todas inseridas e que a perso-
nalidade autoritária é um espectro do qual é - quase - impos-
sível fugir. E eu penso também que a saída não é bem a fuga,
mas ficar um pouco mais com essas coisas que nos compõem,
porque de outro modo não conseguimos elaborar e sem ela-
boração - sem esse trabalho nosso enquanto sujeitas (e não

32
meramente sujeitadas) - não conseguimos dar um salto para
outra forma de estar no mundo. Talvez isso seja um trabalho
de uma vida inteira.

ROCHELLY - Encontrei na graduação a permissividade de


poder me entender sem tantas amarras, mas, ao mesmo
tempo, parece que quanto mais fico nesse lugar, mais en-
xergo contradições. Eu entrei na faculdade em 2012, em
2013 parece que as pessoas se moveram juntas para as
ruas: “Não são só 0,20 centavos!”. Pensei que todo mundo
ali entendia tudo, menos eu. Mas fui. E o que veio depois
entendi menos ainda. O que aconteceu? Em que ponto fi-
cou comum sentir tanto ódio, tanta raiva? Contra quem
esse sentimento é direcionado? Quando tudo deu errado
no Brasil? Fiz essa pergunta num curso que facilitei esses
tempos... Achei que iam me responder que foi em 2013,
2016, afinal tivemos um golpe, né? Me responderam: “Deu
errado desde 1500”. Acho que têm razão.

DEBORAH - Se você encontrou essa permissividade na gra-


duação, teve mais sorte do que eu, porque a Universidade da
minha época era quase que exclusivamente burguesa e real-
mente passamos alguns anos tentando mudar isso. A busca
por se entender – e entender o mundo – sem tantas amarras
não existe sem o enfrentamento dessas contradições. Espe-
cialmente em uma sociedade que brada tanto pela ideia de
coerência, possivelmente para escamotear as próprias inco-
erências. Quem busca a coerência a todo custo violenta a si
mesma. Eu me lembro de quando conversamos em 2013 so-
bre o que parecia ser um aumento de manifestações de dis-
cursos de ódio na internet naquele contexto do “passe livre”,
foi uma conversa importante para percebermos que aquilo
não era bem o início desse ódio, mas um espaço onde o ódio
estava tendo abertura para aparecer sem disfarces, depois de
algum tempo restrito às “piadas” em rodas de amigos após
nossa “(re)abertura democrática”.

ROCHELLY - O Brasil virou o país do ‘mimimi’, não é? Escu-


tei um vizinho falar isso. Na verdade, ouvi de vários. Esse
ódio que antes aparecia disfarçado, como você bem disse,
agora tomou fôlego. Na verdade, tenta tirar o nosso direito
de respirar e de existir. Na época dessa nossa conversa não

33
entendia tão nitidamente como agora que a internet não
era o único fator novo para o crescimento desse ódio. Nun-
ca tinha viajado de avião, sabe? E achei que seria muito di-
ferente, até foi, mas coincidentemente em 2013 viajei pela
primeira vez e foi estranhamente familiar. Ouvi sotaques
como o meu viajando para o outro lado do país. Vi pessoas
de tantas cores e visivelmente tão nervosas quanto eu, era
tudo novidade. Da poltrona de trás no saguão do aeropor-
to escutei uma mulher dizer: ‘’É, isso agora parece uma ro-
doviária’’. Que absurdo, quem disse que pobre pode viajar
de avião? O tom indignado das ruas em 2013, na Copa de
2014, no golpe em 2016 não foi uma resposta sobre a cor-
rupção política. Se isso fosse levado em conta não teríamos
o atual presidente eleito... A insatisfação naquele momen-
to foi com uma parcela populacional historicamente vulne-
rabilizada que começou a dividir a sala de aula com o filho
do grande empresário. Foi com pessoas alçando patamares
não vistos até então. Muita coisa caminhou desde que você
esteve na graduação, mas esse ambiente permissivo à di-
versidade ainda tem muitos problemas. Portas foram aber-
tas, oportunidades foram facilitadas, mas parece que até no
lado mais progressista das ideias, o pensamento preconcei-
tuoso resiste e de um modo nada velado.

DEBORAH - Não acredito que tenha havido crescimento do


ódio. Penso que ele sempre esteve ali, mas encontrou no-
vas vias de manifestação online. Me lembro bem das piadas
sexistas, racistas e homofóbicas que escutava dos adultos
nas confraternizações quando criança. Isso era década de
1980, 1990… período em que havíamos saído recentemen-
te de uma ditadura, que deixa marcas objetivas e subjeti-
vas nas pessoas. A vida na ditadura fomenta determinadas
estruturas subjetivas que precisam de tempo para serem
sobrepostas por outras necessárias à democracia. História
é processo, e processo de construção, e a Psicologia é ne-
cessária à história. Em termos psíquicos e formativos, temos
um papel essencial aqui na criação de uma nova realidade
que ainda não conseguimos realizar.

ROCHELLY - Você relembra a ditadura como memória ainda


viva e só penso sobre isso há relativamente pouco tempo. Na
verdade, durante a escola falavam desse período só como

34
mais um evento histórico. Evento parece ter a sonoridade de
algo que acontece de forma atípica, não? Eventual. Só que
essa forma de tratar a história como não sendo nossa, o não
reconhecimento do nosso passado, o hábito de estudar mais
sobre a Europa do que sobre nosso país contribui pra isso.

DEBORAH - Bom, eu nasci já no final da ditadura e essa me-


mória também foi uma coisa que fui construindo posterior-
mente, porque eu de fato não vivi aquele tempo. A dificuldade
de compreender o tempo histórico é algo que eu experien-
ciei e que percebo na maioria das pessoas. Sem dúvida essa
é uma questão formativa importante, porque a história nos
tem sido transmitida como uma coleção de fatos e datas sem
vida que parecem ter pouco a ver com o que se vive no pre-
sente. Compreender o presente à luz do passado é funda-
mental para tecermos o que desejamos como futuro.

ROCHELLY - Você quer dizer, elaborar? Talvez por não con-


seguir elaborar esse trauma, ele segue mais vivo do que
muitos de nós.

DEBORAH - Exatamente isso. Elaborar nosso passado tem o


potencial de impedir sua recorrente reprodução, que é o que
tem acontecido por aqui desde do início da colonização des-
se espaço geográfico que recebeu o nome de uma commo-
dity, uma mercadoria: Brasil; e isso já diz muito...

ROCHELLY - Parece que por aqui é permitido sentir orgulho


da tortura, da violência, do preconceito…

DEBORAH - Sim, isso diz do processo que nos permitiu che-


gar, enquanto sociedade, no que nos tornamos hoje. Da re-
lação estabelecida com a terra, com a natureza, com outras
formas de vida, de existência e de cultura. Uma relação pau-
tada desde o início na dominação, na violência, no autorita-
rismo e que nos impede de muitas formas de viver como um
povo, uma comunidade. Historicamente não nos formamos
cidadãos, mas mão de obra escravizada e consumidores alie-
nados de uma forma de vida fabricada e imposta. E sem ci-
dadãos não existe democracia.

ROCHELLY - Passei um tempo pensando nisso e faz senti-


do, até porque quem é chamado de cidadão nesse país, o

35
“cidadão de bem”, é justamente aquele que mais se adequa
a essa forma de vida fabricada. Tem coisa mais assustadora
que cruzar com um sujeito que se diz um “cidadão de bem”?
Que se diz em favor de um modelo patriarcal de sociedade,
de família? Que se orgulha em dizer que “bandido bom é
bandido morto”?

DEBORAH - A expressão popular “cidadão de bem” é inte-


ressante para ser analisada. Ela parte do pressuposto de seu
oposto, o cidadão de mal. Veja, não é o bom cidadão versus
o mau cidadão - o que seria ser um bom cidadão não é colo-
cado em questão e exigiria uma reflexão ética mais profun-
da que parece não acontecer. Se ser um cidadão diz de al-
guém que habita o espaço das cidades, em um estado livre,
gozando de direitos civis e políticos, a ideia de bem se refere
a ideia de algo devido, conveniente, apropriado… Podemos
entender que é alguém que está “de bem”, “em paz”, e não
“em guerra” com o modo de vida dessa sociedade e trabalha
em prol de sua manutenção.

ROCHELLY - O “bem” e o “mal” parecem um maniqueísmo


suficientemente superficial para manipular qualquer discus-
são atualmente. Sempre existe um inimigo que coincidente-
mente é alguém que faz parte da estrutura social hierarqui-
zada que mantém privilégios desses “cidadãos”, defensores
de uma suposta “moral” e dos “bons costumes”.

DEBORAH - Me parece que essa ideia de “moral e bons cos-


tumes” é bastante superficial e não tem de fato um elemen-
to ético e político na direção de estabelecer ou pensar a vida
na sociedade brasileira a partir do que nos formou e do que
produzimos aqui e agora, mas somente de reproduzir o jogo
da dominação, da violência, da desigualdade e da miséria.

ROCHELLY - Parece que a superficialidade é justamente o arti-


fício que torna essas ideias como algo de fácil adesão, sempre
como defesa a uma suposta ameaça, um novo (velho) inimigo.

DEBORAH - De fato, desde o início da colonização – na qual


os jesuítas e a moral cristã tiveram um papel fundamental
– os povos originários eram a ameaça à expansão do po-
derio da mentalidade da dominação, foram tornados inimi-
gos e acusados de todo tipo de imoralidade e “pecado”. E

36
para “salvar” essas terras de sua depravação, exerceram eles
mesmos – e continuam exercendo – os mais horríveis atos
de barbárie, genocídio.

ROCHELLY - A todo custo as mesmas práticas de precon-


ceito e opressão são atualizadas como herança de um país
que se nega a elaborar sua própria história, já falamos dis-
so. Aqui se come macaxeira, angu, tapioca, se ouve samba
e se joga capoeira. Rezamos para santas e saudamos os ori-
xás. A padroeira do Brasil é negra, mas aqui também negam
que seja rainha. No fim das contas, quem consegue se sal-
var nesse país?

DEBORAH - Estaremos sempre em perigo de extermínio en-


quanto não conseguirmos elaborar nosso passado, entender
como chegamos no ponto em que chegamos e o que fazer a
partir de então. Se a personalidade autoritária é uma estrutura
subjetiva formada por sedimentos da nossa cultura e socieda-
de, essa elaboração é de fundamental importância para o ad-
vento de novas subjetividades incapazes de fazer o mal.

ROCHELLY - É mais “fácil” adaptar-se ao modo de produção


da vida estruturado a partir dos interesses de quem é privi-
legiado e assim direcionar ódio a quem tenta escapar dessa
lógica. Nossas subjetividades parecem moldadas tanto para
autoconservação a todo custo quanto para contribuir com
a manutenção de uma sociedade desigual, denunciando e
odiando tudo que foge do que é pré-determinado.

DEBORAH - Às vezes, eu penso que estamos todos tentando


escapar, dos mais aos menos adaptados. A autoconservação
em cada um parece se manifestar de diferentes maneiras, in-
clusive como destruição.

ROCHELLY - Fico preocupada porque acredito que você


tem razão. Talvez o desafio seja reconhecer nossas contra-
dições, nossos preconceitos, não com a ilusão de que se-
ria fácil superá-los, mas entendendo que esse reconheci-
mento é necessário para que seja possível algum avanço.
Não adianta pensar que só estar no campo “progressista”
das ideias é o suficiente; afinal, aqui também encontramos
(muitos) preconceitos e nada velados. A crítica a essa es-
trutura social e subjetiva é urgente, ainda que seja de di-

37
fícil compreensão. Quem fica confortável encarando seus
próprios demônios? Eu não fico.

DEBORAH - Talvez seja por isso que, embora um clássico da


psicologia social, “A personalidade autoritária” seja um livro
tão pouco lido. Ele foi muito criticado na época da sua publi-
cação, mas entre as inúmeras contribuições que nos traz está a
ideia de que a personalidade autoritária não é algo referente a
um ou outro indivíduo, e sim um espectro do qual é difícil es-
capar, no qual, em alguma medida, todas e todos estamos. A
ideia de estrutura aqui é relevante, porque vemos como o au-
toritarismo se relaciona muito mais intensamente com a forma
de pensamento e ação, do que com seu conteúdo. Enfrentar
nossos demônios é urgente, como eu disse em outra ocasião,
é lutar contra nós mesmas a favor de nós mesmas…

ROCHELLY - Um dos maiores desafios para isso também, a


meu ver, é reconhecer que além de ser um clássico publica-
do há mais de 70 anos, é uma obra dolorosamente atual. Es-
sas características potencialmente autoritárias permanecem
em nós. É a percepção nítida de que falhamos e continuamos
repetindo os mesmos erros, de que não adianta avanço téc-
nico-científico se não vislumbramos uma sociedade verda-
deiramente livre. Toda vez que a luta por direitos humanos
avança um passo, a resposta conservadora tenta, e por vezes
consegue, fazer com que sejam retrocedidos outros dez.

DEBORAH - E é por isso que o pensamento dialético continua


atual, vivemos numa sociedade composta por suas contradi-
ções, que precisam ser denunciadas para serem superadas.
Desejamos uma vida livre das ameaças que impedem nos-
sa sobrevivência, mas agimos na contramão disso, matando
nossos irmãos e irmãs, nossa fauna e nossa flora e a possibi-
lidade de qualquer vida em nosso planeta.

ROCHELLY - Tenho a sensação de que nem sabemos o que


de fato é ter uma vida livre, isso dificulta ainda mais as coisas.
O modelo de democracia na qual vivemos é a imposição da
colonização, então a democracia é muito mais parecida com
um aprisionamento do que com a liberdade.

DEBORAH - Esse é um argumento perigoso… lembra que o


pensamento antidemocrático se utiliza exatamente dos “pro-

38
blemas” da democracia para tentar aboli-la?

ROCHELLY - Lembro sim... Mas também fico


com Marcuse na cabeça, principalmente com
aquele texto que vez ou outra a gente discu-
te sobre Tolerância Repressiva. Muitas coisas
são toleradas dentro do ambiente democráti-
co, justificadas com outro argumento perigoso
como o da “liberdade de expressão”, que por
vezes acaba sendo usado como permissivida-
de ao ódio e ao preconceito. Não desacredito
da importância de vivermos uma democracia,
mas penso que há necessidade de repensar-
mos e reestruturarmos essa democracia.

DEBORAH - Ótimo você lembrar desse tex-


to! Porque o correspondente político da to-
lerância repressiva é o que ele chama de “se-
midemocracia”, “democracia de organização
totalitária” ou ainda “democracia totalitária”.
Me lembro que no artigo “Tolerância e de-
mocracia hoje”, eu abordei essa questão, na
medida em que Marcuse denuncia o caráter
falso do que é considerado democracia no
capitalismo. Ele fala em semidemocracia não
no sentido de uma democracia pela metade,
mas de uma falsa democracia que dificulta
ou, sendo ela uma barreira concreta, impede
a realização de uma democracia verdadeira,
no mesmo sentido da ideia de semiforma-
ção (Halbbildung) em Adorno. Se a demo-
cracia é um tipo de governo no qual a von-
tade geral é suprema, a semidemocracia se
baseia na falsa-consciência como forma de
consciência geral.
Uma parte dessa
fala foi retirada
literalmente de:

ROCHELLY - A democracia que vivemos hoje ANTUNES, D.


C. Tolerância e
é parte da colonização. Existiram outras for- democracia hoje:
o discurso de
mas de sociedade/Estado até então e a de- deputados em

mocracia, em parte (não posso dizer até que


defesa da posição
conservadora.
ponto), serve ao interesse do capital. O capita- Psicologia &
Sociedade (Online).
lismo é desigual, é desumanizante, é a estru- v.28, 2016. p. 07.

39
tura permissiva ao ódio e ao preconceito, isso retroalimenta
o autoritarismo e vice-versa. Daí se a gente não faz uma crí-
tica radical, como você bem coloca, não dá pra avançar.

DEBORAH - Eu diria que a democracia formal – aquela que


se realiza tão somente pelo voto –, dentro de uma orga-
nização burguesa de Estado, serve sempre ao sistema e à
sua manutenção, ainda que de formas renovadas. Mas eu
tenho a impressão de que se perguntarmos às pessoas o
que é uma democracia, elas não saberão responder… E isso
porque existe uma diferença entre a ideia abstrata de de-
mocracia – ou de democracias possíveis – e a democracia
realizada aqui e agora.

ROCHELLY - Ou as pessoas lembram dos gregos, que é outro


momento histórico e outro modo de existência, ou lembram
da estrutura parlamentar, dos três poderes e etc. Só que re-
almente é abstrato, não diz da nossa realidade e dos desafios
que enfrentamos. Talvez por isso seja tão “fácil” se apropriar
falaciosamente do que seria idealmente uma democracia.

DEBORAH - A democracia não é ainda algo que de fato


exista em toda sua possibilidade, ela é um processo de
construção contínuo.

ROCHELLY - Afinal, na democracia cabem todos os pensa-


mentos e opiniões, não é? Democracia é isso?

DEBORAH - Essa é uma pergunta de difícil resposta… Na de-


mocracia totalitária esses pensamentos e opiniões – muitos
dos quais atentam contra a vida, a sociedade e a própria hu-
manidade – são reflexos daquele processo de semiformação
ao qual estamos a todo momento submetidos. Acho mui-
to difícil que se nos deixássemos pensar por nós mesmos
conceberíamos, por exemplo, a possibilidade de matar uma
pessoa por ela ter afetos diferentes de uma dita “maioria”,
por ela amar alguém do mesmo sexo, por exemplo. O ódio
é resultado desse processo violento que nos impossibilita de
exercermos todo nosso potencial humano.

ROCHELLY - Muito tem se falado de uma doutrinação nas es-


colas, mas por tudo que tem acontecido, acho que essa não
é bem a palavra. Talvez seja apagamento, silenciamento... De

40
narrativas históricas plurais que com muito sangue e sofrimen-
to alicerçaram o país que comemora ditadores e genocidas.

DEBORAH - Chamam de doutrinação qualquer pensamento


que vai de encontro às próprias doutrinas… E sim, penso que
o objetivo aí é evitar narrativas que concorram historicamente
e que coloquem em risco a história contada pelos grupos he-
gemônicos. Mas é importante e sempre válido lembrar nos-
so dever de “pentear a história a contrapelos”, como indicou
Benjamin, recuperar aquilo que está na base, mas não apare-
ce e ao mesmo tempo é fundamental para compreendermos
a sociedade em que vivemos. Isso é parte de uma educação
sensível e política (e a sensibilidade é política) importante
para um trabalho de realizar uma história de superação do
pensamento e da ação antidemocráticos no Brasil.

ROCHELLY - Não tem jeito, a gente sempre retorna à questão


da educação, mas acho que não tem como escapar disso. Se
a gente questiona que tipo de educação temos construído
e que tipo de pessoas ela tem formado, não gostamos das
respostas, basta olhar ao redor e pra nós mesmas. Eu gosta-
ria de ter sido educada para desobediência, não para silen-
ciar frente a injustiças ou para não as questionar; a lição que
a gente aprendeu na escola é outra.

DEBORAH - O silenciamento em relação às injustiças é fruto


tanto do medo, quanto da dessensibilização frente às dores
do outro e aos nossos sofrimentos. Esse medo é uma ferida
emocional gerada pela frustração nos nossos primeiros e ta-
teantes processos de conhecer o mundo… Ele nos impede a
abertura a novas experiências e possibilidades de existência.
Vejo aqui uma aproximação importante entre os processos
educativos e a Psicologia.

ROCHELLY - A Psicologia tem mesmo um papel relevante


para essa elaboração histórica, mas também temos acompa-
nhado a disputa dentro do próprio Conselho Federal de Psi-
cologia por uma representação em favor do cerceamento de
direitos humanos para parcelas minoritárias, tais como das
pessoas LGBTQIA+. Você bem sabe disso, analisou o discur-
so da Câmara de Deputados em busca da aprovação daque-
le Projeto de Decreto Legislativo 234/2011 que visava alterar

41
o Código de Ética do Psicólogo e, se alterado, abriria espaço
para terapias de “reorientação sexual”, a “cura gay”. A gente
pensa que esse tipo de discurso sempre está mais longe, em
Brasília, outro estado, outra região, mas não. Estudei com vá-
rios religiosos, eles se formaram, muitos terminaram a facul-
dade defendendo que a homossexualidade seria uma pato-
logia. Eu ouvi isso mais de uma vez. Claro, nem sempre tem
a ver com religião, mas muito tem a ver com intolerância.

DEBORAH - Há quem diga que o brasileiro é um povo cordial,


mas essa cordialidade, como bem lembrou certa vez a Maria
Rita Kehl, tem muito pouco, ou quase nada, a ver com uma
cultura pacifista. Na realidade, ela se realiza como a transfor-
mação da política em espaço privado de garantia de privilé-
gios e perpetuação das desigualdades, dos preconceitos e de
uma cultura do ódio ao negro, aos LGBTQIA+, às mulheres,
aos povos originários e a todas aquelas pessoas que pode-
riam sinalizar formas diferentes de existência.

ROCHELLY - Gostaria de encerrar nossa conversa tendo


uma perspectiva melhor para o futuro. Parece exaustivo,
ainda mais com tudo que a gente tem passado. Claro, sou
consciente dos meus privilégios, sei que não tenho vivido
da forma que coloca ainda mais em risco a grande maioria
da população brasileira. Todos os dias somos bombarde-
adas por crises, violências, falta esperança. Há quem diga
que a criticidade é pessimismo. Aprendi contigo que é jus-
tamente a partir dela que podemos ser otimistas, pensar
novos mundos, outras possibilidades de existência, mas
confesso que não tenho conseguido.

DEBORAH - É com ironia que sempre digo que quem acre-


dita que vivemos no melhor dos mundos é que é pes-
simista. A verdade é que apontar para as contradições
desse mundo é tornar o incômodo visível. É uma forma
de defesa acusar aquele que mostra o incômodo de ser
o próprio incômodo e assim o fazer calar. Mas a gente é
capaz de transformar a história e escrevê-la em outra di-
reção, e somente quando nos recusamos obstinadamen-
te a ignorar a realidade.

ROCHELLY - E mesmo agora as pessoas acreditam que o

42
grande problema é somente a Covid-19, se sentem saudo-
sas de uma realidade que já era muito problemática e que
não vai ser superada com o fim da pandemia, pelo contrário.
A natureza e a humanidade têm sido destruídas pelo capi-
talismo e por nós e, no fim das contas, tudo se esgota. Se
cabe ter esperança de algo, espero que possamos romper a
cordialidade com a barbárie cotidiana dos nossos tempos,
permissiva à violência, ao ódio e ao preconceito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O crescimento e a difusão de posições políticas autoritárias
incitam que tenhamos de nos contrapor politicamente a
esse fenômeno e, ao mesmo tempo, que possamos com-
preendê-lo enquanto estrutura social que demanda refle-
xão crítica e histórica em profundidade. Não é recente a
compreensão de que o contexto social e político é decisi-
vo para a expansão do autoritarismo (ADORNO; HORKHEI-
MER, 1985; ADORNO et al.,1969), mas a análise de carac-
terísticas psíquicas apresentadas em indivíduos que se
identificam e anseiam por relações de poder baseadas na
força bruta e na opressão é parte essencial à compreensão
da mentalidade potencialmente fascista. Nesse sentido, a
Psicologia é fundamental à História. Ao traçar uma “tipolo-
gia” da personalidade autoritária, ainda que com ressalvas
e valorosas discussões sobre a limitação e a complexidade
desse termo, Adorno et al. (1969) propõem uma aborda-
gem dinâmica e social para conceitualizar a confusa per-
sonalidade humana em sua diversidade, de acordo com
sua própria estrutura, a fim de compreendê-la em profun-
didade (ADORNO, 2019).

Assim, por meio do nosso diálogo, buscamos nos aprofun-


dar nas percepções que nos sensibilizam enquanto mulhe-
res latino-americanas privilegiadas pela branquitude, em di-
versidade de orientação sexual, classe social e histórias de
vida, que dialogam com a produção e a reprodução de pre-
conceitos a partir dos privilégios que reconhecemos em nós
mesmas. Uma postura assumidamente crítica, inclusive sobre
si, é ponto importante de reflexão sobre o quanto individu-
almente aderimos a ideologias mais ou menos autoritárias,
especialmente aquelas que nos privilegiam. É preciso ela-

43
borar configurações sociais cujas potencialidades superem a
tendência fascista. Para tanto, é necessário estudar o reflexo
dessas dinâmicas intrínsecas à nossa subjetividade, visto que,
na mesma medida, reside em nós também a antítese para a
mimese que busca autoconservação a qualquer custo.

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RA, N. (org). Quatro textos seletos. Araraquara/São Carlos:
Unimep/UFSCar, 1992.

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44
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ZUIN, A. A. S. A dialética socrática como paideia irônica. Re-


vista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 89, n.
221, p. 11-29, jan./abr. 2008.

45

45
46
04.

O
INTRODUÇÃO
velho mundo agoniza, um novo mundo tarda
a nascer, e, nesse claro-escuro, irrompem os FERNANDO
SANTANA DE
monstros” (Antonio Gramsci) PAIVA

O presente ensaio tem por objetivo suscitar MARIANA DE


algumas reflexões sobre o processo de radi- ALMEIDA PINTO
calização do modelo neoliberal, que ocorre
articulado à ascensão de discursos e práticas
conservadoras no Brasil e em outras partes do
globo. Nossa análise é pautada na importân-
cia de articularmos o debate sobre a matriz
econômica, atravessada pela agenda de aus-
teridade fiscal e privatizações, em consonância
com a produção de subjetividades funcionais
à manutenção de um modo de (re)produção
social, que têm sido instrumentalizado pelo
discurso autoritário. O autoritarismo ganhou
um espaço ainda maior no cenário político e
social a partir da ascensão da extrema-direita
nos últimos tempos. Enfatizamos, sobretudo,
o papel desempenhado pelo neopentecos-
talismo de resultados, que tem contribuído
para fortalecer uma ética neoliberal pautada
no individualismo e na defesa de uma agenda
conservadora e neofascista, bem como tem
exercido sua influência, dentre inúmeros es-
paços, no âmbito da política de assistência
social em nosso país. Por fim, ressaltamos os
efeitos deletérios desta nebulosa articulação
na vida dos sujeitos oriundos das classes su-
balternas, tendo em vista o aprofundamento,
mesmo que não determinista, de posturas fa-
talistas e imediatistas que dificultam a cons-

47
trução de alternativas à ordem vigente.

RADICALIZAÇÃO NEOLIBERAL EM
UM BRASIL NADA DISTÓPICO
The Handmaid`s Tale – O conto da Aia é uma série televisiva
que foi lançada no ano de 2017. Trata-se de uma narrativa
distópica que nos apresenta o grande império estaduniden-
se transformado em Gilead – Estado teocrático e militarizado
–, ancorado em uma tacanha interpretação do velho testa-
mento bíblico. O contexto de emergência deste novo modo
de governo está ligado a uma crise de moralidade que fora
interpretada por uma facção religiosa como sendo um mal
a ser extirpado e que que estava ligado ao declínio ético da
vida no país. Nesse sentido, após um atentado terrorista que
ceifa a vida do presidente dos Estados Unidos, esse grupo re-
ligioso assume o poder e instaura um Estado de horror, vio-
lento e autoritário direcionado a todas e todos considerados
desviantes e anormais, sendo ainda reservado um espaço de
maior crueldade para as mulheres. A personagem principal,
Offred, interpretada pela atriz Elizabeth Moss, assume o pa-
pel de uma “handmaid”, que teria a função de procriar para
manter os níveis demográficos da população.

Apesar de ser uma realidade ficcional, baseada em um livro


de Margareth Atwood, publicado em 1985, curiosamente a
série fora lançada um ano após a eleição do presidente Do-
nald Trump nos Estados Unidos, defensor de uma agenda na-
cionalista e conservadora nos costumes, com forte apoio de
setores afinados a um discurso racista, LGBTQIAfóbico e mi-
sógino. Daí, ao sermos apresentados a essa história em tem-
pos tão nebulosos, paira no ar aquele ditado: a vida é capaz
de imitar a arte? Ou seria o contrário? Pois bem, alguns incô-
modos evocados pelo cenário atual têm levado expectadores
mais sensíveis e conscientes a refletirem sobre o movimento
que congrega um apelo à moral retrógrada como esteio para
se viver, em associação à radicalização do sistema neoliberal,
que conclama o apelo a uma pretensa liberdade de se deixar
explorar pelo mercado como forma mais exitosa para se vi-
ver no âmbito da sociedade capitalista vigente.

Em uma de suas célebres frases, um dos mais importantes

48
intelectuais neoliberais do século XX, o economista e filóso-
fo austríaco Friedrich Hayek advertira-nos certa vez sobre a
necessidade de edificarmos uma sociedade onde impere a
ordem sem a necessidade de condução. A incorporação de
uma ordem que representa uma ética de vida sem contes-
tação pode dizer respeito a um mecanismo de subjetivação
próprio do sistema neoliberal (e do próprio capitalismo em
geral), que contribui na produção não apenas de um novo
modo de produção econômica, mas associa-se, sobretudo,
à edificação de uma nova sociabilidade, e, portanto, na fa-
bricação de um novo sujeito a partir da instauração de uma
nem tão nova razão do mundo (DARDOT; LAVAL, 2016).

Já há algum tempo, Marx nos advertira que não existe uma


mercadoria para o sujeito, mas em verdade, o que há no ca-
pitalismo é a emergência de um sujeito da mercadoria, sinali-
zando para um tipo de fetichização que comparece nas rela-
ções entre sujeito-sociedade e entre sujeito-sujeito. O lugar
estratégico conferido aos sujeitos no bojo da sociedade ne-
oliberal atual também é objeto de análise do filósofo sul-co-
reano Byung-Chul Han (2020), que aponta para um emara-
nhado de estratégias psicopolíticas de poder em marcha, em
que impera o discurso de um sujeito que seja empreendedor
de si, que se autoexplora (leia-se: “desenvolve a si próprio”);
um sujeito que precisa correr riscos e não se acomodar para
melhor se adaptar às exigências deste mundo em mutação.
Individualismo e competividade, bem como a virtualização
das relações humanas, são outros elementos que se entrela-
çam e aprofundam os ditames do capitalismo da espoliação
que gera cansaço e esgotamento físico e subjetivo, segundo
o referido autor. Mas não nos preocupemos! O boom de es-
tabelecimentos farmacêuticos nas cidades “certamente” pro-
piciará uma resposta saudável aos nossos anseios, bem como
a eficiência das psicologias, psiquiatrias e neuroconhecimen-
tos alienantes e conformistas de nossa época! Amém!

Ademais, ainda na esteira das premissas que sustentam uma


racionalidade neoliberal, Brown (2020), ao analisar acurada-
mente o pensamento de Hayek e Friedamm, aponta como
há um rechaço à ideia de social e mesmo da própria polí-
tica como elementos essenciais para a produção de cami-
nhos para o homem em sociedade. Na medida em que o

49
indivíduo é tomado como o centro essencializado de certa
potência de vontade, a ideia de social é esvaziada de senti-
do. Não necessitamos do Outro! Apenas para uso, abuso e
bel-prazer! Em relação à política, impera a necessidade de
seu desmantelamento, de sua negação e enfraquecimento.
Esse sentimento antipolítica é tipicamente observado em
modelos de governo autoritários, em que a dimensão polí-
tica de nossa existência é subsumida à modelos de gover-
nos draconianos e antidialógicos. Ou seja, prevalece a pre-
missa de que o confronto e a disputa de ideias que ocorre
no cenário político não deve ser estimulada, em detrimento
à imposição de uma única estética de existência.

Nesse sentido, alguns dos ilustres patronos do neoliberalismo


não observam uma contradição aparente entre a edificação
de um governo institucionalmente autoritário, aos moldes das
ditaduras cívico-militares vivenciadas no continente latino-a-
mericano – sendo a ditadura imposta por Augusto Pinochet no
Chile um caso exemplar -, e a tão almejada liberdade do mer-
cado. Em linhas gerais, desde que se criem as garantias para o
bom ambiente dos negócios, o Estado democrático de Direi-
to (com todas as suas limitações) torna-se mesmo dispensável
(BROWN, 2020). Afinal de contas, é melhor ser livre para exer-
cer suas vontades e desejos no bojo do mercado capitalista do
que experimentar um tipo de liberdade negativa (tida como a
coerção do Estado) no cotidiano de nossas vidas.

Ainda a esse respeito, no final dos anos de 1970, Marga-


reth Thatcher, uma das mais ilustres políticas signatárias
do modelo neoliberal, em comunhão com o estaduniden-
se Ronald Reagan, dissera algo como: “Não existe essa coi-
sa de sociedade, o que há e sempre haverá são indivíduos”.
Essa premissa reforça o ideário de desmantelamento das
relações de solidariedade e cooperação tão caras aos mo-
vimentos sindicais e de trabalhadores que, a despeito dos
acordos tácitos com o Estado de bem estar social à época,
ainda apresentavam alguma organização política que fazia
frente aos arroubos e apetites do capital. A ideia de uma
sociedade de indivíduos que devem cuidar de si próprios
é talvez uma das grandes criações do modelo (neo)liberal,
atualizado na atual conjuntura, que de alguma maneira in-
veste contra a possibilidade de estabelecimento de laços

50
e na construção de saídas coletivas para o enfrentamen-
to das relações de exploração, opressão e espoliação que
Marx já denunciava em pleno século XIX.

Na esteira dessa discussão, Dardot e Laval (2016) consideram


que o neoliberalismo pode ser compreendido como uma nova
racionalidade que visa reorganizar o modo de vida das popu-
lações, com o intuito de aprimorar sua governabilidade. De
acordo com esses autores, o Estado (tão atacado pelos pri-
meiros liberais), é visto a partir da razão neoliberal como ne-
cessário para a boa existência do mercado capitalista. Não se
trata de um mal necessário, mas um aliado essencial para a
manutenção das condições desejadas para a boa exploração
e espoliação das/dos trabalhadores na busca pela produção
de valor. Loic Wacquant (2015), por sua vez, avalia que o Es-
tado neoliberal pós anos de 1970 instaurou algumas medidas
de eficiência voltadas para as classes subalternas, a saber: 1)
políticas sociais disciplinadoras, com a passagem da conces-
são de benefícios baseados em direitos para uma assistência
social condicionada ao cumprimento de comportamentos es-
pecíficos (treinamentos, testes, procura de emprego, controle
de natalidade, cumprimento de leis); 2) políticas penais exten-
sivas, de modo a controlar a desordem gerada pela inseguran-
ça social nas áreas urbanas impactadas pelo trabalho flexível
e de representar a soberania do Estado na vida cotidiana e 3)
responsabilização individual como discurso motivacional e ci-
mento ideológico da cultura neoliberal.

No Brasil, as primeiras ondas neoliberais são percebidas ain-


da nos anos de 1980, em um país imerso em um cenário po-
lítico ditatorial e enfrentando uma grave crise econômica.
Tratava-se ainda de uma reflexão em torno de se edificar um
projeto nacional que superasse certo sentimento de atraso,
que se expressava na miséria, nas desigualdades e nas vio-
lências em que estávamos (e permanecemos) imersos. A ten-
tativa de se explicar o fracasso chamado Brasil se deu por
diagnósticos de quebra do pacto social proposto por Hellio
Pelegrino (SILVA JUNIOR, 2021) ou mesmo pela reafirmação
preconceituosa de nossa origem subdesenvolvida em razão
das raízes indígeno-africanas de nosso povo, que guardava
ainda todo o caldo da miscigenação tida como responsável
por nosso atraso face à fantasia do belo e idealizado homem

51
branco do norte global.

Além disso, o próprio realinhamento mundial


dos donos do poder econômico, foi criando
as condições para a efetiva instalação do mo-
delo neoliberal no Brasil a partir da década de
1990. Inicialmente com Fernando Collor de
Mello, mas principalmente a partir da gestão
de outro Fernando, o sociólogo e doutor que
fora exilado pela ditadura brasileira, mas que
se convertera em um árduo defensor de uma
sociedade de privilégios para poucos em de-
trimento do aumento da exploração de mui-
tos. Desde então, a agenda neoliberal vem
sendo implementada, passando pelos gover-
nos considerados populares, do ex-presiden-
te Luiz Inácio Lula da Silva e da presidenta que
sofrera o impeachment em 2016, Dilma Rou-
ssef. E aprofundou-se a partir da gestão do
presidente golpista Michel Temer e da gestão
do atual presidente, Jair Bolsonaro.

Nessa última década, especialmente a partir


do ano de 2015, observamos o acirramento
de disputas em torno do poder político em
nosso país e a emergência de uma chama-
da onda conservadora de extrema-direita, Para uma ampliação
deste debate,
que se fez notar não somente no Brasil, mas sugerimos a
leitura de uma
também em outros pontos do globo. Trata- série de três textos

-se de uma plataforma ideológica que apre- escritos no portal


eletrônico esquerda
senta características neofascistas, com forte online (https://
esquerdaonline.
discurso e práticas autoritárias, nacionalistas com.br/), de autoria

e beligerantes. Além do representante brasi-


da pesquisadora
Juliana Fiuza
leiro, Jair Messias Bolsonaro, que foi alçado Cislaghi, intitulados:
1) Do neoliberalismo
ao poder em 2018 a partir de uma eleição de- de cooptação ao

mocrática – ainda que imersa em um tsunami


ultraneoliberalismo:
respostas do
de fake news -, o mundo já experimentava o Capital à Crise; 2)
O neoliberalismo
sabor antipolítica representado por Donald de cooptação

Trump nos Estados Unidos, Viktor Orbán, na


como resposta às
resistências; 3) O
Hungria, além de Tayyip Erdgon na Turquia, ultraneoliberalismo
e a política dos
apenas para citar alguns exemplos. ressentidos.

52
Entretanto, vale salientar que alguns lemas vociferados mun-
do afora, tais como “França para os franceses”, ou “Polônia
Pura, Polônia Branca”, são parte do arsenal do discurso de uma
extrema-direita radical pelo mundo. No Brasil, o retrógrado
lema “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” tem sido
estrategicamente utilizado pelos adeptos da ala bolsonaris-
ta que apresenta congruência com tais lemas mundialmente
em ascensão. Curiosamente, a versão brasileira apresenta o
substantivo Deus, que não pode ser desconsiderado como
um símbolo de poder e que atinge parte considerável do elei-
torado brasileiro, em especial, o segmento que se identifica
com o neopentecostalismo de resultados, que se conforma
como um dos principais grupos de sustentação deste (des)
governo em marcha no Brasil atualmente.

Nessa perspectiva, Dardot e Laval (2016) nos advertem que o


neoliberalismo, que dera suas cartas mais evidentes ainda du-
rante a década de 1970, não apenas sobrevive, mas se radica-
liza, esgarçando, se necessário for, cada vez mais os pressu-
postos da democracia liberal e dos direitos sociais, ainda que
mínimos. Para os autores, isso ocorre, pois, o neoliberalismo
se tornou um sistema mundial de poder que se alimenta das
próprias crises econômicas e sociais que gera, haja vista que
as respostas a essas crises reforçam e aprofundam indefini-
damente sua lógica, na tentativa de bloquear qualquer outra
alternativa à sua existência. Na mesma direção, Brown (2020)
considera que esse regime econômico e social se apropria das
tendências nacionalistas, autoritárias e xenófobas, assumindo
um caráter absolutista e hiperautoritário para tentar imprimir
de maneira inconteste a lógica do capital à sociedade.

A partir deste cenário econômico-sócio-político que passa


a articular um discurso neoliberal no âmbito da economia
e a valorização da moral conservadora no âmbito de deter-
minadas práticas humanas, gostaríamos de destacar que os
elementos subjetivos e ideológicos não devem ser secunda-
rizados e tampouco menosprezados na realização das aná-
lises a respeito da atual conjuntura. O apelo à família tida
como tradicional (hétero-cisgênera), a luta contra o direito
ao aborto, o fortalecimento do discurso de “guerra às dro-
gas”, a patologização e o aumento da violência em relação
à população LGBTQIA+, bem como o apelo ao armamen-

53
to da população parecem se configurar como ingredientes
necessários para a manutenção de um modo de produção
e reprodução social que conquista corações e mentes de
setores da população brasileira e mundial.

E, nessa direção, quaisquer outras pautas tidas como pro-


gressistas ou consideradas de “esquerda” (vide a “assombro-
sa” bandeira dos direitos humanos) passam a ser rechaça-
das, desprestigiadas do debate público, sendo observado,
em alguns casos, o surgimento de uma patrulha moral vol-
tada contra professores, cientistas, artistas e qualquer outro
sujeito que ouse contrariar a voracidade propalada pelo dis-
curso de verdade, contraditoriamente banhado em mentiras,
dos grupos alinhados às extremas direitas, brancas, elitistas,
racistas e misóginas. Face a esta radicalização, concordamos
com Cislaghi (2020) quando a mesma avalia que vivemos, em
verdade, um período que pode ser denominado de ultrane-
oliberalismo. Além de todo o aprofundamento na direção
econômica voltada às políticas de austeridade, bem como às
privatizações, reiteramos nosso entendimento que esse mo-
delo de produção econômica tem se associado e ao mesmo
tempo reforçado um reacionarismo violento — neofascista
—, que se evidencia em discursos e ações de criminalização
das lutas sociais e do pensamento crítico, que fortalece o ne-
gacionismo e persegue a autonomia da pesquisa, da forma-
ção e da produção de conhecimento, com ataques virulentos
contra as universidades públicas, como se observa na atual
pandemia da Covid-19, em particular, no Brasil.

Ademais, ganha relevo alguns componentes subjetivos que


são acionados como gatilhos e que, ao mesmo tempo, con-
tribuem na sustentação deste modo de (re)produção so-
cial. A esse respeito, Brown (2020) destaca três sentimentos
que se articulam no cotidiano das relações interpessoais e
se conformam como catalisadores de discursos arbitrários:
o ressentimento, o niilismo e o fatalismo. A autora recor-
re a Nietzsche (2017), em sua obra A Genealogia da Moral,
para mostrar que o ressentimento, segundo o autor, seria
um atributo dos fracos, que culpabilizam os fortes por suas
mazelas. Mas diferentemente, em nossos dias, face ao na-
cionalismo e à performance belicista encenada pelos atores
desta extrema-direita neofascista e ultraneoliberal, os res-

54
sentidos são aqueles que historicamente sempre estiveram
em posições de poder e privilégios ou que com eles se iden-
tificam: homens brancos, heterossexuais e classes economi-
camente mais abastadas. A ameaça sentida por tais grupa-
mentos a partir da perda de poder de consumo e mesmo
a igualdade limitada que tem sido conquistada por grupos
historicamente à margem (negros, gays e as pautas de di-
reito e reconhecimento) mobilizaram o que Brown (2020)
descreve como o ressentimento experimentado a partir da
neoliberalização do cotidiano da vida social.

No Brasil, Kehl (2020) nos adverte para o ressentimento como


categoria política, considerando, a partir do diálogo que se
estabeleceu entre Freud e Nietzsche, que esse sentimento
adquire um sentido político de massa, assumido sobretudo
por setores de classe média que, desidentificados com os
mais pobres e frustrados com o fracasso de sua ascensão so-
cial, procuram culpar alguém por seu infortúnio. Assim como
Reich (2001), que já identificara tal movimentação na socie-
dade alemã protonazista, a autora brasileira aponta que em
um cenário de crise econômica, e diríamos também de difi-
culdades em se vislumbrar perspectivas e projetos ético-po-
líticos alternativos, pode ocorrer o aprofundamento desse
ressentimento, tendo em vista a falta de confiança no futuro,
que nos obriga a sobreviver no arranjo possível do dia a dia,
inibindo o vislumbre de um futuro melhor e uma transfor-
mação social promovida pelos próprios sujeitos. Face a esta
realidade, apostas em políticas regressivas, que conclamam
a um fantasioso passado glorioso, parecem produzir algum
tipo de efeito de estabilidade, na medida em que confere al-
guma segurança, mesmo que imaginária (Kehl, 2020).

Justamente a partir desta indicação acima, um outro afe-


to vetor das relações deste mundo em cólera, que experi-
mentamos no Brasil ultraneoliberal, é justamente o niilis-
mo que representa a queda de valores e possíveis direções
que sustentam a vida. Nietzsche (2017) considerava que a
primeira queda experimentada pelo homem foi justamen-
te referente à Deus, em toda sua onipotência e onisciência,
restando ao homem a responsabilidade por seu destino.
Entretanto, o que se observou foi justamente a desvalori-
zação e dessacralização daquilo que é humano, na sua ca-

55
pacidade de produzir alternativas e soluções para si e edi-
ficar um mundo para se viver, tendo em vista os fracassos
de pensarmos em um mundo justo em meio às desigual-
dades forjadas pelo sistema capitalista.

Brown (2020) avança nesta discussão, apontando que o cená-


rio do homem do século XXI é bem mais controverso do que
Nietzsche pudera cogitar. Não se trataria somente da perda
de crédito naquilo que é humano, uma vez que as forças eco-
nômicas e de poder político em voga não parecem se preo-
cupar com nada que seja próprio ao ser social. Antes, temos
que lidar com um sistema contraditório que se perpetua a
partir da geração de mais pobreza e miséria em uma socie-
dade cada vez mais tecnológica e “superdesenvolvida”, atre-
lada a uma exploração desmedida e irresponsável da nature-
za e seus recursos sem nenhum tipo de preocupação com o
futuro. Ou seja, o que parece restar ao sujeito do ultraneoli-
beralismo é uma espécie de fatalismo ressignificado, do tipo
empreendedor, em que perspectivas de cultos e religiões,
sobremaneira neopentecostais que propagam a eficiência, o
sucesso e a prosperidade, parecem encontrar cada vez mais
guarita nos corações e mentes desalentados de segmentos
das classes subalternas, que apresentam dificuldades em vis-
lumbrar saídas coletivas para a pobreza e as desigualdades
sociais em que estamos imersos.

ENTRE A UNÇÃO DIVINA E A (DES)


PROTEÇÃO SOCIAL: O QUE CABE AOS
POBRES NO BRASIL DO CAOS?
Atravessamos um momento tenebroso agravado por uma
pandemia mundial que revela nada mais que o avançado
estágio de deterioração dos recursos naturais e humanos
alavancado pela atual crise neoliberal, conforme discutido
anteriormente. Na particular situação caótica brasileira, a in-
tensificação do genocídio como política legitimada do Esta-
do – dada a gestão bolsonarista que toma como prioridade
salvar o glorioso mercado em detrimento da insignificante
vida humana – e o consequente desmonte acelerado das
políticas sociais, compõem um cenário em que a pobreza
e as manifestações da desigualdade social, historicamente

56
constitutivas da sociedade de classes, tem alcançado pata-
mares alarmantes. Apesar de expressivas e incontestáveis,
são distintas as formas pelas quais a pobreza e as desigual-
dades são compreendidas, prevalecendo, em nome da ci-
ência, mas também do senso comum, concepções (ideo-
lógicas) que retiram suas bases econômicas e estruturais e
apostam, direta ou indiretamente, na individualização e na-
turalização como ferramentas para explicar a existência e
persistência de tais fenômenos sociais.

Se, para nós, o pauperismo é expressão máxima das con-


tradições constitutivas do modo de produção capitalista, ou
seja, se fundamenta na relação capital/trabalho em dialética
com o processo de acúmulo privado de riqueza, para mui-
tos, conforme sugere Siqueira (2014), a pobreza, numa ótica
fragmentada e comumente resumida em termos de renda e
poder de consumo, se torna um aspecto meramente relativo
a traços e características individuais, à incapacidade própria
dos sujeitos de se adequar às normas sociais e de se esforçar
para garantir seu “lugar ao sol” diante de um suposto vasto
mundo de oportunidades. Essas são premissas históricas que
acompanham o desenvolvimento do capitalismo e suas rela-
ções reificadas e fetichizadas, sendo ainda mais fomentadas
frente à intensificação da agenda ultraneoliberal aqui proble-
matizada, que traz como características a mercantilização dos
serviços públicos e a desresponsabilização do Estado diante
da chamada “questão social” (NETTO, 2007).

A maximização do fenômeno da pobreza nos países periféri-


cos, como o Brasil, é uma realidade que coexiste com a insu-
ficiência e fragilidade de recursos públicos e estatais para seu
enfrentamento e atenuação, sobretudo, em tempos atuais
de aprofundamento do ajuste fiscal e contrarreformas polí-
tico-econômicas (BEHRING; BOSCHETTI, 2021; COHN, 2020).
No contexto brasileiro, a luta histórica por direitos é perme-
ada por avanços e retrocessos, tendo como marca do último
meio século o processo frágil e contraditório de construção
da nossa democracia, esta que enfrenta uma trajetória de
obstáculos (e porque não violências) na busca pela tão alme-
jada efetivação das premissas da cidadania plena e universal.
O nível cada vez mais preocupante e extremo de pobreza, o
recorde no desemprego – que, segundo a PNAD Contínua

57
(IBGE), alcançou 14,6% no primeiro trimestre de 2021 -, na
precarização do trabalho e na inflação dos preços dos ali-
mentos e produtos básicos para subsistência são alguns dos
elementos que apontam para um prognóstico nada favorá-
vel para a vida de milhares de brasileiros e brasileiras que, há
décadas (e séculos), sobrevivem à base de incertezas, desas-
sistência e precariedade.

Em tempos atuais, a radicalização da agenda neoliberal im-


plementada pela gestão de Bolsonaro/Guedes tem produzido
efeitos ainda mais severos para a garantia de direitos dos se-
guimentos historicamente pauperizados da sociedade, indo
na contramão das necessárias medidas de contenção à crise
humanitária, agora, alarmada pela pandemia do coronavírus.
Sabe-se que a construção das políticas de proteção social
brasileira, regida sob os ditames do neoliberalismo, caminha
pela encruzilhada entre sua universalização e sua assistencia-
lização, prevalecendo desde a (e a despeito da) Constituição
de 1988 a perspectiva da seletividade e focalização que privi-
legia a implantação de serviços socioassistenciais sucateados
e paliativos como estratégia de enfrentamento às refrações
da desigualdade social (MOTA, 2010).

Nessa esteira, Behring e Boschetti (2021) analisam que os


recursos destinados à política de assistência social, a partir
do protagonismo dos programas de transferência de ren-
da, tem sido crescentes na gestão bolsonarista, ao passo em
que setores como a saúde e a educação, assim como outros
programas do Sistema Único de Assistência Social (SUAS),
tem sofrido constantes cortes orçamentários. Se no contex-
to pandêmico a implementação de medidas emergenciais,
como a renda mínima (vale assinalar o programa de auxílio
emergencial arrancado, mesmo que ainda débil, sob pressão
da oposição e dos movimentos sociais), se mostrou impor-
tante para a contenção dos efeitos imediatos da crise nas ca-
madas mais pauperizadas da população, também é verdade
que o projeto encabeçado por Bolsonaro intenciona renovar
o caráter clientelista e assistencialista sob tais políticas, afim
de manter (e controlar) as classes subalternas na condição
rebaixada de sobrevivência, afunilando ainda mais o acesso
a outros direitos fundamentais como o emprego estável, ser-
vindo, portanto, ao ciclo de reprodução do capital, em con-

58
sonância com os interesses do mercado.

Soma-se a essa realidade histórica e atual de miserabilidade


social e subalternização, conforme sinalizado anteriormen-
te, o crescente ideário conservador, atrelado ao fundamen-
talismo religioso neopentecostal, de apelo ao moralismo, ao
empreendedorismo e à prosperidade que sustentam saídas
profundamente imediatistas, salvacionistas e individualistas
(GABATZ, 2013; CAZAVECHIA; TOLEDO, 2020), o que recai
sobre a população pobre de maneira ainda mais perversa,
conformando subjetividades quando não adoecidas e ani-
quiladas, marcadas, em última instância, por processos que
servem ao conformismo e à resignação. No campo da psi-
cologia (e para além dela), o resgate das contribuições de
Ignacio Martín-Baró tem sido importante para os estudos
sobre a (re)produção dialética e contraditória dos processos
psicossociais forjados em contextos históricos de violência e
dominação, especialmente frente à realidade de dependên-
cia e colonização latino-americana.

O autor se atentou para a dinâmica do fatalismo (re)produzi-


do na vida cotidiana das classes subalternas a partir das ex-
periências pessoais e coletivas vivenciadas sob a imperante
lógica de desigualdade social e exploração, fomentadas por
ideologias individualistas e presentistas. Dessa forma, de acor-
do com a análise de Martín-Baró (2017), as relações de poder
dominantes, pautadas na lógica de subserviência e opressão
das maiorias populares, (retro)alimentam uma realidade con-
cretamente massacrante que provoca a predominante (ou
seja, não-absoluta e atravessada por contradições) apatia nos
sujeitos dominados e a descrença na mudança social efetiva,
o que acaba levando à busca por soluções possibilistas e/ou
transcendentais. Esse é um processo extremamente complexo
e, como afirmamos, dialético, estando, nesse caso, atrelado à
formação social latino-americana em suas particularidades e
dinamismos históricos, o que tem ganhado novos contornos
e manifestações na atual conjuntura.

A perspectiva baroniana sobre o fatalismo latino-americano


releva, ainda, um importante componente: o lugar e a ex-
pressividade da religião na produção de sentidos e significa-
dos das massas populares, na medida em que tal perspectiva

59
age a fim de mistificar a historicidade dos acontecimentos e
designar à Deus e/ou a forças naturais a explicação e “cura”
dos problemas sociais (MARTÍN-BARÓ, 2017). O autor parte
dessa análise compreendendo o peso histórico e cultural do
cristianismo no continente e, especialmente, o pensamento
conservador que predomina no interior e expansão das igre-
jas, desde o papel da Igreja Católica na empreitada imperia-
lista de colonização e extermínio dos povos do sul global,
assim como já sinalizava para a progressiva expansão das
igrejas (neo)pentecostais (MARTÍN-BARÓ, 1989).

