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Sinopse
LOPES, Mercedes, The wise woman and the wisdom manifested through the woman-
symbols of co-inspiration, a study of the woman in the book of Proverbs, Doctoral Thesis in
Religious Studies, Methodist University of São Paulo, São Bernardo do Campo, 2007.
Abstract
In the book of Proverbs, specifically in chapter 1 verses 20-23 and chapters 8 and 9,
it is possible to perceive references that lead us to identify a symbol which has been called
the wisdom- woman, or wise-woman. Its interpretation has a long and polemic history.
While analyzing the textual links between these verses and the poem of Proverbs 31, it is
possible to realize that the symbol related to the wisdom of a woman seems to be taken
from the daily life of a person that, with great audacity, participates in the process of
building history and human relationships in the context of that moment (the post-exilic
period), in Judah. These links and texts emphasize the great value of the woman and her
proximity to God. She is presented as the one who has the power of offering (Pr 8,35; 9,6)
and preserving life (Pr 31), the one capable of experiencing and transmitting the ethical
values that are fundamental to every day family relationships (Pr 1,8; 6,20; 31,2-9.26).
This symbol also represents the memory of the ancient cults that were celebrated in
private homes to commemorate and guarantee on-going life. Even the memory of different
goddess were present in these rituals, in that they were not opposed to the rituals dedicated
to Yahveh. It is possible to state this because in the inner dynamic of the celebrations that
took place in those homes these divinities (goddess-Yahveh) were worshiped.
These texts show a change in the way of understanding the role of the woman in her
context. This new understanding appeared during the period of captivity, when there was
neither sanctuary nor government to provide adequate organization for the people in their
struggle for liberation. In this case, homes became substitutes for sanctuaries and women
were empowered, even in the midst of a patriarchal society. The wisdom of the women is
manifested in the home space, emphasizing relationships of inclusion and solidarity during
the period of the second temple, a time in which various laws related to impurity were
significant.
Sinopsis
SUMÁRIO
Introdução 6
Conclusão 199
Trasnliteração utilizada 208
Bibliografia 209
6
Introdução
Faz anos que estes poemas sobre a sabedoria mulher, em Pr 1-9, me atraem e me
convidam a uma aproximação. Esta sedução provém da maneira como a sabedoria é
apresentada nesses textos e também da minha convivência com as mulheres pobres de
vários países da América Latina. 2 Apesar da dedicação destas mulheres aos serviços gerais
1
Elisabeth Schüssler Fiorenza, Los caminos de la sabiduría – Una introducción a la interpretación feminista
de la Biblia, Santander: Sal Terrae, 2004, p.53 (Colección “Presencia Teológica” 132).
2
Desde a década de 70 optei por morar no meio dos pobres, assumindo suas lutas. Durante dez anos, convivi
com as comunidades indígenas da Bolívia. Com a finalidade de oferecer cursos de capacitação bíblica,
percorri vários outros países, chegando a acompanhar grupos de mulheres da periferia de Santiago – Chile,
durante um ano.
7
nas igrejas cristãs, elas são excluídas de uma participação efetiva nas instâncias de decisão
e marginalizadas do processo de elaboração teológica. Contudo, em suas buscas e nos seus
discernimentos cotidianos, estas mulheres demonstram possuir uma sabedoria que brota das
suas lutas e resistências, de seu insistente desejo de mais vida. Ao lutar por uma vida
melhor para todas as pessoas e pela conquista dos seus direitos, elas crescem na auto-estima
e na determinação, exigindo espaços de participação na sociedade e nas igrejas. Segundo
Elisabeth Schüssler Fiorenza, “as lutas das mulheres pela transformação e pelo
reconhecimento de sua plena cidadania na sociedade, no mundo acadêmico e nas igrejas
geram conhecimentos emancipadores e intuições libertadoras”3 .
3
Elisabeth Schüssler Fiorenza, Los caminos de la sabiduría – Una introducción a la interpretación feminista
de la Biblia, p.124.
4
José Severino Croatto, “A sexualidade da divindade – Reflexões sobre a linguagem acerca de Deus”, em
Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana/ RIBLA, vol.38, Petrópolis: Vozes, 2001, p.28.
5
Veja Elisabeth Schüssler Fiorenza, Los caminos de la sabiduría – Una introducción a la interpretación
feminista de la Biblia, p.125.
8
Silvia Schroer chama a atenção para ligações transversais muito interessantes entre
Pr 1-9 e 31,1-31.6 Seria possível ampliar esta percepção das ligações transversais entre a
primeira seção e a última do livro dos Provérbios? Que aspectos sobre a vida das mulheres
israelitas estas ligações visibilizariam? Que posturas e reações estes textos representam?
Quais os espaços ocupados pela sabedoria mulher nestes poemas? Será que a mulher da
vida real tinha acesso a estes espaços? Um diálogo com outros textos bíblicos poderia
ajudar a ver melhor esta figura da sabedoria mulher em Pr 1-9? Além do capítulo 31 de
Provérbios, que outros textos bíblicos ajudariam a encontrar os sentidos do símbolo da
sabedoria mulher?
Estas perguntas dirigem minha atenção tanto para o símbolo da sabedoria mulher
como para a mulher da vida real, com a intenção bem definida de investigar sobre a relação
entre ambas. Suspeito que o símbolo da sabedoria mulher, nos poemas de Pr 1,20-23; 8 e 9
não seria uma hipóstase de Javé e não deixaria transparecer somente as antigas deusas, mas
seria, sobretudo, transparente em relação à situação das mulheres judaítas do pós-exílio.
Por trás do símbolo da sabedoria mulher poderia ser encontrada a situação da casa
interiorana, onde as mulheres teriam liderança e autoridade. Nos tempos conturbados do
período persa e frente às exclusões normatizadas pelos sacerdotes do segundo templo, as
6
Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, em Der eine Gott und die
Göttin – Gottesvorstellungen des biblischen Israel im Horizont feministischer Theologie, Freiburg: Herder,
1991, p.156, traduzido do alemão por Norbert H. C.Foester (manuscrito).
9
Várias são as ferramentas que utilizarei nesta minha pesquisa. Uma delas é a
hermenêutica de gênero. Segundo Delir Brunelli, “gênero indica os traços típicos, os papéis
que culturalmente foram atribuídos a homens e mulheres, estabelecendo um determinado
padrão nas relações sociais”7 . Estes padrões são gerados a partir da maneira como um
grupo social se compreende e exerce o poder. Eles mostram os tabus e as dificuldades de
integração da sexualidade e da afetividade por um determinado grupo social. Mitos e tabus
servem para justificar a dominação e esconder o medo. Estes mitos e tabus estão presentes
também na Bíblia. São um reflexo da sociedade patriarcal dentro da qual a Bíblia foi
escrita, já que as antigas religiões nasceram dentro deste tipo de sociedade. Mas, uma
hermenêutica com ótica de gênero não está relacionada apenas aos textos que se referem às
mulheres, ou que as silenciam, mas a todo trabalho com um texto bíblico. Ela se preocupa
com as relações, buscando dialogar com as diferenças. Ela se pergunta pelas situações,
indagando sobre a realidade das comunidades e grupos que estão por trás de cada texto. 8
7
Delir Brunelli, “O que é mesmo gênero?” em Sonhos e sementes, Rio de Janeiro: Cadernos da CRB, nº 30,
2001, p.9.
8
Veja Mercedes Lopes, “Gênero e leitura bíblica,” em Sonhos e sementes, Rio de Janeiro: Cadernos da CRB,
nº 30, 2001, p.18.
9
Ivone Gebara, Rompendo o silêncio – Uma fenomenologia feminista do mal, Petrópolis: Vozes, 2000, p.109.
10
entre histórias de vida, essa maneira de ler a realidade quer demarcar uma nova trajetória
dos paradigmas de construção dos conhecimentos e de decodificação dos discursos”10 .
10
Tânia Mara Vieira Sampaio, “Horizontes en discusión en el arte de hacer teología”, em Revista Alternativas,
Manágua: Lascasiana, a no 10, nº 26, julho-dezembro de 2003, p.82.
11
Para a metodologia exegética vou seguir alguns autores, como Cássio Murilo Dias da Silva, Metodologia de
exegese bíblica, São Paulo: Paulinas, 2000, 515p.; Hans de Wit, En la dispersión el texto es patria –
Introducción a la hermenéutica clásica, moderna e posmoderna, San José: Universidad Bíblica
Latinoamericana, 2002, 557p.; Carlos Osvaldo Cardoso Pinto, Fundamentos para exegese do antigo
testamento – Manual de sintaxe hebraica, São Paulo: Vida Nova, 1998, 154p.; Ernst Käsemann, Ensayos
exegéticos, Salamanca: Sígueme, 1978, 299p. (Biblioteca de Estudios Bíblicos 20); Uwe Wegner, Exegese do
Novo Testamento – Manual de metodologia, São Paulo: Paulus, 2001, 407p., entre outros.
12
Martin Volkmann, “Introdução”, em O método histórico crítico, São Paulo: CEDI, 1992, p.32.
13
Ernst Käsemann, Ensayos exegéticos, p.71-72.
14
M. O’Brien, “A natureza do monoteísmo bíblico - Experiência e ideologia”, em Concilium, vol.289,
Petrópolis: Vozes, 2001, p.69.
11
15
M. O’Brien, “A natureza do monoteísmo bíblico – Experiência e ideologia”, p.77.
16
M. O’Brien, “A natureza do monoteísmo bíblico – Experiência e ideologia”, p.71.
17
Este termo “hermenêutica do crédito” encontra-se em Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução
feminista da história de Israel”, em Feministische Exegese – Forschungserträge zur Bibel aus der Perspektive
von Frauen, organizado por Luise Schottroff, Silvia Schroer e Marie-Theres Wacker, Darmstadt:
Wissenschafttliche Buchgesellschchaft, 1995, p.5.
18
Maria Izilda S. de Matos, “De la invisibilidad al género: Odisea del pensamiento”, em Revista Alternativas,
Manágua: Lascasiana, ano 10, nº 26, julho-dezembro de 2003, p.20.
12
Estes contatos com diferentes autores me permitirão obter uma visão ampla da
pesquisa bíblica sobre o símbolo da sabedoria mulher, inclusive sobre a época e o contexto
de Pr 1-9 e 31, permitindo-me adentrar na análise literária, nos dois capítulos seguintes.
Sem perder de vista as questões levantadas, seguirei os passos da exegese para uma análise
de Pr 1,20-23; 8; 9 e 31. Apresentarei uma tradução e crítica textual de cada um desses
textos, além de sua delimitação e estrutura, buscando encontrar a coesão interna de cada
poema. Esta análise compreende, ainda, o campo semântico e o gênero literário, buscando
observar as particularidades de cada um dos textos citados. Depois da análise literária,
buscarei verificar as diferentes visões da sabedoria mulher, apresentadas nestes poemas e
proporcionarei uma visão detalhada sobre o contexto sócio-econômico, cultural, político e
religioso no qual estes textos foram elaborados e editados.
19
A expressão “sabedoria personificada” já está condicionada pelos estudos literários sobre personificação em
textos extra bíblicos. A história da interpretação de Pr 1,20-23; 8 e 9 está também condicionada pelo sentido
mais amplo de personificação, na própria literatura bíblica. Deixei de usar o clássico termo “sabedoria
personificada”, com a finalidade de deixar o texto mais livre para a pesquisa. Nesta tese, usarei simplesmente
o termo sabedoria mulher.
13
Capítulo 1
Discussões sobre a sabedoria mulher em Provérbios
O símbolo bíblico da sabedoria mulher (Pr 1,20-23; 8,1-36; 9,1-6; Jó 28; Eclo 24)
tem sido pouco estudado. O reduzido material que existe sobre este assunto caracteriza-se
quase exclusivamente pelo gênero comentário bíblico. Meu objetivo é oferecer uma
exegese formal dos textos de Provérbios que se referem a este símbolo, a partir de uma
perspectiva feminista, democrática e inclusiva. Um estudo sobre o símbolo da sabedoria
mulher no livro dos Provérbios com essa perspectiva poderá abrir uma janela sobre estes e
outros textos bíblicos, unindo meu esforço ao de mulheres e homens que desde algumas
décadas entraram no campo da pesquisa bíblica na perspectiva de gênero.
mesmo que nesses trabalhos não se dê muita atenção ao aspecto da feminilidade.20 Estas
observações de Silvia Schroer são relevantes, ainda que suas investigações se concentrem,
sobretudo, na imagem da Sophia, pois é uma especialista no estudo do livro da Sabedoria.
Ela mostra a necessidade de situar a época em que surge a imagem da sabedoria mulher e
de analisar o imaginário simbólico dessa época. Sua experiência na investigação bíblica
sobre este tema a leva a afirmar que “metodologicamente, é decisivo para a exegese
feminista ir dos textos da sabedoria personificada até os seus contextos. Isto significa que a
sabedoria personificada deve ser lida em relação íntima com os escritos de sabedoria
correspondentes”21.
É com esta perspectiva que pretendo analisar a trama religiosa e social que se
encontra por trás de Pr 1-9 e 31. Suspeito que estes textos, que estão elaborados na sua
maioria a partir da linguagem poética, contêm um discurso sobre Deus. Um aspecto
teológico dos poemas estaria concentrado, sobretudo, no símbolo da sabedoria mulher (Pr
1.20-23; 8,22-31; 9,1-6). Mas, o símbolo não seria outra coisa que um reflexo de uma
situação vivenciada pela mulher israelita da vida real? Por trás deste símbolo, não estariam
presentes tanto a mulher contemporânea ao texto, como as mulheres sábias e profetisas
que contribuíram para a construção da história do povo bíblico? Suspeito, ainda, que estes
textos tenham sua origem na casa. É possível que as famílias pobres que cultivavam os
campos de Canaã mantivessem antigos rituais relacionados às etapas de semeaduras e
colheitas, nascimentos e funerais, enfim, ligados à sua própria subsistência e às questões
mais importantes do seu cotidiano. Já que as terras áridas de Canaã necessitavam da chuva
para a fertilidade do solo, a abundância das colheitas e reprodução dos rebanhos, esta seria
obtida através de um ritual celebrado na casa. Embora estes rituais carregassem memórias
de antigos cultos às Deusas, eles não eram opostos ao culto de Javé. Pelo contrário, dentro
da dinâmica da casa, eles estariam inteiramente integrados. O que caracterizaria a religião
da casa seria a sua abertura e a priorização da vida como seu motivo e base de sustentação.
Desta maneira, a religião da casa não seria uma religião opressora, usada para manter o
20
Confira Silvia Schroer, “Die personifizierte Sophia im Buch der Weisheit”, em Ein Gott allein? – Jhwh-
Verehrung und biblisher Monotheismus im Kontext der israelischen und altorientalischen religiongeschichte,
Walter Dietrich e Martin A. Klopfenstein (organizadores), Freiburg/Göttingen: Göttingen,Vanderhoeck &
Ruprecht, 1994, p.543.
21
Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.153
16
controle e para dar sustentação aos interesses de um grupo da elite. Seria, antes de tudo,
uma religião lúdica e alegre que cultuava uma Deusa bem humorada que se deliciava na
sua relação com a humanidade e que proporcionava vida e bem estar a todas as pessoas.
22
Christa Kayatz, Studien zu Proverbien 1-9: eine form-und motivgeschichtliche Untersuchung unter
Einbeziehung ägyptischen Vergleichs-materials, Neukirchen-vluyn: Neukirchener Vesrlag, 1966, p.94-95,
(Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testament 22); Alviero Nicacci, A casa da
sabedoria – Vozes e rostos da sabedoria bíblica , São Paulo: Paulinas, 1997, p.253-254; Gerhard von Rad, La
sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, Madri: Fax, 1973, p. 200, entre outros.
23
Judith Hadley, “Yahweh and ‘his Asherah’: archaeological and textual evidence for the cult of the
Goddess”, em Ein Gott allein? – Jhwh-Verehrung und Biblischer Monotheismus im Kontext der israelitischen
17
são questionadas por outros autores24 , já que desde a reforma deuteronomista houve uma
grande repressão em Israel contra o culto das divindades estrangeiras.
Para sair deste dilema, José Vílchez Líndez adverte que “no mundo literário existe
uma figura chamada personificação, que consiste em fazer passar como pessoa algo que
não é, como uma abstração, uma planta, um animal. É o caso dos Autos sacramentales, em
que entram em cena como personagens as virtudes e os vícios, ou das fábulas, nas quais
falam plantas e animais. Esse recurso literário é com freqüência aplicado à sabedoria nos
livros sapienciais”25 , afirma o referido autor.
Esta é também a opinião de Christa Kayatz, para quem no texto de Provérbios não
só se detectam traços estilísticos e imagens da literatura egípcia, mas a presença da idéia de
Maat. Esta idéia constitui o núcleo da sabedoria egípcia e pode ser traduzida como “ordem
primordial”, “direito”, “justiça”29 .
Silvia Schroer também afirma que a representação principal que está por trás da
sabedoria personificada é Maat. Ela abrange o divino e a natureza, o reino, a sociedade e as
relações humanas; ela representa as ordens cósmicas queridas pelos deuses, isto é, as
ordens culturais ideais. Esta Deusa faz parte do panteão egípcio, mas ela ocupa uma
posição especial, já que as outras divindades se orientam para ela como princípio cósmico.
Para mostrar com maior clareza sua identidade, Silvia Schroer afirma que “o conceito
oposto a Maat é Isfet, a condição de ausência do direito e a vigência da violência e da
opressão”30 . Esclarece ainda essa autora que a ordem social que tal Deusa representa não é
uma ordem democrática e sim hierárquica. Porém o direito que ela representa é o direito
que dá chance ao mais fraco, a idéia de uma solidariedade vertical dos bem situados para
com todas as partes da sociedade... A hokmah, de maneira semelhante à Maat, representa
idéias de ordens divinas do mundo, inclusive as ordens do cosmos e da natureza. Quando o
direito é corrompido, irrompe sobre a terra uma seca (Os 4,2s); quando o enviado de Javé
restaurar a justiça, toda a ordem da criação será restabelecida (Is 11,1-9). 31 Com estas
afirmações, Silvia Schroer não está fazendo somente uma relação entre hokmah e Maat,
mas sobre a sabedoria e a prática da justiça, o restabelecimento do direito e o equilíbrio
ecológico.
Para Gerhard von Rad, Provérbios 1-9 é uma coleção de poemas didático-teológicos
que parece seguir a antiga tradição de Israel. Porém, na medida em que se avança na leitura,
surge, de repente, algo totalmente inesperado. E este algo inesperado seria a separação da
sabedoria imanente, presente na criação como uma ordem harmoniosa e sábia, das obras da
29
Veja Christa Kayatz, Studien zu Proverbien 1-9: eine form -und Motivgeschichtliche Untersuchung unter
Einbeziehung ägyptischen Vergleichs-materials, p.94-95.
30
Silvia Schroer, “A justiça da Sophia: tradições sapienciais bíblicas e discursos feministas”, em Concilium,
vol.288, Petrópolis: Vozes, 2000, p.74[702].
31
Confira Silvia Schroer, “A justiça da Sophia: tradições sapienciais bíblicas e discursos feministas”,
p.75[703].
19
criação propriamente ditas. Seria como uma separação ontológica dos fenômenos dentro da
criação, modificando-se também a relação do ser humano com esses fenômenos. 32 “Porém,
tudo isso, separado radicalmente de seu sentido original, constitui um fenômeno
hermenêutico que ainda não foi suficientemente considerado em todos os seus aspectos: o
fato de que não só se tenham tomado idéias ou figuras egípcias, mas às vezes séries inteiras
de Provérbios puderam ser mantidas em seu primeiro teor literário”33, comenta Gerhard von
Rad. A perplexidade causada pelo texto de Provérbios 8,22-31 tem produzido mal-estar em
muitos estudiosos, levando alguns a tentar fazer correções ao texto massorético. 34
Há também aqueles que encontram no texto exatamente aquilo que a teologia cristã
definiu. Esta é a postura de Ernesto Lussier, para quem “a sabedoria em Provérbios 8 é
claramente uma personificação da inteligência essencial de Deus, atributo que presidiu a
criação. Na apresentação literária existem alguns elementos que podem sugerir uma pessoa
real e distinta na Trindade, porém são, quando muito, vagas antecipações, preparação
longínqua da revelação que se encontra no Prólogo de São João e em Col 1,16-17”35.
32
Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, p.222. Em nota ao pé da página
200, Gerhard von Rad afirma estar claro que “no poema de Provérbios 8,22-29 há formas estilísticas próprias
de determinadas proclamações de Deuses egípcios e que nos versículos 30-31 está presente uma concepção
egípcia de uma divindade que ama com todas as entranhas a verdade personificada, cujo nome é Ma’at”.
33
Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, p.225.
34
Veja Maurice Gilbert e Jean-Noël Aletti, A sabedoria e Jesus Cristo, São Paulo: Edições Paulinas, 1985,
p.26. Estes autores comentam que se em Pr 8,30 o termo !Ama' for lido como ’amon, que significa “artista”
ou mestre de obras, daria a entender que a sabedoria teria exercido um papel ativo na organização do mundo.
E, afirma: “pode-se ler, também, ’amun, no sentido de “criança de colo”, “criança querida”, “criancinha”. Na
tradução e crítica textual de Pr 8, voltarei a este assunto e farei uma investigação mais apurada.
35
Ernesto Lussier, Libros de los Proverbios y del Eclesiástico, Bilbao: Mensajero e Santander: Sal Terrae,
1970, p.24-25 (Conoce la Biblia: Antiguo Testamento 24).
36
Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez con la colaboración de A. Pinto, Sapienciales I – Proverbios,
Madri: Cristiandad, 1984, p.76.
20
A seguir, Luis Alonso Schökel recolhe a opinião de vários autores sobre a sabedoria
personificada, citando aqueles que a apresentam como uma hipóstase, ao menos em
algumas passagens importantes, e comenta: “quase todos os autores modernos rejeitam a
tese da hipóstase da sabedoria, admitindo a sabedoria personificada, entendendo-se como
tal, personificação literária ou poética”37 . Aqui, Luis Alonso Schökel entra diretamente na
questão do monoteísmo bíblico. Ele afirma: “pode-se dizer que o recurso da personificação
da sabedoria é a melhor saída que o judaísmo encontrou para defender sua ortodoxia. A fé
monoteísta em Javé adaptou-se ao máximo às concepções pagãs, porém sem renunciar ao
seu monoteísmo.”38 Esta explicação de Luis Alonso Schökel desvela um problema que
impede os estudiosos a avançarem na investigação sobre este tema.
Apesar das opiniões contrárias, Karen Armstrong parece seguir a idéia de hipóstase.
Segundo esta autora, a sabedoria mulher representa o plano de Deus ao criar o mundo. Ela
afirma: “o autor do livro dos Provérbios, que escreveu no século III a.C., foi um pouco mais
longe e sugeriu que a sabedoria era o plano mestre que Deus idealizara ao criar o mundo e,
como tal, a primeira de suas criaturas”39 .
37
Luis Alonso Schökel, Sapienciales I – Proverbios, p.77.
38
Luis Alonso Schökel, Sapienciales I – Proverbios, p.77. Esta mesma afirmação encontra-se em José Vílchez
Líndez, Sabedoria e sábios em Israel, p.55.
39
Karen Armstrong, Uma história de Deus – Quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo,
São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.77.
40
Víctor Morla Asensio apresenta como um exemplo desta postura R. N. Whybray, “Proverbs VIII 22 -31 and
Its Supposed Prototypes”, em J. L. Crenshaw (ed.), Studies in Ancient Israelite Wisdom, Nova York, 1976,
p.390-400.
41
Víctor Morla Asensio, Livros Sapienciais e outros escritos, São Paulo: Ave Maria, 1997, p.118.
21
Jack Miles desafia as opiniões moderadas dos estudiosos conhecidos com esta sua
opinião: “metaforicamente, a senhora sabedoria é ‘parceira de Deus’ ou ‘esposa de Deus’,
representando a humanidade cooperando com Deus e como mãe da humanidade. Nessa
metáfora da humanidade cuidando de si mesma como esposa e mãe, a sabedoria nos lembra
Aserá.”44 Para explicitar esta relação que faz entre a sabedoria e Aserá, Jack Miles chama a
atenção para a comparação da sabedoria com a “árvore”, em Pr 3,18 (confira Gn 3,22).45 É
interessante esta comparação, pois a árvore era um dos símbolos de Aserá.
42
Leo G. Perdue, “Wisdom Theology and Social History in Proverbs 1-9”, em Wisdom, You Are My Sister,
Michael L. Barré, (organizador), Washington: The Catholic Biblical Quarterly Monograph, 1997, p.91,
(Series 29).
43
Bernhard Lang, “Lady Wisdom: a polytheistic and psychological interpretation of a biblical goddess”, em
Reading the Bible – Approaches, methods and strategies, editado por Athalya Brenner e Carole Fontaine,
Sheffield: Sheffield Academic Press, 1977, p.400-423.
44
Jack Milles, Deus - Uma biografia, São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.332.
45
Jack Milles, Deus – Uma biografia, p.335.
22
Segundo Herculano Alves, “a sabedoria aparece ainda como figura feminina com
função mediadora na criação, em Pr 8,23-31 e Jó 28,17-27 (ver Bar 3,9-4,4); como uma
mãe que comunica sabedoria aos seus filhos: Ecl 15,1-5; Pr 8,32-36. A sabedoria divina é
como uma mãe, um mestre que conduz pedagogicamente os seus filhos ou os seus
discípulos. Aparece, pois, uma estreita relação entre a sabedoria divina e a mulher, e
acontece uma transmutação simbólica entre uma e a outra (Pr 19,14; 31, 10.26.30; Sb
7,28).”46
Ney Brasil Pereira continua com sua análise da figura da sabedoria e sua natureza
divina, mostrando que em Sb 6,12-16 a sabedoria é apresentada como mulher que deve ser
procurada e amada. Nova alusão ao “amor” e à “posse” da sabedoria em 7,10, seguindo-se
a exaltação dos seus dons, da sua natureza divina, ou quase divina (7,22-8,1). No cap.8, é
visível o erotismo nos v.2.9.16.21, não só na relação do ser humano com ela, mas também
na relação dela com o próprio Deus, que a ama e com quem ela “convive” esponsalmente
46
Herculano Alves, “Deus no Feminino no Antigo Testamento”, em A mulher na Bíblia, na Igreja e na
Sociedade – Questões actuais na moral familiar, Lisboa: Difusora Bíblica, ano 2, nº 3, Dezembro de 1994,
p.59, (Bíblic a série científica).
47
Confira Ney Brasil Pereira, Livro da Sabedoria – Aos governantes, sobre a justiça, São Leopoldo: Sinodal,
Petrópolis: Vozes, 1999, p.115, (Comentário Bíblico AT).
48
Confira Ney Brasil Pereira, Livro da Sabedoria – Aos governantes, sobre a justiça, p.37.
23
(8,3). “É essa esponsal convivência com Deus que a torna onisciente e mediadora de todos
os bens, sentada como está no trono divino (em grego páredros, conferir Sb 9,4), conceito
que evoca os divinos casais das religiões politeístas. O indubitável monoteísmo do autor
permite- lhe, porém, essa ousadia na linguagem, que evidentemente reflete seu ambiente
cultural. No cap.10 é notável como a sabedoria toma o lugar tradicional do nome de Deus,
como sujeito dos fatos salvíficos da história do seu povo: a sabedoria é o Deus de Israel em
figura feminina.”49
Para Juan José Tamayo -Acosta, “a sophia é personificada em uma mulher que goza
de sabedoria; é apresentada como mestra da justiça e aparece junto a Deus no momento da
criação”50 . Segundo este autor, no símbolo da sophia unem-se o nacionalismo de Israel e o
universalismo da cultura helenista para criticar toda tirania e introduzir uma nova
linguagem sobre Deus. 51
Mas há autoras que não vêe m em Provérbios 1-9 uma “sabedoria de mulher”, mas
uma definição prática do limite nas relações dos homens com as mulheres. Esta é a opinião
de Janneke Bekkenkam e Fokkelien van Dijk -Hemmes. Elas afirmam: “a senhora sabedoria
49
Ney Brasil Pereira, Livro da Sabedoria – Aos governantes, sobre a justiça, p.38.
