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REVISTA DE FFLCH-USP

Revista de História IS5 2asemestre de ¡996

SOB O SIGNO DE OTELO: FRANCISCO JOSE VIVEIROS DE


CASTRO E AS "CONTRADIÇÕES" NA JURISPRUDÊNCIA
SOBRE CRIMES PASSIONAIS

Carlos Martins Junior


Mestre pelo DH-FFLCH/USP

RESUMO: Baseado na análise da jurisprudência sobre crimes sexuais criada por Francisco José Viveiros de Castro no
final do século XIX, este artigo estuda os critérios que a Justiça da época começava a usar para definir quem seria
merecedor de sua "proteção" e os que estariam excluídos dela. Com isso, fica-se diante do papel representado pelo
Direito no processo de submissão política c econômica dos indivíduos oriundos dos segmentos pobre c trabalhador da
população - processo definido, no plano semântico, pelo termo "civilização -, no período cm que se instituía, no país,
uma sociedade de classes nos moldes capitalistas.

ABSTRACT; Based on the analysis of the jurisprudence on sexual crimes instituted by Francisco Viveiros de Castro at
the end of the 19th century, this article studies the criteria that the judiciary began using to define those worthy of their
"protection" as well as those to be excluded from it. Herewith, the law exercises a distinct role in the process - defined
semantically by the word "civilization" - of political and economic submission of the citizens who belonged to the
poor and hard-working segments of society during a period when a class system within capitalist structures is estab-
lished in Brazil.

PALAVRAS-CHAVE: jurisprudência, cidadania, exclusão, criminalidade, sexualidade

KEYWORDS: jurisprudence, citizenship, exclusion, criminality, sexuality

Na segunda metade do século XIX, o Brasil pas- m e r c a d o r i a s , a l é m do c r e s c i m e n t o d e m o g r á f i c o ,


sou por transformações estruturais que se refletiam acentuado pela chegada de levas d e imigrantes eu-
na própria paisagem urbana. A progressiva substi- ropeus e pela incorporação à p o p u l a ç ã o urbana de
tuição da mão-de-obra escravista pelo trabalho livre elementos étnicos nacionais provenientes das áreas
assalariado, o surgimento das fábricas, o desenvol- rurais, fizeram c o m que, no decorrer das três últimas
vimento dos sistemas de transportes e circulação de décadas do século, cidades c o m o R i o de Janeiro e
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São Paulo perdessem, aos poucos, o caráter provin- bano mais ordenado. Nesse contexto, processou-se
ciano e colonial. a difusão de saberes que conduziram ao refinamen-
A diversificação das atividades econômicas so- to dos mecanismos de controle social, cristalizados,
mada à maior complexidade das estruturas sociais por exemplo, na mudança das concepções e práti-
tornavam o meio urbano cada dia mais desconheci- cas da saúde e na inflexão da noção e da abrangência
do e assustador. Transformando as cidades em ver- da criminalidade. Os diferentes "desvios" passaram
dadeiros laboratórios de observação, políticos c a ser crescentemente separados c classificados, e para
reformadores sociais construíram em relação a elas cada um deles desenvolveram-se formas específicas
imagens extremamente contraditórias. De um lado, de enfrentamento, respaldadas pela crença na ciên-
as melhorias materiais como a construção e a remo- cia como fundamento do progresso.
delação de ruas e avenidas, a instalação de novos Nascido da conjuntura que seguiu a abolição da
sistemas de saneamento c iluminação, bem como a escravidão, tendo como prioridade a organização do
busca de novas formas de lazer e prazer, denotavam mercado de trabalho assalariado c a integração do
a reprodução, aqui, dos padrões de comportamento liberto a uma sociedade que começava a se auto-
europeus, determinando representações do espaço conceber como uma comunidade de trabalhadores,
urbano como emblema da modernidade e do progres- coube ao regime republicano o aprofundamento da
so. Por outro lado, o crescimento demográfico e fí- ideologia valorizativa do trabalho c de estratégias de
sico em direção aos subúrbios, as agitações operári- controle - direto c indireto - das camadas populares,
as, a concentração da pobreza e a exposição pública Pode-se dizer que, ao colocar a questão da disciplina-
do trabalho sustentavam, no plano das mentalidades, ri zação dos indivíduos pertencentes aos segmentos
imagens das cidades como símbolos do caos, locais pobre e trabalhador da população no centro de seu
de concentração de uma multidão miserável e indis- projeto político, os dirigentes republicanos não pou-
ciplinada, a esconder em suas entranhas o crime, o param esforços para fazer com que os elementos li-
vício e a doença. gados às chamadas "classes perigosas" assumissem
Associada à visão da pobreza nas ruas, a multi- em definitivo suas responsabilidades como trabalha-
dão, sinônimo de ameaça política c de contágio dores e seus papéis sociais de pais c mães de famí-
moral, incutia nas mentes pensantes a preocupação lia exemplares, pois da absorção do sentimento de
com o surgimento de uma onda de crimes contra a "amor ao trabalho" c do respeito aos valores de fa-
pessoa e a propriedade, imaginário amplamente ali- mília (instituição apontada como a célula mater da
mentado pela imprensa sensacionalista emergente. sociedade) consolidava-se, aos olhos das elites na-
As sensações de medo, espanto e indignação gera- cionais, a imagem do "bom cidadão".
das pelo receio de contato com a "miséria abundan- Dentre os vários instrumentos que os dirigentes
te c hedionda", aliadas à correlação que se estabele- republicanos lançaram mão para viabilizara submis-
cia entre crescimento urbano, pobreza, doença c são política e econômica do trabalhador, o aparelho
criminalidade, reforçavam a idéia de que nas cida- jurídico foi um dos mais importantes. Como outros
des o homem cairia na degenerescência física e campos do saber, o Direito teve como meta a forma-
moral. Tendo o darwinismo social c o positivismo ção c a administração política da população, num
como cobertura teórica, essa visão promoveu o de- esforço de reelaboração da classe trabalhadora de
sejo de se aprofundar estratégias de controle dos modo a possibilitar o aumento da riqueza e garantir
populares, de modo a garantir um crescimento ur- os objetivos republicanos de "ordem c progresso".
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Influenciados pela cadeia perversão-hereditarie- Defensor intransigente das concepções lombro-