As interfaces entre a moral religiosa conservadora e as medi-


das econômicas neoliberais regidas no Brasil contemporâneo
tem sido tema de pesquisas e debates, o que contribui para
o estudo sobre as subjetividades forjadas, dialeticamente, no
presente e particular momento histórico. Nesse terreno, des-
de meados do último século, acompanhamos este complexo
fenômeno chamado de transição religiosa, marcado pelo de-
clínio do catolicismo, pelo pluralismo religioso e pelo cresci-
mento acelerado do evangelismo pelo mundo, com forte ex-
pressão nos países latino-americanos, em particular, no Brasil
(ALMEIDA; MONTERO, 2001). A despeito dos múltiplos fato-
res incutidos nesse processo, passíveis de diferentes aborda-
gens analíticas, sinalizamos para as possíveis relações entre
as transformações econômicas das últimas décadas, prove-
nientes da crise estrutural do capital, e a renovação das es-
tratégias de poder protagonizadas por correntes religiosas,
particularmente, de matiz evangélica, as quais, com suas es-
pecificidades, vem “pregando” fortemente seu espaço e ide-
ologia na política e no Estado, na mídia e no mercado em di-
ferentes frentes, conquistando adeptos principalmente entre
os mais pobres da periferia do capitalismo (MARIANO, 2004).

A rápida ascensão e concentração do neopentecostalismo no


Brasil, aqui inaugurado na década de 1970 e protagonizado
pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), tem chamado
a atenção de muitos pesquisadores do campo da religião e da
política. Dentre os possíveis elementos característicos desse
fenômeno, destacam-se a predominância de premissas con-
servadoras (ainda que com um certo grau de adaptação a va-
lores liberais) do ponto de vista dos costumes, da moralidade
e da relação com o divino, o que tem convertido milhares de

60
fiéis a partir de investimentos milionários no
televangelismo, nos cultos e filiais, sustentados
“na oferta especializada de serviços mágico-
-religiosos, de cunho terapêutico e taumatúr-
gico, centrados em promessas de concessão
divina de prosperidade material, cura física e
emocional e de resolução de problemas fami-
liares, afetivos, amorosos e de sociabilidade”
(MARIANO, 2004, p. 4).

O avanço das igrejas neopentecostais no país


é um tema bastante complexo, contudo, con-
sideramos relevante para a presente análise
problematizar ao menos duas questões atra-
vessadas pelo atual contexto de crises e apro-
fundamento das mazelas sociais: sua surpreen-
dente capacidade de cooptação do simbolismo
religioso presente no ideário cultural brasileiro
e seu engajamento a partir de um discurso sal-
vacionista pautado no empreendedorismo, na
autodisciplina e na meritocracia como meios
para o alcance da cura espiritual e terrena –
esta mediada por uma espécie de sacralização
do dinheiro e, como vimos, significada pelo
sucesso material – (GABATZ, 2013); e, junto a
isso, sua forte influência nas decisões e dispu-
tas políticas e o entrelaçamento na defesa da
agenda econômica neoliberal (DANTAS, 2011;
CAZAVECHIA; TOLEDO, 2020), o que, como já Aqui, destacamos
o papel das igrejas
sinalizamos, tem se intensificado na conjun- evangélicas no plano
político-econômico
tura marcada pela recente escalada de gover- brasileiro dada sua

nos autoritários e reacionários. Uma expres- forte expressão


na atualidade, no
são desse processo pode ser apreendida à luz entanto, sabemos
que as marcas do
das (obscuras) últimas eleições presidenciais fundamentalismo

no Brasil, assim como em outros países, cujos


e conservadorismo
não são exclusivas
resultados contaram com a decisiva mobiliza- a essa vertente
religiosa, devendo
ção do fundamentalismo religioso evangélico ser também

em apoio a projetos de extrema-direita, con-


problematizada no
âmbito das tensões
forme analisam Mariano e Gerardi (2019) . e movimentos
internos da Igreja
Católica, entre
A aliança revigorada entre fundamentalismo outras, o que escapa
do nosso foco neste
religioso, conservadorismo e neoliberalismo momento.

61
nos marcos da atual conjuntura tem ressoado de forma nefas-
ta na já fragilizada democracia brasileira. Se o campo das polí-
ticas públicas e sociais caminha sob disputas a passos lentos e
sinuosos desde sua legitimação pós-Constituição de 88, como
sinalizamos, no cenário atual gestado por Bolsonaro e seu fiel
Ministro da Economia, Paulo Guedes, os retrocessos tornam-
-se ainda mais escancarados. Dentre os impactos do desman-
telamento das políticas em curso, novamente destacamos o
que cabe à proteção social: o afunilamento cada vez maior do
acesso aos programas sociais, o que reforça a seletividade e a
focalização; a manutenção do viés clientelista como sustento
de uma política de transferência de renda rebaixada, em subs-
tituição a ampliação de empregos formais e estáveis; e o fo-
mento ao terceiro setor e à ótica filantrópica e assistencialista
em detrimento da perspectiva de direitos, ao passo em que
se avança em projetos como as (contra)reformas trabalhista,
administrativa e previdenciária, o que configura, como discute
Cohn (2020), uma verdadeira política de abate social.

A atual conjuntura, dessa forma, é marcada por um cenário de


crise em que o Estado cada vez mais se ausenta de sua fun-
ção de proteção social, cedendo espaço para o enraizamento
de perspectivas de culpabilização, criminalização e incentivo
ao ódio aos mais pobres e aos grupos vistos como minorias
sociais (mulheres, negros, LGBTQIA+, indígenas, quilombolas,
entre outros). Não à toa tais premissas moralizantes e conser-
vadoras tornaram-se marca registrada dos discursos e pronun-
ciamentos públicos do atual presidente – vide ainda a posição
da pastora Damares Alves, seu porto seguro – e contribuíram
para sua vitória eleitoral, com forte engajamento entre os seto-
res médios (ressentidos) da sociedade brasileira, mas também
entre outras camadas sociais. No caso específico dos setores
mais pauperizados, que se conformam atravessados pelo en-
trelaçamento das estruturas de raça, classe e gênero, os ve-
mos serem bravamente compelidos a uma condição nunca
efetivamente superada: a da subalternidade, reforçando-lhes,
no lugar de sujeitos de direitos, a posição de tutela e beneme-
rência, dignos, assim, de uma determinada “ajuda” concebida
como ato de caridade e “benção” aos socialmente considera-
dos incapazes e necessitados (YAZBEK, 2012).

Ainda nesse campo, novamente, a relação entre política e

62
religião se evidencia quando percorremos pela imbricação
entre assistência social e filantropia, tendo como destaque
a atuação histórica das instituições religiosas (em especial
cristãs) frente aos pobres, o que tem ganhado novas roupa-
gens e controvérsias diante do pacto aqui destacado entre
neopentecostalismo e neoliberalismo. Como discute Gabatz
(2013), o movimento neopentecostal ressignifica a concepção
de pobreza na perspectiva de cultuar a riqueza material, bus-
cando se diferenciar da trajetória caritativa da Igreja Católica.
Ainda assim, o desenvolvimento de projetos socioassisten-
ciais aos mais vulneráveis não deixa de compor o arsenal das
igrejas neopentecostais, sendo parte, inclusive, da estratégia
de cooptação dos subalternos a partir de uma ética (neolibe-
ral) empreendedora e meritocrática (ROSAS, 2012). As lide-
ranças neopentecostais têm se mostrado eficientes em as-
sociar o histórico assistencialismo filantrópico brasileiro com
um renovado discurso que – supostamente – retira o pobre
da posição de demérito e passividade, encorajando-o a ado-
tar uma postura ativa e “inovadora” para se lançar no merca-
do e “correr atrás” por conta própria – mas sob a unção de
Deus – de sua prosperidade espiritual e terrena vinculada à
ascensão social. Estado para quê? Estado para quem?

Conforme argumentamos, parte importante da sustentação


do atual (des)governo federal brasileiro advém de tais pre-
ceitos e setores sociais; paternalismo e assistencialização
(precária) da pobreza seguem firmes e potencializados como
estratégia eleitoral e de poder, sobretudo num momento
em que se detecta significativa queda de popularidade de
Bolsonaro diante dos impactos insustentáveis da perversa
combinação entre as diferentes facetas da crise e a radicali-
zação do ajuste fiscal neoliberal. O cenário de disputa entre
as forças políticas em destaque no Brasil, contudo, segue
incerto. O fato é que o projeto político-econômico-ideoló-
gico hegemônico de (des)estruturação do Estado brasileiro
atua não tanto a serviço da proteção ao trabalhador quan-
to da desoneração do capital, e a aliança entre Bolsonaro
e o empresariado industrial e religioso tem caminhado em
direção ao aprimoramento de seu vértice coercitiva e mer-
cadológica (BEHRING; BOSCHETTI, 2021).

Ao mesmo tempo, portanto, em que o processo de desres-

63
ponsabilização social do Estado vem como mote da agenda
neoliberal emplacada de particular maneira pelo fundamen-
talismo religioso, o usufruto do mesmo a mando dos inte-
resses políticos e ideológicos em cena se faz presente em
diferentes frentes. Nesse sentido, as organizações neopen-
tecostais tem surfado com maestria na turbulenta onda que
representa a inserção histórica do terceiro setor nas políti-
cas sociais brasileiras, se colocando na disputa da gestão e
diretrizes de serviços (e recursos) públicos de saúde e tam-
bém socioassistenciais, assumindo a execução de diferentes
programas de “combate” às expressões da questão social,
tais como a insegurança alimentar, o consumo de drogas,
o desemprego e a vivência de pessoas em situação de rua,
guiados sobretudo por premissas e práticas conservadoras
e assistencialistas que contam com um forte voluntarismo
a serviço de uma determinada doutrinação religiosa e, por
conseguinte, política (SILVA; COSTA, 2007).

Assim, o que se identifica é não apenas a manutenção da


lógica de subalternização que destina (a mando de Deus ou
do capital?) a vida de parte significativa da classe trabalha-
dora à miséria, como também se observa uma nova (ou nem
tanto) faceta da resignação fatalista endereçada a canalizar
as dores, angústias e descontentamos dialeticamente pro-
vocados pela brutalidade das desigualdades e desassistên-
cia cotidiana do Estado em prol de ideologias que servem
à competitividade e ao ativismo individualista baseado no
suposto sucesso material que, mesmo em suas feições mais
imediatas, é estruturalmente impossibilitado a uma consi-
derável parcela daqueles e daquelas que o almejam. Não se
trata, obviamente, de reforçar o conformismo e aceitação
da barbárie social instaurada e, sim, de compreender que
sua superação passa necessariamente por ousar nas estra-
tégias de enfrentamento, o que se faz, ainda que sem um
manual prescrito, na e pela disputa cotidiana de consciên-
cia das classes subalternizadas e violentamente apazigua-
das, vinculada, portanto, a uma elaboração coletiva e pro-
gramática que se atenha às demandas mais emergenciais
de nossa classe e nosso planeta, direcionando-as para um
projeto efetivo de transformações radicais da ordem.

64
CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS
A atual conjuntura brasileira e mundial vem marcada pelo
protagonismo de projetos reacionários que assumem uma
falsa posição antissistêmica, vide o processo de ascensão
de Jair Bolsonaro e outras figuras extremistas ao poder, e
imputam desafios ainda maiores para a disputa de projetos
efetivamente alternativos à ordem social vigente. A cres-
cente lógica neoliberal articulada ao ideário conservador,
ao mesmo tempo em que intensifica as mazelas sociais, tem
cumprido um papel de solapar a construção de horizontes
coletivos que mirem na resolução dos problemas sociais em
suas raízes, notadamente atreladas ao modo de produção e
sociabilidade capitalista. Ainda assim, sabemos que o pre-
sente se constitui num todo histórico e vem demonstrando
seus dinamismos e possibilidades.

Na esteira da conformação contraditória dos processos sub-


jetivos e sociais, em que os sentimentos de fatalismo e de re-
volta por ora se confundem e se retroalimentam (em dialética
com as estruturas e ideologias dominantes), seguimos apos-
tando na articulação e nos ensinamentos dos movimentos
sociais e da classe trabalhadora organizada que, mesmo em
tempos de maiores ataques e atravancos, nos servem como
verdadeiro respiro e esperança – concreta – de novos ventos.
Ventos estes que, acreditamos, devem soprar em direção à
construção coletiva de uma sociedade em que exploração e
supressão do potencial humano seja cabível apenas ao mais
tenebroso e ficcional mundo das distopias.

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67
68
05.

INTRODUÇÃO

N
este capítulo, apresentamos algumas questões
referentes ao conservadorismo brasileiro na IANA GOMES
Educação, entendendo de que tal conservado- DE LIMA
rismo é uma resposta à ampliação de direitos
sociais de grupos minoritários. Nesse sentido, RICARDO
temos como objetivo argumentar que há no BOKLIS
GOLBSPAN
atual conservadorismo da Educação brasilei-
ra um viés normalizador, embasado em um GRAZIELLA
passado “ideal”. Neste ensaio, enfocamos es- SOUSA DOS
pecialmente duas categorias que, em nossas SANTOS

análises e de acordo com a literatura estuda-


da, são fundantes do pensamento conserva-
dor no âmbito da Educação: a ideia de “norma-
lização” (CARLSON, APPLE, 2003; FOUCAULT,
1965) e a noção do “medo do outro” (APPLE,
2003; 2013). Para tanto, inicialmente, trazemos
reflexões acerca do atual conservadorismo no
âmbito educacional. Na sequência, apresenta-
mos, de forma breve, uma discussão acerca da
normalização na escola, relacionando-a com
as atuais políticas educacionais conservadoras.
Por fim, ilustramos a relação entre a normali-
zação e o conservadorismo na área por meio
do exemplo do processo de militarização da
Educação, agenda que têm se mostrado cen-
tral no avanço conservador nas políticas edu-
cacionais brasileiras.

CONSERVADORISMO NA
EDUCAÇÃO BRASILEIRA
Nos últimos anos, especialmente a partir de
2014, as escolas públicas, por meio da figura

69
de seus professores e professoras, têm sofrido duros ata-
ques (MIGUEL, 2016; PENNA, 2017). O movimento Escola
sem Partido (EsP), que ganha notoriedade neste período,
foi um dos grandes responsáveis por organizar tais investi-
das, incitando a denúncia de professores e professoras por
meio, centralmente, de duas pautas: “ideologia de gênero”
e “doutrinação ideológica” (MIGUEL, 2016). Docentes come-
çaram a ser expostos em redes sociais, por meio de grava-
ções realizadas por estudantes em sala de aula e de prints
de postagens de suas redes sociais privadas. Entendemos
que o EsP foi importante para a criação de um cenário de
desconfiança em relação aos e às docentes o que, por sua
vez, favoreceu a proliferação de políticas de controle do tra-
balho de professores e professoras.

Esse movimento, contudo, não ocorre de forma isolada, mas


em um contexto de ampliação do conservadorismo no Bra-
sil. Em outra frente, o avanço do processo de militarização da
Educação, que ganha grande notoriedade e força a partir da
eleição de Jair Bolsonaro também desponta com uma face
muito representativa do movimento conservador na Educa-
ção. Como exemplo dessa crescente, no primeiro ato de seu
governo, Bolsonaro criou o Programa das Escolas Cívico-Mi-
litares (BRASIL, 2019). O programa, voltado às escolas públi-
cas que atendem prioritariamente setores populares, se pro-
põe – como argumentaremos adiante no texto – a controlar
e disciplinar o cotidiano escolar por meio da introdução de
militares da reserva na gestão e nas rotinas escolares, ferin-
do preceitos fundamentais da Gestão Democrática.

Conforme destacam alguns autores e autoras (PIAIA, 2019;


MIGUEL, 2016; LACERDA, 2019), vivemos um avanço conser-
vador no Brasil. Dada a centralidade desse conceito no pre-
sente trabalho, convém de pronto anunciá-lo. De acordo com
Lacerda (2019), o conservadorismo é entendido como uma
ideologia resultante de uma situação de ameaça percebida
por alguns grupos hegemônicos em relação à manutenção
do status quo. Tais ameaças seriam decorrentes de um con-
junto de políticas de bem-estar, as quais são fruto de con-
quistas obtidas por movimentos sociais englobando diversas
pautas (questões raciais, étnicas, LGBTQIA+, feminismo, entre
outras) e se propunham a reduzir as desigualdades.

70
Como principal eixo estruturante desse movimento no Bra-
sil, tem-se, segundo Lacerda (2019), a direita cristã, que se
articula com outros grupos e constitui um ideário em torno
da “família tradicional”, do militarismo, do anticomunismo
e de valores de mercado. Ademais, podemos arguir, a partir
de alguns estudos (LACERDA, 2019; CASIMIRO, 2018; MOLL,
2010; 2015), que enfrentamos atualmente um conservado-
rismo capaz de rearticular aspectos historicamente conser-
vadores em nossa sociedade.

Em nosso entendimento, esta onda conservadora está relacio-


nada à ampliação de direitos sociais que ocorreu centralmente
durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousse-
ff (LACERDA, 2019). No período, foram registradas conquistas
expressas em leis aprovadas que respondiam a anos de lutas
por reconhecimento e por direitos de grupos subalternizados
historicamente. São alguns exemplos a lei nº 11.645, de 10 de
março de 2008, que inclui no currículo oficial da rede de ensi-
no a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Bra-
sileira e Indígena”; o reconhecimento pelo Supremo Tribunal
Federal da união estável para casais do mesmo sexo em 2011;
e a chamada Lei de Cotas (Lei nº 12.711, de 29 de agosto de
2012), que tornou obrigatório reservar para candidatos e can-
didatas cotistas metade das vagas oferecidas anualmente nos
processos seletivos de universidades, institutos e centros fe-
derais. Muitas dessas políticas foram rechaçadas por grupos
direitistas e conservadores.

Ao mesmo tempo, por meio de políticas econômicas, houve


um aumento do poder de consumo da classe trabalhadora,
que passou a ter acesso a bens até então acessíveis unica-
mente para as classes médias e para a elite (SCALON; SALATA,
2016). De acordo com Lacerda (2019), grupos direitistas pas-
saram a fazer um duro ataque a essas políticas, pois, segundo
a perspectiva desses grupos, muitos “direitos” estavam sendo
retirados daqueles que seriam a “maioria”: homens, brancos,
cis gêneros, heterossexuais e de classe média. Nesse sentido,
grupos conservadores passaram a ficar preocupados com a
manutenção de um estilo de vida sob a qual a sociedade es-
taria “acostumada” a funcionar.

É nesse contexto de ampliação de direitos sociais que o con-

71
servadorismo se articula. Assim, passa a ser veiculado um
discurso com uma perspectiva romântica em relação ao pas-
sado, muito semelhante à visão que Apple (2003) estudou
no contexto estadunidense na década de 1980. Tal qual no
Brasil atual, naquele momento grupos conservadores esta-
dunidenses organizavam respostas à ampliação de direitos
sociais ocorrida, especialmente, nas décadas de 1960 e 1970.
Tais grupos afirmavam ser necessário recuperar um passado
no qual um “‘verdadeiro saber’ e a moralidade reinavam su-
premos, onde as pessoas ‘conheciam o seu lugar’ e em que
as comunidades estáveis, guiadas por uma ordem natural,
protegiam-nos dos estragos da sociedade” (APPLE, 2003, p.
57). Nesse sentido, tais setores atacavam, ainda, o multicultu-
ralismo, entendendo o “outro” como um perigo para os “va-
lores tradicionais”. Uma das exigências, assim, passou a ser
um Estado cada vez mais forte, regulando os corpos, como é
o caso em relação aos professores e às professoras, passan-
do de uma “[...] ‘autonomia permitida’ para uma ‘autonomia
regulamentada’ à medida que o trabalho dos professores
torna-se extremamente padronizado, racionalizado e ‘poli-
ciado’” (APPLE, 2003, p. 62).

Conforme apontam alguns autores e autoras (LACERDA, 2019;


LIMA HYPOLITO; 2019), no Brasil ocorreu um processo de
reação semelhante ao dos Estados Unidos. Dentre as seme-
lhanças, destaca-se a ascensão de grupos e do pensamen-
to conservador como resultante de uma coalizão de forças
direitistas, que constituem uma aliança. Setores neoliberais,
religiosos conservadores e da classe média compõem essa
coalizão, cuja força está justamente na atuação orquestra-
da e contundente na reação ao avanço de direitos sociais de
grupos subalternizados e na imposição de suas agendas em
várias frentes. Para Lacerda (2019), não existem apenas se-
melhanças entre o movimento conservador brasileiro e es-
tadunidense, mas uma estreita relação de interferência dos
movimentos dos Estados Unidos em diferentes esferas polí-
ticas da sociedade brasileira. Para a autora, o conservadoris-
mo brasileiro que vemos avançar nas últimas décadas é, em
certa medida, uma reelaboração do neoconservadorismo dos
EUA das décadas de 1970 e 1980.

Parte dessas influências podem ser identificadas nas missões

72
evangélicas enviadas por Ronald Reagan durante o período
da Ditadura cívico-militar no Brasil. Desde então, acompanha-
-se uma disseminação dessas igrejas, dos programas de rádio
e, assim, dos princípios evangélicos no contexto brasileiro.
Portanto, grupos religiosos, de modo especial evangélicos,
constituem um braço importante do movimento conservador
brasileiro, o que é identificado, por exemplo, na atuação da
bancada evangélica na Câmara dos Deputados, a maior frente
parlamentar temática em funcionamento e que tem logrado
cargos e influências políticas importantes. Outro exemplo é
que movimentos centrais para o atual conservadorismo bra-
sileiro recebem financiamento de instituições estaduniden-
ses de direita (CASMIRO, 2018). Essas relações nos parecem
centrais e têm sido orientadoras para nossa pesquisa em an-
damento sobre políticas educacionais conservadoras.

As semelhanças não encerram aí. As pautas que ganham cen-


tralidade no movimento neoconservador estadunidense são
igualmente presentes no movimento conservador brasileiro,
dentre elas (i) o ataque aos direitos das mulheres, a grupos
LGBTQIA+ e à população negra e indígena; (ii) uma defesa
de retornos de tradições e comunidades idílicas do passado;
e (iii) a defesa de um Estado que seja rígido e controlador
nos âmbitos das políticas sociais e educacionais e, ao mes-
mo tempo, neoliberal nas políticas econômicas.

No contexto brasileiro, a romantização do passado tornou-se


mais evidente a partir das jornadas de junho de 2013, quan-
do grupos começaram a sair às ruas com cartazes pedindo o
retorno da Ditadura (TATAGIBA; TRINDADE; TEIXEIRA, 2015),
entendida como um período em que tudo funcionava bem.
Essas reivindicações tiveram prosseguimento nas manifes-
tações de 2014, sendo o combate à corrupção, associada ao
Partido dos Trabalhadores, a principal bandeira. Contudo, ar-
ticulada à questão da corrupção, havia uma diversidade de
pautas reacionárias como “o preconceito contra os nordes-
tinos e as críticas ao Bolsa Família viralizaram nas redes so-
ciais, com acentuada conotação de ódio de classe” (TATAGI-
BA; TRINDADE; TEIXEIRA, 2015, p. 202).

Com o processo eleitoral de Jair Bolsonaro, em 2018, muitas


dessas pautas passaram a ser ainda mais legitimadas. Durante

73
sua campanha eleitoral, Bolsonaro fez discursos pregando o
fim do comunismo (REUTERS, 2018), hostilizando a população
indígena (G1, 2018), atacando a população negra, ridiculari-
zando a comunidade LGBTQIA+ (EL PAÍS, 2018) etc. Uma de
suas principais bandeiras eleitorais foi a “limpeza ideológica
da escola” - o que particularmente nos interessa neste texto.
Assim, um avanço conservador na área da Educação, que já
vinha se consolidando, ganhou ainda mais legitimidade com
a eleição de Bolsonaro.

Ademais, concordamos com Lacerda (2019) que o atual con-


servadorismo brasileiro agrega um ideal punitivista reforça-
dor da militarização da sociedade, do encarceramento em
massa, do porte de armas e de medidas como a redução da
maioridade penal. Em nosso entendimento, há implicações
relevantes da disseminação desses ideais para a política edu-
cacional; afinal, esses aspectos têm relações com questões de
raça, gênero, sexualidade e classe nas escolas públicas, uma
vez que tais investidas afetam sobretudo as minorias e as po-
pulações periféricas. Nesse sentido, o conceito de “normali-
zação” (CARLSON, APPLE, 2003; FOUCAULT, 1965) e a ideia
do “medo do outro” (APPLE, 2003; 2013) são categorias po-
tentes para auxiliar no entendimento de como as iniciativas
e as políticas educacionais conservadoras que têm sido dis-
seminadas se estruturam a partir de práticas escolares opres-
sivas de classificação. A seguir, discutimos essas noções para
então nos dedicarmos a uma breve análise a respeito da mi-
litarização das escolas.

A “NORMALIZAÇÃO”
E O “MEDO DO OUTRO”
Um dos nossos argumentos, a partir da retomada proposta
sobre a disseminação crescente do conservadorismo na Edu-
cação brasileira, é de que a escola ocupa um lugar estratégico
tanto para garantir a reprodução de práticas conservadoras,
quanto para a interrupção desses movimentos (APPLE, 2017).
As disputas em torno das políticas educacionais indicam jus-
tamente essa centralidade.

Tais práticas conservadoras dizem respeito, conforme Moreira


e Candau (2003), à reprodução de uma visão monocultural da

74
Educação, a qual implica uma perspectiva homogênea e pa-
dronizada dos conhecimentos escolares e, também, da Educa-
ção (MOREIRA; CANDAU, 2003). Sabemos, como indica Seffner
(2009), que o aparelho escolar se estrutura em uma diversida-
de de procedimentos, rituais, rotinas, obrigações e códigos de
direitos e deveres. Esses são constituídos a partir da exclusão
e da classificação dos alunos de acordo com estigmas sociais,
no sentido de conservar a visão monocultural da escola, con-
tribuindo e legitimando a reprodução social em termos de
classe, raça, gênero e sexualidade. Portanto, os “outros” – po-
bres, negros, indígenas, mulheres, pessoas LGBTQIA+, etc. –,
na medida em que passaram a penetrar cada vez mais no uni-
verso escolar, têm desestabilizado, ainda que minimamente, a
lógica excludente hegemônica – o que, na ótica conservadora,
justifica as reações que temos acompanhado.

Os “outros” são importantes na perspectiva conservadora, jus-


tamente porque é em sua oposição que se afirmam as iden-
tidades modernas (FOUCAULT, 1965), “ameaçadas” por políti-
cas inclusivas. Entre outras classificações, Foucault identificava
o sujeito moderno afirmando sua racionalidade em oposição
ao Outro louco e insano; afirmando conformidade à vida mo-
derna, em oposição ao Outro delinquente e criminoso; afir-
mando a família patriarcal, em oposição às supostas neuroses
das mulheres e homossexuais (CARLSON; APPLE, 2003). Nesse
sentido, para Carlson e Apple (2003, p.26), a escola, de certa
forma, é a instituição moderna normalizadora por excelência:

Encontramos o poder normalizador na classificação, divi-


são e rotulação dos alunos e alunas em aprendizes nor-
mais ou anormais - isto é, em estudantes com alta ou bai-
xa capacidade, em estudantes de cursos propedêuticos ou
profissionalizantes, em estudantes de “educação regular”
ou especial, e em estudantes “responsáveis” e “irrespon-
sáveis” e delinquentes.

Assim, é importante considerar, quando visualizamos a am-


pliação da política conservadora, que, no contexto da socie-
dade brasileira, ao longo de sua história, foi sendo produzi-
da uma norma a partir do homem branco, heterossexual, de
classe média urbana e cristão. Essa é a identidade referência, a
identidade que não precisa ser mencionada porque é suposta,
está subentendida. Por isso os “outros”, os sujeitos “diferen-

75
tes” ou os “problemáticos” serão, em princípio, as mulheres,
as pessoas não brancas, as não heterossexuais ou não-cristãs
(LOURO, 2011). Na escola, essas práticas classificatórias são
recorrentes e têm sido relatadas em nossa literatura, como
é o caso das opressões de manifestações homossexuais (SE-
FFNER, 2009), da separação de culturas afro ou indígenas
em relação ao calendário ou ao currículo “regular” da escola
(GOMES, 2005) ou os modos de disciplinamento e avaliação
que decorrem da lógica monocultural da escola, baseada na
cultura burguesa (BOURDIEU, 2013).

O que acompanhamos em um período recente foi, portan-


to, o rompimento, ainda que muito parcial, de uma lógica da
escola como transmissora da “verdadeira cultura”. Políticas
como as que destacamos procuraram democratizar o acesso
e o currículo escolar, reforçando o papel da escola como um
lugar de potência, possibilidade e transformação das trajetó-
rias dos alunos e alunas e suas famílias.

O conceito de “normalização” e a lógica de “medo do ou-


tro” ajudam a explicar, assim, como a reação conservado-
ra a estas transformações se sustentam em um esquema
dominante na modernidade: a prática de exclusão a partir
da classificação, de modo a justificar os privilégios de raça,
classe, gênero, sexualidade, entre outros. Com o caso da
militarização das escolas, conforme discussão a seguir, pro-
curamos materializar como estas tendências conservadoras
estão se estruturando na política educacional brasileira a
partir da lógica classificatória da “normalização”.

A MILITARIZAÇÃO DAS ESCOLAS:


REABILITANDO A MORAL FRENTE À
AMEAÇA DO “OUTRO”
Ainda que nossa proposta não seja realizar, neste manuscrito,
uma exaustiva análise sobre o movimento político de milita-
rização das escolas, buscamos operar discutir como o conser-
vadorismo tem sido vivido nas escolas militarizadas e quais
são algumas das implicações deste avanço conservador.

Dentre as diversas investidas conservadoras à Educação no


Brasil, a militarização das escolas é sem dúvidas uma das

76
faces mais emblemáticas desse processo. O
processo de militarização da Educação públi- É fundamental
que se faça a
ca já estava em curso dadas as iniciativas de diferenciação

alguns estados, tendo Goiás como um pre-


entre colégios/
escolas militares
cursor dessa proposta, especialmente a par- escola cívico-
militares (ou escolas
tir da década de 1990. Entretanto, esse pro- militarizadas). As

jeto adquire outra envergadura ao se tornar


escolas militares
são as escolas das
a principal política educacional apresentada corporações, como
Exército, Marinha,
pelo presidente Jair Bolsonaro, quando cria Aeronáutica, Polícia
Militar e Corpo
o Programa das Escolas Cívico-Militares, o de Bombeiros e

Pecim (BRASIL, 2019). são vinculadas a


órgãos como as
Forças Armadas
O programa propõe a transformação de pelo e as Secretarias
de Segurança. Os
menos 216 escolas públicas, escolhidas me- colégios militares,

diante um conjunto de critérios, em escolas


que se apresentam
em pequeno número
cívico-militares até 2023 . A militarização das no Brasil, são
regidos por normas
escolas ocorre em duas frentes de modo es- próprias e recebem
financiamento
pecial: a) na inserção de militares da reserva dos seus órgãos

das forças armadas, das polícias militares ou reguladores, cujos


recursos são
do Corpo de Bombeiros no cotidiano e nas significativamente
superiores aos
rotinas escolares; e b) no compartilhamento destinados às

da gestão escolar com os militares, que pas-


escolas públicas em
geral. Já as escolas
sam a gerir e a supervisionar aspectos admi- cívico-militares, são
escolas públicas,
nistrativos e disciplinares. das redes estaduais
ou municipais,
vinculadas às
A militarização das escolas apresenta-se como Secretarias de

uma alternativa potente para a retomada da Educação que, por


meio de convênio
tradição, da moral, da autoridade e do pa- com as Polícias
Militares e Corpo de
triotismo, que, na perspectiva conservado- Bombeiros, passam

ra, foram perdidas pela escola pública, dado


a compartilhar a sua
gestão com esses
seu caráter multicultural e democrático. Essa quadros militares
e a contar com a
questão fica bastante patente quando, no ato presença de militares

de lançamento do programa, o presidente Jair


no cotidiano escolar.
(SANTOS. 2020)
Bolsonaro faz a seguinte afirmação, em tom
irônico: “E o que aconteceu com o ensino no PALÁCIO DO
Brasil ao longo das últimas décadas? Demo- PLANALTO. Discurso
do Presidente da
cratizou-se o ensino” . O presidente sugere República, Jair

no discurso, assim, que os problemas educa-


Bolsonaro, durante
cerimônia de
cionais brasileiros são decorrentes da demo- Lançamento do
Programa Nacional
cratização das escolas. de escolas Cívico-
Militares - PECIM -
Palácio do Planalto.
Como indica esta fala, o Pecim (e outras inicia- 05 de setembro de

77
tivas semelhantes de militarização das escolas 2019. Disponível
em: <https://www.
já em curso em alguns estados e no Distrito gov.br/planalto/
Federal) se alicerça em princípios conserva- pt-br/acompanhe-
o-planalto/
dores. Estes, como temos observado, podem discursos/2019/
discurso-do-
ser vistos em ao menos três eixos de atuação: presidente-da-

(i) na gestão da escola; (ii) na disciplina e con- republica-jair-


bolsonaro-durante-
trole da rotina e dos conhecimentos escola- cerimonia-de-
lancamento-do-
res; e (iii) no ataque à diversidade. Em cada programa-nacional-

uma dessas frentes podem ser identificadas


de-escolas-civico-
militares-pecim>
diversas dinâmicas de normalização em ope- Acesso em 18 ago.
2021.
ração, em especial de classe, raça, gênero e
sexualidade, as quais queremos destacar.

A portaria de nº 1.071, de dezembro de 2020


(BRASIL, 2020), dentre outras questões, es-
tabelece os critérios para adesão das es-
colas ao programa, entre os quais figuram
as seguintes condições: (i) atendam alunos
em situação de vulnerabilidade social; (ii)
apresentem desempenho abaixo da média
estadual no Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica – Ideb; (iii) apresentem o
número total de matrículas de 501 a 1.000;
e (iv) tenham a oferta das etapas anos finais
do Ensino Fundamental regular e/ou Ensi-
no Médio regular. Os critérios revelam que
o Pecim se destina a um público bastante
definido: instituições de grande porte que
atuam em comunidades populares e que
atendem especialmente pré-adolescentes
e adolescentes. Trata-se, portanto, de um
projeto de escolas para jovens pobres.

No contexto brasileiro, não é possível que


essa questão seja dissociada de lentes que
levem em conta as dinâmicas de raça. Da-
dos do Censo Escolar de 2020 revelam que
pretos e pardos são a maioria (aproximada-
mente 54,8%) em todas as etapas de ensino
da Educação Básica no Brasil (INEP, 2021),
à exceção da Educação Infantil. Se consi-
derarmos escolas em regiões periféricas, os

78
percentuais revelam ainda mais os resultados de anos de
racismo estrutural no país, expondo índices ainda maiores
de crianças e jovens pretos e pretas nessas regiões (MO-
REIRA, 2017). Assim, a militarização trata, em boa medida,
de um projeto de escola para negros pobres, considerados
aqueles que fracassam nos estudos e requerem formas mais
adequadas (rígidas) de gestão (ou controle).

Nesse sentido, vale ressaltar que o Pecim se inspira em


modelos já em curso no país, como é o caso do estado de
Goiás (SANTOS, 2020; ALVES; TOSCHI, 2019). As experiên-
cias já constituídas demonstram que tipo de gestão escolar
é esta, com um elevado grau de controle e padronização
das condutas escolares (CRUZ, 2017; CABRAL 2018). Dife-
rentes regimentos orientam as escolas, os quais tratam das
condutas, das vestimentas, das rotinas escolares, das prá-
ticas militares previstas e, inclusive, da extensa tipificação
das sanções previstas, conforme a gravidade da infração
cometida pelos/as estudantes.

Os trechos a seguir, retirados do regimento escolar dos co-


légios militarizados do Distrito Federal, exemplificam o pro-
cesso de disciplinarização e apagamento da diversidade e
das culturas juvenis aos quais os alunos e as alunas são sub-
metidos nessas escolas:

§ 1º São transgressões disciplinares de natureza LEVE:


[...] Comparecer ao CCMDF com cabelo em desalinho ou
fora do padrão estabelecido pelo Regulamento dos Uni-
formes;
[...]
§ 2º São transgressões disciplinares de natureza MÉDIA:
[...] Ler ou distribuir, dentro do CCMDF, publicações es-
tampas ou jornais que atentem contra a disciplina, a mo-
ral e a ordem pública”;
[...]
§ 3º São transgressões disciplinares de natureza GRAVE:
[...] Praticar atos contrários ao culto e ao respeito aos sím-
bolos nacionais;
[...] Provocar ou tomar parte, uniformizado ou estando na
unidade escolar, em manifestações de natureza política;
[...]. (DISTRITO FEDERAL, 2019).

79
Os excertos, extraídos do extenso rol de transgressões tipifi-
cadas nos documentos, revelam uma cultura escolar padro-
nizada, vigiada e controlada. Há uma ênfase na valorização
do civismo e na retomada do culto aos símbolos nacionais
e às práticas militares. A ideia de disciplina escolar assume
uma perspectiva hierárquica, com viés punitivista, haja vista
que as condutas são compreendidas a partir de uma lógi-
ca da transgressão. Comportamentos desviantes da norma
estabelecida são tomados como infrações leves, modera-
das e graves, para as quais há a respectiva sanção previs-
ta nos regimentos. As medidas pedagógicas disciplinares,
comuns no ambiente escolar democrático, são substituídas
por Termos de Ajustamento de Conduta, revelando, inclusi-
ve, uma importação da cultura e da linguagem policial para
a escola. As escolas militarizadas se efetivam, assim, como
uma alternativa para o controle dos jovens e das jovens, das
culturas juvenis e da diversidade, especialmente de grupos
subalternizados e negros.

Considerando-se a lógica da “normalização”, pode-se perceber


o conservadorismo radical desta perspectiva frente aos cor-
pos que frequentam as escolas populares, incluindo-se ques-
tões de ordem religiosa, racial e de sexualidade, por exemplo.
O controle dos corpos, como em termos de corte de cabelo
ou dos trajes, aponta para a violência frente à diversidade e às
formas de ser no mundo dos grupos populares que passaram
a habitar cada vez mais as escolas públicas (especialmente no
caso das regiões consideradas mais “diferentes”, ou mais po-
bres, em relação à “verdadeira cultura”, tradicionalmente legi-
timada pela escola, e reforçada diante de um processo de mili-
tarização). Da mesma forma, como o regimento acima coloca,
a definição do que é uma leitura moral, dentro da ordem e
da disciplina, fica a cargo da gestão da escola, sendo suposto
que os alunos e as alunas simplesmente se ajustem a esta or-
dem, de preferência mantendo-se silentes, obedientes e mes-
mo agradecidos por estarem ali (SEFFNER, 2011).

Novamente, chama a atenção que estas práticas valem para


o caso dos alunos classificados a priori justamente como “de-
sajustados”, “delinquentes”, frente à monocultura da escola,
ou seja, frente ao normal, branco, homem, heterossexual, cis-
gênero e cristão. Por fim, a manifestação política destes su-

80
jeitos também é reprimida a partir de um “medo do outro”
e em nome de um projeto de reforma da Educação baseado
no passado idealizado, que se aproxima da organização es-
colar proposta durante o regime militar.

Restam inquietações, conforme os princípios éticos e teóri-


cos de uma educação inclusiva e democrática: quem pode se
manifestar politicamente? O que é manifestação política? A
quem estas reformas educacionais efetivamente atendem?
Que conceito de qualidade da Educação é este que passa a
predominar? Mais do que retóricas, estas são perguntas que
precisam ser consideradas seriamente por pesquisadores e
pesquisadoras, professores e professoras e formuladores e
formuladoras de políticas frente ao radicalismo conservador
a que caminham nossas escolas públicas populares.

Os documentos que regulam escolas militarizadas já em fun-


cionamento são reveladores, também, no que concerne a ques-
tões de gênero e sexualidade. A atuação de tais dinâmicas age
especialmente no ajustamento dos comportamentos e acaba
por resgatar formas de ser homem e de ser mulher, por meio
do controle do trabalho das professoras e também por meio
da introdução dos jovens e das jovens em uma cultura milita-
rizada, de herança patriarcal, heteronormativa e policialesca,
radicalizando e legitimando, assim, o pensamento hegemô-
nico sexista. Os excertos a seguir do regimento dos colégios
militares de Goiás, ilustram o elevado grau de controle sobre
as meninas, a quem é dedicado longo trecho de descrição de
vetos em relação às suas vestimentas e adereços.

a) as alunas poderão usar brincos discretos que não fujam


a extensão inferior da orelha (sendo proibidos brincos que
fiquem pendurados). Poderão ainda, usar um anel pratea-
do ou dourado em cada mão (com exceção do dedo pole-
gar) – no máximo com 0,4 mm de espessura;
b) mesmo dentro do padrão não serão permitidos brincos
e anéis esdrúxulos, de cunho obsceno, que motive a violên-
cia ou que fira os símbolos e os Selos Nacionais. (Os alunos
noivos ou casados poderão usar suas respectivas alianças);
c) as alunas só poderão usar maquilagens leves quando
uniformizadas.
d) as alunas só poderão usar esmaltes de cores e desenhos
discretos. (GOIÁS, p. 71, 2018)

81
O padrão de vestimentas, cabelos e adereços das alunas é pres-
crito no documento, o que não ocorre na mesma proporção
no caso dos alunos. É importante mencionar, ainda, que o regi-
mento prevê o padrão de vestimenta e conduta de meninos e
meninas, evidenciando uma lógica binária, que ignora a diversi-
dade de gênero, étnica, cultural, religiosa e de orientação sexual
existentes nas comunidades escolares. A imposição de padrões
rigorosos de vestimentas e comportamentos, bem como a ti-
pificação de condutas inadequadas e suas respectivas sanções
explicitam o sufocamento da diferença, do multiculturalismo,
da diversidade, da livre circulação de ideias e crenças.

O que acompanhamos, assim, é que, em nome de “ordem”,


“disciplina”, “neutralidade” ou “qualidade”, se reforçam e se
legitimam (dado o lugar institucional da escola em nossa
sociedade) princípios conservadores, em particular em ter-
mos de gênero e sexualidade, nas escolas militarizadas para
comunidades populares. No mesmo caminho que projetos
como o Escola sem Partido (PENNA, 2017) já indicavam, a
escola, ao invés de ser pensada como o lugar da inclusão,
da diversidade e da aprendizagem (especialmente diante
de sua recente e ainda batalhada universalização em ter-
mos de acesso), se consolida como o ambiente ideal para a
classificação, a exclusão e a injustiça, baseada na monocul-
tura imaginada como idílica por grupos conservadores, que
se beneficiam destes estigmas.

Os “diferentes”, que não se enquadram nos padrões do que


é ser homem ou do que é ser mulher, que se recusam a ter
suas mãos, rostos, corpos controlados de acordo com as nor-
mas dos grupos dominantes, que se recusam a seguir sen-
do vigiados e levados a mais sofrimento e a mais violências,
não têm vez na escola militarizada que se desenha, restando
como “anormais”. O fracasso, na perspectiva que se dissemi-
na, não é da escola, como se não fosse direito de todos e to-
das a educação pública de qualidade. O fracasso passa a ser
do próprio aluno ou aluna, tido como incapaz de se ajustar à
normalidade e, portanto, merecedor de seu destino.

Essa é a radicalização conservadora que vem ocorrendo em


nossas escolas, cuja análise se faz possível com a mobiliza-
ção das categorias de “normalização” e do “medo do outro”.

82
Nossa perspectiva, portanto, procura contribuir para que as
questões de opressão de classe, raça, gênero, sexualidade,
entre outras, na escola sejam centralizadas no debate da po-
lítica educacional, especialmente em tempos de reações tão
significativas dos campos autoritários de nossa sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O avanço do conservadorismo no Brasil e nas políticas educa-
cionais é um fenômeno significativo, sobre o qual se faz ne-
cessário continuidade e aprofundamento de estudos e pesqui-
sas. No Brasil, a exemplo do que ocorreu nos Estados Unidos,
o movimento conservador é resgatado e rearticulado diante
do avanço de políticas e de direitos sociais de grupos histo-
ricamente marginalizados. Argumentamos que as conquistas
legais obtidas especialmente a partir dos anos 2000 no âmbi-
to dos direitos foram decisivas para a mobilização de grupos
conservadores, os quais passam a perceber tais avanços como
ameaças ao status quo e à manutenção de seus privilégios.

No âmbito da Educação, o processo de militarização das escolas


ganha ainda mais força após a criação do Programa das Esco-
las Cívico-Militares em 2019, tornando-se uma política nacional.
Tal processo é expressão emblemática de como os princípios
conservadores cada vez mais propõe-se a orientar e controlar
as escolas e seus sujeitos. Como vimos, o programa vai na con-
tramão do preconiza a Gestão Democrática, prevista na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (Lei Nº9.394/1996), e fere dura-
mente a autonomia escolar, confrontando-se com o pluralismo
de ideias, com a diversidade e com a inclusão de todos e todas.

Nesse sentido, nossa análise propõe a consideração da cate-


goria de “normalização”, bem como a relevância da construção
discursiva de um “Outro” para a compreensão do avanço con-
servador na escola brasileira contemporânea. Conforme des-
tacado ao longo do texto, o conservadorismo tem profunda
relação com tais categorias. Ao “normalizar” e criar “o outro”
como aquele/a que deve ser temido/a há a sustentação de um
esquema dominante característico da modernidade. Quando a
ideia de norma e de outro é trazida à cena, reafirma-se o pres-
suposto da exclusão amplamente alicerçada em questões de
raça, classe, gênero, sexualidade, entre outros.

83
Assim, por meio da “normalização” e do “medo do outro”,
passa-se a justificar uma série de políticas educacionais que
reiteram posições de privilégios. Cabe ainda ressaltar que es-
tas duas categorias utilizadas como lentes analíticas neste tra-
balho reforçam o conceito de conservadorismo com o qual
temos operado em nossas pesquisas: a defesa, por parte de
grupos hegemônicos, da manutenção de um status quo – que
é tanto cultural (em termos de valores morais e conhecimen-
tos escolares) quanto econômico (em termos da manutenção
de posições de classe em nossa sociedade).

Desta forma, terminamos com um convite para um olhar


sensível e coletivo, no campo dos estudos educacionais, para
os desdobramentos opressivos em termos de classe, raça,
gênero, sexualidade, entre outros, que se exacerbam fren-
te às atuais tendências autoritárias conservadoras na nossa
política educacional.

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87
88
06.

O BOLSONARISMO
COMO EXPRESSÃO
NEOFASCISTA NO
CENÁRIO SOCIOPOLÍTICO
BRASILEIRO: NOTAS

O
INTRODUTÓRIAS
objetivo deste ensaio é discutir psicossocial-
mente o bolsonarismo a partir de coordena- JOÃO PAULO
PEREIRA
das analíticas apresentadas pelas reflexões de BARROS
Ignácio Martín-Baró acerca da violência e da
guerra no contexto latino-americano. Tendo LUIS FERNANDO
em vista a relevância de problematizar as re- DE SOUSA
BENICIO
lações entre violência e autoritarismo no Bra-
sil, tomamos o bolsonarismo como objeto de DAGUALBERTO
análise neste capítulo por considerá-lo um BARBOZA DA
SILVA
emblema das peculiaridades das condições
de emergência e das expressões da ascensão
da extrema-direita no Brasil na atualidade O
bolsonarismo será considerado nesta discus-
são como um espectro político sedimentado,
sobretudo, a partir da campanha presidencial
de 2018. Ou seja, não se subsume o bolsona-
rismo à figura pessoal de Jair Messias Bolso-
naro, já que agrupa, sob tal significante, ato-
res políticos diversos em um certo momento
histórico (NUNES, 2021).

O espectro do bolsonarismo, pois, compor-


ta segmentos sociais heterogêneos em sua
base de apoio, como oficiais das forças ar-
madas, elites do capital financeiro e do agro-
negócio, trabalhadores da segurança pública,
setores diversos da classe média, milícias e

89
grupos religiosos fundamentalistas com ampla capilaridade
social (REIS, 2020; REIS, 2021). Como heterogêneo espectro
político e coletivo, o bolsonarismo aglutina também distintas
matrizes discursivas, tais como militarismo, empreendedoris-
mo meritocrático, ultraliberalismo, anti-intelectualismo, an-
ticomunismo, anticorrupção e conservadorismo, bem como
moralidades comuns ligada ao individualismo, punitivismo,
ódio às lutas vistas como “identitárias” e defesa da ordem
acima das leis que configuram o Estado Democrático de Di-
reito (NUNES, 2021).

Este texto foi escrito em meio às mobilizações, realizações


e repercussões de manifestações bolsonaristas no dia 7 de
setembro de 2021. Nas mobilizações prévias pelas redes
sociais e nos atos de rua ocorridos nessa data, assistiu-se
à culminância da frequente incitação bolsonarista a pau-
tas antidemocráticas, expressas por pedidos de intervenção
militar, ameaças de rupturas institucionais com nítido teor
golpista, suspeição do sistema eleitoral e descredibilização
das urnas eletrônicas em defesa da volta do voto impres-
so, ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) e promessas
de que decisões dessa corte poderiam ser descumpridas.
Tais atos não devem ser subestimados. Embora quantitativa-
mente aquém do esperado por seus organizadores, a ade-
são de seguidores do presidente da República em grandes
cidades do Brasil, como Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro,
pode ser considerada significativa e audaz, principalmente
por ter ocorrido em meio ao acirramento de crises sanitária,
com quase 600 mil mortes por Covid-19 devido ao descaso
do governo federal em relação à pandemia; política, com
uma série de denúncias de corrupção ligadas à compra de
imunizantes para o enfrentamento da pandemia; e socioe-
conômica, com elevação da inflação, da miséria, do desem-
prego, do preço dos combustíveis e dos alimentos.

Reconhecemos, aqui, o bolsonarismo como expressão ne-


ofascista peculiar ao contexto brasileiro na atualidade. Se-
gundo Lazzarato (2019), o neofascismo trata-se de uma mu-
tação do fascismo histórico que, mais do que populismo de
direita, assume verve extremista, autoritária, ultraliberal e
paramilitar. Sua mobilização reacionária de massas (REICH,
2001) costuma, para inflamá-la, usar, retoricamente, slogans

90
nacionalistas e símbolos da pátria, mas hasteando, na prá-
tica, bandeiras ultraliberais que exaltam o mercado e des-
montam o Estado Social à proporção que fortalecem um
Estado Policialesco e Punitivo-Penal para reprimir segmen-
tos subalternizados e grupos que defendem pautas ligadas
ao campo dos direitos humanos.

Este ensaio adota como ponto de partida a ideia de que o


bolsonarismo reuniria as seguintes características que reme-
tem a esses processos de neofascistização: culto à violência;
defesa de hierarquias sociais e reacionarismo em nome da
tradição ligada a um passado mítico; mitificação de um lí-
der soberano, considerado acima da lei; anti-intelectualismo
e ataque à Universidade e à Ciência; defesa do mercado, da
meritocracia e do ultraindividualismo em contraponto ao sis-
tema de proteção e aos laços de solidariedade social; uso da
propaganda para disseminar desinformação e desqualificar
instituições e ideias democráticas, sob pretexto de combate
à corrupção; e defesa da ordem a partir de uma política bi-
nária de “nós x eles” (STANLEY, 2019).

Para efetuar este debate psicossocial sobre o bolsonarismo,


trazemos as coordenadas analíticas de Martín-Baró por consi-
derarmos as discussões desse psicólogo social uma das maio-
res referências para uma práxis problematizadora e transfor-
madora em Psicologia Social na América Latina. Também o
fazemos por entendermos que a violência e o autoritarismo
são marcas opressivas que conectam diversos países latino-
-americanos historicamente.

A Psicologia da Libertação proposta por Martín-Baró trata-


-se de uma Psicologia voltada à transformação de estruturas
e de relações de opressão, tomando por base a realidade la-
tino-americana. Sua obra está relacionada à realidade de El-
-Salvador no último quarto do século XX, marcada por forte
desigualdade social e por um contexto de guerra.

Em se tratando da tematização sobre autoritarismo como


dispositivo de violência, faz-se coerente a interlocução com
Martín-Baró, que foi um dos pioneiros, no campo da Psicolo-
gia Social, a traçar discussões críticas sobre aspectos psicos-
sociais da violência no contexto latino-americano, tocando

91
em questões sobre os aspectos psicossociais da violência, as
condições e efeitos de seu transbordamento, os fundamen-
tos, os objetivos, os métodos e as consequências de aspectos
psicossociais da lógica da guerra adotada em cenários auto-
ritários e de intensificação de opressões. Destacar, portanto,
alguns pontos-chave da discussão de Martín-Baró no campo
da Psicologia Social sobre aspectos psicossociais da violência
ajuda a ilustrar suas contribuições teórico-epistemológicas e
ético-políticas para a produção de conhecimento crítico e im-
plicado em Psicologia Social. Seus estudos sobre a violência
enfocaram três questões principais: (a) as definições teóricas
de violência, seu caráter histórico e suas manifestações par-
ticulares; (b) os efeitos psicossociais da violência; e (c) a rela-
ção entre guerra e violência (MARTINS; LACERDA JR, 2014).