50
Juan José Tamayo-Acosta, “Hacia un nuevo paradigma teológico intercultural”, em La teología ante el
pluralismo religioso, Revista Alternativas, Manágua: Lascasiana, ano 11, nº 27, janeiro -junho de 2004, p.85.
51
Juan José Tamayo-Acosta, “Hacia un nuevo paradigma teológico intercultural”, em La teología ante el
pluralismo religioso, p.86.
52
Silvia Schroer “Transformações na fé, Documentos de natureza intercultural na Bíblia”, em Concilium, vol.
251, Petrópolis: Vozes, 1994, p.20.
53
Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução feminista da história de Israel”, em Feministische Exgese
– Forschungserträge zur Bibel aus der Perspektive von Frauen, p.27.
24
e a senhora tolice são símbolos dos dois extremos entre os quais a vida dos homens se
desdobra. Elas definem os limites dentro dos quais os homens são chamados a tomar
decisões”54 .
já presente na literatura egípcia e próprio para a auto-revelação dos Deuses. Há autores que
descartam a possibilidade de uma hipóstase e há outros que parecem aceitá- la. Alguns
estudiosos e estudiosas ligam a sabedoria personificada à mulher forte e guerreira, que
gerencia sua casa, enquanto outros autores vêem este símbolo como uma definição prática
das relações entre homens e mulheres, no período pós-exílico.
Depois de ouvir todas estas diferentes vozes, podemos concluir que no símbolo da
Sabedoria Mulher em Provérbios 1,20-23; 8-9 pode estar incluída uma tradição oral antiga,
relacionada ao culto das Deusas. Mas, no momento em que se editou o livro dos
Provérbios, esta tradição oral foi confrontada com a situação histórica e religiosa de Israel,
através de um cuidadoso trabalho literário que ainda hoje possibilita manter escondida a
identidade da sabedoria mulher. Esta contradição entre uma evidência literária e uma
identidade oculta me atrai, chama a atenção, pede que me aproxime. Ela parece estar
ancorada na vida real de mulheres sábias (Pr 31,1-9) e fortes (Pr 31,10-31), que tomam
decisões impor tantes para encaminhar seus próprios destinos e a história do seu povo. Esta
é a relação que necessita ser verificada.
Fica latente uma pergunta incisiva sobre o imaginário simbólico presente nos textos
em relação à sabedoria mulher. Termos que se encontram tanto na moldura do livro dos
Provérbios (Pr 1-9 e 31), como no livro de Rute e no Cântico dos Cânticos chamam a
atenção para a possibilidade de haver uma tendência ou tradição comum na origem destes
textos. Um desses elos é a expressão “casa da mãe” bet’em (Rt 1,8; Ct 3,4; 8,2), 58 tão pouco
utilizada na Bíblia Hebraica, em contraposição à expressão mais repetida “casa do pai”
(bet’ab). Em Ct 3,4 e 8,2, escutamos a voz da moça que expressa seu desejo de levar seu
amado à “casa da minha mãe”. Estas expressões chamam a atenção para algo inusitado
58
Em Rt 1,8 a expressão é bet ’imah “casa de sua mãe”, já em Ct 3,4 e 8,2 a expressão é bet ’imi “casa da
minha mãe”.
26
dentro da cultura patriarcal da época. Indicam uma pista para encontrar uma nova atuação
da mulher na casa e na comunidade do seu tempo, capaz de influenciar na mudança da
linguagem59 .
Também Gerhard von Rad afirma que a sabedoria de Israel tem suas raízes na vida
cotidiana, sobretudo na observação da ordem ou harmonia da natureza. Além disso,
Gerhard von Rad percebe que há uma evolução literária em Pr 1-9: “ninguém pode
imaginar que este caso modelo da tradição sapiencial foi expresso por um cérebro original
ou que foi tomada do Egito. Suas raízes são muito antigas em Israel. A novidade de Pr 1-9
consiste, sobretudo, em que a ordem concebida de maneira ainda essencialmente acrítica na
sabedoria experiencial mais antiga se converte, agora, em objeto de elaboração teológica
penetrante.”62
Neste seu estudo sobre Pr 1-9, Gerhard von Rad faz um comentário sobre os poemas
de Pr 8 e os relaciona com outros textos do Antigo Testamento, observando que “a ordem
captada inicialmente de maneira imprecisa, sem reflexão e sob múltiplas formas vai se
59
Na Bíblia hebraica, encontra-se entre os Escritos a seguinte sequência: Provérbios, Rute e Cântico dos
Cânticos, indicando que existe alguma relação entre eles.
60
Alviero Nicacci, A casa da sabedoria – Vozes e rostos da sabedoria bíblica, p.36.
61
Veja Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p.54.
62
Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo Sapiencial, p. 221.
27
convertendo cada vez mais em objeto de reflexão”63 . Este autor adverte que a sabedoria
imanente na criação foi separada nos poemas didáticos (Jó 28; Pr 8; Eclo 24) das obras da
criação propriamente ditas (ventos, fontes, mar, montanhas, etc.). Esta separação ontológica
dos fenômenos da criação é o mais interessante para Gerhard von Rad, que comenta:
“ficava claro que aquilo que os mestres consideravam uma chamada procedente da criação,
auto-testemunho da sua ordem, não era algo simplesmente idêntico às obras da criação
propriamente ditas”64 .
Acabo de citar fielmente o texto de Gehrard von Rad, que chama a atenção para a
novidade ou o salto hermenêutico que acontece em Pr 8, 30-31. No entanto, questiono o
termo “ordem” usado para expressar a harmonia do universo captada pelas antigas tradições
culturais e religiosas como sabedoria. O conceito de ordem é ambíguo e não permite
perceber o novo e inusitado, tanto na percepção sapiencial antiga, como na visão moderna,
que compreende o universo como um vasto oceano de energia em constante transformação.
“O universo é um movimento incessante buscando seu equilíbrio, sempre frágil e exposto a
mutações.”65
Talvez tenha sido este salto hermenêutico, este sentido novo, esta cuidadosa
elaboração poética, presente no poema de Pr 8,22-31, que tenha levado alguns autores à
conclusão de que Pr 1-9 tem sua origem nas escolas de sábios. Esta é a opinião de Leo G.
Perdue, para quem “os materiais teológicos e éticos encontrados em Provérbios 1-9
provavelmente derivam de um ou mais sistemas de escolas no início da primeira metade do
período persa: a(s) escola(s) do templo, grêmios de famílias e/ou academias civis. É mais
do que provável que surgiu uma escola do templo no período persa, educando escribas para
auxiliar aos sacerdotes na interpretação da torah escrita em hebraico para a população cada
vez mais dependente do aramaico (a língua comum do período persa), com o fim de
sistematizar e argumentar os casos da lei, para as regulamentações e disputas civis e
religiosas, para administrar e registrar os numerosos recursos do templo, e para formar uma
63
Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p.222-223.
64
Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p.223.
65
Conferir Leonordo Boff, O despertar da águia – o dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade,
Petrópolis: Vozes, 1998, p.66.
28
maior causa teológica e política para legitimar as reclamações do poder e da influência das
classes governantes”66 .
Outra questão que não encontra uma interpretação comum entre os estudiosos é a
respeito da influência estrangeira na sabedoria de Israel. Luis Alonso Schökel, em seu livro
Sapienciales I – Proverbios, comenta: “Desde a publicação dos ‘ensinamentos de
Amenemope’, alguns autores acentuaram a dependência da sabedoria israelita da
estrangeira, o que gerou um verdadeiro problema ainda não suficientemente resolvido.”69 A
sabedoria é mais antiga que Israel, afirma Luis Alonso Schökel. 70 No entanto, a maioria
dos autores e das autoras que aceitam esta influência estrangeira na sabedoria israelita,
limita-se a encontrar aspectos das culturas egípcia e mesopotâmica na tradição sapiencial de
Israel. Faz séculos que Egito e Mesopotâmia foram considerados o principal berço de
nossas culturas ocidentais e o testificam documentos escritos até 3.000 anos a.C. Mas as
descobertas arqueológicas dos últimos anos confirmam definitivamente que o norte da Síria
foi outro grande centro de cultura, cuja capital foi Ebla 71 , afirma Luis Alonso Schökel.
66
Leo G. Perdue, “Wisdom Theology and Social History in Proverbs 1-9”, em Wisdom, You Are My Sister,
p.89.
67
Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, p.35.
68
Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução feminista da história de Israel”, em Feministische
Exgese – Forschungserträge zur Bibel aus der Perspektive von Frauen, p.83-172.
69
Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p. 42.
70
Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p. 40.
71
Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p.41.
29
etnias que já possuíam uma cultura mais avançada que a própria de uns seminômades”72 .
Ao reconhecer a presença de aspectos das antigas tradições de Canaã na sabedoria israelita,
Luis Alonso Schökel formula uma questão: “o pensamento sapiencial ou a sabedoria, pelo
seu caráter internacional, é realmente assimilável pela fé tradicional javista de Israel?”73 .
Gerhard von Rad faz uma afirmação contundente sobre a influência egípcia na
sabedoria de Israel, especialmente no cap. 8 de Provérbios. Ele afirma: “está claro que em
Pr 8,22-29 foram tomados modos estilísticos próprios de determinadas proclamações de
deuses egípcios, e que nos v.30s encontra-se a concepção egípcia de uma divindade que
ama entranhadamente a verdade personificada”74. Mais adiante, o mesmo autor desenvolve
esta afirmação, comparando a Sabedoria de Pr 8 com Maat, a Deusa da verdade e do
amor. 75
Além de afirmar a influência egípcia, Gerhard von Rad amplia a questão, mostrando
que há também outras influências na sabedoria de Israel e, especificamente, nesta unidade
literária formada pelos cap. 1-9 de Provérbios: “é impossível negar influências, tanto das
idéias e imagens egípcias como da poesia amorosa mundana”76 , afirma este autor. Além
desse comentário sobre toda a seção, Gerhard von Rad considera que o texto de Pr 9,1-6,
onde aparece o banquete da sabedoria, “é uma composição dos mestres como imagem de
contraste para defender-se dos usos introduzidos também em Israel pelo culto de Astarte,
deusa do amor”77 .
José Severino Croatto esclarece esta confusão entre as Deusas Astarte e Aserá,
comentando que “até à descoberta dos textos de Ugarit, em 1929 e nos anos seguintes, era
comum negar a existência da Deusa Aserá, fora e dentro da Bíblia, enquanto alguns
pesquisadores a identificavam erroneamente com Astarte. Hoje, o panorama mudou
totalmente. Não só Aserá reaparece como uma Deusa principal nos textos ugaríticos, mas é
72
Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p.44.
73
Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p.78.
74
Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, p.200.
75
Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, p.225.
76
Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, p.217.
77
Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, p.217.
30
identificada claramente na Bíblia, apesar da forte repressão exercida pela religião oficial de
Israel. Além do mais, não faz tanto tempo que a arqueologia nos forneceu material
epigráfico do sul de Israel em que a Deusa Aserá aparece em notável associação com
Javé.”78
Gregorio del Olmo Lete acrescenta que estes usos estabelecidos no templo oficial
“afetam em primeiro lugar à redução e polarização do panteão, no qual assume um papel
decisivo a presença de Aserá no templo de Javé, que foi também o templo de Aserá. Ela é a
única divindade expressamente tirada dali e minuciosamente aniquilada, segundo um
78
José Severino Croatto, “A deusa Ashera no antigo Israel – A contribuição epigráfica da arqueologia”, em
Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana/RIBLA, vol.38, Petrópolis: Vozes, 2001, p.33.
79
Para mais informações sobre este tema, veja Judith Hadley, “Yahweh and ‘his Asherah’”, p.235.
80
Gregorio del Olmo Lete, “Antecedentes y concomitantes del culto hebreo-bíblico, em Los Caminos
inexhauribles de la palabra, Buenos Aires: LUMEN – ISEDET, 2000, p.115.
81
Gregorio del Olmo Lete, “Antecedentes y concomitantes del culto hebreo-bíblico”, p.116.
31
procedimento que recorda a mítica e talvez ritual destruição do Deus Mot pela Deusa Anat
(KTU 1.6 II 30-35; IV 11-19).”82
No desejo de ouvir vozes diferentes sobre este tema, busco ouvir também a opinião
de um judeu, de alguém que não está preocupado com as investigações bíblicas que
fazemos nas academias, mas se mantém fiel às suas tradições e às interpretações místicas
que seu povo faz de Pr 8,22-31. Segundo Adolpho Wasserman, de acordo com as visões
místicas da Cabalá, a sabedoria da torah é representada como modelo ideal da criação.
Todos os universos são descritos como formados segundo seu padrão. Além disso, a
sabedoria era o princípio inerente em todas as primordiais manifestações do criador, no seu
relacionamento providencial com o mundo criado. É isso que significa “o início do seu
caminho” (8,22). Seu caminho é seu modo de se relacionar com seu mundo.”84
82
Gregorio del Olmo Lete, “Antecedentes y concomitantes del culto hebreo-bíblico”, p.117.
83
Haroldo Reimer, “Sobre os início s do monoteísmo no Antigo Israel”, em Fragmentos de Cultura, Goiânia:
UCG/SCG, (v.13, n.5, set./out.), 2003, p.985.
84
Adolpho Wasserman, O livro dos Provérbios – Tradução e compilação dos comentários, São Paulo:
Mayanot, 1998, p.57.
32
buscavam um sentido para o desastre que representou o exílio da Babilônia para a vida e a
teologia de Israel. Ao mesmo tempo, as escolas de sábios buscavam elaborar um
conhecimento que pudesse dar assessoria e legitimidade aos governantes. Tanto a sabedoria
da casa, como a palaciana ou oficial, sempre foram influenciadas pela sabedoria dos povos
vizinhos.
Estas afirmações de diferentes autores são importantes para minha pesquisa, porque
ampliam a visão sobre as raízes da sabedoria em Israel, mostrando sua riq ueza e
diversidade. Uma complexa diversidade que necessita ser situada em seu contexto
histórico, para que se torne um pouco mais compreensível, a partir da comparação do texto
(Pr 1-9), com as tendências da sua época.
Neste item, buscarei elementos para analisar a trama religiosa, cultural e social que
se oculta por trás da unidade literária de Provérbios 1-9. Já que o próprio texto, em seu
gênero poético altamente elaborado, não deixa transparecer informações sobre sua época e
seu contexto, será necessário confrontá-lo com outros textos bíblicos e criar um debate
entre diferentes autores e autoras para situar o momento histórico da sua elaboração. Este
trabalho torna-se necessário, porque em Pr 1; 8 e 9 apresenta-se o símbolo da sabedoria
mulher, com vários aspectos que revelam e, ao mesmo tempo ocultam, sentidos importantes
para uma interpretação deste texto.
85
Sharon H. Ringe, Jesús, la liberación y el jubileo bíblico – Imagines para la ética y la cristología, San José:
Editorial DEI, 1997, p.28.
33
86
Paul Ricoeur, Tiempo y narración – Configuración del tiempo en el relato histórico, Madri: Cristiandad,
1987, p.26.
87
Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, Lo sapiencial, p.21.
88
O autor, certamente, refere-se ao século XX, pois a primeira edição desta obra foi em 1964, em Londres.
89
R. Derek Kidner, Provérbios introdução e comentário, São Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão, 1980, p.25.
34
Derek Kidner faz um comentário sobre a afirmação de que uma característica que
possibilitaria a datação de uma unidade na literatura sapiencial, seria a sua forma maxal
que, quanto mais curta fosse uma unidade literária, mais antiga deveria ser. Esta
característica ajudou a perceber que os capítulos 10ss do livro dos Provérbios eram
anteriores aos cap.1-9. No entanto, em seus estudos, Derek Kidner mostra certa
perplexidade, afirmando que os estudos sobre a literatura egípcia, babilônica e, sobretudo,
sobre a literatura fenícia de Ugarit (Ras Shamra – século catorze a.C.) mostraram que o
conteúdo de Provérbios (seja qual for a data de sua redação final) pertence mais ao mundo
do Israel primitivo do que ao judaísmo pós-exílico. Para este autor, “os capítulos 8-9, até
agora considerados como a parte mais recente do livro, têm maior proximidade do pano de
fundo cananita de Israel, recuando-se, talvez, até à data de Salomão”90 , deixando aberta a
pergunta se os capítulos 1-9 teriam ou não uma história de desenvolvimento interno.
Para Teodorico Ballarini, os capítulos 1-9 de Provérbios seriam de uma data recente
pós-exílica, anterior ao Eclesiástico (Ben Sira 180 a.C.).91 Esta é também a opinião de
Claudia V. Camp, que argumenta ter sido “o livro de Ben Sira construído sobre os estudos
da lei, dos profetas e dos outros escritos, entre os quais estaria o livro dos Provérbios. As
reminiscências que faz Ben Sira do livro dos Provérbios – especialmente seu
desenvolvimento da figura da sabedoria personificada no capítulo 24 – sugerem que
Provérbios teve então um tempo anterior ao trabalho de Ben Sira suficiente para ganhar
reputação e autoridade.”92 E acrescenta: “o desenvolvimento que faz Ben Sira da identidade
da Sabedoria como Tora - desconhecido pelo editor de Provérbios – indica que houve um
espaço de tempo entre estes dois escritos.”93
90
R. Derek Kidner, Proverbios – Introducción y comentario, Buenos Aires: Ediciones Certeza, 1990, p.30.
91
Teodorico Ballarini, Os livros poéticos – Salmos, Jó, Provérbios, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes,
Eclesiáticos, Sabebdoria, Petrópolis: Vozes, 1985, p.193 (Introdução à Bíblia).
92
Claudia V. Camp, Wisdom and famine in the book of Proverbs, Sheffield: Sheffield Press, 1985, 352 p.
(Bible and literature series 11).
93
Claudia V. Camp, Wisdom and famine in the book of Proverbs, p.234.
35
A maioria dos autores situa nosso texto no final do período persa. Segundo Luis
Alonso Schökel, Pr 1-9 e 31,10-31 são as partes mais recentes de Provérbios e foram
compostas pelo próprio editor do livro. Para esse autor, isto é mais claro em relação a Pr 1-
9, sendo que o poema final (31,10-31) poderia ser uma criação própria ou uma adaptação
do editor. Na opinião de Luis Alonso Schökel a data da composição destas últimas seções e
da edição do livro dos Provérbios seria anterior ao livro de Ben Sira (180 a.C.), pois,
segundo parecer geral dos estudiosos, Ben Sira tinha em mãos o livro dos Provérbios e a ele
se referiu (Eclo 47,17). 96 Isto significa que a elaboração de Pr 1-9 e a edição final do livro,
segundo este autor, seriam anteriores a 332 a.C. Esta opinião coincide com a de Martin A.
Klopfenstein, pois este afirma que a maioria dos comentários aponta a época pós-exílica
para a redação de Pr 1-9 “sem descer até à época helenística”97 . No entanto, há opiniões
diferentes: por exemplo, Karen Armstrong indica o século III a.C. como data provável para
a elaboração do nosso texto e a edição final do livro dos Provérbios. 98
Situar Provérbios 1-9 no final da época persa parece ser uma opção bastante lógica,
não somente em nível literário, como foi argumentado acima, mas por questões histó ricas,
culturais e sociais. Parece que a situação de enfraquecimento do império persa pelas
prolongadas guerras contra os gregos e as diferentes tendências internas ao judaísmo
criaram um espaço que permitiu uma revisão do discurso sobre Deus, presente em outros
textos da época e também em Pr 8,22-31.
94
Norman Gottwald, Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica, São Paulo: Edições Paulinas, 1988, p.23.
95
Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, p.21.
96
Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p.105.
97
Martin A. Klopfenstein, “Auferstehung der Göttin in der spätisraelitischen weisheit von Pro 1 -9?”, p.531.
98
Confira Karen Armstrong, Uma História de Deus – Quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e
islamismo, p.77.
36
De um modo geral, esta é a opinião dos autores que situam a elaboração de Pr 1-9
no final do período persa. Há condições sócio-políticas e religiosas que possibilitam esta
elaboração, como afirma Silvia Schroer: “A queda da monarquia e a destruição do templo
de Jerusalém sacudiram maciçamente a ordem patriarcal estabelecida e, neste sentido, as
mulheres tiveram novas chances, porque os padrões sociais tradicionais de funções sociais
e os sistemas da fé já não tiveram autoridade automática. De repente, a religiosidade de
Israel estava ligada fortemente à família e ao clã, como na época pré-estatal.”99
99
Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução feminista da história de Israel”, em Feministissche
Exgese – Forschungserträge zur Bibel aus der Perspektive von Frauen, p.27.
100
Este é um resumo de Nelson Kilpp, Jonas, Petrópolis: Vozes, São Leopoldo: Sinodal, 1994, p.21-22,
(Comentário Bíblico do AT).
37
Com a finalidade de obter uma visão mais aproximada sobre a situação concreta do
povo de Judá, nos séculos 4º e 3º a.C., e uma caracterização das tendências internas que
haveria nessa época, adoto um estudo de Nelson Kilpp. Em seu livro sobre Jonas, este autor
apresenta três tendências que coexistiram em Judá, nessa época. Uma primeira tendência
estava centrada no templo de Jerusalém e era formada pelos que voltaram do exílio. Estes
são considerados pela obra do cronista como o verdadeiro povo de Deus e formam uma
comunidade cúltica. Suas características princip ais são: a) uma celebração correta das festas
e dos ritos sagrados; b) o cumprimento da Lei; c) o combate às influências estrangeiras; d) a
promoção da pureza teológica e racial. Esta tendência conta com o apoio de sacerdotes e do
profeta Malaquias. Uma segunda tendência é profética e encontra-se, sobretudo, na profecia
de Joel, um crítico do templo de Jerusalém e do culto como centro da vida do povo. Joel
critica a expectativa pelo “dia de Javé” e apela à penitência (Jl 2). Esta tendência considera
que somente depois da destruição das nações vizinhas, Israel (Jl 3,4) conhecerá a paz e a
felicidade. A terceira tendência é representada pelos livros de Rute e de Jonas. 101 Um dos
objetivos dessa tendência é incorporar estrangeiros/as no povo de Deus, baseando-se em
uma antiga convicção israelita: “em ti serão abençoados todos os clãs da terra” (Gn 12,3).
101
Segundo Nelson Kilpp, Jonas, p.22, outros livros fazem parte desta tendência. Além de Rute e Jonas,
existe uma clara conexão com Jó, Cântico dos Cânticos e Isaías, entre outros. Minha hipótese é que Pr 1-9
faça parte desta tendência.
38
Esta proposta foi reforçada por alguns círculos proféticos anônimos que conseguiram
exprimir-se, por exemplo, em Is 19,16-24 e em Is 56,1-7.102
Alguns autores, entre eles Hans G. Kippenberg, afirmam que o clã é uma unidade
aberta diferente de linhagem, pois esta “une os membros exclusivamente pela comprovável
descendência genealógica e limita seu acesso aos recursos”103. Sendo assim, uma casa
aberta, pronta a incluir e a partilhar, como aquela construída pela sabedoria mulher (Pr 9,1-
6), seria característica dos pobres e não das classes altas já hierarquizadas da Judéia. O
convite proclamado sobre os montes da cidade, pelas criadas da sabedoria mulher, seria
uma proposta de inclusão, elaborada a partir deste símbolo.
Concluindo, vimos que há poucas vozes contrárias à opinião de que Provérbios 1-9
seja um texto relativamente recente, provavelmente elaborado no final do período persa e,
certamente, anterior a Ben Sira. Uma caracterização das tendências que havia dentro do
povo de Judá, nesta época, não significa que já estou me definindo por alguma delas. Estas
caracterizações ajudam a ver o contexto e visibiliza a situação do povo de Judá, no período
pós-exílico. Mas uma definição pessoal sobre a tendência que deu origem a Pr 1-9 somente
será possível depois de uma análise formal do texto.
A tradição atribuiu o conjunto das coleções que formam o livro dos Provérbios ao
rei Salomão, que segundo 1Rs 5,12 “pronunciou três mil sentenças”. Esta tradição
valorizava em alto grau a sabedoria de Salomão, considerando-a “maior que a de todos os
sábios do Oriente e maior que toda a sabedoria do Egito” (1Rs 5,10). A referência a
102
Nelson Kilpp, Jonas, p.23.
103
Hans G. Kippenberg, Religião e formação de classes na antiga Judéia, São Paulo: Edições Paulinas, 1988,
p.63.
39
Salomão encontra-se na introdução das duas principais coleções do livro (Pr 10,1 e 25,1). O
mesmo fez o editor final, indicando que toda a obra seria de autoria de Salomão (Pr 1,1).
No entanto, depois da publicação de um papiro de número 10474 do Museu Britânico, em
1923, foi possível reconhecer a relação de Pr 22,17-24,22 com “As máximas de
Amenemope”104 . Um dos aspectos que apontou imediatamente para a semelhança foi a
menção aos “trinta capítulos”, que se encontra no texto hebraico (Pr 22,20). Uma referência
mal compreendida na história da interpretação do livro de Provérbios e que, atualmente, é
vista como procedente das Máximas de Amenemope, onde se encontra a expressão:
“considera estes trinta capítulos: eles alegram, eles instruem” 105.
Luis Alonso Schökel e Gerhard von Rad 106 apontam para a diversidade de
procedência e de estilos destes materiais colecionados no livro dos Provérbios. Outros
autores 107 comentam que o livro dos Provérbios possui uma ampla cronologia. Os nomes de
Agur e Lemuel chamam a atenção para a presença da cultura árabe dentro do livro, mesmo
que os sábios indicados com estes nomes não tenham sido personagens reais. Como já
vimos anteriormente, encontra-se nas diferentes coleções a presença da cultura egípcia108 e
o imaginário religioso e social dos povos de Canaã. Como afirma Luis Alonso Schökel, “o
trabalho anônimo dos sábios de Israel, como o de quase todos os autores da antiguidade
semita, foi criador, transformador e compilador”109 dos textos sapienciais. Uma afirmação
que aponta para a diversidade das experiências e dos contextos que geraram a sabedoria dos
Provérbios.
O objeto da minha pesquisa limita-se aos capítulos 1-9 e 31 do livro dos Provérbios,
no entanto, considero importante situar literariamente estas duas seções dentro do conjunto
do livro. Na minha dissertação de mestrado, apresentei uma divisão do livro dos Provérbios
104
Veja Alviero Nicacci, A casa da sabedoria – Vozes e rostos da sabedoria bíblica, p.49.
105
Veja Bíblia de Jerusalém, São Paulo: Paulus, 2000, (9ª edição revista), p.1149.
106
Conferir Luis Alonso Schökel, Proverbios y Eclesiástico – Los libros sagrados, p.132 e Gerhard Von Rad,
La sabiduría en Israel - Los sapienciales, lo sapiencial, p.23, e também Sabedoria e poesia do povo de Deus,
São Paulo: Loyola, publicações Conferência dos Religiosos do Brasil, 1993, 269p. (Tua Palavra é Vida nº 4).
107
Robert Alter e Frank Kermode, Guia literário da Bíblia, São Paulo: UNESP, p.288-289.