dade-degenerescência criada pela Medicina, para os sianas sobre a natureza do homem criminoso, Cas-
juristas brasileiros do Final do século XIX e início tro esforçou-se, de um lado, em difundir e explicar
do XX que partilhavam das teses da chamada nova as bases teóricas em que se assentava o Direito positi-
escola penal de caráter positivista a desordem soci- vista. Por outro lado, ao reforçar o nexo entre crime
al verificada no país teria origem na constituição e comportamento individual e apontar os delitos
anômala do homem, que necessitaria de intervenção sexuais como produto da dissolução dos costumes
normalizadora. Para essa vertente do pensamento que ameaçava sobretudo a família de desagregação,
jurídico, caberia ao Poder Judiciário levar adiante focalizou o interesse no aprofundamento de concei-
uma ação "civilizatória" visando ao estabelecimen- tos sobre as "patologias do instinto sexual" e sobre
to da ordem sexual c da organização familiar, crité- os crimes praticados contra a honra das mulheres, no
rios básicos para a melhoria das futuras gerações e intuito de orientar a magistratura quanto à melhor
para a construção das bases daquela que era vista forma de coibir e punir todos os delitos de sexo. Mais
como a maior riqueza do Estado: a qualidade da do que a preocupação restrita à exclusiva aplicação
população. Portanto, o sexo enquanto instituição e da lei, esse jurista manifestava a intenção de criá-
a sexualidade enquanto vivência trans formavam-se la, recriá-la e, se necessário, modificá-la para que
definitivamente em assunto de interesse social. fosse possível a atuação normalizadora da Justiça
À medida que o sexo ia sendo figurado como tanto em campos específicos, como a determinação
simbolização do bem e do mal c que se percebia que da paternidade duvidosa, quanto nos de alcance so-
este constituía um elemento fundamental para que cial mais amplo, caso da organização do casamento
o ideal disciplinar pudesse gerir politicamente o civil c da família monogâmica. Daí seus textos dei-
corpo, a vida e a proliferação, crescia o interesse pelo xarem transparecer um verdadeiro projeto civiliza-
estudo dos crimes sexuais. Dentre os juristas que se tório, voltado principalmente para as camadas soci-
dedicaram ao assunto, Francisco José Viveiros de ais menos favorecidas, no interior do qual se espelha-
Castro foi o mais destacado, por ter sido o primeiro va uma proposta moralizadora condizente com as
a centrar a atenção sobre esse tipo de delito, apro- aspirações das elites dominantes.
fundando conceitos e dando forma a procedimentos Exatamente por fornecer os subsídios necessári-
que permitissem a melhor maneira de tratá-lo. os para que se possa penetrar, tanto no universo de
Introdutor no Brasil de um saber médico-jurídi- idéias e mitos que dirigiram o debate em torno da
co que deveria penetrar todas as instâncias humanas, reformulação da ciência jurídica nacional, quanto no
reconhecendo e opondo condutas "sadias" e "pato- simbólico que deveria reger a atuação dos agentes
lógicas", os estudos desse jurista revelam a inquie- aplicadores da lei nos julgamentos de delitos sexu-
tação das autoridades públicas e dos intelectuais com ais, os trabalhos de Viveiros de Castro ganham des-
a ameaça da "anarquia" das raças, das classes e dos taque como fonte documental para o estudo do pa-
sexos, pulsante na multidão urbana composta por pel representado pela Justiça na questão da fiscali-
trabalhadores, "vagabundos" e mendigos - na gran- zação do comportamento dos populares e do controle
de maioria negros e mestiços -, bem como com os social quando da implantação c consolidação da
caminhos para ordenar seus comportamentos de República no Brasil.
acordo com as exigências impostas pela sociedade Mesmo reconhecendo que a jurisprudência não
burguesa em implantação no país. tem necessariamente valor normativo (sabe-se que
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muitas decisões acatadas cm Tribunal não raro lhe importantes de sua organização cotidiana no tocan-
são diametralmente opostas), a opção em abordá-la te ao amor, à moradia, ao lazer e ao trabalho.
parte do pressuposto de que nela as imagens formu- Livro precursor da literatura jurídica sobre as
ladas a respeito das vítimas, acusados e testemunhas, "aberrações do instinto sexual". Atentados ao Pudor
a indicação dos procedimentos "técnicos" e dos ca- compõe, juntamente com A Nova Escola Penal e
minhos a serem percorridos pelos "atores jurídicos" Delitos Contra a Honra da Mulher, a trilogia que
e pelos agentes julgadores balizam-se e são respal- sintetiza toda a teoria de Viveiros de Castro. Nele, o
dados, em geral, num conjunto de normas e valores autor dedica-se, primeiramente, à "catalogação ci-
morais que num determinado momento histórico entificamente comentada" de todas as "expressões
estão incorporados aos traços de cultura de um gru- do instinto sexual" classificadas como "perversas"
po ou classe social. Valores que deverão ser incor- por Kraft-Ebing, por não corresponderem aos obje-
porados pelos demais agentes sociais, ainda que seus tivos "naturais" da procriação, tais como o onanis-
códigos culturais, construídos e constantemente re- mo, a sodomia e o homossexualismo, entre outras.
criados e adaptados a novas situações sociais, os E aqui Castro já se mostrava um inovador não só por
obrigue a transgredir alguma conduta moral que a criminalizar comportamentos e práticas sexuais que
Justiça pretenda impor como única realmente váli- a Medicina brasileira havia considerado pervertidas,
da. Assim, a leitura desse tipo de fonte é útil em vá- situando-as, porém, no terreno exclusivo da sexua-
rios aspectos fundamentais para a formulação dos lidade doentia e da prostituição, mas, acima de tudo,
objetivos propostos neste texto. Sob o ponto de vis- por incorporar ao campo das patologias sexuais os
ta geral, contribui para que se possa compreender a chamados criminosos da paixão, a exemplo dos sui-
maneira como ocorria a constituição social dos pa- cidas, ciumentos e assassinos. Sobre isso escreveu:
péis sexuais na medida em que se instituía no país "(...) pareceu-me que assim procedendo não alarguei
uma sociedade de classes nos moldes efetivamente demasiadamente os limites do quadro. Estes atos são
capitalistas e em que, ao menos em tese. todos co- também um desvio do amor natural, uma aberração
meçavam a ser vistos como iguais perante a lei - fato mórbida c têm a mesma etiologia, a degenerescência
que precisava ser enfrentado da forma mais coeren- hereditária ou adquirida. Ramos da mesma árvore,
te possível, numa sociedade marcada por profundas não quis decepá-los" (CASTRO, 1934, p. Vili). A
desigualdades dos mais diversos matizes, desde as seguir, procurou estabelecer uma "etiologia do mal",
sociais até as sexuais e raciais. Além disso, permite encerrando o trabalho com a análise do papel da
maior percepção de um dos mecanismos de media- Justiça no enfrentamento de casos dessa natureza.
ção através do qual a ordenação daqueles papéis
deveria ser mantida e perpetuada, funcionando de- Fiel aos postulados da antropologia criminal ita-
cisivamente para a manutenção das desigualdades - liana que identificava nos fatores biológicos a ori-
o Judiciário. Do ponto de vista mais específico, se gem da criminalidade, Castro elegeu a hereditarie-
de um lado a jurisprudência reflete um projeto polí- dade como a principal razão dos "desvios sexuais".
tico de submissão dos trabalhadores, de outro, ao Advertia, contudo, que, embora as "névroses" fos-
emitir opiniões c conceitos negativos - dominantes sem, em geral, transmitidas hereditariamente, nem
no universo mental das elites - a respeito do com- sempre assumiam os sintomas revelados pelo trans-
portamento total em sociedade desses agentes soci- missor, podendo, ao contrário, aparecer em diferen-
ais, acaba possibilitando a recuperação de aspectos tes variedades. Assim, um epiléptico poderia "gerar
um criminoso", do mesmo modo que "um alcoóla-
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tra poderia gerar um ciumento", pois o que havia em verso a punir", ou se o ato praticado era "uma ma-
comum era "o fundo da degenerescencia, o desequilí- nifestação da degenerescência mental ou nervosa,
brio mental e nervoso" (CASTRO, 1934, p. 279). um impulso irresistível da vontade sem energia e sem
Em concordância com Comte, afirmava haver no centros inibitórios" (CASTRO, 1934, p. VI).
homem dois instintos básicos, "primeiros na ordem Eis aí como o autor de Atentados ao Pudor jus-
do aparecimento e ainda hoje os que mais fortemente tificava seu interesse em tratar de assunto que, pes-
influenciam na conduta": o "nutritivo", que lhe ga- soalmente, admitia, pudesse provocar "cm toda alma
rantiria a existência, c o sexual, responsável pela re- delicada um natural sentimento de repulsa". Justifi-
produção da espécie. A humanidade seria feliz se tais cativas a parte, foi a exigência de normalidade, "su-
instintos funcionassem harmoniosamente. Entretan- perando repugnancias e preconceitos", que o estimu-
to, longe desse ponto ideal, o que se verificava na- lou a enveredar por terreno ainda não desbravado
quele final de século era um quadro sombrio, carac- pelo Direito Penal brasileiro. Preocupado com a se-
terizado pelo desenvolvimento das "aberrações se- xualidade, o jurista teve de "falar de sexo publica-
xuais" que, juntamente com o aumento do consumo mente (...) como coisa que não se deve simplesmente
de álcool, dos casos de suicídio, de loucura e das tolerar, mas gerir, inserir em sistemas de utilidade,
"névroses em suas inúmeras manifestações", afeta- regular para o bem de todos segundo um padrão óti-
vam não só a "vida, a honra c a liberdade de suas mo" (FOUCAULT, 1980, p. 27).
infelizes vítimas, como comprometiam a segurança Definindo o livro como uma vulgarização das
social". Prova do aumento assustador dessas "aber- leituras dos mais avançados tratados científicos da
rações", e ao mesmo tempo fato negativo a ser cons- época sobre as psicopatologias do instinto sexual, em
tatado, eram os jornais que todos os dias noticiavam Alentados ao Pudor Castro pretendia chamar a aten-
atos contra o pudor, contribuindo para levantar o ção dos magistrados c de todos os estudiosos dos
sentimento de indignação da opinião pública contra problemas penais sobre a situação dos que compa-