Em suas discussões sobre El Salvador, Martín-Baró apontou


que os obstáculos à vigência de autênticos regimes demo-
cráticos na América Latina eram tanto de ordem objetiva,
tais como a estruturas econômicas desiguais, a hegemonia
imperialista norte-americana e atuação autoritária de forças
militares, quanto de ordem subjetiva, como a alienação dos
marcos de referência das maiorias populares que resulta na
inibição de possíveis movimentos de mudança. Para aten-
der ao objetivo deste capítulo, serão usados três textos de
Martin-Baró sobre sua análise psicossocial da violência em
El Salvador: “El Salvador: um psicólogo social frente a situ-
ações-limite”; “Da guerra suja à guerra psicológica: o caso
de El Salvador”; e “A violência na América Central: uma vi-
são psicossocial” (MARTÍN-BARÓ, 2017).

Em seu texto “El Salvador: um psicólogo social frente a situ-


ações-limite”, escrito nos anos 1980, Martín-Baró (2017) nos
aponta pistas importantes para uma análise psicossocial da cri-
se gerada pela escalada de autoritarismos e opressões. Nessa
análise, são apresentados três aspectos: transbordamento da
violência, polarização social e institucionalização da mentira.
Tomando tais pistas, que punham em xeque a democracia na-
quele país, buscaremos discutir as seguintes questões: Como
analisarmos psicossocialmente o transbordamento da violên-
cia, a polarização social e a institucionalização da mentira como
elementos que também caracterizam a crise democrática im-
pulsionada pelo bolsonarismo? Que fatores de ordem estru-

92
tural, conjuntural e subjetiva constituem a violência cultuada
e propagada pelo bolsonarismo? Como a institucionalização
da mentira se relaciona aos fundamentos, objetivos, métodos
e efeitos da lógica de guerra e da produção de inimigos arre-
gimentados pelo bolsonarismo?

A VIOLÊNCIA BOLSONARISTA:
ARTICULAÇÃO DE ASPECTOS
ESTRUTURAIS E CONJUNTURAIS
DA REALIDADE PSICOSSOCIAL
BRASILEIRA
Martín-Baró (2017) assinalou que o transbordamento da vio-
lência no contexto de crise psicossocial em El Salvador se ma-
nifestava em três níveis: criminal (assassinatos), bélica (conflitos
armados) e repressiva (violência exercida pelo aparato militari-
zado estatal). Tais níveis também estão presentes no contexto
de acirramento da violência nos últimos anos no Brasil, o que
mostra que esse fenômeno deve ser analisado considerando
também suas continuidades históricas e suas ameaças à real
consolidação da democracia em contextos latino-americanos.

Assim como podemos entender a partir de Safatle (2018) so-


bre características do fascismo e suas formas de expressão no
Brasil, nos últimos anos, a ascensão bolsonarista ratificou a
exaltação da violência como elemento fundamental de coesão
social dos segmentos heterogêneos que compõem sua base,
por meio do elogio a torturadores, do fortalecimento de mi-
lícias, do incentivo contumaz ao armamento da população e
do apoio tanto de militares quanto de substantiva parcela de
trabalhadores de segurança pública, por questões ideológicas
e também pragmáticas. Por seu turno, um ethos violento se
expressa seguidamente pela insensibilidade em relação a gru-
pos historicamente oprimidos pela violência criminal, bélica e
repressiva. Tal insensibilidade é retroalimentada por uma con-
cepção paranoica de estado social, que se nutre de uma pers-
pectiva antidemocrática e antipopular de segurança pública,
com impactos nefastos em existências e territorialidades peri-
ferizadas.

As contribuições da análise psicossocial de Martín-Baró (2017)

93
também apontaram para o fato de que a violência em ascen-
são em contextos autoritários tinha, dentre seus fatores cons-
titutivos, um fundo ideológico (sustentador de desigualdades)
e um contexto possibilitador (ligado à institucionalização da
violência e à fortificação de grupos armados e instrumentos
mortíferos) a partir dos quais a violência passa a encontrar
sentido e se banaliza inclusive no âmbito das experiências
singulares dos sujeitos. Tal prisma analítico nos ajuda a pen-
sar que a violência intrínseca ao bolsonarismo se constitui na
articulação de aspectos macropolíticos, de caráter estrutural
e conjuntural, e micropolíticos, ligados aos afetos e aos pro-
cessos de subjetivação produzidos nesses contextos.

Uma das peculiaridades da ascensão do bolsonarismo como


expressão da extrema-direita no Brasil, é que, em nosso ce-
nário, o diagrama neofascista-capitalista se articula a diagra-
mas como o colonial-escravagista e o autoritário-militarizado.
Então, tais expressões de extremismo político estão ligadas
à própria sustentação das desigualdades engendradas pela
maquinaria capitalista. Para Lazzarato (2019), práticas extre-
mistas antidemocráticas, que articulam hierarquias ligadas
ao racismo e ao sexismo, são parte do próprio funcionamen-
to da acumulação capitalista. Em direção semelhante, Hur e
Sandowal (2020) destacam que a racionalidade bolsonarista
é coerente com a manutenção da máquina do capital e não
um ponto fora da curva ou fenômeno acidental.

Outro aspecto estrutural constitutivo da violência do bolso-


narismo é sua herança colonial, ligada ao racismo estrutu-
ral e às hierarquias de gênero correlativas ao patriarcado e à
cisgeneridade. Afinal, como já debatia Césaire (2020), a base
do fascismo está no colonialismo, sobretudo no que diz res-
peito à sua operação de invenção e desumanização do Ou-
tro. Já Mbembe (2021), em seu ensaio sobre necropolítica,
aponta que o laboratório para o que vimos na experiência
nazifascista foi a experiência da colonização, que se atualiza
à medida que se naturaliza, no contemporâneo, a violência e
o genocídio, brutalizando-nos afetivamente.

Um terceiro fator estrutural para o acirramento da violência


correlativa ao bolsonarismo é nossa herança autoritária (REIS,
2021). Tal espectro político e coletivo espetaculariza uma lógi-

94
ca necropolítica que, além do racismo e da lógica escravista e
patriarcal, aproveita-se de outras feridas históricas não cicatri-
zadas, tais como o mandonismo, o patrimonialismo, a corrup-
ção e a naturalização da intolerância (SCHWARTZ, 2019).

Já dentre os aspectos conjunturais, cabe mencionar a ascensão


da extrema-direita em diversos países, a exemplo da eleição de
Donald Trump nos EUA, atuando dentro das instituições demo-
cráticas para corroê-las. Especificamente no contexto brasilei-
ro, destaca-se também a descredibilização do sistema político
entre 1988, data da promulgação da Constituição Federal atu-
al, e 2018, quando da eleição presidencial de Jair Bolsonaro.
Nesse ínterim, sobressaem-se as manifestações de 2013, em
um contexto de insatisfação com partidos tradicionais e de cri-
se econômica mundial desde 2008, a qual atingiu o Brasil mais
fortemente nos anos seguintes. Também se destaca o golpe
de 2016, que resultou no impeachment da presidenta Dilma
Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT). Para entender o
resultado eleitoral de 2018, é necessário considerar a reiterada
produção do antipetismo e perseguição aos demais partidos
de esquerda, demandando alternativas “antissistema” e resul-
tando na prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva no
contexto de exaltação de diversas ilegalidades do lavajatismo.
Isso criou condições para a emergência de figuras políticas que
se colocavam como salvadoras e aptas a combater “a corrup-
ção” e “a velha política” (REIS, 2020).

Ainda em termos de contexto possibilitador, o bolsonarismo


é um desdobramento da peculiar ascensão do neoliberalismo
no Brasil, cujo efeito foi o alargamento da condição de subal-
ternização e de corpo supérfluo para os mais diversos seg-
mentos subalternizados no contexto neoliberal, imprimindo-
-lhes uma lógica sacrificial segundo a qual “a economia não
pode parar”. Para Mbembe (2019), o neoliberalismo mostra,
de modo ainda mais escancarado, como a democracia liberal
e a colonialidade se distanciam apenas aparentemente.

Discussões como a de Wendy Brown (2019) e Maurizio Laz-


zarato (2019) mostram contundentemente como a ascensão
de movimentos antidemocráticos é um fenômeno imanente
ao neoliberalismo. Lazzarato (2019), nesse sentido, frisa que
o neoliberalismo tem uma genealogia violenta e uma das

95
condições para o seu desenvolvimento tem sido a articulação
entre capital e militarização, não havendo incompatibilidade
entre ditadura e neoliberalismo. No Brasil, esse fenômeno
ganha expressão a partir do desapreço histórico da elite bra-
sileira à democracia. Como exemplo atual disso, podem ser
citadas as “motociatas” durante a pandemia e diversos outros
atos públicos bolsonaristas clamando por intervenção mili-
tar, decretação de estado de sítio, fechamento de instituições
como o STF e o Congresso Nacional, pondo em suspeição
o sistema eleitoral brasileiro, com público majoritariamente
branco, masculino e de classe média, que usam, cinicamente,
a pauta da defesa da “liberdade de expressão” para a defesa
da liberdade de opressão de grupos subalternizados.

Com sua discussão sobre o “corpo noturno da democracia”,


Mbembe (2019) argumenta que a brutalidade e a violência
não foram senão toleradas e abafadas em democracias li-
berais, na medida em que se dirigiram de forma precípua às
populações historicamente oprimidas pelo poder colonial.
Para o autor, o neoliberalismo opera uma bifurcação em que
existem duas ordens, formadas a partir de um núcleo racial:
uma ordem dos “semelhantes” e uma ordem dos “não seme-
lhantes”. Sobre os “não semelhantes” recaem os mecanismos
mortíferos alicerçados por essa ideia de supremacia branca
decorrente da constituição da branquitude como um mode-
lo de humanidade universal (CARONE; BENTO, 2014).

Lazzarato (2019) também aponta que todo o diagrama da


subjetivação neoliberal, ligado à ideia do “capital humano”
e da produção de sujeitos concorrenciais como um caminho
apregoado para realização pessoal, teria como contraface o
extermínio, o silenciamento e a repressão de muitas popu-
lações. Seguindo essa chave de leitura, as formas de subjeti-
vação neoliberal não só induzem um individualismo despoli-
tizante, a partir do qual o indivíduo se vê permanentemente
endividado, frustrado e angustiado. Elas criam, ao mesmo
tempo, condições para o recrudescimento de micropolíticas
fascistas na esteira do fracasso das políticas econômicas ul-
traliberais, que produzem desemprego, pauperização e des-
proteção social, maximizando a precarização sistemática e
desigual da vida da maioria da população.

96
Além dos aspectos de cunho macropolíticos, estruturais
e conjunturais, isto é, do fundo ideológico e do contexto
possibilitador, tal como aborda Martín-Baró (2017), é ne-
cessário considerar um terceiro fator constitutivo aponta-
do por aquele psicólogo social para transbordamento da
violência: a equação pessoal, nas palavras dele, ou, como
trabalharemos, o plano micropolítico dos afetos mobili-
zado para configurar a adesão subjetiva ao ethos violento
bolsonarista. Ou seja, para pensar o bolsonarismo como
expressão do extremismo neofascista no Brasil, importa
analisar o circuito de afetos relacionados à adesão sub-
jetiva de parcela significativa da população a discursos e
práticas autoritárias que o caracterizam.

Dentre as condições e expressões autoritárias do bolsona-


rismo, destaca-se um modelo de identificação mitificador
que se aproveita da não elaboração de traumas coloniais
(COIMBRA, 2019; MOMBAÇA, 2019), bem como da estrutu-
ra necropolítica do Estado, que vem operando por uma ló-
gica de fazer desaparecer e a potencializa (PELBART, 2019).
Como pôde o bolsonarismo tornar-se uma identidade co-
letiva capaz de aglutinar molecularidades dispersas, sendo
uma combinação de ultraliberalismo, anticomunismo e rea-
cionarismo moral (MIGUEL, 2019; SOLANO, 2019)? Um dos
seus contextos possibilitadores foi o crescimento de coleti-
vos sociais lançados a sofrimentos relacionados à angústia,
ao esgotamento, à frustração, à desesperança, à desorien-
tação, à dívida pela máquina do capital que buscam anco-
ragem em novas/velhas ofertas políticas que se anunciam
“antissistema” e se personalizam na imagem de lideranças
redentoras (HUR; SANDOWAL, 2020).

Articulando fundo ideológico, contexto possibilitador e equa-


ção social, isto é, planos macro e micropolíticos, bem como
condições estruturais, conjunturais e subjetivas, apontamos
que, para se sustentar, tal qual outras expressões neofascis-
tas mundo afora, o bolsonarismo visa mobilizar permanen-
temente em seus apoiadores afetos como medo, ódio, res-
sentimento e identificação (COSTA, 2019). Desse modo, um
dos traços que produzem e sustentam, psicossocialmente, o
bolsonarismo é o ressentimento branco-cis-hétero-patriar-
cal e a busca de manutenção de seus privilégios.

97
O fortalecimento dessa retórica antissistema e sua utilização
por grupos de extrema direita conseguiram mobilizar um con-
junto de crenças e modulações de afetos que se propunham
a “acolher” esses grupos sociais subalternizados lançados ao
desemprego, ao esgotamento e ao desamparo social frente
ao acirramento de desigualdades, o que é uma dentre as vá-
rias explicações para a adesão de populações empobrecidas
ao bolsonarismo, a despeito de sua grande preocupação em
favorecer elites econômicas e políticas. Ao mesmo tempo, tal
retórica antissistema conseguiu aglutinar segmentos da classe
média e da elite branca e cis-heteronormativa, caracterizada
pelo reacionarismo moral e que, por isso, sentia-se ameaçada
por governos de esquerda e pelas políticas afirmativas. Toda
a retórica antissistema aparecia sob a falácia de “combate à
corrupção” política e a comportamentos “corrompidos”, lo-
calizados, não por acaso, nas existências cujas performances
fogem ao modelo cis-hetero-patriarcal-elitizado que se vi-
sava “conservar”. Isso criou um modelo de identificação que
gerou uma figura mistificada junto a qual os seus apoiadores
se reconhecem e se sentem autorizados a também agir de
forma violenta e intolerante.

A despeito da retórica patriota de se dizer obediente às


“quatro linhas da Constituição”, investir na tensão é uma das
estratégias principais de disseminação de ódio, a partir de
conservadorismo moral e religioso. Lazzarato (2019) chama
atenção para o fato de que a ascensão dos neofascismos,
como máquina de guerra do capital, repercute na instau-
ração de guerra contra a própria população, transforman-
do a crise em um modo de governo (ALLIEZ; LAZZARATO,
2021), devendo ser acionada permanentemente. Vale des-
tacar que desde 2018, a partir das eleições, alguns símbolos
e gestos marcam a performatividade política do bolsonaris-
mo, como: a posse da Bíblia, o uso da continência militar, a
camisa da seleção da Confederação Brasileira de Futebol e,
finalmente, o gesto de arma com a mão, que viralizou entre
seus seguidores. O gesto de arma como traço performáti-
co do bolsonarismo não se restringiu à campanha eleitoral,
sendo utilizado como forma de insuflar seus seguidores em
muitos momentos mesmo após sua eleição.

O bolsonarismo se relaciona à ideia de que vivemos uma “po-

98
larização social” no Brasil, segundo a qual se torna necessário
a aglutinação de um dos polos em uma comunidade moral
autointitulada “cidadãos de bem”. Tal comunidade moral, por
sua vez, constitui-se através de códigos binários, tais como
bem x mal, nacionalistas x globalistas, éticos x corruptos, ci-
dadãos x bandidos, e da militarização não só da política ins-
titucional como também das relações cotidianas. Além disso,
vale-se da universalização do próprio padrão moral (cishete-
ropatriarcal) e de discursos anti-estatizantes, mobilizando e
acolhendo sujeitos que se sentiam ameaçados ou preteridos
pelas agendas políticas de governos e partidos de esquer-
da, à semelhança do que ocorreu também nos EUA durante
a eleição de Trump (BROWN, 2019). Não é à toa o uso fre-
quente da retórica antipolítica e anti-intelectual e de ataque
a discursos que consideram, pejorativamente, como “politi-
camente corretos” (ALONSO, 2019; STANLEY, 2019; ABRAN-
CHES et al, 2019; LACERDA, 2019).

PRODUÇÃO DE INIMIGOS, LÓGICA DA


GUERRA E INSTITUCIONALIZAÇÃO
DA MENTIRA: MÁQUINAS DE ÓDIO E
DE FAKE NEWS
Uma das características do modus operandi comunicacional
bolsonarista é o forte investimento em polos paranoides vol-
tados à produção de inimigos, o que se encontra ligado ao
culto à violência e à autorização de estados de exceção aliado
a discurso político econômico de salvação da nação (FURLAN,
2018). O bolsonarismo potencializou essa produção ficcional
de inimigos, alargando seu espectro, o que se mostrou ainda
mais evidente na pandemia de Covid-19 (esquerda, bandi-
dos, STF, Tribunal Superior Eleitoral (TSE), governadores, im-
prensa, feministas, LGBTQIA+, povos tradicionais, cientistas e
intelectuais, defensores/as de direitos humanos etc.).

Para Martín-Baró (2017), há pelo menos três funções da criação


de inimigos de guerra e violência: psicológica, sociológica e po-
lítica. Sua função psicológica seria identificar fontes de frustra-
ção e justificar os atos; focar-se na agressividade, diminuindo
a atenção para problemas mais complexos; e servir para inflar
estima e valores de seguidores. Já sua função sociológica seria

99
fortalecer políticas repressivas e aumentar a solidariedade e
a coesão do grupo interno. Não obstante, sua função política
seria canalizar as crenças em uma direção desejada, criando
um parâmetro de sociedade de “nós” e “eles”.

A produção de inimigos pelo bolsonarismo é corriqueiramen-


te usada para manter um estado de tensão permanente en-
tre seus seguidores. Tal fenômeno de disseminação do ódio
no âmbito do bolsonarismo também traz consigo alguns as-
pectos abordados por Martín-Baró (2017) como caracterís-
ticos dos atos violentos, a saber: seu caráter massificado; a
desvalorização e demonização de suas vítimas, por meio de
mediações semióticas chamadas de “amortizadores psicoló-
gicos”, recorrendo ao diálogo com Frantz Fanon; e a tentati-
va de justificação ideológica da violência, a fim de legitimá-la
ou ocultar forças ou interesses que a determinam.

Uma das maiores chaves de leitura para pensar a relação en-


tre processos antidemocráticos e o neoliberalismo é a arti-
culação entre capital e militarismo, bem como o fato de a
guerra figurar como um sacramento desse tempo (MBEMBE,
2019), estilhaçando o princípio de igualdade e fragmentando
a noção de cidadania (restringindo-a a apenas alguns corpos
e territórios). Assim, a brutalidade da produção de fronteiras,
o ódio e a aniquilação de inimigos são peças-chave da polí-
tica contemporânea, cada vez mais baseada no princípio da
separação. Uma das marcas do neofascismo, de acordo com
Lazzarato (2019), é a modulação da guerra contra a popula-
ção como forma de produzir desigualdades e hierarquias so-
ciais, raciais e de gênero.

A análise psicossocial da crise em El Salvador que é traçada


por Martín-Baró também nos traz uma discussão sobre a ló-
gica da guerra adotada nos discursos e práticas nesse contex-
to de intensificação da violência. Ao tematizar a existência de
guerras sujas como obstáculos à democracia nos anos 1980,
no contexto El Salvadorenho, o psicólogo social destacava
que seus alvos eram as bases de apoio social, pessoal e inte-
lectual ao movimento insurgente. Destacou o uso de esqua-
drões da morte (civis) para exterminar inimigos sem “man-
char” a imagem do Estado e o uso da repressão aterrorizante
com a visibilização dos casos atravessados pelo anonimato,

100
pela clandestinidade e pela impunidade, além do próprio ter-
rorismo estatal, do desaparecimento de lideranças sindicais,
da explosão de comitês e do assassinato de lideranças polí-
ticas. Com nítida influência de Fanon em seus debates sobre
guerra e saúde mental, Martín-Baró destacou como a pro-
dução de sofrimento tinha uma configuração psicossocial e
se relacionava, histórica e politicamente, com as formas de
dominação imperialista-colonial.

Martín-Baró também deu valiosas contribuições para anali-


sarmos psicossocialmente os fundamentos, os objetivos, os
métodos e as consequências da guerra suja e psicológica
engendrada no contexto de ascensão autoritária e de trans-
bordamento da violência. O psicólogo social destacou os se-
guintes fundamentos da guerra psicológica em El Salvador:
baseada em conflitos de baixa intensidade, visando “ganhar
corações e mentes” das pessoas para que aceitem as exigên-
cias da ordem imperante, assumindo como natural a violên-
cia, e “militarização da mente”, com vistas ao uso da violência
para manutenção de privilégios. Quanto aos objetivos de tal
guerra psicológica, destacavam-se: adesão subjetiva à ani-
quilação dos inimigos; conquista da população sem necessi-
dade de atender suas demandas e reconhecê-la com agen-
te político; enfraquecimento da autonomia e capacidade de
ação da população oprimida.

Por sua vez, essa guerra, sob o olhar de Martín-Baró (2017),


valia-se dos seguintes métodos: mentira institucionalizada,
negação da realidade concreta e propaganda positiva do
governo; criação concreta do sentimento de insegurança,
capaz de submeter a população e contribuir para sua ges-
tão pela violência; uso da repressão manipuladora com fins
da inibição da rebeldia potencial e militarização da vida co-
tidiana; e práticas psicológicas de tortura e isolamento. Já
em relação às consequências dessa guerra suja, Martín-Ba-
ró (2017) destacou: desarticulação das organizações popu-
lares e bases de apoio; extermínio das figuras de liderança;
repúdio internacional; traumas sociais vinculados a ambien-
tes permanentes de assédio e insegurança; despolitização;
fugas do país, dentre outros aspectos.

Entre as diversas coordenadas trazidas pela análise psicossocial

101
da realidade de guerra suja analisada por Martín-Baró, gosta-
ríamos de destacar um de seus métodos, a mentira institucio-
nalizada, tendo em vista sua relação com duas estratégias que
saltam aos olhos no modus operandi bolsonarista: o uso de
fake news e a retórica negacionista. O que escreve Martín-Ba-
ró (2017, p.280) sobre a mentira institucionalizada no contexto
de crise psicossocial em El Salvador se assemelha às operações
Nesse ambiente de mentira institucionalizada, é produzida
retóricas comuns ao bolsonarismo no contexto brasileiro:
uma verdadeira inversão orwelliana das palavras. Matar se
converte em um ato louvável, enquanto atender o necessi-
tado se torna uma ação subversiva; a destruição de hospitais
é celebrada como um serviço à pátria, enquanto dar aten-
ção médica às vítimas da guerra é algo condenado como
uma prática terrorista; ignorar e ainda louvar a violência
bélica é virtude cristã ou demonstração de nacionalismo,
mas denunciar os atentados ou condenar as violações aos
direitos humanos vira uma ‘instrumentalização da fé cristã’
ou manifestação própria de ‘maus salvadorenhos’

Segundo Dunker (2019), a formação de “bolhas narcísicas” nas


redes sociais favorece a naturalização e ampliação de práticas
antidemocráticas na atualidade, sendo essa uma das condi-
ções aproveitadas pelo bolsonarismo para a disseminação de
desinformação cujo efeito é a desorientação generalizada e,
ao mesmo tempo, a incitação de máquinas de ódio em torno
dos inimigos reiteradamente atualizados pelo discurso bol-
sonarista. As redes sociais se tornaram um espaço precípuo
para o que tem sido, comumente, chamado de “guerra cul-
tural” ou “guerra híbrida”. O fenômeno da disseminação de
fake news como modo de governamentalização bolsonarista
está intimamente associado aos processos, muito fortemen-
te desencadeados desde 2013, de moralização da política e
diminuição da confiança e desencantamento nas instituições
de políticas democráticas.

A rede de desinformação que disseminou notícias falsas


(fake news) foi decisiva no período eleitoral, mas, também,
no contexto pós-eleição. Compartilhamento de informações
falsas, desconfiança de pesquisas e estudos científicos e fal-
sos apoios de celebridades à candidatura/governo atuaram
fortemente nas redes sociais. As fake news e sua consequen-
te produção de desorientação e tensão têm se dissemina-

102
do a partir de uma rede complexa, que envolve “gabinete
do ódio”, financiamentos nebulosos, alvos de investigações
no poder legislativo e judiciário, atuação de influenciado-
res digitais para engajamento e capilaridade dessas desin-
formações, uso de robôs nas redes sociais e bombardeio
de compartilhamentos em aplicativos de mensagem. Toda
essa maquinaria de notícias faltas e ódio contribuiu nega-
tivamente para o agravamento da pandemia do Covid-19.
Nesse período, as fake news ajudaram a sustentar uma retó-
rica negacionista; disseminaram minimização da pandemia
e das mortes; descredibilizaram as medidas de prevenção
com eficácia científica, tais como uso de máscara, distan-
ciamento social e vacina; e defenderam medidas ineficazes,
como imunidade de rebanho, isolamento vertical e medi-
camentos para o tratamento precoce.

O negacionismo seria uma retórica ideológica que “operacio-


naliza e, ao mesmo tempo, oculta os interesses das classes do-
minantes, gerando falsa consciência, isto é, uma distorção na
relação entre a realidade e sua representação na consciência
dos grupos e das pessoas” (MARTÍN-BARÓ, 2017, p. 56). No
contexto da pandemia, consideramos o negacionismo como
retórica ideológica extremista para a justificar a perpetuação
da violência necropolítica e, articuladamente a isso, servir de
“cortina de fumaça” para a viabilização de esquemas de corrup-
ção na compra de vacinas e na compra de medicamentos sem
eficácia comprovada para tratamento precoce da Covid-19.

IMPLICAÇÕES ÉTICO-POLÍTICAS
DA PSICOLOGIA NA DEFESA DA
DEMOCRACIA BRASILEIRA E EM
TEMPOS BOLSONARISTAS: O QUE
AINDA PODEMOS APRENDER COM
A PSICOLOGIA DA LIBERTAÇÃO DE
MARTIN-BARÓ?
De acordo com Martín-Baró (2017), uma Psicologia da Liber-
tação se caracterizaria a partir da realidade latino-americana,
e não apenas sobre e para a América Latina, definindo suas
questões pelos problemas populares e orientando sua práxis
para a transformação da realidade psicossocial das opres-

103
sões. Pontuar isso é importante pois buscamos, com foco no
cenário sociopolítico brasileiro, em que recrudescem práticas
autoritárias engendradas pelo bolsonarismo e pelas lógicas
que lhe sustentam, atentarmo-nos ao acirramento da violên-
cia e das tendências autoritárias que ameaçam a democra-
cia no Brasil, considerando a atualidade psicossocial desses
fenômenos e também a complexa história das opressões no
país. Diante disso, apresentamos abaixo algumas implicações
ético-políticas da Psicologia na defesa da democracia brasi-
leira frente ao bolsonarismo, inspirando-nos nas reflexões da
Psicologia da Libertação de Martín-Baró.

Ao ter em vista que em El Salvador se lutava pela satisfação


de necessidades básicas das pessoas e pela formação de uma
nova mentalidade, solidária e comunitária e autenticamente
nacional e popular, uma “boa Psicologia” significaria “respon-
der aos novos problemas e exigências”, produzir cuidado dos
“traumas” advindos dessas lógicas de opressão e contribuir
para a produção de outras subjetividades em contraponto ao
individualismo, partindo da ideia de que a libertação envolve
não apenas os indivíduos oprimidos, mas uma mudança da
própria ordem social opressiva (MARTÍN-BARÓ, 2017).

Em sua análise psicossocial da crise, Martín-Baró (2017) tam-


bém destacou que as contribuições da Psicologia poderiam
se dar de duas maneiras: 1) desmantelando o discurso ideo-
lógico que oculta e justifica a violência, explicitando “os me-
canismos e as racionalizações pelas quais a opressão e a re-
pressão se legitimam e perpetuam” (MARTÍN-BARÓ, 2017,
p. 247); e 2) contribuindo para a configuração de “um novo
senso comum” , que seja “base de uma convivência equitati-
va e humanizante” (MARTÍN-BARÓ, 2017, p. 247-248)

Para Martín-Baró, à Psicologia caberia o estudo do “caráter


ideológico no comportamento humano” e, com base nisso, a
sua melhor contribuição para o desenvolvimento da demo-
cracia nos países latino-americanos seria “o desmascaramento
de toda ideologia antipopular, a qual fundamenta “a passivi-
dade, a submissão e o fatalismo” (MARTÍN-BARÓ, 2017, p. 61).
Nesse cenário, a Psicologia poderia contribuir para “desmas-
carar o senso comum que justifica e viabiliza subjetivamente a
opressão” (MARTÍN-BARÓ, 2017, p. 55). Isso, por sua vez, re-

104
quereria que a Psicologia: “a) assuma a perspectiva das maio-
rias oprimidas; b) desenvolva pesquisas sistemáticas sobre a
realidade dessas maiorias; e c) utilize de forma dialética esse
conhecimento, comprometendo-se com os processos históri-
cos de libertação popular” (MARTÍN-BARÓ, 2017, p. 55)

Por fim, vale ressaltar que, diante das reflexões realizadas


acerca do bolsonarismo como expressão neofascista, da ar-
ticulação de aspectos estruturais e conjunturais da realidade
brasileira na produção de violências, da produção de inimi-
gos e da lógica de guerra pela institucionalização da men-
tira (máquinas de ódio de fake news), o desmembramento
diagnóstico proposto por Martín-Baró (2017) faz-se perti-
nente no enfrentamento dessa articulação virulenta que in-
cide diretamente sobre corpos subalternizados. Por meio
desse desmembramento, caberia à Psicologia apontar que
a violência é um problema social e cultural, mas também
psicológico. Para enfrentá-la, é necessário reestruturar a so-
ciedade a partir de: novas bases de convivência social; mo-
dificação da estrutura social de dominação e exploração;
questionamento da competitividade e consumismo; enten-
dimento da história psicossocial da violência e compreen-
são do que se tem produzido sobre violência.

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107

107
108
07.

P
INTRODUÇÃO
arece oportuno começar este texto com o
axioma de Hannah Arendt (2016), no ensaio JANAINA
CAMPOS LOBO
Verdade e Política, publicado em 1967, o qual
revela que as mentiras são muitas vezes uti-
lizadas como substitutos de meios mais vio-
lentos, porque podem facilmente ser consi-
deradas como instrumentos relativamente No dia 24 de
inofensivos do arsenal da ação política. Con- março de 2020,
o presidente Jair
sidero essa sentença um bom gancho para Bolsonaro, em
pronunciamento
refletirmos sobre o caso brasileiro. Desde 26 nacional em rádio e

de fevereiro de 2020, quando o Ministério da canais da TV aberta


declarou: “No meu
Saúde, então comandado pelo médico e po- caso particular, pelo
meu histórico de
lítico filiado ao Partido Democrata (DEM) Luiz atleta, caso fosse

Henrique Mandetta, anunciou o primeiro caso


contaminado pelo
vírus, não precisaria
do novo coronavírus no país, observamos as me preocupar, nada
sentiria ou seria,
inumeráveis declarações de órgãos do go- quando muito,

verno federal, bem como de representantes


acometido de
uma gripezinha ou
oficiais, incluindo o presidente da República, resfriadinho, como
bem disse aquele
que subvertiam as recomendações da Orga- conhecido médico,

nização Mundial da Saúde (OMS).


daquela conhecida
televisão”.

Essas insubordinações, que logo se dissemi-


No dia 05 de maio
naram nas redes sociais, apregoavam que de 2021, Bolsonaro
a recém descoberta doença não era nada mais uma vez
declarou, dessa vez
mais que uma gripe . Paradoxalmente, a em filmagem com
correligionários no
mesma também era classificada como uma Palácio do Planalto,

arma biológica chinesa para destruição em em Brasília, que


a Covid-19 “é um
massa . Entre declarações que soavam es- vírus novo, ninguém
sabe se nasceu
tapafúrdias, indicações de tratamento sem em laboratório

eficácia comprovada e uma ampla rejeição


ou se nasceu por
algum ser humano
às medidas profiláticas (uso adequado de ingerir um animal
inadequado. Mas
máscaras, distanciamento social, assepsia está aí. Os militares

das mãos), o país beira os 580.000 mortos


sabem o que é

109
em decorrência da Covid-19 em agosto de guerra química,
bacteriológica e
2021. Mas, qual a relação entre a mentira e radiológica. Será

a perda de tantas vidas?


que não estamos
enfrentando uma
nova guerra? Qual

Primeiramente, precisamos entender o que


o país que mais
cresceu o seu PIB?
estamos chamando de mentira. Neste caso, Não vou dizer para
vocês”.
não creio que essa categoria que se refere à
“inverdade” seja a mais adequada, porque não
se trata de uma fabulação, mas sim do soer-
guimento de uma nova realidade, um rechaço
de antemão a todo e qualquer fato científico
e a criação de explicações mais convenien-
tes a despeito do trabalho de cientistas que
se empenharam em adotar paradigmas e a
revisá-los por meio de suas práticas científi-
cas. Esse rechaço, que alguns intelectuais têm
chamado de mais um componente da era da
pós-verdade ou era da desinformação ou fake
news, eu chamarei de negacionismo – e expli-
co: trata-se da tarefa de recusar, impugnar e
opor-se a toda e qualquer evidência que não
esteja alinhada a determinados projetos. Aqui
retomo Arendt: pode parecer surpreendente
que o sacrifício da verdade à sobrevivência
do mundo seja menos grave que o sacrifício
de qualquer outro princípio ou virtude. Mas
de que mundo estamos falando?

A cientista política norte-americana Wendy


Brown (2019), ao refletir sobre a atual ascen-
são da extrema direita ao poder nas demo-
cracias liberais ao redor do mundo, refere que
há características nesses tipos de governo au-
tocráticos que podem ser reunidas. Existe, de
modo geral, uma combinação de elementos
tais como “libertarianismo, moralismo, auto-
ritarismo, nacionalismo, ódio ao Estado, con-
servadorismo cristão e racismo” (BROWN,
2019, p. 10), os quais se coadunam com fun-
damentos neoliberais já conhecidos, que vão
desde o favorecimento do capital até ataques
às igualdades. É assombroso quando Wendy

110
Brown sentencia que tais governos “endossam a autorida-
de enquanto ostentam desinibição social e agressão pública
sem precedentes” e ainda compartilham um ódio à Ciência
e à razão ao rejeitarem, abertamente, “afirmações baseadas
em fatos, argumentação racional, credibilidade e responsabi-
lidade”, além de desprezarem a política e os políticos, embora
paradoxalmente manifestem “uma feroz vontade de potên-
cia e ambição política” (idem).

De fato, estamos vivendo um “presente catastrófico” (BROWN,


2019, p. 19), algo que Nancy Fraser (2019) também já vinha
alertando. Para a filósofa, os fenômenos que convencional-
mente denominamos de “crise”, cuja expressão norte-ame-
ricana era precisamente o governo de Donald Trump, possui
análogos ao redor do mundo. Do Brexit ao crescimento de
partidos com discursos racistas e contra imigrantes, que vão
do norte ao centro-leste da Europa, e até o aparecimento de
forças autoritárias na América Latina, Ásia e Pacífico, a crise
– afirma Fraser – é global. Não se trata apenas da conflagra-
ção de uma instabilidade política, mas da instalação de um
ruidoso período de ataques à economia, ao Estado de Bem-
-Estar Social, à ecologia e à Ciência.

Tais análogos que poderíamos citar incluem a Índia, com Na-


rendra Modi; a Turquia, sob comando do partido AKP, com
Recep Erdogan; a Hungria, com Viktor Orbán; a Rússia, com
Vladimir Putin; as Filipinas, com Rodrigo Duterte; a Polónia,
sob jugo do ultraconservador PiS, com Andrzej Duda como
presidente desde 2015. A lista não é pequena. Não parece
aleatório que, em 2019, o Relatório Mundial de Direitos Hu-
manos tenha incluído o Brasil na lista de países governados
por líderes autocráticos, após a ascensão de Jair Bolsonaro à
presidência. Neste relatório, o Observatório de Direitos Hu-
manos (WHR) definiu Bolsonaro como alguém “que endossou
a tortura e outras práticas abusivas e fez declarações aberta-
mente racistas, homofóbicas e misóginas”, além de incentivar
a perseguição a professores que promovessem suas próprias
opiniões em sala de aula (WHR, 2019, p. 91).

Tal avanço de governos autocráticos não deveria nos sur-


preender, como alerta Adam Przeworski (2020), que atribui
a persistência da desigualdade e o consequente descrédito

111
nas instituições representativas à progressão do populismo.
Segundo Przeworski, a equação capitalismo mais democra-
cia carrega consigo uma disfunção, pois no capitalismo a
desigualdade cresce de maneira constante, a não ser que
seja neutralizada por ações do governo. Assim, o pretenso
equilíbrio do capital em arranjos democráticos seria sempre
oscilante: não há uma receita hábil que conjugue igualdade
política, fundamento da democracia, com a desigualdade
econômica, consequência do capitalismo. Nesse sentido, o
que temos assistido é uma ofensiva neoliberal sem prece-
dentes, combinada com um gradativo aumento de gover-
nos reacionários, os quais contam com um apoio popular
substancial. Assim, parece interessante seguir as indicações
de Przeworski, as quais apontam que retrocessos democrá-
ticos podem estar em curso, mesmo quando não há viola-
ções imediatas de constitucionalidade.

O que parece preocupante, portanto, é que a escalada anti-


democrática venha, atualmente, de líderes eleitos. E, para que
haja a manutenção do poder nas mãos do líder autocrático,
as regras do jogo podem ser alteradas a qualquer momento.
Levitsky e Ziblatt (2018) já observavam essa propriedade nos
Estados Unidos. Przeworski (2020) igualmente observa que
quando partidos políticos são altamente ideológicos, quan-
do acreditam fortemente que valores essenciais estão amea-
çados, costumam ver os adversários políticos (ou oponentes)
como inimigos que precisam ser impedidos, a todo custo, de
chegar ao poder. Como forma de subverter o contraditório,
tentam controlar a mídia, restringem a liberdade de asso-
ciação, aparelham repartições do Estado e, por fim, tentam
interferir nas diretrizes das eleições – ou mesmo ameaçam
rejeitar o resultado das eleições, caso não seja condizente
com a manutenção do poder. É uma cartilha, à primeira vista,
muito análoga. Do partido Lei e Justiça polonês à União Cívi-
ca Húngara (Fidesz), até a invasão do Capitólio, nos EUA, em
janeiro de 2021, por correligionários de Donald Trump que,
após serem incitados, protestavam contra os resultados da
eleição que deu a vitória a Joe Biden.

Porém, a despeito desse cenário internacional, precisamos


pensar de modo muito específico o caso brasileiro. O que
temos em jogo desde 2018, quando Bolsonaro ganha as

112
eleições com quase sessenta milhões de votos? O jogo, pa-
rece lógico, não inicia nas urnas do segundo turno de 2018,
mas lá no longínquo 2011, quando mais de cinquenta mil
pessoas marchavam contra a corrupção, impulsionados pelo
escândalo do mensalão. A socióloga ngela Alonso (2019) é
precisa ao localizar temporalmente esse germe que parece
ter originado, ou melhor, publicizado a criação do que ela
nomeia de “comunidade moral bolsonarista”, a qual é er-
guida com padrões dicotômicos de organização do mundo
– bem/mal, cidadãos de bem/bandidos, éticos/corruptos.
O fato é que a candidatura e a vitória de Jair Bolsonaro em
2018 coroam um período que teve como marco a destitui-
ção da presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Para Luis Felipe
Miguel (2019, p. 180), a chegada de Bolsonaro à presidência
encerra o golpe contra Rousseff com um “extremismo di-
reitista”. É a partir disso que veremos uma “degradação do
debate público, a ampliação da violência seletiva das insti-
tuições e o retorno da intimidação aberta como instrumento
de luta política”, prossegue Miguel (idem, p. 181). Trata-se
de um país em flagrante colapso.

De fato, o que podemos depreender é que aqui no Brasil,


para além da onda conservadora que assola outras demo-
cracias, o bolsonarismo encontrou princípios que estão an-
corados na nossa história. Lilia Moritz Schwartz (2019) argu-
menta que conhecer a nossa história é necessário para nos
tirar o véu do espanto: as raízes do autoritarismo brasileiro
estão ligadas ao “patriarcalismo, mandonismo, à violência, a
desigualdade, o patrimonialismo, a intolerância social” (idem,
p. 26), em um país que se ergueu a partir do trabalho escra-
vizado e que sustentou, até hoje, a ideia de que, a despeito
das desigualdades aviltantes, somos uma democracia racial.
Para Schwarcz (2019), esses elementos repulsivos que confor-
maram nosso passado tendem a reaparecer de modo ainda
mais mordaz, sob a forma de novos governos autoritários.

É a partir desse entendimento que discutirei as flagrantes on-


das de desinformação, rejeição à Ciência e consolidação de
narrativas infundadas que proliferaram no cenário nacional
– mas, ao contrário do que poderiam supor, tais embustes,
relacionados ao contexto da pandemia de Covid-19 não es-
tavam restritos à circulação e difusão em redes sociais, mas

113
eram sobremaneira compartilhados em canais oficiais do go-
verno federal, tendo como expoentes desse negacionismo
representantes eleitos e porta-vozes do governo brasileiro.

FAKE NEWS, DESINFORMAÇÃO,


PÓS-VERDADE E NEGACIONISMO:
UMA COMBINAÇÃO RUIDOSA
O meu interesse subjacente neste tópico é pensar quais são
os desafios que a difusão de informações inverídicas impõe
à democracia, sendo que o pano de fundo é refletir sobre as
nefastas consequências que a desinformação tem engendra-
do no Brasil nesses tempos de pandemia. Para começar, é ne-
cessário elucidar que as palavras desinformação, fake news e
políticas da pós-verdade, por mais que tenham correlações,
possuem diferenças que versam sobre a natureza (e sobre
os objetivos) da informação. Desinformação, por exemplo,
segundo o relatório do National Endowment for Democracy
(2017), é sempre proposital e indica uma informação incom-
pleta, vaga, enganosa ou ambígua, que até pode ser composta
de alguns fatos verdadeiros, porém despojados de qualquer
contextualização, combinados com mentiras que servem para
apoiar a mensagem pretendida e, o mais importante, sem-
pre fazem parte de um plano ou agenda maior. Esse concei-
to não é necessariamente novo, mas a partir do advento de
novas plataformas digitais aumentou muito a vulnerabilida-
de do público à manipulação deliberada de informações.

A desinformação, sem dúvida, constitui uma ameaça para a


segurança da vida em sociedade. O que é importante, nes-
se sentido, é entender que a desinformação está completa-
mente conectada com o que hoje chamamos de fake news.
Neste caso, o uso dessa expressão invariavelmente indica
“notícias epistemicamente corruptas”, sendo que o termo se
tornou e continuará sendo o rótulo mais comumente usado
para o fenômeno crescente de informações compartilhadas
publicamente que não são confiáveis ​​ou mesmo são en-
ganosas (BERNECKER; FLOWERREE; GRUNDMANN, 2021).
Além disso, fake news responderia a uma versão avançada
e tecnológica da desinformação, ao referir a pedaços de in-
formações manipuladas intencionalmente que aparecem na

114
internet e, especialmente, nas redes sociais (GIUSTI; PIRAS,
2021, p. 03). Trata-se, indiscutivelmente, da difusão massiva
de dados falsos, através de meios digitais, o que na verda-
de é a novidade dos nossos tempos.

Alguns jornalistas e pesquisadores, ao pensarem sobre o uso


deliberado de inverdades no discurso político, denominam tal
disseminação ampla de informações falsas como um regime
de pós-verdade (MCINTYRE, 2018; FULLER, 2018; FARKAS &
SCHOU, 2020). De modo geral, os debates atuais giram em
torno de uma tendência global, na qual está em questão uma
queda no valor da verdade com um triunfo do emocional so-
bre o racional, marcado também por um regime de suspeição
e desprezo pela Ciência (D’ANCONA, 2017). De fato, pode-
ríamos contra argumentar que a mentira não é necessaria-
mente um componente novo nessa atividade política da era
da pós-verdade. Mas, neste caso, a discussão centra-se na
novidade que é a resposta do público às inverdades, intensa-
mente transmitidas, como se a indignação estivesse rendida
à indiferença, uma vez que mentir parece fazer parte do pre-
sente jogo democrático (D’ANCONA, 2017). O filósofo Bru-
no Latour (2020), ao refletir sobre o negacionismo climático,
rejeita o termo pós-verdade e considera o seu uso superfi-
cial, pois não seria capaz de explicar como alguns continuam
fazendo política rejeitando voluntariamente o vínculo com
a verdade. Apesar de reconhecer que a ideia de uma “pós-
-verdade” pode carregar consigo uma série de imprecisões
(a começar pelo prefixo), considero um bom mote para en-
tender que, por trás da era das fake news, da desinformação
e das farsas, há uma “lógica bastante sólida” que tem atuado
no mundo como “vetor de coesão” (EMPOLI, 2020, p. 23). E
há uma singularidade neste fenômeno contemporâneo.

Considero especialmente perspicaz quando a filósofa nor-


te-americana Lee McIntyre (2018) reforça que o desafio é a
própria existência de realidade e, como exemplo, cita que
quando um indivíduo está mal-informado ou enganado,
provavelmente pagará um preço por isso; porque apenas
desejar que um novo medicamento cure nossa doença sim-
plesmente é algo que não acontecerá. Mas, ainda seguindo
McIntyre, quando nossos líderes - ou uma pluralidade de
nossa sociedade - negam os fatos básicos, as consequên-

115
cias podem ser devastadoras.

Nesse caso, poderia adotar, sem grandes reservas e mesmo


entendendo a instabilidade semântica, os termos fake news,
desinformação ou mesmo política da pós-verdade para pen-
sar o caso do governo brasileiro na pandemia de Covid-19.
Porém, para entender o discurso governista, capitaneado por
Jair Bolsonaro, a discussão não deve centrar-se na interpreta-
ção das notícias e orientações que divergem, sobremaneira,
das recomendações das agências de saúde, instituições de
pesquisa, cientistas e especialistas em saúde coletiva e redu-
zi-las, simplesmente, a fake news. A razão é que a dissemina-
ção de notícias falsas é parte de uma doutrina, um conjunto
de ideias e traduz um sistema de governo bolsonarista que
tem como síntese o negacionismo. Refutar e negar parâme-
tros científicos, apoiar-se em discursos alternativos e não ve-
razes, cujos conteúdos são sempre suspeitos e contrariam fa-
tos estabelecidos é parte de um sistema de ação que, neste
caso, tem como efeito o aniquilamento de milhares de vidas.
Trata-se de uma política da morte orquestrada pela negação.
É algo além das fake news, porque é a edificação de um pro-
jeto de governo que tem como pano de fundo a desinforma-
ção, mas que carrega consigo a consequência da destruição.

À vista disso, o que tem acontecido no Brasil durante a pan-


demia de Covid-19 é que as consequências de desinforma-
ções articuladas, permeada de negações, as quais declinam
de toda e qualquer evidência científica ou argumento lógico,
desencadearam uma nova arma, tão letal quanto o próprio
vírus. A desinformação, ou melhor, a sistemática informação
negacionista, quando levada a cabo por setores e agentes
públicos, não apenas sustenta uma narrativa falsa da realida-
de: produz uma realidade credível e instala uma crise de fatos
que contesta e pretere o que tem sido debatido por especia-
listas e, nesse sentido, os resultados são devastadores. Para
ilustrar meu argumento, destacarei dois momentos em que
o debate público brasileiro foi invadido por inautênticas nar-
rativas que desconsideravam as medidas, internacionalmen-
te acordadas, especialmente via protocolos da Organização
Mundial da Saúde (OMS), as quais visavam a contenção do
contágio desenfreado da Covid-19. A pergunta que levan-
to de antemão é: em que medida esse sistema negacionista

116
bolsonarista atuou enquanto arma de extermínio?

O primeiro destaque é a criação de um protocolo pelo Mi-


nistério da Saúde, em maio de 2020, que liberava no Sistema
Único de Saúde (SUS) o uso da cloroquina e do seu análogo
farmacológico, a hidroxicloroquina, inclusive para casos le-
ves de Covid-19. Até então, a indicação era restrita aos casos
graves. O documento, que não trazia qualquer assinatura do
responsável pela indicação, foi defendido pelo presidente Jair
Bolsonaro em suas redes sociais, ainda que a adoção desse
protocolo não estivesse amparada em evidências científicas.

A repercussão da medida adotada pelo Brasil fez com que


Michael Ryan, diretor mundial de emergências da OMS, de-
clarasse nesta ocasião que nem a cloroquina nem a hidroxi-
cloroquina eram efetivas no tratamento da Covid-19 ou nas
profilaxias contra a infecção pela doença. No mesmo dia, a
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) igualmente reiterou o posi-
cionamento da OMS e ratificou que o uso de tais medicamen-
tos no combate à Covid-19 não possuía evidências científicas
conclusivas no tocante a eficácia. Além disso, a organização
ponderou que, em pesquisas que envolveram especificamen-
te o uso da cloroquina/hidroxicloroquina, não foram obser-
vados quadros de melhora dos pacientes, ao mesmo tempo
em que seus autores relatavam um aumento de efeitos ad-
versos provocados pelo uso do medicamento, como maior
incidência de falência cardíaca em função de sua toxicidade.

É importante mencionar que a mudança no protocolo que en-


volve a cloroquina data de maio de 2020, cinco dias após o ge-
neral Eduardo Pazuello ter assumido a pasta, ocupando a vaga
deixada pelo médico Nelson Teich. Em maio de 2021, após a
instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19,
a qual visou apurar as ações e omissões do Governo Federal
no enfrentamento desta pandemia, o atual ministro da Saúde,
Marcelo Queiroga, disse em depoimento que não existia qual-
quer protocolo a respeito da cloroquina no SUS, embora até
poucos dias atrás o documento, chamado “Orientações para
manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diag-
nóstico da Covid-19”, ainda constasse no site do Ministério da
Saúde e no site de Capacitação do SUS, o qual é direcionado
aos profissionais de saúde que atuam na rede pública. Impor-

117
tante frisar que em outubro de 2020, a OMS
publicou os resultados do estudo Solidarity ,
o qual afirma que nenhuma das drogas estu-
dadas (incluindo cloroquina e hidroxicloquina)
reduziu a mortalidade em nenhum subgrupo
de pacientes nem teve efeitos na iniciação da
respiração artificial ou na duração da interna-
ção hospitalar.

Mesmo com os reveses que envolvem o uso


da cloroquina e a adesão ao chamado trata-
mento precoce, o presidente Jair Bolsonaro
segue indicando este medicamento em suas
lives que acontecem todas as quintas-feiras.
O Youtube, apenas no dia 27 de maio de 2021,
retirou onze vídeos da plataforma nos quais o
presidente indicava a cloroquina. Agora, para
driblar essa persecução, Bolsonaro tem ado-
tado os termos “o remédio que ofereci para
a ema” ou “tratamento off label”, para seguir
com as indicações da cloroquina (e da iver-
mectina, que agora nomeia de “remédio de
verme”) e não ter seus vídeos banidos da rede.

O segundo destaque se refere às inúmeras


declarações que versaram sobre a vacina da O artigo completo
Covid-19. As rejeições são tantas a respeito intitulado
“Repurposed
da vacinação que tentarei, brevemente, des- Antiviral Drugs for

tacar os vários momentos em que, publica- Covid-19 — Interim


WHO Solidarity Trial
mente, Bolsonaro atacou ou mesmo boico- Results” pode ser
acessado através do
tou a adesão à imunização. No início de maio periódico The New

de 2020, por exemplo, a OMS lançou, con-


England Journal of
Medicine, vol. 384, n.
juntamente com quarenta países e entidades 6, fevereiro de 2021.

privadas, o ACT Accelerator , que seria uma


plataforma de cooperação internacional que Todas as notícias
relacionadas ao
visava a agilização para o desenvolvimento The Access to

de vacinas e remédios para combater o coro- Covid-19 Tools (ACT)


Accelerator podem
navírus, além de democratizar o acesso aos ser acessadas na
página internacional
kits de testagem rápida. Brasil, Rússia, Índia da Organização

e Estados Unidos (então sob o comando de


Mundial de Saúde
(WHO): https://www.
Donald Trump) se recusaram a aderir neste who.int/initiatives/
act-accelerator/
momento. O Brasil, em setembro de 2020, newsletter.

118
editaria uma medida provisória para destinar 2,5 bilhões
de reais para participar do consórcio Covax Facility, que era
uma das iniciativas criadas pela plataforma ACT Accelerator.

