Você está na página 1de 2

PSICOLOGIA E DIREITO – PROFA.

ALEXYA LIMA
DUPLA: CLAUDIO SOUZA & JULIANA ANDRADE

O século XVIII e o Iluminismo produziram a concepção de indivíduo moderno que consolidou uma
compreensão do ser humano centrado na razão, isto é, na crença de que a natureza é inteligível e de que o
desvelamento dos mecanismos de funcionamento da natureza por meio da razão possibilita o controle da
natureza pelo homem. Esse paradigma consolidou-se com uma profunda crença de que a educação seria o
instrumento por excelência para difundir as novas formas de compreender e agir sobre o mundo, de tal sorte
que um dos principais textos do período é um tratado sobre a educação dos novos tempos, dos novos homens
- “O Emílio”, de Rousseau. Os novos modelos políticos reforçavam o “indivíduo” como elemento central da
Modernidade e que deslocava o poder das velhas e poderosas instituições antigas e medievais (o Rei absoluto
ou a Igreja) para o cidadão. Nos termos políticos modernos, cidadão é o indivíduo que faz escolhas, inclusive
quanto aos seus representantes - princípio do “um cidadão, um voto”, de Rousseau. Essas novas
sensibilidades, públicas e privadas, entretanto, já mostravam limitações no mesmo momento em que eram
enunciadas: as boas novas do Iluminismo não eram concebidas para as mulheres nem para os negros.
A Modernidade produziu toda uma literatura que forjou as marcas do sujeito moderno, um indivíduo
livre das amarras das instituições que, no passado, o conduziam como uma pessoa integrante de um corpo
social, fosse a corporação de ofício, a igreja, a aldeia. O século XIX assistiu, a partir da Europa, ao
surgimento de uma profusão de novas descobertas, invenções e ideias, que aparentavam emancipar cada vez
mais o indivíduo, reforçando aparentemente a autonomia da razão e das liberdades individuais. Esse
paradigma moderno logo começou a se apresentar também no modo de uma crença absoluta na razão e na
ciência, acompanhada de uma visão de mundo em que a Europa Ocidental se afirmava, por ela mesma, como
o modelo a ser seguido pelo resto do mundo. Mesmo com o surgimento de novos sistemas de pensamento
que questionavam o poder do capital, como as diversas correntes socialistas, anarquistas e comunistas, a
Europa e os seus processos políticos e econômicos não deixam de ser paradigmas explicativos para o
desenvolvimento de todos os outros povos. Foi por volta de 1850 que esse cientificismo ganhou mais força e
avançou poderoso sobre o Direito, tanto na forma de teorias sistêmicas sobre a área jurídica e o Direito
Penal. A criação de teorias deterministas, racialistas, que fundiam Direito, Medicina, Psicologia,
Criminologia, estiveram voltadas para propor explicações sobre os comportamentos individuais, sugerindo
uma possibilidade concreta de compreender a mente do indivíduo criminoso, que assim o seria porque estava
determinado biologicamente, determinação que recaía sobre os indivíduos fora dos padrões europeus
ocidentais. Foi, ao final, um modelo profundamente ideológico que renovou estruturas de dominação social,
econômica, política e afetivas entre países, entre classes e entre pessoas. As novas sensibilidades e as crenças
otimistas em torno do sujeito moderno seriam abaladas pelas guerras mundiais, já que o uso da ciência para
planejar e racionalizar a morte em grande escala não foi prevista e nem desejada pelos pensadores modernos.
Mais recentemente, os estudos da Psicologia Social têm demonstrado que a criminalidade não é dado
natural, mas sim uma construção social como um dos aspectos do processo de marginalização. Por outras
palavras, a criminalização condena certas condutas que maculam a convivência social, enquanto outras
condutas igualmente nocivas não são criminalizadas. Dessa forma a criminalização, que incide em corpos
específicos sobre os quais recaem culpa e nunca redenção, enquanto outros corpos parecem sempre eximidos
de qualquer responsabilização, é um aspecto relevante que promove e reforça o processo de marginalização,
é uma forma perversa de dominação e de manutenção de exploração e desigualdade.
Essa situação é observável por meio da violência estrutural contra negros e negras, especialmente os
pobres, considerando a cor da periferia e a cor daqueles que integram o sistema carcerário. Por um lado, a
comunidade negra vivencia historicamente dificuldades socioeconômicas que constroem e reforçam a
desvalorização social que culmina na desumanização desse grupo humano. E, por outro lado, o genocídio do
jovem negro e a violência que mulheres negras sofrem empreendida por uma sociedade patriarcal, racista e
classista e por um sistema penal mantenedor das desigualdades, revelam essa estrutura hierárquica que vai na