108
Isto não significa que apenas neste texto esteja presente a cultura egípcia.
109
Luis Alonso Schökel, Proverbios y Eclesiástico – Los libros sagrados, p.51.
40
com nove seções 110 , anotando outras formas de desenhar a estrutura do livro e justificando
minha postura. 111 A continuidade na pesquisa literária leva -me a encontrar ligações
semânticas e de conteúdo entre as duas últimas seções do livro dos Provérbios (Pr 31,1-9 e
31,10-31), formando desta maneira uma única unidade literária.112 Portanto, encontro, hoje,
oito seções no livro.
Constato também que há uma diferença entre a maneira como o texto massorético e
a versão dos LXX organizaram todo este material. Fiz esta descoberta ao perceber que no
110
Mercedes Lopes, A sabedoria e Yahweh – Um estudo em Provérbios 8, Dissertação de Mestrado, São
Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2004, p.35. Recentemente, Mercedes García
Bachmann apresentou a mesma divisão do livro em nove seções. Veja Mercedes García Bachmann, “Livro
dos Provérbios”, em Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana/RIBLA, vol.52, Escritos, Petrópolis:
Vozes, 2005, p.68 [452]. A mesma divisão encontra-se na Bíblia de Jerusalém, p.1117-1164.
111
Luis Alonso Schökel, em seu livro Provérbios y Eclesiástico, Los libros sagrados, p.23, encontra sete
coleções ou seções no livro dos Provérbios. Para obter esta divisão, ele reúne a sexta coleção: “As palavras de
Agur” (30,1-14) com a sétima: “Provérbios Numéricos” (30,15-33). Também reúne as duas últimas coleções:
“Palavras de Lemuel” (31,1-9) com o poema alfabético da “Mulher de poder” (31,10-31).
112
Apresentarei as justificativas para esta afirmação no capítulo 4 desta tese.
113
Veja Diccionario de la Biblia, Serafín de Ausejo (editor), Barcelona: Herder, 1964, p.1596.
114
Conferir Alviero Niccacci, A casa da sabedoria, p.50s.
115
Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, Lo sapiencial, p.102.
116
No cap. 4 desta tese, apresentarei os argumentos que me permitem fazer esta afirmação de que Pr 1-9 e 31
formam uma moldura para o livro dos Provérbios.
41
TM, o capítulo 31 tem 31 versos, enquanto que na versão dos LXX o mesmo capítulo tem
22 versos. Esta descoberta levou-me a perceber a forma distinta com que ambas as versões
organizam as seções do livro dos Provérbios. Se olharmos a partir do texto massorético117,
veremos que na versão dos LXX118 o material de Provérbios está organizado da seguinte
maneira: a primeira seção (1-9), a segunda (10,1-22,16) e a terceira (22,17-24,22) seguem a
mesma ordem do texto massorético. Na LXX, a quarta seção corresponde ao cap.30,1-14
do TM e a quinta ao cap. 24,23-34 do TM. Já a sexta da LXX contém o material que se
encontra no cap.30,15-33 do TM e a sétima ao cap. 31,1-9 do TM; na oitava seção da LXX
encontram-se os cap. 25-29 e a nona seção da LXX é formada pelo poema da mulher forte
(31,10-31 do TM). Isto significa que até o capítulo 23, a Septuaginta possui a mesma
ordem do texto massorético, introduzindo depois de 24,22 o cap.30,1-14. Segue com o
capítulo 24,23-34 e introduz o cap. 30,15-33, seguido por 31,1-9. Só então apresenta a
seção 25-29 e encerra com 31,10-31.
Ao fazer um comentário sobre a forma diferente com que a versão dos LXX
organiza o material do livro dos Provérbios, Luis Alonso Schökel se pergunta: “Qual seria a
ordem original destas seções? Não sabemos e nunca chegaremos a sabê-lo”, comenta este
autor. 119 Buscar as causas da diferente organização do livro dos Provérbios pelo TM e pela
Septuaginta não é o objeto da minha pesquisa. Apenas constato que existe esta diferença
para exemplificar um aspecto da problemática história de interpretação destes materiais que
formam o livro dos Provérbios.
117
Biblia Hebraica Stuttgartensia, Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1987, 1574p.
118
Biblia Septuaginta id est Vetus Testamentum graece iuxta LXX interpretes, editada por Alfred Ralhlfs,
New York: American Bible Society, 1950, vol. 2, 1184p. Para uma comparação entre TM e a versão dos LXX
veja Johann Cook, The Septuagint of Proverbs – Jewish and/or Hellenistic proverbs? - Concerning the
Hellenistic coloring of LXX Proverbs, Leiden: Brill, 1997, 391p. (Supplements to Vetus Testamentum).
119
Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto, Sapienciales y Proverbios,
p.105.
42
grande liberdade do verso hebraico, mas pela amplitude dos assuntos tratados no gênero
maxal.
A primeira seção do livro dos Provérbios (1-9), junto com a última (31,1-31), ao
mesmo tempo em que formam a moldura do livro e lhe dão um novo enfoque, mostram o
longo processo da sua redação. Enquanto no interior do livro temos materiais muito
antigos, já que as máximas de Amenemope (Pr 22,17-24) datam do século 13 ou 12 a.C. e a
coleção reunida pelos funcionários de Ezequias (25-29) data, provavelmente, do ano 700
a.C. A redação final do livro situa -se no final do período persa, conclusão a que se chega
através de uma análise cuidadosa da forma e do conteúdo dos poemas destas duas coleções:
a primeira (1-9) e a última (31,1-31), relacionando-as com as condições sociológicas,
políticas, culturais e religiosas do povo, no pós-exílio.
120
Silvia Schroer. “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.153.
43
Mercedes Navarro Puerto faz também uma relação antitética entre a mulher de Pr 31
e a mulher estrangeira de Pr 7, chamando a atenção para o julgamento desvalorizador da
graça como “enganadora” e da formosura como “vã”, opondo-as à mulher que teme o
Senhor que é elevada pelo êxito do seu trabalho e louvada por suas obras. 123
121
Mercedes Navarro Puerto, “Cuerpos invisibles, cuerpos necesarios. Cuerpos de mujeres en la Biblia –
exégesis y psicología”, em Para comprender el cuerpo de la mujer – Una perspectiva bíblica y ética, Estella:
Verbo Divino, 1996, p.167.
122
Mercedes Navarro Puerto, “Cuerpos invisibles, cuerpos necesarios. Cuerpos de mujeres en la Biblia –
exégesis y psicología”, p.167.
123
Mercedes Navarro Puerto, “Cuerpos invisibles, cuerpos necesarios. Cuerpos de mujeres en la Biblia –
exégesis y psicología”, p.168.
44
Uma investigação mais profunda sobre esta mulher de Pr 9,13-18 teria que ser feita
a partir de perguntas que levem a uma comparação entre os diferentes termos usados para
referir-se à mulher da sombra – a estranha ou estrangeira. Este é o caminho percorrido por
Judith McKinlay. Ela observa que “a contraparte da sabedoria, a mulher mortal que é
apresentada no duplo poema de Provérbios 9, parece ser evitada também em outros poemas
e instruções”125 e se pergunta se esta figura é sempre única e a mesma, já que existem
variações quanto à terminologia utilizada, em Pr 1-9, para refe rir-se à mulher que conduz à
morte.
Embora este tema da mulher insensata não seja diretamente o objeto da minha
pesquisa, ele tem a ver com a mulher da vida real e com o contexto de Pr 1-9. Portanto,
estarei atenta a este tema durante meu estudo e anotarei as observações que considerar
importantes para uma compreensão mais aproximada da situação da mulher que está por
trás destes textos.
124
Ernesto Lussier, Libros de los Proverbios y del Eclesiástico – Introducción y comentario, p.28.
125
Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , Sheffield:
Sheffield Academic Press, 1996, p.71, (Journal for the Study of the Old Testament 4).
45
McKinlay: “O ponto aqui é que a metáfora da Sabedoria encontra seu lugar ao lado de
muitas outras metáforas antropomórficas usadas para falar sobre Deus. A questão de
interesse para este estudo não é tanto por que os escritos bíblicos falam metaforicamente da
sabedoria de Javé em termos humanos, mas por que eles deveriam falar em termos da
mulher, especialmente tendo em conta o fato de que a maioria das imagens bíblicas
antropomórficas para a divindade é masculina ou de orientação masculina. A questão
associada é como a mulher é entendida. Qual foi a associação com a mulher que trouxe tal
construção semântica, na cultura israelita, e que visão representava?”126 .
126
Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , p.42.
127
Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.154
128
Silvia Schroer. “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.155.
46
Conclusão
primeira (Pr 1-9) e da última (Pr 31) seções do livro. Os argumentos para esta datação são
de cunho literário e histórico social. Um argumento literário está relacionado ao livro de
Ben Sira (190 a.C.). Este autor devia ter em mãos o livro dos Provérbios, pois a ele se
referiu (Eclo 47,17) e também procurou corrigir aspectos que este livro apresentava sobre a
sabedoria mulher (Eclo 24). Portanto, no início do século 2 a.C., o livro dos Provérbios já
deveria ter uma difusão suficiente para poder causar esta reação de Ben Sira. Um
argumento histórico social para a datação da primeira e última seções do livro e sua edição
no final do período persa, relaciona-se à sua situação de enfraquecimento, ocasionada pelas
prolongadas guerras contra os gregos e as sublevações de algumas satrapias. Este
enfraquecimento do império, somado às divisões internas em Judá, possibilitaram uma
nova forma de organização social, onde a mulher passa a ter um papel mais relevante.
Desde a queda da monarquia e a destruição do templo (587 a.C.), houve uma grande
mudança nos padrões sociais e sistemas de fé, em Judá. A casa passa a ser o verdadeiro
espaço de organização e decisão sobre os caminhos para o futuro do povo. Neste espaço, as
mulheres passam a exercer um papel muito importante na re-organização da vida e do
tecido social. Uma cultura subterrânea de mulheres, associada a alguns círculos de profetas
anônimos, passa a produzir materiais inéditos, entre eles, os belos poemas da sabedoria
mulher.
129
Como as “máximas de Amenemope”.
130
As citações de Agur (Pr 30,1) e Lemuel (Pr 31,1) podem indicar esta relação com a cultura árabe, embora
estes nomes não se refiram a personagens reais. Há uma dificuldade de compreensão desses nomes na história
de interpretação do livro dos Provérbios, sobretudo nas traduções para a Septuaginta e a Vulgata. Veja Bíblia
de Jerusalém, p.1160-1163.
49
Capítulo 2
A sabedoria mulher em Provérbios 1; 8 e 9
131
O termo que traduzi no singular “sabedoria” está no plural tAmk.x'. hokmot. No entanto, os verbos que
se relacionam com ela estão no singular. Provavelmente, este é um plural de majestade (conferir Paul Jüon,
Grammaire de L’Hébreu Biblique, Roma: Pontifício Instituto Bíblico (edição corrigida), 1965, p.88 e 212.
hokmot é considerado um plural abstrato de hokmah por M. Sæbø, hk m, Diccionario teológico manual del
Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westermann, Madri: Ediciones Cristiandad, vol. 1, 1978,
col.776-789. “Este é um plural abstrato e encontra-se também em Pr 1,20; 9,1; 24,7”, confiram em Emil
Kautzsch, Gesenius’ Hebrew Gramar, Oxford: Claredon Press, 1910, p.398, nota 2.
132
O verbo hN'roT' taronah está no qal imperfeito, feminino: “ela grita de alegria”. Observo que este
verbo hN'ri rinah, neste tempo e modo hN'roT' taronah, encontra -se também em Pr 8,3.
133
A mesma expressão varoB. bero’x encontra-se em Pr 8,2. Aqui, a frase poderia ficar assim: “no ponto
de partida (das ruas) barulhentas ela grita”.
134
Este termo tAYmih homiot, nesta forma, aparece somente aqui.
135
Literalmente: “seus dizeres, diz” rmeaot h''yr,m'a; ’mareha t’omer.
52
136
A raiz ytiP, pety aparece duas vezes no v.22. As duas vezes como nome: “ingênuos” e “ingenuidade”.
Traduzi ~yIt'P. petayim por “ingênuos”, embora Luis Alonso Schökel, Bíblia do peregrino, São Paulo:
Paulus, p.1414, tenha traduzido por “inexperientes” e João Ferreira de Almeida tenha traduzido ~yIt'P.
petayim como “estúpidos” (veja Bíblia Sagrada, versão revisada da tradução de João Ferreira de Almeida,
Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 3ª impressão, 1991, p.546). Segundo M. Sæbø, há uma
discussão sobre a raiz hebraica ytp pth. Questiona-se se ela deve ser relacionada ao termo aramaico pty, que
tem o sentido de “ser amplo”. Caso as duas raízes sejam aceitas, temos que considerar o pth hifil “alargar”,
em Gn 9,27. Há, neste texto hebraico, um jogo com as palavras yapet Jafé e yapet “que se dilate”. Este jogo
de palavras mostra que pode haver um sentido mais amplo para os destinatários das palavras da sabedoria, já
que o substantivo pety é comum em Provérbios e refere-se a pessoa jovem, inexperiente, precipitada, que se
deixa influenciar com facilidade, mas, também se aplica a quem necessita aprender e está em condições de
fazê -lo. Segundo M. Sæbø, “entre os conceitos sapienciais para ‘néscio’, no AT, este é o mais suave”.
Confira M. Sæbø, pth, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e
Claus Westermann, vol.2, col.625-627.
137
A expressão “derramarei para vós meu espírito” yxiWr ~k,l' H['yBia ’abi‘ah kalem ruhi encontra-
se em textos proféticos, como Is 59,21; Ez 36,27; 37,14; 39,29 entre outros, e especialmente em Jl 3,1-2, onde
a mesma expressão está repetida 2 vezes. Chama a atenção que o sujeito deste verbo seja a sabedoria mulher.
Ela promete “derramar seu espírito” a quem acolher sua instrução.
138
Segundo G. Gerleman, o substativo rb;D' dabar tem um significado mais amplo que o verbo, pois este
designa não somente a “palavra”, isto é, o conceito lingüístico portador de um significado, mas também o seu
conteúdo. Veja G. Gerleman, em dabar, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por
Ernst Jenni e Claus Westerma nnn, vol.1, p.614-627. Luis Alonso Schökel indica que rb;D' dabar significa
primeiro “palavra” (o ato de falar e o seu conteúdo), passando depois a significar também a ação e o modo de
realizá -la. Confira Dicionário bíblico hebraico-português de Luis Alonso Schökel, São Paulo: Paulus, 2ª
edição, 1997, p.147-149. Chama a minha atenção que a sabedoria seja sujeito desta promessa de dar a
conhecer suas palavras. Embora clame pelas ruas como profeta, ela é radicalmente diferente, pois os profetas
dão a conhecer a palavra de Javé (Is 20,2; Jr 2,1.4; Ez 3,16; 7,1 e muitos outros textos), enquanto a sabedoria
dá a conhecer sua própria palavra.
139
Veja acima nota nº130 sobre hokmot como plural majestático.
53
que levam à vida. Sua voz se faz ouvir em meio dos “barulhos” tAYmiho homiot140 do
burburinho da cidade.
Estes versos fazem parte do discurso da sabedoria mulher, caracterizado pelo seu
vocabulário sapiencial e tom ou estilo profético. 141 O campo semântico está formado por
termos como: “sabedoria” hokmah, “conhecimento” da‘at e “repreensão” tokahat, que se
encontram em oposição a “ingênuos” peta’yim, “zombadores” e “néscios” kesilim, termos
próprios da literatura sapiencial. Ao mesmo tempo, o estilo profético da sabedoria mulher
leva-a a usar uma terminologia que demonstra sua autoridade, como a expressão: “até
Portanto, uma das faces da sabedoria mulher já transparece no estilo profético deste
poema (1,20-33). Ela resgata a tradição israelita de mulheres profetisas, como Hulda, que
certamente tinha muita autoridade, pois foi consultada pelos oficiais do rei Josias quanto à
autenticidade das palavras do livro da lei, encontrado na reforma do templo de Jerusalém
(2Rs 22). Contudo, Judith E. Mckinlay considera que definir a sabedoria mulher como
profetisa pode restringi- la e confiná- la indevidamente, pois sua exortação é tipicamente
sapiencial142 e Phyllis Trible chama a atenção para a cuidadosa elaboração deste discurso,
com seu jogo de palavras e sua estrutura quiástica. 143
A impressão inicial que temos ao entrar em contacto com este texto é a de que Pr
1,20-33 formaria uma unidade, pois faz parte de um mesmo discurso. No entanto, uma
análise mais detalhada do texto, mostra que há uma distinção entre Pr 1,20-23 e os versos
que seguem (v.24-31). Enquanto nos v.20-23 os verbos estão no imperfeito e se oferece a
possibilidade de conversão a quem acolhe a exortação da sabedoria mulher, nos v.24-31 os
140
Este termo, cuja raiz é hmh hmh , possui uma forma rara neste verso, talvez única no Primeiro
Testamento.
141
Veja Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, p.164.
142
Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , p.68-69.
143
Phyllis Trible, “Wisdom Builds a poem – A Architecture of Proverbs 1, 20-23”, em Journal of Biblical
Literature, Cambridge: Journal of Biblical Literature, vol. 94, nº4, dezembro de 1975, p.51.
54
verbos estão no perfeito, denunciando uma culpa que exige castigo, sem nenhuma
possibilidade de apelação. Já o v.32 retoma as palavras chaves dos v.22-23 e faz o
oferecimento de uma vida tranqüila e sem nenhum temor a quem seguir os conselhos da
sabedoria. Segundo opinião de Roland Murphy 144, os v.20-23 e 32-33 formam uma
moldura para os v.24-31. Se acolhermos esta sugestão, podemos encontrar a seguinte
estrutura:
144
“Wisdom’s Song – Proverbs 1,20-33”, em The Catholic Biblical Quarterly, Washington: The Catholic
Biblical Quarterly, vol. 48, 1986, p.456-460, (Monograph Series).
145
Voltarei a este final da 1ª seção do livro dos Provérbios, quando analisar o cap. 9.
55
Entre estas quatro frases não há antítese. A tensão se dá pelo acúmulo de ve rbos que
indicam a ação de comunicar com força uma mensagem: a sabedoria mulher “clama”,
“levanta a voz”, “grita”, “anuncia”. Há, também, um acúmulo de lugares, para indicar que
ela se comunica com autoridade em lugares públicos e movimentados.
Para trans mitir a descoberta que fez sobre a força e o poder da mulher sábia, o autor
usou não somente a linguagem poética, mas buscou o recurso da metáfora ou do símbolo da
sabedoria mulher como uma ótica. A metáfora é como um convite ao leitor ou à leitora para
olhar a partir de um determinado ponto de vista e ver o que o autor descobriu. Reunindo
aspectos da vida concreta das mulheres e de símbolos do imaginário religioso do povo de
Israel, criou-se a instigante metáfora da sabedoria mulher. Segundo Marc Girard, “na
metáfora, um ou alguns aspectos fundamentam um nexo parcial entre duas realidades”146.
A linguagem simbólica é apropriada para transmitir mensagem religiosa.
146
Marc Girard, Os símbolos na Bíblia, São Paulo: Paulus, 1997, p.51.
56
147
Michel Meslin, A experiência humana do divino – Fundamentos de uma antropologia religiosa,
Petrópolis: Vozes, 1992, p.169.
148
Gilber Durand, La imaginación simbólica, Buenos Aires: Amorrortu, 1971, p.97.
149
No item seguinte, desenvolverei um estudo sobre este contexto.
57
Termos muito comuns na literatura sapiencial estão repetidos aqui, como nomes:
“ingênuos”/“ingenuidade”, “zombadores”/“zombaria” e “néscios” estão em oposição a
“conhecimento”, formando uma pergunta retórica.
Para descobrir este novo significado, temos que perguntar- nos se profetas derramam
seu próprio espírito ou se é Javé quem tem o espírito para derramá- lo sobre quem escolhe e
envia? Outra maneira de formular esta pergunta é: se a sabedoria promete derramar seu
150
Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.68.
59
espírito, não estará, aqui, representando o próprio Javé? Em Is 32,15 há uma expectativa de
que seja derramado “o espírito que vem do alto”. Esta é uma expectativa confirmada pela
profecia de Joel (3,1-5). É o espírito de Javé que encheu Otoniel de força para libertar seu
povo (Jz 3,10). Consciente de que possui o espírito de Javé, Isaías assume a missão de
anunciar a boa nova aos pobres (Is 61,1-2). Portanto, o texto de Pr 1,20-23 apresenta
aspectos importantes para a identificação desta figura da sabedoria mulher. Ela é profetisa
ou fala publicamente como profetisa, questionando e indicando os caminhos que conduzem
à vida. Ao mesmo tempo, sabedoria mulher representa o próprio Javé, pois tem o espírito e
promete derramá-lo a quem se voltar a ela e escutar sua instrução. Ela promete, ainda,
“comunicar sua palavra” (v.23c) a quem se voltar à sua instrução (v.23a).
estrutura. Em 2.2.4, examinarei os termos que formam o campo semântico do nosso texto e
em 2.2.5 identificarei os gêneros literários usados na sua composição. No item 2.2.6,
retomarei os traços principais que desenham o rosto da sabedoria mulher em Pr 8.
151
O verbo arq qr’ no qal imperfeito, foi traduzido como “clama”, por João Ferreira de Almeida, tendo
também os significados de “chamar”, “convocar”, “berrar”, “proclamar”, etc. Como a frase inicia um convite,
prefiro traduzir por “chamar”, porque este verbo já denota um desejo de relação. Os outros sentidos
expressam a ação de comunicar algo, porém de forma impessoal. A raíz arq é muito importante. Ela inicia
toda a perícope que estou analisando, fazendo irromper com força o movimento da sabedoria em direção aos
seres humanos.
152
Esta palavra tem a ver com o campo semântico desta perícope, aparecendo duas vezes no v. 20. Aqui, no
v.2, a palavra “sendas” vem relacionada à casa: “casa das sendas” tAbytin. tyBe bet netibot no estado
construto, indicando que as duas palavras são inseparáveis. A Sabedoria se coloca na “casa das sendas”. É a
partir daí que ela se dirige aos seus interlocutores. Voltarei sobre este tema ao trabalhar o campo semântico do
texto. Outro termo que significa “sendas” é xr;ao ’orah, que está no v.20 e tem o sentido de “sendas”,
“caminho”, “vereda”. Segundo o Dicionário hebraico-português & aramaico-português, elaborado por
Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann e Rudi Zimmer, São Leopoldo/ Petrópolis:
Sinodal e Vozes, 1998, p.18, inclusive pode designar “menstruação” e também pode ser usada para indicar o
comportamento das mulheres ou sua maneira de ser.
153
Mantenho o sentido literal da expressão: “em direção à mão das portas” ~yrI['v.-dy:l. le-yad xe‘arim.
Este termo pode representar o batente ou marco das portas das casas, mas pode também indicar a porta da
cidade, lugar onde se reúnem os anciãos: as autoridades que têm poder de julgar. Na exegese, pretendo
relacionar este termo com outros, dentro desta mesma perícope, para encontrar os seus destinatários.
154
A forma verbal hN"roT' taronah está no qal imperfeito, feminino: “ela grita de alegria”. Aparece aqui
um sentimento ou ambiente de alegria muito importante para a apresentação deste símbolo.
155
Embora em alguns vocativos o texto determine com muita clareza quais são os interlocutores da sabedoria
mulher, aqui se ampliam os destinatários da sua fala, mostrando que ela se dirige à humanidade: “e minha voz
61
para filhos de Adão” ~d'a' yneB.-la, yliªAqw> veqoli ’el-bene ’adam um termo que tem um sentido
mais genérico.
156
~yIat'p. peta’yim é um substantivo, plural, masculino, que indica jovem, ingênuo, inexperiente. O verbo
que corresponde à raiz htp pth pode indicar tanto “deixar-se seduzir”, no nifal, como “enganar”, “seduzir”,
no particípio. Dentro do campo semântico da perícope, este substantivo não deveria ser traduzido por
“ingênuos”, aqueles que se deixam seduzir ou enganar, pois daria a impressão de que os interlocutores da
sabedoria seriam apenas jovens inexperientes. Como a sabedoria mulher dirige-se a todas as pessoas, prefiro
traduzir por “ ignorantes”, ampliando o seu público.
157
Derivada de lsk ksl esta é uma palavra muito comum na literatura sapiencial e pode conter um matiz
ético, segundo o Dicionário bíblico hebraico-português de Luis Alonso Schökel, p.322.
158
A palavra dygin' nagid tem o sentido de “chefe”, “líder”, “soberando”, “funcionário graduado”, “chefe
de família”, pessoa investida de autoridade civil, militar ou religiosa. A forma como aparece neste texto,
enlaçada com o yKi ki lhe dá um novo sentido. Por isso, a Bíblia de Jerusalém traduziu ~ydiygin.-yKi
k i-negidim por “coisas importantes” e a Bíblia Sagrada, versão revisada de João Ferreira de Almeida, por
“coisas excelentes”.
158 [v;r, rexa‘ pode ser traduzida por “maldade”, “injustiça”, “iniqüidade” e parece indicar o antônimo de
justiça. A versão revisada da tradução de João Ferreira de Almeida traduz por “impiedade” e a Bíblia de
Jerusalém traduz a frase inteira por: “e meus lábios aborrecem o mal”. Mas o v.8 completa o sentido do v 7,
pois apresenta uma defesa da sabedoria mulher: dizer que há abominação em seus lábios é uma injustiça,
porque “na justiça todos os dizeres da minha boca, nada neles torcido ou pervertido” (v. 8).
160
Traduzi a palavra ~yxikon. nek ohim por “justos”, embora a Bíblia de Jerusalém a tenha traduzido por
“leais”, e João Ferreira de Almeida e Reina y Valera a tenham traduzido por “retas”.
161
A palavra “correção” rs'Wm musar aparece na primeira parte do capítulo 8 (v.10) e também no final
(v.33), precedida pelo verbo escutar, no imperativo: rs'Wm W[m.v i xime‘u musar, o que demonstra que
existe uma relação entre a primeira e a última parte deste capítulo. Na primeira parte (8,10), a palavra
“correção” aparece precedida de um imperativo e sufixada: yris'Wm musari, para mostrar que a sabedoria
mulher está oferecendo com autoridade sua correção. Ela diz: “recebei minha correção, porque ela vale mais
que o dinheiro e os corais”. Na segunda parte (8,33), afirma que é “feliz quem escuta a correção”.
62
162
A expressão “mais que o ouro”#Wrx'me maharuz que aparece no v.10, está repetida duas vezes no
v.19, com um sentido enfático: “mais que o ouro e mais que o ouro puro” zP'miW #Wrx'm. maharuz
umipaz. Além disso, nos dois versos ela vem seguida do verbo rhb bhr, no nifal rx'b.ni nibehar, que
significa “escolhido”. Desta maneira, a frase do v.10b “o conhecimento vale mais do que o ouro puro e
escolhido” possui um sentido enfático muito forte. Esta expressão fecha a perícope que acabo de traduzir e a
enlaça com a que vem a seguir. Percebo que aqui se encontra uma quebra do texto. Voltarei sobre este aspecto
na delimitação. Outra ligação aparece na última expressão do v.11: “não se comparam com ela” Hb'-
Wwv.yI aoloooooo l’o yixvu-bah. Essa expressão termina com o sufixo pronominal “ela”, que gera
um ambiente propício para a auto revelação da sabedoria, cuja perícope será iniciada no v. seguinte.
163
Esta perícope tem uma estrutura concêntrica, formada pela repetição de hm'k.x' hokmah no v. 1 e no
v.11.
