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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS


TEMAS DE POLÍTICA CONTEMPORÂNEA I

Aluna: Julia Chacon Saggioro


RA: 802206
O romance Clara dos Anjos escrito por Lima Barreto no período da Primeira
República brasileira (1948) apresenta uma interpretação das questões sociais, raciais,
habitacionais e mesmo relacionais da sociedade carioca, mostrando uma visão
demasiadamente humana desses temas para a época. Assim, o autor dá conta de mostrar
através da vida da protagonista Clara, como as disparidades sociais afetam o subjetivo
humano, retratando também muito o que passou em sua própria vivência.
Logo, na obra, Lima Barreto se esforça em descrever minuciosamente o subúrbio do
Rio de Janeiro, suas paisagens, suas dificuldades, as pessoas, as ruelas e entre todas as outras
coisas que permeiam esse espaço social. Assim, nota-se que os indivíduos e suas
pessoalidades se constroem e, simultaneamente, são destruídas por conta das desigualdades
sociais, como o racismo, machismo e pobreza e, portanto, cabe dizer que as limitações
espaciais são propositalmente construídas para restringir essa população a uma determinada
área do ambiente urbano e que se mostra atemporal, visto que esse projeto de exclusão
continua em vigor ainda hoje, seja no Rio de Janeiro, seja em qualquer outro localidade do
país.
Observa-se isso na seguinte passagem:
O bonde, porém, perturbou essa metódica superposição de camadas. Hoje, o
geólogo de cidades atormenta-se com o aspecto transtornado dos bairros. Não há
mais terrenos paralelos; as estratificações inclinam-se; os depósitos baralham-se; e a
divisão da riqueza e novas instituições sociais ajudam o bonde nesse trabalho
platônico. No entanto, este veículo alastra a cidade; cria na ponta de seus trilhos
núcleos de condensação urbana. Onde ele chega, desenha-se uma venda, surge um
botequim, um quiosque; em torno, edificam-se casebres. Ondulações concêntricas a
esse núcleo encontram as de outro próximo, dando nascimento a uma travessa mal
povoada, tristonha, esquecida das autoridades municipais, e que vive
anarquisadamente, fora de toda a espécie de legislação, a poucas centenas de metros
de outras, apertadas num cinto de posturas. (Barreto apud Silva, p. 9, 2009).

