Você está na página 1de 324

colecão Sul

Associação Brasileira
das Editoras Universitárias

Segunda Edição

Sociabilidades, justiças
e violências: práticas
e representações culturais
no Cone Sul (séculos XIX e XX)
Sandra Jatahy Pesavento

Graduada em História pela Universidade Fe


deral do Rio Grande do Sul - UFRGS (1969),
mestre em História pela Universidade Católi
ca do Rio Grande do Sul (1978), e doutora em
História Econômica pela Universidade de São
Paulo (1987). Realizou três pós-doutoramen-
tos em Paris, França. Foi professora convida
da em várias instituições estrangeiras e, ainda,
professora titular no Departamento de Histó
ria e no Programa de Pós-Graduação em Pla
nejamento Urbano e Regional (PROPUR) da
UFRGS. Atuou na área de História, com
ênfase em História do Brasil, trabalhando
com os seguintes temas: história cultural,
história cultural urbana, imaginário e
representações, história e literatura, patrimô
nio e memória. Foi pesquisadora IAdo CNPq e
coordenadora nacional do GT em História
Cultural da ANPUH.

I l'..i , 1.1 v.V, I '/ J I

Doutora em História e Civilização pelaÉcole


de Hautes Études en Sciences Sociales de Pa
ris, França. Professora da Universidad Nacio
nal General Sarmiento, Argentina. Pesquisa
dora do Conicet e autora de Sociabilidad en
Buenos Aires: hombres, honor y cafés, 1862-
1910 {2000), Honory duelo en IaArgentina mo
derna (2007) e coautora em Violências, delitos
yjusticiais en IaArgentina (2002).
Sociabilidades, justiças e violências:
práticas e representações culturais no Cone Sul
(séculos XIX e XX)
UNIVERSIDADE
l==^j FEDERAL DO RIO
GRANDE DO SUL

Reitor
Carlos Alexandre Netto

Vice-Reitor e Pró-Reitor
de Coordenação Acadêmica
Rui Vicente Oppermann

EDITORA DA UFRGS

Diretora
Sara Viola Rodrigues
Conselho Editorial
Alexandre Ricardo dos Santos
Carlos Alberto Steil
Lavinia Schüler Faccini
Mara Cristina de Matos Rodrigues
Maria do Rocio Fontoura Teixeira
Rejane Maria Ribeiro Teixeira
Rosa Nívea Pedroso
Sérgio Antonio Carlos
Sérgio Schneider
Susana Cardoso
Valéria N. Oliveira Monaretto
Sara ViolaRodrigues, presidente
Sociabilidades, justiças e violências:
práticas e representações culturais no Cone Sul
(séculos XIX e XX)

Sandra Jatahy Pesavento


Sandra Gayol
Organizadoras

U niversidad N acbnal UFRGS


o de General Sarmtento EDITORA
© dos autores
Ia edição: 2008

Direitos reservados desta edição:


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Capa, revisão e editoração: Amarílis Barcelos


Finalização da capa: Carla M. Luzzatto
Editoração adicional: Luciane Delani

8678 Sociabilidades, justiças e violências: práticas e representações culturais no


Cone Sul (séculos XIX e XX) / organizado por Sandra Jatahy Pesavento
e Sandra GayoL - 2. ed. - Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2013,
320 p.: il.; 16x23cm.
Obra realizada com o apoioda Universidad Nacionalde GeneralSarmiento.
Obrabilíngüe com textos em Português e Espanhol.
Inclui figuras, imagens e tabelas.
Inclui referências.

1. História. 2. Violência - Cone Sul. 3. Violência - Criminalidade - Crime


- América do Sul. 4. Violência - América Latina. 5. Justiça - Violência.
6. Sociologia da cultura. 7. Sociologia da conflitualidade. 8. Conflito social.
9. Controle social. I. Pesavento, Sandra Jatahy. II. Gayol, Sandra.
CDU 303.6

CIP-Brasil. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação.


( Jaqueline Trombin- Bibliotecária responsável CRB10/979)

ISBN 978-85-386-0203-3
Sumário

Fronteiras da ordem, limites da desordem:


violência e sensibilidades no sul do Brasil, final do século XIX
Sandra Jatahy Pesavento 7

Recordações da casa dos mortos: projetos carcerários e sociabilidades


prisionais (a Casa de Correção de Porto Alegre no século XIX)
Paulo Roberto Staudt Moreira 61

Vigiando a vizinhança: policiais, classes populares e violência


no sul do Brasil (1896-1929)
Cláudia Mauch 95

Exigir ydar satisfacción: un privilegio de Ias elites finiseculares


Sandra Gayol 115
Entre Ia ley dei más fuerte y Ia fuerza deIa ley.
Las distintas respuestas frente a los insultos, Buenos Aires 1750-1810
Maria Alejandra Fernández 155
La sanción dei código penal enIa provincia deBuenos Aires:
^Un antes yun después en Ia administración judicial?
Gisela Sedeillan 185
^Escuela regeneradora u oscuro depósito?
La Colonia de Menores Varones de Marcos Paz, Buenos Aires, 1905-1919
Maria Carolina Zapiola 213

"Memórias de um velho hospício":


práticas de exclusão versus histórias de vidas - narrativas em conflito
Nádia Maria Weber Santos 241

As fronteiras entre o crime e a loucura e a criação


do Manicômio Judiciário do Rio Grande do Sul
Lizete Oliveira Kummer 275

Imprensa e ficção: a espetacularização da violência


nos jornais de Florianópolis (1908-1930)
Vanderlei Machado 299

Os autores 315
r-iv '!, •?;

Fronteiras da ordem,
limites da desordem:
violência e sensibilidades
no sul do Brasil, final
do século XIX
M
SANDRA JATAHY PESAVENTO

violência, o crime e os "desde baixo" parecem estar associa


dos, e não precisamos recorrer ao filme de Ettore Scola, Feios, su
jos e malvados, para saber que, tradicionalmente, é a partir dessas
camadas sociais que se associam os delitos, as práticas condenáveis,
as diferentes formas de contravenção e, sobretudo, a violência.
O estudo das práticas comportamentais de tais atores não
pode, no entanto, ser avaliado de maneira isolada daquele das eli
tes, por terem elas uma maneira própriade pensar, de seconduzir,
de seportar e de defender, por palavras e obras, o seu controle so
bre ocorpo social. Às elites compete - por definição, uma vez que
são dirigentes e interessadas na manutenção de uma ordem dada
- regrar o mundo, o social, os indivíduos. Damesma forma, têma
incumbência de criar normas de convivência harmônica, estabe-
lecer interdições para que a violência e o crime não ocorram, coibindo
comportamentos indesejáveis. As elites, por assim dizer, são criadoras e
executoras de leis.

Estamos, pois, diante de uma das facetas pelas quais os homens


constróem a realidade a partir de parâmetros imaginários de sentido,
sendo a formulação das leis uma de suas formas de ação. Portanto, a
justiça e o direito, que tratam das leis e de sua aplicação, implicam em
instituição de saberes e práticas que, sempre historicizados, participam
desse processo de atribuições de significado ao mundo. Definindo o que
é permitido e o que é proibido, marcando os parâmetros da moral e
do bem viver, o comportamento condenável e o ajustado, a norma e
a transgressão, as leis e, por extensão, o delito, conformamos o social
segundo representações paradigmáticas. Analisando as ocorrências da
transgressão, temos a noção do que seja a norma desejada. Mas esse é
um território de fronteira, onde os mundos da ordem e da desordem,
da violência e da sua contenção geram a expansão da própria violência,
embora ela possa se manifestar sob outras formas.
Por outro lado, no léxico urbano que preside o delineamento do
mundo da transgressão nas cidades, é possível sempre surpreender prá
ticas e atores excluídos porque o vocabulário que os enuncia, tal como a
ação também condenada que se quer coibir, nos induzem a resgatar ou
tras normas, valores, necessidades e procedimentos que ocorrem com
tanta freqüência quanto aquelas desejáveis no mundo da ordem.
É ainda essa linguagem que enuncia, delimita e classifica a inclu
são e a exclusão, que induz o olhar e pauta o comportamento. Tais re
presentações sociais, expressas pelo discurso que dá conta de espaços,
de atores e de práticas do dito mundo da transgressão, não são frutos
apenas dos agentes de controle da urbe ou dos gestores da cidade. Sem
dúvida há umalinguagem culta, técnica, de elite, mas que é intercambiá-
vel com a dos populares. Os populares reconhecem, a priorU quem são
os cidadãos, mas seus conceitos do que seja a ordem são diferentes. Para
os cidadãos, o mundo dos excluídos é pura desordem, não vendo nele
uma lógica de comportamento e de valores.
Entretanto, tal como não é possível pensar em limites ou realida
des isoladas entre a chamada cultura popular e a erudita, também vê-se

Sociabilidades, justiças e violências:...


como são tênues as fronteiras entre o mundo da ordem e o da contra-
ordem, da cidade dos cidadãos e da cidade dos excluídos. Uns podem
passar ao território do outro, e mesmo confundirem-se nas ações que a
lei cidadã condena.

Tentemos analisar essas fronteiras móveis na cidade de Porto Ale


gre, capital do Estado do Rio Grande do Sul, o mais meridional do Bra
sil, naquele final do século XIX, onde se viviam os primeiros anos de
uma república recém-proclamada.
Vamos em busca dos chamados "turbulentos", agentes da contra
venção, predispostos à violência, assim como ver de que forma elessão
construídos como personagens da contramão da vida, pelo olhar dos
cidadãos. Buscaremos também, em um caso e outro - cidadãos e turbu
lentos - divisar seus valores distintos ou partilhados e seus códigos de
proceder. Nesse sentido, se surpreendem práticas, saberes e acertos que
legitimam - ou não - a coexistência social.
A passagem do século XIX para o século XXé particularmenterica
para um estudo sobre a violência, a exclusão social, a concepção da justi
ça e a construção dos valores que dão sentido à existência, traduzindo o
olhar, a percepção e a avaliação qualificada do mundo. No casoda cidade,
são atribuídos sentidos aos espaços, aos comportamentos e aos persona
gens da cenaurbana. Podemos aqui surpreender uma forma de captação
do mundo atravésda sensibilidade, onde as emoções resultantes das per
cepções diante da realidade marcam atitudes de repulsão, de atração, de
desejo e de enfrentamento. Mas, da experiência dos sentidos, os homens
fazem traduções mentais, recorrendo ao arquivo de memória de cadaum,
à bagagem de experiências pessoais e também ao estoque de saberes ad
quiridos e transmitidos socialmente em cada contexto histórico.
Nessa medida, asperguntas ou questões quedirigimos a esse recor
tetemporal eespecífico - a cidade dePorto Alegre dofim doséculo XIX -
giram em torno dasfronteiras entrea ordem e a desordem, muito tênues
e móveis, por vezes, e erigidas como barreiras intransponíveis por outras.
Cabe ter em conta, na problemática enunciada, a força das pala
vras, emseupodernominativo e simbólico de atribuir valor à realidade
e induzir comportamentos, permitindo reconstruções sociais e imagi-

Fronteiras da ordem, limites da desordem.,


nárias do mundo, a produzir diferentes versões sobre os fatos aconteci
dos. Em outras palavras, esse ponto de vista permite que se construam
diferentes narrativas sobre o que teve lugar um dia no passado. Por ve
zes, é possível mesmo surpreender a estetização do real pela introdução
de ingredientes íiccionais e literários nos discursos, de molde a falar do
acontecido de outra forma, para melhor expressá-lo.
Essassão questões que, de certa forma, se apresentam como imiver-
sais dentro de um tema também universal: a violência e o conflito dentro
de uma sociedade que se urbaniza e ritualiza e que constrói seus próprios
imaginários, atribuindo significados à realidade; mas há,semdúvida, espe-
cificidades brasileiras, sulinas e locais queimprimem contornos específicos.
Há um Brasil que nesse momento transita de uma monarquia
para uma república, diante de um processo de desescravização que se
dá passo-a-passo com a entrada no país da massa de imigrantes estran
geiros; há uma grupo social onde os valores de uma antiga sociedade,
personificada pelos barões da terra e pelos marqueses da guerra, fazem
frente aos usos e novosprincípios norteadores da vida, trazidos por uma
burguesia emergente, tanto rural como citadina.
Há, sobretudo,heranças não-resolvidas de um passado, como o acesso
à terra e ao trabalho, tal como o estigmada escravidão que acompanha, pa
radoxalmente, a inserção de negros e de mestiços em um paísmultirracial.
No sul, uma elite republicana e positivista assume poder dirigente
na nova república que se instala. Constituída de jovenscultos, radicaisnas
suas posições e embalados pelas idéias de progresso e de modernização,
essa elite sonha com Paris, com o Rio de Janeiro e com Buenos Aires,
mas tem seus pés ancorados à beira do Guaíba, na capital rio-grandense
que é Porto Alegre. São todos bacharéis, advogados, médicos, engenhei
ros, filhos de proprietários rurais, de origem luso-brasileira, que se unem
aos empresários do comércio e da indústria, vindos do mundo colonial-
-imigrante, de origem predominantemente alemã e itaUana. São os novos
donos do Rio Grande e a partir da capital se dedicam a racionalizar a
produção, a disciplinar a sociedade e a criar uma universidade.
Porto Alegre era sede de um governo que tinha no positivismo
sua matriz de inspiração política e administrativa. A elite dirigente de

10 Sociabilidades, justiçase violências:...


jovens bacharéis pretendia realizar um programa de racionalização da
produção para atingir rápido progresso econômico conjugado à conso
lidação e à manutenção de uma ordem social dada. Uma das premissas
paraesse programa era regulamentar, disciplinar, controlar, vigiar, punir
e excluir os personagens da contramão da ordem, as condutas indesejá
veis e os espaços malditos da cidade. Em outras palavras, estabelecer as
fronteiras entre os mundos da ordem e da desordem, definindo, por pa
lavras e atos, as delimitações entre as esferas da cidadania e da exclusão.
Mas essa é, verdadeiramente, uma sociedade muito violenta, re-
cém-saída da tristemente célebre "revolução da degola" - a Revolução
Federalista, de 1893 a 1895 -, onde práticas bárbaras tinham se genera
lizado. Uma sociedade que herdara do passado uma violência bem-di-
ftindida de modos de proceder, que em parte se deviam à posição fron
teiriça do Rio Grande a lutar no passado contra os castelhanos do "outro
lado", em guerras sucessivas que puseram em destaque de positividade
as chamadas "virtudes militares". Para além da guerra de campanha,
predominava entre os indivíduos o acerto de contas pessoal entre os
contendores, o apelo à justiça imediata, sem recurso à lei institucional.
Desde o mundo rural, muitas dessas práticas se estenderam às cidades,
em coabitação direta da barbárie com a civilização.

OS TURBULENTOS EOS CIDADÃOS


Nasruas, praças e becos —as ditas vias públicas —e nos espaços
construídos da sociabilidade "desviante" —bordéis, cortiços, botequins
e casas de jogo —se registrava a maior parte daquelas práticas condena
das pelos códigos de posturas municipais e pelo código criminal.
Os jornais da época, em suas crônicas e artigos de fundo, postu
lam uma integração ao núcleo de referência básica da identidade em
causa: a cidadania, que define a exclusão diante de um sistema de nor
malização dosdireitos e deveres frente à comunidade e ao Estado e que
pauta as normas do bom proceder. Diante dessa representação simbó
lica dos integradosy contrapõe-se a massa dos excluídos ou dos designa
dos como tal.

Fronteiras da ordem, limites da desordem... 11


Aqueles quese expressavam e agiam fora dos marcos do que era en
tendido como a normalidade desejada - osselvagens da cidade, os bárbaros
urbanos - apresentavam um perfil preciso, a julgar pelo Livro de senten
ciados da casa de correção de Porto Alegre-} o criminoso típico era do sexo
masculino, solteiro, alturamédiade 1,50 m (!), mestiço, analfabeto, na faixa
etária dos20a 30anos ejomaleiro ou diarista por ocupação, o queeqüivale
dizerque não tinha profissão definida. E,basicamente, cometerahomicídio,
com emprego de arma branca (punhal, faca, estilete, espada).
Os jornais, por seu lado, lidavam com descrições quase plásticas,
expondo os tipos de divertimento, a forma de se vestir de se calçar, o
tipo de vocabulário e até o timbre de voz dos turbulentos, colorindo o
quadro de uma cena que vai ao encontro das expectativas de leitura dos
consumidores do jornal: "Vagabundos, trovadores de taverna a copo de
cachaça por 'modinha' que cantam, dulcinéias de chinelos e que usam
óleo de canela e vistosas fitas no cabelo, marinheiros que entoam em voz
avinhada cançonetas livres, enfim, representantes grosseiros do rebota-
lho da população congregam-se ali em assembléia permanente".^
Tais personagens eram protagonistas de atos que iam desde atitu
des mais simples, como algazarra, cantoria, bebedeira e correria pelas
ruas, até os crimes de assassinato e roubo.

Em princípio, uma vez flagrados, os turbulentos eram recolhidos


à cadeia, onde, se não era formado processo para ir a julgamento, eram
soltos após 24 horas ou, então, após dois a três dias de detenção.^ Eram
considerados uma "malta de vagabundos e rolistas",'' "malta de jogado
res",^ "desordeiros e desordeiras",^ "súcia de vagabundos",^ "cafagestada",®
"indivíduos de má nota",^ que atordoavam e assolavam a cidade, prefe-

1, Livro de sentenciados da casa de correção de Porto Alegre. 1874-1900. Manus


crito. Arquivo Histórico do Estado do Rio Grande do Sul,
2, A Gazetinhay 5 nov, 1896.
3, A Gazetinha, 12 jan. 1896,
4, Correio do Povo, 5 jan, 1897,
5, Jornal do Comércio, 10jul, 1894,
6, Correio do Povo, 5 jan, 1897,
7, Correio do Povo,6 jan, 1897.
8, Correio do Povo, 20 jan. 1897,
9, O Mercantil, 24 nov, 1896,

12 Sociabilidadesjustiçase violências:...
rencialmente à noite,mas que podiam causar desordens à plena luz do
dia, em sucessivostumultos e arruaças." Lamentava-se que esses "melros
e melras"'^ ficassem tão pouco tempo no xadrez, sendo por vezes soltos
após 24 horas de detenção. A "corja de vagabundos e desordeiros"'^ era
freqüentemente apontada como sendo composta por homens de cor.' 14

Mais do que desordeiro, o turbulento poderia ch^ar a sertambém um la


drãoou assassino, mas, emprindpio, o turbulento é,por definição, um vadio.
A expressão usada "sem ofício nem benefício" para caracterizar os
turbulentos induz a pensar em uma vagabundagem oriunda da falta de
profissão definida ou da inexistência de meiosde sustentoo que, por sua
vez, levava ao crime ou à mendicância.

Por vezes, a suspeita se instalava por meio de um simples olhar,


e uma detenção preventiva podia fornecer detalhes inesperados: "Por
andar vagando pela cidade, a horas mortas, em companhia de dois in
divíduos suspeitos, foi preso Domingos Marinho, em poder do qual
encontrou-se um molho de chaves".'^

Nesse sentido, seracusado de vagabundo ou vadio, quando a pes


soa tinha ocupação fixa, era motivo de grave injúria. Reclamando ao
juiz de direito por ter sido denunciado na políciapor Elisa Fischer, o que
o obrigara a assinar um termo de bem viver^ o pintor alemão João Jacob
Bertran pronunciava-se, indignado:

Senhor Doutor Juiz deDireito! Só podem sercompelidos


a assinar termo de bem-viver os vadios, sem ocupação
honesta e útil, depois de advertidos pela autoridade poli
cial, a mendigos, bêbados por hábito, turbulentos e per
turbadores do sossego público e aos prostíbulos, como
prescreve o Código de Processo Criminal Art. 12, Par. 20,
Reg. de 31.01.1842, Art. 111, C.C. Art. 295 e 296.'®

10. A Gazetinha, 16 fev. 1896.


11. O Mercantil, 29 jan. e Io fev. 1895.
12. Correiodo Povo, 5 jan, 1897.
13. Correiodo Povo, 8 jan. 1897.
14. A Gazetinha, 8 mar. 1896.
15. Correio do Povo, 2 set. 1896.
16. Arquivo Público. T Cível e Crime. Porto Alegre - Processos Crimes Porto Ale
gre, 1869-1896, maço 134, n°3.612,1887.

Fronteiras da ordem, limites da desordem... 13


Mas, por vezes, o trabalho não bastava! Veja-se o casodas empre
gadas domésticas. Eram sempre, por definição, suspeitas! Eram desco
nhecidas que haviam sido admitidas na intimidade do lar, sem referên
cias ou dando o nome de falsos informantes sobre o seu procedimento
anterior. Dizia-se que não raro roubavam e difamavam, sem que seus
patrões dessem queixa à polícia, com receio de represálias. Os jornais
exigiam da intendência municipal um regulamento, mediante o qual
ninguém pudesse ser admitido ao serviço sem a préviamatrícula e exi
bição de uma caderneta onde, como em uma/é de ofícioy fossem regis
trados todos os seus defeitos e vícios.^^
As interpretações possíveis são claras: grande parte das criadas
eram negras e pobres, trazendo consigo o estigma da escravidão ainda
muito recente. Cor e extração social, associadas à situação de liberdade
pós-abolição, tornavam tais elementos potencialmente perigosos. No
caso, a identificação era dada com a vadiagem, traço definidor do cará
ter e indissociável do vício e do crime.

Poroutrolado, o trajartambém podiaindicar um indivíduo como


suspeito. Em 1900, o Jornaldo Comércio noticiava que fora encontrado
um homem, perto da escola de Engenharia, "sem chapéu e trajando de
centemente". O jornal refere ter "causado espécie à patrulha aquele tipo
sem chapéu", pelo que, interrogado, o mesmo disse "tê-lo perdido e mo
rar na rua Dr. Timóteo no 87".^® Mesmo com essa informação, o agente
da polícia entregou-o à patrulha do 3° distrito, onde se verificou que o
indivíduo, que se chamava Vitório Marques, dizia a verdade, sendo en
tão posto em liberdade.
A banalidade da notícia nos leva, contudo, a uma série de consi
derações sobre códigos de conduta e preconceitos. O indivíduo trajava
corretamente, mas foi considerado suspeito - aliás, foi encontrado pela
patrulha - porque não usava o convencional chapéu... Inquirido, suas
explicações para o fato de não usar chapéu não foram suficientes para
eliminar a suspeição, pelo que foi detido para averiguações. Ou seja, o
indivíduo visto como suspeito era, em hipótese, potencial culpado de
alguma coisa até provar o contrário.

17. Jornal do Comércio, 20 maio 1894.


18. Jornal do Comércio, 4 set. 1900.

14 Sóciabilidades, justiças e violências:...


Nesse contexto, o caso da prostituta - a mulher de má vida - é
exemplar para a análise do léxico urbano que constrói a figura do turbu
lento, pois ameaça a integridade da família e o cerne da pirâmide social.
Se a mulher tem sido, por definição, na evolução histórica das socieda
des, aquela alteridade inquietante, a prostituta vem revelar a fêmea no
seu estado puro, quem sabe o perigo escondido que se oculta no âmago
de toda mulher,se não for controlado.A prostituta é, no caso, a alterida
de perversa que, a partir do feminino sem peias e sem controle, ameaça
todo o corpo social; ela é o epicentro da contravenção e do crime, é a
origem de toda desordem.
A Gazetinha não poupa palavras para execrá-las: elas provocam
desordens no beco da Olaria, as tais "mulheres pervertidas", abundam
no beco do Poço,essas "mulheresdepravadas "e de "má nota", essas"nin-
fas da perdição", "verdadeiro mulherio desbragado", lotamas espeluncas
da rua do Arvoredo esquina com o beco do Império; são ainda as "san
tinhas" do beco do Céu, ironiza o cronista que por vezes debocha em
extremo, a chamá-las de "dulcinéias". Tais "messalinas espertas" por ve
zes se travestem em cartomantes, como aquela do beco do Jacques, para
atrair os incautos, e mesmo as mulheres casadas, para os seus antros.
As "mulheres de vida fácil", de "costumes condenáveis", apresentam-se
debochadas e ébrias. "Madalenas impenitentes" são, na verdade, "mu
lheresperdidas que, por vezes, são chamadasde "chinas".'^ O vocábulo
chinat usado nazona dacampanha para designar a mulher pública, não
tem a mesma presença no contexto urbano, ou seja, não é correntemen
te utilizada como sinônimo de meretriz, sendo mais empregada para
designar a mulher de cor morena acentuada, de aparência indiática.
O termo chinas no caso, ainda pode vir associado a uma signifi
cação mais remota: as pedras com que os portugueses davam lastro a
seus navios para irem comerciar no oriente. Lá chegando, eles as aban
donavam para encherem seus barcos de mercadorias, que por sua vez
assumiam a função do lastro. Mais uma vez, na alteridade condenada,
registra-se a estigmatização relativa à mulher pública: é aquela que se
usa e que é descartável!

19. A Gazetinha, 12 maio 1895; 27 out. 1895; 12, 16, 23 e 31 jan. 1896; 5 e 12 mar.
1896; 5 nov. 1896.

Fronteiras da ordem, limites da desordem... 15


As tais "mulherzinhas da pá virada","novas na idade mas velhas
no vício",são, ainda, por vezes, alcunhadas de "horizontais",^^ epíteto
significativo a aludir a sua prática cotidiana. Ou, ainda, respondem pelo
pitoresco nome de "ratoneiras",^^ registro lingüístico que traduz a parti
cular desqualificação e coisificação das praticantes daquele triste ofício,
como apontavam os periódicos da época. Mas a ratoneira pode, ainda,
em uma acepçãofronteiriça que associaa expressão à palavracastelhana
rato (um momento, um instante), indicar a mulher que se toma rapi
damente, por um certo espaço de tempo. Com essa leitura possível da
designação da prostituta como ratoneira, reforça-se o caráterpejorativo,
acima aludido, de coisificação da meretriz.
O maior preciosismo encontrado nos periódicos consultados não
é fruto exatamente do final do século, mas da décadaanterior.^'* É aque
le que alcunha as meretrizes de mulheres do mundo equívocol A delicio
sa denominação se trata de interessante tradução local do termo demi-
-monde, que, por sua vez, é tirado da peça teatral homônima baseada na
obra de Alexandre Dumas Filho, que se apresentou na cidade de Porto
Alegre, em 1877.^^ Machado de Assis, em sua crônica de 23 de abril de
1858, em A Semana, declarava que a peça O mundo equívoco, de Du
mas,agradaraao público, apesardas traduções...^® Traduções essas que,
como se vê, se ressemantizaram em apropriações sulinas personificadas
na pessoa da prostituta e que teriam também o seu uso similar no con
texto carioca, como indica Coelho Neto em sua obra A capitalfederal?^
Frente ao mundo da desordem, era preciso estabelecer a distinção
entre "cidadãos" e "indivíduos". Cidadão era aquele que pagava impos
tos, que obedecia a lei, que votava, que era proprietário ou pagava alu-

20. Gazeta da Tarde, 19 jan. 1896.


21. A Gazetinha, 5 nov. 1896.
22. Gazeta da Tarde, 8 jan. 1896; 3 abr. e 14 jun. 1897.
23. Idem, 9 nov. 1898.
24. Moreira, op.cit.
25. FERREIRA, AthosDamasceno. Palco, salãoepicadeiro emPortoAlegre nosécu
lo XIX. Porto Alegre: Globo, 1956. p. 167.
26. ASSIS, Machado, Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1944. v. III, p.
789.
27. NETTO, Coelho. A capitalfederal. Porto: Chardron, 1915.

16 Sociabilidades,justiças e violências:...
guel, tendo contudo, domicílio fixo e ocupação certa.... O cidadão era
também aquele de hábitos morigerados: com emprego, trabalhava todo
o dia e não desperdiçava seu tempo com idas a lugares onde se bebia ou
se jogava. Em geral, os cidadãos eram sempre os agredidos ou os que
reclamavam ou denunciavam, junto às autoridades, os desregramentos
e os crimes praticados pelos indivíduos: "Os cidadãos Otaviano Fran
cisco de Carvalho e Manoel Cantídio Lopes apresentaram anteontem, à
meia-noite, no quartel da guarda municipal, o indivíduo Alfredo Adão
Sampaio, que fora agarrado em flagrante ato de arrombamento de uma
porta de casa de família".^®
São,em princípio, indivíduosque provocam distúrbios, ou mesmo
crimes, e que são levados ao xadrez correcional: "De ordem do subin-
tendente Louzada, foi recolhido ao Io posto policial o indivíduo João
Leite da Silva, por desordem'?^
Seria também o caso de Virgílio de tal, morador na rua da Mar
gem, que agredira a bengaladas um cidadão desarmado,^" ou também
de uma Castorina de tal,^^ ou aindade uma Philomena de tal, que insul
tarasuavizinha da ruaAvahy, vizinha essa referida por "Dona Evarista",
para assinalar claramente a diferença destatus de ambasIgualmente
uma "fulana" Antônia da Conceição forapresano início do ano de 1898,
por desordem e ofensas à moral pública, a mostrar, pela designação
dada, que se tratava de uma qualquer ou talvez uma entre tantas outras
que provocavam distúrbios na cidade.^^ A mesma indeterminação de
nomeada - de tal -, sempre em tom estigmatizador e associado a uma
prática desviante pode acompanhar a indicação do nome completo da
pessoa envolvida:"Às sete horas da noite de ontem, foi recolhida ao 1-
posto a mulher de nome Maria Carolina da Conceição que, armada de
um canivete, feriu em um braço seu amásio, de nome Eduardo Joaquim
da Fontoura, cocheiro do carro de praça n° 5".^''

28. Correio do Povo, 25 out. 1895.


29. Correio do Povo, 15 abr. 1898.
30. Correio do Povo, 8 dez. 1895.
31. Jornal do Comércio, 3 maio 1899.
32. O Mercantil, 12jan. 1897.
33. Correio do Povo, Io jan. 1898.
34. Jornal do Comércio, 17 out. 1899.

Fronteiras da ordem, limites da desordem... 17


A expressão "uma mulher de nome" - mesmo que, obviamente,
tivesse um nome - eqüivale a uma desqualiíicação certa, confirmada
pelo gesto (provocara um ferimento com canivete), pela situação civil
(amásia) e pela condição social (... de um carroceiro)!
Preconceituosa seria a notícia que dizia ter o "cidadão" Diogo
Nunes de Oliveira, morador da estrada do Meio, sido agredido por seu
inquilino, "um certo" Felipe, armado de facão e revólver,^^ ou aquela
referente ao "cidadão" Isidoro Trez, morador da rua Castro Alves, na
colônia africana, que fora roubado pelo "crioulo" Júlio, que fazia con
sertos em sua casa.^^ O léxico urbano da estigmatização registrava uma
diferenciação qualificada de papéis para os atores sociais envolvidos em
um incidente e mesmo trazia à tona a questão da cor.
Quando a coluna policial referia que o "cidadão" Francisco Noé
da Silveira dormia tranqüilamente em sua casa,na rua da Alegria, quan
do fora despertado por fortes batidas na porta dadas por "Luiz de tal",^^
estabelecido com bodega no beco do Fanha e que o agredira, há uma
clara definição: o cidadão dorme em sua casa, e quem o desperta e o
agride é o bodegueiro de um beco,de incerta identidade e com compor
tamento desordeiro...

A indeterminação pejorativa do sujeito é designada por outras


várias apelações: diz-se, por exemplo que, por questões de ciúme, um
"fulano" Benjamim, na rua da Margem, desfechara um tiro em outro
homem;^® Aprígio "de tal" raptara uma menor de 13 anos,^'* Saturno
"de tal" arrombara uma casa na rua General Paranhos, no célebre beco
do Poço'*" e que Domingos "de tal", "pardo", carroceiro, morador para
as "bandas" do Passo da Areia, ferira com duas facadas João Barbosa da
Silva, na célebre colônia africana..."**

35. Correio do Povo, 20 dez. 1895.


36. Correio do Povo, 12 nov. 1895.
37. Jornal do Comércio, 22 mar. 1899.
38. Correio do Povo, 13 nov. 1895.
39. Jornal do Comércio, 4 out. 1899.
40. Jornal do Comércio, 27 set. 1899.
41. Correio do Povo, 5 dez. 1895.

18 Sociabilidades,justiças e violências:...
Igualmente no mesmo uso do vocabulário estigmatizador para os
indivíduos, dois carreteiros do campo da Redenção passaram das palavras
à briga de fato, resultando um ficar com a cabeça quebrada por um golpe
certeiro dado com uma vareta da carreta... Seus nomes: "João de tal" e
"Faz-Tudo",'*^ a indicar não só a imprecisão ou a banalidade identitária
como a não-especialização profissional de um diarista, a viver de biscates.
Da mesma forma, noticiava-se que o crioulo André Januário Bar
bosa, morador no beco da Maxambomba, fora ferido por seu compa
nheiro de casa, o embarcadiço Luís "de tal", que fugira após o crime.^^
No caso desses dois indivíduos, o quadro é completo. Ambos moram
em um beco; um é crioulo, outro é de tal, com o que se completa a re
presentação estigmatizada. Igualmente, se a "desordeiraJoana Maria da
Conceição" foi presa por andar "jogando sopapos com uma Rosa de
tal","'"' a situação era a mesma: mulheres desclassificadas, com compor
tamento transgressor da ordem em espaços malditos da cidade.
Por vezes, os turbulentos são somente mencionados pelos seus
apelidos que, por sua vez, são indicadores da sua aparência ou caráter.
É o caso de um tal de "Mal-acabado", ou de um "Chico Caboclo", ou de
um certo "Antônio Futrica". Turbulento era, sem dúvida, o "bicheiro"
Formiga'*^ ou o indivíduo" João Bruxa, ex-proprietário de um bote
quim no beco do Poço, que se atracou com um cabo do 8^ regimento de
cavalaria à porta de uma taverna do mesmo beco!''®
De um modo geral, os indivíduos roubam e são bêbados sempre a
fazerem arruaças; acabam no xadrez por gatunagem, por desordem, por
porte de armas proibidas e praticam crimes mais pesados, envolvendo
ferimento e morte. Em grupo, são sempre uma "corja' ou uma "malta".
Paraosindivíduos, oscidadãos eram reconhecíveis. Assim, um pre
to, recém-libertado da cadeia, interpelou Eugênio Carloni de Sayão Car
valho, sargento do 25^ batalhão de infantaria, ao abordá-lo com uma faca:

42. Jornal do Comércio, 4 jul. 1900.


43. Correio do Povo, 2 set. 1896.
44. Correio do Povo, 6 set. 1896.
45. Correio do Povo, 24 abr. e 28 maio 1898.
46. Jornal do Comércio, 10 nov. 1899.

Fronteiras da ordem, limites da desordem... 19


"Cidadão, alto lá!".'''' Em tempos de pós-República, a designação era cor
rente,mas não para todos, e perfeitamentecompreendidapor aqueles que
eramexcluídos desse pertencimento. É fantástico que, mesmo na hora de
um assalto, o agressor invoque sua vítima por tal tratamento...
Entretanto, se os cidadãos são, em geral, os atacados e ameaçados
pela violência das ruas, às vezes, também se situam na contramão da or
dem... Encontramos notíciasde quecidadãos apareciam nas páginas poli
ciais como... defloradores de menores. É o caso de Alfredo Luís da Fonse
ca,cidadão raptor da menor Amália Bastos, com quem vieraa casar^® ou,
de um outro, o cidadão Estácio Ferreira da Silva que, tendo praticado o
mesmo ato, já foraigualmente solto porque casara com a raptada.''^
Seriam esses chamados cidadãos porque haviam reparado a sua
falta, casando com as moças e, com isso, cumprido a sua obrigação ci
dadã? Os mesmos jornais registram outros tantos casos onde o cidadão,
depois de deflorara menor,provava que não fora oprimeiro, com o que
continuava com a sua respeitabilidade, mesmo tendo abusado sexual
mente de uma menor de idade! E essa menor, tendo sido comprovado o
fato por testemunhas que surgiam ou por um exame de corpo de delito,
que já não era virgem, deixava de ser vítima e passavaa ser considerada
uma decaída... A desonra, aparentemente, lhe proporcionava de imedia
to a maioridadel Deixemos, contudo, para analisar tais casos específicos
(os defloramentos) em capítulo mais adiante.
Os códices policiais registram que, às vezes, os cidadãos discutiam
e chegavam mesmo às vias de fato, como no caso de Felipe Montano
que, com sua carroça, fora prestar serviço de transporte às pessoas cujas
casas se achavam inundadas pela enchente, na rua General Caldwell. Na
ocasião, "diversos indivíduos "invadiram a carroça, querendo ser trans
portados também e, como ele se recusasse, foi por um deles, Alfredo
Cardoso, ferido no rosto por uma faca.^" No caso relatado, há que notar
a mudança de tratamento: de início, são dois cidadãos que entram em

47. Correio do Povo, 8 jan. 1898.


48. Correio do Povo, 25 dez. 1895.
49. Correio do Povo, 25 out. 1895.
50. Subdelegacia de Polícia - códice 7, 22 jul. 1898.

20 Sociabílidades,justiças e violências;.
conflito, mas, à medida em que se dá o depoimento das partes, o agres
sor torna-se o indivíduo...

Igualmente, fora amplamente noticiada pelos jornais a agressão


sofrida, por bengaladas, pelo cidadão Antônio Maisonnave, estabeleci
do com "loja de especialidades" na esquina das ruas General Câmara e
Riachuelo, da parte do senhor Francisco Saldanha. Referia O Mercan
til que ignorava "os motivos que levaram dois cidadãos a essa cena de
pugilato em público".^' O tipo de tratamento usado indica bem que se
tratava de pessoas de nível social elevado e de prestígio na praça.
Pior talvez fosse o caso acontecido no famoso café América, onde,
em uma noite de junho, foram disparados "mais de vinte e tantos tiros",
ferindo várias pessoas e levando a que o comércio da Rua dos Andradas
fechasse as suas portas.

Entre osferidos estão ossrs. Capitão Dr. Érico de Oliveira,


lente da Escola Militar, tenente Manoel Martins de Vascon-
cellos, alferes Victor Obino, dois alunos da Escola Militar e
um harpista que ali tocava, bem como o cidadão Cândido
José Filho, fazendeiro do município de Cruz Alta. Todos
estes cidadãos achavam-se naquele estabelecimento, sendo
alcançados por tiros disparadosde fora do café."

O jornal resguardava os cidadãos freqüentadores do café América,


que compareciam como vítimas, e não como responsáveis pelo incidente.
Aviolência, contudo, era partilhada, mesmo que os espaços de sociabili-
dade da urbs nãoofossem. Nodiaseguinte, oJornal doComércio procura
va esclarecer o incidente ocorrido; tratava-se de um ataque premeditado
desde há muito naquele estabelecimento, pois lá costumavam reimir-se
cidadãos filiados ao Partido Federahsta." Ou seja, dera-se um conflito
de natureza política, de iniciativa de outros cidadãos oriundos do Partido
Republicano! O Jornal do Comércio esclarecia a seus leitores que os tiros
haviam sidodados por "umgrupode indivíduos armados"que invadiram

51. O Mercantil, 19 out. 1896.


52. Jornal do Comércio, 1°jun. 1893.
53. Jornal do Comércio, 2 jun. 1893.

Fronteiras da ordem, limites da desordem... 21


o café, dando mais de cem tiros (e não mais vinte e tantos). Sem dúvida,
indivíduos mandados pelos cidadãos do outro partido...
Mas os cidadãos, mesmo das melhores e mais bem-sucedidas fa
mílias da cidade, podiam ser os agentes da agressão: Domingos Mos-
tardeiro, por exemplo, proprietário de serraria na rua Voluntários de
Pátria, chicoteou um menino e também sua mãe, quando ela fora lhe
indagar das razões de tal procedimento!^'*
Havia também a questão dos maus e bons lugares e quem os fre
qüentava. Veja-se o caso do "cidadão" Júlio Atahyde e de um "indiví
duo", "conhecido" por Camões, que lutaram a canivete e à bofetada na
venda de "um" Fuão de Souza, na Rua 13 de Maio, no Menino Deus.^^
Ora, a venda ou o botequim eram também freqüentados por cidadãos...
Logo, um cidadão ia a espaços condenáveis, onde podia cruzar
com indivíduos e mesmo ter negócio com eles, como o tal empréstimo
de dinheiro. Agredido, reagiraà bala,mostrando que cidadãosandavam
armados, tal como o indivíduo tinha o seu canivete. Onde, portanto, a
fronteira? Júlio Athayde devia ter emprego fixo, algum reconhecimento
social e não ser alvo da indeterminação da alcunha daquele que "aten
dia" por Camões.
Já o cidadão Osório Machado dera queixa à polícia por ter sido
agredido, espancado e ferido por dois indivíduos na tal "celebérrima
baiúca da Joana Piccola".^^ O mínimo que se poderia dizer é que um
verdadeiro cidadão não freqüentaria tais lugares...
Por que, contudo, as contravenções ocorriam? O que explicava a
presença e a ação dos turbulentos?
As fontes da época nos revelam uma oscilação entre posturas
lombrosianas ou de Lacassagne: ora o contraventor assim age porque
está predisposto para tal desde o nascimento, ora porque o meio que
freqüenta - beco, cortiço, botequim, bordel - o induz a agir assim. No

54. O Mercantil, 25 nov. 1896.


55. Jornal do Comércio, 28 out. 1899.
56. Correio do Povo, 4 set. 1896.

22 Sociabilidades, justiças e violências:...


tocante às posturas lombrosianas, as notícias de jornal que falam dos
turbulentos e perigosos se faziam acompanhar de apreciações cientiíi-
cistas. Assim, o indivíduo de maus instintos manifestava, no seu aspecto
físico, os traços de um caráter pervertido.
Ao descrever um conhecido homem que se dedicava à feitiçaria e
"às artes da magia negra", na rua Sá Brito, a Gazeta da Tarde pintava-o
de maneira muito expressiva:

[...] um negro africano, bem-proporcionado de corpo,


olhar esperto,crâniopontiagudo,usando uma barbinha no
queixo. O tioPedro fala desembaraçadamente o português,
seu acento nada tem de africano, exprimindo-se correta
mente. Tem na fisionomia uma expressão de malvadeza
que o torna repelente. Quem o olha adivinhalogo que ali
está um mau sujeito e não pode deixar de dizer com os seus
botões: "essenegro tem muitos crimes na consciência".®'

Quem olhasse para o terrível tio Pedro, a quem se atribuía a che


fia de uma sociedade secreta, podia ler, em sua fisionomia, a carga de
maldade e vício que se abrigava no seuíntimo ... Apesar de trajar ade
quadamente e debem falar - o que só acentuava a sua periculosidade e
denunciava os negócios escusos em que se envolvia -, o jornal chegava
a chamá-lo de "bruxo e negro boçal".^® Afinal, tio Pedro era um finó
rio que se apresentava bem ou era um degenerado? Basicamente, duas
coisas eram certas: atuava na contramão da ordem e era negro, binômio
que, se associado, era fatal para a apreciação do indivíduo.
No melhor estilo lombrosiano, a aparência detio Pedro revelava a
periculosidade de seu íntimo: "Aí há um alguém que domina, que tem
vontade e império, contra o qual se rojam humildes os visitantes, inter
cedendo junto a ele nassuas pretensões e desejos".^®
Em outro caso, são argumentos de ordem lombrosiana os que se
riam invocados pelo cidadão Samorim Gustavo de Andrade, agrimen-

57. Gazeta da Tarde^ 15 maio 1895.


58. Gazeta da Tarde, 16 maio 1895.
59. O Mercantil, 12 maio 1895.

Fronteiras da ordem, limites da desordem... 23


sor, no processo que moveu contra Carlos Pacheco de Castro, subinten-
dente do distrito, por crime de injúria. Na sua defesa, Carlos de Castro o
chamava de "sujeito" e de "sujo", ao passo que, na acusação feita, publicada
no Correio do Povo, Samorim de Andrade dizia: "Há indivíduos, cujos
físicos degenerados inspiram uma natural e invencível antipatia e descon
fiança, e no número desse indivíduos conta-se o tal subintendente"^®
Tais elementos perniciosos eram explicados cientificamente, mas
diante de uma postura lombrosiana pura, baseada na fatalidade orgâni
ca ou congênita da herança para a definição do caráter do indivíduo, já
se levantava uma possibilidade de correção viável.

O meio e a hereditariedade são dois poderosos agentes.


A ciência moderna cogita dos modos de destruí-los. Não
há nada irremediável, fatal, necessário, nesse assunto. Se
o meio é mau, desloca-se a pessoa para um outro, cuja
ação produza resultados inversos. Quanto aos instintos,
esses são combatidos, despertando-se na criatura em que
os maus imperam os bons que suplantem os primeiros.^'

Era preciso coibir, refrear, prevenir e agir sobre o social, para evi
tar que os turbulentos agissem contra os cidadãos.
Os atores contumazes da contravenção eram sempre os mesmos,
presentes nos sarilhos armados: prostitutas, bêbados, vagabundos, joga
dores, ladrões, brigadianos, praças, policiais. Em um mesmo local es
tigmatizado, todos os ingredientes da turbulência se reuniam, como se
pode ver nesta notícia de jornal:

Por questões travadas num baile em casa de uma china, no


becode Cerveja, à praçada Harmonia,o soldado do primei
ro batalhão da Brigada MilitarDelfino Alves da Silva vibrou
uma navalhada na face direita de João Claudino Vieira."

60. Processo Crime n'^ 52, maço 3.


61. Gazeta da Tarde, 1° out. 1899.
62. Correio do Povo, 20 dez. 1896.

24 Sociabilidades,justiças e violências:...
Um dos participantes, de condição militar, se envolvera com uma
china - no caso, a parda Helena, mulher de comportamento "livre" - em
uma "brigade navalha", que "produziraum ferimento de 8 a 10 centíme
tros de extensão" no rosto da vítima, durante lun baile realizado em um
beco!^^ Prostitutas e brigadianos ou praças do exército atuavam freqüen
tementecomoparceiros, como no caso citado, mostrando as débeis fron
teiras entre o mundo da ordem e o da contravenção... Por vezes, os praças
roubavam dos próprios detentos, como no caso noticiado no Jornal do
Comércio^ no qualum servente da oficina desse periódico - Bento Nunes
Pereira, cidadão morigerado^ - não apenas fora preso semmotivo, como
tivera seu dinheiro arrebatado, sendo depois esbordoado!
Para mostrar que quem deveria controlar precisava de controle,
temos um incidente no beco do Fanha, onde três praças da brigada ar
maram um conflito com a patrulha da guarda da mesma milícia, em
disputa queresultou atéemtiro.^^ Outrospraças da mesma brigada mi
litar, armados, "travaram-se de razões"®^ com praças, desarmados, do 2°
batalhão de engenharia, nasproximidades do mercado público de Porto
Alegre. Em outro incidente, tarde da noite, no Arraial dos Navegantes,
defrontavam-se guardas municipais, umpraça dabrigada militar e dois
artífices do Arsenal de Guerra.®^

O jornal chegava a chamar esses supostos homens da lei de "desor


deiros", em completa inversão desuas funções... Eque dizer dosargento e
do praça do 17® batalhão, que tentaram libertar presos que estavam sendo
conduzidos parao 3® posto policial pelos guardas da patrulha, após terem
sido detidos por desordem nas festas dacapela São Pedro?^®
Aviolência da cidade pode parecer exagerada. Até que ponto os jor
nais vendiam a mercadoria exigida pelo púbhco - os crimes e os distúr
bios do cotidiano urbano, estetizando a matéria jornalística, ao agrado das

63. O Mercantil, 19 out. IS96.


64. Jornal do Comércio, 23 dez. 1893.
65. Correio do Povo, 6 set. 1896.
66. Jornal do Comércio,21 jan. 1893.
67. Jornal do Comércio, 4 fev. 1893.
68. Jornal do Comércio, 19 jul. 1900.

Fronteiras da ordem, limites da desordem... 25


expectativas dos leitores - ou tais acontecimentos policiais se impunham
realmentecomo a grande matéria a ser recolhida pelosrepórteres? Onde se
encontra o limite entre os dados da cotidianidade e a sua narrativa jornalís
tica? Por vezes, a descrição de tais matériastem um conteúdo quaseplástico
de um romance policial, como se pode ver no relatoa seguir:

Anteontem, a 1 hora da tarde, encontram-se em uma ta-


verna, a rua Fernando Machado, alguns praças da guarda
municipal e o soldado do 2® batalhão de engenharia The-
odoro Rangel, que há dias achava-se ausentedo seu quar
tel. Travando-se de razões, Theodoro Rangel, armado de
punhal, fezprofundo ferimento no caboda guardamuni
cipal Santa Rosa, ex-praça do 13° de infantaria. Mortal
mente ferido no ventre, com os intestinos à mostra. Santa
Rosa foi até a farmácia Landell de Moura, onde fizeram-
-Ihe os primeiros socorros os Drs. Liceró Seixas e Sarmen
to Leite, falecendo, porém, pouco depois. Armado de um
punhal e de um encosto de cadeira, o soldado Theodoro
Rangel seguiu pela rua da Varzinha, onde foi persegui
do por um outro cabo e umapraça da guarda municipal.
Travou-se aí uma nova luta e, quando os contendores su
biam a rua do Arroio, Theodoro feriu também, com uma
punhalada no peito, aqueles cabos. Livre assim dos que o
perseguiam, Theodoro foi depois preso por uma escolta
do 13. Quando terminarão esses conflitos?®'

Os casos cotidianos se multiplicam nas páginas dos jornais. Ou


seja, tínhamos uma cidade em armas, tendo, de um lado, cidadãos le
galmente armados - soldados, praças, guardas que, por vezes, em vez
de coibir, provocavam distúrbios - e, de outro, cidadãos habituados ao
porte de armas, prontos a usá-las em caso de defesa ou de agressão.
Essasérie de incidentes mostra, entre outras características, o tipo
de elemento que formava o contingente de tais instituições. Pouco se
diferençavao agente da autoridade do contraventor, pois elespassavam,
sem grande dificuldade, de um campo a outro.^° Para o ingresso em tal

69. Jornal do Comércio, 1 fev. 1893.


70. Uma excelente análise de tais questões pode ser vista na dissertação de mestrado
de PauloRobertoStaudtMoreira, Entreo deboche e a rapina: oscenários sociais da
criminalidadepopular em Porto Alegre (1868-1888). Porto Alegre: UFRGS, 1993.

26 Sodabilidadesjustiçase violências:..
carreira, deveria contar muito a oportunidade de sustento, por menor
que fosse, o ganho de roupa - o uniforme... - e talvez a oportunidade de
ser reconhecido como cidadão e autoridade, as compensações materiais
e simbólicas para os deserdados da urbs.
A população, por seu lado, vingava-se pelas palavras, chamando
tais militares de morcegoSy apelido injurioso que deu margem a sucessi
vos conflitos, pois os ofendidos, julgando-se ultrajados, davam voz de
prisão aos gaiatos...

Por vezes, as cenas que se passavam entre os órgãos de controle e


os bandidos atingiam níveis de comédia. Ou soldados e gatunos repre
sentavam uma farsa - sendo todos da mesma extração social onde os
primeiros beiravam o limite da contravenção - ou entãoeramverdadei
ramente parvos, pois se deixavam enganar facilmente!
Veja-se o caso do gatuno Bernardino Ignácio da Silva, que seguia
para a prisão ladeado pelos soldados do 2° batalhão da Brigada Militar.
Na esquina da rua Dr. Flores com a rua da Ponte, o audaz ladrão - e
também elegante, pois andava sempre bem-trajado - convidou os dois
soldados a tomarem algo na venda da esquina. O maissurpreendente é
que os soldados aceitaram e, em vez do conhaque oferecido, pediram
caninha... Ou seja, por um copo de cachaça, dois soldados abandona
ram seu posto e baixaram a guarda, deixando o preso fíigir! Ou, então,
propiciou-se a fiiga, estando como de conluio com o preso. Que cidade
era essa, onde presos e soldados confraternizavam, a beber em uma ven
da? Quetipo de aliança se estabelecia entre ambas as partes? O mundo
da ordem e da contravenção trocavam sinais...
Calmamente, o gatuno tomou um carro que passava e pediu ao
cocheiro que o conduzisse ao beco do Jacques, pagando a corrida - que
era de 1$000 (um mil réis) - com uma nota de 2$000 (dois mil réis). O
cocheiro não tinha troco e combinou com Bernardino que ia até a sua
casa, na rua Avaí, em frente à igreja do Carmo, para tomar um café e
depois voltaria para pegar a importância devida. No beco do Jacques,
Bernardino entrou na casa de uma costureira de nome Anita, pedindo-

71. o Mercantil, 2 dez. 1896.

Fronteiras da ordem, limites da desordem... 27


-lhe que fosse à casa de Mariquinhas Teixeira, no beco do Império, e
chamasse Teodorica, sua amásia, que ali se achava hospedada/^
Ora, a trajetória do ladrão, os personagens com que estabelecere
des de trato e confiança, os locais por onde transita mostram bem que
todos pertencem a um mesmo mundo, mesmo os soldados que ficaram
na venda a tomar cachaça. Excluídos do social, mas que tinham uma
outra ordem e códigos, por que não?...
Mas, mesmo com tais redes de sociabilidade, a cidade era violen
ta, como se viu, com tiros e facadas distribuídos a toda hora... O hábito
de as famílias possuírem armas em casalevava, por vezes, a trágicos in
cidentes, ocorridos por imprudência ou ingenuidade daqueles que ma
nipulavam os revólveres. Os jornais noticiam acidentes caseiros, como
o de um tenente que pensara estar sua arma descarregada e desfechara,
por brinquedo, um tiro no rosto da namorada^^ ou do rapaz que, tam
bémpor gracejo, apontara uma espingarda quedisparou sobre a cabeça
de um amigo.^^ Mesmo crianças tinham à vista armas de fogo ou cor
tantes, com o que se produziam sérios acidentes. A brincadeira entre os
alunos doginásio São Pedro resultará em grave ferimento em um deles,
pelo tiro de revólver disparado acidentalmente!^^
Para vigiar, controlar e reprimir, em uma primeira instância, exis
tia a polícia, assim como também existiam a lei e os códigos de posturas
municipais para serem observados. Grosso modo, a polícia ali estava
para as primeiras providências, mas aqui principiavam os problemas,
pois seus agentes eram, com freqüência, também atores de desordens e
delitos variados, quando não de crimes. Ou, em outra situação, os poli
ciais ameaçavam os moradores da rua da Concórdia, caso não lhes fosse
permitido entrar em uma festa familiar que lá tinha lugar...^® Em inci
dente quase análogo, membros da guarda municipal promoviam desor
dens em arrabalde, porque lhes fora barrado o acesso a um casamento

72. Jornal do Comércio, 25 mar. 1899.


73. Jornal do Comércio, 22 set. 1893.
74. Jornal do Comércio, 6 dez. 1893.
75. Jornal do Comércio, 26 set. 1899.
76. A Gazetinha, 9 set. 1898.

28 Sociabilidades, Justiçase violências:...


de pretos7^ Era recorrente essa forma de abuso de autoridade, marcada
pela invasão domiciliar por parte de policiais a qualquer pretexto e, so
bretudo, se os moradores eram negros7®
Freqüentadores de bordéis e tascas, os soldados da guarda mu
nicipal se confundiam com os turbulentos. Ou, por vezes, eram eles os
criminosos, como no caso noticiado pelo Correio do Povo, em que um
guarda municipal fora preso por estar arrombando a porta de uma casa
na rua D. Feliciano.^^ Os militares, do exército e da brigada, como se
viu, também pouca confiabilidade apresentavam, sendo com freqüência
não só os principais envolvidos nos distúrbios, mas seus causadores.
A partir do exposto, tem-se já um grave componente no panora
ma da turbulência urbana: aqueles que deveriam manter a ordem esta
vam freqüentemente a transgredi-la.
A quem reclamar, pois? A uma autoridade mais alta, fosse ela o
delegado do distrito, o chefe de polícia ou o intendente municipal. Ta
lhada a atuação dos agentes mais próximos da autoridade - os policiais
-, o jornal ocupavaessepapelde tribuna cidadã, a exigir o cumprimen
to das leis, o respeito às posturas municipais e a indagação sobre o es
tado da segurança pública, mantido pela contribuição cidadã, por meio
do pagamento de impostos.
Ora, a polícia...®® Diante da desordem da cidade, da ousadia do
crime, do desregramento dos desocupados e turbulentos, o que faziam
os policiais? Escapavam de serem tambémcidadãose, como tal, preocu
pados com o bem-estarsocial da coletividade?
Aos olhos dos habitantes, não eram só os turbulentos os suspeitos:
a própria polícia se tornava pouco confiável. Podemos, no caso, quase
confundi-la com os atores da contravenção! Ou a polícia fingia não ver
o que se passava ou, no caso da detenção, apenas encarcerava por 24

77. A Gazetinhüy 7 jan. 1898.


78. A Gazetinhüy 14 dez. 1898.
79. Correio do Povo, 7 out. 1896.
80. Parao estudoda polícia nesse período, consultar o excelente trabalho de Cláudia
Mauch, Ordem pública e moralidade: imprensa e policiamento urbano em Porto
Alegre na década de 90 (PortoAlegre: UFRGS, 1992. Dissertação de mestrado)

Fronteiras da ordem, limites da desordem... 29


horas, na casa de correção, os desordeiros e gatunos contra os quais não
se reuniam provas para formação de processo...®'
Muitos eram presos correcionalmente, o que eqüivale dizer que
passavam algum tempo - 24 horas, em geral - no posto policial, pre
sos, para corrigir-se^ mas logo depois eram soltos.®^ Se isso teria ou não
algum efeito, era algo a duvidar-se, dada a rotatividade dos xadrezes
dos postos policiais e a alta reincidência da prisão dos turbulentos. Por
outro lado, para alguns, era aplicadauma multa, para servir de alerta no
caso de repetição dos atos que haviam levado ao encarceramento.®^
Havia mesmo como que uma rede subterrânea de informações
que passava dos policiais aos donos de espeluncas, pois, toda vez que
se preparavam batidas nesses locais, seus donos eram avisados de an
temão, retirando as mulheres dos estabelecimentos no dia da visita...
Nesse sentido, todo bordel passava a ser chamado de "hotel" ou "restau
rante", ocultando sua verdadeira função.
Ao deixar o cargo, em outubro de 1896,o intendente municipal de
Porto Alegre, Faria Santos, decretou, pelo Ato n^ 2, a criação da polícia
administrativa. Caberia a essanova polícia,que não teria caráter militar,
a prevenção dos crimes por meio de medidas de vigilância no contexto
urbano. Ficaria afeta ao intendente e seria exercida pelos subintendentes
seus imediatos.®'' "Será que vai dar conta do recado?" perguntavam-se
os jornalistas, incrédulos...®^
Pouco ou quase nada, respondiam outras crônicase artigos dos mes
mos periódicos.Os novospoliciais exorbitavam de suasfunções, multavam
"a torto e a direito" e "abiscoitavam" as multas...®^ Logo pegaram um ape
lido tido como desairoso: ratos brancoSy alcunha dada pela cor das calças
que trajavam. A população, irreverente e debochada, chamava-os por esse
nome, mostrando sua evidente má vontade contra os novos agentes.

81. A Gazetinha, 26 mar. 1896.


82. Correio do Povo, 25 mar. 1897.
83. Correio do Povo, 20 mar. 1897.
84. A Gazetinha, 17 out. 1896.
85. A Gazetinha, 22 nov. 1896.
86. A Gazetinha, 6 dez. 1896.

30 Sociabilidades, justiças e violências:.


"Voltaram osvelhos temposem quesetornavaprudênciaindispen
sávelpoliciar a polícia",®^ considerava um articulista de A Gazetinha...
A guarda municipal parecia acolher exatamente os mais desajus
tados, pois chegava a contar em seus efetivos com ex-presidiários e toda
uma gama de maus elementos.Além disso, era venal, induzia a subornos
e se colocava sempre ao lado daqueles que pudessem pagar e tivessem
influência. Quem caísse no posto policial de detenção era maltratado, se
fosse humilde, e ainda tinha de pagar a carceragem,®® ficando, por ve
zes, sem alimentopor vários dias. Negligências, brutalidadese agressões
eram as queixas freqüentes dos jornais.
No mundo dos turbulentos, passar da ofensa, injúria e discussão
ao conflito à mão armada era rápido.
Em plena rua, Maria Luiza da Conceição ferira com uma tesou
ra um soldado da Brigada Militar, enquanto mulheres ameaçavam com
um facão uma outra, grávida, na rua Emancipação.®^ Em outro can
to da cidade, na Várzea da Redenção, a já citada preta Eva Maria da
Conceição, "desordeira contumaz",dava duas facadas em um rapaz
de 15 ou 17 anos, noticiavam os jornais. No beco do João Coelho, a
briga se generalizara entre horizontais e soldados bêbados, chovendo
bengaladas.®^ Mesmo os menores lutavam armados, como temos na
briga eclodida no beco do Sebo, em que o menino Fernando deu uma
facada em outro, sendo por isso recolhido preso.^^ E, para não fugir à
regra, lá comparecia o beco do Poço com mais um incidente desse tipo,
digno de ser registrado pelaviolência do ato e pelo deboche da narra
tiva jornalística: na bodega do português Francisco, a jovem Odorica,
"casta e pura", motivou os ciúmes de seu amado, o cabo João Soares que,
qual novo "mouro de Veneza", cortou com um facão uma das orelhas de
seu provável rival, o crioulo Gonçalo!^^ Por seu lado, a crioula Victoria

87. A Gazetinha, 17 dez. 1896.


88. A Gazetinha, 13,24 e 27 jun. 1897.
89. Subdelegacia de Policia, maço 5,4 set. 1895.
90. Gazeta da Tarde, 9 set. 1895; O Mercantil, 10 set. 1895.
91. Gazeta da Tarde, 3 abr. 1897.
92. O Mercantil, 2 jul. 1896.
93. O Mercantil, 5 ago. 1897.

Fronteiras da ordem, limites da desordem... 31


Maria da Conceição, em altercação violenta com seu amásio Floriano
da Silva, moradores da rua 13 de Maio, no Menino Deus, teve seu rosto
e corpo lanhados "desapiedadamente" por uma tremenda surra de vara
de marmelo... O "iracundo sujeito foi recolhido ao posto", por iniciativa
da patrulha que acudiu ao local do conflito.'"^
Aparentemente, tem-se a impressão que todos os turbulentos an
davam sempre armados, mesmo que fosse proibido.®^ Mas como ex
plicar que, em quase todos os registros policiais, se sacava da adaga,
punhal ou faca, em meio à discussão? O que se mostra é o panorama de
uma cidade onde, entre a disposição legal e a prática das pessoas, não
havia muita coincidência...

No relato jornalístico de uma luta entre dois cidadãos, que come


çara na praça da Alfândega e terminara na rua da Conceição, em frente
à casa de um deles, o Correio do Povo assinalava que ambos estavam
armados de facas, das quais, felizmente, não haviam feito uso, tendo a
luta se travado a bengaladas...^^ O próprio transporte coletivo urbano
era palco de tiroteio, como no incidente ocorrido em um dos bondes da
linha do Menino Deus, entre dois condutores,'^ ou entre condutor e um
indivíduo que se dispunha a assaltar o bonde da linha Floresta!'®
Os jornais indicam os motivos de tais desordens e os crimes, que
se repetem ad nauseam^ para confirmar o que todos já sabem: briga por
mulher ou disputa enciumada por um homem, efeitos desastrosos do
álcool, palavras injuriosas dirigidas a transeuntes ou vizinhos, atentados
à moral e à decência ou, então, atitudes desproporcionadas de violência
para com desavenças de natureza simples. Naturalmente, tais razões são
formas exteriorizadas da situação de exclusão, que compõe uma realida
de mais dramática e complexa. O que buscamos, no caso, são as repre
sentações produzidas sobre a contravenção, sejam elas designadas pelos
próprios contraventores ou atribuídas pelos agentes da ordem.

94. Jornal do Comércio, 31 out. 1899.


95. Subdelegacia de Polícia,códice 5,2° distrito, 16 dez. 1897.
96. Correio do Povo, 23 set. 1896.
97. Jornal do Comércio, 23 abr. 1893.
98. Jornal do Comércio, 18 jan. 1899.

32 Sociabilidades, justiçase violências:...


Na busca de resgatar os motivos das agressões, podemos chegar
até as falas dos réus, das vítimas e das testemunhas depoentes, cons
tantes dos códices policiais, e que permitem compor quadros mais coe
rentes dos conflitos. Tomemos o caso de Joana Alves Faria de Almeida,
de 31 anos, casada, doméstica, analfabeta, moradora da rua Demétrio
Ribeiro e que fora ferida com relho por seu vizinho, José Almeida da
Silva, de 25 anos, carpinteiro, solteiro e alfabetizado.
Na versão da vítima, "[...] sem motivos passou a ouvir insultos
injuriosos e virulentos contra si, por parte de seus vizinhos, em resposta
disse que aquelas palavras eram inverossímeis. Ao ouvir um barulho,
saiu para a rua, onde passou a ser agredida".
Já o réu dissera que: "[...] pelas 8 horas da manhã, estava deitado
em sua cama, quando ouviu que seu pai, homem de avançada idade,
estava sendo insultado com palavras das mais inferiores pela vizinha
Joana de Almeida, sem a menor causa ofendeu também sua mãe e suas
irmãs mais moças, os epítetos infamantes de filhos da puta, gente ordi
nária e outrosmais; queestandoem estadoenfermoe consequentemen
te febril não pode se conter e em legítima defesa da honra ultrajada de
>99
sua família, exacerbado, cometeu a agressão".-
Note-se a alegação do réu de estar em estado febril - atenuante
para a culpa - e a invocação da honra ultrajada diante das ofensas. As
testemunhas - outrosvizinhos, um comerciante e outro sapateiro - ar
gumentaram em seu favor, pois era morigerado, trabalhador, honesto,
com conduta exemplar, moço sem vícios, arrimo da famíliae conhecido
da vizinhança desde pequeno. Não teria tido a atitude violenta se não
levado a tal ato por motivos justos, sérios e poderosos... Diante de tais
defesas, mesmo tendo sido levado à cadeia, foi solto por alguns cidadãos
que se ofereceram para pagar-lhe a fiança.
A alegação de que estava "forade si"é também indicadacomo de
fesa pelo réu e por seus comparsas, suas testemunhas. A própria polícia
chega a levantar argumentos desse tipo, como no caso de Ismael José da
Silva, soldado do 1^ batalhão da Brigada Militar que, muito alcooliza-

99. Subdelegaciade Polícia,códice 2,1° Distrito, 15 abr. 1896.

Fronteiras da ordem, limites da desordem... 33


do, ferira com uma faca, às quatro horas da madrugada, quatro pessoas
na rua Três de Novembro, pela qual corria "em disparada vertiginosa",
como que "atacado por uma alucinação repentina"!
Ainda a honra ultrajada e um estado de extrema perturbação fo
ram referidos no depoimento que prestou na delegacia o doutor Irineu
de Mello Machado, ao 2^ delegado auxiliar, seu parente. Vindo espon
taneamente depor, Irineu disse que lhe chegara ao conhecimento que
fora "ultrajado em sua honra",fato queveio confirmar outra notíciaque
lhe chegara aos ouvidos. Fácil é adivinhar que o jovem doutor tivera a
confirmação da traição conjugai, embora, em momento algum da no
tícia, isso tenha sido afirmado. Sentindo-se "profundamente abalado e
ferido", foi até sua residência, e a constatação do que lhe denunciaram
foi de tal forma perturbadora que ele, "em seu desagravo, agiu contra
sua esposa". "As minudências do ultraje eram tão dolorosas", "tal foi a
perturbação que se apoderou do seu espírito na ocasião em que tinha
diante de seus olhos a confirmação das notícias a que se referiu", que
julgava "ter cometido desatinos". Lembrava-se apenas que, fora de si,
passara a mão em um revólver e dera um ou mais tiros em sua mulher,
só sendo despertado desse estado em que se encontrava pelo choro da
filhinha de sete meses,que o trouxe à realidade e o fez notar que sua mu
lher estava ferida ... Acrescentava Irineu em seu depoimento que, dado
o seu estado, não podia precisar a hora nem as pessoas que se achavam
presentes quando tal fato se deu!^"'
Ora, o caso do doutor Irineu e de sua esposa infiel era de molde a
pôr emevidência o mais grave dos atentados à honra deumcidadão: ser
vítima da traição da esposa. O incidente, por si só, o tirara de si, e fora
em estado de alucinação que praticara o crime. Daí ter dito não se dar
conta do que fizera, quando o fizera e se alguém presenciara a cena de
sangue. A notícia não permite concluir se a constatação do adultério se
dera por flagrante (pois não se menciona a presença do amante), ou se
o marido ultrajado soubera do adultério por confissão da esposa infiel.

100. Subdelegacia de Polícia, P Distrito, 21 ago. 1899.


101. Jornal do Comércio, 27 jul. 1900.

34 Socíabilidades,Justiças e violências:...
Algumas vezes, os motivos são arrolados como efeitos diretos da
embriaguez, pouco importando, no caso, a natureza da discussão ou as
razões que fizeram iniciar o conflito e as agressões mútuas. Havia uma
fórmula de designar tais situações: "já embriagados, travaram-se de ra-
zões...7°^ onde ficava claro que, não importando a natureza das tais
razões, a bebida era a responsável por aquela briga.
E que motivos teria, por exemplo, Alberto Alexandra Rosseler,
afora o álcool, para, em estado de completa embriaguez, ter espancado
a mulher na própriacasa, na Rua GeneralPortinho?^®^ Os jornaisnada
dizem de fato tão corriqueiro - maridos batendo em esposas -, mas
sabemos que o agressor fora recolhido à prisão e que o abuso da bebida
foi considerado o responsável pelo espancamento. O ciúme era a causa
de numerosas agressões que envolviam homens do povo em briga pelos
favores de uma mulher, ou duas "raparigas" em disputa por um "sujei
to". Alegando "questões de ciúmes", dois rapazes travaram-se de razões
em uma taverna do Arraial de Navegantes, arrastando para o conflito
algunsfamiliares e freqüentadores do local, em uma briga que se gene
ralizou com base em facadas e golpes de cacete...Por questões de tal
tipo - o terrível ciúme-, na praça da Alfândega o cocheiro Estácio Mar
tins dos Santos, de 23 anos, ao dar uma bengalada no italiano Francisco
Cavalheiro, de 21 anos, trabalhador em uma padaria no Menino Deus,
recebeu em revide uma facada; motivo: gracejos e palavras ofensivas do
italiano, por ciúmes da conversa amistosa que o cocheiro travava com
uma rapariga na praça...Foi ainda por ciúmes que Ernestina Maria
da Silva foi presa na rua da Varzinha, por ter dado umafacada no peito
de seu amásio Manoel Calisto da Silva, músico do 25° batalhão.^®® Não
se sabe, porém, os motivos que teriam levado a amásia de Bernardo
Loureiro - referida nos jornais como "desumana mulher deorigem ale-
mã"^°^- a lhe desfechar um tiro de revólver no braço e uma facada no

102. Correio do Povo, 1° mar. 1898.


103. O Mercantil 19 set. 1896.
104. Jornal do Comércio, 23 abr. 1893.
105. Correio do Povo, 15 set. 1896.
106. Correio do Povo, 15 fev. 1898.
107. Jornal do Comércio, 27 fev. 1894.

Fronteiras da ordem, limites da desordem... 35


pescoço! Seriam os ciúmes, também? Mas foram, sem dúvida, os ciúmes
da meretriz Tymira, moradora à rua da Alegria, que provocaram uma
briga de faca entre os italianos Diatro Arturo e Scherelli Carmana, que,
iniciadano meio da casa,foi parar na residência de um compadre e dali
para o meio da ruaP°®

As meretrizes eram o motivo preferencial de agressões e crimes


causados pelo ciúme, em disputas que passavam por cima de qualquer
relação anterior existente entre os contendores ... Pois não fora por ci
úmes de uma prostitutaque Hortêncio Pacheco agredira seu amigo Sa-
lustiano Braga?

Da mesma forma, conflitos familiares entre marido e mulher, fos


sem causados por ciúme ou por problemas corriqueiros do cotidiano,
podiam resultar emgraves ferimentos que ultrapassavam a mera briga,
com tiros de revólverou outras armas menos usuais... Como no caso
do indivíduo Manoel Felício dos Santos, morador do Arraial da Glória,
queagrediu a golpes defoice suaamásia Maria Joana da Conceição e sua
filha, Maria Rita. Naversão do agressor, elas o tinham agredido em pri
meiro, com uma faca e um porrete, após uma discussão!"' Casais tam
bém poderiam entrar em luta corporal, tudo tendo iniciadopor insultos
mútuos dirigidos pelas mulheres, dos quintais de suas casas, levando os
maridos a intrometerem-se na disputa e envolvendo os vizinhos como
testemunhas de mais um dos muitos conflitos cotidianos da cidade!"^
Ou, ainda, mulheres podiam comparecer ao posto policial pedindo para
que fosse detido o marido, como no depoimento de uma mulher que di
zia estar o cônjuge "pintando o sete, o bode, o rato e os canecos e a casa
da queixosa", além de tentar feri-la com uma faca."^
Insultos entre vizinhos, onde se mesclavam agressões de natureza
sexual - gestos obscenos, ditos licenciosos -, com bate-boca cotidiano.

108. Correio do Povo, 27 maio 1898.


109. O Mercantil, P fev. 1897.
110. O Mercantil, 5 jan. 1897.
111. Subdelegacia de Polícia, códice1,25 mar. 1899.
112. Processo Crime no 24, maço no 2,12 jul. 1897.
113. Jornal do Comércio, 19 jul. 1900.

36 Sociabilidades, justiçase violências:...


eram motivo de queixas à delegacia de polícia e podiam resultar em
aplicação de multas por ofensamoral. Por ser insultado diariamente pe
las vizinhas Eugenia, Leonor e Lucinda, moradoras do beco Paissandu,
Estanislau Arruda deu queixa à polícia, obrigando as ditas vizinhas a
pagarem multa.''''
Por outra, questões de dinheiro - ou sua ausência... - eram moti
vo das agressões, tal como a cobrançafeita por um verdureiro a um fre
guês, no campo da Redenção. Issofora suficiente para o recebimento de
uma "desaforadabofetada" que quase lançara por terra o verdureiro!"^
Mas também um outro, em notória desproporção entre motivos e atos
de agressão, poderia receber uma facada pela suspeita de ser o respon
sável pela morte de uma galinha..."®
No tocante aos motivos ditos como futeis, tomemos o caso do
crioulo "metido a valentão" que, desfeiteando a mulher do dono da ven
da, quase provoca um incidente de maiores proporções por causa de...
azeitonas!"^ Ou, então, ocorriam mesmo tentativas de assassinato por
outros motivos futeis, levando o agressor à prisão;"® ou até mesmo che
gavam a produzir vítimas fatais.
Vejamos ainda o incidente ocorrido no areaida Baronesa, em um
certo estabelecimento comercial na rua Baronesa do Gravataí. Um sol
dado da Brigada Militar, depois de altercação com um colega, deu-lhe
"uma tão certeira facada" que o levou a falecer, pouco depois. O motivo
do crime,segundo as testemunhas, foi de que a vítima pedira um cigar
ro ao agressor, Ernesto, que negou. João Paulo teria respondido "Poistu
negas um cigarro a um companheiro?" ao que Ernesto revidou jogando
sobre o balcão um pacote contendo 100 réis de fumo crespo que com
prara. Julgando-se ofendido, João Paulo jogou o pacote na rua, que foi
apanhado pelo corneteiro do batalhão da brigada, João Roxo, dizendo
que agora o fumo lhe pertencia. A isso se opôs João Paulo, dizendo que

114. Jornal do Comércio, 21 mar. 1896; 9 set. 1899.


115. O Mercantil, 25 set. 1896.
116. Processo Crime n° 44, maço 2,12 nov. 1898.
117. Correio do Povo, 28 dez. 1895.
118. Correio do Povo, 19 dez. 1895.

Fronteiras da ordem, limites da desordem... 37


aquilo fora uma caçoada e repondo o fumo no bolso de Ernesto, que,
por sua vez, o jogou ao chão. Irritado, João Paulo teria dito: "Não sei
aonde estou que não te faço comer este fiimo!", ao que Ernesto pegou
uma faca da mão de um empregado do estabelecimento que estava a
cortar fixmo para um freguês e cravou-a no peitode João Paulo."^
Naturalmente, outras razões de desavença deveriam existirentre os
dois brigadianos, mas o motivo que deu margem à agressão fatal foi uma
série de ofensas a propósito de fumo ... Estamos diante de códigos sutis
de uma honra ultrajada, tocamos no fundo de uma rede de sensibilidades
cujosfios e nexos por vezes escapam, masque fizeram sentido um dia.
Por vezes, o conflito parecia não ter tido razões para começo, o
motivo podendo ser mesmo "um copo de cachaçamas produzindo
um resultado violento. É o caso de Maria da Luz, 20 anos, casada, anal
fabeta, presa em flagrante delito por ter agredido com uma navalha,sem
motivo justificado, a Carlota de tal. No incidente, ocorrido no beco do
Oitavo, resultou ficar também Maria da Luz com ferimentos. Chamada
a depor,Maria da Luzdisseque fora acometidae espancada por Carlota
e uma outra, de modo que se vira obrigada a procurar meios de defesa,
lançando mão de uma navalha. Já Carlotade tal alegou que agiu em de
fesa própria. As testemunhas do incidente, sobre o qual não ficaram ex
plícitos os motivos, dão conta, por sua vez, dos freqüentadores do beco
do Oitavo: Jeremias Gomes, contramestre. Celso Beserra, Monteiro e
Espíndola, músicos da banda marcial do 13® batalhão de infantaria do
exército,um ex-praça do 3°batalhão de linha conhecido pela alcunha de
Formiga, empregado no momento como cobradordo centro telefônico,
e as mulheres Agnida e Idalina, moradoras do mesmo beco.'^'
Mas havia também as máspalavrasy constituídas de obscenidades
que eram ditas como insultos'^^ e que, diariamente, davam motivo a
registros de queixas na polícia.

119. Subdelegacia de Polícia, códice 7,2^ Distrito,23 maio 1899.


120. Correio do Povo, 8 maio 1898.
121. Subdelegacia de polícia, códice 2,1® Distrito, 24 jan. 1896.
122. O Mercantil 24, 29 e 31 out. 1896:19 dez. 1896.

38 Sociabilídades, justiças e violências:...


Estamos, pois, diante de sensibilidades exacerbadas por palavras
e gestos que fazem de imediato lançar mão de armas perigosas para a
agressão. Os códigos de honra, a possibilidade de ser exposto pelo outro
ao ridículo, a quebra de regras mínimas de conduta aceitas como as con
venientes para o meio, etc. são provavelmente os motivos mais fundos
que levam a violências de tais tipos.
Os insultos são alegados, muitas vezes, como a razão de brigas,
tal como as ofensaspessoais entre vizinhos. Esses são motivos para dar
queixa à polícia, para que se abra um processo e - o que surpreende
mais - para que tal assunto se torne notícia de jornal. Se, por um lado,
a Porto Alegre de então parece cidade grande - pois já tem as contra
venções de uma metrópole, como o conto do vigáriOy que veremos mais
adiante -, por outro, parece encontrar ainda, qual uma aldeia, motivo
para assunto em tais pequenas ocorrências!
Dentre os insultos, aqueles mais graves incidiam sobre a honra,
Mas mesmo aqui havia gradações, hierarquias nos insultos e nas injú
rias! De uma espécie determinada eram os ataques referentes à honesti
dade: "canalha, bandido, ladrão ou "infame, mentiroso, indigno
Uma injúria desse tipo teria sido responsável, por exemplo, por ter le
vado Hugo Braus, alemão, operário da Fábrica de Fiação e Tecidos, a
agredir seucolega detrabalho Gustavo Clone, produzindo-lhe ferimen
tos e recebendo outros tantos golpes dechave inglesa...Igualmente, o
crioulo José Antônio da Silva, conhecido desordeiro, levou uma acha de
lenha na cabeça por ter dirigido insultos a um cliente de uma venda no
Caminho Novo, "com palavras que o ofendiam em suahonra".
De um outro nível eram os insultos que atingiam a dita honra da
família atacando, sobretudo, as mulheres ... O incidente causado pelo
ultraje de "epítetos infamantes", dirigidos a uma senhora casada, mãe
de quatro filhos menores e estando seu marido ausente, por um senhor
viúvo de 45 anos, empregado público,^^'' não deixa margem a dúvidas

123. Processo Crime n® 38, maço 2,21 mar. 1897.


124. Processo Crime n° 22,24 jan. 1898.
125. Correio do Povo, 22 set. 1896.
126. Correio do Povo, 13 jan. 1898.
127. Processo Crime no 2030, maço 88B, 1900.

Fronteiras da ordem, limites da desordem... 39


quanto à natureza da agressão. A ditasenhora fora ofendida em suahonra,
ouseja, chamada de mulhernão-honesta... Tal como uma certaDonaAmé
lia, da rua da Margem, que deu queixa à polícia por ser insultada por seus
vizinhos, que "ainjuriavam com palavras ofensivas a sua honra", ou, ain
da, Artur Vialho, morador da rua da Olaria, que apresentou queixa contra
sua vizinha Hortência, porque ela vivia a pronunciar palavras imorais que
ofendiam sua família". As ofensas teriam sido do mesmo teor, mas agora
explícitas, quando Eduardo Biachi chamou algumas mulheres de "cadelas
e filhas da puta", tendo invadido suas casas, na RuaGeneral Vitorino, para
jogar-lhes a ofensa no rosto, em ato que atraiu muita gente.
Os insultos e as injúrias poderiam combinar gestos desrespeito
sos, seguidos de palavras ofensivas à condição do injuriado, seja de na
tureza financeira, etária, moral, racial ou de gênero.
Veja-se a queixa registrada por um cidadão, um homem "avança
do em anos" e "conhecido e respeitado" pela vizinhança, que se consi
derou agredido por um taverneiro, na rua Pinto Bandeira. Estava elena
janela de sua casa, quando o taverneiro saiu à porta de seu estabeleci
mento e foi urinar no meio da rua, sendo chamada a sua atenção pelo
cidadão seu vizinho, que considerou o ato uma afronta ao decoro das
famílias vizinhas ... Além de responder de maus modos, indicando que
se a cena não agradava não olhassem ou pusessem venezianas nas jane
las, o taverneiro, de nome Alessandro Fabino, teria dito: "você não vale
nada, o que vale é o pulso! O advogado de defesa, na sua apelação,
alegou que a intenção do réu não teria sido o insulto ou a injúria, mas
sim dar um demonstrativo de sua força e valor físico para antepor ao
dinheiro e à "prepotência" do acusador...
As etnias e raças podiam dar margem a conflitos violentos, como
aquele eclodido no botequim da rua Aurora que envolveu um pardo e
dois espanhóis. Sob a acusação de que os espanhóis eram uns "patifes
turbulentos" e que haviam dado "vivas à Espanha e morras ao Brasil", o

128. O Mercantil, 8 jan. 1897;Jornal do Comércio, 8 maio 1900.


129. Processo Crime 28,28 set. 1897.
130. Processo Crime n® 3649, maço 136,8 mar. 1900.

40 Sociabilidades, justiçase violências:...


agente municipal Loureiro teria dito: "Hoje hei de mostrar a essa corja
de espanhóispara quanto presta o negro!"'^^
No tocante a gestos com inequívoca significação, e que davam
margem a abertura deprocesso por injúria, temos a queixa de Francisco
de AraújoPereiracontra Abel e Francisco Tavares dos Santos, pela repe
tida realização com a mão de "um gesto imoral e indecente, conhecido
vulgarmente pelo nome de banana, gesto repudiado injurioso em opi
nião pública". Os réus, no caso, foram absolvidos...
Certas ações,entendidas como ofensas, podiam também dar mar
gem a conflitos violentos, envolvendo lesões corporais e mesmo o uso
de revólver, como aquele que se travou no Mercado Público, entre Nico-
la Capello, Antônio Rago e Miguel Rago, porque o primeiro "mandava
dar água a um macaco, servindo-se para isso de uma vasilha pertencen
te a um dos outros denunciados, que são irmãos"!
A injúria de ataque à honra podia ser ainda de natureza a ofender
uma categoria profissional. Teria sido o caso dos jornalistas de O Mer-
cantily que vinham sofrendo ataques por meio de desenhos obscenos e
cartascomalusões infamantes dirigidas aos escritórios daquele periódi
co.O protesto dos agredidos baseava-se no fato de entenderem o ataque
como sendo contra a sua missão de formadores da opinião pública e de
sua orientação políticarepublicana, em desacordo com as idéias daque
les "gatunos da honra alheia" ...
As desavenças políticas davam também motivo para conflitos ar
mados, como o fato ocorrido nas vésperas da ainda muito recente data
oficial da proclamação da República:

João Machado é republicano, Henrique Louzada é mo-


narquista. Ontem encontraram-se. O primeiro disse ao
segundo: - O mundo acaba-se hoje, mas a República fi
cará de pé, firme! - Qual República que nada, seu... Re-

131. Sumário de Culpa n°36, maço 2,14 maio 1897.


132. Processo Crime n^ 21, maço 2, 3 abr. 1897.
133. Processo Crime n° 47, maço 3, 5 out. 1898.
134. O Mercantil, 18 mar. 1897.

Fronteiras da ordem, limites da desordem... 41


pública é isto! E sacando de uma faca investiu contra o
outro. Machado, que não é mole nem nada, desviou-se
e dando com o braço na faca, feriu seu agressor em uma
das mãos. Louzada foi medicado no 1° posto e depois
mandado esperar o fim do mundo no xadrez.'^®

Uma cidade violenta, mesmo bárbara ... Mas a civilização passara


ao largo? Não havia nela, como foi anunciado, uma elite dirigente e culta?

CRIME SEM FRONTEIRAS, FRONTEIRAS DO CRIME

A fotografia é, por assimdizer, um elementoicônicoda modernida


de. Não apenas representou um avanço técnico no domínio da captação e
reprodutibilidade de imagens da realidade como também correspondeu a
uma estetização dessa realidade,pela tomada ou fabricação de representa
ções. Igualmente, a fotografia sepresta paraexemplificar essa condição da
modernidade que é a de realizar-se, simultaneamente, em várias partesde
um mundo interligado pelos avanços da tecnologia e pela construção de
novos saberes, e percorrido, também, por novas sensibilidades.
Assim, a difusão e os usos da fotografia no dito mundo moderno
pode nos dar a medida das conexões existentes entre as diferentes na
ções e grupos, a mostrar que certos hábitos, gostos, desejos, padrões de
consumo, apreciações estéticas e padrões de valor não representam o que
se poderia chamar simplesmente de uma cópia ou de uma imitação das
sociedades, ditas periféricas, com relação às centrais. Diferenças de escala
e de acumulação, ou especificidades locais não invalidam, por exemplo,
a fato de que as elites de um e outro caso possam partilhar hábitos, com
portamentos, gostos e valores. O processo deexpansão e consolidação da
vida moderna dá-se, pois, em termos de uma certa simultaneidade em
vastas áreas, independentemente dos descompassos inevitáveis.
Exemplifiquemos um pouco esse processo. No final do século
XIX, em 1897, em Porto Alegre, um prestigiado membro da elite cultu-

135. Jornal do Comércio, 14 nov. 1899.

42 Sociabilidades, justiçase violências:...


ral da cidade, o doutor Sebastião Leão, ofereceu-se ao chefe de polícia
da época, o desembargador Antonio Augusto Borges de Medeiros, para
exercer, sem remuneração, o cargo de chefe do laboratório de antro
pologia criminal que estava para ser criado junto à Casa de Correção
da capital. Junto a esse laboratório, e como peça essencial de seu fun
cionamento, acabava de ser criado um outro, fotográfico, com material
adquirido diretamente em Paris pelo governo do Estado.
Nessa cidade singular, um debate científico seproduzia, a partir do
laboratório de antropologia criminal instalado na Casa de Correção de
Porto Alegre, sob adireção dorenomado médico doutor Sebastião AíFon-
soLeão, médico legista dacadeia e integrante daelite ilustrada dacidade.
O local por excelência de segregação dos excluídos do social for
necia ao Doutor Leão a matéria-prima para testar suas dúvidas quanto
ao debate científico que se desenvolvia na Europa, entre os postulados
de Cesare Lombroso e Alexandre Lacassagne.
Atualizado frente ao debate europeu, o doutor Sebastião Leão se
perguntava: e no hemisfério sul, e em um país mestiço, como se com
portariam os criminosos? Quem eram os criminosos, como prevenir
o crime? Acompanhando o debate internacional levantado pela nova
disciplina surgida nafin de siècle - a antropologia criminal - o doutor
Leão se questionava: Lombroso ou Lacassagne? O criminoso já nascia
como tal, compondo o homo criminalis, ou era o meio que o predis
punha ao crime? Homem de ciência, o doutor Sebastião Leão cruzava
saberes, olhares e sensibilidades na experiência que realizava no espaço
dacadeia. Como medico dainstituição, ele passara a fazer análises à luz
dos conhecimentos da época com a população que tinha a seu dispor
no laboratório de antropologia criminal, que ali inaugurara em 1897.^^^
A conjunção de fatores é exemplar. Um membro da elite culta,
atualizado com os mais recentes avanços do conhecimento de sua épo
ca e animado por um espírito científico de investigação, conta com o
apoio da vontade políticamaior - Borges de Medeiros- que assumiria o
governo do Rio Grande no ano seguinte, para exercê-lo por cinco man-

136. PESAVENTO,Sandra J. Imagens da violência: o discurso criminalista na Porto


Alegre do fim do século. Revista HumanaSy v. 16, n. 7, p. 109-131,1993.

Fronteiras da ordem, limites da desordem... 43


datos; uma nova ciência a despontar, a antropologia criminal, atendendo a
uma das questões prioritárias domundo moderno, acontenção eo controle
da violência; um material humano à disposição do doutor Leão - a popu
lação de detentos - para que pudesse realizar suas pesquisas; uma técnica
triunfante, a fotografia, posta a serviço da ciência e da ordem social.
O acontecimento, em si, é de molde a assinalar "recortes" da mo
dernidade vivenciada no sul do Brasil no final do século. Por um lado, as
elites mostram acompanhar o debate internacional que dividia asdiferen
tes opiniões da época, em sintonia com o debate científico de seutempo.
Por ocasião das exposições universais e também fora delas, tinham lugar
congressos internacionais para o debate em torno da nova ciência, a an
tropologia criminal. Essa ciência, porsua vez, vinha ao encontro deques
tões postas pelavida moderna e que diziam respeito à violência. Para o
controle dos indesejáveis ou turbulentos, essenovo ramo do conhecimen
to científico se apresentou reunindo noções muito antigas, brotadas por
vezes da observação e da dita "sabedoria" popular, em combinação como
os avanços das ciências, desde o Renascimento e continuado aolongo do
século dasluzes para chegar ao cientificismo do século XIX.
A questão central do debate dizia respeito a uma idéia nuclear, a
partir da qual se estruturava uma maneira especial de olhar o mundo:
era possível ler na exterioridade da figura humana as tendências, as ap
tidões, o gênio e o caráter? Segundo tal entendimento, afisiognomonia,
nome dado à leitura do interior pelos sinais aparentesdo exterior, se en
tendia que a figurahumana apresentava, na sua fisionomia, indícios de-
nunciadores do caráter, dos humores, do temperamento, dos sentimen
tos e das paixões. De Descartes a Encyclopédie de Diderot e DAlembert,
de Lavatera Gall,o caráter científico da postura foi reforçado, sem que o
conteúdo de conhecimento popular e mesmo divinatório desaparecesse.
Entretanto, seria da Itália que viria a grande teorização, pela via do direi
to criminal e da medicina em associação com a nascente antropologia,
pelos nomes de Cesare Lombroso, médico, e de juristas como Enrico
Ferri e Rafaelle Garofalo.'^^ Os novos criminalistas-antropólogos italia-

137. Em1876, o médico Cesare Lombroso lançara o seu renovador livro VUomo de
linqüente; em 1881, o jurista Enrico Ferri escreveria / nuovi orizzonti dei diritto
e delia procedura penale e em 1883 lançaria Socialismo i criminalitá. O igual
mentejurista Rafaelle Garofalo, em 1885, iniciaria, comsua obra Criminologia,
o termo que depois seria expandido para a antropologia criminal.