seus autores, a ponto de cristalizar um juízo contrá- reciam à barra dos tribunais acusados da prática de
rio a eles, resistente mesmo a todos os argumentos e crimes hediondos, quando, no mais das vezes, eram
provas a seu favor. A partir daí, "a justiça os pune, a "vítimas de um estado nevropatológico". Negando
sociedade os estigmatiza e eles têm para sempre que advogasse a impunidade daqueles que compro-
gravada cm sua vida a terrível sentença do inferno vadamente agiam sob "impulso de uma névrose", sua
dantesco" (CASTRO, 1934, p. VI). intenção era, de um lado, demonstrar a irresponsa-
Para que a Justiça decidisse de modo imparcial, bilidade dos mesmos perante seus atos e, de outro,
tornara-se imperioso reagir contra esse poderoso salientar que deveriam ser tratados c não punidos,
esquema de formação de opiniões que, perigosamen- ser internados como doentes c não encarcerados
te, estendia-se também aos magistrados. Propunha como criminosos, haja vista que: "Há o crime c há a
Castro, então, medidas que iam da imposição de li- perversão. Há o criminoso e há o degenerado. O
mites à atuação da imprensa, até a implementação primeiro deve ser punido, o segundo é irresponsá-
do método científico para promover a mediação vel. O papel da justiça, portanto, deve ser a investi-
entre a severidade da lei e a censura da opinião pú- gação minuciosa do estado mental do acusado"
blica. Somente a ciência, em sua completa neutrali- (CASTRO, 1934, p. 297). Alicerçado na premissa de
dade, seria capaz de reconhecer se perante o Tribu- que "no estado presente" da ciência penal brasileira
nal encontrava-se "uma alma corrompida, um per- os juízes ainda eram incompetentes para decidir so-
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bre tais questões, recomendava que o primeiro de- logo se revelasse sua periculosidade, fosse um cri-
ver do magistrado - imposto pelas exigências da minoso ou um louco. De qualquer forma, "reconhe-
Justiça, da sociedade c de "interesses respeitáveis da cido seu caráter impulsivo, o juiz manda recolhê-lo
família" - era requerer o exame médico-legal do ao asilo de alienados. A sociedade, pois, não corre o
acusado e proceder de acordo com as conclusões dos menor risco com a admissão dessa teoria" (CAS-
peritos. Refutando a argumentação dos que viam TRO, 1934, p. 298). Nessa linha de raciocínio, os
nessa invasão dos tribunais pela Medicina a ameaça interesses individuais também seriam preservados.
da magistratura se converter em mera rubricadora de Condenado como criminoso, o degenerado teria de
sentenças determinadas pelos peritos, os quais se cumprir pena sob regime "debilitante e exaustivo",
transformariam nos verdadeiros árbitros da repres- em prisão celular. Sem tratamento algum, a punição
são, chegava mesmo a ser contundente: "A missão cm nada contribuiria para regenerá-lo, servindo ape-
da justiça não é condenar a torto e a direito e sim nas para agravar ainda mais seu estado físico e men-
punir criminosos e absolver inocentes. Se a ciência tal. Porém, recolhido ao manicômio, colocado sob
nos ensina que a degenerescencia mental produz "tratamento conveniente", teria mais chances de se
aberrações sexuais, se tais degenerados não têm ou recuperar, transformando-se num cidadão "útil à so-
consciência de seus atos ou vontade para resistir aos ciedade". Mais que isso, levando-se em consideração
impulsos, é de rigoroso dever apurar a condição fí- que a condenação - importando, no limite, no reco-
sica e mental do acusado. E quem mais competente nhecimento do caráter - não feria apenas o acusado
para esse exame do que o médico especialista, que individualmente, estendendo os efeitos inclusive a sua
tem experiência e prática nesses assuntos, que pode família, a qual passaria a "sofrer na consideração
descobrir as simulações mais engenhosas? Ninguém pública e na estima dos amigos", o reconhecimento
se rebaixa confiando às autoridades competentes a da "loucura" serviria para "atenuar todos os inconve-
decisão das questões técnicas. Só os ignorantes se nientes" surgidos no cotidiano de quem tivesse "o
atrevem a julgar sobre coisas que não entendem" nome manchado por uma condenação judiciária", pois
(CASTRO, 1934, pp. 297-298). já não se trataria mais de um "malvado e sim de um
estado patológico que poderia acometer qualquer
Apoiado na tese de que em casos de atentados ao
pessoa"; e "de médico, poeta y loco, todos tenemos
pudor estavam em jogo tanto interesses individuais
un poco " (CASTRO, 1934, p. 299).
(como a liberdade e a honra do acusado e a situação
de sua família) quanto coletivos (especificamente a Se no plano ideológico essa proposta, qualifica-
segurança social a ser acautelada contra "impulsi- da pelo autor como "humanitária", visava a confe-
vos perigosos"), ambos igualmente importantes, rir maior equilíbrio entre o delito e a aplicação da
entendia o jurista desprovida de valor a altercação pena, na prática permitia, com a ajuda da ciência, o
dos adversários do Direito positivista de que, ao se reforço de todas as hierarquias e desigualdades com
isentar de responsabilidade os degenerados, se com- as quais o Direito clássico já trabalhava. Hierarqui-
prometia a segurança social pela impunidade do cri- as e desigualdades que operavam nos níveis sexual-
me. Do seu ponto de vista, dado que para a nova es- social - em que homens e mulheres recebiam trata-
cola penal o fundamento da pena era a defesa social mento diferenciado em função dos papéis que deles
ameaçada pela "temerabilidade" do delinqüente, a eram esperados, simplesmente por serem homens e
segurança pública ficaria imediatamente resguarda- mulheres - e social-sexual - no qual indivíduos de
da afastando-se o indivíduo do seio da sociedade, tão uma classe terão privilegio de tratamento, devido a
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sua inserção em determinada faixa da estrutura so- concordar com a venda de Espiridiana, por ser es-
cial. Isso fica claro na análise que Viveiros de Cas- crava de total confiança, estima c muito sua amiga.
tro fez de dois assassinatos de mulheres ocorridos na O marido perguntou-lhe, então, se devia acreditar em
segunda metade do século XIX, ambos paradigmá- tudo o que dissesse Espiridiana, ao que, um tanto
ticos para os estudantes de Direito da época não só perturbada, sua mulher respondeu que sim, tornan-
devido à posição social de seus protagonistas, mas do-se, depois, bastante pensativa.
também porque, de acordo com os pressupostos do Novamente agitado, Mariano jantou e subiu ao
Direito científico, a Justiça teria incorrido cm "erro". segundo andar. Transposto o primeiro lance de es-
Trata-se dos casos José da Silva Mariano e Pontes cadas, parou para ouvir o que se passava na sala onde
Visgueiro. haviam ficado sua mulher e Espiridiana; ouvindo a
A 6 de novembro de 1866, o médico José da Sil- esposa dizer à escrava: "Então nos perdeste?" Foste
va Mariano compareceu espontaneamente ao quar- contar a teu senhor", ao que aquela respondeu: "En-
tel do corpo policial do Rio de Janeiro, confessando tão meu senhor lhe disse?". O doutor Mariano des-
que na tarde daquele dia matara, a golpes de bisturi, ceu e perguntou a ambas o que havia, o que sabiam,
sua mulher, Helena Augusta da Silva. ao que dona Helena respondeu "nada". Para evitar
No depoimento, declarou que nos 19 anos em que escândalo diante dos escravos, convidou a esposa e
fora legalmente casado com dona Helena, esta sem- Espiridiana a subirem, interrogando esta última so-
pre se comportara como uma senhora de conduta bre o que havia visto ou sabia e se alguém havia en-
irrepreensível. Porém, a 4 de novembro, os criados, trado na casa. Simultaneamente, dona Helena, bas-
entre eles a escrava de nome Espiridiana, preveniram- tante perturbada, acenava com o dedo para que a es-
no de que cia o traía com um vizinho, Raymundo crava nada falasse, ao mesmo lempo em que procu-
Alves de Souza, que cm suas ausências entrava na rava afastá-la para o andar de baixo. Dizendo-se fi-
casa pelo telhado. Perplexo c desorientado, procu- nalmente convencido da culpabilidade da mulher,
rou um amigo, o tenente-coronel Duarte, a quem Mariano apanhou um bisturi na carteira de instru-
desabafou o problema. mentos cirúrgicos e, depois de uma luta, fez em dona
Na manhã de 6 de novembro, o coronel Duarte Helena os ferimentos falais. Concretizado o crime,
conversou longamente com dona Helena. Às 11 ho- mandou chamar seu cunhado, o doutor Torres Ho-
ras, chamou o declarante ao quartel, dizendo-lhe mem, cnlrcgando-lhc a administração da casa e dos
estar convencido de sua inocência e de que as sus- negócios, dirigindo-se, enfim, à delegacia.
peitas eram infundadas, não passando as denúncias A I l de novembro, uma junta médica, da qual
de mentiras tramadas pelos escravos visando a al- fez parte o doutor Torres Homem, certificou que o
gum fim ignóbil. Comunicou-lhe, ainda, que ficara indiciado estava em estado de alienação mental,
combinado que, para a dissipação de qualquer boa- devendo ser recolhido ao Hospício Pedro II para tra-
to, o casal passaria alguns meses em São Domingos tamento adequado. Em laudo médico datado de 26
e que, ao retornarem ao Rio, morariam em outra casa. de novembro, atestaram os médicos dessa institui-
Afirmando que as impressões do amigo lhe ha- ção que o doutor Mariano lá chegara apresentando
viam recobrado a confiança, o doutor Mariano co- sintomas de "hiperemia cerebral", sendo "notável"
municou à mulher que estava de acordo com a deci- o delírio acompanhado de agitação, exacerbada em
são, acrescentando, ainda, sua disposição de vender horas indeterminadas. Nesse estado, classificado de
todos os escravos, ao que dona Helena observou não "mania aguda", teria permanecido até o dia 15 de
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novembro, quando, em função do tratamento empre- minosos e de Viveiros de Castro definir o exame do
gado, cessaram a agitação periódica e os fenômenos estado mental do acusado como primeiro dever do
de "hiperemia cerebral", estando "atualmente em magistrado cm casos de crimes sexuais, o juiz de
completa integridade da razão", o que podia ser instrução encarregado do crime da rua dos Barbónos
observado pela coerência com que respondia às per- convocara dois peritos para examinarem o réu- Mas
guntas a ele dirigidas. Dois peritos nomeados pelo ainda assim essa absolvição constituiu, para Castro,
j u i z de instrução confirmaram que, dado o grande um dos maiores escândalos cometidos pela Justiça