Somado a essa recusa, Bolsonaro não chancela a compra, em


julho de 2020, de milhões de doses da vacina Coronavac, que
foram oferecidas pelo Instituto Butantan, que desenvolveu
o imunizante em parceria com o laboratório chinês Sinovac.
O governo também recusaria, no mês seguinte, a oferta do
laboratório americano Pfizer, cujo montante somava 70 mi-
lhões de doses. Nesse ínterim, Bolsonaro reforçava que a va-
cina não deveria ser obrigatória e afirmava que “mortes, in-
validez e anomalias” eram o cenário esperado para aqueles
que tivessem se imunizado, especialmente com a Coronavac.
Com relação à Pfizer, Bolsonaro também indicava, em tom
de zombaria, que os efeitos colaterais transformariam qual-
quer um em jacaré. A despeito do tom jocoso, o que parece
mais grave é que, apesar da cobrança do Tribunal de Contas
(TCU), em agosto de 2020, e da cobrança do Superior Tribunal
de Justiça (STF), a pedido do ministro Ricardo Lewandowski,
em novembro do mesmo ano, para que o governo federal
apresentasse um plano de vacinação detalhado, foi apenas
em dezembro de 2020 que o governo apresentou um plano,
embora impreciso por não conter datas de início e de térmi-
no da imunização. Sem cronograma expresso, em janeiro de
2021, o então ministro da saúde, Eduardo Pazuello, se esqui-
vou da pergunta feita por jornalistas e apenas respondeu que
a vacina no Brasil iniciaria “no dia D, hora H”.

Paralelo a isso, Bolsonaro reforçava discursos sobre liberda-


de e de defesa daqueles que optassem por não se imunizar.
Manifestou, em um programa da TV aberta, o Brasil Urgen-
te, em dezembro de 2020, que não tomaria a vacina “e pon-
to final”. Nesse mesmo mês, durante uma entrevista com um
dos seus filhos, Eduardo Bolsonaro, o presidente asseverou
que a pandemia já estava chegando ao fim e que, portanto,
a pressa para tomar a vacina era injustificada.

Poderia seguir fornecendo muitos exemplos sobre como


tais narrativas, capitaneadas pelo presidente, eram também
reforçadas por órgãos e agentes ligados ao governo. A Se-
cretaria Especial de Comunicação Social (Secom) do gover-

119
no federal, por exemplo, publicou nas redes sociais um avi-
so que afirmava que eram raros os casos fatais provocados
pela Covid-19. Mayra Ribeiro, secretária de Gestão do Tra-
balho e da Educação no Ministério da Saúde, por sua vez,
em meio ao descontrole da pandemia e da falta de oxigênio
em Manaus-AM, continuava indicando o uso da cloroqui-
na. Isso para não citar as inúmeras aparições em ambientes
públicos do presidente e seus asseclas sem uso de máscara
e sem distanciamento social.

O que isso quer dizer? Importante entender que tais discur-


sos, motivados por instâncias oficiais, provocaram uma ava-
lanche de enunciados alternativos a respeito da Covid-19 nas
redes sociais. Não se trata, necessariamente, de notícias falsas,
mas do compartilhamento do discurso do próprio presidente
da República. Arrisco afirmar que essa forma alternativa de
explicar a realidade, que parte da informação negacionista,
está sendo implantada oficialmente para camuflar intenções
e ganhos escusos, para efetivar um tipo de política e direcio-
ná-la a interesses próprios. Negar a realidade, negar a Ciên-
cia e conduzir o governo a partir de explicações mais con-
venientes é, de certa forma, o único método possível para a
manutenção do bolsonarismo.

Letícia Cesarino (2021), no recente artigo “Tratamento preco-


ce: negacionismo ou alt-science”, argumenta que a gramática
do tratamento precoce bolsonarista e a defesa acalorada do
uso dos medicamentos como a cloroquina e a ivermectina
são resultado de um ecossistema que inclui duvidosas pes-
quisas, financiadas e divulgadas por inúmeros agentes pri-
vados, que vão desde médicos a planos de saúde, empresá-
rios a pacientes, influencers a jornalistas. São pesquisas cuja
fragilidade reside na não obediência aos padrões de ensaios
randomizados controlados, distintivo das pesquisas de refe-
rência. São forjadas no “estado de exceção científico” e isso
“dá margem à eficácia social de vertentes marginais ou mes-
mo anti-estruturais, que, abrigadas sob o discurso de conti-
nuar respeitando seus procedimentos (da democracia, da ci-
ência), na prática estão fragilizando-os” (CESARINO, 2021, p.
9). Sem dúvida, o que cabe pontuar aqui é a correlação en-
tre o discurso populista de um governo de extrema direita,
como é o governo de Jair Bolsonaro; uma comunicação na

120
era da pós-verdade e como esse vínculo está erodindo pro-
cessos democráticos no Brasil, além de fomentar uma políti-
ca de extermínio através da desinformação.

A discussão é que o tipo de política nessa era da pós-verda-


de, amplamente marcada pelo componente populista, pros-
pera nas atuais condições de comunicação pública, sendo
terreno fértil para a proliferação de (des)informações que
criam uma realidade alternativa, exatamente porque as fake
news tornam-se verossímeis quando atendem às expecta-
tivas do público e estão em conformidade com o sistema
de crenças existentes (WAISBORD, 2018). Nesse sentido, a
credibilidade depositada nas notícias propagandeadas por
órgãos oficiais e agentes do governo está pautada por es-
colhas políticas prévias, as quais chancelam a informação, a
despeito de qualquer verificação, discussão ampla ou com-
provação. A confiança advém do emissor da informação e,
neste caso, estamos falando de agentes autorizados, ocu-
pantes de cargos públicos. Os fatos tornam-se adaptáveis a
ponto de serem considerados apenas se são convenientes
à narrativa ficcional instalada. A verdade, portanto, nessas
circunstâncias, não existe como objetivo coletivo e comum,
assevera Silvio Waisbord (2018), precisamente porque uma
verdade partilhada é impossível, dada a característica desse
tipo de fazer política: “agonística e conflitante”.

Portanto, a verdade parece se desmanchar em desimpor-


tância quando avaliamos esse sistema de governo bolso-
narista. Um sistema marcado pela negação de fatos e que
tenta, através do uso contínuo de inverdades, produzir um
consenso, instalar uma divisão e estabelecer uma crise de
confiança generalizada. É essa arena que o bolsonarismo
está disputando: a fissura das verdades, a indeterminação
da validade dos discursos, o questionamento e a descon-
fiança a todo e qualquer argumento que contrarie o proje-
to de poder. Trata-se, sem dúvida, de um programa nega-
cionista, uma sistemática forma de ação que visa instaurar
um tipo de política baseada na cisma, para indiretamente
erguer o argumento pretendido.

O advento da tecnologia mudou definitivamente as for-


mas com que nos comunicamos. Ampliou os canais de cir-

121
culação de notícias e de opiniões. E isso tem demonstrado
uma fratura nas democracias, na medida em que há um
colapso de informação, o qual tem minado, inclusive, elei-
ções democráticas. Como afirmou Lydia Polgreen (2019),
em um artigo publicado no The Guardian, há um abalo na
confiança nas instituições e nos leva a um mundo no qual
qualquer um é livre para escolher seus próprios fatos. Mas
se não há fatos, não há lei.

Como disse, construir uma realidade baseada em explica-


ções desprovidas de qualquer evidência guarda em si mes-
mo o ideal de execução de um projeto. Vou retomar Arendt
(1967), para encerrar: recorrer à uma mentira é muito mais
simples que acionar meios mais violentos. O discurso bol-
sonarista é uma arma e o negacionismo é uma arma apon-
tada para nossas cabeças.

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124

124
125
08.

S
INTRODUÇÃO
em conseguir avançar judicialmente em seus
propósitos anti-indígenas, o governo de Jair CAROLINE
FARIAS LEAL
Bolsonaro tem adotado a via administrativa MENDONÇA
como escalada de medidas de contravenção
aos direitos dos povos indígenas. Neste arti- RHUAN CARLOS
go, iremos analisar duas ações engendradas no DOS SANTOS
LOPES
contexto pandêmico da Covid-19 que revelam
o uso de classificações coloniais e concepções
CLAUDETE DA
integracionistas, oriundas do período da dita- SILVA BARBOSA
dura militar brasileira, com fins de excluir po- TRUKÁ

vos e pessoas indígenas do acesso aos direi-


tos constitucionais. Como efeito direto, essas FRANCISCO
GLEIDISON
ações geram grave ameaça à vida devido, so- CORDEIRO DE
bretudo, a propagação do vírus SARS-CoV-2. LIMA KARÃO/
JAGUARIBARAS

Destacamos que o debate que realizamos


neste capítulo parte da provocação dos orga- RENATO
SANTANA
nizadores deste livro acerca do racismo con-
tra povos indígenas. Dada a situação históri-
ca atual, marcada por um surto pandêmico,
propomos uma reflexão sobre a tensa rela-
ção entre as formas de luta e resistência dos
povos indígenas e as ações coloniais do Es-
tado brasileiro. Nosso pressuposto é de que
as lutas dos povos indígenas são por autono-
mia dentro dos seus territórios tradicionais a
fim de salvaguardar a vida coletiva em todas
as suas dimensões e o direito de continuar
existindo. Com o colonizador europeu, inau-
gurou-se uma nova forma de luta e com ela
trouxe o luto, na medida em que a violência
fazia parte da forma de propagação do poder
colonial. Assim, o medo e a dor, num cená-

126
rio de tortura e ódio, impactaram diretamente as formas de
existência desses. Esse, infelizmente, não é um processo en-
cerrado no passado, tendo em vista que estruturas racistas,
manifestadas no silenciamento histórico de evangelização,
educação eurocêntrica e negação de direitos, ainda se fazem
constantes e, por vezes, apresentam-se de formas veladas.

Considerando isso, iremos abordar inicialmente alguns con-


ceitos que serão utilizados no texto, situando historicamen-
te como as diferentes formas de Estado, desde o período
colonial até o republicano, atualizam categorias destinadas
à administração dos povos e territórios indígenas, sempre
tendo em vista interesses exteriores aos sujeitos adminis-
trados. É nesse contexto que se configura o poder tutelar
(SOUZA LIMA, 1995) e suas ações práticas de assimilação
(PATZI, 1999). Na seção seguinte, debatemos como a manu-
tenção de tais lógicas tutelares afronta direitos etnicamen-
te diferenciados a partir da apresentação de algumas situ-
ações de violações de direitos perpetradas pela Fundação
Nacional do Índio (Funai) e pela Secretaria Especial de Saúde
Indígena (Sesai). Como resultado, buscaremos fazer alguns
apontamentos referentes às estratégias de comunidades e
grupos de resistência surgidas dentro dos movimentos in-
dígenas a partir da crítica ao Estado e a seus critérios arbi-
trários de exclusão de direitos.

PODER TUTELAR E ADMINISTRAÇÃO


PÚBLICA: DISTORÇÕES E ABUSOS
No século XX, mesmo considerando suas diferentes formas e
situações históricas, as relações entre o Estado brasileiro e os
povos indígenas foram definidas a partir de uma forma especí-
fica de poder denominada de poder tutelar. De maneira geral,
trata-se de “forma de ação sobre as ações dos povos indíge-
nas e sobre seus territórios” (SOUZA LIMA, 1995, p. 73), o que
em termos práticos consistia em identificar, nominar e delimi-
tar “segmentos sociais tomados como destituídos de capaci-
dades plenas necessárias à vida cívica” (SOUZA LIMA, 2012, p.
784). Ou, como afirma João Pacheco de Oliveira (2011), é uma
forma de dominação fundada na ideia de superioridade da
sociedade não-indígena sobre os grupos tutelados. Esses são
princípios formulados e observáveis nas políticas indigenis-

127
tas executadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), depois
convertido na Funai, entre as décadas de 1910 e 1980.

Essa forma de poder resvalou na criação de métodos opera-


dos a partir da definição de quem seriam os indígenas (SOU-
ZA LIMA, 1995). Mesmo assim, quando se observa as ações
cotidianas da administração pública, nota-se um tipo de pa-
radoxo da tutela. Esses funcionários públicos se pensavam
enquanto protetores dos direitos e interesses dos indígenas
frente à sociedade nacional, ao mesmo tempo em que essa
proteção implicava na incorporação dos povos nativos à na-
ção brasileira (PACHECO DE OLIVEIRA, 2011).

Para Rosane Lacerda (2021), a situação jurídica dos indíge-


nas como tutelados tinha como objetivo garantir assistên-
cia na medida em que permitia ao tutor ações de proteção
aos bens e demais interesses indígenas diante da socieda-
de envolvente. Isso, contudo, não seria apresentado como
situação permanente, pois cessaria ao longo do processo
de integração. Na prática, a tutela foi agenciada para tra-
tar os indígenas como incapazes juridicamente, tornando o
tutor a figura de autoridade máxima nas relações interétni-
cas. Esse contexto das ações indigenistas geriu um conjunto
de abusos jurídicos que afetaram de forma decisiva as or-
ganizações internas dos povos indígenas (LACERDA, 2021).
Eram noções que visavam classificar os povos indígenas de
acordo com graus de aculturação, no sentido de entendê-
-los enquanto unidades culturais fechadas que, na medida
em que estabelecessem contato com a sociedade envolven-
te, tenderiam ser incorporados à cultura nacional (SOUZA
LIMA, 1995). Na medida em que isso acontecesse, o grupo
étnico não receberia atenção diferenciada do Estado, mes-
mo que essa atenção dissesse respeito à integração.

A integração, portanto, era um paradigma e um processo


gradual, gerida pelo SPI e depois pela Funai. Para os milita-
res que governaram o país entre 1964 e 1985, esse proces-
so consistia na emancipação dos grupos indígenas. Não por
acaso, durante o governo do ditador Ernesto Geisel (1974-
1979), estimava-se que até o ano 2000 não haveria mais indí-
genas no Brasil. Essa era uma meta basilar da política indige-
nista dos governos militares e, além disso, estava associada

128
aos avanços de fronteiras econômicas sobre territórios indí-
genas (FERREIRA; MIGUEL, 2021).

A tutela enquanto prática formal, porém, foi oficialmente en-


cerrada com a promulgação da Constituição Federal (CF) de
1988. Esse marco legal é de extrema relevância, pois se dife-
rencia em todos os sentidos da legislação anterior e, por isso,
é inovador na medida em que exclui a lógica integracionista.
No artigo 231 da CF, consagrou-se a perspectiva do autogo-
verno – ou autodeterminação – na medida em que reconhece
a organização social, “costumes, línguas, crenças e tradições,
bem como direitos originários sobre as terras tradicionalmen-
te ocupadas” (ARAUJO JUNIOR, 2018, p. 204). A partir des-
se momento, exclui-se categorias anteriormente agenciadas
na administração sobre os povos indígenas, tais como a de
índio integrado e não-integrado. Com a CF de 1988, o para-
digma torna-se o da autonomia, no sentido de que cabe aos
indígenas sua autogestão e poder decisórios, excluindo-se
a noção de hierarquias por conta da aculturação. Contudo,
apesar da superação do paradigma integracionista, ainda há
prevalência dessa ideia nas práticas cotidianas dos poderes
que integram o Estado brasileiro (ARAUJO JUNIOR, 2018).

Isso implica tanto na reiteração de categorias coloniais de ad-


ministração de populações, pois define quem é indígena e qual
seu nível de integração, quanto na reformulação de outras ca-
tegoriais, como a de aldeados e não aldeados. De fato, essas
últimas não são novas nas formas coloniais sobre os povos in-
dígenas. As possibilidades de aldeamento ou não eram decisi-
vas para tomadas de decisão da Coroa portuguesa, assim como
foram ao longo dos períodos imperiais e em parte do repu-
blicano (DANTAS et al., 1992). A possibilidade de definir quem
eram as pessoas indígenas e quando elas deixavam de ser in-
dígenas estava associada a interesses territoriais e por mão de
obra, o que foi decisivo para a construção histórica acerca da
suposta ausência de grupos indígenas em determinadas regi-
ões – e o caso do estado do Ceará é elucidativo nesse sentido
(SILVA, 2005). Ao longo do século XX, como vimos, essa pers-
pectiva não foi excluída das ações do SPI ou da Funai, pois a
ideia de miscigenação excluía grupos inteiros da classificação
étnica por parte do Estado (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998).

129
Portanto, o indigenismo estatal, enquanto
conjunto de ideias, tem longa trajetória histó-
rica na formação do Brasil, o que extrapola os
limites da administração e reifica ideias este-
reotipadas sobre os povos indígenas (RAMOS,
2013). Como será apresentado nas seções se-
guintes, há uma ascensão das categorias e in-
terpretações herdadas do indigenismo estatal
anterior à CF de 1988, como conjunto ideo-
lógico de cunho evolucionista/racista mani-
festo em diferentes ações do Ministério da
Saúde, do Ministério da Justiça e no Judiciá-
rio. Dentre eles, o caso do Marco Temporal
é exemplo de relevância.

CRIMINALIZAÇÃO DOS
POVOS E VIOLAÇÃO DOS
DIREITOS À PROTEÇÃO E
AO TERRITÓRIO Sobre o Marco
Temporal indicamos
Em meio ao surto pandêmico da Covid-19, o as seguintes leituras:
atual presidente da Funai – oriundo dos qua- Coletânea de
texto produzidos
dros da Polícia Federal (PF) – Marcelo Augusto pelo Instituto
Socioambiental,
Xavier da Silva, para negar a assistência jurídi- disponível em

ca aos povos indígenas em conflito territorial <https://www.


socioambiental.org/
e dispor das terras da União à iniciativa priva- pt-br/tags/marco-
temporal> Acesso
da, ressuscitou a categoria de “indígenas in- em 30 ago. 2021;

tegrados” no Ofício Circular nº 28/2020/CO-


APIB - Articulação
dos Povos Indígenas
GAB - PRES/GABPR/Funai Brasília - DF, de 26 do Brasil. Nossa
história não
de agosto de 2020. começa em 1988!
Marco Temporal
não! 03 ago. 2017.
Assunto: Invasão de propriedade parti- Disponível em
cular por indígenas [...]. Prezados, Trata- <https://apiboficial.
-se de análise quanto à possibilidade de org/2017/08/03/
nossa-historia-nao-
atuação jurídica da Funai em casos de comeca-em-1988-
invasão de propriedade particular por marco-temporal-
nao/> Acesso em
indígenas integrados. Nesse sentido,
30 ago. 2021; e
ressalto a manifestação jurídica exarada MARÉS, C. Marco
pela Procuradoria Federal Especializa- temporal, marca do
atraso. Cimi. 08 jul.
da junto à Funai (PFE/Funai), por meio 2021. Disponível em
do Despacho n. 00876/2020/GAB/PFE/ <https://cimi.org.
br/2021/07/marco-
PFE-Funai/PGF/AGU (2415088), no qual
temporal-marca-do-
restou decidido que: “(...) nesse caso atraso/> Acesso em
não há defesa a ser feita pela PFE Fu- 30 ago. 2021.

130
nai. [...] Em resumo: Casos de invasão
de propriedade particular por indí-
genas integrados não geram atuação
judicial da PFE Funai em prol dos gru-
pos invasores. Isso seria fomentar fu-
turas condenações da entidade indige-
nista brasileira por apoio a essas ações
ilícitas, ainda que as mesmas sejam de-
nominadas de “retomadas” e o objetivo
seja forçar a demarcação territorial, que
segue rito próprio previsto em decreto
presidencial.” (Grifos nossos).

A fim de não frustrar a política anti-indígena


de Bolsonaro e seus correligionários no Con- De acordo com

gresso Nacional, com destaque para a banca-


mapeamento do
Conselho Indigenista
da ruralista , a Funai institui um status jurídico Missionário,
realizado em
para parcela dos povos indígenas que é inexis- 2018, cerca de 50

tente no texto constitucional, conforme apon-


parlamentares –
40 deputados e 10
tamos acima. Ao contrário disso, o Estatuto da senadores – atuam
diretamente contra
Funai no Anexo I, artigo 2º, atribui ao órgão as os direitos dos
Povos Indígenas
finalidades de: “proteger e promover os direi- e, dos deputados,
tos dos povos indígenas, em nome da União” 39 integram a
Frente Parlamentar
(inciso I) e “exercer o poder de polícia em de- Agropecuária (FPA).
Destes, 34 recebem
fesa e proteção dos povos indígenas” (inciso investimentos

IX). Para a coordenadora da Frente Parlamen- financeiros de


empresas ligadas
tar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos diretamente a
corrupção e ao
Indígenas do Congresso Nacional, a deputada agronegócio, como

federal Joênia Wapichana (Rede/RR),


JBS, Andrade
Gutierrez e
Odebrecht. Fonte:
CIMI – Conselho
O presidente da Funai ignora que a Indigenista
Constituição Federal de 1988 acabou Missionário.
Congresso Anti-
com a distinção entre índios integrados
Indígena: Os
e não integrados. Existia no Estatuto do parlamentares
Índio, que é de 1973, na época da dita- que mais atuaram
contra os direitos
dura. O governo não demarcou todas dos povos indígenas.
as terras indígenas como deveria, não Set. 2018. Disponível
em: <https://cimi.
tem diálogo com as organizações indí-
org.br/wp-content/
genas e quer cercear direitos. A Funai é uploads/2018/09/
para defender os direitos indígenas, não congresso-anti-
indigena.pdf>.
atacá-los. Não podemos aceitar isso. Acesso em 30 ago.
2021.

Desse modo, a Funai tem ignorado o seu de-


ver constitucional de defender os direitos dos Trecho de entrevista
povos indígenas. Destarte não ser mais apli- concedida à Renato
Santana em agosto
cável essa lógica integracionista, os interesses de 2020.

131
do agronegócio, das madeireiras e das mineradoras sobre as
Terras Indígenas (TI’s) permanecem os mesmos. Na lei maior,
não há categorização de tipos de indígenas e trata-se de uma
grave deturpação jurídica definir a atuação da Funai, ou de
qualquer outro órgão do governo, a partir de uma categoria
de índio concebida de maneira ideológica, racista e voltada
exclusivamente ao favorecimento dos interesses privados na
exploração de terras públicas.

Mesmo com todo o debate provocado nos meios jurídicos e


dos antropólogos e da reação da Articulação dos Povos In-
dígenas do Brasil (Apib) por meio de sua assessoria jurídica,
não houve quaisquer impedimentos ao presidente da Funai
de se dirigir aos coordenadores regionais, ouvidoria e direto-
res de administração e gestão, proteção territorial e promo-
ção ao desenvolvimento sustentável para ressaltar a mani-
festação jurídica da Procuradoria Federal Especializada (PFE):
casos de “invasão” de “propriedades privadas” por “indíge-
nas integrados” não devem gerar atuação judicial da Funai,
diz em trecho do ofício. Para o presidente da Funai, atuar em
tais ações pode “fomentar futuras condenações da entidade
indigenista brasileira por apoio a essas ações ilícitas, ainda
que as mesmas sejam denominadas de retomadas”.

Não obstante o uso de uma denominação deslocada da polí-


tica indigenista do Regime Militar, o presidente delegado vai
além de suas atribuições estatutárias. Retomando o texto do
ofício destacamos ainda duas questões para exame: a renúncia
do direito originário dos índios sobre as terras que tradicional-
mente ocupam e a criminalização desses povos. A presidên-
cia da Funai trata as “retomadas” indígenas como “invasão de
propriedade particular”, porém a legislação vigente reconhece
o fato histórico de que a presença indígena no Brasil é anterior
à criação do próprio Estado e, portanto, o direito é originário.
Na interpretação antropológica do direito originário não cabe
a nenhum agente do Estado a presunção de fixar terras tra-
dicionais indígenas como propriedade particular até que seja
concluída a etapa dos estudos antropológicos de identifica-
ção e delimitação, regido pelo Decreto Presidencial 1775/1996
que dispõe sobre o processo administrativo de demarcação
das Terras Indígenas e conta com a participação de membros
da comunidade indígena interessada.

132
O conceito de ocupação tradicional assentado
na CF de 1988 é uma mudança de paradigma
fundamental por assegurar aos povos os direi-
tos territoriais sobre as áreas fora de suas pos-
ses em virtude de esbulho comprovado, grila-
gem, ocupação de má fé, entre outras formas
de violência praticadas contra populações in-
dígenas, tradicionais e do campo.

a noção de ‘tradicional’ não se reduz


à história, nem tão pouco a laços pri-
mordiais que amparam unidades afe-
tivas, e incorpora as identidades co-
letivas redefinidas situacionalmente
numa mobilização continuada [...]. O
critério político-organizativo sobres-
sai combinado com uma ‘política de
identidades’, da qual lançam mão os
agentes sociais objetivados em movi-
mento para fazer frente aos seus an-
tagonistas e aos aparatos de Estado”
(ALMEIDA, 2008, p. 30).

Essas dinâmicas territoriais evidenciam a cons-


tituição processual de uma territorialidade es-
pecífica e de uma politização destes sujeitos
acerca dos seus direitos. Com perspectiva te-
órica semelhante, a antropóloga Vânia Fialho,
em sua etnografia sobre conflitos territoriais
envolvendo o povo Xukuru do Ororubá (PE),
identifica que tradição e mobilização políti-
ca são elementos de articulação importan-
tes para a compreensão das dinâmicas cons-
tituintes da organização Xukuru, reiterando
que o termo tradição, na Antropologia, “tem
sido frequentemente discutido e reinterpre-
tado no sentido de que não venha a substituir
a ideia de cultura como algo cristalizado no
tempo e no espaço, deixando de contemplar
a toda a complexidade e dinamicidade dos
processos culturais” (FIALHO, 2011, p. 69). Cf. < http://www.
planalto.gov.br/
ccivil_03/decreto/
Há, no sentido das perspectivas sobre d1775.htm>. Acesso
a ocupação da terra, o entendimento em 30 ago. 2021.

133
de que elas podem ser divididas em
duas categorias: privadas e públicas.

As terras privadas são presididas pela lógica


capitalista e individualista, segundo a qual o
dono consegue o direito do controle exclusi-
vo sobre a parcela que lhe pertence. Este bi-
nômio público-privado é uma concepção ter-
ritorial do Estado-nação que nada tem a ver
com as concepções territoriais dos povos in-
dígenas baseadas numa razão histórica e ter-
ritorialidade dos grupos. (LITTLE, 2002, p. 7).

Desse modo, quando o Estado disponibiliza


as Terras Indígenas para atender aos interes-
ses do capital durante a pandemia permite a
sobreposição das formas de violências propa-
gando-as de maneira acelerada. É importan-
te situar, nesse sentido, que em decorrência
do agravamento da Covid-19 nos territórios
indígenas, o Supremo Tribunal Federal (STF)
atuou para a proteção destes povos através
de uma importante decisão de tutela provi-
sória expedida pelo Ministro Edson Fachin,
em 06 de maio de 2020. A decisão foi julga-
da como apêndice do processo de Recurso
Extraordinário 1.017.365/SC e suspende na-
cionalmente os processos judiciais que po-
dem causar prejuízo aos direitos dos povos
indígenas, ou seja, todas as reintegrações de
posse contra indígenas no Brasil devem ficar
suspensas até que seja julgado o Recurso Ex-
traordinário 1.017.365/SC ou até que cesse a
pandemia da Covid-19.

Para fechar esta seção do artigo cabe ainda Sobre o Recurso


demonstrar quão explícitos são os conteú- Extraordinário
em questão, ver:
dos ideológicos deste governo na fabricação <https://cimi.

de uma alteridade perigosa e ameaçadora da


org.br/2020/10/
entenda-
ordem social. Reproduz-se, com isso, lógicas repercussao-geral-
stf-futuro-terras-
arraigadas pelos movimentos coloniais. Tal indigenas/>. Acesso
em 30 de agosto de
como explica João Pacheco de Oliveira, 2021.

134
A violência que acompanhava os atos de “conversão” (os
“descimentos”, as “tropas de resgate”, as “guerras justas”)
só pode ser minimizada e esquecida porque segue – nar-
rativamente – os relatos sobre a antropofagia, os prisionei-
ros destinados à morte, os ataques e mortes de colonos e a
descrição do martírio de missionários. Para ser esquecido,
o genocídio tem que figurar como uma simples e merecida
reação a atos de uma maldade desmedida e inexplicável,
que legitimam a hipótese de uma natureza má daquelas
populações autóctones, que assim precisariam ser venci-
das e subjugadas, para depois poderem ser domesticadas
e transformadas (OLIVEIRA 2016, p. 19)

Numa perspectiva outra, argumentamos que nas lutas indí-


genas, as retomadas são importantes estratégias coletivas
para a recuperação de áreas de seus territórios que se en-
contram em posse de não-índios (ALARCON, 2013). Devido
sua característica autonomista em busca do bem coletivo,
representam uma prática organizativa com grande capaci-
dade de mobilização interna e contribuem para processos
de descolonização das relações de poder entre os índios e
seus opressores (MENDONÇA, 2019).

(DES)ATENÇÃO À SAÚDE INDÍGENA


E VIOLAÇÃO DO DIREITO À VACINA
CONTRA O VÍRUS SARS-COV-2
Conforme apresentamos anteriormente, a política indigenis-
ta brasileira foi redirecionada por completo a partir da CF de
1988. Nisso inclui a atenção à saúde dos povos indígenas, ten-
do em vista o reconhecimento das suas especificidades. Ape-
sar de estar inserida na criação do SUS, ao fim da década de
1980, foi somente em 1999 que se deu início ao subsistema de
saúde diferenciado, através da criação dos Distritos Sanitários
Indígenas (DSEIs). Em 2010, por meio do Decreto 7.336 SAS/
MS, foi criada a Sesai em associação ao Ministério da Saúde,
responsável por coordenar e avaliar as ações de atenção à saú-
de no âmbito do Subsistema de Saúde Indígena. Esse modelo
de atenção à saúde é resultado de um intenso debate junto
ao movimento indígena e, mesmo com vários problemas na
execução, incorpora a perspectiva da intermedicalidade, práti-
cas terapêuticas tradicionais e a participação dos indígenas no
controle social do subsistema (CARDOSO, 2015).

135
Porém, em tempos de pandemia de Covid-19,
em paralelo à atuação anti-indígena do po-
der Executivo brasileiro, a perspectiva inte-
gracionista ressuscitada na política indigenis-
ta ganhou contornos acentuados – mesmo
que inconstitucionais, como vimos acima. As
medidas de enfraquecimento das pautas in-
dígenas, mesmo em órgãos que deveriam se
dedicar à atuação juntamente com esses po-
vos, acontece de forma articulada e tem como
efeito o extermínio genocida. A falta de efe-
tivação da construção da política diferencia-
da de atenção à saúde indígena, conforme a
demanda dos povos indígenas na atualidade,
é uma das manifestações desses atos omissi-
vos (ARAUJO JUNIOR, 2021).

Atualmente, a Sesai, em face das ações de com-


bate à pandemia do novo coronavírus, ao ca-
tegorizou os indígenas em “aldeados” e “não
aldeados”. Os “aldeados” são atendidos pela
Secretaria; os “não aldeados” são encaminha-
dos ao SUS. Para Dinamã Tuxá, da coordenação
colegiada da Apib, a recuperação de termos
parece ser uma tendência política coordenada
no governo federal, sobretudo por “indicações
políticas incompetentes, que nunca trabalha-
ram com a questão indígena” e, além disso,

Se trata de um governo que vem prati-


cando todo o tipo de violação de direi-
tos e violências. É uma ideologia política
que cria atos e normas que atentam con-
tra a integridade dos povos indígenas.
Se porta como inimigo, travando uma
guerra desleal. Vemos que cada medida
adotada pela Funai pretende aprofundar
conflitos, atuando na contramão daqui-
lo que seria a função do órgão.

A medida vem sendo criticada pelo movimen-


to indígena. Além de expressão de racismo Entrevista concedida
à Renato Santana,
institucional e discriminação, as lideranças da em agosto de 2020.

136
Apib apontam que no caso da assistência à
saúde no contexto da pandemia, a distinção
entre “integrados” e “índios puros”, “desalde-
ados” e “aldeados”, gera uma onda de subno-
tificações porque a Sesai apenas contabiliza
em seus boletins estatísticos uma parte das
pessoas infectadas ou mortas, deixando pul-
verizado nos números gerais do SUS os indí-
genas que vivem em contexto urbano.

Conforme destacou Joênia Wapichana no iní-


cio da pandemia da Covid-19 , havia o risco
iminente de genocídio de populações indí-
genas caso o novo coronavírus entrasse nas
aldeias e comunidades, sobretudo nas terras
indígenas com povos de pouco ou recente
contato. Conforme a deputada, durante reu-
nião ocorrida com o Ministério da Saúde e a
Sesai, com a presença de representantes do
Alto Comissariado das Nações Unidas (ONU),
houve concordância em relação as conse-
quências catastróficas que a proliferação da
doença poderia gerar nas comunidades indí-
genas. Todavia, para a parlamentar indígena,
o governo federal se atrasou na elaboração
de um plano emergencial para os povos in-
dígenas no enfrentamento à pandemia.

VIOLÊNCIAS SILENCIOSAS
NO ACESSO À SAÚDE:
EXEMPLOS A PARTIR
DA AMAZÔNIA E DO
NORDESTE
A violência perpetrada pelo Estado contra os
povos indígenas durante a pandemia da Co-
vid-19 demonstra a estreita associação de um
passado colonial com o pensamento hege-
mônico contemporâneo. Analisando o “per- Realizada por
manente estado de guerra” contra os povos videoconferência,
em 09 de abril de
indígenas, João Pacheco afirma que, 2020.

137
[...] a transformação da população au-
tóctone, antes livre e autônoma, em su-
balterna, processo indissociavelmen-
te violento e arbitrário, respondeu aos
interesses econômicos dominantes,
como a apropriação da terra e a obten-
ção de mão de obra, articulada com a
consolidação da classe dirigente e de
uma estrutura de governo (PACHECO
DE OLIVEIRA, 2016, p. 17).

Para demonstrarmos como as denúncias do


movimento indígena surtiu quase ou nenhum
efeito na postura dos órgãos do Executivo fe-
deral, afinal “reconhecer a violência não ga-
rante, de modo algum, uma política de não
violência”, como afirma Judith Butler (2017,
p.250), iremos apresentar um pequeno pa-
norama da realidade indígena no primeiro
ano da pandemia focalizando duas regiões,
a Amazônia e o Nordeste brasileiros.

Para iniciar, podemos citar os exemplos apre-


sentados pela deputada Joênia Wapichana,
referentes aos primeiros meses da pande-
mia no Brasil: dos 21 casos suspeitos para
Covid-19, oito foram confirmados por testes
e em dois outros casos os pacientes foram
a óbito. Trata-se de um indígena Mura e de
uma anciã Baré, “a Sesai não atestou as mor-
tes porque considera que (as vítimas) vivem
em centros urbanos”. Esse foi o caso do pro-
fessor Aldenor Tikuna que, no final da tarde
do dia 28 de agosto de 2020, faleceu em sua
casa na comunidade Wotchimaucu, localiza-
da no bairro Cidade de Deus, em Manaus
(AM). Conforme Marcivana Sateré Mawé, da
Coordenação dos Povos Indígenas de Ma-
naus e Entorno (Copime), o indígena esta-
va com todos os sintomas da Covid-19, mas
não foi testado ou recebeu qualquer aten-
dimento médico nos hospitais da capital.
Entrevista concedida
à Renato Santana,
De acordo com levantamento realizado pela em agosto de 2020.

138
Coordenação das Organizações Indígenas
da Amazônia Brasileira (Coiab) a esta altu-
ra eram 16 mortes por Covid- 19 confirma-
das. Destes óbitos, apenas cinco constavam
nos boletins da Sesai. Assim, os outros 30
mil indígenas que vivem em Manaus ou no
seu entorno, foram lançados no colapso do
sistema público que enclausurou Manaus
em uma bolha de morte. Conforme afirma
a representante da Copime, naquela altura
os indígenas precisavam “de um hospital de
campanha para os indígenas que vivem em
Manaus e no entorno. São muitos doentes
com os sintomas de covid-19 sem testes, sem
cuidados médicos”. Desse modo, longe das
estatísticas, os indígenas que vivem na cida-
de enfrentam a pandemia sem o subsistema
de saúde e submetidos à roleta russa dos
efeitos do vírus em cada organismo.

Na comunidade, todos os integrantes


ficaram doentes, apresentando os mes-
mos sintomas que levaram o professor
à morte. Em outras comunidades a situ-
ação é igual. Não aparece nas estatísti-
cas e então a política pública não chega
para os indígenas no contexto urbano
[...]. É uma situação dramática, crítica.
Quando conseguem algum atendimen-
to, os parentes fazem inalação, tomam
um remédio e voltam para casa. Não
são sequer testados para a Covid-19.
Por isso, muitos parentes têm optado
por ficar em casa e esperar passar ou
morrer. A política da Sesai é discrimi-
natória diante da pandemia. Estamos
gritando, pedindo socorro.

Neste período, a Coiab, em nota, afirmou que


“o número de casos suspeitos, confirmados
e de mortes pelo coronavírus entre as popu-
lações indígenas na Amazônia brasileira au- Idem.

mentou assustadoramente”. Para a integran-


te da coordenação da Coiab, Valéria Payé, a Ibidem.

139
decisão da Sesai em criar categorias de indí-
genas é um caso de racismo institucional:

Quando vimos que a Sesai não faria esse


levantamento, decidimos fazer. Nossas
lideranças, os técnicos que estão na pon-
ta. Consolidamos os dados a partir disso.
O que confirma o racismo institucional
contra nós indígenas. É dever da Sesai
garantir o atendimento e acompanha-
mento dos indígenas que não estão no
território. São indígenas que saem dos
seus territórios por razões variadas. Seja
para estudar ou por terem sido expulsos
por invasores. Na Amazônia essa carac-
terística é ainda mais intensa porque há
indígenas para todo lado. Mas que indí-
gena ou povo quer viver fora de sua ter-
ra quando tem a escolha de estar nela?
Se está na cidade tem uma razão, que
no geral envolve muitos motivos.

Para Valéria Payé falta comprometimento com


a vida por parte do governo federal e ainda
observou um outro detalhe: a Sesai, ao des-
considerar os indígenas em contexto urbano,
deixa de mapear retornos dos “parentes” às
aldeias: “Se a Sesai tem mapeado nas estatís-
ticas os de contexto urbano, consegue tam-
bém proteger os que ela chama de aldeados
porque há um fluxo de voltar e sair dos terri-
tórios no meio da pandemia. Quem faz essa
proteção é a gente mesmo”.

Tanto a Coiab quanto a Copime confirma-


ram que muitos indígenas foram infecta-
dos na Casa de Saúde Indígena (Casai), em
Manaus, gerenciada pela Sesai. No caso
dos indígenas que historicamente encon-
tram dificuldades de atendimento na capi-
tal, muitos foram contaminados enquanto
buscavam atendimento para outros pro- Ibidem.

blemas de saúde nos aparelhos de saúde


municipais e estaduais. Ibidem.

140
A situação acima apresentada se estende
para outras regiões, inclusive quando a va-
cina contra a Covid-19 começou a ser apli-
cada. No Nordeste, começaremos com o
caso do povo Karão Jaguaribaras no estado
do Ceará, por três vezes declarado extinto
(BASTOS, 2020) manifestaram a quebra do
silêncio no início dos anos 2000. A partir
de então, buscam diálogo com os órgãos
de Estado e, efetivamente, começam a vir a
público em 2018. Conforme afirma Merremi
Karão, a “quebra de silêncio é o momento
em que rompemos a amnésia social provo-
cada pelo projeto colonial e evidenciamos
em público nossas lutas, é o momento de
ecoar as vozes silenciadas pelas violências
à além de nossos lares”. Localizados nos
municípios de Aratuba, Capistrano, Baturi-
té e Canindé, no estado do Ceará, os Ka-
rão Jaguaribaras relatam a dificuldade de
ter acesso ao pleno direito aos serviços de
saúde diferenciada para os povos indígenas.
Durante a pandemia de Covid-19, somente
uma das aldeias, o Kalembre Feijão, rece-
beu os atendimentos referentes à vacina-
ção. Contudo, isso ocorreu somente como
resultado amplo da Arguição por Descum-
primento de Preceito Fundamental (ADPF)
nº. 709, movida pela Articulação dos Povos
Indígenas no Brasil (Apib).

Na ADPF nº. 709, a Apib exigiu ações concre-


tas do Estado brasileiro quanto à proteção
dos povos indígenas contra a pandemia da
Covid-19. Pediu-se, então, a criação de bar-
reiras sanitárias; instalação de Sala de Situa-
ção para tratar de ações de combate à pan-
demia; acessibilidade aos indígenas aldeados,
em terras demarcadas ou não, ao Subsistema Entrevista concedida
de Saúde Indígena; e elaboração de plano de a Francisco Gleidison
Lima Karão, em
enfrentamento à Covid-19 junto aos povos agosto de 2021.

141
indígenas e com participação destes (APIB, 2020). Dessa for-
ma, esta ação serviu de base jurídica para que diversos Indí-
genas não ficassem desassistidos no acesso à saúde diferen-
ciada, corrigindo a dificuldade que em alguns casos ocorriam
a anos e que relegavam muitos à própria sorte.

No que diz respeito a ADPF nº. 709, ao utilizar as instâncias


jurídicas para confrontar a ineficiência do Estado, a Apib
se fundamenta no artigo 231 da CF acerca da legitimida-
de para atuação frente aos direitos dos povos indígenas
(ARAUJO JUNIOR, 2021).

A utilização direta do controle concentrado de constitucio-


nalidade representa um marco na defesa de direitos indí-
genas e impõe ao sistema de justiça a necessidade de aten-
ção e providências ante um cenário extremamente grave de
omissão do Estado brasileiro na elaboração e concretização
de políticas em favor desse grupo minoritário (ARAUJO JU-
NIOR, 2021, p. 378).

A conquista, via ação judicial, do direito à vacinação, con-


tudo, não pode ser entendida como a superação das prá-
ticas coloniais do Estado. Conforme afirma André Augusto
Bezerra (2021, p. 304), “chamar o Judiciário para tratar de
temas que deveriam ser da alçada do Legislativo e do Exe-
cutivo não resolve democraticamente o problema das vio-
lações colonialistas prevalentes”. Ainda segundo este au-
tor, o problema está em restringir aos tribunais o debate
que deveria ocorrer na esfera pública, com efetiva partici-
pação dos interessados nas decisões. Ainda assim, ao lon-
go da pandemia, foi somente por meio de ações judiciais,
via Ministério Público Federal ou provocadas por outras
entidades, que garantiu a grupos indígenas a proibição de
entrada de missionários em terras de indígenas isolados
no Amazonas; a permissão para que indígenas recebes-
sem auxílio emergencial com prazos diferenciados; impe-
dimento de retirada de indígenas das terras que habitam
enquanto durar as medidas de isolamento social, estejam
eles em terras demarcadas ou não (BEZERRA, 2021).

Ainda assim, ao mesmo tempo em que há enfrentamentos


junto às práticas integracionistas reiteradas no cotidiano dos
poderes que integram o Estado brasileiro, as organizações

142
indígenas se deparam com ações de instituições religiosas.
Atuando de formas mansas de conquista, como é o caso da
evangelização, levaram à recusa da vacina contra Covid-19, a
despeito das articulações para acesso a todos os grupos. Se-
gundo nota publicada pela Associação Brasileira de Antropo-
logia (ABA), no Ceará, “cerca de 600 indígenas Tremembé se
recusaram a receber a vacina instigados por pastores” (ABA,
2021, p. 1). A prática se repetiu na Bahia, na Reserva Indíge-
na Tuxá de Rodelas, às margens do Rio São Francisco; assim
como entre os Xavante e outros grupos indígenas no Mato
Grosso do Sul, Amazonas e Acre. Segundo as informações
recebidas pela Comissão de Assuntos Indígenas e o Comitê
de Antropólogos/as Indígenas da ABA, diferentes povos in-
dígenas foram alvos de

[...] estratégias digitais de desinformação e disseminação de


notícias falsas para se recusarem a receber a vacina contra
o novo coronavírus, responsável pela Covid-19. Algumas
denúncias apontam também que representantes de ordens
religiosas estão atuando para disseminar tais notícias falsas
com o intuito de sabotar a vacinação.
[...] plataformas WhatsApp e Telegram [estão sendo usa-
das] para disseminar notícias falsas e afirmações absurdas
sobre supostas intenções obscuras, conspirações ocultas e
efeitos manipulativos de vontade; inclusive a ocorrência de
mortes em série de indígenas e não indígenas em decorrên-
cia da vacinação. Enfim, uma tentativa deliberada, e ao que
parece orquestrada, para confundir a população indígena
por meio da transmissão de informações falsas, incorretas
e desonestas (ABA, 2021, p. 1, itálicos no original).

Esse conjunto de ações, portanto, dizem respeito à com-


plexidade das relações entre povos indígenas e agentes do
Estado e religiosos, dentre outros, que por sua vez reprodu-
zem perspectivas do indigenismo que opera sobre os po-
vos nativos. Entre os indígenas, essas lógicas criam pressões
específicas, tensionando a lógica do bem viver que, por sua
vez, é entendida como “conjunto de ideias surgidas como
reação e alternativas aos conceitos convencionais de de-
senvolvimento” (ALC NTARA; SAMPAIO, 2017). Diz respei-
to, portanto, aos projetos de vida situados nas perspectivas
indígenas acerca da relação com a natureza, com os outros
grupos étnicos e dentro das lógicas comunitárias que lhes
são próprias. Desse modo, ao desestabilizar o bem viver, a

143
lógica colonialista do Estado confronta e fragiliza os enten-
dimentos de vida dos indígenas.

Durante a pandemia, ficaram ainda mais evidentes as de-


sigualdades geradas pelas definições arbitrárias do indi-
genismo estatal. Entre as pessoas do povo Truká, em Per-
nambuco, a vacinação dos/das indígenas professores/as
não-aldeados não ocorreu via Sesai, mas no conjunto do
grupo prioritário de professores municipais. Neste caso, a
exclusão de pessoas indígenas não-aldeadas da vacinação
poderia ter colocado toda a aldeia em extrema fragilida-
de, pois as professoras trabalham diariamente na aldeia
seja na escola, na roça da família e em outras atividades
domésticas do seu grupo familiar.

CONCLUSÃO
Neste capítulo debatemos dois tipos de ações realiza-
das pelo Estado brasileiro no contexto pandêmico da Co-
vid-19. Nos dois casos, relativos à direitos territoriais e à
saúde, expõe o reiterado uso de classificações coloniais
e concepções integracionistas, há muito excluídos do or-
denamento jurídico brasileiro.

Nos casos apresentados acima, isso é evidenciado na incom-


pletude do atendimento diferenciado e na manutenção de
práticas inconstitucionais. Ao não considerar a autodeter-
minação dos povos indígenas, reconhecida pela CF de 1988,
as instâncias de governança discriminam as pessoas não-al-
deadas, ignorando os aspectos identitários e endossando
a vulnerabilidade a que estão submetidos os indígenas em
contextos fora das aldeias, e mesmo os que nela estão.

Dessa forma, ao não serem atendidos pelo subsistema de


saúde, os indígenas são alvo de discriminação na atenção
universal do SUS, além de não serem registrados nas es-
tatísticas específicas (ARAUJO JUNIOR, 2021). Do mesmo
modo, no que diz respeito às questões territoriais, como
ressalta Joênia Wapichana, a definição “indígenas integra-
dos”, como termo de classificação de um indígena “não mais
tão indígena”, porque fala português e assimilou costumes
da etnia branca, portanto não mais destinatário de direitos

144
específicos, acabou restrita pela Constitui-
ção aos tempos de ditadura.

Por fim, mesmo diante das constatações acer-


cas dos encaminhamentos genocidas, por-
que coloniais, das ações do Estado brasileiro,
temos que registrar nesse texto a capacida-
de de resistência dos povos indígenas. A ní-
vel nacional, o movimento indígena está di-
recionando ações de ocupação em Brasília,
no contexto do debate, no Supremo Tribunal
Federal, da tese do Marco Temporal. Enfren-
tando o medo ao Coronavírus, confrontam
as articuladas formas de dominação da so-
ciedade envolvente que insiste em pensá-los Entrevista concedida
a Renato Santana,
como tutelados fadados ao extermínio. em agosto de 2020.

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SOUZA LIMA, A. C. Um grande cerco de paz: Poder tutelar,


indianidade e formação do Estado brasileiro. Petrópolis: Vo-
zes, 1995.

147
148
09.

INTRODUÇÃO

O
insight que originou o presente texto nos che- GEÍSA MATTOS
gou a partir de uma situação de tensão em sala
de aula, ao discutirmos os processos de racia- IZABEL ACCIOLY
lização de pessoas brancas, no Brasil contem-
porâneo. A aula fazia parte de um curso eletivo,
ofertado em 2019 no Programa de Pós-Gradu-
ação em Sociologia da Universidade Federal
do Ceará. O curso, Racismo e Branquitude,
introduzia o debate acadêmico sobre privilé-
gio branco naquela universidade, em um mo- Professora do
Programa de
mento no qual a categoria branquitude estava Pós-Graduação

começando a entrar para a gramática política


em Sociologia,
Departamento de
dos movimentos antirracistas no Brasil, acio- Ciências Sociais, da
Universidade Federal
nada por ativistas dos movimentos negros. do Ceará. Sou grata
às contribuições
da Professora Ana
Naquela aula, brasileiros e brasileiras, com fe- Ramos-Zayas, da

nótipo de brancos e brancas – no país do “so- Universidade de Yale,


durante estágio de
mos todos mestiços” – começavam a se perce- pesquisa no Center
for the Study of
ber como portadores de privilégios materiais e Race, Indigeneity,

simbólicos, pelo fato de estarem em uma pele


and Transnational
Migration, de
branca. Com a conscientização dos privilégios, dezembro 2019 a
março de 2020.
chegava também a cobrança por responsabi- Agradeço à

lidades. Diante do incômodo dos estudantes


Universidade de
Yale pelo suporte
brancos e brancas presentes e do incômodo financeiro para
realizar o estágio e,
da própria professora Geísa - também branca - também, ao projeto

Izabel, estudante ingressante por cotas raciais


Capes-Funcap
8881.165965/2018-01
no Mestrado, questionou: “se tornar-se ne-
gra é muito doloroso e difícil, por que, então, Mestra em
tornar-se branca não deveria ser?”. Antropologia Social
pela Universidade
Federal de São
A provocação de Izabel era bastante represen- Carlos. Ativista do

tativa do crescimento das tensões raciais mais


movimento feminista
negro.

149
amplas no país. Em 2019, negros e negras já
representavam 50,3% do total de estudantes Curso ministrado
por Geísa Mattos
nas universidades públicas (IBGE, 2019), gra- em parceria com
Ana Ramos-Zayas,
ças à lei nº 12.711/2012, que instituiu a po- Professora do

lítica de ação afirmativa para o ingresso “de Programa Etnicidade,


Raça e Migração
autodeclarados pretos, pardos e indígenas e (Universidade de
Yale), no Programa
de pessoas com deficiência” em “instituições de Pós-Graduação

federais de educação superior vinculadas ao


em Sociologia, UFC,
no primeiro semestre
Ministério da Educação”. No entanto, homens de 2019.

brancos ainda são 39,5% dos professores uni-


versitários, seguidos por mulheres brancas Izabel, então, cursava
o Mestrado em
(31,8%). Homens negros (16,5%) e mulheres Antropologia Social

negras (11,2%), por sua vez, são a minoria de


pela Universidade
de São Carlos e,
docentes nas instituições de Ensino Superior naquele momento,
era aluna especial
em todo o país (FERNANDES, 2021). no Programa de
Pós-Graduação
em Sociologia da
Nesse contexto, questionamentos como os Universidade Federal

de Izabel foram se tornando cada vez mais do Ceará.

frequentes em salas de aula. Dirigidos a pro-


fessores e professoras brancas, eles e elas in-
terpelavam os referenciais majoritariamente
eurocêntricos nas ementas das disciplinas. Os
questionamentos criticavam os cânones ra-
cistas e problematizavam pesquisas elitistas,
demandando a descolonização do conhe-
cimento. A reação dos docentes, em geral,
As diferenças desqualificava a fala de estudantes negros e
ainda são abissais:
enquanto 78,8% dos negras sob o antigo argumento de que “no
Brasil o problema é de classe, não de raça”.
brancos entre 18 e
24 anos estavam no
Ensino Superior em Ainda, outras formas de desqualificar os de-
2018, eram 55,6%
dos negros e negras poimentos eram acionadas: “essa é apenas
uma experiência”, “isso é muito pessoal”, de
nesta faixa etária
presentes nesse grau
de ensino (IBGE,
2019).
modo muito semelhante ao que narra Gra-
da Kilomba (2019, p. 51), em suas vivências
Claudia Fernandes nas universidades de Portugal e de Berlim.
(2021) chega a Afinal, a Academia branca exige a negação
essas estatísticas a
partir de dados do do corpo negro, de sua linguagem – o pre-
tuguês (GONZALEZ, 1988) – e de sua expe-
Instituto Brasileiro
de Geografia e
Estatística (IBGE),
Censo Demográfico
riência racializada, concretizando a adoção
de 2010, PNAD dos paradigmas brancos de ciência, conhe-
Contínua de 2019 e
MEC/INEP. cimento e pretensa universalidade (FIGUE-

150
REDO; GROSFOGUEL, 2009).
Essa percepção foi

Como é comum na América Latina, inte- reforçada por várias


das pesquisas sobre
lectuais brancos e brancas tendem a não branquitude em
contextos universitários
reconhecerem sua branquitude, em con- latino-americanos

sequência da persistente “ideologia da


apresentadas na série
de seminários “El rol
mestiçagem”. Em Fortaleza, esse fenômeno de las universidades
en la reproducción
se acentua, em razão da situação racial do de la blanquedad en

Nordeste, que ocupa um lugar “periférico”


México y las Américas”,
organizado pela
no imaginário da branquitude nacional. As professora Gisela
Fregoso, da Universidad
regiões Sudeste e Sul do país – que mais re- de Guadalajara, em

ceberam a imigração europeia – ainda hoje


fevereiro e março
de 2021. Entre os
detém a maior quantidade de professores pesquisadores e
pesquisadoras
e professoras do Ensino Superior. Além que apresentaram
trabalhos no evento
disso, a população branca, de modo geral, estavam Hugo Cerón-

se concentra, sobretudo, na região Sudes- Anaya, Ana Ramos-


Zayas, Juliet Hooker,
te: em São Paulo, por exemplo, a popula- Anny Ocoró Loango,
Beatriz Nogueira
ção autodeclarada branca chega a 63,9%, Beltrão e nós.

enquanto em Fortaleza é de apenas 30,61%


(IBGE, 2019). Assim, apesar de serem mi- “A desigualdade
noria na população brasileira quando se regional é a que mais
chama a atenção ao se
considera a média nacional, 71% dos pro- observar os dados mais

fessores das professoras das universidades


atuais. A região Sudeste
do País concentrava
do país são homens brancos e mulheres 54,1% dos professores
universitários em
brancas (FERNANDES, 2021). Consideran- 1980 e passou a 40%

do que, atualmente, os estudantes negros


em 2019 e continua
sendo a que mais
e negras são mais de 50% dos discentes, concentra Instituições
do Ensino Superior,
como vem se dando o encontro entre do- e logo, professores”
(FERNANDES, 2021, p. 11).
centes brancos e brancas e discentes ne-
gros e negras na sala de aula?
O diálogo que deu
origem a este texto
O formato mais adequado para produzirmos se deu originalmente

essa reflexão entre uma professora branca e por meio da rede


social Instagram, em
uma estudante negra nos pareceu ser o di- uma live intitulada
“Branquitude
álogo inter-racial honesto. Para tanto, fo- Acadêmica” que

mos partilhando e amadurecendo, em uma


fazia parte da série
“Debates Incômodos
série de encontros, reflexões conjuntas sobre sobre Racismo
e Branquitude”.
nossas autobiografias , o que nos levou a Para fins da escrita

aprofundar o reconhecimento dos significa-


deste capítulo, a
conversa original foi
dos de termos sido racializadas de modos di- editada, ganhando
acréscimos, referências
ferentes. Essas conversações foram nos le- bibliográficas e
subtítulos.
vando a questionar as formas de produção e

151
de reprodução do conhecimento acadêmico,
com base em experiências bastante concretas Na primeira versão
deste texto, a ideia
que vivenciamos, assim como nos possibili- era contrapor nossas
autobiografias
tou vislumbrar estratégias para a superação para explorar os

dos obstáculos à descolonização do ensino


significados de
“tornar-se negra,
acadêmico no Brasil. tornar-se branca”.