44 Sociabilidades, justiças e violências:...


nos, nascidos da confluência
do direito com a medicina,
passaram, a partir da década
de 1880, a reunir-se em es
tranhos conclaves. Neles se
realizaria o estudo de peças
de coleções particulares que
exibiam cérebros, crânios e
esqueletos, onde se procu
rava mostrar a existência de
um tipo humano destinado
ao crime e estigmatizado por
Figura 1
sua organização morfológica
defeituosa (Figura 1). Troncocéfalo estuprador de Ravena, con
denado por estupro seguido de morte ern
O final do século XIX criancinhas. LOMBROSO, Cesare.
criancinhas. LOMBROSO, Cesare. LVomo
LVomo
delinqüente, 1881.
assistiu ao sucesso mundano delinqüente, 1881.
dessas tendências, em um
meio no qual explodiam aquelas grandes cidades que começavam a ul
trapassar um milhão de habitantes, como Paris ou Londres. Cosmopo
litas, esses centros urbanos abrigavam gente de todos os lugares. Urbs
perigosas, elas pareciam conter um criminoso a cada esquina. Cheias de
pobres e de desconhecidos, as grandes cidades modernas puseram em
cena um novo personagem: a multidão, essa massa sem rosto, ameaça
dora, capaz de produzir o anonimato e levar os indivíduos a ações im
pensadas e brutais. Nesse mundo em mudança, tais idéias encontravam
guarida nessas cidades, que secolocavam como um espaço a servigiado
e controlado, onde se pudesse detectar o mal, extirpando o fruto podre
para garantir a segurança social.
Quando a nova grande invenção do século, a fotografia, foi vul
garizada, a polícia passou a fazer uso dela para o combate ao crime nos
centros urbanos, a partir da década de 1960. Mas, mesmo assim, ainda
erapouco. A fotografia, ao fornecer um retrato do criminoso, permitia,
sem dúvida, que nele se divisassem, pelo retrato, os detalhes fisionômi
cos, indicadores do caráter.

Ora, há uma propriedade do ato fotográfico que se expressa pelo


seu valor de verdade. Ela é, nesse caso, documento daquilo/daquele que

Fronteiras da ordem, limites da desordem.


se expôs diante da máquina. Ce a été, disse Roland Barthes a propósito
da condição intrínseca da fotografia de registrar a realidade. Nessa me
dida, enquanto meio técnico de reprodutibilidade daquilo que se expõe
ao ato de fotografar - coisas, paisagens, gentes - a foto obtida é imagem
com"efeito de real", cumprindo uma função de documento. A fotografia
é, no caso, rastro, lembrando a expressão utilizada por Ricoeur: é sinal,
marca, vestígio, indício ou traço de algo que um dia existiu e que, ma
terialmente, se objetivou como uma presença diante da máquina foto
gráfica. Mas, na relação queseestabeleceu entrefotografia e instituições
policiais, foi mostrado seu outro caráter, o de que a fotografia sófala
quando rodeada do simbólico, quandofruto de uma estética da represen
tação que apela ao código sociaV^^
E, nesse sentido, o usoda foto pela polícia epela justiça veio a cons
truir imagens da exclusão, expondo uma diferença social que se explicita
pelo biológico. O criminoso, fotografado pela polícia com fins de identi
ficação, é um desviante, é um diferente frente à ordem instituída, e o ato
fotográfico, no seuemprego institucional - jurídico, policial, antropológi
co - veio no séculoXIXpossibilitar a formação de uma verdadeira galeria
de tipos ou de modelos de degenerados. Em 1882, o sistema de controle
e identificação se aperfeiçoou com o método de Alphonse Berthillon (Fi
gura 2), criando um sistema detalhado de medição, a catalogar tipos de
orelhas, de narizes e de bocas, tamanho do crânio, distância entre os olhos
e conformação dos lábios, com o que se inaugurava a antropometria. Nas
cia uma espécie de pedagogia do olhar, onde erapossível fixar a imagem
dos indivíduos e até mesmo testar fisionomias e comportamentos.

Foi ainda a fotografia que deu novo impulso a uma série deestudos
sobre as expressões humanas, provocadas pormeio de uma eletrização pos
ta em prática na França por GuíUaume Duchenne na segunda metade do
século XIX. Era possível agora deixar registradas as imagens no momento
mesmo em quea fisionomia eraestimulada por choques nervosos. Tratava-
-se de uma espécie de estudo da anatomia, ao vivo, onde se podia apreciar
os estados da alma em relação com os músculos estimulados^^^(Figura 3).

138. SERÉN, Maria doCarmo. Murmúrios do tempo. Vila Nova deGaia: Ministério
da cultura/Centro Português da Fotografia, 1997, p. 8.
139. DARMON, Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1991, p. 12.

46 Sociabilidades, justiças e violências:...


Figura 2 Figura 3
Alphonse Berthiilon. Sessão de Eletrização realizada por Gulllaume
medição antropométrica. Duchenne.

Em conferência pronunciada na universidade de Nápoles, em


1885, o jurista Enrico Ferripostulava:"[...] aquele que cometeum crime
é um criminoso. Esse não é um homem normal em razão de sua cons
tituição física e moral. Não há necessidade de buscar o móvel do seu
gesto: a razão do seu crime é a sua criminalidade"'"^"
Entrava em cena uma nova personagem - o homo criminalis
que se constituía em uma espécie à parte, uma sub-raça, marcada pela
própria natureza que o predestinava ao crime. Com isso, invertera-se a
racionalidade penal clássica, segundo a qual o criminoso só existiria na
medida em que infringisse a lei, ou seja, um cidadão poderia tornar-se
um criminoso. Segundo essa nova ótica, o criminoso era um marginali
zado que não se confundia com o cidadão e, para detectá-lo, era preciso
ler os sintomas da fisionomia humana.

140. PASQUINO, Pascale. Naissance d'un savoir spécial: Ia criminologie. In. Ml-
CHEL, Foucault: Surveilleretpunir. Ia prision vingt ans après. Societés et répre-
sentations. Paris: CREDHESS, n. 3, 1996, p. 174.

Fronteiras da ordem, limites da desordem..,


As idéias de Cesare Lombroso, o consagrado fundador da escola
italiana de antropologia criminal, circulavam nos jornais, divulgando o
pensamento do criminalista turinês junto ao público leitor. Mesmo Ga
briel Tarde, o sociólogo francês que, trabalhando com Alexandre Lacas-
sagne, viesse a estabelecer uma crítica sobre a escola italiana e concluir
que a explicação do crimeera,antes de tudo, social, não punha em ques
tão a anormalidade biológica do criminoso apregoada por Lombroso. O
saber científico e o saber popular se associavam, assim, em um modo de
pensar e enxergar os traços da natureza criminal - portanto, de ordem
interna - nas manifestações físicas e externas da pessoa.
Nesse contexto, tornou-se possível organizar álbuns fotográficos
que se ofereciam ao estudo e se punham a serviçodas modernas teorias
que estabeleciam hierarquias e escalas de ordem etnográfica e racial,
permitindo que se apreciasse, pelos traços morfológicos, as tendências
inatas decomportamento desviante. Énesse sentido que, ao inventariar,
catalogar e exibir tipos, segundo um desejo de inventariar o mundo, em
herança iluminista, a fotografia assumia a sua carga simbólica frente ao
processo de controle social novecentista, do qual a polícia e a justiça
eram formas institucionais de expressão. É ainda sob esse aspecto que,
disseminados internacionalmente, os laboratórios de antropologia cri
minal operavam, emcada contexto, como uma janela para o mundo, na
medida em que a galeria de fotografados passava a fazer parte de uma
cadeia de tipos classificáveis e de um conjunto de regras, leis e normas
de referência geral. Lembravam, na suaorganização, asgalerias de tipos
raciais e étnicos, tão em voga no início do século XIX, para os estudos
de etnologia e depois para a antropologia, ao exibir as alteridades dos
povos, dentro do espírito de inventário e classificação efetuados pelas
expedições científicas dos europeus pelo mundo.
Os laboratórios fotográficos de antropologia criminal, tais como
o que se implantou em Porto Alegre sob a direção do doutor Sebastião
Leão, vinham por em prática uma nova dimensão do retrato. As gale
rias de tipos fotografados, em frontalidade e/ou de perfil, não cumpriam
aqui o desejo ouas necessidades da elite de constituírem imagens de si,
ou de fixarem, pela nova arte fotográfica, uma aparência determinada,
perenizando no tempo uma individualidade, quase sempre a almejar
um modelo e um padrão estético e de referência social.

48 Sociabilidades, justiças e violências:.


A prisão, bem se poderia dizer, tem o efeito de desindividualizar as
pessoas. Homogeneizados pela posição que ocupam, os detentos passam a
ser vistos como fazendo parte de uma população identificada pelo crime e
dissolvida no anonimato do cárcere. Sãotodos criminosos condenados pela
justiça e cumprem sentença na prisão por seus delitos. Seriam, por defini
ção, perigosos e violentos, situando-se na contramão da ordem e da vida.
Mas o resultado do laboratório fotográfico é o de expor uma galeria
de fisionomias patéticas, onde os tais anônimos passam a ser individua
lizados e esquadrinhados pelos sábios, que visavam ver, na aparência, a
essência do caráter de cada um. Os rígidos retratos que constam nessas
galerias de criminosos tinham a fimção de oferecerem, da melhor forma
possível, os detalhes fisionômicos de cada um dos fotografados, a fim de
permitir a produção de um conhecimento científico minucioso e preciso.
Entretanto, a fotografia, como imagem, participa da ordemdo sen
sível; elaé representação que faz pensar e que conduz a imaginação para
além do objeto ou do indivíduo que se dá a ver. A fotografia comporta
emoção esensibilidade daquele que aproduz e daquele que éfotografado.
Ora, já sabemos as intenções científicas da feitura de tais fotos, mas esse
desiderato também comporta uma leitura sensível de tais fisionomias. Tais
imagens fotográficas deveriam revelar-se como um "espelho da alma", a
sercaptado pelo estudioso, munido do seu quadro de referências.
Por outro lado, osfotografados também falam por meio das ima
gens e enfrentam a novidade tecnológia denunciando atitudes e expec
tativas para além daquelas previstas pela ciência. Em expressão utilizada
por Jacques Aumont, que a retoma das imagens fílmicas de Epstein, os
rostos em primeiro plano tornam-se paisagens: natureza enquadrada
pelo olhar, são paisagens de rugas, de cílios, delágrimas.
Localizado nacasa decorreção dePorto Alegre (Figura 4), maior pre
sídio do estado, o laboratório do doutor Leão sepunha a serviço da ordem
social pela prevenção da violência, pela vigilância sobre os indesejáveis,
pelaidentificação dosselvagens ou bárbaros da urhsy a examinar osdetentos

141. AUMONT, Jacques. O olho interminável (cinema e pintura). São Paulo: Cosac
&Naify.2004, p.71.

Fronteiras da ordem, limites da desordem... 49


ír --
I I I ^...v.;ímf'í#WmÍ!ÍI
y ' ' * II •

M|l Vi l I I i III ílj' • * *


>Jni||||^l»|;l|il III
!v r-f »i^ •' à

ií H í «i •i «««L.'

Figura 4
Casa de Correção de Porto Alegre, 1898.

àluz das duas teorias em voga: ocriminoso já nascia como tal (Lombroso)
ouera o meio social que produzia o delinqüente (Lacassagne)?
Sendo um presídio central, a Casa de Correção recebia os sentencia
dos de todas as zonas do Rio Grande. Assim, a população carcerária exa
minada pelo doutor Leão reunia criminosos da capital e do interior, das
cidades e da zona rural do estado fronteiriço que é o Rio Grande doSul.
A condição de fronteira confere ao Rio Grande algumas caracte
rísticas especiais. Com uma formação histórica balizada pela guerra e
pelos renovados conflitos com os castelhanos, a historiografia confere
aos habitantes da região um conjunto de práticas sociais e um código
de honra marcado pelos valores masculinos e militares. Há mesmo uma
visão estereotipada e vulgar que faz do ser fronteiriço um bruto, um
primitivo, um indivíduo acostumado à violência.
A rigor, talvez se possa admitirque sulinos ou surenos, de um lado
e de outro da fronteira, não eram estranhos a comportamentos violen-

Sociabilidades, justiças e violências:...


tos, em um contexto onde o mundo rural ainda assombrava a vida coti
diana, embora as grandes cidades já começassem a aparecer, com o seu
corolário de problemas e ethos nitidamente urbanos. Na prática, em uma
sociedade onde, apesar da proibição por lei, quase todos andavam arma
dos, mostrava-se que a modernidade se produzia pari passu com compor
tamentos truculentos e pouco civilizados, para dizer o mínimo. A moder
nidade e a civilização não têm exata correspondência com a diminuição
da periculosidade, mudando apenas a forma e o exercício da violência.
Podemos, por exemplo, analisar os retratos do laboratório de an
tropologia criminal do doutor Leão, em cruzamento com os processos
criminais de cada um para enfocar a violência na região da fronteira do
estado. Nada melhor do que começar pela figura do escravo Benjamin,
o degolador (Figura 5).

fj !"•

mw'"

jkJSTy íM

-i

'• •• -• . . -w

Figura 5
Benjamin, o degolador. Homicídio em Pelotas.

Fronteiras da ordem, limites da desordem...


Posando de frente e de perfil, de molde a mostrar no lado direito
do rosto uma cicatriz, Benjamin nos revela um esboço de sorriso.Tra-
zendo de forma mal-arranjada no corpo o folgado uniforme da Casa de
Correção, demonstra assim mesmo um certo apuro no visual: a carapi-
nha é separada por uma risca frontal. Pode-sequase dizer que Benjamin
tem consciência da individualização que o ato de fotografar trará para
sua pessoa. Ele, Benjamin, o retratado, é o personagem dessa cena posa
da, cujos fins científicos naturalmente desconhece. Se, no perfil,o cenho
aparece franzido, o olhar franco que encara o fotógrafo e o leve rictus
labial não demonstram medo ou mesmo preocupação.
Mas o crime de Benjamin^'*^ não era de pouca monta. Em 1884, na
charqueadade Joaquim da Silva Tavares, à margem do rio São Gonçalo,
em Pelotas, no potreiro em que estava trabalhando, a certa distância de
seus companheiros, o pardo Benjamin dera com uma enxada na cabeça
do português Antônio Ferreira Soares, que também trabalhava na char
queada. A seguir, Benjamin degolara a vítima com uma faca, abrindo
um talho que praticamente separou a cabeçado corpo. O crime tevepor
causao fato de Soares ter dito ao administrador do estabelecimento que
na véspera Benjamin havia estado na cidade. Logo, a denúncia da falta
- um escravo que se ausenta sem licença para ir à cidade embebedar-se
- foi punida com a morte do delator.
O que o processo criminal chamava de bárbaro crime, todavia,
apenas antecipava emtornode uma década a prática usual levada a efei
to pelas duas correntes políticas da célebre Revolução Federalista -1893
a 1895 - conhecida como Revolução da Degola.
Sobretudo, se pensarmos afin desiècle sulina, não há como deixar
de considerar que o laboratório de antropologia criminal se instalava
justo nos anos que seseguiram ao término da dita Revolução da Degolay
onde atos de truculência e barbarismo se apresentaram de forma disse
minada no estado. Ambas as partes contendoras, maragatos epica-pauSy
fizeram uso da prática da degola para eliminar os prisioneiros, no que
quase se poderia chamar de uma violência institucionalizada pela força

142. Processos criminais 1.237 e 3.111. Arquivo Público do Estado do Rio Grande
do Sul.

52 Sociabilidades, justiças e violências:...


da guerra. E, para acentuar a marca dessa temporalidade, cabe lembrar
que o também recente final da ordem escravista - ocorrido no Rio Gran
de em 1884, antecipando o desenlace nacional de 1888 - apresentava o
desafio de encontrar outras formas de conter e de estabelecer a vigilância
sobre as camadas subalternas para além do escravismo e do chicote.
Logo, o ato de Benjamin não pode ser considerado um caso à par
te de refinada crueldade. A fronteira gaúcha apresentava tais práticas e
elas seriam, durante a Revolução Federalista, objeto de encenação fo
tográfica, como na conhecida pose tomada do negro Adão Latorre, o
célebre degolador, pondo em prática seu ofício (Figura 6).
Estamos aqui diante de um foto destinada a imortalizar a degola. A
cena macabra, composta expressamente para servir de "prova" ou "teste
munho" do procedimento de justiça direta e imediata, permite imaginar
o crime de Benjamin que, naturalmente, não se fez acompanhar de todo
o aparato de um verdadeiro espetáculo visual, instaurador de memória.
Se a prática "rápida e barata" da degola visava infligir ao inimigo
uma morte infamante ao ser abatido como um animal, a faca dispensava

"l'

1"^

Figura 6
Degola. Revolução Federalista de 1893.

Fronteiras da ordem, limites da desordem...


o uso de uma bala, que iria produzir, no futuro, a ironia perversa do dito
maragato "não se gasta pólvora em chimango". Essa prática representa
va, também, uma forma de aplicação direta e imediata da justiça. Nesse
ponto, Benjamin se afina com o ato criminoso.
A rigor, ele invoca, para seu crime, as razões da delação, o que o
impelira a fazer justiça com as próprias mãos. Teria o português, branco
e delator, quebrado uma norma de conduta, em uma sociedade de base
escravista, naturalmente com forte assimetria social?

Não esqueçamos que, mesmo trabalhando na charqueada, o réu


carneava, a vítima operava comas máquinas, como "graxeiro". Interferem
no processo construções de sentido que, uma vez contestadas ou invo
cadas, dão margem a reações violentas, chegando à agressão física e ao
assassinato como uma forma de reparação ou justiça reparatória privada.
Definimos nosso universo de análise como uma região de fron
teira. As fronteiras remetem à vivência, às sociabilidades, às formas de
pensar intercambiáveis, aos ethos, aos valores, aos significados conti
dos nas coisas, às palavras, aos gestos, aos ritos, aos comportamentos
e às idéias. Ao falar das fronteiras
culturais, está pressuposto um uni- ^— |
verso simbólico de significados que
circula dentro de uma comunidade -•
de agentes quesão, pela suacondição .í
fronteiriça, semelhantes edíspares ao I','
mesmo tempo. Passemos a um outro I i
personagem fotografado no cárcere: 11 '
Serápio Correia, uruguaio (Figura 7). I 0.
Identificado como '
e proveniente de família abastada,
viera para o Brasil depois de já ter l^|k
cometido muitos crimes; lhe eram
imputadas II mortes... Dera entrada Jt
'•
na Casa de Correção de Porto Alegre
em 1883, tal como Benjamin. Em seu Figura
Figura 7
7
relatório, o Doutor Sebastião Leão Serápio
Serápio Corrêa, uruguaio. Homid-
Corrêa, uruguaio. Homicí
contava os assassinatos que o tinham dio
dio em
em Rio
Rio Grande.
Grande.

Sociabilidades, justiças e violências;...


leva do ao cárcere: junto com doisoutrosbandidos, assaltara uma casa, ma
tando seis pessoas e deixando no berçouma criançade doisanos.*'^^ Depois
de roubar a casa e se retirar, voltara, com remorsos de não haver terminado
seu trabalho, matando a criança restante! Ironia do doutor Leão ao usar a
palavra remorsos^ Consciência do criminoso de que não ultimara sua mis
são? Algo como dever profissional diante de tarefa não-acabada.
A foto de Serápio, o desafinado, mas dotado da consciência de um
dever de ofício, revela também um prisioneiro que enfirenta a máquina
com o olhar direto. A foto é um ritual e tem ainda um caráter de excepcio-
nalidade, sobretudo para os detentos. Impficava uma disciplina ameaça
dora do corpo e a necessidade de encarar a máquina e o fotógrafo. Apre
sentando fisionomia séria, com cenho um pouco franzido, Serápio não
estávestindo o uniformeda cadeia, mas sim um paletócom camisabran
ca; defiberadamente fez pose para a foto, cruzando os braços. O doutor
Leãoo classificara como um homem sem sentimentos, compondo o perfil
clássico do tipo criminoso definido pelosantropologistas: insensibilidade
moral, perversidade, crueldade. Mas, uma vez preso, relatava o doutor
Leão, esse homemaparentemente cruele decidido apresentava bom com
portamento. Por outro lado, Serápio era um exemplo bem-acabado da
atitude, muito freqüente entre os sentenciados, de negarem os seus cri
mes. Serápio Correia negava completamente ter tomado parte no crime
pelo qual cumpria pena, ao passoque referia osdetalhes das outras mortes
já praticadas! Serápio talvez fosse um dos tipos ondesepudesse apreciar
a banalização da violênciavigente na zona da fronteira, se tomada no viés
pejorativo da análise. Oriental, Serápio vive no Rio Grande, praticando
um crime semfronteiras. Comseus fartos bigodes, é identificado como de
corindiática; seus traços fisionômicos não apontam exatamente paraum
tipo mestiço de branco com índio, e a coloração da pele talvez seatribua
à atividade que declara no livro de sentenciados: criador. Um homem do
campo, pois, mas que, supondo-se criador e proprietário, roubae mata, a
demonstrar as débeis fronteiras do crime.

143. Processo criminal n^3.138. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.

Fronteiras da ordem, limites da desordem... 55


Nitidamente indiática é a sentenciada Ramona Cassiana Dias (Fi
gura 8), nascida na cidade fronteiriça de Uruguaiana e que em 1897
matara, em Bagé, um soldado do exército. Jovem, com 21 anos de ida
de, Ramona deveria ter chegado recentemente na Casa de Correção de
Porto Alegre quando o Doutor Leão estava a organizar sua galeria de
criminosos. A detenta não usava um imiforme de presidiária, mas sim
uma roupa que demonstra um certo apuro e elegância: o vestido de gola
alta tinha um aplique de fita escura no peito e na gola. Talvez fosse mes
mo a roupa com que dera entrada no presídio e que agora usava para
ser fotografada. Ramona, que fora presa em flagrante, é identificada no
processocriminal''*^ como solteira,analfabeta e de extrema pobreza. Ela
encara fixamente a máquina, como que à espera do retrato que resultará
e para o qual teria se apresentado com o melhor vestido.
O retrato mostra uma moça índia, séria, com o cabelo arrumado
em chinó no alto da cabeça e que aparentemente não traduz maior emo
ção na fisionomia, embora a expectativa do ato pudesse gerar uma per
turbação no fotografado. Ramona, provável prostituta, era uma china de
soldado? Tudo indica que sim e a aparente insensibilidade da expressão
esconde mais uma das banais e trágicas histórias de amor, onde o homi
cídio é causadopor ciúmes e efetuado com punhal. A zona da fronteira
deveriaconter muitas outras Ramonas, a demonstrar a presença indíge
na junto às camadas mais baixas da população.
Já Dorotheo Aguirre (Figura 9), argentino, peão de estância, fora
preso em 1889 por homicídio no Alegrete, onde matara a facadas um
companheiro, depois de um assalto. Mas, a rigor, cada uma das fontes dá
uma versão para seu crime. No seu relatório, o doutor Leão contava que,
jimto com outros bandidos, Dorotheo Aguirre havia torturado um casal
de velhos para saberonde guardavam asjóiase o dinheiro e depois os de
golarapara que não sofressem dores de cabeça, Mas, mesmo sendo autor de
tais atrocidades, escandalizava-se o doutor Leão, o irônico e cruel Aguirre
portava um cristo suspenso no pescoço... Dorotheo, um cínico dotado de
humor negro, carregava uma imagemde piedade ao pescoço? A presença
de "sensibilidades" de tal ordem em um bruto poderia, no caso, surpre
ender o doutor, mas eram freqüentes tais demonstrações de devoção ou
crença diante daqueles que viviam em um cotidiano de violência.

144. Processo Criminal n° 3.630. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.

56 Sociabilidades,justiças e violências:...
.(fttkno IMU .
«. ^U.l|H|i I. i> ''jJ-'- .
(««Qmí.W V^<r* *»

^ '-' •

Figura 8 Figura 9
Ramona Cassiana Dias, nascida Dorotheo Aguirre, argentino.
em Uruguaiana. Homicídio em Alegrete.

E, a respeito da imagem que nos oferece o retrato de Dorotheo,


mesmo que o registro do laboratório de antropologia criminal o defi
na como um tipo indiático, ele se apresenta nitidamente como mulato,
demonstrando as imprecisões locais na questão da cor, diante de um
contexto com enorme variedade de tons de pele e atributos raciais mis-
cigenados. Com nariz largo e lábios grossos, a frontalidade do retrato
mostra o tipo amulatado que no registro comparece como tendo nariz
afilado e rosto comprido... Será o mesmo indivíduo esse que apresenta
tamanha discrepância entre imagem e narrativa? Dorotheo, que encara
de forma direta a objetiva, dessa vez com uma certa apreensão ou des
confiança, é bem um exemplo das indecisões classificatórias do ilustra
do doutor Sebastião Leão e seus auxiliares do laboratório.

No decorrer das análises e identificações, a descrição do detento


passa a se orientar por outros critérios, até ser identificado como um
mestiço: "um indivíduo de cor parda, baixo, gordo de corpo, cabelos
crespos, barba preta e cerrada, olhos grandes e vermelhos, fala caste
lhano". Por exemplo, o nítido prognatismo apresentado por Dorotheo,
com o maxilar inferior saliente, era anunciado pelo doutor Leão que,

Fronteiras da ordem, limites da desordem...


mesmo sendo comum entre os negros e
os mestiços, era considerado um estigma
para o reconhecimento dos criminosos.

Juvêncio Riccio (Figura 10) homem


negro e jovem, de fisionomia fechada, com
longos bigodes a se projetarem de cada lado
da face, ar sinistro, olhar entrefechado, é
uma figura quase assustadora. Nascido em
Jaguarão, cidade da fronteira, fora preso em
1887 por ter assassinado, junto com dois
comparsas, uma família de quatro pessoas, «nA *
• Ik.
^II| AA» i' II
entre as quais uma criança. Ao ser preso, '« > •/ i r

declarou ser trabalhador da vida no campo,


sabendo pouco ler e assinar seu nome}'^^ Figura 10

Na descrição que é feita de seu rosto, Juvêncio Riccio ou Risso.


se assinala a cor parda, a barba grande, as Homicídio em Jaguarão.
sobrancelhas cerradas e a testa pequena,
traço que era identificado com reduzida inteligência. Entretanto, nas
ponderações do doutor Leão, invocando Lombroso, os criminosos eram
em geral cabeludos, mas pouco barbados, o que conduzia a uma série
de indagações sobre Juvêncio. Em sua defesa, Juvêncio afirmou que, na
hora em que o crime ocorria, estava na casa de sua senhora, Maria Dio-
nísia Risso, tendo testemunhas para isso.
Juvêncio, ex-escravo, era talvez um contratado, modalidade de
prestação de serviços que mantinha o liberto ligado ao seu ex-senhor
para pagar-lhe pela liberdade, depois da abolição antecipada de 1884
realizada no Rio Grande do Sul. Continuava, contudo, a chamar de sua
senhora a sua antiga proprietária, tal como lhe levava o nome: Risso ou
Riccio, a depender da grafia ou do entendimento do escrivão. Mesmo
que seus comparsas de crime fossem brancos, para inocentar-se Juvên
cio arrolou toda uma série de testemunhas, negras como ele, a demons
trar uma rede de solidariedades e de sociabilidades nessa zona frontei
riça de trabalho no campo: o negro José Maria, o pardinho Juvêncio, a
parda Ângela, o negro Pedro, marido da pardinha Basília.

145. Processo criminal n- 213, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.

Sociabilidades, justiças e violências:...


Nascido na Bahia, Martinho
Doutor da Igreja (Figura 11) - militar,
analfabeto - fora preso por roubo em
Jaguarão em 1894.'^^ Carrancudo, o jo-
vem mulato encara o fotógrafo, fazendo
lembrar certa opinião popular, indica-
da pelo doutor Sebastião Leão, de que
'• determinados indivíduos teriam cara
de bandido. Portador de um estranho
\'' nome ou cognome, ainvocar sabedoria
.•^ajuí^».uí«it.3^ fljrf. e religiosidade, o réu parecia, contu-
•• ^ ^ prestar-se de maneira exemplar aos
Figura 11 princípios da nova ciência, mostrando
Martinho Doutor da Igreja, 1"^ ^aparência revelava aessência^ O
Bahia. Roubo em Jaguarão. mau de Martinho parecia condu
zir o observador de tal fisionomia a cla
ras deduções: tal indivíduo deveria ter
muitos crimes nas costas! Por outro lado, o doutor Leão assinalava que
aqueles presos quehaviam sidosoldados mantinham, mesmo na prisão,
um porte especial, resquício da incorporação de uma dignidade ou va
lor antigo. Seria o caso desse detento de cor parda, grandes olhos, e um
certo ar de sobranceria que ainda ostentava mesmo no cárcere?
Guilherme La Vega (Figura 12),espanhol, referido também como
natural do estado oriental, fora preso por homicídio em Uruguaiana em
1889.^''^ A figura do preso é remarcável, se diria mesmo que ele posou
para a foto da cadeia como se fora para a de um laboratório ou atelier, a
fim de obter uma pose desejada, com o rosto um pouco inclinado, um
certo ar sobranceiro, ou mesmo - na linha da sabedoria popular - com
um queixo voluntarioso... Parece que Guilherme teria o entendimento
do ato no qual ele é o personagem principal e passa a exibir uma perfor
mance determinada. Com 21 anos, bem-apessoado, solteiro, é apontado
- mais uma vez - como sendo de cor indiática e de pouca barba.

146. Processo 3.585/35/86. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.


147. Processo criminal 3.475. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.

Fronteiras da ordem, limites da desordem...


j' Negros, mulatos, índios, brancos
í , queimados de sol pela vida ao ar livre.
Argentinos e orientais, rio-grandenses
e baianos. Personagens da fronteira na
contramão da vida, resgatados do ano-
nimato para exibirem suas fisionomias
diante de um estudioso do crime.

Para esses personagens, a foto-


graüa, ironicamente, foi uma forma
de inclusão na modernidade, indivi-
dualizando cada tipo. Com fisionomia
^ contraída ou demonstrando desenvol-
g naturalidade diante da câmera,
_ _ . •_ foram materiais para análise científica
Figura
Figura 12 do tipo criminoso, a mostrar como a
Guilherme La Veja,
Guilherme La Veja, referido
referido tanto
tanto fotografia, para o historiador, combina
como espanhol quanto uruguaio.
uruguaio em si a propriedade de ser traço físico
Homicídio em Uruguaiana. do passado e elemento de tensão com
tudo aquilo que permanece fora do
campo do visual, mas que se introduz,
como leitura possível, nos domínios do simbólico.
Após exame criterioso, durante o qual justamente os negros se re
velaram ser as fisionomias mais intrigantes, por não conseguirem enqua
drar-se nos parâmetros lombrosianos, o criterioso Doutor Leão concluiu
pelo acerto das posições do francês Lacassagne. Era o meio que favorecia
o crime, admitia o doutor, com o que se justificavam medidas de controle
e intervenção no social e se descortinavam possibilidades de recuperação
para o caminho da ordem, dos personagens da contra-mão da vida.
O imaginário social apontava os negros e os mestiços como po
tenciais criminosos, tipos degenerados e situados em um baixo plano
na evolução da espécie humana. Mas, ao analisar seus presos e os deli
tos cometidos, o Doutor Leão era forçado a reconhecer que, mesmo os
brancos - alemães, italianos, portugueses, poloneses, espanhóis - eram
capazes de cometer os atos mais cruéis, requintados e premeditados...
Noplano do enfrentamento da teoria com a prática, uma fronteira -
racial e étnica - já era rompida, no que diz respeito ao crime e à desordem.

Sociabilidades, justiças e violências:...


.'• ' : . ' :?>:r"' ••..•.• •
_:,-• •• ^ _••••.•. ,
Sx(*- ' • •' ,•
- (.. . jy/ií-vf i- '

*t4'WÍ* l'
fevr.' Recordações da casa
dos mortos:
projetos carcerários
e socíabílidades prisionais
(a Casa de Correção de Porto Alegre
no século XIX)

PAULO ROBERTO STAUDT MOREIRA

Estou a esforçar-me por encaixar os nossos


forçados em categorias, mas isso é tarefa im
possível. A realidade é infinitamente diversa,
esquiva-se às engenhosas deduções do pensa
mento abstrato e não se submete a nenhuma
classificação estreita e precisa. A realidade tem
tendência para a fragmentação contínua, para
a variedade infinita. Até mesmo entre nós,
lado a lado coma vida oficial, regulamentar.'

m dos livros proveitosos para aguçar nossa sensibilidade com


os acontecimentos carcerários é certamente esse de Dostoiévski,
cuja citação serve de epígrafe deste artigo. Nele, usando o diário
do personagem Alexander Petrovitch Goiantchikov como artifí
cio, o autor conta de forma literária sua própria experiência em

DOSTOIÉVSKI, Fedor. Recordações da casa dos mortos. Lisboa: Euro-


pa-América, 1972, p. 246.
uma prisão da Sibéria entre 1850 e 1854. Por meio das sensações claus-
trofóbicas relacionadas com a privação da liberdade, da fome, do frio,
do convívio forçado com pessoas absolutamente diferentes, Petrovitch
nos relata os percalços de seu martírio, mas involuntariamente nos leva
ao contato com um universo que aparentava estar condenado ao esque
cimento, escondido atrás dos muros do cárcere.

Se montarmos uma.geografia dos lugaresinfernais (conforme a ex


pressão de Le Goíf) de Porto Alegre - capital da província de São Pedro
do Rio Grande do Sul -, no século XIX, certamente se destacará, ao lado
dos cortiços, prostíbulos e bares, a casa de correção, todos considerados
focos de podridão e imoralidade. Ésobre esse local infernal e seus mora
dores habituais que este artigo trata.
O crescimento e a diversificação socioeconômica vivenciada pela
Província de São Pedro na segimda metade do século XIX fizeram com
que a Cadeia Velha fosse considerada inferior às novas necessidades.
Inicialmente localizada no beco ou travessa da cadeia (depois chamada
travessa Dois de Fevereiro e atualmente parte da avenida Salgado Filho),
essa prisão era descrita pelo cronista Coruja como um monumento gó
tico - "horrívelpor fora e perigosa por dentro" -, onde os escravos eram
surrados, e as presas, após nove meses, "tinham o seu bom sucesso" ge
rando filhos de pais incógnitos. ^
Já em 1831, uma comissão encarregada de visitar as prisões e os
estabelecimentos de caridade enviou ao presidente da província um rela
tório detalhado, conforme era determinado pelo artigo 56 da lei de 1°de
outubro de 1828, onde traçava "a pintura dos lastimosos quadros, cujos
originais lhes soltaram os diques à dor, à compaixão e ao desespero".^
Nesse relatório de 17 de outubro, a comissão indignava-se com a
mistura entre presos sentenciados e correcionais, com a aglomeração
dos infelizes condenados em um "quarto pequeno e imundo", mas prin
cipalmente exigia providências quanto à aplicação dos açoites aos escra-

2. CORUJA, Antônio Alvares Pereira. Antigualhas: reminiscências de Porto Ale


gre. Porto Alegre: Cia. União de Seguros Gerais, 1983, p. 127.
3. AHRS - CMPA, Lata 131, maço 125.

62 Sociabilidades, justiças e violências:...


vos correcionalmente presos por ordem de seus senhores. Os castigos
eram feitos com um instrumento chamado "bacalhau", que praticamen
te multiplicava por cinco cada açoite dado. Interessante notar que em
10 de fevereiro daquele mesmo ano, um artigo adicional ao código de
posturas da capital determinava que os castigos aos escravos deviam
ser feitos na "parte inferior da cadeia" e não em "lugares patentes e pú
blicos", demonstrando que a sensibilidade das elites estava em sintonia
com o nível do antagonismo de classes do período: a resistência escrava
merecia respeito e atenção, e os suplícios pareciam estar causando mais
revolta do que medo na comunidade negra.
A comissão considerava que os crimes ou transgressões deviam
ser corrigidos por um castigo justo (moderado, dentro de certos limi
tes), cuja aplicação não deveria causar revolta ou insensibilidade junto
aos demais presos:

Desculpaisenhores, o fogo com que a comissão falou em


semelhante objeto, mas os gemidos dos infelizes troam
ainda em seus ouvidos, a humanidade grita, a religião es
tremece, a civilização se eclipsa, e nossos corações não
podem em segredo sofrer os violentos combates da razão
e dassensações. É preciso, senhores, coibirtão detestáveis
abusos. O Castigo é necessário para a correção do crime,
mas um castigo moderado, um castigo humano. Deixemos
a barbaridade dos castigos para esses tempos tenebrosos,
em que os homens não conheciam seus direitos e os dos
outros homens. A barbaridade dos castigos traz funestas
conseqüências. Os criminosos e os não criminosos que se
acham presos, habituados a ouvir gemidos, se ensurde-
cem às aflições da humanidade e uns, sendo soltos depois
de cumprida a sentença, e outros, quando a prepotência o
quiser soltar, estarão habilitados para cometer toda a sor
te de delitos, porque os gemidos da humanidade já não
tem entrada em seu coração. É preciso, pois, remediar
esses males, e a comissão assim o espera,[grifos do autor]

Com a guerra civil Farroupilha (1835-1845) os assuntos ligados


à construção de uma nova cadeia tiveram de ser adiados, mas dez anos
após o relatório, em 1841, a Cadeia Velha foi desativada e os presos en
viados para o quartel do 8^ BI, no famigerado beco do Oitavo. Final-

Recordações da casa dos mortos:... 63


mente, em 2 de maio de 1845, a câmara municipal aceitou o local indi
cado por uma comissão para a construção da cadeia civil, entre as ruas
do Riachuelo e Duque de Caxias, na praia do Arsenal. Localizada na
beira do rio Guaíba, a área apresentava características compatíveis com
o novo projeto carcerário que estavase idealizando. Em sua justificativa,
a comissão enumerou seis itens que pesaram na escolha do lugar. Três
deles estavam ligados à higiene do novo estabelecimento e à própria
segurança da cidade, pois afastava de seu centro esse foco de epidemias:
o primeiro, que destacava ser o local arejado e de fácil asseio e limpeza,
portanto saudável para seus habitantes; o segundo, que chamava a aten
ção para o seu isolamento que evitavacom eficácia o "derramamento de
qualquer epidemia" e o quinto, que salientava a facilidade na aquisição
de água para o consumo.'* A escolha de um lugar arejado e afastado
do convívio social do centro urbano por excelência estava certamente
ligado às novas noções de higiene baseadas na doutrina dos miasmasy
desenvolvida no século XVIII, que também influenciava no período o
deslocamento dos cemitérios parafora dos limites urbanos.^
O segundo item destacava ser o local ideal para a edificação por
possuir solo rochoso, e o sexto lembrava que o outro local indicado (que
não conseguimos descobrir qual era) poderia ser melhor utilizado se
empregado em uma "bela praça para logradouro público". Já o terceiro
motivo, que estimulava a escolha de um ponto tão isolado, estavaligado
ao sistema elaborado para as casas de correção: deviam ser os presos
subtraídos das vistas do público e mantidos em uma "posição desviada
do movimento geral da população". O sistema punitivo parecia exigir
^ cada vez maior recato - primeiro foram os castigos públicos de escravos
encerrados no interior dos cárceres, e agora as casasde correção deviam
sair dos locais mais agitados da cidade, evitando as epidemias e o possí
vel "contágio do vício".
Aprimeira seçãoda casa de correçãofoiconcluídaem 1855, e para
lá foram transferidos os 195 presos que estavam nas "acanhadas prisões
do oitavo". Na verdade, a construção apresentava inúmeras falhas, o que

4. AHRS - OP, Lata 358, maço 2.


5. REIS, João José. A Morte é uma Festa. São Paulo: Cia. das Letras, 1991, p. 75.

64 Sodabilidades, justiças e violências:,


forçou, no ano seguinte, a devolução dos presos ao local anterior (quar
tel do oitavo) e o início de novas reformas. Ao longo de todo o período
imperial, a cadeia da capital nunca foi completamente concluída, sendo
os novos projetos punitivos prejudicados pela precariedade dos estabe
lecimentos carcerários à disposição.^
Tal precariedade é realçada pelo crescimento da população car
cerária. Tomando como base o número de 195 presos transferidos em
1855, podemos compará-lo com os dados abaixo, de fontes diversas:

Ano N® de presos
1878 306 - 17 alienados^

1879 306 - 350 setenciados, 7 pronunciados, 13 em processo e 19 correicionais


1885 401

1886 387 - 362setenciados, 15 pronunciados, 5 em processo, 16correicionaise 7 alienados


1887 382 - 340 setenciados, 17 pronunciados, 5 em processo, 16 correicionais e 4 alienados
1888 392 - 359 setenciados, 11 pronunciados, 2 em processo, 12 correicionais e 8 alienados,sendo
362 do sexo masculino e 30 do feminino.®

Em seu relatório de 1897, o médico Sebastião Leão informava que


existiam na casa de correção da capital 226 presos.^ A diminuição talvez
tenha ocorrido com a melhoria das cadeias do interior. A precariedade

6. RPP Barão de Muritiba ao passar a administração da Província a Jerônimo Co


elho, em 28 de abril de 1856.
7. Sobre a criação de uma instituição especializada no trato dos alienados, ver:
WADI, Yonissa Marmitt. Palácio de guardar doidos. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2002; WEBER, Beatriz. As artes de curar - medicina, religião, magia
e positivismo na república no-grandense - 1889 - 1928. Santa Maria: Ed. da
UFSM; Bauru: DUSC - Editora da USC, 1999.
8. Fontes: AHRS - CL 79;Jornal do Comércio, n^ 79 de 07 de abril de 1879 e no
106 de 07 de maiode 1886; JornalA Ordem, n°3.812, de 20de outubro de 1886;
Jornal OConservador, 58, de 15 de março de 1887; Jornal OMercantil, 79,
de 09 de abril de 1888.
9. A narrativa do doutor Sebastião José Aífonso Leão é o anexo no 6 do relatório
apresentado ao doutor Júlio Prates de Castilhos, Presidente do Estado do Rio
Grande do Sul, pelo doutor João Abbott, secretário de estado dos Negócios do
Interior e Exterior, em 30 dejulho de 1897. AHRS - SIE.3.- 004: 183/247.

Recordações da casa dos mortos;... 65


das cadeias do interior ao longo do século XIX fez com que centenas de
presos fossem canalizados para a capital, tornando freqüentes os pedi
dos das autoridades policiais para a remoção dos alienados para a Santa
Casa de Misericórdia, de presos militares para fortalezas fora da pro
víncia e de sentenciados (principalmente os condenados às galés perpé
tuas) para a casa de correção da Corte e, mais constantemente, para o
presídio de Fernando de Noronha.
Com uma população emergente, a cadeia da província apresen
tou um quadro de insalubridade, tornando-se um perigoso foco de in-
fecção. Os infelizes, "atulhados aos centenares em espaço insuficiente",
preocupavam as autoridades com o risco do derramamento de um surto
epidêmico na cidade, facilitado pela deficiente circulação de ar no esta
belecimento, que favorecia a estagnação atmosférica e a concentração
de miasmas. Em 1867, em um novo surto de cólera morbus em Porto
Alegre, o chefe de polícia conseguiu remover 51 condenados às galés
perpétuas para Fernão de Noronha.Em 1878 houve novo pedido de
remoção de presos, pois a população carceráriachegava a 300 habitantes
(incluindo 6 loucos), concentrados em 29 celase a cidade estavaameaçada
pela bexiga." Em 1886, com a cólera morbus flagelando a República
Argentina, o chefe de polícia pedia urgente transferência de presos e
a construção da parte restante da cadeia, pois 404 elementos estavam
aglomerados em espaço reservado para 150. O médico da cadeia, por
sua vez, exigia que os presos passassem a tomar banho duas vezes por
semana, e que os tubos com as fezes fossem desinfetados.'^
Avinda de presos para a capital também funcionava no sentido de
cortar as relações desses detentos com suas comunidades de origem, o
que eqüivalia a romper com suas redes familiares e de amizade, minan
do as possibilidades de fuga e reforçando o caráter punitivo da prisão.
Tal foi o caso do sentenciado Serápio Dias Correia (criador, nasci
do no Uruguai, 23 anos, solteiro), que em 1884 encontrava-se recolhido
à prisão da capital vindo de Rio Grande, como incurso no artigo 192 do

10. AHRS - PSP, maço 9,29.07.1867.


11. AHRS - Polícia, maço 87.
12. AHRS - Polícia, códice 106,19 de outubro e 29 de novembro de 1886.

66 Sociabilidades, justiçase violências:...


código criminal pelo assassinato de uma família no lugar denominado
Sotéa, de parceria com outros cúmplices:

[...] sendo ainda de notar a sua ferocidade, por isso que na


ocasião em que tevelugar essa horrível hecatombe diver-
tia-se em atirar repetidas vezes para o ar uma criança de
tenra idade, aparando-a na ponta de uma faca, até tirar-
-Ihe o último alento de vida.''

O chefe de polícia, no mesmo ofício, dirigido ao presidente da


província, informava já ter recusado um pedido desse preso para pas
sear nos corredores da casa de correção, por ser o mesmo "sumamente
perigoso" e ter o "propósito de verseconsegue evadir-se, visto disporde
recursos pecuniários", acrescentando que na cadeia de Rio Grande foi
severa a vigilância junto ao mesmo por ter comparecido "grande massa
de povo" no seu julgamento e por constar "que se pretendia arrancá-lo
da justiça" Em ofício reservado de 6 de agosto de 1884, o mesmo chefe
de polícia informava ter mandadovigiar o réu, não permitindo a entra
da no edifício de quem quer que ali fosse com o fim de falar-lhe e que
mesmo as visitas de seus companheiros de celafossem assistidas.
Até onde podemos perceber dos reincidentes pedidos das autorida
des sobre as transferências de presos, eram os mesmos estimulados pelo
risco docontágio das doenças, que dopresídio pudessem espalhar-se pela
cidade. Entretanto, o que também deve ser salientado é que as casas de
correção, teoricamente construídas para a recuperação dos presos pelo
trabalho e educação, tinhamtambém como finalidade retirá-los do conví
vio social com os homens de bem, evitando o "contágio do vício". Porém,
se buscarmos materiais há pouco considerados não-nobres e portando
desprezados, veremos que no interior da casa dos mortosa vida não para
va, mesclando-se redes microscópicas de solidariedade (mesmo que ins
táveis) e um certo intercâmbio de experiências e tradições de resistência
e sobrevivência entre as chamadas classes perigosas. Comodiz Perrott:^^

13. AHRS - SP, maço 17.


14. AHRS - SP, maço 18.
15. PERROT, Michelle. Os Excluídosda história (Operários, mulheres e prisionei
ros). Rio de janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 242.

Recordações da casa dos mortos:... 67


[...] é a vida real, cotidiana deste grupo - os prisioneiros,
que nos interessa captar, no nível mais oculto e para além
da serenidade e das convenções do discurso penitenciá
rio. Sabe-se como é ilusória, para os povos ou grupos, a
ausência de uma história manifesta, ausência apenas de
traços visíveis que seriam revelados por uma pesquisa
mais aprofundada.

Uma das experiências ensejadas pela sociabilidade dentro dos muros


das prisões era o contato entre presos correcionais e sentenciados, onde cir
culavam várias formas deburlarasautoridades. Presos mais experientes nas
artes da ilegalidade e provavelmente possuidores de um leque mais amplo
de experiências com a arenajudiciária, os sentenciados instruíam os presos
temporários (correcionais ou em processo) na pedagogia do crime.
No ano de 1877, por exemplo, a mando de seu senhor, o escravo Gui
lherme foi castigado na cadeia com 60 palmatórias, distribuídas ao longo
de três dias. Após a surra o cativo tentou iniciar um processo contra seu
senhor, alegando ter apanhado por não querer entregar uma caderneta da
caixa econômica, onde tinha 220 mil réis depositados para seu pecúlio. O
caso chegou ao Jornal do Comércio e o chefe de polícia teve de dar explica
ções ao presidente da província relatando em ofício de 17 de setembro de
1877 que o castigo, conforme corpo de delito anexo, tinha sido dado com
"moderação", sem deixar qualquer vestígio no corpo deGuilherme:

Quanto ao motivo do castigo, é essa uma questão pessoal


que nãocumpre investigar, sendo emtodocaso preferível
desconhecê-lo a aventurar juízos quenãopodem ter sóli
das bases, e do contrário, podemvariar indefinidamente,
desde a mais grave e desqualificada insubordinação do
escravo até a mais injusta e caprichosa vontade dosenhor,
que como disse, tem a mais ampla liberdadede ação den
tro dos limites traçadospela humanidade e pelas leis.'®

Três dias após, a mesma autoridade comunicava à presidência


que, conforme aviso do ministério da justiça de 4 de setembro, deviam
seguir para a corte no primeiro vapor três presos sentenciados da cadeia

16. AHRS - CDP n° 82.

68 Sociabilidades,justiças e violências:.
civil de Porto Alegre. Em um longo ofício, a autoridade policial pedia a
remoção urgente de mais presos para o mesmo destino (a casa de corre
ção da corte) ou para Fernão de Noronha, visando moralizar e prevenir
quaisquer casos imprevistosque prejudicassem a segurançageral dos pre
sos, chamando a atenção para o descontentamento reinante:

A transferência de alguns presos, dentre muitos que se


têm tornado incorrigíveis por seus reiterados atos de in
subordinação, é uma medida parcial e injusta que ofende
a igualdade das condições morais dos mesmos presos e
estimula-os à prática de novos desacatos, senão de novos
crimes. Esse efeito, aliás muito comum e natural, de todas
as providências que não guardam a mais exata relaçãoen
tre o fato e o direito, já se começa a sentir na cadeia dessa
capital, onde alguns presos do número dos incorrigíveis se
mostram irritadoscom a mudança dosseus companheiros
e animam com palavras e conselhos que se estendem até
os mais bem comportados, a insubordinação a desordem.^'

O estado de excitação dos presos assustava o chefe de polícia, que


via na remoção das possíveis lideranças uma forma de acalmaros ânimos.
No mesmo ofício, a autoridade chamava a atenção parao caso do escravo
Guilherme que havia "emprestado" circunstâncias bárbaras a um castigo
"comprovadamente" moderado eque assim agira graças às insinuações de
um "dessespresos incorrigíveis", chamado Bernardino Cândido:

Bernardino Cândido é incontestavelmente o mais peri


goso de todos os presos existentes na cadeia dessa capital,
pois que se com os outros igualmente incorrigíveis par
tilha o mesmo grau de perversidade, excede-os pela sua
inteligência que lhe ministra os meios de obrar, com mais
firmeza e segurança, e de exercer certa infiuência sobre os
espíritos de seus companheiros.

Perverso, porém inteligente, Bernardino exercia liderança entre os


presos e graças a ele o escravo Guilherme tomara conhecimento de que
poderia levarseu caso a justiça (e aos jornais), investindocontra o seu se-

17. AHRS - CDP n^ 82. de 20 de setembro de 1877. Grifos nossos.

Recordações da casa dos mortos:... 69


nhor, seja com argumentos verdadeiros ou fictícios. O espaço carcerário,
como vimos nesse caso, propiciava o contato dos cativos - majoritaria-
mente analfabetos -, com a cultura escrita e a jurisprudência jurídica.
Bernardino, que aparecerá ainda em outras ocasiões, tinha 37 anos
em 1877, era natural dessa província, solteiro e alfaiate. O pedido de sua
remoção, certamente, foi resultado da narrativa por ele escrita e enviada
ao juiz de direito do 1° distrito criminal em janeiro de 1877 queixando-
-se de alguns crimes praticados pelo carcereiro e seus dois ajudantes. A
conseqüênciadessa queixa foi a invasãoda cadeiapelo subdelegado do 3°
distrito, Belmiro José da Silva Neto e pelo delegado Major Bormann, os
quais fecharam-se na secretaria com Bernardino e mediante "promessas
e ameaças" coagiram-no a assinar, no dia seguinte, junto com outros dois
presos que eram suas testemunhas principais, uma petição de desistên
cia e retratação da denúncia. Denúncias contra os carcereiros podiam ser
consideradas sérias afrontas ao chefe de polícia, já que ele era a autoridade
direta encarregada pela nomeação dos responsáveis pela casa de correção,
conforme o regulamento n^ 120de 31 de janeiro de 1842, artigo 46.
Infelizmente não encontramos a narrativa escrita por Bernardino,
mas o caso chegou às nossas mãos por meio de um processo gerado pelo
ingresso desautorizado das autoridades policiais na cadeia. O juiz de di
reito TrajanoViriato Medeiros, em despacho de 12de maio de 1877, con
siderou o processo impossível, julgando que a autoridade policial encar
regada da inspeção das cadeias tinha livre acesso às mesmas - "a qualquer
hora do dia ou da noite" -, não precisando a autorização do comandante
da guardaou da sua presença nos interrogatórios. A autoridade judiciária
considerava o depoimento dospresos sem"fé alguma" e assim o processo
foi abandonado e finalmente prescrito em 8 de dezembro de 1906.'®
Não sabemos que tipo de influência tinha Bernardino fora da ca
deia, sendo inclusive apontado como um preso pobre, mas sua remoção
para fora da província não ocorreu. Em 1884, ainda habitando a casa de
correção da capital, ele foi indiciado em um processo por ter proposi
tadamente embriagado um companheiro de cela, o qual, com suas insi
nuações, acabou assassinando outro preso. Ele consta no processo com

18. APERS - Processo 1345, maço 50.

70 Sociabilidades, justiçase violências:...


o nome de Bernardino Ângelo Antônio Pereira, filho de Ciro da Silva
Cândido, e dizia estar na cadeia desde 1867. Novamente dando provas
de sua capacidade, o réu elaborou sua própria defesa por escrito em
18 de abril, desqualificando suas testemunhas de acusação baseado nos
crimes que as levaram à cadeia. O primeiro, Miguel Pinto (italiano, sa
pateiro, 28 anos, solteiro), condenado pela morte de dois meninos e pela
violação de sepulturas em Quaraí e o segundo, Serápio Dias Correia, já
mencionado, condenado pelo assassinato de "mulheres e crianças".
Em sua defesa, Bernardino acrescentou ainda um exemplar do
jornal Gazetade PortoAlegre^ de 29 de março de 1884, onde o carcereiro
Paulino de Almeida Lemos informava em um artigo que Miguel Pinto
havia sido transferido do xadrez 17, onde era o encarregado, para o 13,
"por ser ele autor de diversas representações e ser cabeça de motim",
tendo sido privado de estudar no harmônio^^ por mau comportamento.
Segundo a defesa do réu, Miguel era:

[...] a revolta personificada, julgando-se de grande inteli


gência, aconselha aos presos a revolta, escrevendo repre
sentações contra seus companheiros de infortúnio, sem
exceção dos empregados do estabelecimento, procedi
mento esse que obrigou o Exmo. Sr. Conselheiro Souza
Martins a exercer severidade contra Miguel Pinto.

Novamente destaca-se a inteligência do preso, que é salientada em


um caso em que o indivíduo parece não só conhecer os meandros (possi
bilidades, limites) da estratégia jurídica, mas não hesita em transmitir esse
conhecimento (compartilhar) com os companheiros de prisão. Salienta-se
aqui a cadeiacomo localde produção e transmissão de conhecimentos.
Ainda em sua defesa, Bernardino somou um ofício do próprio
carcereiro Paulino, onde fica clara a mudança ocorrida em seu conceito
junto às autoridades carcerárias em comparação com 1877. Talvez por
ter recebido apoio do réu em alguma das queixas apresentadas por Mi
guel, Paulino afirma que Bernardino está na cadeia desde 1868 e que
"nada consta relativamente a notar em seu desabono":

19. Harmônio: órgão de sala, espécie de harmônica. BRUNSWICK, Henrique.


Novo Diccionario lllustrado da Língua Portugueza. Lisboa: Editores Santos &
Vieira, 1911, p. 618. 3. ed.

Recordações da casa dos mortos:... 71


[...] certifico mais que o suplicante tem sido de um com
portamento irrepreensível como exemplar, mostrando
respeitar os empregados desse estabelecimento, trabalha
dor, compassivo com seus companheiros de infortúnio e
muitas vezes mantenedor da ordem, quanto algum insu-
bordinado procura perturbá-la.^°

Os documentos que nos permitem olhar através (ou sobre) dos


muros da casa de correção demonstram que ela estavalonge de ser com
posta de sepulcros provisórios.^' Na verdade, os planos de sujeição dos
presos não pareciam dar muito certo. Segundo Perrott:

No interior da prisão, o sistema visa a destruir qualquer


comunidade, a impedir qualquer forma de sociabilidade,
a fim de submeter o recluso às influências do alto e impe
dir o 'contágio do vício.

Visitando a cadeia em agosto de 1883, o chefede polícia constatou


que a aplicação do artigo 9°do regulamento de 1857, permitindo visitas
aos presos das 10 horas da manhã ao meio-dia e das 3 às 4 horas da tar
de, trazia conseqüências funestas.

Nas duas visitas que fiz àquele estabelecimento notei com


desagrado que essamedida só serviapara tornar-seesse lo
cal um verdadeiro mercado, aglomerando-se nos corredo
res grande número de compradorese vendedores, o que é
sobremodo prejudicial à ordem e disciplina tão necessárias
em estabelecimentos de tal ordem. Por essa razão, expedi
portaria ao respectivo carcereiro, proibindo, até segunda
ordem,a entrada de qualquer pessoano estabelecimento, a
não ser nas quintas-feiras, das 10 às 12 horas do dia, e nos
domingos nas horas citadas no dito regulamento."

20. A defesa teve sucesso e Bernardino foi desqualificado como réu pelo juiz de
direito Bernardo Dias de Castro Sobrinho.
21. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 213. 6. ed.
22. PERROTT, op. cit., 1988, p. 266.
23. AHRS - CDP n° 98, ofício de 06 de agosto de 1883 ao presidente da província
/ Grifos nossos.

72 Sociabilidades, justiças e violências:,


Seja com os soldados do exército no interior das prisões ou com
os policiais em serviços públicos nas ruas como galés, os presos manti
nham com seus guardiões uma tênue linha de separação, sensivelmente
fragilizada pelas experiências socioeconômicas e culturais comparti
lhadas. Recrutados compulsoriamente (principalmente no exército) e
sujeitos a ínfimos soldos (em ambos os corpos), os guardiões aproxi
mavam-se perigosamente dos presos, tecendo uma rede de relações que
ultrapassava em muito a mera vigilância.
No RPP de 1859, por exemplo, eram comunicadas duas fugas de
presos ocorridas no ano anterior. Aprimeira, em 10 deabril, quando do
xadrez dos presos civis do hospital de Caridade fíigiram seis galés e um
escravo (sendo apenas um dos galés capturado em Santa Catarina) e a
segunda, em 3 de setembro, quando 11 presos fugiram, sendo quatro
capturados. Segundo o relatório:

A nenhuma segurança de nossasprisões,de ordinário por


sua irregular construção, será uma causa permanente de
semelhantes evasões, a que vem juntar-se muitas vezes a
poucavigilância das guardase a conivência das sentinelas.

Realmente, as fugas conjuntas de guardiões e de sentenciados não


foram raras. Em 10 de dezembro de 1876 fugiram os galés Ezequiel (es
cravo) eJosé Tibúrcio, que conduziam adieta dos presos pobres na enfer
maria daSanta Casa, acompanhados dedois soldados dacompanhia dos
inválidos que os escoltavam.^"* Em 1882, o preso sentenciado Melchiades
dos Santos Cruzfugiu acompanhado do condenado italiano Pascoal Cor-
seta, serrando as grades de seu xadrez e pulando o muro auxiliados por
umas taquaras; no processo que indiciou o carcereiro Rocha como réu,
podemos encontrar vários depoimentos que indicam que afuga fora faci
litada pelo suborno de guardas do 13^ BI quevigiavam o prédio.^^
Em algunsdocumentos percebemos que essasredesde relações eram
tecidas por meio de pequenos favores trocados entre aqueles que, como os
guardiões e os sentenciados, mantinham entre si uma pequena distância,
reduzida drasticamente por uma experiência comumjuntoà pobreza.

24. AHRS-CDPn°79.
25. APERS - Processo 1469, maço 56.

Recordações da casa dos mortos;... 73


No ano de 1886, por exemplo, o preso sentenciado João Casado foi
agredido pelo soldado do 13^ BI Cosme Oliveira (22 anos, solteiro, do
Ceará, morando há quatro anos em Porto Alegre). João fazia a faxina do
corpo da guarda e solicitou a um dos soldados que lhe buscasse um pou
co de canjica, dando dois vinténs pelo serviço. O réu Cosme, também de
guarda, pediu que lhe desse a mesma quantia, ao que o preso respondeu
que não tinha dinheiro mas que pagaria "dando-lhe bóia na cozinha, onde
ele [soldado] estavaacostumado a ir pedir-lhe". Cosmedesmentiu a agres
são, dizendo que a denúncia era uma vingança por não ter consentido na
entrega de bebida ao ofendido, vinda de fora da cadeia. 26

Para ilustrar o que quisemos dizer acima com experiência comum


junto à pobrezUy podemos citar a visita feita em dezembro de 1886 às
casas de moradia das praças casadas do 13° BI, que constam em vários
processos como os responsáveis pela vigilância da casa de correção. A
comissão encarregada da visita foi formada pelo comando do 13° BI e
visavaprevenir a propagação da cólera. As casas ficavam nas proximida
des do quartel do 13°, no antigo beco do oitavo, e foram assim descritas:

As habitações a que dão o nome de casas, com exceção


dasquedão de frente para a rua 3 de Novembro, sãoina-
bitáveis, porque algumas são edificadas de modo a for
marem um acervo de cubículos de tamanho tão limitado
queprecisa grandeesforço para respirar ar nascondições
mais anormais de temperatura. São julgadas essas habita
ções muito inferiores debaixo de todos os pontos de vista
às águas-furtadas, últimadas habitações aproveitadas nas
cidades populosas, porque ao menos nessas, pela sua al
tura, o ar, se bem com dificuldade, se renova mais facil
mente. Além disso, tão miseráveis e nauseabundas man
sardas nãorecebem sequer um raio desol, o que dá lugar
a conservar sempre umidade, que com o aumento de
temperatura, desenvolve miasmas que muito concorre
rão para prejudicar constantemente o estado sanitário da
população, se isso se dá assim, é óbvio que muito maior
mal produzirá quando tenha lugar o desenvolvimento de
uma epidemia qualquer. A demolição de tais cubículos
não nos parece só uma medida higiênica, mas também

26. APERS - Cartório Sumário Júri, maço 64, Processo 1.620.

74 Sociabilídades,justiças e violências:...
humanitária. Esses cubículos estão agrupados, uns na es
quina da rua 3 de Novembro e General Bento Gonçalves,
outros cujo conjunto constituem o cortiço que o vulgo
chama 'o Céu: no porão da casa onde mora o taverneiro
Salles e, finalmente, outros edificados no corredor e fun
dos do sobrado existenteentre o quartel e a rua General
Bento Gonçalves.^^

Em 10 de dezembro de 1886, o comando do 13- BI comunicava já


terordenado a remoção das praças daquelas casas, mas estava certo deque,
tão logo desocupadas, seriam alugadas por "gente do povo, quejogacom a
mesma identidade de recursos", sendo necessário que a câmara municipal
as reconstruísse commelhores condições higiênicas ou asdemolissem.
Partilhando experiências comuns, o contato entre guardiões e
sentenciados era ainda maior quando feito fora dos muros da cadeia,
quando osgalés trabalhavam em serviços públicos ou navenda de algu
ma produção feita na casa de correção.
Em 1879 foi feita umarepresentação à câmara dos deputados pelo
clube dalavoura deCampinas, composto defazendeiros famosos de São
Paulo "por sua truculência no trato dos escravos", pedindo o fim da lei
de 1835 e a de galés.^® Esses proprietários justificavam a ineficácia de
ambos instrumentos repressivos, baseados no hábito do imperador em
conceder perdão às penas de morte (trocadas por penas de galés per
pétuas) e por que a pena de galés mais estimulava do que intimidava
a criminalidade. Segundo Chalhoub, "os proprietários realmente acha
vam que os escravos preferiam cumprir pena de trabalhos forçados na
penitenciária ouemserviços públicos a labutarem em suas fazendas".
Segundo Célia Azevedo a substituição da pena de morte pela de
galés perpétuas estimulou os escravos ao crime, já que eles prefeririam
trocar as senzalas pelas cadeias públicas:

27. AHMPOA - CMPA, livro 40.


28. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. SãoPaulo: Cia.das Letras, 1990, p 178.
29. CHALHOUB, op. cit.: 1990, p. 179.

Recordações da casa dos mortos:... 75


Longe de significar uma suavização da sorte no sentido
materialdo termo, o escravo condenadoàs galés continu
ava a viver em ambientes miseráveis, semelhantes aos das
senzalas ou talvez até piores; durante o dia era do mesmo
modo obrigado a trabalhos (públicos), com o agravante
de trabalhar permanentemente acorrentado aos outros
presos, mediante calcetas e golilhas. Porém, ao ingressar
nas galés, ele se tornava membro de uma comunidade sui
generis, onde pareciam tênues os limitesentre dominantes
e dominados, ou entre guardas e prisioneiros, no ruidoso
espetáculo de sua passagem diária pelas cidades e vilas.

Longe dos olhares do carcereiro os policiais consentiam (e parti


lhavam) as transgressões cometidas pelos galés sob sua custódia, base
ados na solidariedade ou no suborno, já que pelos biscates, pequenas
produções ou capitais acumulados antes da prisão, os sentenciados po
diam possuir somas em dinheiro. Salientamos os policiais por serem os
principais responsáveis pela guarda dos galés fora das cadeias: a distân
cia da casa de correção e o contato íntimo com os sentenciados diluía a
instituição, aparecendo o indivíduo.
No dia 28 de maio de 1870 o presidente da província informava
ao chefe de polícia que naquela data advertia o comando do corpo po
licial, "para providenciar de modo a cessar o abuso [...] de consentirem
as praças que guardam os galés empregados nas obras da rua Duque
de Caxias, que os mesmos presos comprem aguardente e vão à taberna
beber em horas de trabalho".^' Em junho do ano seguinte foi a vez dos
soldados do 4^ BI, encarregados de vigiar os galés que trabalhavam na
estação telegráfica, merecerem atençãodo chefe de polícia. Os soldados,
segundo consta, permitiam que os galés passeassem pela cidade e se
embriagassem nas tabernas, recolhendo-os só de tarde à prisão.^^ Às 16
horas do dia 21 de dezembro de 1881 o escravo pardo Antônio fugiu.
Antonio, com mais dois cativos presos por correção, fazia a faxina na
frente do edifício da cadeia, vigiados por um soldado do 13^ BI e por um

30. AZEVEDO, Célia. Onda negra, medo branco. São Paulo: Cia. das Letras, 1987,
p 195. Grifos nossos.
31. AHRS - CD? no 252.
32. AHRS - CGRS, maço 111.

76 Sociabilídades, justiças e violências:.


preso de confiança. Na fiiga, Antônio foi visto caminhando "apressada
mente" por outros dois presos, Manoel Generoso e o escravo Jacinto (23
anos, solteiro), que voltavam da Santa Casa e estavam em uma taherna na
rua dos Andradas, esquina da guarda principal. Indiciado como réu pela
fiiga dos presos, o carcereiro Joaquim Vieira da Rocha (casado, 55 anos)
defendeu-se dizendo que os escravos presos por ordem de seus senhores
dificilmente fogem (o que justificava a pouca vigilância), pois preferiam
esses serviços na cadeia a quaisquer outros em poder de seus senhores.- 33

Algumas vezes as fronteiras entre os presos e seus vigias eram


rompidas negativamente, passando um para o papel de sentenciado e
o outro para o mundo da liberdade. Como chovia muito, o serviço de
calçamento feito pelos galés da rua General Paranhos (parte da atual
Borges de Medeiros), em 24 de abril de 1872, teve de ser interrompido.
Fazendo parte da escolta dos galés, o policial João Antônio, antes de
recolher-se para a cadeia, passou em uma venda com o galé Adão. Lá,
ambos embriagaram-se e Adão, aproveitando-se da espiritualidade mo
mentânea do policial, conseguiu fugir. Por essa falta, Adão foi condena
do a 14meses de prisão simples, passando a ser sustentado pelos cofres
provinciais por ser pobre.
Na tarde de 02 de junho de 1872 o preso Domingos José Pereira
(39 anos, solteiro, sapateiro), condenado a galés perpétuas por homi
cídio, conseguiu fíigir. Ele estava encarregado da faxina do quartel da
polícia e, naquele dia, ao buscar na cadeia civil sua alimentação, voltou
escoltado pelopolicial uruguaio Irineu Lopes Mansilha (40 anos, soltei
ro). A convite do galé dirigiram-se ao beco do Barbosa, "onde residem
mulheres de má nota" e entraram em uma das casas, onde, aproveitan
do a demora do policial. Domingos fugiu. Irineu, em seu depoimento,
reconheceu que o galé iludiu sua vigilância, mas declarou não ter sido
proposital, pois "era costume no quartel deixar-se o sentenciado com
pouca vigilância". Outra testemunha arrolada, o policial Antero Sil-

33. APERS - 1° Cartório de Porto Alegre,Sumário Júri, maço 56, processo 1.462.
34. APERS - Cartório Júri, Porto Alegre, maço 43, processo 1.238.
35. Dostoiévski relata que graças a um bom suborno o preso e sua escolta iam às
escondidas "paraum bairroescuso", afinal o dinheiro do forçado não inspirava
"mais repugnância do que o de qualquer homem". Op. Cit., 1972, p. 48/49.

Recordações da casa dos mortos:... 77


va, mandado pelo sargento procurar seu companheiro e o galé, e não os
encontrando na cadeia, "em segxiida foi à casa de duas mulheres que o
galé costumava freqüentar". O réu Irineu foi preso um mês depois, pois
saiu em perseguição de Domingos, aprisionando-o perto de Viamão e
trazendo-o de volta, o que lhe valeu a absolvição.^®
Interessante notar que ambos os policiais chamaram a atenção
para o costume gerado pelo convívio em comum, seja de deixar o galé
com pouca vigilância, seja de permitir que ele visite casas de paraguaias.
Ainda podemos selecionar outro caso para ilustrar os contatos
possíveis entre os presos e suas escoltas. Na manhã de 26 de abril de
1881 os galés JoséLourenço e Samuel da Silva (condenados a oito e qua
tro anos e meio, respectivamente) terminaram a faxina do palácio do
governo onde eram vigiados pelos policiais José Oliveira e Alexandre
da Porciúncula. Ao saírem do palácio os presos pediram que, conforme
era costume autorizado pelo carcereiro, fossem na várzea vender alguns
chinelos fabricados por elesna cadeia e visitar a família de um deles. Se
gundo o policialAlexandre, indiciado como réu, ao chegaremà Azenha
entraram em uma venda e comeram sardinhas. Após a refeição Alexan
dre solicitou autorização a José Martins, encarregado da escolta, para
"fazer uma necessidade" nos fundos de um quintal - quando voltou não
os encontrou mais. Assustado com a fuga dos galés e de seu companhei
ro de farda, Alexandre foi procurá-los em dois pontos que considerou
importante: primeiro, em casas da Azenha, "onde costumavam comprar
sola para seus trabalhos na cadeia, isto com a permissão do carcereiro,
que por vezes se mostrava contrariado quando os guardas não acediam"
e, segundo, no famigerado beco do Barbosa, onde provavelmente fre
qüentavam casas de prostitutas. Foi constatado que José Martins pre
meditara a fuga, pagando a um outro policial hum mil e quinhentos réis
- 1$500 - para substituí-lo na escolta. O promotor público considerou
que Alexandre era inocente, mas o juiz de direito Salustiano Orlando
de Araújo Costa, pretendendo dar uma lição contra os atos revoltantes
diariamente assistidos nas ruas da capital, considerou procedente o pro
cesso contra os dois policiais, pois:

36. APERS - Processo 1.268, maço 44.

78 Sociabilidades, justiças e violências:...


[...] indo para o Campo do Bom Fim fazer quitanda e
beber em uma taverna pela negligência do primeiro réu
Porciúncula e conivência do segundo, JoséMartins, sendo
revoltanteque galés, em vez de serem empregados em tra
balhos públicos, andempelas ruas destacapitalquitandan-
do, oferecendo-se por isso ocasião a que eles se evadam no
ano primeiro de suas sentenças condenatórias.

Segundo Foucault, no sistema punitivo característico do antigo


regime, o condenado era tido como coisa do reU onde o monarca impri
mia sua marca considerando o crime como um atentado pessoal. Já em
um período posterior, o sentenciado deveria responder por seu crime a
sociedade à qual ofendeu com sua transgressão. Fazendo parte de uma
sábia "economia de publicidade", a punição deveria ter como base a "li
ção, o discurso, o sinal decifrável, a encenação e a exposição da morali
dade pública". Assim, as obras públicas apareciam com destaque ence
nando nas ruas da cidade o cerimonial punitivo considerado ideal pelos
reformadores, com osgalés atuando como "uma espécie depropriedade
rentável": um escravo posto a serviço de todos.
Obra pública quer dizerduas coisas: interesse coletivo na pena do
condenado e caráter visível, controlável do castigo. O culpado, assim,
paga duas vezes: pelo trabalho que ele fornece e pelos sinais queproduz.
No centro da sociedade, nas praças públicas ou nas grandes estradas, o
condenado irradia lucros e significações. Ele serve visivelmente a cada
um: mas, ao mesmo tempo. Introduz no espírito de todos o sinal-casti-
go: utilidade, puramente moral esta, mas tanto mais real.
Entretanto, o quadro que encontramos pela documentação mos
tra que os atores sociais não demonstravam muita vontade de exercer
seus papéis conforme o enredo previamente planejado. Os jornais cla
mavam e as autoridades policiais faziam insistentes reclamações, pois
percebiam não serem moralizadores os sinais deixados pela passagem
dos galés pelas ruas, embriagando-se nos bares, freqüentando casas de
prostitutas, vendendo suas pequenas produções e convivendo (inclusi-

37. APERS - Cartório Sumário Júri, maço 54, processo 1.414/Grifos nossos.
38. FOUCAULT, op. cit., 1988, p. 98/99.

Recordações da casa dos mortos:... 79


ve fugindo) em excessiva cumplicidade com seus vigias. O poder, con
forme ensinou Michel Foucault, não é sempre vencedor, servindo cada
nova ofensiva como ponto de apoio a uma contraofensiva.^^ Os projetos
punitivos eram modernos, mas a realidade mostrava-se renitente, seja
pela escassez de verbas provinciais ou pela forma de recrutamento de
soldados e policiais que aproximava guardas e sentenciados.
A historiadora Beatriz Weber^° considerou a construção da casa
de correção como demonstrativa de uma nova forma de tratar a punição
dos indivíduos tidos como marginais: tratava-se agora de punir corri
gindo, buscando a regeneração dos culpados. Cumprindo a lei provin
cial n° 2 de 17 de junho de 1835,que determinava a construção de casas
de correção em Porto Alegre e São Francisco de Paula, com espaço para
o trabalho e educação dos presos (artigos 3^ e 4°), foi organizado em
1855 um regulamento provisório para as oficinas que deviam funcionar
na cadeia civil da capital. O RPP Barão de Muritiba, de 1855, reconhecia
que o trabalho realizado até ali não era completo, pela própria precarie
dade do edifício, mas no novo regulamento:

[...] se acham estabelecias as regras principais e, atendidas


as primeiras conveniências do regime das Casas de Cor
reção e se for bem executado, não deixará de preencher as
vistasúnicas,que o produziram, de moralizaro condenados
por meio do trabalho, de prover o futuro de indivíduos, que
se hoje são réus por haverem infringido as leis e ofendido
os direitos sociais de seus concidadãos, amanhã poderão
ser membros úteis da sociedade, de aliviar enfim os cofres
provinciais, de parte ao menos, de todas as despesas que
ora fazem com as cadeias da província, abrindo-lhes uma
fonte de renda que,se a princípio não poderá deixarde ser
exígua, será considerável para o futuro.

39. FOUCAULT, op. cit., 1986: 227.


40. WEBER, Beatriz Teixeira. Códigos de postura e regulamentaçõesdo convívioso
cial em Porto Alegre no século XIX. Porto Alegre: UFRGS, 1990, p. 52. Disser
tação de Mestrado.
41. RPP Barão de Muritiba na abertura da Assembléia Legislativa Provincial em 1
de outubro de 1855.

80 Sociabilidades, justiças e violências;.


Segundo o relatório, já existiam organizadas oficinas de alfaiates
(com 16 membros), sapateiros (12), correeiros (3), carpinteiros (7), ta-
manqueiros (5), trançadores (4), tanoeiros (3), marceneiros (2) e costu
reiras (5). Difícil imaginar que existissemtais oficinas instaladas em um
prédio que, como já relatamos, encontrava-se com graves problemas em
sua construção inaugural. Esses 57 presos (dos 195 existentes) deviam
empregar-se nessas ocupações em suas respectivas celas ou em espaços
precários simplesmente denominados como oficinas.
O regulamento determinava que deveriam existir oficinas conve
nientes para ambos os sexos, "preferindo-se as que menos complicadas
forem e melhor extração acharem aos seus produtos" (artigo5^), ficando
divididas, tanto quanto possível, segundo as classes dos pobres (artigo
8°) e tendo por mestre "aquele preso que o merecer, por seu bom com
portamento, perícia no ofício que tiver de dirigir e aptidão para ensinar"
(artigo 12°), sendo o produto do trabalho dividido em quatro partes
iguais: uma guardada em forma de pecúlio dos presos no cofre provin
cial,outra entregue aos mesmos mensalmente com eventuais descontos
de objetos subtraídos ou estragados nas oficinas e duas partes recolhidas
para a província para despesas com alimentação, vestuário e adminis
tração das oficinas (Capítulo 4).
Visando moralizar pelo trabalho e ao mesmo tempo aliviar os co
fres provinciais, as oficinas atingiriamtodos os indivíduos que a saúde e
a idade permitissem, ficando os mesmos obrigados a exercer ou apren
der um dos ofícios oferecidos"*^ . Fica explícito no regulamento que a
moralização era compulsória, não devendo existir espaço para a ociosi
dade, mãe dos comportamentos desregrados:

[...] quando mostram a vontade ou não tiverem a ne


cessária aplicação, o carcereiro poderá restringir-lhes o
alimento, encerrá-los na célula escura ou submetê-los a

42. Deveriam fazer parte das oficinas e por elas distribuídos conforme suas apti
dões e vocações, aqueles determinados no artigo 22: § 1° - os condenados à
prisão com trabalho, qualquer que seja o tempo de duração da pena; § 2° - os
menores condenados; § 3° - os mendigos e vadios; § 4° - os condenados à pri
são simples que quiserem; § 5° - os escravos que foram recolhidos à prisão, e
cujos donos não os reclamarem dentro do prazo de seis meses.

Recordações da casa dos mortos:... 81


trabalhos pesados, até que mostrem disposição para os da
oficina a que forem destinados (artigo 7°).

O que os documentos pesquisados mostram é que tais projetos


de regeneração tinham maior relevância na teoria do que na prática. O
excesso da população carcerária, o eternamente incompleto prédio e a
precariedade das verbas disponíveis minavamas disposiçõesdas autori
dades imperiais, forçando os sentenciados a iniciativas próprias.
Ainda em 1886 o quadro não era diferente de 10 anos atrás, con
forme podemos visualizar pelo relatório da comissão encarregada da
visita à cadeia de Porto Alegre, formada por FelicíssimoManoel de Aze
vedo, Júlio de Castühos, Aquiles Porto Alegre, João Câncio Gomes e
o Dr. Ramiro Barcelos. O quadro encontrado deu-lhes uma impressão
desagradável logo que entraram no primeiro piso, causada pela ausência
de caiação nas paredes e pelo assoalho em ruínas, por onde podiam os
presos passar para o porão, facilitando as fugas. Além disso:

Todos os compartimentos são ocupados pelo quádruplo


de pessoas que podem neles habitar; assim é que em um
xadrez que tem dois e meio metros de altura sobre cinco
de comprido, contamos 14 mulheres. Expliquemos me
lhor. Nesse antro, que serve de recolhimento, contou a
comissão 14 embrulhos de esteiras encostadas às paredes,
asquais abertas à noite sobre o soalho em ruínas, forram
com os andrajos que eles contém, outras tantas camas.
No centro dessas duas turmas de camas fica o espaço de
metro e meio de largura, onde seacomodam as infelizes
moradoras com o tubo de matérias fecais e uma grande
bacia, onde estavam lavando roupa; para completar esse
quadro negro, notou a comissão os sinais estampados
nas negras paredes; da água que por elas corre, vinda do
andar superior, que a recebe do telhado, que se acha em
pouco melhor estado do que o assoalho da casa. Poderá
se fazer idéia dessa inquisitorial prisão, considerando-se
o desespero dessa miserável gente, amalgamada como
objetos em uma caixa, recebendo sobre si, durante a noi
te, a água da chuva, sem ter para onde desviar-se."*'

43. AHRS - CMPA, Lata 137/H, maço 149.

82 Sociabilidades, justiças e violências:...


Segundo a mesma comissão, os presos exercitavam suas diversas
atividades industriais sem qualquer separação, existindo ainda "nos vas
tos corredores, crescido número de presos, a quem é facilitado o trabalho
nestes lugares, por não haver espaço no interior, o que não deixa de ser
inconveniente para a segurança dos mesmos". A lei que criou esse esta
belecimento determinou-lhe largas proporções que incluiriam oficinas,
onde os presos aprenderiam um ofício. A construção, entretanto, só atin
gira um terço dos planos "caducando o estabelecimento das oficinas, por
falta de espaços, e assim tem decorrido 30 anos". A comissão considerava
o reinicio das obras como uma das maiores necessidades da província:

[...] pondo-o [o prédio] assim em estado de preencher o


fim para que foi destinado, que é dar agasalho e instrução
artística aos desgraçados, a que a fatalidade ou os maus
instintos naturais degradam, ao ponto de ser necessário
retirá-los do contato da sociedade. A sociedade que, para
bem de sua segurança e tranqüilidade, retira de seu seio
os membros corruptos dela, não deve mostrar-se tão de
sumana e cruel com eles, tratando-os pela forma por que
acaba de expor a comissão. É urgente a necessidade de
retirar-se pelo menos metade dos habitantes daquela casa
para outro edifício, até que seja aumentada a sua capaci
dade, ou então, em bem da humanidade sofredora, deve
esta Câmara impetrar a Sua Majestade o perdão de gran
de parte desses infelizes, tão desumanamente tratados,
para assim serem os restantes acomodados mais conve
nientemente. As cadeias, entende a comissão, são estabe
lecimentos destinados a dar nova educação aos infelizes
que ali são lançados, expurgando-os dos maus instintos,
para depois de melhor educados na prática do trabalho,
voltarem de novo à sociedade. ^

44. AHRS - AMCMPA, maço 149 / Grifos nossos. O Relatório surtiu efeito e foi
liberado um crédito junto à fazenda provincial de 70 contos de réis, a fim de
ser terminado o prédio tornando-o compatível com o "adiantamento da época,
afastando-o das prisões medievais, ao que se assemelha'. Nafala do presidente da
província Galdino Pimentel à Assembléia Provincial, em 01 de março de 1889,
notamos queo projeto de regeneração frustrou-se aolongo do período imperial.
Com uma população de 400 presos, o presidente alertava: "Tão grande núme
ro de presos, reunidos sem que se cuide de sua regeneração, traz em resultado
perder-se a esperança dereabilitação dos condenados, tornando-se diaa dia cada

Recordações da casa dos mortos:... 83


Apesar de todas as reclamações das autoridades, os processos nos
permitem visualizar um quadro diferente: apesar da falta de apoio ofi
cial, os presos em geral dedicavam-se à alguma atividade que lhes pos
sibilitasse adquirir pequenos recursos em dinheiro."^^
No mês de junho de 1883, foi iniciado um processo contra o car
cereiro da casa de correção José Francisco Soares (56 anos, casado, mi
litar reformado, do Recife), acusado de receber retribuições pecuniárias
por permitir os jogos proibidos pelo regulamento, o passeio pelos cor
redores e na rua, a transferência de celas e a utilização de presos para
serviços particulares. Segundo dois comandantes anteriores da guarda
da cadeia, o carcereiro permitia aos oficiais que ocupassem esses cargos
e que cumprissem suas exigências, pernoitarem na Sala Livre "para con
sumação da mais requintada depravação" com a presa Matildes, a qual
circulava livremente pelo edifício gozando de "regalias extraordinárias".
O preso oriental Felipe Rosa (41 anos, casado), condenado a galés per
pétuas, denunciou uma tabela (comprovada por outras testemunhas) de
preços cobrados pelo carcereiro:
1$000 réis: pelo passeio pelo corredor até meio-dia;
2$000 réis: pelo passeio pelo corredor por todo dia;
3$000 réis: para jogar toda a noite;
20$000 réis: pelo aluguel das celas.'*®

um deles mais depravado pelo contato com os que já endurecidos na prática do


crime não são mais susceptíveis de reabilitação. É necessário que se conciliem os
interesses da sociedadecom os direitos dos sentenciados. A regeneração só pode vir
pela educação e pelo trabalho, e para isso é mister que se criem oficinas e uma es
cola. Da despesa a fazer com esse serviço, será mais tarde a província largamente
indenizada, e os dinheiros públicos serão economizados, quando, devidamente
instaladas as oficinas, puderem os presos prover com o produto do seu trabalho
a própria alimentação". AHRS - CL n® 614, ato 97 de 1886.
45. Segundo as memórias do cárcere de Dostoiévski o dinheiro dava aos presos
uma ilusão de liberdade, principalmente quando conseguiam gastá-lo em ta
baco ou bebidas. Segundo ele, o "sentido que se atribui à palavra 'preso' é o
de homem privado do seu livre arbítrio. Mas quando esse homem gasta o seu
dinheiro, faz o que quer". DOSTOIÉVSKI, op. cit: 82.
46. APERS - P Cartório Sumário Júri, maço 58, processo 1.491.

84 Sociabilidades,justiças e violências:...
o português Miguel Souza (58 anos, casado), condenado a 14
anos de prisão simples por homicídio, disse ter sido desde 1872 chavei
ro da cadeia, até que um preso deu ao atual carcereiro 50 mil réis para
ocupar o cargo. Ocupando o terceiro posto mais importante da cadeia,
pois segundo o artigo 3^ § 3° devia substituir o ajudante do carcereiro
em sua ausência, Miguel cobrava dos presos as quantias da lista referida.
Miguel ainda informou que, devido a queixas do encarregado do xadrez
7, foram separados os presos Luiz e Antônio, por se entregarem "habitu
almente ao vício da sodomia", mas dias depois o preso Luiz deu 40$000
réis ao carcereiro e o casal de homossexuais foi reunido, continuando
"na mesmavida dissoluta". SegundoMiguel, em 1883, o encarregado de
recolher 5$000 ( cinco mil réis) como permissão para os jogosnas celas
- ficando ainda o vencedor obrigado a premiar o carcereiro com uma
gorjeta -, era o já conhecido preso Bernardino Cândido!
A queixa parece ter surgido de uma denúncia "escrita e verbal"
feita por alguns dos presos ao subdelegado do 3°distrito da capital José
Parafita (37 anos, negociante). Na sua defesa, o carcereiro arrolou uma
condecoração militar, um ofício do chefe de polícia, um da secretaria de
polícia informando que nos registros das sete visitas feitas à cadeia não
constam quaisquer faltas, e um atestado do Dr. Manoel Pereira(médico
da cadeia), declarando que a presa Matildes sofria das faculdades inte
lectuais, possuindo "monomania amorosa, persuadindo-se que certos e
determinados indivíduos" eram apaixonados por ela.
Para o que mais nos interessa no momento, o carcereiro anexa
um ofício do chefe de polícia José Maria de Araújo, de 8 de fevereiro de
1883, louvando a atitude do réu em prender um indivíduoque conduzia
aguardente à cadeia (caixeiro da venda do subdelegado Parafita), soli
citando que fosse benévolo e que soltasse o réu. Comprovando a exis
tência de um comércio ativo entre os presos e a venda do subdelegado,
o réu ainda incluiu uma lista de compras e de dívidas do sentenciado
Francisco Durão (30 anos, viúvo, português), condenado a 14 anos de
prisão simples por homicídio, que nos dá uma idéia dostrabalhos a que
se dedicavam os presos. Aquantidade dos produtos comprados ou tro
cados parece indicar que Durão exercia o papel de intermediário entre
a produção dos presos e a venda de Parafita. Em troca de erva-mate,
fumo picado, banha, café, açúcar, fósforo, papel de embrulho, charutos.

Recordações da casa dos mortos:... 85


palhas, cana, garrafa de pimenta, vinho virgem, lingüiça, carvão, rapa
duras, Durão entregou dinheiro e os seguintes artigos provavelmente
produzidos pelos presos:
14 camisas ($500 [quinhentos réis] cada uma)
10 calças ($640 [seiscentos e quarenta réis] cada uma)
mantas ($800 [oitocentos réis])
chinelos ($800 [oitocentos réis])
chapéu ($200 [duzentos réis])
Assim, mesmo que as iniciativas estatais fracassassem, os presos in
sistiam em desmentir sua ociosidade permanecendo ocupados em vários
serviços e contando com o apoio do carcereiro, seja ele espontâneo ou
como produto de suborno, como no caso acima no qual os presos com
pravam a permissão para quitandear nas ruas, a qual podia ser usada
como prêmio ou castigo pelas autoridades carcerárias. No processo 1.414
de 1881 - já tratado aqui, sobre a fuga dos galés José e Samuel acom
panhados do policial Alexandre - encontramos presos contando com a
permissãodo carcereiro que "por costume"deixava-os vender nas ruas os
chinelos produzidos na cadeia.''® Se os presos davam bastante importân
ciaao dinheiro (quefacilitava suavidana prisão não só peloquepermitia
adquirir, mas por que simbolicamente representava um resíduo de liber
dade) é evidente que trocariam socos e facadas motivados por dívidas.
Foi o que ocorreu em 30 de julho de 1873 àssete horas da manhã,
na cela seis, quando o preso Jenuíno Favas (45 anos, solteiro, marítimo,
do Ceará) esfaqueou seu companheiro de xadrez Joaquim de Santa Ana
(26 anos, solteiro) por não querer lhe pagar os mil réis que lhe devia.
Santa Ana alegava que pagaria sua dívida tão logo vendesse sua produ
ção de chapéus e testemunhou dizendo que ele e o réu davam-se muito
bem, tendo Favas sido "seu mestre de fazer chapéus".''®
As citadas oficinas que existiriam na prisão da capitaljá no perío
do imperial - que eram repetidamente citadas pelas autoridades -, só
foram encontradas no processo 1402, que envolvia o carcereiro Major

47. APERS - Cartório Sumário Júri, maço 58, processo 1.491.


48. APERS - Processo 1.414, maço 54.
49. APERS - Processo 1.259, maço 44.

86 Sociabilidades,justiças e violências:,
José Leitão (63 anos, casado, dessa província), acusado da negligência no
afogamento do preso Joaquim Almeida, no Rio Guaíba, sentenciado a 14
anos de prisão simples pelo Júri de Jaguarão.^® Almeida, preso de con
fiança, afogou-se ao nadar em busca de um pau que ia rio abaixo, em 24
de maio de 1880, tendo, segundo uma das testemunhas, momentos antes
ido buscaruma cordana oficina de carpinteiro em quetrabalhava. O preso
falecido, apesar de ter sido condenado no interior da província, manteve
o vínculo familiar, sendo visitado regularmente por Florisbela Maria da
Conceição (50 anos, solteira, do Rio de Janeiro) que depôs dizendo:

[...] que é mãe de um filho do preso Joaquim [...] e por


isso tratava muito deste, indo à cadeia todos os dias levar-
-Ihe comida (APERS - Processo 1.402, maço 53).