164
O Dicionário hebraico-português & aramaico-português, elaborado por Nelson Kirst, Nelson Kilpp,
Milton Schwantes, Acir Raymann e Rudi Zimmer traduz hm'r>[' ‘armah no qal imperfeito, como
“astúcia”, “cautela”, “sagacidade”, p.188. No v.5 já traduzi hm'r>[' ‘armah como “sagacidade”, por
entender que esta qualidade tem o sentido de “ser desperta e atenta, com uma percepção rápida do ambiente
ao redor”, embora João Ferreira de Almeida tenha traduzido hm'r>[' ‘armah como “prudência”. Prefiro o
sentido de “sagacidade”, tanto em 8,5, como em 8,12.
165
O termo anf sn’ aparece duas vezes neste verso. Na primeira vez como infinitivo absoluto tanOf. seno’t
“O temor de Javé (faz) detestar o mal” e na segunda vez com sufixo da 1ª pessoa ytianEf' xane’ti,
mostrando a postura ética da sabedoria. Preferi traduzir por “detestar” em vez de “odiar” , por entender que o
verbo “detestar” expressa também uma ação e não somente um sentimento.
166
“Justiça” qd,c, zedek é uma característica da sabedoria. O sentido de justiça aparece em Pr 8,8.
9.15.16.20, através de duas expressões que se correspondem: xr;aoo ’orah e tAbytin. netibot mostrando
a estrutura poética do texto.
167
A expressão “todos que julgam justiça” qd,c, yjep.vo-lK' kol-xopte zedeq está entrelaçada. As três
palavras são inseparáveis e fazem a diferença entre os governantes. Não são todos os príncipes e nobres que
estão ligados à sabedoria, mas somente aqueles que julgam com justiça. O termo “todos” lK' kol inclui na
63
relação com a Sabedoria todas as pessoas que governam, com a condição de que o façam baseados na justiça
e no direito.
168
Segundo o Dicionário bíblico hebraico-português de Luis Alonso Sökel, p.30, a palavra bh'ae ’hab está
relacionada ao campo sexual ou conjugal. Tomando este termo em um sentido relacional mais amplo, a frase:
“eu amo aos que me amam” bh'ae h'yb,h]ao ynIa ] ’ani ’ohabeha ’ehab está afirmando que a pessoa
que se sente atraída pela sabedoria, que se enamora dela, é correspondida em seu amor.
169
Esta afirmação: “e madrugando por mim me encontrarão” possui uma relação antitética com a frase de Pr
1,28 “vão me procurar e não me encontrarão” Ynin.aUc'm.yi alow. ynin.rux;v;y. yexaharuneni
velo’ yimeza’uneni. Esta antítese mostra o processo de acohida e inclusão no relacionamento com a sabedoria.
170
A comparação entre os ensinamentos da sabedoria e o “ouro” aparece duas vezes, uma aqui, no v.19, e a
outra no v.10.
171
O v.20 é iniciado com o sintagma: “na senda de justiça” hq'd'c.-xr;aoB. be-’orah-zedaqah e
concluído com outro semelhante: “sendas de direito” jP'v.mi tAbytin. netibot mixpat. É interessante
observar a repetição da palavra sendas, embora escrita com formas diferentes. As duas carregadas de sentido
figurado xr;ao ’orah, que tem o sentido de “sendas”, “caminho”, “vereda”, tamb ém pode ser usada para
indicar o comportamento das mulheres ou sua maneira de ser e tAbytin. netibot que tem o sentido de
“procedimento”, “conduta”, sobretudo nos textos sapienciais. Relacionando com o v.2, onde a sabedoria se
e
coloca na casa das sendas hb'C;ni tAbytin> tyB bet netibot nizabah, encontramos um aspecto
significativo do campo semântico do texto, que indica qual é a identidade da sabedoria mulher, relacionando
justiça, comportamento ético e casa.
172
O sintagma lyxin>h;l. le-hanehil, cuja raiz é lxn nhl, tem o sentido de “propriedade”, “posse”,
“quinhão”, “partilha”, segundo o Dicionário hebraico-português & aramaico-português, elaborado por
Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann e Rudi Zimmer, p.154. Como o verbo
lyxin>h;l. le-hanehil está no hifil e vem precedido do -l lê-, “para fazer que tenham partilha” é uma
tradução literal e ao mesmo tempo conseqüente com o resto do texto.
173
O sentido do verbo hnq qnh tem sido muito discutido pelos estudiosos. Ele aparece 66 vezes na Bíblia
Hebraica e somente em 6 vezes traz o sentido de ato criativo. Esta me parece ser uma delas. Justificarei esta
escolha na exegese.
64
174
O verbo yTik.S;n I nisaketi está no nifal, com sufixo de 1ª pessoa. Sua raiz é $sn, cujo significado tem
a ver com o culto e pode ter o sentido de “fazer uma libação sagrada”. Uma tradução possível seria: “desde o
princípio fui cultuada”.
175
A expressão “fui gerada” yTil.l'Ax holalti aparece repetida nos vezes, nos v.24 e 25. Esta repetição
pode ser, apenas, um recurso poético.
176
O termo yDeB;k.nI nikbare é corrigido por alguns autores por nbky ykbn.
177
Mantenho a tradução literal de lbeTe tArp.[' ‘aperot tebel como “pó do mundo”, embora a Bíblia de
Jerusalém tenha traduzido por “primeiros elementos do mundo”. A versão revisada de João Ferreira de
Almeida é mais literal e traz: “nem o princípio do pó do mundo”. Esta opção tem a ver com a linguagem
poética e a cosmovisão do texto.
178
Outra expressão da cosmovisão da época é “círculo sobre a face do abismo” ~Aht. ynEP.-l[; gWx
hug ‘al-pene tehom. Busco traduzir estas formas literárias como aparecem no original hebraico para oferecer
uma visão aproximada da cosmovisão judaica da época e, também, da beleza desta poesia.
179
A expressão “ao seu lado”, ou “ao lado dele” Alc.a, ’ezlo, indica aqui uma posição de igualdade e
parceria que se encontra também no livro da Sabedoria (Sb 9,4). A Bíblia de Jerusalém traduz esta expressão
como “estava junto com ele” e a versão revisada da Almeida, a Bíblia Pastoral e a Reina & Valera traduzem
como “estava com ele”.
180
O termo !Ama' ’amon tem o sentido “artesão”, “artista”, “artífice” e isto dá à sabedoria um status de
parceira de Javé na criação. Por isso, alguns autores corrigem o texto por ’amun, que significa “favorito”,
“predileto”. Entrarei nesta questão na exegese do texto.
65
O cap.8 do livro dos Provérbios possui uma coesão interna formada pela metáfora
da sabedoria mulher que se auto-revela, chamando para um encontro com ela e oferecendo
seus ensinamentos e dons. Há uma evolução desta figura, chegando a ser apresentada como
imagem de Deus nos v.30-31. A estrutura deste capítulo é formada por quatro unidades ao
mesmo tempo distintas e entrelaçadas:
181
A repetição de tq,x,f;m. mesaheqet no início do verso seguinte parece querer enlaçar as últimas frases.
Ao mesmo tempo mantém o ambiente de alegria e gozo que perpassa o texto. Voltarei a este aspecto na
delimitação do texto e na pesquisa sobre seu campo semântico.
182
Literalmente o texto traz “filhos de Adão”. Entendo esta expressão no sentido genérico e a traduzo aqui
como “humanidade”. Embora no v.4 eu tenha deixado este termo no seu sentido literal “filhos de Adão”,
sempre o estou interpretando como humanidade, no sentido da universalidade cósmica e humana que o texto
apresenta.
183
Há uma quebra muito clara no texto. Mudam a linguagem e o tom poético do discurso para uma chamada
exortativa. Mas vou traduzir até o final, depois delimitarei o texto e me deterei nas partes mais importantes
para fazer a exegese.
66
hm'k.x' hokmah no v.1 e no v.11. A repetição da palavra justiça qd,eece zedek, nos v.8 e
9, faz o enlace da primeira unidade (v.1-11) com a segunda (v.12-21), pois a palavra justiça
está repetida nos v.15, 16 e 20 da segunda unidade. Outro enlace entre a primeira e a
segunda unidades encontramos no termo “veredas” tAbytin. netibot que está no v.2 (na
casa das veredas coloca-se a sabedoria) e se enlaça com a expressão “na senda de justiça”
hq'd'c.-xr;aoB. be-’orah zedakah que inicia o v.20, fechando-o com outra expressão
a) xr;ao ’orah tem o sentido de “vereda”, “caminho” ou “senda”, também pode ser
usada para indicar o comportamento das mulheres ou sua maneira de ser. 184
184
Confira Dicionário hebraico-português & aramaico-português, elaborado por Nelson Kirst, Nelson Kilpp,
Milton Schwantes, Acir Raymann e Rudi Zimmer, p.18.
185
Confira Dicionário hebraico-português & aramaico-português, elaborado por Nelson Kirst, Nelson Kilpp,
Milton Schwantes, Acir Raymann e Rudi Zimmer, p.163.
67
A segunda unidade, ao mesmo tempo em que está enlaçada com a primeira, tem sua
estrutura própria definida e iniciada com o pronome pessoal ynIa ] ’ani que a caracteriza,
pois este poema é todo elaborado em primeira pessoa. Podemos dividir estes dez versos em
duas estrofes de cinco versos cada uma: os v.12-16 exaltam os dons da sabedoria: “temor
de Javé”, “conselho”, “bom senso”, “poder”, “justiça”187, ao mesmo tempo em que a
apresenta condenando o “orgulho, a arrogância e as perversidades”. Os v.17-21 insistem na
relação pessoal com a sabedoria e mostram as conseqüências desta relação em riquezas e
glórias. A teologia subjacente a estes versos está muito próxima à teologia da retribuição,
bastante desenvolvida por Eclesiástico 4,11-19.
186
Confira Dicionário bíblico hebraico-português de Luis Alonso Sökel, p.456.
187
Estes dons lembram o poema messiânico de Is 11.
68
repetição da expressão “desde”, formado pela preposição inicial - m m-, repetida 8 veze s,
com algumas variações entre os v.22-26. É interessante observar que esta expressão
“desde” introduz a criação de elementos da natureza, como: “terra”, “abismos”,
“mananciais de água”, “montanhas” e “colinas” voltando ao elemento “terra”, no v.26. Esta
repetição forma uma estrutura circular nesta sub-unidade (v.22-26). A preposição “quando”
-b b- introduz a segunda estrofe (v.27-31), com a criação do “céu e do círculo sobre a face
do abismo” (v.27), “as nuvens em cima e as fontes do abismo” (v.28) o “mar e os
fundamentos da terra” (v.29). A repetição de “abismo” no final do v.29 forma um paralelo e
mantém o ritmo da poesia, fechando novamente a estrofe com a palavra “terra”, e
introduzindo a frase principal de todo o capítulo: “e era junto dele artífice” (v.30). O verso
“universo” lbete tebel (v.31). A opção que fizemos ao traduzir mesaheqet por dançava
parece ser ainda mais coerente com todo o campo semântico do texto. Ao mesmo tempo em
que a expressão “dançava” mostra o ambiente de alegria gerado pela ação criadora e
artística da sabedoria, deixa ver também um ambiente litúrgico, de gozo e de prazer, onde o
corpo está totalmente integrado. Aqui, o texto é quase um ícone.
Esta unidade inicia-se com o termo hT'[;w. ve-‘atah “e agora”. Depois de tudo o
que já foi apresentado, o texto pede uma definição. Talvez nem fizesse falta. Ouvintes e
leitores já estão seduzidos pela sabedoria e querem escutá-la. Mas nosso texto retoma o tom
exortativo da primeira unidade, iniciando uma instrução com o termo “e agora”, com a
finalidade de motivar seus ouvintes a escutar a sabedoria. Nos v.32-34 encontramos uma
dupla promessa da felicidade: “feliz quem escuta o chamado da sabedoria e feliz quem
guarda o seu caminho”. Este fecho é, então, uma volta ao começo e mostra a coerência do
texto. Motivando seus ouvintes com estas bem-aventuranças, o texto os desafia a fazer uma
escolha entre a vida e a morte: quem encontra a sabedoria, encontra a vida e quem a odeia
ama a morte (v.35-36). Desta maneira o capítulo 8 se fecha, formando uma inclusão,
elaborada a partir do gênero literário instrução.
Uma das maneiras de apropriar-nos de um texto é perceber a forma como foi tecido,
isto é, como foram organizados os diferentes conteúdos que o compõem. Neste item, busco
apresentar minha própria visão da estrutura de Provérbios 8, apresentando também a visão
que um conhecido estudioso tem da organização deste texto.
188
Roland E. Murphy, The Forms of the Old Testament Literature – Wisdom literature: Job, Proverbs, Ruth,
Canticles, Esther, Rolf Knierim e Gene M. Tucher (editores), Michigan: William B. Eerdmans, 1981, p.62.
71
Para Roland Murphy, Pr 8 tem duas partes, uma formada pela apresentação da
sabedoria (v.1-3) e a outra pelos seus discursos (v.4-36). Esse autor não vê uma estrutura
concêntrica nesta perícope. 189 No entanto, prefiro a primeira estrutura, apresentada em
forma concêntrica, pois a última instrução não faria falta ao texto. Já está bem remarcada a
importância e o valor da sabedoria. As motivações iniciais já seriam suficientes para que
leitores e ouvintes a buscassem, não fosse a necessidade de criar uma inclusão para o
conteúdo principal de Pr 8, que é a apresentação da sabedoria, com todos os seus dons
importantes para a vida de seus seguidores e suas seguidoras, assim como sua presença
junto de Javé, desde antes da criação do universo. Repete-se, então, uma instrução no final
do capítulo, criando uma inclusão que aponta para os dois poemas, nos quais a sabedoria se
revela.
gênero sapiencial: “sabedoria” hm'k.x' hokmah está repetida 3 vezes como nome
(v.1.11.12) e uma vez como verbo, no imperativo: “sede sábios” (v.33); “entendimento”
hn'ybi binah , que aparece 5 vezes (no v.1, no v.5 encontramos este verbo 2 vezes no
Uma palavra que aparece também muito repetida é “justiça” qd,c, zedek,
marcando com clareza o campo semântico da primeira e da segunda unidades
(v.8.15.16.18.20). No v.20, aparece ainda outra palavra do mesmo sentido, que é “direito”
189
Veja Roland E. Murphy, The Forms of the Old Testament Literature, p.62 e seguintes.
72
jP'v.mi mixpat. A palavra “j ustiça” qd,c, zedek está ainda relacionada com “caminho”
%r,D; darek “veredas” tAbytin. netibot e “senda” xr;a, ’erah, ligando o v.2, onde a
sabedoria se coloca na “casa das sendas” hb'C'nI tAbytin> tyBe bet netibot nizabah,
com o v.20a “na senda de justiça ando” $Leh;a] hq'd'c.-xr;aoB. be-’orah zedaqah
’ahalek e com o v. 20b “no meio da senda do direito” @p'v.mi tAbytin> %AtB.
be’tok netibot mixpat. Nesta repetição, encontramos um aspecto significativo do campo
semântico do texto, que apresenta a identidade da sabedoria e as características da sua
religião, que tem como conseqüência a prática da justiça, postura ética principal na
organização da vida da casa (clã) e da comunidade.
A raíz “escutar” [ m;v' xama‘, que também faz parte do campo semântico do
gênero sapiencial, aparece repetido 4 vezes, ligando a primeira unidade (v.6) com a última
A expressão “mais que o ouro”, que aparece no v.10, está repetida duas vezes no v.
19, com um sentido enfático: “mais que o ouro e mais que o ouro puro” zP'miW
#Wrx'm. me-haruz umipaz. Além disso, nestes dois versos, ela vem seguida do verbo
“escolher” rx;B' bahar no nifal particípio, escolhido”. A frase: “mais que o ouro e mais
que o ouro puro, escolhido” tem um significado acumulativo para indicar o imenso valor da
sabedoria. Esta expressão fecha a sub-unidade formada pelos v.1-11 e a enlaça com a que
vem a seguir (v.12-21).
Outra ligação entre as duas unidades literárias aparece na última expressão do v.11:
“não se comparam com ela” Hb'-Wwv.yI aloo lo’ yixvu-bah. A expressão, terminada
com sufixo pronominal feminino de 3ª pessoas (v.11), cria o ambiente para a auto-
revelação da sabedoria, como se apontasse para ela, que se auto-apresenta nesta segunda
unidade (v.12-21).
73
frases. O verbo ynIn"q' qanani que traduzi como “criou-me” introduz o tema da criação,
que percorre toda a unidade (v.22-31).190 Este verbo tem a ver com o campo semântico do
texto. Cria-se nos v.22-31 um espaço e um tempo cósmicos, caracterizados pela preposição
inicial -m m- repetida com algumas variações entre os v.22 e 24: wyl'['p.mi mi-pe‘alav
“desde antes de suas obras”, za'me me-’az “desde então”; ~l'A[me me-‘olam “desde a
A forma que expressa o tempo primordial muda no v.25, passando a ser indicada
W[B'j.h' ~yrIh' ~r,j,B. be-terem harim hatba‘u (v.25), “quando traçou um círculo
sobre a face do abismo” ~Aht. ynEP.-l[; gWx AqWxB. be-huqo hug ‘al-pene
tehom (v.27), “quando firmou as nuvens de cima e se fizeram as fontes do abismo”
190
O verbo qnh lembra Eva que, após o nascimento de Caim, diz cheia de alegria: “criei um homem (com a
ajuda de) Javé” (Gn 4,1). Em Gn 4,1, o verbo qaniti está em primeira pessoa, mas quem é o sujeito da oração
é Javé. Aqui, em Pr 8,22 novamente é Javé quem realiza a ação de criar, tornando a sabedoria co-criadora
com ele.
74
ba’az ‘iynot tehom (v.28), “quando pôs ao mar sua norma” AQxu ~Y"l; AmWfB.
be-sumo layam huqo e “quando marcou os fundamentos da terra” #r,a' ydes.Am
AqWxB. be-huqo mosde ’arez (v.29). Todos estes verbos indicam um trabalho criativo e
artesanal realizado por Javé e a hokmah. É interessante observar que Javé só aparece uma
vez em todo o cap.8 de Provérbios (v.22).
especial. O verbo “ser”, “acontecer”, hyh hyh ocorre duas vezes no v.30, na forma
hy<h.a,w. ve-’eheyeh. 191 Este verbo foi traduzido por “e era”, para dar mais sentido à
frase: “e era junto dele artífice”. No entanto, dentro do campo semântico, quero ressaltar o
sentido de “acontecimento” que este verbo carrega. Há um dinamismo criativo, alegre e
prazeroso formado pelo conjunto das palavras dos v.30-31. A hokmah é o sujeito desta ação
dinâmica, realizada “junto dele”, isto é, junto de Javé. Sua ação de artífice !Ama'’amon
está claramente definida. Segundo Hans Wildderger, o termo !Ama' ’amon significa
“artista” e encontra-se em Ct 7,2; Jr 46,25 e Pr 8,30; !Ama' ’amon não tem nada a ver
com a raiz ’mn, como se pensava anteriormente e, seguramente, se remonta, através do
acádico ummanu, ao sumérico, que carrega o sentido de “artesão”, “artífice”. Hans
Wildderger, insiste em que o sentido de ’amon não é “criança mimada ou preferida”, mas
191
Está na 1ª pessoa, singular, imperfeito, segundo o Dicionário hebraico-português & aramaico-português,
elaborado por Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann, Rudi Zimmer, p.4, esta
expressão tem a ver com a autodesignação de Deus (conferir Êx 3,14).
75
“artista”192.
O termo “delícias” ~y[ivu[]v, xe‘axu‘im também está repetido duas vezes. Uma
no v.30, como nome plural, e outra no 31, como verbo no piel particípio absoluto,
feminino, singular. Este termo, que traduzi por “delícias” (v.30), e “me deliciava” (v.31),
pode ser entendido como “prazer”, “delícia”, “deleite”, “encanto”193. Um prazer que
provém da ação criativa realizada em relação, pois está entrelaçado com a expressão: “junto
dele” Alc.a,, ’ezelo tem seu paralelo em outra expressão com sentido semelhante: “diante
dele” wyn"p'l. le-panav. O entrelaçamento destes termos e sua repetição comunicam a
prazerosa relação entre a hokmah e Javé e dela com a humanidade: “era delícias dia -a-dia”
(v.30) e “me deliciava (com) filhos de Adão” (v.31).
Outro termo repetido nos v.30 e 31 é a palavra tq,x,f;m. mesaheqet. Sua raíz
xmf smh ou qxc zhq é a mesma de “riso”, “risada”. Expressa a alegria vivenciada nas
festas profanas e também nas festas religiosas. Alegria se manifesta em saltos de gozo (Jr
50,11), em “dança”, música e gritos de júbilo (1Sm 18,6; 2Sm 6,12.14; 1Rs 1,40.45; Ne
intensidade do verbo. Sua raíz é qxc zhq, uma forma alternativa de xmf smh que no qal
tem o sentido de “rir”, “alegrar-se”, “rejubilar-se”. Em Pr 31,25, a mulher forte “ri do
futuro” qx:f,Tiw: vatisehaq, dando a entender que, por ser competente, ela pode viver
sem preocupação. O hifil de qxc expressa “caçoar”. Em 2Cr 30,10, os israelitas do norte
receberam um convite de Ezequias para participar da páscoa de Jerusalém e “riam” ou
mesaheq com sua mulher, Rebeca. 195 A Bíblia sagrada de João Ferreira de Almeida e a
Bíblia de Jerusalém traduzem este termo por “acariciava”, enquanto a Tradução Ecumência
da Bíblia traz o termo “divertia-se”. Em Pr 8,30 e 31, este termo tq,x,f;m. mesaheqet
aparece duas vezes, porém ele não se encontra em outra parte do Antigo Testamento, nesta
forma verbal. So mente aqui, e repetido duas vezes (Pr 8,30-31).196
Ao traduzir tq,x,f;m. mesaheqet por “dançava”, procurei ser fiel tanto à raíz do
verbo, 197 como ao seu tronco (piel particípio). A expressão “dançava no universo” fecha
esta subunidade, em sintonia com a semântica das palavras anteriores: junto de Javé, a
hokmah realiza com arte a obra da criação, ao mesmo tempo em que causa prazer na sua
relação com Javé, ela encontra prazer na sua relação com a humanidade e dança de alegria
diante de Javé e do universo.
O cap.8 se fecha (v.32-36) com palavras próprias do gênero sapiencial, tal como foi
iniciado: “escutai” W[m.vi xime‘u, “caminho” %r,D, derek, correção” rs'Wm musar,
“sede sábios” Wmk'x] hakamu (v.32-36). Estes termos já estavam presentes na primeira
unidade (v.4-11). No entanto, o final deste capítulo apresenta não somente esta
continuidade em relação ao seu início, mas traz uma novidade: a palavra yrev.a; ’axere
“feliz ou abençoado”. Este termo aparece duas vezes nesta última parte (v.32 e v.34). Este
morfema, repetido desta maneira, poderia ser uma indicação da memória da Deusa Aserá
no poema. Mas John Day é contrário a esta opinião, afirmando que “esta palavra é muito
freqüente no livro dos Provérbios e relacionada com a literatura sapiencial (conferir Pr
8,32.34; 14,21; 16,20; 20,7; 28,14; 29,18; Sl 127,5; 127,1)”198 .
195
Veja J. Barton Payne, em Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, R. Laird Harris,
Gleason L., Archer Jr., Bruce K. Waltke, São Paulo: Vida No va, 1998, p.1280-1281, verbete 1905.
196
Pesquisa feita no programa Bible Works 5 – The primier biblical exegesis and reserch program, distribuído
por Hermeneutika, Computer Bible Research Sofware, serie BWW40-00024228.
197
Ludwig Koehler e Walter Baumgartner, The hebrew and aramaic lexicon of the Old Testament, tradução
de M. E. J. Richardson, Leiden: Brill, 1996, vol.1, p.1315-1316.
198
John Day, “Yahweh and the Gods and Goddesses of Canaan”, em Ein Gott allein? – Jhwh Verehrung und
Biblischer Monotheismus im Kontext der israelischen und altorientalischen Religionsgeschichte, p.186.
77
Judith Hadley, depois de uma exaustiva investigação sobre o uso da palavra ’axerah
na Bíblia Hebraica e de confrontar o resultado da sua pesquisa literária com as descobertas
arqueológicas de Khirbet el-Qon e Kuntillet ‘Agrud, afirma: “pode ser que o culto a Aserá
tenha sido uma parte legítima do culto a Javé”199.
Portanto, mesmo que o sentido da palavra yrev.a; ’axere nos v.32 e 34 seja “feliz”
ou “abençoado”, isto não impede que a memória da Deusa esteja presente neste morfema,
como um símbolo que ecoa na vida das mulheres, nas casas. Esta palavra aparece também
em Pr 3,13: “feliz o homem que encontrou a sabedoria” e, especialmente, em 3,18: a
sabedoria “é uma árvore de vida para os que a acolhem, e felizes são os que a retêm”.
199
Judith Hadley, “Yahweh and ‘his Asherah’ – Archaeological and textual evidence for the cult of the
Goddess”, em Ein Gott allein? – Jhwh Verehrung und Biblischer Monotheismus im Kontext der Israelischen
und altorientalischen Religionsgeschichte, p.240. Ver também Judith Hadley, “From Goddess to literary
construct – The transformation of asherah into hokmah”, em Reading the Bible – Approaches, methods and
strategies, editado por Athalya Brenner e Carole Fontaine, Sheffield: Sheffield Academic Press, 1977, p.393-
396.
78
instrução, encontram-se alguns mexalim, como os v.5,10 e 11, que estão repetidos dentro da
mesma seção (conferir 8,5 e 6,32; 8,10 e 2,4; 3,14; 8,19; 8,11 e 3,15) e em outros escritos
sapienciais (Pr 16,16; Jó 28,15-19).
Uma das características da poesia hebraica é a antítese. Nesta primeira unidade, ela
aparece elaborada em forma de quiasmo (v.7-8):200
A conclusão desta instrução está no v.11, caracterizada por uma frase iniciada por
yKi ki “eis que a sabedoria é melhor que os corais e todas as coisas desejáveis não se
comparam com ela”.
A repetição do mesmo verbo, com tempos diferentes, cria também um sentido novo
que revela a identidade da sabedoria, deixando no ar uma pergunta sobre a relação amorosa
e gratuita que ela oferece:
200
Embora o quiasmo seja uma forma literária e sua análise deva constar no item da estrutura, a antítese
pertence ao gênero literário, sendo uma das características da poes ia hebraica. Por isso, a menciono neste
exemplo.
201
Sabedoria e poesia do povo de Deus, CRB, p.66 (Tua Palavra é Vida, 4).
79
202
Sabedoria e poesia do povo de Deus, Publicações CRB, p.68.
80
relações interpessoais que se expressam nas casas, das liturgias domésticas. Porque dançar
diante de Javé é liturgia. A espiritualidade que transparece neste texto (v.30-31), não tem
uma visão solitária da divindade. Javé, que está subtendido no texto, tem a hokmah ao seu
lado, em prazerosa e criativa relação, enchendo de alegria o universo.
O cap.8 fecha-se com outra instrução (v.32-36), que retoma o gênero exortativo dos
v.4-11, iniciando com uma conjunção que tem o valor de conseqüência: “portanto, filhos,
escutai- me!” Esta exortação final também faz parte do gênero poesia, formada pelo
paralelismo das duas bem-aventuranças:
Um outro aspecto da poesia hebraica que aparece nesta última instrução é a antítese,
fechando o capítulo com um convite para escolher entre vida e morte. Quem escolhe a
sabedoria encontra a vida e quem a rejeita está no caminho da morte:
Nos v.1-3 a sabedoria mulher é apresentada em terceira pessoa, pelo autor do texto.