Esperamos que nossa conversa possa ins-


pirar outros tipos de parcerias inter-raciais
entre professores e estudantes, bem como
outras formas de escrita e de aprendiza-
dos baseadas no reconhecimento de nossos
pertencimentos raciais, de nossos afetos e
da disponibilidade para enfrentar conver-
sas difíceis. Acreditamos que diálogos fran-
cos e permanentes são imprescindíveis para
pressionar por mudanças nos currículos, nos
programas e nas mentalidades no campo
acadêmico, reconhecendo os significados
da branquitude, desafiando a cultura do eli-
tismo pedante e excludente no ambiente
universitário, não só no Brasil, mas em ou-
tros lugares do mundo ocidental.

É importante destacar que nem todos os que


passam pelo processo de se reconhecerem
brancos e brancas assumem responsabilida-
des pessoais e políticas para a mudança por
meio de práticas sociais concretas. Ainda pa-
rece ser um privilégio de indivíduos brancos
poderem escolher se querem refletir sobre o
tema e se engajar na mudança social ou sim-
plesmente ignorar e ter aversão ao assunto.
Melindres, negações e acusações de silencia-
mento, no contexto dos debates intelectu-
ais, têm sido reações constantes por parte de
homens brancos e mulheres brancas que se
consideram progressistas, em processos que
ainda devem ser objetos de estudos e de pes-
quisas, tendo em vista a complexidade com
que a ideologia racista se renova (BONILLA-
-SILVA, 2014). Sobretudo, considerando o pa-

152
pel que a intelectualidade branca assume nessa renovação,
bem como as especificidades dos contextos locais, permea-
dos pelos debates globais.

***
A SOLIDÃO DE SE PERCEBER NEGRA
NA UNIVERSIDADE DE HOMENS
BRANCOS E MULHERES BRANCAS
IZABEL - Eu fui mãe durante a adolescência e precisei in-
terromper os estudos por muitos anos. Apenas em 2014,
aos 26 anos, entrei na universidade. A minha turma foi
uma das primeiras com ações afirmativas: 50% dos alunos
ingressavam por ações afirmativas e 50% por ampla con-
corrência. Ainda assim, havia apenas três pessoas negras
na turma, contando comigo, e eu ainda me sentia muito
sozinha nesse espaço. Nessa época, eu trabalhava durante
o dia e estudava à noite, por isso tinha que levar meu filho
para a universidade. Os momentos que a gente tinha jun-
tos eram as noites, na hora da aula, e o final de semana.

É importante ressaltar que algumas pessoas da minha tur-


ma já estavam na segunda graduação. Por ser o turno no-
turno, eram um pouco mais maduros, tinham um perfil
meio fora da curva. Então, notei que estava ficando pra trás
e comecei a me desesperar. Nesse momento, contatei um
professor – uma ingenuidade – e confessei: “professor, eu
não estou conseguindo acompanhar, os textos são muito
densos pra mim”. Perguntei, ainda, o que eu poderia fa-
zer, pois trabalhava durante o dia em uma cidade vizinha
a Fortaleza e tinha que sair bem cedo. Ele me perguntou:
“o que você faz entre 11h da noite e 6h da manhã?”, su-
gerindo que eu deixasse de dormir para me dedicar aos
estudos. A ideia era que o trabalhador, aluno de um cur-
so noturno, geralmente ligado às camadas populares, fos-
se um aluno que não pudesse dar conta, ou seja, que não
conseguisse acompanhar o conteúdo do curso.

Eu tive apenas professores brancos em seis anos de formação


acadêmica, não tive nenhum professor negro na graduação
(cursada na UFC), nem no mestrado (cursado na UFSCAR).

153
Portanto, em geral, os professores – brancos
– me tratavam de duas maneiras. O primeiro
grupo era extremamente condescendente
e tinha falas como “Coitadinha, não precisa
fazer o trabalho final. Você é negra, trabalha
e tem filho. Eu repito a sua última nota”. Para
esses professores, eu não teria capacidade de
render e, então, eles não exigiam conteúdo
de mim. O segundo grupo, por sua vez, era
aquele que queria “tirar o meu couro”, isto é,
do tipo que queria exigir o máximo de mim.
Encontrei professores que faziam exigências
desconsiderando quem eu era, a minha his-
tória.

Enfim, foi muito difícil ter que lidar com as


demandas acadêmicas, pois, muitas vezes,
enfrentei um nível de exigência extrema. Em
outras palavras, as pessoas da minha turma
de mestrado conseguiam boas notas fazen-
do metade do que eu fazia, enquanto eu me
desdobrava para atender do mesmo modo.
Como eu era a única negra, a única nordesti-
na, a única mãe, eu me sentia um extraterres-
tre na UFSCAR (aliás, na cidade de São Car-
los, no estado de São Paulo). Em suma, se eu
pudesse definir em uma palavra a experiência
acadêmica, seria “solidão”.

AUSÊNCIA DE CRITICIDADE
DE PROFESSORES E
PROFESSORAS BRANCAS
QUANTO A AUTORES
RACISTAS
GEÍSA - Eu cheguei ao nível máximo de for- Izabel costuma dizer
mação em Sociologia no Brasil, o doutorado, que eles têm o perfil

sem ter tido, na minha vida acadêmica, uma


da senhorita Morello,
personagem da série
disciplina para estudar o racismo. A questão norte-americana
“Todo Mundo Odeia
racial não perpassou os meus estudos, era o Chris” (Everybody
Hates Chris, 2005-
um tópico muito marginal, tratado eventu- 2009).

154
almente. É muito interessante, porque, hoje,
quando a gente vê a emergência das ques-
tões raciais no Brasil, é como se a gente se
espantasse: “mas se o racismo sempre es-
teve nas relações, por que ele não era um
tema?”. Todavia, hoje é fácil entender o mo-
tivo: os intelectuais são brancos e, para eles,
a questão racial não era uma questão.

Então, como isso aparece pra mim? É muito


interessante. O livro “Casa-grande & Senzala”,
do Gilberto Freyre, estava na bibliografia do
concurso que fiz para ser professora da UFC e,
inclusive, eu o citei na prova. Eu adorava esse
livro. Claro que havia uma criticidade por con-
ta do mito da democracia racial, mas não tan-
ta. Posteriormente, quando fui ministrar o pri-
meiro curso sobre racismo na UFC, tinha uma
estudante negra na sala de aula e ela havia tra-
balhado como doméstica desde os 13 anos. A
maneira como ela capta a violência na escrita
do Gilberto Freyre, especialmente no capítulo
sobre a vida sexual do negro na vida familiar,
revela uma sensibilidade e uma dor que, nós
mulheres brancas, em geral, não percebemos,
muito menos os homens brancos. Foi preciso
essa moça falar pra mim o quanto ela se sentiu Entre as autoras que
violentada com a leitura desse livro para que emergem a partir
dos anos 2000
eu me desse conta de toda a violência que era em estudos sobre

ler Gilberto Freyre.


branquitude no
Brasil destacam-se,
entre outros, Maria

A tese da “democracia racial” no Brasil foi su- Aparecida Bento


(2002), Edith Piza
perada, mas, na prática, não há uma criticida- (2002), Lia Shucman
(2012).
de quanto aos autores racistas. Principalmen-
te, não há uma percepção empática com os
estudantes negros, nem, principalmente, com
Lourenço Cardoso
(2008) analisou
as mulheres negras, isto é, uma percepção da resumos das teses
e dissertações em
violência que significa para elas ter de ler aqui- trinta universidades
públicas brasileiras
lo. A partir dos anos 2000, começam a surgir e constatou que

vários autores e autoras que fazem a crítica da branquitude esteve


ausente como tema
branquitude , a crítica dessa produção, tanto de pesquisa durante
o período de 1960
da ausência de pesquisas sobre brancos – os aos 2000.

155
objetos de pesquisas eram negros – como da ausência de
intelectuais negros e negras nos currículos. Além disso, es-
tudantes negros e negras estavam praticamente ausentes da
universidade e só passaram a entrar nela no começo do sécu-
lo XX.

OS “CLÁSSICOS” E A
“EPISTEMOLOGIA DO PONTO ZERO”
IZABEL - Estava pensando na minha experiência com o Gil-
berto Freyre também. Fiz o curso “Pensamento Social Bra-
sileiro” e a gente leu “Casa-grande & Senzala”. Na época, a
condução que a professora branca fez não trazia essa leitu-
ra crítica ao autor. Pelo contrário, havia um modo elogioso.
Eu lembro que aquilo foi muito violento pra mim, mas eu
não conseguia encontrar espaços com os outros estudantes
pra fazer a crítica. Realmente, era uma solidão muito grande.
Posteriormente, reencontrei o Gilberto Freyre na pós-gradu-
ação, em São Paulo. Quando eu fui pra São Paulo, havia a so-
brecarga da questão racial, aliada ao fato de eu ser do Nor-
deste; juntava tudo. No final desse curso, a professora trouxe
o Gilberto Freyre como se dissesse: “Olha! Estou rompendo
paradigmas, trazendo um nordestino para o trabalho final
da disciplina”. Ela ficou chocada com o meu trabalho final,
pois o artigo “pingava sangue”, eu critiquei demais o Gilberto
Freyre, de forma dura e fundamentada. Acho que consegui
amadurecer e me colocar já no mestrado, me posicionando.
No entanto, foi muito complicado perceber a branquitude,
inclusive, nos estudos sobre violência.

Durante muitos anos eu estudei sobre violência, sobre ques-


tão prisional. E é incrível! Como é que se pode pensar a ques-
tão prisional no Brasil e não considerar fatores de raça? No
texto da minha dissertação, eu trago alguns autores para falar
sobre raça e prisão, como Michelle Alexander (2018), e ouvi
críticas, “ah, você está forçando”. Como que é forçar se, ao
olharmos as estatísticas do Ceará, 94% das mulheres presas
no estado são mulheres negras? Como não falar de raça ao
falar de prisão? Parece, portanto, que a branquitude acredi-
ta que a universalidade é dela e, quando trazemos a questão
racial, estamos sendo específicos, não objetivos. Isso é uma
das características da branquitude acadêmica, quando se fala

156
sobre a universalidade, fala-se do branco; mas ao se falar do
negro, é algo específico.

GEÍSA - Um filósofo colombiano chamado Santiago Castro-


-Gómez (2003) diz que é como se a branquitude criasse uma
“epistemologia do ponto zero”, que encobre o ponto de vis-
ta particular da autoria branca. Essa “epistemologia” encobre
esse ponto de vista particular e almeja ser neutra e univer-
sal. Isso é uma extrema violência porque nega a validade da
questão “por que tal autor se tornou clássico?”, assumindo,
portanto, que não há um debate sobre o que torna esse autor
um cânone. No entanto, isso precisa ser discutido e questio-
nado. Essa ideia de que os clássicos são imexíveis é uma su-
posição de que o conhecimento não pode ser questionado,
de que o conhecimento não tem outras perspectivas para ser
construído. Então, repensar o que é um clássico e também
como ler os clássicos é muito importante.

IZABEL - Concordo. Essa reverência excessiva é muito violen-


ta, ela precisa acabar urgentemente. Isso é flagrante de como
a branquitude, quando confrontada, tenta a todo custo man-
ter os seus cânones. Por isso é tão difícil fazer mudança nas
ementas, adicionar os autores que queremos ler nos nossos
programas. É importante que consigamos colocar autores
negros e negras que tensionem essas questões. Não é para
deixar de ler o Gilberto Freyre, é para ler criticamente.

Às vezes falam como quiséssemos cancelar ou negar tudo


que foi feito. A história da nossa disciplina – eu venho da An-
tropologia – tem uma base racista e colonialista gigantesca –,
não queremos apagar isso. Pelo contrário, eu quero cada vez
mais ler criticamente esses autores. Tem autores que são câ-
nones. No entanto, é importante pensar como eles chegaram
até esse ponto e, então, ler criticamente a partir disso, além
de trazer outros autores e autoras para fazer contraponto. É
mais uma perspectiva de expansão do que de limitação. Fico
pensando que, na minha graduação, eu lia os textos das dis-
ciplinas e tinha que ler além deles para poder dar conta des-
sas questões. Então, por que outros alunos e alunas, geral-
mente brancos e brancas, também não tiveram esse acesso?
Muitos professores e professoras falam que não conhecem
esses autores e autoras. Por favor, se chegaram pra mim, que

157
era aluna da graduação e achei buscando no
Google, um professor e professora também
consegue fazer isso.

ESCRITA VISCERAL,
AUTOCURA E TORNAR-SE
SUJEITO DE SUA PRÓPRIA
HISTÓRIA
GEÍSA - Eu também reconheço que, pelo fato
de também não ter tido essa formação, ape-
nas recentemente passei a incorporar autores
negros (incluindo mulheres negras e latinas)
nos cursos que eu ofereço. Essa percepção,
porém, me veio também com muita força,
quando eu fui fazer um intercâmbio na Uni-
versidade de Yale, onde fiz o curso Personhood
in the Americas, com a professora Ana Ramos-
-Zayas. Nesse curso, encontrei autores lati-
no-americanos discutindo exatamente essa
universalidade do pensamento ocidental ba-
seada no pensamento eurocêntrico.

Gloria Anzaldúa (2015) foi uma autora que


me afetou muito, uma chicana que traz uma
ontologia subalterna, mas, ao mesmo tempo,
tem uma escrita muito visceral e quebra total-
mente com os cânones da escrita acadêmica
ocidental. Essa também é muito a marca de
escritores negros e negras. Percebo que existe
muita resistência à escrita de pessoas negras,
porque elas escrevem também para buscar
sua cura. Eu queria que você falasse um pou-
co sobre a experiência de ler e de escrever
como autora negra e de ler autores negros.

IZABEL - Eu lembro que as primeiras coisas Entre os autores


clássicos latino-
que escrevi na graduação, escrevi como eu americanos no
escrevo – com o corpo. Sempre foi assim, de programa do curso
estavam José
corpo todo. Eu lembro que diziam que era Martí (2002), José
Vasconcelos (1997) e
pouco objetivo, escrita não acadêmica, essas Jorge Gracia (2011).

158
eram as críticas que vinham nas notas à margem dos traba-
lhos. Eu lembro que quando eu fui pra Antropologia e resolvi
escrever do jeito que eu escrevo, as coisas começaram a fluir
e comecei a ficar feliz com o meu trabalho.

A bell hooks, em “Ensinando a transgredir” (2013), afirma que


chegou à teoria muito machucada, mas encontrou nela um
local de cura. Isso também aconteceu para mim durante a
graduação, em paralelo à universidade. Isto é, não foram au-
tores que os professores trouxeram pra mim, foram coisas
que eu pesquisei ou que mulheres do movimento negro me
trouxeram, em cursos de formação de mulheres negras or-
ganizadas. Por exemplo, uma formação que fiz com as mu-
lheres do Instituto Negra do Ceará (Inegra).

Essa formação foi uma experiência incrível. Lá, conheci mu-


lheres que admiro fortemente e tive acesso a essas outras
autoras, mulheres negras que escreviam sobre o que eu
passava e que me trouxeram esse modo de escrever, que é
muito visceral e que marca uma diferença muito importan-
te. Ou seja, não estou sozinha.

GEÍSA - Exatamente, Izabel! Quando você traz essa escri-


ta, também você deixa de ser objeto dos brancos. É você
mesma narrando sua própria história. Essa é outra questão:
por que eu migrei dos estudos sobre racismo que focavam
nas pessoas negras para estudar pessoas brancas? Por-
que é inaceitável que mais pesquisadores e pesquisadoras
brancas venham reproduzir essa desigualdade de poder
também de serem “especialistas em tornar os negros ob-
jetos” e falar sobre eles como se entendessem mais deles
do que eles e elas próprias.

Acho muito importante enfocar a branquitude, sobretudo


para pensar como o conhecimento é produzido em termos
dessa intelectualidade branca, voltando também o olhar para
nós mesmas, para como a gente se pensa. Uma coisa que me
estimulou e me emocionou muito, na minha experiência em
Yale, foi a leitura do Paulo Freire, “Pedagogia do Oprimido”
(1987), que estava na bibliografia do curso que eu fazia lá. Já
havia lido Freire no Brasil, e o incorporei em algumas discipli-
nas que ministrei, mas me emocionei demais de ler esse livro

159
naquele lugar que eu sentia ser tão frio, tão distante de tudo
que se parece com o Brasil. E eu pensava, por que o Paulo
Freire não está na bibliografia dos nossos cursos de Ciências
Sociais? Paulo Freire não fala só sobre educação, fala sobre
transformação social, e as lições que ele dá, inclusive sobre
descolonização do conhecimento, são essenciais para a for-
mação na área de Humanidades de modo geral. Nos Estados
Unidos, todos os estudantes de Ciências Sociais e ativistas
com quem eu conversava tinham lido Paulo Freire. Muitos
estudantes universitários no Brasil não leram.

IZABEL - Incrível. Eu estava lendo a bell hooks em “Ensinan-


do a Transgredir” e ela tem uma boa interlocução com Paulo
Freire. Quer dizer, tem que vir um autor de fora para te tra-
zer. Em 2019, Angela Davis esteve no Brasil e lotou os lugares
por onde passou. Em São Paulo, lá no auditório do Sesc Pi-
nheiros, ela falou que achava isso estranho e questionou: por
que a víamos como símbolo do feminismo negro no Brasil?
Disse: “vocês têm Lélia González!”. Enfim, acho que a gente
tem que valorizar mais os autores nacionais.

O “RACISMO SEM RACISTAS” NA


UNIVERSIDADE BRASILEIRA
GEÍSA - Uma das coisas que eu acho que Freire faz é trazer
situações concretas. Por exemplo, em relação aos aliados
e aliadas brancos e brancas dos movimentos antirracis-
tas. Nós falamos “daqueles opressores”, mas me enquadro
como uma pessoa branca e, portanto, também posso ser
vista como opressora. Isso é uma coisa muito importante
de se reconhecer.

A intelectualidade branca no Brasil, primeiramente, não se


reconhece branca, pois ainda há esse mito da mestiçagem,
mesmo as pessoas reconhecendo que raça não é um concei-
to biológico. Ou seja, todos somos mestiços, mas alguns e
algumas tem pele clara e o fato de serem brancos e brancas
têm impacto, sim, na realidade, em relação a privilégios, em
relação a várias questões, mesmo que as pessoas venham de
origens pobres. Ângela Figueiredo e Roman Grosfoguel, no
artigo “Racismo à Brasileira ou Racismo sem Racistas” (2009),
analisam que intelectuais brasileiros e brasileiras têm uma

160
enorme dificuldade em se reconhecer brancos e brancas, em
primeiro lugar, e, depois, em reconhecer o racismo institu-
cional no espaço universitário. Penso que esse é o primeiro
reconhecimento que nós, professores e professoras brancas,
temos que fazer. Primeiro que somos brancos e brancas, se-
gundo que somos racistas, porque o racismo não é uma ques-
tão pessoal, não é uma questão “ah eu sou uma má pessoa,
porque eu sou racista”, não é isso. É uma cultura, está imbri-
cada em nós. Mesmo que não se pense sobre isso; na ver-
dade, quanto menos se pensar sobre isso, mais racistas nós
vamos ser.

IZABEL - Costumo dizer que um homem branco ou uma mu-


lher branca, “no automático”, é racista.

PAULO FREIRE, PROTAGONISMO


NEGRO E A DESCONSTRUÇÃO DO
EGO DA BRANQUITUDE
GEÍSA - O branco e a branca que se pensa neutro e neutra
é o pior racista. Então, antes de mais nada, é preciso ter essa
consciência. Eu sou branca. Então, dentro de uma estrutura
racista, sim, eu sou racista. O que eu vou fazer com isso? É
um racismo que eu aprendi, que está entranhado em mim.
O que eu vou fazer? Eu vou trabalhar isso em forma de ação
e, para isso, acho muito importante a leitura de Paulo Freire.
Porque ele vai colocar a questão de que o oprimido é quem
tem que tomar a dianteira, então o protagonismo é dos ne-
gros e negras. Principalmente das mulheres negras. Por isso
que nosso papel como professores e professoras é escutar
vocês. Escutar o que vocês têm a dizer e as acolher, para que
o diálogo aconteça. Essas verdades que são ditas, que já fo-
ram ditas para mim por mulheres negras, em sala de aula,
são duras. É angustiante se perceber racista, mas é necessá-
rio para mudar. Sem essa autopercepção, não mudamos.

IZABEL - Tem que pensar nesse incômodo, Geísa. Por que


eu me incomodo ao ver isso? Por que eu me incomodo
em ter isso revelado sobre mim? Qual é o incômodo em
me assumir branco ou branca? Eu gosto de desfrutar dos
privilégios da branquitude, mas não gosto de ser nomea-
da como branca. É preciso pensar nesse incômodo. Pense

161
sobre ele, olhe para ele, converse com ele, porque é esse
incômodo que vai dar pistas, inclusive para pessoas bran-
cas saberem o que fazer com isso.

Por que professores e professoras brancas, muitas vezes, não


querem ouvir alunos e alunas negras, recusam as sugestões
de estudantes negros e negras sobre a ementa? Por que eles
não querem abandonar o papel do professor ou da professo-
ra como centro do conhecimento, que vai lhe conferir aquele
conhecimento para quem está ali em volta? Será que seu ego
precisa estar nesse pedestal? Será que não dá para descer
um pouquinho, para baixar um pouquinho e aprender com
quem está ali com você? Persiste essa visão de educação do
professor branco e da professora branca como o farol. É por
isso que o Paulo Freire é importante.

GEÍSA - Izabel, você falando isso, da importância de os pro-


fessores saírem desse lugar de não escuta, me traz muito o
que a Grada Kilomba (2019) fala sobre o ego. A gente sabe
que a cultura universitária é muito competitiva. Essa compe-
tição que se instaura, existe em outros ambientes também. A
universidade não é o único lugar competitivo, mas essa ideia
dos egos no mundo acadêmico é muito forte. Eu acho que a
leitura de Paulo Freire deveria ser obrigatória para todo pro-
fessor quando entra na universidade, porque quanto mais
apegado você estiver a uma ideia de ego – de que você é o
detentor do saber e que o seu saber é melhor do que outros
saberes possíveis –, menos permeável a gente vai estar ao
aprendizado e ao crescimento intelectual. Porque o cresci-
mento intelectual se dá nesse embate com a vida real, com
aquilo que nos desconcerta.

Então, eu acho que uma fonte de aprendizado muito grande


é a abertura para se desconcertar, para se desconstruir. E, em
termos dessa desconstrução, eu tenho muita fé nas mulhe-
res. Sei que é muito difícil para as mulheres negras, às vezes,
confiar nas pessoas brancas, de que elas realmente são bem-
-intencionadas. Mas tenho visto muitas feministas brancas fa-
larem que estão em desconstrução e me sinto nesse momen-
to em um processo assim, e tem me parecido riquíssimo em
termos de encontrar novas formas de existência. Paulo Freire
fala disso em “Pedagogia do Oprimido” (1987) como um re-

162
nascimento. Eu acho que a gente vai tirando camadas; é do-
loroso, é muito doloroso, mas é muito necessário. É preciso
tirar as camadas para poder se renovar. Tirar essas velharias,
essas poeiras todas que nos impedem de ser melhor.

IZABEL - E eu fico pensando como a entrada de pessoas


negras na universidade foi benéfica para a universidade,
para a diversidade do espaço acadêmico. Quando profes-
sores e professoras brancas tentam ir de encontro, resistir a
que autores e autoras negras estejam nas ementas das dis-
ciplinas, eles e elas estão jogando fora a oportunidade de
aprender juntos. É um desperdício. Eu acho que professores
e professoras brancas têm muito a aprender com alunos e
alunas negras e com a diversidade. O movimento de alu-
nos negros e negras pressionando é muito importante. Lu-
tar contra isso, ser resistente à entrada desses estudantes e
a uma mudança nesses paradigmas é um tiro no pé. O seu
ego vai lhe destruir; você não ganha com o seu ego, você
perde; você não está se protegendo, você está definhando.
Isso porque você não está trocando e a gente aprende na
troca, no convívio, no contato. Por exemplo, foi o contato
com uma aluna negra, que falou sobre a percepção dela do
Gilberto Freyre, que te fez pensar nesse desconforto, que te
colocou em perspectiva. Imagina se esse contato não tives-
se acontecido! Esse contato, mesmo que doloroso, é neces-
sário. Conversas são necessárias.

ESTUDANTES NEGROS (AS)


PRESSIONANDO PARA MUDAR
CURRÍCULOS E PROGRAMAS
GEÍSA - No Departamento de Ciências Sociais da UFC, os
estudantes criaram um Fórum de Negros e Negras e fize-
ram um grande painel de fotografias de autoras e autores
negros, incluindo a própria Izabel, e expuseram em uma das
salas. É um amplo mural, mostrando, inclusive, o que cada
autor e autora pesquisa. Isso é muito interessante porque
uma das justificativas que intelectuais brancos e brancas
usam é que não existem autores e autoras negros e negras
que possam falar sobre os temas clássicos. Os próprios es-
tudantes fornecem as respostas.

163
IZABEL - Eu acho que temos que fortalecer organizações
como o Fórum de Negras e Negros, para que eles consigam
ter energia pra continuar pressionando os professores e pro-
fessoras. E é pressionar mesmo, porque, com alguns profes-
sores e professoras, apenas a sensibilização não adianta, é na
pressão e essa pressão tem que acontecer. É preciso falar no
primeiro dia de aula: “Não, professor ou professora. Vamos
ver aqui a ementa, vamos discutir juntos a ementa” ou “Olha
esse autor ou autora aqui, que tal esse ou essa, vamos incluir
isso aqui, vamos olhar a diversidade dessa ementa”. Eu acho
que isso é muito importante.

Outra coisa necessária é fazer com que esses alunos e alu-


nas também produzam as próprias pesquisas. O que acon-
tece muitas vezes é dizer que “aquela aluna ali é barraqueira,
aquela ali faz confusão por causa de autor negro, não vou
orientar” e então vão isolando essas pessoas que fazem essa
pressão. A resposta também tem que ser acadêmica, dizer:
“Olha, eu pesquiso, eu participo de eventos, eu publico, eu
faço e aconteço”. Gosto de dizer para os outros alunos e alu-
nas também fazerem algo com essa raiva que dá. E usar essa
raiva como a Audre Lorde (2019) também trata, pegar essa
raiva e fazer algo com isso. Essa resposta acadêmica, pelo
menos pra mim, foi o que deu certo.

GEÍSA - Enquanto a gente tomar a branquitude como um


dado sobre o qual não se pensa, que é neutro, e só olhar para
os negros e negras como “objetos de pesquisa”, não vamos
compreender os mecanismos que reproduzem e que perpe-
tuam o racismo, mecanismos muito sutis. Por exemplo, a re-
sistência a pesquisar por autores e autoras negras e latino-a-
mericanos para incluir nos nossos cursos, afirmando que isso
dá muito trabalho. É o mínimo que temos que fazer.

É importante frisar que, em determinados cursos, o racismo


que é ainda mais forte, como nos cursos de Medicina, nos
cursos de Direito... Estamos falando da Universidade de for-
ma mais ampla. A gente pode pensar o quanto essa ideia de
uma intelectualidade elitista, pedante e que se considera me-
lhor e superior que os outros se torna pior nos cursos tradi-
cionalmente mais elitizados.

164
IZABEL - Exatamente. Adota-se um discur-
so meritocrático, que é um discurso branco,
para justificar, muitas vezes, o seu próprio ra-
cismo. Dizem assim: “Que pena, ele não está
aqui porque não conseguiu” e desconsideram
várias questões. É engraçado que todo mun-
do que consegue é branco ou branca, mas
ignoram a questão do privilégio branco, que
vai favorecer aquela pessoa para estar sem-
pre ali.

Acredito que temos que fortalecer os cole-


tivos de alunos negros e negras, para que
não se sintam sozinhos. Muitas vezes, as ex-
periências que temos são dolorosas e fazem
com que a gente se recolha. Foi o que acon-
teceu comigo no mestrado. Tive um momen-
to de depressão bem forte. Enfim, foi super
complicado. Você tem que se aquilombar
. A resposta para sobreviver nesse espaço
hostil é se aquilombar. Meus amigos e ami-
gas negras, vamos pra luta.

GEÍSA - E toda vez que olharmos para uma Quilombos são


mulher negra pensemos em quanto tempo comunidades
construídas por
e em quanta coragem ela teve que ter para negros escravizados,
que fugiam da
romper o seu silêncio. Respeitemos as pesso- sociedade colonial

as negras, especialmente as mulheres negras, escravocrata.


Eram refúgios
porque elas levaram muito tempo e tiveram constituídos tanto
por negros vindos do
que ter muita coragem para romper o silên- continente africano

cio como estão fazendo hoje.


quanto por negros
nascidos no Brasil.
Nesses territórios
de resistência,
conviviam diferentes
identidades,
tradições, cultos

REFERÊNCIAS
e línguas. A ideia
de quilombo
permanece presente

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no movimento
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de criar e manter
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167
168
10.

INTRODUÇÃO

E
m março de 2018, o assassinato da vereadora MONA LISA DA
Marielle Franco desencadeou uma onda de SILVA
dor, indignação e necessidade de transfor-
mar o luto em luta. Foi assim que o projeto ARIADNE RIOS
Mulheres Negras Resistem se constituiu: da
experiência da “dororidade”, termo cunha-
do pela ativista negra Vilma Piedade (2017)
para falar da experiência da dor que une e
aproxima mulheres negras.

O projeto surge como forma de reafirmação


de que “ideias são a prova de balas”. Por mais
que acontecimentos como o anteriormente
citado evidenciem o silenciamento que his-
toricamente que é imposto às mulheres ne-
gras, inspiradas pela ideia de que “Mulheres
Negras Resistem” e que “Marielle deixou se-
mentes”, elaboramos a proposta de um curso
de formação com conteúdo teórico e político
voltado para mulheres negras cearenses.

O projeto inicialmente foi pensado a partir


da dor e da indignação que o assassinato da
vereadora Marielle Franco causou na Profª
Drª Vera Rodrigues. Posteriormente, ela apre-
sentou para duas orientandas de mestrado,
Ariadne Rios e Mona Lisa da Silva, a proposta
do projeto de extensão e o desafio de poli-
ticamente pensarmos iniciativas que promo-
vessem o protagonismo feminino e negro no
Ceará, a fim de germinarmos “sementes de
Marielle Franco” nessa “Terra do Sol”. Terra

169
essa que insiste em apagar a existência da população negra
como elemento formador do Ceará (RATTS, 2016) implican-
do, assim, a sub-representação desses sujeitos e os entraves
às políticas de promoção da igualdade racial.

Isso posto, torna-se imprescindível destacar que o projeto


de ensino, pesquisa e extensão “Mulheres Negras Resistem:
processo formativo teórico-político para mulheres negras”
objetiva fomentar o protagonismo feminino e negro por
meio da formação de quadros de representação social e
política. Tal formação ocorre em encontros de formação te-
órico-política nos quais formadoras, cursistas e referencial
bibliográfico expressam um alinhamento de um projeto de,
para e com mulheres negras. Esse direcionamento alinha-
-se às perspectivas teórico-políticas do feminismo negro,
da teoria decolonial e dos direitos humanos.

“SER MULHER E NEGRA É MINHA


ESSÊNCIA, NÃO MINHA SENTENÇA”
As pesquisas desenvolvidas sobre as desigualdades raciais,
especialmente por órgãos governamentais, têm sido o prin-
cipal instrumento para o reconhecimento da população ne-
gra (pretos e pardos) enquanto segmento com características
específicas e em desvantagens no que se refere à inserção
social no Brasil. Os dados apresentados pelo Instituto Brasi-
leiro de Geografia e Estatísticas – IBGE (2019), por exemplo,
evidenciam essas desvantagens e nos ajudam a compreen-
der como “raça, gênero, classe e poder” se relacionam e es-
truturam as desigualdades na sociedade brasileira.

Seus indicadores informam que a pobreza possui cor e gêne-


ro específico, uma vez que ela atinge a população negra com
72,7%, índice que corresponde a 38,1 milhões de pessoas. Em
se tratando da situação das mulheres negras, 27,2 milhões
encontram-se abaixo da linha da pobreza – representando
assim o maior número de pessoas nessa situação socioeco-
nômica. Além disso, 63% das casas chefiadas por mulheres
negras brasileiras estão abaixo da linha de pobreza.

No que se refere à renda mensal, em 2018 as mulheres


negras receberam, em média, menos da metade dos salá-

170
rios dos homens brancos (44,4%). Já no que diz respeito
à educação, embora as mulheres negras apresentem me-
lhores indicadores que os homens negros, a taxa de con-
clusão do ensino médio dos homens brancos (72,0%) era
maior que a delas (67,6%).

Já em relação aos índices de violência, em 2017 houve um au-


mento no número de homicídios femininos, com cerca de 13
assassinatos por dia – o que resultou em 4.936 mulheres mor-
tas. Observou-se que, naquele ano, a taxa de homicídios de
mulheres brancas foi de 3,2 a cada 100 mil mortes, ao passo
que entre as mulheres negras a taxa foi de 5,6 para cada 100
mil mortes. Dessa forma, as mulheres negras aparecem entre
as vítimas da violência letal com um total de 66% no país.

No que tange à escolaridade, apesar de as mulheres apresen-


tarem índices superiores aos dos homens, o acesso à educação
se dá de forma desigual entre as mulheres. Em 2019, mulheres
negras na faixa etária de 18 a 24 anos apresentavam uma taxa
ajustada de frequência líquida ao ensino superior de 22,3%,
quase 50% menor do que a registrada entre brancas (40,9%)
e quase 30% menor do que a taxa verificada entre homens
brancos (30,5%). Já a menor taxa ajustada de frequência esco-
lar líquida se verificou entre os homens negros (15,7%).

Em se tratando da participação das mulheres negras em espa-


ços de poder, Sueli Carneiro (2009) afirma que a relação entre
mulheres negras e poder era inexistente. A autora apresenta
não só a ausência pela baixa representação, como também
casos emblemáticos, como o de Matilde Ribeiro (ex-ministra
da Secretaria Especial para Promoção da Igualdade Racial)
e de Benedita da Silva (ex-governadora do Rio de Janeiro)
que foram interrompidas de atuarem institucionalmente por
questões advindas de discriminações raciais e de gênero.

Os dados recentes do IBGE (2021) reforçam essa ausência,


posto que nos apontam para o fato de que mulheres negras
encontram-se subrepresentadas entre as mulheres eleitas.
Mesmo representando, respectivamente, 9,2% e 46,2% das
mulheres na população em 2019, alcançaram apenas 5,3%
e 33,8% das cadeiras nas câmaras municipais obtidas pelas
mulheres nas eleições do ano de 2020. Carneiro (2009), ao

171
discutir sobre mulher negra e poder, aponta que:

O racismo, o ceticismo e a exclusão social a que as mulhe-


res negras estão submetidas se potencializam e se retroa-
limentam para mantê-las numa situação de asfixia social,
que põe em perspectiva as condições mínimas necessárias
para o empoderamento das mulheres negras em nossa
sociedade, de forma a quem sabe um dia, potencializá-
-las para a disputa de poder. Entre essas condições míni-
mas para permitir o empoderamento de mulheres negras,
se encontra, evidentemente, o combate ao racismo, bem
como a necessidade de uma política de formação de qua-
dros políticos e de gestores públicos. É preciso, ademais,
que haja fortalecimento das organizações de mulheres
negras. (CARNEIRO, 2009, p.53)

Tal contexto evidencia a necessidade de se elaborar uma re-


flexão a respeito de como as mulheres negras – cuja trajetó-
ria é marcada por uma tripla discriminação, uma vez que o
racismo e o sexismo geram estereótipos que a colocam no
mais baixo nível de opressão (GONZALEZ, 1982) – vêm se ar-
ticulando e como constroem estratégias de mobilização, re-
sistência e retomada de poder em espaços de representação
social e política em esferas de participação na sociedade bra-
sileira. É a partir desse cenário marcado por racismo, sexis-
mo, exclusão social e ameaça eminente à vida – sobretudo de
mulheres negras – que experiências e iniciativas pautadas a
partir do feminismo negro e preocupadas com a luta contra
essas opressões vem apresentar novas possibilidades para a
ação política feminista e antirracista, como acreditamos que
seja o caso do Projeto Mulheres Negras Resistem. No tópi-
co a seguir, pontuamos as ações e as estratégias elaboradas
como formas de enfrentamento e resistência contra práticas
racistas, sexistas e de exclusão social.

CORAGEM, BRAVURA E HEROÍSMO:


MULHERES NEGRAS RESISTEM!
Coragem, para ultrapassar os obstáculos que pudessem vir
a atrapalhar nossa ideia e levar adiante a construção e rea-
lização do projeto. Bravura, partia do nosso comportamen-
to de não termos medo daquilo que realmente queríamos
para a sociedade que estamos vivendo e enfrentamos (a
não visibilidade da população negra). Heroísmo, sim, nos-
sas ancestrais são heroínas negras. Somos, então, frutos

172
de nossas re-existências, partimos da construção do “Sou
porque Somos”, “Nossos passos vêm de longe”, e é atra-
vés desse alinhamento político que nossas superações ao
racismo, sexismo, machismo e patriarcado se fazem pos-
síveis, pois quem “sabe de onde vem sabe para onde vai”.
Somos mulheres negras, que exercemos nosso protagonis-
mo feminino e negro no estado que nega a existência da
população negra, e na sua capital, marcada pela exclusão
da população negra (RODRIGUES et al., 2020, p. 13).

Nossa área de atuação se dá, sobretudo, a partir do campo


da educação. Assim, é por meio de nosso processo formati-
vo, afetivo, teórico e político de, para e com mulheres negras
que fomentamos o protagonismo feminino e negro de nossas
cursistas, para formação de quadros de representação social
e política. Quanto ao processo seletivo, as mulheres negras
interessadas preenchem um questionário online com dados
pessoais, tais como nome, endereço, escolaridade, ocupação
ou profissão. Para além dessas informações que nos ajudam
a traçar um perfil do grupo, há duas questões norteadoras do
processo: como a candidata se declara em termos de raça/
cor e qual a sua motivação para realizar o curso.

É mister evidenciar o fato de que não caminhamos só, esta-


mos conectadas à uma rede de mulheres negras parceiras
que coletivamente constroem insurgências, inspiram nossas
cursistas em suas trajetórias e potencializam seus protago-
nismos feminino e negro. Assim, contamos com o apoio de
nossas formadoras – professoras, ativistas e empreendedo-
ras negras que ousam sonhar um mundo onde mulheres ne-
gras resistem. Além disso, contamos com a parceria que te-
mos com o NUAFRO – Laboratório de Estudos e Pesquisa em
Afrobrasilidade, Gênero e Família, vinculado a Universidade
Estadual do Ceará (Uece) e que tem como organizadora a
Profª Drª Zelma Madeira.

Por falar em parcerias, não podemos deixar de mencionar


as mulheres negras convidadas para nossas aulas inaugu-
rais. Mulheres como a advogada Valéria Santos que em sua
trajetória enquanto advogada negra experienciou o racis-
mo e sexismo presentes em nossa sociedade de forma a ser
impedida de trabalhar, sendo assim algemada e arrastada
na frente de uma cliente. Já a autora Cristiane Sobral, auto-

173
ra e atriz, na ocasião de sua vinda, presenteou a todas/os
que estavam presentes em nossa aula inaugural 2020. Seu
poema “Não vou mais lavar os pratos”, nos instiga a refle-
tir sobre o lugar que querem as mulheres negras. Gonzalez
(1984, p. 226) pontua que:

Mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, serven-


te, trocadora de ônibus ou prostituta. Basta a gente ler jor-
nal, ouvir rádio e ver televisão. [...] Por aí se vê que o barato
é domesticar mesmo. E se a gente detém o olhar em de-
terminados aspectos da chamada cultura brasileira a gente
saca que em suas manifestações mais ou menos conscien-
tes ela oculta, revelando, as marcas da africanidade que a
constituem. (Como é que pode?) Seguindo por aí, a gente
também poder apontar pro lugar da mulher negra nesse
processo de formação cultural, assim como os diferentes
modos de rejeição/integração de seu papel.

A autora nos lembra, então, que ainda recai sobre as mulheres


negras posições de subalternidade. Isso se dá em decorrência
do racismo estrutural e estruturante que opera na socieda-
de brasileira (ALMEIDA, 2018) e faz com que ainda estejamos
ocupando a base da pirâmide social, tal qual os dados apre-
sentados no tópico anterior evidenciam. Dessa forma, quan-
do Cristiane Sobral (2011, p. 23) escreve: “Não vou mais lavar
os pratos. Sinto muito, comecei a ler” ela está reivindicando
um outro lugar para os corpos negros femininos, promoven-
do assim o empoderamento da mulher negra, por meio da
leitura. E, ousamos dizer, da educação!

São esses exemplos de possibilidades e liberdades de sermos


o que quisermos e ocuparmos os espaços que assim dese-
jarmos, inclusive o de pensamento, que transmitimos para as
nossas cursistas. Além disso, as inspirações dessas liberdades
são os caminhos que mulheres negras traçaram e traçam.

Nossa última aula inaugural, que aconteceu em março de


2021, foi com a palestrante Profª Drª Artemisa Odila. Na
ocasião, ela pontuou, enquanto mulher negra e oriunda do
continente africano, de origem guineense, as dificuldades
encontradas no Brasil em decorrência de ter se deparado
com o racismo brasileiro. Ela também evidenciou, através de
sua trajetória coletiva de vida, que mulheres negras podem
ocupar todos os lugares, inclusive cargos institucionais em

174
universidades públicas federais e internacionais, como é o
caso da Universidade da Integração Internacional da Luso-
fonia Afro-Brasileira (Unilab).

Em relação ao processo formativo, ele acontece quinzenal-


mente e sempre inicia no mês de março em alusão a data de
assassinato de Marielle Franco. O curso Mulheres Negras Re-
sistem está estruturado em módulos, tais como: Nossos pas-
sos vêm de longe; Ideias são à prova de balas; Nós por Nós;
Democracia, Política e Estado; a Importância do Auto Cuida-
do; Empreendedorismo Feminino e Negro; Afrocentricidade
em saúde mental; Oficinas de Elaboração de projetos acadê-
micos e sociais, dentre outros.

Em nossos encontros, ministrados por professoras e ativis-


tas negras, dialogamos a partir de leituras e análises de texto
afrorreferenciados de autoria feminina e negra. Dessa forma,
trazemos em nossa bibliografia, autoras como Lélia Gonzales,
Marielle Franco, Djamila Ribeiro, Jarid Arraes, Conceição Eva-
risto, Grada Kilomba, Neusa Santos, Beatriz Nascimento, Ma-
ria Carolina de Jesus, Vilma Piedade e Audre Lorde. Trazemos
esses referenciais teóricos por acreditarmos que se faz neces-
sário conhecer e citar as (os) nossas (os), sobretudo pelo fato
de o epistemicídio invisibilizar e invalidar nossas publicações
e como bem pontuou Conceição Evaristo: “Para nós, negras
e negros, escrever é um ato político”.

Além disso, acreditamos na importância que é, para nossas


cursistas se reconectarem com nossa ancestralidade, história
e cultura. Ao contrário do que nos conta a história oficial e do
que paira no imaginário social, a população negra nunca foi
passiva; pelo contrário, estivemos sempre organizadas crian-
do e oportunizando espaços onde mulheres negras podem
conectar-se afetiva e teoricamente para avançarmos juntas,
pois “quando uma sobe puxa a outra”.

Desenvolvemos ainda atos de intervenções. Estes momen-


tos se constituem enquanto ações que ocorrem em espaços
públicos e podem ter formatos diversos, tais como: rodas de
conversas, saraus e cine-debates. Importa salientar que tanto
os módulos quanto os atos de intervenção são pensados de
forma a estimular o protagonismo das cursistas em diálogo

175
com um público externo. Assim, aplicamos técnicas que aliam
a experiência vivenciada enquanto mulheres negras com o
referencial teórico-político que permita reflexão e aplicação
do conteúdo desenvolvido.

Em relação às dificuldades enfrentadas em nossa caminhada,


pontuamos sobretudo o momento da Pandemia Global em
decorrência da Covid-19. Nesse período, estávamos impos-
sibilitadas de continuar com nosso processo formativo nos
moldes em que ele vinha acontecendo. A saber, de forma
presencial em encontros quinzenais que aconteciam pelas
manhãs de sábados nas salas do Porto Iracema das Artes.

Nesse sentido, a decisão de levar o curso adiante, mesmo


em plena pandemia e sem recursos financeiros e estabilida-
de local, gerou muitas incertezas e aumentou os desafios de
se pensar e promover ações feministas e antirracistas. Contu-
do, apostando na nossa capacidade de nos reinventarmos e
aceitando os desafios de seguir na caminhada por um Brasil
mais justo e possível de viver, decidimos então por prosse-
guir com o curso da única forma possível: on-line.

Para que isso fosse feito, precisamos alinhar nosso método de


funcionamento, uma vez que a rotina do curso não se daria
mais de forma presencial e isso implicaria em algumas ques-
tões. O acesso à internet de qualidade, um bom planejamento
de curso e as disponibilidades das formadoras (que mesmo
em meio a um cenário pandêmico dedicaram um pouco do
seu tempo para que fossemos capazes de dar continuidade
no projeto) foram fundamentais.

Foi ainda necessário repensar e remodelar o cronograma,


analisando quanto tempo de duração seria possível para cada
encontro e quais outros espaços virtuais utilizaríamos para
facilitar o contato e a relação afetiva e teórico-política com
nossas cursistas. Depois de alinhadas todas essas questões
coletivamente, demos continuidade ao nosso processo for-
mativo, carinhosamente chamado por nossas cursistas e ex-
-cursistas de aquilombamento.

Essa nova forma de atuação, no final das contas, foi positiva


e permitiu nos conectarmos com mulheres negras que desta
vez não estavam localizadas apenas em Fortaleza, mas tam-

176
bém se encontravam outras regiões do Ceará. Assim, tive-
mos mulheres oriundas de Quixadá e Guaramiranga, no Ce-
ará; mulheres dos estados de Recife, Maranhão e São Paulo;
bem como mulheres que se encontram em outro país, como
em Portugal. Dessa forma, fomos capazes de perceber que
a potência de nossos encontros atravessou bairros, cidades,
estados e até fronteiras nacionais.

Nesse período, conseguimos também, em decorrência da


contemplação do edital Projeto Reconexão Periferias em par-
cerias com a Fundação Perseu Abramo (FPA) e a Fundação
Friedrich Ebert (FES), um financiamento para pesquisa que
culminou no lançamento de nosso e-book, intitulado “Mu-
lheres Negras Resistem: território, raça/cor e gênero”.

Consideramos esse momento importante porque oportuni-


zamos (re)contar nossa trajetória enquanto um grupo de mu-
lheres negras que resistem ao racismo, fascismo, machismo,
sexismo e tantos “ismos” que nos impedem acessar diversos
espaços de poder, inclusive o de sermos protagonistas e au-
toras de sua própria história. Também fomos capazes insti-
gar o protagonismo feminino e negro de nossas cursistas e
ex-cursistas por meio do convite para serem bolsistas e de-
senvolverem uma pesquisa sobre os projetos que nossas cur-
sistas vinham desenvolvendo em seus territórios. Além disso,
propiciou que pudéssemos oferecer uma bolsa de pesquisa
para cada uma das cursistas que construíram coletivamente
nosso primeiro e-book.

Ademais, o momento da construção do e-book nos mostrou


que havia espaços para respirar, festejar e resistir. Percebe-
mos ainda que as oportunidades que nos apareceram são
provas de que nosso protagonismo feminino e negro já está
reverberando. Talvez isso se dê pelo fato de as sementes de
Marielle Franco que plantamos já estarem germinando. Foi o
que nos pareceu quando, ao final de nossa pesquisa e siste-
matização de nosso e-book, nos deparamos com os diversos
e mais variados tipos de projetos que nossas ex-cursistas es-
tavam desenvolvendo. Isso sem falar nas várias aprovações
em programas de graduações e pós-graduações e as ocupa-
ções em cargos e instituições públicas.

177
Nesse sentido, reiteramos que resistimos e seguiremos re-
sistimos diante de toda e qualquer violência que atente
contra nosso direito de existir dignamente, tais como o ra-
cismo, o fascismo, o sexismo e a misoginia. Por isso tam-
bém, nos posicionamos em defesa da democracia e assim
marchamos em 2018, juntamente com diversos movimen-
tos sociais e grupos políticos, contra um projeto de Estado
que atentava e atenta contra lutas sociais históricas, como
é a luta antirracista, especialmente na dimensão protago-
nizada pelas mulheres negras. Que nosso aquilombamen-
to feminino, negro e nordestino siga como resposta ao
governo genocida e que não nos façamos esquecer que
Mulheres Negras Resistem. Resistimos!

REFERÊNCIAS
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CARNEIRO, S. Mulheres negras e poder: um ensaio sobre a


ausência. Revista do Observatório Brasil da Igualdade de
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BRASIL, IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.


Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres
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www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/25844-de-
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M. (org.). Lugar da Mulher: estudos sobre a condição femi-
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178
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RODRIGUES, V. et al. Mulheres Negras Resistem: território,


raça/cor e gênero. São Carlos: Pedro & João Editores, 2020.

SOBRAL, C. Não vou mais lavar os pratos. Brasília: Ed. do


Autor, 2011.

179
180
11.

INTRODUÇÃO

A
palavra autoritarismo nos remete a formas
de governo em que o exercício do poder VERA
RODRIGUES
se dá pela repressão política, pela intimida-
ção da oposição e pela violação de direitos
humanos da população em geral. A teórica
política Hannah Arendt em sua conhecida
obra “As origens do totalitarismo”, publica-
da em 1951, estabeleceu as bases para uma
análise sobre o período histórico marcado
pela 1ª Guerra Mundial e pelo antissemitis-
mo na perspectiva do que seriam regimes
totalitários, a exemplo do caso da Alema-
nha nazista. A partir dessa contextualização,
ela também busca diferenciar ou delimitar
as fronteiras possíveis entre totalitarismo e
autoritarismo. Neste último, a centralidade
na figura da autoridade, da liderança má-
xima – comum a ambos os regimes – seria
acrescida no autoritarismo de apatia, des-
politização e daquilo que poderíamos as-
sociar a um “comportamento de manada”
ou “obediência cega” de sujeitos que, ins-
pirados nessa liderança, comportam-se de
maneira homogênea, acrítica e reprodutora
desse mesmo ethos autoritário.