Florisbela ainda afirmou que Almeida fazia serviços de carpinta-


ria para fora da cadeia e para o carcereiro, tendo presenciado duas vezes
o mesmo pedir emprestado ao preso 5$000 (cinco mil réis). O juiz de
direito, considerando que o preso ocupava posição de auxiliar jimto ao
carcereiro "com certo grau de confiança, com consentimento de diferen
tes chefes depolícia, inspetores deprisão" e tendo o fato ocorrido "fora da
previsão do réu" e sob as vistas de uma sentinela, absolveu o carcereiro.
Mas pelo que já percebemos no relatório da comissão de 1886, os
presos geralmente faziam seus trabalhos na própria cela ou utilizando o
espaço dos corredores da casa de correção. Em 3 de dezembro de 1886,
por exemplo, brigaram no xadrez 26, os presos Antônio Lopes (34 anos,
solteiro, sapateiro), o ex-escravo Miguel (24 anos, solteiro) e Leocádio da
Silva (29 anos, solteiro). Antônio foi indiciado como réu por ter agredido
com sua^cfl desapateiro seusdois companheiros de prisão, no momen
to em que "montava sua banca". Segundo seu depoimento, ao mudar de
xadrez iniciou uma discussão com outro preso e foi repreendido por Le
ocádio, encarregado da cela, ao qual disse "você não mepodecalar, poisé
preso com eu". Levado a júri foi absolvido por unanimidade.^'

50. APERS - Maço 53.


51. APERS - Processo 1.610, maço 64.

Recordações da casa dos mortos:. 87


A troca de favores com as autoridades carcerárias envolvendo o
trabalho dos presos podia também levar a conflitos. Na noite de 4 de
dezembro de 1882, o preto José de Oliveira (solteiro, de Camaquã, na
cadeia desde 1880), que era marceneiro mas na cadeia trabalhava como
sapateiro, estando pacificamente pregando enfeites em um chinelo') foi
chamado de negro pelo preso Camilo Perez (48 anos, solteiro,do estado
oriental), também sapateiro, retribuindo a ofensa com uma facada. Se
gundo as testemunhas, Camilo estava embriagado e:

[...] já incomodado com os empregados por não terem


querido dar a ferramenta para trabalhar, falava só, dizen
do que ele não precisava de favores dos empregados da
casa, nem tampouco dos presos que saíam para o serviço
dos corredores, pois que são aduladores daqueles, ao que
o acusado respondeu que saía para o serviço nos corredo
res, porém que não adulava a ninguém."

Pela documentação abordada, notamos que enquanto os presos


ocupavam-se em ofícios artesanais diversos, as mulheres sentenciadas
dedicavam-se ao serviço de lavadeiras e de costureiras. Ao receberem li
cença paraa lavagem das roupas junto ao rio, assentenciadas adquiriam
também um espaço de mobilidade relativa, onde podiam ter relações
sexuais com outros presos ou mesmo com seus guardiões.
Em 1876 foram denunciados como réus os carcereiros Luiz Tava
res (78 anos, casado, construtor) e seu ex-ajudante e filho José Tavares
(28 anos, casado), pelo "fato escandaloso" da gravidez de duas presas
sentenciadas nacadeia dacapital, decujo fato não deram "parte aautori
dade competente" (conforme o ofício do delegado de Polícia Bormann).
As presas eram Serafina Gonçalves (dessa província, 21 anos, solteira,
criada de servir, condenada a quatro anos e meio de prisão) e Maria
Venância (dessa província, 28 anos, solteira, costureira, pena de prisão
perpétua). Segundo o preso Joaquim de Almeida, Maria teve relações

52. Depoimento do preso Elizeu Neves de Castro - argentino, 39 anos, solteiro,


jornaleiro - APERS - Processo 1.842,maço 57. Levadoa júri, e por ter o delito
sido considerado como em defesa própria e sido precedida agressão do ofendi
do, o réu Oliveira foi absolvido.

88 Sociabilidades, justiças e violências:


com o pintor Manoel da Motta, quando ele pintava a prisão, e Serafina
com o preso Gregório de Almeida Neves, dando-se tais "bandalheiras"
quando as mesmas iam lavar roupa. Já o desertor Joaquim Lopes da
Costa depôs ter visto o preso Martinho levarMaria "parafazer com ela
putarias na solitária", contando com a indiferença do carcereiro. O sen
tenciado Messias Antônio de Moura testemunhou dizendo que sabia de
tais ocorrências - "assim como todos os que se acham na cadeia" - e ci
tou ainda o caso da presa Leocádia, grávida de um preso encarcerado há
quatro anos, que manteve relaçõesquando recolhia as roupas para lavar.
Messias disse ainda que nunca denunciou qualquer transgressão, sendo
"entretanto recolhido ao xadrez, deixando de servir nos corredores e de
sair para vender alguns objetos, produto de seu trabalho, não obstante
ter para isso licença do Dr. Chefe de Polícia.^^
Esses processos envolvendo carcereiros eram momentos de acer
tos de contas internas e mesmo que gerados por ciúmes, raiva ou inveja,
acabaram dando pistas e indícios da cultura popular existente na cadeia.
O curandeiro sentenciado, Paulo José Ferreira (44 anos, do Rio de Ja
neiro), denunciou favoritismo, dizendo que o carcereiro e seu ajudante:

[...] sabiam dessas patifarias e imoralidades, mas como


protegiam a certa roda de presos, que se prestavam a tudo
quanto eles queriam, permitiam os ditos carcereiros que
esses presos tivessem amantes, abusassem como lhes pa
recia, não sucedendo isso para como os outros presos,
com por exemplo com ele respondente que, por uma pe
quena falha, foi castigado com par de machos e lançado
na solitária por 35 dias, tendo nos primeiros dias por ali
mento, simplesmente água e que não se lhe fazendo por
esse espaço de tempo a faxina da solitária.

53. APERS - 1^ Cartório Sumário Júri, maço 49, processo 32 / Grifos nossos. No
livro de registrode óbitos de réus de 1867/1891 encontramos o falecimento da
preta Leocádia (preta, escrava, condenada à prisão perpétua por homicídio),
de tísica pulmonarem 25 de maio de 1874, e que em 26de maiode 1871 havia
dado a luz a uma menina (Felipa). A testemunha Bernardino Cândido disse
que ela cuidou da criança até os dois anos quando tiraram a criança da cadeia
para seacabar de criar. (AHRS-J068A, folha 952).

Recordações da casa dos mortos:... 89


Nenhuma das duas presas pretendeu desmentir suas relações se
xuais, provavelmente considerando-as absolutamente normais. Serafina
admitiu estar grávida de Gregório, com quem tinha encontros quando
ia lavar roupas, e Maria Venância admitiu estar esperando um filho "em
virtude da cópula que teve nos fundos da cadeia com um soldado de
polícia, cujo nome ignora" Declarar que manteve relações sexuais com
uma pessoa cujo nome ignora pode ter vários significados, entre eles a
proteção ao seu parceiro (principalmente se o mesmo fosse um dos res
ponsáveis pela segurança, o que podia causar-lhe punição pelo deslize) ou
talvez um indício de que algumas presas dividiam seu tempo de trabalho
entre a lavagemde roupa, a costura e a prostituição, eficaz meio de adqui
rir algum dinheiro e obter favores.^'^ A defesa dos réus não deixou mar
gem a dúvidas quanto à normalidade dos acontecimentos. Segundo eles:

Nada de estranho ou de extraordinário tem semelhante


fato, desde que se considere que as mulheres presas na
cadeia civil freqüentemente deixam os xadrezes e passam
muitas horas do dia ocupadas em lavar roupa na praia,
nos fundos do edifício, e que é nessa mesma praia que
vão fazer os despejos os presos incumbidos da faxina da
cadeia. Enquanto esses serviços se fazem fora do edifício
e sob as vistas da sentinela parada ao portão que dá para
a referida praia,o carcereiro e seu ajudante, ocupados nos
contínuos e multiplicados trabalhos internos da cadeia e
atendendo ao crescido número de 200 a 300 presos, não
podem evitar a comunicação e contato daqueles homens
e mulheres, desde que a negligência e ou conivência das
sentinelas encarregadas de vigiá-los lhesfacilitem tais atos.

É constante e notoriamente sabido que em todos os tempos se têm


dado casos de prenhês de presas na cadeia civil dessa cidade, sem que, ve
rificado o fato, se haja pretendido incultar por ele o carcereiro e seu aju
dante, tão reconhecido tem sidoque o regime desse estabelecimento segui
do impossibilita a precisa vigilância para que semelhantes ocorrências se
tornem impossíveis [...] Foram chamadas para depor míserosgalés, alguns
dos quaisrelapsos e incorrigíveis inimigosmanifestos dos respondentespor

54 Uma testemunha disse que Maria Venância (ou Pequena) manteve relações com
uma praça do 12° BI.

90 Sociabilidades, justiças e violências:.


efeito das correções que tiveramde infligir-lhes. Poderiaacontecerque, em
ocasião de distribuírem as lavadeiras pelos xadrezes a roupa lavada, ou de
arrecadarem a roupa suja,tivessem furtivamente encontroscom algimsdos
presos, ocupados no serviço interno da cadeia que andam pelos corredo
res. Mas quando assim fosse, como responsabilizar-se os respondentes, se
atarefados em tais ocasiões em outros lugares da vasta prisão, não lhes era
possível ter sempre debaixo de vista essas mulheres perdidas?^^
Os réus não hesitaram em atribuir o processo citado ao delegado
de polícia, o capitão Feliciano JoaquimBormann, o qual teriasuspendido
os acusados de seus postos,"não porque lhes quisesse mal, porém porque
precisava dos empregos para seus amigos". Sentindo que o jogo de forças
entre autoridade policiale carcerária podia lhes permitir algumespaço de
manobra, os sentenciados não perdiam as oportunidades surgidas com
os processos (não raros) contra os carcereiros da capital e atuavam seja na
defesa (demonstrando agradecimento pelosfavores recebidos) ou na acu
sação (uma forma de vingança pelos maus tratos), procurando influen
ciar a política administrativa carcerária. Tal como nos demais processos
envolvendo os responsáveis pela cadeia,nessetambém elesforamabsolvi
dos, justificando a declaração dos acusadosde que a encenação judiciária
não passava de uma justificativa para o afastamento dos responsáveis pela
casa de correção, dando lugar a novos protegidos.^^
O processo gradual de transição da mão de obra escrava para a
livre no Brasil fez com que os trabalhadores (nacionais ou imigrantes)
fossem cada vez mais coagidos a venderem livremente sua força de tra
balho no mercado emergente. Os vadios (rótulo maleável e impreciso)
eram vistos associados ao vício da ociosidade e propensos a atitudes
criminosas e, portanto, a sensibilidade penal da época não hesitava em
condená-los. Visando efetuar um quadro da população carcerária da
capital da província, buscamos a relação dos óbitos da cidade entre 1867

55 APERS- PCartório, Sumário Júri, maço 49, processo 1.326 / Grifos nossos.
56 A nomeação dos carcereiros era regida pelo regulamento n° 120 de 31 de janeiro
de 1842, que organizava a execução da parte policial e criminal da lei n^ 261
de 03 de dezembro de 1841. Pelo artigo 46 do Capítulo III, a nomeação era da
escolha dos chefes de polícia, o que não quer dizer que os delegados (funcio
nários de confiança da autoridade policial máxima da província) não tivessem
participação importante nas denúncias, nas investigações e nas nomeações dos
responsáveispelas casas de correção.

Recordações da casa dos mortos:... 91


e 1891.^'' Segundo nosso levantamento, dos 245 óbitos registrados (com
exceção dos ocorridos no período entre 1883 e 1884, que não constam)
percebemos que a cor dos indivíduos pesava nas condenações, sendo:

População carcerária da casa de correção de Porto Alegre


Item cor (1867/ 1891)

Cor N» % do total

Brancos 62 25,30
Pretos 62 25,30
índios 58 23,67
Pardos 55 22,45
Cabra 1 0,41

Crioulo 1 0,41
Não consta (escravos) 4 1,63
Não consta (livres) 2 0,81

Assim, se somarmos as cores que podem ser relacionadas entre si,


como pretos, cabras, pardos, crioulos e aqueles que, mesmo não cons
tando a cor, são apontados como escravos, temos 50,2%, sendo que a
diferença entre os presos brancos e os "indiáticos" era de somente 1,7%
(equivalente a quatro presos).
Em termos de ocupações profissionais apontadas pelos réus quan
do de seu registro na casa de correção, também percebemos uma homo
geneidade: 93 dos 245 presos disseram ser jornaleiros (61 casos / 24,9%
do total) ou não terem ofício (32 casos / 12,9%), perfazendo uma porcen
tagem de 37,8%, seguidos de longe pelos domadores/carneadores/cam-
peiros(40casos / 16,2%) e peloslavradores/agricultores (21 casos / 8,5%).
O crescido número depresos jornaleiros esemofícios falecidos deve-
-secertamente, também, ao fato de que eram indivíduos semrecursos, su
jeitos ao sustento pelos cofres provinciais, que, como já vimos, recebiam
uma péssima alimentação e tratamento. Segundo o regulamento de 1857,
os sentenciados que tivessem recursos e não fossem sustentadospelo gover
no poderiam receber as refeições e as roupas de uso e de cama de fora da ca-

57. Servimo-nos dessa relação de óbitos, pois não encontramos os demais livros de
escrituração da cadeia, mencionados no artigo 16 do regulamento de 1857.

92 Sociabilidades, justiças e violências:...


deia (devidamente examinadas pelo carcereiro ou por outro encarregado)
e mesmo "uma ração de vinho" que não excedesse a meia garrafa por dia,
"cassando a permissão [o carcereiro] quando dela houver abuso".
Podemos também considerar que o elevado número de jornalei-
ros / sem ofício condenados devia-se aos mesmos serem considerados
"vadios", "servidores de ninguém", cuja ausência de sujeição a uma au
toridade direta trazia em contrapartida a falta de um protetor, essencial
em uma sociedade caracterizada por fortes laços de dependência.
Ser sustentado pelo estado reforçava o estigma de ocioso, que
atingia os trabalhadores englobados nas categorias de jornaleiros e sem
ofício. A ociosidade (ou vadiagem), mãe de todos os vícios, que na opi
nião das elites já havia levado esses trabalhadores ao crime, era mantida
na cadeia com os gastos consideráveis dos cofres provinciais e fazia com
que os presos fossem vistos sempre com desconfiança. O já conheci
do preso Bernardino Cândido, por exemplo, quando foi acusado de ter
embriagado de propósito um companheiro de prisão que assassinou o
preso Reginaldo em 1884,defendeu-se dizendo que foi:

[...] sempre trabalhador e jamais entregando-se ao ócio,


alimentado-se e vestindo-se às suas expensas, não tem
sido pesado ao Estado.

Apesar desua declaração, Bernardino, em requerimento de 15 de


julho do mesmo ano, designava-se como "preso pobre", praticamente
um sinônimo de preso sustentado pelos cofres provinciais. Nesse reque
rimento, em seu nome e dos companheiros "de prisão e arte", solicitava
ao chefe de polícia que, na arrematação a ser feita pela fazenda provin
cial do fornecimento de roupas aos presos pobres da cadeia de Porto
Alegre, fossem considerados aptos a tal atividade, bastando o forneci
mento da matéria-prima que careciam. Segundo o suplicante:

A vantagem quedessa proposta resulta pelos cofres públi


cos é secundada por outra que reverte em proveito desse
estabelecimento - o da moralidade. Aspequenasindústrias
exercidas nessa cadeia se acham decaídas devido à fraque
za da vontade, dando issolugar ao ócio,mãe dos vícios.®®

58. AHRS - SP, maço 17, ofício no 492.

Recordações da casa dos mortos:... 93


Mesmo manipulando tão bem os valores estimados pelas autori
dades, Bernardino não teve seu pedido aceito. O subdiretor da diretoria
geral da fazenda provincial, em ofício de 01 de agosto de 1884, infor
mava que há muito era contratado com negociantes o fornecimento de
roupas prontas para os presos pobres, e somente o tecido para as presas
que confeccionavam suas próprias roupas, "sem estipêndio algum por
parte do cofre provincial" Mesmo considerando que os contratos com
os presos eram legais, o subdiretor era de opinião que:

Disto [...] se não pode concluir que, por serem válidos tais
atos, deva com sentenciados contratar a fazenda provincial.
Não é que essasubdiretoriavote sentimentos menos nobres
a infelizes, afastando-os da grande mesa do trabalho, apesar
das declarações feitas pelo peticionário. Essas considerações,
porém, não podem ser invocadas por aqueles que delas tan
to se afastaram ao ponto de irem ter aos cárceres públicos.

Sem dúvida pesou nessa decisão a pressão feita pelos comercian


tes da capital, que não aceitariam a concorrência dos presos da casa de
correção. Como ao proponente faltassem condições de dar garantias, no
caso de quebra das cláusulas do contrato por sua infeliz condição, mesmo
considerando ser o trabalho um fundamental elemento morigerador, a
petição foi negada. A lógica econômica dos negociantes contrariou e
atrapalhou o efeito pretensamente moralizador do projeto carcerário.

Abreviaturas

AHMPOA - Arquivo Histórico Municipal de Porto Alegre


(Porto Alegre - Wo Grande do Sul)
AHRS - Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
(Porto Alegre - Rio Grande do Sul)
AMCMPA - Autoridades Municipais - Câmara Municipal de Porto Alegre
APERS - Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul
BI - Batalhão de Infantaria
CDP - Códice da Polícia
CGRS - Fundo Correspondência dos Governantes do RS
CL - Códices do Fundo Legislação
CMPA - Correspondência da Câmara Municipal de Porto Alegre
OP - Obras Públicas

Sociabilidades, justiças e violências:...


Vigiando a vizinhança:
policiais, classes populares
e violência no sul do Brasil
(1896-1929)'
CLÁUDIA MAUCH

fwo longo das décadas iniciais da república brasileira, os poli


ciais da cidade de Porto Alegre tinham condições de vida e en
frentavam situações semelhantes às de trabalhadores pobres, seus
contemporâneos." Mas, independentemente de seu enquadra-

Versão resumida desse trabalho foi publicada em História e violência.


Anais [recurso eletrônicoJ/Encontro Estadual de História. Porto Alegre:
ANPUH-RS, 2006. Agradeço a Benito Bisso Schmidt e Vanderlei Macha
do pela leitura e comentários ao texto, a SandraPesavento pelaoportuni
dade de publicá-lo e a Jonas Vargas e Ivone Szczepaniak pelo auxílio na
transcrição das fontes documentais.
O enquadramento dos policiaismunicipais como trabalhadores pobres
se dá com base em dados de "profissão anterior" obtidos nos registros de
pessoal (matrículageral) da polícia administrativa de Porto Alegre e na
comparação de seussalários com os de outros trabalhadores da época.
mento socioeconômico, policiais não são trabalhadores comuns. Estudos
sociológicos e do campo da história do crime e da justiça criminal os têm
caracterizado como funcionários de uma instituição especializada do es
tado - a polícia moderna - autorizados a usar a força quando necessário
para o cumprimento das funções que lhes são atribuídas em lei (Reiner,
2004: 26). Conforme Bittner, "o policial, e apenas o policial, está equipado,
autorizado e é necessário para lidar com toda emergência em que possa
ter de ser usada força para enfrentá-la" (2003:240).-^ Assim, mesmo que
grande parte do que os policiais façam não implique necessariamente o
uso de força, junto com o uniforme eles envergam, mais do que algum
tipo de arma, a permanente ameaça de uso da força e de sanções legais.
Neste texto utilizo inquéritos administrativos movidos contra po
liciais locais e outros registros produzidos pela instituição para conhecer
aspectos do modo de vida e valores dos homens encarregados do policia
mento da cidade naquele período. Os casos que analiso a seguir mostram
policiais locais envolvidos em conflitos com vizinhos ou na vizinhança,
cujas descrições permitem uma aproximação às práticas efetivas de po
liciamento, ao uso da violência por parte de policiais e não-policiais e à
forma como uns e outros representavam no cotidiano a "autoridade". A
questão que aqui norteia a exploração das fontes talvez possa ser inicial
mente resumida nos termos proximidade e distanciamento: o quanto e de
que formas os policiais estavam próximos daqueles que deviam vigiar;
e como construíam seu distanciamento na prática, sendo esse distancia
mento inicialmente dado pela sua posição de "autoridade".
Era uma exigência do regulamento da polícia administrativa de
Porto Alegre que os policiais residissem no distrito em que trabalhavam,
o mais próximo possível do posto policial."^ Aqueles que não tinham

Como a literatura sobre polícia tem enfatizado desde os anos de 1960, a definição
do trabalho policial a partir de suas funções legais é insuficiente para o entendi
mento e a explicação de uma série de questões relativas às práticas cotidianas de
policiamento, que incluemuma multiplicidade de tarefas poucoespecificadas, nem
sempre previstas em lei. Assim, na formulação de Egon Bittner, policiais têm o de
ver de providenciar sobrealgo que não deveria acontecer esobre o queseriabom al
guémfazer alguma coisa imediatamente! (Bittner, 2003, p. 234. Grifos no original).
Polícia municipal criada em 1896 e responsável pelo serviço de policiamento
preventivo (administrativo) no território do município até 1929, quando foi

Sociabilidades, justiças e violências:...


família deveriam morar na subintendência do distrito ou nos próprios
postos. Nas sedes das subintendências e em alguns postos policiais exis
tiam dormitórios, utilizados mais para o descanso nos plantões ou entre
um turno de trabalho e outro do que funcionando como quartéis."^ Era
esse o caso no 3- posto onde, em fevereiro de 1910, um extranumerário
e um agente rolaram pelo chão das cocheiras após terem se insultado
mutuamente de "gatuno sem-vergonha" e "caboclo sem-vergonha", re
sultando em um ferimento na cabeça do agente, tudo em função de um
poncho usado pelo agente, para dormir em cima, e que o extranume
rário teria pego por engano e depois devolvido sujo de lama e rasgado
(Subintendências. Inquérito Administrativo, 1910).
Se o aquartelamento dos agentes solteiros não parece ter sido a re
gra, as fontes mostram que era comum a moradia dos policiais perto do
posto ou nas mesmas áreas que patrulhavam. Para os distritos urbanos,
principalmente, isso significava que vigiavam a vizinhança.
João André Bittencourt, solteiro, natural do Rio Grande do Sul,
sabendo ler e escrever, era agente do 1- posto, localizado na área cen
tral da cidade, e morava em uma pensão da rua Riachuelo n- 194. Na
tarde de 26 de agosto de 1911 ajudou um colega seu na prisão em um
flagrante de outro morador da mesma pensão que acabara de deflorar
uma moça, tendo indicado ao irmãozinho da vítima onde era o quarto
do acusado (Polícia, Códice 24). O agente do primeiro distrito Felippe

substituída pela guarda civil. O texto do regulamento consta no Acto n- 20, de 10


de outubro de 1896, da intendência municipal de Porto Alegre. A criação da polí
cia administrativa fezparte de um conjunto de medidas tomadas pelos governan
tes republicanos do Estadodo RioGrande do Sulapós a pacificação da Revolução
Federalista, que visavam uma modernização da administração pública. No caso
da capital do Estado, além da criação de uma nova polícia, cujo comando cabia
ao intendente municipal, o território do município foi meticulosamente dividido
em distritos, a cargo de subintendentes queeram as autoridades administrativas
epoliciais imediatamente submetidas ao intendente. Em cada distrito a legislação
de 1896 previu a criação de um ou mais postos policiais (ou comissariados). Na
prática, para osdistritos urbanos, os postos correspondiam àssubintendências.
Em toda a documentação consultada, só um agente do P distrito (Antonio
Silveira, preto, solteiro, 25 anos, natural do Rio Grande do Sul) declarou residir
no Posto (Subintendências, Inquéritos Administrativos: 06/12/1920).

Vigiando a vizinhança:...
Antonio Ferreira, 27 anos, branco, solteiro, natural da Síria, residia na
rua Nova n- 21. Na noite de 14 de janeiro de 1918, quando estava de
patrulha nessa mesma rua, ou como diz o próprio agente no seu depoi
mento, "de serviço, parado na esquina do Beco do João Coelho, com a
rua Andrade Neves"^, foi ferido no rosto por uma pistola de dois canos
carregada com cartuchos de chumbo miúdo, disparada por um padeiro
que provocava desordens no "Magestic Club", também localizado na rua
Nova, no número 74 (Polícia, Códice 35).

A recomendação de residir próximo ao posto policial estava vincula


da certamente a considerações práticas dos criadores da polícia administra
tiva, tais como a questão da prontidão ao chamado, mesmo fora do horário
de serviço^ em uma cidade onde a precariedade das linhas de bonde era
notória, e à idéia de que o conhecimento do local e de seus habitantes fa
cilitaria o trabalho de vigilância, além de representar um custo financeiro
menor para a Intendência em relação à manutenção de quartéis destinados
aos policiais. Fossem quais fossem as razões dessa prescrição, não passou
despercebido aos governantes municipais alguns dos possíveis problemas
decorrentes do fato do policial trabalhar e morar no "vizindário", e talvez
isso seja uma das explicações para o Regulamento de 1896 ser tão pródigo
em normas de conduta que deveriam ser seguidas pelos policiais na vida
pessoal e social: "Na localidade em que o agente presta serviços, não con-
trahirá relações familiares e de confiança com pessoas determinadas, mas
as terá sérias e leaes com todos, para ser de todos apreciado e considerado".
(Acto n~ 20, de 10 de outubro de 1896: Art. 93)

Inquéritos administrativos movidos contra policiais municipais


mostram que a moradia próxima ou junto ao posto contribuía para que
esses agentes misturassem assuntos domésticos ou pessoais com o tra
balho, o que provavelmente se devia não só a essa proximidade, como

General Andrade Neves tornara-se o "novo" nome da rua Nova, localizada bem
no centro da cidade.
"Art. 122 - Os subintendentes e mais agentes da policia municipal devem todo o
seu tempo ao serviço policial; podem, portanto, ser chamados a qualquer hora,
fora do serviço ordinário, e devem estar sempre promptos á primeira voz". "Art.
70 - Será preocupação constante do vigilante a tranqüilidade e segurança do
vizindário e o prompto auxilio que deve prestar a quem estiver ameaçado de
qualquer perigo." {Acto n'^ 20, de 10 de outubro de 1896). Grifo da autora.

Sociabilidades, justiças e violências;...


ao próprio fato de trabalharem nas ruas, o que por si só oferecia muitas
oportunidades de encontrar amigos ou desafetos, namoradas e paren
tes, como também de resolver tarefas cotidianas e meter-se em confusão
com a vizinhança. O quanto essa proximidade podia ser geradora de
situações conflituosas para os policiais e seus vizinhos, e alguns reflexos
disso na atividade policial são temas que explorados a seguir.
Em 10 abril de 1908 a costureira Emília Maria da Silva dirigiu ao in
tendente José Montaury uma queixa contra o agente 145 do 2- Posto que,
fardado, a teria "vil e cobardemente" agredido e insultado com palavras
obscenas, tentado por duas vezes arrombar a porta de sua casa e amea
çado arrancar-lhe os cabelos e quebrar-lhe os dentes na primeira ocasião
em que a encontrasse na rua. Segundo alegava a costureira, o que motivou
a fúria do policial foi ela ter se recusado a entregar umas costuras que
não estavam pagas a uma menina que viera buscá-las em nome de uma
senhora. O agente José Antônio Alves alegou ter sido ele insultado pela
costureira quando foi pagar uma conta de costuras de sua mãe. A costu
reira morava na Travessa do Carmo n- 4A e arrolou como testemunhas
três mulheres, suas vizinhas dos n- 4B, 4D e 46 da mesma travessa, e que,
como a queixosa, também não sabiam ler e escrever. Ouvidas pelos res
ponsáveis pelo inquérito, apenas uma disse que nada sabia do ocorrido,
enquanto dona Maria Schimt, moradora do n- 46 (ou 4C) disse estar em
casa engomando quando ouviu o agente dizer "Eu tirava os dentes delia", e
dona Elvira Maria da Silva, do n^ 4D confirmou partes da queixa.
A forma como esse inquérito foi conduzido acaba por transfor
mar uma queixa de abuso de poder contra um policial em briga de vi
zinhança. Para as três testemunhas da costureira, os dois membros da
comissão de inquérito perguntaram primeiro se sabiam se era verdade
o que dizia a queixa e, a seguir, se, como moradoras na vizinhança do
agente, sabiam ou tinham ouvido dizer que o agente "portava-se mal ou
se mesmo tivesse tido algum atricto com algum vizinho" ou se era "mau
vizinho". Duas responderam que nunca tinham ouvido falar mal dele, e
dona Elvira, que sómorava naTravessa doCarmo n^ 4Dhá cinco meses,
disse que não o conhecia. Em sua defesa, o agente José Antônio Alves
apresentou um abaixo-assinado atestando a sua conduta civil e moral
"exemplaríssima" sua e de sua família nos três anos em que residiam na
Travessa do Carmo n- 15. A declaração foi firmada por nove homens.

Vigiando a vizinhança:.,.
um dos quais assinou como engenheiro civil; ao lado do nome, entre
parênteses, constava a informação "proprietário do prédio". Ou seja, a
verificação da reputação do policial na vizinhança foi tão ou mais im
portante do que a apuração da verdade das queixas de dona Emília, e
como ninguém disse que ele era um mau vizinho, o caso se resolveu ra
pidamente e o policial foi penalizado não pelas atitudes ofensivas e ame
aças, mas por ter ido na condição de policial resolver assunto particular.

"Não obstante haver muitas atenuantes em favor do refe


rido agente, a comissão abaixo é de parecer que o mesmo
incorreu nas Penas do Art. 131 parag. 6- do regulamen
to em vigor, oito dias de suspensão simples por não ter
procurado evitar uma ocorrência particular que só aos
seus superiores competia-lhe levar emediatamente (sic)
ao seu conhecimento para julga-lo, visto como declarou
a comissão abaixo haver sido insultado pela queixosa na
occazião que ia pagar uma conta de costuras feitas por
sua mãe, na importância de oitocentos réis, porque sen
do agente de Polícia não pode ser juiz em cauza própria."
(Subintendências, Inquérito Administrativo: 16/04/1908)

Motivada pelo desejo ou de salvar a sua própria reputação, ofen


dida pelos insultos, ou de vingar-se do agente ou ainda pela tentativa de
neutralizar as ameaças sofridas, o fato é que a costureira no dia seguinte
ao ocorrido encaminhou sua queixa à mais alta autoridade municipal,
passando por cima do subintendente do distrito. Ao enviar posterior
mente o inquérito encerrado de volta ao intendente, e apesar do pare
cer da comissão, o subintendente julgou a queixa improcedente e ainda
acrescentou que o agente tinha bom comportamento, era arrimo da mãe
e irmãos e apresentava abaixo-assinado dos vizinhos, "que muito o hon
ra", na opinião do subintendente capitão Francisco d'Alvarenga. Como
em tantos outros casos analisados, nesse importou mais apurar quem o
policial era - um bom vizinho - do que o que ele fez: a considerar como
verdadeiras as denúncias de dona Emília, o agente José Antônio não
apenas teria sido juiz em causa própria, mas executor da sentença.
Esse é um típico caso onde não se consegue saber quem começou
a desavença ou quem saiu ganhando (ou perdeu menos): a costureira,
que mesmo sem saber assinar o nome, levou sua indignação à mais alta

Sociabilidades, justiças e violências;...


autoridade municipal ou o policial, que mesmo sofrendo o inquérito,
recebeu uma pena leve e saiu honrado pela declaração de apreço dos
vizinhos, senhorio e superior. De qualquer modo, essa história mostra o
quão delicada podia ser a posição do policial administrativo dentro da
vizinhança. Por ter ido fardado bater à porta da costureira e ameaçá-la,
o agente José, fossem quais fossem suas intenções, experimentou as van
tagens e desvantagens do uniforme: sinal de sua autoridade e posição de
poder e, ao mesmo tempo, visibilidade que pode representar justamente
os limites desse poder, pois afinal a costureira só pôde reclamar ao in
tendente porque o ofensor era um policial, e não um cliente qualquer.
É possível que nesse períodoessa visibilidade dada pelo uso do uni
forme representasse, ao contrário do que possa parecer à primeira vista,
uma das principais desvantagens da atividade policial para esses homens
de classes populares. Se o uniforme não carregava necessariamente consi
go um efeitoamedrontador ou moralizador - como se depreende das fon
tes que mostram o deboche e o desafiodos populares em relação aos "ratos
brancos"'^ - ele cumpria, no entanto, sua outra função, que é a de mostrar
o que o policial estava fazendo e onde (Lane, 2003: 23 e MONKKONEN,
2003: 581). Esse aspecto do uniforme coloca os policiais sempre em evi
dência, estando ou não dentro de seus horários de serviço, já que eles
costumavam usá-lo também fora do horário de trabalho. Sendo assim, a
questão do uniforme vincula-se ao complicado limite entre o estar ou não
estar de serviço, entre o que pode e deve ser feito em uma e outra situação.
A análise de algumas histórias contadas nos inquéritos mostra que para os
próprios policiais esse limite não era claro, o que, se criavadificuldades no
cotidiano, podia ser manipulado quando uma dessas dificuldades virava
um inquérito administrativo ou coisa pior, no sentido de empurrar uma
ação não-regulamentar para dentro ou para fora do horário de serviço.
É assim que se pode encontrar facilmente tanto policiais de serviço re
solvendo pendengas pessoais ou familiares, quanto policiais em hora de
folga invocando sua "autoridade" em conflitos pessoais.
Em 30 de abril de 1918 o agente do 2- posto da polícia adminis
trativa Pompílio de Freitas - "indivíduo de gênio violento", segundo

Denominação popular depreciativa dos policiais administrativos desde a cria


ção dessa polícia, no final do ano de 1896 (Mauch, 2004).

Vigiando a vizinhança:...
seus superiores - teve prisão preventiva requerida e foi indiciado por
homicídio. Dois dias antes Pompüio, à paisana, teve uma discussão com
seu vizinho Izolino e acabou por matá-lo. Ambos viviam no beco da
Centena, na rua São Manoel, no bairro Partenon, em moradias defini
das no relatório policialcomo "casebres". A discussão começara quando
Pompüio foi à janela de seu casebre, o n- 5, pensando que um grupo de
homens do lado de fora estava a caçoar dele. Quando seu vizinho Izo
lino, também de dentro de seu casebre, resolveu explicar que o grupo
caçoava era de uma mulher, obteve como resposta de Pompüio um, cito,
"cala a boca negro a conversa não é contigo". Ato contínuo, Pompílio,
"dizendo-se autoridade" sacou uma "faca grande que trazia à cinta" e
desferiu-lhe um golpe. Izolino, que estava na frente de casa, entrou e
fechou a porta, mas acabou por abri-la porque Pompílio ameaçava dar
um tiro. Pompílio então invadiu a casa de Izolino de faca em punho e
golpeou-o diversas vezes. O delegado judiciário afirma que seu relato é
confirmado por nove testemunhas, todas moradoras no mesmo beco ou
arredores (Polícia, Códice 36).

Já o inspetor Marçal Severiano de Castro, do 3° distrito, respon


deu a inquérito administrativo em julho de 1928 porque perseguiu, far
dado, de revólver em punho e aos gritos de "já te mato!" o carroceiro
Waldemar Silva. O fato teria se dado da seguinte forma: na manhã de
domingo do dia 8 de julho, quando saía do prédio do destacamento
de MonPSerrat para entrar em serviço, o inspetor Marçal viu que sua
cunhada comprava laranjas de dois carroceiros. Tendo reconhecido um
deles, Waldemar, como antigo desafeto, Marçal teria dito à cunhada que
estava negociando com "um negro bandido que já alvejou meu irmão",
puxado o revólver e saído em perseguição a Waldemar, que fugiu para
dentro do posto policial, onde foi socorrido por um agente que facili
tou sua fuga e desarmou Marçal. A tal cunhada era esposa do irmão de
Marçal, Albino Anaurelino de Castro, também agente policial do desta
camento de Mont'Serrat, e que residia em um "challet" ao lado do prédio
do destacamento, ambos na rua Silva Jardim, mesma rua onde morava
Marçal e também outro auxiliar do posto. Em seu depoimento, Marçal
explicou a origem da rixa com Waldemar, que datava de maio do ano
anterior, da seguinte forma:

Sociabilidades, justiças e violências:...


Uma ocasião a noite, indo fazer compras, o depoente, en
controu diversas pessoas que libavam e tocavam gaita,
vendo que a libação hia alto convidou-os a se retirarem.
Não foi attendido. Vendo-se desautorado (sic) pedio auxi
lio ao Destacamento, donde veio seu irmão Albino, que
foi logo recebido ostensivamente por Waldemar Silva e
seus companheiros, que agrediram e feriram Albino, de
quem tiraram o revolver. (Subintendências. Inquérito ad
ministrativo, 24/07/1928. Grifos meus)

Já Waldemar Silva declarou que:

A (sic) tempos fora desarmado por Marçal e um agente de


policia, quando se achava em uma venda em companhia
de outros camaradas, e por se achar um pouco embriaga
do ignora o que houve posteriormente, sabendo entretan
to que sahiram algumas pessoas feridas, não sabendo por
que motivo." (Idem)

Para o subintendente do 4- distrito, que presidiu o inquérito, tra


tava-se de uma "velha rixa" que teria se originado quando os irmãos "em
serviço policial, procuravam reprimir uma desordem" onde Waldemar
estava envolvido. O inspetor Marçal em seus dois depoimentos declarou
que pretendia apenas "amedrontar" e afugentar Waldemar. No primeiro
depoimento disse que ao ver o carroceiro entrar no pátio da casa do
irmão, e prevendo "um encontro que fatalmente traria conseqüências
desagradáveis, resolveu amedrontá-lo de rewolver em punho, para que
elle fugasse e não mais alli aparecesse, o que aconteceu, evitando assim
uma desgraça"; que jamais tivera a idéia de atirar em Waldemar, tanto
que "inúmeras vezes que o tem encontrado nas ruas, ainda há bem pou
cos dias viu-o na festa de N. S. Auxiliadora e nada lhe disse."

Concluindo o inquérito, o subintendente afirmou que, fossem


quais fossem as intenções do inspetor, e "embora recentimentos (sic)
pessoaes estejam em foco", Marçal agiu contra a missão primordial da
polícia administrativa, que era "prevenir os crimes, cohibir desordens,
e não provocá-las", e deveria ser punido com suspensão do serviço por
trinta dias por ter perseguido Waldemar de arma na mão.

Vigiando a vizinhança:.,.
o que torna o caso acima interessante é que nele se cruzam diver
sos aspectos das relações cotidianas de policiais com seus parentes, cole
gas e vizinhos de bairro. Temos aí um policial que a caminho do serviço
se "desvia" para resolver (ou reacender) um conflito pessoal envolvendo
o irmão também policial, mas, embora a rixa fosse antiga, toda a situa
ção que efetivamente resultou no inquérito só se deu porque a casa do
irmão era ao lado do posto. As explicações para a origem da desavença
opondo os irmãos e o carroceiro também evidenciam a dificuldade que
os policiais tinham de estabelecer fronteiras entre assuntos pessoais e de
trabalho. Marçal diz que tudo começou quando tinha ido fazer compras
e tentou, sem sucesso, impor sua autoridade sobre as pessoas que "li-
bavam e tocavam gaita" alto na venda. Como não foi obedecido, pediu
ajuda ao destacamento e veio seu irmão, que acabou sendo agredido e
desarmado, mas em nenhum momento declarou Marçal que estava de
serviço ou fardado, talvez porque para ele isso não fizesse grande diferen
ça. O carroceiro Waldemar alegou ter sido desarmado por "Marçal e um
agente de polícia". Para o subintendente, a velha rixa explicava-se porque
os policiais em serviço procuraram reprimir uma desordem, ou seja, pou
co importou no caso verificar ou omitir se Marçal estava mesmo fardado
e de serviço, pois estava cumprindo legitimamente sua "missão".
O texto do inquérito trata como muito naturais ou normais uma
série de atitudes dos envolvidos: era natural o cumprimento da "missão
policial" gerar rixas pessoais; para Marçal, era natural que Albino qui
sesse se vingar de Waldemar, já que fora por ele desarmado; portanto
era natural que Marçal impedisse a entrada de Waldemar no quintal do
irmão. Também a atitude dos irmãos policiais na venda fora normal,
como talvez tivesse sido normal a perseguição do carroceiro negro por
Marçal aos gritos de "já te mato!" Não tivesse o carroceiro Waldemar
apresentado queixa no posto policial no dia seguinte ao ocorrido, nada
se saberia dessa história. Seja como for, em um outro plano de análise, a
existência do inquérito e a punição do inspetor Marçal mostram que as
autoridades da polícia administrativa estavam empenhadas em coibir a
desordem, seja ela provocada por homens bebendo e fazendo algazar
ra em uma venda, seja representada por um policial correndo armado
atrás de um carroceiro em uma manhã de domingo.

Sodabilidades, justiças e violências:...


Em sua maioria membros das classes populares, os policiais admi
nistrativos também vivenciavam seus problemas de moradia, problemas
esses que acompanharam o crescimento da cidade de Porto Alegre nas
primeiras décadas republicanas. Como em outras cidades brasileiras do
mesmo período, as queixas dos jornais, das organizações operárias e
dos conselheiros municipais concentravam-se na necessidade de mo
radias "higiênicas" para os pobres e na crítica aos altos aluguéis cobra
dos por proprietários de cortiços, casebres, porões, etc. Esses tipos de
moradia, além de imundos e superlotados, eram considerados marcas
do "atraso" nas áreas centrais da capital do estado, justamente aquelas
que estavam se "modernizando" A carência de habitações para os po
bres foi um problema crônico ao longo da república velha e um dos que
mais preocupavam a administração local que, no entanto, por escassez
de recursos, nunca conseguiu efetivar na íntegra os planos urbanísticos.
Melhoramentos nos serviços urbanos, tais como esgotos, extensão das
redes hidráulica e elétrica, das linhas de bondes, abertura de ruas novas
e mais largas, embelezamento de praças, etc. ocorreram, mas de forma
lenta, precária e imediatista (Bakos, 1996; 145 e 187). Ou seja, embora
os positivistas do Partido Republicano Riograndense tenham deixado
seus monumentos na cidade, como os belos prédios públicos erguidos
na década de 1910 e o suntuoso viaduto Otávio Rocha da década de
1920, tais intervenções não se comparam aos efeitos provocados por
remodelações urbanas mais intensivas, como a promovida pelo prefeito
Pereira Passos no Rio de Janeiro. Nesse sentido, e apesar de a abertura
da avenida Borges de Medeiros bem no centro da cidade em meados
dos anos vinte ter ocasionado um "bota abaixo" em muitos cortiços e em
alguns dos mais mal-afamados becos de Porto Alegre, moradias do tipo
casa de cômodos ou casinhas enfileíradas em becos ou portões continua
ram existindo em áreas menos nobres do 1- distrito e nas áreas de ocupa
ção mais antiga ou mais densamente povoadas, dos 2- e 3- distritos. Já em
regiões consideradas mais distantes do centro da cidade, que foram sendo
lentamente urbanizadas e ocupadas ao longo das primeiras décadas do
século XX, os terrenos eram mais baratos e as possibilidades de trabalha
dores pobres construírem suas próprias casas eram bem maiores.
Foi esse o caso do 4~ distrito, onde, ao redor do grande número de
fábricas que se instalaram nos terrenos alagadiços dos Bairros Navegan
tes e São João desde os últimos anos do século XIX, os operários, em sua

Vigiando a vizinhança:...
maioria imigrantes vindos da europa central e oriental, foram erguendo
suas casas e pequenos negócios. Mas mesmo no 4- distrito, região que
em 1916 já se caracterizava como fabril e cuja população já começava a
ultrapassar a do 1- distrito, até os anos de 1920 ainda existiam chácaras,
matadouros e tambos de leite a aproximadamente meia hora de caminha
da do centro da cidade, denotando algo comum com outros arrabaldes
de Porto Alegre: a atividade rural e mesmo extrativa, como pesca, caça,
extração de madeira e de pedras. O exercício de tais atividades em áreas
próximas àquelas que se modernizavam mais rapidamente podia propi
ciar a famílias pobres uma variedade de ocupações suficiente para driblar
períodos de desemprego ou de maiores dificuldades (Fortes, 2004).
Ou seja, entre os distritos de Porto Alegre existiam muitas dife
renças, que se acentuaram ao longo da república velha, e nem todos os
trabalhadores pobres, incluindo-se nessa categoria os policiais, mora
vam do mesmo jeito. Feita essa ressalva, cumpre salientar que nas fontes
onde existe algum tipo de descrição das moradias dos policiais, em sua
maioria tratam-se de cortiços ou "casebres", "casinhas", casas em becos
e portões, cujo número seguido de letra indica que fazem parte de um
conjunto, ou ainda quartos em pensões no 1" distrito.'*' Como bem de
monstrou Sandra Pesavento em pesquisa sobre o final do século XIX,
o termo cortiço em Porto Alegre era usado tanto para designar casas
de cômodos ou edifícios subdivididos, como para casas contíguas com
pátio em comum, mas sempre com uma conotação pejorativa de habita
ção pobre que estende aos seus moradores uma estigmatização negativa
(2001: 94-125). A documentação policial consultada mostra que nas pri
meiras décadas do século XX continuaram a ser comuns as casinhas ou
quartos de aluguel de um proprietário, e que a variedade de nomes com
que eram designadas no fim do século XIX perdurou: além de cortiços,
esses conjuntos, às vezes com dez a vinte subunidades, eram chamados de
portões, prédios, becos ou mesmo simplesmente de casas.'" Nem sempre

Nem sempre o número com letra indica a existência de casas contíguas e/ou
com pátio em comum, pois a letra pode designar somente a duplicidade de
número, em uma época em que a numeração das casas nem sempre era deter
minada pela municipalidade.
Um exemplo da associação entre prédio, beco e viela presente nas fontes po
liciais: em V- de setembro de 1916 um agente policiai foi chamado por duas

Sociabilidades, justiças e violências:.


fica clara a diferença entre os tipos de moradia que essas denominações
conotam, mas em alguns casos torna-se evidente que a diferença é estabe
lecida pela linguagem policial, quando classifica moradias de acordo com
a suposta periculosidade de seus moradores, e vice-versa.

Um inquérito administrativo movido contra o auxiliar Olegário


José da Silveira em março de 1901, acusado de ter espancado a proprie
tária de um desses "conjuntos", ajuda a entender como operavam essas
diversas classificações e as lutas em torno delas. Tendo sido alertados
por um menor de que na rua General Caldwell realizava-se um baile,
dois agentes, um inspetor e o auxiliar Olegário do 2- Posto, saíram por
volta das nove horas da noite para "providenciar a respeito da tal desor
dem'' e "fazer algumas prisões". Foram direto à casa "da celebre Maria
Braga, onde se tem dado grande numero de desordens", mas engana
ram-se, pois o baile era ao lado, no pátio da casa n- 59. Nos depoimentos
dos policiais, incluindo-se a comissão de inquérito, o local foi descrito
como "o cortiço conhecido por curral das éguas" "casebres cuja serven
tia é pelo portão n" 59", "pateo o qual é muito conhecido por curral
das éguas", e as unidades de moradia foram descritas como "cortiços",
"casebres", "quartinhos" Já a proprietária, dona Leopoldina de Mene
zes Leyria, assim descreve o local: "pateo da casa n- 61 cuja depoente é
proprietária e ahi aluga dez casinhas de taboas a diversos e cujo pateo
é comum com os fundos da casa da depoente". Perguntada sobre quem
eram os inquilinos dos "quartos", dona Leopoldina listou, com nome e
estado civil, quatro músicos e praças do segundo Batalhão, um calcetei-
ro, um cangueiro, um empregado do Arsenal de Guerra, e um homem
de quem não mencionou profissão, todos casados ou amasiados, e mais
uma mulher que morava com a filha. Para os policiais, assim como para

mulheres árabes para conter o homem embriagado que promovia desordens


- armado de uma serra em uma mão e de pedaço de raiz de bananeira na outra -
no pátio do "prédio n" 38 da rua 24 de Maio (becco do Rosário)", descrito como
"uma espécie de viella onde com frente a um pateo existem diversos quartos
allugados uns a árabes e outros servem de abrigo durante a noite a indivíduos
desclassificados em geral ébrios, desordeiros, e gatunos, mediante quinhentos
réis alli encontrão agasalho, tal negocio explorado pelo árabe Antonio Muradi,
e Abrahão Elias dono de um botequim visinho fornecedor de bebidas aos que
alli açodem (Polícia, Códice 33, 02/09/1916.)

Vigiando a vizinhança:...
um vizinho que era major honorário do Exército, dona Leopoldina vivia
cercada de "gente de ínfima classe em cujas casas se dão desordens ou
conflictos (...) tudo promovido por vagabundos e praças da brigada mi
litar", e ela mesma era "mulher prepotente" e de "gênio mau e violento".
Em sua defesa, o auxiliar inicia a desqualificação das testemunhas
de dona Leopoldina justamente pelo local onde moravam: "As testemu
nhas offerecidas por essa senhora, são todas suspeitas; alem de serem
moradoras no Curral das éguas, são três infelizes mulheres, sem impu-
tação moral (...)", incluindo a "devassa meretriz Herminia de tal"." O
baile, ou maxixe, era "um grande ajuntamento de indivíduos e mulheres
das quais a maior parte negros". Vários depoentes, inclusive os que par
ticipavam do baile, mencionaram a presença de seis marinheiros e dois
soldados, o que para os policiais parecia ser um indicador seguro de de
sordem. Observa-se aqui mais uma vez em operação os critérios que, nas
práticas e nos registros policiais, transformam alguns homens e mulheres
em suspeitos; praças, soldados, marinheiros (tradicionais adversários dos
policiais administrativos); trabalhadores pobres; mulheres amasiadas ou
que viviam sozinhas; negros; moradores de "cortiço", enfim.
As origens sociais e étnicas'-, as condições de vida, as dificulda
des do cotidiano de gente pobre, enfim, são todos elementos que, como
venho procurando argumentar, aproximam os policiais dos demais ho
mens de classes populares. Mas a questão da moradia introduz um ele
mento relevante para a discussão de como se opera o seu distanciamen
to. A importância da análise da moradia está não somente nos indícios

Ao ver os policiais em seu pátio, dona Leopoldina largou o neto que embalava
nos braços e saiu prontamente em defesa de seus inquilinos, puxando um coro
de vaias, assovios, apupos e insultando os policiais. Por isso teria sido esbordo-
ada pelo auxiliar Olegário com um chicotinho. (Subintendências. Inquéritos
Administrativos: 11/03/1901. Sublinhado do original, grifo em itálico meu)
Chamo atenção para a recorrência de insultos raciais contidos na pequena
amostra de fontes citada nesse texto ("negro", "negro bandido", "caboclo sem-
-vergonha"), o que remete à importância dos critérios raciais de classificação
moral e social na época. Não somente policiais lançavam mão de ofensas ra
ciais, como também eram por elas freqüentemente atingidos, na medida em
que muitos deles eram negros. Os registros de pessoal da políciaadministrativa
não trazem indicação de cor ou raça, mas outras fontes têm evidenciado a pre
sença de policiais negros ao longo de todo o período.

Sociabilidades, justiças e violências:...


que ela pode dar sobre as condições materiais de vida dos policiais, mas
principalmente no fato de que tais descrições constituem, nas fontes, o
cenário de complicadas relações entre policiais e seus vizinhos. Dado que
uma das funções de um policial era vigiar o vizindário, o que na prática
significava intrometer-se no largo espectro de atividades populares que
cabia no conceito de "desordens", ter um policial na vizinhança prova
velmente era incômodo para algumas pessoas em alguns momentos, da
mesma forma como a hostilidade de vizinhos podia atrapalhar aspectos
da vida cotidiana dos policiais. Se trabalhar na ou perto da vizinhança
podia ajudar no cumprimento da "missão" policial, segundo a máxima
"conhecê-los bem, paravigiá-los melhor" contidano Regulamento da ins
tituição, podia também causar problemas no trabalho, quando esposas
maltratadas ou vizinhos resolviam ir ao intendente Municipal se queixar
e o policial se via obrigado a responder a inquérito administrativo.
Em um certo sentido, vigiar a vizinhança não era uma função ape
nas policial, pois os vizinhos se vigiavam uns aos outros, voluntária ou
involuntariamente. Em 1908, por exemplo, o agente ÁIvpvq Torres da
Rosa, acusado de espancar a ex-mulher, recorreu em sua defesa ao vizi
nho da casa de seus pais, onde morava desde que havia se separado. O
vizinho Oscar Pereira Maciel escreveu carta ao encarregado do inqué
rito atestando que era verdade que o agente havia chegado na casa dos
pais em determinada hora, pois sua casa, de n- 85D, ficava contígua à
dos pais do agente, n- 85E, e, "devido talvez a fragilidade das paredes",
teria ouvido perfeitamente os passos e as vozes dos vizinhos. Já em outra
rua, no endereço da ex-mulher, também foram os vizinhos que infor
maram o que ela fizera e em quais horários, porque das janelas a tinham
visto passar. (Subintendências, Inquéritos Administrativos: 30/10/1908)

As casas contíguas, as paredes finas, o pátio comum, as habitações


coletivas, tudo isso contribuía para que a vida privada dos que viviam
nesse tipo de moradia não fosse tão privada, e a opinião da vizinhança
parecia ser algo realmente crucial na definição da reputação de qualquer
um. Mas a documentação também demonstra claramente que os vizi
nhos expressam julgamentos diferentes sobre a atuação dos policiais, a
ponto de, em alguns casos, formarem correntes a favor e contra. Ou seja,
"avizinhança" não é monolítica e indiferenciada, mesmo em se tratando
de pessoas da mesma classe social. Mais do que salientar as diferenças

Vigiando a vizinhança:...
que hipoteticamente poderiam ser causadoras de conflitos, o importan
te é não tomar como pressuposto que as relações de vizinhança compor
tam necessariamente união ou laços profundos de amizade, parentesco
ou solidariedade, embora obviamente possam também comportar. Em
seu estudo clássico sobre os sertanejos do sudeste brasileiro no século
XIX, Maria Sylvia de Carvalho Franco demonstrou que naquele con
texto a violência perpassava as relações comunitárias e era "uma forma
rotinizada de ajustamento nas relações de vizinhança" (Franco, 1997: 24
e 30).^^ Além disso, de forma mais geral, laços de amizade, companhei
rismo ou mesmo parentesco não impedem o derramamento de sangue
em conflitos (ritualizados ou não) entre homens, como tem sido salien
tado por diversos autores (Johnson, 1998; Spierenburg, 1998; Conley,
1999; Nye, 2000; Gallant, 2000; Gayol, 2002).
Na a maioria das histórias registradas é difícil encontrar onde exa
tamente estava o verdadeiro foco ou a origem das tensões que, vez por
outra, irrompiam em conflitos que extrapolavam a vizinhança e chega
vam até as autoridades policiais por terem um desfecho violento. Isso
significa que dificilmente se poderá saber se em tais conflitos o fato de
um dos envolvidos ser policial foi decisivo ou se estamos diante de des
crições de situações corriqueiras em que homens, sentido-se ofendidos
em sua honra masculina, rapidamente passavam dos insultos verbais à
agressão física. Com base em alguns casos é possível dizer que um poli
cial se tornava um vizinho incômodo quando invocava, legitimamente
ou não, sua autoridade. Ora, a imposição da autoridade, a possibilidade
sempre aberta do uso da força, é justamente o que deve constituir a dife
rença entre policiais e não-policiais. Do ponto de vista dos governantes
locais que conceberam e administraram o sistema de policiamento re
publicano da capital do Rio Grande do Sul, esperava-se do homem que
ingressava na polícia administrativa que passasse a endossar e praticar
normas de comportamento descritas no Regulamento, tais como: "ser
cortês e amável sem baixeza", "circunspecto e de maneiras delicadas" ou
ainda "asseado e de cabelos penteados" (Intendência. Acto n- 20, de 10
de outubro de 1896). No entanto, espremidos entre o ideal de homem
"civilizado" do Regulamento, suas efetivas condições de trabalho e de

Para análises sobre o tema no Brasil contemporâneo, ver, entre outros, Fonseca
(2000), Caldeira (2000) e Zaluar (2004).

Sociabilidades, justiças e violências:...


vida e os turbulentos e criminosos que deveriam vigiar, os policiais fo
ram marcando seu distanciamento na prática, impondo sua "autorida
de", em suma, com os recursos de que dispunham. As fontes indicam
que por todo o período em estudo essa imposição de autoridade foi ca
racterizada por ambigüidades que se explicam pelas especificidades da
profissão-condição policial (Monjardet,1996) e pela forma como as po
lícias historicamente se desenvolveram no Brasil, mas que não deixam
de estar ligadas a padrões culturais que valorizam o uso da violência
física em uma série de situações. Embora muitos dos atos de violên
cia física e verbal entre policiais e não-policiais descritos nas fontes que
analiso possam ser vistos como "violência policial"'"' , para outros tal
enquadramento pode obscurecer o fato de que muitos policiais usavam
a força'"^ em questões pessoais e fora de serviço, o que remete para a
disseminação da violência física como meio de resolução de disputas e
conflitos, especialmente aqueles em torno de concepções então vigentes
de honra masculina. Ser desarmado, por exemplo, era tomado como
desafio tanto por policiais como por não-policiais e, em ambos os ca
sos, levava comumente à reação violenta. Na documentação consultada,
com freqüência o desafio à autoridade policial é simultaneamente desa
fio à masculinidade do policial, traduzida em coragem, força e destreza
no manejo das armas. Nesses casos, torna-se difícil estabelecer até que
ponto a reação do policial é ditada por padrões "da polícia" ou da cul
tura popular, ou ainda por uma mescla contingente de ambos. No caso
dos policiais locais nas décadas iniciais da República, membros de uma
instituição recente e limitadamente profissionalizada, as formas como
sua "autoridade" foi sendo construída e representada apontam para re
lações complexas e tensas entre violência, honra masculina e uma cul
tura policial'^ em processo de elaboração e que incorpora alguns dos

14. Para uma discussão sobre as definições de violência policial, ver Neto (1999).
15. Usavam a força do corpo e as armas de que dispunham em cada situação, desde
o armamento autorizado (sabres ou revólveres) até chicotes ou quaisquer ins
trumentos improvisados no momento, prática aliás bastante comum entre as
classes populares locais, assim como o uso disseminado de facas e adagas.
16. Cultura policial (ou ética policial) é o termo com que os estudiosos da polícia
denominam certas características recorrentes entre os policiais em diferentes
contextos que formariam uma cultura ocupacional transmitida na prática co
tidiana dos mais velhos na atividade para os novatos. Ver, entre outros, Reiner
(2003 e 2004); Fielding (1994); Kant de Lima (1995).

Vigiando a vizinhança:.,.
valores associados a padrões socialmente aceitos de masculinidade os
quais, por sua vez, também estavam em disputa no periodo.

FONTES
INTENDÊNCIA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE. Acto n 20, de 10
de outubro de 1896. Secção de Polícia. Leis municipais de 1892 a 1900.
Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho (AHPAMV).
INTENDÊNCIA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE. Matrícula Geral
do Pessoal da Polícia Administrativa de Porto Alegre. Códices Polícia 1 a
21. AHPAMV.
INTENDÊNCIA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE. Relatório da Su-
bintendência do 1° distrito. I922/I923. AHPAMV.
INTENDÊNCIA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE. Relatório da
Subintendência do 4°. distrito. I915/I916. Idem. I9I6/1917. Idem.
1917/1918. Idem. 1918/1919. AHPAMV.
POLÍCIA. Copias de relatórios de indagações policiaes. Janeiro a abril de
1918. Códice 35. AHRS.
POLÍCIA. Cópias de relatórios de indagações policiais. Abril de 1918 a
junho de 1919. 1^ distrito. Códice 36. Arquivo Histórico do Rio Grande
do Sul (AHRS).
POLÍCIA. Cópias de relatórios de indagações policiais. Junho a Dezem
bro de 1916. D. distrito, 02/09/1916. Códice 33. AHRS.
POLÍCIA. Delegacia de Polícia do 1°. distrito. Atentados aopudor. Janei
ro de I9I0 a Fevereiro de 1918. Códice 24. AHRS.
SUBINTENDÊNCIAS. Inquéritos Administrativos. 06/12/1920. Caixa 2.
AHPAMV.
SUBINTENDÊNCIAS. Inquéritos Administrativos. 11/03/1901. Idem,
16/04/1908. Idem, 1910. Caixa I. AHPAMV.
SUBINTENDÊNCIAS. Inquéritos Administrativos. 24/07/1928. Caixa 3.
AHPAMV
SUBINTENDÊNCIAS. Inquéritos Administrativos. 30/10/1908. Caixa I.
AHPAMV.

Sociabilidades, justiças e violências;...


REFERÊNCIAS
BAYLEY, David H. Padrões de policiamento. Uma análise comparativa
internacional. São Paulo: Edusp, 2001.
BITTNER, Egon. Florence Nightingale procurando WillieSutton:uma te
oria da polícia. In: Aspectos do trabalhopoliciai São Paulo: Edusp, 2003.
p. 219-249.
BRETAS, Marcos Luiz. As empadas do confeiteiro imaginário: a pesqui
sa nos arquivos da justiça criminal e a história da violência no Rio de
Janeiro. Acervo. Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, janeiro/junho 2002. p. 7-22.
BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na cidade. O exercício cotidiano da au
toridade policial no Rio de Janeiro: 1907-1930. Rio de Janeiro: Rocco,
1997.
CALDEIRA, Teresa Piresdo Rio. Cidade de muros. Crime, segregação e
cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2000.
CONLEY, Carolyn. The agreeable recreation of fighting. Journal of So
cial History. Vol. 33, n. 1, Fali 1999. p. 57-72.
FIELDING, Nigel. Cop canteen culture. In: NEWBURN, Tim, STANKO,
Elizabeth (eds.). Just boys doing business? Men, masculinities and crime.
London : Routledge, 1994. p. 46-63.
FONSECA, Claudia. Família, fofoca e honra. Etnografia de relações de
gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Editora da Uni-
versidade/UFRGS, 2000.
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravo
crata. São Paulo; Ed. UNESP, 1997. 4. Ed.
GALLANT, Thomas W. Honor, masculinity, and ritual knife fighting in
nineteenth-century Greece. TheAmerican Historical Review. Vol. 105, n.
2, April 2000. p. 359-382.
GAYOL, Sandra. Elogio, deslegitimación y estéticas de Ias violências ur
banas: Buenos Aires, 1870-1920). In: , KESSLER, Gabriel
(eds.). Violências, delitos y justicias en Ia Argentina. Buenos Aires: Ma-
nantial, 2002. p. 41-63.
GAYOL, Sandra. Entre Io deseable y Io posible. Perfil de Ia policia de
Buenos Aires en Ia segunda mitad dei siglo XIX. Estúdios Sociales. Santa
Fe, Ano VI, n. 10, P. semestre de 1996. p. 123-138.
HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro. Repressão e resistên
cia numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: Ed. FGV 1997.
JOHNSON, Lyman L. Dangerous words, provocative gestures, and vio-
lent acts. The disputed hierarchies of plebeian life in Colonial Buenos
Aires. In; JOHNSON, Lyman L., LIPSETT-RIVERA, Sonya (eds). The

Vigiando a vizinhança:...
faces ofhonor. Sex, shame, and violence in Colonial Latin América. Al
buquerque: University ofNew México Press, 1998. p. 127-151.
KANT DE LIMA, Roberto. A polícia da cidade do Rio de Janeiro: seus
dilemas e paradoxos. Rio de Janeiro: Forense, 1995. 2, ed.
LANE, Roger. Polícia urbana e crime na América do século XIX. In:
TONRY, Michael, MORRIS, Norval (orgs.). Policiamento moderno. São
Paulo: Edusp, 2003. p. 11-63.
MAUCH, Cláudia. Ordem pública e moralidade: imprensa e policiamen
to urbano em Porto Alegre na década de 1890. Santa Cruz do Sul: Edu-
nisc/ANPUH-RS, 2004.
MONJARDET, Dominique. Ce que fait Ia police. Sociologie de Ia force
publique. Paris: Éditions La Découverte, 1996.
MONKKONEN, Eric H. História da polícia urbana. In: TONRY, Mi
chael, MORRIS, Norval (orgs.). Policiamento Moderno. São Paulo:
Edusp, 2003. p. 577-612.
MONTEIRO, Charles. Trabalho e conflitos cotidianos no espaço políti
co das classes populares em Porto Alegre (1925-1930). In: Cadernos da
Fafimc, 10, 1993, p. 60-68.
NETO, Paulo Mesquita. Violência policial no Brasil: abordagens teóri
cas e práticas de controle. In: PANDOLFI, Dulce Chaves et al. (orgs.).
Cidadania, justiça e violência. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. p. 129-
148.
NYE, Robert A.Kinship, malc bonds, and masculinity in comparativa
perspective. The American Historical Review. Vol. 105, n. 5, December
2000. p. 1656-1666.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma outra cidade. O mundo dos excluídos
no final do século XIX. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001.
REINER, Robert. A pesquisa policial no reino Unido: uma análise críti
ca. In: TONRY, Michael, MORRIS, Norval (orgs.). Policiamento Moder
no. São Paulo: Edusp, 2003. p. 463-535.
REINER, Robert. A política da polícia. São Paulo: Edusp, 2004.
SPIERENBURG, Pieter (ed.). Men and violence: gender, honor, and ritu
ais in Modem Europe and América. Columbus: Ohio State University
Press, 1998.

Socíabílidades, justiças e violências:...


Exigir y dar satisfacción:
un privilegio de Ias elites
finiseculares

SANDRA GAYOU

En 1878, Fabián Gómez repartia su tiempo en


tre Madrid y Paris. Tenía casa puesta en ambas
capitales y no era extrano que sus amigos no
supiesen a dónde enviarle Ia correspondên
cia. Por entonces se desperto en él un afán de
adquisición. Todo le atraía: Ias obras de arte,
Ias antigüedades, Ias joyas valiosas, los libros
raros, Ias mujeres más lujosas y extravagantes.
El joyero Hamelin - que acababa de obtener
Ia medalla de oro en Ia Exposition Universelle
- engarzó por encargo suyo once esmeraldas,
en una gargantilla de secreto destino. Damón

Este trabajo es una versión acotada perteneciente a un libro de próxima


aparición. Una aproximación preliminar fue presentada en Ias X Jorna
das Interescuelas/Departamentos de Historia. Agradezco los comentá
rios de Roy Hora y delos participantes de Ia mesa: "Elites, riqueza y po
der desde el Virreynato hasta 1940". Una versión posterior se benefició
de Ias sugerencias y críticas de Silvana Palermo.
Namur le amueblaba apresuradamente su palacio ma-
drileno dei Retiro, donde Meissonier y Martín Ricci
se ocupaban de Ia decoración; los tapices y alfombras
habían sido Ilevados desde Ia índia, especialmente
para él y por intermédio de Vincent Robinson and
Co... a sus dos casas magníficamente puestas de Pa
ris y de Madrid, anadía un yate...tuvo vários duelos
en los que llamó Ia atención su sangre fria y estuvo
envuelto en accidentes ruidosos a los que dio fin con
sumas crecidisimas...-

/Austera y profunda, esta íina descripción arrancada de un texto


mayor que Pilar de Lusarreta destino a Fabián Gómez y Anchorena con
de dei Castano, encuentra rápidamente eco en diversos testimonios dei
sigio XIX Las memórias, los relatos de viajeros, ia literatura, Ia prensa y
Ia correspondência privada saturan con referencias y descripciones en
donde Ia posesión de los objetos, el arte de Ia conversación, un agudo
sentido dei honor personal y Ia rápida predisposición a defenderlo por
médio de un combate singular ocupan el centro de Ia escena. Se trate de
Ia adquisición compulsiva e indiscriminada impiadosamente achacada
al advenedizo, de las posesiones selectivas y razonadas atribuídas al ex
perto o a aquellos que por tradición familiar y por cultura eran capaces
de actitudes estéticas, todos los documentos conceden a los objetos y a las
prácticas, a los usos y "diferentes modos de hacer", un papel crucial en el
proceso de construcción y expresión simbólica de Ia posición social.
El contraste entre este reconocimiento y el escaso interés que ha
suscitado entre los estudiosos es sorprendente. Los consumos y las prác
ticas, el alarde de posesión y Ia intensa vida social exhibida en público
fueron o bien simples notas de color o reveladores, en su ostentación y
dispendio, de Ia irracionalidad dei capitalismo argentino. Supeditados
a las grandes líneas de interpretación trazadas desde Ia historia política
o econômica^, los bahos de mar en Mar dei Plata, el abarrotamiento de

2. P. de Lusarreta, Cinco Dandys portenos, Buenos Aires, Pena Lillo-Ediciones


Continente, 1999, p. 76 y 95.
3. Dos trabajos emblemáticos: R. Puiggrós, Historia crítica de los partidos polí
ticos argentinos, Buenos Aires, Hyspamérica, 1986 (1956). Especialmente el
tomo I. J. Oddone, La burguesia terrateniente argentina, Buenos Aires, Edicio-
nes Populares Argentinas, 1956.

Sociabilidades, justiças e violências:...


objetos habitual de Ias mansiones particulares y el viaje a Europa eran,
en definitiva, comportamientos esperables de una oligarquia homogê
nea, pequena y segura de sí misma"'.

Estas miradas e interpretaciones, mayormente, no se sostienen


hoy. Hace tiempo Ia historia política cuestionó Ia imagen de homoge-
neidad y hieratismo de Ia clase alta^, y circunscribió Ia apelación de oli
garquia a una clase política con resortes propios de poder, no necesa-
riamente atravesada por el consenso y Ia unidad y no necesariamente
imbricada y confundida con Ia elite econômica y socia^. Posteriormente
los câmbios en los enfoques de Ia historia econômica' y Ias alteraciones
provocadas por Ia renovaciôn de Ia historia cultural® abrieron el camino
a una mirada más atenta a los objetos, a los usos y Ias actitudes que los
consumidores hacen y tienen con ellos. Se habilitô, asi. Ia posibilidad de
pensar y buscar Ia racionalidad de ciertas prácticas y se desterrô Ia idea
de Ia cultura como un epifenômeno/-' Desde Ia historia de Ia literatura y

Estas interpretaciones pueden encontrarse en: J. J. Sebreli, Mar dei Plata, el ocio
represivo, Buenos Aires, Tiempo Contemporâneo, 1970. D. Vinas, Literatura ar
gentina y realidad política, Buenos Aires, Capítulo, 1982. R. Rodríguez Molas,
Vida cotidiana de Ia oligarquia argentina (1880-1890), Buenos Aires, CEAL, 1988.
T. Di Tella y T. Halperin Donghi (Comp.). Losfragmentos deipoder, de Ia oligar
quia a Ia poliarquia aregntina, Buenos Aires, Jorge Alvarez, 1969.
N. Botana, El orden conservador. La política argentina entre 1880 y 1916, Bue
nos Aires, Sudamericana, 1994.
Un análisis de los câmbios que afectaron a Ia historia econômica. Ia incorpora-
ción de Ia demanda en Ia reflexión y el consiguiente énfasis puesto en el con
sumidor como fuente de explicación: M. I. Barbero y E Rocchi., "Cultura, so-
ciedad, economia y nuevos sujetos de Ia historia: empresas y consumidores", en
B. Bragoni (Comp.). Microanálisis. Ensayos de historiografia argentina, Buenos
Aires, Prometeo, 2004. Para el notable impulso de los estúdios sobre Ia historia
dei consumo producida en Ia década dei '90 con una predominância dei pos-
modernismo: F. Rocchi, "Estilos devida", en C. Altamirano (Comp). Términos
críticos en Sociologia de Ia Cultura, Buenos Aires, Paidós, 2002.
P. Ory, VHistoire culturelle. Paris, PUF, 2004.
Entre lostrabajos que muestranclaramente Ia racionalidad dei consumo osten-
toso, y no dispendioso, y su rol en Ia diferenciación social: E. Pastoriza (Ed).
Las puertas al mar. Consumo, ocio ypolítica en Mar deiPlata, Montevideo y Vina
dei Mar, Buenos Aires, Biblos-Universidad Nacional de Mar dei Plata, 2002. G.
Zuppa (Ed). Prácticas de sociabilidad en un escenario argentino. Mar dei Plata
1870-1970, Mar dei Plata, Universidad Nacional de Mar dei Plata-Facultad de

Exigir y dar satisfacción:...


de Ia cultura se han reconstruído Ias peculiaridades dei consumo cultu
ral en Argentina en el período aqui considerado,'^ y muy recientemente
se ha mostrado Ia vitalidad de un mercado de arte y el papel que Ias
obras de arte tuvieron en Ia construcción de Ia distinción social." Una
visita al Jockey Club y al Círculo de Armas, iconos de Ia alta sociabilidad,
muestra de manera impecable Ia necesidad de una clase alta socialmente
diversificada y culturalmente heterogênea de construir, en una sociedad
republicana. Ia diferencia social y Ia legitimidad de su posición social.'^
Más que de una elite homogênea y multiimplantada, los trabajos
muestran una pluralidad de elites como consecuencia de Ia diversifica-
ción y autonomización de Ias distintas dimensiones sociales. La recom-
posición social, al mismo tiempo, es esperable ya sea por el extraordi
nário crecimiento econômico y Ia consiguiente posibilidad de ascenso
social como por el impacto de Ia inmigración masiva.

Arquitectura, Urbanismo y Diseno, 2004. Para Ia racionalidad empresarial de


los actores econômicos, el papel desempenado por el mercado y Ia relación
problemática que ía elite econômica tuvo con el estado y Ia política: J. F. Sábato,
La clase dominante en ia argentina moderna. Formación y característicasy Bue
nos Aires, CISEA-Imago Mundi, 1991. R. Hora, Los terratenientes de Iapampa
argentina. Una historia social y política, 1860-1945, Buenos Aires, Siglo XXI,
2002. C. Sesto, La vanguardia ganadera bonaerense, 1856-1900, Buenos Aires,
Siglo XXI, 2005.
Véase por ejemplo: C. Atamirano y B. Sarlo, Ensayos argentinos. De Sarmiento
a Ia vanguardia, Buenos Aires, Ariel, 1997. A. Prieto, El discurso criollista en
Ia formación de Ia Argentina Moderna, Buenos Aires, Sudamericana 1988. A.
Eujanián, "La cultura: público, autores y editores en, M. Bonaudo (Ed) Nueva
Liistoria Argentina. Liberalismo, estado y orden burguês (1852-1880), Buenos
Aires, Sudamericana, 1999.
M. Baldasarre, Los duenos dei arte. Coleccionismo y consumo cultural en Buenos
Aires, Buenos Aires, Edhasa, 2006.
Un trabajo pionero sobre el Jockey Club: K. Korn, "La gente distinguida", en J.
L. Romero y L.A. Romero (Ed), Buenos Aires. Historia de cuatro siglos, Buenos
Aires, Abril, 1983, Tomo II. Para Ia heterogeneidad social y dispersiôn tanto
geográfica como cultural de Ia clase alta y el intento de integraciôn a través
dei Jockey Club: Th. Edsall, Elites, oligarcas and aristocrats: the Jockey Club of
Buenos Aires and the Argentino Upper Classes, 1920-1940. Phd. Diss, Tulane
University 1999. L. Losada, Distinción y legitimidad. Esplendory ocaso deIaelite
social en Ia Buenos Aires de Ia belle epoque. Tesis de Doctorado, UNCPBA, 2005.

Sociabilidades, justiças e violências:


El presente artículo comparte este horizonte común de perspec
tivas y convicciones y propone ingresar en el universo todavia poco
explorado dei duelo de honor. Así, rescatamos esta práctica concreta y
buscamos conocer sus usos y significados junto con Ias apropiaciones,
tanto materiales como simbólicas, que un puhado de hombres hizo de
él. El interés de seguir el derrotero de esta práctica específica radica
en que es una ventana estupenda para analizar Ia heterogeneidad y es
pecialmente algunos de los mecanismos de jerarquización puestos en
marcha al interior de Ias elites.

En los últimos anos Ia estrecha y excluyente asociación entre no-


bleza y duelos pregonada durante décadas por Ia historiografia ha sido
sometida a revisión. Lejos de pensarse como un "privilegio de Ia aristo
cracia"'^ Uamado a desaparecer con Ia irrupción de Ia modernidad, los
trabajos recientes postulan Ia dilatada permanência en el tiempo y el
papel crucial que desempenó hasta Ias primeras décadas dei siglo XX.
En Ias mayorías de Ias sociedades europeas el duelo fue, entonces, una
constante histórica siendo Ia composición de los grupos más aptos para
practicarlo Io qüè ha variado en el curso de los anos.'"' Más allá de los
câmbios en Ias clases sociales queIo practicaban, en Ias formas de batir-
se y en Ias funciones los combates singulares son interpretados como un
símbolo de pertenencia a Ias elites. Este presupuesto fue nuestro punto
de partida. Descubrir, entonces, quienes estaban habilitados, como los
llamó Max Weber, a "exigir y dar satisfacción" por médio de Ias armas,
es decir, quienes podían recurrir ai duelo para reparar una ofensa al
honor personal y quienes estaban imposibilitados es una puerta para

Un trabajo dásico y de gran influencia que planteó este vínculo con daridad: V.G.
Kiernan, El duelo en Ia Historia de Europa. Honor y privilegio de Ia aristocracia,
Madrid, Alianza, 1992. Para el caso especificamente Francês: F. Billacois, Le duel
dans Ia sociétéfrancaise des XVI-XVII siécle. Essai de psychosociologie historique.
Paris, EHESS, 1986. Más reciente pero tributário de ia misma asociación: P.Brio-
ist, H. Drévillony P. Serna, Croiser lefer. Violence et culturede Vépée dans Ia France
Moderne(XVl-XVIlIè siècle), Paris, Champ Vallon, 2002.
Para una excelentecomparación de los duelos en Alemania e Inglaterra y dei der
rotero dispar sufrido por la práctica en ambos países: U Frevert, "Moeurs bour-
geoises et sensde Thonneur. Eevolution du duelen Angleterre et en Allemagne »,
en J. Kocka (Comp.). Les bourgeoisies européens au XlXèsiècle. Paris, Belin, 1996.

Exigir y dar satisfacción:...


pensar los critérios de pertenencia y los mecanismos de exclusión pues-
tos en marcha por una sociedad en un momento dado.
En Ia Argentina Ia costumbre de acudir al duelo como médio a
través dei cual el honor impugnado de un individuo era fisicamente de
fendido adquirió notable vigor. Pero si como veremos en el pasaje dei
siglo XIX al XX Ia ciudad de Buenos Aires tuvo una cantidad de desafios
similar a Alemania, Francia o Italia por ejemplo, careció de Ias cofradias
estudiantiles duelisticas y de Ias academias militares. Estas instituciones
transmitieron a través de los siglos Ia práctica y Ias regias dei duelo y
fundamentalmente, proclamaban Ia candidatura de un estudiante o de
un oficial a ingresar al establishment y a una posición superior en Ia
sociedad.'^ Además de Ia ausência de estos mecanismos institucionales
el duelo en argentina emergió en una sociedad móvil y con fuertes ex
pectativas de ascenso social. ^Cuáles fueron entonces los critérios que
habilitaban a un individuo a ingresar a Ia "sociedad de Ia satisfacción"?
^Por qué el duelo? Las páginas que siguen pretendeu responder a es
tas preguntas. Para ello trazamos los perfiles de quienes participaron en
combates singulares, exploramos los requisitos que debian cumplir los
hombres para tener derecho a exigir satisfacción y finalmente analiza-
mos el código de honor y sus significados.
Como tratamos de mostrar el duelo fue un comportamiento so
cialmente estratégico de diferenciación social y política que cobra ple
no sentido en un contexto de profundas transformaciones sociales y de
recomposición de Ia clase alta. Fue una práctica vinculatoria entre los
miembros de las elites, un claro símbolo de pertenencia a ellas y, al mis-
mo tiempo, una práctica que distanciaba a sus practicantes de Ia mayo-
ría de los hombres.

Para el papel de las academias militares en Alemania: U. Frevert, "lhe Taming of


the Noble Rufián: Male Violence and Dueling in Early Modem and Modem Ger-
many", en P. Spierenburg (Comp.), Menand Violence. Gender, Honor, and Rituales
in Modem Europe, Ohio State Universíty Press, 1998. Para el rol de las cofradias
duelisticas con especial énfasis en las estudiantiles: N. Elias, "Duelo e filiação na
classe dominante imperial: exigire dar satisfacao" en, O5 Alemães. A lutapelo poder
e a evoluçãodo habitiis nos séculos XIX e XX, Rio de Janeiro, Zahar, 1997,p.93-99.

Sociabilidades, justiças e violências:...


PERFILES DE LA COMUNIDAD DE DUELISTAS

^Cuántos fueron los duelos y quiénes los duelistas? La respuesta


no es sencilla y emerge inmediatamente ei problema de Ia cuantificación
de Ias actividades ilícitas. Si en Argentina Ias autoridades estuvieron le-
jos de perseguir sistemáticamente a los duelistas es evidente que al estar
el duelo penado por Ia ley frenó Ia pluma de los comentaristas, propi
cio los subterfúgios enunciativos y altero Ia información.'^ A este hecho
se suma que muchos duelistas eran hombres conocidos o políticos que
por su poder y posición desalentaban Ia persecución de Ias autorida
des.'^ Despreocupándonos de ciertos requisitos fijados por Ia disciplina
(respeto de fuentes homogêneas, series cronológicas continuas, etc.) in
tentamos una aproximación estadística apelando a una miríada de do
cumentos diversos.'^ Para ello relevamos todos los desafios y o duelos
fechados que llegaron a nuestro conocimiento.'^ La consulta sistemática
de los diários -especialmente La Prensa y La Nación - combinada con
memórias, libros dedicados al tema, relatos de viajeros y anécdotas di
versas (sólo exigimos que fueran contemporâneas al hecho) nos permi-
tió elaborar una base de datos.^° Si Ias cifras resultantes son más el refle-

Es frecuente que se cambie el lugar de celebración dei duelo, Montevideo o el


más genérico Uruguay apareceu asiduamente; o bien que algunos autores no
deu los datos de los involucrados y se limiten a mencionar el enigmático pero
sugerente "dos miembros de conocidas familias".
Dos casos encontrados en el archivo produjeron Ia intervención de Ia justicia,
intervención debida esencialmente al resultado fatal dei duelo: cuando Lúcio
Victorio Mansilla mata en un duelo a Pantaleón Gómez en 1880 y cuando el
Coronel Carlos Sarmiento mata a Lúcio Vicente López en 1894.
Una interesante discusión sobre Ias dificultades y el valor de Ia cuantificación
de los duelos: P. Spierenburg (Comp.), Men and Violence.. .op.cit., especialmen
te: Part One: "Elite Dueling". También; R. Nye, Masculinity and Male Codes of
Honor in Modem France, Oxford University Press. 1993.
El desafio era el envio de los padrinos y en consiguiente pedido de satisfacción
que un hombre exigia a otro cuando sentia su honor impugnado. Este primer
paso, que era indispensable en un procedimiento caballeresco, no necesaria-
mente culminaba en un duelo. En realidad un poco menos de un tercio de los
conflictos termino en enfrentamiento físico.
Se volcó Ia información en los siguientes campos: Fuente (diário, memória,
censo, etc); cómo se califica al incidente (duelo, combate, rina, etc); causa de
clarada; fecha, lugar dei incidente; lugar donde se solucionó el incidente; tipo

Exigir y dar satisfacción:...


jo de Ia visibilidad dei fenômeno que de ia realidad dei duelo, permiten
sin embargo extraer ensenanzas interesantes.

Tabla I

Número de desafios y/o duelos en Ia ciudad de Buenos Aires

Periodo Duelos

hasta 1869^'

1940-1971

Fuente: elaboración personai a partir de los diários La Prensa, La Nación,y La Razón, de


memórias y relatos de viajeros y libros contemporâneos específicos sobre ei tema."

de solución (entre padrinos, tribunal de honor, en Ia justicia, etc); con o sin


padrinos; condiciones dei lance; tipo de armas; lesiones y tipo; qué hace Ia po
licia o Ia justicia; participantes (nombre, apellido, rol, profesión); nota (toda
información adicional).
La mayoría de los datos se refieren a Ia primera década dei siglo XIX y a Ia de
1860.
Se consultaron cotidianamente los diários La Prensa y La Nación a partir de
1869 y 1862 respectivamente. Para aquellas coyunturas o décadas en que Ias
cifras daban un salto importante, por ejemplo Ia de 1890, los dos periódicos
mencionados fueron cruzados con otros. Hasta 1870 nuestra información pro-
viene esencialmente dei Díccionarío Histórico Argentino, de R. Piccirilli, F. Ro-
may y L. Gianello (Ed.), Buenos Aires, Ediciones Históricas Argentina, 1954,
Tomo II, "Duelos y desafios históricos", p. 221-227. Berutti, J. M., Memórias
curiosas, Buenos Aires, Emecé, 2001. J. M. Paz,Memórias póstumas. Campanas
de Ia Independência, Buenos Aires, 1952, M. de Vedia y Mitre, Vida de Mon-
teagudo, Buenos Aires, 1932 e I. Bucich Escobar, Visiones de Ia Gran Aldea.
Buenos Aires hace sesenta anos, Buenos Aires, Ferrari, 1932, Tomo 1 y IT. S.
Calzadilla, Las beldades de mi tiempo, Buenos Aires, Capítulo, 1982. E. Wilde,
Escritos literários, Buenos Aires, Hemisfério, 1952. A partir de 1900 además
de Ia información de los periódicos mencionados se consultaron los libros de

Sociabilidades, Justiças e violências:...


Como muestra Ia tabla el duelo tuvo una notable continuldád en
ei tiempo. Esta persistência fue al mismo tiempo acompanada de im
portantes variaciones y alteraciones cuantitativas en ei curso de los anos.
Lejos de ser una práctica que se distribuía de manera homogênea a Io
largo de casi dos siglos, tuvo picos y elevaciones notables en coyunturas
particularmente ajetreadas como por ejemplo Ia décadade 1890.
Sin duda los 19 desafiospara los primeros setenta anos no reflejan
Ia realidad dei fenômeno. Los documentos reconocen despreocupación
por Ia cuantificación, "no persiguen un estúdio exhaustivo"-^ y apuntan
a "mantener el hecho en Ia memória de Ias gentes" mencionando sólo
aquellos desafios y-o duelos conocidos por "el rango de los protagonis
tas o por el motivo que los precipito al caso extremo".-'' Más numerosos
que los registrados por Ias fuentes nunca parecieron gozar, sin embargo,
de Ia vitalidad que tenian en Europa.^^ Los viajeros extranjeros rápida-
mente notaron esta disparidad. En el amplio informe que escribe sobre
su estadia, en 1817-18, un agente norteamericano subraya asombrado:
"un hecho notable que noté [sic], mientras estuve en Buenos Aires, y
hallé después confirmado por Depons:el duelo nunca ha prevalecido en
ninguna parte de América dei Sur".^^

C. Viale, Jurisprudência Caballeresca Argentina en Ias respectivas ediciones de


1914, 1928 y 1937, el de J. Rivanera, Código de Honor comentado: el duelo en ia
historia, el derechoy Ia institución castrense, Buenos Aires, 1954 y C. J. Varan-
got, Virtudes Caballerescas, Buenos Aires, Carra, 1972.
R. Piccirilli, F. Romay y G. Gianello (Ed.), Diccionario... op. cit.
Ibíd. También se da por sentado que durante el rosismo Ia persecución a los
duelistas fue tan exitosa que no hubo duelos.
Hay referencias generales a duelos entre oficiales dei ejército de San Martín
y durante Ia década dei 1820 distintos documentos mencionan los duelos dei
coronel José Maria Zapiola, el capitán José Francisco Aldao y el coronel Hilá
rio Lagos. Véase; C. Anchutz, Historia dei Regimiento de Granaderos a Caballo,
Buenos Aires, 1945, Tomo I. También A. Carranza, Hojas históricas, Buenos
Aires, 1898.
H.M. Brackenridge, La independência argentina. Viaje a América deiSur por or-
den dei gobierno americano en los anos 1817 y 1818 en Ia fragata 'Co7igress\ Bue
nos Aires, El Elefante Blanco, 1999, p.151-152. Agradezco Ia referencia a Marcela
Ternavasio. En el mismo sentido relatando el duelo entre los brigadieres chilenos
Luis Carreras y Juan Mackenna en 1815 quelecostó Iavida a este último, Berutti
califica alepisodio como "hecho extrano". en J.M. Berutti, op.cit., p. 252.

Exigir y dar satisfacción:...


La guerra de independência, Iasguerras civilesy los enfrentamien-
tos armados frenaron o inhibieron los desafios. Estas luchas fueron en si
mismas una posibilidad de expresar decisión y coraje y, ai mismo tiem-
po, subordinaron los conflictos personales a los intereses más amplios
de Ia patria.-' Por otro lado, estos mismos acontecimientos seguramente
ocultaron algunos desafios o duelos. Más numerosos entonces que los
19 casos recolectados, todos los indícios permiten sostener que fueron
sin embargo marginales en Ia vida social y politica.
Mirado en perspectiva histórica es a fines dei siglo XIX cuando los
desafios irrumpen en Buenos Aires. Observadas en detalle, Ias cifras de
Ia tabla sugieren que más halla de Ia persistência en el tiempo Ia práctica
de exigir y dar satisfacción conoció su apogeo entre 1880 y 1910. Dejó
de ser un "hecho extrano", en palabras de Berutti, para transformarse, en
palabras de La Prensa, en una "mania" La cifra de 1790 combates singu
lares para el recambio de siglo contrasta con Ia discreción dei pasado re-
ciente, se diferenciará de los anos posteriores y al mismo tiempo coloca
a Ia argentina muy próxima de los paises europeos.^^ Esta constatación,

Un ejemplo claro fue Ia carta de Monteaguado a Guido -ambos tenían un desa


fio pendiente- en donde le explica, para dejarlo sin efecto, "nuestras recíprocas
circunstancias tienen un enlace con Ias dei país. De hombre a hombre teníamos
derecho a terminar aquella diferencia en un campo secreto, pero ia muerte de
usted o Ia mia no hubiera sido un mal aislado", citado por J. Rivanera, Código de
Honor... op.cit., p. 71.
Las cifras sobre los duelos en Europa son nacionales, a diferencia de ias mencio
nadas en ia tabla,que computan solo el caso de Buenos Aires. Por ejemplo Robert
Nye a partir de los Anuarios Especializados publicados durante Ia Tercera Repu
blica destaca para el caso de FranciaIacifra anual de 200duelos en promedio,con
picos y descensos en momentos de lucha y confusión política. Ute Frevert para
el caso de Alemania encuentra entre, 1882 y 1912, 3466 sentencias relacionadas
con duelos. Steves Hughes, para Italia muestra una media de 200 duelos entre
1879 y 1888 para destacar una disminución a partir de esa fecha. Pablo Piccato,
siguiendo ei texto de Escudero "El duelo en México" -1936-, nota entre 1850 y
1929 alrededor de 78. In: Robert Nye, Masculinity and Male Codes of Honor in
Modem France, New York, Oxford UniversityPress 1993, p. 183-187. UteFrevert,
"The Taming of the Nobie Ruffian: Male Violence and Dueling in Earle Modem
and Modem Germany", in Peter Spierenburg, Men and Violence: Gender, Honor,
and Rituais in Modem Europe and América, Ohio Slate University, 1998. Steve
Hughes, "Men ofSteel: dueling. Honor, and politics in Liberal Italy, en ibid. Pablo
Piccato, "La política y Ia tecnologia dei honor: el duelo en México durante el Por-
firiato y Ia Revolución", en Anuario lEHS, 14, 1999, p. 275.

Sociabilidades, justiças e violências:...


aproximada, es sin embargo suficiente para cuestionar una idea muy
arraigada en los trabajos sobre el tema. Todos los estúdios coinciden en
ver los asuntos de honor y el ejercicio dei duelo en Ia argentina como
una rémora dei pasado, como un vestígio en claro retroceso a partir de
1880.-^ Lejos de ser un resabio extemporâneo y marginal de Ia "Argen
tina Moderna" fueron, por el contrario, parte esencial dei proceso de
construcción de Ia modernidad.

Hay suficientes indícios cualitativos que convergen con estos datos


estadísticos.^® El primer ManualArgentino de Duelo se publica en 1878 y
los intentos posteriores de crear una "jurisprudência argentina" no supe-
ran Ia década de 1930. A mediados de 1880 se empiezan a crear espacios
institucionales y âmbitos de sociabilidad que brindaban a sus socios Ia
posibilidad de ingresar o perfeccionarse en el uso de Ias armas. El Jockey
Club, el Círculo de Armas, y Ia nueva sede dei Club dei Progreso inau
gurada en 1902 son los representantes más elegantes y paradigmáticos.
Fero son Ias páginas de los diários Ias que muestran mejor que ningún
otro documento Ias transformaciones operadas en el recambio de siglo.
Es por Ia prensa que el duelo deja de ser un asunto de biógrafos y supera
Ia intimidad de Ia correspondência privada. Una rápida mirada a Ias pu-
blicaciones dei período permite constatar Ia irrupción pública dei honor
y dei duelo. Como reconoda La República el 8 de marzo de 1876; "...ahora
se dan nombres propios, se publican en los diários y se anuncia el hecho,
como si fuera un acontecimiento". A partir de fines de los anos '70, aproxi
madamente, los diários incluyen cotidianamente información. El espacio

Ochoa, P. O, "La muerte absurda de Lúcio V López, Todo es Historia, n:31, nov.
1969, p.86. Korn, F.,"Vida cotidiana pública y privada (1870-1914)", Nueva His
toria de Ia Nación Argentina, Tomo 6: "La configuración de ia República Inde-
pendiente (1810-1914)", Buenos Aires, Planeta, 1997, pp-250-251. De Ia misma
autora: "Un duelo",en Buenos Aires mundos particulares: 1870-1895-1914-1945,
Buenos Aires, Sudamericana, 2004, p.53. López Mato, O., op.clt. Cicerchia, R.,
Historia de Ia vidaprivada en Ia Argentina. Desdeia constitución de 1853hasta
Ia crisis de 1930, Buenos Aires, Troquei, 1998, p. 51-52 y 61.
Porejemplo el general Ignacio H. Fotheringham, anota Io común queeraa par
tir de 1870 reglar los asuntos dehonor a través de combates singulares. "La vida
de un soldado o reniiniscencias de Iasfronteras", Buenos Aires, 1978. Tomo II,
Capitulo Xlll. También J. Rivanera, op.clt., p.l6 y A Wilde, Buenos Aires desde
setenta aíios atras 1810=1880, Buenos Aires, Eudeba, 1960, p. 162.