"constrangimento moral" a que vinha sendo subme- brasileira. Para colocar em dúvida a decisão da Jus-
tido, as "faculdade intelectuais" do acusado estavam tiça, o jurista desafiava sua própria afirmação de que
"alteradas e pervertidas" antes do crime, não restan- "só os ignorantes se atrevem a julgar sobre coisas que
do dúvidas de que na hora em que matara a esposa não entendem", questionando justamente o que con-
estaria fora do "perfeito uso da razão" c que prova- siderava o mais fundamental nesses casos: o atesta-
velmente continuara em "estado de delírio" depois do médico-legal.
do crime. Do seu ponto de vista, Mariano não apresentava
A peça de defesa elaborada pelo doutor Bush nenhum sintonia que justificasse a alegação de "lou-
Varella foi d i v i d i d a em duas partes. Na primeira, cura transitória", tampouco motivo aparente que
procurava-se provar que dona Helena havia realmen- pudesse descaracterizar a imputação de crime e ca-
te cometido adultério e que, diante disso, o acusado racterizara necessidade de tratamento. Não vivia ele
teria direito de malá-la. Na segunda, tcnlava-sc de- na "tranqüilidade do lar"? Não exercia normalmen-
monstrar, com base nos laudos médicos, a irresponsa- te sua atividade de médico? Não fora ele mesmo
bilidade do réu, uma vez que agira em estado de quem declarara ao chefe de polícia que, nos anos de
"loucura transitória". convivência com a esposa, esta fora merecedora de
Em julgamento realizado a 15 de dezembro de total confiança, nada tendo a registrar que a desquali-
1866, o júri deliberou que o réu de fato es'ava "louco" ficasse como "mulher honesta"? Somente depois da
no momento do crime, optando por sua absolvição. delação dos escravos, "gente indigna de credito, ain-
Em tese, Mariano tinha tudo para ser classifica- da mais por alguém esclarecido como o doutor
do como um criminoso apaixonado", da maneira Mariano", é que a desconfiança de infidelidade "bro-
corno foi d e f i n i d o por Enrico Ferri. Não possuía tou c agitou seu espírito". Mesmo assim, tranqüili-
nenhum antecedente que pudesse manchar seu ca- zou-se ao desabafar com um amigo, voltando a agi-
ráter e sua honra, tampouco referencias a anomalías tar-se com palavras que disse ter ouvido e que, afi-
biológico-anatômicas. Agira tão somente pressiona- nal, deram-lhe a "certeza" da infidelidade de dona
do por forte impulso de uma "paixão irresistível", Helena.
isto é, a "defesa da honra", ofendida por suspeitas Todas as suas atitudes após o crime - o fato de
de que a mulher o traía. Com um bisturi, aplicara- ter encarregado o cunhado da administração dos
lhe uma série de golpes e depois entregara-se espon- negócios, a descrição detalhada do ocorrido e a ex-
taneamente, confessando c descrevendo detalha- posição das "provas" de infidelidade - seriam, para
damente o crime. Castro, mostras de que o acusado mantivera-se sem-
M u i t o antes de Lombroso e Ferri terem exposto pre lúcido. Assim, se seu ato obedeceu a um moti-
as teses fundamentais da nova escola penal sobre as vo, "teve uma causa que o explica", essa causa cer-
causas da criminalidade e as características dos cri- tamente seria, para o jurista, a crença de que o ma-
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rido tem o direito de matar a esposa adùltera ou sim- do álcool e de Vénus na etiologia da loucura". Em
plesmente por suspeitar de sua infidelidade. Tal cer- virtude dessas "causas individuais", estaria o
teza se consolidava a partir do que considerava fos- desembargador "predisposto a experimentar em toda
se uma contradição da defesa: "Se o doutor Mariano a sua intensidade os efeitos de uma paixão violenta
compreendeu o alcance do ato de sua mulher, se no dia em que esta lhe assaltasse o espírito" (CAS-
matou-a para lavar em sangue a nódoa do leito TRO, 1934, p. 302).
nupcial, então não tinha delírio, não era louco. Mas De acordo com a defesa, o mal de que sofria não
se praticou o crime como louco, não matou a mu- o impediu de completar os estudos acadêmicos e de
lher como adúltera" (CASTRO, 1934, p. 301). Por- se distinguir na vida pública como juiz de Direito
tanto, a "excitabilidade do sistema nervoso" cons- da comarca de Maceió, deputado provincial em duas
tatada pelos médicos teria sido muito mais um efei- legislaturas por Alagoas e desembargador da Rela-
to que a cena do crime produzira do que a causa úl- ção do Maranhão. Além do mais, sabia fazer-se es-
tima do ato. Sendo assim, a loucura de Mariano não timado pelos que lhe eram próximos, tendo sempre
passaria de uma fraude da defesa, que apenas o "de- se destacado como bom filho e bom pai (Visgueiro
gradou" ao invés de restuuir-lhe a honra. tinha uma filha ilegítima, de quem cuidou até casá-
A mesma sorte não teve o desembargador José la com o desembargador Basílio QuaresmaTorreão).
Cândido Pontes Visguciro, acusado, aos 62 anos de Em sociedade era grave e correto, mantendo-se sem-
idade, de ter matado Maria da Conceição, conheci- pre com a "dignidade de um homem que se respeita
da em São Luiz do Maranhão, local onde ocorreu o e sabe prezar sua posição social".
crime, pela alcunha de Mariquinhas Devassa. Entretanto, mudou completamente ao se aproxi-
Em que pese os autos indicarem que o assassino mar de "Mariquinhas". "Acanalhado", era visto ao
agiu de forma fria e premeditada, da perspectiva de seu lado pelas ruas mais movimentadas de São Luiz,
Viveiros de Castro essa condenação foi uma iniqüi- acompanhando-a a tavernas e a locais freqüentados
dade, podendo ser evitada se os responsáveis pelo "por gente de ínfima classe e sem moralidade". Pa-
inquérito requeressem o atestado médico-legal do gava-lhe a casa em que vivia com a mãe, dava-lhe
réu, o que os levaria à conclusão de que cometera o roupas e jóias, chegando mesmo a lhe propor casa-
"horrendo crime em estado de loucura". Para refe- mento: "A paixão por essa rapariga endiabrada, do-
rendar sua análise, baseou-se na peça de defesa minando-lhe a vontade na fascinação da idéia fixa,
montada pelo doutor Franklin Dória, para quem o ato roendo-lhe o coração como uma úlcera, apareceu-
de Visguciro significou o ápice de um lento proces- lhe no declinar da virilidade, época terrível e peri-
so de degenerescência iniciado aos cinco anos de gosa. Ela era moça, devassa, dominada exclusiva-
idade, quando um surto de febre tifóide teria provo- mente pela excitação genital; ele, velho, gasto, quase
cado o "abalo cerebral" que o deixara praticamente impotente. Os hábitos de sua vida sofreram modifi-
surdo. Em decorrência disso, passara o réu a culti- cação tão radical que atestam o desequilíbrio men-
var um temperamento impulsivo, colérico, violento tal" (CASTRO, 1934, p. 302).
e irascível, que, aos poucos, lhe dificultava a socia- Maria da Conceição era figura conhecida em São
bilidade. Para agravar ainda mais o quadro degene- Luiz.Branca, aparentando 15 ou lóanos, "mediana-
rativo: "Sob as aparências de uma vida metódica, mente gorda" e de "razoável beleza", segundo consta
entregava-se a excessos alcoólicos e venéreos, e dos autos começara a vida mendigando pelas ruas
quem conhece um pouco da psiquiatria sabe a força da cidade, passando, posteriormente, a se prostituir,
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vendida pela própria mãe, com quem " d i v i d i a os para a varanda e ela meteu-se embaixo da cama, no
lucros desse lorpe comércio". Na visão de Castro: quarto em que estavam. O desembargador buscou o
"Se essa rapariga fosse mais inteligente e hábil, se estudante, deu-lhe conselhos e mandou-o embora,
pudesse formar projetos de vida que garantissem o dirigiu-se a Maria da Conceição, pediu-lhe que saísse
futuro, leria conseguido facilmente de Visgueiro o de debaixo da cama por causa da umidade, mas ela,
casamento; e mais tarde, dissipadas as primeiras que estava nua, não acedeu ao pedido e o desembar-
repugnancias, entraria como uma senhora casada e gador foi embora" ( M O R A E S , 1934, pp. 29-30).
respeitada nos primeiros salões da sociedade. Tola, Declarou a testemunha, ainda, que embora Visgueiro
porém, analfabeta, incapaz de um pensamento sério, sempre andasse brigando com Conceição por ciúme,
entregue completamente a uma existência de baixas fazendo-lhe ameaças que nunca concretizava, pois
devassidões, odiava esse amante velho e surdo, e essas brigas nunca excediam "um ou dois dias", a
dele lembrava-se somente para a exploração de sua partir daí, porém, a moça ficara mais apreensiva que
bolsa" (CASTRO, 1934, p. 130). nunca.
Em duas ocasiões, no mínimo, Visgueiro a leria Visgueiro resolveu, então, dar, ele mesmo, um
flagrado com outro homem. Em outubro de 1872, por "susto" cm Conceição. Tentou atraí-la várias vezes
ocasião da festa de Nossa Senhora dos Remédios, a sua casa, ao que Mariquinhas se recusou até o dia
encontrou-a cm "franco colóquio" com um oficial 14 de agosto, quando para lá se dirigiu acompanha-
do exército, ao qual tentou agredir. Irritado com os da de uma comadre, Thcreza de Jesus Lacerda. De-
"abusos" de Conceição, resolveu aplicar-lhe uma pois de servi-las de doces, Visgueiro mostrou dese-
surra, encarregando para isso o tenente Feliciano j o de ficar só com Conceição, insistindo para que
Pemiles Falcão, que, embora pago para "executar o subisse ao quarto sob pretexto de lhe dar um presente.
serviço, jamais levou-o a cabo. Preocupados com Sempre desconfiada. Conceição puxava Thcreza
suas atitudes, os familiares convenceram-no, no iní- pelo vestido para que esta não a deixasse só, mas,
cio de 1873, a viajar ao Piauí cm v i s i t i a amigos. diante da teimosia do desembargador, separaram-se,
Retornando a São Luiz a 30 de julho, logo nos pri- marcando um encontro para depois do jantar, oca-
meiros dias de sua chegada, Visgueiro tomou algu- sião em que Thcreza passaria para buscá-la.
mas atitudes no mínimo estranhas: encomendou dois Assim que a moça entrou no quarto, um criado
caixões, um de madeira, que deveria ser encaixado da casa, Guilhermino, com a cabeça coberta por um
a outro de zinco, comprou clorofórmio e uma peça capuz preto, agarrou-a e o desembargador a fez des-
de pano prelo. Enlrctanto, suas relações com Maria maiar com uma toalha ensopada de clorofórmio. De
da Conceição mantiveram-se sem incidenles até o acordo com Guilhermino, antes de desmaiar, Con-
dia 10 de agosto, quando ocorreu aquela que seria a ceição teria dito: "Meu amor, não me mates", ao que