contramão das relações democráticas. Esse sistema penal genocida se releva nas leis que protegem coisas em
detrimento de pessoas, nas sentenças marcadas pelo racismo, na falta de políticas públicas e na ação
criminosa da polícia, outros negros nesta ponta sanguinária e tão vítimas quanto os criminalizados. Ou seja,
esses corpos negros, quando autores de crimes e/ou com transtornos mentais, vivenciam a sobreposição de
camadas de exclusão e preconceito, reforçadores da marginalização e do estigma do criminoso.
Especificamente, na polarização entre são e louco, em que o primeiro ganha o benefício da dúvida
enquanto o segundo é ad aeternum condenado, observa-se aquela sobreposição, em alguma medida, por
meio da não possibilidade de um pobre/negro com transtornos mentais ser considerado vítima, já que essa
posição é um privilégio dos ricos e até da branquitude. Afinal, como negros e pobres, encarcerados em
medidas protetivas, esses marginalizados são recorrentemente destituídos de sua humanidade e, como
consequência, da capacidade de sofrer ou da relevância da sua dor. Trata-se, nos termos de Foucault, de uma
política criminal pautada no biopoder, em que os negros pobres são mortos (pela polícia) ou são deixados
morrer (entre outros, pelo encarceramento em massa, em presídiso ou em hospitais psiquiátricos).
O criminoso, assim, é uma construção social que reforça a hierarquia que organiza a sociedade ainda
na contemporaneidade. Com a profunda especialização das ciências, surgiu a Sociologia e a Criminologia,
propondo-se uma compreensão científica da mente do criminoso. Partindo do princípio de que o indivíduo é
o centro, importava desvendar a mente do criminoso, tendo como instrumentos para isso a Medicina, a
Estatística, a Psicologia e o Direito. Os processos que produziam as criaturas indesejáveis eram sempre
individualizados, sem considerações sobre o contexto social. Mesmo os grandes romancistas do período que
denunciavam os males sociais acabavam por construir histórias e personagens que se defrontavam com a
questão do crime como problema moral, como uma decisão individual, como “Os Miseráveis”. Os crimes
eram tipificados, entretanto, levando em conta não questões individuais, mas sim as patrimoniais e morais
que interessavam à elite: a prostituição, a traição familiar, o roubo, a vagabundagem, a rebeldia contra as
instituições. A tipologia do criminoso desenhava um indivíduo que estava à margem da sociedade europeia
ocidental, cultural e fisicamente: os bárbaros e os selvagens que precisavam da bondade do colonizador.
A naturalização da violência humana como excepcional, e não como constitutiva do ser humano, e a
associação do criminoso aos grupos marginalizados, porque assim o sistema penal funciona (legislativo,
judiciário e a repressão policial), cria, estabiliza e reforça a idéia de criminoso como a natureza (e não apenas
comportamento) de certos grupos humanos, os já marginalizados nas demais esferas. No aspecto do controle
do poder sob uso do Direito, o Liberalismo referendou leituras cientificistas do fenômeno do crime criando
estereótipos baseados em classe e em complexa relação entre metrópoles e colônias. As leituras
contemporâneas desta abordagem individualista do crime e do criminoso atualizaram padrões avaliativos,
mas ainda centram-se em critérios de classe, acrescidos de raça e gênero.
O pensamento crítico trouxe uma série de novos objetos e problemas, que promoveram uma
ampliação significativa do debate que pensa alternativas ao Liberalismo. Aqui, temos não apenas novos
temas, com destaque para o gênero, a raça e suas intersecções com a classe, mas também questões referentes
ao lugar da produção do saber. Autores e autoras das ex-colônias, a afirmação de uma produção intelectual
antirracista, decolonial, o aprofundamento teórico-metodológico dessas novas questões, uma produção
intelectual que brota das periferias, tudo isso provoca séria renovação nas análises sobre o indíviduo, as
liberdades, as relações com o Estado. Nos termos das reflexões realizadas em “Psicologia e Direito”, há
mecanismos de controle do desejo, por meio das imagens, da produção de símbolos, de modelos que são
manipulados pelo Liberalismo e que produzem um simulacro de liberdade, mas terminam por agenciar esse
sentimento para a reprodução do status quo. A liberdade é controlada e limitada, constituindo uma nova
forma de poder que não é apenas repressiva, mas que também é voltada para uma aparente ação dos
indivíduos, que termina por reforçar os mecanismos de controle sobre esses mesmos indivíduos. São
conceitos como biopoder e biopolítica que se inseriram nos debates sobre o indivíduo, que apontam para a
possível análise sobre como estes mecanismos atuam no controle da existência e dos comportamentos.

Você também pode gostar