Exigir y dar satisfacción:


"campo neutral" se aboca exclusivamente a cuestiones de honor personal
y Ia sección "A Ia pesca de noticias" dei diário La Nación firmada por Ar-
gos publica chismes, trascendidos, supuestos y consejos sobre cómo ba-
tirse y comportarse en los lances personales. Este desenfado informativo
fue sistemáticamente apoyado por los protagonistas que no trepidaron en
brindar información o en pedir expresamente Ia publicación de Ias actas
donde constaban los pasos e instâncias dei conflicto.
La notoria y extrema visibilidad de los combates singulares fue
acompanada por una compulsión social al duelo, compulsión que limi-
taba considerablemente Ia posibilidad de rechazar un desafio y que im-
plicaba severas sanciones a quienes rehusaban -incluyendo el ostracis
mo social- batirse. El conocido discurso que pronuncio Carlos Pellegri-
ni en el sepelio de Lúcio Vicente López . .en nombre de exigências que
acusan un atavismo de barbarie a cuya influencia todos hemos cedido
casi inconscientemente.. se multiplica con comodidad en Ia inmensa
mayoría de los combates dei periodo. Si se mira caso por caso, se obser
va que de los 1790 encontrados solo 40 son rechazados.^^ Esta "ideologia
dei duelo" sugerida por el significativo aumento de desafios y veri-
ficable en múltiples expresiones - desde Ia proliferación de Manuales
Argentinos de Duelo y Ia llegada de reconocidos profesores de esgrima
hasta el significativo lugar que ocupo Ia despenalización o no dei duelo
en el proyecto de reforma dei Código Penal en 1890- no pueden expli-
carse solamente por el ambiente más propicio desprendido dei fin de Ias
guerras civiles y los conflictos armados. La "edad de oro". Ia irrupción
dei duelo, en Ia escena pública se comprende mucho mejor si se recuer-

La Nación, "El sepelio de Lúcio V. López", 30-12-1894. También Miguel Cané,


orador en el sepelio, afirmo: "caído rindiendo culto a este resto de barbarie que
predomina en nuestro organismo social, que todos condenamos y que a todos
nos domina..." Ibid. "Ir al terreno constituía una obligación inalienable, aún
en los casos más inapropiados", en I. Bucich Escobar, Visiones de Ia Gran Al-
dea. Buenos Aires hace sesenta anos, Buenos Aires, Ferrari, 1932.Segunda Serie
1870-1871, p. 250. La cursiva es nuestra.
En estos 40 casos los desafiados arguyen motivos religiosos, ser esposos y pa
dres de vários hijos, y ser "orgánicamente enemigos dei duelo". Para estos casos
no hay ningún respeto al procedimiento caballeresco - envio de padrinos, ne-
gociaciones e intercâmbio de explicaciones entre ambos, etc.
Tomo Ia expresión de U. Frevert, "The Taming of the Noble Rufián... op.cit.

Sociabilidades, justiças e violências:...


dan Ias profundas transformaciones que afectaron a Ia sociedad. El es-
pectacular crecimiento econômico y poblacional con el consiguiente
trastrocamiento de Ias jerarquías y prioridades fue Ia principal condici-
ón de posibilidad dei duelo. Lejos de ser un hecho aislado Ia posibilidad
de duelar se convirtió en un rasgo intrínseco de Ias relaciones manteni-
das entre quienes pertenecían y entre quienes aspiraban a pertenecer a
Ias elites. La recomposición y Ia sustancial transformación econômica
pero también cultural que Ias clases altas portenas experimentaron en
el último tercio dei siglo XIX^'' fue el escenario en que se desplegô el
duelo y fue Io que permitiô convertirlo en un símbolo de pertenencia a
Ias elites en proceso de reconíiguraciôn.
La importância social y políticaque adquiriô el duelo en el recambio
de sigloexplica Iaexhuberanciainformativa que nos permite,a suvez,trazar
un perfil aproximado de los protagonistas. ^Quienes fueron los duelistas?
El duelo no concierne, o Io hace de manera muy desigual, a todos
los indivíduos y categorias. Primero que nada un hombre no se bate con
una mujer ni Ias mujeres se baten entre ellas. Salvo excepciones anecdô-
ticas que no hacen más que confirmar Ia regia el duelo es un asunto de
hombres.^^ Dentro de Ia poblaciôn masculina ninos, enfermos y ancia-

Para el proceso de constitución y reconstitución de Ia "sociedad portena" ia


procedência y origen de sus integrantes: T. Edsall, Elites, Oligarcs...op.cit L.
Losada, Distinción y legitimidad.. .op.cit. Para Ia reconfiguración econômica de
fines de siglo: R. Hora, Los terratenientes de Ia pampa argentina. Una historia
social y política 1860-1945, Buenos Aires, Siglo XXI, 2002.
Hemos encontrado sólo estas tres referencias: "...también en el mundo de Ias les-
bianas hubo algunas anécdotas que escandalizaban a Iapacata oligarquia portefia
de principios de siglo. Luda Lainez Varela de Mujica, madre de Manuel Mujica
Lainez, protagonizó por esa época un episodio que dio quehablar. Según Iatra-
dición oral,Iadisputa con Ema Lagos por amorescon Iajoven CelinaZapiola Ias
llevó, siguiendo Ia costumbre de Ia época entre caballeros, a un duelo de honor
realizado en una quinta, y usando los floretes de los respectivos padres..En J.J.
Sebreli,Escritos sobre escritos, ciudades, bajo ciudades 1950-1997, Buenos Aires,
Editorial Sudamericana. 1997, p. 367. La diputada saltena TeresaMezquida desa
fio en 1959 al diputado salteno Abdo Flores quien, por intermédio de sus padri-
nos, considero que era inhábil para concurrir al campo dei honor (por su sexo)".
Lasenorita Elena Fernicola planteó en 1964 una cuestión caballeresca al diputa
do nacional (UDELPA) Luís Antón quién expresó, por médio de sus padrinos,
que desdeantiguo losquese batena duelo son loscaballeros... Ias representantes

Exigir y dar satisfacción:...


nos están excluídos o exentos dei duelo. Es imposible saber con precisión
Ia edad de los duelistas y de sus padrinos, pero es probable que los limi
tes de edad fueran laxos. Miguel Cané localiza el ardor de los combates
en su tiempo de estudiante, en Ia década de 1860, cuando "provincianos
y portenos formaban dos bandos cuyasdiferencias se zanjaban a menudo
en duelos parciaies"^^ pero él mismo no trepido en involucrarse en duelos
en su madurez. Muchos contemporâneos -no siempre con beneplácito -
establecían una ligazón casi lógica entre juventud y duelos, pero también
Lúcio Vicente López tenía 44 anos cuando murió en uno. Los Manuales
de Duelo pautaban claramente que sólo se desafia o responde a un hom-
bre en edad y estado físico de usar armas, estas condiciones dependian
sólo en parte de Ia edad. Estos Manuales se referian también a Ia mayoria
de edad civil como un punto de arranque para el duelo y tendian a coin
cidir en fijar los 60 anos como Ia edad máxima. Pero, como se sostenia
con frecuencia, Ia edad en que un hombre está en disposición de batirse
puede ser muy variable, según su estado físico e intelectual, su educación,
su gênero de vida, su vigor, etc. Estos hechos conducen a pensar que los
duelistas disenaron una franja etaria amplia y flexible.
A diferencia de Ia edad Ia información sobre otros rasgos o per
files de los participantes es más abundante y se precisa con el curso de
los anos. En los '80 el enigmático "duelistas" o el también habitual "dos
personas conocidas" que solía acompanar Ias referencias que colateral-
mente se hacían sobre los desafios en Ias primeras décadas dei siglo XIX,
cede paulatinamente espacio a caracterizaciones más precisas sobre to
dos los involucrados en el evento. Así irrumpen detalles sobre los desa
fiadores, los desafiados, sus respectivos padrinos y los integrantes de los
Tribunales de Honor. La profesión fue un dato registrado tanto por los
periódicos como por Ias actas de duelo.

de Ia desafiadora le escriben una carta diciendo; "...para defender un principio


en el terreno dei honor solamente se precisan tres cosas: 1) tener un motivo, 2)
poseer coraje y 3) una mano cuyo pulso no tiemble. Hemos dejado bien sentado
que a usted le sobran Ias tres premisas..Citado en C.J. Varangot, op.cit., p. 90 y
124. Agradezco a Mónica Parada Iaprimer referencia.
M. Cané, Juvenilia, Buenos Aires, CEAL, 1992, p. 36. Más adelante el autor
prosigue: "...Las conspiraciones empezaron, los duelos parciales entre los dos
bandos se sucedían sin interrupción..." p. 40.

Sociabilidades, justiças e violências:...


Tabla II

Profesión de los participantes en desafios y/o duelos en Ia cludad de Buenos Aires

Profesión Personas

Abogado
Militar

Periodista

Médico

Ingeniero
Maestro de esgrima

Elaboración personai a partir de los dates


extraídos de Ias fuentes citadas en Ia Tabla I.

Una primera lectura de Ia tabla indica que si bien Ia "sociedad de


Ia satisfacción" no fue el monopolio de ninguna profesión en particular
tampoco se encontraba en todas ellas. La diversidad de ocupaciones que
permitia Ia cludad atravesada por un agudo proceso de transformaci-
ón econômica y social no se halla totalmente representada en nuestras
cifras. Como se desprende con nitidezlos abogados y los militares fue-
ron dominantes seguidos, con cierto retraso, de periodistas y médicos.^^
Podría decirse que Ia Universidad fue Ia gran proveedora de caballeros.
La Facultad de Derecho en particular pero también, si se piensa en el
número de egresadoso en Iafecha de fundación, Ia más pequefía de me
dicinay Iamás reciente de ingeniería. El prestigio de quienes seguían "Ia
carrera de Ias armas" es bien conocido, dei mismo modo que no poços
militares habían pasado por Ia Facultad de Derecho. La consideración
social que gozaban los hombres de leyessurca también todo el siglo XIX
y buena parte dei XX. A fines de Ia colonia el foro era Ia profesión favori
ta de los hijos de familias acaudaladas de Ia burguesia comercial portena
pero también de aquellos menos prósperos que veían en ella Ia posibili-

No se han contabilizado los profesionales que participan en calidad de médicos de


los duelos. Sólo se considera aquellos que apareceu en calidad de duelistas o como
padrinos. Lacifrade 13maestrosde esgrimaes muy significativa si se recuerda que,
por ejemplo, para principios dei sigloXX había en Ia ciudad aproximadamente 9.

Exigir y dar satisfacción:


dad de elevar sus hijos a niveles sociales superiores.^® Con Ia independên
cia primero y el proceso de organización nacional después los abogados
desempenaron un papel político clave. A fines dei siglo XIX Ia abogacía
seguia siendo Ia actividad más prestigiosa y más numerosa si bien nuevas
profesiones consolidaban su posición.®^ Los câmbios políticos e institu-
cionales que tuvieron lugar a partir de 1852 hicieron que se incrementara
el área de influencia de los médicos que se convirtieron, junto con aboga
dos y militares, en piezas claves dei proceso de construcción estatal y mo-
dernización política.^® Más allá de Ias diferencias y gradaciones al interior
de Ias profesiones y entre ellas, y de su diferente grado de delimitación o
especialización, el duelo aparece estrechamente asociado con Ias "profe
siones honorables".''^ Abogados, militares, médicos, ingenierosy "expertos
en el manejo de Ia pluma" estaban en Ia cima dei prestigio y marchaban a
Ia cabeza dei proceso de "exigir y dar satisfacción".
Particularmente evidente en el "período de gloria" de los comba
tes singulares, 1880-1910, esta constatación se modifica parcialmente
si se interpretan los datos con una mirada cronológica. En efecto, has-

T. Halperín Donghi, Historia de Ia Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires,


Eudeba, 2002, p. 20.
Sobre el papel de los abogados para Ia constitución de Ias elites políticas y sobre
su rol en el proceso de construcción estatal: E. Zimmermann, "El Poder Judi
cial, Ia construcción dei estado y el federalismo: Argentina, 1860-1880" mimeo
y dei mismo autor: "The Education of Lawyers and Judges in Argentinas Or
ganización Nacional (1860-1880)" , en: E. Zimmermann (Ed). Judicial Institu-
tions in Nineteenth-Century Latin América, Londres, Institute of Latin Ameri-
can Studies, 1999. Para el desencanto y Iascríticas vertidas sobre Ia Facultadde
Derecho por integrantes de Iaelite social y/o intelectual dei recambio de siglo:
O. Terán, Vida intelectual en elBuenos Aires fin-de-siglo. Derivas de Ia "cultura
científica", Buenos Aires, 2000, p. 67-75.
Sobre el rol de los médicos, la constitución de un campo profesional y Ia con-
formación de una elite médica: R. González Leandro, Curar, Persuadir, Gober-
nar. La construcción histórica de la profesión médica enBuenos Aires 1852-1886,
Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas-Centro de Estúdios
Históricos, 1999.
Aráoz Alfaro distingue entre "los abogados - portenos de clase alta y los más
distinguidos social y politicamente conlos estudiantes de medicina provenien
tes de Ias provincias y de sectores sociales inferiores, hecho que les otorgaba
un aire mucho más modesto". G. Aráoz Alfaro, Crônicas y estampas deipasado,
Buenos Aires, 1938, p. 59-62.

Sociabilidades, justiças e violências:...


ta 1870 Ia escasa información cuantitativa pero también ias referencias
cualitativas coinciden en destacar que los protagonistas eran militares.
Esta aparente homogeneidad profesional se rompe, o se diversifica, en
el recambio de siglo cuando ingresan al campo un considerable núme
ro de civiles dentro de los cuales los profesionales arriba mencionados
alcanzan el lugar más destacado. A partir de los anos '30 dei siglo XX y
decididamente en Ia década siguiente el duelo no sólo deja de gozar de
publicidad sino que también pierde Ia relativa diversidadprofesional de
antano.'^^ Mucho más homogêneo en profesiones u ocupaciones, a es-
paldas dei público y buscando recuperar el recato que parece haber sido
característico de principios dei siglo XIX, el duelo se acota al âmbito
castrense. Entre 1940 y 1971 los combates singulares están en "retirada",
son percibidos en Ia mayoría de los casos como esabios extemporâneos
cuando no ridículos y como "cosas de militares". Esta percepción tuvo
correlato con Ia realidad: de Ias aproximadamente 367 personas involu-
cradas de diferente modo, es decir como duelistas o como padrinos, en
los 123 desafios y/o duelos, alrededor de 200 pertenecían a Ias Fuerzas
Armadas, Ia mayoría de los duelos eran entre militares y, también im
portante, cuando participaban civiles los padrinos y los integrantes de
los Tribunales de Honor eran casi invariablemente militares.''^

En los documentos emergen también otras filiaciones. "Integran


te de un Club Social", "conocido en Ia localidad", "caballero" o "Don"

EI rechazo a Ia publicidad de los desafios Io expresa de manera contundente un


duelista frecuente y locuaz como Alfredo Palacios: en enero de 1960 Agustín
Rodríguez Araya es retado a duelo por el general, y Secretario de Guerra, Ro
dolfo Larcher. Este se sintió agraviado por Ias palabras que Araya pronunciara
en el Teatro de Buenos Aires. Como padrino de Araya, Palacios tuvo un alterca-
do con los periodistas impensable décadas atrás. Ante el acoso de Ia prensa les
dijo: "de estas cosas no se puede hablar (un poco contrariado) [sic]. No puedo
ni debo hablar - repitió con severidad Esto es una cosa seria y los padrinos
debenguardar Iaconducta requerida por Ias regias de Iacaballerosidad. Elpue-
blo, dijo, refiriéndose a lances anteriores, está mal acostumbrado, esto no esun
espectáculo y estaimpresión debe terminar", citado en). Varangot, op.cit., p.90.
Puede consultarse también La Razón y La Nación dei 2 de enero de 1960.
Los padrinos más recurrentes fueron los generales Aramburu, Fraga yToranzo
y el contralmirante Isaac Rojas. Los âmbitos donde se tramitan los duelos fue
ron básicamente el Círculo de Armas, el Círculo Militar y el Centro Naval.

Exigir y dar satisfacción:...


fueron frecuentes."''^ Dei mismo modo que identiíicaciones claramente
políticas como "candidato", "miembro dei Consejo Deliberante", "alto
funcionário" o "candidato de Ia oposición"/^ Junto con estos critérios
sociales y políticos estaban los estrictamente econômicos: "acaudalado
estanciero", "rico saladerista" "comerciante", "empresário" y "propieta-
rio" fueron muy habituales.**^

Tabla 111

Otras caracterizaciones de los participantes en desafios y/o duelos


en Ia ciudad de Buenos Aires

Caracterizaciones Participantes
Don / Caballero

Estanciero / Rico

Candidato / Político

Fuente: ídem. La mayoría de estas calificaciones


se ubicanentre 1870 y 1910.

Esta diversidad de apelaciones convivia también para describir a


un mismo indivíduo en un mismo documento. "Doctor, militar y perio-
dista", "abogado y senador de Ia nación", "empresário y conocido asesor
municipal" irrumpen sin tensión reproduciendo, en última instância, el
desempeno multifacético de muchos hombres públicos dei período.**^ Si
ciertas actividades, profesiones o posesiones son mucho más recurren-

E1 apelativo de "Don" aparece para 64 indivíduos; el de "muy conocido en Ia


localidad" para 36, el de Caballero/marques/barón para 13; el de miembro de
Club Social para 16, y el de miembro de Câmara de Comercio para 12.
La identificación de "candidato" aparece para 50 indivíduos, Ia de "miembro dei
Consejo Deliberante" para 40, Ia de "candidato de la oposición" para 40, la de
"alto funcionário municipal" para 20; la "Intendente Municipal" para 10, la de
"Ministro" para 12.
La calificación de comerciante aparece para 60 indivíduos, la de estancieros
para 42, la de propietario
Para 129 indivíduos la calificación múltiple es propia de los documentos, pero
dado que algunos duelistas eran reconocidos hombres públicos es dable supo-
ner que esta cifra fue mucho más importante.

Sociabilidades, justiças e violências:...


tes no deben esconder Ia existência de otras, y mucho más importante,
no deben opacar el hecho que el duelo más que de una profesión, rol o
actividad particular depende de Ia igualdad de condición reconocida
entre los adversários.

A diferencia de Alemania y Francia, por ejemplo, en que los com


bates singulares también tuvieron un significativo peso social y político
en el recambio de siglo. Ia permeable y "porosa" sociedad portena dejó
más "desprotegidos" a sus "caballeros". Sin duda Ia sociedad de corte de
Ia Alemania recientemente unificada, y sobre todo Francia en Ia III Re
pública, abrió sus puertas a los representantes de los estratos burgueses
más ampliamente que nunca, pero fueron principalmente altos funcio
nários públicos incluyendo los profesores universitários y en particu
lar los hombres de saber famosos los que fueron atraídos por ella. Los
critérios para pertenecer a Ia clase alta alemana pasaron a abrazar en el
recién unificado Kaiserreich una extensión creciente de elementos de
clase media, así como aristocráticos, pero manteniendo intacto el status
jerárquico convencional que conferia precedência a los aristocratas so
bre los ciudadanos comunes.^® En Francia, más permeable socialmente,
por ejemplo los comerciantes ricos tenían derecho al duelo a diferencia
de los acaudalados comerciantes alemanes que fueron sistemáticamente
excluídos. Ia posibilidad de duelar fue generalmente precedida, o aco
plada, a otras calificaciones.'^^ Las sólidas y antiguas academias militares
y las cofradías estudiantiles duelísticas fueron un Incontestable legiti-
mador para integrar Ia sociedad de Ia satisfacción. En Buenos Aires es
imposible una situación similar. No sólo por que no existieron institu-
cionesequivalentes sino por que los critérios para considerar a un hom-
bre socialmente aceptable -antigüedad, riqueza heredada y pasaje por
Ia universidad - estaban siendo sometidos a una radical revisión o en

N. Elias, "Duelo e filiacao..." op. cit, p. 66 y ss.


Para Ia penetración y posibilidad dei duelo entre diferentes actores sociales
en Ia Francia de ia Tercera República: R. Nye, Masculinity and Males.. .op.cit.
También: "The end of the French Duel", en Spierenburg (Comp.), Men and vio-
lence...op. cit. Para los excluídos en Alemania: artesanos, comerciantes, indus-
triales, trabajadoresy judios: N. Elias, ibid. Frevert,Men ofHonor...op. cit. Para
Ia imposibilidad de los judios franceses de duelar, sobre todo luego dei caso
Dreyfus: R. Nye, Masculinity...op. cit.

Exigir y dar satisfacción:...


proceso de ampliación. En consecuencia no era suficiente ser abogado,
militar o estanciero, por ejemplo, para ingresar automáticamente o con
relativa facilidad en Ia comunidad de duelistas. Ezequiel Ramos Mexia,
quizás una de Ias personas más ricas de Ia argentina de entonces, dos ve-
ces Ministro de Agricultura de Ia Nación, diputado provincial por Bue
nos Aires, Ministro de Obras Públicas, e integrante dei directorio dei
Banco Hipotecário, (para mencionar algunas de sus dilatadas interven-
ciones públicas), fundador dei Círculo de Armas, miembro dei Jockey
Club y esgrimista conocido, no recibe a los padrinos de Lúcio Mansilla
primero y de Nicolás Calvo después amparándose en sus cuantiosas
extensiones de tierras.^® Cuando en 1916 Leopoldo Lugones estuvo a
punto de batirse, o cuando prologa Ia segunda edición dei reconocido
libro de Viale en 1928, no Io hace en su calidad de escritor o de profesor
universitário sino como hombre genuinamente interesado en los com-
portamientos caballerescos y puntilloso por su honor personal.
Los duelistas se oponían, en definitiva, a ser definidos solamente
por su vida social y profesional y reclamaban el derecho, fundado sobre
su instrucción y su "cultura espiritual", de presentarse a sí mismos en tan
to que personas. Esta versión enfática dei individualismo alimentaba un
contrapunto a Ia modernización econômica, técnica y social que promo
via simultáneamente Ia diferenciación funcional, Ia división dei trabajo y
Ia pluralidad de roles.^' Las ofensas y los desafios no apuntaban al hombre
en un rol determinado (el de padre de familia, esposo, profesional, ciu-
dadano) sino que tocaban a su persona que era necesario salvaguardar
a todo precio. Caballero era aquel que mostraba y compartía una cierta
forma de vida, un conjunto más o menos preciso de normas, de dogmas
y de comportamientos y no designaba a aquel que pertenecia a una clase
determinada de propietarios, de profesionales o funcionários.

Como cuenta el autor en sus Memórias, por tener "Ia mano demasiado pesada"
como redactor dei diário Sud-América fue desafiado por Lúcio V. Mansilla y
Nicolás Calvo. Sus padrinos Paul Groussac y Roque Sáenz Pena "hicieron pro
dígios para evitarme un duelo con un septuagenário (Calvo)", en Mis Memórias
1835-1935, Buenos Aires, La facultad, 1936, p. 80-81. No he encontrado quié-
nes fueron sus padrinos en el incidente con Mansilla.
U Frevert, "Moeurs bourgeoises..." op.cit., p. 208.

Socíabilidades, justiças e violências:...


En 1878 Samuel Sánchez (ex juez dei crimen) y José Panella (pro-
fesor de esgrima y antiguo oficial dei Ejército regular de Italia) publican
ei primer Código Argentino sobre El Duelo.^^ Junto con Ias regias, que
tendían a limitar el uso dei duelo e imponer pautas íijas de comporta-
miento, el libro reproduce el "voto espreso [sic] de adhesión" de casi 300
personas. Producto de Ia convocatória emprendida por los autores que
invitan a los hombres a apoyar su obra y de Ia iniciativa de los particu
lares,^^ estos avales son muy distintos de los que podían encontrarse en
los Manuales de duelo europeos.
Como reconocen Sánchez y Panella "en los códigos dictados en
Europa al mismo objeto, se rejistran [sic] lujosos repertórios de nom-
bres ilustres laureadosde títulos, procedentes de pergaminos que consa
gra Ia aristocracia, cuyos nombres, comprendemos, deben conservarse
con preferencia libres de mancha, exigiendo entre sí todo el respeto que
prescribe el honor y Ia cultura. Como entre nosotros no hay títulos ni
pergaminos, Ia democracia rebulle, nivelando todas Ias clases sociales,
refundidas en una sola, que se llama el Pueblo [sic]. Por consiguiente
no ha sido necesario solicitar los nombres de una aristocracia latente y
refractaria... [sic] por el contrario, consecuentes con Ia ley social de Ia
verdadera democracia, háse solicitado Ia adhesión dei pueblo, buscán-
dolo en todas Ias clases sociales".^"'

El "brillante catálogo" de nombres y apellidos agrupados bajo los


sugerentes títulos de "clase militar", "estado civil", "prensa argentina" y
"profesores de esgrima" cobija, como repiten con alegria los autores una
y otra vez, una notable diversidad. Magistrados, empleados, abogados,
médicos, estancieros, militares, comerciantes, profesores de esgrima,
propietarios, artesanos e industriales diseftan este primer intento local
de construir el panteón de los hombres de honor. Once anos después,
en 1889, el diário La Nación diagnostica una heterogeneidad similar. En
su ácida editorial titulada "Situación política. Personalismos" el periódi-

S. Sánchez y J. Panella, Código ArgentinosobreEl Duelo, Buenos Aires, Moreno,


1878.
Los autores aclaran que ia lista de adhesión sigue abierta para todos los volun
tários que quieran suscribir. Para ello indican en una nota al pié Ia dirección
postal dei estúdio dei Doctor Sánchez.
Ibid., p. 91-92.

Exigir y dar satisfacción:...


CO reconocía que en Ia mayoría de los 56 duelos habidos en Ia primera
mitad de ese ano "han intervenido o intervienen personas de espectabi-
lidad: políticos, abogados, periodistas, banqueros, militares de mar y de
tierra y hasta candidatos a Ia presidência de Ia república"
El universo heterogêneo que irradian estas representaciones, y que
coincide con nuestros propios datos, es también un universo de hom-
bres ilustres. Claramente La Nación los califica de espectables, de gente
tan conocida que no es necesario identificar con precisión. El impulso
integrador de Sánchez y Panella palpable en Ia amplitud de su convo
catória no deja de remarcar que "felizmente se ha obtenido un brillante
catálogo de firmas que representan Ia parte más eminente de esta culta
sociedad... todo hombre honrado que juega un rol en Ia sociedad con
una profesión honrosa, o un oficio honesto y lucrativo".
Existia Ia convicción entre los contemporâneos de fines dei si-
glo XIX que los duelistas eran alguien, es decir, personas que contaban
como indivíduos gracias a su capacidad de mandar o de influir, a su
fortuna, a su mérito intelectual o al beneficio que aportaban con sus
actos a Ia sociedad. En muchos documentos esta idea es tan evidente
que es difícil adivinar, un siglo después, quiénes fueron estos "hombres
destacados". En otros casos estaba tan claro para los contemporâneos
quiénes eran los involucrados que sólo se limitaban a indicar el nom-
bre y el apellido. Se puede mirar a Ia "sociedad de Ia satisfacción" desde
esta última perspectiva. De Ia lista, extensa, pueden rescatarse al azar:
A. Orma, A. Pueyrredón, A. Gowland, A. Rodríguez Larreta, Emílio y
Bartolomé Mitre, Angel y Vicente Casares, B Artayeta Castex, B. Naza
Anchorena, Joaquín Anchorena, E. Quesada, F. Lezica, Júlio y Ataliva
Roca, E. Green, R. Patrón Costas, J. Costa Paz ...

Un Alzaga, Unzué, Balza, Santa Coloma, para seguir citando, no


parecen haber necesitado mayores identificaciones, incluso en una ciu-
dad tan inestable y cambiante como Ia Buenos Aires dei recambio de
siglo. Sus apeilidos eran muy conocidos y portadores de prestigio y, si
bien como Io muestra entre otros el duelo que le costó Ia vida a Lúcio
V. López esto no implicaba que pudieran fácilmente ignorar un desafio

Ibid., p. 92.

Sociabil idades, justiças e violências:


-todo Io contrario- y tampoco que se escudaran en su "linaje" y ante
cedentes familiares para prescindir dar una explicación pública, el exi
gir y dar satisfacción era una expresión manifiesta de "pertenecer" y no
creaba ni justificaba un status. Dei mismo modo que un abono al teatro
Colón, Ia frecuentación al Jockey Club o al más restringido Círculo de
Armas el duelo era Ia senal visible e institucionalizada de Ia mucho me
nos visible y no institucionalizada línea de división entre Ias personas
que eran consideradas por los miembros de Ia "buena sociedad" como
pertenecientes a ella y quienes no pertenecían.^^
Pero por otro lado es imposible identificar a todos los participan
tes siguiendo este critério. Muchos de los nombres y apellidosque llena-
ron Ias actas de desafios no siempre lograron ingresar en Ias páginas de
los diccionarios biográficos, en los documentos oficiales o en Ias guias
sociales de Ia ciudad. Para este heterogêneo universo el duelo, en tanto
símbolo electivo de una manera de vivir, fue esencialmente utilizado
para acceder a Ia posición social de caballero. Lejos de ser una práctica
más, aunque necesaria, que ingresaba en un cúmulo mucho más vasto
de comportamientos y frecuentaciones, el duelo para estos hombres fue
central en el proceso de construcción de su honorabilidad. Los padrinos
en ocasiones denuncian estos usos pero, unavez más, son los diários los
que reflejan estupendamente esta intención. Las cartas publicadas en los
periódicos por personas involucradas en conflictos de honor confian
en su capacidad de "hacer reputaciones", "concitar Ia opinión y ganar
publicidad". La"virtud dei desafio para hacer atmósfera alrededor de un
nombre"^^ convertían al duelo más que en un "punto de llegada" en un
"punto de partida" para el reconocimiento y el status social.
íQué podian tener en común Rodolfo Rivarola, Júlio Benítez,
Benjamín Victorica, Justo Sueldo y José Vica, por ejemplo? Poder ape
lar al duelo como forma más pura de defender su honor. Más allá de
las gradaciones jerárquicas un lazo de unión fundamental se selló entre
aquellos que gozaron dei privilegio de exigir satisfacción por médio de

N. Elias, "Duelo e filiacao..op.cit., p. 58.


Véase por ejemplo el incidente Saccone- de Ia Torre en: J. Rivanera, op. cit., p.
210.
La Nación, 3-8-1905.

Exigir y dar satisfacción:...


Ias armas cuando sintieron su honor impugnado y, al mismo tiempo,
se vieron obligados a dar explicaciones por médio de Ias armas cuando
otro caballero sintió su honor herido.

REQUISITOS PARA INGRESAR A LA COMUNIDAD


DEDUELISTAS

En Argentina, a-priori, todos tenían derecho al honor, éste era-es


un bien jurídico tutelado por el estado que ofrecía los tribunales como
instância de reivindicación. El derecho universal al honor reconocido
por el estado y reivindicado vivamente por los ciudadanos habilitaba a
que todos pudieran sentir, reclamar y esperar honor.^^ ^Esto implica que
todos los hombres, entonces, podían recurrir al duelo para defender su
honor? La respuesta evidentemente es no.
En su libro Sánchez y Panella subrayaban que "Ia única condi-
ción (para batirse a duelo) es Ia de su honorabilidad junto a su méri
to intelectual o moral".^'^ La amplitud de este enunciado y sobre todo
de los princípios que Io sustentaban fue rápidamente mitigada por una
serie de exigências. Los mismos autores se ocuparon de colocar algu-
nas limitaciones. Además de no poder desafiar y/o batirse con meno
res de edad o ancianos como indicamos al inicio, tampoco era posible
si mediaba parentesco entre los adversários hasta el tercer grado por
consanguinidad y primero por afinidad o si se provocaba para vengar a
otro o reanudar una cuestión ya solucionada caballerescamente.^' Estas
prohibiciones básicas, repetidas sin variación en todos los Manuales de
Duelo convivían con otras exigências también "universales" dei Código
dei Honor: si la autoridad policial o judicial ya había intervenido en
el conflicto el duelo estaba prohibido. El Código de Honor era incom-

He desarrollado estas ideas en: S. Gayol, Sociabilidad en Buenos Aires. Hombres,


honor y cafés: 1862-1910, Buenos Aires, Dei Signo, 2000. Especialmente en el
capítulo VII: "Honor". También, "Honor Moderno: The significance of Honor
in Fin de Siède Argentina", en HAHR, 84:3, 2004.
S. Sánchez y J. Panella, op. cit., p. 92.
J. Rivanera, op.cit.

Sociabilidades, justiças e violências:...


patible con el Código Penal y como sistema legal paralelo no admitia
mezclarse, confundirse o subordinarse con Ia ley dei estado. Era sufi
ciente que el incidente hubiera iniciado el camino dictado por Ia justicia
pública para que Ia posibilidad de una solución caballeresca se cerrara.
Fero tampoco el duelo era posible con alguien que tuviera una causa
pendiente, de cualquier tipo, en Ia justicia dei estado. Después de todo
fue pensado para aquellos hombres cuya sensibilidad moral y estética
era tan elevada que convertia en imperfectas e insuficientes Ias leyes dei
Estado. Como explicaba y justificaba el Código Penal que entró en vi
gência en 1887 "el duelo como combate regular está determinado por
motivos de honor y no reviste el carácterde tal el combate determinado
por motivos de interés— pecuniário u otro objeto inmoral".^^ Frente al
avance materialista de Ia sociedad, a sus temores y a sus criticas el honor
y el duelo como forma de defensa se propuso como antidoto al temible
virus mercantilista. No sólo el Código Penal y los Manuales de duelo Io
colocaban a salvo de los efectos corrosivos dei dinero sino también los
propios duelistas. Poças cosas irritaban más que recibir los padrinos de
un deudor o luego de una discusión comercial. El 1907 Manuel Carlés
exhibe indignado los telegramas intercambiados con Augusto Coelho,
su desafiador. Con este gesto Carlés deja claro, por si alguna duda cabe,
que Ias diferencias con el sefior Coelho "trataban de una cuenta de ho
norários adeudados por dicho senor, devengados por servidos profe-
sionales prestados en su carácter de abogado (y por eso) rehúsando al
sefiorCoelho cualquier explicación que se le desee"."
Si estas disposiciones escritas en los Manuales Argentinos de
Duelo son importantes, informan muy parcialmente sobre Ias posibles
selecciones ejercitadas por los caballeros.
Critérios no escritos, símbolos no implícitos de filiación que de
una forma general sólo son evidentes para los iniciados y nunca enten
didos completamente para quien está afuera hacen difícil conocer con
precisión los motivos por los cuales una persona ofendida no desafiaba,
o Ias razones por Ias cuales un indivíduo se negaba a dar satisfacción.
Partiendo de algunos fracasos, esdecir, de desafios negados bucearemos

Véase Código Penal, Buenos Aires, 1887, art. 97 y sigs.


La Nación, "Personal", 14-10-1907.

Exigir y dar satisfacción:...


en los motivos invocados que tuvieron el efecto, aunque sea indirecto,
de hacer Ias fronteras sociales mucho menos permeables.
En 1907 César Roldán saltó a Ia fama cuando declara que "no se
bate con un fotógrafo". Miguel di Santi, desafiador, publica en los diários
de Ia tarde una carta que coloca a Roldán como un cobarde. Esta publi-
cación disparó una sustanciosa aclaración de Roldán:

Senores Juan A Briazo y Arturo Cueto. Presentes. Mis


distinguidos amigos: en ia conferência solicitada por
ustedes, manifestándome que venían en nombre y re-
presentación de Don. Miguel Di Santi, para exigirme Ia
explicación y sentido de una frase pronunciada por mi
respecto de este senor, su retractación en caso de ser su
significado deprimente, y si fuese denegada una repara-
ción por Ias armas. Haciendo esfuerzos de memória para
reconstruir dicha frase, pues que ha pasado algún tiempo
que ella fue pronunciada y no es posible grabar en el re-
cuerdo trivialidades que pueden ocurrir en Ia vida diaria,
recuerdo que, efectivamente, dialogando en una reunión
social con una nina, supe que su senorita hermana era
festejada por dicho senor di Santi y como se ofreciera mi
parecer al respecto, Io manifesté en esta forma, quizás
algo humorística: 'es lamentable que una nina de posición
social distinguida sea festejada por un fotógrafo'. Porque,
efectivamente, mis estimados, 'dentro de mi concepto' y
en Ias diferentes categorias que 'mi critério' clasifica a Ias
profesiones. Ia de fotógrafo no me parece distinguida en
el 'sentido social de Ia palabrá: Ia equiparo a Ia de otros
grêmios similares: y este es un concepto íntimo, que está
en Ia sangre, que no puede ser desalojado y que profesan
con Ia misma convicción que yo todos aquellos que han
tenido Ia suerte de nacer en cierta cuna, de llevar cierto
apellido y de poder actuar en cierto ambiente social don
de aquellos no son admitidos, sino en el ejercicio de su
profesión. ^es esto y aquella frase mia un ataque 'perso-
nal', una ofensa, un agravio al senor di Santi? No, de nin-
guna manera... por otra parte si constituyera un agravio
mi concepto de ciertos ofícios y si Ias personas que los
ejercen pudieran exigirme por ello de una retractación o
arrastrarme a cada paso al 'terreno dei honor', por esta
disparidad de apreciación social, imagínense ustedes cuál
seria mi situación teniendo que batirme con cincuenta

Sociabilidades, Justiças e violências:,.


mil representantes de los grêmios que se encierran den
tro de mi apreciación. En cuanto a Ia persona dei senor
di Santi debo manifestarles que, salvo aquella frase en Ia
cual me ratifico, jamás he tenido otras vinculaciones con
él como no sean en su calidad de fotógrafo', esto es: le he
encomendado trabajos en el ramo', me los ha hecho y se
los he pagado. Eso es todo. Con Io expuesto creo dejar
ampliamente satisfecha Ia misión de ustedes, por cuanto
Ia 'persona' dei senor di Santi, según queda explicado, ja
más ha sido objeto de mi atención, quizá por tener otras
cosas más agradables, interesantes o graves de que ocu-
parme... saluda a ustedes con amabilidad..

Despectiva y desdenosa, a desgano y al mismo tiempo elocuente,


Ia extensa explicación de Roldán estuvo llamada a perdurar. Articulada
y fundamentada a partir de un critério de inferioridad social tributá
rio en buena medida de Ia ocupación "poco honorable" de di Santi, es
difícil no encontrar referencias a este episodio. Presente en todos los
recopiladores de actas de duelos y citada en Ia mayoría de los escritos
referidos al honor esta explicación muestra algo más que una simple
y cruel descalificación socio-profesional. El fotógrafo di Santi tiene Ia
inaudita pretensión de festejar a una nina distinguida. Invadiendo un
espacio social sólo reservado para "quienes nacen en cierta cuna y por-
tan determinados apellidos", esnotable Iasimilitud entre esteescrito y el
conocido fragmento de Cané en el que implora: "...mira, nuestro deber
sagrado, primero, arriba de todos, es defender nuestras mujeres contra
Ia invasión tosca dei mundo heterogêneo, cosmopolita, híbrido, que es
hoyIa base de nuestro país...cerremos el círculo y velemos sobre él".^^
Mercantil, invasor y pretendiendo corromper Ia pureza de Ias
ninas Ia respuesta de Roldán, en completa sintonia con los temores y Ias
críticas de algunos integrantes de Ias elites íiniseculares, no hizo escuela
entre los duelistas. Fue una forma, una manera, de rechazar excepcional
que quizás por eso se gravó en Ia memória de los contemporâneos. La
violência de su argumentación que recuerda, no sólo por su intensidad
sino también por sus características, al advenedizo retratado en Ia litera-

64 C. Viale, Jurisprudência... op. dt., p. 35-37.


65 Sobre el conoddo e impresdndible pasaje de Cané: O. Terán, op.cit., p. 54-55.

Exigir y dar satisfacción:


tura no sirvió como argumento una vez lanzada Ia dialéctica dei desafio
y Ia respuesta. No hemos encontrado para ningún otro incidente argu-
mentaciones semejantes. Tampoco desafios articulados o determinados
a partir de critérios "corporativos". Esto es, mirando caso por caso Ias
ocupaciones de quienes entran en conflicto se observa que éstas no son
necesariamente coincidentes. Desde el punto de vista de Ia actividad to
dos, al menos a-priori, pueden desafiar a todos.^^ En una sociedad mó-
vil, próspera y sin "títulos" y cuyos habitantes se jactaban "de no aceptar
privilégios de sangre ni de ninguna clase" no estaba dentro dei menú de
poslbilidades invocar públicamente descalificaciones o superioridades
dei estilo de Ias de Roldán.

Más allá dei impulso que cobró Ia genealogia a fines dei siglo XIX^®
y dei orgullo expresado por ciertos indivíduos que, para decirlo alegre
mente con Wilde, "tenian abuelos para mostrar", el papel de Ia familia y
de Ia antigüedad familiar como principio estructurador de Ias elites deja
de ser excluyente y significativo a partir dei último tercio dei siglo XIX.^^
El duelo muestra con nitidez este proceso y exhibe el clima más demo
crático que caracterizó a Ia argentina republicana. Nadie públicamente
aspira o cuestiona el prestigio social anclándose en los antecedentes fa
miliares. Dei mismo modo que los apellidos servian de poco a Ia hora de
identificar a los duelistas, tampoco aportaban argumentos para rechazar
a un adversário. Los prestígios, Ias reputaciones que defienden los hom-
bres se asentaban en hechos concretos y actitudes particulares. Poços
fueron, en suma, los que se atrevieron en público y a viva voz a pensar
Ias diferencias y Ias jerarquias como Roldán.

Militares, médicos, periodistas y abogados se desafían mutuamente, si bien hay


una mayor propensión entre los "doctores" a desafiarse entre sí sólo debido a
que son mayoritarios.
Una antitesis tal vez demasiado extrema al gesto de Roldán Io expresa en 1902
el marquês Júlio Malaspina de Ia Lunigiara al desafiar al empleado Luis Picarei.
Un tribunal de Honor se reúne y expresa que no existe ningún obstáculo que
impida se Ileve a efecto una satisfacción por Ias armas", La Nación, "Personal",
13-2-1902.
R. RodriguezMolas, Vida cotidiana... op. cit.
Sobre Ia disminución dei peso dei emparentamiento como principio estructu
rador de Ia elite y sobre el papel articulador ejercido por âmbitos institucionales
como por ejemplo Ia Sociedad Rural o el JockeyClub véase; L. Losada, Distinci-
ón y legitimidad... op .cit, p. 60 y 90.

Sociabilidades, justiças e violências:...


En contrapartida el incidente entre Pedro Pardo y Donato Pis-
cione Mônaco halla fácilmente eco entre sus contemporâneos. El des-
dén dei Doctor Pardo y su posterior rechazo a batirse a duelo disparan
un intercâmbio epistolar que tiene al diário La Nación como escenario
principal. Bajo el título de "Personal" el 12 de diciembre de 1893 el co
merciante Mônaco responde indignado:

El Sr Pardo, como se ve por ias cartas que más arriba pu


blico se ha negado a batirse conmigo, alegando que no me
conoce, y tal respuesta suya no puede ser sino un alegato
caprichoso o un subterfúgio desde queen Ia sociedad de
Buenos Aires se me ha admitido carinosamente, pues for
mo parte de los principales círculos y desde hace 6 anos
me encuentro radicado en el país, contando con un nú
mero de relaciones distinguidas que me honran con su
amistad. Ni en mi vida de comerciante ni en mis actos
de caballero se me ha podidoreprochar uno sólo que me
desdora. Tal ha sido Ia actitud dei senor Pardo, que no
ha asumido Ia responsabilidad de sus palabras como yo
asumo Ia de mis actos.'"

Seria errôneo interpretar literalmente Ia frase "no me conoce".


También seria estrecho limitaria al sentido acotado que está dispues-
to a concederle Mônaco. Es cierto que en ocasiones "haber visto a al-
guien apenas una vez" es razôn suficiente para no tramitar un duelo.
Es evidente que un trato social prévio emerge de Ia mayoria de los due
los, pero es evidente también que Ia frecuentación en el trato no es un
prerrequisito para sostener un duelo. Lúcio Vicente Lôpez y Carlos Sar-
miento se vieron por primera vez en el campo dei honor. Ambos no se
conocían entre si pero sabian quién era el otro, se conocían, por nom-
bre, reputaciôn y aspiraciones políticas.^' El despliegue de capital social
que hace Mônaco, Ia referencia a espaciosde sociabilidad y a "relaciones
distinguidas" apunta a algo más que a negar cualquier insinuaciôn de
aislamiento social. La capacidad relacionai era una prueba de integra-

La Nación, "Personal", 12-12-1893.


Para un análisis detallado de este caso: S. Gayol, "Honor y política en Ia Ar
gentina Moderna: el duelo entre Lúcio Vicente López y Carlos Sarmiento", en
Estúdios Sociales, 2005.

Exigir y dar satisfacción:...


ción, una marca de inserción social y reconocimiento que suponía o se
basaba en Ia honcrabilidad. Mônaco se defiende ofreciendo factores
de sociabilidad que le permitían mostrar que contaba, que era alguien
como persona. Pero como aclara Pedro Pardo sin sutilezas, Ia expresión
"no me conoce" podia tener también mayores implicaciones:

[...] le dije a los padrinos que persistia en mi resoluci-


ón de no aceptar Ia provocación por Ia simple y sencilla
razón de que no me cuadraba el adversário, Io que por
otra parte era ya conocido de dichos senores, según me Io
manifestaron... [sic] no me bato con el senor Piscione por
que no Io creo mi igual, y basta/^

De nada valieron Ias agresiones, por ejemplo los gritos de Mônaco


y el posterior arrojo en Ia cara de un "paquete de naipes". Los atentados
verbales y físicos no inmutaron a Pardo pues [...] interviniendo Môna
co en Ia reuniôn (de Ia comisiôn dei Club Italiano) sin que se Io hayan
pedido y en calidad de inspector dei circulo, y notando que Io hacía en
sentido absolutamente contrario a otra resoluciôn dei mismo Mônaco en
otro caso exactamente igualpero en el que él era directamente interesado,
no pude menos de increparle Ia incorrecciôn de tal proceder de su parte,
haciéndolo en términos enérgicos, no agresivos, y expresándole que Ue-
varía el hecho a conocimiento dei consejo directivo en salvaguarda dei
decoro dei mismo círculo. Mi actitud dejô muy molesto al senor Mônaco,
no por Ia forma en que yo me conduje sino porque sus resoluciones con-
tradictorias puestas en transparência por mí en forma tan categórica, no
le dejaban explicaciôn alguna honorable que atenuara su mal proceder.
Luego de algunos minutos el sr Mônaco dirigléndose a mí en términos
descomedidos me invitô que le enviara los padrinos. Tal propuesta de un
hombre cuyos maios manejos acababa de denunciar y comprobar, me pa-
reciô simplemente una insolencia, y como a tal Ia contesté, expresándole
en términos más vivos aún el concepto que había formado de su persona,
y declarándole que en ningún caso me rebajaba hasta reconocerlo como
adversário en el terreno dei honor, aun si bien había concurrido otras ve-
ces, aún por causas nimias como era notorio, Io había hecho siempre con

72. La Nación, "Personal", 13-12-1893.

Sociabilídades, Justiças e violências:...


caballeros a quien había reputado iguales... Una hora más tarde me retiré
dei club y no habría vuelto a acordarme más de Io ocurrido a no haber
recibido una tarjeta de los sres... esta tarjeta ia recibí 48hs después dei
incidente, es decir, ya vencido con exceso el término consagrado por los
códigos para dirimir Ias cuestiones personales..."^
A Pardo no "le cuadra" Mônaco sencülamente por que tuvo con-
ductas públicas renidas con Ia moral. La "incorrección dei proceder" a
Ia vista de todos Io separa automáticamente dei campo dei honor. Este
está supeditado en buena medida a los comportamientos presentes y
pasados, a los gestos y Ias reacciones que, en este caso particular, dela-
taban incapacidad moral. Las acusaciones y sospechas de corrupción
descubiertas in-fraganti pero también aquellas tramitadas en Ia justicia
dei estado^"^ o que han sido publicadas en los periódicos y no han sido
levantadas, es decir, respondidas públicamente por el destinatário inha-
bilitan a participar de Ia dialéctica dei desafio y Ia respuesta.^^ La lectura
moral de los comportamientos que aparece con nitidez en el rechazo
de Pardo se opone radicalmente a sus propias conductas.'^ No sólo las
"resoluciones contradictorias" de Mônaco Io privaban de una explicaci-
ón honorable, sino que Ia displicência en el trato posterior acrecientan
el rechazo y Ia descalificación. Al mismo tiempo el hecho de que Pardo
hubiera tenido ya un duelo unos meses antes confirmaban su pertenen-
cia a Ia "sociedad de Ia satisfacción" y alejaban cualquier posibilidad de
ser tachado de cobarde."^ Rechazar un duelo en el pasado sin explicar

La Nación, "Incidente Calzada-Mujica", 30-1-1893.


La Nación, "Cuestión Cittadini-Magrini", 1-6-1888.
En el incidente Horta-Espil, los padrinos dei ofendido resolvieron no conceder al
ofensor Ia entrevista necesaria que autorizaban los Códigos de Honor, en razón de
que en momentos en que éste ha proferido una manifestación hiriente para su re
presentado realizaba actosviolatorios de Ialey y atentaba contra principios fiinda-
mentales establecidos por elorden público, violando expresas disposiciones legales
y colocándose fuera de ia ley. Poreso consideraron que Ia situación dei mismo, al
igualaria a Ia de su contrincante, Io colocaria en un capitis dimmutio dentro de las
leyes dei honor, por Io que pensaba que el caso no merece una reparación por las
armas,sino una acción criminal", citado por J. J. Rivanera, op. cit., p. 209.
En 1893 Pedro Pardo mantuvo un duelo a pistola con Jorge Roche en Ia chacra
de Alberto Cerantes. Sus padrinos fueron elcontralmirante Daniel de Solier y
el médico Carlos Delcasse. Para una descripción detallada y con importantes

Exigir y dar satisfacción:...


por qué, haberlo directamente evadido "dejándose insultar por un gen-
tilhombre sin exigir Ia satisfacción debida"''^ o "dejarse pegar de atrás
y tolerar movimientos groseros con el cuerpo"'^ inhabilitaban para
duelar.®*^ Ninguno de estos gestos podia reprochársele ai doctor Pardo.
Su foja de activldades públicas desplegadas en el curso de los anos era
impecable así como su actitud en el incidente con Mônaco. Pardo se
permitió exponer con solvência un minucioso conocimiento de los pro-
cedimientos que despliegan los caballeros. Sabia que tanto los Manuales
como Ia práctica íijaban un tiempo máximo de 24hs para pedir satisfac
ción, conocia además Ia cláusula que aconsejaba verificar Ia rectitud de
los propios comportamientos consultando a un experto, en este caso, a
Lúcio Victorio Mansilla, quien falló: "no ha lugar a duelo". Nada pare
cido pudo exhibir Mônaco. Despojado de valores morales y de saberes
caballerescos no podia aspirar a ser reconocido como tal.
Los actores insisten en sus propias obras, en los comportamientos
individuales y en los gestos como habilitadores primordiales para dar
o exigir satisfacción. Uno de los rasgos más paradôjicos e interesantes
en este periodo es que ei duelo, y también el honor, asociado histórica
e historiográíicamente con valores y prácticas aristocráticas quedó en
Buenos Aires preso dei mérito. En Ia ciudad capital no era el linaje, Ia
fortuna o Ia posesión de un saber especifico y formalizado el que deter-
minaba y garantizaba el ingreso a Ia sociedad de Ia satisfacción.

EL CÓDIGO DE HONOR
La posesión de algún mérito individual fue indispensable pero no
era suficiente o requeria, además, de un conocimiento cuidadoso dei

dosis de suspenso: La Nación, "El duelo Roche-Pardo", 6-4-1893. Al ano si-


guiente, en 1894, Pedro Pardo actúa como padrino en un duelo.
La Prensa^ "Personal", 1-6-1901.
La Prensa, "Personal", 5-9-1899.
"El periodista se excusó de aceptar el reto, fundándose para ello en que quien
Io provocada a duelo debía precisamente sincerarse de acusaciones que tenía
pendientes, agregando que en cambio no tenía inconvenientes en batirse con
uno de los padrinos", La Nación, 28-9-1889. También: La Prensa, 31-1-1889.

Sociabilidades, justiças e violências:...


Código de Honor. Había que designar a lospadrinos y para esto fue vital
tener conocidos honorables que supieran cumplir ei rol. O bien ser Io
suficientemente conocido y poder elegir, sin trato prévio, un conocido
"caballero". Pero antes había que saber que era necesario hacerlo, que
había un ritual meticulosamente pautado y regias estrictas que cumplir.
El acceso a esta información no era ni automático ni evidente en una
argentina que carecia de una "memória", de una "tradición" en duelos
capaces de propiciar un conocimiento relativamente extenso de Ia prác-
tica. Saber que existia el duelo, conocer los pasos exigidos durante Ia
tramitación y Ia performance esperada en el campo fue quizás uno de
los limites más importantes. Si porun lado impresiona Ia celeridad con
Ia que los caballeros aprendieron Ia pedagogia dei duelo, por otro lado
no debe subestimarse el tiempo y el capital social que insumia todo el
proceso de aprendizaje. No importaba tanto, no era determinante, ser
un residente "viejo" en Ia medida que setrataba esencialmente de capa-
cidad relacionai posible de movilizar y poner a prueba en una situaci-
ón particular. Como Esteban Fernández que expresó a los padrinos de
Antonio Solano "que necesitaba bajar a Ia capital Federal porque en este
pueblo nocontaba con amigos de suficiente confianza".^' Posibilidad que
no tuvo Juan Gutiérrez, incapaz de encontrar padrinos para poder res
ponder al desafio de Esteban Luna. O Alfonso Lópezque "quedó atônito
cuando recibe los padrinos y no bacia más que miramos... somos de
opinión que ese senor no conoce Ias regias dei honor...
Los padrinos fueron una pieza clave en el proceso de exigir y dar
satisfacción. Disparado el "desentendimiento", el ofendido comisiona
por médio de una carta a los padrinos para que pidan "amplia satis
facción" o "en su defecto una reparación por Ias armas" al ofensor. Este
promete enviar a sus representantes. Puestos ambos contrincantes "en
manos de sus padrinos", que se comprometeu a "preservar el decoro y
Ia honorabilidad" de sus respectivos ahijados", se inician Ias conversa-
ciones. "Reunidos a deliberar" comienzan "los trabajos"®^ para alcanzar

La Prensa, "Personal", 13-9-1900.


Para el caso de Juan Gutiérrez; La Nación, "A Ia pesca de noticias", 8-8-1891.
Para el caso de Alfonso López: La Prensa, "Personal" 6-9-1902.
La Nación, "Duelo: Acta", 13-5-1893.

Exigir y dar satisfacción:...


un acuerdo. Si Ias explicaciones de palabra no son suficientes se tramita
el duelo. Rápidamente entraba en escena una comunidad mucho más
vasta que los dos protagonistas iniciales. Los padrinos, y los médicos si
se concertaba el duelo, pero también amigos, conocidos, familiares y el
público en general empezaban a seguir los detalles de Ias tratativas. Los
espectadores se ampliaban a medida que avanzaban Ias negociaciones.
Comentários en los diários, "rumores" que publicaban los periódicos y
prometían verificar a los lectores se incorporaban rápidamente al inci
dente. En Ias últimas décadas dei siglo XIX es posible seguir con cierto
detalle Ias "deliberaciones" o "conferências" de los padrinos, el estado
de ânimo de los contrincantes, los puntos en discusión y Ia resolución
definitiva dei conflicto. Estos entretelones que eran volcados en un acta
fueron publicados en los diários. En estas publicaciones, que podían ser
usadas para clarificar su propio nombre o hacer callar al antagonista,
se ponía especial atención en describir el comportamiento de los ad
versários. Desde el modo en que fueron recibidos los padrinos, hasta Ia
actitud expresada cuando comunicaban Ias decisiones adoptadas - dar
por finalizado el conflicto, decretar que no había ofensa o bien que el
honor de ambos contendientes quedaba restaurado- eran volcadas por
escrito. El sometimiento de Ias conductas a escrutínio público y el con-
trol externo cumplieron un rol central. Se averiguaba si los duelistas se
habían comportado bien. "Los contrincantes se han comportado hono-
rablemente" fue una frase recurrente que aparecia al final, como cierre,
de Ias actas que detallaban el conflicto.

Cuando los combates singulares comenzaron a crecer en número,


en el curso de Ia década de 1870, eran - comparativamente a Io que
serán en el recambio de siglo - muy poco ritualizados. Los adversários
tenían considerable libertad de movimientos: podían moverse lateral
mente, esquivarse con Ia cabeza, doblar el cuerpo para el frente, escupir
e insultar y también continuar Ia contienda por diversos médios luego
de culminado el encuentro. A fines de siglo el duelo pierde esta diver-
sidad produciéndose una bifurcación entre el combate singular y otras
formas de violências mucho menos dignas.^"^ íQué conductas se espera-

He desarrollado el proceso de estilización dei "duelo entre caballeros" en: S.


Gayol, "Elogios, deslegitimación y estéticas de Ias violências urbanas: Buenos
Aires 1870-1920", en S. Gayol y G. Kessler (comps), Violências, delitos yjusticias
en Ia Argentina, Buenos Aires, Manantial-UNGS, 2002.

Sociabilidades, justiças e violências:...


ban de un caballero moderno? No sólo que se respetaran Ias condicio
nes pautadas -posición y tipo de arma, número de pasos que separaba
a los adversários y el respeto a los altos que podia pronunciar ei director
dei encuentro- sino también "una actitud francay resuelta, y ser capaces
de afrontar Ia responsabilidad de sus actos",'''^ un control riguroso de
todos los sentimientos hostiles, un domínio absoluto de los impulsos
agresivos y una clara manifestación de "sangre fria" y tranquilidad du
rante y luego dei desarrollo dei encuentro.
Este cúmulo de aptitudes y actitudes fueron necesarias para ofre-
cer al duelo como una forma civilizada de dirimir los conflictos y como
una herramienta clave en el proceso de construcción de Ia distinción y
Ia diferencia social. El duelo fue Ia pieza central de este código de ho
nor minuciosamente establecido a partir de cuyo ritual formalizado sus
miembros se sometian a Ia coacción de una norma especial que bacia dei
uso formalizado de Ia violência un deber irrecusable para una persona
bajo determinadas circunstancias. No se trataba de un acto cualquiera de
violência que Ias elites consentíany recomendaban a sus miembros, sino
que era un tipo de violência formalizado con extrema precisión, un ritual
elaborado con minucioso detalle que identificaba a sus miembros y los
separaba de los otros.A fines deisiglo XIX seadoptó en Buenos Aires este
comportamiento socialmente estratégico que pregonaba valores como el
coraje. Ia celeridad para responder, el vigor físico y Ia predisposición a
defender Ia reputación con Ias armas en Ia mano. Este ritual que dictaba el
comportamiento de Iaspersonas en sus relaciones mutuas Iasdistanciaba
socialmente de Ias otras, de los hombres comunes que no pertenecian a
Ia "sociedad de Ia satisfacción" y que defendian su honor de otra manera.

DISTINCIÓN EHISTORIA
El ritual dei duelo, tal vez más que cualquiera de los otros rituales
de clase alta, fue clave en el proceso de distinción y colocó a sus miem
bros por encima de Ia masa de Ias personas. Apuntaba, hemos visto, a
Ia dominación emotiva y alentaba una determinada disposición estética

85. La Nación, "Duelo", 22-7-1904.

Exigir y dar satisfacción:...


que permitia expresar, a su vez, en una dimensión simbólica los atribu
tos de una determinada posición social.^^ El coraje físico, Ia capacidad
de pulir y afinar el trato gracias a Ia precisión requerida en el manejo
dei arma. Ia postura y destreza dei cuerpo que coadyuvaban a gestos
delicados y estéticos fueron Ias maneras y los valores inculcados por el
duelo. Los caballeros portenos podían colocarse así en Ias antípodas de
Ias múltiples formas de violências que desgarraban el espacio social. El
duelo como estratégia de distanciamiento social se comprende mucho
mejor si se Io compara con el "duelo popular", con otras formas de vio
lências en un fin de siglo que convierte al orden urbano en uno de sus
objetivos primordiales y con Ias guerras civiles dei pasado.
En el mismo momento en que se configura el "duelo entre cabal
leros" desde el estado y más especificamente desde el Código Penal se
equipara al duelo popular con Ia rina y se concede el carácter de "deli
to especial o sui generis" al "duelo entre caballeros"."" Más allá de esta
implícita discriminación legal el duelo caballeresco era un acto de vio
lência minuciosamente formalizado que diferenciaba de manera radical
el momento de ofender dei momento en que se lavaba Ia ofensa y que
recurria a múltiples ojos vigiladores. El "duelo popular" podia prolon-
garse luego dei primer encuentro y en una multiplicidad de formas."" El
"duelo entre caballeros", por el contrario, era impensable que terminara
degenerando en revuelta. La gradación y moderación de Ia violência
Io hacían más decente que el crimen y Io convertian en una prueba dei
êxito de Ia pasión sometida a regulación social. Después de todo los
duelistas no eran salvajes, criminales o gente poco razonable sino "ca
balleros" responsables de controlar sus propios actos y de administrar,
en muchos casos, los destinos dei pais. No hubo casi oposición al "duelo
entre caballeros", Ia práctica fue generalmente aceptada como una for
ma de violência inofensiva o como una práctica no violenta. En general
se sostenia que el combate era un vinculo distintivo de reconciliación y
de consenso. La pelea de común acuerdo con Ias mismas armas, con
diciones y riesgos impedia cualquier forma de venganza y enviaba un

86. Para el concepto de distincion: P. Bourdieu, La disíinction, critique sociale du


jugemení, Paris, Miniiit, 1979.
87. He desarrollado este punto en: S. Gayol, "Duelos, honores, leyes y derechos:
Argentina, \887-\923" Anuario
88. Para el duelo popular: S. Gayol, Sociahilidaden Buenos Aires. Hotnbres, honory
cafés: 1862-1910, Buenos Aires, Dei Signo, 2000.

Sociabilidades, justiças e violências:...


mensaje al oponente que era aceptado como un igual con quien se ba
tina por autodeterminación y en iguales términos. Aunque enemigo,
podia llegar a ser un amigo potencial con transformaciones que tenían
lugar en Ia lucha. Podían incluso devenir amigos, teniendo Ia potencia-
lidad por ello de ser un instrumento de socialización. En una situación
de duelo los dos hombres se revelaban de igual valor. Los dos actuaban
como hombres de honor. No sólo el duelo era un acto que suprimia
Ia causa dei escândalo y restauraba el honor herido sino que hacía de
puente entre dos caballeros y creaba lazos más allá de Ias diferencias
de fortuna, de ideas, de poder y posición. A Ia sangre derramada en los
enfrentamientos instintivos de los sectores populares, se sostenía, se
oponía el desafio razonado de los caballeros.

Al mismo tiempo el duelo enmarcará estándares legítimos de


conducta política. El proceso de "reducción a Ia unidad" para decirlo
en los términos de Natalio Botana desatado en los anos '80 y el consi-
guiente cuestionamiento a Ia violência comicial y revolucionaria cada
vez más generalizado a Ia vuelta dei siglo afectó, y restringió, Ias formas
de dirimir los conflictos interindividuales.®^ Los tiros, Ias trompadas y
Ias aguerridas formas de cancelar Ias diferencias políticas signadas por
Ia agresión verbal y física fueron Ia antltesis dei duelo. Pensado como
equilibrador de Ias pasiones y como un ejemplo demesura, ingredientes
indispensables de Ia política moderna, su práctica venla a romper con
el presente turbulento y, al mismotiempo, contribuía a dejar atrás el pa-
sado entendido como sinônimo de barbarie. Estaba claro a los ojos de
todos que los caudillos semibárbaros, Ias montoneras y ia brutalidad de
Ias guerras civiles contrastaban sin dificultad con el duelo.
La "sociedad de Ia satisfacción" se distanciaba de prácticas presen
tes y cortaba con el pasado vernáculo. Paralelamente se insertaba en un
pasado honorable y aristocrático y en un presente moderno y mundano
palpable en ciertos países europeos. Los Manuales Argentinos de duelo

Sobre el derecho a armarse y sobre los cuestionamientos que esta forma de inter-
vención política suscito en el período: H. Sábato,"El ciudadano en armas: violência
política en Buenos Aires (1852-1890)", en Entrepasados, ano 13, n: 23, 2002. Tam-
bién; P. Aionso, "La Tribuna Naciojial y Sud-América: tensiones ideológicas en Ia
construcción de Iaargentina moderna en Iadécada de 1880", en P. Alonso (comps).,
Constriicciones imprcsas. Panfletos, diários y revistas en Iafonnación de los estados
nacionalcs en América Latina, 1820-1920, Buenos Aires, FCE, 2003.

Exigir y dar satisfacción:...


muestran este afán de integración. Con sus duelistas Ia argentina se unia
simbolicamente a Ia historia dei occidente y compartía un continuum que
se remontaba a ia antigüedad clásica. Griegos, romanos, bárbaros, nobles
medievales, revolucionários franceses y burgueses parisinos integraban
una lista que desemboca sin tropiezos en território argentino. Este viaje
historicista buscaba mostrar, por un lado, el notable arraigo dei duelo y
por otro lado incorporar a los tratadistas y duelistas argentinos en una tra-
dición "aristocrática" europea. La invocación al pasado y el refugio en Ia
tradición europea legitimante convivia con referencias también explicitas
al presente como simbolo de Ia modernidad y dei progreso. No escapaba
a los duelistas argentinos que sus pares franceses y alemanes reglaban sus
diferencias apelando al duelo. Como escribia Gómez Carrillo desde Paris
en el extenso artículo que publico en el diário La Nación: "...Ias luchas
singulares siguen existiendo, Io mismo en Paris que en Buenos Aires y Io
mismo en San Petersburgo que en Tokio.. .".^®
Marcelo Torcuato de Alvear condensa bien el refinamiento, dis-
tinción e internacionalismo perseguido por este pequeno mundo de
"caballeros". Presidente dei Club dei Progreso, socio dei Círculo de Ar
mas y dei Jockey Club, presidente dei Tiro Federal Argentino, eximio
duelista y esgrimista y presidente de Ia Asociación Argentina de Esgri-
ma además de presidente de Ia República, redondeó su mérito de cabal-
lero como padrino dei maestro Pini en el duelo que tuvo con el Barón
Athos de San Malato en el Bois de Boulogne de Paris. Esta participación
en "el duelo dei siglo", como se Io calificó en Buenos Aires, confirmaba
su mundanidad y revitalizaba Ia posibilidad de inserción en un conglo
merado de caballeros internacionales.

CONCLUSIONES

"En Belgrano, reunidos el 31 de enero de 1886 de una parte los


senores Vicente Casares y Carlos Roseti (padrinos de Castex) y de Ia
otra los senores Máximo Paz y Roberto Levington (padrinos de Luro)
el Sr. Casares dijo: que era necesario establecer con precisión los hechos

90. E. Gómez Carrillo., "El Código dei duelo. Un duelo de Bruneau de Laborie. Les
Lois du Duel. La evolución dei combate singular. El duelo a pistola (para La
Nación", en La Nación, 3-11-1912.

Sociabilidades, justiças e violências:...


producidos que motivaban nuestra reunión y que habiendo sido el Dr.
Roseti testigo presencial convenía que él los expusiese. El Dr. Roseti ex-
puso: que el Sr. Artayeta y el Dr. Luro almorzaban en Ia misma mesa
con otros caballeros, que una réplica ofensiva dei dr. Luro a una broma
de Artayeta puso a éste en el caso de calificarlo de zonzo, que con este
motivo el Dr. Luro dirigió un golpe que éste evito agarrándole el bra-
zo, que levantaba simultáneamente, el Dr. Luro continuo su agresión,
Ia que el Dr. Artayeta tuvo que contener sujetándolo y que inmediata-
mente fueron separados por los circunstantes, los cuales tuvieron que
oponerse a nuevas y repetidas agresiones que intento el Dr. Luro. Que
Artayeta había sido primero ofendido de palabra y después de hecho y
que por Io tanto pedia a éste una reparación por Ias armas. Paz pregun-
tó si ésta era Ia única solución que se proponía, a Io que se le contesto
afirmativamente, por no encontrarse otra decorosa, dados los hechos
producidos y Ia publicidad quehabían tenido en un sentido tan errôneo
como desfavorable al Sr. Artayeta. Los padrinos de Luro aceptaron el
reto observando que había divergências entre Ia relación de los hechos
expuestos, pues el incidente se había pasado de Iasiguiente manera: Ar
tayeta dio una broma equivoca que Luro contesto con otra dei mismo
gênero, que entonces aquel replico a éste con un termino ofensivo que
puso al Dr. Luro en el caso de dirigir un golpe de mano a que se refiere
el Dr. Roseti, siguiendo a esto una breve rina. Aceptaba Ia proposición
de acudir a un tribunal de honor por ser el primer deber de los pa
drinos buscar soluciones decorosas y pacíficas, se resolvió suspender
Ia conferência hasta Ias 3pm de ese mismo dia. Hay otra conferência, a
Ias 5,30 y no habiéndose podido arribar a ninguna solución pacífica se
pasó a tratar de Ias condiciones en que debía efectuarse. Luro propuso
el sable (tan comúnmente aceptado entre nosotros) mientras que los dei
senor Artayeta elegían Ia espada de combate y se entró de lleno en Ia
discusión. Que aún si era cierto que Artayeta no tenía amistad sino un
ligera relación con Luro, sus bromas no habían salvados los limites de
Ia urbanidad, que no había habido rina, por no entrar el pugilato en los
gustos, ni en los hábitos de Artayeta, se propone un tribunal para que
fije el arma pero los padrinos de Luro se oponen...".^'

La Nacióií, "Desafio", 4-2-1886.

Exigir y dar satisfacción:


Diversidad de interpretaciones y prolongadas deliberaciones fue-
ron condimentos habituales en Ias disputas caballerescas. Este incidente
muestra claramente cómo Ias sospechas sobre Ia reputación eran per-
cibidas por todos como un peligro social. A través de los rumores los
contemporâneos podían hacerse una imagen, según Bernabé, "tan er
rônea como desfavorable" de su persona. La antigüedad familiar y su
cuantiosa fortuna no Io eximieron, tampoco a su contrincante Luro, de
Ia obligación de pedir satisfacción y de explicarse públicamente. La re-
construcciòn de Ia "sociedad de Ia satisfacción" muestra, precisamente,
cómo a Ia vuelta dei siglo los bienes, el cargo o el linaje, por ejemplo, no
protegieron a los hombres de un agravio y de Ia obligación de respon-
derlo públicamente si querían mantener el respeto social y político. La
susceptibilidad ante elchisme y elrumor yIaextremasensibilidad por el
honor personal subyacente en Ia proliferación de desafios muestran de
manera ejemplar Ia pluralidad de vocês y de miradas que intervenían en
Ia construcción dei lugar de cada uno. Este lugar. Ia posición personal,
estaba en una sociedad en plena transformación sometida a una cons
trucción y reconstrucción permanente. Contrariamente a ciertas visio-
nes, algunas apoyadas en Ia categoria de oligarquia, este articulo mues
tra a Ias elites en situaciones más inestables y mucho menos seguras de
si mismas. Que sea el duelo con su historiai aristocrático reconocido es
quizás una de Ias mejores paradojas de este proceso.
El código de honor impartía un cúmulo de comportamientos y
valores para Ia vida pues sus efectos, se afirmaba, trascendian amplia-
mente al duelo. La importância de Ias maneras en Ia experiência y el
efecto de Ia socialización y Ia enormegravitación que tenía Iaforma y el
modo en que los indivíduos se manejaban en público''" encontraron en
el código de honor un instructivo ejemplar para su aprendizaje o perfec-
cionamiento. Elegância, gentileza, gallardia y un poco de pose disena-
ban el habitus transmitido por el duelo y fueron los principales critérios
por los cuales Ias personas eran juzgadas y clasificadas socialmente. Las
técnicas impartidas por el código de honor muestran a las maneras y las
conductas como vitales en el proceso de fabricación de Ia diferencia. Ia
deferencia y Ia legitimidad en Ia argentina moderna.

J. Needell, "Optimism and Melancholy: Elite Response to thefin de siècle bonn-


erense"en journal of Latin American St«d/cs,31, 1999.

Sociabilidades, justiças e violências:...


Entre Ia ley dei más fuerte
y ía fuerza de Ia ley
Las distintas respuestas frente
a íos insultos, Buenos Aires
1750-1810
MARÍA ALEJANDRA FERNÁNDEZ

Cn este trabajo intentaremos presentar una aproximación a los


conflictos interpersonales que se suscitan a partir de palabras, ges
tos y actitudes consideradas insultantes para analizar las distintas
respuestas masculinas -tanto violentas como judiciales-, desple-
gadas en Ia ciudad de Buenos Aires en el período tardocolonial.

Un análisis sobre el amplio "repertório de Ia humillación"


remite inevitablemente a Ia importância que tenía el honor en Ia
cultura espanola y, por ende, a Ia centralidad que adquirió en las
sociedades coloniales. Desde distintas perspectivas, numerosos
trabajos se han dedicado a analizar dei problema dei honor en
Hispanoamérica' . Las primeras investigaciones tendieron a pri-

1. La bibliografia es muy abundante, entre los principales trabajos, ver;


Seed, P.; Amar, hotirar y obedecer en el México colonial. Conflictos eti
vilegiar algunos ejes temáticos: el honor y Ia sexualidad femenina; Ias
estratégias individuales o familiares de reparación o encubrimiento; el
honor y los conflictos de familia, en especial aquellos vinculados con Ia
elección matrimonial; Ias distintas actitudes y comportamientos com-
prendidos en el código de honor de acuerdo con el gênero, y Ia tensión
entre normas y prácticas sociales.
Un tópico recurrente en Ia mayoría de los trabajos sehala Ia exis
tência de dos significados diferentes y complementarios de Ia definición
social dei honor, estando asociado tanto ai status familiar -vinculado a Ia
precedência, al rango y a Ia posición socioeconómica- como a Ia virtud.
En este sentido, el honor dependia de una serie de factores como Ia lim-
pieza de sangre, Ia legitimidad, el grado de riqueza, poder e influencia
social; pero también se vinculaba estrechamente con Ia moralidad de Ia
conducta, prescribiendo formas de comportamiento adecuadas para cada
gênero. La moral sexual -expresada en Ia virginidad, fidelidad y casti-
dad- era el pilar central de Ia honra femenina y Ias transgresiones en este
terreno deshonraban no sólo a Ias mujeres afectadas sino a todo el gru
po familiar, en especial a los hombres vinculados con ellas. Las virtudes
masculinas se reiacionaban con Ia lealtad, honestidad, solvência, virilidad,
valentia, coraje y capacidad de control de las mujeres a su cargo.

torno a Ia clccción matrimonial, 1574-1821, México, Alianza, 1991. Lavrin, A.


(Comp.). Sexualidad y Matrimônio en Ia América hispânica. SiglosXVI-X\^ni,
México, Grijalbo, 1991. Gonzalbo Aizpuru, P. (Coord.). Familias novoliispa-
nas. Siglos XVI al XIX, México, El Colégio de México, 1991. Gonzalbo Aizpu
ru, P. y Rabell, C. (Comp.). La familia en el mundo iheroainericano, México,
UNAM. Instituto de Investigaciones Sociales, 1994. Gonzalbo Aizpuru, P. y
Rabell, C. (Comp.). Familia y vida privada en Ia historia de Iberoamcrica, Mé
xico, UNAM- El Colégio de México, 1996. Gutiérrez. R.; Whcn Jesus carne, the
Corn Mothers Wcnt Away: Marriage, Sexuality, and Poweriu NewMéxico, 1500-
1846, Paio Alto, Stanford University Press, 1991. Johnson. L. y Lipsett-Rivera,
S. (Ed.). lhe Faces of Honor. Sex, Sharne and Violence in Colonial Latiu América,
Albuquerque, University ofNew México Press, 1998. Twinam, A.; Public Lives,
Private Secrcts, Stanford, Stanford University Press, 1999. Slolcke, V.; Racismo
y sexualidad en Ia Cuba colonial, Madrid, Alianza, 1992. Stern, S.; La historia
secreta dei gênero, México, FCE, 1999. Chambers, S.; De súbdilos a ciudadanos:
honor, gênero y política en Arequipa, 1780-1854, Lima, Red para el Desarrollo
de las Ciências Sociales en el Perú, 2003.

Socíabilidades. justiças e violências:...


Lejos de sostenerse simplemente en Ia autoproclamación indi
vidual, ei reconocimiento dei honor estaba sujeto inevitablemente a Ia
coníirmación pública, convertida en una suerte de tribunal de Ia repu-
tación. Tampoco tenía un carácter inmutable o inconmovible, ya que
podia ser desafiado, mancillado o cuestionado, siendo fundamentales Ia
reafirmación y defensa constantes frente a los insultos, Ias habladurías
o Ias distintas expresiones agraviantes y humillantes. Dei mismo modo,
incluso el honor comprometido podia ser reparado y restituido a través
de una serie de prácticas que tendian a remediar, en forma privada y
secreta, Ias consecuencias sociales de los comportamientos deshonrosos
sin llegar a afectar el honor público.-
Si bien Ias élites consideraban al honor como un patrimônio ex
clusivo y dejaban fuera al resto de Ia sociedad, visto como un conjun
to indiferenciado de personas racialmente impuras, manchadas con Ia
sombra de Ia ilegitimidad e inmersas en maios hábitos, es evidente que
Ia cultura dei honor atravesó los limites de Ia clase y de Ia raza. En este
sentido, se ha senalado Ia importância de Iadefensa de Ia reputación en
tre los sectores médios y populares, indigenas, castas y negros^, ya que
incluso para los pobres el honor constituía un capital social de suma im
portância que permitia ordenarlos en otro tipo de jerarquías,vinculadas
al buen nombrey al respeto. Las investigaciones centradas en Iarelación
entre honor y violência han senalado como hipótesis que el honor entre
los sectores populares asumiria formas propias de defensa, más directas,
espontâneas y violentas que las que caracterizaron a las élites coloniales.
Para el caso concreto dei Rio de Ia Plata, es posible distinguir tres
formas de abordaje dentro de los trabajos centrados en Ia relación entre
honor, violência y justicia. En primer lugar, el estúdio de Ia resolución

2. Ver por ej. los siguientes trabajos incluídos en Ia compilación de L. Johnson y


S. Lipsett-Rivera; 77je Faces of Honor..., op. cit.: Twinam, A; "The negotiation of
honor. Elites, Sexuality, and Illegitimacy in Eighteenth-Century Spanish Amé
rica" y Nazzari, M.; "An Urgent Need to Conceal". Ver también: Twinam, A.;
Puhlic Lives, Private Secrets..., op. cit.
3. Ver por ej. los siguientes artículos incluídos en Ia compilación de L. Johnson y
S. Lipsett-Rivera; Vie Faces ofHonor.., op.cit.; Johnson, L.; "Dangerous Words,
Provocative Gestures, and Violent Acts. Tlie Disputed Hierarchies of Plcbcian
Life in Colonial Buenos Aires". Boyer, R.; "Honor among plebeians. Mala san
gre and social reputation". Nazzari, M.; "An Urgent Need to Conceal". Laudar-
dale Graham, S.; "Honor among slaves".

Entre Ia ley dei más fuerte y Ia fuerza de Ia ley...


judicial de los conflictos, tomando como punto de partida los juicios por
injurias y calumnias para analizar los contenidos dei código de honor, Ias
formas más frecuentes que asume Ia difamación, los grupos sociales que
se ven involucrados y el tipo de respuestaque brinda Ia justicia. ' Otra de
Ias aproximaciones cruza Ia problemática de honor, violência y gênero a
través de Ia perspectiva abierta por el estúdio de los crímenes contra Ias
mujeres, en especial los de naturaleza sexual y -en menor medida- los
vinculados a Ia violência doméstica.^ La tercera forma de abordaje estudia
Ia resolución privada y directa de conflictos que involucran a los hombres,
partiendo dei análisis de casos criminales por homicídios, heridas y rifias.®

Mallo, S.; "Hombres, Mujeres y Honor. Injurias, calumnias y difamación en


Buenos Aires (1770-1840). Un aspecto de Ia mentalidad vigente", en: Estúdios
Investigaciones. Estúdios de Historia colonial, n° 13, Facultad de Humanidades
y Ciências de Ia Educación, UNLP, 1993, pp. 9-27. Fernández, M. A.; "Famílias
en conflicto: entre el honor y Ia deshonra", en: Boletín dei Instituto de Historia
Argentina y Americana "Dr. Emilio Ravignani", Tercera serie, no 20, 2do. se
mestre de 1999, p. 7-43. Cicerchia, R.; "De varones, mujeres y jueces. Família
popular y justicia en Ia ciudad de Buenos Aires (1777-1850), en: Perrin, M. y
Perruchon, M (comp.); Complementariedad entre hombrey wujer._Relacíones
de gênero desde Ia perspectiva ameríndia. Quito, ABYA-YALA, 1997, p. 141-
167. Fernández, M. A.; "El honor: una cuestión degênero", en:Arenal, vol 7, no
2, Granada, Universidad de Granada, jul./dic 2000, p. 361-381.
Socolow, S.; "Women and crime: Buenos Aires, 1757-97", en:Journal ofLatin
American Studies, Part 1, n" 12, may 1980, Cambridge University Press, p. 39-
54. Barreneche, O.; " Esos torpes deseos': delitos y desviaciones sexuales en
Buenos Aires, 1760-1810", en: Estúdios Investigaciones. Estúdios de Historia
Colonial, n° 13, Facultad de Humanidades y Ciências de Ia Educación, UNLP,
1993, p. 29-45. Mallo, S.; Justicia, divorcio, alimentos ymaios tratos en el Rio
deIa Plata, 1766-1857", en: Investigacionesy Ensayos, n»42, Buenos Aires, Aca
demia Nacional de Ia Historia, 1992. p. 373-400.
Johnson, L.; "Dangerous Words, Provocative Gestures, and Violent Acts. The
Disputed Hierarchies of Plebeian Life in Colonial Buenos Aires", en Johnson,
L. y Lipsett-Rivera, S.; Vw Faces of Honor..., op.cil. Barreneche. O.; "'A sólo
quitarte Ia vida vengo : Homicídio y administración de justicia en Buenos Ai
res, 1784-1810 , en: Mayo, C. (Coord.), Estúdios deHistoria colonial rioplatense,
UNLP, 1995, p. 7-39. Para el caso de Argentina a fines dei siglo XIX, ver los
numerosos trabajos de Sandra Gayol, en especial para este tema: Sociabilidad
en Buenos Aires: Hombres, Honor y Cafés, 1862-1910, Buenos Aires. Ediciones
dei Signo, 2000 y "Elogio, deslegitimación y estéticas de Ias violências urbanas:
Buenos Aires, 1870-1920", en: Gayol, S. y Kessler, G. (Comp.). Violências, Deli
tos y Justicias en Ia Argentina, Buenos Aires. Manantial-UNGS. 2002, p.41-64.

Sociabilidades, justiças e violências:...


EI objetivo de este trabajo es analizar Ias distintas respuestas des-
plegadas frente a Ias palabras y actitudes insultantes, buscando presen-
tar una aproximación al problema de los usos de Ia violência y de Ia
justicia. En este sentido, se intentará responder a una serie de preguntas:
^qué tipo de palabras o actitudes se convierten en el detonante de Ias
respuestas violentas?; ^qué características presentan estas reacciones?;
^qué causas motivan el recurso a los tribunales?; icómo se desarrollan
estos juicios?; ^qué papel juega el honor en estos dos tipos de respues
tas?; ^qué lógicas se pueden vislumbrardetrás dei uso que de Iaviolência
y de Ia justicia hacen los indivíduos involucrados?.
Si pensamos en el abanico de reacciones posibles frente a los in
sultos, seguramente en numerosas ocasiones se habrá replicado con otra
ofensa igual o mayor, con gritos, amenazas, empujones, golpes, trompa-
das, o -también en algunos casos- se habrán retirado en silencio hacien-
do caso omiso dei agravio o Ia provocación. Logicamente, de todas estas
reacciones no quedan evidencias, no hay indícios dado que no se buscó
explicitamente Ia intervención judicial, ni el escândalo o Ias lesiones -en
el caso de que Ias hubiera habido- fiieron Io suficientemente sérios como
para dar lugar al aviso yaIa actuación de oficio. En los archivos judiciales
se conservan dos tipos de registros: en primer lugar Ias causas por inju
rias, que sólo dan cuenta de aquellos casos en que los afectados decidie-
ron recurrir a los tribunales para solucionar el conflicto y obtener una
reparación. En segundo lugar, existe otro tipo de documentos que nos
permite acceder a otras dinâmicas dei conflicto interpersonal, ya que en
Ia mayoría de estos casosno son los indivíduoslos que acuden a Iajusticia
buscando una intervención que estiman beneficiosa, sino que es Ia justi
cia -interviniendo de oficio o por denuncia- Ia quelosbusca y finalmente
encuentra para imponerles el castigo. El resultado de estas pesquisas se
plasma en el armado de causas criminales por homicídios y heridas. Estos
dos tipos de documentos conforman nuestro corpus de fuentes."

La mueslra está conformada por 60 juicios conservados en el Arciiivo General


de ia Nación (AGN) y el Archivo Histórico de Ia Província de Buenos Aires
(AHPBA).

Entre Ia ley de! más fuerte y Ia fuerza de ia ley...


PALABRAS "PESADAS';
RESPUESTAS VIOLENTAS

Las numerosas pulperías esparcidas en los espacios rurales y ur


banos funcionaban como espacios de intercâmbios econômicos y socia-
les.® Estas casas de abasto -con aires de taberna y almacén de ramos ge-
nerales- ofrecían una amplia variedad de productos a sus clientes, desde
bebidas, alimentos o cigarrillos, hasta ropa, cuchillos, aperos y artículos
de ferretería.'-' Pero además de esta función comercial, también eran los
espacios primordiales de Ia sociabilidad masculina entre los sectores po
pulares, donde los hombres se reunían para compartir unos tragos, jugar
a las cartas por dinero y tocar Ia guitarra. En numerosas ocasiones se pro-
ducían altercados o rihas con un saldo frecuente de heridos y -en menor
medida- de muertos, convirtiéndose en el escenario principal en el que
se desarrollaban los conflictos violentos.'" En Ia mayoría de los casos,
los enfrentamientos con finales funestos eran el resultado inmediato de
altercados o disputas, pero en otros podían dilatarse a través de sucesivos
ataques que iban aumentando en gravedad hasta culminar en un último
episodio, con consecuencias mortales para alguno de los contendientes."
Los motivos que tendían a desencadenar Ia violência eran varia
dos: a los insultos explícitos se sumaban los entredichos a partir de un
juego de cartas; los desplantes al no invitar o no aceptar una ronda de
bebida; las discusiones en Ias canchas de bochas; las disputas por una
mujer; el reclamo en público de deudas o de bienes; las alusiones de
cobardía, falta de virilidad, deshonestidad, defraudación, insolvencia o
incapacidad. En el código de honor, tanto Ias palabras como los actos
y gestos que se desplegaban en Ia interacción social eran importantes,
ya que expresaban actitudes que tendían a confirmar o negar el honor

Ver Gonzáicz Bernaldo, R; "Las pulperías de Buenos Aires: historia dc una ex-
presión de sociabilidad popular", en: Siglo XIX, Segunda época, n" 13, enero-
-junio de 1993, p. 27-54.
Ver Mayo, C. (Dir.). Pulperos y pulperías cie BuenosAires (I740-I830), Bs. As.,
Biblos. 2000.
Ver Barreneche, O.; "' A sólo quitarte Ia vida vengo'..op. cit.
Ver por ej., AGN- Sala IX- Criminales -Legajo n° 10- Expediente 9 (32-1-7).
(1776).

Sociabilidades, justiças e violências:...


y el respeto al que aspiraban los destinatários. En este sentido, algunas
acciones cargadas de significado también se consideraban una afrenta
grave y una provocación, como los intentos de golpear Ia cabeza y obli-
gar a inclinaria o los empujones que hacían trastabillar, colocando al
afectado en un lugar de sumisión e inferioridad al invertir el lenguaje
corporal dei respeto y Ia deferencia. Dei mismo modo, a nadie escapa-
ban Ias connotaciones sexuales que tenía el hecho de tirar de Ia barba
o el estigma de Ia ofensa que se perpetuaba a través de Ias marcas en Ia
cara. El "código de Ia humillación" -en definitiva- implicaba el desplie-
gue de un amplio repertório ofensivo, compuesto por actos y palabras.'-
Los casos que se presentan a continuación muestran Ias reaccic-
nes violentas adoptadas frente a gestos groseros o prepotentes y palabras
consideradas provocativas o intolerables porque tendían a humillar, ri-
diculizar o denigrar a los destinatários.
Francisco Cornejo'^ protagonizo uno de los tantos conflictos, y
por Ias heridas que causó en el marco de una pelea en Ia puerta de una
pulpería, fue condenado a trabajar un ano a Ia cadena en Ias obras pú
blicas. Al ser interrogado por Ia justicia Juan Agustín Villalba, preso
también por haberle permitido escapar en su caballo, declaro que:

[ ...] estaban barios Peones bebiendo aguardiente (...) ha-


biendo salido dichos Peones á Ia calle estubieron jugete-
aiido, y el Puipero cerroIas puertas, de cuyo juego resultó
que un Paraguay (a quien no conoce) que tenia un paio
dio con el á barios en tono de juego, entre los quales tocó
a Francisco Cornejo, y este que estaba ebrio, se enojo, y
se agarro con unos santiaguenos delos cavcllos, pero ha-
viendolos separado, los estubo tratando mal de palabras á
Cornejo un peon que estaba á cavallo con el que le atro-
pelló, por Io que Cornejo sacó un cuchilio y le tiró algu
nas cuchilladas al dicho Peon, y le alcanzó a herir en el
pecho cosa leve (...) y despues se agarro Cornejo con un
mulato (...) y oyó decir el declarante que Cornejo le hirio
por Ia barriga pero no le bio Ia herida ...

12. Para una interpretación dei significado de Ias distintas expresiones insultanles,
ver; Lipsett-Rivera, S.;"De Obra y Palabra: Patterns of insults in México, 1750-
1856", en; Vte Américas, vol. 54, n° 4, april 1998, p. 511-539.
13. AGN - Tribunales Criminales - Legajo C n" 1 - Expediente 4. (1779).

Entre Ia ley dei más fuerte y Ia fuerza de Ia ley...


La declaración de Villalba nos presenta una visión de Ias preli
minares de Ia violência donde no hay un detonante claro, sino que mas
bien se trata de un juego compartido y mal comprendido por Cornejo,
que se enojo por estar ebrio. Antes de provocarle Ia herida al peón que
Io insulto y le tiró encima el caballo, por Ia que finalmente iria preso,
se enredo en una pelea con otros de los presentes. Es quizás el pulpero
quien, acostumbrado aIa posibilidad de resultados nefastos, percibió un
clima que podiaterminarmal ycerró Ias puertas dei establecimiento. En
Ia declaración dei acusado aparecenprecisados los motivos que dispara-
ron Ia reacción que Io Uevaria a Ia cárcel:

(Estuvo) [...] en Ia Esquina Pulperia de Don Manuel Ro


drigues, con otros varies Peones bebiendo aguardiente
dei que compro el confesante un Real y conbido á algu-
nos delos que alli estavan pero uno de ellos Paisano dei
confesante (...) quebro el baso, por Io que el confesante se
enojo pues abria de pagarel baso por que el otro no que
ria satisfacer, y Instando el que confiesa a que Iopagase le
agarro su paisano de una manga de Ia camisa (...) y estan
do fuera se agarraron los dos y sacaron los cuchillos, y el
confesante con el suyo disen que hirio al dicho cordoves
en Ia varriga Io que no puede afirmar por que noIo vio ...