úllima cena de ciúmes. De acordo com a testemu- Visgueiro teria respondido: "Não te dizia sempre que
nha Ana Rosa Pereira, costureira e amiga de Mariqui- havias de me pagar?". Em seguida, atirou-se sobre
nhas, estando nesse dia "na porta de sua casa, à 1 ela gritando: "Não te havia dito que te daria um co-
hora da tarde, mais ou menos, foi surpreendida pelo nhecimento pelo pouco caso que de mim fazia com
desembargador que, dando um pulo sobre sua cabe- teu amigo Joaquim?". Desferiu-lhe vários golpes de
ça, entrou em casa, havendo apenas tempo para gri- punhal e, já morta, arrancou-lhe a dentadas um dos
tar avisando Maria da Conceição, que aí se achava seios. A partir daí, esquartejou o corpo e depositou
com o estudante Joaquim Costa; o estudante correu os restos nos dois caixões que mandara preparar,
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colocando-os numa estante de livros na sala. Termi- Corrêa, esse mito confronta-se consigo mesmo quan-
nada a macabra operação, dirigiu-sc a uma festa em do o debate jurídico permite a entrada da realidade
casa de parentes, onde em momento algum manifes- concreta - esta mesma feita essencialmente de desi-
tou qualquer abalo emocional que pudesse levantar gualdades -, o que fica claro quando os próprios
suspeitas sobre o que fizera. "atores jurídicos", utilizando-se dos poderes que lhes
Sem contar a brutalidade que cercou os aconte- confere a lei, procuram reforçar um ordenamento
cimentos, o comportamento e as atitudes posterio- social preexistente, ao mesmo tempo em que se es-
res do assassino contribuíam, segundo Castro, para forçam em obscurecê-lo, agindo como se ele não
reforçar seu estado de insanidade mental. Homem existisse - manipulação de que têm plena consciên-
inteligente e ilustrado, Visgueiro em primeiro lugar cia que realizam permanentemente. É justamente em
supôs, ingenuamente, que o cadáver se conservaria nome desse ordenamento social que Viveiros de
por um período de três meses, quando o levaria con- Castro convoca para a discussão os dois crimes des-
sigo numa viagem que pretendia fazer ao Piauí. Pas- critos. Na verdade, o que está em jogo em sua aná-
sados alguns dias, porém, os efeitos da putrefação lise são os atributos com que os homens e as mulhe-
convenceram-no do engano. Ao invés de lançar o res que os protagonizaram são apresentados e acei-
caixão ao mar, que dava fundos para a sua casa, fa- tos como adequados na relação que mantém um com
zendo com isso desaparecer a principal prova do o outro.
crime, facilitou o trabalho da polícia, enterrando-o É preciso lembrar que, ao definir o casamento
no jardim. Por outro lado, a calma demonstrada de- legal como único modelo social e moralmente acei-
pois do assassinato c a impassibilidade que apresen- to para a discussão do relacionamento entre os se-
tou numa festa de família nada mais significariam xos, o jurista acaba aceitando também a identidade
do que a "sensação de alívio, de descarga elétrica que social de cada um deles, supostamente implícita
os loucos experimentam quando se libertam de uma nesse modelo, isto é, o homem como figura ativa e
idéia fixa que os tortura" (CASTRO, 1934, p. 303). a mulher como figura passi va. Assim, o aspecto mais
Só em aparência há contradição na postura de Cas- enfatizado pelos agentes jurídicos brasileiros no caso
tro ao interpretar os dois casos. E que, apesar de fixar da morte de um dos cônjuges ou companheiro por
um argumento técnico - o atestado médico-legal - para outro é o da relação homem-mulher a partir de ele-
colocar cm dúvida a decisão dos agentes julgadores, mentos considerados necessários para que esse re-
o jurista não consegue esconder o critério tradicio- lacionamento seja aceito como "normal".
nalmente relevante cm conditos desse gênero: a ade- Estando os limites da mulher restritos ao âmbito
quação social das vítimas c dos réus. Dessa forma, sua do lar, é como esposa que cia será julgada. Portan-
abordagem deixa transparecer que, embora Mariano to, caso se transforme cm vítima de um assassinato,
e Visgueiro rompessem a regra fundamental de não- a infidelidade transforma-se num ponto importante
matar, erraram aqueles que os julgaram somente por a ser explorado na argumentação dos advogados.
essa atitude, pois o que deveria efetivamente deter- Manipulando o parâmetro casamento, no interior do
minar a opção do grupo julgador e a graduação das qual a identidade feminina é definida a partir dos
penas era saber até que ponto acusados c vítimas ha- papéis sociais de mãe c esposa, a estratégia das de-
viam quebrado outras normas sociais. fesas é a de deslocar a discussão para o que suposta-
Fica-se, portanto, diante da quebra do mito da mente os jurados possam acreditar ser um motivo
igualdade de todos perante a lei. Segundo Mariza suficientemente forte para um "homem honrado"
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cometer um "ato impensado" - a infidelidade. A deveriam ser, jamais, "motivos proporcionados para
partir daí, passa-se a trabalhar com oposições abso- um delito de tamanha gravidade". .
lutas, do interior das quais emergem imagens em que Defensor do divórcio e da eliminação do adulté-
o acusado representa o bem c a vítima, o mal. rio como crime passível de punição pelo Código
Dada a sua larga experiência como promotor Penal, o que Viveiros de Castro questionava era o
público, advogado e juiz criminal, ninguém melhor fato de que a "infidelidade conjugal" constituía a
do que o nosso jurista para reconhecer esse tipo de única falta punida com a pena de morte, imposta por
manipulação dos signos jurídicos. E ninguém me- um particular que aparecia ao mesmo tempo como
lhor do que ele para reconhecer o perigo represen- juiz e algoz de sua vítima. Para ele, na alegação de
tado por esse tipo de manipulação em determinados legítima defesa da honra, justificada pela perda
momentos, particularmente naquele em que se pro- momentânea dos "sentidos da razão", o que ocorria
curava regulamentar as relações afetivo-sexuais atra- era o sacrifício de uma vida em nome de preconcei-
vés do casamento legal e em que a família era to- tos que ainda existiam na sociedade, não passando
mada como "alicerce de toda a ordem social". Por essa prática de uma tradição equivocada que se tor-
isso, no caso Mariano, pensando como promotor nara incompatível com os foros de civilização, uma
público - em geral mais severos com os assassinos vez que ninguém tinha o direito de responder com a
de mulheres, em especial da própria esposa -, Cas- morte a uma ofensa que lhe era dirigida, ainda mais
tro considerava que, ao darem tanta relevância ao quando a própria lei previa punições para isso, re-
atestado médico, os jurados acabaram desprezando servando à mais culpada das mulheres uma parcela
provas da inocência de dona Helena quanto à acu- mínima de direitos. Em outros termos, esse tipo de
sação de adultério que lhe fazia o marido. A come- alegação ou de qualquer outro artifício visando a
çar pelo fato de que tal acusação não se baseava em legitimar o assassinato da esposa adúltera pelo mari-
fatos concretos, principalmente por não se ter carac- do, sob a justificativa de que assim não agindo cor-
terizado o quadro de flagrante adultério que confi- reria o risco de ser desconsiderado no meio social,
guraria, aos olhos da Justiça, a tese de legítima de- não passava de um ato de reminiscência bárbara a
fesa da honra. Ao contrário, o quadro apresentado ser superada pela civilização. Por atentar contra os
era o de um homem que apenas desconfiava da trai- princípios civilizatórios, por não 1er nenhuma pro-
ção da esposa, que durante tanto tempo de convivên- teção legal, esse tipo de ato resistia apenas cm fun-
cia jamais dera provas de ser mulher sem honra. ção da benevolência de juízes e preconceitos dos
Acrescente-se a isso o fato de que, para a Justiça, jurados. E no caso Mariano, a atitude do réu lorna-
uma convivência de mais de dez anos constituía tem- va-sc ainda mais grave porque, por pura desconfi-
po suficiente para que os laços entre o casal se es- ança, vingara-se em nome de um patrimônio - a
treitassem, permitindo ter maior clareza a respeito honra - que jamais seria restituído com o derrama-
do caráter de cada um dos cônjuges. Mais ainda, mento de sangue.
mesmo que o flagrante adultério se configurasse,
nem por isso o motivo do crime do doutor Mariano Por tudo isso, entendia Castro que, absolvendo
deveria ser considerado menos fútil, pois, da pers- Mariano, a Justiça não só o degradou, como degra-
pectiva de Castro, para um homem dotado de "inte- dou a própria vítima, repudiando-a, não obstante a
ligência e senso moral medianos", o adultério ou, o ausência de provas reais de adultério. Ademais, ao
que é pior, a simples suspeita de infidelidade não legitimar a atitude do acusado, os agentes julgadores
teriam atentado tanto contra a própria Justiça, desni-
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velando os sexos perante a lei, quanto contra a ins- o ser humano que normalmente não os possui'-'?
tituição da família e do casamento. Numa alusão ao fato de que a fidelidade não era atri-
Entretanto, o apelo à igualdade dos sexos peran- buto a ser relevado quando o sexo masculino estava
te a lei desaparece na análise do "erro" cometido em julgamento, apontava o'advogado que de todos
no caso Pontes Visgueiro. Aqui o discurso da defe- os defeitos talvez o mais marcante fosse sua "incli-
sa transforma-se em peça fundamental, porque re- nação para mulheres". Entretanto, sua virtude resi-
força uma série de valores tidos como socialmente dia no fato de jamais ter "poluído o tálamo daespo^
adequados, contrastando com a apresentação de sa", nem "violado o leito da virgem". Sublinhava,
uma personalidade apontada como defeituosa. O então, que se Visgueiro tivesse encontrado o "ver-
pano de fundo da estratégia seguida pelo doutor dadeiro amor", isto é, aquele que não se baseia ape-
Franklin Dória era estabelecer um claro contraste nas na sensualidade, mas sobre as "qualidades mo-
entre a conduta de seu cliente e a inadequação so- rais da pessoa amada" e que está pronto a todos os
cial de Mariquinhas. sacrifícios, o quadro degenerativo de que era porta-
Considerada uma das mais brilhantes defesas de dor poderia ser revertido. Não que seu constituinte
crimes passionais do final do século passado, a ar- se indispusesse a aceitar esse "amor sacrifício", afi-