Ainda em Hannah Arendt, encontramos na


parte II do seu livro o tópico: “Raça e Buro-
cracia”. Nesse escopo, a autora traz a ideia
de raça como estrutura política presente na
expansão e colonização europeia no con-
tinente africano:

181
A raça foi uma tentativa de explicar a existência de seres
humanos que ficavam à margem da compreensão dos eu-
ropeus, e cujas formas e feições de tal forma assustavam
e humilhavam os homens brancos, imigrantes ou conquis-
tadores, que eles não desejavam mais pertencer à mesma
comum espécie humana. Na ideia da raça encontrou-se a
resposta dos bôeres à “monstruosidade” esmagadora des-
coberta na África — todo um continente povoado e abar-
rotado de selvagens — e a justificação da loucura que os
iluminou como “o clarão de um relâmpago num céu sere-
no” no brado: “Exterminemos todos esses brutos!” Dessa
ideia resultaram os mais terríveis massacres da história: o
extermínio das tribos hotentotes pelos bôeres, as selva-
gens matanças de Carl Peters no Sudeste Africano Alemão,
a dizimação da pacata população do Congo reduzida de
uns 20 milhões para 8 milhões; era o que é pior, a adoção
desses métodos de “pacificação” pela política externa eu-
ropeia comum e respeitável. (ARENDT, 1951, p.199)

Essa reflexão sobre raça como estrutura política que en-


gendra um projeto maior de dominação e exploração se faz
presente na obra “Discurso sobre o Colonialismo” de Aimé
Cesaire, por meio da afirmação de que a “Europa é indefen-
sável” pois é responsável pelas atrocidades cometidas con-
tra povos colonizados. Essa obra foi publicada em 1955, ou
seja, poucos anos depois e na mesma década de “As Ori-
gens do Totalitarismo”, mas também nos impele a pensar
na interligação entre racismo e o autoritarismo no contexto
atual da sociedade brasileira. Se foi possível a esses auto-
res, comprometidos intelectual e politicamente com o seu
tempo, atentar para as lógicas que orquestraram sistemas
de poder ancorados em práticas que resultaram em genocí-
dios e epistemicídios, tal como também nos provoca a pen-
sar o sociólogo Ramon Grosfoguel (2016) em seu artigo “A
estrutura do conhecimento nas universidades ocidentaliza-
das: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/
epistemicídios do longo século XVI”, como podemos igno-
rar o momento atual e os desafios analíticos e políticos que
se colocam a intelectuais de diferentes campos de conhe-
cimento e a militantes, especialmente da luta antirracista,
feminista e/ou de direitos humanos?

Se não podemos ignorar, ainda que isso nos custe o ônus


de uma inquietude que faz do futuro uma incerteza, então

182
nos resta a postura coletiva de “esperançar”, mesmo diante
de uma pandemia como a Covid-19 ou da quase ausência
de perspectiva de retomar o caminho de uma frágil demo-
cracia e de tentativas ainda insuficientes de implantar po-
líticas de Estado, não meramente de governo, capazes de
enfrentar desigualdades abissais. Essa postura não pode e
nem deve ser romântica e/ou ingênua, mas construída em
uma base coletiva que perpasse a sociedade como um todo.
Onde vamos buscar inspirações e estratégias para dar con-
cretude a esse “esperançar”? Especialmente quando aquilo
que nos atinge, como é o caso do racismo, é expresso não
só pelo autoritarismo que vem de cima, mas também re-
produzido no cotidiano em uma interface entre instituições
e sujeitos que se sentem legitimados pelo que vem de cima
para exercer essa mesma lógica?

FORMAS DE RESISTÊNCIA
AO RACISMO COMO PRÁTICA
AUTORITÁRIA
Esse cotidiano vivido por quem tem a pele preta implica, qua-
se sempre, um lugar social em que o enfrentamento ao racis-
mo não cessa. É incorporado a uma rotina de vida em que não
ter a pele “alva” o faz ser a pele “alvo” com frequência, como
já expresso pelo rapper Emicida na música “Ismália” no álbum
AmarElo. Neste sentido e deste lugar de quem tem a pele pre-
ta, quero aqui relatar episódios em que estive direta ou indire-
tamente envolvida enquanto pesquisadora da área de Antro-
pologia das Populações Afro-brasileiras e/ou militante da luta
antirracista, especialmente da luta das mulheres negras.

As ações afirmativas promoveram o ingresso negro nas uni-


versidades, tanto pensando em discentes quanto em docentes,
e assim ensejam pensar sobre como a produção de conheci-
mento e a agenda das pautas de pesquisa na linha antirracista
impactam uma pseudoautoridade do racismo no meio acadê-
mico. Uma boa fonte para tratar desse tema vem do convite
a um conjunto de desobediências epistêmicas à branquitude
feita pelas professoras universitárias Fernanda da Silva Lima e
Karine de Souza Silva (2020) no artigo “Teorias críticas e estu-
dos pós e decoloniais à brasileira: quando a branquitude aca-

183
dêmica silencia raça e gênero”. Nesse convite à desobediência
podemos perceber que o cotidiano de professoras negras nas
universidades é atingido por práticas autoritárias de racismo,
exercidas pela branquitude, que buscam silenciá-las no fazer
científico ou na tomada de decisões quando ocupam postos
de gestão. Sobre isso as autoras nos dizem o seguinte:

(...) E neste campo acadêmico, predominantemente mas-


culino e branco, nos deslocamos de lugar e irrompemos o
imaginário social forjado no racismo e no sexismo. Apren-
demos com a irreverência da escrita e criticidade de Lélia
Gonzalez, também uma intelectual negra, que este lugar (a
academia) nos pertence e aqui vamos ficar. Nestes muros
não nos moldamos à estética da brancura e lutamos con-
tra o branqueamento que insistem, às vezes, nos impor. E,
assim, seguimos insubmissas e aqui tomamos a liberdade
de promover algumas desobediências sobre a branquitu-
de acadêmica e o esvaziamento do potencial emancipa-
tório das teorias críticas e dos estudos pós e decoloniais.
(LIMA; SILVA, 2020).

Sobre o tema do silenciamento como uma prática autoritá-


ria oriunda do racismo escrevi recentemente que muitas de
nós, mulheres negras, conhecemos a imposição do silêncio
em nossas vidas. Não falar no privado: em casa, no âmbito
familiar. Não falar em público: no trabalho, na universida-
de. Nossa voz e, portanto, nossa existência é silenciada na
articulação das opressões que nos atingem: racismo e ma-
chismo. No entanto, muitas de nós rompem os silêncios e
falam inspiradas em vozes que ecoam ontem e hoje. Esse
eco de ruptura e de um erguer a voz, como já enfatizado
por Bell Hooks em “Pensar como feminista, pensar como
negra”, não é um mero gesto de palavras vazias; é uma ex-
pressão de nossa transição de objeto para sujeito.

É nessa transição de objeto para sujeito que acompa-


nhei, em certa medida, o cenário dos debates e embates
por ações afirmativas e a defesa da universidade pública,
mais precisamente da Universidade da Integração Inter-
nacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab). Esta uni-
versidade tem suas diretrizes ancoradas na interiorização
da educação superior, ou seja, se insere dentro do extin-
to projeto Reestruturação e Expansão das Universidades

184
Federais (Reuni), implantado em 2007 e que possibilitou
a criação de universidades e institutos federais para além
dos centros urbanos do Sul e Sudeste, contemplando as-
sim municípios das regiões Norte e Nordeste do país. Isso
possibilitou o acesso de uma primeira geração de estu-
dantes universitários com um perfil mais próximo da re-
alidade brasileira: negras(os), indígenas, egressos da es-
cola pública e filhas(os) de trabalhadores rurais e/ou do
subemprego característico das capitais.

A Unilab também se ancora na internacionalização, via coo-


peração acadêmica constitutiva de boa parte de seu aluna-
do com estudantes oriundos do continente africano: Guiné-
-Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Moçambique e
Angola. Não é preciso dizer que, com essa contextualiza-
ção e configuração, a Unilab e sua comunidade acadêmi-
ca foram, por vezes, alvos das práticas autoritárias do ra-
cismo. É nesse contexto que relato o primeiro episódio de
enfrentamento ao racismo. Em 2016, um artigo de opinião
publicado em um jornal de ampla circulação no estado do
Ceará associava a existência de doenças como febre ama-
rela, malária, dengue ou Zika à presença africana desde a
chegada dos “barcos africanos” até os dias atuais. É óbvio
que a repercussão foi negativa e dolorosa para nossos(as)
estudantes que sofreram com a acusação de serem pro-
váveis portadores e, portanto, disseminadores de vírus e
moléstias entre a população local.

As consequências desse artigo, carregado de pressupos-


tos eugenistas, mobilizou a comunidade acadêmica em
defesa da Unilab e seus estudantes africanos(as). A mim
e a outra professora coube, enquanto membras do Nú-
cleo de Promoção da Igualdade Racial Kabengele Munan-
ga, da Unilab, elaborar e reivindicar direito de resposta
ao jornal. Foi assim que publicamos o texto “O ‘Chico da
Matilde’ e os ‘Homens de Sciencia’” em resposta ao ocor-
rido. Seguem trechos do referido texto:

(…) pseudoargumentos continuam a infestar os formado-


res de opinião, incitando o ódio, a deturpação histórica
e o maniqueísmo. Em comum com o XIX, há nele a desu-
manização do outro, dos africanos e seus descendentes:
de mercadoria e mão de obra escravizada a portadores

185
de vírus e moléstias, o jugo racial permanece. A ciên-
cia contemporânea denuncia essas visões reducionistas
e racistas, e muito já se falou e se escreveu a respeito.
Então, a que propósito serviria um discurso tão delibera-
damente enviesado?” (...) “Por essas razões, nosso com-
promisso com a ciência que mobiliza mudanças sociais;
com um país diverso em sua plenitude, ou simplesmente
com a formação de médicos(as), historiadores(as), soci-
ólogos(as), antropólogos(as), engenheiros(as) e outros
bacharéis e licenciados que, antes de fazerem jus ao tí-
tulo de “doutor(a)”, farão jus a serem chamados e tra-
tados como seres humanos. Esses, sim, serão homens e
mulheres de ciência. (RODRIGUES; SARAIVA, 2016)

Como dito no início deste texto, o racismo não cessa e


também não cessam as resistências frente a esse fenôme-
no. O segundo episódio ocorre em 2018, quando viven-
ciamos mais uma experiência de demarcar o espaço de
sujeitos que se opõem à lógica racista. Naquele ano, no
mês de setembro, na cidade de Fortaleza/Ceará, ocorreu
a marcha “EleNão”. Na ocasião diversas organizações de
mulheres saíram às ruas em manifesto contra um projeto
político de governo que ia na contramão de várias lutas
sociais, dentre essas as protagonizadas por mulheres ne-
gras. Por essa razão, o grupo integrado por formadoras e
cursistas do projeto de extensão “Mulheres Negras Resis-
tem: processo formativo teórico-político para mulheres
negras” saiu às ruas. O projeto existe desde maio de 2018
e tem como evento fundante o assassinato da vereado-
ra e militante Marielle Franco ocorrido no mês de março
daquele mesmo ano na cidade do Rio de Janeiro. A sua
morte deflagrou não só protestos, mas também ações de
resistência. É nesse escopo que situamos o projeto que
objetiva fomentar o protagonismo feminino e negro por
meio da formação de quadros de representação social e
política em espaços públicos e privados. Esse direciona-
mento alinha-se às perspectivas teórico-políticas do fe-
minismo negro, democracia e luta antirracista.

186
Figura 1
Divulgação do E-book Território, Raça/Cor e gênero

Fonte: Acervo pessoal, 2022.

Naquele final de setembro, nós marchamos por nossas vidas


no sentido mais amplo possível, tendo em mente o que Lélia
Gonzalez (1982) escreveu sobre o processo de ruptura demo-
crática no Brasil dos anos de 1960. O preço cobrado da popu-
lação negra foi exatamente a precarização das suas condições
de vida por via da favelização e do arrocho salarial. E agora, o
que seria? Uma agudização da necropolítica? Esse questiona-
mento não ignora o que nos diz Suellen Gonçalves (2017): a
ideia que a democracia, enquanto universalização de direitos
e no desenvolvimento do ser humano, nunca esteve presen-
te, em nenhum momento da história desse país, ao alcance de
setores historicamente marginalizados da sociedade brasilei-
ra – seja nos períodos de regimes autoritários e de exceção,
seja no nosso interregno democrático. Refiro-me, portanto, à
população negra, juvenil e periférica. Sim, de fato a democra-
cia manifesta na universalização de direitos e no desenvolvi-
mento do ser humano, ainda é algo a ser conquistado. Talvez
por isso seja tão avassalador o desmonte de políticas públicas
e do amparo constitucional para as ações afirmativas e os di-
reitos das trabalhadoras domésticas, por exemplo. Essas são
conquistas recentes que completaram pouco mais de uma dé-
cada de existência legal e se encontram ameaçadas.

O tom de ameaça pressupõe encarar com seriedade o mo-


mento vivido e traçar estratégias de resistência, tal como

187
nos convidou a filósofa e militante Sueli Carneiro, em abril
de 2019. Naquela ocasião, durante o FestiPoa Literária, even-
to de literatura em que era homenageada no Salão de Atos
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ela se mani-
festou sobre o tema violência e racismo. Segundo Sueli, há
uma “absoluta e crescente violência racial, que se manifesta
de diferentes formas, e que tem a sua forma mais extrema
no genocídio de jovens negros” (CASTRO, 2019). De acordo
com a filósofa, esse não era o país que sua geração preten-
dia entregar para as gerações futuras:

Nós até acreditávamos há alguns poucos anos atrás que


estávamos adentrando um círculo virtuoso de enfren-
tamento das desigualdades raciais, que nos permitiria
construir uma nação mais justa e mais igualitária. Essa
é a promessa que a minha geração fez para a de vocês.
Falhamos. (CASTRO, 2019)

Ao seu lado, naquele momento, estava a também filósofa e


escritora Djamila Ribeiro, a qual enfatizou o protagonismo
de uma geração de militantes negras(os) “responsável” por
muitos avanços, inclusive por trazer essas questões para o
debate público. Segundo ela,

o que falhou na verdade é esse sistema racista, desigual,


sexista, classista. Essa é a falha nesse país. Quantos ta-
lentos todos os dias se perdem assassinados pela polí-
cia, quantos talentos todos os dias se perdem nesse país
pela falta de oportunidades. A falha nesse país já come-
çou na colonização, e essa violência colonial ainda acon-
tece. (CASTRO, 2019)

Na continuidade de sua fala, reproduzo aqui mais um exem-


plo de prática autoritária do racismo, como é o genocídio
diário contra a juventude negra e “a alta taxa de mortali-
dade materna de mulheres negras e a CPI da Esterilização,
que em 1991 investigou a denúncia de que mulheres negras
estavam sendo esterilizadas à força”. Nessa ótica, ainda se-
gundo Djamila Ribeiro, “o Estado brasileiro esterilizava for-
çadamente. Isso para mim é uma forma de genocídio e isso
só foi a público e foi investigado por conta do movimento
de mulheres negras” (CASTRO, 2019).

A potência da fala dessas duas mulheres separadas pelo viés

188
geracional, mas plenas na análise de conjuntura
que fazem, evidenciou a necessidade da manu-
tenção de uma atenção constante e redobrada
com a perversidade do racismo. Nas palavras
de Sueli Carneiro, durante o FestiPoA em 2019,
o que temos pela frente: “Organizem-se, é em
legítima defesa, porque não há mais limite para
a violência racista” (CASTRO, 2019).

Sueli estava certa. Em novembro de 2020, mês


da Consciência Negra em memória a Zumbi
dos Palmares, um homem negro foi espanca-
do até a morte por seguranças de uma rede
de supermercados no Sul do país. Em nota
, o Comitê de Antropólogas/os Negras/os da
Associação Brasileira de Antropologia, do qual
faço parte, expressa o seguinte entendimento:
“(...) não podemos nos calar ou emitir apenas
mais uma nota de repúdio diante de um 20
Íntegra da “Nota
de novembro, em que a cidade de Porto Ale- da ABA sobre o

gre amanheceu ensanguentada. E esse sangue, assassinato de João


Alberto Silveira
sintomático da violação de Direitos Humanos Freitas” disponível
em: <http://www.
em que ‘vidas negras não importam’”. portal.abant.org.
br/2020/11/24/
nota-da-aba-sobre-
Na continuidade das práticas autoritárias ra- o-assassinato-
cistas nos defrontamos recentemente, em ju- de-joao-alberto-
silveira-freitas/>.
nho de 2021, na cidade do Rio de Janeiro, Acesso em 21 ago.
2021
com o caso de um jovem negro acusado do
roubo de uma bicicleta elétrica por um casal
O GLOBO. ‘Como
de jovens brancos. Nessa ocasião, fui entre- achar que um negro

vistada e afirmei que:


é dono de uma
bicicleta tão cara?’,
reflete antropólogo
É preciso reconhecer que o Brasil é um ao criticar ‘racismo
estrutural’ em
país racista em que casos como esse são caso no Leblon. 18
um tapa na cara de quem está disposto de junho de 2021.
a ver, porque exemplificam o “racismo Disponível em:
https://oglobo.
à brasileira”, em que pessoas brancas globo.com/rio/
partem de um lugar social no qual acre- como-achar-que-
um-negro-dono-
ditam ter uma pseudoautoridade sobre
de-uma-bicicleta-
negros. Me parece bastante improvável tao-cara-reflete-
que tudo acontecesse exatamente igual, antropologo-ao-
criticar-racismo-
com o mesmo tom de abordagem, se o estrutural-em-caso-
rapaz também fosse branco. E tem mais: no-leblon-25066515
Acesso em 21 ago.
o que aconteceria se a polícia tivesse sido
2021

189
chamada de imediato? Ou se outros populares ti-
vessem decidido fazer justiça? Não dá para disso-
ciar esse episódio do fato de que a cada 23 minutos
um jovem negro como ele é assassinado no Brasil.

A pseudoautoridade da qual o racista se sente investido é


um elemento a ser cada vez mais questionado e analisado
sob todos os ângulos possíveis do conhecimento e da luta
antirracista como fator que nos leve desenvolver estratégias
e formas de resistências múltiplas.

Nos casos narrados aqui, o exercício dessa pseudoautorida-


de apareceu seja no “artigo de opinião” do médico ou na
acusação fundada na suspeição e marginalização de jovens
negros. Cada ato desses nos revelou a letalidade do racismo,
mas também as possibilidades que temos de reagir pela via
da denúncia, da oposição ou simplesmente como nos diz Emi-
cida em AmarElo (2019): “De onde o vento faz a curva, brota
o papo reto. Não deixo quieto, não tem como deixar quieto.
A meta é deixar sem chão quem riu de nóis sem teto”.

REFERÊNCIAS
AmarElo [música]. Intérpretes: Emicida, Majur e Pabllo Vittar.
(Sample: Belchior - Sujeito de Sorte). São Paulo, Laboratório
Fantasma, 2019.

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há mais limite para a violência racista. Sul21, 30 de abril
de 2019. Disponível em: <https://sul21.com.br/ultimas-no-
ticias-geral-areazero-2/2019/04/sueli-carneiro-organizem-
-se-porque-nao-ha-mais-limite-para-a-violencia-racista/>.
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191
192
12.

A
INTRODUÇÃO
pesar da recente consolidação dos estudos
de gênero e sexualidade no Brasil a partir de JOÃO GABRIEL
MARACCI-
diversas áreas do conhecimento (ex., Ciências CARDOSO
Sociais, da Saúde e Exatas) e das conquistas
no campo dos direitos sexuais e reprodutivos
DAMIÃO SOARES
no país, são crescentes os ataques e os re- DE ALMEIDA-
trocessos (PIZZINATO; ALMEIDA-SEGUNDO; SEGUNDO

UZIEL, 2020). Por exemplo, em 2011, no go-


verno Dilma Rousseff, o Ministério da Educa- ADOLFO
PIZZINATO
ção (MEC) lançou um material didático para
que docentes trabalhassem questões sobre
gênero e sexualidade. Contudo, a iniciativa
sofreu uma série de ataques de grupos con-
servadores por meio de mentiras e desinfor-
mação. Por conta desses ataques, o governo
federal suspendeu a distribuição do material
educativo que visava, entre outras coisas, a
educação sobre gênero e o combate ao pre-
conceito e à homofobia. Poucos anos depois,
em 2014, o Plano Nacional de Educação (PNE)
teve excluída qualquer referência a gênero. A
pressão dos grupos conservadores em torno
dessa pauta tem servido para fortalecê-los
politicamente nos últimos anos.

Nesse contexto, o presente capítulo tem


como objetivo analisar a articulação entre a
ofensiva antigênero, a construção da “ideo-
logia de gênero” e a ascensão dos novos au-
toritarismos de direita no Brasil. Inicialmente,
é apresentado o contexto de fortalecimento
da direita política, os novos autoritarismos
e a ofensiva antigênero. Em seguida, como

193
exemplo dos ataques conservadores antigênero no Brasil,
é discutido o caso do material educativo que foi nomeado
de “kit gay”. No último tópico de discussão, argumenta-se
como os ataques à educação sexual têm servido como ban-
deira política dos grupos conservadores para, na conclusão,
expor as possíveis razões para o uso dessa estratégia.

NOVOS AUTORITARISMOS DE
DIREITA E A OFENSIVA ANTIGÊNERO
As formas contemporâneas de autoritarismo político no Bra-
sil, mas também em outros países, têm em seus eixos privi-
legiados as temáticas da diversidade sexual e de gênero. Em
uma perspectiva histórica, podemos considerar que essa não
seria uma articulação recente em nosso país. No período da
última ditadura civil-militar (1964-1985), por exemplo, pes-
quisas apontam para a perseguição sistemática a homosse-
xuais, transexuais e travestis como políticas de Estado, volta-
das à promoção da heterossexualidade e da cisgeneridade
como pilar moral do ideal de nação e cidadania do regime
(GREEN, 1999; OCANHA, 2018; QUINALHA, 2018).

Relações entre autoritarismo e moralidade sexual já apare-


cem em obras clássicas sobre o tema, como os Estudos so-
bre a Personalidade Autoritária (ADORNO et al, 1950), ainda
que de forma menos central. Na pesquisa que deu origem
ao referido trabalho, toma destaque a ênfase de Else Frenke-
l-Brunswik sobre o papel dos estereótipos de gênero na con-
solidação da personalidade autoritária. Em desdobramentos
mais recentes, autores como Bernard Whitley e Sarah Lee
(2000) enfatizam a predominância da rejeição à homossexu-
alidade e aos direitos LGBTQIA+ em geral nos construtos de
autoritarismo de direita e orientação à dominância social.

O autoritarismo de direita é uma atitude social que reflete o


grau em que as pessoas se submetem às autoridades esta-
belecidas, mostram agressividade em relação a grupos com
os quais não se identificam e apoiam valores morais tradicio-
nais (RWA, Right-Wing Authoritarianism; ALTEMEYER, 1981).
Pessoas com alto nível de RWA possuiriam a crença saliente
de que o mundo em que vivem é perigoso, caótico e impre-
visível. Já a orientação à dominância social (SDO, Social Do-

194
minance Orientation; SIDANIUS; PRATTO, 2001) é uma atitude
de apoio à formação e à manutenção de hierarquia entre gru-
pos sociais. Pessoas que aderem à SDO tendem a perceber o
mundo como um lugar competitivo em que a sobrevivência
depende da obtenção de poder, domínio e superioridade so-
bre outros grupos. No campo dos estudos de gênero, a SDO,
por exemplo, está relacionada com a defesa da manutenção
de relações hierarquizadas entre os gêneros e também a não
aceitação de avanços sociais relacionados às pessoas (ou ao
grupo) LGBTQIA+ por ameaçarem a hierarquia social.

Nos últimos anos, tem havido um crescente interesse pela


integração desses construtos por meio do Modelo do Pro-
cessamento Dual Cognitivo-Motivacional da Ideologia e do
Preconceito (DPM, Dual Process Model; DUCKITT, 2001; DU-
CKITT; SIBLEY, 2017), que busca explicar diversas formas de
preconceito. Existem diversas evidências que corroboram a
premissa teórica de que o autoritarismo de direita e a domi-
nância social em conjunto são preditores importantes e inde-
pendentes do preconceito contra a diversidade sexual e de
gênero (ALMEIDA-SEGUNDO; VILANOVA; PIZZINATO; 2021).

Por essa via, pode-se supor uma constância do preconceito


e da discriminação contra todo e qualquer movimento pro-
gressista – tal como a assunção de direitos sociais associa-
dos à diversidade sexual e de gênero nas manifestações do
autoritarismo político. No entanto, é importante considerar o
cenário político no qual tais questões emergem, bem como
as especificidades retóricas pelas quais se engendra e se fo-
menta o preconceito. A temática do autoritarismo vem to-
mando centralidade em publicações acadêmicas e análises
políticas face a um cenário de ascensão de projetos políticos
extremistas ao redor do globo, especialmente quando con-
densados em problemáticas como o populismo de extrema
direita ou a redução do campo democrático.

Em perspectivas distintas, autores como Chantal Mouffe


(2020), Manuel Castells (2018), Yashka Mounk (2018), entre
muitos outros, encontram-se na constatação de que a demo-
cracia liberal, concebida a partir dos pesos e contrapesos co-
locados na relação entre Estado e sociedade, encontra con-
temporaneamente um limite com a ascensão de tais projetos

195
e seus respectivos representantes políticos. Jair Bolsonaro, no
Brasil; Donald Trump, nos Estados Unidos; Viktor Orban, na
Hungria; Andrzej Duda, na Polônia e Recep Erdogan, na Tur-
quia, são personagens corriqueiros nessas análises.

Embora haja particularidades e singularidades em cada uma


dessas situações, é possível traçar linhas de continuidade
acerca de determinadas temáticas endossadas pelos refe-
ridos nomes, tais como uma postura reativa frente às te-
máticas de gênero e sexualidade. A articulação de formas
contemporâneas de autoritarismo político a posturas de re-
púdio à diversidade sexual e de gênero não parece ser uma
mera coincidência. Um amplo campo de investigações, que
vem tomando destaque a partir da última década, aponta o
compartilhamento transnacional de uma retórica antigêne-
ro, fomentada por diversos atores – pessoas chave na ges-
tão do Estado, comunidades religiosas de diferentes ma-
trizes, meios de comunicação, entre tantos outros. Trata-se
das chamadas ofensivas antigênero.

Rogério Junqueira (2018) e Sônia Corrêa (2018) propõem uma


genealogia para tal movimento, apontando sua matriz católi-
ca e rapidamente integrada a outros movimentos religiosos,
especialmente mais reacionários aos direitos sociais cidadãos.
Os pontos iniciais se dariam no início dos anos 1990, com a
Conferência das Nações Unidas sobre População e Desenvol-
vimento, em 1994, no Cairo, e a IV Conferência Mundial so-
bre as Mulheres, sediada em Pequim no ano de 1995. Nesses
momentos, passaram a tomar destaque, nos encontros inter-
nacionais de mulheres, pautas feministas que não obtinham
maior atenção institucional em circunstâncias anteriores, tais
como os direitos reprodutivos e questões relacionadas à se-
xualidade. Também é o momento no qual a palavra “gênero”
passa a operar como aglutinador das temáticas feministas,
abrindo espaço para um questionamento da divisão binária
pré-estabelecida entre sexos.

Frente a esse cenário, o Vaticano passou a agir contraria-


mente a tais movimentações, reiterando uma visão teológi-
ca sobre a separação entre homens e mulheres. Para tanto,
seu direcionamento deu-se na reiteração da família como
instituição a ser preservada e protegida, bem como na sus-

196
tentação da heterossexualidade como uma orientação na-
tural do desejo. São muitas as publicações e os eventos re-
lacionados à igreja católica que atuam no fortalecimento de
tal retórica, tomando destaque obras como O Sal da Terra:
Cristianismo e Igreja Católica no Século XXI, escrita em forma
de entrevista com o cardeal e futuro papa emérito Joseph
Ratzinger e o jornalista Peter Seewald (1997); The Gender
Agenda: Redefining Equality, de Darly O’Learly (1997); e Ide-
ologia de Gênero: Neototalitarismo e a Morte da Família, de
Jorge Scala (2011). Nos três exemplos, a noção de ideologia
passa a ser utilizada como um viés pejorativo para se referir
a temáticas como a sexualidade e o aborto, visando a pro-
teção de instituições supostamente em ameaça, tomando
foco prioritário a família heteronormativa.

É no bojo desses investimentos mobilizados, inicialmente,


pela Santa Sé que emerge politicamente um termo que veio
a definir e condensar os ímpetos antigênero a nível trans-
nacional: o sintagma “ideologia de gênero” (JUNQUEIRA,
2018; PRADO; CORRÊA, 2018). Desde a década de 1990, a
ideia de “ideologia de gênero” consolida-se como uma con-
tra estratégia ao campo dos direitos reprodutivos e da di-
versidade sexual e de gênero, tornando-se uma nomencla-
tura privilegiada em retóricas políticas (bem como em suas
repercussões enquanto políticas públicas e ações estatais)
contrárias aos movimentos feminista e LGBTQIA+ (BERNINI,
2018; PATTERNOTE; KUHAR, 2018).

Acerca do alastramento da retórica antigênero na América


Latina, nota-se que os usos da nomenclatura “ideologia de
gênero” vão excedendo sua matriz inicialmente católica, cons-
tituindo um campo de ações políticas compartilhado por ato-
res do setor empresarial reacionário, da política institucional
conservadora e de religiões evangélicas neopentecostais, na
esteira dos movimentos autoritários. Campo esse que não se
restringe às temáticas de gênero e sexualidade, mas expan-
de-se, também, para um nível mais amplo de reações con-
trárias a movimentos de esquerda e aos direitos humanos de
forma geral (MISKOLCI; CAMPANA, 2017).

No contexto europeu, aponta-se que as posturas reativas à


diversidade sexual e de gênero constituem uma cola simbó-

197
lica para movimentos de novos autoritaris-
mos, conjugando pautas anteriormente não No entanto,
gostaríamos de
relacionadas, unidas em nome do combate destacar que, embora
o presente texto
ao problema comum da suposta dissolução aborde as articulações

da família tradicional e da proteção da infân-


da retórica antigênero
a movimentos
cia (KOVÁTS; PÕIM, 2015) – um raciocínio que relacionados à direita
política, dada a ênfase
podemos relacionar também à América Lati- na situação brasileira
recente, não seria
na. A cola simbólica, que fornece coesão e uni- possível restringir

dade a novos movimentos de extrema direita,


a problemática
apenas a esse matiz
pode ser lida como um pânico moral, como ideológico. É notável,
por exemplo, o
propõe Junqueira (2018). No Brasil, por exem- endosso na retórica
antigênero por
plo, a partir da constatação de um inimigo co- líderes políticos de

mum – nomeadamente, a “ideologia de gêne- esquerda, como no


caso do Equador, com
ro” –, projetos políticos distintos se coadunam o presidente Rafael
Correa (Prado; Correa,
e passam a operar em conjunto, promovendo 2018). Em países
como a Rússia, o
uma associação entre a oposição ao gênero e discurso antigênero

temáticas que, em princípio, não apresentam é mobilizado como


uma contraposição
necessariamente uma coesão, como o libera- aos valores liberais
ocidentais, como uma
lismo econômico e o armamento da popula- imposição colonial
de um modo de vida
ção (MARACCI, 2019). supostamente próprio
dos Estados Unidos e
da Europa Ocidental
(Moss, 2017). Uma
“KIT GAY” E A OFENSIVA parte desse problema
se dá pela ausência

ANTIGÊNERO NO BRASIL de tradução para


a palavra gender
O panorama dos movimentos antigênero ao em alguns idiomas,
o que favorece a
redor do globo nos permite avaliar questões interpretação de que
as problemáticas
que emergem particularmente no Brasil a congregadas pelo
partir de um quadro mais contextualizado, termo seriam
propriamente norte-
considerando o compartilhamento transna- americanas. Para
uma densa análise
cional de retóricas que sustentam projetos sobre essa questão

políticos específicos no país. Consideramos


linguística e política,
bem como uma
que um vetor de destaque para a articula- aposta em políticas
radicais de tradução,
ção entre “ideologia de gênero” e autorita- ver Butler (2019).
Fazemos esse
rismos no campo público brasileiro se dá, adendo para mostrar

sobretudo, em querelas políticas no campo


a complexidade
da “ideologia de
da educação. Nestas os supostos perigos do gênero” em diferentes
partes do globo,
gênero dão sustentação à retórica política exigindo análises
que congreguem
de proteção das crianças contra a ameaça as problemáticas

de dissolução das famílias e de um ideal de


transnacionais,
mas também as
pureza infantil (BALIEIRO, 2018). particularidades dos
locais onde tal retórica
se instala, se alastra e
Nesse cenário, um elemento de destaque nas se transforma.

198
mobilizações antigênero pode ser acompa-
nhado em diferentes situações políticas tra-
vadas ao longo da última década. Trata-se
do chamado “kit gay” – nomenclatura que
ilustrou, primeiramente, um viés pejorativo
contrário a um projeto de confecção de ma-
teriais de combate à homofobia nas escolas,
expandindo-se, ao longo do tempo, como
um significante capaz de articular o pânico
sobre o gênero em diferentes campos, per-
formando um suposto elo de conexão con-
tra o largo campo de ameaças imposto às
crianças em idade escolar, comumente no-
meado como “doutrinação” ou “imposição
ideológica” (MARACCI, 2019).

Tal controvérsia iniciou-se no ano de 2010,


com a divulgação do projeto Escola sem Ho-
mofobia, referente ao MEC e elaborado em
parceria com ONGs tais quais Pathfinder e Re-
prolatina. Um dos eixos desse projeto era a
confecção de um material de combate à ho-
mofobia nas escolas, que contava com vídeos
e cadernos pedagógicos a serem trabalhados
com alunos e professores. O nome oficial do
material era Caderno Escola sem Homofobia –
como pode ser encontrado em versões para
download na internet – mas foi popularmen-
te chamado de kit anti-homofobia ou kit de
combate à homofobia nas escolas.

Frente a possibilidade de efetivação do proje-


to, foi mobilizada uma grande querela nacio-
nal, impulsionada, sobretudo, por parlamen-
tares conservadores, dentre os quais tomava
A Revista Nova
Escola, no ano de destaque o então deputado federal Jair Bol-
2014, divulgou
o material na
sonaro. Entre os anos 2010 e 2011, Bolsonaro
íntegra em https:// participava de programas de televisão aber-
novaescola.org.
br/conteudo/84/ ta e fazia pronunciamentos no Congresso
Nacional contrários ao material, agora ape-
conheca-o-kit-
gay-vetado-pelo-
governo-federal- lidado de “kit gay” – / nome pejorativo que
em-2011 . Acesso em
20 jan. 2022. consolidou a apreensão pública dos cader-

199
nos anti-homofobia no país. O “kit gay”, para
Bolsonaro, imporia a homossexualidade para
crianças, destituiria a autoridade familiar na
educação dos filhos e os tornaria “presas fá-
ceis para pedófilos” (MARACCI, 2019).

A oposição ao material iniciou-se na televisão


e em pronunciamentos no Congresso, mas
rapidamente expandiu-se para o terreno das
redes sociais on-line – onde foram comparti-
lhados, principalmente, os vídeos que com-
punham o Caderno Escola sem Homofobia.
Aquele era um momento importante de in-
serção da população brasileira em páginas da
internet como o Facebook, o Twitter e o Youtu-
be – redes que vieram a se consolidar como o
espaço privilegiado de querelas políticas nos
primeiros anos do século XXI.

O que inicialmente poderia parecer uma retóri-


ca desprovida de sentido objetivo, nas palavras
de um deputado fanfarrão e pouco expressivo,
conquistou rapidamente os parlamentares da
chamada “Bancada da Bíblia” – parlamentares
de diferentes espectros políticos, representan-
tes de diferentes religiões cristãs. A pressão
parlamentar desse grupo, endossada pela re-
percussão popular em redes sociais, surtiu efei-
to no cancelamento da distribuição dos cader-
nos por decisão presidencial. Dilma Rousseff,
na época presidente da República, argumen- À época da polêmica,
tou que não caberia ao governo federal “fazer os principais vetores
de pressão do
propaganda de opções sexuais” nem “interfe- Congresso contra
a distribuição dos
rir na vida privada das pessoas”. materiais anti-
homofobia eram

Tal recuo, de acordo com Oliveira Júnior e


a investigação do
enriquecimento
Maio (2015), não foi um caso isolado nas ilícito do então
Ministro da Casa
deliberações presidenciais. Pelo contrário, Civil, Antonio
Palocci, e a abertura
marcou o início de uma nova organização de uma Comissão
política do Poder Executivo acerca das temá- Parlamentar de
Inquérito (CPI)
ticas de gênero e sexualidade – bem como no Ministério da
Educação (MARACCI,
nas correlacionadas esferas de outros di- 2019).

200
reitos civis –, a cultura do desagendamento nas políticas
públicas. Segundo os autores:

O Governo Federal, devido a pressões políticas e sociais, re-


cuou em relação à distribuição desses materiais desagen-
dando a sua elaboração e/ou distribuição. No entanto, pes-
quisas demonstram que o ambiente escolar é promotor da
“heteronormatividade compulsória”, o que, por si só, já jus-
tificaria a necessidade da produção de materiais didáticos
que pudessem colocar esses temas em xeque e da criação
de novas políticas públicas de reconhecimento e de valori-
zação das diferenças (OLIVEIRA JÚNIOR; MAIO, 2015, n.p.).

Se a decisão da Presidência foi de acordo com as pressões


contra ela mobilizadas, não poderíamos concluir que o can-
celamento do material tenha obtido como efeito político a
neutralização das tensões entre poderes, tampouco ameni-
zado as pressões populares reativas às temáticas de gêne-
ro e sexualidade de modo geral. O significante “kit gay”, por
exemplo, não foi abandonado após o veto ao Caderno Es-
cola sem Homofobia, permanecendo como um importante
mobilizador da política brasileira desde então. Há, dessa for-
ma, um deslocamento do significante “kit gay” frente a seu
material de origem. Inicialmente utilizado como um apelido
pejorativo para um projeto factual, financiado pelo MEC, “kit
gay” passou a operar como um nome comum para qualquer
menção ao trabalho com temáticas relativas a gênero e se-
xualidade, performando uma suposta coesão entre situações
diferentes, unidas agora por uma mesma ameaça.

Este movimento toma dimensão ainda mais significativa em


2014, frente aos debates sobre o Plano Nacional de Educação
(PNE), que foi votado naquele ano. O PNE é uma política públi-
ca que determina diretrizes, metas e estratégias para a política
educacional no período de 2014 a 2024. Ao longo da tramita-
ção do projeto de lei, foi incorporada uma emenda que men-
cionava a “superação das desigualdades educacionais, com
ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero
e de orientação sexual”, o que despertou reações negativas de
deputados de matriz conservadora. A mobilização parlamen-
tar surtiu na modificação do texto do plano, que foi aprovado
sem qualquer menção à diversidade sexual e de gênero.

Esse é um momento relevante para as questões de gênero, se-

201
xualidade e políticas públicas no Brasil, à medida que o sintag-
ma “ideologia de gênero” foi decisivo no contexto da votação.
Maria Rosado-Nunez (2015) aponta a participação de líderes
católicos e evangélicos na agremiação contrária ao “gênero”,
que tomou palco nesse período, reiterando o viés teológico
para uma separação rígida e inflexível entre homens e mu-
lheres e para um ideal heteronormativo de família. Na esteira
dessas reflexões, Naira Pinheiro e Fernanda Coelho demons-
tram o alastramento da retórica da “ideologia de gênero” a
partir da votação do PNE, tendo como fundamento um repú-
dio às “teorias de gênero”. Ambas as autoras já demonstram
como o discurso de matriz católica encontrou um terreno fértil
no Brasil no encontro com comunidades religiosas de ordem
evangélica, atualmente diretamente implicadas no processo
de sustentação dos discursos autoritários do atual regime.

A polêmica do PNE é relevante, também, para entendermos


como o sintagma “ideologia de gênero” se conecta à polê-
mica do “kit gay” e passa, desde então, a mobilizar e alastrar
os ânimos antigênero na política brasileira. Por exemplo, na
argumentação de seu voto em 2014, Bolsonaro afirmou que
o PNE seria “o kit gay que Dilma Rousseff disse que tinha re-
colhido, mas que está saindo do armário”. A metáfora do “sair
do armário”, comumente referida ao momento em que uma
pessoa assume-se LGBT+, denota aqui a relação de contin-
gência e contiguidade entre o termo “kit gay” e seu projeto
de referência. Com o ato de fala de Bolsonaro, entendemos
que “kit gay” se expande largamente, podendo abarcar ele-
mentos sem qualquer relação com o material abandonado
por Rousseff em 2011, mas mantendo ainda o programa Es-
cola sem Homofobia como um ponto exterior de realidade, a
que é remetido como forma de veridicção. Tal qual apontou
o então parlamentar, o veto presidencial não estabilizou a
polêmica; pelo contrário, manteve seu perigo dentro de um
armário, pronto para retornar e inserir a ameaça no mundo
assim que as portas forem abertas (MARACCI, 2019).

É nessa configuração que vemos tais preocupações emergi-


rem em diferentes cenários políticos brasileiros de anos re-
centes, como na eleição presidencial de 2018, na qual Bol-
sonaro utilizou a veemente oposição aos supostos “kit gay”
e “ideologia de gênero” como pontos fundamentais de sua

202
campanha. Em entrevista ao Jornal Nacional,
por exemplo, ele apresentou o livro Aparelho
Sexual e Cia como um exemplar do fatídico
“kit gay”, mesmo que esse livro não constasse
como elemento do projeto vetado em 2011.
A nomenclatura, dessa forma, passa a abarcar
elementos distintos, estabelecendo uma su-
posta conexão entre eles. Livros, eventos, ma-
teriais pedagógicos estaduais, federais, mu-
nicipais, públicos ou privados, passam a ser
entendidos como o mesmo “kit gay”, como
exemplares da mesma “ideologia de gênero”.

O pânico moral mobilizado por tais signifi-


cantes permanece ativo durante a presidên-
cia de Bolsonaro. Dos inúmeros exemplos
que poderíamos utilizar para ilustrar os des-
dobramentos contemporâneos desse pâni-
co, consideramos sobressalente o atual edi-
tal de fomento a pesquisas financiado pelo
Ministério da Mulher, da Família e dos Direi-
tos Humanos (MMFDH), chefiado pela pas-
tora Damares Alves, em parceria com o MEC,
chefiado pelo também pastor Milton Ribei-
ro, que visa ao investimento em trabalhos
acadêmicos voltados à promoção e prote-
ção da família, nomeado Família e Políticas
Públicas no Brasil. O texto do documento
informa a centralidade da instituição fami-
liar no desenvolvimento de políticas públi-
cas, mas não explicita quais são os critérios
de entendimento para o significado de fa-
mília em questão. Tampouco é mencionado, O edital está
disponível em
no texto oficial, a preocupação com temáti- https://www.gov.br/

cas de gênero e sexualidade.


capes/pt-br/acesso-
a-informacao/
acoes-e-programas/

No entanto, a divulgação pública do edital bolsas/programas-


estrategicos/
caminha no sentido oposto, contando com formacao-
de-recursos-
pronunciamentos de Alves que endossam o humanos-em-

pânico moral contrário à “ideologia de gêne-


areas-estrategicas/
familia-e-politicas-
ro”. Em uma entrevista com a deputada e you- publicas-no-brasil
Acesso em 20 jan.
tuber Bia Kicis, por exemplo, a ministra afirma 2022.

203
que o fomento às pesquisas sobre famílias e
políticas públicas deve fortalecer a instituição
familiar no ambiente acadêmico, contrapon-
do-se à suposta degradação da família em
trabalhos realizados em universidades acer-
ca da diversidade sexual e de gênero. Des-
sa forma, se o documento oficial referido ao
MMFDH e ao MEC apresenta uma aparência
de neutralidade, é nas apresentações públi-
cas do projeto que emerge a preocupação
vigente: que as universidades fortaleçam um
ideal heterossexual de família e protejam as
crianças contra a nefasta “ideologia de gê-
nero”. Como dizia Alves no primeiro mês de
governo, trata-se da expectativa de que en-
traríamos em uma nova era, na qual “menino
veste azul e menina veste rosa”.

As ofensivas antigênero no Brasil estão presen-


tes também em um cenário político para além
do governo federal e intensamente associadas
aos movimentos autoritários. A organização
Escola sem Partido (ESP), atuante entre os anos
de 2004 e 2018, foi um importante vetor dessa
retórica, com o objetivo de combater a “dou-
trinação ideológica” em sala de aula – doutri-
nação essa que, não raro, encontrava respaldo
na retórica antigênero vigente no cenário po-
lítico do país. O discurso do ESP influenciou,
principalmente após o ano de 2015, mais de
140 projetos de lei municipais e estaduais vol-
tados ao cerceamento da atuação de profes-
sores, embasados no argumento de que es-
ses poderiam doutrinar seus alunos. Segundo
a Revista Nova Escola, 18 desses foram apro-
vados, 26 rejeitados e 103 ainda encontram- KICIS, Bia. Ministra
-se em fase de tramitação. No âmbito federal, Damares e a nova
política de bolsas
houve sete projetos de lei e uma proposta de para pesquisas.

emenda constitucional inspirados no ESP, que Youtube. 5 jan. 2021.


https://www.youtube.
ainda estão em aberto (ANNUNCIATO, 2021). com/watch?v=qouJ-
2javsY&t=3251s
Acesso em 20 jan.
O ímpeto mobilizado pelo ESP e pela retó- 2022.

204
rica antigênero de modo geral consolidou-se, também, na
retirada progressiva de termos como “gênero” e “sexualida-
de” dos documentos oficiais sobre Educação no Brasil. Um
exemplo desse procedimento se dá no ano de 2017, com a
formulação da Base Nacional Curricular pelo Ministério da
Educação, que delimitava os parâmetros curriculares para a
educação infantil brasileira. O documento foi apresentado à
imprensa contendo menções à “orientação sexual” e “identi-
dade de gênero”, em um viés de promoção de direitos e re-
dução do preconceito homofóbico e transfóbico – o que ge-
rou resposta negativa de comunidades conservadoras e seus
representantes parlamentares. Três dias após a divulgação, o
texto foi publicado oficialmente sem nenhum desses tópicos,
mencionando apenas, de modo abrangente, “preconceitos
baseados nas diferenças de gênero” (SEMIS, 2017).

ATAQUES À EDUCAÇÃO SEXUAL:


“IDEOLOGIA DE GÊNERO”
COMO BANDEIRA POLÍTICA DO
AUTORITARISMO
As novas direitas têm tomado o “gênero” como uma bandeira
política para a defesa de uma pureza moral. O grande líder,
em que os conservadores e autoritários de direita depositam
sua fé, convoca uma espécie de embate moral em defesa das
tradições para obter apoio social e político. Pereira, Ribeiro e
Rizza (2020) afirmam que para os conservadores o “gênero”
é um inimigo que ameaça as famílias, as relações heterosse-
xuais e a inocência das crianças.

O posicionamento antigênero reitera a concepção que sepa-


ra a responsabilidade sobre o ensino de certos temas entre
escola e família, à escola caberia ensinar conteúdos técnicos
enquanto que à família caberia educar sobre outros temas
que envolvem questões morais. Nesse sentido, os temas de
sexualidade e de gênero seriam de responsabilidade da fa-
mília e não da escola. O objetivo dos grupos conservadores
parece ser o de evitar o rompimento da heteronormativida-
de – presente nos currículos tradicionais – pela introdução
de discussões que superam a lógica binária de gênero e da
“família tradicional” (PEREIRA; RIBEIRO; RIZZA, 2020).

205
Impedir a discussão sobre esses temas no am-
biente escolar é boicotar o acesso, por parte
das crianças e dos adolescentes, a informa-
ções e discussões importantíssimas, como so-
bre sexualidade, identidade de gênero, vio-
lência contra a mulher, abuso sexual infantil
e configurações de família não heteronorma-
tivas. Isso representa um obstáculo ao aces-
so à educação em direitos humanos (estabe-
lecida pelo Plano Nacional de Educação em
Direitos Humanos, em 2006) e uma violação
ao pleno exercício dos Direitos Sexuais.

Outra linha argumentativa conservadora de


oposição à educação sexual é a que tenta
desqualificar as produções científicas em re-
lação às questões de gênero e de sexualidade
com a acusação de que seriam ideológicas e
não científicas. É provável que esse posiciona-
mento esteja atrelado a um movimento mais
amplo de negacionismo científico a que gru-
pos de direita tem aderido (ex., terraplanismo
e movimento antivacina). Tudo isso, em um
contexto em que as intervenções no campo
da saúde e da sexualidade têm demonstrado
há décadas os benefícios da educação sexual
por meio de programas educacionais.

Um maior conhecimento sobre a sexualidade


promove a autonomia e a liberdade de esco-
lhas informadas, além de um maior autocui-
dado (SONG et al., 2000) – todas pautas du-
ramente atacadas pelo autoritarismo. Alguns
outros benefícios incluem, por exemplo, a di-
minuição da incidência de gravidez na ado-
lescência (FRANKLIN, 1997), a prevenção da
vitimização de abuso sexual infantil pelo en-
sino sobre a violência sexual e de habilidades
de autoproteção para as crianças (RISPENS;
ALEMAN; GOUDEN, 1997) e a prevenção de Para uma revisão
sobre direitos
Infecções Sexualmente Transmissíveis (FON- democráticos da
sexualidade, ver Rios
NER et al., 2014; SANI et al., 2016). Além dis- (2006, 2011).

206
so, é esperado que a inserção dessas discussões diminua o
preconceito contra a diversidade sexual e de gênero e a dis-
criminação da qual são alvos as pessoas LGBTQIA+ (ALMEI-
DA-SEGUNDO; VILANOVA; PIZZINATO, 2021). A inclusão no
currículo escolar desses temas em um plano nacional de edu-
cação permitiria uma mudança no nível cultural, o que pode
afetar estruturalmente este problema no longo prazo e, por
conseguinte, se contrapor aos modelos autoritários.

A educação sexual é consistentemente eficaz em mudar ati-


tudes e promover o conhecimento sobre a sexualidade (SUN
et al., 2018) e, talvez por isso mesmo, uma bandeira reacio-
nária tão contundente. Um dos principais obstáculos para a
promoção de mudanças no nível comportamental em pro-
gramas educacionais sobre sexualidade e gênero em esco-
las é a falta de constância (existem outras questões ligadas
aos educadores, como o fornecimento de um treinamento
adequado e a recusa de cooperação em razão de preconcei-
tos). Por meio de programas orientados, sistemáticos e du-
radouros, a educação sexual tem um potencial ainda maior
de ampliar e fortalecer seus benefícios anteriormente elen-
cados. Além disso, Poobalan et al. (2009), em uma análise de
revisões sistemáticas sobre intervenções para a promoção
da saúde sexual de jovens, concluíram que a melhor abor-
dagem é a de fornecer educação sexual antes que as pes-
soas se tornem sexualmente ativas.

Outro aspecto ligado à eficácia do empoderamento de jovens


para proteger sua saúde é a adoção de uma educação sexu-
al abrangente a partir da perspectiva de gênero e de direitos
(comprehensive sexuality education - CSE; HABERLAND; RO-
GOW, 2015). Portanto, o ambiente escolar parece ser o con-
texto ideal para fornecer, antes da iniciação da vida sexual,
uma educação sexual – numa perspectiva de gênero e de di-
reitos – de forma orientada, sistemática e duradoura. Assim,
aumenta-se a probabilidade de eficácia e abrangência dos
benefícios e garante-se a crianças e adolescentes o acesso às
informações necessárias para um desenvolvimento biopsi-
cossocial instruído de suas sexualidades e o acesso/exercício
dos seus direitos sexuais.

207
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Salientar a diversidade como uma violação da norma tradi-
cional de gênero e sexualidade e colocar o “gênero” como
um inimigo perigoso e imprevisível garante o apoio daque-
les identificados com o autoritarismo de direita. As ofensi-
vas contra o “gênero” no Brasil têm alimentado a percepção
das minorias sexuais como uma ameaça - pela não adesão
aos estereótipos de gênero, encarado como um desafio às
normas tradicionais. O tradicionalismo e a agressividade au-
toritária (também chamada apenas de autoritarismo) são os
principais preditores da autoidentificação como de direita em
nosso país (VILANOVA et al., no prelo). Pessoas que aderem
ao tradicionalismo são especialmente sensíveis às normas so-
ciais relativas à aceitação da diversidade, esta é a dimensão
do autoritarismo que de forma mais estável se associa com
o preconceito contra minorias sexuais e de gênero. No Brasil,
o apoio a padrões e valores morais tradicionais parece ser o
fator chave para a compreensão da relação entre religiosida-
de e o preconceito contra a diversidade sexual e de gênero
(VILANOVA; KOLLER; COSTA, 2019).

Com a ascensão das novas direitas, políticos autoritários che-


garam ao poder e se voltaram contra as minorias sexuais e
de gênero com discursos que tentam naturalizar a concepção
historicamente construída da moral tradicional, muitas vezes
para desviar a atenção de problemas sociais e econômicos.
Para fortalecer o apoio irrestrito ou submissão acrítica à auto-
ridade estabelecida engendra-se a defesa moral das normas
tradicionais de gênero e, consequentemente, alimenta-se a
hostilidade/agressividade em relação aos grupos identifica-
dos como diferentes/não convencionais. Portanto, parece que
os ataques orquestrados ao gênero são uma estratégia de
defesa estrita dos papéis tradicionais de gênero e sexualida-
de visando o fortalecimento dos grupos políticos de direita.
Tal movimento se mantém a partir de três dimensões do au-
toritarismo, a submissão à autoridade, o tradicionalismo e a
agressividade autoritária. Ou seja, a docilidade e obediência
perante uma figura política dominadora e antidemocrática, a
promoção de crenças e atitudes conservadoras ou antipro-
gressistas e a defesa de medidas punitivistas, como a elimi-
nação daqueles considerados perigosos ou “desviantes”.