Se le pregunta a quiénes más hirió y contesta que "estava pesado


dela caveza por el aguardiente que havia bebido, Ypor esto nose acuer-
da si hirio a otro ...

El detonante de Ia violência desplegada por Cornejo fue Ia nega


tiva a pagar el vaso por el responsable de haberlo roto, esta actitud era
evidentemente una provocación, ya que no sólo Io perjudicaba econó-
micamente sino que rompia regias implícitas de camaraderia como Ias
que él mismo estaba practicando al haberpagado una ronda de bebida;
incluso el gesto de agarrado de Ia camisa durante Ia discusión aumen-
taba el agravio y era un claro desafio. De esta declaración se desprende
que Ia salida a Ia calle tuvo Ia explicita intención, por parte de los dos
involucrados, de que Ia disputa trascendiera el plano meramente verbal.
Una parte importante de los conflictos se producia en otros es-
pacios de sociabilidad además de Ias pulperías, como Ias canchas de

Sociabilidades, Justiças e violências:...


bochas, calles o plazas, y también en los âmbitos laborales, donde los
indivíduos compartían largasjornadas de trabajo en duras condiciones.
En los diferentes ofícios, buena parte de Ia reputación estaba vinculada
a Ia habilidad, Ia destreza y el buen desempeno, que otorgaba reconoci-
miento y respeto entre los maestros y companeros.
En un clima de tensión -marcado por los insultos y Ia desvalori-
zación- se desarroUó el conflicto entre dos peones de panadería, Nicolás
Coronel y Juan Josef Franco. Las manifestaciones de superioridad dei
primero, cargadas de palabras despreciativas que devaluaban Ia capa-
cidad laborai dei resto de los peones, fue el detonante de una reacción
visceral de Franco, quetermino conIavida deCoronel y sometió Iasuya
a los rigores de Ia huida. Al ser citados por el alcalde, los testigos pre-
cisaron con detalle el tono y las palabras que empleó Coronel mientras
estaban trabajando:

... dijo Nicolas que es el herido como retos a Ia gente por


que Ia Maza está blanda, yDiego dijo, companero quando
ya bamos á acabar estamos de esta manera, y respondio
elNicolas pues esta noche boy a guadar el (^?) amasador
para sacar masa dura, y los hede hacer cagar, á esto res
pondio Juan Josef Franco, ami no companero que ya es-
toy hecho á sobar Masa dura, yNicolas dijo, yque mierda
soys bos y respondio Franco no meable tan fiero Paisano,
y en esto Nicolas le dio un manoton á Franco y se agar-
raron de que resultó que Franco hirió a Nicolás con el
cuchillo que tenía enla zintura...

Otro peón agrega que Franco respondio; "...saque Vmd como


quiera que tambien soy hombre para sobar...
Los deseos de sobresalir en los espacios de trabajo y de ocupar po
siciones más destacadas que el resto generaban intensos sentimientos de
frustración cuando estas intenciones se veian negadas por los superio
res, también Ia burla de los pares tendia a aumentar Ia irritación y Ia ver-
güenza, y abria el camino a las respuestas violentas. La frustración de las
aspiraciones de Juan Villarruel, soldado dei Regimiento de Infanteria, a

AGN - Tribunales Criminales - Legajo F no 1 - Expediente s/ no (1802).

Entre Ia íey dei más fuerte y ia fuerza de Ia ley..


desempenarse como Gastador'^ por su baja estatura se vio agravada por
Ias bromas de su companero Mariano Gueso. Sintiéndose humülado y
con una profunda sensación de descalificación como hombre empezó un
altercado que apuntaba a defender elpropio valor, provocando finalmente
una medición de fuerzas que termino con su vida.'^ El testimonio dei sol
dado Pasqual Morata da cuenta de Ias preliminares dei enfrentamiento:

[...] haviendo salido los dos de casa de su teniente coronel


adonde havian hido apretender el Muerto, que Io hiciera
Gastador a Io que no condcsccndio por su baxa talla, y van
hablando y recombiniendole e!agresor de que no hera para
gastador, a Io que el muerto le respondio que si, y que héra
muy hombre para serio, y que Io havia sido en su Regi-
miento pasado, con cuyas razones llegaron hasta donde
forman Ias esquinas dela casa dei Teniente coronel, donde
se pararon enrredandose mas de palabras (...) vio que apo-
ca distancia se bolbieron aparar, y proseguian en palabras
en tono de renir, y bolbiendo otra vez hacia ellos oyó que
el muerto Villaruel le dijo al Matador que era un Indigno,
y otras palabras sentidas y pesadas alo que el matador le
recomvenia que no le dijese aquellas palabrastan pesadasy
denigrativas en una calle publica pues no tenia razon para
ello (...). Poco rato después vio que se juntaba gente, se
acerco y vio tendido en el suelo a Villaruel...

La confesión dei reo apelaba a resaltar los insultos y provocacio-


nes recibidos por quien seria "accidentalmente" Ia víctima, dado que
en el desorden dei choque corporal "el no Io hirio sino que el mismo se
hirio", pero esta estratégia demostro ser poco efectiva cuando el Consejo
de Guerra Io sentencio a 8 anos de presidio.
Las alusiones de incapacidad o de insolvencia también podían
disparar peligrosas reacciones, especialmente si los destinatários tenían

El gastador es "uno de los siete soldados que hay en cada batallón destinados
principalmente a franquear el paso en las marchas, para Io cual llevan palas,
hachas y picos", también refiere al "soldado que se aplica á los trabajos de abrir
trincheras y otros semejantes". Ver: Diccionario de Ia lengua castellana com-
puestopor Ia Real Academia Espaãola, Madrid,Viudade Ibarra, 1803.
AGN - Sala JX, Criminales- Legajo 13. Expediente 13 (32-2-2). (1778).

Sociabilidades, justiças e violências:...


antecedentes violentos y una especial destreza en el uso dei cuchillo.
Guando Don Manuel Cerrato -estando a cargo dei orden público- con-
dujo presos a Ia Real Cárcela Goyo Rivera y a su acompanante por haber
sido responsables de una camorra., hizo constar en su escrito Ia fama de
"hombreconocido por alborotador" y Ias condenas previas sufridas por
otras "maldades"'^ Los testigos brindaron detalles precisos dei motivo
de la disputa: el intento de Juan Félix por evitar que el caballo de Rivera
comiera dei pasto que había comprado para su propio caballo, generó
un altercado donde se cruzaban la ofuscación por el abuso y la reacci-
ón indignada y prepotente de quien -probablemente por no "valer me
nos"- primero seíialó tener los médios suficientes como para satisfacer
Ias necesidades de su propio animal y termino amenazando de muerte
tanto a Félix como a su caballo. Vários de los presentes en el estanquillo
en el que se produjo el hecho, percibiendo el tono que iba tomando la
discusión intentaron separados, hasta que uno de ellos se decidió a dar
parte a Ias autoridades, temiendo una desgracia:

[...] se apearon a la puerta dei Estanquillo y se entraron


en eldejando los Cavallos sueltos, porIo que elde Ribera
se arrimo a querer comer dei pasto que en la misma calle
estaba comiendo un cavallo de dicho Juan Feliz, Io que
bisto por este separo ael cavallo de Ribera yluego bolbio
el mismo cavallo aquerer comer dei pasto y hallandose
alia fuera un muchacho dei Estanquillo le dijo Juan Felis
deten alia ese cavallo, Io que oydo por Ribera salio y le
dijoá Juan Felis quesi queria un peso paracomprar pasto
el lotenia a Io que Juan Felis le respondio queno necesi-
tava su peso para el pasto a Io que replico Ribera bastava
que elcavallo fuera mio (para que VM) Io dejara comer y
Juan Felis entonces dijo queno comprava pasto para que
comieran cavallos ajenos, yRibera manifestandose enoja
doleDijo que eltenia para comprar pasto yque siseenfa-
daba degollaria a los dosya quien sacara la Carapor el...

La declaración dei estanquillero Juan Bautista Ferrari como tes-


tigo, daba cuenta de la reputación camorrera de Rivera, agravada por
el alcohol y los antecedentes violentos, al punto de senalar que -sien-

AGN- Sala IX - Criminales - Legajo 14, Expediente 13 (32-2-3). (1779).

Entre la ley dei más fuerte y la fuerza de la ley..


do compadres- había preferido apartarse de él en numerosas ocasiones
para evitar problemas:

[...] Que es cierto y constante, que dicho Rivera, es hom-


bre belicoso y camorrero, principalmente quando se halla
calenton de Aguardiente y no permite que a nadie se le
agravie delante de el, y es cierto que sucedió Io que en
el parte se dise que acaecio en una pulperia dela Plaza
nueba, y conociendolo el que declara, muchas veces se ha
retirado de Ia companía de Riveraporque no le susediese
algun trabajo con el= Que tambien es cierto que dicho
Rivera estubo trabajando en Ias obras publicas á Iacadena
habra cosa de un ano, por haver dado unos Golpes a Don
Bernardo Barela por una Muger según oyó dezir ...

El Alcalde decidió citar nuevos testigos que dieran cuenta, no ya


dei hecho específico por el que fue arrestado el acusado, sino de los ante
cedentes de Ia participación de Rivera en otros episódios violentos, por
todos mencionados. En este marco se tomaron declaraciones que hací-
an hincapié en Ias facetas provocativas de un individuo habitualmente
ebrio, rodeado por otroscon rasgos deconducta semejantes, intentando
demostrar con provocaciones su superioridad en ciertas habilidades ti
picamente masculinas y su rapidez a Ia hora de sacar el cuchillo. Luego
de analizar estos testimonios, se decidió condenar al acusado a tres anos
a Ia cadena en Ias obras piíblicas deIa ciudad y al pago de todas Ias cos
tas. Su companero fue condenado en 5$ de multa y apercibido para que
en Io sucesivo no se metiera en camorras.

Los casos presentados muestran con claridad algunos ejemplos


de aquellas actitudes que eran consideradas insultantes o de Ias provo
caciones que disparaban Ias respuestas violentas. Ahora bien, ^qué pa
pel jugaba el honor?, ^cómo fueron percibidas estas reacciones por los
testigos?. Las interpretaciones más recientes de este tipo de conflictos
dan cuenta de los avances de Ia historiografia al incorporar el problema
dei honor como un factor importante para pensar Ia violência entre los
sectores populares, distanciándose claramente de las explicaciones más
tradicionales, que parecian hacerse eco dei discurso de las autoridades
y reproducian Ia imagen de una violência irracional, entre indivíduos
ebrios, vagos, discolos y peligrosos, cuyos conflictos no tenían ninguna

Sodabilidades, justiças e violências:...


conexión con el honor.'^ Esta perspectiva de análisis es particularmente
interesante, ya que el conflicto interpersonal cumple un rol importante
en Ia definición de Ias identidades sociales, individuales y de gênero.
Por otro lado, Ia interpretación de Ia violência como un acto criminal
es característica dei discurso de Ias autoridades, pero para los distintos
grupos sociales no todos los actos de agresión son siempre condena-
bles y, en determinadas situaciones, Ia violência puede ser considerada
justa y honorable.'^ En esta línea, se ha postulado una relación directa
entre honor, violência y masculinidad para explicar este tipo de enfren-
tamientos, ya que el coraje y Ia destreza eran un símbolo de Ia identidad
masculina y en estos conflictos el que triunfaba se apropiaba de Ia repu-
tación dei vencido; el hombre que fallaba en defenderse ante los desafios
de sus pares era humillado y ridiculizado debido a que el honor era ga-
nado y perdido en el "cara a cara" y en los intercâmbios ritualizados de
insultos y provocaciones físicas.^®

Sin embargo, a pesar de que esta perspectiva es claramente enri-


quecedora, Ia generalización dei honor como lógica explicativa para este
tipo de conflictos puede presentar algunos problemas. En realidad, al
momento de declarar, los acusados no suelen invocar este valor central
para intentar explicar sus acciones ni tampoco Io hacen los abogados de
fensores^' , sino que -intentando disminuirlas penas- tienden a atribuir-

Ver Garcia Belsunce, C.; Buenos Aires, 1800-1820. Tomo II: Salud y Delito. Bs.
As., Emecé, 1977, p. 177 y p. 185.
Spierenburg, P. (Ed.); Men and Yiolence. Gender, Honor, and rituais inModem Europe
and América, Ohio State University Press, 1998. Ver especialmente Ia introducción.
Johnson, L.; "Dangerouswords, provocative gestures,and violent acts..op.cit.
Johnson sostiene que ninguno de los involucrados en estos episódios utilizaron
ia palabra "honor" para explicar los hechos ante ias autoridades pues se asumía
que ésle tenía un claro contenido de clase y el término estaba reservado para los
conflictos entre los ricosy poderosos, sin embargoIacultura dei honor había pe
netrado cada nivel de Ia sociedad masculina y estaba claramente presente en Ias
interacciones entre los hombres. Ver: "Dangerous words, provocative gestures,
and violent acts..." op.cit., p. 128-130. Sin embargo, como se verá más adelante,
los miembros de los sectores populares - especialmente blancos pobres - y los
abogados defensores utilizaban el término "honor" sistemáticamente enotro tipo
de casos, comolosjuicios por injurias. Sibien es necesario reconocerque el plan-
teamiento mismo de estas querellas induce a esta utilización, es evidente también
queeltérmino no estaba reservado para los miembros de Iaélite.

Entre Ia ley dei más fuerte y ía fuerza de Ia ley...


Ias a Ia pérdida de conciencia producto de Ia ebriedad o a encuadrarlo
como un acto de defensa propia en médio de una rina con insultos y
agresiones mutuas. Por supuesto que esta constatación puede obedecer
a muchas razones y no se debe descartar en absoluto que ciertas nocio-
nes dei honor masculino puedan haber estado en juego en estos enfren-
tamientos, pero es necesario intentar introducir algunos matices. Si el
honor es Ia lógica principal y éste es un componente central de Ia cul
tura masculina, Ias respuestas violentas deberían haber sido justificadas
por quienes Ias presenciaron. Por Io tanto, es importante indagar en Ia
percepción de estas acciones por parte de los testigos, ya que Iahistorio
grafia ha senalado con insistência que el honor nunca es simplemente
autoproclamado, sino que tiene un carácter profundamente vinculado a
Ia reputación y que requiere inevitablemente de Ia confirmación públi
ca. Otro aspecto que es necesario tener en cuenta es que el honor -para
constituirse como un valor diferenciador- presupone necesariamente el
deshonor. Uno de los riesgos de Ia generalización es Ia devaluación y,
por ende. Ia pérdida dei poder distintivo y jerarquizador.
En numerosos casos, Ias declaraciones de los testigos abundan en
detalles acerca de Ia reputación "pendenciera" de los indivíduos que se
vieron involucrados en algunos de estos episódios. Lejos de considerar
grave y serio el insulto que había desatado Ia violência, resaltaban que
«por cualquier friolera se enojabayempezaba a dar de paios a cualquie-
ra», reacciones que no eran justificadas por los companeros de pulpería
y dei vecindario sino que se atribuían más bien al «gênio intrépido y
voraz, muyafecto a pendências y camorras» dei agresor." En este senti
do, es evidente que -para una parte dei entorno- no todos tenían buena
imagen y Ias lógicas de su accionar no Ias relacionaban con el honor
sino con una sucesión de provocaciones y desafios físicos; cultivaban
más bien una fama de hombres violentos, intrépidos y rápidos a Ia hora
de sacar el cuchillo, que lejos de granjearles mérito y respeto, llevaban a
algunos hombres a esforzarse por evitados y los exponían a Ia condena.
Probablemente estos indivíduos generasen una mezcla de temor y cierta
admiración por Ias habilidades que demostraban en el uso dei cuchillo,
pero a pesar de Ia destreza que los distinguía, esto no implicaba que el

Ver por ej. AGN, Criminales - Legajo A no 1 (1755-1849) - Expediente 8.


(1776).

Sociabilidades, justiças e violências:...


entorno los reconociera como «hombres de honor». En los documentos
se nota que Ia aprobación o Iajustificaciónestaba lejos de ser automática
y proponemos, como hipótesis, que dependia de Ias circunstancias que
habían desencadenado los hechos y dei carácter de los perpetradores y
de Ias víctimas. Es probable que Ia reacción violenta a una provocación
seria fuese vista como legítima y se condenara Ia violência que parecia
gratuita e injustificada.
En relación con Ias lógicas de Ias respuestas violentas, a pesar de
Ia opacidad que caracteriza a Ias fuentes, es importante sehalar una se
rie de razones que podrían contribuir a explicadas. Efectivamente para
muchos indivíduos estas reacciones estaban completamente justificadas
y eran Ia manera adecuada de responder a los agravios, insultos o pro-
vocaciones. En los documentos apareceu referencias a ciertas nociones
de Ia masculinidad, como "soy bien hombre" o "haré Io que cualquier
hombre", que remiten a Ia necesidad de responder con coraje, en forma
inmediata y personal, dejando completamente al margen a Ia interven-
ción judicial. El consumo elevado de alcohol, los contextos de socia-
bilidad en que producían los insultos, Ia cantidad de personas que los
presenciaban y ei ritmo vertiginoso que adquiria el enfrentamiento, Io
hacian casi insoslayable. Pero el recurso a Iajusticia, además de que po
dia considerarse una sefial de cobardia e improcedente en estos casos,
podia descartarse por presentartambién otros inconvenientes, ya que se
perdia inmediatez en Ia respuesta, requeria ciertas "competências" para
recorrer el camino judicial, el proceso era más largo, costoso en princi
pio, habia que conseguir testigos dispuestos a declarar y para aquellos
indivíduos con antecedentes, sin recursos o sin ocupación fija, tampoco
era una opciòn ni imaginable ni aconsejable, ya que abundan Ias eviden
cias de Ia violênciay el abuso de autoridad desplegadas por los Alcaldes
sobre estos grupos más vulnerables y perseguidos.--^
Al analizar el perfil de los acusados por homicídios, Osvaldo Bar-
reneche senaló que éstos por Io general vivian en paupérrimas condi-

Ver Mallo, S.; "La autoridad de los Alcaldes. El uso y el abuso dei poder, 1768-
1833", en: Lasociedad rioplafcnsc ante Ia justicia. La íransición ciei siglo XVIII al
XIX, La Plata, Publicaciones dei AHPBA, 2004. La autora senala que los tran-
seúntes, peones o agregados en trânsito o en busca de conchabo eran Ias prin-
cipales víctimas de Ia violência de los alcaldes, p. 91.

Entre Ia ley dei más fuerte y Ia fuerza de Ia ley...


ciones, no tenían una inserción laborai definida ni de tiempo comple
to, Ia mayoría de Ias víctimas eran enterradas sin que quedase siquiera
registro de su nombre por el poco arraigo en Ia ciudad, y era mayor el
porcentaje de individuos solteros o viudos que el de hombres casados.-"'
Tomando provisoriamente este análisis, sugerimos Ia hipótesis que es
probable que aquellos individuos dispuestos a jugarse Iavida en un ins
tante, que portaban constantemente sus cuchillos y que eran capaces
de usarlos para saldar Ias disputas, pertenecieran no a los "sectores po
pulares" o "plebeyos" en general, sino a algunos subgrupos dentro de
los sectores bajos de Ia población, caracterizados por un estilo de vida
particular, como se ha senalado para otros espacios y períodos.-^

EL RECURSO A LOS TRIBUNALES:


UNA APROXIMACIÓN A LOS USOS DE LA JUSTICIA

Un tópico común en los trabajos que analizan el problema dei ho


nor y Ias diferentes reacciones frente a los insultos hacia fines dei perí
odo colonial, senala Ia tendência a responder en forma violenta de los
sectores populares, a diferencia de Ia preferencia por el recurso a Ia jus-
ticia que habrían mostrado Ias élites.^^

Barreneche, O.; "' A sólo quitarte Ia vida vengoop. cit., p. 14-23.


Ver: Spierenburg, P. (Ed.); Men and Violence...^ op. cit. En "Knife Fighting and
Popular Codes of Honor in EarlyModem Amsterdam", Spierenburgcaracteriza
a quienes se enfrentaban en duelos populares con cuchillos, como perteneci-
entes a un segmento "semi respetable" de ias clases bajas urbanas, cerca de Ia
mitad eran pequenos ladrones y tenían antecedentes criminales; el sector "re
spetable" no se Involucraba en peleas con cuchillo y solían usar paios para de-
fenderse. Asimismo, en "Homicide and Knife Fighting in Rome, 1845-1914", D.
Boschi asociaeste tipo de violência con un estilo de vidaparticular, centradoen
Ia taberna. Ia bebida y ei juego, practicado también por pequenos ladrones que
eran condenados al ostracismo por los trabajadores pobres, que consideraban
deshonroso el hecho de juntarse con ellos. Ver también Spierenburg, P; "Vio
lência, gênero y entorno urbano: Amsterdam en los siglos XVII y XVIII", en:
Fortea, J., Gelabert, J. y Mantecón, T. (Ed.); Furor et rabies. Violência, conJJicto y
marginación en Ia Edad Moderna, Santander, Universidad de Cantabria, 2002.
Ver Johnson, L.; op.cit., p.129. Burkholder, M.; "Honor andHonors inColonial Span-
ish América", en: Johnson, L. yLipsett-Rivera, S. (Ed.); Vte Faces ofHonor..., op. cit.

Sociabilidades, Justiças e violências:...


En relación con esta observación, por un lado es necesario in
tentar precisar mejor cómo demarcar los grupos sociales, ya que Ia so-
ciedad no se dividia simplemente entre élite y "plebeyos", ai hacer esto
corremos el riesgo de reproducir Ia imagen indiferenciada que tenían
los grupos dominantes de los sectores populares; Ia estratificación era
mucho más compleja-' y además de los indicadores raciales y socio-
-económicos existían otro tipo de critérios, que servían también para
pensar Ia jerarquía y para clasificar a los indivíduos o famílias, como el
honor, el buen nombre y Ia reputación.
Por otro lado, Ia violência no fue Ia única forma de defender el
honor que tuvieron los pobres y no debe descartarse a priori el acceso
a Ia justicia de los grupos no pertenecientes a Ia élite. En esta dirección,
es fundamental destacar el aporte de Silvia Mallo, que ha mostrado el
recurso a los tribunales por parte de Ias clases hajas al analizar Ias In-
formaciones de pobreza solicitadas para poder ligar sin cestos en un
sistema judicial que -entre otras cosas- se caracterizaba por ser caro.-^
Asimismo, es importante sehalar también que una lectura atenta de los
documentos permite vislumbrar distintas expresiones de violência que
se esconden detrás de Ia opción por Ia justicia.
En relación con este problema, evidentemente el tipo de fuentes
utilizadas condiciona fuertemente Ias imágenes e interpretaciones. Si
nos centráramos únicamente en Ias causas por homicídios y heridas, sin

Ver Moreno, J. L.; "La estructura social y demográfica de ia ciudad de Buenos


Aires en ei ano 1778", en: Anuario dei Instituto de Investigaciones Históricas, no
8, Rosário, 1965.
Mallo, S.; La sociedad rioplatense ante Iajusticia..., op. cit. Ver I Parte, I; "Po
breza y formas de subsistência en el Virreinato dei Rio de Ia Plata a fines dei
siglo XVIII". La autora senala que "el grupo de pobres que litiga ante Ia justicia
[...] es proporcionalmente bajo incluso dentro de los mismos sectores médios
y bajos de Ia población", y no aparecen en este tipo de fuentes los grupos más
marginales, Ia mayoría son blancos y sólo muy ocasionalmente se presentan
algunos mestizos y negros libres, p. 27-28. De un total de 637 solicitudes de
certificaciones de pobreza, solamente 26 se vinculan con causas judiciales por
injurias, el número parece en principio muy bajo, pero si Io relacionamos con
el total de 83 querellas por injurias iniciadas en el período colonial cobra una
dimensión mucho más significativa (conservados en el AHPBA). Este último
número está tomado de S. Mallo; "Hombres, Mujeres, Honor..op.cit.

Entre Ia ley dei más fuerte y Ia fuerza de Ia ley...


lugar a dudas se sobredimensionaría Ia importância de los caminos ex-
trajudiciales y de Ia violência como forma de resolución de los conflic-
tos, por esta razón es fundamental el análisis de otro tipo de causas para
rastrear todas Ias respuestas posibles: Ias querellas por injurias y calum-
nias son el material que recorre este apartado. En este punto, quisiéra-
mos sugerir una explicación diferente, que contempla Ia posibilidad de
una combinación de estratégias defensivas, tanto inmediatas y violentas
como judiciales, ya que consideramos que no se trata de dos caminos
distintos, generalmente recorridos por diferentes sectores sociales, sino
que Ias fuentes muestran cruces evidentes y opciones complementarias.
Intentaremos también presentar una aproximación al problema de los
"usos de Ia justicia"-^, atendiendo a los móviles que llevaban a los indi
víduos a buscar una intervención judicial que estimaban beneficiosa, a
Ias formas en que se vinculaban con el sistema judicial y al papel que
cumplieron los tribunales en Ia resolución final de los conflictos.
A diferencia de Ias causas por homicídios o heridas, donde Ia jus-
ticia podia intervenir de oficio. Ias injurias eran un delito privado cuya
acción e instância correspondia a Ia parte ofendida. Debido a que el acto
de injuriar tendia a "agraviar, ofender o molestar con acciones o pala-
bras"^", tanto los insultos como algunos danos físicos estaban contem
plados dentro de Ias injurias de obra y de palabra por Ias que se podia
pedir satisfacción presentando una querella en los juzgados.
La injuria "tiene Ia forma de una metáfora que cifra, condensado,
un sistema de valores que se expresa invertido,por Io tanto, Ias claves
de lectura que permiten entender su significado están estrechamente
vinculadas al sentido dei honor. Es precisamente Ia importância e in-
tensidad dei código de honor Io que explica Ias reacciones sociales en

Esta expresión remite a Ia forma en que los contemporâneos entendían y se re-


lacionaban con los tribunales, además de aludir a Ias formas en que se utilizaba
el sistema judicial. Ver: Dinges, M. "El uso de Ia justicia como forma de control
social en Ia Edad Moderna", en: Fortea, ]., Gelabert, J. y Mantecón, T. (Ed.);
furor et rabies..., op. cit.
Ver: Diccionario de Ia lengua castellana compuesto por Ia Real Academia Es-
paíwla, Madrid, Viuda de Joaquín Ibarra, 1791.
Madero, M.; Manos violentas, palabras vedadas. La injuria en Castilla_y León
(siglos XIIl-XV) Madrid, Taiirus, 1992, p. 21.

Sociabilidades, justiças e violências:...


torno de Ia injuria, y provee también el repertório para Ia difamación, al
cuestionar o invertir los valores supremos que aquél establece.
Los espacios públicos y concurridos eran los escenarios privile
giados en los que se producían los insultos, aumentado el dano pro
vocado en relación con Ia cantidad de personas que los presenciaban.
La recurrencia de expresiones como "todo Io cual Io presencio el bar-
rio" aluden a Ia mirada de un entorno casi palpable, siempre alerta a los
escândalos, que podia tanto proteger como condenar, pero que nun
ca dejaba de juzgar. En estas sociedades "cara a cara" el barrio era un
referente esencial e ineludible, funcionaba como una "encrucijada de
reputaciones, fabricante de honrasy deshonras,"^- ya que el vecindario
sopesaba Ias conductas, Ias reputaciones individuales o familiares y Ias
transmitia. Los vecinos se hacian presentes en este tipo de conflictos a
través de sus declaraciones como testigos, dando cuenta de los hechos y
de Ia fama de los involucrados, pero otro registro de sus vocês también
se puede inferir de Ia circulación de los rumores. Ia maledicencia, o Ias
murmuraciones. En este sentido, Ia "palabra" dei entorno cumplia una
función central: consagraba o rechazaba una identidad pretendida, ha-
bilitaba una inclusión dentro de los "hombres de honor" o sancionaba
en Ia marginalidad de Iadeshonra y de Ia infamia.
En sociedades donde se rinde un obsesivo cuidado a Ia reputación
personal y familiar. Ia irrupción de una ofensa pública de naturaleza
grave imprime un desorden intolerable, una alteración en Ia imagen que
no puede ser soslayada. El honor circula socialmente como una suerte
de bien -en tanto se posee, se exhibe, se reclama- y que, por Io tanto,
también puede ser quitado. La apelación a Ia justicia para reparar una
ofensa, implica una acción de restitución dei bien robado, de reacomo-
damiento en el desorden producido y de "reinstitución" dei lugar social
amenazado, ya que la palabra injuriosa constituye una "irrupción peli-
grosa que quiebra la seguridad de Io instituido."^^
La mayoria de los casos presentados en los juzgados fueron pro
movidos por una serie de insultos que afectaban al honor masculino,

32. Farge, A.; La vidafrágil. Violência, poderes y solidaridades en el Paris dei sigla
XVIII, México, Instituto Mora, 1994, p. 24.
33. Farge, A.; "Famílias. El honor y el secreto", en; Ariés, P. y Duby, G. (Dir.). Histo
ria de la vidaprivada, tomo 6, Madrid, Taurus, 1992, p. 194.

Entre la ley dei más fuerte y la fuerza de la ley...


como tildar de "puta" a Ia mujer o a Ias hijas, Ias imputaciones de desho-
nestidad detrás de Ias vocês de "pícaro" o ladrón, Ia degradación que
implicaba ser llamado mulato, plebeyo o ilegítimo y Ia vergüenza de ser
senalado como insolvente, cabrón, indigno o hijo de puta.
Sintiéndose gravemente agraviado por Ias "palabras injuriosas con
que ofendio el onor y estimacion (de su) Muger" el zapatero Andrés Mora-
les decidió presentar una querella contra Bernardino Luque.^ ' A raiz de un
conflicto vecinal como tantos otros, Iasquejasde Ia mujer por haber subido
el caballo a Ia calzaday haber puesto en peligro a sus hijos, Ia convirtieron
en ei blanco de una catarata de insultos graves que cuestionaban un punto
central dei honor femenino, Ia moral sexual. Es claro que imputaciones de
esta naturaleza afectaban por extensión al honor dei marido, más aún cuan-
do éste se acerco y íue tratado públicamente de "consentidor":

[...) el dicho Luque estaba tratando a mi Esposa de Puta,


Zorra, arrastrada y otras injurias de esta classe que ha-
biendo llegado le dije que como se entendia estar mal
tratando ami Espossa con tan feas palabras y Io primero
con que me recibio fue decirme que hera un alcabuete
consentidor delas Eniquidades de mi Mujer...

En relación con Ia respuesta de Morales, es evidente por su decla-


ración que Ia primera reacción no fue "evitar los peligros de una con-
frontación física",^^ sino que por el contrario intento abalanzarse y ar-
remeter contra Luque, forcejeando en una situación que le era adversa
por estar aquél montado en el caballo y terminando ambos en el suelo,
aunque sin poder continuar Ia pelea -que a todas luces buscaba iniciar-
porque el agresor logró montar nuevamente y alejarse dei lugar. Por Io
tanto. Ia decisión de acudir a Ia justicia pareciera ser Ia segunda estraté
gia de defensa, a Ia que se recurre luego dei fracaso de Ia primera:

AHPBA- Juzgado dei Crimen - 34-1-18-5. (1793)


Esta causa también es citada por Johnson, para mostrar una excepción, ya que
si bien senala que en Ia gran mayoría de los casos, los afectados en su honor
personal reaccionaban en forma directa y violenta, también existían algunas
situaciones en que se presentaban ante Iascortes para forzar una retractación y
satisfacer así el honor mancillado, sin los peligros de una confrontación física.
Cfr. Johnson, L; op. cit., p. 132.

Sociabilidades, justiças e violências:...


[...] y me arremeti a el pero como esíaba a caballo no me
daba lugar a que le pudiera afiansar ias riendas hasta que
llego atirarme un riendaso en que le pude afiansarlas y de
Ia sofrenada que le di al caballo fuimos ambos al suelo sin
que subcediesse mas que aquellopor que gano su caballoy
corriendo de esta parte para otras insultaba ami mujer Ua-
mandola que saliesse fuera queera una Putatodo Ioqual Io
presencio el barrio y muchas gentes poniendosse en com
promisso Ia buena opinion con que esta generalmentereci-
bida Iadicha miEspossa delos que Ia conocen yIa tratan...

El inicio dei juicio por Morales contribuyó a acelerar Ias posibi-


lidades de un acuerdo, ya que éste se aparto de Ia querella y perdonó Ia
injurialuego de que Luque se comprometiera a desdecirse públicamente
en el mismo sitio en que Ia proíirió ysehiciera cargo de Ias costas:

[..] como en este intermédio el enunciado Luque haya


refleccionado el agravio que me ha inferido consideran
do porotra parte que este indivíduo quando profirio Ias
palabras injuriosas sehallava algo embriagado, hevenido
pormédio de Ias súplicas que me ha hecho en perdonarle
Ia injuria, contai de que se desdiga en el mismo parage
donde infirió el agravio delas palabras que alli dijo ...

En este caso tendríamos tres tipos de reacciones frente al insul


to: Ia primera inmediata y violenta, Ia segunda que refleja Ia búsqueda
de una reparación judicial y Ia tercera que da cuenta de Ia composici-
ón entre Ias partes a través de un arreglo extrajudicial. Este desenlace
es interesante, porque muestra que en realidad no es Ia justicia Ia que
termina expidiéndose y brinda Ia satisfacción, sino que es el hecho de
iniciar el pleito el que fuerza Ia búsqueda de una solución por parte dei
agresor y determina el alejamiento de la causa por el querellante. El no
seguimiento de los casos que llegaban a la justicia también puede ser
interpretado como un médio de control social en la vida cotidiana, "una
especie de obligación para dirimir asuntos".^^ Ni la violência ni la jus
ticia deben ser concebidas como esferas completamente autônomas y

Dinges, M.; "El uso de la justicia como forma de control social en la Edad Mo
derna...", op. cit., p. 49

Entre la ley dei más fuerte y la fuerza de la ley.„


excluyentes, pueden combinarse en Ia práctica diaria como recursos a
disposición de los sujetos afectados, e incluso se debe considerar Ia po-
sibilidad de arreglos extrajudiciales, con Ia intervención de terceros para
mediar en Ia disputa.
Pero el inicio de este tipo de causas, necesariamente escritas en el
"lenguaje dei honor", puede permitimos también acceder a Ia compleja
trama de un conflicto que refleja diferentes intereses en juego, que dan
cuenta tanto de los distintos móviles e intenciones que llevaban a los in
divíduos a tomar Ia decisión de presentarsefrente al alcalde, como de los
benefícios que esperaban obtener por intermedie de este recurso, refle-
jando -en consecuencia- los "usos" que hacían los actores de Ia justicia.
Es posible que estos hombres pudieran preferir evitar abiertamen-
te todo tipo de violência y buscar una reparación sin riesgos al amparo
de Ias leyes. Pero Ia apelación a Ia justicia brindaba además, y conside
ramos que este punto es clave. Ia posibilidad de obtener reparaciones
materiales que obviamente no se obtenían a través dei uso de Ia fuerza.
En los conflictos en que además de los insultos se producían danos en Ia
persona o propiedades dei demandante, generalmente cuando se dicta-
ba el fallo o cuando éste desistia de continuar Ia querellapor haber llega-
do a un acuerdo con Ia otra parte, se incluía el pago de los destrozos por
el acusado. Cuando un grupo de vacas de Don Diego González arruino
parte de Ia quinta de Don Juan Rico, éste intento apartarlas y se inicio
una discusión acalorada entre vecinos, al punto que el primero "Io atacó
con toda fúria sin escuchar razones", Io atropelló, Io amenazó de muerte
y Io golpeóvarias veces. Cuando finalmente Rico decidió apartarse de Ia
causa por consejo de vários allegados, se estableció Ia condición de que
el acusado pagaralos danos producidos en Iaquinta, los gastos de papel
sellado y el total de Ias costas.^^
Por otro lado, Ia decisión de entablar una querella por injurias
podia ofrecer benefícios adicionales a Ia reparación dei honor y encon-
trarse inserta en una historia de rivalidades previas entre Ias partes. En
numerosas ocasiones, Ia presentación en los juzgados también reflejaba
otros problemas sérios que se estaríanjugando detrás e incidiendo en Ia

AGN, Sala IX, Tribunales, Legajo no 280, Expediente 9 (39-8-4) (1756).

Sociabilidades, justiças e violências:...


decisión de acudir a Ia justicia. Guando Joseph de San Martín inicio el
juicio contra Domiciano Uron-^®, alegó que Io había

[...) ynsultado áel y asu Esposa de malas palabras, que to-


can al credito, honrra y buena opinión y fama de ambos,
sin mas motivo que tenerlo por costumbre (...) por ser este
un hombre sin crianza y bago y solo se mantiene de an
dar robando, y asiendo dano enla vecindad, pues no deja
gallina ninguna que no robe y luego con Ia mayor desber-
güenza Ias bá avender enla Plaza (...) arranca el cuchillo y
acomete con el aqualquiera, como Io haecho con migo ...

La defensa dei honor, en este caso, se mezcla con Ia defensa de los


bienes, ya que el agraviado senaló que había descubierto a Domiciano en su
propiedad con intención de robar y, porIa descripción que hizo de Ia repu-
tación de vago y ladrón dei acusado, es evidenteque buscaba un castigo que
excediera al quele corresponderia porlos insultos recibidos. Asimismo, de
Iapresentación se puede inferir un enfrentamiento prévio y de caráctervio
lento entre ambos, ya que Uron "...sacó un cuchillo (...) diciendole, haora
meaveis de pagar hijo deputa los lazasos que me has dado...". El desenlace
refleja que habían Uegado a un acuerdo, pero también por Ias particulari
dades dei conflicto elabandono deIa causa quedó sujeto al alejamiento dei
reo. El querellante estuvo dispuesto a desistir deIa causa,

[...] porser un pobre desvalido sin arbítrios para poder se


guir una causa como corresponde y aque igualmente me
ha suplicado el Reo le perdone Ias injurias que de él e reci-
vido (...), (aceptando) con tal de que salga de esta Ciudad
para Ia Guardia de Chascomús por eltermino de un ano ...

En otros casos, Ia apelación a ia justicia para buscar reparaci-


ón frente a los delitos contra el honor se vinculaba con otros conflic-
tos entre Ias partes, reflejados en causas judiciales que se desarrollaban
simultáneamente, generalmente por cuestiones econômicas, como por
ejemplo disputas por el cobro de pesos, por mercancías o litígios por
tierras. Guando el comerciante Don Benito Herrera inició una querella

AGN, Sala IX, Tribunales, Legajo n- 294, Expediente 13 (40-1-1) (1790).

Entre Ia ley dei más fuerte y Ia fuerza de ia ley..


por injurias^^ contra el platero Baltazar de Quiros, ya tenía con él un
pleito paralelo por el cobro de dos negros. El conflicto prévio entre am
bos fue el detonante para que Quiros le gritara públicamente "pícaro" y
"ladrón" y se le tirara encima queriendo matado "como lobo furioso y
hambriento que (Io) queria devorar". Estando preso, el acusado declaro
que había ido a cobrarle a Herrera 8$ que le debía por un instrumento
y "sobre dha cobranza se travaron de rasones, y el referido don Benito
alsando Ia mano le dio un golpe en Ia cara (...) y alli uno y otro se dieron
de golpes...", como resultado de Ia pelea ambos se levantaron dei suelo
con el rostro herido. El fallo reflejó que Ias ofensas fueron mutuas, razón
por Ia cual fueron amonestados, se los condeno a ambos a una multa de
200$ y al pago compartido de Ias costas.
En Ia causa siguiente se ve nuevamente que Ias ofensas e insultos
se inscriben en una historia de rivalidades previas, que llevaron al en-
frentamiento de Don Bonifácio Orbe con su hermano Luis por el cobro
de 300$. En este contexto es que el primero decidió plantear Ia querella
por injurias contra el segundo''®:

[...] me ultrajo con palabras probocativas, y atrosmente


injurlantes, diciendome varias veces que era un Ladron,
repitiendo que havia de quitarme Iavida, (...) tanvien ar
mado con un cuchillo y un Rebenque se abanso contramí
hasta haberme puesto Ias manos en Ia cara ...

Estando Luis en prisión, declaro queno ledebía ningúndinero alher


mano y que Io trató de ladrón por haberle sustraído lospapeles de nobleza
de sangre quedebía conservar élporserel mayor deIa família. Finalmente,
elalcalde condeno a Bonifácio al pago deIas costas por no haber justificado
Ia querella y haber manifestado un tácito desestimíento. El desarrollo de
estas causas muestra que Ia justicia, además de un âmbito apropiado para
Ia defensa dei honor, también podia ser concebida como el terreno para
efectuar un "ataque" al oponente en el marco de Iasrivalidades cruzadas ya
referidas, ya que éste se encontraria claramente perjudicado, apresado, con
los bienes embargados y en una situación vergonzante.

AGN, Sala IX, Tribunales, Legajo n" 286, Expediente 9 (39-9-1) (1755)
AGN, Sala IX, Tribunales, Legajo n'^285, Expediente 10 (39-8-9) (1789)

Sociabilidades, justiças e violências:...


En otras oportunidades, el inicio de una querella por injurias per
mitia obtener una satisfacción suplementaria a Ia reparación dei honor
mancillado por los insultos públicos,por ejemplo el cobro de una deuda
anterior. Guando el comerciante Don Pablo Villarino le reclamo al es-
tanquillero Domingo Muhoz una suma de dinero que le adeudaba, éste
..prorrumpio en decir que no (le) debia nada, por que siempre havia
tenido á deshonrra tratar con ningunos indignos Gallegos..Estando
librada Ia orden de prisión y embargo de bienes contra Munoz por el
pleito impulsado por Villarino a causa de Ias palabras ofensivas, el acu
sado mandó a un mozo a devolverlelos 5$ que le debía, y se estima que
ésta fue Ia razón para que el ofendido suspendiera Ia causa."*^
La decisión de acudir a Ia justicia se tomaba también luego de Ia
reiteración de insultos y amenazas, que Uevaban a los denunciantes a
temer por Ia propia vida y por los danos que le pudieran provocar a Ia
familia. Luego de vários encontronazos préviosy habiendo sido amena-
zado "de que si hablaba (le) enterraria el cuchillo" Don Pedro Rodríguez
se decidió a iniciar una causa contra Cláudio Corrêa,''^

[...] apurando todo el espiritu impaciente de su ira co-


menzo a ultrajar maltratando mi Persona con quantasca-
lumnias, é injuriosas palabras le dictaba su voraz lengua
mezcladas todas con un tenax desafio de emplear su furor
sangriento en mi Persona, tratandome de Picaro, ladron
indigno Gallego infame conocido por tal, que saliera para
fuera que Io menos que haria conmigo seria cortarme Ia
lengua, de tal suerte que escandalizo todo el Barrio ...

Evidentemente, a esa altura Rodríguez tenía decidido de antemano


que iriaa Ia justicia y es por eso que procuro contar conlos requerimien-
tos necesarios para plantear Ia querella, ya que: "...salio para Ia puerta
diciendoles a los que alli estaban que les fuesen testigos de Io que Corrêa
le decia..Las amenazas de usar Ia violência aparecen mencionadas con
frecuencia en los documentos, pero hay también algunos indicios donde
se amenaza invocando las posibles consecuencias de acudir a Ia justicia,
visibles a través de expresiones como que "Io echaria a malvinas".*^^
41. AHPBA, Juzgado dei Crimen, 34-1-17-32 (1792)
42. AHPBA, Juzgado dei Crimen. 34-1-11-16 (1781)
43. AHPBA, Juzgado dei Crimen, 34-1-11-14. Malvinas era uno de los presídios
dei espacio rioplatense.

Entre Ia ley dei más fuerte y Ia fuerza de Ia ley...


En algunas ocasiones, también el planteo de un juicio por injurias
podia ser concebido como el camino necesario para defenderse de cau
sas penales iniciadas por Ia otra parte. Estando preso en Ia cárcel públi
ca por Ias heridas que le produjo a Francisco Solano, Bartolomé Leyba
presentó una contraquerella con el objeto de revertir su situación, ape
lando a enmarcar su reacción como el resultado de Ias injurias verbales,
amenazas y provocaciones que resintieron su honor y culminaron en el
inevitable ejercicio de su legítima defensa."''* El episodio se produjo en
una quinta en Ia que ambos estaban realizando trabajos de albanilería,
Leyba como maestro y Solano como médio oficial:

El haver cumplido yo con ias obligaciones de Maestro fue


el mobil de mil desaciertos: derribo atrevidamente una ta-
bla que estava en Ia pared haciendo de andamio, cuio aten
tado no pude menos que reprehender (...) su contestacion
fiie cubrirme de injurias, y vilipendios llamandome picaro
adulon" (...). Resentido mi honor, inquiri e indague (...)
Ia causa de este maltratamiento; pero á Ias injurias subsi-
guieron Iasamenazas, y una ratificacion ultrajante, desple-
gando todo el furor de una ira infundada; podré decir con
Seneca, que su lengua no pronunciava mas que crimenes...

Conclusa Ia obra de aquel dia (...) desemboco el oficial


de Albanil Francisco Solano con un peon que travajava
en Ia misma obra y Io mismo fue verlo que amenazarme
con que algun dia sela havia de pagar: Io reconvine con
toda Ia moderacion de que en igual caso era capaz, y al
instante mismo me acometió con un paio. En uso de Ia
natural defensa a que me autorizan todas Ias leyes ataje y
previne el golpe valiendome de un cuchillo que llevaba:
o fuese descuido mio, ó necesidad en que me constituio
el ataque que procurava eludir, el salio erido en un brazo,
y logré dar en tierra con el; en esta situación sin valerme
dela coyuntura que tenia para cometerexesos que no pre
meditava, le hice presente que devia comportarse de otro
modo con sus maiores, y Maestros ...

La víctima presentó una declaración completamente distinta,


enfatizando especialmente Ia reacción desmesuradamente violenta dei

44. AGN- Tribunales Criminales - Legajo S n- 1, Expediente s/n- (1802)

Sociabilidades, justiças e violências:...


agresor, que Ia emprendió a punaladas una vezque se encontraron fuera
dei âmbito laborai, contrastando con su absoluta indefensión. En este
caso se constata con claridad que Ia decisión de Leyba de plantear esta
contraquerella fue tomada sólo cuando se vio en prisión por Ia denuncia
de Solano, si este último no hubiera acudido a Iajusticia por Ias heridas
recibidas, probablemente Leyba considerara que el altercado estaba ter
minado luego de Ia pelea. El resultado dei conflicto refleja, una vez más,
Ias condiciones de un acuerdo. Ambos comparecieron para perdonarse
mutuamente Ias injurias de hecho y de palabray así evitar Ias moléstias,
gastos e incomodidades de un dilatado litigio, comprometiéndose Ley
ba a entregarle a Solano 35$ por el perjuicio que pudo ocasionarle y a
hacerse cargo de Ias costas judiciales.
Los casos presentados muestran ias limitaciones de concebir a Ia
violência y a Iajusticiacomodos caminos autônomos y excluyentes para
Ia resolución de los conflictos interpersonales. Si nos despegamos de
Ia carátula que encuadra Ias causas, podemos percibir numerosos in
dicadores de reacciones violentas adoptadas por hombres de distintos
sectores sociales -desde aquellos que se definían como pobres hasta
míembros de Ia élite-, que permanecen parcialmente ocultas detrás dei
posterior recurso aIa justicia. Como hemos visto, Ias causas por injurias
revelan distintas expresiones y grades de violências, desplegadas como
una reacción inmediata en médio de Ia ofuscación por el incidente, que
no terminaban necesariamente en homicídios cometidos con cuchillos
-ni tendrían por qué hacerlo- pero que se manifestaban de otras for
mas menos letales aunque igualmente violentas: trompadas, bofetadas,
empujones, tirarse de los cabellos, arrojar objetos, o dar golpes contun
dentes con paios o rebenques. En este sentido, tanto Ia fuerza como Ia
ley podían combinarse como estratégias a disposición dei ofendido para
defender su reputación honorable ysus intereses. Dei mismo modo, en
otros casos se recorre el camino inverso, el planteamiento de un pleito
por alguna de Ias partes para resolver conflictos por el honor se convier-
te en un preâmbulo para Ia violência, dando pie a ataques y altercados
de los denunciados, iniciándose un ciclo que conjuga insultos, querellas,
acuerdos ynuevamente agresiones ypleitos.

Entre Ia leydei másfuertey Ia fuerza de Ialey...


CONSIDERACIONES FINALES

El recorrido por los documentos y ei análisis realizado a Io largo


dei trabajo permiten sugerir como principal conclusión Ia necesidad de
matizar Ia supuesta división tajante entre formas judiciales y extrajudi-
ciales de resolver los conflictos.

Las explicaciones centradas en distinguir Ia inclinación de Ia élite


bacia Ia justicia de Ia preferencia por Ia reparación personal dei "sector
plebeyo" parecieran ser insuficientes. En primer lugar, es fundamental
tener en cuenta que miembros de los sectores populares también recur-
rían al sistema judicial para resolver conflictos, dei mismo modo que
algunos de los que pertenecían al sector de Ia "gentedecente" manifesta-
ban distintas expresiones de violências que se pueden vislumbrar dentro
de las causas por injurias. Como ha senalado Tamar Herzog, el proceso
judicial no se concebiacomo una obligación, sino que se entendia como
una opción, posible pero no necesaria. Los damnificados «buscaban
su respaldo cuando Io juzgaban conveniente y Io ignoraban cuando se
concebia preferible».**^ En este sentido, existen numerosos indicios que
permiten pensar en una combinación de estratégias de defensa, tanto
personales y violentas como judiciales, por Io cual es necesario insistir
en Ia importância de no considerarlas como opciones excluyentes.
Las lógicas deidesafio y Ia respuesta que caracterizaban a las reac-
ciones violentas pueden ser comprendidas atendiendo a vários factores.
Por un lado, hay que tener en cuentaIaclarapreferencia por Iabúsqueda
de una reparación personal, que era un fuerte indicador de coraje y va
lentia y que también era inmediata, a diferencia de los litigios que se di-
lataban más en el tiempo, ya que hay cuestiones que no podian esperar
ni ameritaban el recurso a Ia intervención judicial. La justicia tampoco
era una posibilidad igualmente viable para todos los indivíduos, porque
implicaba cierto conocimiento dei procedimiento, exigia Ia búsqueda de
testigos dispuestos a declarar, Ia realización de los asesoramientos per-

Herzog, T.; La administración como un fenômeno social: Ia justicia penal de Ia


ciudad de Quito (1650-1750), Madrid, Centro de Estúdios Constitucionales,
1995, pp. 216-217

Sociabilidades, justiças e violências:...


tinentes con los abogados defensores, podia resultar costoso si ia sen
tencia no obligaba al pago de Ias costas al ofensor y ei derecho a litigar
sin costos no era automático sino que exigia una tramitación adicional.
Por otro lado, como ya hemos senalado, también hay que considerar
los contextos concorridos en que se producian los insultos, el elevado
consumo de alcohol y el ritmo vertiginoso dei enfrentamiento, tanto
como Ia incidência insoslayable de los antecedentes, el estilo de vida y
Ias características sociales de los indivíduos involucrados.

La opción por el recurso a los tribunales permite una aproximaci-


ón al complejo problema de los usos de Iajusticia. El hecho de plantear
una querella para buscar satisfacción por el honor mancillado podia ser
un fin en si mismo o combinarse con otras consideraciones. En este sen
tido, como hemos mostrado en eltrabajo, también podia servirpara de-
fenderse de causas penales iniciadas por Ia parte contraria, o podia ser
entendida como una suerte de "ataque" aloponente, siendo un episodio
más en el marco de un conflicto prévio que habia sido el detonante de
los insultos; podia concebirse además como Ia posibilidad de obtener
una reparación material porlos danos ocasionados por el agresor, o po
dia ser vista incluso como una instância que mejoraba Ias posibilida-
des de llegar a un acuerdo extrajudicial, luego dei cual el querellante se
apartaba de Ia causa. El acto de iniciar un juicio servia para expresar un
conflicto y abrir el camino para una solución, que no pasaba necesaria-
mente por Ia sentencia que dieran los alcaldes, ya que el gesto mismo
de acudir a los tribunales podia ayudar a resolver el caso llegando a un
acuerdo entre Ias partes fuera dei juzgado. En muchos casos, también
en Buenos Aires, "utilizar Ia justicia sólo parcialmente conducia a una
solución definitiva de los conflictos""'^

Dinges, M. "El uso de ia justicia como forma de conlrol social en !a Edad Mo


derna", op. cit., p. 61.

Entre Ia ley dei más fuerte y Ia fuerza de Ia ley...


Sociabilidades, justiças e violências:...
La sancíón dei código
penal en Ia província
de Buenos Aires:
^Un antes y un después en Ia
admínístraclón judiciai?

GISELA SEDEILLAN

La província de Buenos Aires en Ia segunda mitad dei siglo XIX


cumplió un papel decisivo en Ia economia dei país como provee-
dora de los principales productos de exportación para el mercado
internacional. Las transformaciones econômicas con Ia expansi-
ón ovina implicaron Ia diversificación de Ia estructura productiva
y un crecimiento demográfico sostenido, acentuado después de
1880 con el aporte de Ia inmigración masiva.' Es en este proceso
de câmbios, más precisamente a fines de Ia década de 1870, cuando
el gobierno de Ia província desplegó diferentes políticas tendientes
a consolidar su presencia institucional y afianzar el control social
de Ia población rural. Estas medidas consitieron en Ia eliminación

Sabato H., Capitalismo y ganaderín cu Biiciios Aires: laficbre dei lanar


(1850-1890), Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 1989.
de Iafrontera mediante campanas militares contraei indígena y Ia conse-
cuente incorporación de esas tierras a Ia estructura productiva, también
Ia inauguración de Ia penitenciaria, Ia reestructuración de Iapoliciade Ia
província, y Ia descentralización de Ia justicia mediante Ia creación de un
nuevo juzgado dei crimen. Asimismo, con el objeto de brindar mayor se-
guridad jurídica se operaron câmbios en matéria legislativa sancionándo-
se un código penal. La década finalizaba con Ia federalización de Ia ciudad
de Buenos Aires, Ia consecuente designación de una nueva capital para Ia
província y Ia centralización de mecanismos de ejercicio dei poder con Ia
creación de Ia policia de Ia provínciade Buenos Aires.^
Las medidas antes mencionadas podrian suponer el inicio de un
nuevo período. En este sentido, ano 1880 ha sido considerado por Ia
historiografia como el comienzo de una nueva etapa de progreso ma
terial y demográfico que insertó a Ia Argentina privilegiadamente en el
contexto internacional, siendo incuestionable el poder dei estado como
regulador de Ia sociedad. Esta visión ha sido revisada en Ias últimas dé
cadas por estúdios que desplazan el objeto de análisis desde el estado y
Ias elites, hacia una perspectiva que apunta más a Io social, que rescata
Ia relación entre el estado y Ia sociedad, identificando Ias resistências,
negociaciones y sanciones que de esta interacción surgen. Los estúdios
sobre el control social han captado Ia creciente complejidad de Ia socie
dad y Ia función concreta que desempenaron los mecanismos institu-
cionales de coerción, relativizando Ia capacidad estatal en controlar y
disciplinar Ia población, aún más allá de Ia década dei 1880. ^

Con el objeto de descentralizar ia justicia y acelerar las causas se crearon dos


juzgados dei crimen en 1853,los departamentos sud y norte. En el ano 1856 se
creó el juzgado dei centro y a fines dei ano 1879 el departamento de Ia capi
tal: Corbetta Juan Carlos y Helguera Maria dei Carmen La evolución dei mapa
judicial de Ia provincia de Buenos Aires, 1821-1984, Departamento histórico
judicial, La Plata, 1984 p. 14.
Por ejemplo ver: Aguirre C., Tire birth ofpenitenciary in Latin América. Essays
on criminology, Prison Reform and social Control,1830-1940, Austin, University
of Texas Press,1996; Barreneche O., Dentro deIaley todo. Lajusticia criminal de
Buenos Aires en Ia etapa formativa dei sistema penal moderno de Ia Argentina,
Dei Margen, La Plata 2001 Gayol, S., Kessier Violências delitos y justicias en
Ia Argentina, Buenos Aires, Manantial y Univ. Nac. Gral Sarmiento., Buenos
Aires, 2002; Salvatore Ricardo Wandering paysanos. State order and subaltern
experience in Buenos Aires during the Rosas Era, Durham and London, Duke

Sociabilidades, justiças e violências:...


Los estúdios sobre Ia justicia y Ia ley desarroUados en Ias últimas
décadas, inscriptos en Ia perspectiva antes mencionada, han centrado su
análisis en Ia aplicacióny adaptación que Ias normas legales tenían en Ia
práctica judicial. A traves dei estúdio de los archivos judiciales han privi
legiado el espacio de Ia ciudad de Buenos Aires y Ia campana rural du
rante Ia primera mitad dei siglo XIX, no mereciendo Ia misma atención
Ia etapa que se inicia con Ia codificación penal argentina en el afio 1877.'*
Si bien los historiadores dei derecho han brindado un valioso aporte al
conocimiento de Ias características y transformaciones dei derecho penal
en esta época, aún continha sin explorarse Iaaplicación concreta de estas
leyes en Ia provincia de Buenos Aires. Este trabajo pretende contribuir en
ese sentido, intentando esbozar algunos resultados preliminares sobreIas
rupturas y continuidades que provoco Ia sanción de Ia nueva legislación
en Ia práctica judicial de Ia provincia de Buenos Aires, si el código penal
se convirtió en el único corpus jurídico dei derecho penal considerado o
pervivieron ordenamientos legales anteriores en su período de vigência,
comprendido entre 1877 a 1886. Tambiénveremos Ia estructura y funcio-
namiento de Ias instituciones encargadas de implementar estos câmbios,
con el objetivo de ver no sólo Ia composición, sino también Ias dificulta-
des que en Ia práctica surgían para hacer efectiva Ia letra de Ia ley y mo
nopolizar Ia violência. Pretendemos analizar en qué medida Ia década de
1880 implicó el inicio de una nueva etapa en Ia administración judicial,

University Press, 2003, Caimari, L,Apenas un delincuente Crimen, castigoy cul


tura en Ia Argentina 1880-1955,Buenos Aires,20Q4. Di Lisia M., y Bohos-
lavskyE., Instituciones yformas de control social en América Latina 1840-1940,
prometeo, Buenos Aires, 2006.
Entrelostrabajos ver; Cansanello C.," Domiciliados y transeuntes en el proceso
de formación estatal bonaerense (1820-1832), Entrepasados, núm. 6, 1994 , Fra-
dkin R, "Entre Ialeyy Ia práctica: La costumbre en Iacampana bonaerense de Ia
primer mitad óel siglo X1X\ Anuario lEHS, núm.12,1997; Garavaglia J C., Poder
conflicto y relaciones sociales. ElRió deIaPlata, XVIII-XIX, Buenos Aires, Homo
Sapiens, 1999; Gelman J., "Crisis y reconstrucción dei orden en ia campana de
Buenos Aires. Estado y sociedad en Ia primera mitad dei siglo XIX.", Boletin dei
Instituto deHistoria Argentina yAmericana "Dr. Emilio Ravignani", núm.21,2000
. Para Ia segunda mitad ver: Palacio J. C. "La Pazdei trigo. Cultura legaly sociedad
local en el desarrollo agropecuário pampeano 1890-1945", Buenos Aires, Edhasa,
2004. Sobre Ia justicia dei crimen Van Haubart, C., "Administración de Iajusticia
en eldepartamento Capital, Provincia de Bs. As, 1880- 1902, XJornadas Interes-
cuelas / Departamento deHistoria, Rosário, 2005.

La sanción dei código penal en Ia provincia de Buenos Aires:...


pues creemos que Ias transformaciones acaecidas en el derecho penal ar
gentino no fueron totales, ni tampoco se acompanaron de câmbios sus-
tanciales en el funcionamiento de Ias instituciones de coacción, limitando
materializar una presencia institucional más efectiva. ^

LAS CAUSAS DE LA SANCIÓN


DEL CÓDIGO PENAL
A pesar de que en siglo XIX adquirió en Europa gran impulso el
movimiento de codificación autônoma dei derecho penal iniciado en

Se tomó como unidad de análisis el Juzgado dei Crimen dei Departamento


dei Sud de Ia província de Buenos Aires, el cual tenía asiento en Ia ciudad de
Dolores. El mismo comprendía parte dei sudeste de Ia província de Buenos
Aires. Los partidos de Tres Arroyos, Juarez, Necochea, Lobería, Balcarcey Gral.
Pueyrredon, Mar Chiquita, Ayacucho, Arenales, Rauch, Pila, Vecino, Maipú,
Tuyu, Ajo, Tordillo, Dolores, y Castelli. Se analizó una muestra dei 27% dei
total de expedientes judiciales sobre homicidios conservados en ese Archivo
judicial para el período analizado. La metodologia utilizada se inscribe en Ia
perspectiva desarrollada por otros estúdios, por ejemplo ver Barreneche O.,
Dentro de Ia ley todo... op. cit. Se analizaron Ias diversas etapas en que consta
Ia producción dei expediente judicial. Una primera etapa era Ia información
sumaria realizada por el juzgado de paz de Ia localidad que consistia en Ias
primeras declaraciones de los testigos y dei imputado, hechas por los alcaldes
y ya avanzada Ia década de 1880 por Ia policia, y Ia ratificaciones en Ia justicia
de paz. Estainformación sumaria seremitia a Iajusticia dei crimen. En esta se
gundaetapa se identificaron los procedimientos seguidos en Ia recolección de
evidencias, al juez dei crimen le competia dictar todas Ias medidas que consi
derara necesarias para Ia averiguación dei hecho como de su autor, solicitando
a tal fin al juez de paz donde se hubiere cometido el hecho ampliaciones de
indagatorias, ratificaciones de testigos, declaraciones de nuevos testigos, etc.
Una tercera etapa consta de Iaconfesión dei imputado, una cuarta se refiere a
Ia interpretación jurídica dei caso a cargo dei fiscal y abogado defensor en los
alegatos, una quinta a Ia evaluación final dei caso en Ia sentencia, y una sexta
al análisis deIa sentencia que hacia Ia câmara de apelaciones donde siempre se
elevada Ia misma en calidad de consulta o apelación. El análisis de cada una
de estas etapas es imprescindible para identificar los câmbios y continuidades
procesales. El estúdio de Ias tres últimas etapas reflejan los critérios en que se
basaban los abogados parafundamentar sus alegatos y aquellos queguiaban Ia
decisión de los juristas alaplicar sentencia, posibilitandonos apreciar Ia signifi-
cancia que el nuevo corpus legal tenía en Ia práctica judicial.

Sociabilidades, justiças e violências:...


Espana siglos antes, en Ia Argentina Ia inestabilidad política surgida
después de ia independência retardo Ia creación de un sistema jurídico
independiente.'^ La legislación criminal colonial de fondo, cuyo pilar
había sido Ia séptima partida de Alfonso el Sábio, no sufrió mayores al-
teraciones durante el período republicano, continuándose juzgando los
delitos de (robo, homicídio, delitos sexuales, etc.) a Ia luz de ia misma, a
pesar, como afirma Barreneche, que lentamente aparecia una tipologia
más abstracta influída por Ias ideas de Ia ilustración. Si bien en el pe
ríodo republicano perduro Ia arquitectura legal de Ia justicia colonial,
esto no impidió que se desarroUase una intensa fase de experimentación
institucional en Ia que sefueron adaptando ysuperponiendo leyes y dis-
posiciones queformaron un marco legal concapacidad de dar múltiples
respuestas a una nueva situación, dependiendo de Ias circunstancias."
Desde Ia independência Ias autoridades consideraron que para me-
jorar Ia administración de Ia justicia criminal eraprioritário no solo lograr
una mayor transparência en elproceso deselección delos jueces, sino tam-
bién sancionar un código penal y deprocedimientos que mejorara el pro
ceso. En estos puntos coincidieron los juristas y magistrados, para quienes,
sin embargo, primariamente debíasancionarse una constitución republica
na.*^ Recién pudo darse tratamiento a estos temas postergados en Iaagenda
política cuando desapareció Ia inestabilidad que caracterizó a Ia primera
mitad de siglo. En 1853 se sancionoIa constituciónnacional,y después de Ia
unificación nacional en 1862, se estableció un poder judicial nacional con
Iacreación de IaSuprema Corte de Justicia. Lanecesidad de dar tratamiento
a Ias criticas de inutilidad y obsolencia de Ia legislación vigente en el país
implicó Ia sanción en 1863 deIa ley 49 dedelitos federales, yIa redacción de
los distintoscódigos nacionales. Si biense concretó Iasancióndei código de
comercio en 1862, y también dei código civil en el ano 1871, no sucedió Io
mismo con el proyecto dei código penalencargadoal jurisconsultoTejedor. ^

Descripclón de Ias normas tempranas en matéria penai: Levaggl A., Historia


dei derecho penal argentino, Buenos Aires, 1978. Para un análísis dei proceso
de codificación es indispensable ver; Tau Anzoátegui V., La codificación penal
argentina. 18J0-1870. Mentalidad Social e ideas jurídicas, Buenos Aires, 1977.
Barreneche O., Dentro de Ia ley todo, op.cit p. 10-101.
Ibid., p. 117.
La comisión encargada de analizar el proyecto dei código penal, finalmente for
mada en 1869, se expidió 12 anos más tarde redactando un nuevo texto penal.

La sanción dei código penai en Ia província de Buenos Aires:...


EI gobierno de Ia província de Buenos Aires, ante el crecimien-
to demográfico dado con Ia diversificación de Ia estructura producti-
va, implemento en Ia década de 1870 medidas para afianzar el orden y
mejorar Ia administración de Ia justicia. Se consideraba indispensable
Ia sanción de un código que rigiera en matéria penal para afianzar el
respeto de Ia ley. Las causas aducidas al proponer su adopción se centra-
ban en que Ia parte más importante de Ia sentencia, aquella que impone
Ia pena, no podia fundarse en ley alguna, porque las penas establecidas
por Ia legislación existente eran bárbaras y por Io tanto inaplicables.'®
Un jurista remarcaba Ia brutalidad de estas leyes, que en el caso de ho
micídio prescribía "el que mate a otro, aunque sea en pelea, muera por
ello" dando margen al "arbítrio judicial". Arbítrio entendido como Ia
capacidad que los juristas tenían para modificar aquellas penas consi
deradas irracionales, era ese margen dei que gozaban para decidir Ia
penalidad a aplicar, que por ejemplo en el delito de homicídio simple,
dice un jurista, variaba entre cinco a diez anos de prisión. Terminar con
Ia incertidumbre de Ia penalidad que correspondia a cada delito, y por
Io tanto con el arbítrio judicial, eran las causas que llevaron a Ia sanci
ón dei código penal, considerándose que a pesar de no ser perfecto era
preferible al caos legislativo existente. En el periodo que se abrió con su
sanción se consolidara Ia idea de que Ia aplicación dei texto expreso de
Ia ley era Ia manera más justa de administrar justicia."

Al respecto Levenne R., Historia de derecho argentino, Buenos Aires, Guillermo


Kralf, 1958, tomo 10.
Entre 1877 y 1882 las províncias, amparándose en ia potestad que le daba
Ia constitución de redactar códigos propios mientras no Io hiciera ia nación,
fueron sucesivameníe adoptando este proyecto como código penal, consti-
tuyéndose en el primer texto normativo que adquirió otro alcance. Sobre Ia
implementación dei proyecto dei código penal de Tejedor como código penal
en diferentes províncias, con las modificaciones respectivas ver: Nilve M., El
proyecto de Tejedor en el derecho pátrio argentino. Revista Instituto historia dei
derecho, nro 7, Buenos Aires, 1955-1956; Para un estúdio más amplio: Bassalo
C., "La codificación penal argentina, 1876-1882" Revista Instituto de historia
dei derecho, nro. 34, 1998 .
El análisis dc Ia práctica judiciai demuestra que ese arbítrio judicial anterior al pe
ríodo codificador no debe pensarse como elmero capricho o discrecionalidad de
los jueces. Porejemplo en Iainstância de Iajusticia de pazéste estaba influído no
solo por Ia sabiduría técnica o legal, sino también porelconocimiento profundo
de las circunstancias locales, ver Palacio J, M., La Pazdei trigo ...op.cit, p. 227.

Sociabilidades, justiças e violências:...


Los presupuestos de Ia escuela clásica que impulso Ias ideas deci-
monónicas de castigo civilizado eran los principios que se sustentaban
en el código penal. Conjuntamente con su sanción se habían empren-
dido otras medidas punitivas como ia creación de prisiones en el lugar
donde residia cada juzgado dei crimen, y Ia inauguración de Ia peniten
ciaria de Buenos Aires, que representaba Ia prueba dei compromiso de
Ia nueva nación con la reforma dei castigo largamente esperada.'^ Estas
políticas que intentaban brindar mayor seguridad jurídica y controlar
el problema delictivo en un contexto definido no sòlo por un intenso
proceso migratório, sino también por una población rural que en gran
parte estaba dotada de una alta movüidad, implicaron a la par câmbios
en la institución policial. Ante laprecariedad derecursos materiales yla
dificultad de dotaral plantei policial demayor profesionalismo, sele dió
en el ano 1878, una nueva organización y distribución de su personal.
Reestructuración que tenia por objetivo ejercer mayor vigilância en el
área rural que posibilitara una mejorprotección dela propiedadprivada
y seguridad individual, pero que tuvo escasa efectividad prácticadada la
composición dei personal y la escasez de recursos económicos.El plan
tei era reclutado en gran parte entre los mismos detenidos, exigiéndose
solo como requisito paraocupar elcargo desargento quesupieran andar
a caballo, usar armas y gozaran de una buenaconducta. En definitiva, el
proceso en el que el estado intentó consolidar su poder institucional no
estuvo exento de dificultades y obstáculos, que limitaron materializar
una presencia estatal más efectiva.

Deteniéndonos en el nuevo código penal, este estaba presidido


por la idea de que únicamente se reputaban crímenes, delitos y contra-
venciones aquellos actos reprimidos por la ley, y que los autores solo
podían ser sancionados con penas legales.'^ Susanción no significó que
pasara a ser el único corpus legal que rigiera en matéria penal, no com-
prendía los crímenes y delitos dei fuero militar, ni los de imprenta, ni

Caimari L, Apenas un delincuente... op. cit. El funcionamiento de la institución


penitenciaria difirió mucho de ias expectativas de su creación.
Chichizola M, Historia dei derecho penal argentino, Ed. Esbaola, Colección Div.
Estúdios de la Universidad dei Salvador., 1965.Una síntesis de Ias principales dis-
posiciones dei proyecto en Jiménez de Assua, Tratado de derechopenal, editorial
Lozada, tomo 1,4 ed.; Soler S., Derecho penal argentino, la ley, Buenos Aires, 1945.

La sanción dei código penai en la província de Buenos Aires:...


legislaba en matéria de contravenciones. " Continuo vigente Ia ley 49,
que designaba los delitos de competência de los tribunales nacionales
(piratería, sedición, rebelión, traición, etc.), y también ei código rural
sancionado en 1865, por el que se regían los jueces de paz de campana
para aplicar penas en delitos como abigeato y también en matéria poli
cial. Su sanción tampoco implico que dejaran de estar en vigência leyes
quecontuvieran una penalidad mayor que elmínimo de Ia penaqueeste
código fijaba, y además desproporcionada en relación a Ia gravedad de
Ia infracción. Por ejemplo, el código rural penalizaba Ia vagancia a tres
anos al servicio de Ias armas, mediante un procedimiento judicial que
en Ia práctica se caracterizaba por graves irregularidades: el imputado
no tenía defensa, juzgaba un jurado, no había posibilidad de apelación.
El mismo se contraponía a Ias ideas liberales de Ia penalística argentina
que abogaba por Ia proporcionalidad de Ia pena y Ia igualdad ante Ia ley,
también a los preceptos de Ia constitución nacional y provincial, violan
do Ias garantias individuales y Ia independência de poderes.''^ La nece-
sidad dei estado de control social de Ia población rural, como también
de hombres para destinos como Ia frontera. Ia policia y el recientemente
creado batallón de guardia de cárceles, explican porque estas leyes solo
cayeron en desuso después de Ia eliminación de Ia frontera.

El jurista Rivarola critico Ia falta de uniformidad de este proyecto, que fue apli
cado con escasas modificaciones como código penal nacional en 1886: Rivarola
R, Exposición y crítica cid código penal de Ia República Argentina,edit. Lajouane,
Buenos Aires, Tomo 1, 1890, p. 9. También dei mismo autor Derecho penal
argentino, ed. Hijos de Reus, Madrid, 1910.
Sobre Ia doctrina penal argentina Alvarez CoraE., "La gênesis de Ia pcnalistica ar
gentina 1827-1868", Revista de Historia dei derecho,nTO. 30,Buenos Aires, 2002.
ElCódigo Rural se habiacreadocon elobjeto de respondertanto a losinlereses
de un aparato productivo que necesitaba afianzar ia propiedad privada y crear
un mercado de trabajo, como a Ias necesidades dei estado de control social.
Reguiaba los derechos de Ia propiedad. Ia relación entre terratcnientes. Ia or-
ganización de Ia policia rural y Ia vinculación entre empleador y trabajador.
Muchas de sus normas cayeron en desuso ya para Ia década de 1880. Sobre el
procedimiento de Ia justicia de paz en relación a Ia vagancia sc puede ver un
trabajo nuestro en prensa. "La aplicación de Ias disposiciones dei código rural
en torno a Ia vagancia en el ocaso de Ia frontera; 1872-1882", en Trabajos y Co-
inunicaciones, Univ. La Plata.

Sociabilidades, justiças e violências:...


En síntesis, el análisis de toda Ia normativa vigente permite obser
var que el estado sanciono un nuevo corpus jurídico que al determinaba
Ias conductas ilícitas previstas como delitos y Ias circunstancias de su
realización limitaba su potestad de castigo. Si embargo, si por un lado se
mostraba preocupado por respetar Ias garantias individuales brindan
do una mayor seguridad jurídica, por el otro continuo permitiendo Ia
vigência de otro ordenamiento legal, como era el código rural, que con-
tenía penas que no solo no se deducían dei nuevo código penal, sino que
además eran desproporcionadas en relación a Ia infracción. La \igencia
por ejemplo de Ias leyes de vagancia entre los anos 1878 a 1881, en que
cayeron en desuso, estuvo determinada por Ia utilidad que reportaban a
los fines dei estado en un momento preciso de expansión de Ia frontera,
evidenciando Ias contradicciones de Ia práctica jurídica.

LA ADMINISTRACIÓN DE LA JUSTICIA
En el período tratado los jueces de paz continuaban aún sin con
formar una burocracia profesional, no eran rentados, sino que eran los
mismos vecinos dei partido donde ejercían sus funciones. Estos seguían
teniendo Ia facultad de litigar en todos los conflictos menores que se
suscitaban en su jurisdicción, causas civiles y robos de poca cuantía.
Caso contrario debían instruir el sumario de manera rápida y remitirlo
al juzgado dei crimen correspondiente. Los subalternos dei juzgado de
paz, alcaldes y tenientes, quienes eran también vecinos dei lugar, aún en
los primeros anos de Ia década de 1880, eran los primeros en acudir al
lugar si el hecho criminal se había cometido en el área rural, ejerciendo
un papel relevante en detener a los imputados, en recabar Ias primeras
informaciones y en Ia citación de los testigos, dado que Ia policia solo
gradualmente fue asumiendo Ia función de auxiliar de justicia que le
había sido asignada en el anol880.'^

Generalmente se pasa por alto el papel relevante que aún después de creada Ia
policia continuaron teniendo estos subalternos como agentes dei orden en el
área rural. En ellos siguió recayendo Ia responsabilidad de conservar Ias prue-
bas de Ia escena dei crimen, Io que generalmente nunca hacían dado sus esca

la sanción dei código penal en Ia província de Buenos Aires:


El análisis de los expedientes judiciales no evidencia que después
de entrar en vigência ei código penal existiera una mayor prolijidad en
Ia sustanciación de los sumários. Prevalecieron Ias mismas irregulari
dades en su formación que imposibilitaban terminar con Ia morosidad
que caracterizaba los procesos. Continuaron remitiéndose estos sin el
certificado médico de heridas o sin Ia partida de defunción, en su re-
emplazo los jueces dei crimen siguieron solicitando un certificado bajo
juramento de dos personas que vieron Ias heridas de Ia victima y en
caso de fallecimiento de quienes le dieron sepultura. No solo se remitían
incompletos y con una información muy elemental, sino que además
no era raro que se instruyeran con errores de procedimiento graves, sin
Ias declaraciones de los testigos bajo juramento y sí Ia dei imputado,
Io cual estaba prohibido.'® Tampoco se adoptaban medidas periciales,
como el análisis de Ia escena dei crimen, el envio de pruebas materiales
dei hecho, todavia se recordaba a los jueces de paz que debian enviar
el arma homicida. Aún en los primeros anos de Ia década de 1880 era
común que se sepulten los cadáveres de Ias personas muertas violen
tamente sin antes cumplir con Ias formalidades legales de constatar Ia
naturaleza de Ia herida y el número y situación de ellas.'^ En una causa
el mismo juez preguntaba al procesado quien habia visto Ias heridas de
Ia victima, quien Ias habia constatado y quien le habia dado sepultura.
Razones que en otra causa de homicídio llevan al fiscal a preguntarse
iqué heridas presentaba el cadáver? ^Los golpes provocaron Ia muerte?
"Nada se sabe senor juez, porque el sumario nada dice al respecto"-° En
síntesis, en Ia mayoria de los casos los jueces debian contentarse con
pruebas muy elementales y deficientes que limitaban, y a veces hasta im
posibilitaban, Ia comprobación dei cuerpo dei delito como de su autor.

sos conocimientos en Ia matéria. Sobre Ia estructura de Ia justicia de paz en Ia


segunda mitad dei siglo, se puede ver: Palacio, J. C. La paz dei trigo... op. cit.
Los problemas parecen ser comunes en todos los juzgados, así Io demuestra Van
Hauvart C., quien remarca estos inconvenientes en el juzgado dei crimen de ca
pital, ver: "Administración de Ia justicia en el departamento Capital... op. cit.
Expediente criminal Eusebio Dure por muerte a Sixto Lopez, Júlio de 1884.
El Juez considera que a falta de informes médicos sobre Iacausa de Ia muertey
dado que Iavictima no murió en el acto no hayprueba bastante que demuestre
el homicídio. Expediente criminal Octaviano Montes por muerte 14/6/1883.
Esta causa ejemplifica Ias razones porque se perdían Ias pruebas dei cuerpo dei
delito: José Maria Peraltaencontro un cadáver en el campo, denuncio el hecho

Sociabilidades, justiças e violências:...


Es importante destacar Ias razones de Ia falta de cumplimiento de
Ias diligencias procésales para comprender el funcionamiento dei apara
to judicial en su conjunto. La justicia de paz continuaba conformada por
jueces legos y los subalternos, alcaldes y tenientes, tenían escasa instruc-
ción en Ia matéria. La creaclón de Ia policia como auxiliar de justicia no
implico un cambio, no solo porque asumió estas funciones de manera
gradual, sino también porque sus funcionários tenían escasa instrucción
en Ias técnicas procésales. Asf en 1882 un comisario inspector se discul-
paba por anticipado en los errores quepudiese haber incurrido al instruir
el sumario dado su falta de experiência en Ia matéria, los cuales fueron
tomar Ias declaraciones de los testigos sin juramento que no pudieron
ratificarse. A Ias características dei personal judicial y policial se suma-
ban los escasos recursos econômicos y de personal de Ias instituciones
de coerción, que dificultaban responder a Ias diligencias encomendadas
no solo de manera correcta, sino también rápida. También contribuían a
estos inconvenientes Ias grandes distancias y Iamovilidad geográfica de Ia
población rural. Dado que los testigos en su mayoría eran jornaleros sin
domicilio fijo, se demoraba y hasta imposibilitaba ampliar indagatorias,
hacer ratificaciones, como salvar declaraciones que no habían sido hechas
en Ia debida forma.^^ Un jurista sintetizaba esta realidad afirmando que
generalmente los jueces de paz omitían practicar diligencias esenciales
para establecer como sucedió un hecho criminal, pues no esclarecían los
puntos oscuros y contradictorios de Ias declaraciones, que los interroga
tórios eran siempre deficientes, formulados en ofícios y después de un

a Deferrari (un vecino) y este Io puso en conocimiento dei alcalde, sin perjuicio
de levantar el cadáver y hacerlo conducir a Ia casa denominada el lucero. Don
Juan Portella procedio a inhumar el cadáver de Carriso en inmediaciones de su
casa. Según los testigosel cuerpo presentabauna herida, "que suponen que haya
sido Ia causa de Ia muerte".El juez absuelve porque "no esta comprobado el cuer
po dei delito, ni hay informe pericial que compruebe que Ia herida pueda impu-
tarse a una mano extrana, ni que ella haya sido Ia causa de Ia muerte": Expediente
criminal: Sotelo Ignacio sospecha de homicídio a Carriso, 21/1/ 1884.
Las dificultades de Ia policia se centraban en Ias características dei personal, en
el número escaso de efectivos y en Ia multiplicidad de funciones a cargo de Ia
institución, al respecto ver un trabajo nuestro anterior "La perdida gradual
de las funciones coercitivas dei juzgado de paz: Ia creación de Ia institución
policial en Tandil: 1872-1900", Aniiario Segretti, Córdoba, 2006.

La sanción dei código penal en Ia província de Buenos Aires;..,


tiempo mas o menos largo, exponiendo frecuentemente a que los testigos
se ausenten o que sus declaraciones sean influenciadas por otras, o medi
tadas y convenidas para alterar Ia verdad.-^
Sin bien Ia morosidad en Ia tramitación de Ias causas judiciales se
centraba principalmente en Ias deficiências en Ia instrucción sumariai de
los juzgados de paz, también a ella contribuía Ia justicia dei crimen. Esta
esperaba más que un tiempo prudencial para reiterar el primer oficio re-
mitido, y solo después de vários ofícios reiterados amenazaba con un aper-
cibimiento a Ia Corte Suprema, poniendo en evidencia la escasa autoridad
de la que gozaban.^'^ La tolerância en esperar el diligenciamiento de los
oficios encomendados que paralizabaIas causas es sugestiva, y encuentra
explicación en los escasos empleados asignados a la justicia dei crimen,
la cual contaba con un solo secretario. También contribuían a prolongar
ias causas Ias demoras en evacuar los traslados de manera rápida los de
fensores de pobres, la feria, los câmbios de juez si este había tomado parte
en la causa en calidad de abogado o fiscal, o como excepción, en errores
de procedimiento en que incurrían también los jueces. Sin embargo, la
segunda instância encargada de revisar Ias causas elevadas en consulta o
apelación se caracterizo por ser más expeditiva.^^
Los câmbios en el derecho penal no fueron totales dado que no
se legislo en matéria procedimental, y como dice Al Ross, es necesario
tenerlo presente se quiere crear un derecho que armonice con los fines
sociales deseados.^^ En 1881 Ias críticas de la prensa apuntaban no

23. Expediente criminal: Barrera José por muerte, 1/1885.


24. En el ano 1885 se reitero cuatro veces un oficio en un período de seis me
ses. El fiscal pidió que se dejen sin efecto Ias diligencias encomendadas porque
careceria de resultado práctico insistir en su reiteración: Expediente criminal:
Eusebio Dure por muerte a Sixto Lopez, julio 1884.
25. El personal dei juzgado dei crimen se mantuvo inalterable, contando con un
solo secretario, un fiscal, un abogado defensor y un juez en Io criminal. Entre
Ias causas en Ias que el juez incurrió en errores, especialmente ver: Expedien
te criminal Pedro Sáez por heridas a Nicanor Roldan, Septiembre 1878. So
bre la prolongación de los procesos a causa dei abogado: Expediente criminal
Larre Martín por muerte a Cayetano Parinni: el abogado tenía la causa desde
4/12/1880 y falló el 4/5/1880. También, Expediente criminal Bermúdez Maruri
y Campos por heridas, 21/8/1879: El defensor tenía la causa desde 22/1/879 y
el 1/4/1880 se le llama la atención por no haber fallado.
26. Al Ross, El derecho y la justicia, Eudeba, Buenos Aires, 2005.

Sociabilidades, justiças e violências:...


solo a ia morosidad, sino también a Ias características dei proceso. La
incomunicación, el sumario secreto y Ia confesión bajo promesa de decir
verdad, asegura el Diário el Nacional, son practicas que todavia rigen y,
como si esto no bastara, el juez sumariante es el mismo que sentencia Ia
causa. " Ia justicia criminal es aterradora", y no por culpa de los jueces,
sino de Ias leyes " viejas, absurdas y atentatórias" a que tiene que someter
sus procedimientos. El gobierno respondiendo a Ia necesidad de una re
forma integral, nombró una comisión para Ia redacción de un código de
procedimientos. Si bien no Uegó a sancionarse, los temas encomendados
como urgentes resumen los problemas de Ia administración judicial de
ese entonces: Ia abreviación en los juicios, fijando términos perentorios
para que concluya el sumario y para que se dé fallo definitivo, fijación de
términos para que Ias autoridades subalternas evacuen Ias diligencias que
se le confían, sanción para quienes dejen vencer esos términos sin cum-
plir con los deberes impuestos, división de sumario y el plenário para que
haya un juez que averigue el delito y otro que juzgue y falle, etc.-'
El caso de Juan Lemus es representativo de Ia realidad de Ia ad
ministración judicial. Con 11 anos fue procesado por heridas en el ano
1885, el tiempo que paso en prisión no estuvodeterminado por el delito
cometido sino por Ias irregularidades en Ia conformación dei sumario.
El no cumplimiento de Ia justicia de paz de los oficios remitidos para
subsanar sus deficiências, como era el envio dei certificado de heridas,
paralizaron Ia causa por seis meses. Recién después de ese tiempo el
fiscal opinó que dado el período transcurrido no era justo seguir el su
mario,pues por Iaedad dei imputado el código fijaba una pena máxima
de un afio y Juan Lemus ya habia sufrido una prisión preventiva de
casi el doble de ese tiempo, más precisamente de un ano y diez meses.-"
Dadas Ias características de Ia administración de Ia justicia era
importante contar con un abogado privado, que con su reclamo posi-
bilitara acelerar Ias causas que se encontraban paralizadas en Ia espera
de respuesta de diligenciamientos remitidos a Ia justicia de paz. Así se

LevaggyA., "La codiíicación dei procedimiento criminal en Ia Argentina en Ia


segunda mitad dei siglo XIX" Revistade historia dei derecho^ Buenos Aires, nro.
11, 1983 p. 166-167.
En cl expediente de Lemus Juan por heridas a Ruperto Escudero de 21/11 /1885.

La sanción dei código penal en Ia província de Buenos Aires:...


quejaba un defensor porque hacia más de seis meses que su defendido
había prestado declaración indagatoria y todavia Ia causa no había pa-
sado a plenário por falta de envio dei certificado médico y Ia partida de
defunción. En ei periodo en que se abria Ia causa a prueba, Ia actuación
de este funcionário era fundamental, no solo para solicitar diligencias
al juzgado de paz en el objeto de reunir Ias pruebas, sino también en
reclamar que estas sean respondidas antes de vencido dicho plazo, dado
que caso contrario se Uamaba a autos para sentencia. Asi, ante Ia queja
de un abogado el fiscal opina que "no puede imputarse al acusado o su
defensor Ia inobservância por los jueces de paz de Ias ordenes que Ud.
les dieta," solicitando reiterar nuevamente el oficio remitido, aunque es-
tuviera vencido el plazo.
En sintesis, el estado provincial para modernizar el derecho penal
creó un nuevo ordenamiento jurídico que no se acompano de Ia crea-
ción de un moderno sistema judicial. La formación de Ia policia como
auxiliar de justicia y Ia descentralización judicial con Ia creación de un
nuevo juzgado dei crimen, fueron reformas que se operaron sobre Ia es-
tructura judicial existente (jueces legos-jueces letrados), no reportando
câmbios que permitieran mejorar Ia administración de Ia justicia, dado
que Ia primera no se profesionalizó.^^ La justicia de paz continuo rigi-
éndose por el código rural y por critérios de procedimientos más im
pregnados por valores sociales que positivos, pues lejos de formar una
burocracia profesional su capacidad de acción estaba sometida a res-
tricciones sociales en Ia medida que eran a un mismo tiempo, emisarios
dei poder central y portavoces de los vecinos.^® Tampoco se percibe una
mayor autoridad ni control de los jueces letrados hacia Ia justicia lega.

Como dice Van Hauvart Ia misma normativa procesal impidió al juez de pri
mara instância resolver con mayor celeridad Ias causas entradas a los juzgados,
especialmente por ser articuladores entre Ia justicia lega y Ia letrada. No cree-
mos como este autor, que ia justicia de primera instância tuviera un control
efectivo en Ia supervización de Ia justicia de paz. Van Hauvart, C., "La adminis
tración de Ia justicia... op. cit.
Esto es remarcado por Fradkin R., para Ia primera mitad dei siglo, y parece que
aún sigue siendo así en este período. Ver Fradkin R., " Tumultos en Ia pampa
", ponencia Jornadas Interescuelas y Departamentos de Historia, Córdoba, sep-
tiembre de 2003.

Sociabilidades, justiças e violências:...


que en más de una oportunidad falló en casos que no eran de su estricta
competência. Asimismo, Ias transformacíones en matéria de legislación
no fueron totales, dado que no se sanciono un código de procedimien-
tos en matéria penal. En definitiva, en el período de codificación penal
no se aseguró a los procesados que estuvieran imposibilitados de salir
en libertad bajo fianza un período de prisión preventiva menor. Al mo
mento de Ia sentencia por delitos menos graves ya habían compurgado
Ia pena, y en algunos casos hasta con exceso de prisión.^'
Si el sistema judicial se reflejaba opresor con el imputado en Ia
morosidad de los procesos no implicó que también Io fuese a Ia hora de
aplicar sentencia. Se respetara el principio de inocência y el de favorecer
al imputado ante Ia duda, aún a pesar de que el procedimiento de reco-
lección de Ias pruebas era muy deficiente dadas Ias características de Ias
instituciones judiciales, Io cual daba mayor posibilidad de libertad al
imputado o a una aplicación de Ia penalidad más leve fijada por el delito
de homicidio.^^

LA APLICACIÓN DEL CÓDIGO PENAL


La sanción dei nuevo código penal tenía por objetivo terminar
con Ia incertidumbre de Ia penalidad que correspondia a cada delito,
producto de los diferentes ordenamientos jurídicos. A partir de 1877
fue consolidándose Ia idea de que Ias leyes en general, y los códigos en
particular, se habían convertido en el objeto excluyente dei estúdio y
de Ia reflexión de los operadores jurídicos, Io cual derivó en Ia apari-

Por ley en el ano 1878 se restringió Ias posibilidades de salir bajo fianza a pesar
de que Ia sustanciación de Ias causas se siguieron prolongando.
El principio que prescribía Ia absolución en caso de duda y Ia prohibición de
ser acusado otra vez por el mismo delito estaba preceptuado en Ias partidas
y son princípios que llegaron hasta nosotros. Maier, J., Derecho procesal pe
nal Argentino, Fundamentos. El derecho procesal penal como fenômeno cultural.
Hammurabi, Buenos Aires, 1989, Tomo I ,vol. B, p. 67. El principio de Ia duda
estuvo en determinados períodos relegado en Ia práctica judicial, por ejemplo
en Ias primeras décadas de Ia independência, al respecto ver Barreneche O.,
Dentro de Ia ley iodo... op. cit p. 130.

La sanción dei código penal en Ia província de Buenos Aires:...


ción de formas cerradas y reduccionistas de trabajar con el derecho. El
juez no podia desplegar un ejercicio intelectual que fuese mas allá de
Io dispuesto en los preceptos codificados. En ellos estaba depositada Ia
responsabilidad de consolidar Ia interpretación de Ias leyes y de fijar una
verdadera inteligência dei código merced a Ia formación de un cuerpo
de doctrina que haga autoridad. Si bien se intentó cerrar Ia via a otras
formas de creación juridica como Ia doctrina de autores, Ia jurisprudên
cia y Ia costumbre, el análisis de los expedientes judiciales vislumbra
que el triunfo de esta cultura no fue inmediato.