gumentação montada por Dória é, de ponta a ponta, nal jamais recuara diante de qualquer dificuldade que
um documento riquíssimo. Três anos antes de se antepusera entre ele e Maria da Conceição. Não
Lombroso publicar O Homem Delinqüente c uma era certo que para possuí-la cometera atos que, an-
década antes de Ferri ter incluído cm sua classifica- tes de desonrá-lo, deveriam ser vistos como provas
ção dos criminosos a figura do criminoso passional, de "heroísmo e destemor diante da morte", a exem-
o futuro Barão de Loreto refutava a prática das pro- plo das vezes cm que investiu contra outros aman-
motorias de enfatizar a calma revelada pelos assas- tes da moça, muito mais jovens do que ele? Não era
sinos como mais uma prova de que agiam dentro da certo, também, que perdera o respeito público ao se
normalidade psíquica c não sob influência de fato- expor ao ridículo? Mais que isso, não era certo que,
res patológicos ou passionais. Ao inverter esse racio- coerente com sua conduta moral e social, já susten-
cínio, sua intenção era fazer com que aquilo que tando Conceição c sua mãe, tentou "regenerá-la"
poderia ser utilizado de modo favorável pela promo- propondo-lhe casamento, sob a condição de que se
toria se convertesse cm elemento plausível para que "resguardasse" por algum tempo? Proposta que ela,
se alegasse a irresponsabilidade criminal do acusa- "mulher sem pudor", recusou, preferindo manter-sc
do. Demonstrando grande habilidade, desprezou a "infiel".
tese da "loucura transitória", preferindo deter-sc no De acordo com essa Unha de raciocínio, o desti-
estudo dos efeitos que a paixão poderia causar no no conspirara contra Pontes Visgueiro ao ter colo-
ânimo de uma pessoa debilitada e idosa como seu cado cm seu caminho uma mulher como Mariqui-
cliente. nhas, cujo caráter estava muito distante do modelo
Para reforçar a imagem de homem comum do de mulher "honesta". Mantendo-se sempre celiba-
réu, transformando-o, estrategicamente, em pessoa tário devido a uma decepção amorosa na juventude,
suscetível às mesmas emoções de outros homens sem encontrar uma "boa estrela" que o empurrasse
(inclusive dos que o julgavam), Dória não escondia aos braços de uma "boa esposa", de uma mulher que
que, apesar de todas as qualidades, seu cliente não lhe fosse amiga c conselheira, que o sustentasse nos
estava isento de defeitos; "mas", questionava, "qual desalentos e que até o "guiasse em seus desvios",
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inclinara-se o desembargador para várias paixões, Foi, portanto, a paixão não correspondida pela
entre elas aquela que o levaria a "perder-se". Objeti- "infidelíssima" e "viciosa" Mariquinhas Devassa o
vando criar uma linha causai a partir da qual essa que colocou um homem do caráter de Pontes Vis-
relação só poderia chegar a um trágico desfecho, gueiro sob a forte pressão psicológica que o fez co-
também os antecedentes morais e sociais da vftima meter não só os "atos indecorosos" contraditórios
foram evocados pela defesa, sem que nenhum deta- com a "prudência c o pudor" que lodos no Maranhão
lhe escapasse na configuração da imagem negativa até então lhe reconheciam, como o hediondo crime
daquela que deveria encarnar as qualificações do pelo qual estava sendo julgado. Dessa forma, o
vfeio e do mal. desembargador era praticamente deslocado da posi-
Diferentemente de Visguciro, homem ilustrado ção de réu para a de vítima de Maria da Conceição.
e já equilibrado na vida. Conceição, oriunda de um No limite, era ela quem deveria estar em julgamen-
"meio social viciado", ignorante, analfabeta e impre- to. É como se Dória sugerisse que a opinião pública
vidente, jamais conhecera uma família completa. que o havia condenado aprioristicamente e todos os
Nada fora dito sobre seu pai, e a mãe era apontada que haviam cercado e apedrejado sua casa cm São
como principal agente de sua "prostituição precoce". Luiz devessem pedir-lhe desculpas e render-lhe ho-
Aproveitando o testemunho de Ana Rosa Pereira de menagens por ter arrancado do convívio social uma
que quase todas as noites Mariquinhas dormia em mulher "corrompida" de tamanha periculosidade.
casa do desembargador acompanhada de amigas, Apesar dos esforços da defesa cm demonstrar
"pernoitando todos no mesmo quarto", sugeria o que, não obstante a barbaridade com que agira, o
advogado que, por influencia da vítima, a casa de acusado não demonstrava nenhuma periculosidade
seu cliente passara a reproduzir as condições dos ou qualquer possibilidade de retornar ao banco dos
cortiços. Além disso, o fato de o réu procurá-la a réus, a 13 de maio de 1874 um júri togado conde-
qualquer hora do dia ou da noite devia ser visto como nou-o ã pena máxima de prisão perpétua com traba-
comprovação do desleixo com que a mãe a tratava, lhos forçados.
reforçando a idéia de que Conceição não era vigia- Ao condenar Visgueiro, a Justiça absolveu Con-
da, procedimento normal entre as famílias "honra- ceição das acusações que lhe eram imputadas. Isso
das" em relação às suas filhas. Enfim, tudo concor- não quer dizer, porém, que deixasse de reconhecer
ria para definir c repisar a identidade civil da vítima que a imagem dela montada pela defesa fosse incor-
como uma mulher "desonrada" e de "má fama" 1 . reta. Na realidade, quando os agentes julgadores se
recusam a sancionar a violência masculina, estão
menos preocupados em se opor à noção de domina-
ção da mulher pelo homem do que com a tentativa
de controlá-la, isto é, de estabelecer limites no inte-
rior dos quais essa violência torna-se possível de ser
I. Juridicamente, honra constitui a dignidade da pessoa que praticada, bem como de buscar uma homogenei-
vive honestamente, ou seja, pautando seu procedimento pelos zação dos motivos que justifiquem o repúdio da
ditames da moral. Já fama. diz respeito a estima social de que mulher (sua morte) c a aceitação da atitude mascu-
determinada pessoa goza par conduzir-se de acordo com os "bons
lina através da absolvição do acusado. Isso posto, é
costumes". No caso da mulher, especialmente da jovem solteira.
possível especular em torno dos motivos que fize-
a virgindade é" um importante indício da honestidade c recato.
ram com que Pontes Visgueiro fosse condenado.
Cf. OLIVEIRA. J.L. de. Manual de Direito de Família.
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Em primeiro lugar, pode-se dizer que, para os nenhum momento Mariquinhas, lhe fora infiel. Ela
agentes julgadores, o ato do desembargador não era, isto sim, uma "mulher pública" e como tal agia.
possuía justificativa plausível, simplesmente porque Mas há ainda uma outra hipótese para explicar o
Mariquinhas não era sua esposa. Dado que, à vista trágico destino de Maria da Conceição, a qual nem
da Justiça, somente o casamento, definindo as atri- de longe foi aventada pelos "atores jurídicos".
buições dos cônjuges, delegaria ao homem o direito Segundo algumas testemunhas,,o primeiro con-
ao corpo, à vida e à morte da esposa, nenhum direi- tato entre o réu e a vítima teria ocorrido por volta
to tinha o réu sobre a moça. Em segundo lugar, a de 1862 ou 1863, quando Mariquinhas aproximou-
tendência desse homem a se aproximar de mulheres se de Visgueiro pedindo-lhe esmolas. Por qualquer
"desonradas" e, no caso em questão, de uma mulher motivo que jamais será conhecido, este passou a
"comprovadamente" prostituída, talvez tenha sido ajudá-la com freqüência, transformando-se numa
percebida pelo júri como uma demonstração de que, espécie de padrinho da casa.
antes de doente, deveria ser o próprio Pontes Com o correr do tempo, porém, o desembargador
Visgueiro um "viciado", representando, portanto, ele pode ter começado a alimentar o desejo secreto de
próprio, um perigo social. Nessa medida, como alto possuí-la. Sem nunca ter manifestado explicitamente
funcionário da Justiça do Império, fato que por si já esse intento, suas atitudes, acompanhando-a a festas
deveria fazê-lo afastar-se de pessoas como Mariqui- e bailes populares, bem como as interdições que pre-
nhas, a legitimação de seu ato colocaria sob suspei- tendia impor ao comportamento sexual da moça, tal-
ta a própria instituição a que servia. Assim, decidiu- vez fossem lidas, por ela e a mãe, como produto de
se que sobre ele deveria recair, ainda mais forte, o preocupações paternas. Aliás, parecer ter sido muito
peso da lei, que não só pune mas ensina. Ensina da mais como pai do que como amante que Visgueiro
mesma forma que o réu quis ensinar sua vítima quan- agiu quando, quatro dias antes do crime, flagrou
do, pretextando dar-lhe uma "lição", afastou-a defi- Mariquinhas em casa de Ana Rosa com o estudante
nitivamente da sociedade. Joaquim Costa. No episódio, apenas repreendeu o
De todo modo, tudo leva a crer que, na interpre- rapaz e pediu à moça que saísse de debaixo da cama
tação daqueles que o julgaram, Pontes Visgueiro não devido à umidade. Nas palavras de Ana Rosa,
entendeu com clareza as regras do jogo social: que Visgueiro agira como sempre havia agido, isto é, sem
a reação de um homem contra uma mulher que pen-. violência, pois, como atestava a testemunha, jamais
sa possuir, mas que sabidamente o trai, não pode ser o vira maltratar Maria da Conceição. O detalhe é que,
um ato de puro delírio. Que mesmo para matar é somente a partir desse dia, o desembargador manifes-
necessário obedecer a alguns códigos, entre eles que tou claramente suas intenções, pedindo à moça que
o homem realmente possua a mulher - e o casamen- se casasse com ele. Pedido, como se sabe, por ela re-
to tem aqui um peso decisivo. Enfim, que a exigên- jeitado. Diante dessa nova realidade, que tornara a
cia de um motivo plausível é esta: não basta apenas menina arredia e a relação entre ambos insustentável,
a alegação de uma traição para legitimar um assas- o desespero de Visgueiro deve ter crescido, a ponto
sinato, é preciso, antes de mais nada, que essa ale- de consolidar o desejo de vingar-se.
gação seja lida e aceita por todos os que devem julgá- Interpretado pela defesa de modo a reafirmar a
lo. Nesse sentido, o que os agentes julgadores pare- má índole de Conceição, se lido nas entrelinhas o
cem ter dito com sua atitude é que, embora o desem- testemunho de Ana Rosa Pereira é chave para a com-
bargador até pudesse acreditar que era traído, em preensão de alguns pontos importantes e obscuros
76 Carlos Marlins Junior /Revista de História 135 (1996), 61-78