Dessa maneira, a construção da personagem Clara não poderia deixar de mostrar


como essa conjuntura afeta a sua condição de gênero e racialidade. Por isso, ao começar a
enfrentar o mundo, ela entende que o racismo a impede de conseguir seus objetivos, ainda
que esses sejam sobre suas relações pessoais e amorosas. Assim, pode-se pensar uma
manifestação dos desejos não concretizados, das possibilidades não exploradas e das
concepções não materializadas em uma narrativa e disposição espacial que permanecem à
margem do êxito dos acontecimentos, embora não estejam ausentes.
Visto isso, cabe aqui relacionar essa obra com o texto O negócio do Michê de Nestor
Perlongher. Neste trabalho, o autor argentino escreve uma etnografia sobre homens que se
prostituem na cidade de São Paulo, os chamados “michês”, no fim do século XX. Assim,
entende-se nos escritos de Perlongher várias razões sócio-culturais que moldam as
experiências dessas pessoas que trabalham com prostituição. Logo, há vários fatores que
levam esses homens a encontrar essa profissão, mas o principal deles são as clivagens sociais
que afetam suas vidas, como racismo, homofobia, porém, dentre elas destaca-se a pobreza
extrema. Ou seja, a falta de garantia de comida, moradia e vínculos de apoio lançam esses
homens para uma zona de violência continua.
Além disso, a pesquisa utilizou ideias criadas por Gilles Deleuze e Félix Guattari,
antes de eles se tornaram expoentes na antropologia e também explorou "mapas" de
experiências de vida que são afetadas por divisões binárias que categorizam as pessoas com
base em coisas como gênero, idade, classe e cor/raça. Ademais, a etnografia analisou as
experiências e caminhos influenciados pelos desejos das pessoas, que são moldados pelas
tensões dessas divisões. Durante o estudo, foram identificados comportamentos
transgressivos nas regras do mercado da paquera gay, especialmente no mercado da
prostituição. O autor faz então uma descrição detalhada de lugares, categorias e corpos em
direção às histórias de michês e clientes, explorando os detalhes e possibilidades de
relacionamentos entre eles. Isso mostra, com muitas especificidades e evidências práticas, a
ideia de Deleuze e Guattari de que as divisões "grandes" e "pequenas" estão sempre juntas, se
influenciam e se misturam, criando prazeres e riscos, e permitindo tanto controle quanto
escape. (Simões, 2009).
Como opção à ênfase nas identidades sociais e sexuais, Perlongher propôs a ideia de
"territorialidade". Ele sugeriu entender as categorias de autodefinição sexual como "pontos"
em redes de interações, relacionados entre si e até se misturando. A territorialidade é pensada
como um "código-território", que estabelece como distribuir características específicas a
corpos em movimento, como gênero, postura, aparência, gestos, discurso e corporalidade.
Elementos como tatuagens, marcas corporais, tipo de roupa, maneirismos e gestos servem
como sinais de comportamento sexual esperado ou declarado, de acordo com os critérios de
escolha e valorização no mercado gay masculino. Na exploração das experiências entre
profissionais do sexo e seus clientes, Perlongher também usou as ideias de
"desterritorialização" e "reterritorialização" de Deleuze e Guattari. Esses conceitos
representam afastamentos de interações sociais respeitáveis e moralmente aceitas, bem como
aproximações aos códigos do "submundo", neste caso, da homossexualidade e prostituição.
Territorialidades, portanto, vão além de representações ou planos; envolvem movimentações
e mudanças em espaços e categorias, assim como a materialidade de corpos e partes
destacadas e valorizadas, incluindo os lugares por onde esses corpos passam e dos quais
derivam parte de sua identidade. (ibid).
Assim, Perlongher também trabalha com a descrição minuciosa sobre as ruas, parques
e cinemas em que esses programas acontecem em São Paulo, da mesma forma que Lima
Barreto faz com os espaços cariocas em sua obra acima trabalhada. A descrição desses
lugares de marginalidade e segregação de corpos indesejados mostra de forma clara como os
espaços urbanos foram e são projetados para excluírem aqueles declarados inimigos da
sociedade. Dessa maneira, ainda que o autor tenha desenvolvido sua pesquisa em tempos de
redemocratização do Brasil, isso não significa que a democracia, que estava então em
reformulação, envolveu todos os corpos existentes e suas mais diversas expressões. Em
oposição a isso, o país em sua construção jurídica, social, política e espacial nunca teve a
intenção de incluir essas corporalidades e vivências em sua agenda de compromissos.
Visto isso, é no texto Os Tentáculos da Tarântula: Abjeção e Necropolítica em
Operações Policiais a Travestis no Brasil Pós-redemocratização que enxerga-se um terceiro
momento de segregação de corpos marginalizados no Brasil até o momento analisado. Os
autores Céu Cavalcanti, Roberta Brasilino Barbosa e Pedro Paulo Gastalho Bicalho exploram
a atividade policial de caça travestis chamada de Operação Tarantula. Essa busca pelo
extermínio de corpos travestis usava como justificativa o aumento dos casos de AIDS
(Síndrome da Imunodeficiência Humana) e foi colocada em vigor no ano de 1987, período de
reconstrução da democracia brasileira pós ditadura militar. Assim, o discurso de neutralidade
de combate a AIDS foi usado com premissa para a criminalização de pessoas LGBTs, com
ajuda da grande mídia para a associação da doença à essa população, enquanto que os casos
que acometiam pessoas cis-hétero eram invisibilizados.
Dessa forma, o artigo expõe noções que naturalizam a ideia de que certos sujeitos são
mais propensos a cometer crimes, ligadas a raízes positivistas dos estudos de criminologia.
Porém, isso tem mais a ver com o ser, não com o fazer. Certos tipos de corpos, raças, gêneros
e sexualidades são considerados desviantes e, portanto, precisam ser corrigidos. Assim,
pensamentos como o de Nina Rodrigues e César Lombroso partem de um pressuposto
classificatório dos indivíduos com base em distintos contextos em uma suposta hierarquia
evolutiva, colocando o homem branco, europeu, cristão, heterossexual e cisgênero no ápice
da perfeição e civilização, servindo como modelo para todas as outras comunidades. A partir
desse padrão e de seus estilos de vida, todas as demais pessoas são avaliadas em uma
construção fictícia de conhecimento que justifica ações como o colonialismo, massacres e
genocídios (Goés apud Barbosa et al.).
Sendo assim, entende-se essa racionalidade no sentido foucaultiano de que existe uma
conexão entre a razão e o poder na estruturação das práticas, e, dessa forma, é possível notar
a narrativa que envolve os mecanismos, possibilitando a compreensão de uma certa
intencionalidade nos discursos, com finalidade de atingir os objetivos desejados. Logo, uma
racionalidade baseada nas noções citadas acima cria raízes nos costumes cotidianos e produz
os efeitos esperados.
Esse discurso também reforça que as subjetividades são produzidas em relação ao eu
branco masculino europeu e qualquer particularidade que fuja desse ideal é considerada
desviante e, logo, define um modelo de humanidade excludente em que o não-eu é passível
de extermínio. Assim, contextualiza-se na obra o conceito de abjeção trazido por Julia
Kristeva:
A diferença sustentada por corpos travestis e por corpos negros parecem então
demarcar um lugar que historicamente não é o de humano. Esse lugar, oriundo de
um sistema de pensamento produzido e imposto pela Europa, pode inclusive ser
pensado como um não lugar e a ojeriza que esta diferença muitas vezes causa
pode ser analisada a partir da noção de abjeção. (Barbosa, Bicalho, Cavalcanti,
p.181, 2018).