En Ia práctica juridica anterior a Ia codificación, Ia dispersión de


Ias fuentes o el anacronismo de los preceptos de Ia legislación castellano
indiana hacían indispensable a los magistrados el empleo de diferentes
métodos para arribar a soluciones compatibles con los princípios dei
derecho moderno. Entre Ias fuentes a Ias que recurrieron se encontra-
ba el proyecto dei código penal/'' que se habia convertido en un texto
didáctico de ensenanza en Ia universidad y en una pieza infaltable en
Ias bibliotecas jurídicas.^^ Por Io tanto, Ia sanclón de este corpus legal
no representó un quiebre abrupto ni total en Ia administración judicial,
pero no solo porque este era conocido y utilizado en Ia práctica por los
juristas como doctrina, sino también porque Ia antigua legislaciónde Ias
partidas continuó aún vigente.
El análisis de los expedientes judiciales evidencia que los juristas
se cineron de manera rápida a Ia letra expresa dei nuevo código en Ia
parte de Iasentencia que fija Ia pena, rigiéndose según Iatipificación que
de los delitos y Ias penas este corpus bacia. Si bien en este punto se ma-
nifiesta un inmediato triunfo de Ia "cultura dei código", esto no supuso
que pasara a desdenarse todo aquello ajeno a Ia letra dei mismo, ni que
este pasara a ser el único corpus jurídico dei derecho penal considerado.

La cultura dei código es una "expresión que refiere a una forma de pensar nue-
va que le da un valor absoluto al mismo Tau Anzoategui V., "La cultura dei
código. Un debate virtual entre Segovia y Saéz, Revista de Historia dei Derecho,
núm.26, Buenos Aires, 1998.
Levaggy A., " La interpretación dei derecho en Argentina, en el sigio XIX
Revista de Historia dei derecho, nro.7, Buenos Aires, 1980, p. 72 y 112.
Leiva A., "La ensenanza penal de Carlos Tejedor", Revista de Historia dei dere
cho, nro. 26, Buenos Aires, 1998, p. 207, 208.

Sociabilidades, justiças e violências:...


Dado que todavia no existia una doctrina de propio cuno para interpretar
el código se continuara recurriendo a fuentes doctrinales y legales extran-
jeras, como también al derecho castelJano, indiano y nacional. En maté
ria penal estas fuentes fueron el código penal espanol de 1870 comentado
y anotado por Pacheco, a pesar de que este no había inspirado el código
penal provincial, sino Ia reforma de 1850, también el código francês, en
menor medida el de Baviera y el diccionario de Escriche, además de Ias
notas dei codificador y su curso de derecho criminal. Con respecto a Ia
legislación hispana se recurrirá a Ialegislación de Ias partidas. El hecho de
que haya sido Iacomúnmente utilizada por losjuristas, sumado al influjo
que tuvo en el nuevo corpus legal, implico que en Ia práctica sus preceptos
fueran guias para fundar tanto los alegatos como Ias sentencias. En sín-
tesis, en algunoscasos se recurrió a estasleyes para enfrentar Ias ausências
o vacíos que presentaba Ia nueva legislación, por ejemplo a falta de un
código de procedimientos, como fuente o antecedente ilustrativo,caso de
legítima defensa o presunciones, en otrosse situaban junto a Ia nueva ley
penal para dar fuerza al fallo emitido.

Como remarcamos anteriormente, el derecho penal no sufrió una


transformación total, no solo porque no sebarrió con Ia legislación penal
anterior, sino porque tampoco se legislo en matéria procesal,Ias reformas
hasta el momento solo habían sido parciales. No se habia reglamentado
Ias condiciones que se debian satisfacer para que pueda dictarse y eje-
cutarse sentencia, principalmente aquellas regias que regian Ia prueba y
determinan Ia responsabilidad dei imputado. PorIo cualen Iapráctica, los
juristas siguieron basándose en Ia partida tercera que legislaba en matéria
deprocedimientos para probar Ias causas criminales y suautor. Principal
mente en aquellas leyes quefijaban Iaobligatoriedad de prueba plenapara
condenar, conformada por dos testigos, en Ias que tachaban Ias pruebas
que no podian considerarse, por ejemplo declaraciones de testigos singu-

LevaggyA., "La interpretación dei derecho en Ia Argentina, op. cit p 107.


El análisis de toda disposición penal destaca en ella dos partes: el precepto y Ia
sanción. Elprecepto es, ordinariamente, Iadescripción sintética de un modo de
conducta; un modo de conducirse que es precisamente el de delincuente. ver:
Soler S., Derechopenal argentino, op. cit p. 121 y 122.

La sanción dei código pena! en Ia província de Buenos Aires;...


lares, sin juramento, sin dos testigos que Ia presencien, si eran menores de
edad, si eran familiares, si ei testigo se contradecía, etc.
Deteniéndonos en Ias regias que regían Ia prueba, los expedientes
reflejan que los juristas continuaron considerando Ia validez de Ias pre-
sunciones para penalizar, dado que Ia nueva ley penal dejó un vació en
Ia matéria, reconociéndolas solo implicitamente. La jurisprudência de
los Tribunales consideraba a Ias presunciones una prueba legal siempre
que rindieran Ias condiciones de ser precisas, vehementes y concordan-
tes, es decir que no arrojaran dudas sobre Ia culpabilidad dei imputado,
conciliando de esta manera esta prueba con el principio preceptuado en
la antigua legislación de Ias partidas que exigia plena prueba para con
denar, clara como la luz y que por más que haya senales que justiíiquen
alguna sospecha mientras la prueba no sea cierta, manifiesta y positiva,
" en que non venga ninguna dubda", no debia imponerse pena alguna.
Este principio guiara tanto a los juristas como los abogados ya sea para
rechazar o aprobar la penalización sobre la base de presunciones. Asi un
camarista alega"el vació de nuestra ley en esta matéria Io llena la ley anti
gua no derogada, pues .. en todo pleito non debe ser cabido solamente
prueba de senales e de sospechas". Cita diferentes leyes de partidas que
excluyen toda condenación por solas sospechas. Ias excepciones y Ia ma
nera de probar los pleitos criminales.^^ Determinar la culpabilidad en
base a presunciones era difícil dado que la recolección de evidencias en
los procedimientos se caracerizaba por una gran pobreza, i Cómo actua-

Lapartida tercerase referia a laadministración de lajusticia, al procedimiento civil,


siendo su tema principal el proceso: Ias personas que intervienen en el juicio y el
procedimiento conforme al cual se tramita. Sucesivamente analiza al demandante
y demandado; los jueces y abogados; los plazos y médios de prueba y Iassentencias,
etc. Expediente criminal Larre Martin muerte a Cayetano Parini, 1879.
El camarista trae a colación distintas leyes que se refierena la prueba la ley7, titulo
31, partida 7; "debe imponerse castigo después de confesado o probado en juicio el
delito y a ninguno por sospechas senales o presunciones" "ley 9 tituloSl partida 7
"y no estando ei delito claramente probado siendodubdoso debe el juez inclinarse
masa absolber quecondenar al reo". La razón deesta ley es la misma que domina
a Iasanteriores; "por ser mas justo dejarsin pena al que la merezca, que imponerla
al inocente". La ley 10 titulo 11 partida 3 "dice Io mismo que Ias anteriores, con la
especialidad que manda a absolver al reo por faltar prueba completa." Expediente
criminal Alvarez Pedro por sospechas de homicidio 10/9/1878.

Sociabilidades, justiças e violências:...


ron los juristas frente a esta realidad, respetaron el espíritu de Ias partidas,
el principio de inocência y el de favorecer ai imputado ante Ia duda? Los
expedientes evidencian una preocupación por ello, aunque esto implicara
una mayor posibilidad de libertad dei imputado.
El caso de José Santos acusado de homicidio en su esposa es re
presentativo en ese sentido. Santos avisó a sus vecinos que al llegar a su
rancho encontro a su mujer muerta en su casa. El alcalde y los vecinos
fueron los primeros en llegar a Ia escena dei crimen con algunos veci
nos. Se Io detuvo por sospechoso, pues tenía Ia cara rasgunada y sus
bombachas manchadas de sangre, a pesar de que los testigos declararon
que el cadáver estaba duro y Ia sangre coagulada. El negó los cargos que
se le imputaban, aduciendo que los rasgunos se los produjo el mismo en
el estado de desesperación en el que se encontro al ver su mujer muerta.
La instrucción sumaria fue muy deficiente, así Io reconoció el juez
y Io remarco el defensor, faltó el primer informe médico legal, el infor
me de peritos que dieran luz respecto de Ia posición dei cadáver de Ia
victima, si estaba su sangre coagulada, si en los vestidos o su cuerpo
se encontraban senales dei matador, el tiempo que había transcurrido
desde que tuvo lugar su muerte, y si los rasgunos de Santos habían sido
inferidos por el .Tampoco se realizo un prolijo registro de Ia casa, nada
se dijo sobre Ia cuchilla encontrada al lado dei cadáver, y que acostum-
braba a usar Santos, sobre si esta era el arma homicida. El juez mismo
lamento Ia importância que hubiera tenido constatar este hecho, que no
se pudo examinar por haber sido extraviada, junto con Ia vestimenta dei
acusado, por Ias autoridades locales.

A pesar de todo, Santos, fue condenado por considerarse graves


presunciones contra el. Estas fueron los rasgunos dei lado izquierdo de
Ia cara, sus bombachas manchadas con sangre, (Io cual se considero im-
posible dado que los testigos declararon que Ia sangre estaba coagulada).
También se consideraron aquellas presunciones fijadas en Ia legislación
castellana, como flie Ia tentativa de suicidio dei imputado y, aquella que
recae sobre el propietario deunamorada donde es encontrado un muerto.
Como consecuencia de Ia sentencia condenatoria el abogado de
fensor apeló atacando Ias deficiências de Ia instrucción sumariai. En el
alegato desestimó Ias declaraciones de los testigos por carecer éstos de

La sanción dei código penai en ia província de Buenos Aires:...


nociones elementales de instrucción, como leer y escribir. La estratégia
defensiva dei abogado se basó en ias deficientes pruebas periciales que
resultaron de Ias constancias procésales, implicando Ia revocación de Ia
sentencia. La câmara considero Ias gravísimas omisiones dei sumario,
y Io imprescindible que hubiese sido un informe médico para evitar Ias
dudas en relación al estado dei cadáver. La absolución se fundamento en
Ia antigua legislación citada por el defensor, Ia ley 12, titulo 14 partida
3, "que los juzgadores todavia deben estar mas aparejados a quitar los
omes de pena que a condenados en los pleitos que claramente no pudie-
ren ser probados a que fuesen dubdosos".

De Io dicho hasta aqui se desprende que el critério por el cual el


juez llegaba a Ia convicción de Ia culpabilidad o inocência dei imputado
no siempre estaba determinado por el código penal. Como vimos, Ia
comprobación de un hecho criminal continuo basándose en Ia jurispru
dência y en Ia antigua legislación de Ias partidas. Es asi como se aplica-
ron Ias leyes que explicitaban los tipos de presunciones. Ia que precep-
tuaban Ia absolución ante Ia duda y también aquella que preceptuaba
que debía mediar para ello Ia justificación de Ia buena fama dei acusado.
Critérios que reflejan Ia pervivencia dei espiritu de Ia antigua legislación
en Ia práctica juridica. Asi falia un juez que absuelve por legitima defen-
sa fundamentando Ia absolución en Ia falta de testigos presénciales, en
una confesión indivisible, o sea no desvirtuada y en Ia ley de partidas
que se refiere a Ia absolución ante Ia duda por Ia " buena fama
Si continuó en vigência Ia ley que preceptuaba Ia liberación dei
acusado ante Ia duda mediando Ia buena fama, cual era su significado
en este período?. La letra de Ia ley no utiliza este concepto, ni tampoco
generalmente Io hacen los expedientes judiciales, que solo hacen refe
rencia a los antecedentes dei imputado. Por Io alegatos de los defensores

Expediente Santos Jose muerte a Teresa Gramina, Pringles 7/4/1886. En esta


ley se basó un juez en otro caso para absolver a un imputado, porque aunque
" resultan algunos indicios que ponen en duda Ia inocência dei procesado, ellos
no bastan sin embargo para imponerle castigo alguno por estar prohibido ex-
presamente por ia ley 12titulo 14 partida 3.Como también en ia ley 26 titulo 1
partida 7 exige que Ias penas en virtud de Ias cuales deba ser uno condenado a
muerte o a su perdimiento de miembro sean "leales e verdaderas, e sin ninguna
sospecha": Expediente: Soleto Ignacio sospechas de homicidio, 21/1/1884.

Sociabilidades, justiças e violências:...


se puede apreciar Ia importância que estos tenían en Ia formulación de
Ia defensa dei acusado Los antecedentes se refieren a Ia reputación dei
imputado, y esta última implicada mucho más que el haber estado o no
en prisión. La declaración de los mismos vecinos, como también Ias ex-
presiones de los abogados y juristas, posibilitaron desentranar los signifi
cados que este concepto encerrada, como asimismo su importância en Ia
administración judicial. Gozar de buena reputación implicada diferentes
conductas como ser "trabajador", " juicioso", " pacifico" "no encontrarse
en rinas ni ser capaz de provocarlas", contraponiéndose al "vicioso", " mal
entretenido", "camorrero", "pendenciero". Conductas que hablaban dei
honor de aquel entonces y que reflejan a la par Ias preocupaciones de ias
autoridades judiciales hacia practicas sociales que ya desde Ias primeras
décadas dei siglo habían sido concebidas como atentatórias contra el or-
den social y moral.^- Si bien estamos refiriéndonos a un período en el
que el derecho había adoptado la formulación de conductas criminales
abstractas, la reputación continuó aún teniendo importância, tanto al ins
truir el sumario, como a la hora de aplicar Ias sentencias.
Hasta el momento de la sanción dei código penal se aplicaba por
el delito de homicídio simple penas que iban de 5 a 10 anos de prisión ,
según los atenuantes dei caso, entre los que figuraban los buenos antece
dentes dei imputado. Las cosas cambiaron cuando entró en vigência
este corpus jurídico que reducía la posibilidad que los juristas tenían
para morigorear las penas. La nueva ley penal en el delito de homicídio
impusó una pena fija, considerando solo como atenuante la provocaci-
ón dei imputado, que reducía la pena de seis anos a la mitad. Las penas
fijas determinadas en la nueva letra de la ley implicaban, como dice un
defensor, un quiebre abrupto con relación a "la antigua legislación que
permite la atenuación de las penas concurriendo circunstancias favora-
bles". ^Cómo actuaron los juristas frente a esta realidad jurídica?

Expediente criminal: Basualdo Avelinoprocesado por muerte a Clemente Cozza, 1878.


Para ver los componentes de honor en este período ver Gayol S., Sociabilidad en
Buenos Aires, Hombres, Honor y Cafés 1862--1910, Ediciones dei Signo, Buenos
Aires, 2000.
Câmara de apeladones, legajo 48/5, Basualdo Avelino pormuerte aClemente Cozza, 1877.
Las penas fijas suscitaron muchas criticas y llevaron a una mayorelasticidad en
las mismas al sancionarse el código penal nacional en 1886: Roura Gonzalez,
O.,Derecho Penal, Parte general, Tomo 1Abeledo Perrot, 1922.

La sanción dei código penai en la província de Buenos Aires:...


El caso de Avelino Basualdo es representativo porque sucedió al
entrar en vigência esta nueva ley penal. Acusado de homicido, su abo-
gado defensor solicito Ia absolución por legitima defensa centrando su
estratégia defensiva en Ia agresión de Ia victima y también en Ia con-
ducta dei imputado, para ello pidió tomar declaración a los vecinos so
bre su reputación, si sabían y les constaba que Basualdo era trabajador,
modesto y honrado, que nunca se había encontrado en rihas y que era
incapaz de provocadas. El juez considero que para aplicar Ia pena que
legalmente correspondia se debía tener en consideración como causa
de atenuación Ia circunstancia de haberse presentado a Ia autoridad, los
buenos antecedentes de conducta que justifico, como también Ias cir
cunstancias dei delito que no aparecían plenamente esclarecidas por Ia
falta de otros testigos presénciales, por Io cual aplico el artículo 173 que
autorizaba, según sus palabras, el arbítrio judicial, o sea Ia disminución
de Ia pena a dos anos de prisión. Sin embargo, Ia sentencia fue revocada
porque este artículo que posibilitaba reducir Ia pena cuando "uno o vá
rios elementos que constituyen Ia substancia dei crimen, sean inciertos
o incompletos" solo podia ser aplicado en los delitos en que Ias penas
no fueran fijas, aquellas que poseian un máximo y un mínimo como el
de heridas. La câmara impuso una interpretación uniforme al código y
prohibió en el caso de homicídio a los juristas ampararse en este artí
culo para disminuirla. La tensión de esta rigidez penal que apuntaba
al delito y no al delincuente se manifesto en Ias decisiones de Ia misma
câmara en otro caso similar, en vez de revocar Ia condena por haberse
disminuido Ia pena fija. Ia confirma, cambiando Ia calificación dei delito
de homicídio por el de heridas, al considerar que no estaba probado
el cuerpo dei delito, dado que Ia victima murió al dia siguiente de Ia
herida. Las constancias de autos, incluídos Ia reputación dei imputado,
fueron tenidas en cuenta en esta decisión, que si bien no implicó Ia ab
solución por legitima defensa, determinó Ia libertad dei acusado, dado
que al momento de Ia sentencia Ia pena ya estaba cumplida.

Expediente criminal: Torres Loreto por muerte a Martin Cueli 11/4/1882. For-
tín San Martin. Dadas las constancias de autos dei expediente , el hecho de que
Ia victima fuera un comisario, única autoridad en el punto, como también que
respondió a un desorden causado por el imputado parece haber influído en Ia de
cisiónde no absolverlo por legitima defensa, pesarde susbuenosantecedentes, y
sí de sentenciarlo a una pena menor que Ia fijada por el delito de homicídio.

Sociabilidades, justiças e violências:.,.


La penalidad fija fue una de Ias principales criticas que se le hizo al
código penal, pues cada delito por mucho que tuviese analogias con otros
hechos comprendidos en Ia misma calificación era una entidad diversa,
como cada delincuente un hombre distinto de otros.^^ El hecho de que
el código penal no definiera como atenuante dei delito de homicidio ni Ia
ebriedad ni los antecedentes dei imputado, sino solo Ia falta de provocaci-
ón, implicó que los defensores no utilizaran como estratégia el recurso de
Ia ebriedad, sino que alegaran legítima defensa para obtener el sobresei-
miento de su defendido, fundando Ia defensa principalmente en Ia agresi-
ón y en los antecedentes dei imputado. Las sentencias evidencian que ante
Ia duda, más allá de los preceptos dei código penal, continuó jugando un
rol importante además de una confesión indivisible, es decir no contra-
dictoria, también los antecedentes dei imputado, condicionando no solo
los sobreseimientos por legitima defensa, sino también Ia atenuación de Ia
pena fijada en el delito de homicidio.

LA LEGITIMA DEFENSA

La legislación dei período precodificador sobre legitima defensa


era concordante con Ia nueva, y a pesar de que se consideró que conte-
nía esta exención en formula casuística, de sabor arcaico y técnica de
ficiente''^ después de Ia sanción dei código será aún doctrina vigente y
sus preceptos se utilizaran más de una vez para explicar el alcance de Ia
nueva legislación penal. Fue evocada tanto por los abogados en sus ale-
gatos como por el juez en Ia fundamentación de Ia sentencia, y también
en algunos casos se Ia citara junto a Ia nueva ley penal para dar fuerza al
fallo. Esta última situación será revertida por los magistrados con el fin
de dotar de autoridad al nuevo corpus jurídico."'^

Rivarola R., Derecho Penal Argentino, parte general, op. cit p. 455. Estas críticas
principalmente las hará Ia escuela positivista.
Camano Rosa Antonio. Legitima defensa. Alevosía, Dirección Gral. de institu
tos penales, Uruguay,1958, p. 13.
Expediente Domingo Garcia por muerte a Juan Mengochea, 20/1/1880, se ab-
suelve por legitima defensa citando solo las leyes de partidas. Es Ia câmara Ia
que corrobora Ia sentencia, pero de acuerdo solo a Ia disposición dei articulo
152 dei código penal.

La sanción dei código penal en Ia província de Buenos Aires:...


Para eximir de voluntad criminal en ei caso de legítima defensa Ia
ley exigia una agresión injusta, se referia a violências ilícitas y ataques cri-
minales, actuales o inminentes. La agresión debia ser ilegítima, no tenia
que existir Ia provocación, porque si fuera el uso de un derecho no cabria
excepción."''^ Además, tenia que existir Ia necesidad racional dei médio
empleado para impedido o repelerlo, asi se referia el articulo 155 cuando
hablaba de necesidad. La formula empleada por Tejedor exigia de una
manera absoluta que el médio empleado para Ia defensa no podia llevarse
mas allá de Io que fuere necesario para desviar el peligro, previniendo que
serían punibles los médios ofensivos de defensa cuando podia garantirse
dei ataque por una defensa negativa. El código estaba sujeto a restriccio-
nes y explicaciones y dejaba a decisión de los tribunales resolver según Ia
circunstancia dei caso, si Ia trasgresión de los limites de Ia defensa tuvo
lugar solamente por imprudência o por intención criminal.^" En este sen
tido, para analizar si hubo excesode legítima defensa se consideró no solo
Ia naturaleza dei arma empleada en relación a Ia dei agresor"^' y el número
de heridas, sino también los antecedentes dei imputado.
El ejemplo que reproducimos aqui ejemplifica Io que venimos di-
ciendo hasta ahora. Ricardo Saavedra dió muerte a Agustin Vidal y
alegó legítima defensa. Según un testigo Saavedra habia sido insultado
dias antes y desafiado a pelear. El dia dei suceso Vidal fue a provocar al
imputado a su casa, y debido a que Saavedra le cobro cinco pesos que
le debia, Vidal Io desafió a pelear, por Io cual Saavedra le disparó un
tiro, sacando Vidal después el cuchillo, a Io que le tiro un nuevo bala-
zo. Declaró que Saavedra era un hombre trabajador, que no Io ha visto
entretenerse en juegos prohibidos o en vicios. El fiscal alegó legitima
defensa por estar comprobada Ia agresión llevada a cabo en Ia propia
casa dei matador, además remarcó que "el imputado era conocido por
de bastante mala fama, tanto, que sin duda por ello se le llamaba el "nino

Rivarola R., Exposición y crítica dei Código Penal de Ia República Argentina,


tomo 1, ed. Lajouane, Buenos Aires, 1890, p. 131,132.
Rivarola R. Exposicióny critica dei Código Penal de Ia RepúblicaArgentina... op.
cit p. 34.
Hay algunos ejemplos en donde se remarca que Io que importa es el peligro
inminente más que Ia naturaleza dei arma dei atacante, citándose a Ia antigua
legislación. Así también estos ejemplos se encuentran en el juzgado de capital
en 1887, ver: Rivarola. R., Exposicióny crítica dei CódigoPenal... op. cit.

Sociabilidades, justiças e violências:...


diablo" El juez solicito ampliar indagatorias y certificar declaraciones
que demoraron por diez meses Ia causa. El segundo fiscal que intervino,
considero que no hubo agresión, que Vidal no acometió punal en mano,
y que Saavedra no debió salir cuando se le desafiaba, pidiendo una con
dena por homicidio simple. El abogado defensor basó su estratégia en Ia
inviolabilidad dei domicilio y en los maios antecedentes dei imputado,
dijo que: "Saavedra no podia permanecer indiferente, teniendo presente
los antecedentes de Vidal, su conducta para con el los dias anteriores y
Ias promesas criminales que le había hecho. Exigirle a Saavedra que se
encerrara en su propio rancho cuando un hombre que habia amenazado
matarlo Io insultaba y desafiaba en su propio rancho, en su propio ho-
gar, habia sido exigirle Io que Ia ley no puede imponerle."
Siguiendo con este ejemplo iCómo fallo el juez? Vale reproducir
sus palabras " De Ias declaraciones todas de esta causa resulta unáni-
memente que Agustín Vidal era un indivíduo perjudicial y temible. No
trabajaba y vivia dei producto ilicito de su comercio por Ias pampas y
despoblados. Todos Io conocen por camorrero y se llegaba hasta negarle
el hospedaje, que es Io ultimo que se le niega en nuestra hospitalaria
campana. Y que tal opinión dei vecindario era exacta y fundada, Io
comprueba acabadamente el proceso, que, como parte de prueba, se ha
agregado a esta causa. De el resulta que Agustin Vidal, fue condenado
dos anos de prisión por homicidio en rina. La pena impuesta no fue para
el un saludable correctivo y se le ve reaparecer en Guaimini entregado
a sus hábitos pendencieros, que habia ya causado Ia muerte." También
hace referencia a Ia moderación y buena conducta dei imputado. Tales
son, dice, los antecedentes que deben tenerse muy en consideración, de
Ias dos personas, protagonistas en esta causa. Remarco que: "Ias leyes
no pueden establecer regias precisas para determinar en todos y en cada
uno de los casos si ha existido o no el derecho de defensa, el momento en
que nace y Ia amplitud con que se le haya ejercido, dejan a critério de los
magistrados con arreglo a ciertos preceptos generales que estatuyen, Ia
apreciación de los hechos teniendo en consideración Ias circunstancias
especiales de cada caso". El abogado defensor concuerda con el juez,
como Io determina Ia ley de partidas que " Ia legitima defensa no nace
de Ias armas sino de Ia intención manifiesta dei agresor" Sin embargo,
Ia câmara, de acuerdo con el fiscal, revocó Ia sentencia considerando im-
prescindible el análisis de Ia existência de Ia agresión y no al agredido, asi
dijo: "nohayqueconsiderar losantecedentes personales de cada uno, sino

La sanción dei código penal en Ia província de Buenos Aires:..,


Ia legitimidad dei acto de Saavedra en si mismo, puesto que invirtiendo
los roles, si el criminal Vidai hubiera muerto a este, Ia honradez de Saave
dra, no desvirtuaria el derecho ejercitado por Vidal considerando que
no hubo agresión y dio muerte a Vidal porque fue a faltarle a su casa."-^-
E1 caso antes reproducido evidencia Ia existência en Ia práctica
judicial de diíicultades para uniformar Ia interpretación de Ia ley en el
caso de legitima defensa. No era necesario que se dieran Ias tres con
diciones juntas para que se sobreseyera por esta causa y entre Ias cir
cunstancias de cada caso pesaban los antecedentes dei imputado. Como
vimos. Ia agresión siempre fue una condición exigida, no bastaba con
injurias, tenia que ser por via de los hechos. Pero no siempre se exigia
que esta fuera injusta, dado que en algunos casos esta era producto de
Ia provocación dei imputado. En Ia ley, dice Tejedor, hay dificultad en
determinar cuando es injusta una agresión," y al no definirse Ia pro
vocación en el código penal, en Ia práctica hubo critérios dispares en
determinar el alcance de este concepto legal. Asi se exime por legitima
defensa a un imputado que antes de ser atacado le dijo al agresor que
habia robado Ia rastra de botones que llevaba puesta. Su provocación
fue considerada solo una falta grave pero no suficiente para no sobreseer-
le, al cumplirse los otros requisitos a su favor y los buenos antecedentes.
El alcalde informó que el imputado "era muy perjudicial y de malicimos
antecedentes, siendo al contrario Montes hombre honrado y trabajador y
vecino de alguna antigüedad de este pueblo en que con su trabajo perso-
nal gana su sustento"." Similar a otro caso en el que el imputado perdió
el juego y no quiso pagar a Ia victima originando Ia agresión. Testigos
informan que Iavictima "todo el vecindario Io conocíapor mal entreteni-
do pues no trabajaba con nadie solo cuando Ias esquilas, que el resto dei
tiempo Io pasaba en Ias pulperías embriagándose ybuscando camorras...,
que por otras personas sabe que ha estado preso en penitenciaria" que al
imputado Io "conoce como hombre honrado trabajador yjuicioso". Ante
cedentes tenidos en cuenta al fundamentar el pedido de sobreseimiento
el fiscal y al sentenciar el juez, y también fue tenido en cuenta junto con Ia
indivisibilidad de Ia confesión por Ia câmara al confirmarse Ia condena."

Expediente: Saavedra Ricardo muerte a Agustín Vidal, 11/12/1882.


Tejedor C., Curso de derecho criminal, Librería Joiy, Buenos Aires, 1871, p. 57.
Expediente: Montes Octaviano Lastra op.cit.
Expediente: Villarreal Juan homicídio a Juan Diaz 16/10/1886.

Sociabilidades, justiças e violências:...


La rigidez penal chocó con Ia práctica jurídica anterior a Ia codiíi-
cación que dejaba al arbitrio dei juez Ia evaluación de Ias circunstancias
dei hecho criminal en cada caso, en Ia cual los antecedentes dei acusado
jugaban también un papel relevante. Siel nuevo texto legal no preceptu-
aba los antecedentes como atenuantes a Ia hora de aplicar sentencia por
homicidio, en los casos de duda continuaron estos teniéndose presentes
junto con Ia indivisibilidad de Ia confesión para favorecer al imputado,
aún a pesar de no cumplirse el requisito exigido de falta de provocación
o ante Ia existência de indicios de exceso en Ia legítima defensa.

CONCLUSION

El código penal se valió de Ia antigua legislación, su proyecto se


nutre de Ia legislación espanola y Ia mayoría de los artículos contienen
alguna cita de Ia partida o fuero juzgo. Por Io cual no debe sorprender
que los actores intervinientes en Ia práctica judicial continuaran utili-
zándola como guia al administrar justicia. El análisis de los expedientes
judiciales evidencia que Ia doctrina de autores utilizada en Ias notas por
el codificador fue constantemente evocada para interpretar Ia nueva ley
penal, como también Ias leyes de partidas. Si bien el código penal se
constituyó en el único corpus jurídico dei derecho penal en relación a
Ia calificación de los delitos y Ias penas, Ia fundamentación de Ia penali-
zación, el critério que guiaba Ia decisión de los magistrados, continuaba
aún condicionado por Ia legislación anterior.
La manera de probar el hecho criminal siguió regido por Ias leyes
de partidas y Ia jurisprudência. El critério que guió a los juristas fue el
principio de ia ley de partida que ante Ia duda, a falta de testigos, se de-
bía favorecer al imputado, por Io cual se consideró Ia indivisibilidad de
Ia confesión y se exigió que Ias presunciones cumplieran ciertas condi
ciones para ser tomadas como prueba legal de culpabilidad, respetándo-
se el principio de inocência y Ia absolución ante Ia duda. En este período
hubo consenso en aplicarIasideas de Ia ilustración, a pesar de que aún el
procedimiento de recolección de Ias pruebas era muy deficiente, dando
mayor posibilidad de libertad al imputado por legitima defensa, como
también Ia aplicación de Ia pena más leve fijada por el delito de homici
dio. Si por un lado Ia justicia se mostró opresora en Ia morosidad de los

La sanción dei código penal en Ia província de Buenos Aires:...


procesos, por el otro no parece haberlo sido a Ia hora de dictar senten
cia. Sin duda, iran tomando protagonismo aquellas vocês que criticaran
Ia suavidad de Ias penas y apuntaran a Ia necesidad de un aumento de
Ia tasa de penalidad de estas para contener el problema delictivo, Io cual
llevara a que en el ano 1886 a Ia par que se flexibilice esta rigidez penal
se aumenten Ias mismas.

Como dijimos Ia codificación no se produjo en un contexto de


especialización y profesionalización de toda Ia estructura encargada de
administrar justicia, Ia justicia de paz no fue absorbida ni desnaturali
zada, no paso a estar controlada por hombres de ley, sino que continuo
estándolo por los mismos vecinos de Ia comunidad. Su práctica judi
cial estaba más impregnada por valores morales que positivos, siendo Ia
fama un valor muy importante que definia aún Ia pertenencia social a
Ia comunidad. Tampoco implico que en Ia instância letrada Ia actividad
dei jurista se subsumiera a una aplicación mecânica de Ias leyes dei
código penal. En Ia práctica, a pesar de que Ia rigidezde Iapenalidad en
el delito de homicidio dabamenorarbitrio para determinar Ias circuns
tancias de Ia realización dei hecho criminal, se continuó considerando
valores no preceptuados en Ia letra de Ia ley, como los antecedentes dei
imputado. Por Io tanto, Ia actividad de estos también estuvo guiada y
condicionada por valoraciones que no difieren de aquellas que rodean Ia
actividad de los jueces de paz, pues ambos, como letrados o como legos,
fueron ante todo un fenômeno cultural.

En síntesis, los critérios que fundaron Ia sentencia (Ia manera de


probar el hecho criminal, su autor, el principio de favorecer al reo ante
Ia duda, y los antecedentes) reflejan Ias permanências de los preceptos
de Ia antigua legislación y Ia jurisprudência en Ia práctica judicial. En
definitiva, de Io dicho hasta aqui se desprende que si bien en los juristas
recayó Ia responsabilidad de imponer de autoridad al nuevo corpus ju
rídico, este aún no se había constituido en el único corpus dei derecho
penal considerado.

56. Utilizamos ia expresión dada por Alf Ross, El derecho y Ia justicia ... op. cit.
p.130-131.

212 Sociabilidades, justiças e violências:...


(Escuela regeneradora
u oscuro depósito?
La Colonía de Menores Varones
de Marcos Paz, Buenos Aires,
1905-1919
MARÍA CAROLINA 2API0LA

LOS''MENORES" EN EL ESPACIO URBANO

urante el último cuarto dei siglo XIXy Ias dos primeras déca
das dei siglo XX Ia presencia creciente en Ias calles de Buenos Ai
res de ninos y de jóvenes que no encajaban en los roles que Ias éli-
tes políticas e intelectuales de Ia nación estaban definiendo como
los adecuados para ellos en función de su posición etárea y de sus
futuros desempenos como adultos se tornó en motivo de reílexi-
ón y propicio Ia ideación de proyectos destinados a encauzar Ia
conducta de los sujetos cuya situación y cuyo comportamiento
resultaban alarmantes. En efecto, razones de orden material y cul
tural conspiraron para que, en ese periodo, miles de ninos y jó
venes pertenecientes a los sectores populares portenos resultaran
refractarios al rol de alumnos que ia Ley de Educación Común (Ley n°
1.420/1884) auspiciaba para ellos. Por otra parte, muchos fueron ajenos
al destino de precoces trabajadores circunscriptos al espado dei taller o
de Ia fábrica que el grueso de los miembros de Ias élites les asignaron en
razón de su posición socio-económica, y, como miembros de familias
pobres o muy pobres, o como seres extranados de sus familias, encon-
traron en Ias calles de Ia ciudad un espacio donde tramar Ias redes de
Ia sociabilidad y donde desarrollar una serie de actividades -legales o
ilegales, pero indistintamente ilegítimas a Ias ojos de los sectores diri
gentes- que les permitieran Ia supervivencia.'

Es imposible ofrecer una cifra que dé cuenta de Ia cantidad de ninos y jóvenes


que "deambulaban" por Ia ciudad sin asistir a Ia escuela ni hallarse circunscrip
tos a un espacio de trabajo controlado por adultos. No existen registros cuan-
titativos referidos a quienes se desempenaban como trabajadores ambulantes
o como mandaderos, ni se dispone de información que discrimine entre los
menores de edad detenidos por Ia policia por "vagancia", por estado de aban
dono o por Ia presunta comisión de delitos. De cualquier modo, Io que interesa
a esta investigación es que los contemporâneos percibieron esa presencia en Ias
calles como cuantiosa y creciente. Lo que si puede hacerse en base a los censos
de población (nacionales y municipales) y a los censos escolares (nacionales),
es comparar Ia población escolar, que abarcaba a los ninos de 6 a 14 anos, con
Ia que no asistía a Ia escuela. que a los ojos de Ias autoridades constituía un sec-
tor infantil ajeno al control estatal o adulto. Así, en 1904, sobre 188.271 ninos
en edad escolar 126.989 recibían instrucción en Ias escuelas, 617 en fábricas o
talleres, 9.503 en sus casas u otroslugares, 19.506 no recibían instrucción pero
sabían leer y escribir y 4.362 habían salido de Ia escuela antes de terminar los
grados pero sabían leer y escribir; en 1909 según el censo escolar asistían a Ia
escuela 107.822 ninos de los 182.750 que constituían Ia población escolar, en
tanto el censo municipal estableció que de los 206.058 miembros de Ia pobla
ción escolar, 144.697 recibían instrucción en Ias escuelas, 76 en Ias fábricas y
talleres y 11.561 en sus domicílios. Los censistas creían queloscensos generales
de población generaban menos resistências en los entrevistados que los que
trataban especificamente sobre población Ia escolar, y asíexplicaban Iadiscre
pância entre Ias cifras censales. En 1914 sobre una población escolar de 230.438
ninos, 165.964asistían a Ia escuela, 12.230 recibían instrucción en sus domicílios
y 46 en Ias fábricas y talleres en los que trabajaban. Martínez, Alberto, comp..
Censo General de Población, Edificación, Comercio e Industria de Ia Ciudad de
Buenos Aires. Levantado en los dias 11 y 18 de septiembrede 1904, Buenos Aires,
Companía Sudamericana de Billetes de Banco, 1906; Martínez, A., dir.. Censo Ge
neral de Población, Edificación, Comercio e Industria de Ia ciudad de Buenos Aires.
Levantado en los dias 16 al 24 de octubre de 1909, Buenos Aires, Cia. Sud-Ameri-

Sociabilidades, justiças e violências:...


^Qué hacer con ellos? Desde íines de Ia década de 1890 se mul-
tiplicaron en forma exponencial los discursos en los que funcionários
y profesionales solicitaron una intervención específica dei Estado, di
ferente a Ia que cabia esperar para el resto de Ia población infantil, en
Ia educación y en Ia localización de los ninos y jóvenes a los que alu-
dieron como pobres, huérfanos, abandonados, delincuentes, viciosos y/o
trabajadores ambulantes, pero a los que se refirieron cada vez con mayor
frecuencia con el lábil y abarcativo concepto de menores.- Sus proyec-
tos, presentados en el âmbito legislativo o expuestos en publicaciones y
eventos científicos, se estructuraron en torno a dos demandas princi-
pales: el establecimiento de Ia tutela o patronato estatal sobre los ninos
caracterizados como menores (Io que implicaba Ia promulgación de una
ley que habilitara Ia suspensión o Ia pérdida de Ia patria potestad de sus
progenitores en los casos en que Ias autoridades Io consideraran conve
niente), y Ia creación de instituciones estatales de corrección a Ias cuales
enviarlos con el fin de evitar que se desencadenaría contra Ia sociedad Ia
amenaza latente que se condensaba en ellos.^

En ese marco, fue fundada Ia Colonia de Menores Varones de


Marcos Paz, primer reformatorio dei país."' En Ias páginas que siguen

cana de Billetes de Banco, 1910; Martínez, A., comp., República Argentina. Censo
general de Educación levantado el 23 de Mayo de 1909, Buenos Aires, Taileres de
Publicación de Ia Oficina Meteorológica Argentina, 1910, Tomo III; Martínez,
A., pres., Tercer Censo Nacional. Levantado el 1° dejunio de 1914, Buenos Aires,
Taileres Gráficos de L. J. Rosso y Cia., 1916,Tomo 1.
2. A partir de este momento, prescindiremos dei entrecomillado y Ias cursivas
coando empleemos Ias categorias menor o minoridad, en el entendimiento su
carácterde construcciones culturales ha quedado claro para el lector.
3. La posibilidad de que el Estado se transformara en tutor de ciertos menores de
edad quedó establecida en 1919, coando se sanciono Ia Leyde Patronato de Me
nores (Ley n° 10.903), también conocida como Ley Agote en honor a su ins
pirador. Pionera en América Latina y casi contemporânea de Ias legislaciones
europeasy estadounidensede su tipo,institiiyó y reglamentó hasta su derogación
a fines de 2005 Ia tutela estatal sobre el vasto e impreciso conjunto conformado
por los "menores", que en su letra quedaban identificados con todos los ninos y
adolescentes "delincuentes"y/o "material o moralmente abandonados". Porotro
lado, sentó Ias bases para el tratamiento jurídico-penal específico de los menores
de edad acusados por Ia comisión de delitos. Ley de Patronato de Menores, en
Código Civil de Ia República Argentina, Buenos Aires, J. Lajouane & Cia, 1923.
4. Si bien en 1898 se habia creado el Asilo Correccional de Menores Varones de Ia
Capital para separar a los menores encausados y condenados de Ia corruptora

iEscuela regeneradora u oscuro depósito?..,


daremos cuenta de Ias razones que llevaron a su establecimiento, re
construiremos parcialmente su funcionamiento cotidiano, e intentare
mos explicar Ias opiniones discrepantes sobre su desempeno que expre-
saron los contemporâneos en base al análisis de un corpus constituido
por fuentes gubernamentales, artículos periodísticos, una tesis de doc-
torado y algunos artículos publicados en revistas científicas. A través
de estos ejercicios intentaremos dar cuenta de Ia enorme distancia que
medió entre los objetivos y cualidades que gobernantes y profesionales
le asignaron a Ia institución cuando Ia imaginaron y Ias prácticas que en
ella se verificaron, Io que a su vez nos conducirá al problema más gene
ral dei grado de "modernidad" de Ias instituciones estatales considera
das de vanguardia en Ia Argentina de comienzos dei siglo XX.

LA COLONIA DE MENORES VARONES DE MAR


COS PAZ

En junio de 1905 el Congreso de Ia Nación autorizo al Presidente


JuIio A. Roca y al Ministro dei Interior Joaquín V. González a invertir
hasta $200.000 m/n en Ia instalación de una colonia agrícola industrial
de menores varones que reemplazaría al Asilo Correccional de Meno
res de Ia Capital. A tal efecto, el PEN había adquirido dos anos antes el
establecimiento de campo "Cabana Laura", situado en Marcos Paz, pro-
vincia de Buenos Aires, por entender que Ia propiedad reunia Ias con
diciones requeridas para implantar en ella "un instituto destinado á Ia
instrucción práctica de Ia ganadería, de Ia agricultura y de Ia industria,
en el cual pueden instruirse y ocuparse los menores que, por falta de
padres y de hogar, ó por sus malasinclinaciones, necesitan de Ia protec-

companía de los adultos delincuentes con los que compartían su enclerro en Ias
cárceles y depósitos policiales, y para brindaries una educaclón que posibilitara
su regcneración, su organización y desempeno estiivieroncondicionados por Ia
falta de espacio y por Ia escasaidoneidaddei personal a cargo de los dctcnidos,
por Io que incluso sus autoridades, entusiastas defensoras de los logros conse
guidos por el establecimiento, apoyaron con ahínco el traslado de sus instala-
ciones ai âmbito rural, donde, entendían, sí podría desarrollarse cabalmente un
plan de corrección de los asilados.

Sociabilidades, justiças e violências:...


ción dei Gobierno ó de una dirección especial que les inculque hábitos
de trabajo y corrija sus deficiências".-'
Siya a mediados de Iadécada de 1870se habían emitido los primeros
discursosen losque algunos miembros de Ias élites asociaban linealmente
Ia circulación de nines yjóvenes ajenos al control adulto por el espacio ur
bano con su ingreso en el mundo de Ia delincuencia, para comienzos dei
siglo XX esa relación ocupaba un sitiai destacado en Ias representaciones
sobre Ia infancia de los dirigentes intelectuales y políticos de Ia Argentina.
De ahí que Ia posibilidad de aislar a los menores dei decadente âmbito
citadino y de instalados en un nuevo establecimiento emplazado en un
prédio de 702 hectáreas -que además incluía edifícios, instalaciones, par
ques, usina de luz eléctrica, galpones y alambrados- concitara el favor de
los legisladores. Por otro lado, en Ia Colonia seria posible desarrollar todo
tipo de talleres laborales sin tener que contemplar Ias limitaciones edili-
cias características de los asilos urbanos, hecho fundamental si se tiene
en cuenta que Ia regeneración por médio dei trabajo constituía un tópico
central en los discursos de los especialistas y funcionários de diverso ran-
go interesados por Ia construcción de instituciones capaces de prevenir Ia
caída en Ia delincuencia de los menores de edad que, por diversos moti
vos, hubieran desandado los caminos de Ia normalidad.^

Decreto dei PEN dei 30/7/1903, citado por el senador S. Macia en Diário de
Sesiones cie Ia Câmara de Senadores (desde aqui DSCS), Buenos Aires, El Diário,
1905, sesión dei 3/9/1904, p. 406. Esta operación había resultado ventajosa para
el PEN, pues ia propiedad se había adquirido por $421.000 m/n, monto que di-
cho establecimiento adeudaba al Banco Hipotecário Nacional comprendiendo
capital, servicio e inlereses, de modo tal que el gobierno no tuvo que realizar
desembolso alguno. Comunicaciones oficiales, en DSCD (desde aqui DSCD),
Buenos Aires, Imprenta y Encuadernación de Ia Câmara de Diputados, 1904,
Tomo i, sesión dei 5/7/1904.
Para Iasdiscusiones de los contemporâneos sobre Ia función dei trabajo en Ia ree-
ducación de los delincuentes adultos, ver Caimari, Lila, Castigar civilizadamente.
Rasgos dela niodernizacián punitiva en IaArgentina (1827-1930), en Kessler, Ga
briel yGayol, Sandra, comp.. Violências, delitosyjusticias enIa Argentina, Buenos
Aires, Manantial-UNGS, 2002, de Ia misma autora. Apenas uti delincuenlc. Cri-
mcn, castigo y cultura en IaArgentina, 1880-1955, Buenos Aires, Siglo XXI, 2004,
Introducción y Salvatore, Ricardo,Crínn>jo/o^i'fl positivista, reforma de prisiones
y Ia cuestión social/obrera en Ia Argentina, en Suriano, Juan, comp., La cuestión
socialen Argentina, 1870-1943, Buenos Aires, La Colmena, 2000.

íEscuela regeneradora u oscuro depósito?...


Quienes propulsaron el traslado de los menores procesados y con
denados detenidos en el Asilo de Corrección a Ia Colonia de Marcos Paz
insistieron asimismo en Ia urgência de separar a los menores abandonados
de losdelincuentes con losque allí convivían. Así Io expresó, porejemplo, el
senador Salvador Maciá, cuando en su carácter de informante de Ia Comi-
sión dei Interior le tocó defender Iapropuesta en Ia Câmara alta:

[...] Ia Nación tiene Ia obligación apremiante de regla-


mentar de otra manera este asilo de menores; [...] tiene
necesidad de separar los criminales de los que no Io son,
[...], es urgentísimo que ese establecimiento no esté sir-
viendo como sirve actualmente de corrupción, en lugar
de servir de ensenanza; de manera... que [...] se trata
precisamente de eso: de separar los criminales de los que
no Io son y de poder clasificar entre los ninos cuáles son
los que necesitan simplemente corrección y cuáles son los
que necesitan clausura, porque son delincuentes,y el cor-
rectivo de esa tendência á Ia criminalidad."

La demanda de un tratamiento institucional específico de los me


nores vagos Ydelincuentes y Ia denuncia de Ia cárcel tradicional como
una escuela dei delito se hallaban vinculadas, sin dudas, a Ia marcada di-
fusión dei penitenciarismo entre Ias élites locales desde el último cuarto
dei siglo XIX. Con todo, Ia construcción de un sistema penal moder
no que estuviera en consonância con los princípios de esa corriente fue
muy parcial, entre otros motivos, porque su triunfo ideológico nunca
fue completo, porque el Código Penal de 1887 contemplaba una amplia
variedad de penas (entre Ias cuales se incluían los trabajos forzados y Ia
muerte), y por los escasos recursos que se dedicaron a tal fin. De modo
que, junto a Ias escasísimas instituciones imaginadas y organizadas se-
gún el modelo dei panóptico (probablemente ía Penitenciaria de Buenos
Aires fue Ia única que encajaba en el mismo, y no sin diíicultades), du
rante el período dorado dei ideal penitenciário siguió existiendo en el
país un conglomerado de instituciones carcelarias caracterizadas por Ias
falências edilicias y por Ia escasez y el tinte tradicional de los recursos
destinados al tratamiento de los reclusos.'^ En ese marco, no resulta sor-

DSCS, op. cit., 1905, sesión dei 6/9/1904, p. 430.


Caimari, L., op. cit., 2002 y 2004.

Sociabilidades, justiças e violências:...


prendente que ninos y adultos, hombres y mujeres, penados, procesados
y contraventores convivieran en reducidos espacios de detención que
carecían de toda intencionalidad o capacidad de transformarlos.
Por supuesto, poder dasificar a los ninos detenidos en el Asilo re
queria Ia posesión de ciertos saberes y de cierta experiência. Fue por ello
que Guando el PEN decidió organizar casas correccionales de menores,
se le encargo al Ministro de Inglaterra que buscara un hombre de repu-
tación, de práctica reconocida y recomendado por todos los antecedentes
para ponerlo al frente de los establecimientos que iban á crearse!^ Como
resultado se contrato al director especialista inglês Mateo H. Embley,
que por su larga práctica en Ias Casas de Reforma de supaís, su vasta ilus-
tración y el caracter benevolente de su espírita, ha de responder, sin duda
alguna, con todo êxito á Ia tareapara que ha sido llamado.^^
La contratación de un especialista extranjero para definir cómo enca
rar Ia institucionalización de menores en Ia Argentina remite a Ia cuestión
más general de Ias relaciones entre Ias innovaciones intelectuales, legales,
jurídicas e institucionales locales y Iasforáneas. En tal sentido, es innegable
que el abordaje de Ias cuestiones ligadas a Ia minoridad constituyó un as
pecto más de Ia constatada tendência de Ias élites vernáculas a servirse de
modelos extranjerosa Iahora de establecerquê problemáticas debían tratar
Ias autoridades y cómo debían hacerlo. Sin embargo, Ia inscripción de los
discursos y de Ias realizaciones nacionales en un climade época no habilita
el establecimiento de filiaciones lineales entre éstos y los foráneos, pues de
creeren Iaexistência de relaciones semejantes estaríamosabonando Iaposi-
bilidad de realizaruna historia de Iasideasque prescindiera de los contextos
social, cultural y material que en todosloscasos permiteny condicionan Ias
modalidades y los ritmos de apropiación de los paradigmas de comprensi-
ón y explicación de Ia realidad, al tiempo que determinan Ias posibilidades
performativas que los mismos adquieren."

9. DSCS, op. cit, 1905, sesión dei 6/9/1904, p. 429.


10. Vidal, Adolfo, y Garcia Torres, Benjamín., Asilo de Reforma de Menores Va-
rones. Memória elevada al Ministério dei ramo, en Archivos de Criminología,
Psiquiatria y Ciências Afines, Buenos Aires, Talleres Gráficos de Ia Peniten
ciaria Nacional, 1904, p. 732. (El Dr. Vidal se desempenaba como director dei
establecimiento, y Garcia Torres como su secretario).
11. Durante el último cuarto dei siglo XIX se dieron en Estados Unidos, Inglater
ra, Francia y en otros paises europeos importantes discusiones en torno a Ia

íEscuela regeneradora u oscuro depósito?...


Como sea, el informe de Embley elevado al PEN y dei Poder Le
gislativo nacional en febrero de 1904, en el que se describía Ia situación
de los menores encerrados en el Asilo Correccional de Ia Capital y en
otros asilos de Ia nación, se constituyó en una pieza argumentativa cen
tral para quienes defendieron Ia creación de Ia Colonia. Basándose en
su contenido, el senador Salvador Maciá comunico a Ia Câmara que en
esos establecimientos se hallaban mezclados ninos de 7 y 8 que no tienen
más delito que no tener padre ni madre y que no tienen en esos pretendi
dos asilos de corrección de Ia Nación nada que hacer más que aprender
vidos y malas costumbres que puede presumirse los conocen ya; pero [... ]
allí los perfeccionan con criminales de 16, 17y 18 anos}- Por Io mismo,
exigió que se dejara de sostener Io existente, una institución ya areada y
se pasara a [...] reprimirei mal que está causando una mala organización
que existe}^ Sin otras intervenciones relevantes, el proyecto fue aproba-
do, siendo su tramitación aún más rápida en Diputados.'"'
De este modo quedaba sancionada una ley que autorizaba al PEN a
instalar una colonia agrícola industrial de menores varones en Ia provin-

problemática de Ia minoridad, así como reformas legislativas e institucionales


tendientes a resolver el "problema"que los tipos de ninos englobados en esa ca
tegoria representaban para el conjunto social. Entre éstas descollaron Ia exten-
sión dei patronato estatal sobre los menores abandonados. Ia creación de tribu-
nales para menores, y el establecimiento de reformatorios, escuelas industriales
y colonias agrícolas para Ia reeducación de los menores huérfanos, desligados
de Ia patria potestad de sus padres o delincuentes, de los cuales Green Hill en
Inglaterra, Métray en Francia y Elmira en Nueva York se constituyeron en los
más famosos. Para Ia legislación extranjera, ver Gache, Roberto, La delincuen-
ciaprecoz, Tesis Doctoral, Facultad de Derecho y Ciências Sociales de Buenos
Aires 1916, y Jorge, Faustino y Meyer Arana, Alberto, Protección a Ia infancia,
Buenos Aires, Coni Hermanos, 1908, Tomo I. Para el problema de Ia recepción
en Argentinade Ias teorias y de Ias investigaciones científicas referidas al mun
do social yelaboradas en los países centrales, ver Neiburg, Federico y Plotkin,
Mariano, comp., Intelectua lesy expertos. La constitución dei conocimiento social
en Ia Argentina, Buenos Aires, Paidós, 2004.
12. DSCS, op. cit, 1905, sesión dei 6/9/1904, p. 430.
13. Ibíd.
14. Las escasas intervenciones de otros senadores se limitaron a inquirir acerca de
Iaextensión y el costo dei terreno y a objetar el hecho de queel PEN Iohubiera
comprado sin autorización dei Congreso, pese a Io cual el proyecto fue apro-
bado. DSCS, op. cit., 1905, sesiones dei 3/9/1904 ydei 6/9/1904. DSCD, op. cit.
1904, sesión dei 30/9/1904, p. 636.

Sociabilidades, justiças e violências:...


cia de Buenos Aires, pero que no introducía mayores precisiones sobre
quiénes serían destinados a Ia institución.^-^ Estas recién fueron formu
ladas en ei Reglamento de Ia Colonia, en el que se dejaba asentado que
su población estaria compuesta por ei vasto conjunto constituído por los
menores de 10 a 17 anos encausados y condenados, y por los de 8 anos
en adelante remitidos por los jueces en corrección paterna, enviados con
arreglo al artículo 20° de Ia Ley 1.420 para hacer efectiva sus asistencia a
Ia escuela, depositados por los defensores de menores, remitidos por Ia
policia moral o materialmente abandonados, asi como por los huérfanos
colocados por sus tutores o guardadores y por los enviados por sus padres
indigentes o inhabilitados para alimentados o para educados con autori-
zación de Ministério de Justicia e Instrucción Pública.'^

En Ia época, tanto los criminólogos y pedagogos positivistas como


los funcionários más o menos imbuidos de sus propuestas, tendían a
recomendar Ia internación de ciertos ninos y jóvenes más allá de que
éstos hubieran trasgredido o no alguna ley. Lo que importaba era de
tectar Ias desviaciones en el desarrollo moral de ciertos ninos, por lo
que resultaba indistinto que éstas se expresaran o no en Ia comisión de
delitos, siendo éstos meros indicadores de una carência que bacia fal
ta subsanar por médio de Ia educación. De esta manera se explica que
todos los proyectos científicos, legislativos e institucionales de Ia etapa
hayan tenido como destinatários a un vasto y heterogêneo conjunto de
ninos y jóvenes que abarcaba desde los huérfanos hasta los delincuentes
La Colonia fue inaugurada en junio de 1905, luego de supera
dos ciertos escollos financieros y algunas demoras en Ia construcción.
Unos meses más tarde, el PEN solicito al Congreso Ia autorización para
comprar otras 250 hectáreas a fin de ensancharla, y para invertir hasta
$100.000 m/n en Ia construcción y habilitación de un pabellón y en el
pago de gastos.'^ En 1907, cuando el proyecto llegó a Ia Câmara haja, el

Leyes Sancionadas, Ley núm. 4522, Colonia Agrícola en Marcos Paz, art. 2°,
Ibíd., p. LXXXIV.
Reglamento de Ia Colonia de Menores Varones establecida en Marcos Paz, pro
víncia de Buenos Aires, por decreto dei poder ejecutivo nacional de junio 28 de
1905, artículo 2, en Jorge, F. y Meyer Arana, A., op. cit.
DSCS, Buenos Aires, El Comercio, Tomo I, 1907, sesión dei 22/9/1906.

íEscuela regeneradora u oscuro depósito?.,.


diputado Manuel Carlés, miembro informante de Ia Comisión de Obras
Públicas, argumento que el nuevo local serviria para reducir Ia discrepân
cia veriíicable entre los habitantes actuales y potenciales de ia institución,
en tanto permitiria ubicar alli a los encausadosy los condenados, Io que no
se ha podido todavia conseguirpor Io mismo que no existen locales adecua-
dos a estefin, y porque por ahora se atiende a los huérfanos, a los vagabun
dos, a losabandonados por lospadres y a losescapadosde Ia casa paterna}^
En otro orden de cosas, se dedico a alabar Ias altas funciones que
desempenaba Ia institución, afirmando que

Toda esa ronda de Ia tristeza, de Ia desgracia y dei aban


dono, concurre a esa colonia con objeto de recibir edu-
cación física y moral, y especialmente habituarse a Ias
labores agrícolas y ganaderas, bajo Ia dirección dei doctor
Claros, hombre eminente que se caracteriza por su cultu
ra, por su ilustración y por su bondad, por Io mismo que
es un magistrado caballero. [... ] Es de ver a esos pilluelos,
sagacesy vivos, Ilenos de manas y de vícios, con sus almas
endurecidas por Ia intemperie moral más cruda, corre-
girse paulatinamente. Esos pobres menores padeceu no
sólo los delitos dei olvido, ineptitud y abandono de sus
padres, sino que se caracterizan por taras hereditárias,
que explican su impulsividad, sus histerias, sus epilepsias.
Esa colonia... es una especie de relevamiento moral para
esosdesdichados, obra que se consigne [...] bajo un régi-
men de todo punto científico y humanitário. Desde que
amanece Dios, esos ninos salen al campo para dedicarse a
Iasfaenas agrícolasy ganaderas, de jardinería y agricultu
ra..., mientras otro grupo concurre a Ia escuela dei esta-
blecimiento, donde se le ensena los primeros rudimentos
dei saber, bajo el punto de vista de Ia ciência fácil, aplica
da a Ia obra diaria y a los conocimientos de Ias culturas
sociales, morales y cívicas; y es de ver... cuando, al caer
Ia tarde, esos jóvenes, después de haberse dedicado a Ias
faenas [...] vuelven al establecimiento y reciben Ia plática
o conferência especial que ei senor director les da para
encaminarlos en Ia virtud sana y caballerezca.'^

18. DSCD, Buenos Aires, Imprenta y Encuadernación de Ia Câmara de Diputados,


1924, p. 857.
19. Ibíd.

Sociabilidades, justiças e violências:...


^Cómo no sorprendernos al descubrir que ctras descripciones con
temporâneas presentaban al establecimiento como un depósito que se
ubicaba en Ias antípodas de este relato idílico, en el que los menores, lejos
de ser reformados, eran víctimas de todo tipo de abusos? Aun una recons-
trucción preliminar dei funcionamiento cotidiano de Ia Colonia de Mar
cos Paz, como Ia que presentaremos a continuación, permite vislumbrar
Ia enorme distancia que mediaba entre los objetivos y Ias características
que le fueron asignaron en teoria y Ias prácticas que en ella se verificaron.
Para comenzar, durante el período. Ia Colonia no llegó a albergar
más que a un reducido porcentaje de los ninos y jóvenes que debían
ser enviados a sus instalaciones, ya que los encausados seguían siendo
alojados en centros de detención para adultos de Ia Capital como Ia Cár-
cel Correccional, el Depósito de Contraventores y el Departamento de
Policia, y en muchos casos, cuando se les imponia una pena luego de un
lentisimo proceso judicial, se daba Ia situación de que ya Ia habian cum-
plido durante su detención preventiva, por Io que quedaban en libertad
sin Uegar nunca a Marcos Paz.^" Por otra parte, al existir en Ia ciudad
sólo dos defensores de menores, sin personal subalterno asignado, para
tratar los miles de casos de abandono infantil, los menores detenidos
podian permanecer un tiempo prologado en aquellos "antros", por Io
que Ia policia y los jueces solían dejarlos salir, en el entendimiento de
que Ia corrupción de Ia calle seria menos danina que Ia de Ia cárcelr^
A Ia inmoralidad dei entorno se sumaban todo tipo de deficiên
cias materiales, como Ias descritas por Alfredo Palacios en el caso dei

Numerosos documentos oficiales testimonian que los establecimientos para


adultos siguieron recibiendo menores de edad después de creados el AsiloCor
reccional y Ia Colonia de Marcos Paz. Asimismo, los menores detenidos por
Ia Policia eran alojados en asilos creados y controlados por esa institución en
1905 y 1907, Io que nos da Ia pauta de su relevância en el trato cotidiano de los
menores, Ruibal, Beatriz, Ideologia dei control social. Buenos Aires, 1880-1920,
Buenos Aires, CEAL, 1993.
Para una descripción dantesca dei Depósito de Contraventores, ver Anchorena,
J. M., Prevención de Ia delincuencia de los menores, en Revista de Criminología,
Psiquiatria y Medicina Legal, Buenos Aires, Talleres Gráficos de Ia Penitenciaria
Nacional, 1918.Refiriéndose al mismo sitio, Gache informó en 1916 que exis-
tían 20 camasy 2 inodoros públicos para 60 recluidos, y denunció Ias prácticas
de pederastia que tenían lugar permanentemente alli. Gache, R., op. cit.

iEscuela regeneradora u oscuro depósito?...


Depósito de Contraventores y dei Departamento de Policia. En agosto
de 1913, el diputado llevó a Ia Câmara, además dei relato de sus visitas,
fotografias que atestiguaban Ia oscura realidad que describió:

Encerrados en una prisión, como delincuentes, descalzos,


andrajosos, cubiertos de parásitos, con sarna algunos, esos
pobrecitos tiritan de frio y tosen tristemente, demostran
do con ello que sus organismos están ya minados por Ia
enfermedad. No hay una sola cama en Ia prisión, y allíen
el suelo de piedra han pasado estas noches horribles, sin
que nada o muy pocopueda hacer a favor de ellos Ia buena
voluntad dei comisario encargado de su vigilância.--

Tan grave era Ia situación de los detenidos que el diputado recla


mada que el PEN suministrara camas y frazadas para los

[...] ninos sin madre, huérfanos de todo afecto, de toda


caricia; pequenos vagabundos haraposos, que Ia sociedad
manda injustamente á Ias cárceles. No hablo de los pe
quenos delincuentes que para mi también son irresponsa-
bles, y en cuya presencia másde unavez he pensado en Ias
madres agotadas por ias privaciones, en los padres borra
chos, en los alimentos escasos, en los alojamientos misera-
bles y en Ias taras hereditárias. Me refiero a los pobrecitos
que todavia no han caído y cuyo único delito es el de no
haber conocido nunca Ia dulzura de una caricia materna.-'

Para el diputado conservador Luis Agote, que apoyó Ia moción


de Palacios, Io que éste habia dado a conocer no era "más que uno dei
sinnúmero de cuadros de dolorosa miséria que ofrece el abandono de Ia

Cama y ropas para menores detenidos, en DSCD, Buenos Aires, Talleres Gráfi
cos de L J. Rosso & Cia, 1913, sesión dei 25/8/1913, p. 1076.
La descripción de Palacios coincidia con Ias de sus contemporâneos en cuanto
a Ia heterogeneidad de Ia población infantil detenida, pero introducia entre Ias
causas de su estado Ia explotación de sus madres, factor que no solía ser tenido
en cuenta en otros discursos sobre Ia minoridad, que más bien tendian a Ia
estigmatización de los padres. Desplegando argumentos que venía empieando
desde hacia anos, recalcó también Ia necesidad de prevenir los males y explicó
que Ia vida dei hombreera un capital que era imperioso cuidaren pos dei en-
grandecimiento dei pais. Ibid., p. 1077.

Socíabílídades, justiças e violências:...


ninez en Ia república" e hizo referencia a los ninos que como médico
le tocaba asistir en los hospitales, que presentaban cuadros de graves
afecciones pulmonares a causa de dormir a Ia intemperie en ias plazas,
en Ias casas en construcción, en Ia ribera, en íosportales de Ias casas [...]»
ante Ia indiferencia pública, ante Ias autoridades, que creen que cumplen
con su deber estableciendo dos o tres asilosy no yendo a establecer Ia ver-
dadera vigilância que el caso requiere por médio de Ias leyes, por médio
de Ia tutela dei estado.-'^ Sintetizaba así Ia clave de su pensamiento con
respecto al problema de Ia minoridad, que había quedado plasmado en
el proyecto para establecer el patronato estatal de menores que presen-
tó recurrentemente a partir de 1910, y que quedó convertido en ley en
1919: se requerían nuevas leyes y nuevas instituciones para solucionar el
problema constituído por los menores.
El proyecto fue pasado inmediatamente a Ia Câmara de Senadores,
donde se hallaba presente el Ministro de Justicia e Instrucción Pública,
Carlos Ibarguren, que logró que Ia suma acordada para Ia manutención
de los menores detenidos en ambas instituciones y para Ia realización de
urgentes obras de ampliación en Ia Colonia de Marcos Paz se elevara a
$100.000m/n. Según Io que informo, buscando aliviar Ia situación de los
menores detenidos y hacinados en el Depósito de Contraventores y en el
Departamento de Policia, el PEN había habilitado el cuartel de Guardia
de Cárceles, dotado de todas Ias comodidades, enfermería y taller, y con
capacidad para unos 200 menores, a donde confiaba serían trasladados
en poços dias. En cuanto a Ia Colonia de Marcos Paz, declaraba que el
PEN queria resolver con premura Ia cuestión de su ampliación, y que
con parte de los fondos solicitados podrán habilitarse rápidamente algu-
nosgalpones ó pabellones que servirán por el momento de alojamiento á
buena cantidad de menores.-^

Por otro lado, informaba que en ese momento se encontraban en


estúdio en el Ministério de Obras Públicas planos y presupuestos para
establecer una enfermería en Ia Colonia, y que Ia Comisión auxiliar de
Presupuesto de Ia Câmara de Diputados estaba analizando una solici-

DSCD, op. cit, 1913, sesión dei 25/8/1913.


Proyecto de Ley, en DSCS. Ano 1913, Buenos Aires, El Comercio, ?, sesión dei
28/8/1913, p. 797-798.

iEscuela regeneradora u oscuro depósito?...


tud de créditos para instalar allí Ias obras sanitarias necesarias, con Io
que queda claro que, a ocho anos de su inauguración, Ia institución no
contaba con una infraestructura acorde al número de habitantes que
albergaba o a Ias funciones que se esperaba que desempenara, y que
Ia lógica que guiaba su crecimiento, lejos de responder a algún tipo de
planificación, dependia de intervenciones espasmódicas que buscaban
establecer soluciones ad hoc para el, a esta altura, sumamente conocido
y comentado problema de Ia minoridad.-^
Otro de los destinos que conocían los menores que en principio
debían ser destinados a Ia Colonia de Marcos Paz eran Ias colonias y Ias
escuelas controladas por institucionesde beneficência, de Ioque dio testi-
monio en 1911 el senador Láinez durante su defensa de un proyecto que
autorizaba al PEN a entregar $100.000 al Patronato de Ia Infancia de Ia
Capital como retribución de sus servidos á Ia infancia desvalida, reclusión
de menores, ensenanza de artes y oficios y colonización agrícola}'^ Para el
legislador, el Patronato era una de Ias instituciones que más eficaz y de-
sinteresadamente colaboraban con el Estado á los deberes de amparo de
Ia infancia, al Asilo de Menores, Ia ensenanza industrial á los menores ex
traviados y á Ia corrección infantil en general Entre los aproximadamente
3.000 menores que tenía a su cargo mily tanto se encontraban

[...] en escuelas completamente gratuitas y públicas con


que alivia ... al Consejo Nacional de Educación de Ia
Capital de una cuota tres veces mayor que Ia que solicita
en estos momentos Ia Sociedad como un auxilio; tiene,
además, escuela de artes y oficios y colonia agrícola in-

Otros datos brindados por el Ministro alimentan Ia sensación de que, en re-


lación al tema de Ia minoridad, era más Io que se planeaba hacer que Io que
efectivamente se bacia. El funcionário declaraba que se habian estudiado pla
nos para Ia construcción en Ia Colonia de ocho pabellones con capacidad para
50 menores cada uno, asilos, escuelas y talleres, para Io que se pedirían fondos
oportunamente, y que IaComisión de Asilos y Hospitales, dependiente dei Mi
nistério de Relaciones Exteriores, había contratado ya Ias obras necesarias para
establecer una gran colonia y asilo de menores huérfanos y abandonados en Ia
estación Olivera dei Ferrocarril Pacífico, província de Buenos Aires, donde el
gobierno nacional había adquirido un campo de 425 ha. Ibíd.
Proyecto de Ley, presentado por un grupo de senadores. En DSCS, Buenos Ai
res, El Comercio, 1912, sesión dei 26/11/1911, p. 900.

Sociabilidades, justiças e violências:...


fantil en los alrededores de Buenos Aires, y creo que el
Poder Ejecutivo, bastante asediado con Ia existência de
menores incorregibles en el depósito policial de Ia calle 24
de noviembre, concurrió en demanda de amparo, puede
decirse, de locales, si es que disponía el Patronato de Ia
Infancia, para colocar el exceso de menores vagos que ha-
bía recogido Ia policia, que no sabia qué hacerse con ellos.

En esta situación se le entrego al Patronato de Ia Infancia entre 50


y 60.000 pesos; si comparamos ei valor de este servicio por Io que á Ia
Nación le cuesta Ia escuela correccional de Marcos Paz, los cien mil pesos
que se le mandan entregar al Patronato por este proyecto, apenas alcanzan
á pagar Io que cuestan los 50 ó 60 indivíduos recluidos en Ia colonia...,
donde resulta que á cada uno de los pupilos, según información levantada
por Ia Câmara de Diputados, le cuesta á Ia Nación alrededor de seiscientos
cincuenta pesos [...] El Patronato de Ia Infancia es Ia institución más be
néfica y más barata para los fines altruístas y filantrópicos que le incumbe
al Estado como protector de los ninos y abandonados."®
En Ia época fue excepcional fundamentar en datos empíricos el
argumento de Ia conveniência econômica de derivar a los menores vagos
y a los menores incorregibles a instituciones controladas por particula
res, pero sí fue habitual entre los legisladores Ia crítica al desempeno
financiero de Ia Colonia de Marcos Paz y, en términos más generales.
Ia preocupación por los gastos que supondría el mantenimiento y Ia
eventual creación de instituciones estatales para menores.Las per-
cepciones y opiniones negativas sobre Ia viabilidad econômica de tales
establecimientos constituirían factores esenciales para entender por qué

El proyecto fue aprobado en Ia Câmara. Ibíd.


Desde una perspectiva similar a Ia de Láinez, J. M. Anchorena denuncio en
1918 que cada "detenido" en Ia Colonia costaba al Estado alrededor de $3 diá
rios, en tanto en el Patronato de Ia Infancia sólo insumía $0,70 diários. Ancho
rena, J-, op. cit. Muy distinta era Ia percepción de Gache, que afirmaba que en
1915 no había ningún derroche en el sostenimiento dei establecimiento, pues
cada menor suponía un gasto anual de $1.000, siendo que "en el más módico de
los casos", en Norte América, costaba el equivalente a $1.800argentinos. Nótese
que, en tanto los primeros tenían como punto de referencia las instituciones de
beneficência, Gache comparaba a Ia Colonia con las instituciones más moder
nas dei mundo. Gache, R., op. cit., p. 171.

^Escuela regeneradora u oscuro depósito?...


en 1919 Ia Ley de Patronato de Menores no fue complementada con Ia
fundación de instituciones públicas a ias cuales enviar a quienes queda-
ban bajo tutela estatal: desde el punto de vista material, resultaba mucho
más conveniente mantener un sistema institucional de internamiento
de menores financiado en medida considerable por los particulares.
Un segundo factor que da cuenta de Ianotable distanciaentre Iacon-
cepción de Ia institución y su desempeno está dado por Ias condiciones de
vida de los menores enviados a Marcos Paz. A decir verdad, Ias descrip-
ciones de Io que sucedia en Ia Colonia son altamente contrastantes. Por un
lado encontramos miradas complacidas como Ia de Carlés o parcialmente
favorables como Ia de Roberto Gache, estudiante de derecho cuya tesis La
delincuencia precoz fue publicada en 1916 y devino rápidamente conocida y
valorada entre los interesados por el tema de Ia minoridad.
Gache realizo una visita de vários dias a Ia Colonia a comienzos de
1915. En principio se sintió decepcionado por el hecho de que Ia insti
tución no funcionara como establecimiento correccional dada Ia escasa
cantidad de condenados que habían sido remitidos allí -entre 30 y 40
de 1912 a 1915-, y porque se trataba más bien de un asilo de menores
abandonados, que se ocupabasobre moldes iguales de sujetos de Ias más
diversas condiciones morales. Para colmo, los poços penados que existí-
an, separados de los pupilos y objeto de una vigilância especial, estaban
instalados en el denominado Pabellón de Penados, un vetusto galpón de
caballeriza que realiza el milagro de tenerse enpie [...] pese a sus anos gra
das al aseo diário al que se Io sometía, rodeado de fuertes alambrados y
con guardias de vista.De cualquier modo, no podia responsabilizarse
a Ia Dirección, penetrada dei concepto científico y moderno de Ia Colonia
Correccional, de que su tratamiento fuera algo más duro que el de los
pupilos, pues estoera consecuencia de los mandatos legales, que dificul-
taban Ia ensenanza de Ia independência y de Ia autodirección.^'
En el caso de los pupilos, en cambio, Ia naturaleza absorbe al su-
jeto y Io transforma por su sola virtud, permitiendo que los vagos más
recalcitrantes, que en Buenos Aires provocaban Ia desesperación de Ia
polida, fueran y vinieran por los campos abiertos de Marcos Paz, consa
grados a su labor, sin siquierapensar en fugarse. Tan holgada resultaba Ia

Gache, R., op. cit., p. 170.


Ibíd., p. 169.

Sociabilidades, justiças e violências:...


existência en Ia Colonia que Ia misma se había convertido en el sueno ir-
realizado de muchospequenos vagos y viciosos de Ia Capital, entre quienes
circulaban tentadoras referencias sobre aquella. Es que, cuando ia vida
de aventuras perdia el encanto de Ia novedad y Ias ventajas de Ia absoluta
libertad se hacían demasiado pesadas, Marcos Paz pasaba a ser elfín de
todas Ias incertidumbres y Ia satisfacción de todas Ias necesidades.^-
A los nuevos pupilos se los alimentaba a discreción durante los pri-
meros dias, y cuando se les informaba -según un celador- que en Ia Colo
nia se realizaban tres comidas diarias, miraban asombrados e incrédulos,
incapaces... de apreciar Ia magnitud [...] de semejante esplendidez gastro
nômica.^^ La sorpresa se debia sin dudas al contraste entre esta experiên
cia y Ia que acababan de vivir en los depósitos de Ia Capital y en el traslado
desde aquellos a Ia Colonia. Al respecto, Gache relataba que bacia menos
de un ano había llegado a Ia Colonia una 'partida' de treinta ninos, ata
dos con sogas, codo con codo, famélicosy semidesnudos. A algunos, antes de
subir al tren, se les había dotado de media manta Patria -a guisa de tapar-
rabo-para evitar los rubores de Iaspasajeras. Ycomo Ia cantidad no bastó,
parece que Ia desnudez de algunosfuá completa, para vergüenza no tanto de
Ias espectadoras como de Ias autoridades que así Io consentían. Yo he insis
tido ante diversos empleados dudando de tamana enormidad y aseguro que
tal como queda transcripto ha sido el relato conteste de todos.^'^
En suma, si bien el único establecimiento correccional dei pais
terminaba desempenando Ias funciones de un asilo y carecia de un plan
metódico y cientifico para el tratamiento de los delincuentes, Ia situaci-
ón de los menores huérfanos y abandonados que alli se alojaban resul-
taba pletórica en comparción con Ia que padecian en otras instituciones.
Muy distintas son Ias descripciones contenidas en una serie de
informes elaborados por funcionários de Ia Inspección General de Jus-
ticia y de Ia Contaduria General de Ia Nación unos poços anos antes
de Ia visita de Gache, entre 1912 y 1914. El primero de ellos, elevado al
Ministério de Justicia por el inspector Dr. Figuerero en 1912, intentó ser
ocultado por el PEN, pero trascendió a Ia prensa en 1914. En septiembre
de ese mismo ano el diputado socialista Mario Bravo presentó un proyec-

32. Ibíd.,p. 168 y 171.


33. lbíd.,p. 172.
34. Ibíd., p. 171-172.

iEscuela regeneradora u oscuro depósito?...


to por el cual invitaba al Poder Ejecutivo a informar por escrito sobre Ias
medidas adoptadas a raiz de los informes de Ia Inspección General de
Justicia en los que se denunciaban abusos en diversas cárceles de Ianación
y en IaAdministración de Justicia, y proponia nombrar una comisión de
cinco miembros con amplias facultades para investigar Ia situación de Ia
población carcelaria en los establecimientos dependientes de Ia nación.^^
Adjuntaba un extenso informe en el que compendiaba los abusos, irre
gularidades e incompetencias de todo gênero que los inspectores habían
constatado en Ias cárceles de Ushuaia, Neuquén, Rio Gallegos, en Ia Prisi-
ón Nacional y en IaColonia de Marcos Paz.^*" Las intervenciones de Bravo
en el Congreso y a los datos consignados en unaserie de notas publicadas
en "La Nación" (LN) en junio de 1914 nos permitirán reconstruir en for
ma parcial tanto el funcionamiento de Ia Colonia como las actuaciones de
los poderes ejecutivo y legislativo una vez conocidas las denuncias
Aparentemente, el informe de Figueredo flie pasado al Ministério
de Justicia recién después de unos cuatro meses de encontrarse en Ia Ins
pección General de Justicia, "produciéndose... una dilación inexplicable,
tratándose de algo que exigia remedio tan inmediato como vigorosoV' La
única manifestación pública dei PENsobre el particular se produjo con Ia
inclusión en el Boletín Oficial dei 9 de mayo de 1912de un decreto basado
en el informe en el que se aceptaba Ia renuncia dei director dei estableci-
miento y se declaraba en comisión al resto dei personal, considerando sin
embargo que no era necesario ni procedente el cambio inmediato de todo
elpersonal, aconsejado por Ia inspección dejusticia, no sólo porque de las
actuaciones practicadas resultaban exentos de cargos elvicedirector, elagrô
nomo y otros empleados, sino también porque Ia conducta de los inculpados
podia atribuirse al hecho de habercarecido dei contralor y de Ia vigilância
indispensables para el debido cumplimiento de susfunciones auxiliares. Se
establecía asimismo que Ia reorganización de Ia Colonia quedaria en ma
nos dei nuevo director^", pero un ano más tarde se dejaba sin efecto Ia

Proyecto de Resolución, en DSCD. Ano 1914, Buenos Aires, Imprenta y Encua-


dernación de Ia Honorable Câmara de Diputados, 1932, sesión dei 21/9/1914.
p. 553-554.
Antecedentes ha quese ha referido elsenordiputado Bravo, en ibid.
Régimen carcelario. La colonia de Marcos Paz. Graves deficiências, en LN,
11/6/1914, p. 11.
Ibid.

Sociabilidades, justiças e violências;...


suspensión dei personal, de Io que se deduce que el PEN no estaba intere-
sado en realizar una intervención contundente en Ia Colonia.^^

Tal prescindencia fue objeto de severas críticas. Así, en cronista


anônimo de LN contrapuso el concepto moderno de Io que debe ser el ré-
gimen carcelario, que creía concretado en algunas de Ias bien organiza
das prisiones dei país, con el vergonzoso anacronismo representado por
Ia Colonia de menores de Marcos Paz, convertida, por virtud de Ia desidia
oficial, en un antro de relajación moral y en un modelo de desbarajuste
administrativo. Por otro lado, hizo hincapié en Ia distancia que mediaba
entre el mandato constitucional en relación a Ias cárceles de Ia nación y
Ias condiciones en Ias que efectivamente vivia parte de Ia población car-
celaria, y denunció Ia absoluta indiferencia oficial, que frente a denuncias
concretas y bien documentadas no procedió como hubiera debido a una
renovación casi total, ...de hombres como de métodos, que depurase Ia at
mosfera de Ia colonia, viciada hoy hasta hacerse nauseabunda^^, actitud
que Bravo calificaría ante el Congreso como Ia más descarada complacên
ciapara los delincuentes convictos y confesos, cuando no de robos, de delitos
contra Ias buenas costumbres, y de lesiones gravísimas.'^^
En su informe, el inspector Figuerero declaraba que Ia Colonia
nunca había llegado a cumplir su misión, que consistia en educar e ins
truir física y moralmente a los menores admitidos, tal como establecía
el Reglamento. De Iasprescripciones reglamentarias se desprendia tam-
bién que Ia Colonia no debía ser una cárcel

[ ... ] sino una institución orientada en Ia ciência penal


moderna, que, por Io que atane a ia corrección de meno
res ha abandonado hace tiempo los sistemas... represivos,
que en ia práctica daban resultados contraproducentes,
para adoptar otros en que Ia individualización dei trata-
miento reformador amoldado a cada indivíduo, y un ré-
gimen educativo, a base de suavidad y protección, trans-
forman poco a poco el carácter y los instintos dei nino y
Io desvían de Ia mala senda hasta encaminarlo hacia el

Antecedentes ha que se ha referido el seriar diputado Bravo, op. cit.


Régimen carcelario. La Colonia de Marcos Paz. Graves deficiências, en LN,
10/6/1914, p. 11.
Antecedentes ha que se ha referido el senor diputado Bravo, op. cit., p. 629.

íEscuela regeneradora u oscuro depósito?...


bien".'- En vez de esto, el Dr. Figuerero había comproba-
do que "no hay orientación en el sentido dei objetivo; que
ei desbarajuste disciplinario y administrativo, es grave, y
que..., toda esta suma de escândalos ha desnaturalizado
a tal punto Ia institución que ésta, vive fuera dei regla-
mento, fuera de su régimen, fuera de su objetivo y fuera
hasta de Ias más elementales exigências que los poderes
públicos pueden hacer a una administración."'^

Entre Ias irregularidades corroboradas, figuraba en primer lugar


el maltrato físico a los menores. Para darle a este tópico Ia dimensión
que le cabe, es importante tener en cuenta que, en los tiempos en los
que fueron formuladas estas denuncias, los debates sobre Ia aplicación
de castigos corporales a los ninos y jóvenes no se circunscribían a Ias
prácticas que involucraban a los menores alojados en asilos y reforma-
torios. Por el contrario. Ia cuestión de los castigos físicos aplicados a los
alumnos en los internados, colégios, escuelas, e incluso en sus casas por
los instructores particulares se había convertido desde fines dei siglo
XVIII en un tema de discusión central entre los pedagogos, los médicos
y los maestros de Europa Occidental y Estados Unidos que reílexiona-
ron acerca de Ia salud y Ia educación de los ninos en general, dei mismo
modo que Ia denostación dei maltrato dei cuerpo de los condenados se
había generalizado entre los penólogos reformistas.
Las disquisiciones sobrelos benefícios o los perjuicios de loscasti
gos corporales comenzaron a difundirse en América Latina luego de las
revoluciones de independência, durante las experiências inaugurales de
construcción de sistemas públicos de educación en las que se embarca-
ron las autoridades de los nuevos estados.''^ Sin embargo, fue a partir dei
último cuarto dei siglo XIX, cuando empezaron a disenarse y a erigirse
sistemas de instrucción pública en el marco de los Estados nacionales,

Régimen carcelario. La colonia de Marcos Paz. Graves deficiências, en LN,


11/6/1914, p. 11.
Informe dei InspectorDr. Figuerero, CapítuloI, en Régimen carcelario. La colonia
de Marcos Paz. Graves deficiências, op. cit., p. 11.
Para un interesantísimo trabajo sobre estas primeras experiências, ver Roldán
Vera, Eugenia, El niíwensenante: infancia, aula y Estado en elmétodo deensenan-
za mutua en Hispanoamérica independiente, en Carreras, Sandra y Potthast, Bar
bara, eds.. Entre Iafamilia, Ia sociedad y el Estado. Ninos y jóvenes en América
Latina (siglos XIX-XX), Madrid-Frankfurt, Iberoamericana-Vervuert, 2005.

Sociabilidades, justiças e violências:...


que se tornaron harto frecuentes entre los educacionistas Ias reflexiones
sobre Ia relación entre disciplina, castigo y aprendizaje. A decir verdad,
durante ei periodo no existieron posturas teóricas encontradas en torno
a esa cuestión; a Io sumo, algunas matizaciones de grado en torno al re-
chazo prácticamente universal de los castigos físicos en el âmbito esco
lar. No obstante. Ia abundancia de artículos y de recomendaciones sobre
el tema publicados en revistas oficiales como El Monitor de Ia Educación
Común^^ sugieren que Ias prácticas de Ias que eran objeto los alumnos
dei flamante sistema escolar o de Ias escuelas particulares que aún exis-
tían no se derivaban en forma lineal dei aparente consenso en relación
a Ia improcedencia y a Ia improductividad de los castigos físicos, con Io
que los sucesos acaecidos en Ia Colonia no parecen haber constituído
aberrantes excepciones -salvo en el caso dei abuso sexual-, sino resabios
de comportamientos que a Ia luz de una nueva sensibilidad en relación
al cuerpo en general y al cuerpo infantil en particular se habían vuelto
intolerables sólo en tiempos muy recientes."*^
Interrogados por el inspector, los 36 menores alojados en el pa-
bellón de penados se quejaron de los incesantes castigos que se les
aplicaban. En Ia transcripción dei informe el periodista pasó revista a
una serie de casos citados por Figuerero, que enumeraba con nombre y
apellido a Ias víctimas de un régimen de rigor inquisitorial en el que se

El Monitor de Ia Educación Común fue fundado en 1881 por el entonces Superin


tendente General de Escuelas Domingo F. Sarmiento para difundir Ias resolucio-
nes dei Consejo Nacional de Educación e influir en Ia formación de los maestros.
A pesar de su carácter oficial, durante ia gestación dei sistema público de educa
ción dio cabida a colaboradores heterogêneos. Así, desde los más renombrados
funcionários y pedagogos nacionales y extranjeros hasta directores de escuela,
maestros y literatos se ocuparon en sus páginas de temas tan diversos como los
procesos de ensenanza-aprendizaje, Ias instituciones escolares nacionales y ex-
tranjeras, ia asistencia a ia escuela, los libros de texto y Iapobreza infantil,desple-
gando muchas veces perspectivas y propuestas encontradas.
De hecho, a mediados dei siglo XIX Domingo F. Sarmiento se declaraba par
tidário de un uso moderado de los castigos corporales, a diferencia de otros
educacionistas como Marcos Sastre y Juana Manso, cuyas posiciones se vieron
opacadas por Ia influencia dei primero. Carli, Sandra, Ninez, pedagogia y po
lítica. Transformaciones de los discursos acerca de Ia infancia en Ia historia de
Ia educación argentina entre 1880y 1955, Buenos Aires, UBA- Mino y Dávila.
2002. En esaépoca,el recurso a los castigos físicos era común en Iasescuelasde
América Latina. Roldán Vera, E., op. cit.

^Escuela regeneradora u oscuro depósito?..,


confundían Ias más crueles iniquidades con Ia disciplina, y describía el
tipo de lesiones que presentaban, generalmente ubicadas en Ia cabeza, el
tronco y los brazos."^" Los menores no penados, apesar de su condición
ventajosa respecto a sus hermanos de infortúnio, también eran víctimas
dei paio y dei rebenque, cuyo uso, obligatorio para el personal, recién
fue prohibido a partir de Ia visita dei inspector.*'®
El cronista entendia que estas prácticas tenían mucho que ver
con Ias deficiências de los carceleros. A Ia insensibilidad producida por
su profesión, que les impedia pensar en el dolor que provocan al aplicar
sus castigos, se sumaban su procedência social y Io que pensaban sobre
los menores y sobre Ia forma más conveniente de tratarlos. El periodista
admitia que desgraciadamente, a los reformatorios no van angelitos, por
que Ia pasta de santo no se conquista en el arroyo, ni Iasflores viciosas son
producto dei invernadero, pero creia que se estaba en presencia de ninos,
cuyo delito consiste, menosfelices que Ias hestias, en haber nacido desam
parados, sin luz de hogar, sin amor, sin afectos, sin los calores dei regazo, y
cuestionaba Ia capacidad pedagógica que podia tener un guardián "que
tiene más o menos Ia misma procedência social que los menores recluidos"
para apreciar su corregibilidad. De Ias manifestaciones de los empleados,

Régimen carcelario. La Colonia de Marcos Paz. Aplicación de castigos inhuma-


nos. Elpaloyel rebenque, en LN, 12/6/1914. Figuerero elaboro un porcentaje de
los menores castigados en el pabellón de los pupilos, huérfanos y abandonados,
obteniendo los siguientes resultados: Primera sección (con 51 menores): casti
gados con rebenque: 41 castigados con paio: 7, ilesos: 3, porcentajede castiga
dos: 94%; Segunda sección (51 menores): castigados con rebenque: 39, ilesos:
12, porcentaje de castigados: 76%;Tercera sección (31menores): castigados con
rebenque: 17, castigados con paio: 2, ilesos: 12, porcentaje de castigados: 31%.
Informe dei inspector Figuerero" en Antecedentes ha que se ha referido el senor
diputado Bravo, op. cit., p. 629.
Un caso especialmente grave fue el dei nino Aníbal Diego Bruzzone, quien de-
bió permanecer cuatro meses en cama como consecuencia de "un puntapié
que le aplicó en Ia región inmediata a Ia ingle un tal Serreno, encargado de Ia
limpieza [...] No sólo recibió Bruzzone el puntapié que le lastimó un órgano
importante produciéndolo dolores espantosos, sino que, enfermo como estaba,
en dos ocasiones fue pasado al recargo de trabajo sin que su estado lamentable
hubiera ablandado ei corazón dei superior ante Ia impotência dei infeliz". Le
vantado un sumario por el inspector. Ia Dirección alegó no habertenido parti-
cipación en elcastigo. Régimen carcelario. LaColonia de Marcos Paz. Aplicación
de castigos inhumanos. Elpaio y el rebenque, op. cit.

Sociabilidades, justiças e violências:...


que declaraban que castigaban a los menores porque así está establecido,
porque no hacen caso a Ias palabras, y porque son incorregibles, deducía
que Ias penas corporales no eran consecuencia de un impulso repentino
determinado por Ias faltas -reales o inventadas-, sino el resultado de un
critério previamente formado. En cuanto a Ia Dirección, Ia consideraba
responsable de autorizar plantones que podían durar toda Ia noche -o sea,
que eran más largos de Io que se estilaba en Ias instituciones educativas y
en Ias cárceles- y de permitir que el personal fiiera armado, incluso en los
lugares de trabajo, facilitando así Ia aplicación de los castigos."^'^
Los menores eran víctimas de un tercer tipo de maltrato, consti
tuído por Ias palabras ofensivas que les dirigían los guardias, a Io que se
agregaba Ia comisión de delitos de corrupción por parte de los celado-
res, que en todos los casos fueron desestimados por el director por con-
siderarlos actos privados imposibles de probar.^° Sus padecimientos se
prolongaban a causa de Ia alimentación recibida, que apenas alcanzaba
para su mantenimiento y que no incluía ninguna de Ias verduras pro-
ducidas abundantemente en Ia huerta, hecho confirmado por el médico
de Ia Colonia, Dr. Leopoldo Barcena.^* Para finalizar, el que el cronista
caracterizaba como El estado lamentable de los menores, sucios, hara-
pientos, vagando en Ia ansiedad de su situación miserable, cerca de un
porvenir prenado de tristezas, a una edad que el dolor no debiera exis
tir para los ninos, porque con los pájaros y Iasflores son Ia alegria de Ia
vida, contrastaba con Iascomodidades de que gozaba Ia administración.
Entre ellas Figuerero senalaba los elevados gastos de coche a pesar de
que Ia casa contaba con uno para su servicio, los sueldos y sobresueldos
pagados a Ia "servidumbre" dei director y a otros empleados, y el hecho
de que los gastos para reparaciones en Ia casa dei prefecto y dei director
por $1.238 fueran apenas inferiores a los $1.464,65 anuales gastados en
trajes, gorras y calzoncillos para los menores. Como si esto fuera poco,

Régimen carcelario. La Colonia de Marcos Paz. Guardianes arbitrários. Siempre


Ia desorganización, en LN, 16/6/1914.
Régimen carcelario. La Colonia de Marcos Paz. El império de Ia arbitrariedad.
Los plantones, en LN, 13/6/1914. Los empleados contaban con su cocina inde-
pendiente y no comían con los menores tal como Io disponía el reglamento.