nessa trama. Embora explicite que Mariquinhas era mo, que a alcunha que lhe era atribuída não vinha
sexualmente ativa c que aceitava as benesses c os do segmento social ao qual ela pertencia.
convites do desembargador para que comparecesse Em suma, mulher do povo, cujas condutas eram
à sua casa a qualquer hora do dia ou da noite, a de- regidas por outros códigos culturais, nada impedia
poente deixa entrever que a vítima não manifestava que Conceição aceitasse a solidariedade e o apadri-
nenhum interesse amoroso em relação a ele. Isso se nhamento do desembargador, rejeitando, ao mesmo
confirma na alegação da própria testemunha de que, tempo, qualquer tipo de aproximação amorosa de sua
quando ia à casa de Pontes Visgueiro, Mariquinhas parte, preferindo relacionar-se com homens mais
levava consigo companheiras que dormiam no mes- jovens e de seu grupo social. Por não aceitar ou não
mo quarto que ela c o desembargador. Se a defesa se aperceber desse fato, Visgueiro fê-la pagar e pa-
via nesse "amontoamento de corpos" um indício de gou, ele próprio, um preço caro.
promiscuidade semelhante ao que supostamente se Exatamente por não ter repudiado essa mulher,
verificava nos cortiços, o mesmo fato pode ser in- cujo comportamento social e moral, diferentemente
terpretado como uma forma de a moça se preservar do de dona Helena, deveria estar aprioristicamente sob
diante de qualquer investida do réu. Aliás, o fato de suspeita, é que, segundo Viveiros de Castro, a Justiça
estar constantemente acompanhada, por si j á des- errara. Se fosse reconhecida a insanidade mental,
monta a hipótese de que Maria da Conceição era uma Pontes Visgueiro seria encaminhado para tratamento
mulher "sem pudor". Destaque-se, por exemplo, que médico e a falta cometida por um homem de "reco-
na noite em que foi m o r t a j a bastante ressabiada com nhecida posição na sociedade" teria sido atenuada.
as atitudes de Visgueiro, fez-se acompanhar a sua Dessa forma, a condenação assumiria um caráter pra-
casa por uma comadre, a quem o réu praticamente ticamente simbólico, não só pelos motivos já discuti-
expulsou de lá. dos, mas também porque a internação constituía, para
Tampouco a tese de que a vítima não tinha famí- indivíduos de certas camadas sociais, um privilégio,
lia e não recebia cuidados da mãe resiste à análise se comparada com a vida nas prisões, sem contar que
mais cuidadosa de alguns depoimentos. Basta citar o lugar ocupado pela pessoa na sociedade, bem como
que, na noite do crime, preocupada com a demora a influência exercida pela família, poderia determi-
da filha que ficara de se encontrar com a comadre nar a construção de laudos médicos favoráveis, abre-
por volta da hora do jantar, sua mãe, acompanhada viando a internação. Contrariamente, ao enviá-lo para
de um grupo de vizinhas e amigas da menina, foi a prisão, não só o degradaram como "conspurcaram
esperá-la no portão da casa do desembargador, que com a nódoa de um crime" toda a sua família. Dessa
ali as encontrou quando voltava da festa em que perspectiva teórica, portanto, num momento cm que
estivera. Argüido sobre o paradeiro de Mariquinhas, se procurava fazer com que o Direito assumisse sua
disse nada saber e que apenas estivera com cia al- parle no processo de "civilização" dos populares, fa-
guns minutos à tarde, quando lhe dera dinheiro para zendo com que cada um reconhecesse seu lugar na
que comprasse umas fitas. Como se não bastasse a sociedade, a punição do desembargador atentara con-
solidariedade dessas amigas, vizinhas e comadres, tra a própria ordem social.
a própria conduta dos populares ao apedrejarem a
Um ano e meio depois da condenação, Pontes
casa de Visgueiro e a vigília permanente que reali-
Visgueiro morreu na prisão, vítima de um ataque car-
zaram em frente ao seu portão nos dias que sucede-
díaco (o que, na visão de Castro, seria mais uma pro-
ram o desaparecimento da moça, sugerem, no míni-
va de seu estado de degenerescência). Durante mui-
Curios Martins Junior / Revista de História i35 {1996). 61-78 11