208
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213
214
13.

N
INTRODUÇÃO
o Brasil, as relações sociais são historicamente
marcadas por um colonialismo arraigado no DAMIÃO SOARES
DE ALMEIDA-
racismo e no autoritarismo. Por exemplo, no SEGUNDO
campo das relações raciais, apesar dos gra-
ves efeitos contemporâneos da escravidão e
JAMES FERREIRA
da política de branqueamento que se seguiu MOURA JÚNIOR
após a abolição da escravatura, o racismo ain-
da é negado por muitos devido ao mito da
ANGELO
democracia racial, i.e., a crença de que a for- BRANDELLI
mação miscigenada do povo brasileiro teria COSTA

levado a uma convivência racial pacífica (GUI-


MARÃES, 2012; TELLES, 2014). Outra marca ADOLFO
dessa formação histórica do país diz respeito PIZZINATO

às elites brasileiras, que sempre atuaram de


forma autoritária, desde suas manifestações
mais particularistas, como na figura dos co-
ronéis, até formas mais abrangentes, como
a constante ameaça autoritária de golpe nos
governos democraticamente estabelecidos.

Um dos reflexos atuais dessas raízes históri-


cas se dá no campo da justiça (i.e., sua con-
secução por meio do sistema jurisdicional),
em especial, na justiça penal. Por um lado,
ocorre o encarceramento em massa de jo-
vens homens negros e pobres como um dos
numerosos efeitos da escravidão e, por outro,
temos um judiciário majoritariamente cons-
tituído por pessoas distantes da realidade do
povo brasileiro e cuja posição social como eli-
te é, desde sua origem histórica, autoritária.
Os magistrados são em sua maioria homens
(62%), brancos (80,3%) e de alta escolarida-

215
de (CNJ, 2018), que formam uma verdadeira nobreza toga-
da – uma elite econômica e política que ocupa há gerações
os principais cargos nos tribunais e escritórios de advocacia,
administrando a justiça no Brasil (ALMEIDA, 2014).

A marca autoritária no sistema penal advém de sua natureza


institucional, mas também da atuação deliberada de magis-
trados autoritários e preconceituosos e, até mesmo, da parte
de juízes que individualmente buscam atuar de forma justa
ou isenta de preconceitos, pois também podem estar sujei-
tos a uma atuação enviesada - implícita - e à consequente
tomada de decisão de forma discriminatória (ALMEIDA-SE-
GUNDO; MOURA JÚNIOR; SANTOS, 2018). Devido ao tem-
po e às informações limitadas, os juízes acabam se baseando
em expectativas comportamentais estereotipadas ao avaliar
a culpabilidade e a periculosidade do réu (STEFFENSMEIER;
ULMER; KRAMER, 1998). Assim, as características extralegais
dos acusados podem servir como proxies (i.e., fator ou fato-
res intermediários que representam uma variável final) para
indicar risco, com base nos estereótipos sociais negativos,
levando a um tratamento discriminatório.

No Brasil, ainda são poucos os estudos que buscam inves-


tigar as disparidades no julgamento no campo da justiça e
seus efeitos (ALMEIDA-SEGUNDO; MOURA JÚNIOR; SAN-
TOS, 2018). Em um esforço para a efetivação do acesso à
justiça de forma democrática, há uma longa tradição de
pesquisas internacionais nesse campo. Tais estudos acon-
tecem desde 1930, passando por cinco gerações históricas
que têm acrescentado novos debates teóricos, metodoló-
gicos e analíticos sobre a tomada de decisão (ZATZ, 1987;
MITCHELL, 2017). Paralelamente, algumas teorias e modelos
foram elaborados para tentar explicar o problema integran-
do fatores sociais (ex., raça, classe, gênero) e psicológicos
(ex., motivação, crença e personalidade) com as limitações
cognitivas humanas para a tomada de decisão (BAUMER,
2013; DEVINE; CAUGHLIN, 2014).

No campo penal, as teorias explicativas de enfoque mais so-


cial voltam-se para a atuação do Estado e de suas instituições,
cujas políticas jurídico-penais parecem buscar deliberadamen-
te atuar em prol da manutenção da hierarquia sociorracial.

216
Destacam-se as teorias que focam na raça (ex., ALEXANDER,
2012), as que focam na classe (ex., JOHNSON, 2017; WAC-
QUANT, 2001) e as que integram ambas as explicações (ex.,
COIMBRA, 2001; STEFFENSMEIER; ULMER; KRAMER, 1998).
Já as teorias cujo enfoque é mais psicológico têm como base
processos grupais de categorização social a partir de fatores
ideológicos e de preconceito, com destaque para o Modelo
do Processamento Dual Cognitivo-Motivacional da Ideologia
e do Preconceito (DPM, do inglês Dual Process Motivational
Model of Ideology and Prejudice) (DUCKITT, 2001) e a Teoria
da Justificação do Sistema (TJS; JOST et al., 2010).

Nesse sentido, o presente capítulo apresentará (1) o his-


tórico das pesquisas sobre disparidades na decisão judi-
cial, (2) as teorias sociológicas que têm buscado explicar
as causas dessas disparidades, principalmente, a partir do
racismo estrutural em suas intersecções com o classismo e
(3) os principais modelos psicológicos que podem ajudar
na compreensão do problema a partir do autoritarismo de
direita e da dominância social.

AVANÇOS E DESAFIOS NA
PESQUISA SOBRE A TOMADA
DE DECISÃO JUDICIAL
O princípio da igualdade orienta o ordenamento jurídico bra-
sileiro e as decisões judiciais deveriam se basear apenas no
que a lei determina, segundo as características factuais de
cada caso. A tomada de decisão por influência de qualquer
critério que não esteja estabelecido em lei viola os princípios
constitucionais que regem o processo judicial (ZAFFARONI;
PIERANGELI, 2015). Porém, há um extenso campo de pesquisa
que tem verificado que essas decisões são resultado de uma
complexa interação entre as características do julgador (ex.,
nível socioeconômico, raça/cor, atitudes, crenças, valores), os
aspectos legais (ex., tipo de crime, a forma como foi pratica-
do) e os aspectos extralegais do caso (ex., características do
acusado e da vítima) (BAUMER, 2013; DEVINE; CAUGHLIN,
2014). As evidências indicam que a parcialidade da atuação
dos julgadores prejudica especialmente as pessoas negras e
pobres (ex., ADORNO, 1994, 1995, 1996; SPOHN, 2014).

217
Pesquisadores de diversas áreas do conhecimento têm rea-
lizado investigações sobre a tomada de decisão no âmbito
jurídico, principalmente sobre os aspectos que levam à dis-
paridade nas sentenças diante de casos semelhantes, ou mes-
mo, iguais. Nas pesquisas produzidas, as disparidades socior-
raciais foram as que mais receberam atenção. Ao longo dos
anos, observam-se cinco ondas históricas de debates e es-
forços analíticos, teóricos e metodológicos para compreen-
der o fenômeno (FRANKLIN, 2017; MITCHELL, 2017; SPOHN,
2015; WOOLDREDGE et al, 2015; ZATZ, 1987).

Os primeiros estudos sobre o tema foram conduzidos na dé-


cada de 1930, evidenciando um viés de julgamento nítido e
consistente contra os não-brancos. Apesar de sua importân-
cia, essa primeira onda de estudos foi criticada por algumas
falhas metodológicas, como controle das técnicas de análi-
ses e dos registros de fatores legais (ZATZ, 1987). A segun-
da onda de estudos aconteceu entre as décadas de 1960 e
1970, período em que os movimentos em prol dos direitos
civis nos Estados Unidos deram ênfase ao racismo como um
viés presente em vários estágios da tomada de decisão do
julgamento. Assim, as manifestações explícitas de discrimi-
nação não eram mais socialmente aceitáveis, o que pode ter
influenciado os resultados das pesquisas desse período que
apontaram pouca evidência de discriminação racial direta
nos resultados da sentença. Contudo, por meio de técnicas
de análise mais avançadas, os pesquisadores refizeram estu-
dos anteriores e identificaram que a raça possuía um efeito
cumulativo e operava de forma indireta por meio de outras
variáveis (MITCHELL, 2017).

Nas décadas de 1970 e 1980 teve início a terceira onda de


estudos, que trouxe avanços significativos por conta do uso
de computadores no sistema de justiça, auxiliando a coleta e
a sistematização de informações. Nesse contexto, efeitos in-
diretos começaram a ser identificados, considerando então
a interação entre diferentes fatores, por exemplo, a intera-
ção raça-classe (FRANKLIN, 2017). Um dos efeitos indiretos
mais significativos para essa terceira onda foi a desvantagem
cumulativa, que se refere a uma situação em que a raça pos-
sui um pequeno efeito (estatisticamente não significativo) na
tomada de decisão em algumas etapas do processo quando

218
analisada isoladamente (WOOLDREDGE et al, 2015). Porém,
a cada etapa, as desvantagens vão se somando, o que leva a
disparidades significativas nos resultados dos processos para
diferentes grupos sociais. Além disso, observou-se que a in-
teração de algumas variáveis afetava a sentença, por exem-
plo, a interação entre raça, condição econômica e o tipo da
ofensa (SPOHN, 2015; ZATZ, 1987). Identificou-se que os ne-
gros, em relação aos brancos: recebiam sentenças mais lon-
gas, tinham menor probabilidade da possibilidade de fiança
e tinham maior probabilidade de condenação. De forma ge-
ral, as contribuições dos estudos da terceira onda convergem
no que diz respeito ao efeito cumulativo da discriminação ao
longo das etapas do processo de julgamento.

A quarta onda, iniciada no final da década de 1980, continuou


a avançar teórica e metodologicamente e se beneficiou ainda
mais dos avanços tecnológicos nas técnicas de análise e de
sistematização de dados (MITCHELL, 2017). Além disso, con-
tou com o acesso a grandes bancos de dados, o que permi-
tiu o controle do efeito de variáveis. Assim, os pesquisadores
conseguiram examinar as interações entre fatores extrale-
gais (ex., gênero e raça) conforme a variação de característi-
cas contextuais (ex., composição racial dos julgadores), tipo
de crime e tipo de sentença. Em geral, esses estudos encon-
traram efeitos pequenos da raça sobre o tempo de sentença,
mas efeitos maiores da raça sobre as decisões de imposição
ou não da pena de prisão e penas mais severas para certos
tipos de crimes (ex., relacionados a entorpecentes). Um acha-
do consensual foi o de que as sentenças se tornaram mais
uniformes e as disparidades raciais diminuíram em razão da
exigência de estruturação da decisão e da implementação
de numerosas outras reformas (ex., mudanças de leis e de
políticas públicas) baseadas nas décadas de pesquisas ante-
riores. Dessa forma, a quarta geração de estudos conseguiu
capturar as mudanças decorrentes do decreto de estatutos
sentenciais e de legislações que estabeleceram diretrizes para
os critérios judiciais, as chamadas guidelines.

A quinta geração de estudos sobre a decisão judicial tem


sido capaz de responder às críticas que os estudos anterio-
res receberam (MITCHELL, 2017; SPOHN, 2015), pois procura
examinar outras etapas do processamento judicial além da

219
sentença final de condenação ou absolvição (BAUMER, 2013).
Atualmente, esses estudos têm buscado abordar os efeitos
cumulativos (ou moderadores) decorrente da interação en-
tre variáveis como raça, gênero, idade e nível socioeconômi-
co ao longo dos estágios de processamento judicial (WOOL-
DREDGE et al, 2015). Para tanto, têm feito uso de rigorosos
métodos de análise, maior qualidade das medidas e amostras
representativas de diversas nações, como Portugal, Estados
Unidos, Holanda e Rússia (ALMEIDA-SEGUNDO, 2019).

No Brasil, há um reduzido número de pesquisas sobre o tema.


Os estudos iniciais, eminentemente descritivos, indicaram
uma disparidade sociorracial nos julgamentos, porém a par-
tir de métodos pouco rebuscados (ex., ADORNO, 1994, 1995,
1996). Na última década, têm sido realizados estudos mais
robustos, tanto em uma perspectiva prospectiva (ex., SILVA;
LIMA, 2016) quanto em uma perspectiva experimental (ex.,
COSTA, 2016). Em nosso contexto, poucos avanços decorre-
ram dos resultados nas investigações sobre as disparidades
no julgamento e sobre a representação sociorracial no siste-
ma carcerário. Sobretudo devido a algumas limitações, como
não haver disponibilidade de extensos bancos de dados pú-
blicos ou pesquisas em grande quantidade sobre o tema, o
que dificulta a elaboração de uma abordagem integrativa ca-
paz de gerar explicações mais abrangentes e precisas.

TEORIAS SOCIOLÓGICAS E
DISPARIDADES NO JULGAMENTO
Duas distintas perspectivas têm se voltado para a análise do
sistema de justiça penal e seus autoritarismos. A primeira de-
las segue uma abordagem genealógica das instituições que
investiga a complexa rede de saber-poder-subjetivação em
torno da produção do sujeito e das tecnologias de controles,
pondo em questão as políticas criminais e sua relação com
os modos de existir (FOUCAULT, 1999). Já a segunda tem
como objetivo subsidiar mudanças nas políticas e nas práti-
cas penais atuais – a maioria dos estudos da decisão jurídica
pertence a esse enfoque. A principal diferença dessa abor-
dagem para a genealógica é que ela não se detém, de forma
imediata, na proposição de alternativas às políticas criminais,
mas na urgência de se elaborar políticas criminais alternati-

220
vas, por exemplo: o fortalecimento do direito penal mínimo,
a mediação extralegal dos conflitos, as penas alternativas à
prisão, as propostas de reformas legais de descriminalização,
a garantia de direitos humanos básicos para os encarcerados,
os processos efetivos de ressocialização, o estabelecimento
de uma polícia comunitária não militarizada, entre tantas ou-
tras (ex., ADORNO, 1996; BAUMER, 2013; SPOHN, 2015; ZA-
FFARONI; PIERANGELI, 2015).

Assim, apesar de ser necessário pensar alternativas à políti-


ca criminal, é urgente fortalecer e elaborar práticas de polí-
ticas criminais democráticas e não autoritárias. Nos últimos
40 anos, as pesquisas conduzidas com o objetivo de garan-
tir a efetivação da justiça têm focado nas desigualdades em
torno da raça e da classe. Nesse sentido, foram elaboradas
algumas tentativas de explicar o papel do Estado e suas ins-
tituições para o problema das desigualdades no julgamento.
Uma delas, atribui o crescimento da população penitenciária
a uma nova política de exclusão racial, que visa dar continui-
dade à segregação dos negros mesmo após as conquistas
dos movimentos sociais antirracistas (ALEXANDER, 2012). A
nova forma de gestão das populações negras ocorreria por
meio do encarceramento em massa desses indivíduos, to-
lhidos de sua liberdade – não mais na condição de escravos,
mas como prisioneiros e criminosos.

Quanto à classe, Johnson (2017) coloca o encarceramento


em massa como uma forma de gestão das populações po-
bres após a diminuição do Estado de bem-estar social e o
fortalecimento das políticas neoliberais. Nessa mesma dire-
ção, Wacquant (2001) associa o abandono social do Estado
ao recrudescimento de práticas punitivo-penais. Ou seja, na
medida em que políticas de bem-estar social são extintas,
um Estado penal se fortalece. Então, a pena de prisão e o
Estado penal funcionam para a manutenção do status quo,
protegendo o interesse de grupos privilegiados e demar-
cando os espaços sociais.

Steffensmeier, Ulmer e Kramer (1998) afirmam que os jovens


homens negros são considerados uma classe perigosa pela
associação desses sujeitos a um estereótipo de propensão à
criminalidade. Esses estereótipos negativos acabam evocan-

221
do práticas discriminatórias, inclusive quanto à aplicação de
penas, pois os sujeitos com essas características são perce-
bidos como intrinsecamente desviantes, perigosos e disfun-
cionais. No Brasil, Coimbra (2001) integrou as explicações so-
bre raça e classe ao relacionar a hipertrofia do Estado penal
com a construção social de classes perigosas, marcadamente
os negros, os pobres e os imigrantes, sobre quem recai se-
veramente o controle coercitivo. Com base em estereótipos
que associam essas populações à periculosidade, ao crime e
à violência, é criada uma congruência raça-classe-crime que
posiciona, especialmente, os jovens negros pobres como ini-
migos a serem combatidos.

O encarceramento massivo dos pobres se relaciona ainda com


o fato de a maioria dos pobres serem negros, pois há tam-
bém uma motivação racial por trás do preconceito de classe
(GUIMARÃES, 2012). Os efeitos de raça e classe são melhor
analisados se considerados em conjunto, pois as sociedades
miscigenadas, como o Brasil, vivem em um sistema de classes
racializado (TELLES, 2014). Para as desigualdades no sistema
criminal é importante analisar os efeitos isolados desses mar-
cadores, mas também os efeitos conjuntos. Por conta desse
entrelaçamento de efeitos, o enfrentamento da cultura do en-
carceramento também exige intervenções para a atenuação,
mitigação ou eliminação de vieses discriminatórios.

TEORIAS DA PSICOLOGIA SOCIAL E


DISPARIDADES NO JULGAMENTO
Idealmente a atuação dos agentes públicos do sistema de
justiça penal deveria ser baseada na equidade, mas a seleção
de quais crimes são processados pelo sistema de justiça não
é aleatória, decorre sobretudo da atuação dos seus agentes
que acabam por selecionar prioritariamente as camadas in-
feriorizadas na hierarquização racial e social. Dados do Le-
vantamento Nacional de Informações Penitenciárias apon-
tam que 64% dos detentos no Brasil são negros e que 90%
deles concluíram apenas o Ensino Fundamental (INFOPEN,
2017). Por outro lado, o perfil dos que julgam é bem dife-
rente. Os marcadores de raça e classe estão presentes, con-
tudo, em uma intersecção de privilégios. Em geral, uma elite
político-econômica domina as profissões ligadas ao Direito;

222
especialmente os cargos de magistratura e os de sócio em
escritórios de advocacia são ocupados majoritariamente por
homens, brancos, de famílias com excelente renda e escola-
ridade, com parentes que também atuam em profissões ju-
rídicas e residentes no Sul e Sudeste do país.

Analisando essa intrínseca ligação entre capital econômico,


político e jurídico, Almeida (2014) nomeou esse grupo de
nobreza togada, pois as elites privilegiadas que o compõe
dominam a administração da justiça, além de outras esferas
de poder (ex., economia e política), o que permite o contro-
le e, principalmente, a continuidade da sua hegemonia. Por
exemplo, o Supremo Tribunal Federal (STF), tribunal máximo
da justiça brasileira, teve 89,9% dos seus magistrados advin-
dos de apenas cinco instituições de ensino superior do país
ao longo de toda sua existência. Na instituição com maior
número de alunos que chegaram ao STF, mais da metade
dos concluintes de Direito possuíam renda superior a 34 sa-
lários-mínimos mensais em 2006. Por outro lado, a popula-
ção aprisionada em larga escala é a de indivíduos negros e
pobres. A discriminação ocorre não somente na decisão de
sentença, mas em todas as etapas da justiça criminal.

Essa distância social entre os que julgam e os que são julga-


dos afeta os processos de pertencimento grupal aumentan-
do o preconceito daqueles indivíduos pertencentes a grupos
privilegiados em relação a grupos marginalizados. Dentro das
relações individuais que permeiam o processo de julgamen-
to, a diferença grupal entre os julgadores e os réus, devido a
processos de categorização grupal, pode ajudar a entender a
atuação autoritária e discriminatória nos julgamentos. Algu-
mas teorias relacionadas à categorização social se pautam em
explicações de enfoque mais psicológico para o preconceito
e a discrminação. Nos últimos anos, por buscarem abranger
fatores individuais (disposicionais) e sociais/intergrupais (si-
tuacionais), tem se destacado o Modelo do Processamento
Dual Cognitivo-Motivacional da Ideologia e do Preconceito
(DPM, do inglês Dual Process Motivational Model of Ideology
and Prejudice) (DUCKITT, 2001) e a Teoria da Justificação do
Sistema (TJS; JOST et al., 2010).

O DPM assume que os tipos de grupos sociais que são alvo de

223
preconceito variam em diferentes sociedades e que os indi-
víduos dentro das sociedades variam no nível de preconceito
(DUCKITT, 2001). Dessa forma, busca integrar fatores sociais e
intergrupais (ex., competição intergrupal, ameaça ou desigual-
dade), bem como diferenças individuais (ex., personalidade,
motivações ou crenças ideológicas) na explicação de como as
atitudes preconceituosas surgem e são sustentadas tanto para
os indivíduos quanto para as sociedades. Sua proposição prin-
cipal é a de que duas orientações motivacionais básicas dis-
põem os indivíduos a serem geralmente preconceituosos ou
tolerantes (DUCKITT; SIBLEY, 2017). No entanto, essas orienta-
ções seriam ativadas em grande parte por fatores situacionais
e intergrupais socialmente compartilhados (como competição
intergrupal, ameaça e desigualdade). Dessa forma, fatores in-
dividuais e sociais ou intergrupais operariam juntos para gerar
preconceitos, os quais são específicos (i.e., compartilhados e
dirigidos, contra alvos específicos que variam entre socieda-
des) e generalizados (i.e., os níveis de preconceito variam en-
tre os indivíduos de uma sociedade).

Nesse modelo, as atitudes preconceituosas emergem de dois


objetivos motivacionais: as necessidades de segurança e con-
trole de ameaças, que são expressas em autoritarismo de di-
reita (right-wing authoritarianism - RWA; ALTEMEYER, 1981);
e as necessidades de domínio, superioridade e poder, expres-
sas em orientação de dominância social (social dominance
orientation - SDO; SIDANIUS; PRATTO, 1999). Para sustentar
tal proposição, o modelo conecta três contribuições explica-
tivas estreitamente interligadas (DUCKITT; SIBLEY, 2017): 1)
conceitua o RWA e a SDO como atitudes sociais ou dimen-
sões ideológicas motivacionais e principais preditores das di-
ferenças individuais no preconceito; 2) mostra como essas
duas dimensões ideológicas baseadas na motivação são mol-
dadas e emergem de diferentes bases sociais e psicológicas;
3) fornece uma explicação do porquê essas duas dimensões
baseadas em motivações distintas levam ao preconceito; e
4) descrevem como elas operam de forma complementar e
interativa com causas sociais e intergrupais de preconceito.

Em suma, a principal premissa da DPM é que as atitudes ideo-


lógicas de RWA e de SDO são as principais determinantes do
preconceito e que emergem de dois padrões motivacionais

224
distintos. O RWA é definido como uma atitude social basea-
da na ameaça dos objetivos motivacionais da segurança co-
letiva, controle, estabilidade e ordem, que reflete o grau em
que as pessoas se submetem às autoridades estabelecidas,
mostram agressividade em relação a grupos com os quais
não se identificam e apoiam valores morais tradicionais (AL-
TEMEYER, 1981; DUCKITT; SIBLEY, 2017). Pessoas com alto ní-
vel de RWA possuem cronicamente a crença saliente de que
o mundo em que vivem é perigoso, caótico e imprevisível (ao
invés de seguro, estável e previsível). Já a orientação à domi-
nância social (SIDANIUS; PRATTO, 1999) é uma atitude moti-
vada pela competição em torno dos objetivos motivacionais
de poder, dominância e superioridade, que reflete o apoio à
formação e à manutenção de hierarquia entre grupos sociais.
Indivíduos com alto nível de SDO possuem a crença croni-
camente saliente no mundo como um lugar competitivo em
que é necessário obter poder, domínio e superioridade sobre
os outros para sobreviver.

A segunda teoria em destaque, a da justificação do sistema


de Jost e Banaji (1994), propõe que as pessoas possuem um
conjunto de motivos psicológicos para defender, reforçar e
justificar os arranjos sociais, econômicos e políticos existen-
tes (i.e., status quo), pautados em uma tendência de perceber
os arranjos sociais vigentes como justos, legítimos e desejá-
veis, mesmo à custa do interesse pessoal e de grupo. Assim
como as pessoas costumam estar motivadas a manter uma
identidade pessoal e social positiva, elas também tendem a
ver seus sistemas sociopolíticos como legítimos - e até certo
ponto a explicar e justificar o status quo. Essa crença na legiti-
midade do sistema preenche necessidades psicologicamente
importantes. Por exemplo, necessidades epistêmicas de ver o
mundo como consistente e organizado, de segurança frente
a ameaças e de integração ao perceber o mundo da mesma
forma que os outros (JOST et al., 2010). Assim, ao justificar o
sistema, as pessoas estão se esforçando para reduzir ansieda-
des existenciais ou medos de perigos e ameaças potenciais.

Nos últimos vinte e cinco anos, diversos estudos têm corro-


borado as premissas da TJS sobre muitos aspectos do com-
portamento social e político humano, como a resistência à
mudança social, a aceitação da injustiça, a racionalização de

225
desigualdades e desvantagens e o favorecimento de grupos
dominantes em detrimento do próprio grupo (para uma re-
visão ver FRIESEN et al., 2018; e JOST; BANAJI; NOSEK, 2004).
A principal diferença da teoria de justificação do sistema (TJS)
em relação ao DPM é o esforço em fornecer uma explicação
mais elaborada para as situações em que as pessoas se co-
locam em uma posição de defenderem o status quo quando
isso parece contrário aos interesses individuais ou grupais.

Há uma série de ideologias que as pessoas adotam para jus-


tificar o status quo em nossa sociedade. Por exemplo, a ética
do trabalho protestante, a ideologia meritocrática, a justifi-
cativa do sistema econômico, a crença em um mundo justo,
a orientação à dominância social, a oposição à igualdade, o
autoritarismo de direita e o conservadorismo político (JOST
et al., 2010). Dentre essas, as principais ideologias justifica-
doras são o autoritarismo de direita e a dominância social. O
endosso a essas atitudes está associado aos afetos negati-
vos de forma generalizada, à rejeição de mudanças sociais e
à oposição a redistribuição de recursos.

O aumento do favoritismo a grupos externos para membros


de grupos desfavorecidos (ex., homossexuais, negros) e o au-
mento do favoritismo ao próprio grupo para membros de gru-
pos favorecidos (ex., heterossexuais, brancos) são exemplos
de como essas ideologias atuam (FRIESEN et al., 2018; JOST,
BANAJI, NOSEK, 2004). As ideologias que justificam o sistema
compartilham antecedentes cognitivos e motivacionais simi-
lares, mesmo que algumas façam referência a questões so-
ciais e culturais e outras a questões econômicas. O fato de o
autoritarismo e a dominância serem correlacionados sugere
que atuam como uma função ideológica unificada de legiti-
mar os arranjos sociais existentes (SIDANIUS; PRATTO, 1999).

Portanto, pode-se observar que as teorias apresentadas


(DPM e TJS) têm em comum a ênfase dada à SDO e ao
RWA como preditores de atitudes preconceituosas gene-
ralizadas (HODSON; DHONT, 2015). Isso porque ambos os
construtos estão associados a diversos comportamentos e
atitudes sociais e políticas, incluindo filiação partidária, su-
porte ao capitalismo, severidade das decisões de sentença
e a punição dos que são considerados desviantes (DEVI-

226
NE; CAUGHLIN, 2014; DUCKITT; SIBLEY, 2017; FRIESEN et
al., 2018; JOST; BANAJI; NOSEK, 2004).

Ademais, a SDO e o RWA predizem consistentemente o pre-


conceito para membros de numerosos grupos, incluindo ne-
gros e mulheres, bem pessoas LGBTQ+; e as atitudes negativas
em relação à luta pela igualdade de gênero, racial e multi-
cultural (ALTEMEYER, 1981; HODSON; DHONT, 2015). Assim,
estudos que visem explicar as disparidades sociorraciais no
julgamento devem utilizar medidas adaptadas ao contexto
brasileiro para medir o autoritarismo de direita (VILANOVA
et al., 2018), a dominância social (VILANOVA et al., no prelo),
o preconceito de raça (SANTOS et al., 2006), o preconceito
de classe (ALMEIDA-SEGUNDO, 2019), entre outros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar da existência de uma ampla literatura internacional
no estudo das disparidades no julgamento e sobre a repre-
sentação sociorracial no sistema penitenciário, com quase
100 anos de tradição, no Brasil, existem poucas pesquisas
que buscam explorar os processos que atuam na construção
dessa desigualdade. Pesquisadores têm investigado o porquê
das atitudes negativas frente a indivíduos e grupos. Em uma
perspectiva abrangente, mais social, a atuação do Estado e
das instituições acaba por promover um contexto favorável à
discriminação. O encarceramento em massa, que atinge majo-
ritariamente populações marginalizadas, funciona como uma
política de segregação dos indesejados, as classes perigosas.
Além disso, simultaneamente, características individuais liga-
das à categorização grupal por motivações ideológicas e de
preconceito recebem influência dessa política de exclusão e
impactam nas decisões dos julgadores nos tribunais.

No âmbito jurídico, as punições mais severas ocorrem, prin-


cipalmente, para os homens negros e pobres, de forma deli-
berada ou não, pela evocação de estereótipos negativos em
interação com motivação ideológicas e de preconceito. Esse
fenômeno ocorre pela articulação de fatores em três níveis:
cognitivo, atitudinal/motivacional e estrutural. No nível cog-
nitivo a evocação desses estereótipos sociorraciais ocorre de
forma automática, devido às limitações cognitivas humanas,

227
especificamente, das abreviações perceptivas que aliviam a
tomada de decisões em contextos complexos ou ambíguos.
Assim, os julgadores estão predominantemente sujeitos a
vieses e acabam tendo sua decisão influenciada por fatores
contextuais e individuais.

No nível atitudinal/motivacional as atitudes autoritárias e de


dominância social, ligadas às crenças no mundo como um
lugar perigoso e competitivo e às motivações subjacentes
de proteção e segurança, parecem ser determinantes para
a compreensão do preconceito sociorracial e da discrimina-
ção. Isso se dá especialmente em nosso país, que desde suas
origens é marcado pelo autoritarismo e pelo racismo, e cujo
judiciário elitista forma uma verdadeira nobreza togada, ma-
joritariamente composto por julgadores socialmente distan-
tes das pessoas alvo dos seus julgamentos.

Por fim, em nível estrutural o Estado parece atuar, por meio


de suas leis, instituições e políticas, de forma deliberada para
a manutenção do status quo, com o fortalecimento de políti-
cas punitivas-penais concomitantes ao enfraquecimento de
políticas de bem-estar social e de garantia de direitos huma-
nos. Dessa forma, são necessários estudos que busquem ex-
plorar as influências contextuais e individuais nas disparida-
des no julgamento nesses três níveis, para que, com modelos
explicativos integrados, possam ser elaborados programas
interventivos e políticas públicas para enfrentar o problema.

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232
233
14.

A
INTRODUÇÃO
s pessoas em situação de rua (PSR) são carac-
terizadas pela falta de moradia regular, he- CARLOS
EDUARDO
terogeneidade, pobreza extrema e multipli- ESMERALDO
cidade de privações e violações de direitos FILHO
humanos (ESMERALDO FILHO, 2021). A maio-
ria dessas pessoas exerce alguma atividade ANDRÉA
FERREIRA LIMA
remuneratória, que em geral são atividades ESMERALDO
autônomas e com pouca estabilidade, como
reciclagem, jardinagem, guardar e lavar car-
VERÔNICA
ros e pedir. Ademais, Pimenta (2019) aponta MORAIS
algumas situações vivenciadas por essa po- XIMENES

pulação, tais como o uso de drogas, a fragi-


lização de vínculos familiares, as dificuldades
de acesso a serviços públicos e as dificulda-
des de satisfação das necessidades e de ma-
nutenção das condições de saúde e de higie-
ne. Com a pandemia de Covid-19, a partir de
2020, as condições de vida das pessoas em
situação de rua se tornaram mais precárias,
devido ao risco de infecção, ao distanciamen-
to social, à piora no acesso a emprego e ren-
da e ao aumento da quantidade de pessoas
vivendo nas ruas das cidades.

A pobreza, que atravessa a vida das pesso-


as em situação de rua, comporta dimensões
que transcendem a percepção de renda. Nes-
se contexto, a discriminação é evidente e se
materializa em qualificações depreciativas so-
bre essas pessoas. O processo de “inclusão
perversa” (SAWAIA, 2009) que sustenta esses
estereótipos esconde, no plano macropolíti-
co, a lógica excludente e desigual da estru-

234
tura capitalista e, no plano micropolítico, as múltiplas opres-
sões, caracterizadas pelo desejo de morte e de extermínio,
que mantém o status de grupos privilegiados (AMORIM et
al, 2019).

É importante destacar que, apesar da precariedade das suas


condições de vida, há uma heterogeneidade que marca as
PSR, de maneira que elas não devem ser consideradas como
vítimas. Nesse aspecto, Schuch e Gehlen (2012) destacam que
há pessoas, principalmente as que vivem de maneira mais
permanente nas ruas, cujo modo de vida traduz resistência
às diversas formas de captura institucional características da
sociedade e do Estado, recusando o projeto social hegemô-
nico que resulta em exclusão e desumanização.

Para entender o conceito de opressão, partimos do Paradig-


ma da Libertação, principalmente com base em Freire (2018)
e Dussel (1997), para quem a opressão implica na negação
da vida. Freire (2018) associa a opressão à desumanização, de
modo que a opressão pode ser entendida como a negação
do processo de humanização, impedindo os seres humanos
de serem mais. Já para Dussel (1997), opressão é a negação
da vida e da possibilidade de crescer e viver. As condições de
opressão partem de uma estrutura de dominação, caracte-
rística de uma ordem social injusta, que produz miséria, de-
salento e morte (FREIRE, 2018).

As práticas de opressão são baseadas em hierarquização so-


cial, na classificação entre os cidadãos como superiores ou
inferiores, em um processo de diferenciação social naturali-
zado. A esse respeito, Freire (2018) compreende que um dos
mitos que contribuem para manter esse status quo é a crença
de que os oprimidos são inferiores, preguiçosos e desones-
tos, em oposição à superioridade dos opressores. A opressão,
portanto, tem caráter político, ocorrendo sempre entre gru-
pos, de modo que o oprimido é inferiorizado por fazer parte
de um determinado grupo social caracterizado pela identi-
dade coletiva estigmatizada.

Dessa forma, a discriminação é uma expressão das relações


de opressão e uma forma de materialização das relações so-
ciais de dominação (BARATA, 2009), devendo ser entendida

235
para além de uma perspectiva individualista, ou seja, não só
como um tratamento injusto, mas como um processo social
e estrutural que contribui para manter as relações de domi-
nação e as diferenciações sociais. A discriminação é parte do
conceito de estigma, primeiramente definido pelos gregos
para se referir a marcas corporais que distinguiam aqueles
que deveriam ser evitados devido a alguma forma de rebai-
xamento moral. Segundo Goffman (1988), os estigmas são
atributos de certos indivíduos marcadores de descrédito e
depreciação, que prejudicam o reconhecimento e aceitação
social na medida em que em muitos casos os atributos são
vistos como fraqueza ou desvantagem individual. Dessa for-
ma, com base na crença de que o estigmatizado não é pro-
priamente humano, abre-se espaço para várias formas de
discriminação.

Link e Phelan (2011) apresentam o estigma não como atri-


buto do indivíduo, mas como designação socialmente atri-
buída aos indivíduos e grupos sociais, de modo que deve ser
compreendido dentro das relações desiguais de poder. Os
processos de estigmatização das PSR são múltiplos, tendo
em vista que ocorrem tanto pela situação de rua como pela
condição de pobreza e pelos marcadores de raça, gênero e
orientação sexual etc. São comuns experiências de hostilida-
de e atribuição de fracasso, que podem acabar impactando
também na falta de reconhecimento de si mesmo como pes-
soa capaz e digna. Rodrigues (2015) destacou a incorporação
do estigma atribuído, ocasionando um processo de autode-
preciação como resultado da estigmatização, chegando ao
ponto de negação da sua própria humanidade.

A discriminação direta ocorre em virtude do estigma de morar


na rua. Além da própria condição de morar na rua e ocupar
o espaço público, há outros símbolos presentes nessa popu-
lação, tais como a sujeira, o cheiro, as doenças e o transtorno
mental (MOURA JR; XIMENES; SARRIERA, 2013). As pessoas
em situação de rua estão, portanto, cotidianamente expos-
tas à estigmatização e à discriminação, gerando uma maior
limitação de acesso a direitos.

Então, escolhemos apresentar essa temática pelas lentes de


quem vive na pele essa opressão. Assim, este capítulo tem

236
como objetivo descrever a realidade de opres-
são vivenciada pelas pessoas em situação de
rua de Fortaleza (Ceará) com ênfase nas ca-
tegorias estigma e discriminação.

CAMINHOS DA
METODOLOGIA
Esse capítulo está relacionado com uma pes-
quisa maior “Pessoas em situação de rua: pro-
cessos psicossociais relacionados à pobreza,
à estigmatização e à violação de direitos” ,
desenvolvida pelo Núcleo de Psicologia Co-
munitária (NUCOM) da UFC, a qual gerou
uma tese de Doutorado (ESMERALDO FILHO,
2021). No presente trabalho serão apresenta-
dos somente os dados relacionados a opres-
são, discriminação e estigma – sendo a discri-
minação uma das categorias utilizadas para
compreender as práticas de opressão no con-
texto das ruas. Trata-se de uma pesquisa com
delineamento misto, com uso das abordagens
qualitativa e quantitativa.

A pesquisa ocorreu no Centro de Fortaleza,


local com maior quantidade de pessoas em
situação de rua da cidade e onde estão loca-
lizados os principais serviços de atendimen-
to às suas demandas. A etapa quantitativa
foi realizada em 2019, antes do contexto da
pandemia de Covid-19, nos seguintes equipa-
mentos e lugares: Centro Pop - Centro, Cen-
tro Pop - Benfica, Centro de Convivência, Casa
do Povo de Rua e Projeto Corre pra Vida. Já a
etapa qualitativa aconteceu no segundo se-
mestre de 2020 de forma virtual e presencial,
O projeto de pesquisa
acompanhada pela pandemia do Covid-19. foi financiado pelo
edital Chamada
Universal – Chamada
Os participantes da etapa quantitativa, com MCTIC/CNPq Nº

aplicação de um questionário, foram selecio- 28/2018, processo


420426/2018-3,
nados por uma amostragem por conveniên- coordenado pela
Profa. A Dra. Verônica
cia, cujos critérios de inclusão foram: ter no Morais Ximenes.

237
mínimo de 18 anos de idade e ter morado na rua por pelo
menos seis meses. Foram aplicados 285 questionários, dos
quais 236 foram considerados válidos. Dos 236 participantes,
118 (50%) eram usuários do Centro Pop do bairro Centro; 74
(21,4%), do Centro de Convivência; 24 (10,2%), do Centro Pop
do bairro Benfica; 12 (5,1%), do projeto Corre pra Vida e oito
(3,4%), da Casa do Povo de Rua.

Considerando a amostra total, 205 (86,5%) se declararam do


gênero masculino, 26 (11,1%) se declararam do sexo femini-
no, quatro (1,7%) responderam “outros” e um participante não
respondeu. A idade variou de 18 a 66 anos, com média de 38,8
anos (DP=11). Quanto ao tempo de situação de rua, o partici-
pante com maior tempo estava há 42 anos, enquanto o com
menor tempo estava há seis meses em situação de rua.

O instrumento de coleta de informações quantitativas, elabo-


rado pelo grupo de pesquisa do NUCOM-UFC, foi um ques-
tionário com um total de 106 itens composto por vários indi-
cadores de pobreza multidimensional, organizados em cinco
dimensões: Trabalho/Renda, Educação, Saúde, Direitos Hu-
manos e Dimensão Subjetiva. Nesse recorte, destacamos a
Escala de Discriminação Cotidiana (WILLIAMS et al, 1997),
instrumento composto por nove itens, cuja versão traduzida
para o português foi validada por Freitas et al. (2015). Essa
escala permite analisar o grau de discriminação sofrido pelos
participantes, com respostas que variam de 0 a 5, sendo as
seguintes as opções de resposta para cada um dos itens: 0
(Nunca), 1 (Raramente), 2 (Poucas vezes), 3 (Algumas vezes),
4 (Muitas vezes) e 5 (quase sempre).

Freitas et al. (2015), ao validarem essa escala para jovens por-


tugueses, agruparam os itens em dois fatores: tratamento
injusto e rejeição pessoal. O primeiro diz respeito às formas
de tratamento escancaradamente ofensivas, contemplando
os seguintes itens: Você é tratado(a) com menos respeito do
que as outras pessoas?; Você é tratado(a) com menos simpa-
tia do que as outras pessoas?; Em lojas, restaurantes, ou em
outros serviços, você é mais mal atendido(a) do que as outras
pessoas?; As pessoas insultam você?; e As pessoas ameaçam
ou provocam você?. O segundo se refere às ofensas não tão
diretas, ou seja, mais camufladas, composto pelos itens: As

238
pessoas agem como se fossem melhores do que você?; As
pessoas agem como se tivessem medo de você?; As pessoas
agem como se pensassem que você é desonesto?; e As pes-
soas agem como se pensassem que você não é inteligente?.

A análise de confiabilidade da escala resultou no Alfa de


Cronbach de 0,858, revelando boa consistência interna da
escala. Para fins de analisar a validade estrutural da escala,
realizamos a Análise Fatorial Exploratória (AFE), com uso do
método de Componentes Principais e Rotação Oblimin. Os
resultados do Teste Kaiser-Meyer-Olkin [KMO=0,860] e do
Teste de Esfericidade de Bartlett (p=0) apontam que a matriz
de dados está adequada para fazer a análise fatorial. Na aná-
lise, utilizando-se o critério de Kaiser, encontramos dois fato-
res com autovalores maiores do que 1, indicando dois fato-
res para a escala. No entanto, a análise do Gráfico de Cattel
e a Análise Paralela de Horn resultou em apenas um fator, de
modo que seguimos a determinação de estrutura unifatorial
da escala. A variância explicada foi de 47,15%. Apesar desse
resultado diferir dos resultados da pesquisa de Freitas et al.
(2015), que encontrou organização bifatorial, há convergên-
cia com as análises de Correia-Zanini et al. (2020), que utili-
zaram a escala com pessoas em situação de rua e agruparam
as variáveis em apenas um fator. Além disso, conforme Frei-
tas et al. (2015), vários estudos anteriores também identifica-
ram estrutura unifatorial, de modo que há razões teóricas e
psicométricas para mantermos apenas um fator na escala.

As análises dos dados quantitativos foram feitas com o auxí-


lio do software de análises estatísticas SPSS, versão 21. Inicial-
mente realizamos a tabulação dos dados dos questionários
e, após limpeza do banco de dados, fizemos Análises de Va-
riância (ANOVA), Análises de Correlações, Teste t de Student,
teste de Qui-Quadrado e Estatísticas Descritivas.

Na etapa qualitativa, foram entrevistadas seis pessoas, sen-


do quatro homens cisgênero, dos quais três eram negros e
um era branco, e duas mulheres cisgênero negras. Um par-
ticipante se declarou homossexual; os demais, heterossexu-
ais. As entrevistas foram realizadas em 2020, após a pande-
mia de Covid-19. Dessa forma, quatro ocorreram por meio
remoto, com uso da ferramenta “Zoom”, e duas foram pre-

239
senciais, sendo uma no Centro Pop e outra
na quitinete onde residia uma participante. O
acesso aos entrevistados foi possível devido
ao apoio de parceiros, com destaque para o
coordenador do Centro Pop do Centro e in-
tegrantes do Coletivo Arruaça, que indicaram
pessoas com vivência recente da situação de
rua e que tinham disponibilidade para fazer
a entrevista por chamada de vídeo.

A maioria dos participantes estava em pro-


cesso de saída da situação de rua, ou por
terem sido contemplados com moradia po-
pular ou por terem recebido o benefício do
Aluguel Social . Dessa forma, apenas uma
participante estava dormindo efetivamente
na rua. Os nomes atribuídos são fictícios para
preservar o anonimato das pessoas entre-
vistadas. Dessa forma, o instrumento coleta
dos dados qualitativos foram entrevistas se-
miestruturadas, cujo roteiro abordou temas
relacionados à pobreza e suas diferentes di-
mensões, o estigma e a discriminação, à rede
de apoio social disponível e às práticas de
enfrentamento das pessoas participantes.

Para a análise qualitativa, foi utilizada a aná-


lise temática de conteúdo (BARDIN, 2011)
com apoio do software ATLAS ti 5.2. As cate-
Benefício municipal
gorizações foram feitas mediante eleição de concedido a pessoas

Quotations, ou seja, as unidades de sentido


em situação de rua
ou moradores de
que foram agrupadas em subcategorias. áreas de risco, o
qual consiste num
pagamento mensal
no valor de R$

OPRESSÃO E 400,00 durante o


período de um ano.

DISCRIMINAÇÃO: O QUE Consideramos como


processo de saída da

DIZEM AS PESSOAS EM situação de rua, pois


muitos continuam

SITUAÇÃO DE RUA frequentando


espaços públicos

As pessoas em situação de rua pesquisadas para trabalhar ou


acabam voltando a
em Fortaleza terão suas vozes retratadas a morar nas ruas após
o fim do período de
partir de suas respostas ao questionário, es- um ano.

240
pecificamente, nas perguntas da Escala de Discriminação Co-
tidiana e também nas entrevistas individuais, em que relatam
de forma mais aprofundada os seus pensamentos e senti-
mentos. A junção dessas duas formas de escuta compõe a
complexidade dessas situações vivenciadas por esse grupo.

Dos 236 participantes da pesquisa, apenas cinco (2,11%)


responderam nunca ter sofrido nenhum tipo de discrimi-
nação, 230 (97,45% dos respondentes) afirmaram ter sofri-
do pelo menos uma situação de discriminação e um par-
ticipante não respondeu à escala (missing). Esse resultado
confirma a experiência de discriminação por parte da po-
pulação em situação de rua. A média de discriminação co-
tidiana foi 2,7 (DP=1,29), um valor moderado, que corres-
ponde aproximadamente à frequência “algumas vezes”.
Esses dados revelam que a discriminação, enquanto forma
de opressão, está presente no cotidiano das pessoas em
situação de rua, corroborando os resultados do estudo de
Correia-Zanini et al. (2020), cujos participantes também
responderam, em sua maioria, ter sofrido pelo menos um
tipo de discriminação cotidiana.

A discriminação é, portanto, um dos aspectos do proces-


so de exclusão social nos quais vive essa população, sendo
que o estereótipo de morador de rua, sua baixa autoestima
e as roupas sujas contribuem para a percepção de discrimi-
nação (CORREIA-ZANINI et al., 2020). Essa percepção está,
portanto, associada ao sofrimento concreto dessas pessoas,
pela estigmatização e pelo desrespeito por parte do Estado
e da sociedade. Considerações semelhantes a essas foram
destacadas por Souza e Gomes (2019), para quem a maio-
ria das pessoas em situação de rua já experimentou pelo
menos um tipo de discriminação, tanto na rua quanto em
equipamentos públicos, fato que está associado à invisibili-
dade dessa população e à consequente restrição de acesso
a direitos básicos, como moradia, saúde e educação.

A Tabela 01 demonstra as médias obtidas nos itens da Es-


cala de Discriminação Cotidiana. Os três itens com maio-
res médias foram “As pessoas agem como se fossem me-
lhores do que você?”, “As pessoas agem como se tivesse
medo de você?” e “As pessoas agem como se pensassem

241
que você é desonesto?” e implicam em formas mais sutis
de discriminações, relacionadas ao Fator de Rejeição Pes-
soal com média entre 2,97 e 3,36. Já no que diz respeito ao
Fator Tratamento Injusto, que implica em comportamen-
tos de discriminação mais abertamente ofensivos, o item
que apresentou média mais alta foi “Você é tratado(a) com
menos respeito do que as outras pessoas?” (M=2,83), que
trata do desrespeito contra a PSR. No entanto, as maiores
médias nos itens de Rejeição Pessoal não significam que
não haja também discriminação abertamente ofensiva, ten-
do em vista que todos os itens referentes ao Tratamento
Injusto apresentaram médias acima de 2,0.

Tabela 01
Resultados dos itens da Escala de
Discriminação Cotidiana
Itens da Escala de Discriminação Cotidiana M DP Rara Ocasional Frequente
As pessoas insultam você? 2,20 1,84 41,3 27,0 30,8
As pessoas agem como se pensassem que
2,82 1,85 25,3 27,8 45,6
você não é inteligente?
Você é tratado(a) com menos simpatia do
2,62 1,88 31,6 26,6 40,9
que as outras pessoas?
A pessoas agem como se pensassem que
2,97 1,89 26,6 19,8 52,7
você é desonesto?
Você é tratado(a) com menos respeito do
2,83 1,95 29,5 19,8 49,4
que as outras pessoas?
Pessoas ameaçam ou provocam você? 2,00 1,86 44,3 26,6 27,8
As pessoas agem como se fossem
3,36 1,78 19,0 19,4 60,8
melhores do que você?
Em lojas, restaurantes, ou em outros ser-
viços, você é mais mal atendido(a) do que 2,57 2,03 36,3 18,1 44,7
as outras pessoas?
As pessoas agem como se tivessem medo
3,09 1,87 22,8 22,4 54,0
de você?

Legenda: M = média. DP = Desvio Padrão. Rara: nunca ou menos de uma vez


por ano; Ocasional: algumas vezes e algumas vezes por mês; Frequente: pelo
menos uma vez por semana ou quase todos os dias.
Fonte: Elaborado pelos autores, 2021.

Essas médias maiores dos itens referentes à Rejeição Pessoal


podem ser compreendidas devido à característica mais sutil
e velada do preconceito nas sociedades ocidentais. Para Pe-
reira, Torres e Almeida (2003), após a Segunda Guerra Mun-
dial e a Declaração dos Direitos Humanos, as discriminações
se tornaram mais encobertas, sendo mais comum, por exem-
plo, a expressão de sentimentos positivos no endogrupo do
que de sentimentos negativos no exogrupo, ou seja, no gru-

242
po discriminado. Corroborando essa interpretação, França e
Monteiro (2004) fazem uma revisão das formas de racismo,
distinguindo o preconceito flagrante, que seria mais explícito,
do preconceito sutil, que se caracteriza menos pela atitude
direta de discriminação e mais pela não expressão de emo-
ções positivas em relação ao exogrupo.

Chama atenção a alta percentagem de discriminação (60,8%)


que acontece frequentemente no item “As pessoas agem como
se fosse melhores do que você?” remete à hierarquização social
e à percepção dos participantes acerca da inferiorização sub-
jacente à discriminação, de modo que a pessoa em situação
de rua é vista como inferior. Nesse sentido, segundo Dalaqua
(2020, p. 217), “toda opressão impõe e reforça uma certa ima-
gem do sujeito oprimido que o inferioriza perante o opressor,
imagem esta que se reporta a modos coletivos de se imagi-
nar os diferentes grupos sociais”. As ações de discriminação e
violência contra pessoas em situação de rua são justificadas a
partir da representação de que eles são inferiores.

As narrativas dos participantes das entrevistas demonstram


a percepção de discriminação por parte da sociedade em
geral, do desprezo com o qual eles se sentem tratados. Ex-
pressões como “lixo ambulante”, “sem valor” e “desprezível”
foram usadas para se referir à forma como são vistos e trata-
dos. Seguem trechos extraídos da fala dos entrevistados:

[...] eu reconheço que, a partir do momento que a gente


passa a ser um adicto, um dependente químico, a gente vira
um lixo ambulante. Então, temos que ser consciente. Eu sou
consciente disso [...] (Clara).

Ah, cara, eu me sentia… mal né, man, desprezível. Me sen-


tia assim um ser desprezível né, naquela situação, naquela
hora ali. Eu achava que eu não tinha nenhum valor, né, man,
tendeno? Não tinha nenhum valor, moral nem sentimental,
tendeno? Não tinha valor de nada né, man. Pra sociedade a
gente não tem valor, man, tendeno? Pra sociedade todo mo-
rador de rua é mal é perverso, é ladrão, é matador[...] (Oliver)

A ideia de que a sociedade despreza a PSR e a vê como lixo


ambulante demonstra a compreensão, por parte dos en-
trevistados, de que a discriminação sofrida por eles é um
processo social, ou seja, a discriminação, enquanto com-

243
ponente do estigma não deve ser entendida como uma
atitude individual. Nesse sentido, Parker e Aggleton (2001)
chamam a atenção para a necessidade de evitar análises
individualizadas do estigma, que se tornaram comuns após
as análises de Goffman (1988).

O item “As pessoas agem como se tivessem medo de você?”


também apresentou alto valor (M=3,09; DP=1,87). Esse item,
juntamente com o item relacionado à desonestidade, está
provavelmente associado à representação da PSR como cri-
minosa, demonstrando uma naturalização da relação entre
pobreza, delinquência e violência. Ferraz e Machado (2014)
referem-se à criminalização das pessoas pobres e dos que
estão em situação de rua, fato que acaba justificando o tra-
tamento desrespeitoso, bem como ações higienistas.

Os dados apontam para o desrespeito cotidiano contra os


participantes, tendo em vista a intensidade da percepção de
discriminação “Você é tratado(a) com menos respeito do que
as outras pessoas?” (M=2,97; DP=1,89), no qual 52% apresen-
tou discriminação frequente. O desrespeito está associado a
processos de estigmatização, conforme apontam também os
resultados da investigação de Pimenta (2019), para quem as
pessoas em situação de rua afirmam receberem muito mais
tratamentos negativos, como medo, desconfiança, indiferen-
ça e preconceito, do que os tratamentos positivos, como do-
ações e outros atos de solidariedade.