A partir do v.4, ela se auto-revela, oferecendo seus ensinamentos e mostrando, através de
comparações, o valor imenso dos seus dons. Seus ensinamentos valem mais do que o ouro
puro, do que pérolas e jóias (v.10-11 e 19). Embora consciente de seu valor, ela está
totalmente aberta aos que a amam, sem colocar nenhuma outra condição para ser
encontrada, a não ser o desejo e a busca.
No poema dos v.22-31, a figura da sabedoria mulher vai crescendo até tomar
aspectos de Deusa. Inicialmente ela é apresentada como criada por Javé (v.22). Mas,
imediatamente sua figura evolui, pois o texto a apresenta como pré-existente a toda a
criação (v.23-29). Aquela que inicialmente foi apresentada como profetisa em lugares
203
Confira v.8 e 13 da Septuaginta.
82
204
É com este sentido que mantive o sentido literal do hebraico e da Septuaginta: “Javé me criou no princípio
do seu caminho”, por entender que o verbo criar faz parte do campo semântico desta perícope, onde se
apresenta o universo sendo criado como um trabalho artesão, trabalho criativo e artístico, realizado pela
hokmah junto de Javé (v.30), ponto alto não somente deste capítulo, mas de toda a unidade (Pr 1 -9).
83
205
O termo que traduzi no singular “sabedoria” está no plural tAmk.x' hokmot. Na primeira seção de
Provérbios (1-9), este plural de majestade encontra-se apenas duas vezes (Pr 1,20; 9,1), enquanto o termo
hokmah aparece 16 vezes. “Este é um plural de majestade”, conferir Paul Jüon, Grammaire de L’Hébreu
Biblique, p.88 e § 136. hokmot também é considerado um plural abstrato de hokmah por M. Sæbø, em hk m,
Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westermann, vol. 1,
col.776-789. “Este é um plural de excelência e majestade”, confira em Emil Kautzsch, Gesenius’ Hebrew
Gramar, p.398, nota 2.
206
A expres são Ht'ybe betah “casa dela” faz a ligação do capítulo 9 com o capítulo 31 de Provérbios, onde
betah aparece uma vez no v.15 e duas vezes no v.21. É interessante observar que esta é uma expressão rara no
Antigo Testamento, onde a expressão mais usada é “casa do pai”.
207
O número sete h['b.vi xib‘ah demonstra que há um sentido simbólico nesta expressão, que caracteriza o
tipo de casa construída pela sabedoria. A Bíblia de Jerusalém indica dois sentidos para esta expressão: 1. é
uma “característica de uma casa rica”; 2. é “símbolo da perfeição”. Veja nota da p.1129.
208
A palavra “matar” ou “abater”, em hebraico x'b.j' tabha, está diretamente relacionada à preparação de
um banquete ou uma comida. A expressão Hx'b.ji Hx'b.j' tabhah tibhah significa “abateu seus animais”,
sem deixar claro se esta matança seria para um ritual. O verbo Hx'b.j tabhah aparece também em Jr 12,3. O
verbo usado para o abate de animais para oferecer sacrifício é xkz zkh.Confira Luis Alonso Schökel,
Dicionário bíblico hebraico-português, p.254; veja também o Dicionário hebraico-português & aramaico-
português, de Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann, Rudi Zimmer, p.81, que traz o
sentido de “carne” (de gado abatido).
209
Não está claro se é a sabedoria que clama ou se são as suas criadas. O verbo está no qal, imperfeito,
feminino, singular. No entanto, “criadas” h'yt,ro[]n; na‘aroteha está no plural.
210
Esta expressão “sobre as alturas” yPeg';-l[; ‘al-gape só aparece neste texto. Nota-se uma ênfase na
frase hebraica para que a mensagem seja proclamada nas alturas. Literalmente, a frase seria assim: “clama
sobre em cima de alturas de cidade”. Esta ênfase expressa-se também pelo termo tr,q' qaret, que significa
“alturas que dominam a cidade”. Um termo que se repete nesta unid ade literária (8,3; 9,3.14). Fora desta
84
4 quem (é) ingênuo volte-se211 para aqui, diz ao sem coração 212
5 vinde213, para que comam do meu pão e bebam do vinho que misturei.
6 Abandonai (os) ingênuos e vivereis 214
e andai pelo caminho da inteligência.
7 (Quem) corrige 215 o zombador 216 atrai insultos 217
unidade, encontra -se apenas em Pr 11,11 e Jó 29,7. Confira Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico
hebraico-português, p.594.
211
O verbo rsy ysr é bastante comum. A raiz ysr aparece 93 vezes no texto massorético, sendo 42 vezes em
forma verbal. O sentido mais comum deste verbo é “corrigir” ou “castigar”. Na seção de Pr 1-9, a forma mais
comum é musar nome que significa “correção ou castigo” e que aparece 13 vezes nesta coleção. Confira
pesquisa de M. Sæbø, em ysr, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni
e Claus Westermann, vol. 1, col.1016-1021.
212
No v.3, o convite era aberto, pois foi proclamado a partir dos lugares altos da cidade com a finalidade de
que chegasse a todas as pessoas. No v.4, chama a atenção este convite especial aos ingênuos e carentes de
coração, isto é, de entendimento e sentido para viver. Procurarei me deter neste aspecto no desenvolvimento
da exegese.
213
Este é o primeiro de três imperativos que aparecem nesta frase: “vinde” Wkl leku, “para que comam”
[Wmx]l; lahamu‘ “e bebam” Wtv.W u-xtu. Esta forma literária parece indicar que há uma urgência na
comunicação do convite.
214
Em primeiro lugar, o convite é para a vida, pois esta é uma conseqüência da participação neste banquete
oferecido pela sabedoria mulher: “e vivereis” Wyx.wi vi-heu. Há, ainda, outro imperativo que pede
mudança: “abandonai” Wbz.[i‘izebu os simples e “andai pelo caminho do entendimento”, ou “pelo
caminho interior”. Confira Judith McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and
drink, p.46.
215
Nos 6 versos que seguem, há uma aparente quebra no texto. O enlace destes mexalim com o resto do
capítulo 9 encontra-se nos termos usados, ou melhor, no seu campo semântico. O primeiro termo deste bloco
é rsy ysr que já encontramos e comentamos no v.4, um termo muito comum no vocabulário sapiencial.
216
A raiz lyƒ tem o significado de “tagarela”, “arrogante”, “insolente”, “escarnecedor”. Confira Dicionário
hebraico-português & aramaico-português, de Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir
Raymann, Rudi Zimmer, p.112. Para Luis Alonso Schökel, #yl lyz como particípio substantivado tem o
significado de “intérprete” (Gn 42,23); ou “embaixa dor” (2 Cr 32,31) e também de “advogado” ou
“mediador” (Jó 33,23). Parece ser um termo intencionalmente ambíguo. Confira Luis Alonso Schökel,
Dicionário bíblico hebraico-português, p.344.
217
A expressão !Alq' Al lo qalon significa: “atrair insultos”. Este é um verbo complicado, que pode ser
modificado pelo sujeito, pelos seus complementos, regime e modalidade. Veja Luis Alonso Schökel,
Dicionário bíblico hebraico-português, p.347.
218
Este é o hifil de xky ik h, um verbo difícil de definir em seu conteúdo semântico. No hifil, tem o
significado de uma ação verbal encaminhada ao convencimento da outra parte, dentro de um debate. Veja
Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p.276.
219
O termo [v'är' raxa‘ significa “malvado”, “perverso”, “depravado”, “imoral”, “desonesto”. Veja Luis
Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p. 634
85
220
O termo xq;l, leqah significa “doutrina”, “ensinamento”. Este termo aparece em Pr 4,2, tendo Javé como
sujeito. Nestes mexalim o sujeito está indefinido. Pode ser um sábio, o pai, a mãe ou alguém que se sinta
responsável de passar um conhecimento que leve à vida.
221
Embora esta frase tenha seu paralelo em Pr 1,7, nota-se uma diferença na sua forma e no seu conteúdo. Em
Pr 1,7 o termo usado para indicar a importância do temor de Javé e sua relação com a sabedoria tyvare rexit
que tem o sentido de “primeiro”, “primário”, “o melhor”, “princípio”. Em Pr 9,10 o termo usado é tL;xiT.
tehilat com o sentido de “começo”, “início” como em Os 1,2 : “começo das palavras” e em Rt 1,22:
“começo da colheita de cevada”. Veja Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p.601 e
700. Parece que a frase em Pr 9,10 está se referindo ao caminho que leva à “sabedoria” hm'k.x' hokmah e
ao “conhecimento” hn'yBi binah, sendo o temor de Javé o começo deste caminho, enquanto que em 1,7 há
um sentido de valorização: o temor de Javé é o mais importante para quem quiser obter sabedoria e
conhecimento.
222
Esta frase tem um paralelo em Pr 3,2 onde se encontra a promessa de prolongamento da vida, com a
diferença de que além de aumentar os dias de vida, em 3,2 quem guardar os mandamentos e conselhos dos
pais recebe, também, a promessa da paz. Mas, qual é o sujeito da frase em Pr 9,11? Quem se oculta e se
revela através da expressão “eis que por mim se prolongarão seus dias”? Dentro do campo semântico do
poema, parece ser a sabedoria. Mas, aqui, no cap. 9, não se trata de um poema revelatório em 1ª pessoa, como
em Pr 8, mas em 3ª pessoa. Será um mestre da sabedoria que está prometendo vida longa a quem lhe der
ouvidos? De todos modos, por trás do poema encontram-se aspectos da teologia da retribuição.
223
O verbo aF'ti tisa’ que traduzi como “serás prejudicado” vem da raíz afn ns’ e tem o significado de
“carregar”, “levar”, “transportar”, “levantar”. Uma tradução mais literal da frase seria: “se és arrogante,
somente tu o levarás”. Aqui aparece o contrário da retribuição ou uma afirmação desta? Fecha-se aqui, o
grupo de mexalim, repetindo duas vezes o termo T'm.k;x' hakameta “tornar-se sábio” e voltando ao termo
#le lez, da raiz #yl lyz, com o significado de “arrogante”, “insolente”, “escarnecedor”. A proposta da
sabedoria mulher é que seus ouvintes deixem de ser arrogantes e se tornem sábios.
224
Esta palavra deriva de lysiK. kesil, que tem o sentido de “néscio”, “idiota”, “ignorante”. Sua distribuição
na Bíblia Hebraica é significativa, aparecendo 70 vezes, sendo que 49 delas se encontram no livro dos
Provérbios. Mas, na seção de Pr 1-9 este termo só aparece 4 vezes e a sua forma feminina, usada juntamente
com a palavra mulher aparece apenas aqui, em todo o texto massorético. Confira M . Sæbø, em kesil,
Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westermann, vol. 1,
col.1144-1147.
225
O termo hY'miho homiyah só aparece aqui (Pr 9,13) e em Pr 7,11, onde se afirma que “ela é agitada e
rebelde”. O significado desta nova metáfora não se esgota na comparação entre a mulher insensata e a mulher
estranha ou estrangeira de Pr 7. Voltarei a este tema no capítulo 4 desta tese.
86
226
O termo tWYt;P. petaut, no feminino, só aparece aqui. No masculino, porém, faz parte do vocabulário
sapiencial. No cap. 9 de Pr, este termo aparece nos v.4 e 16 como um antônimo de prudência, cautela e
sagacidade, qualidades muito imp ortantes para o sábio.
227
O termo “em lugares altos” ymerom. merome aparece somente em Pr 9,3.14.
228
Aqui a comparação mostra exatamente o oposto. Enquanto a sabedoria mulher convida os “ingênuos” e
“sem coração” (v.4), isto é, àqueles que não conhecem o caminho da vida, a mulher insensatez chama a quem
“anda por caminhos retos” (v.15).
229
Esta frase está literalmente repetida no v.4, apresentando um contraste com a sabedoria mulher. Analisarei
esta comparação no trabalho exegético.
230
~yIm; mayim apareça 254 vezes na Bíblia Hebraica, a expressão “água roubada”
Embora o termo
~ybiîWnG>-~yIm; mayim-genubim aparece unicamente aqui, em todo o texto massorético. Confira
Bible Works version 5.0, distributed by Hermeneutika http://www.bibliworkes.com.
231
Alguns qualificativos ao pão podem ser encontrados na Bíblia Hebraica. No livro dos Provérbios,
encontramos “pão de engano” ~ybi(z"K. ~x,l, lehem kezabim (23,3); “pão de ociosidade” tWlc.[;
~x,l, lehem ‘azlut (31,27); “minha porção de pão” yQixu ~x,l, lehem huqi (30,8) e este qualificativo de
“pão às escondidas” ~yrit's. ~x,l, lehem setarim (9,17) de nosso texto. Confira Luis Alonso Schökel,
Dicionário bíblico hebraico-português, p.342.
232
O final do cap. 9 e da primeira seção do livro dos Provérbios é sombrio. Ao afirmar que os convidados da
mulher insensata estão nas profundezas do xeol, o texto faz uma ligação clara entre ela e a morte. Este é o
triste fim de quem aceita seu convite. Mas, ao mesmo tempo, o texto resgata a imagem da sabedoria mulher,
pois “quem a encontra, encontra a vida” (8,35a).
87
Pr 9,1-6
Este poema está delimitado pela figura da sabedoria mulher, introduzida pelo termo
hokmot,233 cujo plural majestático cria um ambiente especial para sua intensa atividade. No
233
Como vimos em 1,20, hokmot é um plural majestático, já que os verbos estão todos no feminino singular.
As versões Septuaginta, Vulgata e Peshita também entenderam hokmot como singular. Veja Johann Cook,
The Septuagint of Proverbs – Jewish and/or Hellenistic Proverbs? Concerning the Hellenistic Colouring of
LXX Proverbs, p.249.
88
sabedoria ou às suas criadas. Como o verbo “clama” ar'_q.ti tiqra’, está no qal,
imperfeito, feminino, singular, entendo que este verbo se refe re a uma ação da sabedoria,
Há, ainda, uma relação entre a preparação do banquete e o culto. Judith E. Mckinlay
observa que “o abate do gado no v.2 pode muito bem trazer isto em mente”. Mas, ela
mesma descarta esta possibilidade, lembrando que o verbo hx'b.j' tabhah não tem este
significado: “Contudo, ‘o abate’ nem em sua forma verbal, nem mesmo com a associação
de nomes, implica necessariamente o contexto do culto.”235 A associação deste verbo com o
culto aparece mais claramente no texto grego. A comparação com a Septuaginta levou-nos
a perceber que o verbo usado para traduzir hx'b.j' é sfa,zw, uma palavra que no livro
dos Provérbios aparece somente esta vez. No entanto, ela é usada muitas vezes no livro do
Levítico, no contexto do sacrifício de animais. 236 Neste caso, a versão dos LXX entendeu
que havia em Pr 9,2 um transfundo cultual no banquete da sabedoria mulher, embora esta
alusão não seja clara no texto massorético.
234
Este termo que pode ser entendido como “carentes de entendimento ou conhecimento” ou “sem sentido”
para viver.
235
Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.123.
236
O verbo sfa,zw é usado, inclusive, no contexto de sacrifício de crianças (Ez 16,21; 23,39). Esta é uma
questão bastante discutida entre os estudiosos. Veja Johann Cook, The Septuagint of Proverbs – Jewish and/or
Hellenistic Proverbs?, p.250s.
89
Resta-nos, agora, propor uma estrutura para esta primeira subunidade, antes de
passar a examinar a terceira, como anunciamos no início.
237
O verbo hyx tem o sentido de ser, existir, acontecer, estar.
238
Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.48.
90
Pr 9,13-18
Nos v.13-18, encontramos uma imitação do poema inicial. Não é exatamente uma
réplica, porque além das semelhanças, há também várias diferenças. Mas, a imitação é
claramente intencional. Quem se apresenta neste poema é a mulher insensata. 239 Outro
Ela é ativa e eficiente na construção e Ela é inse nsata e não entende nada. Está
administração de sua casa. Sete verbos sentada à porta de sua casa, sem realizar
seguidos mostram sua competente atuação coisa alguma (v.13-14)
(v.1-3)
Envia suas criadas aos pontos estratégicos Fica à espera de quem passa pelo caminho
da cidade para convidar a quem está para fazer-lhes seu convite. Seus
necessitado de sabedoria. convidados não são aqueles que
necessitam de aprender a viver, mas os
que andam por caminhos retos (v.15)
Prepara um banquete com carne e vinho Convida para beber água roubada e comer
(v.2) e, depois, convida para comer pão e pão escondido (v.17)
beber vinho que ela mesma preparou (v.5)
239
Literalmente, “mulher de insensatez” tWlysiK. tv,ae ’exet kesilut . A forma feminina de lysiK.
kesil unida à palavra mulher aparece somente neste texto, embora o masculino seja muito comum nos textos
sapienciais.
91
240
Luis Alonso Shökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p.246.
241
Veja Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.57.
242
No capítulo 4 deste estudo, farei uma investigação mais detalhada da relação entre estas figuras.
243
Farei uma investigação sobre estas relações no capítulo 4 desta tese.
92
Pr 9,7-12
Os versos v.7-12 estão no centro do capítulo 9. São exatamente 6 versos soltos, que
podem ter sido colocados ali para preparar a inserção da figura contrastante da mulher
insensata, que aparece nos v.13-18. Poderíamos presumir que se trata dos destinatários de
ambos os convites. Porém, o termo “zombador” #le lez, cuja raiz é #yl lyz, não apareceu
no primeiro poema (1-6) e nem vai aparecer no segundo (13-18). Este personagem aparece
somente nesta parte central. O termo está repetido 2 vezes nos v.7a e 8a, fazendo uma
244
Exatamente igual ao da sabedoria mulher no v.4
93
também, não vale a pena admoestar o “malvado” [v'r' raxa‘. Este termo que possui muitos
sinônimos e antônimos em toda a Bíblia Hebraica, pelo seu significado genérico. Na
primeira seção do livro dos Provérbios aparece 9 vezes. Portanto, não é uma novidade que
apareça aqui com esta perspectiva de que não vale a pena repreendê- lo. Este termo faz
oposição ao “sábio” ~k'x' hakam a palavra mais repetida nesta subunidade. Ela aparece 5
vezes em Pr 9,7-12 (1 vez no v.8; 2 vezes no v.9, 2 vezes no v.12).
No v.8 há uma clara antítese entre zombador e sábio. No v.9, o sábio é comparado
ao justo. Portanto, aqui sabedoria se liga à justiça, como em Pr 8. O v.10 traz um aspecto
importante da teologia de provérbios: “o principal da sabedoria é o temor de Javé”. Este é
um refrão que aparece em 1,7. 29. O v.11 parece estar completamente solto, nesta perícope,
e ligado à primeira unidade pela promessa de vida que apresenta (confira v.6), e para
completar os 6 versos que formam a estrutura de cada subunidade. 245 O verso 12 fecha esta
subunidade com uma comparação entre sábio e zombador e, ao mesmo tempo, faz a
delimitação do poema intermédio de 9,7-12. Ele fecha esta subunidade com a frase: “se
245
Uma das ligações internas do capítulo 9 de Provérbios é feita pela estrutura de cada subunidade, formada
de 6 versos cada uma.
94
Mas, a força desta imagem parece ter sido controlada pelos versos que formam a
segunda parte do capítulo (7-12), sobretudo pelo v.10, que a coloca dentro do encaixe
javista do “temor de Javé”. Esta subunidade é bastante forçada e parece ligar-se ao corpo do
texto através da estrutura dos 6 versos, já que o poema do capítulo 9 tem 18 versos,
distribuídos em 3 estrofes, de seis versos cada uma. Outra ligação de 7-12 com o resto do
capítulo encontra-se nas antíteses entre sábio/justo e zombador/malvado.
direção a ela, à sabedoria mulher; para comer do seu pão e beber do vinho que ela preparou.
Mas, tem um dom muito maior escondido por trás destes imperativos para vir, comer e
beber. O convite tão bem preparado e urgentemente comunicado supõe a mudança de vida
de quem o aceita: “abandonai (os) ingênuos e vivereis”. A promessa de vida aparece aqui
como a oferta principal, como o objeto de todo o trabalho da sabedoria. O dom maior é a
vida que ela oferece a quem participar do seu banquete. No entanto, este poder de dar vida
é um atributo da divindade. Se Pr 9,1-6 apresenta a sabedoria mulher com este poder de dar
vida é porque está usando este símbolo para falar de Javé. Ao mesmo tempo, a linguagem
do símbolo está enraizada na memória das Deusas que foram cultuadas no Antigo Israel
como doadoras da vida. Mas, não é somente a vida que a sabedoria mulher oferece. A frase
final desta perícope: “andai pelo caminho que leva ao entendimento” (v.6) indica que a
própria sabedoria é um dom, que está sendo oferecido gratuitamente a quem aceitar seu
convite. 246
Há, ainda, uma outra mulher neste capítulo. É a mulher insensata de 13-18. Quem
representa esta mulher? Ela é a mulher alheia, autônoma, prostituta, estrangeira? Há muitas
referências ambíguas à mulher dentro da seção de Provérbios 1-9 (2,16-19; 5,2-23; 6,7-27;
7). No entanto, o termo “mulher insensata” tWlysiK. tv,ae ’exet kesilut aparece
somente em 9,13, mas as referências a esta mulher dentro da unidade (9,13-18) a ligam com
outras mulheres suspeitas dentro da unidade literária formada pelos capítulos 1-9. Farei
uma investigação sobre estes rostos contrastantes da mulher suspeita, no capítulo 4 desta
tese. Neste item, quero assinalar, apenas, o contraste que Pr 9,13-18 apresenta e verificar se
o rosto da mulher sabedoria é modificado pela sua comparação com a mulher insensata.
Segundo Judith Mckinlay, o contraste entre sabedoria e insensatez “é o contraste entre
ordem e desordem” e o emprego consciente do código de gênero deve levar a uma revisão
do processo de leitura, para ouvir o eco distante de uma Deusa poderosa como Aserá, com
poder de oferecer tanto a vida como a morte sem a mediação de qualquer autoridade. 247
246
Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.56
247
Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.74
98
Situar Provérbios 1-9 no final da época persa parece ser uma opção bastante lógica,
como foi argumentado no primeiro capítulo desta tese. Para compreender melhor o
contexto desse período, retomo uma citação de Antonius H. J. Gunneweg. Segundo esse
autor, na época persa “não existia um judaísmo como grandeza uniforme, assim como
tampouco existiu um Israel uniforme em tempos anteriores”248 . Parece que a situação de
enfraquecimento do império persa, ocasionado pelas prolongadas guerras contra egípcios e
gregos, assim como as diferentes tendências internas ao judaísmo, criaram um espaço que
permitiu uma revisão do discurso sobre Deus, presente na imagem da sabedoria mulher,
sobretudo no poema de 8,22-31.
248
Antonius H. J. Gunneweg, História de Israel – Dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor Herzl até
nossos dias, São Paulo: Loyola, 2005, p.241.
99
É dentro desta perspectiva que situamos a redação de Pr 1-9 nas últimas décadas do
período persa, no contexto das grandes vitórias alcançadas pelo império grego no Oriente e
pela decadência do império persa. Talvez tenha existido nessa época um período de maior
liberdade, quando a Judéia chegou a ser um estado teocrático, com moeda própria. 250
249
Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.39.
250
Encontraram-se dracmas com a inscrição YHD, por volta de 350 a.C. Conferir Bíblia de Jerusalém,
p.2338.
251
Silvia Schroer, “Die personifizierte Sophia im buch der Weisheit, p.543.
100
252
Muitos outros textos foram escritos nesta época para expressar uma reação a posturas e políticas
excludentes. Cito Rute, Jonas, Cântico dos Cânticos e Jó, entre outros.
253
Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução feminista da história de Israel”, em Feministissche
Exgese – Forschungserträge zur Bibel aus der Perspektive von Frauen,p.27.
254
Para entender melhor esta perspectiva, leia Nelson Kilpp, Jonas.
101
Recentemente, Fokkelien van Dijk-Hemmes indicou que o livro de Rute pode ter se
originado em uma cultura de mulheres, justificando que “esta hipótese de uma cultura de
mulheres tem sido proposta por antropólogos, sociólogos e historiadores da sociedade, a
fim de estabelecer um elo entre as experiências culturais primárias como expressas por
mulheres”255 . Baseando-se em Showalter, Fokkelien estabelece alguns critérios para
reconhecer a voz feminina que fala em determinados textos, 256 chamando a atenção para a
substituição do termo “casa do pai” por “casa da mãe” como uma indicação de que o texto,
no caso Ct 3,4; 8,2, provém de uma “cultura de mulheres”. É significativo encontrar esta
expressão “casa da mãe” em Pr 31,21 que pode indicar um substrato da cultura de mulheres
na moldura colocada pelo editor às coleções que fo rmam o livro dos Provérbios. Segundo
Fokkelien van Dijk -Hemmes uma cultura de mulheres significa uma “cultura feminina
subterrânea, na qual as mulheres ‘redefinem’ a realidade baseadas em suas próprias
perspectivas”257. Uma realidade que transparece em Pr 31,10-31 e que recebe o seguinte
comentário de Elisabeth Schüssler Fiorenza: “ainda que o louvor da perfeita “dona” de casa
se faça a partir de um ponto de vista masculino, se evidenciam sua iniciativa econômica e
sua perspicácia para os negócios”258.
Citando Campbell, Fokkelien lembra, também, que uma tradição de sábias mulheres
contadoras de histórias foi se formando a partir da participação de sua audiência
predominantemente feminina e ativamente engajada.259 Se isto é assim, podemos afirmar
que a metáfora da sabedoria mulher surge como expressão de uma nova visão da mulher e
do homem em suas relações diárias, em sua visão do trabalho e como expressão da sua
experiência religiosa. A uma antiga visão da mulher dominada pelo marido (Gn 3,16b) é
superada, porque a situação sócio-econômica e religiosa possibilitou que as mulheres do
interior de Judá desenvolvessem sua perpicácia para os negócios e tomassem as iniciativas
255
Fokkelien van Dijk-Hemmes, “Rute: Produto de uma cultura de mulheres?”, Rute a partir de uma leitura
de gênero, Athalya Brenner (organizadora), São Paulo: Paulinas, 2002, p.180. Neste texto a autora comenta
entre parêntesis que esta voz não é muito ouvida, pois ainda é predominante o androcentrismo de teorias e
estruturas de interpretação.
256
Para um maior conhecimento destes critérios leia Fokkelien van Dijk-Hemmes, “Rute: Produto de uma
cultura de mulheres?”, p.181-183.
257
Fokkelien van Dijk-Hemmes, “Rute: P roduto de uma cultura de mulheres?”, p.183.
258
Elisabeth Schüssler Fiorenza, En memoria de ella – Una reconstrucción teológico-feminista de los
orígenes del cristianismo , Bilbao: Desclée de Brouwe, 1989, p.150.
259
Confira Fokkelien van Dijk-Hemmes, “Rute: Produto de uma cultura de mulheres?”, p.185.