to tempo seu crime permaneceu na memoria dos po- Campos relatou que por mais de uma vez tremera
pulares do Maranhão e de diversas províncias do com medo dele. Diz esse autor que, quando tinha seis
norte do país, gerando lendas e cordéis sobre ele c anos, sua mãe o amedrontava "com o monstro que
Maria da Conceição. Uma das coisas que mais ali- trazia esse nome". Porém, na história que ela lhe
mentou a imaginação popular foi a incerteza quan- contava, "toda entremeada de versos", Maria da
to ao destino do criminoso. Uns não acreditavam em Conceição não era a "criatura vil de que falavam os
sua morte, preferindo pensar que isso servira de pre- aulos", mas "uma bonita moça, afilhada dele...".
texto para acobertar o falo de que fora solto e se Contudo, "às portas da velhice", após ter estudado
encontrava em Lisboa, onde muitos brasileiros afir- nos manuais jurídicos a "verdadeira versão dos fa-
mavam tê-lo visto e até lhe falado. Outros suspeita- tos", Campos deixava de lado o que aprendera com
vam, apavorados, que um dia retornaria a São Luiz a cultura popular c, num mea culpa, pedia ao desem-
em busca de vingança. bargador que o perdoasse, c a Deus que jamais pu-
No imaginário das crianças, Visguciro transfor- sesse em seu caminho uma Maria da Conceição
mou-se numa espécie de "papão". Humberto de (CAMPOS, 1935, p. 184).

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