Alguns dos estereótipos que balizam esses processos de estig-


matização foram abordados nos relatos dos/as participantes
entrevistados/as. Foram identificados estereótipos que lhes
são comumente atribuídos, tais como “drogado”, “perigoso”
e “criminoso”. Associada aos estereótipos, tem-se a discrimi-
nação por parte de agentes de segurança, que presumem as
PSR como criminosos ou suspeitos:
[...] era só a questão da polícia mesmo, sabe? Acha que
todo morador de rua de rua é vagabundo. [...] Aí é aque-
la questão, acha que todo mundo que tá na rua é... é um
malfeitor, tá entendendo? [...] É um constrangimento, né?
É coisas inevitáveis, que a gente não pode evitar, essa
questão aí da... da discriminação. Muitos julgam... muitos
julgam pela aparência, né? Tá entendendo? Julga o livro
pela capa e, muitas das vezes, né, num é da forma que

244
eles pensam, tá entendendo? É assim (Alex)

Esse relato revela o estereótipo da PSR como criminosa, perigosa


e inimiga, de modo que o processo estrutural de discriminação
implica na higienização e na limpeza urbana, que, para Mendes,
Ronzani e Paiva (2019), são parte da criminalização da pobreza,
ocorrendo mediante ações repressoras e estando vinculadas à
lógica neoliberal do mercado financeiro e das grandes corpo-
rações. O estereótipo de criminoso contribui, portanto, para le-
gitimar ações de repressão e controle urbano.

Outro item que apresentou discriminação frequente para


quase metade dos participantes (44,7%) foi o item “Em lo-
jas, restaurantes, ou em outros serviços, você é mais mal
atendido(a) do que as outras pessoas?”, resultado coerente
com os estudos de Farias e Diniz (2019). Os estabelecimen-
tos comerciais e shopping centers foram os locais onde os
participantes relataram ter percebido mais discriminação,
sendo recorrente o relato de que foram impedidos de en-
trar, fato que faz com que evitam acessar esses locais por
medo de serem barrados. Estas experiências estiveram pre-
sentes nos relatos de nossos entrevistados:

[...] você entra numa loja, o cara já começa a te seguir. Você


entra num shopping às vezes só pra beber água, o cara já
começa a te seguir, entendeu? Você chega num restauran-
te, na porta de um restaurante, o cara já acha que você vai
incomodar os clientes (Machado)

Em decorrência desses estereótipos, a discriminação implica


em desvantagens sociais, como a dificuldade em conseguir
emprego. Não ter comprovante de residência fixa é motivo
imediato de desconfiança e da perda das vagas de emprego.

[...] às vezes tem um emprego, tem um anúncio de uma


vaga; você chega lá e é uma profissão, é algo que você já
trabalhou, mas como você não tem comprovante de ende-
reço, porque você tá em situação de rua, então a pessoa já
diz que aquela vaga foi preenchida. E às vezes nem foi, mas
é porque ela não vai querer um morador de rua trabalhan-
do na empresa dela, porque ela acha que o cara é ladrão e
que o cara vai roubar, simples assim. (Machado)

245
Os processos de discriminação, nesse caso, são apontados
como decorrentes do fato de viver na rua combinado com
formas de discriminação racial, geracional e de orientação se-
xual. De forma geral, a pobreza e a discriminação impactam
na autorrelação dos indivíduos, que acabam interiorizando a
imagem negativa atribuída pelo restante da sociedade, a qual
os coloca como responsáveis pela sua condição de pobreza
(REGO; PINZANI, 2013).

Na análises estatísticas a partir do Teste t de Student reve-


lou-se que há grupos que são mais vulneráveis às práticas de
discriminação, na medida em que apresentaram maior média
de percepção de discriminação cotidiana, tais como as pes-
soas com mais de 4 anos em situação de rua (t(233) = -2,083,
p< 0,05), as que declararam já ter sofrido algum transtorno
mental (t(230) = -2,577, p< 0,05), as com diagnóstico de HIV
(t(228) = 2,489, p< 0,05), as que pedem dinheiro (t(227) =
2,826 p< 0,05) e as que já sofreram violência da polícia (t(212)
= 2,602, p< 0,05). No caso da pessoa com HIV, chama aten-
ção a altíssima média de discriminação (M = 4,11; DP = 1,27).

Na análise qualitativa, o relato de uma participante ilustra


esse dado, na medida em que ela revelou que a descober-
ta do diagnóstico de HIV, que ocorreu antes da ida para as
ruas, desencadeou uma série de eventos, desde preconceito
e discriminação por parte de amigos e familiares, até consu-
mo de drogas e a chegada à situação de rua:

É... Tá com dez anos, mais ou menos, porque eu desco-


bri que eu tenho AIDS... Descobri que eu tenho AIDS e...
quando eu descobri, eu fiquei altamente louca. É... minha
família ficou diferente, as pessoas que sabiam que eu ti-
nha a doença, se afastaram de mim, entendeu? É... acha-
ram que poderiam pegar a doença. Aí foi onde eu entrei
na adicção. Não me prostituía, mas passava... passei a tra-
ficar. Fui ser aviãozinho. Aí vim parar na rua. Perdi tudo
que eu tinha com as drogas, com a minha... a minha men-
te achando que o mundo ia acabar e as pessoas... é... não
ia querer tá perto de mim [...] (Clara)

Nesse relato, é evidente o estigma do HIV e da AIDS, que


contribuiu para o abandono familiar e para a ida para as ruas.
Apesar de ser atribuída à família a responsabilidade de cui-

246
dar e apoiar familiares doentes, o mais comum é que o estig-
ma e a discriminação contra pessoas com HIV e AIDS ocorra
dentro dos seus próprios lares (PARKER; AGGLETON, 2001).

A análise da relação entre discriminação e a variável sexo não


retornou diferença significativa, o que não quer dizer que ho-
mens e mulheres sofram discriminação na mesma intensida-
de. Provavelmente, devido à pouca quantidade de mulheres
que responderam ao questionário (N=26, 11%), o instrumen-
to pode não ter captado as diferenças de gênero. As análises
qualitativas encontraram indícios de mais intensa opressão
nas mulheres, sendo que, além da maior vulnerabilidade a
outras formas de violência, o preconceito e discriminação de
gênero se revelam na representação da mulher em situação
de rua como “vadia”, “vagabunda” ou “prostituta”.

Quando as mulheres estão em situação de rua, geralmen-


te dizem que é porque é prostituta, é vagabunda e que não
quer nada com a vida. Cansei de escutar esse comentário re-
lacionado às mulheres. Então, é muito complicado negros e
mulheres que tão em situação de rua hoje em dia (Machado)

[...] fui trabalhar lá perto da (igreja) Universal, quando eu tava


com cachorro quente, aí eu fui com meu carrinho. Passei uma
semana lá, trabalhando lá. Aí começou os home lá, me cha-
mar: “bora fazer programa, bora sair mais eu”, em frente da
Universal. Tinha hora que eu não aguentava; sem mentira ne-
nhuma, tinha hora que, ai meu deus do céu, que eu chorava
[...] Depois chegou mais um, depois chegou mais outro... Uma
vez meu marido tava junto, aí eu: “ô Ari, eu acho que eu não
venho mais trabalhar não”. Fui pra casa, fiquei tão triste... Aí
eu vim pra casa, né, porque eu só queria trabalhar, só queria
trabalhar. Eu gostaria muito que me deixassem em paz, por-
que, às vezes eu saio na rua e fica correndo: “bora, bora fazer
um programa”. Teve um que veio querer tipo bater em mim,
eu não queria sair, entendeu (Eva)

Para comparar as diferenças na média de Discriminação Co-


tidiana (DC) em função da raça, realizamos a ANOVA e não
encontramos diferença significativa, de modo que os partici-
pantes que se identificaram como brancos não apresentaram
média de DC diferente dos que se identificaram como pretos
ou pardos (F (4, 229) = 1,039, p<0,388).

No entanto, se a amostra geral incluída nas análises quantita-

247
tivas não conseguiu captar a discriminação racial, a divisão de
grupos por gênero demonstrou diferenças na média de discri-
minação. Nesse aspecto, a estigmatização em função da raça
está presente na população em situação de rua, pois, ao reali-
zarmos análises estatísticas considerando somente a amostra
de participantes homens, foi possível encontrar diferenças sig-
nificativas de percepção de discriminação cotidiana na com-
paração entre o homem branco e o homem negro em situa-
ção de rua. O Teste t de Student t(228)=-2,215; p>0,05) indicou
diferença estatisticamente significativa, demonstrando maior
média de discriminação social em homens negros (M=3,02;
DP= 1,36) em comparação aos homens brancos (M=2,42; DP=
1,26). Isso demonstra que, ainda que o estigma da situação de
rua pareça mais visível, a discriminação racial também deve
ser considerada como uma forma mais intensa de opressão.
Pertencer a mais de um grupo oprimido, como é o caso das
mulheres negras em situação de rua e usuárias de substâncias
psicoativas, implica em efeitos ainda mais devastadores em
termos de discriminação (SKOSIREVA, et al., 2014).

Considerando a perspectiva de Goffman (1988), para quem


o estigma consiste numa marca (ou atributo) individual que
conecta o indivíduo a uma característica estereotipada, resul-
tando em um reconhecimento depreciativo, a questão que
se coloca é: quais são especificamente as características das
pessoas em situação de rua que as tornam alvo da estigma-
tização? A resposta a essa questão implica, primeiramente,
considerar a discriminação como um importante componen-
te do estigma (LINK; PHELAN, 2011), ultrapassando, portan-
to, a relação imediata entre duas pessoas, na medida em que
se insere na estrutura social, política e econômica injusta e
desigual. Nesse sentido, Link e Phelan (2001) preferem usar
a expressão rótulo ao invés de atributo, marca ou condição,
pois a diferenças humanas são cultural e socialmente selecio-
nadas, de modo que não se trata de meramente um atributo
que um indivíduo possui e sim de um produto social.

Dessa forma, morar na rua é uma característica estereotipa-


da à qual se associam diversos outros estigmas. Na concep-
ção de Link e Phelan (2001), um rótulo pode ser associado
a vários estereótipos e essa conexão pode ser mais ou me-
nos forte, de modo que alguns grupos são mais estigma-

248
tizados que outros. Nesse sentido, a combinação das aná-
lises estatísticas e qualitativas indica que o rótulo “pessoa
em situação de rua” se conecta a outros estereótipos, re-
metendo a atributos como raça, gênero, pobreza, crimino-
so/a, drogado/a, orientação sexual, transtorno mental, HIV
e outras doenças. O fato de estar em situação de rua por si
só já implica uma significativa estigmatização, que se torna
ainda mais forte quando combinada com outros atributos
marcadores de opressão. Daí se explica a maior média de
Discriminação Cotidiana de alguns participantes da amos-
tra, tais como homens negros em comparação aos brancos,
soropositivos, pessoas com transtorno mental e outros.

Para Mendes, Ronzani e Paiva (2019, p. 51), “[...] os processos


de marginalização são mais complexos do que a ausência
do lar, e dizem respeito a trajetórias marcadas por opressões
e que resultam em quadros de vulnerabilidade”. Para esses
autores, há múltiplas formas de vulnerabilidades, que estão
relacionadas à gestão da pobreza no Brasil. Tendo em vista
o racismo estrutural, é necessário considerar que a discrimi-
nação contra essas pessoas é também discriminação racial.
Considerando que a estrutura da sociedade está fundada no
privilégio dos sujeitos brancos, os grupos racializados estão
claramente em desvantagem (KILOMBA, 2019). A maior pro-
porção de pessoas pretas e pardas em situação de rua, em
relação às pessoas brancas, é uma expressão do racismo es-
trutural. Nesse aspecto, considerando os participantes que
responderam ao questionário, 83,6% dos participantes se de-
clararam pretos ou pardos.

No entanto, enfatizar questões de raça sem levar em consi-


deração o gênero e a orientação sexual implica em invisibili-
zar, por exemplo, experiências de mulheres negras e pesso-
as LGBTQ+ (KILOMBA, 2019). A interseccionalidade facilita
a visualização sobre esses múltiplos aspectos da experiência
(COLLINS; BILGE, 2020), contribuindo para pensar as diferen-
tes maneiras pelas quais as pessoas em situação de rua vi-
venciam essas opressões e se posicionam no mundo.

É importante, reforçar que o estigma, o preconceito e a discri-


minação não dizem respeito meramente a um processo psi-
cológico individual, mas são resultados de relações de poder e

249
seus consequentes processos ideológicos (PEREIRA; TORRES;
ALMEIDA, 2013). A Escala de Discriminação Cotidiana é um ins-
trumento importante na medida em que capta a percepção de
discriminação; no entanto, nem todas as situações de discri-
minações são necessariamente percebidas pelas pessoas em
situação de rua. Mendes, Ronzani e Paiva (2019), por exemplo,
encontraram relatos de uma pessoa em situação de rua que, a
princípio, afirmou nunca ter sofrido discriminação; no entanto,
ao longo de sua narrativa, trouxe vários exemplos de discrimi-
nação, como a recusa de um pedido de água ou comida ou a
invisibilidade relatada no fato de não ser vista por transeuntes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo almejou descrever a realidade de opressão vi-
venciada pelas pessoas em situação de rua de Fortaleza e
como achados mais proeminentes temos a confirmação da
discriminação como produtora de sofrimento para as pes-
soas em situação de rua; a rejeição pessoal como dimen-
são que se manifesta em hierarquização social; a relação
entre a rua e os estigmas vinculados à criminalidade como
reforçadores da naturalização do desrespeito àqueles que
vivem nas ruas; e o entrelaçamento entre a discriminação
pela condição de rua e outras de cunho estrutural, que to-
davia se mantém encobertas.

Tais informações contribuem para a compreensão da dis-


criminação presente no cotidiano das ruas, de modo que,
além do conhecimento acadêmico, é possível implicar
fundamento de diálogo com a rede de atendimento e de
luta por direitos da população em situação de rua. To-
davia, em função do contexto de pandemia de Covid-19,
bem como pela necessidade de recortes espaço-tempo-
rais, acreditamos que a pesquisa pode ser ampliada para
outras regiões de Fortaleza, bem como para espaços de-
satrelados das políticas de atendimento, de forma a pro-
duzir outros olhares e captar possíveis variações na for-
ma como a discriminação se manifesta.

250
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253
254
15.

O
INTRODUÇÃO
preconceito contra grupos sociais específicos
é um traço cultural antigo e persistente na his- PAULO DE
MARTINO
tória humana. Reveste-se, por vezes, com fun- JANNUZZI
damentos religiosos, políticos e até mesmo
científicos para justificar a discriminação e a
violência contra aqueles que são vistos como
intrusos, inferiores ou diferentes. Pretos, indí-
genas, pessoas com deficiências, migrantes,
homossexuais e pobres foram e continuam
sendo alguns desses grupos sociais invaria-
velmente discriminados ao longo de séculos
em muitas sociedades (SOUZA, 2019).

O Brasil não foge à essa regra, mas a perse-


guição discriminatória parece ter recrudesci-
do muito rapidamente na última década, em-
balada pela onda avassaladora e o anonimato
das redes sociais. Ademais, aqui o fenôme-
no ganhou requintes de crueldade ao somar
ao preconceito estrutural contra esses gru-
pos uma camada de estigmatização por se-
rem públicos-alvo de programas sociais cria-
dos nos anos 2000. Beneficiários do programa
Bolsa Família e cotistas de universidades fede-
rais conhecem bem essa realidade, pela fre-
quência com que passaram a ser retratados
e tratados, cada vez mais explicitamente nos
últimos anos, como aproveitadores e privile-
giados – para citar os adjetivos mais amenos
– por segmentos de classe média-alta e da
elite econômica do país. Comprovam isso os
trabalhos que desnudam o preconceito implí-
cito sobre esses grupos sociais relevados nos

255
editoriais e matérias da grande imprensa ao tratar do Bolsa
Família (LEITE et al, 2019) ou das ações afirmativas para in-
clusão no ensino superior (CAMPOS et al, 2013).

A bem da verdade, não é só no Brasil que isso acontece, mas


se trata de uma compulsão discriminatória que se desenvol-
veu com a introdução de políticas redistributivas na estrutu-
ração do Estado de Bem-Estar Social ao longo do século XX.
Na literatura em Políticas Públicas, as políticas redistributivas
– voltadas a amenizar iniquidades ou desigualdades de opor-
tunidades – são reconhecidamente mais conflituosas que ou-
tras pelo fato de identificarem claramente quem as financia e
quem as usufrui, ou quem “perde” e quem “ganha”. Políticas
distributivas (como educação) ou regulatórias (como meio-
-ambiente) tendem a gozar de maior legitimidade, por aten-
der demandas coletivas mais amplas da sociedade com base
de financiamento mais dispersa (HOWLETT et al, 2013).

Ademais, como bem discute Fraser (2003), ao se procurar pro-


mover a redistribuição socioeconômica por meio de ações
dirigidas a públicos específicos – e não por meio de políticas
universais – os beneficiários passam a ser vistos gradativa-
mente como pessoas incapazes, cada vez mais dependentes
e estigmatizadas pela própria condição meritória que justifi-
cou a criação da política social. Nas suas palavras,

Mesmo que essa abordagem [política redistributiva focali-


zada] vise a solucionar injustiças econômicas, ela deixa in-
tacta a estrutura que gera desvantagens de classe. Assim,
deve fazer realocações superficiais continuamente. O re-
sultado é marcar as classes menos privilegiadas como ine-
rentemente deficientes e insaciáveis, sempre precisando de
mais e mais. Em alguns momentos essa classe pode apare-
cer como privilegiada, recebedora de tratamento especial
e ajuda não merecida. Dessa forma, uma abordagem que
vise a rever as injustiças distributivas pode terminar por
criar injustiças de reconhecimento. (FRASER, 2003, p. 270)

Interpretar, pois, o recrudescimento do preconceito con-


tra pobres, negros e outros grupos sociais no Brasil como
consequência – em alguma medida – da implementação
de políticas sociais redistributivas parece uma boa chave
analítica. Essa é a perspectiva proposta neste texto, ao su-

256
gerir que a sanha persecutória contra pobres, negros e ou-
tros grupos tem relação com o ritmo e a intensidade das
mudanças sociais ensejadas pelos “20 anos gloriosos” das
políticas públicas no país, em particular com programas
de natureza redistributiva.

Como estratégia metodológica, emprega-se aqui indica-


dores de mobilidade social como recurso para captação
dos efeitos integrados de políticas sociais em grupos es-
pecíficos. Vale-se de indicadores comparados de mobili-
dade intrageracional, construídos por meio das edições
de 1982, 1996 e 2014 da Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios (Pnad). Esses levantamentos permitem a
análise da mobilidade social em contextos econômicos,
sociodemográficos e de oferta de políticas públicas muito
distintos, da formação urbano-industrial (anos 1940 aos
1970), passando pelas Décadas Perdidas (1980 a 1990) e
chegando aos anos de “Desenvolvimentismo com Inclu-
são Social” (anos 2000 até 2014).

A interpretação da mobilidade social como dimensão-sín-


tese impactada pelas políticas públicas foi proposta por Es-
ping-Andersen (1996), autor clássico de estudos sobre a
constituição do Estado de Bem-Estar na Europa. Relativizan-
do a chave interpretativa convencional da mobilidade – a
Teoria da Modernização –, ele propõe que, no mundo con-
temporâneo, a reprodução social não pode mais ser anali-
sada apenas a partir das relações entre indivíduo, família e
mercado de trabalho. Afinal, os serviços públicos de creche,
educação, qualificação profissional, seguro-desemprego e
outras transferências governamentais criadas pelo Estado
de Bem-Estar afetam as decisões, as oportunidades e as
possibilidades de inserção de homens e, especialmente, de
mulheres e mães no mercado de trabalho. Para o autor, a
estrutura do Estado de Bem-Estar é uma determinante cha-
ve para o processo de estratificação social e, portanto, dos
padrões de mobilidade social. A natureza, o escopo e a co-
bertura do conjunto de políticas públicas molda as perspec-
tivas de mobilidade ascendente, de imobilidade e do des-
censo social dos vários grupos e segmentos da sociedade
(JANNUZZI; MONTAGNER, 2020).

257
POLÍTICAS PÚBLICAS E A
MOBILIDADE ASCENDENTE NOS
ANOS 2000
Embora intensa ao longo dos anos de formação urbano-in-
dustrial, a mobilidade social experimentada pela maior parte
dos trabalhadores do país foi de curto alcance. Como apontou
Pastore (1979), a mobilidade teria se concentrado na base da
pirâmide social, em que muitos ascenderam pouco e poucos
ascenderam muito, e ficado circunscrita aos grandes centros
urbanos do Centro-Sul, em especial São Paulo, Rio de Janei-
ro e Brasília. Para os volumosos fluxos de trabalhadores de
enxada que chegavam do campo, as oportunidades ocupa-
cionais acabaram se restringindo às ocupações de baixa re-
muneração e qualificação no mercado de trabalho urbano,
na prestação de serviços, nos serviços domésticos e na cons-
trução civil. Ainda assim, pelos efeitos do “Milagre Econômi-
co” do final dos anos 1960, metade – 52% – dos indivíduos
(homens, responsáveis dos domicílios, com idade entre 15 a
74 anos) tiveram trajetória ascendente no mercado de traba-
lho. Somente 4% dos indivíduos estava em posição pior na
escala sócio-ocupacional entre o primeiro emprego e aquele
então ocupado em 1982 (Gráfico 1).

Se o “Milagre Econômico” explica em boa medida a nature-


za da mobilidade social captada em 1982, crédito semelhan-
te, com sinais trocados, deve-se atribuir à “Década Perdida”.
Afinal, as baixas taxas de crescimento econômico e do em-
prego nos anos 1980 – e em boa parte da década seguinte
– significaram a redução das chances dos indivíduos que in-
gressaram na vida ativa nesse período em galgar e manter
postos de trabalho de status igual ou superior àqueles nos
quais primeiramente se inseriram. De fato, em 1996, parce-
la menor – 42% – de indivíduos lograram ascender em sua
trajetória ocupacional e 13% vieram a vivenciar o descenso
sócio-ocupacional. Esse quadro refletia a combinação per-
versa entre, de um lado, a menor expansão do emprego (em
especial, nos setores que tradicionalmente “puxaram” a mo-
bilidade ascendente no passado – como a Construção Civil e
Administração Pública –) e, de outro, as demissões em seto-
res econômicos com postos de trabalho mais qualificados e

258
diversificados, como os bancos comerciais e públicos e a in-
dústria metalmecânica paulista (JANNUZZI, 2002).

Gráfico 1
Indicadores de Mobilidade Social segundo
anos de levantamento
Chefes homens de 15 a 74 anos – Brasil 1982, 1996 e 2014
60.0%
52.0% 52.2%
50.0%
45.9%
44.1%
41.5% 39.7%
40.0%

30.0%

20.0%
12.6%
10.0% 8.1%
3.9%
0%
Ascendente Descendente Imóvel

1982 1996 2014

Fonte: PNADs, 1982,1996 e 2014. Elaboração própria

Frente a essas tendências, o nível de mobilidade ascendente


em 2014 é, em certa medida, surpreendente. Menos pelo fato
de apontar uma reversão do cenário identificado no levanta-
mento anterior, pois seria de se esperar alguma melhora na
mobilidade ascendente pela recuperação do dinamismo do
emprego nos anos 2000. De fato, em 2014, 52% dos indiví-
duos lograram ascender em relação ao primeiro emprego,
mesmo patamar apurado em 1982. Nesse caso, a mobilida-
de não ficou restrita ao Centro-Sul e Brasília, nem circunscri-
ta à base da pirâmide social, mas espraiou-se pelo território
e pelos segmentos médios da estrutura sócio-ocupacional.

Se é fato que essa retomada da mobilidade social pelo país de-


veu-se, em alguma medida, ao dinamismo na criação de pos-
tos de trabalho pelo país, também deve-se reconhecer o papel
das políticas públicas no período, pela ampliação do acesso à
educação básica; pela melhora geral da renda e de condições
de vida da população mais pobre; e pela ampliação de opor-
tunidades de ingresso e permanência no ensino superior.

Entre 2003 e 2014, foram criados e/ou formalizados mais de


20 milhões de empregos segundo os registros do Ministério
de Trabalho – cifra muito superior aos 8 milhões de empre-

259
gos que se registrou nos 17 anos entre 1985 a 2002. A recu-
peração dos investimentos públicos em infraestrutura, assim
como os privados, criou um volume expressivo de vagas na
Construção Civil em todo o país, abrindo oportunidade de
ocupações não apenas de baixa qualificação (como as de
serventes de obra), mas também ocupações de qualificação
média e técnica (como ladrilheiros, mestre de obras e técni-
cos de edificação). O setor foi fortemente influenciado pela
construção de moradias populares e equipamentos públi-
cos – escolas, postos de saúde, centros de assistência social,
praças esportivas etc. –; pela duplicação e recapeamento de
rodovias; e pelas obras de saneamento e pavimentação ur-
bana, com repercussões sobre os segmentos da economia
(CARVALHO, 2018; DWECK, 2019).

A ampliação do escopo e da cobertura das políticas sociais


também repercutiu diretamente no emprego da Construção
Civil (pelo investimento público para construção de equipa-
mentos sociais como já citado), mas também, indiretamente,
no emprego no Comércio, pelos efeitos multiplicadores da
renda transferida por um volume crescente de beneficiários
das transferências da Previdência Social e do Programa Bol-
sa Família. Cidades médias no interior dos estados nordesti-
nos passaram a oferecer emprego formal onde isso era pou-
co frequente, fato viabilizado com abertura de negócios de
pessoas e famílias que haviam migrado no passado e agora
voltavam a sua região de origem com capital suficiente para
um pequeno comércio (QUEIROZ, 2013). Tal movimento de
retorno influenciou as cifras de mobilidade: diretamente por
quem saiu como trabalhador rural e voltou como pequeno
proprietário e indiretamente pelas vagas criadas no comer-
cio e serviços na localidade de destino.

A mobilidade ascendente também se explica pela expansão


do funcionalismo municipal ao longo das últimas décadas,
para atender uma matriz mais diversificada de serviços, de-
correntes da expansão de escopo e da cobertura das Políti-
cas Públicas, em particular a partir de 2004. Esse conjunto de
Políticas levou à forte ampliação de oportunidades em ocu-
pações técnicas e de nível superior em todo o território: as
políticas demandavam volume crescente de professores da
Educação Básica e Infantil, merendeiras e nutricionistas, en-

260
fermeiros, auxiliares de enfermagem, médicos e outros pro-
fissionais da Saúde, assistentes sociais, psicólogos e advoga-
dos nos Serviços Socioassistenciais, etc. Entre 2004 e 2014, o
número de servidores públicos municipais foi de 3,6 milhões
para 5,5 milhões, uma ampliação de 54%. Em municípios de
pequeno e médio porte (até 50 mil habitantes) a expansão
foi ainda maior, especialmente nas Regiões Norte (124%) e
Nordeste (61%) (DAPP, 2018).

Não menos importante foi a ampliação de vagas em universi-


dades – indo de 3,4 milhões para mais de 8 milhões no período
entre 2003 e 2015 – e de escolas técnicas criadas em municí-
pios do interior brasileiro, em um contexto de implantação de
mecanismos de equidade de acesso ao ensino técnico e su-
perior, como as ações afirmativas por raça/cor e para egressos
oriundos de escolas públicas. De certa forma, essa ampliação
da oferta de vagas nas unidades de ensino procurava atender
os efeitos de aumento da demanda por ensino superior, de-
correntes da universalização do ensino fundamental a partir
dos anos 1990 e concretizada em meados da década seguin-
te. Recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do
Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef)
– e depois do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Edu-
cação (Fundeb) – foram fundamentais para a construção de
escolas em regiões mais pobres e rurais, assim como para a
contratação de professores com formação adequada, no que
contribuiu também a institucionalização do Piso Nacional do
Magistério (CARA; PELANDA, 2018).

Ademais, a expansão do Programa Bolsa Família no Brasil


profundo pressionou as prefeituras no provimento do aten-
dimento, transporte escolar e atenção primária à saúde às
crianças de famílias mais pobres. Um volume maior de crian-
ças e adolescentes passou chegar nos anos finais do Ensino
Fundamental no Norte e Nordeste, pressionando a ampliação
de oferta do Ensino Médio e, logo depois, de vagas em En-
sino Superior. O diploma universitário passou a ser uma ex-
pectativa real pela interiorização da oferta pública dos campi
das universidades federais (pelo Programa de Apoio a Planos
de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais -
Reuni), pela criação de mais de 400 unidades vinculadas aos

261
Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, pela
implementação do Programa Universidade para Todos (Prou-
ni) e pela expansão do Fundo de Financiamento Estudantil
(Fies) (CAMELO et al, 2018).

Além disso, a implantação do Exame Nacional do Ensino Mé-


dio (Enem) e do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), soma à
forte ampliação de recursos para Assistência Estudantil nas
universidades federais (bolsas de estudo, alimentação e mora-
dia estudantil), criou possibilidades concretas para que filhos
de famílias mais pobres do semiárido nordestino – pretos e
pardos em sua larga maioria – pudessem disputar vagas de
Ensino Superior em um número muito maior de universida-
des, públicas ou privadas, em um universo mais amplo pelo
país e adquirir as credenciais formativas para ingresso em
empregos de maior remuneração (OLIVEIRA, 2018).

Como consequência dessas ações e políticas, o acesso de ne-


gros ao Ensino Superior aumentou expressivamente no perí-
odo, passando de 441 mil para 1,6 milhão entre 2002 e 2015,
uma ampliação de quase quatro vezes (CAMPELLO, 2017).
Em 2018, os negros já constituíam a maioria dos alunos nas
universidades federais, como revelou a “V Pesquisa Nacional
de Perfil Socioeconômico e Cultural dos(as) graduandos(as)
das IFES”. No conjunto de 1,2 milhão de alunos matricula-
dos nas instituições públicas federais de Ensino Superior em
2018, havia 613 mil pretos e pardos; eram 159 mil em 2003.
Ainda conforme a pesquisa, em 2018, cerca de 70% dos alu-
nos eram provenientes de famílias com renda mensal familiar
per capita de até 1,5 salário-mínimo (ANDIFES, 2019).

Tampouco pode-se deixar de mencionar o papel da oferta de


cursos de qualificação profissional do Programa Nacional de
Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) como me-
canismo de mobilidade sócio-ocupacional para população
mais pobre. Afinal, as vagas do programa chegaram a mobi-
lizar públicos de mais de 4 mil municípios, com forte adesão
de indivíduos inscritos no Cadastro Único de Programa So-
ciais e beneficiários do Bolsa Família. Com todo o aprendi-
zado de mais de trinta anos de erros e acertos no campo da
qualificação, o programa logrou garantir oferta capilarizada
em instituições com capacidade técnica e experiência, como

262
as escolas do Sistema S e dos Institutos Federais, com elenco
de cursos mais aderentes às demandas dos mercados regio-
nais de trabalho (MONTAGNER; MULLER, 2015).

MOBILIDADE SOCIAL DOS


MAIS POBRES E O DESCENSO
DOS MAIS RICOS
Diferentemente da mobilidade social constatada em 1982,
concentrada na base da pirâmide social e motivada pelo
dinamismo da migração rural-urbana e do emprego no
Centro-Sul, a ascensão sócio-ocupacional dos anos 2000
contou com efeitos diretos e indiretos das políticas públi-
cas, em especial nas regiões mais pobres e sobre os gru-
pos sociais historicamente mais vulneráveis. Filhos da clas-
se média-alta e das elites tiveram, pois, que disputar vagas
em universidades e empregos não apenas entre eles, mas
também com outros brasileiros.

Assim, como era de se esperar pelos efeitos das políticas


públicas descritas, os indivíduos cujo primeiro trabalho si-
tuava-se entre as ocupações de estratos sócio-ocupacio-
nais mais baixos tiveram avanço expressivo nos anos 2000:
61% ascenderam ao longo de sua trajetória ocupacional,
cifra mais elevada que os 57% apurados em 1982. Entre
eles, 36 % se mantiveram em postos de trabalho de mes-
mo estrato sócio-ocupacional e apenas 3% tiveram des-
censo. Já entre aqueles que partiram de um patamar mais
elevado, o descenso sócio-ocupacional foi maior que no
período anterior: 34% ocupavam posição ocupacional me-
nos qualificada em 2014, contra 24% em 1982. Entre eles,
a mobilidade ascendente diminuiu – 16 % em 2014 contra
19% em 1982 – e, uma parcela menor conseguiu manter
uma ocupação com igual status.

Assim, enquanto os trabalhadores mais pobres lograram


ascender mais rapidamente nos anos 2000 (em relação
às décadas anteriores), aqueles que iniciaram suas vidas
profissionais em postos de maior qualificação estiveram
mais sujeitos aos riscos de descenso. Essa mudança de
padrão de mobilidade não pode ser entendida sem com-
preensão das políticas sociais.

263
Tabela 1
Indicadores de Mobilidade social intrageracional
segundo estrato sócio-ocupacional
Chefes homens de 15 a 74 anos – Brasil 1982, 1996 e 2014 (%)

Estrato Ascendente Imobilidade Descendente


Sócio-ocupacional 1982 1996 2014 1982 1996 2014 1982 1996 2014
Total 52,0 41,5 52,2 44,1 45,9 39,7 3,9 12,6 8,1
Alto e Médio-alto 18,7 12,8 15,8 57,1 42,5 50,6 24,2 44,7 33,6
Médio 42,0 27,3 33,2 42,3 50,6 48,0 15,7 22,1 18,8
Baixo e Médio-baixo 57,3 49,1 61,0 40,4 44,6 36,4 2,3 6,2 2,6

Fonte: PNADs, 1982,1996 e 2014. Elaboração própria

A análise da mobilidade por raça/cor permite avançar na aná-


lise dos efeitos sinérgicos do conjunto das políticas redistri-
butivas citadas anteriormente, já que entre os pobres os ne-
gros sempre foram maioria. Fato é que, entre 1996 e 2014, a
parcela de pretos com ascensão sócio-ocupacional passou
de 33% para 48%, 15 pontos percentuais maior; entre par-
dos, de 36% para 49%, 13 pontos percentuais mais elevado.
Entre brancos, o aumento da mobilidade foi menos intenso
no período, de 45% para 56%, 11 pontos de diferença. E, di-
ferentemente de pretos e pardos, o patamar de mobilidade
ao final não superou ao de 1982 (Gráfico 2).

A retomada da mobilidade ascendente de pretos e pardos –


mais intensa que a dos brancos e superior ao verificado no
passado – parece apontar que as ações afirmativas e demais
políticas redistributivas que incidiram nas regiões e públicos
mais pobres tiveram um papel determinante nesse processo.
De um lado, houve a criação de empregos formais em áreas
mais pobres, de maior presença de negros; de outro, pela am-
pliação do acesso a políticas sociais redistributivas, aumentou
o contingente de negros pobres chegando ao final do Ensi-
no Médio e nas universidades. Nas instituições federais de
Ensino Superior a participação do conjunto de pardos, pre-
tos e indígenas, com até 1,5 salário mínimo de renda domi-
ciliar per capita, passou de 34% para 43% do total de jovens
de 18 a 24 anos entre 2012 e 2016. No Norte e Nordeste, em
que a larga maioria da população é negra e onde instituições
federais de Ensino Superior expandiram-se fortemente en-
tre 2004 a 2014, a participação desse grupo já atingia 70% e
60%, respectivamente, em 2016 (SENKEVICS; MELLO, 2019).

264
Teria sido possível tal mudança de perfil, sem a política de
cotas de raça/cor e de egressos de escola pública? Sem a
ampliação de vagas de Educação Básica e Ensino Médio
nas periferias e Brasil profundo sem as condicionalidades
do Bolsa Família e os recursos do Fundeb? Sem os em-
pregos criados pelo investimento público na construção
de creches, unidades de saúde, centros de referência da
Assistência Social? Sem as oportunidades criadas com as
vagas de Ensino Técnico e universidades pelo interior do
país, em especial no Norte e Nordeste?

Gráfico 2
Indicadores de Mobilidade social intrageracional
ascendente segundo raça/cor
Chefes homens de 15 a 74 anos – Brasil 1982, 1996 e 2014
90.0
80.0 77.4
70.0
57.0 56.3 59.4
60.0
47.7 48.9
50.0 45.4 44.3 46.0
41.8
40.0 36.4
33.1
30.0
20.0
10.0
0.0
Brancos Pretos Pardos Amarelos

1982 1996 2014

Fonte: PNADs, 1982,1996 e 2014. Elaboração própria

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A intensidade da mobilidade sócio-ocupacional é um aspec-
to pouco destacado nas análises dos impactos das políticas
públicas no país entre 1994 e 2014. Talvez, frente a mudan-
ças sociais tão expressivas e tangíveis como a mitigação da
fome e a redução acentuada da pobreza, da desigualdade e
do trabalho infantil, a ascensão sócio-ocupacional de meta-
de dos brasileiros (em relação ao primeiro emprego) pareça
ser um resultado menos significativo. Não é. Trata-se de uma
reversão do padrão de mobilidade vivenciada anteriormente,
nos anos 1980 e 1990, não por acaso chamadas de “décadas
perdidas”, quando a imobilidade e o descenso sócio-ocupa-
cional haviam aumentado em relação ao período de forma-
ção urbano-industrial do país, dos anos 1940 aos 1970.

265
A reversão do padrão de mobilidade nos anos 2000 – em re-
lação ao observado nas décadas de 1980 e 1990 – está asso-
ciada à combinação virtuosa entre o dinamismo do mercado
de trabalho pelo país e as oportunidades criadas pelas políti-
cas públicas. Diretamente, contribuíram as políticas que am-
pliaram vagas nas escolas, públicas ou não, e as que favore-
ceram o acesso ao Ensino Técnico e Superior, como as ações
afirmativas e as de assistência estudantil. Indiretamente, tam-
bém foram fundamentais para chegada de mais jovens aos
anos finais do Ensino Médio, as políticas de Educação e Saú-
de, assim como de Assistência Social, aí incluído o programa
Bolsa Família. Essas políticas criaram, inclusive, significativas
oportunidades de trabalho pelo país, em locais onde o em-
prego informal no comércio ou nos serviços era um destino
inexorável para maioria de jovens.

Assim, o filho do porteiro conseguiu cursar uma escola técnica;


a filha da empregada doméstica entrou na universidade pú-
blica; o jovem pobre, preto e da periferia conseguir ser o pri-
meiro de sua família a ter um diploma de engenheiro, médico
ou advogado. O jovem branco de classe média-alta, estudan-
te de escola privada dos 4 aos 17 anos, passou a ter mais difi-
culdade de entrar na universidade pública e nos empregos de
status e remuneração que seus pais haviam logrado duas ou
três décadas antes. “Malditas políticas de cotas e esse Bolsa-
-Preguiça!”, devem ter pensado alguns deles. “Pagamos a am-
pliação de vagas nas universidades, e quem usufrui são esses
aproveitadores...”, devem ter comentado seus pais.

Fato é que políticas universais e programas de natureza re-


distributiva criaram oportunidades para que parcelas sig-
nificativas de pobres, negros e outros grupos sociais histo-
ricamente vulneráveis pudessem mover-se de forma mais
virtuosa pela estrutura social, logrando um nível de mobi-
lidade social ascendente comparativamente mais elevado.
Em contrapartida, filhos da classe média-alta e das elites
passaram a estar mais sujeitos ao risco da imobilidade ou
do descenso sócio-ocupacional. Ao contrário de outros paí-
ses, em que esses processos levaram duas ou mais gerações
para se revelar, no Brasil essas mudanças se concretizaram
em pouco mais de dez anos, em uma mesma geração. Mu-
danças muito intensas e muito rápidas.

266
O preconceito estrutural da sociedade brasileira, latente e
razoavelmente contido até final dos anos 2000, escapou da
lâmpada, do armário, da Caixa de Pandora e ganhou vida nas
mídias sociais e no cotidiano do país. Pobres, pretos e peri-
féricos passaram a ser constrangidos com maior frequência,
sem qualquer escrúpulo e, pior, com menor acesso a políti-
cas sociais protetivas.

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quisa, São Paulo, 49 (17): p. 184-208, abr/jun, 2019.

269
270
SOBRE OS AUTORES
ADOLFO PIZZINATO - Professor Adjunto do Departamen-
to de Psicologia do Desenvolvimento e da Personalidade da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: adolfopi-
zzinato@hotmail.com

ANDRÉA FERREIRA LIMA ESMERALDO - Mestra em Psi-


cologia pela Universidade Federal do Ceará (2019) e Dou-
toranda em Psicologia na Universidade Federal do Ceará.
Servidora de um Centro de Referência na Assistência Socal
- Secretaria de Assistência Social e Cidadania e psicóloga
da Prefeitura Municipal de Maracanaú. Tem experiência na
área de Psicologia, atuando principalmente nos seguintes
temas: assistência social, psicologia social, mulheres, pesso-
as em situação de rua, criança e adolescente e SUAS. Email:
andreaesmeraldopsi@gmail.com

ÂNGELO BRANDELLI COSTA - Professor do Programa de


Pós-Graduação em Psicologia, do Programa de Pós-Gradu-
ação em Ciências Sociais, e do Programa de Pós-graduação
em Ciências Medicina e Ciências da Saúde da PUC-RS. E-mail:
angelo.costa@pucrs.br

ARIADNE RIOS – Mestra em Sociobiodiversidade e Tecnolo-


gias Sustentáveis pela Universidade da Integração Internacio-
nal da Lusofonia Afrobrasileira (UNILAB) do Estado do CEA-
RÁ. Especialista em Políticas Públicas pela UNILAB. Graduada
em Administração de Empresas. Membro da Equipe de Coor-
denação do Projeto de Extensão Mulheres Negras Resistem:
Processo Formativo Teórico-político para Mulheres Negras.
Integrante da Rede de Mulheres Negras do Ceará. Colabora-
dora da Secretaria de Cultura (SECULT) do Estado do Ceará.
E-mail: ariadneriosoliveira@gmail.com

271
CARLOS EDUARDO ESMERALDO FILHO - Doutor em Psico-
logia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Professor
do Centro Universitário Unifanor Wyden, membro do Nú-
cleo de Psicologia Comunitária (NUCOM) da UFC. Estuda
temas relacionados a Psicologia Comunitária, Pessoas em
situação de rua, Processos Psicossociais da Pobreza, Hu-
milhação, Vergonha, Estigma, Preconceito e Discriminação.
Email: cefilho@gmail.com

CAROLINA MARIA COSTA BERNARDO – Pedagoga. Profes-


sora do magistério superior da Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira - UNILAB. Coorde-
nadora do Curso de Bacharelado em Humanidades (BHU).
Email: carolcostabernardo@unilab.edu.br

CAROLINE FARIAS LEAL MENDONÇA - Antropóloga. Profes-


sora do Bacharelado em Antropologia na Unilab. Coordenado-
ra do Grupo de Estudos com Povos Indígenas e Comunidades
Tradicionais (GEPI/Unilab). E-mail: carolineleal@unilab.edu.br

CLAUDETE DA SILVA BARBOSA, TRUKÁ - Professora Truká


(PE). Licenciada em Licenciatura Intercultural Indígena (UFPE)
e mestranda em Antropologia pelo Programa Associado de
Pós-Graduação em Antropologia (UFC-Unilab). E-mail:clau-
diatruka@hotmail.com

DAGUALBERTO BARBOZA DA SILVA - Graduado em Psico-


logia e mestrando em Psicologia Programa de Pós-Gradua-
ção em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Integrante do VIESES: Grupo de Pesquisas e Intervenções so-
bre Violência, Exclusão Social e Subjetivação. Email: dalgo-
barboza92@gmail.com

DAMIÃO SOARES DE ALMEIDA-SEGUNDO - Graduado em


direito pela Universidade de Fortaleza, mestre em psicologia
pela Universidade Federal do Ceará e doutorando em psico-
logia pela Univerisdade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail:
damiao_soares@hotmail.com

DEBORAH CHRISTINA ANTUNES - Professora Associada do


Instituto de Cultura e Arte (ICA) da Universidade Federal do
Ceará- UFC. Professora Permanente do Programa de Pós-
-Graduação em Psicologia, linha “Sujeito e cultura na socie-

272
dade contemporânea” - UFC. Graduada em Psicologia pela
Unesp/Bauru, mestre em Educação e doutora em Filosofia
pela UFSCar. Pós-doutora em Filosofia pela UFABC. Coor-
denadora do Grupo de Pesquisa Nexos/NE (CPNq). E-mail:
deborahantunes@ufc.br

FELIPE VILANOVA - Psicólogo pela Universidade Federal do


Rio Grande do Sul, Mestre e doutorando em Psicologia So-
cial pela PUC-RS. E-mail: felipevilanova2@gmail.com

FERNANDO SANTANA DE PAIVA - Doutor em Psicologia pela


Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor de
graduação e pós-graduação no departamento de Psicologia
da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Coordenador
e Pesquisador do Núcleo de Pesquisa sobre Sujeitos, Políti-
ca e Direitos Humanos (NUPSID). e-mail: fernandosantana.
pava@yahoo.com.br
FRANCISCO GLEIDISON CORDEIRO DE LIMA, KARÃO/JA-
GUARIBARAS - Liderança do povo Karão Jaguaribara (CE).
Bacharel em Humanidades Interdisciplinar e graduando em
Antropologia (Unilab). Membro do Grupo de Estudos com
Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais (GEPI/Unilab).
E-mail: gleidisonkarao@gmail.com

GEÍSA MATTOS - Professora do Programa de Pós-Graduação


em Sociologia, Departamento de Ciências Sociais, da Uni-
versidade Federal do Ceará. Sou grata às contribuições da
Professora Ana Ramos-Zayas, da Universidade de Yale, du-
rante estágio de pesquisa no Center for the Study of Race,
Indigeneity, and Transnational Migration, de dezembro 2019
a março de 2020. Agradeço à Universidade de Yale pelo su-
porte financeiro para realizar o estágio e também ao projeto
Capes-Funcap 8881.165965/2018-01. E-mail: geisamattosli-
ma@gmail.com

GRAZIELLA SOUZA DOS SANTOS - Professora adjunta do


Centro de Ciências de Educação da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) Licenciada em Pedagogia pela Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestra em
Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação
da UFRGS e doutora pelo mesmo programa, tendo realiza-
do doutorado sanduíche na University of Wisconsin/Madison

273
(Estados Unidos). Email: graziella.santos@ufsc.br

IANA GOMES DE LIMA - Professora adjunta da Faculdade de


Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e
professora colaboradora do mestrado no Programa de Pós-
-Graduação em Educação da Univille. Graduada em Pedago-
gia pela UFRGS, mestra em Educação pelo Programa de Pós-
-Graduação em Educação da UFRGS e doutora pelo mesmo
programa, tendo realizado doutorado sanduíche na Univer-
sity of Bristol (Inglaterra) e pós-doutorado pela Universidade
Federal de Pelotas. Email: ianagomesdelima@gmail.com

IZABEL ACCIOLY - Mestra em Antropologia Social pela Uni-


versidade Federal de São Carlos. Ativista do movimento fe-
minista negro. E-mail: isabelaccioly@gmail.com

JAMES FERREIRA MOURA JÚNIOR - Professor Adjunto do


Instituto de Humanidades da Universidade da Integração In-
ternacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Bolsista PQ - Nível 2
CNPq e Professor do Programa de Pós-Graduação em Psico-
logia da Universidade Federal do Ceará. E-mail: jamesferrei-
rajr@gmail.com

JANAINA CAMPOS LOBO - Doutora em Antropologia Social


pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Professora adjunta do Instituto de Humanidades da Univer-
sidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasi-
leira (UNILAB), no Ceará. Pesquisadora visitante do Depar-
tamento de Ciência Política da The New School for Social
Research (NSSR). Atualmente, dedica-se a pesquisas sobre
neoliberalismo, gênero e direitos humanos. Email: janaina.
lobo@unilab.edu.br

JOÃO GABRIEL MARACCI-CARDOSO - Doutorando em Psi-


cologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universida-
de Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduado em Psi-
cologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS). Trabalha na área da Psicologia Social com as
temáticas de gênero, sexualidade e política. Email: jmaracci-
cardoso@gmail.com

JOÃO PAULO PEREIRA BARROS - Professor do Departamen-

274
to de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psi-
cologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Coorde-
nador do VIESES: Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre
Violência, Exclusão Social e Subjetivação. Bolsista de Pro-
dutividade em Pesquisa Nível 2 do CNPq. Email: joaopaulo-
barros@ufc.br

LUIS FERNANDO DE SOUZA BENICIO - Psicólogo. Mestre em


Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutorando em Psi-
cologia pelo mesmo programa. Integrante do VIESES: Grupo
de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social
e Subjetivação. Email: luisf.benicio@gmail.com

MARIANA DE ALMEIDA PINTO - Doutoranda em Psicologia


pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pesquisa-
dora do Núcleo de Pesquisa sobre Sujeitos, Política e Direitos
Humanos (NUPSID). E-mail: dap.mariana@gmail.com

MONA LISA DA SILVA - Doutoranda em Antropologia pelo


Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Univer-
sidade Federal da Bahia (UFBA). Mestra em Antropologia
pelo Programa Associado de Pós-Graduação em Antropo-
logia Social UFC-UNILAB. Graduada no curso de Bacharela-
do Interdisciplinar em Humanidades (Unilab). É membro da
equipe de coordenação do projeto de extensão Mulheres
Negras Resistem: processo formativo teórico-político para
mulheres negras. Atua principalmente nos seguintes temas:
Antropologia das populações Afro-brasileiras, com ênfase
nas Interseccionalidades de gênero, raça e classe. E- mail:
monalisa182@gmail.com.

PAULO DE MARTINO JANNUZZI - Professor da Escola Nacio-


nal de Ciências Estatísticas do IBGE. É mestre em Administra-
ção Pública/FGV e Doutor em Demografia/Unicamp. É pes-
quisador CNPq no projeto “Informação estatística e políticas
públicas”. Foi Secretário de Avaliação e Gestão da Informa-
ção do Ministério de Desenvolvimento Social (2011-2016),
analista e assessor técnico da Fundação Seade. E-mail: paulo.
jannuzzi@ibge.gov.br

RENATO SANTANA - Jornalista. Membro do Grupo de Estu-


dos de Literatura, Tradução e suas Teorias (GELTTE/UFC). Foi

275
editor do jornal Porantin e assessor de comunicação do Con-
selho Indigenista Missionário (CIMI-DF). E-mail: renato.rena-
to25@gmail.com

RICARDO BOKLIS GOLASPAN - Professor substituto do Ins-


tituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universida-
de Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” e estagiário de
Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educa-
ção da Universidade Federal de Pelotas. Graduado em Peda-
gogia pela Unisinos e em Comunicação Social pela UFRGS.
Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação da UFRGS e doutor pelo mesmo programa, tendo
realizado doutorado sanduíche na University of Wisconsin-
-Madison (EUA). Email: cacogol@gmail.com

ROCHELLY RODRIGUES HOLANDA - Doutoranda (Bolsista


FUNCAP- CE) e Mestre em Psicologia (Bolsista FUNCAP- CE)
pelo Programa de Pós- Graduação em Psicologia pela Uni-
versidade Federal do Ceará - UFC. Psicóloga, graduada em
Psicologia pela Universidade Federal do Ceará- Campus So-
bral (Bolsa PIBIC/CNPq - 2016-2017). Pesquisadora do Gru-
po de Pesquisa Nexos: Teoria Crítica e Pesquisa Interdiscipli-
nar - Nordeste. E-mail: rchlholanda@gmail.com

RHUAN CARLOS DOS SANTOS LOPES - Arqueólogo e Antro-


pólogo. Professor do Bacharelado em Antropologia na Unilab
e do Programa Associado de Pós-Graduação em Antropo-
logia (UFC-Unilab). Coordenador do Grupo de Estudos com
Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais (GEPI/Unilab).
E-mail: rhuanlopes@unilab.edu.br

VERA RODRIGUES - Doutora em antropologia social


(USP/2012).Professora no Programa Associado de Pós-gra-
duação em Antropologia UFC-Unilab. Professora no semi-
nário especializado “O Brasil contemporâneo sob a ótica de
pensadores(as) negros(as): o que temos a dizer sobre demo-
cracia, fascismo e racismo” promovido Certificado em Estu-
dios Afrolatinoamericanos/Universidade de Harvard. Coorde-
nadora do projeto de extensão “Mulheres Negras Resistem:
processo formativo teórico-político para mulheres negras”.
Membro do Comitê de antropólogos(as) negros(as) da ABA
- Associação Brasileira de Antropologia. Diretora de Áreas

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Acadêmicas da ABPN - Associação Brasileira de Pesquisado-
res Negros(as). E- mail: vera.rodrigues@unilab.edu.br

VERÔNICA MORAIS XIMENES - Doutora em Psicologia pela


Universidade de Barcelona e- Pós-Doutorado pela Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul. Professora Titular do Pro-
grama de Pós-graduação em Psicologia e do Departamento
de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Co-
ordenadora do Núcleo de Psicologia Comunitária (NUCOM)
da UFC. Bolsista PQ - 1D CNPq. Atua e desenvolve pesquisas
relacionadas às temáticas: Psicologia Comunitária; Políticas
públicas de Assistência Social; Estudos sobre pessoas em si-
tuação de rua; Contexto rural; Implicações psicossociais da
pobreza com ênfase nas categorias: fatalismo, humilhação,
vergonha, discriminação, apoio social e outras. E-mail: vemo-
rais@yahoo.com.br

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