íEscuela regeneradora u oscuro depósito?...


los empleados se habían distribuído un grupo de muchachos para su
servicio personal, con Io que violaban una vez más el reglamento."
Por su parte, Bravo comunico a Ia Câmara de Diputados que en
el informe de Figuerero constaba que en el pabellón de penados Ias ca
mas estaban Uenas de chinches ya que no se procedia a su limpieza, que
esto sucedia porque los elementos provistos para esa tarea son llevados a
su casa particular por el guardián Artigas, indivíduo que también era de
nunciado por sustraer dei pabellón sábanas, fundas, mantas, cuchillos de
mesa y jabón. Asimismo, los guardianes eran acusados de robarles ropas
particulares a los penados, como médias y alpargatas, mientras éstoscon-
taban con una sola muda, tanto interna como externa. Por último, los car-
celeros eran responsabilizados de proveer a los menores de cigarrillos, y
de quedarse con el dinero que Iasfamílias les enviaban por su intermedie,
o de abonárselos en cigarrillos, y de castigar cualquier reclamo con recar-
go de trabajoy golpes de rehenque.^^ Quedaba asi planteada una paradoja
que devendria axial en el diseno y en Ia eventual implementación de Ias
políticas públicas de menoresa Io largo dei siglo XX: el intentode evitarel
desarroUo de formas de violência urbana a través de Ia creación de institu-
cionesentró muy pronto en contradicción con Iamanifiesta potencialidad
de engendrar violência implícita en ese tipo de establecimientos.
A princípios de 1914 nuevas denuncias de los diários determina-
ron Ia realización de otra inspección dei régimen interno de Ia Colonia,
esta vez llevada a cabo por los inspectores Dr. Diego González y Dr.
Manguero y por el médico de cárceles Dr. Jiménez, quienes elevaron su
evaluación al Ministério el 30 de junio. A pesar de que el informe mé
dico permaneció reservado, Bravo sostuvo que el doctor Jiménez había
podido comprobar elevadísimosporcentajes de pederastía activay pasi-

Régimen carcelario. La Colonia de Marcos Paz. Guardianes arbitrarias. Siempre


Ia desorganización, op. cit.
"Antecedentes ha que se ha referido el senor diputado Bravo", op. cit., p. 629. La
entrega de dinero por parte de los familiares a los menores para que Io utiliza-
ran durante su reclusión es uno de los tantos elementos que pone en entredicho
Ia presunta indiferencia de ciertos padres con respecto a sus hijos, denunciada
hasta el hartazgo por Ias autoridades políticas e intelectuales de Ia nación que
pretendían establecer por iey ia suspensióno Ia pérdidade Ia patria potestad de
determinados progenitores a favor dei Estado.

Sociabilidades, Justiças e violências;...


va, y que Ia nueva investigación ha vuelto a comprobar el estado de ruina
y de inmoralidad de aquel establecimiento}'^ Afirmo además que Ias ex-
presiones concluyentes de los congresos penitenciários y Ias numerosas
iniciativas tomadas por los poderes públicos en pos de Ia corrección dei
régimen carcelario de Ia república no se habían traducido en hechos
reales, y que Ia falta de unidad organizativa y Ia completa deshonestidad
y corrupción de Ia administración -que aumentaban a Ia par dei presu-
puesto asignado a Ias cárceles- constituían Ias causas fundamentales de
la deficiente organización carcelaria.^^
Hacia la misma época la Contaduría General de la Nación inves
tigo la situación administrativa dei establecimiento, y Ias conclusiones
dei Inspector enviado trascendieron a la prensa. Así, LN comunicaba
que, en su informe de septiembre de 1914, el funcionário comenzaba
diciendo que la Colonia no cumplía con ninguna de Ias misiones que se
tuvieron en mente al crearla, y que en cambio constituía una cárcel vul
gar en la que se hallaban recluidos unos 300 menores que no recibían la
instrucción prescripta en los reglamentos. A tal punto se había olvidado
el objeto de la Colonia, que de Ias 900 hectáreas disponibles no se había
roturado ni una para obtener Io indispensable para la manutención de
los reclusos, como hortalizas y tubérculos. Semejante inoperancia admi
nistrativa bacia que su sostenimiento resultará excesivamente oneroso
para el Estado, pues cada recluso insumía $120 mensuales, Io que impli-
caba $500.000 anuales para el total de la población internada. Por todo
Io anterior, el inspector recomendaba que el ministério levantara la Co
lonia, recluyera a los menores en establecimientos análogos o parecidos
de la Capital y arrendara Ias instalaciones.'^'^

54. Ibíd..p. 628.


55. Proyecto de resolución, op. cit., 21/9/1914. La câmara votó a favor de la convo
catória al Ministro para que explicara Ias irregularidades denunciadas, pero no
se autorizo la formación de una comisión de cárceles.
56 Coloniade Marcos Paz. Informe de la Contaduría General, en LN, 1/9/1914.

íEscuela regeneradora u oscuro depósito?...


CONSIDERACIONES FINALES

^Cómo explicar Ia coexistência de Ias escuras descripciones y de


los informes elogiosos a los que hemos aludido? Descartadas Ias varia-
bles de Ia mala fe o de Ia hipocresía por parte de los detractores y de los
defensores de Ia Colonia de Marcos Paz, queda por pensar que los pun-
tos de vista encontrados tuvieron que ver con el momento exacto en el
que se realizaba Ia visita y con el nivel de profundidad que ésta lograba
alcanzar. En tal sentido, es probable que si Ias misma se efectuaba poco
tiempo después de una inspección desfavorable y de Ia intervención de
Ias autoridades dei ramo, como en el caso de Ia realizada por Gache, Ias
peores falências de Ia institución quedaran relativamenteocultas al ojo dei
visitante, pues presumiblemente Ias autoridades amonestadas o Ias que
habían venido a reemplazarlas serían un tanto más cuidadosas en mé
dio de semejante coyuntura. También es factible que los directores y los
empleados tuvieran muchísimas más posibilidades de ofrecer un acceso
parcial a Ia Colonia a los diputados o estudiantes que, como Carlés y Ga
che, asistían a conocerla a título personal que a los funcionários dei PEN
que contaban con atribuciones para desarroUar su tarea con exhaustivi-
dad (hemos visto que los inspectores entrevistaron a los menores, a los
guardias y al médico, que revisaron los registros contables, etc.).
De todos modos, Ias versiones presentadas son tan contradicto-
rias entre si que nos Uevan a pensar que, a Ia hora de formular juicios
críticos sobre los establecimientos en funcionamiento, debieron poner-
se en juego representaciones previas de Io que debía ser una institución
de menores, que iban más allá de Ias evaluaciones positivas o negativas
de Io que sucedia en Marcos Paz. En tal sentido, en otros trabajos hemos
podido comprobar que Ias representaciones, los discursos yIas prácticas
oíiciales en relación a Ia minoridad, en Ias que confluían elementos de
raigambre religiosa con otros propios dei liberalismo y dei positivismo,
estuvieron lejos de conformar una unidad acabada de claras proyeccio-
nes performativas. Por el contrario, Ias irresoluciones conceptuales con
respecto a quiénes eran y como debían ser tratados los menores, suma-
das a Ias concepciones encontradas delos funcionários acerca dei rol dei
Estado en Ia atención y en el control de Ia población y a Ia conveniên
cia econômica de apoyarse en Ia acción de los particulares para tratar a

Sociabilidades, justiças e violências:...


ciertos sectores de Ia población infantil, repercutieron hondamente en
Ias características de ias políticas públicas destinadas a su tratamiento.^^
Por otra parte, los resultados dei somero ejercicio de reconstruc-
ción dei funcionamiento de Ia Colonia de Marcos Paz que hemos rea
lizado abonan el punto de vista de los autores que desde hace tiempo
han llamado Ia atención acerca de Ia distancia que forzosamente media
entre todo proyecto institucional y el devenir cotidiano de Ias institucio-
nes. En tal sentido, ha de tenerse en cuenta que en Argentina el triunfo
ideológico entre algunos sectores de Ias elites dirigentes - sobre todo,
entre los especialistas - de novedosas corrientes intelectuales como el
penitenciarismo y Ias diversas disciplinas adscriptas a Ia tradición po
sitivista no condujo más que de un modo excepcional a Ia creación de
instituciones que se ajustaran a los princípios auspiciados por aquéllas,
y que incluso cuando propicio su fundación, Ia cotidianeidad institucio
nal se alejó bastante de Io imaginado en los proyectos, los reglamentos y
Ias declaraciones de princípios que les dieron origen, a causa de factores
tan diversos como los problemas de financiamiento. Ia lentitud de los
procesos judiciales - que impedia Ia llegada de los presuntos destinatá
rios de esos establecimientos a los mismos o Ias concepciones de los
empleados sobre cuál era el modo correcto de desplegar sus labores.^®

57 Zapiola, Maria Carolina, La invención dei menor: representaciones, discursos y po


líticas públicas de menores en Ia ciudad de Buenos Aires, 1882-1921. Tesis de
maestria en Sociologia de Ia Cultura y Análisis Cultural, UNSAM, IDAES, en
proceso de evaluación.
58 Sobre Ias manifestaciones de Ia distancia entre teoria y praxis en Ias instituciones
de castigo, ver Caimari, L.. op. cit., 2004. Para el caso de los establecimientos
de salud mental, ver Vezzetti, Hugo, La locura en Ia Argentina, Buenos Aires,
Paidós, 1985.59 Para Ias presentaciones de Ias instituciones de menores de ins-
piración foucaultiana, ver por ejemplo el análisis sobre el Asilo de Huérfanos
de González, Fábio, Ninezy beneficência: un acercamiento a los discursos y Ias
estratégias disciplinarias en torno a los ninos abandonados en Buenos Aires, de
princípios dei sigla XX, en Moreno, José L., comp., La política social antes de Ia
política social, Buenos Aires, Trama, 2000, y el de los asilos manejados por Ia
Conferência deDamas deSan Vicente de Paul de Ciafardo, Eduardo, Caridady
contrai social. Las sociedadesde beneficência en Ia ciudad de Buenos Aires, 1880-
1930, Tesis de Maestria presentada en FLACSO, Buenos Aires, 1990. Los dos
autores sostienen que los asilos constituyeron "instituciones de secuestro" que
apuntaban ai disciplinamiento de los ninos de los sectores populares, aunque

iEscuela regeneradora u oscuro depósito?...


Si tal fue el caso de Ia Colonia de Marcos Paz, única institución de
menores contemporânea concebida desde sus inicios como una entidad
pública inspirada en los "modernos princípios de Ia ciência" ^qué espe
rar para los asilos de huérfanos y casas correccionales controlados por
particulares y ordenes religiosas, para Ias instituciones sometidas a regí-
menes mixtos donde el financiamiento estatal se complementaba con el
de los benefactores y Ia dirección y administración de los establecimien-
tos quedaba en manos de estos últimos? Todo indica que el hallazgo en
el Buenos Aires de comienzos dei siglo XX de eficientes "instituciones
de secuestro" obedece más al apego de algunos autores a ciertos aspec
tos de Ia teoria dei poder de Michel Foucault -o a Ias lecturas parti
culares que realizan de Ia misma- que a una fundamentación en datos
empíricos pasibles de ser recabados a través de Ia labor historiográfica.^^
En tal sentido, Ia implementación de acabados proyectos de dis-
ciplinamiento social de los delincuentes -reales o potenciales, menores
o adultos- en los que Ias instituciones disenadas y organizadas en base a
los aportes científicos y jurídicos más vanguardistas de Ia época jugaran
un rol fundamental hubiera requerido un grado de claridad conceptual,
de decisión política y de provisión de recursos humanos y materiales
por parte de Ias autoridades que estuvieron ausentes o sólo parcialmente
disponibles a Ia hora de diagramar y de poner en funcionamiento un en-
tramado legal e institucional destinado a tratar de un modo específico a
los menores entre fines dei siglo XIX y comienzos dei siglo XX.

el segundo se muestra más atento a Ia distancia entre los supuestos objetivos de


esos establecimientos y sus reales capacidades performativas.
59 Para Ias presentaciones de Ias instituciones de menores de inspiración foucaultiana,
ver por ejemplo el análisis sobre el Asilo de Huérfanos de González, Fábio,
Niiíez y beneficência: un acercamiento a los discursos y Ias estratégias disciplina-
rías en torno a los ninos abandonados en Buenos Aires, deprincípiosdeisiglo XX,
en Moreno, José L., comp., La política social antes de Ia política social, Buenos
Aires, Trama, 2000, y el de los asilos manejados por Ia Conferência de Damas
de San Vicente de Paul de Ciafardo, Eduardo, Caridady controlsocial, ias socie
dades de beneficência enIaciudadde Buenos Aires, 1880-1930, Tesis deMaestria
presentada en FLACSO, Buenos Aires, 1990. Los dos autores sostienen que los
asilos constituyeron "instituciones de secuestro" que apuntaban al disciplina-
miento de los niiios de los sectores populares, aunque el segundo se muestra
más atento a Ia distancia entre los supuestos objetivos de esos establecimientos
y sus reales capacidades performativas.

Sociabilidades, justiças e violências:...


Memórias
de um velho hospício:
práticas de exclusão
versus histórias de vidas
- narrativas em conflito
NÁDIA MARIAWEBER SANTOS

Eu vejo o futuro repetir o passado


Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não para
Não para, não, não para (Cazuza)

M frase de Cazuza apresenta-nos um paradoxo: um futuro que


repete o passado, um museu de coisas novas, o novo e o velho sem
pre juntos, em um tempo que não pára, em um tempo que sempre
se restitui porque inexorável. Trazendo o fio dessa reflexão para o
objeto e campo de pesquisa, ou seja, loucura e internações psiquiá
tricas, surgem algumas perguntas, pertinentes ao caráter histórico
do longo processo de institucionalização da doença mental no Bra
sil: o advento dos manicômios, no século XIX, permitiu que o alie
nado fosse acolhido, curado e respeitado como ser humano, em vez
de ficar jogado em cadeias públicas ou vagando pelas ruas? E o que
as ciências médicas e, especialmente, a psiquiátrica, desenvolvidas
no século XX, trouxeram de renovador e alentador para o doente
mental, para aquele indivíduo tido como louco?
Há mais de vinte anos trabalhando com pacientes psiquiátricos
a partir do referencial da psicologia analítica, questiono a eficácia tera
pêutica dos métodos puramente organicistas respaldados pela ciência
contemporânea, empregados na maioria de nossos hospitais e ensina
dos nas faculdades de medicina. Nesse início do século XXI, em um
momento em que se discute amplamente o fim dos hospícios, isto é, a
desinstitucionalização da loucura - cujo processo inverso iniciou em
meados do século XIX no Brasil vê-se uma crescente proliferação de
novos medicamentos e condutas terapêuticas, respaldados nas neuro-
ciências que tomam um vulto quase hegemônico na atualidade. A "ca-
misa-de-força" de pano foi substituída pela "camisa-de-força" química?
Seria isso uma evolução nos tratamentos ou apenas uma substituição
corroborada pela ciência do momento?
Este estudo partiu, assim, da necessidade de pensar como se insta
lou no Rio Grande do Sul essa psiquiatria organicista, sua ligação com a
prática da exclusão de pacientes em hospitais e as representações que os
médicos, a sociedade, os familiares e os próprios pacientes faziam sobre
a doença mental'

Como médica, sempre tive uma preocupação em compreender a


loucura desde o ponto de vista daquele que a imagina, a sofre e a vive
desde dentro - e não somente por meio da visão do saber médico ins
titucionalizado e "apto" cientificamente para identificá-la e dominá-la.
Em suma, sempre partilhei da idéia de que o médico não sabe tudo e
não pode saber tudo a respeito de uma doença ou de um paciente. A voz
do doente sempre teve ressonância dentro mim, mesmo quando não
entendia o que isso poderia significar.

Este artigo é parte de uma ampla pesquisa iniciada em 1998; alguns de seus re
sultados já foram apresentados sob forma de dissertação de mestrado e tese de
doutoramento; outros materiais e dados encontrados ainda permanecem iné
ditos. O período histórico que de forma mais acurada foi examinado nas fontes
correspondeu ao de 1937 a 1950. Porém, ao encontrar um documento original
interno do hospital, de 1975 a 1979, chamado Memórias de um velho hospício -
de onde pego emprestado o mote desse artigo, cotejou-se às fontes iniciais e foi
observado que muitas das questões e problemas encontrados naquela década
foram perpetuados nas seguintes, Assim, o presente artigo relaciona décadas
diversas, a partir de documentação variada e de cruzamentos novos.

Sociabilidades, justiças e violências;...


Como pesquisadora, meu interesse ampliou-se ao percurso his
tórico que as técnicas organicistas fizeram em nosso meio hospitalar e
clínico, ganhando cada vez mais um amplo espaço, bem como o imagi
nário e as representações que a sociedade possuía sobre loucura e sobre
as pessoas ditas "loucas", respaldadas tanto pela "voz comum do povo",
como pela medicina.
Como fontes principais de pesquisa foram utilizados os prontuários
médicos do hospital psiquiátrico São Pedro - HPSP -, atualmente arma
zenados no arquivo público do Estado do Rio Grande do Sul (APRS);
colaboraram também para o estudo alguns relatórios da administração; o
livro do médico e diretor do hospital em duas longas gestões (1926-1932;
1937-1951) Dr. Jacintho Godoy (JG) sobre a psiquiatria no RS, editado
por ele mesmo em 1955; os jornais da época (principalmente Correio do
Povo e Diário de Notícias) e uma publicação interna do hospital, em forma
de periódico ou folhetim, de 1975-1979 (feito pelo chefe da recreação da
época e por uma professora), que relatam um pouco da história da insti
tuição com alguns depoimentos de funcionários e de pacientes.
É sempre necessário, para uma compreensão mais acurada de
uma situação de doença ou de cura, considerar o entorno ou a situação
social e cultural de quem é acometido pela doença tanto quanto daquele
que a trata. A visão de mundo daquele que estabelece teorias ou institui
tratamentos é seu passaporte para as técnicas que aplica. Dessa forma,
serão abordadas, brevemente, questões pertinentes à sociedade gaúcha
e à visão de mundo do diretor do HPSP do período.
Um conjunto de fatos históricos justificou a contextualização da
pesquisa a partir do ano de 1937: superlotação do hospício, urbaniza
ção de Porto Alegre e algumas cidades do interior, regimes totalitários
no mundo e o período do Estado Novo no Brasil (Ditadura Vargas) e
a segunda gestão do doutor Jacintho Godoy como diretor do hospital
psiquiátrico São Pedro.
A partirda década de 1940 iniciou o queseconvencionou chamar de
"superlotação" de internos no hospital, quando houve um aumento no nú
mero absolutode pacientes. Pesquisando os prontuários, que estão armaze
nados em caixas e maços no arquivo público do RS, fez-se uma estimativa
do ano de 1940, como amostragem: havia 42 caixas, com 20 prontuários em

"Memórias de um velho hospício":...


cada, o quedaria840 só nesse ano, e umasoma provável de 8.500 na década.
Comparando com o ano de 1933, onde havia somente 26 caixas, existiria
quarenta por cento a menos de internos na década anterior.
Por volta de 1948/1949, conforme contam ex-funcionários do
hospital e relatórios da administração, existiam trens que traziam uma
quantidade grande de alienados mentais do interior para Porto Alegre
e para o HPSP, no verão e no inverno. Esses doentes eram literalmente
"despejados" na viação férrea da capital e levados de ambulância para o
hospício. Porém, conforme o livro de Jacintho Godoy- e relatórios ante
riores, esse fenômeno já era apontado pelos diretores do hospital, sendo
que a partir de 1937 ele ficou mais grave.
Em sua obra, Godoy fala sobre o assunto, na página 104, onde
também se lê que as prefeituras de algumas cidades colaboravam com
dinheiro para o hospício a fim de mandarem os "doentes do cérebro" de
sua cidade para lá.

Em uma reportagem do Diário de Notíciasde março de 1951, fala-


-se em 2.961 internos só no ano de 1950, sendo que 714encontravam-se
sem leito. Um trecho dessa matéria é reproduzido abaixo:

Promiscuidade, a nota geral. No dia 19 do corrente, a


população, do São Pedro somava 2961 pacientes, sendo
assim destribuídos:

Indigentes homens -1.236


Indigentes mulheres - 1.297
Pensionistas homens - 239
Pensionistas mulheres - 189

Na divisão Esquirol, em que há 1.294doentes, só existem


780 leitos, faltando, pois, 514. E na divisão Pinei, há um
déficit de 200 leitos. Em suma, no HSP 714 doentes não
tem cama. Em salões constringidos para uma população
crescente, de instalações tão precárias que chegam a usar

Godoy, lacintho. A psiquiatria no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: edição do


autor, 1955. Essa obra, embora com o título tentando representar a história da
psiquiatria no Rio Grande do Sul, versa sobre a história do hospital São Pedro
desde que o autor assumiu sua direção.

Sociabilidades, justiças e violências;-..


garagens para dormitórios, apinham-se os doentes, empi-
Iham-se dois a dois em camas estreitas, espalham-se pelo
chão enovelados em mulambos. É a promiscuidade com
todo o seu cortejo de males em que sobressai, gritando, a
dificuldade de recuperação e cura dos doentes.^

Como se nota, já se falava em superlotação em 1937 (e mesmo an


tes), em 1948 com os trens e em 1951 esse fato é denunciado na impren
sa. Anos mais tarde, com o depoimento de alguns funcionários, essa
questão ficou explícita. É o relato que lemos agora de uma enfermeira
que entrou no hospital em 1971:

Em 1971 encontravam-se mais de cinco mil pacientes,


vivendo em condições desumanas, como prédios desa
bando, alimentação péssima, tratamento psiquiátrico ul
trapassado, contando com apenas 1.200 leitos. Obrigan
do a pacientes unirem duas camas e dormirem até cinco
atravessados, estimulando a promiscuidade e o aumento
das doenças infecto-contagiosas.'

A capital do Estado, Porto Alegre, teve seu plano de urbanização no


Estado Novo, com José Loureiro da Silva e tanto mais com a industriali
zação crescente do pós-guerra (1945-1946), urbanizando-se também algu
mas cidades do interior. As periferias cresceram e os cinturões de miséria
eram representativos, incomodando a imagem que se queria passar da ci-

Diário de Notícias (Porto Alegre), 22 de março de 1951, p. 5 e p. 12. Titulo da


Reportagem: Desleixo e desumanidade - mergulho nos abismos da Mansão
da Loucura - um inquérito que se torna necessário - Mergulho no abismo -
Inenarrável sordidez - Promiscuidade - Uma grave acusação - Problema de
administração. Autores: Nelson Grant e Paulo Tollens.
Memórias de um velho hospício. Impresso interno. Porto Alegre, hospital psi
quiátricoSãoPedro, 1975-1979. Impressso interno do hospitalpsiquiátrico São
Pedro, feito em cinco "capítulos", com textos de Rui Carlos Muller (chefe do
serviço de recreação) e pesquisada professora Marta Lilia Flores. Esse impres
so foi feito para divulgar o hospital no ano de seu centenário, que achavam ser
em 1979. Começou a ser escrito em 1975. Com a pesquisa realizada, descobri
ram a data correta do centenário (1984), porém esses cinco capítulos foram
publicados, internamente, em 1979. Material gentilmente cedido pelo dr. Ygor
Ferrão, diretor de ensino e pesquisa do HPSP, no momento em que estava sen
do realizada essa pesquisa, 1999.

"Memórias de um velho hospício":...


dade. No espaço urbano houve a verticalização da cidade e a finalização de
obras grandiosas para a fisionomiade Porto Alegre. Note-seque o hospício
da cidade foi construído, já no século anterior, em uma chácara bem afasta
da do centro da cidade, local mais "saudável", pela natureza e pela água que
oferecia, mas também pela distância da densidadepopulacional.^
Por outro lado, interessou-nos a procedência, a ocupação e a pro
fissão da parte da população que foi enviada para o hospício nesse pe
ríodo da década de 40: um número grande provinha de Porto Alegre,
trazido pela polícia, de procedência não-identificada, "achado na rua,
perambulando", isto é, não havia endereço ou familiares responsáveis
por ele ou então havia o rótulo de "desocupado". Muitos outros, a maio
ria, provinham de cidades do interior do Rio Grande do Sul.
Era comum haver cartas de delegados de polícia encaminhando
cidadãos, tanto da capital, como do interior. Por exemplo, uma que se
encontrava em um prontuário da caixa 406, de 1939: era uma missiva
do capitão chefe de Polícia de Porto Alegre, Aurélio Py, encaminhando
dez pacientes, sendo cinco da capital, um de Alegrete e quatro da cidade
de Pinheiro Machado. Achados como esses, inúmeros, corroboraram a
idéia de que os pacientes chegavam ao manicômio em grande quantida
de, tanto do interior como de Porto Alegre, encaminhados pelas mãos
da polícia.^ O prontuário em que essa carta se encontrava era de um

Para essa discussão ver WADI, Yonissa. Palácio para guardar doidos. Porto Ale
gre: Editora da UFRGS, 2002.
O escritor Lima Barreto,que sofreu duas internações psiquiátricasem sua vida, no
hospício Nacional de Alienados do Rio de Janeiro, ressente-se do fato, também, de
ter sido encaminhado ao hospital dentro de um carro de polícia e deixaregistrado,
em suas "memórias de hospício" algumas passagens sobre isso: "Ê uma triste con
tingência, esta, de estar umhomem obrigado aviver com semelhante gente. Quan
do me vem semelhante reflexão, eu não posso debcar de censurar a simplicidade
de meus parentes, que me atiraram aqui, e a ilegalidade da polícia que os ajudou.
Caído aqui, todos osmédicos temem pôrlogo o doente narua. Mas seguro morreu
de velho e é melhor empregar o processo da Idade Média: a reclusão."; "Não me
incomodo muito com o hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da
polícia na minha vida. De mim para mim, tenho certeza que não sou louco; mas
devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as dificuldades
de minha vida material, há seis anos, me assoberbam, de quando emquando dou
sinais de loucura: deliro." BARRETO, Lima.Diário de Hospício. In: O Cemitério dos
vivos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1956, p. 72 e 33.

Sociabilidades, justiças e violências:...


menino de 12 anos, vindo para Porto Alegre de Pinheiro Machado, com
outros três alienados, todos sem nome. Seu diagnóstico era de oligofre-
nia e imbecilidade, tendo sido transferido para a colônia agrícola. Nâo
havia nenhuma menção à sua família; morreu no hospital em 1942.
As profissões ou ocupações eram as mais variadas; entre elas co
merciante, carpinteiro, chauffeur, militar reformado, agricultor.
As mulheres também eram internadas em grande número^ po
rém a maioria era trazida pela família, principalmente pelo marido;
poucas tinham profissão, sendo a maior parte "do lar" ou "doméstica".
As idades variavam muito, desde 12 até 70 anos; a maioria dos
prontuários pesquisados era de pacientes entre 30 e 50 anos. Chamou
a atenção o número de mortes no hospital de pessoas que não tinham
patologias associadas e em cujos prontuários escreviam-se "alta por fa
lecimento". Uma estimativa feitas nas caixas pesquisadas mostra uma
média de 23 mortes a cada 40 prontuários.
Também existiam muitos diagnósticos de alcoolismo ou frases
com as seguintes descrições: "encontrado bêbado na rua" ou "foi encon
trado bêbado instigando arruaças". Assim, se prestarmos atenção nesses
dados e nos discursos totalitários que imperavam e que sustentavam
essa prática de exclusão, torna-se procedente a idéia de que o hospital
psiquiátrico da capital serviu ao propósito de internar para "limpar" a
cidade, ou seja, tornou-se um hospital lata-de-Uxo social.
Os"regimes totalitários" que ascenderam no início do século XX em
todo o mundo deixaram,sem dúvida, sua marca nas entrelinhas do passado
denossas instituições psiquiátricas. NoBrasil, tem-se a instalação do Estado
Novo em 1937, ou ditadura Vargas, como ficou conhecido esse período.
Seja pela prática de "limpeza" do tecido urbano e sua "modernização", seja
pelos preceitos eugenistas nos quais muitos desses regimes se pautavam,
esse período deixou profundas marcas de violência e de exclusão.

Como a pesquisa original não se deteve em questões e avaliações sobre gênero, não
foi possível identificarfidedignamente se haviam mais mulheres ou homens sendo
internados naquele período. Emalgumas caixas havia maisprontuários de homens
do que de mulheres, o que não nos habilita a fazer generalizações grosseiras de
números absolutos baseados em questões de gênero para todo o período.

"Memórias de um velho hospício":...


"O poder da medicina foi construído em um longo processo que
percorreu todo o século XIX e só consolidou-se no nosso Estado por
volta da década de 1940"^^. Tanto o positivismo de Júlio de Castilhos e
de Borges de Medeiros, como a eugenia, que vinha pelavertente da psi
quiatria organicista da Liga Brasileira de Higiene Mental, foram perce
bidos nos discursos dos governantes e dos médicos de nosso estado. A
trajetória do hospício São Pedro, tanto quanto as práticas psiquiátricas
que nele tiveram espaço, sofreram forte influência dessas duas "teorias"
ou visões de mundo.

Interessa-nos, aqui, a eugenia, pois foi a fundamentação "teórico-


-científica" dos regimes totalitários. O termo eugenia foi criado pelo in
glêsFrancis Galton (1822-1911), em 1883, que o definiu como "o estudo
dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer
as qualidades raciais das futuras gerações, seja física ou mentalmente".
Em 1865, publicou um livro {Talento e gênio hereditário) onde defende
a idéia que a inteligência é herdada e não fruto da ação ambiental. Ele
era parente de Darwin (1809-1882), tinham o mesmo avô. Poderíamos
dizer, com isso, que a perspectiva eugenista foi uma leitura radical da
teoria evolucionista. E podemos adivinhar as conseqüências que esse
fato traria para a humanidade. Galton propunha que "as forças cegas da
seleção natural, como agente propulsor do progresso, devem ser subs
tituídas por uma seleção consciente e os homens devem usar todos os
conhecimentos adquiridos pelo estudo e o processo da evolução nos
tempos passados, a fim de promover o progresso físico e moral no futu
ro." Após Galton, um grande número de intelectuais europeus e norte-
-americanos procurou explorar, sistematicamente, os efeitos físicos e
culturais produzidos pela miscigenação das raças humanas.''
Em 1937, as idéias eugênicas já vinham sendo implantadas na
Alemanha há três anos, com legislaçãoprópria e aceite da classe médica.
Em artigo do Correio do Povo de 4 de abril de 1937,escrito pelo corres-

WEBER, Beatriz. As artes de curar: medicina, religião, magia e positivismo na


república Rio-Grandense - 1889-1928. Santa Maria: Editora da UFSM; Bauru:
EDUSC, 1999.
COSTA, Jurandir Freire. História da psiquiatria no Brasil: um corte ideológico.
Rio de Janeiro: Xenon, 1989.

Sociabilidades, justiças e violências;...


pondente brasileiro em Berlim, encontramos dados e comentários que
comprovam, inclusive com números, o ideal eugenista dos dirigentes
do país e dos médicos, capazes de esterilizar cirurgicamente milhares de
pessoas que eram portadoras de alguma moléstia ou deformação física
de origem hereditária. Entre essas doenças destacava-se a esquizofrenia:

A Alemanha, considerada muito justamente como uma


das mais sadias nações européias, tem sua riqueza racial
posta em perigo pelo prevalecimento de cerca de 280 mil
caso de schizophrenia, um nome científico que abrange
várias desordens do espírito". Também nesse artigo, o
correspondenterelata que em 1935 foram esterilizadas 40
mil pessoas portadoras de enfermidades de caráter here
ditário na Alemanha, sendo que uma alta porcentagem
delas morreu em conseqüência dos efeitos da operação.
Fica registrado o fato que, em anos posteriores, se evi
denciou no nazismo em grandeescala, coma extermínio
de milhões de judeus em campos de concentração e de
outros considerados "inferiores biologicamente.

Na íntegra, a reportagem:

Há três anos na Alemanha foi iniciada uma das mais mo-


mentosas experiências eugênicas na história do mundo.
Um período de três anos é naturalmente insuficiente para
julgar os efeitos de uma medida concebida nos termos
de gerações sucessivas. É biológica em sua natureza e a
biologia quando aplicada na raça humana é uma ciência
cujos vestígios se estendem atéo remoto passado. Daí,se
guramente, os legisladores eugênicos invariavelmente fa
larem dos efeitos que se revelarão porsi mesmos durante
os próximos milhares de anos.
Além disso, é geralmente concordado que a legislação eu-
gênica deve serolhada unicamente à luz daciência. Ela não
é política no sentido ortodoxo da palavra. Opera melhor
silenciosamente, como que sob a superfície. Assim, embo
ra a lei alemã para a prevenção de rebentos degenerados
tenha sido recebida como uma grande conquista política,
mais nenhum acréscimo político está sendo feito sobre ela.

"Memórias de um velho hospício";..,


Persuasão ou Obrigatoriedade
Os adversários dessa espécie de legislação, vendo nela uma
ameaça aos sagrados direitos do indivíduo, experimentam
provasque a leinão está trabalhandosatisfatoriamente. Como
é geralmenteconhecido, consoanteesta lei, todo médico ale
mão está na obrigação de relatar à Corte de Eugenia local, o
nome de qualquer de seus pacientesque estejasofrendo de al
guma moléstia ou deformação física de caráterhereditário. A
Corte de Eugenia põe-seentão diretamente em contatocom o
pacientee aconselhaesteà esterilização voluntária.
Este, ao que parece, drástico proceder, foi estabelecido na
Alemanha como em outrospaíses também, inclusive na pro
víncia de Alberta no Canadá, que foi pioneira neste campo
- em vista do prevalecimento de certos impressionantes fa
tores intoleráveis neste século, agora queos meios biológicos
do pensamento se tornaram predominantes. Cada naçãotem
a sua cruz em matéria de enfermidades. A Alemanha consi
derada muito justamente como uma das mais sadias nações
européias tema sua riqueza racial posta seriamente emperigo
pelo prevaleci mento, inter alia, de cerca de 280.000 casos de
esquizofrenia, um nome científico que abrange várias desor
dens de espírito.
Os reformadores sociais, em regra, têm desconsiderado tais
fatos, principalmente devido asentimentos humanitários. Po
rém uma sociedade determinada exclusivamente pela razão
não pode permitir que seja constantemente ameaçada de de
sintegração pela persistência de um perigo desta espécie.

Falso Humanitarísmo
Já foi indicado que devido à natureza desta experiência
eugênica é difícil obter dados que sirvam para mostrar
como a lei está operando na prática. Um jornal médico
estrangeiro recentemente publicou estatísticas alegada-
mente obtidas em círculos oficiais. Porém, o autor do ar
tigo não ocultou sua hostilidade à experiência. Declarou
que no ano de 1935 nada menos que 40.000 pessoas na
Alemanha, sofrendo de enfermidades de caráter heredi
tário, tinham sido esterilizadas. Asseverou também que
uma alta percentagem destas pessoas tinha morrido em
conseqüência dos efeitos da operação. Essas estatísticas
podem ser consideradas simples ficções, estabelecidas
provavelmente com o auxílio de dados fornecidos por al
guma corte de eugenia local tirando a média correspon
dente para toda a Alemanha.

Sociabilidades, justiças e violências;...


Como uma questão de fato, as opiniões pela ciência mé
dica na Alemanha, depois que entrou em vigor a lei impe
dindo os rebentos degenerados, há três anos atrás, estão
absolutamente a favor dos métodos de persuasão ao invés
da drástica obrigatoriedade.
Uma coisa é certa. Requer coragem para fazer da esterili
zação uma arma na luta para erradicar a moléstia no or
ganismo nacional. Porém a prudência foi chamada para
auxiliar a aplicação de uma arma desta espécie, e tal coisa
tem sido indubitavelmente mostrada pelos legisladores
alemães, embora deva ser admitido que existe um forte
grupo de entusiasmados extremistas. Todavia, exceto no
caso de criminosos, a lei respeita os direitose liberdades
do indivíduo, estabelecendo que nenhuma operação deve
ser realizada, sem primeiro obter o consentimento volun
tário do paciente.

Uma Importante Distinção


Ademais, deve ser perfeitamente acentuado que a lei ale
mã levanta uma clara distinção entre a esterilização e a
castração, sendo esta última uma pena obrigatoriamente
imposta a certos tipos de criminoso sexual. Esta operação
tem o efeito de alterar toda a personalidade da pessoa,
criando um tipo definido de eunuco, enquanto que a es
terilização não transforma a personalidade e, portanto,
em sua aplicação, àqueles que sofrem de enfermidades
hereditárias pode ser considerada como inútil, no senti
do ordinário, e aconselhável nos casos onde a moléstia é
acompanhada pela falta de controle próprio.
Já tem sido dito que aqueles nos quaisfoi realizada a opera
ção são fáceis de se tornarem vítimas de um sentimento de
inferioridade, porém os reformadores eugênicos respondem,
contra isso, que a moral conquistada pela idéia do sacrifício
próprio para o bem geral é um fator compensador suficien
tementeforte para sobrepujar qualquer inferiority complex.

Mendelismo Triunfante
Durante as três últimas décadas,toda a vida cultural da Eu
ropa tem sido mais ou menos governada pelo pensamen
to biológico e agora a Alemanha experimentou três anos
de legislação eugênica que na realidade deve suaorigem à
descoberta de Gregor Mendel, sobre asleis de transmissão
hereditária. No campo de combate do declínio da popula
ção, uma especial legislação habilita os jovens casais que

"Memórias de um velho hospício"


desejem contrair casamento a obterem ajuda financeira.
Como somente pessoas sadias podem obter esses emprés
timos, existe um fator biológico trabalhando e pode ser
dito com segurança que não haverá sinais de degeneração
da família em meio milhão de crianças nascidas de tal ca
samento, durante o regime Nacional-Socialista.
O segundo resultado visível é o decréscimo no cômputo
das moléstias sofridas pela Nação. Sob este aspecto, deve-
-se contar seguramente com a legislação proibindo o casa
mento entre arianos e não-arianos. As atividades das cortes
consultivas matrimoniais não devem ser esquecidas a este
respeito. Tais coisas nada têm a ver com opiniões ou sen
timentos. É a ciência da biologia aplicada à raça humana.

Urbanização e Superindustrialismo
Existem então os progressos que não são diretamente
visíveis, e os quais devem ser considerados à luz da luta
contra a urbanização e o super-industrialismo. Muito tem
sido escrito sobre este tema pelos racialistas e biologistas
alemães. Na verdade é computado existir na Alemanha
uma publicação anual de cerca de três mil livros tratando
unicamente da ciência racial e seus problemas.
A regra é contrastar a liberdade e a igualdade da primi
tiva sociedade teutônica rural e o moderno industrialis-
mo com sua urbanização e conseqüente crescimento de
proletários sem terra, destruindo o equilíbrio biológico
e sociológico da sociedade medieval. O conceito urbano
da liberdade e da igualdade foi agora afastado do ideal
alemão, que somente pode ser realizado através da urba
nização, localização nas terras, reformas eugênicas e in-
culcando um novo espírito nórdico.
As cidades espessamente povoadas, declaram os racialistase
eugenistas, são sujeitas à psicologia das massas, que forne
cem o comunismo com as suas maisfortes raízes. Somente
em contato constante com o solo pode havera realização da
personalidade humana, e neste ponto, mais do que na habi
lidade dos cirurgiões alemães, deve ser procurada a garantia
real da saúde e integridade racial dasgerações vindouras.^'^

Três anos de legislação eugênica: o que se realizou na Alemanha na luta contra


a degenerescência dos rebentos - um triunfo visível do pensamento biológico
das últimas décadas. Correio do Povo. Porto Alegre, 04 de abril de 1937, p. 3.

Sociabilidades, justiças e violências:...


Deixamos em aberto, nesse momento, a possível relação desse fato
com os tratamentos administrados aos pacientes do HPSP, que também
eliminavam pessoas doentes, porém sob a legitimação das técnicas psi
quiátricas. As mortes que foram constatadas no hospital, pelo exame dos
prontuários, não nos autorizam a inferir que técnicas eugênicas de este
rilização eram administradas. Mas permanece o fato de que as mortes
existiram, pois foram relatadas nas papeletas médicas, com "causas igno
radas", em pessoas nem sempre velhas e com doenças associadas. Sabe
mos, pois, que doença mental não mata ninguém. As próprias técnicas
da nova ciência em ascensão estavam sendo experimentadas, o que pode
ter debcado, também, seu lastro de mortes e efeitos secundários nocivos.

No Brasil, essas idéias eugênicas começaram a ganhar espaço a


partir de 1914, com uma tese defendida na faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro; nos anos de 1920, elas ganharam grande notoriedade
também entre educadores, escritores e jornalistas.'^
Em 1929 aconteceu o primeiro Congresso de Eugenismo, no Rio,
com tema sobre a imigração, tendo como principal articulador Renato
Kehl. Essa "ciência da boa geração", como ele preconizava, tentou ser
uma escola para a formação de caráter e defesa da espécie. Em 1931
foi criada por ele a Comissão Central de Eugenismo, tendo como um
de seus diretores o professor e sanitarista Belizário Pena. Esse profes
sor, em 1928, visitou o hospital psiquiátrico São Pedro, tendo elogiado
a reforma pela qual passava o hospital, sob cuidados do doutor Jacintho
Godoy, tendo dito na época que "esse manicômio será um dos mais per
feitos estabelecimentos do gênero". Godoy, em seu livro, relata essavisita
e essas palavras com muito orgulho!
Na psiquiatria brasileira a eugenia esteve presente na formação
da Liga Brasileira de Higiene Mental, fundada no Rio de Janeiro em
1923 por Gustavo Riedel, com a ajuda de filantropos de seu círculo de
relações, com o intuito de "profilaxia" das doenças mentais. Interessante
ao nosso estudo foi o fato desse médico ter criado, um pouco antes da
liga, um ambulatório de profilaxia de doenças mentais (anexo à colônia

MACIEL, Maria Eunice. A eugenia no Brasil. In: Anos 90, revista do PPG em
História, UFRGS. Porto Alegre, n. 11. julho de 1999, p. 121-143.

"Memórias de um velho hospício":...


de Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro), um "serviço aberto" para
psicopatas, um laboratório de psicologia e uma escola de enfermagem,
onde eram formadas monitoras de higiene mental. Esses mesmos pas
sos foram seguidos por Jacintho Godoy, no São Pedro, principalmente
após 1937, e estão relatados em seu livro.

Podemos afirmar diante de tudo isso que, com a eugenia, o racis


mo entrava em sua era científica, sendo legitimado pela biologia e pelo
racionalismo darwiniano e também pela psiquiatria organicista domi
nante nesse período. A eugenia baseava-se em fundamentos racionais
que a psiquiatria organicista endossava. Tornava-se óbvio que, se a do
ença mental era transmitida por herança genética, a única prevenção
possível (dentro dessa lógica) era o extermínio físico ou a esterilização
sexual dos indivíduos doentes. Nesse momento histórico brasileiro, a
cientificidade dos princípios eugênicos só poderia ser negada se a vali
dade de toda psiquiatria organicista fosse questionada.'^
Como curiosidade, menciono que entre as leituras prediletas de
Getúlio Vargas, em sua juventude, apareciam as obras de Spencer e de
Darwin. Assim, Estado Novo e eugenia combinavam, pois essa última
encontrou um solo fértil com o respaldo autoritário e discriminatório
de controle social que se estabeleceu no governo de Vargas.
Chegamos então no ponto de examinarmos mais de perto o hospí
cio dessa nossacidadede PortoAlegre. Essa visão eugenista queacabamos
de descrever sedimentou-se também na psiquiatra do RS, legitimando as
técnicas orgânicas de tratamentoda doençamental, bem comoaspráticas
violentas e discriminatórias exercidas sobre os pacientes.
Jacintho Godoy (JG) exerceu duas gestões como diretor do HPSP:
de 1926a 1932, no Governo Borges, e de 1937 a 1950 no governo de Ge
túlio. Suas ligações com Borges de Medeiros e com Getúlio vêm desde a
juventude acadêmica. Como já citamos, ele também se relacionava com
eugenistas, como Belizário Pena. Além disso, foi secretário particular de
Borges com quem também tinha laços de contraparentesco.

Ver também, COSTA, Jurandir Freire, op. cit.

Sociabílidades, Justiças e violências;...


Em seu primeiro "mandato" ele foi demitido, em 1932, sob acu
sação de envolvimento e favorecimento político; volta à cena em 1937,
quando Getúlio assume o poder. Ele mesmo relata o fato em seu livro,
qualificando como injusta sua demissão do cargo, acusado de "favoreci-
mentos políticos" Segundo Godoy, o fato ocorreu "sob a falsa alegação
de atividade política, mas sendo de fato seu verdadeiro motivo, a cir
cunstância de uma velha ligação de amizade com um grande homem
público que se viu envolvido, na ocasião, no movimento armado pela
reconstitucionalização do País."'^
A demissão de Jacintho Godoy, em 1932, tem uma possível ex
plicação: "a velha amizade com um grande homem público", como ele
relata, era com Borges de Medeiros. Na Revolução Constitucionalista
de 1932, houve um "racha" na oligarquia gaúcha, ficando Borges na ala
regionalista em oposição a Getúlio e Flores da Cunha. Esse último era o
interventor no RS e demitiu Godoy da direção do hospital.
Devemos salientar que essa obra de sua autoria que citamos, embora
com amplo título, versasobre a história somentedo HPSPdesde o momen
to que ele assumiu a direção. O largo período que o antecede, desde sua
fundação (42 anos) mereceu apenas dois parágrafos. Naanálise dessa obra
(fonte para a pesquisa), encontramos um discurso laudatório programado
de seu autor, onde seauto-elogia o tempo todo - o que faz lembrar o "culto
ao chefe" como modelo e exemplo de eficácia e racionalidade a serseguido,
tão relevante no Estado Novo getulista e no nazismo - fazendo os mesmos
elogios assuas obras degrande portequerealizou paramodernizar o hospí
cio. Obras estas bem aos moldes extravagantes do Estado Novo, do mesmo
feitio que a modernização da cidade,que mencionamos anteriormente. Ele
escreve que emsuas gestões transformou ohospício dedepósitos depacien
tes em hospital psiquiátrico de tratamento.
Porém, conforme mostra seu discurso, ele acreditava que poderia
fazer melhor pelo hospício, quando de sua primeira gestão como diretor:

Quando em 1926 assumi a diretoria do hospital São Pedro,


esta casa era apenas um depósito de doentes, sem organi-

GODOY, J. op. cit., p. 15.

"Memórias de um velho hospício"


zação técnica e sem instalações materiais, não possuindo
senão, em estado rudimentar, os serviços primordiais de
qualquerhospital medianamente organizado - água, luze
esgotos. Guardo, ainda, na memória, tristes quadros que
surpreendi, então, nas minhas primeiras visitas e que co
nhecia apenas da descrição de Esquirol, inspecionando os
asilos da França, após a reforma de Pinei e isso há mais de
um século. Em quatro anos de trabalho febricitante, este
estabelecimento transformou-se, fazendo jus ao nome de
hospital. Canalizaram-se-lhe água da Hidráulica Muni
cipal e a luz da Energia Elétrica. Construiu-se uma rede
própria de esgotos pelo sistema Imhof. Foram reforma
dos quase todos os pavilhões, tirando de seus alojamen
tos o aspecto chocante de xadrezes. Incorporou-se ao pa
trimônio do estabelecimento uma área de 83 hectares, na
sua proximidade, com a aquisição da chácara municipal,
destinada à colônia agrícola, localizada outrora no Muni
cípio de São Jerônimo. E, em meio de toda essa atividade
material de obras novas de reconstruções, não foi esque
cida a investigação científica, em face de tão copioso ma
terial de observação, incentivando-se entre doutorandos
e médicos a produção de teses e monografias de valor,
com repercussão no estrangeiro, a ponto de, ao receber
o último trabalho dos Doutores Décio Sousa e Telemaco
Pires, dizer em certa carta aos autores, o eminente psi
quiatra francês, prof. René Targowla, que o Hospital São
Pedro já era conhecido na França, nos meios científicos
da especialidade, como uma autêntica escola.' '

Mas, na verdade, não foi isso que vimos, ao examinarmos outras


fontes, como os prontuários, os jornais e os depoimentos de pacientes.
Técnicas grosseiras e deteriorantes do físico e do psíquico eram empre
gadas, sem dúvida em nome do progresso da ciência. Entre elas, a in-
sulinoterapia (que provocava o coma insulínico em qualquer paciente
e não naquele que seria diabético), a malarioterapia (coma induzido ao
administrar no paciente sangue contaminado de malária; procedimento
trazido por ele como uma técnica nova para o hospital e da qual gabava-

GODOY. J. op. cit., p. 144-145.

Sociabilidades, justiças e violências:...


-se) e o ECT - eletro choque ou "eletroconvulsoterapia", introduzido
nessa instituição em 1944.'^

Além disso, a superpopulação e os maus tratos aos pacientes, que


se percebe nos depoimentos e no artigo do jornal Diário de Notícias de 22
de março de 1951, foram os estopins para a demissão de JG do hospital.

Sua visão de mundo, positivista e eugenista, e o espírito de uma


época, organicista e biologicista, não poderiam fazer com que fosse di
ferente a institucionalização da terapêutica psiquiátrica, em um hospital
sob sua direção. Cito palavras dele mesmo, que misturam discurso po
sitivista e eugenista:

Meus senhores, a psiquiatria não escapou à lei dos três es


tados, religioso, metafísico e positivo. No estado religioso,
completamente divorciado da Medicina, o alienado con
siderado como um possesso do demônio é encarcerado
nas prisões. A reforma de Pinei inaugura o período me
tafísico e a Psiquiatria ingressa no domínio propriamen
te médico, mas o caráter essencialmente filantrópico da
reforma desse grande homem explica as tendências pura
mente filosóficas e psicológicas desse estado. ÉcomMorei
que começa o estado positivo,verdadeiramente científico,
em que a noção da etiologia tóxica ou infecciosa serve de
base a uma classificação nosológica. No momento atual
da ciência médica, diante das conquistas maravilhosas da
Biologia, já se pode afirmar com desassombro que as mo
léstias mentais não existem. O que existem são sindromos
mentais ou afecções cerebrais com expressão psíquica,
determinadas por perturbações orgânicas ou funcionais
produzidas por toxi-infecções adquiridas ou herdadas.

Em sua segunda gestão, ele sofreu um processo administrativo e


foi afastado temporariamente do cargo (1944), depois de uma denúncia
por má administração. Foi matéria de pauta em sessão na assembléia
legislativa e teve seu nome registrado em reportagem de jornal, onde

Detalhes dessas técnicas e desse período ver SANTOS, Nádia Maria Webcr.
Histórias de vidas ausentes - a tênue fronteira entre a saúde e a doença mental.
Passo Fundo: Editora da UPF, 2005.
Godoy, ]. op. cit., p. 72-73.

"Memórias de um velho hospício";...


denunciam as más condições do hospital, com fotos inclusive. Em finais
de 1950 ele é retirado em definitivo da direção do HPSP. O caso (sua
demissão) dividiu a mídia e os políticos da época.

Uma grave acusação abateu-se contra o diretor do hospital, pois


"quando se percorre o São Pedro a irritação do visitante vai crescendo
por encontrar situações que de nenhum modo se justificam". Mais um
trecho da reportagem referida do Diário de Notícias ilustra o que acon
tecia "intramuros":

Chegamos exatamente à hora da refeição, cerca de 11 ho


ras. Em um vasto galpão chamado refeitório, no silêncio
sepulcral das fisionomias inexpressivas, sentavam-se com
primidos 760 doentes. Com o chão embarrado e umede-
cido, poças d'água aqui e acolá, abre-se o refeitório, exceto
na parte sul, a todos os ventos. Sem janelas e sem portas
entram furioso vento e chuva, entisicando os miseráveis
insuficientemente vestidos. Não é de estranhar, então, a
incidência bruta da tuberculose entre eles. Mas o aspecto
doloroso não pára aí: seus detalhes chocantes ferem suces
sivamente e somam-se no estridente da nota de uma abje-
ção a que foram criminosamente atirados essescoitados de
cuja sorte nenhum de nós está livre. São três funcionários
para a todos atender. É a falta de talheres: não possuem
uma colher sequer, comem com a mão, levam o prato à
boca, brutalmente. É servido arroz e feijão, às vezes car
ne, e, como falta prato fundo de folha, debcam de tomar
sopa. Aos que trabalham servem ração dupla. E acontece
que por falta de funcionários e vigilantes os doentes mais
fortes roubam o único pão aos incapazes de se defender,
tirando-lhes também não raro a própria comida. Quem
nos contou este detalhe foi umairmãdecaridade, cuja voz
comovidatraduzia um sentimento de infinitodesamparo.

Em outra parte do mesmo artigo, com o subtítulo Inenarrável Sor


didez, os autores não economizam em adjetivos ao descrever o que vêem
em seu trajeto intra-hospitalar:

Ver ata da sessão plenária da Assembléia Legislativa, de 5 de março de 1951.


Ver também programa de rádio de Manoel Braga Gastai, na Rádio Farroupilha,
de 27 de março de 1951.

Sociabilidades, justiças e violências:...


A poucos passos do "refeitório", ergue-se o pavilhão dos fujões.
Neles são trancafiados - como o nome indica - os doentes que se eva-
dem do hospital, bem como os destruidores e depredadores. Nus, en-
caveirados, cabelos raspados, indefinível palidez, ensimesmados pelos
cantos, empoleirados pelas camas tipo beliche, pesando um bafio in
suportável a provocar vômitos incoercíveis. E enquanto um demente
uivava e esmurrava a cabeça em "ais" lancinantes e ferozes que crispa-
vam os nervos, um outro completamente despido tinha esparramado
pela cama a comida e sobre ela sentava e calmamente almoçava. Aqui
se mostra, mais uma vez, o desleixo da direção passada do São Pedro.
Esses "fujões" e "destruidores" ficavam trancafiados no pavilhão, sem
receber durante meses a fio um raio sequer de sol. Que custavalevantar
umas paredes ao lado, pequeno pátio - como está fazendo agora a atual
direção - onde pudessem eles apanhar um pouco de sol? Bastaria para
se ter esta inspiração um interesse mínimo ...

Saindo do grande pátio aos fundos do hospício, por pequena


porta, passa-se paraa seção dos"sórdidos". Foram os doen
tes que apelidaram o dormitório, que aqui se encontra, de
maloca. Em galpão escuro de quatro metros delargura por
doze de comprimento, dormem trinta e cinco infelizes. No
chão, como WC, um buraco no encanamento do esgoto. Pe
las paredes de tábuas, frestas de mais de quatro dedos, têm
os velhos e sórdidos seus dormitórios. Pelas camas, em que
enxameiam moscas, manchas pretas e fedorentas. Eum tê
nue cobertor para proteger do vento frio e úmido que zune
pelas frestas. No dormitório dos doentes velhos é o mesmo
quadro. Na seção de furiosos, jáque não épossível conservá-
-los vestidos, pelas grandes janelas sem vidraças entra o frio
e a chuvaespadanantelavatodo o pavilhão.

Os oito depoimentos a seguir, de alguns pacientes e de funcioná


rios, que encontramos no folhetim de 1975-1979, corroboram a noção
de que sempre houve problemas de superlotação, de maus tratos e de
pouco caso com os pacientes internados. Mesmo tendo o doutor Jacin-
tho provado, segundo ele escreve em seu livro, que a reportagem acima
havia sido "matéria paga" para difamá-lo, pessoas que nem o conhece
ram narram fatos idênticos, ou piores, como veremos a seguir. E, o que
salta aos olhos, é que as pessoas em questão, que deram seus depoimen-

"Memórias de um velho hospício":...


tos na segunda metade da década de 70, referiam-se, também, por sua
longa permanência no hospital, a fatos que teriam ocorrido na década
de 50, momento esse bem próximo ao período pesquisado inicialmente
e que inclui a demissão do diretor em questão.
Até onde podemos depreender dessas narrativas, os mais afetados
eram os pacientes pobres e pertencentes às classes de menor poder aqui
sitivo. Porém, veremos adiante que mesmo os pacientes cuja internação
era paga pela família, também tinham dificuldades no hospital.
Naquele tempo, nós os atendentes entrávamos em um dia no
hospital e no outro já éramos responsáveis pela medicação. Quando
entrei, não conhecia os remédios e nem sabia aplicar direito a injeção,
mas como os pacientes ficavam em cima pedindo remédio, deixava eles
mesmos escolherem. Um fato que me lembro, uma paciente me pediu
uma injeção na veia, era uma ampola pequenina, não lembro o nome,
apliquei-a e ela entortou. Com o tempo eu olhava a cara da paciente e já
calculava a medicação.

Hoje está cem por cento de melhor o tratamento, tem comida para
todas, antigamente tinha uns probleminhas que por não terem comida
tomavam café com farinha. Acomida era uma panelinha para três pes
soas, hoje tem panelões de risoto, as camas são confortáveis. O medo
maior era das patentes que chamavam WC deboate, não tinha puxador
nem nada, eu tinha medo de cair lá dentro, tinha que se acocorar en
quanto uma pessoa segurava a gente.

Quem cuidava dos pacientes eram as irmãs. As visitas atiravam as


coisas para baixo para não chegar perto (corredor do 1- andar que dá
para o pátio das unidades) e a medicação era de uma qualidade só. O
choque era direto, todas deitavam e preparavam a boca, e as primeiras
que levantavam já iam ajudando as outras. Hoje, apesar de fraca das
vistas ajudo na comida.
Há 18 anos atrás o pátio era brabo, brigaçada todo o dia, era san
gue para tudo quanto era lado. A gente pegava a caneca e fincava na
cabeça das outras.

Estou 14 anos internada. Antigamente tinha mais irmãs que en


fermeiras, eu tinha horror do pátio, os quartos eram fechados (celas)

Sociabilidades, justiças e violências;...


e tinha saleta onde as pacientes ficavam nuas e no fundo desta uma sala
onde as irmãs trancavam as pacientes pra acalmar e davam choques e de
pois deixavam em um patiozinho. Só sopa davam para os homens e mu
lheres, os pacientes eram magrinhos. Faz uns 6 ou 7 anos que mudaram
tudo. A cozinha era velha, mudaram as panelas, o piso e não tinha guarda.

Fui trazida para o hospital com 16 anos e hoje estou com


30. (...) Naquele tempo a medicação recebíamos na en
fermaria à noite. As irmãs abriam nossas bocas e faziam
engolir os comprimidos que vinham em uma caixinha.
Era tudo aberto, as pacientes saíam para a rua e depois
voltavam. O médico lá de vez em quando aparecia, só as
irmãs atendiam. Nas refeições eram feitas duas mesas, ti
nha dias que íamos na primeira mesa e não tinha lugar,
quando tentávamos ir na segunda mesa diziam que já tí
nhamos comido. Quando ficávamos alguns dias sem co
mer a ???'^ da irmã F. é que levava escondido as pacientes
que não comeram para a cozinha à tardinha e nos dava
comida. O almoço era feijão, arroz e carne e à noite era
sopa, sobra de comida do meio-dia, muitos não conse
guiam comer. Não existiam reuniões, antes não cumpri
mentavam a gente, só alguém que era muito conhecido.

Agora é mais bom, tem divisão, é mais mandado, tem mais água,
para achar uma paciente é fácil, antes era tudo misturado.

Havia muitas brigas, dormíamos nuas lugares cheios de


m... no chão (antiga saleta), que além de imundos e fedo
rentos passávamos frio e só tínhamos um lençol por cima
e outro por baixo

Palavra ilegível na fonte original.


Depoimentos de funcionários e de pacientes encontrados no impresso do pró
prio hospital chamado Memórias de um velho hospício. Idealizado e escrito por
Rui Carlos Müller, chefe da recreação do hospital, em 1975. Essa fonte tornou-
-se importante, pois seu autor fez uma pesquisa nos arquivos e na biblioteca do
hospital, e escreveu um pouco da sua história (em cinco capítulos) desde sua
inauguração até 1975. Por ser o autor um funcionário do hospital, achamos
importante utilizá-la, pois ele escreve baseado em arquivos do HPSP, no livro
(certamente) do dr. Jacintho (a quem ele chama de "estenotável homem") e em
depoimentos de pacientes internadas há muito tempo no hospital. Certamente

"Memórias de um velho hospício":...


o testemunho da enfermeira Neli Suzin também estarrece por
ser contundente e colocado por uma profissional de saúde, formada em
universidade com a finalidade de tratar doentes...

Em 1971 quando cheguei ao hospital, marcaram-me muito as


condições em que viviam os pacientes nas unidades. A divisão Esquirol
era um pátio grande, único, com mais de mil doentes, todos em uma
inércia tremenda, só caminhando de um lado para outro, totalmente
fora da realidade. Os pacientes eram muito delirantes, parecia que a lou
cura era diferente naquela época, não sei se era pelo tipo de tratamento
utilizado ou era pela aglomeração de pacientes.
Quando entramos naquele pátio grande não se via pessoal da
enfermagem, ficavam duas a três atendentes psiquiátricas para darem
conta de mil e tantas pacientes, era um quadro horrível. O normal eram
pacientes nuas, caídas pelo chão, sujas, muito sujas, e ninguém sabia
com certeza quem era quem; só atendentes antigos e as freiras, prin
cipalmente, é que sabiam dizer os nomes de algumas. Elas na maioria
eram identificadas pelas outras pacientes.
Também tínhamos pacientes totalmente ignoradas, e perguntá
vamos então como era dada a medicação se nem sequer conheciam as
doentes. Cabe lembrar que as outras duas divisões do hospital, a Pinei e
a Kraepelin, apresentavam o mesmo quadro.

não conheceu dr. Jacintho pessoalmente, pois este afastou-se do hospital em 1


de março de 1951 e não mais voltou. O que fica é sua imagem de "benfeitor" do
hospital; ou, então, as pessoas que lêem seu livro, não o lêem criticamente. Na
opinião de Müller, por exemplo,a superlotação do hospital em 1937 foi "possi
velmente em conseqüência da maior divulgação do tratamento e de melhorias
técnicas". O depoimento das pacientes, o inquérito que Godoy sofreu em 1944,
a reportagem e as fotos da imprensa de 1951 são indícios deque a realidade não
eratãoboaquanto "pregava" Godoy emseu livro. Para maiores esclarecimentos
da "Era Jacintho Godoy" no HPSP vide: SANTOS, Nádia Maria Weber. Histó
rias de vidas ausentes - a tênue fronteira entre a saúde e a doença mental. Passo
Fundo: Editora da UPF, 2005. SANTOS, N.M.W. & WADI, Y. O doutor Jacin
tho Godoy e a história da psiquiatria no Rio Grande do Sul. Revista eletrônica
Nouveau Monde Mondes Nouveaux - CERMA/ÉCOLE DES HAUTES ÉTUDES
EM SCIENCES SOCIALES - EHESS, Paris, v. 6, 2006.

Sociabilidades, justiças e violências:...


A medicação não era selecionada, eram dados os mesmos com
primidos, colocados em caixas grandes, e distribuídos da mesma ma
neira como se dá milho para galinhas, à revelia. A distribuição seguia o
critério de: se o paciente estava agitado, dava-se dois comprimidos; se
estava calmo, somente um.

Outra coisa que me lembro muito bem era a cozinha. Os canos e


panelas muito velhos e furados dando a impressão, pelo vapor que saía
das mesmas, que estávamos entrando em uma nuvem de cerração. A
pouca distância não se distinguia as outras pessoas. Havia também o
lado cômico da historia, pois em razão dos buracos do chão, com aquela
fumaceira, quando não se caía em um buraco, tropeçava-se em um gato
ou cachorro, que sempre andavam por lá.

Progressivamente o hospital ia mudando de aspecto por


que havia partes que estavam praticamente desabando,
certos setores tinham que ser interditados e reconstruí
dos e aos poucos foi se criando uma nova aparência.-"

Vemos, assim, que o correr das décadas nada modificou, até os


anos de 1970, as instalações e as práticas terapêuticas dentro do HPSP.
Creio que até hoje vigem algumas práticas e condições alarmantes, pois
muito já se falou, em nossa capital, de fechar o hospício. A luta antima-
nicomial adentra as portas do São Pedro da Bento, desde a década de
1980, mas isso é matéria para novas pesquisas.
Seguindo o fio condutor do trabalho, ilustrarei, agora, como contra
ponto à visão biologizante dos tratamentos, com narrativas de três casos
de pacientes, retirados de prontuários médicos, das décadas de 1930 e de
1940. Suas histórias de vida, relatadas por eles mesmos ou por familiares,
no momento dabaixa hospitalar, ou porterem deixado escritos no hospital,
demonstram quecadaadoecimento possuíauma trama,uma narrativa, um
fator psicológico e emocional queprovocavam a doença. Isso significa que,
embora cada caso seja um caso, durante o período histórico pesquisado,

Citado na fonte Memórias de um velho hospício, já comentada.

"Memórias de um velho hospício"


todos eram tratados da mesma forma - terapias biológicase descaso com os
fatores psíquicose com suas histórias de vidas individuais.-'

Ao debruçar-me sobre os doentes e seu destino, compre


endera que as idéias de perseguição e as alucinações se
formam em torno de um núcleo significativo. No fundo,
há os dramas de uma vida, de uma esperança, de um de
sejo. Se não lhes compreendemos o sentido, é uma falha
nossa. Nessas circunstâncias, compreendi pela primeira
vez que na psicose jaz e se oculta uma psicologia geral
da personalidade e nela se encontram todos os eternos
incuráveis, obtusos, apáticos, se agita mais vida e sentido
do que pensamos. No fundo, não descobrimos no doente
mental nada de novo ou de desconhecido; encontramos
nele as bases de nossa própria natureza..."

Relato um caso de uma mulher de 38 anos, doméstica, analfabeta,


natural e procedente de Passo Fundo. Diagnóstico na internação: esqui
zofrenia.^^ No momento da baixa, o marido prestou informações que,
compiladas, nos mostram sua história psicológica e de adoecimento.
Dois meses antes da hospitalização, a paciente viu uma luz pela
janela, localizando-se em um canto do quarto. No dia seguinte, ela con
sultou uma sortista (sic) que disse que a luz indicava dinheiro escondido
no lugar onde havia se localizado. Quando o marido chegou, encontrou
a paciente escavando um enorme buraco, a fim de encontrar dinheiro. O
marido pediu que ela abandonasse a idéia, sem resultado. Desde então,
a paciente dizia ouvir vozes de seus guias e também os ver. Não dormia,
pois receava que seus inimigos viessem matá-la. Falava continuamente
em Deus e nos santos. "Ultimamente, disse o marido, tem chorado e
quase não dorme, sempre com receio que a matem. Há dois meses co
meçaram os primeiros sintomas, mas há 15 dias está pior."

Em função do compromisso ético de não revelar a identidade dos pacientes, não


serão colocados aqui os números específicos dos prontuários trabalhados; po
rém, as caixas examinadas encontram-se elencadas em Fontes, ao final do ensaio.
JUNG, C.G. Memórias, sonhose reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984,
p. 117-118.
Dados retirados de prontuário da caixa 485, de 1941.

Sociabilidades, Justiças e violências:...


Em sua história pregressa à internação e a essas crises, obtivemos
a informação, colhida pelo médico junto ao familiar, que era uma pes
soa alegre no passado, mas há alguns meses vinha triste e desconfiada.
Teve a perda de um filho, poucas horas depois do nascimento há um ano
da baixa hospitalar; tinha também história de três abortos. Possui uma
ferida na boca há seis anos, com diagnóstico de sífilis. Casou-se aos 16
anos, com um homem de 38 anos, seu marido nessa época ainda.
Como terapêutica, recebeu várias sessões de insulinoterapia.-' Re-
-internou algumas vezes com o mesmo problema e alucinações auditivas.
A questão que se coloca é que, embora o tratamento fosse o pre
conizado na época, vê-se que a paciente tinha motivos para apresentar
distúrbios emocionais, como por exemplo, o natimorto, os abortos e a
sífilis adquirida possivelmente do marido, bem mais velho do que ela.
Não sabemos em que circunstâncias aconteceu esse casamento, haven
do motivos suficientes para essa mulher "enlouquecer", depreendidos
com o pouco de história pessoal colhida pelo médico. Porém, o trata
mento biológico de nada adiantou.
Cotejaremos com um outro caso em que o mesmo diagnóstico foi
dado e o mesmo tratamento foi administrado, embora sendo uma outra
história de vida e outros dados psicológicos.

Esse tratamento chama-se Insulinoterapia de Sakel. Essa técnica remonta a


1933, quando Sakel (médico vienense) apresentou o resultado de suas pri
meiras pesquisas. Trata-se de administrar insulina (atualmente só usada em
pacientes diabéticos) e provocar um estado de coma (coma induzido), que se
chama coma hipoglicêmico. A hipoglicemia significa baixa taxa de glicose no
sangue. Na diabete essa taxa é alta por problemas de secreção inadequada de
insulina pelo organismo. Administra-se insulina exógena para compensar, por
issopacientes diabéticos não podiam receber insulinoterapia de Sakel. Mas não
foi localizada no prontuário alguma anotação a respeito de terem feito exames
de sangue para saber se era diabética ou não, assim como em nenhum dos
inúmeros prontuários que mostravam esse tratamento. Foi por anos a base do
tratamento da esquizofrenia. Sua observação empírica de que estados hipogli-
cêmicos melhoravam o estado psicótico foi preconizado como método prefe
rencial de tratamento de quase todas psicoses até meados de nosso século. Em
nosso meio, foi apenas substituído com o advento do elelrochoque.

"Memórias de um velho hospício":...


Trata-se de uma menina de 12 anos, estudante, procedente de Por
to Alegre, tendo a família custeado todo tratamento. A menina foi inter
nada em julho de (1941)-^ vindo transferida do isolamento do Hospital
São José, onde internara com febre tifoide. Na baixa, encontrava-se em
estado de excitação psicomotora, humor ansioso, enfraquecida fisica
mente e obnubilação da consciência, chorando muito e inapetente.
O tratamento recomendado para o diagnóstico de esquizofrenia,
como já vimos, foi inúmeras sessões de insulinoterapia, que totalizaram
60 só nessa internação. Já na primeira sessão ela começou a apresen
tar intolerância à insulina, pois fez uma crise convulsiva, considerada
grave, no decorrer do coma. Mesmo assim, embora "em observação",
continuaram as sessões.

Alguns dias após a entrada no hospital, o médico escreveu na pa-


peleta que ao apresentar um quadro típico de confusão mental e dentro
de curto prazo, melhorou, tornando-se muito amiga das irmãs. Logo
depois se agitou e, ao final de uma semana de excitação psicomotora, en
trouem umafase de indiferença pelo meio, não procurando mais asirmãs
como antes. Baixou ao serviço de insulinoterapia tendo melhorado um
pouco do estado mental e muito do somático. Logo em seguida apresen
tou-se bem nutrida, em uma atitude aparentemente bem adaptada.
Era uma pessoa retraída, não olhava para ninguém e por vezes
esboçava um sorriso imotivado, só falando se interrogada.
A instabilidade do estado da paciente continuou, tendo várias
complicações quando da administração da insulina (febre, convul
sões). No início do segundo mês de internação ela saiu do hospital para
passar o dia fora, a pedido de seu pai. Quatro dias após esse passeio, a
enfermeira anotou na papeleta que toda sintomatologia anterior havia
se dissipado, que ela apresentava fácil comunicabilidade, estando bem
adaptada e coerente e portando-se bem no passeio que fez com o pai.
Seu estado somático era tido como excelente. Em dezembro desse ano
ela teve alta, com uma anotação de que apresentou resistência à insuli
noterapia e estava curada dos distúrbios mentais agudos.

Dados retirados de outro prontuário da caixa 485, de 1941.

Sociabilidades, justiças e violências:...


Essa mesma paciente, então, re-internou em fevereiro de 1945,
com 15 anos. Residia em Venâncio Aires. Encontrava-se em estado de
agitação psicomotora, com logorréia, gesticulação abundante e falando
de maneira teatral, em tom declamatório. O tratamento administrado
foi eletrochoque^'', em muitas sessões. Em abril, dissiparam-se as ma
nifestações de excitação, ficando "calma, adaptada e coerente". Em maio
estava restabelecida do estado psicótico e pode sair a passeio em com
panhia de pessoa da família (pai). Quando retorna do passeio está com
seu estado mental agravado, mostrando-se indiferente, com incoerência
do pensamento e da linguagem, risos imotivados, desleixo no vestuário.
Continua, então, o tratamento com eletrochoque.
Em maio havia ainda uma anotação no prontuário dizendo que
"faz meses que a paciente não é menstruada". No final desse mês, após
várias sessões de eletrochoque, ela sai novamente do hospital durante o
dia para passear com pessoa da família (não é mencionado com quem) e
"porta-se de maneira adaptada ao passeio". Faz mais algumas sessões de
eletrochoque e tem alta em julho, lúcida, tranqüila e coerente.
Em abril de 1952 ela foi admitida no setor de profilaxia mental do
HPSP, um serviço aberto, hoje chamado de ambulatorial. Não há maio
res anotações na papeleta sobre esse período.
Em maio de 1953, chegou ao hospital um ofício do subdelegado
de Canoas, perguntando se ela realmente esteve internada no período
de 1941 a 1944 e justificou essa pergunta dizendo que "há naquela de
legacia um inquérito policial em favorecimento a ela, que seria a ofen
dida". Nesse momento, a paciente estava com 24 anos. Não há outros
dados no prontuário e a história relatada nessa fonte termina aqui.
Porém ficaa pergunta: por que elavoltara mais confusa do passeio
com o pai? E por que ela parara de menstruar? E contra quem era esse
processo? E o que respaldava o diagnóstico de esquizofrenia? Mais uma

Tratamento instituído no HPSP em 1944. Preconizada e iniciada na Europa


por Cerletti e Bini, em 1938, substituiu amplamente o tratamento convulsivo
farmacológico. Ê feito com o paciente sob anestesia. Seu uso é extenso e indis
criminado até os dias de hoje. No HPSP era usado também pelas irmãs para
punirem pacientes, conforme relato dos mesmos.

"Memórias de um velho hospício":...


vez se percebe o descaso com a história de vida da paciente e a corrente
biológica prevalece no tratamento.
Dentre os inúmeros casos encontrados de pacientes internados,
um deles foi especial e já foi trabalhado em duas ocasiões, de forma mais
detalhada^^ e, portanto, aqui servirá apenas de exemplo ao que quere
mos demonstrar nesse ensaio.

Desse paciente, internado durante quatro meses do ano de 1937,


foram encontradas 12 cartas escritas por ele mesmo, dentro do hospí
cio, material anexado ao seu prontuário e guardado no arquivamento
geral das papeletas, atualmente no APRS.^® Elas constituem uma fon
te documental rara para avaliarmos o imaginário não só do paciente
- sua história de vida e psicológica - mas também o imaginário de uma
época, bem como as condições do entorno físico a que foi submetido
na internação psiquiátrica, as más condições das instalações em que foi
colocado e - não menos importante - a precariedade das relações hu
manas dentro de um hospício.
Era um homem de 34 anos, casado, paide filhos. Profissão: padeiro.
Diagnóstico deparaprhenia, um nome antigo dado às síndromes de delí
rio crônico. Sinais e sintomas da moléstia: idéias de grandeza, absurdas e
extravagantes. Mas na baixa apresentava-se calmo, tranqüilo e coerente.
Não há especificação do tratamento administrado, mas sim uma nota na
papeleta transferindo-o para a seção deterapêutica. Era um paciente par
ticular, cuja internação foi toda paga pela família. Teve alta sem melhora,
conforme o médico. Como tinha teste positivo parasífilis, é provável que
tenha sido tratado com malarioterapia, tratamento preferencial para essa
moléstia na época, porém não havia especificação do tratamento no pron
tuário, somente uma menção à sua ida para o "setor de terapêuticas" .

Ver SANTOS, Nádia Maria Weber. Histórias de vidas ausentes - a tênue frontei
ra entre a saúde e a doença mental. Passo Fundo: Editora da UPF, 2005. SAN
TOS, Nádia Maria Weber. Histórias de sensibilidades: espaços e narrativas da
loucura em três tempos - Brasil 1905, 1920, 1937. Tese de doutorado. PPG em
História, IFCH, UFRGS. Porto Alegre: UFRGS, 2005.
Prontuário encontrado em caixa de 1899, de número 3; porém pertence ao ano
de 1937. quando esse paciente ficou internado de maio a setembro.

Sociabilidades, justiças e violências:...


As cartas tinham um conteúdo ímpar, em geral de muitas pági
nas, escritas a maioria em papel aimaço, dirigidas a um suposto amigo
(o escritor, historiador e jornalista gaúcho Vianna Moog), a editores de
jornais, artigos para a imprensa (há uma cujo título é A Avareza, que
para ele era a qualidade mais desprezível no ser humano e que está na
vanguarda do mundo), desabafos filosóficos (Meditações e previsões so
bre ofuturo), bem como aquelas dirigidas a personalidades de destaque
da época, como o Arcebispo Metropolitano Dom João Becker e o go
vernador do Estado. Algumas relatam os problemas que teve com pai e
família. É fundamental ressaltar que elas são escritas em um português
bonito e corretas gramaticalmente, não só no sentido formal da língua,
como nas formas simbólicas que descreve, o que demonstra um grau
elevado de cultura, crítica e inteligência.
Ê bom que lembremos que ele também estava escrevendo em um
momento em que se dava a ascensão dos regimes ditatoriais no mundo
e no Brasil, e que esse imaginário coletivo também se percebia nas car
tas. Falava em política, economia, na Igreja e no Clero; utilizava como
metáfora as Cartas persas de Vianna Moog, discutia sobre a guerra civil
espanhola e debatia o futuro da nação brasileira.
Existe, nessas missivas, lucideza respeito de seu estado de adoeci-
mento, tanto quanto da forma como era tratado no hospício, e embora
seu pai custeasse todo seu tratamento, ele padecia dos mesmos proble
mas que os "indigentes". Tratamento? A exemplo disso, colocamos aqui
alguns pequenos trechos das cartas, testemunhos contundentes de quem
está sofrendo e também passando por uma internação psiquiátrica, ten
do contato com a realidade diária e aviltante de um hospício: "... a todo
instante sou interrompido por loucos que, ora me pedem cigarro, ora
fogo, ora apenna. Para dizer-vos basta que estou escrevendo encostado
na latrinae de cigarro na boca ..." (carta 3); "... ando seboso, quando vão
me tirar daqui?"; "aqui no hospital começo a ver fantasmas ..." (carta4).
Com freqüência, ele deixa transparecer em seus desabafos, a indignação
sobre a falta de condições, lá dentro mesmo do hospital, de receber um
pouco de papel para escrever "... aqui nem a muque dão-me papel; Re
gime de hospital ..." (carta 9); "... rogo desculpar-me o feitio dessa que
é cara como tudo, aqui no hospital, onde estou e tenho que lutar com
sérias dificuldades para adquirir um pouco de papel e tinta na altura,
pois crêem que sou maníaco ..." (carta 7). Mas não deixa de admitir, em

"Memórias de um velho hospício":,,.


outros momentos, que está doente e precisa de tratamento, quando diz,
com ironia: "...attestando o meu estado de hyper-excitação nervosa, que
claramente transparece naqueles versinhos rudes, pelo facto de reviver
dias amargos e estar actualmente adoentado e em tratamento achando-
-me sob o açoite da medicina que desequilibra para equilibrar... (carta 6)".
Sua história, depreendida das cartas que escreveu e às quais não foi
dada a devida atenção no momento de sua internação, é a de um jovem
que foi seduzido por um padre da igreja, provavelmente no colégio em que
estudou em sua adolescência, e isso modificou toda sua vida. O conteúdo
apreendido pela interpretação de suascartas estána base de seu imaginário
e certamente é a raiz histórica de sua dissociação psíquica e de seu adoeci-
mento. Não se trata de negar que ele esteve doente mentalmente por um
período longo (aliás, ele mesmo o admite em uma carta). Mas sim de ver,
pelo conteúdo de suas fantasias (expressas simbolicamente nas cartas), as
raízes de seu desequilíbrio, bem como as "saídas" criativas que poderiam
ter sido apontadas e realizadas. Ele era um poeta, um escritor e sabia disso.
Quaseum filósofo, talvez. Mas a visão demundo de seus familiares (seu pai
dizia que ler muito, como ele fazia - textos de filosofia, religião e política
- era o sinal desua loucura) e de quem o tratou, não permitiu que a psico-
gênese (gênese psicológica, ou em palavras leigas, "origem emocional") de
suadoença fosse trazida à tona e trabalhada, permitindo assim que outros
potenciais de sua personalidade - potenciais criativos - fossem reahzados.
Vingaram os postulados da psiquiatria organicista, que lhe deu alta "sem
cura", como está escrito no prontuário médico.

É importante atentarmos para o fato de que

[...] em muitos casos psiquiátricos, o doente tem uma his


tória que não é contada e que, em geral, ninguém conhe
ce. Para mim, a verdadeira terapia só começa depois de
examinada a história pessoal. Esta representa o segredo
do paciente,segredoque o desesperou. Ao mesmo tempo,
encerra a chave do tratamento. É, pois, indispensável que
o médico saiba descobri-la. Ele deve propor perguntas
que digam respeito ao homem em sua totalidade e não
limitar-se apenas aos sintomas. Na maioria dos casos, não
é suficiente explorar o material consciente..

Sociabilidades, justiças e violências:...


Gostaria de concluir, dizendo que a compreensão da doença men
tal passa pela compreensão da história de vida e da história psicológica
de um paciente^ da forma mais abrangente possível, histórias essas que
se desenrolam como um drama, tanto em um plano individual (entorno
familiar e história psicológica) como coletivo (história social e cultural),
isto é, na história vivida e na história de um mundo que o cerca.

Sendo assim, resgatar trajetórias e processos históricos, individuais


e coletivos, assume uma importância ímpar para mudarmos o paradigma
de doença mental e das práticas exercidas sobre ela - sejam as práticas de
exclusão, hoje em dia colocadas em xeque, pois o lema atual é "incluir",
sejam as práticas terapêuticas. Essas últimas só podem mudar quando a
ciência médica se der conta de que nossos parâmetros racionalistas cien-
tificistas, ainda aos moldes da ciência do século XIX e levados ao extremo
pelo progressotecnológico do séculoXX, não dão conta do extenso rol de
problemas emocionais e psíquicos do homem contemporâneo.
As terapêuticas antigas, obsoletas, deram origem a novas condu
tas, mas sempre na vertente biológica, agora com os grandes coquetéis
medicamentosos. Mas, se o mundo continua cada vez mais repleto de
pessoas comproblemas psiquiátricos, não seria o momento de reavaliar
mais uma vez o paradigma vigente?
Por exemplo, qual a função adequada de retirarmos os loucos do
hospício, depois de tanto tempo internados, entupidos de remédios e
com o cérebro disfuncionado de tantos eletrochoques, e o atirarmos na
selva que é o mundo de hoje? Acaso eles saberão viver sozinhos, gozan
do de suas plenas aptidões físicas e emocionais? Enquanto não mudar
o paradigma de doença mental, a loucura permanecerá intacta, mesmo
fora dos muros do hospício ...
Finalizo esse texto, portanto, de uma forma um tanto inusitada,
mas necessária, citando C.G. Jung, o psiquiatra suíço que em sua longa
vida dedicada a repensar a loucura e suas inter-relações sociais e cultu
rais, mudou esse paradigma:

Observando-se que, por princípio, as vantagens do co


nhecimento redundam especificamente em desvantagem
para a compreensão, o julgamento decorrente pode se

"Memórias de um velho hospício":...


tornar um paradoxo. Para o julgamento científico, o indi
víduo constitui uma mera unidade que se repete indefini
damente e pode ser igualmente expresso por uma letraou
um número. Para a compreensão, o homem em sua sin
gularidade consiste no único e no mais nobre objeto de
sua investigação, sendo necessário o abandono de todas
as leise regras que, antes de tudo, se encontram no cora
ção da ciência. O médico principalmente deve ter cons
ciência desta contradição. Por um lado, ele está equipado
com as verdades estatísticas de sua formação científica e,
por outro lado,elese deparacom a tarefade cuidar de um
doente que, principalmente no caso da doença mental,
exige uma compreensão individual. Quanto mais esque-
mático o tratamento, maiores as resistências no paciente
e mais comprometida a possibilidade de cura. O psicote-
rapeuta ver-se-á obrigado a considerar a individualidade
do paciente como fato essencial, a partir do qual deverá
ajustar os métodos terapêuticos. Hoje já se tornou um
consenso na medicina de que a tarefa do médico consiste
em tratar de uma pessoa doente e não de uma doença
abstrata que qualquer um poderia contrair.^"

Partindo-se da observação que as palavrasacima foram escritas há 50


anos atrás, resta-nos ter a confiança de que não foram proferidas em vão.

FONTES
Ata da sessão plenária da Assembléia Legislativa, de 5 de março de 1951.
Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.
Jornal Correio do Povo - 4 de abril de 1951, Museu de Comunicação
Social Hypólito José da Costa (MCSHC)
Jornal Diário de Notícias - 22 de março de 1951. Museu de Comunica
ção Social Hypólito José da Costa (MCSHC)
Memórias de um velho Hospício, 1 a IV. Impresso interno do Hospital
São Pedro, de 1975 a 1979.

Jung, C.G. Presente efuturo. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 5. Esse texto foi escrito
em 1957.

Sodabilidades, justiças e violências;...


Plano de Urbanização de 1943 da cidade de Porto Alegre, de José Lou
reiro Paiva, Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho.
Prontuários médicos do hospital São Pedro de Porto Alegre, arquivados
no Arquivo Público do Estado (Rio Grande do Sul); caixas n. 405 e 406
de 1939; caixa n. 485 de 1941; caixa n. 3 de 1899, onde se encontrou ao
acaso o prontuário de 1937 com as cartas;
Psiquiatria no Rio Grande do Sul-, de Jacintho Godoy, edição do autor,
1955.

REFERÊNCIAS
COSTA, Jurandir Freire. História da psiquiatria no Brasil: um corte ide
ológico. Rio de Janeiro: Xenon, 1989.
JUNG, C.G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Frontei
ra, 1984.
. Presente e futuro. Petrópolis: Vozes, 1988.
MACIEL, Maria Eunice. A eugenia no Brasil. In: Anos 90, revista do
PPG em História, UFRGS. Porto Alegre, n. II. Julho de 1999, p. 121-143.
PESAVENTO, Sandra. Memória Porto Alegre, espaços e vivências. Porto
Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1999.
. Uma outra cidade - o mundo dos excluídos no final do século
XIX. São Paulo: Cia Editora Nacional, 2002.
SANTOS, Nádia Maria Weber. Histórias de vidas ausentes - a tênue
fronteira entre a saúde e a doença mental. Passo Fundo:m Editora da
UPF, 2005.
. Histórias de sensibilidades: espaços e narrativas da loucura em
três tempos - Brasill905, 1920,1937. Tese de doutorado. PPG em Histó
ria, IFCH, UFRGS. Porto Alegre, UFRGS, 2005b.
SANTOS, N.M.W. & WADI, Y. O Doutor Jacintho Godoy e a História
da Psiquiatria no Rio Grande do Sul. Revista eletrônica Nouveau Mom
de Mondes Nouveaux - CERMA/ÉCOLE DES HAUTES ÉTUDES EM
SCIENCES SOCIALHS - EHESS, Paris, v.6, 2006.
SCHIAVONI, Alexandre. A institucionalização da loucura no Rio Gran
de do Sul: oHospício São Pedro eafaculdade de medicina. Porto Alegre,
Dissertação (Mestrado em História), IFCH, UFRGS, 1997.
. Um furacão na cidade : o hospício São Pedro na Porto Alegre
'fin de siècle'. Cadernos de estudo do PPG em História da UFRGS, n.lO.
Porto Alegre: UFRGS, 1994.
WADI, Yonissa Marmitt. Palácio para guardar doidos: uma história das

"Memórias de um velho hospício";,,.


lutas pela constituição do hospital de alienados e da psiquiatria no Rio
Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2002.
WEBER, Beatriz. As artes de curar: Medicina, religião, magia e positivis
mo na república Rio-Grandense - 1889-1928. Santa Maria: Editora da
UESM; Bauru: EDUSC, 1999.

Sociabilidades, justiças e violências:...


As fronteiras entre
o crime e a loucura
e a criação
do manicômio judiciário
do Rio Grande do Sul
LIZETE OLIVEIRA KUMMER

primeira narrativa policial brasileira foi publicada como fo


lhetim pelo jornal A Folha a partir de março de 1920 e editada pos
teriormente em livro com o título de O mistério (Reimão, 2005).
Os textos foram escritos por Coelho Neto, Medeiros e Albuquer
que, Viriato Corrêa e Afrânio Peixoto, um dos grandes nomes da
psiquiatria forense na época. Cada autor escrevia um capítulo e
o próximo continuava a partir daí, sem um planejamento prévio
detalhado. O romance critica ironicamente o sistema judiciário
brasileiro, a polícia e a própria psiquiatria forense. O detetive en
carregado de investigar um caso de assassinato, o major Mello
Bandeira, é apresentado como o "Sherlock da cidade". O assassi
no, Pedro Albergaria, é o personagem por meio do qual os auto
res mais criticam a polícia: "denuncia-se seu comprometimento
com a classe dominante, sua subordinação à imprensa e à opinião
pública, seus métodos violentos de obter informações e confissões e a
participação da polícia na contravenção" (Reimão, 2005, p.l5).
O assassino, apesar de confessar o crime, acaba absolvido pelo
júri, que nega inclusive a morte do banqueiro Sanchez Lobo, objeto da
investigação. Em um dos capítulos, escrito por Afránio Peixoto, há uma
descrição do julgamento que ridiculariza a retórica dos bacharéis e o
cientificismo da época:

A promotoria pública, bem representada, falou seis ho


ras seguidas, sobre todos os assuntos: geologia, geogra
fia, o destino do Brasil, conflito de raças, o homem cri
minoso, a terza scuola, os substitutivos penais, pedindo,
finalmente, a condenação dos criminosos. O médico-le-
gista, citando autores, entre eles Afránio Peixoto, depôs,
ainda uma vez, que não houvera senão suicídio: era o
veredicto absoluto da Ciência:"E só a Ciência possui a
verdade!" concluía o sábio, como um oráculo. (Peixoto,
Afránio apud Costa, 2005, p.83, 84)

Afránio Peixoto (1876-1947) foi diretor do Hospício Nacional de


Alienados e professor de Medicina Legal da Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro. Membro da Academia Brasileira de Letras, produziu ro
mances e ensaios, além de textos sobre medicina legal, psiquiatria fo
rense e criminologia. Na época em que esse médico viveu, a reflexão
em torno do crime e dos criminosos tornou-se ampla e sistemática, em
conseqüência da industrialização, da urbanização e do crescimento dos
conflitos sociais. A prisão, que havia se tornado a forma usual de pu
nir os infratores, chamou a atenção para o fenômeno da reincidência.
A discussão erudita envolvia juristas, criminólogos, médicos legistas,
psiquiatras e antropólogos criminais, influenciados por doutrinas posi
tivistas ou evolucionistas. O crime ocupava também, como nos dias de
hoje, as páginas da imprensa e dos romances policiais.
No âmbito erudito, a naturalização das diferenças foi ganhando
espaço no pensamento social e pode ser vista como integrante de um
processo de transformação que se desenvolveu ao longo do século XIX
no qual a vida humana foi cada vez mais entendida como resultado de
leis biológicas. Éo que Gould (2003) chama de determinismo biológico:

Sociabilidades, justiças e violências:...


a crença de que as normas de comportamento e as diferenças sociais e
econômicas entre os grupos humanos, especialmente as que se referem a
raças, classes sociaise gênero, derivam de distinções herdadas e inatas, ou
seja, a sociedade como reflexo da biologia. Nesse sentido, as mulheres, os
pobres, os negros e todas as raças não-brancas seriam inferiores "por na
tureza", uma representação certamente muito útil para as elites no poder.
A ciência é uma atividade social, portanto não é desvinculada dos valores
da sociedade em que é produzida e praticada. Os cientistas que explica
vame justificavam a inferioridade de diversos grupos, a partir da biologia,
produziam seus trabalhos em um contexto onde intelectuais e líderes em
geral não duvidavam da pertinência da hierarquização social.
Em 1859 Charles Darwin publicou A origem das espécies, expondo
uma teoria da evolução biológica segundo a qual as espécies se transfor
mam por um processo de seleção natural. O pensamento evolucionista é
anterior a Darwin e, de acordo com Gould (2003), a teoria básica da sele
ção natural não apresenta o progresso como resultado previsível dos me
canismos de mudança evolutiva. Uma das apropriações da teoria, no en
tanto, é o conjunto de idéias, associado principalmente ao filósofo inglês
Herbert Spencer (1820-1903), que ficou conhecido como "darwinismo
social". Spencer acreditava que a evolução seria um processo purificador
que, por meio da seleção natural, eliminaria os doentes, os malformados
e os menos rápidos ou menos fortes; é a "sobrevivência do mais apto". O
darwinismo social foi uma transposição da teoria sobre a evolução das
espécies para a sociedade humana, justificando e valorizando a concor
rência, típica do capitalismo, como meio deobter o progresso (Gay, 2001).
No mesmo anoem que o texto de Darwin foi publicado, o médico
Paul Broca (1824-1880) fundou a Sociedade Antropológica de Paris. A
antropologia física, ou biológica, propôs a mensuração e a classifica
ção das características físicas dos seres humanos, conferindo aos dados
em uméricos a garantia de objetividade. Foram desenvolvidas técnicas
especialmente para medir o crânio, supondo que o tamanho do cére
bro indicasse o grau de inteligência. Os resultados das medições con
firmavam as hierarquias na sociedade: os homens brancos "eminentes"
possuíam cérebros maiores do que as mulheres, os pobres e as "raças
inferiores". Em relação às mulheres, por exemplo, Broca argumentava,
em texto publicado em 1861:

As fronteiras entre o crime e a ioucura...