Dessa forma, o que justifica a Operação Tarantula e a criminalização de corpos negros


e outros desviantes faz parte de uma mesma racionalidade:
Há, na abjeção, uma dessas violentas e obscuras revoltas do ser contra aquilo que o
ameaça e que lhe parece vir de um fora ou de um dentro exorbitante, jogado ao lado
do possível, do tolerável, do pensável. Está lá, bem perto, mas inassimilável. Isso
solicita, inquieta, fascina o desejo que, no entanto, não se deixa seduzir. Assustado,
ele se desvia. Enojado, ele rejeita. (Kristeva apud Barbosa, Bicalho, Cavalcanti).

Portanto, o abjeto existe no limiar da humanidade, caracterizando o paradoxo de ser


indesejado e proibitivamente desejado ao mesmo tempo. Assim, corpos que se localizam na
zona do não-ser são alvos declarados inimigos, que precisam ser exterminados e, dessa
maneira, práticas políticas de poder como a Operação Tarantula são colocadas em ação,
tornando marginal não apenas esses corpos, mas também a territorialidade em que são
localizados.
Em guisa de conclusão, nos três textos abordados percebe-se que o espaço/território é
o mesmo para aqueles que não são desejados, abjeções da sociedade brasileira. É atemporal
que a democracia, as políticas públicas, as leis jurídicas e a norma social, criam lugares de
deixar morrer para que os que são considerados Outros se aloquem. A construção de uma
sociedade em cima de uma necropolítica¹ adaptada ao contexto brasileiro faz com que os
limites territoriais sejam muito mais que apenas barreiras fisicas, mas também barreiras de
não permissividades de subjetividades que transcendem os enquadramentos
cis-héteros-brancos normativos.
Portanto, os autores dos textos apresentados tratam em suas produções do
impedimento da subjetividade de corpos transgressores e o segregamento desses em
territórios limitados e a margem da sociedade, vivendo em um paradoxo entre a proibição de
sua existência e o desejo oculto por sua corporalidade. Ainda que conversem em momentos
diferentes da história do Brasil, todas as teses apontam para uma forma de
governamentalidade baseada no deixar morrer desses corpos e o fazer viver daqueles que são
enquadrados nas definições de humanidade hegemônicas.

¹ Necropolítica é um termo desenvolvido por Achille Mbembe em seu livro Necropolítica e diz respeito ao
controle da soberania sobre quem vive, mas mais importante que isso, sobre quem morre – e quais mecanismos
utilizam para fazer isso, em um contexto colonial.
REFERÊNCIAS
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro, Fundação Biblioteca Nacional.
1922.
CAVALCANTI, Céu; BARBOSA, Roberta Brasilino; BICALHO, Pedro Paulo
Gastalho. Os tentáculos da tarântula: Abjeção e necropolítica em operações
policiais a travestis no Brasil pós-redemocratização. Psicologia: Ciência e
Profissão, v. 38, p. 175-191, 2018.
PERLONGHER, Néstor Osvaldo. O negócio do michê: a prostituição viril em São
Paulo. In: O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. 1987. p. 261-261.
SILVA, Adriana Carvalho. A leitura urbana de Lima Barreto em Clara dos Anjos.
Espaço e cultura, n. 25, p. 7-16, 2009.
SIMÕES, Júlio Assis. O negócio do desejo. cadernos pagu, p. 535-546, 2008.

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