102
necessárias para levar a bom termo a realização das atividades necessárias para garantir a
vida da casa. Esta nova visão das mulheres tem suas raízes em uma tradição de mulheres
sábias e contadoras de história e de mães que orientam seus filhos para a vida. Embora
nova, esta visão é fiel às tradições do povo israelita, com sua experiência libertadora de
Deus e sua religião baseada na justiça e no direito. Ao mesmo tempo, esta nova visão traz
um eco do antigo culto às Deusas e, no capítulo 8, faz reminiscências de Javé com sua
consorte.260
Esta nova visão das mulheres confronta-se com a contradição do sistema patriarcal
no dia-a-dia de suas lutas e de suas buscas. É muito difícil conviver com uma realidade
marcada pela dominação, quando se tem os olhos e a mente despertos e críticos em relação
a esta realidade. Uma amostra da insatisfação das mulheres, neste sentido, aparece no livro
dos Provérbios, onde há um ditado muito repetido: “melhor é morar numa região deserta do
que com uma mulher queixosa e iracunda” (Pr 21,19; 21,13; 19,13; 25,24). De que se
queixaria a mulher? Uma queixa pode conter algo da reivindicação e luta das mulheres e
supõe uma consciência do próprio valor e dignidade. Segundo a cultura da época,
transmitida pelo sistema familiar e sustentado pelo sistema religioso, a mulher era obrigada
a se submeter às ordens do pai, do marido, ou de um filho mais velho, quando ela mesma
tinha consciência de sua capacidade de pensar e de agir. Este fato, certamente, deveria
produzir muita raiva e tristeza.
Desta maneira, uma cultura de mulheres, vivenciada e tecida a partir da casa, através
da qual elas e eles redefinem sua realidade, enfrenta-se com o sistema social e religioso da
época, nas pequenas situações do seu cotidiano. No livro de Rute, encontramos uma
novidade em relação aos papéis que ela e Noemi exercem e aqueles que fazem parte dos
padrões vigentes na sociedade patriarcal em que vivem. Apesar de representar Deus, o
go’el ou libertador do povo, “Booz não lidera nada, não impõe nada, não tem proposta nem
260
Judith Hadley ao fazer um estudo sobre as reminiscências do culto a Aserá no antigo Israel, afirma: “Pode
ser que o culto a Asherah tenha sido uma parte legítima do culto a Yahweh”. Veja Judith Hadley, “Yahweh
and ‘his Asherah’: archaeological and textual evidence for the cult of the Goddess”, p.240.
103
projeto. Ele apenas executa as sugestões das duas viúvas (3,11)”261 . Aparece aqui,
claramente, uma grande mudança nas relações de poder.
No começo do século 2 a.C., um grupo conservador faz uma revisão dos poemas
sobre a sabedoria mulher de Pr 1, 8 e 9. Esta revisão se manifesta no livro de Ben Sira,
261
Carlos Mesters, Como ler o livro de Rute – Pão, família terra, São Paulo: Paulus, 1991, p.39.
262
Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, em Der eine Gott und die
Göttin – Gottesvorstellungen des biblischen Israel im Horizont Feministischer Theologie, p.158.
104
revelando uma grande discriminação da mulher (Eclo 42,9-11; 22,3), que é considerada
perigosa e culpada de todos os males que sobrevinham ao povo, inclusive a morte (Eclo
42,13-14; 25,13; 25,24). Ben Sira busca corrigir não somente a visão da mulher, mas
também a revelação da sabedoria como artífice do universo ao lado de Javé (Pr 8,30-31),
como parceira em total e cósmica harmonia, apresentando-a como uma hipóstase, uma
personificação da torah. Para Ben Sira, a sabedoria é um atributo de Javé (Eclo 24). No
entanto, a cultura de mulheres resiste e surge, com força, no último livro da Bíblia, através
do mesmo símbolo da sabedoria mulher, que partilha com Deus o seu trono (Sb 9,4).
Portanto, nas suas lidas e relações diárias, lugar principal da origem sabedoria, a
mulher israelita encontra espaço para expressar suas “experiências culturais primárias” e
participar da elaboração de um caminho que leva à vida, oferecendo elementos para a
elaboração de uma revisão do discurso sobre Deus, uma nova visão do trabalho e um
relacionamento integrador e prazeroso com o universo. Supõe-se que os poemas de Pr 1,20-
23; 8 e 9 não sejam uma obra exclusivamente das mulheres, mas o grupo que os elaborou
conta com a participação de mulheres “sábias” e representantes da cultura das mulheres,
que ajudam a abrir novos horizontes para o futuro a partir da experiência de enfrentamento
com as contradições de sua época.
Conclusão
O estudo realizado permitiu também obter uma compreensão mais clara do contexto
que possibilitou a elaboração e a aceitação deste símbolo. A partir do confronto com
diferentes autores e autoras, situamos este texto no final da época persa.263 Desde o
cativeiro da Babilônia, com a destruição do templo de Jerusalém e a ausência de um
governo que centralizasse a organização do povo, a casa passa a ser o local principal de
culto e de organização para a defesa da vida. Esta nova função da casa acontece tanto entre
as famílias exiladas como entre aquelas que permaneceram em Judá. Ora, neste espaço da
casa, as mulheres tinham grande liderança e autoridade.
263
Veja uma discussão sobre a época destes textos no item 1.3, no primeiro capítulo desta tese.
108
Para dar maior visibilidade a esta figura da mulher que administra sua casa com
sabedoria e competência, e poder confrontá- la com o símbolo da sabedoria mulher, no
próximo capítulo farei um estudo sobre Pr 31,1-31.
Capítulo 3
A mulher sábia e forte de Provérbios 31
Neste capítulo, farei uma análise do capítulo 31 do livro dos Provérbios com a
possibilidade de que todo o capítulo forme uma unidade literária tecida pela figura da
mulher sábia. No item 3.1, farei a tradução e a crítica textual de todo o capítulo. No item
3.2, apresentarei a delimitação do texto, buscando encontrar sua coesão interna e passarei a
analisar separadamente cada subunidade. Desta maneira, no item 3.3, investigarei sobre o
gênero literário, tendo em vista a delimitação feita no item anterior. No item 3.4, buscarei
encontrar aspectos que indiquem o contexto de Pr 31: a época, a situação histórica, o
ambiente onde o texto foi gerado e suas raízes no chão da história do povo bíblico. No item
3.5, apresentarei os conteúdos de todo o texto, concluindo com um resumo do caminho
percorrido.
264
Literalmente lyIx;-tv,ae ’exet hayil significa “mulher de luta”, mas algumas vezes usarei a expressão
“mulher de força” ou “mulher forte” para indicar esta personagem.
265
Em Pr 31,1 do texto massorético encotramos a frase “palavras de Lamuel, rei de Massa, que lhe ensinou
sua mãe” AMai WTr;S.yI-rv,a] af'm; %lem, laeWml. yreb.DI dibre lemu‘el melek ma sa
’axer-yisratu ’imo . No entanto, os versos seguintes (v.2-9) trazem o discurso da mãe de Lemuel. Teria este
cabeçalho do texto a função de tornar aceitável o ensinamento de uma mulher, dando-lhe oficialidade?
266
O nome af'm; masa tanto pode significar “oráculo”, “pronunciamento”, “peso” ou “sentença pesada”,
como um nome próprio masculino (conferir Gn 25,14), ou um lugar que guarda a memória da tentação no
deserto (Ex 17,7; Dt 6,16; 9,22; 33,8 e Sl 95,8). A Bíblia de Jerusalém entende Massa como nome de uma
tribo ismaelita do norte da Arábia (Gn 25,14). Veja Bíblia de Jerusalém, nota z, p.1163. Minha opinião é que
o sentido da palavra af'm; masa, que aparece 27 vezes na Bíblia Hebraica, deve ser entendida de acordo
com o seu contexto literário. Em Pr 31,1 ela tem o sentido de lugar e identifica uma tradição árabe que
registra a memória da sabedoria da mulher.
267
O verbo “corrigir” rsy ysr e o substantivo musar “correção ou castigo” aparecem repetidos várias vezes
na seção 1-9 de Provérbios. Ao traduzir este verbo por “ensinou” entendo a proximidade das duas ações:
corrigir e ensinar. Este verbo pode conter um significado de castigo corporal, sobretudo quando está no piel:
Pr 19,18; 29,17. Encontramos “correção” musar junto com “vara” xebet, em Pr 13,24; 22,15; 23,13. Porém, o
substantivo musar é usado mais freqüentemente no sentido de “correção” pela palavra. A LXX traduziu o
verbo “corrigiu” WTr;S.yI yisratu como evpai,deusen , um verbo que traz o sentido de “educar”,
“corrigir”. Confira pesquisa de M. Sæbø, ysr, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado
por Ernst Jenni e Claus Westermann, vol. 1, col.1016-1021. Esta forma, em estado construído, aparece
somente em Pr 31,1.
110
A partícula interrogativa ou exclamativa hm' mah, que traduzi por “como?”, pode significar, também, “o
268
que?”, “qual?”, “quanto?”. Ao optar por “como?”, entendo que a pergunta da mãe questiona um
comportamento, um modo de ser do seu filho, que ela não entende ou não aceita.
269
A palavra “filho”, na forma aramaica rB; bar, aparece repetida três vezes neste verso.
270
Esta palavra lyix; hayil pode ser entendida como “poder”, “riqueza”, “força”. Confira Luis Alonso
Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p.217 e Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir
Raymann e Rudi Zimmer, Dicionário hebráico-português & aramaico-português, p.67.
271
O termo tAxm. mehot, cuja raiz é hxm mhh, é um particípio no feminino e pode ser lido como
“apagada”, “cancelada”, “lavada”, “riscada” (confira Jz 21,17). O sentido figurado deste termo e sua
complementação, !ykil'm. melakin levaram-me a fazer esta leitura: “ao que se corrompe”.
272
É duvidoso o sentido deste termo wae ’en, que traduzi por “desejo”. Poderia ser uma negação? Não
encontro outro sentido senão desejo, lendo wae ’en como forma resumida do infinitivo #pxe hepez.
273
A raíz qqx hqq aparece aqui como um particípio pual que, nesta forma, ocorre apenas nesta passagem da
Bíblia Hebraica. No hebraico, este verbo é usado no sentido de “inscrever”, “governar”, “decretar”. Por isso,
foi traduzido como “decretado”.
274
A expressão que traduzi como “todos os filhos da aflição” yni[o-ynEB.-lK' kol bene ‘oni tanto
pode significar uma atitude como uma situação. Veja Luis Alo nso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-
português, p.508. Neste caso, indica a situação de desamparo, marginalização e injustiça, indicada pelo
conjunto dos elementos que formam a frase.
275
O termo dbeAa ’obed vem de bAa ’ob, que significa “fantasma”, “es pírito”, “espectro”. Confira Luis
Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p.32 e Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton
Schwantes, Acir Raymann e Rudi Zimmer, Dicionário hebráico-português & aramaico-português, p.5. A
Bíblia de Jerusalém traduz este termo como “moribundo” (veja p. 1163) e a versão revisada da tradução de
João Ferreira de Almeida, p.570, traduz a frase como: “dai bebida forte ao que está para perecer”.
276
O termo @Alx] halop é um infinitivo ou nome verbal que qualifica filhos. Entendi @Alx yneB.-
lK' kol bene halop como “todos os filhos do abandono”. Não é difícil intuir a situação social expressa
através deste termo. São pessoas sem estabilidade econômica e sem assistência social. Este termo completa a
111
descrição iniciada no verso an terior: “abre tua boca pelos mudos”. São todos aqueles que não são escutados e
cujas reivindicações não são atendidas e cujos direitos não são respeitados.
277
O termo !Ay*b.a, ebion, que também aparece em Pr 31,20, tem o sentido específico de “pobre”, “sem
dinheiro ou recursos” e o sentido genérico de “desvalido”, “desamparado”, “indigente”, “falto”,
“necessitado”. Veja Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico -português, p.22. O verso final desta
instrução da mãe que recomenda ao seu filho rei a prática da justiça, lembra o discurso da sabedoria mulher
em 8,15-16 e 20.
278
O termo lyIx;-tv,eae ’exet hayil pode ser traduzido por “mulher de força” ou “mulher de guerra”.
Tanto a Septuaginta como a Vulgata o traduziram como “mulher forte”. Algumas versões da Bíblia, em
português, trazem o termo “mulher talentosa” (Bíblia de Jerusalém, p.1163), “mulher virtuosa” (versão
revisada da tradução de João Ferreira de Almeida, p.570). Embora não esteja longe da raiz original, pois
etimologicamente a palavra virtude provém de virtus e tem a ver com força e vigor. No entanto, nas
interpretações e nos discursos sobre este tema a conotação moral é mais sublinhada.
279
No hebraico, o termo leb tem muitos significados. Um deles é designar toda a região cardíaca (2Sm 18,4;
Sl 17,15) e a força vital (Gn 18,5; Jz 19,5.8; Sl 104,15). Outro é representar a potência e o desejo sexual (Os
4,11; Jó 31,9; Pr 6,25). Veja mais dados sobre ble leb na pesquisa realizada por F. Stolz, Diccionario
teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westermann, vol.1, p.1176-1185.
280
O termo ll'v' xalal tem o significado de “botim”, “presa”, “despojo”. Em sentido figurado significa
“prosperidade”, “negócio rentável”. Confira Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português,
p.675.
281
A raiz lmg gml está documentada com segurança somente em acádico, hebraico e árabe, porém o seu
significado apresenta grandes diferenças, nestas línguas. No AT, gml aparece 60 vezes, sendo que 15 vezes
nos Salmos, 12 vezes em Isaías, 6 vezes em 1Samuel e 5 vezes em Provérbios. O substantivo gemul é também
usado para descrever ações benéficas de Deus com a humanidade (Is 63,7; Sl 13,6; 103,10; 116,17, 142,8).
Confira G. Saber, gml, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus
Westermann, vol.1, p.606-609.
282
A forma verbal hv'r>D' darxah está no qal, perfeito, feminino, singular. Sua raiz é vrD drx, um
verbo próprio do semítico ocidental e que está documentado em ugarítico, aramaico, etíope e árabe, além do
hebraico, com o significado de “procurar”, “examinar”, “pesquisar”, “indagar”, “exigir”. Sua raiz coincide
com um verbo que significa “caminhar” drk , em hebraico e aramaico. Tem um campo semântico profano
bastante reduzido, embora esteja abundantemente documentado no hebraico, aparecendo no AT cerca de 155
vezes no qal e 9 vezes no nifal. Veja os diferentes significados de drx em pesquisa feita por G. Gerleman e E.
Ruprecht, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus
Westermann, vol.1, p.650-659.
112
283
Segundo Os 2,7.11, era o homem que devia prover a mulher de lã e linho. Neste poema, a mulher de luta
tem autonomia para conseguir a matéria prima necessária para fazer seu trabalho e para comercializá -lo. É
esta autonomia que lhe garante o prazer de trabalhar.
284
A palavra mão dy' yad aparece no v.19, no v.20 e no v.31. Aqui, no v.13, a palavra é “palmas”
h'yP,K; kapeha , um termo também repetido nos v.16.19 e 20.
285
O termo #p,xe hepez tem o significado de “agrado”, “gosto”, “interesse”, “vontade”. Veja mais
informações em Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p.238.
286
Nesta comparação da mulher forte e sábia com uma nave mercante há algo de inédito dentro do contexto
do poema, pois apresenta a mulher com uma aureola de majestade e de abundância. A lamentação sobre Tiro
que se encontra em Ezequiel 27 é um exemplo do uso do navio mercante como símbolo de poder e majestade.
Confira Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto, Sapienciales y
Proverbios, p.529.
287
Em hebraico e nas línguas vizinhas, o significado de “casa” bayit se estendeu a tudo o que há na casa. Veja
o estudo apresentado por E. Jenni, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Er nst
Jenni e Claus Westermann, vol. 1, p.449-457. É interessante observar a repetição neste poema do termo com
possessivo em feminino: “sua casa” Ht'yBe betah. Este nome em feminino aparece no v.15, no v.21, e duas
vezes e no v.27.
288
Este verso quebra o ritmo da poesia. Luis Alonso Schökel afirma que se uma das frases for suprimida, o
sentido do verso não fica mutilado. Este autor sugere a seguinte tradução: “Reparte rações e tarefas a criados e
criadas”. Veja Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto, Sapienciales y
Proverbios, p.530.
O verbo “examinar” hm'm.z' zamemah está no qal, perfeito, feminino e expressa uma ação intelectual.
289
A mulher de Pr 31,10-31 não trabalha apenas com habilidosas mãos e com tino administrativo. Ela pensa,
estuda, examina, já que zmm indica atividade intelectual. Como verbo, ~mz zmm , ocorre somente duas vezes
em Provérbios. Uma vez com o sentido mais comum de tramar (30,32) e uma única vez como realização de
uma atividade intelectual de investigar sobre um assunto, antes de tomar uma decisão (31,16). Confira Luis
Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p.194.
290
A palavra z[o ‘oz o , cuja raíz é zw[ , significa “vigor”, “força”, “poder”, “firmeza”. Confira Nelson
Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann e Rudi Zimmer, Dicionário hebráico-português &
aramaico-português, p.176.
291
O verso 17 mostra um aspecto inverso ao 16, pois o gesto de cingir a cintura com decisão e fortalecer os
braços faz parte do ritual de preparação para o trabalho manual. No Sl 65,7 Deus se cinge de poder para criar
o mundo.
113
292
O verbo hm'[]j' ta‘amah está no qal, feminino e indica em primeiro lugar saborear algo, como em Jó
12,11; 34,3. Saborear tem algo a ver com sentir prazer e, ao mesmo tempo, com uma fina percepção de
diferentes sabores. Confira Ralph H. Alexander, em R. Laird Harris, Gleason L. Archer Jr., e Bruce K.
Waltke, Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p.575-576, verbete 815.
293
O termo “mãos dela” h'yd,y" yadeha está repetida 5 vezes neste poema (31,10-31), nos v.13.16.19.20.
31 e tem a ver com o seu campo semântico e sua estrutura.
294
O autor (ou autores) deste poema uniu os v. 19 e 20 através de palavras semlhantes: iadeh xilehah kapeha /
kapah yadeja xilehah, para expressar que o trabalho da mulher sábia e forte está direcionado à solidariedade
para com os pobres. Não é um trabalho voltado para a acumulação, mas para a solidariedade e a partilha. Este
texto lembra Dt 15, que manda abrir a mão ao necessitado.
295
O termo ~yniv' xanim significa “vestido duplo ou forrado”. Veja mais detalhes em Luis Alonso Schökel
e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto, Sapienciales y Proverbios, p.532. Segundo Dicionário
hebraico-português & aramaico-português, elaborado por Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes,
Acir Raymann e Rudi Zimmer, p.257, o nome xanim está no plural, e significa “roupa escarlate”. Poderiam
ser fios de lã tingidos com “ovos de uma espécie de cochinilha”.
296
A expressão !m'g'r.a;w. vve xex ve-’argaman, que traduzi como “linho e púrpura”, deve ser
entendida especialmente no sentido de cor. Quando vv xex se opõe ae !m'g'r>a;w> ve-’argaman o
sentido muda, pois uma cor se opõe à outra. Confira Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-
português, p.75. Podemos, então, entender que aqui se trata do tecido e da qualidade da vestimenta e não
somente da cor.
297
A raiz [dy yd‘ aparece 35 vezes no livro dos Provérbios e faz parte do campo semântico da sabedoria.
Mas, no cap. 31, aparece somente esta vez e como nifal particípio [d'Ano noda‘. Confira Luis Alonso
Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p.268.
298
Somente, agora, aparece o marido. Sua boa reputação na porta da cidade, lugar onde se realizam os
julgamentos, parece que se deve à sua esposa.
299
O poeta retorna à sua descrição da competência da mulher forte e sábia, repetindo palavras dos versos
anteriores, como “preço” e “valor” hr'k.mi mikrah do v.10; “faz” ht'f.[' ‘astah dos v.13 e 22; “cinturões”
e “cingir-se” hr'g.x' hagrah do v.17. Além disso, a menção de ynI)[]n:K.l; lakena‘ani literalmente
114
“para canaane”, parece indicar a antiguidade do tema, embora sua composição seja recente. Veja André
Barucq, Le Livre des Proverbs, Paris: Lecoffre, 1964, p.18.
300
Esta é a terceira vez que se menciona vestido, neste poema. Encontramos uma frase semelhante no Sl
104,1, onde “Javé está vestido de esplendor e majestade”.
301
Este verso lembra Pr 1,8; 6,20 e 31,1 que reiteram a função da mãe como sábia educadora de seus filhos.
Chama a atenção a sua forma de ensinar: “e torah de bondade en sua língua” hn'Avl.-l[; ds,x,©÷-
tr;Atw. vetorat- hesed al lexonah .
302
O termo que traduzi por “caminhada” é tAk'ylih] halicaot está no plural. Segundo Luis Alonso
Schökel, este termo pode ser traduzido por “andanças”. Confira Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico
hebraico-portugués, p.176.
303
A expressão “casa dela” Ht'yBE betah aparece pela quarta vez neste poema e delimita esta subunidade.
No v.15, ela “dá alimento à sua casa” e no v. 27, ela “vigia a caminhada de sua casa”.
304
Muda-se, de repente, o conteúdo e quebra-se o ritmo da poesia. Buscarei entender este
305
Há, aqui, um convite para um louvor público, na porta da cidade, no espaço comumente reservado aos
homens. Este aspecto será retomado no estudo do conteúdo deste capítulo.
115
separadamente a estrutura literária de cada subunidade que forma o capítulo 31: v.1-9 e
v.10-31, observando suas particularidades e, também, os enlaces semânticos e temáticos
entre os dois poemas que o compõem.
A delimitação de cada poema é feita por uma introdução: O v.1 introduz o discurso
da sábia mãe do rei Lemuel, com a estranha afirmação de que são palavras do rei. O v.10
introduz o poema da mulher forte e sábia, com uma interrogação sobre a possibilidade de
encontrá-la. Desta maneira, o cap.31 é tecido com a temática da mulher que ensina
sabiamente e daquela que trabalha com autonomia e competência, formando uma unidade
literária a partir do tema da mulher. Outro sinal da delimitação do texto é indicado pela
pausa @ colocada depois do ponto final ` do v.9, separando desta maneira as duas
subunidades do cap.31 de Provérbios.
Antes de analisar os temas que enlaçam os dois poemas, criando coesão dentro do
capítulo, é necessário verificar a estrutura de cada unidade literária.
1º poema: Pr 31,1-9
2º poema: Pr 31,10-31
A forma acróstica com que se elaborou este poema é bastante conhecida, na Bíblia.
O acróstico se usa para ajudar a memorizar. Portanto, é um recurso mnemotécnico306
306
Veja Sl 9-10; 25; 34; 37; 111; 112; 119; 145; Lm 1-4; Na 1,2-8.
116
Tomando a primeira letra de cada verso 307 , forma-se o alfabeto hebraico. Ao fazer uma
opção pela forma acróstica, o poeta demonstra seu objetivo didático. Percebe-se o seu
esforço para controlar a seqüência do tema e ao mesmo tempo manter a ordem alfabética, o
que demonstra a forma altamente elaborada desta subunidade. Há um crescendo no
desenvolvimento de todo o poema, levando-o a culminar com um louvor geral a ’exet hayil.
Ao enlaçar os dois poemas, o termo lyIx; hayil transforma a visão sobre a mulher.
Ela não é somente aquela que espera poder, força, proteção do homem, como transparece
na recomendação que a mãe faz ao seu filho rei: “não dês às mulheres tua força” (v.3). A
mulher também possui hayil. Ela é “mulher de força”. Ela também tem poder. Esta nova
visão, introduzida pelo estado construído: lyIx;-tv,ae ’exet hayil, crescerá, através da
307
O acróstico pode ser formado com a primeira letra de cada estrofe, como no Sl 9-10, 37 e 119.
117
forma poética usada para fazer a apresentação desta mulher. No final da apresentação
(v.29), aparece novamente a palavra hayil, agora nos lábios do marido que a louva.
Outra ligação entre os dois poemas se dá através dos termos “oprimido” e “pobre”
!Ayb.a,w> yni[' ‘ani ve’ebeon. Estas palavras fecham o primeiro poema: “abre tua
boca, julga com justiça o oprimido e o pobre” (v.9). Estes termos “oprimido” !Ayb.a>
’ebion e “pobre” yni[' ‘ani encontram-se literalmente repetidos no v.20: “estende sua mão
ao oprimido e ao pobre”. Além disso, muitas outras palavras que fazem parte deste campo
semântico, como “pobreza”, “aflição”, “abandono” estão repetidas nos v.7-9 e 20-21,
enlaçando os dois poemas.
O poema de Pr 31,10-31 tem uma estrutura muito regular, com versos de duas
partes. Somente o v.15 quebra esta cadência. Talvez seja uma glosa, acrescentada com a
finalidade de criar um enlace com Pr 30,8, onde se encontra a expressão “minha porção de
pão” yQixU ~x,l, lehem huqi. Em 31,15, o termo qxe heq também está relacionado
308
Norman K. Gottwald, Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica, p.484.
118
com “alimento” ou “sustento” @r,j, terep. No entanto, não é possível fazer neste item
uma análise sobre ligação entre o capítulo 30 e o 31.
Olhando o cap.31 de Provérbios como um todo, vemos que ele é formado por dois
poemas sapienciais com função didática, que possuem uma seqüência temática. Embora
unidos pelo enfoque temático da mulher sábia e forte, os dois poemas têm estilos diferentes,
pois o segundo foi elaborado como um acróstico. Este é um aspecto que demonstra a
variedade e a riqueza da poesia hebraica. A esse respeito, Josef Schreiner faz o seguinte
comentário: “se a sabedoria é o esforço e a arte de configurar a vida de maneira acertada e
feliz, as formas de locução sapiencial pertencem àquelas maneiras de falar e àquelas
afirmações formais que pretendem alcançar este fim” 309.
Não dês às mulheres tua força, nem teus caminhos ao que corrompe reis (v.3).
Nos v.4-7, encontram-se nove frases que formam uma estrofe seqüencial sobre o
uso da bebida. Há repetições de frases inteiras, nesta estrofe. Aliás, esta é uma característica
da poesia hebraica. No v.4, a frase “não é próprio do rei beber vinho” está repetida
literalmente e uma terceira frase é formada como um adendo ou soma do mesmo conteúdo:
“nem dos governantes gostar de licor”. Com estas três frases se acumulou um significado
de negação ao uso do vinho. No v.5, duas frases explicam a razão desta abstinência:
“porque ao beber se esquecem das leis e não atendem ao direito dos pobres”. Aqui também
forma-se um verso em duas partes, através da repetição do sentido. Os v.6-7 apresentam
309
Joséf Schreiner, “Formas y géneros literarios en el Antiguo Testamento”, em Introducción a los Métodos
de la Exégesis Bíblica, Josef Schreiner (organizador), Barcelona: Herder, 1974, p.285.
119
uma fina ironia, através de 4 frases seguidas, indicando que a bebida deve ser dada aos que
sofrem, para que se esqueçam de suas penas. As frases que formam esta estrofe já se
encontravam, certamente, em uma tradição oral ou escrita, pois fazer recomendações sobre
o uso da bebida, parece ter sido uma atividade muito comum (Pr 4,17; 20,1; 23,29-35).
Observo que esta estrofe de 31,4-7 possui um estilo bastante elaborado, em relação às
outras citações do livro dos Provérbios sobre este tema da orientação sobre a bebida.
Nos v.8-9 encontra-se repetida duas vezes a expressão “abre tua boca”, iniciando
frases que se complementam:
O v.10 torna-se chamativo porque usa dois recursos literários, fazendo uma
pergunta retórica e uma comparação:
Quem encontrará a mulher de força? Pois seu valor é maior do que pérolas.
310
Luis Alonso Schökel, Manual de poética hebrea, p.72.