Poderíamos perguntar se o pequeno tamanho do cérebro
feminino não depende exclusivamente do menor tamanho
do corpo da mulher. Tiedemann propôs essa explicação.
Mas não devemos esquecer que as mulheres são, em mé
dia, um pouco menos inteligentesque os homens, uma di
ferença que não devemos exacerbar mas que, não obstan
te, é real. Portanto, é-nos permitido supor que o tamanho
relativamente pequeno do cérebro feminino depende em
parte de sua inferioridade física e em parte da sua inferio
ridade intelectual (citado em Gould, 2003, p.99)

A medição dos corpos e a teoria da recapitulação, segundo a qual


as criaturas superiores passam durante o seu processo de crescimento por
estágios que correspondem aos dos animais inferiores, impulsionaramos
estudos sobre o evolucionismo. Os grupos humanos foram hierarquiza-
dos a partir dessas noções, entendendo que a criança representa um an
cestral adulto primitivo. As mulheres, os indivíduos de raças não-brancas
e os "inferiores" em geral foram comparados às crianças brancas do sexo
masculino. Para essa leitura do evolucionismo, os negros e os integrantes
de sociedades sem escrita, os "selvagens", estariam na escala inferior da
evolução, próximos aos macacos, pouco adaptados à civilização.
Nesse contexto surgiu a antropologia criminal, dedicada ao estudo
do homem delinqüente. Um dos mais destacados representantes da an
tropologia criminal no final do século XIX foi o médico italiano Cesare
Lombroso (1835-1909). A leitura do evolucionismo feita por Lombroso
levou-o à criaçãodo conceito de "criminoso nato". Esse tipo de criminoso,
que portanto já nasce criminoso, pode ser reconhecido por caracterís
ticas físicas, sinais de degeneração, retrocesso a um estágio anterior da
evolução. Lombroso entendia que o atavismo era um fenômeno doentio
porque "o organismo não percorre penosamente o nível de evolução já
atingido pela espécie, mas pára em um nível qualquer situado mais ou
menos abaixo. A recaída na degeneração pode ir até a mais vertiginosa
profundidade" (Lombroso, 2001, p.25). O criminoso nato decaiu ou re
tornou até a Idade da Pedra ou até mesmo a um estágio animal anterior
ao homem. Na edição de 1894 de sua obra "O homem delinqüente", Lom
broso distinguia o criminoso natodeoutros tipos: o criminoso deocasião,
o louco e o alcoólatra. A noção de atavismo permitiu ao médico a fusão
dos conceitos de criminoso nato e louco moral. Esse último "nada tem em
comum com o alienado. Não é, para dizer a verdade, um enfermo real,
mas um cretino do senso moral" (Lombroso, 2001, p.24).

Sociabilidades, justiças e violências:...


Sérgio Garrara (1988), que analisou a criação do primeiro mani
cômio judiciário do Brasil, no Rio de Janeiro, lembra que as primeiras
incursões dos alienistas franceses para fora dos asilos de alienados esti
veram ligadas à questão do crime, no início do século XIX. Os médicos
eram ouvidos na tentativa de entender as motivaçõesde crimes sem razão
aparente, mas que não eram praticados por indivíduos delirantes. Surgiu
a noção de "monomania", entendida como um delírio parcial. O exemplo
clássico seria o da pessoa que se sente perseguida e age em função des
sa percepção. A monomania poderia ser "instintiva", ocasionando surtos
rápidos e repentinos, ou "raciocinante", como a demonstrada por indiví
duos lúcidos e inteligentes que no entanto apresentavam distúrbios de ca
ráter ou de senso moral. O conceito francês de "monomania raciocinante"
eqüivale, de acordo com Garrara, à noção inglesa de "loucura moral":

Os indivíduos afetados por essa espécie de loucura con


servariam durante toda a sua vida um caráter indisci
plinado, reivindicador, cruel, agressivo, amoral. Seriam
sempre objeto de umaavaliação moral negativa por parte
daqueles que, ao contrário dosalienistas, nãoconseguiam
perceber, por trás do perfil ameaçador, a vítima inocente
de uma perturbação mental. (Garrara, 1988, p.74).

A partir da publicação do trabalho deBenedict-Augustin Morei em


1857, a noção de "degeneraçâo" passa a concorrer com a de monomania,
ou seja, os indivíduos antes considerados monomaníacos começam a ser
classificados como degenerados ou "loucos hereditários". A degeneraçâo
do sistema nervoso seria transmitida hereditariamente e as origens da
doença estavam vinculadas a questões tanto naturais como sociomorais,
incluindo álcool, fomes, epidemias, indústrias, profissões insalubres e
imoralidade dos costumes, entre outras. Para Morei, as doenças mentais
que tinham origem degenerativa não poderiam ser curadas, pois eram de
terminadas hereditariamente. As patologias mentais não-degenerativas,
ao contrário, eram passíveis de tratamento e cura. A doutrina da dege
neraçâo apoiava-se no postulado da unicidade do ser humano enquanto
entidade ao mesmo tempo física e moral, ou seja, a crença na existência
de uma relação imediata entre os atributos do "espírito" e a fisiologia e
patologia de seu organismo. Dessa maneira, a "loucura hereditária" era
uma doença mental que apresentava anomalias físicas, os "estigmas de
degeneraçâo": deformações anatômicas e/ou alterações fisiológicas.

As fronteiras entre o crime e a loucura...


Uma característica sempre presente nos degenerados seria a amo-
ralidade, que pode levar ao crime, o que aproxima essa noção da "mo-
nomania raciocinante" e da "loucura moral". A noção de degeneração
acrescenta ou enfatiza a questão hereditária: inscrita na biologia haveria
uma predisposição para a loucura. Ainda no século XIX os alienistas
Valentin Magnan e P. M. Legrain, sucessores de Morei, procuram dis
tinguir os degenerados dos indivíduos apenas predispostos à loucura.
O que deve ser enfatizado, de acordo com Garrara, é a amplitude do
conceito de degeneração, que abarcava desde indivíduos "excêntricos",
suicidas, loucos morais, perversos sexuais, criminosos com tendência
precoce para o mal, até diversos graus de retardo mental. Qual seria
o estatuto médico-legal dos degenerados, seriam eles predispostos à
alienação ou propriamente alienados? De acordo com o autor citado,
"ficaram conhecidos na literatura médica como 'fronteiriços' ou 'semi-
loucos" (Garrara, 1988, p.99).
O conceito de degeneração foi sendo criticado no âmbito da psi
quiatria já no final do século XIX: "ao queparece a figura do degenerado
ia desaparecendo gradualmente à medida que degeneração passavapro
gressivamente a significar apenas uma predisposição hereditária sem
muita importância na manifestação clínica de diversas perturbações
mentais". (Garrara, 1988, p.l23).
Assim como em outros países, no Brasil a preocupação com a
prevenção de comportamentos desviantes, e não mais somente com a
sua repressão, propiciou o desenvolvimento de um conjunto de conhe
cimentos científicos, onde a observação e o registro de dados, aliados
ao tratamento estatístico, tinham umpapel relevante. Além das relações
entre crime e loucura, o cruzamento do pensamento médico como jurí
dico envolvia um amplo leque de questões, passando pela moralidade e
costumes, pela sexualidade e reprodução, pelos serviços de identificação
(inicialmente criminal e mais tarde civil), pelo uso de álcool e tóxicos,
pelo trabalho e vadiagem, pelas características das raças e pela questão
da imigração e dos estrangeiros. Esse conjunto de idéias se fez presen
te na formulação de políticas públicas, no exercício da Justiça e no co
tidiano da sociedade. Participaram de sua constituição os serviços de
identificação da polícia, os laboratórios de antropologia criminal insta
lados nas prisões, os anexos psiquiátricos das penitenciárias, os institu-

Sociabilidades, justiças e violências:...


tos médico-legais, os manicômios judiciários e as instituições de ensino
superior, as faculdades de direito e de medicina.

As divergências entre as duas primeiras faculdades de direito cria


das no Brasil foram analisadas por Lilia Schwarcz (1995) por meio de
sua produção acadêmica, especialmente a Revista da Faculdade de Di
reito de São Paulo e a Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Re
cife. As duas publicações se empenhavam pela valorização da profissão
e adotavam um jargão evolucionista, mas as diferenças eram maiores.
Na revista de Recife, criada em 1891, eram destacadas as idéias de Lom-
broso e Ferri, louvando osavanços da "escola italiana" e da antropologia
criminal, até o final dos anos de 1920.A partir desse momento, a discus
são sobre a questão nacional mudou de foco: "um novo argumento se
esboçava. Higienizar o país e educar o seu povo, é assim que se corrige a
natureza e se aperfeiçoa o homem" (Schwarcz, 1995,p.l69).
Na Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, criada em 1892,
o modelo evolucionista também se fazia presente; a meta do direito se
ria ajudar "a descobrir as leis que presidem a evolução da humanidade".
A antropologia criminal, no entanto, era vista com certa cautela, de
monstrando um apego maior dos paulistas ao liberalismo e um ceti
cismo em relação a explicações exclusivamente baseadas na raça. Esse
"liberalismo conservador" e a críticaao determinismo racial não impli
cavam uma rejeição à perspectiva evolutiva, como observa a autora: "os
homens continuam desiguais, porém passíveis de evolução e perfectibi-
lidade' em função da ação de um Estado soberano e acima das diferen
ças não só econômicas como raciais" (Schwarcz, 1995, p.l82).
No âmbito da psiquiatria, desde o século XIX havia um embate
entre duas maneiras diferentes de conceber a doença mental, opondo
"moralistas" a "organicistas" O alienismo francês, de Pinei e seus discí
pulos, postulava aorigem passional oumoral daloucura. Osorganicistas
buscavam determinar a causa orgânica da doença mental, vinculando-a
ao cérebro e ao sistema nervoso. Diversos estudos sobre a história da
psiquiatria no Brasil referem o livro de Roberto Machado e colaborado
res, Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no
Brasil, publicado em 1978.Tendo como inspiração teórica o trabalho de
Michel Foucault, o texto apresenta a transformação da loucura em do
ença mental e a constituição da psiquiatria e do hospício como práticas

As fronteiras entre o crime e a loucura...


de controle social. Seguindo uma perspectiva semelhante, há o traba
lho de Maria Clementina Pereira Cunha (1986) sobre São Paulo e o de
Magali Engel (2001), referente ao Rio de Janeiro. Para essas autoras, as
concepções de doença mental que vigoravam nas primeiras décadas do
século XX vinculavam-se às noções de "degenerescência" e, a partir da
década de 1920, de "eugenia" De acordo com Engel, que estudou a lou
cura no período de 1830 a 1930, os psiquiatras brasileiros "produziram
e difundiram um conhecimento profundamente eclético, marcado por
muitas ambigüidades e contradições" (Engel, 2001, p.160). São destaca
das pela autora, de um lado a perspectiva organicista, ou seja, a origem
biológica da doença mental e, de outro, a ampliação das fronteiras da
"anormalidade", já que um número crescente de pessoas recebeu o diag
nóstico de doença mental. Até pelo menos o início da década de 1920, a
perspectiva organicista predominou, assumindo vários matizes:

[...] cujos tons eram dados pelas diferentes fontes nas


quais se inspiravam seusedificadores, entre as quaisfigu
ravam, por exemplo, a degenerescência de Morei - refor
mulada e ampliada por Valentin Magnan - a eugenia de
Francis Galton, o darwinismo, o neolamarckismo, a an
tropologia criminal da escola positivista de Cesare Lom-
broso e da escola sociológica de Alexandre Lacassagne, e
o organicismo de Kraepelin. (Engel, 2001, p.l61)

Nainterface damedicina com o direito, voltamos à questão do crime.


O Código Penal de 1890 determinava, no Art. 27: "Não são criminosos:
§3 os que, por imbecilidade nativa, ou enfraquecimento senil, forem ab
solutamente incapazes de imputação; §4 os que se acharem em estado de
completa privação dos sentidos edeinteligência noato decometer o crime".
Um estudo de Peres e Nery Filho (2002) analisa os artigos que
tratam da doença mental nos códigos penais brasileiros, utilizando tam
bém os textos de juristas que comentam os códigos. Os autores apontam
as críticas de diversos juristas ao citado Art. 27, que foi se tornando a
seus olhos elástico demais, já que o "estado de completa privação de
sentidos e de inteligência" compreenderia, além da loucura, os casos de
sonambulismo, epilepsia, delírio febril, hipnose e embriaguez completa.
O artigo, assim interpretado pelos juristas, ampliou a noção de loucura
e a penetração dos médicos nos tribunais, o que permitiu, por vezes,

Sociabilidades, justiças e violências:...


"absolvições as mais vergonhosas". Em 1930, na edição do Código Penal
comentada por José da Costa e Silva, o jurista afirmava que "no Brasil
inteiro, crimes indefensáveis, reveladores de requintada perversidade, lo
graram ficar impunes sob o errôneo e escandaloso fundamento da com
pleta privação de sentidos e de inteligência" (Costa e Silva, 1930, apud
Peres; Nery Filho, 2002, p.8). Os juristas entendiam que o papel do perito
seria o de assessorar o juiz, ao qual cabia a faculdade de julgar e punir.

LOUCOS E SEMILOUCOS CRIMINOSOS:


A PSIQUIATRIA FORENSE NO RIO GRANDE DO SUL

A criação do Hospício São Pedro, em 1884, é um marco impor


tante na história da psiquiatria no Rio Grande do Sul. Antes da criação
dessa instituição, os alienados eram recolhidos à Santa Casa de Mise
ricórdia ou à cadeia pública. A criação do Hospício foi proposta pelo
provedor da Santa Casa, apoiado pela confrariadirigente, em um movi
mento que se iniciou em 1873 (Wadi, 2002). A Faculdade de Medicina
de Porto Alegre, que hoje integra a Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, foi criada em 1898. Em 1908 foi estabelecido um convênio entre
a Faculdade e o Hospício São Pedro para que as aulas práticas da cadeira
de Clínica Psiquiátrica se realizassem nesse hospital.
Cristina Lhullier analisou as idéias psicológicas nas teses da Facul
dade de Medicina de Porto Alegre, no período de 1890a 1950 (Lhullier,
2003). De acordo com a autora, especialmente até 1930, a maioria das
teses procurava um substrato orgânico para a doença mental, em ge
ral relacionado a perturbações do sistema nervoso. A causa das pertur
bações seria uma intoxicação, produzida por substâncias ingeridas ou
produzidas pelo próprio organismo. As origens da doença mental eram
também explicadas pela teoria do "terreno fértil" de Morei: uma noção
bastante vaga, segundo Lhullier, que indicaria uma predisposição, ad
quirida ou herdada, para a alienação. A"formação de um 'terreno' den
tro do organismo onde a doença poderia se instalar, também conhecida
como degenerescência de Morei, aparece nas teses como um facilitador
do adoecimento mental" (Lhullier, 2003, p.l09).

As fronteiras entre o crime e a loucura...


Ao lado da visão organicista da doença mental, aparece a concep
ção psicogenética, pela utilização de noções da psicanálise. Lhullier ana
lisa três teses que incorporam princípios psicanalíticos, sendo a primei
ra publicada em 1917, A psychoterapia e o seu papel nas psychoneuroses.
O autor, Lauro Pimentel, apresenta a psicanálise como um método de
tratamento que "tem por escopo a reintegração moral do paciente, a sua
reabilitação como indivíduo independente e autônomo, a recomposição
regular e, às vezes, minuciosa da sua personalidade" (Pimentel, 1917,
apud Lhullier, 2003, p.62). Em 1925 foi publicada A concepçãofreude-
ana das psychoneuroses de João César de Castro, onde o autor comenta
dois tratamentos psicanalíticos por ele realizados e enfatiza as causas
psíquicas das neuroses. O último trabalho comentado é a tese de Décio
Soares de Souza, Demenciaprecoce e eschizophrenia, defendida em 1930.
Souza defende a idéia de que a esquizofrenia seria uma doença psíquica,
independente de substrato orgânico, caracterizada por uma regressão
da vida instinto-afetiva a formas anteriores de satisfação, motivada por
um recalcamento excessivo exigido pelas condições sociais. Décio So
ares de Souza tornou-se professor de Clínica Psiquiátrica da Faculdade
de Medicina e trabalhou no Hospital São Pedro.

Podemos avançar na compreensão que os médicos possuíam


sobre a doença mental analisando seus artigos, conferências e laudos
psiquiátricos. Em conferência proferida na Santa Casa de Misericórdia
de Pelotas, o Dr. Luis Guedes, professor da Faculdade de Medicina de
Porto Alegre, e diretor do Hospital São Pedro de 1932 a 1937, analisou
as causas da loucura (Guedes, 1922). Asua análise distingue alienação e
loucura: o alienado é "todo aquele que, por efeito de um surto mórbido
que lhe atinge o psiquismo superior [consciência], se tornar inadequa
do, de qualquer modo, ao ambiente social em que vive". A alienação
engloba a loucura, mas não se confunde com ela: "louco é o paciente
de um processo patológico ativo que lhe vai na substância cerebral, nos
respectivos domínios da consciência". Guedes exemplifica: o idiota, o
imbecil (hoje a denominação é retardo mental) eo demente (senilidade)
não são loucos, mas alienados. A sua preocupação é, portanto, com as
causas da alienação mental, que podem ser "biológicas ou sociais, inte
lectuais ou morais, físicas ou mecânicas, fisiológicas ou patológicas". A
primeira causa citada é a hereditariedade, mas o médico esclarece que
não é a doença em si que é transmitida e sim "o terreno propício ou ama-

Sociabilidades, justiças e violências:...


nhado"; seria portanto um fator de predisposição. No amplo conjunto
de causas apontadas pelo autor aparece a educação, um "meio excelente
de revigoramento da moral, que logracorrigir até disposições hereditá
rias deformadas", devendo-se ter cuidado com "mimos exagerados", que
podem conduzir a "condições mentais desfavoráveis". A própria civiliza
ção seria outro fator responsável pela alienação mental, especialmente a
vida intensa nas cidades. Quando analisa o papel das emoções, Guedes
apresenta sua leitura de Freud, que formulou uma "nova teoria sobre a
predominância do fator emocional na determinação das psiconeuroses
e das psicoses". São também apontadas como causas da alienação diver
sas doenças orgânicas, destacando-se a sífilis, e a utilização de tóxicos,
especialmente o álcool, "o bilhete de recomendação mais corriqueiro
para se alcançar o manicômio".
No Rio Grande do Sul, o decreto 3.356, de 15 de agosto de 1924,
regulamentou a assistência aos alienados, determinando que as insti
tuições destinadas ao tratamento desses doentes seriam o Hospício São
Pedro, o Manicômio Judiciário, em fase de criação, e instituições parti
culares, sob a fiscalização do estado; o Cap. II do decreto estabeleceu o
regulamento do Manicômio Judiciário, subordinando-o à Secretaria de
Estado do Interior e Exterior. A nova instituição começou a funcionar
em um dos pavilhões do Hospício São Pedro em 1925, tendo como di
retor o Dr. Jacintho Godoy, que elaborou o seu regulamento. Poderiam
ser internados os indiciados suspeitos de alienação mental, que seriam
encaminhados à perícia psiquiátrica, os réus absolvidos pelo Art. 29 do
Código Penal de 1890 ("os indivíduos isentos de culpabilidade, em re
sultado de afecção mental, serão entregues a suas famílias ou recolhi
dos a hospitais de alienados, se o seu estado mental assim o exigir para
a segurança do público") e, finalmente, os condenados que cumpriam
pena na Casa de Correção e apresentassem perturbação mental, para
receberem tratamento especializado. O Manicômio Judiciário era des
tinado aos homens; as mulheres criminosas com diagnóstico de doença
mental eram encaminhadas ao Hospício São Pedro. Na década de 1940
foi criada uma unidade feminina na instituição.

O criador do Manicômio Judiciário, Jacintho Godoy, ingressou no


serviço público em 1913, como médico legista da Chefatura de Polícia.
Foi diretor do Hospital Psiquiátrico São Pedro de 1926 a 1932 e de 1937

As fronteiras entre o crime e a loucura...


até 1950. Del919al921 Godoy realizou uma viagem de estudos à Fran
ça, onde conviveu com "mestres da psiquiatria e da neurologia" (Godoy,
1955). No discurso que proferiu na inauguração do Manicômio Judiciá
rio em 1925, reproduzido em seu livro Psiquiatria no Rio Grande do Sul
(1955), o médico explicitou suas filiações teóricas. A psiquiatria, no en
tendimento de Godoy, percorreu os três estágios postulados por Comte.
No estado religioso o alienado era considerado possuído pelo demônio.
A reforma de Pinei teria dado início ao estágio metafísico, com tendên
cias "puramente filosóficas e psicológicas". O estágio positivo, "verda
deiramente científico", iniciou com Morei e sua teoria da "degeneração",
em que a "noção da etiologia tóxica ou infecciosa serve de base a uma
classificação nosológica" (Godoy, 1955, p. 72). Jacintho Godoyafirmava
que diante das conquistas maravilhosas da biologia, já se pode afirmar
com desassombro que as moléstias mentais não existem.

O que existem são síndromos mentais ou afecções cere


brais com expressão psíquica, determinados por pertur
bações orgânicas ou funcionais produzidas por toxi-in-
fecções adquiridas ou hereditárias. (Godoy, 1955, p.72-
73, grifos do autor).

O médico acreditava que a "tradição psicológica" (que vem de


Pinei) ainda persistia - mas seria superada - e a psiquiatria acabaria
se incorporando à clínica geral. Essa concepção organicista de doença
mental convivia com o entusiasmo demonstrado por Godoy em relação
ao movimento da Profilaxia ou Higiene Mental, que surgiu nos Estados
Unidos a partir da publicação do livro de ClifFord Beers em 1907. Os
adeptos da Higiene Mental pregavam ações no sentido de prevenir a
doença, para que as internações diminuíssem. Godoy acreditava que a
prevenção se faria por meio da luta contra o alcoolismo e as drogas, da
profilaxia da sífilis, das campanhas contra a tuberculose, da proteção à
infância, da seleção profissional dos trabalhadores e

[...] a divulgação do ensino psiquiátrico entre os profanos


e até nas camadas populares, a fim de dissipar os precon
ceitos do público sobre a loucura, que não é uma moléstia
misteriosa, como se pensa, mas natural e curável, e sobre
tudo evitável, pois suas causas são conhecidas, a ponto de

Sociabilidades, justiças e violências:...


se poder dizer que dos doentes internados, 40%poderiam
íicarno lar, sãos, úteise felizes, se a tempotivessem seguido
os conselhos de profilaxia mental. (Godoy, 1955,p.76)

O Manicômio Judiciário foi criado, de acordo com o seu regula


mento citado acima, para realizar perícias e oferecer tratamento aos doen
tes mentais infratores, "recebendo em seus serviços,quer para tratamento,
quer para investigação, todos os casos de medicina mental que transitem
pela esfera da Justiça" (Godoy, 1955, p.66). Nas perícias solicitadas pela
Justiça, os médicos deveriam se posicionar sobre o "estado de comple
ta privação dos sentidos e de inteligência", referido no Código Penal. O
diretor do Manicômio, Jacintho Godoy, afirmou em seu discurso que a
questão da responsabilidade criminal seria simples se os dois grupos de
indivíduos, normais e intimidáveis de um lado, e alienados inintimidáveis
de outro, fossem nitidamente distintos. Mas não é assim, pois "existem
indivíduos desequilibrados, anormais em diferentes graus, cuja inteligên
cia é lúcida, que estão na fronteira da alienação mental e que pelas suas
reações perturbam constantemente a ordem social" (Godoy, 1955, p.68).
Como agir diante desses indivíduos que perturbam a ordem so
cial? No livro Psicopatologia forense foram reunidos 56 laudos emitidos
por Jacintho Godoy no Manicômio Judiciário (Godoy, 1932). Muito
raramente o médico recomendava a permanência no estabelecimento.
Os laudos foram reunidos em sessões no livro, analisando as reações
anti-sociais de "alcoolistas", "toxicômanos" "epilépticos", "maníacos e
melancólicos", "delirantes crônicos alucinados", "delirantes crônicos
nâo-alucinados", "delirantes episódicos", "disgenésicos" e "perturbações
mentais alegadas, pretextadas ousimuladas". Em relação aos alcoolistas,
por exemplo, há 10 laudos; em geral os pacientes são considerados res
ponsáveis, devendo portanto responder perante a Justiça.
O caso do enfermeiro O. A. P. merece ser citado para esclarecer
a posição de Godoy em relação aos "fronteiriços" ou "semiloucos". O
crime ocorreu em setembro de 1926. O. A. P. tomou um "automóvel de
praça", percorreu diversas ruas, parando em pensões e vendas para be
ber, e finalmente chegou na pensão de mulheres "Ema", na Rua Riachue-
lo. Lá encontrou sua amante O. T. L., que o indiciado costumava mal
tratar, e matou-a com cinco tiros. Na análise do caso, Godoy examinou
a vida pregressa de O. A. R, que havia trabalhado como enfermeiro no
hospício São Pedro. Seus companheiros de trabalho afirmaram que ele

As fronteiras entre o crime e a loucura...


praticava "atos de indisciplina, orgias e turbulências" quando estava sob
o efeito do álcool. Alcoolista crônico, seu caso, segundo Godoy, era de
"dipsotimia, a paixão pelas bebidas alcoólicas, em que o apetite pelo ál
cool é formidavelmente exagerado e se traduz por solicitações invencí
veis" (Godoy, 1932,p. 27). A própria vida que o paciente levava antes do
crime era uma demonstração de desequilíbrio: "homem casado, habi
tando pensões de mulheres em companhia da vítima, a quem espancava
amiúde, quando dela não obtinha o dinheiro para o vício, é a expressão
da decadência ética e abaixamento moral inequívoco" (Godoy, 1932, p.
28). O tipo de alcoolismo de O. A. P. não deveria ser confundido com
alienação mental: "representa, sim, uma variedade de anomalia nervo
sa ou psíquica, mas não estado de loucura caracterizada". Em relação à
responsabilidade penal, Godoy declarou que devem ser considerados
irresponsáveis apenas os alienados, porque são inintimidáveis.

A todos os demais, desequilibrados ou anormais, frontei


riços da alienação mental, semiloucos, se assim os quiser
chamar, forçosa é a aplicação do Código Penal, no pri
meiro delito, só promovendo a sua interdição em asilos
especiais, do gênero do Manicômio Judiciário, na rein
cidência, isto é, depois de provada a inintimidabilidade.
(Godoy, 1932,p.29).

O indiciado O. A. R, portanto, deveria responder perante à Justi


ça, recomendou o laudo emitido em agosto de 1931. O enfermeiro foi
condenado pelo tribunal do júri a 10 anos e 6 meses de prisão.
No caso dos "delirantes crônicos", tanto os "alucinados" quanto os
"não- alucinados", não havia dúvidas em relação à loucura e periculosi-
dade. Dos cinco casos analisados, três referem-se a crimes de homicí
dio. Um exemplo é o do agricultor A. R, que matou o colono J. B., pois
acreditava que a vítima o vinha enfeitiçando. O paciente A. R alucinava:
ouvia insultos, sentia dores de cabeça que supunha serem resultado dos
feitiços, era sacudido no leito por mãos ocultas, etc. O diagnóstico de
Godoy: "psicose alucinatória crônica ou forma paranóide de demência
precoce, segundo Kraepelin, ou parafrenia, de acordo com amais recen
te concepção desse autor" (Godoy, 1932, p.72). Sendo uma psicose de
evolução crônica e incurável, "cujas reações são particularmente perigo
sas à segurança das pessoas", não seria recomendável devolver o pacien-

Sociabilidades, justiças e violências:..


te ao convívio social, apesar de a capacidade penal ser nula. Nos quatro
laudos onde o diagnóstico foi parafrenia, Jacintho Godoy recomendou
a permanência no Manicômio Judiciário, como medida de segurança
pública. A parafrenia é

o antigo delírio crônico de Magnan, psicose adquirida,


sobrevindo na idade madura, em indivíduos indenes
de tara degenerativa e resultante de fatores patogênicos
acidentais, com evolução crônica em quatro fases: de in
terpretações delirantes, de alucinações auditivas e idéias
persecutórias, de idéias de grandeza, terminando em de
mência. {Godoy, 1932, p.76).

No discurso de inauguração do Manicômio Judiciário, lembre


mos, Godoy afirmava que "as moléstias mentais não existem". Diante
de psicóticos que cometiam assassinatos movidos por delírios, as "con
quistas maravilhosas da biologia" tinham pouco a contribuir e o médico
reconhecia que a doença era incurável. O Manicômio Judiciário, misto
de prisão e asilo, era principalmente prisão.
Os "delirantes" eram considerados inimputáveis, mas a maioria
dos criminosos não se enquadrava nessa categoria. Os delinqüentes
não-alienados possuiriam um "temperamento criminoso"? A tese de
Dyonélio Machado, Uma definição biológica do crimes publicada em
1933, aborda essa questão. Dyonélio Machado (1895-1985) nasceu em
Quaraí, no Rio Grande do Sul, foi médico psiquiatra do hospital São
Pedro, escritor, jornalista e político. Seu romance mais conhecido, Os
ratos, recebeu o prêmio Machado de Assis em 1935; nesse mesmo ano o
autor presidiuo diretório regional da Aliança Nacional Libertadorae foi
preso por delito de opinião, tendo posteriormente aderido ao Partido
Comunista. Machado estreou na ficção em 1927 com Um pobre homem.
Publicou doze romances, entre eles O louco do Cati e Endiabrados, um
livro de contos, um livro de memórias e ensaios.

Em sua tese, Machado rejeita a noção de "criminoso nato", que na


época já estava desacreditada, maslouva a "originalidade" de Lombroso.
Essa originalidade era a noção "biológica e humanitária" da irresponsa
bilidade. O criminoso, fruto da hereditariedade, não é responsável por
seus atos. Machado lamentava que a legislação penal brasileira fosse
ainda vinculada à escola clássica, não incorporando "as modernas dou-

As fronteiras entre o crime e a loucura.,.


trinas, inspiradas em um princípio de humanidade maior". (Machado,
1933, p. 17)
Assim como Lombroso, Lacassagne e Ferri, Machado reconhece
que o crime não é privativo da espéciehumana, já que também é pratica
do por outros animais. A escola antropológica, no entanto, vê o criminoso
como um ser especial, e seu ato é revestido de um caráter "antinatural"
porque atenta contra a vida de outro ser humano. Machado, ao contrário,
distancia-se dessa posição por que utiliza apenas o critério da "quantida
de" para definir o delito: o homicídio é "o modo excessivo com que o ser
procura realizar a luta pela vida" (Machado, 1933, p. 18). Por seus traços
psicológicos, o criminoso não dosa a energia e cai no excesso do crime.
Há um "exagero da personalidade" que o leva a interpretar suas necessi
dades de modo inadequado. Nos criminosos o "instinto de conservação
procura realizar-se de modo inadequado porque excessivo. Esse excesso é
a própria desproporção entre o móvel e o ato. O exagero é o atributo do
criminoso; o excesso o do crime". (Machado, 1933, p. 19, grifos do autor).
De acordo com os princípios do evolucionismo, Machado discu
te a questão do crime comparando o homem com os outros animais e
descrevendo a marcha da evolução humana a partir das sociedades sem
escrita. Nessas sociedades, os homens, assim como os outros animais,
estão basicamente empenhados na luta pela sobrevivência; assim, o que
chamamos crime, como o assassinato, é a regra. As primeiras limitações
ao arbítriosurgem também do instinto de defesa: o indivíduo cede parte
de seu direito à comunidade, surgem proibições e regras para os mem
bros da tribo, mas a licença para matar continua em relação aos que
estão fora do grupo, como acontece hoje na guerra. O próximo passo é
a criação de sistemas tabu e nessa abordagem Machado segue Freud em
Totem e tabu. Nas sociedades civilizadas a repressão "violenta e fatalista"
da punição tabu é substituída pela educação, "a voz da consciência".
O delito, mesmo sendo hoje exceção, e não regra, como era entre
os selvagens, "ficou como eventualidade inerente à condição social do
homem". Dessa maneira o objetivo da tese é tentar decifrar a razão dessa
sobrevivência, interrogando a "psicologia do criminoso". Machado res
salva que, apesar de restrito a apenas um tipo de delito, o homicídio, o
quadro psicológico que pretende descrever "não se destina, nem pode
se ajustar, a um tipo universal de delinqüente do gênero". Quer trazer

Sociabiiidades, justiças e violências:...


"uma contribuição', de natureza pessoal, à etiologiae mecanismo do de
lito". O autor partiu da observação de seus pacientes e comparou com
observações de outros, "abrindo mão do que, nos autores mesmo mais
reputados, nos parece antes obra do entusiasmo doutrinário e teórico,
quando não do espírito de tradição, do que fruto da observação direta"
(Machado, 1933, p. 102).
Nos criminosos que observou. Machado identificou traços psico
lógicos que considerou dominantes em sua personalidade. Para realizar
essa avaliaçãopsicológica, utilizou-se da psicanálise proposta por Freud,
citando especialmente os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e um
estudo de Ernest Jones. As características psicológicas identificadas pelo
médico estão relacionadas ao erotismo anal e podem ser resumidas na
tríade "ordem, parcimônia e teimosia" (Laplanche e Pontalis, 1985, p.
234). Machado afirma que o traço de caráter preponderante nos delin
qüentes observados era sua "aptidão possessiva", que deriva do "instin
to que toda criança tem de possuir, captando do exterior, conservan
do dentro de si ou produzindo" (Machado, 1933, p.l03). Assim, certos
traços de caráter normal, como o gosto por organização, limpeza, etc e
alguns sintomas "nevropáticos" revelam a sobrevivência, no adulto, des
ses instintos infantis, aqui relacionados à digestão e à excreção.
Asegunda característica observada foi o "ideal da perfeição, infle
xibilidade psíquica, exagero da personalidade". São indivíduos que têm
verdadeiro amor ao"sistema" e às"concepções esquemáticas"; incapazes
de negociar, "procuramantessujeitaro ambienteà sua fórmula pré-con-
cebida". Como para esse tipo de personalidade não há acordo, é "tudo
ou nada", "não admira pois que se vejam lançados com muita violência
na prática de atos que, por sua condição exatamente extrema, lhes apa
recem como os únicos capazes de trazer uma compensação ao seu dano,
também extremo'". (Machado, 1933, p. 123)
Oshomicidas são dotados, ainda, segundo Machado, deum "logi-
cismo", vendo "o mundo como fórmula simples". De toda a "complicada
mecânica do mundo social", o delinqüente elabora uma representação
simples "que ele se sente a cada passo capaz de corrigir, toda vez que
isso consulte aos seus interesses, 'legítimos sempre" (Machado, 1933,
p. 123). As considerações, que podem embaraçar outras pessoas, são
postas de lado e os atos de violência aparecem "para eles como um re-

As fronteiras entre o crime e a loucura...


mate lógico de um raciocínio exato, embora monstruoso". Há, portanto,
uma falta de flexibilidade. Machado observa que os estudos que vinham
sendo feitos sobre os delinqüentes utilizavam "os dados empíricos e
grosseiros da psicologia clássica"; por isso, esse traço de caráter não era
percebido ou era englobado com outros sob a rubrica de "embotamento
do senso moral". O fundamental seria, portanto, o "logicismo mórbido,
unilateralizado e frio" dos delinqüentes, sendo a insensibilidade ética a
manifestação de um conjunto de fatores psicológicos, conscientes ou não.
O último traço de caráter apontado pelo autor é "timidez, insegu
rança e certo grau de impulsividade". Como são muito voltados para si
mesmos, esses indivíduos se percebem muito vulneráveis e o ambiente
exterior é visto como hostil; daí a insegurança e a timidez. Eles percebem
o mundo de forma esquemática e tentam prever as desgraças futuras que
virão, o que origina sua impulsividade; pulam etapas: "vão direto às con
seqüências mais calamitosas, norteados, paradoxalmente, pelo intuito de
conjurar as vicissitudes que antevêem" (Machado, 1933, p. 131).
A antropologia criminal identificou estigmas somáticos nos de
linqüentes e um "temperamento criminal" decorrente dessa constitui
ção física. Machado rejeita essa teoria, afirmando que mesmo aqueles
que ainda hoje concordam com as idéias de Lombroso, "no que elas têm
de mais avançado e exclusivista, já reconhecem os exageros da escola
querendo grupar as anomalias dos delinqüentes em um tipo morfológi-
co definido, verdadeirasubespécie humana" (Machado, 1933, p. 143). A
tese foi desacreditada por estudos anatômicos mais minuciosos. Sugere
que outras pesquisas morfológicas, orientadas pelos modernos esque
mas de constituição, deveriam ser realizadas.
Mas se não há um tipo físico, morfológico, de delinqüente, do
ponto de vista psicológico há um temperamento próprio do crimino
so. É nesse terreno que Machado quer apresentar uma contribuição. Os
criminosos por ele observados não se enquadravam no "tipo clássico de
obtusos do senso moral". Sondando o seu psiquismo, o médico encon
trou"uma psicologia a bem dizer inédita, desconhecida pelo menos das
escolas criminológicas". (Machado, 1933, p. 150).
A escola antropológica via o criminoso como um tipo específico
de ser humano e desejava mesmo chegar à caracterização de uma "psi-

Sociabilidades, justiças e violências:...


cose criminal" ou seja, uma doença cujo sintoma seria o crime. Não
chegaram a isso, já que, de acordo com Machado, a idéia "pareceu de
masiado avançada para ser emitida pelos psiquiatras da escola" Lom-
broso reconheceu que o louco moral, o criminoso nato, não é um alie
nado, é somente um cretino do senso moral; seu caso não é de doença,
mas de "inferioridade da natureza".

Estudando as origens das teses da escola antropológica, Machado


aponta autores que relacionavam crime e estado de degeneração, por
meio do conceito de "doença moral". Essa não é propriamente uma do
ença mental, já que o criminoso não é um alienado, sendo no entanto
portador de "anomalias psíquicas gravíssimas" das faculdades morais,
há uma "fraqueza ou ausência de consciência moral" (Machado, 1933, p.
154). Essa "inconsciência" ou "insensibilidade" moral teria uma relação
estreita com o organismo e seria transmitida hereditariamente.
Entre os representantesda escolaantropológica italiana. Machado
distingue duas posições. Para Garofalo não existe uma "psicose crimi
nal"; os criminosos possuem "caracteres regressivos" e neles a seleção
natural agiu ao contrário, produzindo uma "degeneração moral" por
meio da qual perderam as qualidades superiores adquiridas lentamente
pela evolução da humanidade (Machado, 1933, p. 159). Como vimos,
essa é também a posição de Lombroso. Ferri, ao contrário, acredita na
existência de uma doença mental específica, a "nevrose criminal", oca
sionada por degenerescência hereditária.
O crime seria o resultado de uma anomalia moral sem loucura ou,
ao contrário, de uma psicose propriamente dita? Dyonélio Machado re
jeita os dois extremos: não há uma psicose criminal pura, mas o crimi
noso representa sem dúvida "um caso de anormalidade biológica". Ar
gumenta que, com exceção de "um ou outropensador", entre os quais se
encontra Durkheim, "ninguém mais se atreve a negar uma verdade que
de maneira tão evidente salta aos olhos de cada um" (Machado, 1933,
p. 161). Resta a dúvida sobre a natureza dessa anormalidade. Os crimi
nosos, naopinião do autor, encontram-se em um estado "pré-psicótico"
a meio caminho entre a sanidade e a insanidade: "a loucura dos delin
qüentes não é passível de cuidados médicos, não se trata absolutamente
aqui de casos de hospício. Embora estejamos quase sempre em face de
indivíduos por mais de um aspecto anormais" (Machado, 1933, p.l69).

As fronteiras entre o crime e a loucura...


o crime não é antinatxiral, é um fenômeno da natureza. O crimi
noso, como todos os seres vivos, luta pela sobrevivência. O seu tempera
mento anormal leva-o a interpretar a realidade de forma equivocada, daí
as motivações para o crime. A primeira conclusão da tese é a de que "na
gênese do delito (...) o fator preponderante é sempre o psíquico" (Macha
do, 1933, p.231). A segunda é a de que "o crime resulta de uma alteração
de ordem psicopática. O seu lugar nosográfico é em um estado pré-psi-
cótico". Machado apresenta a classificação de delinqüentes proposta por
Enrico Ferri que "por consenso geral, é considerada hoje a mais completa
e que melhor satisfaz as exigências tanto práticas como científicas" (Ma
chado, 1933, p. 229). Nessa classificação os delinqüentes se dividem em
cinco tipos: criminosos natos, criminosos loucos, criminosos por ocasião,
criminosos por paixão e criminosos por hábito. Machado aponta para a
necessidade de elaborar outra classificação, fundada em novas pesquisas
psicológicas, já que esta se apóia na noção de "obtusão do senso moral"
que ele rejeita. Para a escola antropológica, o criminoso nato é, como vi
mos, um "obtuso do senso moral" e os criminosos de ocasião e por hábito
também apresentam um "certo grau de obtusão do senso moral".
Na caracterização do perfil psicológico do delinqüente, Machado
utilizou conceitos elaborados no âmbito da psicanálise, mas fez questão
de marcar sua posição "organicista" e científica. Afirmou que o seu en
tusiasmo "pelos mecanismos psicogenéticos das nevroses" não signifi
cavaadesãoa este"caminho metafísico, tão ao gosto da nossaépoca". Ao
contrário, entendia que

[...] a psicogenética, para a nossaorientação eclética, apa


rece apenas onde se faz necessária, para elucidação de
fatos a quesó elatraz um pouco de luz. Nofundo, perma
necemos um "céptico kraepeliniano", figura demodée em
psiquiatria (Machado, 1933, p. 215).

Somente a base organicista forneceria a solidez e realismo que


constituem a verdadeira medicina, acreditava Dyonélio Machado, assim
como Jacintho Godoy. A crença dos psiquiatras na etiologia orgânica
das doenças mentais fundamentava seus tratamentos, como a malario-
terapia, a convulsoterapia e outros. Aquimioterapia efetiva das doenças
mentais é posterior a 1950 (Roudinesco, 2000). Ana Venâncio (2003)

Sociabilidades, justiças e violências:...


levantou a hipótese de que a vinculação da psiquiatria brasileira com o
hospício levava a uma certa marginalização social desse campo no âm
bito do conhecimento médico: "médico de doidos, a respeito de quem
se admitia nada fazere nada saber". Essamarginalização, de acordo com
a autora, "pode ter sido, inclusive, uma das marcas a motivar o discurso
acadêmico psiquiátrico a ser tão enfático e afirmativo de sua cientifici-
dade, procurando valorizar a psiquiatria e seu conhecimento".
Para estabelecer o diagnóstico de doença mental os médicos entre
vistavam os pacientes, procuravam investigar a existência ou não de do
enças mentais na família e observavam o seu comportamento. Na emissão
de laudos periciais solicitados pela Justiça era utilizada também a súmula
do processo, que continha os depoimentos das testemunhas do crime, o
auto de prisão e o interrogatório do réu perante o juiz. O diagnóstico,
portanto, não era baseado somente em avaliações orgânicas e o "tem
peramento criminoso" não implicava deformações físicas do tipo lom-
brosiano. O caráter eclético do conhecimento produzido pelo alienismo
brasileiro (Engel, 2001) pode ser exemplificado com a tese de Dyonéllo
Machado: o título é "uma definição biológica do crime"; o autor faz ques
tão deafirmar que se considera um "céptico kraepeliniano" e a"psicologia
do criminoso" é construída por meio de conceitos da psicanálise.
A oposição entre moralistas e organicistas, que atravessou a psi
quiatria desde o seu nascimento no século XIX, pode ser vista como
expressão de um combate mais antigo: a oposição mente-corpo, o di
lema psíquico-físico ou a dicotomia paixão-razão. Um estudo de Isaias
Pessotti sobre o alienismo do século XIX afirma que, nessa época, as
tentativas de conciliar as duas posições doutrinárias foram efêmeras.
Essa oposição, como sabemos, ainda hoje se faz presente:

No século XIX, mesmo que na prática terapêutica os


adeptos da etiologia passional ou moral da loucura em
pregassem por vezes meios físicos de tratamento, e em
bora os "organicistas" usassem alguns meios "morais" de
tratamento, no campo doutrinário essas duas posições
sempre mantiveram núcleos conceituais inconciliáveis.
Elas ainda encenam combates empolgantes, ainda se en
frentam. (Pessotti, 2001, p. 10)

As fronteiras entre o crime e a loucura...


o período que analisamos é o de vigência do primeiro Código Pe
nal republicano, de 1890 a 1940. Em 1940 foi aprovado um novo Código,
que entrou em vigor em 1942. Atualmente discute-se a reforma dessa lei
e a questão das fronteiras entre a doença e a saúde mental e suas relações
com o crime continua sendo objeto de polêmicas. As expressões "semi-
loucos" e "pré-psicóticos" desapareceram do vocabulário técnico, mas
agora temos os "transtornos de personalidade". O transtorno anti-social
da personalidade, que se caracteriza, entre outros aspectos, por "indife
rença e insensibilidade diante dos sentimentos alheios e atitude persis
tente de irresponsabilidade e desprezo por normas, regras e obrigações
sociais estabelecidas" (Taborda et ai, 2004, p. 286) aparece algumas ve
zes designado como "personalidade psicopática". O tema "psicopatas" foi
matéria de capa de edição recente da revista Superinteressante e referido
em artigo publicado no jornal Zero Hora, onde o psiquiatra Luiz Carlos
Mabilde chama a atenção para a popularidade dos personagens psicopá-
ticos nas novelas da televisão (Mabilde, 2006, p. 26). Retornamos assim ao
registro do folhetim: em matéria publicada no jornal Folha de São Paulo
(Caversan, 2004) sobre a novela Celebridade, exibida pela Rede Globo, o
autor Gilberto Braga afirmou que os vilões Laura e Renato "são eviden
temente psicopatas". O texto do jornal informa que na semana em que os
vilões reafirmaram seu poder a novela registrou recordes de audiência.

REFERÊNCIAS
GARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio
judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: EdUERJ; São Paulo:
EdUSP, 1998.
CAVERSAN, Luiz. As flores do mal. Folha de São Paulo. São Paulo, 03
abr. 2004.
COSTA, Flávio Moreira da (org.). Crimefeito em casa: contos policiais
brasileiros. Rio de Janeiro: Record, 2005.
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O espelho do mundo: Juquery, a
história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
ENGEL, Magali Gouveia. Os delírios da razão: médicos, loucos e hospí
cios (Rio de Janeiro, 1830-1930). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2001.
GAY, Peter. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001. v.3: O cultivo do ódio.

Sociabilidades, justiças e violências:...


GODOY, Jacintho. Psicopatologiaforense. Porto Alegre: Globo, 1932.
GODOY,Jacintho. Psiquiatria no Rio Grande do Sul. Edição do autor, 1955.
GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do hotnem. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
GUEDES, Luís. Causas de loucura. Archivos Rio-Grandenses de Medici
na. Porto Alegre, ano III, n.9, p.210-216, set.1922.
LAPLANCHE, PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. 8.ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1985.
LHULLIER, Cristina. Levantamento das idéias psicológicas presentes na
Faculdade de Medicina e na Faculdade de Direito no estado do Rio Grande
do Sul entre 1890 e 1950. Ribeirão Preto, 2003. Tese (Programa de Pós-
-Graduação em Psicologia). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, De
partamento de Psicologia e Educação, Universidade de São Paulo.
LOMBROSO, César. O homem delinqüente. Tradução, atualização, no
tas e comentários: Maristela Bleggi Tomasini e Oscar Antonio Corbo
Garcia. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2001. Primeira edição: 1871 a 1876.
MABILDE, Luiz Carlos. Pressão social para certa psicopatia. Zero Hora,
Porto Alegre, 15 set. 2006, p.26.
MACHADO, Dyonelio. Uma definição biológica do crime. PortoAlegre:
Globo, 1933.
MACHADO, Roberto et al. Danação da norma: medicina social e consti
tuição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
PERES, Maria Fernanda Tourinho; NERY FILHO, Antônio. A doença
mental no direito brasileiro: inimputabilidade, irresponsabilidade, peri-
culosidade e medida de segurança. História, Ciências, Saúde - Mangui-
nhos. Rio de Janeiro, v.9, n. 2, maio / ago. 2002.
Disponível em www.scielo.br
PESSOTI, Isaias. O século dos manicômios. São Paulo: ed. 34, 2001.
REIMÃO, Sandra. Literatura policial brasileira. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2005.
ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2000.
SCHVVARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Compa
nhia das Letras, 1993.
TABORDA, José G. V.; CHALUB, Miguel; ABDALLA-FILHO, Elias
(orgs.). Psiquiatriaforense. Porto Alegre: Artmed, 2004.
VENÂNCIO, Ana Teresa A. Ciência psiquiátrica e política assistencial:
a criação do Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil. História,
ciências, saúde - Manguinhos. Rio de Janeiro, v.lO, n.3, set./dez. 2003.
Disponível em www.scielo.br
WADl, Yonissa Marmitt. Palácio para guardar doidos: uma história das
lutas pela construção do hospital de alienados e da psiquiatria no Rio
Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2002.

As fronteiras entre o crime e a loucura...


Sociabilidades, justiças e violências:...
Imprensa e ficção:
a espetacularízação
da violência nos jornais
de Florianópolis (1908-1930)
VANDERLEI MACHADO

KJ presente artigo busca evidenciar amaneira como aimprensa


de Florianópolis, capital de Santa Catarina, problematizou a ques
tão da violência na cidade, nas primeiras décadas do século XX.
Essa problematização ocorreu em um momento em que se passou a
esperar dos homens em geral um comportamento cujas atitudes no
espaço público fossem previsíveis. O controle das emoções passava
a apresentar-se como um sinal de urbanidade e distinção social.
Na construção desta história será feito uso de jornais como
fonte de pesquisa. A utilização da imprensa no campo da pesqui
sa histórica, desde a década de 1985, generalizou-se a ponto de se
tornar um dos traços distintivos da produção acadêmica brasileira.'

LUCA, Tania Regina de.História dos,nose por meiodos periódicos. In:PINSK,


Carla Bassanezi (Org.) Fontes históricas. São Paulo: Contexto,2005. p. 130.
A historiadora Vavy Pacheco Borges fez as seguintes observações
sobre a imprensa paulista:

[...] parece-me interessante registrar que o peque


no uso da imprensa como fonte, apontado no iní
cio dos anos 1970 [...], inverteu-se completamente;
nota-se hoje nos resumos [das teses e dissertações
consultadas] um freqüente uso da imprensa, seja
como meio fundamental de análises da idéias e
projetos políticos, da questão social, da influência
do Estado e da censura etc., seja como fonte com
plementar para a História do ensino, dos compor
tamentos, do cotidiano. ^

Segundo Tânia Regina de Luca, estas observações podem


ser extrapoladas para a historiografia como um todo. A grande
diversificação das temáticas historiográficas, ocorrida desde as
últimas décadas do século XX, também tem contribuído para a
escolha dos periódicos como fonte de pesquisa. Porém, adverte-
-se para o fato de que não se está buscando nos artigos dos jornais
o passado tal como ele aconteceu. Pois como nos indica a histo
riadora Sandra Pesavento, as fontes empregadas pelo historiador
portam representações de uma época e não a sua essência, de tal
modo que podem ser tomadas como fragmentos, pistas que po
dem ser montadas, escondidas, destacadas, conforme os questio
namentos que o historiador faz ao passado e que somente têm
sentido no presente. E conclui esta autora, "a representação não
é uma cópia do real, sua imagem perfeita, espécie de reflexo, mas
uma construção feita a partir dele".^
Ao percorrer os jornais diários daquele período destaca-se
o estreito relacionamento desses periódicos com os grupos políti
cos que disputavam o poder dentro do Partido Republicano Cata
rinense. Tais disputas, como se buscará evidenciar, influenciaram

2. BORGES, Vavy Pacheco. Apud. LUCA, Tânia Regina de. Opus cite. p.
130.
3. PESAVENTO, Sandra Jathay. História e história cultural. Belo Horizon
te; Autêntica, 2003. p. 40.

Sociabiltdades, justiças e violências:...


na maneira como a imprensa narrou os acontecimentos violentos que
tiveram lugar na cidade de Florianópolis. Nesse sentido, a partir de 1908
é possível perceber uma alteração substancial na forma como os atos de
violência foram descritos pelos jornais, bem como uma maior visibili
dade dada a pequenos conflitos que até então não ganhavam divulgação.
Nos anos iniciais do século XX, veio a lume o jornal diário Gazeta
Catarinense, de propriedade do então senador Hercílio Pedro da Luz. A
Gazeta, em sua curta existência, de 1908 a 1910, passou então a rivalizar
com o órgão do Partido Republicano Catarinense, O Dia, que circulou
entre 1901 e 1918. As disputas travadas no interior do PRC ganharam
publicidade nas páginas das folhas locais. Desde 1903, quando o jornal
República,'^ também ligado ao senador Hercílio Luz,^ deixou de circu
lar, a imprensa de Florianópolis ficara sem um periódico declaradamen
te de oposição ao grupo instalado no governo do estado.^
O surgimento da Gazeta, durante o governo de Gustavo Richard,^
entre 1906 e 1910, esteve intimamente ligado às disputas travadas entre

O jornal República surgiu em 19 de novembro de 1889,como órgão oficialdo go


verno republicanorecém-instalado. Debcou de ser publicadoem janeiro de 1892,
após a deposição de Lauro Muller do governo do Estado. Em 1896 tornou-se
órgão oficialdo Partido Republicano. Conf. CALLADO JÚNIOR, Martinho. Im
prensa Catarinense: resumo histórico (1831-1969). In; El-KHATIB, Faisal(Org.).
História de Santa Catarina, vol. III. Curitiba; Grafipar, 1970. p. 136.
Hercílio Pedro da Luz nasceu em Desterro/Florianópolis, em 1860. Fez seus
estudos primários na cidade natal e os secundários no Rio de Janeiro. Ingres
sou na Escola Politécnica, na capital federal. Cursou na Bélgica a Faculdade de
Agronomia de Gembloux. Participou da resistência aos federalistas, na cidade
de Lapa, Paraná. Foi eleito governador do Estado de Santa Catarina de 1894 a
1898. Ver; PIAZZA, Walter. F. Dicionário político catarinense. Florianópolis:
ALESC, 1994. p. 414 e 415.
Entre 1904 e 1906 circulou em Florianópolis o jornal Correio do Povo, de pro
priedade de Afonso Livramento, filho de um importante políticoda capitalca
tarinense. O Correio não se declarava um jornal de oposição mas sim "indepen
dente". O jornal Correio do Povo, pode-se dizer, apresentava uma preferência
pelo então senador Hercílio Luz.
Gustavo Richard nasceu no Rio de Janeiro, em 1847. Fezseus estudos em Paris,
França, no Ginásio Belle Ville. Foi um dos fundadores do clube republicano
Esteves Júnior, Desterro. Vice-governador do Estado de Santa Catarina, substi
tuiu Lauro Miller na chefia do Executivo, de 1890 a 1891. Governador eleito de
1906 a 1910. Ver: PIAZZA, Walter. F. Opus cite. p. 677-678.

Imprensa e ficção:...
Hercüio Luze o então governador. Notíciasde crimes violentos que ante
riormente ganhavam pouca visibilidade passaram a ter destaque na capa
da Gazeta, com grandes chamadas que resumiam os fatos narrados na
matéria, a qual cobria grande parte da primeira página. As notícias pu
blicadas no jornal de oposição ensejavam respostas de O Dia. As disputas
entre as duas folhas certamente contribuíram para um aumento sensível,
ocorrido entre 1908 e 1911, de notícias sobre crimes e para uma maior
regularidade na publicação da coluna "Ocorrências policiais", pelo O Dia,
informando sobre a ação da polícia que efetuava a prisão de indivíduos
embriagados, desordeiros e valentões que se atracavam no meio da rua.
A dimensão dada a tais fatos ocorridos na cidade, entre outras
coisas, esteve no cerne das disputas pelo reconhecimento, entre os gru
pos que disputavam o poder local, de quem estaria mais apto a governar
o Estado e colocar a cidade nos rumos da modernidade. Um dos cami
nhos para se alcançar tal objetivo era garantir a ordem e a segurança
pública, por meio de uma polícia eficiente. Isso se depreende pela forma
como as folhas adversárias disputavam as apurações das ocorrências cri
minais. Os articulistas do vespertino Gazeta Catarinense esforçavam-se
por demonstrar as fragilidades, as falhas e a arbitrariedade da polícia na
condução de suas diligências. Já o diário matutino O Dia, naturalmente,
empreendia a defesa dos agentes da lei procurando demonstrar que eles
eram "ativos" e eficazes na condução de suas tarefas.
Tal disputa pode ser observada já nos títulos que anunciavam os
crimes violentos, como por exemplo, um assassinato ocorrido em 1908.
A Gazeta, como se evidencia a partir do título da matéria: "Tragédia de
sangue - Assassinato - Numa casa dejogos - No Menino Deus - Golpe
mortal na rua - No necrotério - A reportagem - Descoberta do assas
sino", apelava-se para um certo sensacionalismo." Além disso, durante
a narrativa do crime, procurava ressaltar a eficiência de seu reporte em
desvendar o fato. Após a prisão do assassino, o repórter da Gazeta foi
até o quartel, pois se tratava de um soldado, e fizera uma entrevista com
o mesmo. Além disso, denunciou a "arbitrariedade tirânica e ridícula"
com que o comissário de polícia tratou a "amásia" do dono da casa de

Gazeta Catarinense, n. 170, de 04/08/1908.

Sociabilidades, justiças e violências:...


jogo em que ocorreu o crime.^ Por seu turno, a folha oficial noticiou o
ocorrido com um título direto - "Assassinato" - passando a discorrer
sobre sua versão dos fatos. Na edição seguinte a matéria recebeu o títu
lo: "O Crime da Rua Menino Deus- Prisão do Delinqüente".'" O jornal
oficial terminou sua narrativa do incidente elogiando a ação dos praças
do Corpo de Segurança que prenderam o assassino.
Além das "cenas de sangue" ocorridas em Florianópolis, a Gazeta
publicava com grande destaque crimes noticiados em jornais de outras
cidades do Estado e de fora dele. Chamadas como "Leia amanhã um
grande crime"" ou ainda"Um mártir: crimehorripilante"'^ antecediam
a transcrição de relatos publicados em jornais de grandes capitais brasi
leiras. Em 1908,a Gazeta divulgava, com o título de "A mala do crime", a
narrativa do assassinato do comerciante Elias Farah, publicada no jornal
O Comércio de São Paulo, com o título de "O crime da mala".''' A recor
rência na divulgação de acontecimentos marcados pela violência física,
tanto pela Gazeta quanto por outros jornais que a seguiram, demonstra,
entre outras questões, que esse tipo de matéria encontrava receptividade
entre os leitores da época.

Durante o período de circulação da Gazeta, ganhou notoriedade a


disputa entre os jornalistas Crispim Mira, da folha hercilista, e Henrique
Rupp Júnior, do jornal O Dia. Nos acirrados debates, os articulistas fa
ziam uso de suas penas para defender a facção política a que pertenciam.
Extrapolando as querelas partidárias, passavam a divulgar questões de
cunho pessoal. Valia tudo para denegrir o opositor, inclusive revirar o
passado em busca de informações desabonadoras, como a acusação de
crime de defloramento, realizado com promessa de casamento, dirigi
da à Crispim Mira. Esse tipo de denúncia era uma novidade frente
aos debates políticos ocorridos na imprensa catarinense do século XIX.

Gazeta Catarinense, n. 171, de 08/08/1908.


O Dia, n. 4027, de 08/08/1908.
Gazeta Catarinense, n. 26, de 14/02/1908.
Gazeta Catarinense, n. 28, de 15/02/1908.
Gazeta Catarinense, n. 202, de 11/09/1908.
Crime citado em: FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São
Paulo (1980-1924). São Paulo: Edusp, 2001. p. 29.
O Dia, n. 3070, de 29/05/1908.

imprensa e ficção:...
Naquele período, havia uma reticência e uma reserva dos jornais em tratar
de questões da esfera privada, tais como adultério e violência doméstica,
assuntos que sequer chegavam a constituir-se como objetos de investimen
to de discursos."^ Diante das constantes trocas de acusações entre Mira e
Rupp Jn, os ânimos se exaltaram de tal maneira que em setembro de 1908,
as principais autoridades militares sediadas na capitaltiveram que intervir
com o objetivo de "dissipar as nuvens acumuladas que poderiam enlutar a
sociedade catarinense".'^ O importante para cadajornalista,na verdade, era
demonstrar a incompetência administrativa e moral do adversário.
As disputas entre as duas folhas somente tiveram um fim com o
empastelamento da Gazeta Catarinense nos estertores do governo de
Gustavo Richard. Tal acontecimento nos chega por uma notícia de pri
meira página, publicada no jornal Folha do Comércio, em 1910, com o
título de "Atentado à imprensa - Exibição de força - Um capitão na en-
xovia - O Habbeas-corpus".'" Segundo a Folha, após invadirem as ofici
nas do jornal de oposição, policiais do corpo de segurança, disfarçados,
destruíram o prelo da Gazeta e espalharam os tipos e demais materiais
gráficos pela praia, "da Rita Maria ao Largo 13 de Maio", ou seja, por
toda a extensão da orla marítima em frente da cidade. O móvel de tal
violência teria sido a denúncia, publicada pela folha hercilista, em seu
derradeiro número, de superfaturamento no contrato de eletrificação da
cidade, praticado pelo governo de Gustavo Richard.
Com a posse de Vidal Ramos, eleito para a quadra del910al914,
as denúncias de empastelamento da Gazeta Catarinense e de superfa
turamento nos serviços de eletrificação, para citar somente as de maior
destaque, ficaram enterradas juntamente com os tipos arremessados na
praia. A marca dos novos tempos foi a realização de um grande baileno
Palácio para comemorar a eleição do novo governador e a inauguração

Sobre essa questão ver: MACHADO, Vanderlei. O espaço público como palco de
atuação masculina: a construção de um modelo burguês de masculinidade em
Desterro - 1850a 1884. Florianópolis: UFSC, 1999.119 p. Dissertação (Mestra
do em História) - Universidade Federal de Santa Catarina, 1999. p. 80.
Gazeta Catarinense, n. 193, de 1/9/1908.
Folha do Comércio, n. 254, de 31/08/1910; n. 255, de 01/09/1910; n. 257 de
03/09/1910; 258, de 05/09/1910.
Gazeta Catarinense, n. 762, 25/08/1910.

Sociabilidades, justiças e violências:...


da iluminação elétrica, que naquele momento se restringia à praça 15 e
ao palácio do governo.-"
O jornalista Crispim Mira, que havia deixado a redação da Gaze
ta, em 1909, fundou naquele mesmo ano o jornal Folha do Comércio,
que circulou diariamente entre 1909 a 1915.-' Em seu número de estréia
se apresentou ao público como "imparcial" em relação às lutas políticas,
afirmando que trabalharia pelo desenvolvimento econômico de Floria
nópolis. Noticiou amplamente o atentado à Gazeta. Porém, findo o go
verno Richard, o jornal de Crispim Mira manteve uma boa relação com
o governo de Vidal Ramos. O mesmo convívio pacífico, ao que tudo
indica, se estendeu ao órgão da imprensa oficial, O Dia.
O jornal-empresa criado por Crispim Mira, que não tinha cargo
eletivo, buscava financiar-se com a venda de seus exemplares e com a
publicação de reclames comerciais. A Folha dava destaque de capa às
notícias de "Cenas de Sangue", bem como a crimes como defloramen
tos," violência sexual sofrida por meninos," agressões," entre outros.
Alguns crimes de grande repercussão fora do estado também foram pu
blicados com grande destaque. Em alguns casos era utilizada a mesma
técnica dos folhetins, que o público já conhecia desde o século XIX," e

Folha do Comércio, n. 274, de 26/09/1910.


Apesar de ter deixado a folha hercilista, Crispim Mira manteve relações pes
soais e de confiança com Hercílio Luz. O jornalista, durante o período em que
Hercílio Luz voltou ao governo do Estado, em 1918, representou o governo es
tadual em importantes encontros culturais e diplomáticos. Na década de 1920
foi convidado a escrever uma obra, fazendo um balanço das condições sociais e
econômicas de SantaCatarina, por ocasião do centenáriode independência do
Brasil, em 1922. Ver: MIRA, Crispim. Terra Catarinense. Florianópolis: Livra
ria Moderna, 1920.
Folha do Comércio, n. 22, de 26/10/1909.
Folha do Comércio, n. 271, de 02/09/1910.
Folha do Comércio, n. 19, de 22/10/1909.
Os romances publicados na forma de folhetins apareceram na imprensa catari
nense desde a segunda metade do século XIX. Marlyse Mcyer nos fala que esse
tipo de literatura "já havia arribado" no Brasil desde 1838, com a publicação do
primeiro folhetim de Alexandre Dumas. O Capitão Paulo. Para uma história
da publicação de folhetins pela imprensa brasileira do século XIX e a impor
tância dos mesmos para a concretização de empreendimentos jornalísticos ver:
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Cia. das Letras, 1996. p.281.

Imprensa e ficção:...
que ajudava vender jornais. Entre as notícias-folhetim, foi amplamente
divulgada, em 1909, a história dos "Irmãos Brocato",-'^ na qual se prome
tia prender a atenção do leitor numa narrativa de "aventuras" e "crimes".-'
Nas páginas da Folha do Comércio foi publicado também, em 59 capítulos,
o romance Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães-^ e o Mártir, por A.
D. Ennery.-'^ Esses textos, que certamente agradavam ao leitor da capital
catarinense, ajudavam a vender jornais e a manter financeiramente o em
preendimento. Devido ao destaque dado às notas de crimes e aos folhe
tins com enredos repletos de violência, um jornal concorrente definiu a
Folha do Comércio como o "jornal dos crimes e transcrições".-^" Em 1915,
Crispim Mira negociou a sua Folha que,logo depois, deixoude circular.
No mesmo ano, em 1915, quando Felipe Schmidt assumiu o gover
no do Estado, surgiram dois novos diários na capital catarinense, além do
já existente O Dia. O jornal A Opinião vinha a público com o intuito de
clarado dc trabalhar pela candidatura de Victorino de Paula Ramos para a
Câmara Federal. Conforme os apoiadores do candidato, Paula Ramos teria
sido colocado à parte nas disputas por cargos eletivos e a partir daquele
momento passava a representar as minorias dentro do PRC. O jornal cen
trou suas baterias, entre outras coisas, nas denúnciasque considerava serem
arbitrariedades da polícia.^' Em seus artigos sobre as atividades policiais, o
infrator sempre se transformava em uma vítima dos agentes da lei.
O jornal A Opinião denunciava ainda o que considerava ser a in
capacidade do superintendente municipal em resolver os problemas da
cidade, o nepotismo-^^ e o "germanofilismo oficial"-^^ do governador

Folha do Comércio, n. 218, de 07/07/1909.


Segundo o jornalista Francisco José Pereira, "A história dos irmãos Brocato
é verdadeira, em seus crimes. Crispim Mira, ao narrá-la em fascículos, tipo
folhetim, pelas páginas da sua Folha do Comércio, o fez, no entanto,em forma
ficcional". Conf. PEREIRA, Francisco José. As duas mortes de Crispim Mira.
Florianópolis: Lunardelli/FCC, 1992. p. 103.
Folha do Comércio, n. 1, de 2/10/1909 a n. 60, de 13/12/1909.
Folha do Comércio, n. 61 de 14/12/1909.
A Opinião, n. 31, de 18/03/1915.
A Opinião, n. 15, de 09/02/1915.
A Opinião, n. 251, de 13/01/1916.
A Opinião, n.643, 24/04/1917.

Sociabilidades, justiças e violências:...


Felipe Schimidt. Em seus ataques ao governo, travou embates com o
jornal O Dia e também com o recém-criado O Estado onde, segundo
denunciava A Opinião, trabalhava como redator o chefe de polícia.^^
A Opinião publicava também informações que eram enviadas da capi
tal federal pelo telégrafo, mas não dava destaque a notícias de crimes
violentos. De forma não-declarada, em 1917, o jornal de Paula Ramos
apoiava as pretensões de Hercílio Luz ao governo estadual, o que efeti
vamente se concretizou em 1918, ano em que o jornal deixou de circu
lar. Ao que tudo indica, o jornal do grupo de Vitorino de Paula Ramos
se mantinha com a publicação de anúncios, com a venda de exemplares
e, possivelmente, com a contribuição dos correligionários.
Durante o mandato de Felipe Schimidt, no governo estadual, apa
receu uma folha intitulada O Estado,inaugurada em 13 de maio de
1915. O novo jornal foi fundado por Henrique Rupp Júnior e Ulisses
Costa, que se propunham a "fazer no Estado a boa imprensa, política
sem ser partidária, honesta e serena sem agressões e sem doestos, [sic]
sem preocupaçõespessoais".^^ O jornal possuía quatro páginas, duas das
quais eram dedicadas aos anúncios comerciais. Noticiava, assim como
outros jornais, algumas ocorrências que envolviam violências físicas,
que resultavam tanto em lesões corporais quanto em homicídios.
O Estado manteve uma convivência pacífica com a folha oficial,
O Dia. Essa sintonia pode ser observada também na forma como o pri
meiro noticiou, em 1917, um crime que ficou conhecido com "o crime
das piteiras", em uma referência ao lugar em que foi cometido. Durante
várias edições o público leitor foi informado sobre o assassinato de um
jovem lavrador pelo negociante Roberto Manoel. O assassino era pai

A Opinião, n. 279, de 15/02/1916.


A existência de uma folha denominada O Estado não era uma novidade na
imprensa de Florianópolis. Durante a última década do séculoXIXcirculou na
cidade com algumas interrupções motivadas pelo contexto político, o jornal do
Partido Republicano Federalista com a denominação de O Estado. Este jornal
deixou de circular quando membros do Partido Federalista foram assimilados
pelo Partido Republicano Catarinense. A folha quesurge em 1915 em nenhum
momento reinvidicou qualquer "filiação" ao órgão Federalista ou a membros
daquela agremiação política.
O Estado, n.Ol de 13/05/1915.

Imprensa e ficção:...
de Timóthea, uma jovem de 15 anos pela qual a vítima tinha se apaixo
nado. As histórias de vida, tanto da vítima quanto do assassino, foram
devassadas e publicadas na imprensa. Ao primeiro, um lavrador de 17
anos, esforçava-se o jornal para atribuir uma representação de trabalha
dor, que se entregava de maneira "insana e paciente para amainar uma
nesga de pedaço de terra".^' Por seu turno, o "criminoso" foi sendo, aos
poucos, descrito como um "homem muito que ao saber ter sua
filha deixado a casa paterna visando viver com "Manoel Felix Fernan
des, um rapazola de olhar vivo e inteligente", espancou-a sem piedade^^
e, em seguida, se pôs de tocaia no caminho pelo qual a vítima costu
mava transitar, cometendo o seu delito com "espetacular calma", não
apresentando remorsos nem arrependimento.'^^ A narrativa jornalística
se confundia com as descrições dos documentos policiais. As matérias
de O Estado discorreram sobre as diligências policiais, a prisão e o in
terrogatório do assassino, o depoimento das testemunhas na delegacia
e uma entrevista com o pai da vítima. O reconhecimento pelo trabalho
eficiente da polícia ficava patente nas freqüentes referências elogiosas ao
Sr. Cid Campos, "ativo delegado de polícia". Roberto Manoel de Souza,
como se ficou sabendo mais tarde, foi condenado a 30 anos de prisão.'*'
O jornal O Estado foi vendido para o comerciante Augusto Lopes
da Silva, em 1918. Naquele ano, Hercílio Luz voltava a ocupar o go
verno estadual, com o apoio de Lauro Müller. A exemplo do que havia
ocorrido em 1903 e 1910, Lauro, depois de eleito, entregou o governo
para o seu vice, nesse caso, Hercílio Luz. Alçado ao governo do Esta
do, Hercílio trocou a denominação do órgão oficial do PRC de O Dia
para República.'^^ Esse jornal deu ampla divulgação ao que denominava
esforço modernizador do então governador. O Instituto de Identifica
ção Criminal aparecia nas páginas do órgão oficial como um fator de
inibição da violência na cidade. Uma nota, publicada em 1918, rebatia
as acusações de que estaria ocorrendo uma onda de assaltos na capital

O Estado, n. 600, 05/05/1917.


O Estado, n. 603,12/07/1917.
O Estado, n. 600, 05/05/1917.
O Estado, n. 601, 10/05/1917.
República, n. 1487, de 14/04/1920.
República, n. 01, de 29/09/1918.

Sociabilidades, justiças e violências:...


catarinense. Segundo a nota, tal impressão não passava de fruto da ima
ginação popular influenciada pelo cinema e pela literatura. Os assaltos,
continuava o articulista, "faziam parte das cidades civilizadas" e Floria
nópolis "como todas as cidades modernas não está imune a tais casos".
Além do mais, "a polícia tem tomado conhecimento do que se passa e
está agindo." Pois, o Doutor Hercílio Luz, "ilustre governador, fez tomar
enérgicas medidas no sentido de garantir a segurança pública".''^
A tônica das notas publicadas nas colunas "Chefatura de polícia"
era mostrar que a polícia cumpria com seu dever, prendendo e iden
tificando os desordeiros, vagabundos, gatunos, bêbados, mendigos e
distribuindo esmolas aos que "realmente" mereciam. O República tinha
como característica principal divulgaruma imagempositiva dos "donos
do poder", tanto no governo Hercílio Luz quanto no do seu sucessor,
Adolfo Konder, de 1926 a 1930.

JORNALISMO ECONCILIAÇÃO POLÍTICA

A década de 1920 foi um período de relativa tranqüilidade, com


poucos embates políticos entre os grupos instalados na capital catarinen
se. O registro mais contundente foi o rompimento entre Hercílio Luz e o
representante dos latifundiários do planalto, o coronel Vidal José de Oli
veira Ramos, em 1920. ' ^ Em 1922, Hercílio Luz foi eleito governador ten
do como vice Antonio Pereira da Silva e Oliveira. Aquela eleição selava
uma união entre os políticos do PRC da capital. Confirma essa assevera
ção uma pequena nota publicada no República na qual LauroMüUer e Fe
lipe Schmidt felicitavam o novo governador."^^ Outra questão que denota
a paz republicana foi o fato de que na décadade 1920 não circularam, em
Florianópolis, diários de oposição ao governo. Durante a administração
de Hercílio Luz eram publicados o matutino República, o vespertino O

República, n. 14,de 15/10/1918.


AURAS, Marli. Poder oligárquico catarinense. Da guerra aos "fanáticos" do
Contestado à opção pelos pequenos. 1991. Tese (Doutorado em Educação)
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tese de Doutorado, p. 623.
República, n. 373, de 03/01/1920.

Imprensa e ficção:...
Estado e o semanário "hercilista" intitulado A Nota. O diário O Estado se
autointitulava como "jornal independente e de maior circulação em San
ta Catarina"."^^ Essa folha continuou publicando artigos sobre violências,
como brigas entre homens e as bombásticas"cenas de sangue".
Em 1921 foi publicado o crime em que o soldado e cozinheiro da
Força Pública, o "preto Rotílio", matou com uma facada a sua "amásia".
A novidade, frente a outras notícias de assassinato, ficou por conta da
publicação, tanto no O Estado quanto no República, de uma foto em que
um corpo de mulher jazia sobre uma mesa com as vestes ensangüenta
das. Esse homicídio foi noticiado nos dois diários, porém o República
divulgou-o uma única vez"*" enquanto O Estado explorou mais o acon
tecimento, fotografando o local em que residia a vítima, entrevistando
vizinhos e a filha da "amásia" de Rotílio, que foi ferida ao tentar conter
o agressor. A imagem que salta do material jornalístico parece querer
confirmar a tese em voga desde a segunda metade do século XIX e que
descreviaa violênciacomo resultado da degeneração física e moral, cau
sada pela habitação em lugares insalubres,^" por uma vida desregrada e
agravada pela coabitaçâo em concubinato.
Tal perspectiva esteve presente também na literatura catarinense.
Em março de 1923, a folha oficial do PRC começou a publicar um fo
lhetim, escrito por um jovem advogado catarinense, Othon D'Eça, in
titulado Vindicta Braba. Nesse romance, o autor narra a história de um
pai, homem simples e morador do interior da Ilha de Santa Catarina,
que mata um rapaz acusado de ter seduzido sua filha. A crítica aos há
bitos culturais da populaçãorural formava o pano de fundo da intriga.^'

O Estado, n. 1541, de 03/07/1920.


O Estado, n. 1992, de 21/02/1921.
República, n. 709, de 22/02/1921.
O Estado, n. 1994, de 23/02/1921.
Sobre esta questão ver. RAGO, Margareth. Docabaré ao lar: a utopia da cidade
disciplinar: Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: PazeTerra, 1985. p. 163-172.
O romance-folhetim Vindita Braba foi publicado no jornal República, em 1923
e, por iniciativa de Monteiro Lobato, na Revista do Brasil, de São Paulo, em
1924. Sobre essa questão ver; SACHET, Celestino. Homens e sítios na região da
vingança universal. In: D'EÇA, Othon da Gama. Vindita Braba. Florianópolis:
FCC: Fundação Banco do Brasil. Editora da UFSC, 1992. p. 19.

Sociabilidades, justiças e violências:...


o autor, então recém-formado em direito na Faculdade de São Paulo,
fazia uma censura à prática da vingança privada como forma de resolu
ção de conflitos privados. No romance, Othon d'Eça condenava a falta
de austeridade com que o delegado conduziu as averiguações do crime,
terminando por não apontar culpados. Tal crítica fica evidente pela fala
de uma das personagens, que assim se pronunciou frente ao pouco rigor
da autoridade policial: "Homem! São histórias das leisnovas. O Delegado
falou que faltam indícios, provas, e coisas e loisas. Para mim é preguiça
por mode a trabalheira do inquérito".^- No romance, a vindita e o crime
decorrem tanto do modo de vida dos roceiros quanto da ausência da tu
tela do Estado e de suas instituições. Além disso, pode-se perceber o pre
conceito, então corrente, em relação aos habitantes do interior da Ilha de
Santa Catarina, descritospor jornalistas e escritoresda época como moral
e fisicamente degenerados" e atrelados a uma economia de subsistência,
sendo por isso culpados pela atrofia econômica da capital catarinense."
Com a morte de Hercílio Luz, em 1924, assumiu o governo o en
tão vice-governador Antonio Pereira Oliveira. No ano seguinte, o jornal

Idem. p. 50.
Segundo Hermetes Reis de Araújo, os anos de 1920, notadamente, foram mar
cados por uma série de práticas sanitaristas que visavam regenerar a popula
ção do litoral catarinense, vista então como indolente e moralmente incapaz.
ARAÚJO, Hermetes Reis de. A invenção do litoral: reformas urbanas e reajus-
tamento social em Florianópolis na primeira república. São Paulo, PUC, 1989.
Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, 1989. p. 181.
O mesmo tipo de preconceito, em relação aos descendentes de açorianos na
Ilha de Santa Catarina, foi lançado sobre os habitantes do oeste catarinense,
notadamente índios e caboclos. Em um registro de viagem realizada pelo go
vernador Adolfo Konder, à região do Contestado, publicado na imprensa de
Florianópolis, em 1929, fica evidente a idéia dos administradores do Estado de
que o abandono em que viviam aquelas populações favorecia o aparecimento
de crimes e revoltas e que a colonização com elementos de origem germânica
seria um fator importante para o desenvolvimento e civilização daquela região.
Sobre a viagem do governador Ver: D'EÇA, Othon da Gama. Aos espanhóis
confinantes. Florianópolis: FCC: Ed. da UFSC, 1992. Sobre o governo Konder
e a colonização do oeste catarinense ver: BARRETO, Cristiane Manique. Entre
laços: as elites do Vale do Itajai nas primeiras décadas da república. In: RAM-
PINELLI, Waldir José. (Org.) História e poder: a reprodução das elites em Santa
Catarina. Florianópolis; Insular, 2003. p. 166.

Imprensa e ficção:...
República não circulou. Durante o curto mandato de Pereira Oliveira,
o jornal do PRC foi denominado de O Tempo,^'" o que pode simbolizar
tanto o fato de que o então governador não se identificava com o seu an
tecessor quanto a tentativa de imprimir a sua marca pessoal na condu
ção dos negócios do Estado. Somente com a eleição de Adolfo Konder^^
e Walmor Ribeiro," em 1926, o órgão do PRC voltou a denominar-se
República, trazendo na capa uma foto do novo governador.^" Durante
o governo Konder, o jornal O Estado fez uma série de críticas ao que
considerava o endividamento de Santa Catarina durante o governo de
Hercílio Luz. Além desse novo posicionamento frente ao governo ante
cessor, nenhuma alteração substancial foi percebida em sua linha edito
rial. A maior novidade foi a compra daquela folha, em março de 1925,
por Victor Konder,^^ irmão de Adolfo Konder.

SCHLICHTING, Ainda Melo. Catálogo analítico descritivo dosjornais de Flo


rianópolis (1914-1930). O jornal como fontehistórica. Florianópolis, 1989, Dis
sertação (Mestrado HistóriajUFSC. p. 722.
Adolfo Konder nasceu em Itajaí, SC, em 1884. Fez os estudos primários em sua
cidade natal e no colégio Santo Antônio, em Blumenau (1894). Estudou huma
nidades no colégio N. Sra. da Conceição, São Leopoldo, RS, e bacharelou-se em
direito pela faculdade de São Paulo, em 1907. Escreveu no jornal Novidades, de
Itajaí. Foi secretário de Estado da Fazenda, Viação, Obras Públicas e Agricultura,
dogoverno Hercílio Luz, 1918 a 1920. Deputado federal, 1924 a 1926. Foi um dos
fundadores da União Democrática Nacional (1945) juntamente com Henrique
Rupp Júnior e Aristiliano Ramos. Ver: PIAZZA, Walter. F. Opus cite. p. 358.
Walmor Ribeiro era representante político da cidade de Lages e oponente da
família Ramos naquela cidade. Conf. CORRÊA, Carlos Humberto. Um Estado
entre duas repúblicas. A revolução de 30 e a política em Santa Catarina até 35.
Florianópolis: Ed. UFS, 1984. p. 29.
República, n. 01, de 29/9/1926.
Vitor Konder, natural de Itajaí, SC, 1886. Estudou no colégio Santo Antônio,
de Blumenau, SC; fez o curso secundário no colégio N. Sra. da Conceição, em
São Leopoldo, RS, ebacharelou-se em direito pela faculdade de São Paulo. For
mado, retornou a Itajaí onde, com seu irmão Marcos Konder, foi redator do
jornal Novidades. Advogou em Blumenau, de 1912 a 1922. Foi secretário de Es
tado dos Negócios da Fazenda, Viação, Obras Públicas e Agricultura, de 1922 a
1926. Foi deputado estadual porduas legislaturas. Foi Ministro de Estado dos
Negócios da Viação e Obras Públicas. Vitor Konder foi exilado pela Revolução
de 30. Ver: PIAZZA, Walter. F. Opus cite. p. 360.

Sociabilidades, justiças e violências:.


Em 1926 apareceu o jornal Folha Nova, fundado pelo jornalista
Crispim Mira. A Folha não se caracterizoucomo um jornal de oposição
ao governo estadual. Divergia em alguns momentos do OEstado, possi
velmente pelos favores governamentais. Uma característica que aproxi
mava os dois jornais, além de serem diários, era o fato de se manterem
financeiramente pelavenda avulsado jornal e de assinaturas, bem como
de espaços publicitários. A Folha Nova publicava notícias tanto de pe
quenos conflitos, envolvendo homens e mulheres, quanto de crimes vio
lentos. Mas o crime publicado pela Folha que teve maior repercussão,
inclusive fora do Estado, foi o assassinato de seu diretor Crispim Mira.
Após Mira denunciar o desvio de verbas na obra do porto da cidade,
um grupo de rapazes da alta sociedade, entre eles o filho do engenheiro
acusado pela drenagem do dinheiro público, invadiu as oficinas do jor
nal e, munido de um chicote, partiu para cima do jornalista. Segundo
relatos que constam no processo, de dentro da redação ouviu-se um tiro
que atingiuCrispim Mira. O chefe de polícia e romancista Othon D'Eça,
em seu inquérito, não soube precisar quem fora o autor do disparo. O
jornalista, segundo laudo médico, apresentava um ferimento na boca,
resultado de um projétil de arma de fogo. Alguns dias mais tarde, a víti
ma foi a óbito no Hospital de Caridade. Assim como os artigos publica
dos pelo jornalista, sua morte teve contornos onde ficção e realidade se
misturavam. Alegando que o inquérito policial não apontava o culpado
pelo tiro, por "inépcia, relaxamento, ou má fé", o advogado Henrique
Rupp Júnior, antigo desafeto da vítima, pedia a absolvição dos réus.
Enquanto o jornal Folha Nova clamava por justiça, os outros jor
nais buscavam acalmar os ânimos da população da cidade. O jornal
O Estado publicou notícias lamentando o incidente e informando as
condições de saúde de Mira.^^ O tom das notas era sempre comedido e

O jornalista e advogado Francisco José Pereira escreveu um romance sobre a vida


e a morte do jornalista Crispim Mira, tendo como fonte os artigos de jornais, des
de os tempos em que Crispim Mira era articulista da Gazeta Catarinense. O autor
em seu romance reproduz documentos, como depoimentos de testemunhas, da
acusação e da defesa, que fizeram parte do processo do crime instaurado contra
os acusados do assassinato de Crispim Mira: Ver: PEREIRA, Francisco José. As
duas mortes de Crispim Mira. Florianópolis: Lunardelli/FCC, 1992.
O Estado, 3817, de 02/02/1927.

Imprensas ficção:..,
apelavapara o sentimento de civilidade da população da capital. Em um
artigo intitulado Torrentes de lágrimas, ilustrado pela foto de Crispim
Mira e do advogado de defesa dos acusados, Rupp Júnior, o articulista,
com o claro objetivo de não colocar a opinião pública contra os rapazes,
questionava se as lágrimas derramadas pelas mães e noivas dos envol
vidos não seriam mais sofridas do que as vertidas pela esposa da vítima
e concluía que as primeiras tinham mais motivos para sofrer. O Repú
blica manteve o mesmo tom conciliador. Ao término de tudo, o que se
viu foi que: "Crispim Mira morto, a sindicância por ele reclamada - se
realizada - nada apurou"." Os acusados, oriundos das chamadas "boas
famílias" da cidade, foram absolvidos e com o passardo tempo o clamor
de justiça foi arrefecendo nas páginas da Folha Nova.
Essas características dos principais jornais de Florianópolis, aqui
apresentadas, apesar de não serem determinantes, ajudam a perceber
a forma como a questão da violência foi tratada ao longo da Primeira
República. Isso não quer dizer que todas as formas de violência física
passaram a ser recriminadas e ganharam publicidade. Como nos lem
bra Peter Gay, "o tipo de agressividade que uma cultura recompensa ou
deprecia, legaliza ou bane, obviamente depende dos tempos e das cir
cunstâncias, dos riscos e das vantagens percebidos, dos hábitos sociais
de rebeldia ou de conformidade".^^

Ou seja, como se procurou demonstrar, os acontecimentos re


conhecidos como violentos variam no tempo. Um crime que em um
determinado contexto passou em branco nas páginas dos jornais, em
outro ganhava destaque de capa e passava a ser descrito como um ato
"bárbaro" ou uma grande "monstruosidade". Pode-se observar, além
disso, nessa breve caracterização da imprensa de Florianópolis, a influ
ência do quadro de disputas políticas na forma como os jornais diários
narraram os atos de violência na cidade.

PEREIRA, Francisco José. Opus cite. p. 122.


GAY, Peter. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud. O cultivo do
ódio. Vol. 3. São Paulo; Cia. das Letras. 1995. p. 12.

Sociabilidades, justiças e violências:...


Os autores

\'\lí. .%! ^

Cláudia Mauch
Mestre em História, professora da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.

Gisela Sedeillan
Professora da Universidad Nacional de Centro de Ia Província de
Buenos Aires, UNCPBA, e pesquisadora Conicet (Consejo Nacio
nal de Investigaciones Científicas y Técnicas).
Lizete Oliveira Kummer
Doutoranda do Programa de Pós-Graduaçào em História da
UFRGS.

Maria Alejandra Fernández


Doutora em História, professora da Universidad Nacional de Ge
neral Sarmiento e da Universidad de Buenos Aires.
Maria Carolina Zapiola
Professora da Universidad Nacional de General Sarmiento e pesquisa
dora Conicet Conicet (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas
y Técnicas).
Nádia Maria Weber Santos
Doutora em História, médica-psiquiatra e pesquisadora EST/Fapergs.
Paulo Roberto Staudt Moreira
Doutor em História, professor do Departamento de História e Progra
ma de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (Unisinos)

Sandra Gayol
Doutora em História, professora da Universidad Nacional de General
Sarmiento.

Sandra Jatahy Pesavento


Doutora em História, professora titular do Departamento de História
da UFRGS e do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Urba
nismo da UFRGS (Propur).
Vanderlei Machado
Doutor em História, professor do Colégio de Aplicação da UFRGS.

Sociabilidades, justiças e violências:...


Tipologia utilizada no texto; Minion Pro, 12
Papel:OfFSet 75g
Impresso na Gráfica da UFRGS

Editora da UFRGS• Ramiro Barcelos, 2500 - Porto Alegre, RS - 90035-003 - Fone/fax (51) 3308-5645 - cditora@uftgs.
br - wiA-w.cditora.ufrgs.br ♦ Direção: SaraViola Rodrigues • Editoração: Luciane Delani (Coordenadora), Alice Helzel, Carla
M. Luzzatto, Cristianc) Tarouco, Fernanda Kautzinann, Maria da Glória Almeida dos Santos e Rosângela de Mello; suporte
editorial; Alexandre Giaparclli Colombo, faqueline Mourae Jeferson Mello Rocha (bolsistas) • Administração: Aline Vascon
celos da Silveira, Getúlio Ferreira de Almeida, Janer Bittencourt. Jaqueline Trombin, Laerte Balbinot Dias, Najára Machado
e Valéria da Silva Gomes.
colecão Sul
A criação da Coleção Sul é mais um dos
elos entre as editoras universitárias da
região Sul. que participam da Associa
ção Brasileira das Editoras Universitá
rias {ABEU).

A finalidade da Coleção Sul c divulgar


os estudos produzidos nessa região do
Brasil, ampliando a rede de adoção e
circulação de obras por todo o país. Esta
coleção possibilita maior participação
no Plano Nacional do Livro e Leitura
pela troca e consignação das obras des
sas editoras.
•..in-.' •y"

A obra reúne estudos das formas de ser e proceder


das populações urbanas no Cone Sule no final do sé
culo XIX e início do século XX. Os referidos estudos
caracterizam a prática da violência e de fazerjustiça,
bem como a elaboração das leis e os parâmetros de
avaliação dos comportamentos das populações de
um e de outro lado da fronteira sul. A focalização de
mundos de fronteira interligados permite a análise
das sociabilidades e sensibilidades presentes em re
giões que experimentam um processo de formação
histórica semelhante, o que permite a discussão das
práticas e das representações sociais entre grupos dis
tintos da sociedade.

Você também pode gostar