120
Um outro bloco de comparações sinonímicas está formado pelos v.13-20. São nove
versos articulados pelo tema da competência desta mulher no trabalho e nos negócios. Os
dois últimos versos deste bloco foram elaborados em forma de quiasmo, mostrando que os
dois são inseparáveis. Embora o quiasmo pertença mais à estrutura que ao gênero, trago
aqui este exemplo, pois ele tem grande importância dentro do poema. Apesar de formar um
bloco temático com os v.13-20, o poeta dá autonomia a cada verso, criando dentro dele um
sentido próprio, a partir de comparação sinonímica e sintética. Mas, ao fechar o blo co, o
121
poeta enlaça dois versos, formando um quiasmo que impede a separação dos dois últimos
versos, ao mesmo tempo em que gera um novo significado. Este é o caso dos v.19 e 20:
hx'L.vI xilhah que mostram o movimento das mãos. No v.19, as mãos se movimentam
para o trabalho e no v.20 elas se movimentam para a partilha. Desta maneira, o recurso
literário usado pelo poeta trouxe um novo significado a todos os outros versos desta estrofe
(v.13-20), que descreve de maneira extremamente bela o trabalho desta mulher. Ela não é
somente uma trabalhadora competente (v.13 e 15) e grande administradora (v.14), capaz de
examinar com cuidado o terreno que deseja comprar para plantar uma vinha (v.16).
Decidida, ela assume conscientemente o seu trabalho (v.17-18), não apenas para garantir o
bem estar de sua família, mas para fazer-se solidária com os pobres e necessitados (v.19-
20).
Com o movimento das mãos, o poeta indica que esta mulher se abre a uma realidade
desafiadora, onde a justiça e o direito estão ausentes. Ela não está fechada à sua grande
casa; seu espaço de atuação não se circunscreve ao ambiente privado de sua família e
amigos. Mas, está atenta à problemática situação social do seu entorno e se faz solidária
com esta situação.
311
O verbo “vestir” vb;l' labax está no qal perfeito com sufixo feminino: “está vestida” Hv'Wbl. lebuxah.
No cap.31, este verbo aparece nos v.22 e 25 com a mesma forma e pessoa.
.
123
Concluindo, podemos dizer que o poeta utilizou recursos literários muito simples
para elaborar cuidadosamente este poema, com a finalidade de mostrar um retrato da
mulher da vida real. Podemos presumir que esta mulher poderia estar ligada à vida do
poeta, já que por trás da beleza deste poema pode ser encontrada a grata experiência de um
homem, cuja existência foi definitivamente marcada pela relação com uma mulher que lhe
tocou profundamente o coração (v.11).
3.4 – O contexto
312
No item anterior, sobre a estrutura de Pr 31, nos referimos à possibilidade de que o v.30 seja um adendo
posterior ao ato poético, introduzido no texto pelos editores do livro dos Provérbios.
124
Estas perguntas orientam minha pesquisa. No item 3.4.1, buscarei encontrar a época
de Pr 1-9 e 31, com a possibilidade de que estas duas seções formem uma moldura
conclusiva para todo o livro dos Provérbios. No item 3.4.2, situarei estes textos na história,
buscando descobrir a conjuntura internacional e nacional que estão por trás desta
elaboração poética. No item 3.4.3, investigarei sobre a ocasião e o ambiente de onde
surgiram estes textos e buscarei descobrir a sua intencionalidade no item 3.4.4. Finalmente,
tratarei de identificar o chão e as raízes do texto no item 3.4.5, porque o que
verdadeiramente me interessa nesta pesquisa é dar voz a estes textos, colocando-os no chão
da vida, para que possamos entrar em diálogo com eles.
3.4.1 – A época
A busca de ir do texto aos seus contextos exige que escutemos as diferentes vozes e
as diferentes reações a mudanças culturais, políticas, sociais e religiosas que ocorreram em
uma determinada época. Mas, qual teria sido a época de Pr 31,1-31? Com a ajuda de alguns
autores e autoras 313 , situamos a primeira seção do livro dos Provérbios (1-9) no final da
época persa. Quanto ao cap.31 de Provérbios, consideramo-lo como uma moldura para todo
livro, ligada diretamente com a primeira seção de Provérbios (1-9) e situado na mesma
época: o final do império persa. 314 Há muitos argumentos para esta ligação entre a primeira
e a última seção do livro dos Provérbios. No cap.4 desta pesquisa, buscarei fundamentar
com mais detalhes esta ligação.
Para esta finalidade de buscar o contexto social de Pr 31, assinalo a relação entre a
sabedoria mulher apresentada nos poemas de Pr 1,20-23; 8 e 9 com a mulher sábia e forte
de Pr 31,1-31. O vínculo entre as duas forma um inclusio para todo o livro dos Provérbios,
propondo uma nova ótica para sua leitura, sobretudo para uma visão da mulher.
313
Entre estes autores e autoras, cito Teodorico Ballarini, Introdução à Bíblia – Os livros poéticos, p.30:
Claudia V. Camp, Wisdom and femine in the book of Proverbs, p.234; Gerhard von Rad, La sabiduría en
Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, p.21: Luis Alonso Schökel, Sapienciales I Provérbios, p.105.
314
Conferir Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.164.
125
Desde a época do exílio, o povo judaíta toma consciência de que, apesar de todos os
desastres e desafios da complicada conjuntura histórica, social, religiosa e política em que
315
Rudi Tünermann, As reformas de Neemias, São Leopoldo/São Paulo: Sinodal e Paulus, 2001, p.13.
316
Antonius H. J. Gunneweg, História de Israel – Dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor Herzl até
nossos dias, p.227.
317
Veja Alviero Nicacci, A casa da sabedoria – Vozes e rostos da sabedoria bíblica, p.50s.
318
Marcelo Ghelman, Literatura de sabedoria e outras formas literárias, em
http://www.tryte.com.br/judaismo/colecao/br/livro7/17cap2-7.htm, em 14.05.06 às 8:16h.
319
Judith Hadley, “Yahweh and ‘his Asherah’ – Archaeological and textual evidence for the cult of the
Goddess”, p.240. Ver também Judith Hadley, “From Goddes to literary construct – The transformation to
asherah into hokmah”, em Reading the Bible – Aproches, methods and strategies, editado por Athalya
Brenner e Carole Fontaine, Sheffield: Sheffield Academic Press, 1977, p.393-396.
320
Khirbet el-Qon e Kuntillet ‘Agrud se localiza ao sudeste de Judá.
126
vivem, eles estão totalmente vinculados ao seu passado e reagem a estas situações novas de
acordo co m suas tendências, porém sempre a partir de sua tradição histórica. Carlos
Mesters apresenta quatro pontos que caracterizam esta nova consciência: 1. consciência de
continuidade histórica; 2. relativização do passado em função do valor absoluto possuído
no presente; 3. preocupação de mostrar modelos de ação que provoquem a caminhada do
povo para o futuro; 4. desejo de ser fiel, apesar de todas as resistências e dificuldades
encontradas no caminho. 321
Portanto, identificamos a casa ou o clã como a fonte principal destes poemas que
formam a moldura do livro dos Provérbios. Há vozes diferentes sobre este tema, que já
foram registradas no 1º capítulo desta tese. Neste item, menciono apenas alguns autores,
com a finalidade de chegar a uma conclusão sobre o contexto destes poemas que estou
analisando. Norman K. Gottwald apresenta um gráfico para demonstrar os ambientes onde
surge a sabedoria bíblica. Mostra que a sabedoria é gerada em três ambientes sócio -
históricos: 1. há uma “sabedoria de clãs” que percorre toda a história de Israel, desde a
época pré-monárquica até o exílio e a restauração; 2. a sabedoria real começa com a
monarquia unida e continua no pós-exílio com os escribas do governo colonial judaítico; 3.
321
Carlos Mesters, Por trás das palavras, Petrópolis: Vozes, 7ª edição, 1993, p.104.
322
Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução feminista da história de Israel”, em Feministissche
Exegese – Forschungserträge zur Bibel aus der Perspektive von Frauen, p.27.
127
3.4.4 – A intenção
323
Veja Norman K. Gottwald, Introdução Socioliterária à Bíblia Hebraica, gráfico 10, p.527.
324
Confira Leo G. Perdue, “Wisdom Theology and History in Proverbs 1-9”, p.89.
325
Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales y Proverbios, p.520.
326
No v.21, a expressão “casa dela” Ht'yBe betah aparece repetida duas vezes.
128
termina na porta de sua casa. Ela se solidariza com os oprimidos e os pobres (Pr 31,20) e
promove a fama do seu marido (31,23). Sua competente e ampla atuação chega a alcançar o
espaço público, nas portas da cidade. 327 Portanto, a intencionalidade do texto é mostrar algo
que o sistema social, cultural e religioso busca manter na invisibilidade: a importância da
mulher sábia e forte na realidade cotidiana e na construção da história do povo bíblico.
Esta visão da mulher tem suas raízes nas mulheres valentes do pós-exílio que
colaboram na reconstrução de Israel, investindo para isto sua vida e sua sabedoria. São
mulheres que contribuíram na reconstrução dos muros da cidade de Jerusalém, como as
filhas de Selum, mencionadas em Ne 3,12.328 Há histórias de mulheres fortes que
descortinam uma conjuntura em que são possibilitadas relações novas entre países
inimigos,329 como a história de Rute, que também é elogiada com a expressão “mulher de
força” ’exet hayil (Rt 3,11). Há mulheres pobres que participaram ativamente na exigência
da justiça e protestaram contra a escravidão de seus filhos e de suas filhas por causa de
dívidas (Ne 5,1-5).
Partindo da vida real de mulheres fortes e sábias que contribuem para a reconstrução
da história de Israel e, talvez, de uma experiênc ia pessoal de alguém que dá um testemunho
sobre uma mulher que marcou sua vida, o poema de Pr 31,10-31 expressa o poder feminino
na vida da casa, cujas “implicações transcendiam as configurações familiares imediatas de
espaço e parentesco”330 .
327
Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.159.
328
Embora a Bíblia de Jerusalém traga a expressão “filhos”, em nota de pé de página informa que no hebraico
trata-se de filhas. Veja Bíblia de Jerusalém, p.703, nota z. Confira este texto (Ne 3,12) na Biblia Hebraica
Stuttigartensia, p.1433, onde se encontra “filhas”, no feminino.
329
O livro de Rute mostra que depois do exílio da Babilônia houve um período em que as relações entre Moab
e Judá foram possíveis. Talvez tenha sido uma estratégia de sobrevivência de pequenos estados, para poderem
sobreviver diante do império.
330
Carol Meyers, “De volta para casa – Rute 1,8 e a definição de gênero”, em Rute a partir de uma leitura de
gênero, Athalya Brenner (organizadora), São Paulo: Paulinas, 2002, p.148.
129
3.5 – Conteúdo
331
Veja os vários exemplos da importância da mulher nas coisas religiosas apresentados por Silvia Schroer,
“Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.159s.
332
Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.160.
130
1º poema: 31,1-9
uma discussão sobre o sentido do termo aF'm; masa, que poderia significa tanto “peso”,
“carga”, “oráculo”, “pronunciamento”, minha opinião é que o sentido da palavra aF'm
masa tem o sentido de lugar e identifica uma tradição árabe que registra a memória da
sabedoria da mulher, da mãe de um rei. Esta tradição foi acolhida em Judá por sua
identificação histórica com a função e o poder que tinha a mãe do rei na comunidade
judaíta. No v.31,1, a mãe de Lemuel tem a função de “instruir” o rei: “lhe intruiu sua mãe”
AMai WTr;S.yI yisratu ’imo. A versão grega entendeu que estas palavras procedem
de Deus: “minhas palavras foram dit as por Deus” oi` evmoi. lo,goi ei;rhntai
u`po. qeou/.334 Mas, não deixa de mencionar que as palavras procedentes de Deus
foram transmitidas por uma mulher, a mãe do rei: “cuja mãe o instruiu” o]n
evpai,deusen h` mh,thr auvtou. A instrução da mãe, valorizada neste texto, faz
eco às palavras de Pr 3,1: “meu filho, minha torah não esqueças e minha mizvah guarda no
teu coração”. A Bíblia de Jerusalém traduz torah por “instrução” e mizvah por
“preceitos”335. É interessante encontrar estas palavras tão importantes para a formação do
judaísmo, no pós-exílio, relacionadas aos ensinamentos da mãe e do pai (Pr 1,8; 6,20).
Outro aspecto importante, é que em Provérbios a torah (lei) e a mizvah (tradição) não estão
relacionadas ao templo, do qual não se fala em todo o livro, mas à casa. São as tradições da
333
A história de Atalia (841-835 a.C.) deixa transparecer este poder (2Rs 11,1).
334
Biblia Septuaginta id est Vetus Testamentum graece iuxta LXX interpretes, editada por Alfred Ralhlfs,
New York: American Biblical Society, vol.2, 1950, p.227.
335
Veja Bíblia de Jerusalém, São Paulo: Paulus, 2000, p.1120.
131
casa que devem ser guardadas no coração. Estas tradições estão carregadas de uma
sabedoria prática e profundamente ética, como transparece nas palavras da mãe de Lemuel
(31,1-9).
forma aramaica rB; bar, acrescentando aspectos que não deixam dúvida de que esta fala é
É curioso observar o mal estar que o registro desta instrução da mãe provoca em
leitores atuais. John N. Oswalt, em seu comentário sobre rB bar, acrescenta que “a
instrução é dirigida por parte de um pai para seu filho (confira Pr 1,8; 2,1, etc.)”336 . No dia-
a-dia da casa, certamente a instrução para a vida é feita tanto pelo pai, como pela mãe. Mas,
ao escrever ou ler um texto, o olhar viciado pelo androcentrismo enxerga somente a
instrução masculina. Mesmo quando um texto esclarece qual é a personagem que está
realizando a ação de instruir ou ensinar, como é o caso da mãe do rei em Pr 31,1-2, o
estudioso sente-se impelido a corrigir o texto e afirmar que esta instrução era feita pelo pai.
No v.3, encontra-se a expressão “não dês às mulheres tua força”. O termo ^l,^yxe
heyileka, que também poderia ser entendido como “tua força” ou “teu poder” está repetido
no v.10 deste capítulo, justamente para expressar uma qualidade da mulher da vida real, a
336
Veja John N. Oswalt, bar, em Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, editado por R.
Laird Harris, Gleason L. Archer Jr., e Bruce K. Waltke, p.211-212, verbete 277.
132
“mulher de luta” lyIx;-tv,ae ’exet hayile. O primeiro poema recomenda ao homem que
não dê sua força às mulheres e o segundo aponta para a importância de encontrar a mulher
de força, mulher de poder, mulher valente que luta pela sua autonomia econômica e que
está vestida de dignidade e de força. E o v.3 conclui com outra recomendação relacionada
ao poder: “nem teus caminhos ao que corrompe reis” (v.3b). Entendo que esta
recomendação da mãe está relacionada com a postura ética que deve ser mantida pelo filho
rei. Este é o sentido que encontro na palavra “caminhos”: conduta de vida, comportamento,
postura. O que corrompe os reis e destrói seu nome é a aceitação posturas contrárias aos
princípios que conduzem à vida de todos.
4. Não (é) para os reis, Lemuel, beber vinho não (é) para os reis,
nem para os governantes o desejo de bebida,
5. Porque bebendo se esquecem do decretado
e torcem o julgamento de todos os filhos de aflição
6. Dá bebida forte ao moribundo
e vinho aos amargados.
7. Que beba e se esqueça de sua pobreza
e não se lembre mais de sua aflição.
Beber vinho não é para os reis, Lemuel.
Fazer recomendações sobre o uso da bebida, é próprio das instruções dos sábios. Em
Pr 20,1, há uma advertência para quem se excede na bebida: tomem cuidado, pois
“zombador é o vinho e agitador o licor forte” (Pr 20,1). Este aviso é, também, um estímulo
133
para que o jovem não se exceda na bebida e possa “chegar a ser sábio” (Pr 20,1b). Este
sentido foi captado pelo tradutor da Septuaginta, que entendeu o v.5 como: “temendo que
eles bebam vinho e esqueçam a sabedoria, não sendo capazes de julgar com retidão o fraco”
i[na mh. pio,ntej evpila,qwntai th/j sofi,aj kai. ovrqa.
kri/nai ouv mh. du,nwntai tou.j avsqenei/j. Este é o sentido mais
provável do ensinamento da mãe do rei Lemuel. Para ela, o motivo da abstenção é a prática
da justiça. Não é um apelo moralizante, este da mãe do rei Lemuel. É uma preocupação
com a capacidade do rei de julgar lucidamente e com total liberdade, defendendo o direito
dos fracos.
Esta instrução da mãe, que recomenda ao seu filho rei a prática da justiça, lembra o
discurso da sabedoria mulher em 8,15-16 e 20, onde afirma que através dela os governantes
“decretam a justiça” e os magistrados “dão sentenças justas”. Segundo Silvia Schroer, “o
tema central da sabedoria dos Provérbios, de muitos Salmos e do livro de Jó é a conduta de
vida dos justos, em oposição à dos pecadores e estultos. Todos estes escritos não se cansam
de interrogar-se sobre a ligação entre o agir das pessoas e o que lhes ocorre, por
conseguinte, sobre as bases do seu comportamento ético”337 . A preocupação com a justiça e
o direito dos pobres é a postura ética principal na organização da vida na casa (clã) e na
comunidade.
Não é difícil descobrir a situação social expressa através dos termos “mudos”
“oprimido” yni[' ‘ani e “pobre” !Ayb.a, ’ebion . Os “mudos” ~Leai ’ilem são todos
337
Silvia Schroer, “A justiça da sophia – Tradições sapienciais bíblicas e discursos feministas”, p.73 [701].
134
aqueles e aquelas que não são escutados e cuja palavra ou reivindicação é desprezada. A
expressão “todos os filhos de abandono” deixa entrever uma situação muito ampliada de
marginalidade social, que inclui também “oprimidos” e “pobres”. Isto é, todas as pessoas
cujos direitos não são respeitados e cujas necessidades básicas não são atendidas. São estes
os “filhos de aflição” (v.5), cuja angústia diante de situações ameaçadoras é sentida pela
mulher sábia. Na antiguidade, cuidar dos pobres era uma função do rei. Mas, segundo este
ensinamento da mãe, eles costumavam beber e esquecer-se do direito dos pobres ou torcer
este direito.
Desta maneira, a instrução da mãe do rei Lemuel fica reconhecida não somente
como um texto paralelo aos oráculos proféticos, 338 mas também como um registro do
discurso da mulher sábia e do contexto social de sua época.
2º poema: 31,10-31
Os traços do rosto de uma mulher da vida real estão por trás do texto, apontando
para algumas ligações da mulher aqui apresentada com outros textos bíblicos. Mas, não são
traços de uma mulher jovem, mas experiente. As qualidades da mulher da mulher de força,
louvada em Pr 31, são desenvolvidas a partir de sua experiência na administração de sua
casa, no cuidado pela vida de sua família e das pessoas que a cercam. A autonomia
financeira e a capacidade administrativa desta mulher supõem uma longa aprendizagem,
através das diferenciadas relações cotidianas, muitas vezes marcadas por conflitos que
exigem discernimento. Estas qualidades não são naturais, são desenvolvidas pessoalmente
na prática exigida pelas diferentes situações da vida. Embora Luis Alonso Schökel e José
Vílchez Líndez, afirmem que este poema foi elaborado pelos mestres da sabedoria com a
338
Confira Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto, Sapienciales y
Proverbios, p.522.
135
10. Mulher de força, quem encontrará? seu valor (é) muito maior do que pérolas .
3,29; 11,1; 18,2; 20,44.46; 1Sm 9,1, entre outros textos. O termo lyIx; hayil encontra-se,
também, no cântico de Ana, para proclamar que “os enfraquecidos se cingem de força”
lyix' Wrz.a' ~liv'k.nIw> ve-nikexalim ’azeru hayil (1Sm 2,4b). É usado por Booz
para fazer um elogio à Rute: “tu és mulher de força” (Rt 3,11). No mesmo v.10b de Pr 31,
há uma repetição do termo lyIx; hayil, usado no sentido de “valor”: “seu valor (é) muito
maior do que pérolas”. O termo lyIx; hayil aparece também no v.29, no contexto do
elogio que o marido da mulher forte lhe faz. Portanto, este poema possui uma indicação
muito clara de que a descrição desta mulher tem a ver com a coragem e a valentia com que
ela enfrenta seu dia-a-dia na casa, na construção da história de sua família e de seu povo.
339
Confira Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto, Sapienciales y
Proverbios, p.524.
340
Bíblia de Jerusalém, p.1163.
341
Confira em Bíblia Sagrada , versão revisada da tradução de João Ferreira de Almeida, p.570.
136
Mas, a mulher forte é introduzida neste poema através de uma pergunta e não de
uma afirmação. A pergunta é retórica e quer insinuar como é raro encontrá- la. Pode ser que
esta pergunta seja reveladora de uma visão sobre a mulher, presente no contexto cultural
deste texto. Sinto que é necessário estar atenta, para não cair em armadilhas e submeter-me
à ideologia subjacente ao discurso. Para mim, a pergunta retórica: “quem a encontrará?”
tem como finalidade salientar o valor da mulher forte, enfatizado na segunda parte do v.1,
através da comparação: ela vale “mais que pérolas”. Esta mesma expressão foi usada em Pr
3,15 e 8,11 para enfatizar o valor da sabedoria. Além de chamar a atenção para a mulher
que será apresentada nos versos seguintes, através desta comparação, o poeta realiza um
enlace entre a figura da sabedoria mulher (Pr 1; 8 e 9) e a mulher da vida real, cantada em
Pr 31,1-31.
O uso da palavra “coração” ble leb t raz alguns matizes que ajudam a entender a
relação desta mulher com seu marido. Em Pr 2,10; 14,33; 16,23 o leb é o órgão da
sabedoria hokmah. No hebraico, é com o coração que se conhece (Jó 17,4; Pr 2,2), e se
julga criticamente (Jz 5,15s; Ecl 2,1.3.15). Desta maneira, a relação da mulher da vida real
com seu marido fica ampliada pelo uso da palavra “coração”. Se o poeta assegurasse,
apenas, que seu marido confia nela, poderíamos interpretar que a razão de sua confiança
estivesse relacionada à sua capacidade para administrar a casa e os negócios com total
competência. Mas, o uso de leb amplia o motivo da confiança de seu marido, deixando
perceber algo sobre as relações ent re os dois. O v.12 segue na mesma intencionalidade de
ampliar o bem estar que a ’exet hayil lhe proporciona. Com o uso do termo “bom” bAj
tob, o poeta amplia o sentido dos bens que a mulher de luta proporciona ao seu marido. Há
muitas passagens na Bíblia Hebraica que apresentam bAj tob com o sentido de benefício
137
prático ou econômico (Gn 2,9; 41,5.36; 50,20). Também é empregado no sentido de fama e
reputação (Is 56,5; Jo 34,4). Com freqüência, “bom” significa “feliz” “agradável”, “alegre”
(1Sm 25,8). 342 A frase: “proporciona-lhe bem e não mal todos os dias de sua vida” está
indicando que, como esposa, a mulher de força não traz felicidade ao seu marido somente
em alguns momentos do seu dia, mas todos os dias de sua vida. 343
O v.13 é iniciado pelo verbo “buscar”. É interessante observar que este verbo no
feminino, aparece somente aqui com este sentido de buscar para si suprimento do material
necessário para o próprio trabalho.
Segundo Os 2,7.11, era o homem que deveria prover a mulher de lã e linho para
suprir suas necessidades. Mas, em Pr 31,13 é a mulher quem busca o suprimento de que
necessita. Ela tem autonomia para conseguir a matér ia prima necessária para fazer seu
trabalho (v.13) e tem liberdade para comercializá- lo (v.24). É esta autonomia que lhe
garante o prazer de trabalhar, como indica a segunda parte do v.13. Se suas mãos trabalham
com alegria é porque esta mulher tem motivações próprias para trabalhar. Além disso, ela
não está confinada ao espaço da casa, continuamente fiando, tecendo e costurando
(v.13.19.22 e 24), mas está ligada ao mundo comercial, através da busca do material
necessário para seu trabalho e de alimentos para sua casa (v.14). Ela mesma realiza os
contatos necessários para a comercialização dos seus produtos (v.16.24). Talvez este texto
esteja mostrando uma evolução cultural quanto à autonomia econômica da mulher e suas
funções na casa.
342
Confira Andrew Bowling, em em Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, editado por
R. Laird Harris, Gleason L. Archer Jr., e Bruce K. Waltke, p.564-566, verbete 793a.
343
Veja Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , p.123.
138
No v.14, temos uma comparação inédita dentro deste poema. A mulher forte e sábia
é comparada a uma nave mercante.
A primeira parte do v.15 apresenta a mulher forte levantando-se muito cedo para dar
“sustento à sua casa”. Já que o termo casa, no hebraico, tem um sentido amplo, que inclui
os bens e todas as pessoas que nela residem, não seria necessário acrescentar “e porção às
suas criadas”. No alimento dado pela mulher “à sua casa” já estaria incluída a porção que
deveria ser dada às suas criadas. A última parte deste verso não seria necessária. Entendo
que a última parte do v.15 poderia ser um acréscimo posterior, com a intenção de ligar Pr
344
Conferir Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto, Sapienciales y
Proverbios, p.529.
139
31,15 com Pr 30,8 através da palavra “porção” relacionada a alimento: “pão de minha
porção” yQixu ~x,l, lehem huqi (Pr 30,8). Mas, não é meu objetivo desenvolver este
tema da ligação ou enlace entre os últimos capítulos do livro de Provérbios, no texto
massorético. O que me interessa neste texto é a apresentação da mulher da vida real. Uma
característica desta mulher é sua prontidão para levantar-se de madrugada e repartir o
alimento necessário a todas as pessoas da casa. Portanto, esta alusão especial às criadas
pode ter aqui o sentido de dar-lhes visibilidade no texto e também de apreentar com
detalhes a capacidade e também a prontidão no atendimento das necessid ades dos seus
criados e criadas.
No v.16, encontramos mais um traço do rosto da ’exet hayil de Pr 31,10-31. Ela não
é somente uma boa “dona de casa” que provê as necessidades de seu marido, filhos e
criados, buscando trazer de longe aquilo de que necessitam. É também uma boa
administradora que busca desenvolver os bens que conquistou com seu trabalho.
Este verso mostra, também, que esta mulher tem uma capacidade intelectual, pois o
verbo ~mz zmm, que introduz o v.16, tem o sentido “pensar”, “refletir”, “ponderar”,
“examinar”. Com o uso deste verbo, o texto está indicando claramente que ela tem
capacidade para pensar e autonomia para tomar decisões. A mulher de Pr 31,10-31 não
trabalha apenas com habilidosas mãos e com tino administrativo. Ela pensa, estuda,
examina um terreno, antes de comprá- lo. Sabe fazer bons investimentos com o fruto do seu
trabalho. A frase “do fruto de suas mãos planta uma vinha” (v.16b) pode ter aqui dois
significados. Primeiro, relacionado ao sentido empreendedor desta mulher. Segundo,
mostrando mais uma vez sua proximidade com Javé. É interessante observar que a mulher
de luta planta uma vinha com o fruto de suas mãos. Esta afirmação pode ter um sentido
metafórico, pois Javé é o plantador da vinha que é Israel (Jr 11,17; Ex 15,17; Sl 80,9-10.16;
Is 60,3.21). A visão de Javé como plantador de jardins, de vinhas e de árvores é muito
conhecida entre o povo bíblico. A segunda narrativa da criação apresenta Deus plantando
140
um jardim no Éden (Gn 2,8). O Salmo 104,16 afirma que Javé plantou os cedros do Líbano.
Os profetas usam continuamente a imagem de Israel como uma vinha plantada por Javé
(Am 9,15; Is 5,7; 60,21; Jr 2,21; 5,10; 6,9; 8,13; 31,28; 32,41). Porta nto, encontro no v.16
uma identificação entre a ’exet hayil e Javé, que continuará nos versos seguintes.
O v.17 mostra outro aspecto da força e autonomia desta mulher, pois o gesto de
“cingir a cintura com decisão e de fortalecer os braços” faz parte do ritual de preparação
para o trabalho manual e para as longas caminhadas, em uma época em que se usavam
roupas compridas.
O verbo cingir hr'g.x' hagerah fazia parte da cultura da casa. A raiz do verbo
“cingir” rAgx hagor é a mesma de “cinturões”. Era uma ação muito comum colocar-se
um cinturão para sustentar a túnica, o que leva a pensar na demanda de cinturões, já que
esta devia ser uma peça muito usada. Em 31,24, a mulher fabrica “cinturões” para vender.
Mas, não apenas para o trabalho usavam-se cinturões. Edwin Yamauchi ressalta que as
mulheres usavam cintos ornamentados semelhantes ao obi dos japoneses (Is 3,24; Pr
31,24), e os homens usavam cintos de onde pendiam as espadas (1Sm 18,4). 345
345
Edwin Yamauchi, em Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, editado por R. Laird
Harris, Gleason L. Archer Jr. e Bruce K. Waltke, p.426 -427, verbete 604.
141
No verso 18, encontramos mais uma referência ao gosto que sente esta mulher na
realização do seu trabalho.
Este verso é iniciado pelo verbo “perceber” hm'[]j' ta‘amah que, no hebraico, tem
também o sentido de saborear. Isto é, tem algo a ver com sentir prazer ao obter a percepção
de diferentes sabores. Mas, o desenvolvimento do sentido deste verbo levou ao seu uso para
dar uma idéia de avaliação e decisão, ou seja, de percepção da realidade. 346 O uso do verbo
ta‘amah pelo poeta acrescenta algo sobre o prazer que esta mulher sente ao ver o sucesso
dos seus negócios. Talvez se encontre, aqui, uma indicação de uma paixão criativa que leva
esta mulher a passar noites acordada. Não seria somente a motivação pelo resultado
econômico que a faria trabalhar tão intensamente, mas a alegria de realizar um trabalho que
alcança bom resultado, que tem sucesso. Ela percebe, sente, saboreia o gosto de realizar
este trabalho, como se estivesse construindo a si mesma.
Os versos 19 e 20 estão ligados entre si pela repetição das mesmas palavras. Assim
enlaçados, estes dois versos apontam para um novo sentido do trabalho da ’exet hayil.
346
Ralph H. Alexander, em Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, R. Laird Harris,
Gleason L., Archer Jr., Bruce K. Waltke, p.576, verbetes 815 a e 815b.
142
postura ética em relação aos direitos dos trabalhadores representam aquilo que agrada a
Deus, muito ma is do que jejuns e ritos vazios.
A detalhada descrição do intenso trabalho da ’exet hayil está direcionada para esta
conclusão, onde aparece a solidariedade e a partilha com pobres e necessitados,
inseparavelmente ligadas ao trabalho. Podemos então concluir que tanto afã de trabalhar
não tem a finalidade de acumular bens, mas de responder às necessidades próprias e do seu
contexto, exercendo a solidariedade com os pobres e necessitados.
O verso 21 repete duas vezes o termo “sua casa” ou “casa dela” Ht'yB e betah.
Este termo bayt, com sufixo feminino que indica posse, ocorre seis vezes na primeira
unidade do livro dos Provérbios (2,18; 5,8; 7,8.27; 9,1.14)). Em 31,21, bayt está indicando
a relação de posse e de responsabilidade que esta mulher tem com seus familiares e criados.
Ela não teme pela neve, porque teceu roupas forradas para toda a sua casa, já que o termo
347
Veja mais detalhes em Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto,
Sapienciales y Proverbios, p.532.
143
é dela. Mas, a sua atitude diante da casa não é tanto a de quem tem uma “posse”, mas de
quem tem cuidado responsável.
A mulher sábia e forte não se descuida. Ela se sente bem em seu quarto. Prepara
colchas para sua cama. Também se apresenta bem, vestindo-se com gosto, já que o detalhe
sobre sua roupa de linho e púrpura pode estar se referindo às cores branca e vermelha. Um
detalhe que indica o bom gosto e a elegância com que se veste esta mulher.
348
Veja, por exemplo, Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto,
Sapienciales y Proverbios, p.525-530.
144
deve-se mais à sua mulher, embora ela mesma observe “que isto está mais subtendido do
que declarado.349
O verbo “fazer” hf'[' ‘asah encontra-se nos v.13.22.24 e 29 deste poema. O nome
“mãos” aparece seis vezes, sendo uma vez nos v.13.16.19, duas vezes no v.20, e uma vez
no v.31. A repetição de “fazer” e “mãos” deixa bem claro o enfoque do trabalho. No
entanto, este não é o único enfoque deste poema. No v.24, são repetidas outras palavras,
como “valor”, “vestir-se” e “cingir-se”, deixando claro o valor e a dignidade da mulher aqui
apresentada. Ela “faz” ou realiza muitas coisas. Ela está constantemente trabalhando. Nos
v.13.19.22 e 24 ela fia, tece e costura. No v.15, ela supervisiona a distribuição de alimento
a todas as pessoas da sua casa. Poderíamos ficar com a idéia de que ela realiza as tarefas
típicas de uma mulher dentro de sua cultura. Mas, além destas tarefas, ela traz de longe o
seu sustento (v.14) e investe o fruto de seu trabalho na compra de um bom terreno para
plantar um lucrativo vinhedo (v.16), preocupando-se, ainda, em especular os lucros do
comércio (v.18). Ela se solidariza com oprimidos e pobres (v.20). Por esta incansável obra
ela será louvada nas portas da cidade (v.31).
No v.25, encontramos uma apresentação do corpo desta mulher. Podemos vê-la com
a cabeça erguida e um sorriso nos lábios.
Ao usar mais uma vez a palavra “vestid o”, 350 o poeta acrescenta um sentido
simbólico ao termo, indicando a proximidade desta mulher com Javé. Como já foi
comentado anteriormente, a expressão “de força e majestade está vestida” é paralela a uma
349
Veja Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , p.124.
350
A palavra “vestido”, em hebraico vbl lbx, aparece nos v.22 e 25.
145
referência a Javé, feita pelo compositor do Sl 104,1: “de esplendor e majestade estás
vestido”. Esta linguagem metafórica construída com a raiz de vestir lbx, não é o único eco
do Sl 104 neste poema. No v.24, encontramos ainda a expressão: “quão numerosas são as
tuas obras, Javé, e todas fizeste com sabedor ia!” Parece que o compositor deste poema de
Pr 31,10-31 tinha em mente o capítulo 8 de Provérbios, onde se encontra a bela descrição
da sabedoria artífice do universo. Por trás do poema da hokmah em 8,22-31, podemos
encontrar as obras bem concretas da ’exet hayil no esforço de oferecer o bem estar para
todo o pessoal da sua casa. Mas, o significado destes verbos vai além da aclamação das
obras desta mulher. O poeta quer ressaltar também sua beleza e majestade, com uma
expressão semelhante àquela que o poeta usou para louvar a Javé no Sl 96,6: “esplendor e
majestade estão diante dele; poder e formosura em seu santuário”. Estas expressões
poéticas têm a função de exaltar a figura das mulheres da vida real, mostrando sua
proximidade com Javé.
O verso 26 enlaça, mais uma vez, o poema da mulher da vida real (Pr 31,10-31)
com a sabedoria mulher de Pr 1-9.
Uma ligação entre a primeira e a última seções do livro dos Provérbios se dá,
também, pelos versos 1,8; 6,20 e 31,1, que reiteram a função da mãe como sábia educadora
de seus filhos. Em 31,26, chama a atenção a sua forma de ensinar, que facilita a relação e
gera aprendizagem, pois deixou de lado a dureza e aspereza de quem impõe experiências
próprias e domina as consciências.
146
Portanto, esta mulher da vida real está muito próxima da sabedoria mulher da seção
de Pr 1-9.
No v. 27, encontra-se uma referência ao processo que realizam todas as pessoas que
fazem parte da “casa dela”, incluindo sua conduta e seu trabalho.
A afirmação de que a mulher forte e sábia vigia a caminhada de sua casa e não come
pão de ociosidade, quase não fazia falta neste poema. A capacidade de trabalho desta
mulher está muito enfatizada em todo o texto. Esta afirmação está colocada aqui como uma
conclusão da poética descrição da mulher forte, de tudo o que ela realiza e de seus dons
pessoais.
351
Veja Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , p.124 e C. H.
Toy, A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Proverbs, Edinburg: T. & T. Clark, 1989, p.548.
352
Confira Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto, Sapienciales y
Proverbios, p.535.
353
Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , p.125.
354
Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , p.125.
148
O v.30 parece ser uma adição posterior, com uma antítese introduzida por um
comentário de que “enganosa é a graça e vã é a beleza”, semelhante a Ben Sira 25,21: “Não
te apaixones pela beleza de uma mulher”355 . A segunda parte do verso, que forma a
antítese, mostra que a mulher que merece louvor é aquela que teme a Javé. Há falta de
continuidade do v.30 com os temas anteriores do capítulo 31, levando-nos a pensar que este
verso seja realmente um adendo.
Quanto ao tema do temor de Javé, ele se encontra muito repetido na primeira seção
do livro dos Provérbios (1-9). Em Pr 1,7 encontramos a afirmação de que “o temor de Javé
é o princípio do conhecimento”. Em Pr 1,29, a frase “porque odiaram o conhecimento e não
escolheram o temor de Javé”, faz uma inclusão para o primeiro poema da sabedoria mulher
(Pr 1,20-23s). Em Pr 9,10, aparece a mesma frase, fechando os dois poemas da sabedoria
mulher (8 e 9). Segundo Luis Alonso Schökel, a afirmação de que “o temor de Javé é o
princípio do conhecimento” é, ao mesmo tempo, o princípio teologal do livro e a meta a ser
alcançada. Segundo o autor citado, este é um resumo do programa e das principais formas
literárias empregadas no livro. 356
Mas, podemos também compreender esta afirmação como um acréscimo feito pelos
editores do livro dos Provérbios. A falta de nexo do v.30 com o resto do poema (31,10-31)
aponta para esta possibilidade. Alguns dos poemas sobre a sabedoria mulher poderiam já
estar compostos antes da elaboração da moldura para todo o livro dos Provérbios (1-9 e 31).
Eles nasceram no ambiente da casa e da comunidade, nas suas reuniões e celebrações. Os
poemas que trazem a memória da sábia mãe do rei Lemuel e da ’exet hayil já estariam
também compostos e até mesmo seriam utilizados nas escolas de sábios, que surgiram “no
início da primeira metade do período persa”357 . Os editores finais do livro dos Provérbios
recolheram e organizaram este material no final da época persa, colocando-o dentro do
enfoque do temor de Javé.
355
Bíblia de Jerusalém, p.1282.
356
Luis Alonso Schökel, Proverbios y Eclesiástico – Los libros sagrados, p.25.
357
Leo G. Perdue, “Wisdom Theology and Social History in Proverbs 1-9”, p.89.
149
assembléia, usando um imperativo piel da raíz “dar” !tn ntn. E o que a assembléia do povo
deve dar à mulher deste poema? Deve dar- lhe louvor pelas obras que realiza.
358
Veja meu comentário sobre este tema no estudo sobre o contexto de Pr 31, item 3.4.5, “O chão e as raízes
do texto”.
359
Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.156.
150
Conclusão
O capítulo 31 de Provérbios é formado por dois poemas unidos pelo mesmo tema: a
mulher sábia e forte e sua importância na vida do povo. O primeiro poema apresenta o
discurso da mãe do rei Lemuel (31,1-9), cujo ensinamento teve, certamente, enorme
importância para o exercício de sua função, já que o registraram e o fizeram circular (31,2-
9). O segundo poema (31,10-31) apresenta o valor e a importância da ’exet hayil, capaz de
administrar com muita competência sua casa e, ao mesmo tempo, ensinar com sabedoria e
bondade (31,26).
360
Johann Cook, The Septuagint of Proverbs – Jewish and/or Hellenistic proverbs? p.297.
361
Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, p.32.
151
transmitiram aos seus filhos, no âmbito familiar. Mas, em Pr 31,1-9, estas “palavras”
entram para a o ficialidade. Passam a fazer parte da tradição dos reis de Massa.
Portanto, há elementos que fazem o enlace entre os dois poemas de Pr 31: a figura
da mulher sábia e forte, como acabamos de indicar; a preocupação com “oprimido”,
“pobre” (v.5.9.20), “amargado”, “aflito” (v.7), “mudo” (v.8) e “oprimido” e “pobre” (v.20),
tanto no discurso da mãe do rei Lemuel como no discurso sobre a mulher forte e sábia.
Através destes termos, os dois poemas deixam transparecer uma preocupação com os
marginalizados, uma postura ética voltada para as pessoas empobrecidas. A alusão a
sofredores, oprimidos e pobres desvela aspectos importantes do contexto sócio-econômico
do texto. Subjacente ao cap.31 de Provérbios, no TM, existe uma casa real (31,1-9) e uma
casa abastada (31,10-31) e, ao mesmo tempo, oprimidos e pobres que são o objeto da
preocupação da mãe do rei Lemuel e da ’exet hayil. Então, podemos afirmar que uma das
características da sabedoria de mulher é a compaixão e a solidariedade com pessoas
injustiçadas e marginalizadas da sociedade do seu tempo.
Há, ainda, termos que estão presentes nos dois poemas e que são importantes no
tecido do texto, como o termo hayil, que aparece na instrução da sábia mãe do rei Lemuel
(v.3), na introdução ao segundo poema (v.10) e no louvor que o marido da mulher forte e
sábia lhe faz (v.29), tornando-se uma palavra chave para entender o texto. O termo hayil
tem vários sentidos, como “capacidade”, “força”, “posse”, “propriedade”. 362 No v.3, o uso
desse termo desvela uma visão da mulher como interesseira. Já nos v.10 e 29, o uso do
362
Veja Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann e Rudi Zimmer, Dicionário hebraico-
português & aramaico-português, p.67.
152
termo hayil revela uma qualidade da mulher, apresentando-a como forte e valente, capaz de
administrar sua casa com muita competência e de proporcionar bem estar a todas as pessoas
que fazem parte do seu contexto familiar (v.12.14.15). Além de trabalhar com as mãos, ela
tem grande capacidade para administrar sua casa e tem autonomia suficiente para buscar os
suprimentos de que necessita para seu trabalho (v.14). A ’exet hayil não fica limitada ao
espaço privado de sua casa, mas realiza contatos necessários para a comercialização de seus
produtos (v.16.24).
Não é somente a autonomia da ’exet hayil que chama a atenção neste texto, mas um
grande número de comparações e expressões que não deixam nenhuma dúvida de que esta
mulher está colocada em proximidade com Deus e com a sabedoria. 363 Uma dessas
expressões encontra-se no v.17, onde o poeta usa uma frase do Sl 65,7 para louvá- la por sua
capacidade de criadora: “cinge a cintura com disposição e fortalece seus braços”, fazendo
eco ao louvor de Javé pela criação. Outra expressão que mostra a proximidade da ’exet
hayil com Deus encontra-se no v.25, onde ela está “vestida de dignidade e sorrindo para o
futuro”. Esta expressão encontra-se literalmente no Sl 104,1, referindo-se a Javé e traz o
eco do Sl 96,6. Ao usar estas expressões e comparações, o poeta exalta a figura desta
mulher e a coloca em proximidade com Javé e com a sabedoria cósmica, criadora do
universo (Pr 8,22-31).
Mas, apesar de tantos trabalhos, a mulher sábia e forte não se descuida. Sua roupa é
de linho e púrpura e “está vestida de força e dignidade” (v.22). Esta linguagem simbólica
indica, novamente, a proximidade desta mulher com Javé, mas o símbolo se apóia na vida e
363
Veja mais em Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.160.
153
deixa ver a mulher da vida real que inspira o poeta. Sua postura chama a atenção. Em meio
às contradições da sua época, ela se apresenta sorridente, confiante em relação ao futuro
(v.25b), revestida de poder e de dignidade. Mas, este porte altaneiro não a coloca em uma
relação de superioridade, nem de prepotência. No v.26, encontramos a descrição de sua
bondade ao ensinar e no v.20 a sua solidariedade concreta com os pobres.
Mas, o louvor da mulher continua nas portas da cidade. A louvação que começou na
casa se estende ao espaço público. Também a ação desta mulher percorreu o mesmo
caminho: começou na casa e se estendeu até o espaço público, através do reconhecimento
que seu marido recebe, quando se senta com os anciãos da terra (v.23) e através do louvor
que ela mesma recebe na porta da cidade, pelas suas grandiosas obras (v.31). Também a
ação da mãe do rei Lemuel faz este movimento do espaço privado para o público. Ela
instrui e prepara seu filho para exercer sua função, dando-lhe recomendações sobre a
postura ética adequada a um governante (v.3). Sua grande sensibilidade diante da situação
os oprimidos leva-a a aconselhar o filho a abrir a boca em favor dos “mudos” e
“abandonados”, colocando-se em defesa do direito dos pobres (v.8-9).
364
Veja Judith McKinlay, Gendering Wisdom t he Host – Biblical invitations to eat and drink , p.124.
154
Capítulo 4
O símbolo da sabedoria mulher e sua ligação com a realidade
símbolo e a perspectiva que tenho ao fazer esta investigação. O termo símbolo tem sua
origem no grego su,mbolon e designa um elemento representativo da vida real que
passou a ser usado com outro significado, criando novas possibilidades para a linguagem.
Segundo Mircea Eliade, “a rigor deveríamos reservar o termo símbolo para o caso dos
símbolos que prolongam uma hierofania ou que constituem eles próprios uma “revelação”
inexprimível de outra forma mágico-religiosa. No entanto, em sentido amplo tudo pode ser
um símbolo ou desempenhar o papel de um símbolo”365.
365
Mircea Eliade, Tratado de história das religiões, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.365.
366
Metáfora é “o tropo pelo qual se dá a uma pessoa ou coisa uma qualificação que ela não tem e que só por
analogia se pode admitir; é também o emprego de uma palavra em um sentido diferente do próprio, por sua
semelhança”. Confira em Caldas Aulete, Dicionário contemporâneo de língua portuguesa, atualizada por
Hamilcar de Garcia, Rio de Janeiro: Delta, Vol.3, 1958, p.3240.
367
Confira em Mircea Eliade, Tratado de história das religiões, p.367.
368
Mircea Eliade, Tratado de história das religiões, p.368.
369
Mircea Eliade, Tratado de história das religiões, p.372.
156
que em si mesma já é simbólica e que somente pode ser compreendida dentro de processos
vitais e fenômenos culturais. Segundo, porque pertencem ao gênero poesia, que é tecida
através de recursos literários, símbolos e imagens capazes de gerar um sentido novo.
Segundo Paul Ricoeur, “de uma parte, a poesia, em si mesma e por si mesma, dá a pensar o
esboço de uma concepção ‘tensional’ de verdade, recapitula todas as formas de ‘tensão’
trazidas à luz pela semântica: tensão entre sujeito e predicado, entre identidade e diferença;
depois as reúne na teoria da referência duplicada e, enfim, as faz culminar no paradoxo da
cópula, segundo o qual o ser-como significa ser e não ser. Por esse círculo da enunciação, a
poesia articula e preserva a experiência de ‘pertencimento’ que inclui o ser humano no
discurso e o discurso no ser”370.
hY")rIk.n" nokriyar (Pr 2,16-19; 5,2-23; 6,24-7,27). Esta censura seria uma reação dos
370
Paul Ricoeur, A metáfora viva, São Paulo: Loyola, 2000, p.481.
157
editores de Provérbios contra a autonomia das mulheres, que transparece tanto em Pr 1-9
como em Pr 31?
Para que os sentidos destes textos sejam liberados e se possa perceber a mútua inspiração
que suscitam, é necessário que se observe as relações literárias entre os dois. A atividade
exegética realizada nos dois capítulos anteriores permite- me, agora, adentrar- me mais a este
exercício para tornar mais evidente esta relação entre o símbolo da sabedoria mulher e a
mulher da vida real. Esta atividade permitirá também que a realidade que subjace aos
referidos textos torne -se mais transparente.
conhecimento mais que o ouro puro” rx'b.nI #Wrx'me t[;d;w. ve-da‘at meharoz
nibehar. Melhor e mais valioso que o ouro puro é tamb ém o seu fruto, isto é, aquilo que ela
realiza (8,19). Esta repetição de frases que mostram o valor da sabedoria mulher através de
comparações com ouro e pedras preciosas aparece também em Pr 3,15 e 8,11, onde a
sabedoria hokmah vale “mais que pérolas” ou “mais que pedras preciosas” ~yniynIP.mi
mipeninim. Uma comparação idêntica encontra-se em Pr 31,10b, indicando o valor da
mulher da vida real, a mulher forte (31,10a) e sábia (31,26).
grande, de poder e dignidade estás vestido”. Observa-se que, através dos termos e
comparações citadas, transparece uma grande valorização da mulher e também se comunica
uma visão da sua proximidade com Deus, nas duas seções de Provérbios (8,10.11.19 e
31,10.25.26). Mas, qual seria o motivo desta valorização?
Na última seção (Pr 31), encontra-se a memória de uma correção que a mãe do rei
Lemuel lhe fez, apresentando também o conteúdo desta correção (31,2-9). Chama a atenção
que tal correção não seja moralizante, mesmo quando trata o tema da bebida. Seu enfoque é
que cabe ao rei defender o direito dos fracos e realizar a justiça com pobres e necessitados.
Em 31,26, há uma reiteração de que a mulher forte realiza a função de instruir e o faz com
bondade. No entanto, não especifica os destinatários de sua instrução. Pode ser que, além
dos filhos, os criados estejam também incluídos como receptores dos ensinamentos desta
mulher. Desta forma, fica patente que o tema da instrução feita por mulheres é transversal
aos dois poemas, entrelaçando-os através da visibilização da mãe como sábia formadora
dos filhos (1,8; 6,20), do símbolo da sabedoria mulher que convida a todas as pessoas para
que escutem seus ensinamentos (1,20-23; 8 e 9), da mulher sábia que instrui seu filho rei na
prática da justiça (31,1-9) e da mulher forte, que além de administrar com muita
competência sua casa (31,10-31), está capacitada para transmitir a torah (31,26).
entre Pr 1-9 e 31. Em 1,8; 6,20 e 31,26, encontramos o nome hr''AT torah que faz parte
de uma série de conceitos empregados em relação à “sabedoria” em Provérbios, como:
372
Alviero Niccacci, A casa da sabedoria , p.40.
161
mizvah em 3,1; 4,4; 6,20; 7,2, hokmah em 4,11; 31,26, musar em 1,8; 4,1; 6,23, binah em
4,1, dabar em 4,4, etc. 373 A grande novidade não é somente a relação entre estes termos que
formam um dos aspectos mais importantes do campo semântico de Pr 1-9 e 31, mas o que
realmente chama a atenção é o uso de torah como atividade da mulher, tanto na primeira
seção do livro dos Provérbios (1,8; 6,20), como na última (31,26). Além disso, o registro da
“correção” feita pela mãe do rei Lemuel (31,1-9) é inédito. O verbo que indica a sua ação é
“corrigir” rsy ysr e o substantivo correspondente a este verbo é “correção” musar. 374 Nos
textos bíblicos, os sujeitos desta ação de corrigir são os pais, os mestres da sabedoria e
também Deus (Dt 8,15), mas nosso texto torna visível uma realidade que normalmente uma
cultura androcêntrica mantém oculta: a importante função da mãe na instrução e formação
dos seus filhos, na transmissão das tradições religiosas e culturais e dos valores éticos
fundamentais para a vida e as relações.
Por trás da apresentação da mulher sábia em Pr 1-9 e 31, encontra-se uma tradição
de mulheres sábias que tiveram uma importante participação na história de Israel. Faz-se o
resgate da memória de Abigail, que vai decididamente ao encontro de Davi, entrando em
diálogo com ele e impedindo o massacre de sua casa (1Sm 25,23-31). Recorda-se a mulher
habilidosa e sábia de Técua, que se apresenta diante de Davi para interceder pela vida de
Absalão (2Sm 14,16-22). Lembra, também, a mulher anônima, cheia de coragem e
sabedoria, que confronta o general Joab e impede o massacre da cidade de Abel- Bet-Maaca
(2Sm 20,16-22). Mesmo sem mencionar seus nomes, o símbolo da sabedoria mulher
resgata a memória histórica dessas e de outras mulheres, cuja sabedoria foi colocada a
serviço da vida do povo. É esta participação bem concreta das mulheres na histórica do
povo que leva o símbolo da sabedoria mulher a encontrar aceitação e poder realizar sua
função no período pós-exílio.
Vale a pena ressaltar que estes registros da historiografia bíblica são como a ponta
de um iceberg que indica uma realidade muito mais ampla e profunda, escondida dentro do
373
Veja mais dados sobre este tema em G. Liedke e C. Petersen, em torah, Diccionario teológico manual del
Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westerman, vol.2, p.1292 -1306.
374
Veja M. Sæbø, em ysr, Diccionario teológico Manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e
Claus Westerman, vol.1, col.1016-1021.
162
mundo familiar e comunitário. Uma realidade escondida não somente pelos textos, mas
pelos preconceitos que nos levam a ler e interpretar um texto sem buscar relacioná- lo com a
situação que o gerou, ou dando por supostas outras interpretações já consagradas, sem
questioná- las. É por esta razão que buscamos desvelar a situação da vida cotidiana que está
por trás do símbolo da sabedoria mulher. Uma possibilidade de aproximação desta
realidade se oferece no confronto do símbolo da sabedoria mulher com a mulher sábia e
forte de Pr 31. Através deste confronto e de estudos sobre a época do texto, pode ser
desvelada uma situação das famílias no período pós-exílico, quando a casa teve que se
organizar para sustentar e defender a vida, tanto na área econômica e social, co mo na área
religiosa.375
Outro elo de ligação entre a primeira e a última seções de Provérbios é formado pelo
tema da justiça 376 e da solidariedade. Em Pr 8,8, a sabedoria mulher afirma, em primeira
pessoa, que todas as suas sentenças são justas. Em 8,15-16, ela assegura que através dela
“os reis e governantes ditarão sentenças justas”. Em 8,20, a sabedoria mulher repete que
“caminha pelas sendas da justiça e pelos caminhos do direito”. Esta repetição pode ter sido
usada como recurso poético para indicar a definida postura ética da sabedoria mulher,
pautada pela justiça.
375
Farei uma análise mais detalhada sobre esta questão nos itens seguintes, sobretudo, em 4.4.
376
O verbo qdc zrq, que no qal tem o sentido de “ser honrado/justo/inocente”, etc., no hifil tem o sentido de
“fazer justiça”, “proteger” e “defender”. Veja Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português,
p.555-556.
163
indolentes. 377 Ao convidar especialmente estas pessoas para seu banquete, preparado com
tanto cuidado, a sabedoria mulher está fazendo uma proposta não somente de inclusão
social, mas também de uma relação nova com os marginalizados da época. Suponho que
esta tenha sido uma função da mulher da vida real que, no espaço da casa, buscava incluir
pessoas marginalizadas pela sociedade da sua época, dando-lhes oportunidade de aprender
algo que lhes servisse para a vida.
Deste modo, as ligações principais entre Pr 1-9 e 31 são feitas pelo símbolo da
sabedoria mulher (1,20-23; 8 e 9), que têm suas raízes na sabedoria da mulher da vida real
(31,1-9.26). Sua capacidade para transmitir a torah, sua postura ética fundada na justiça e
sua capacidade de cuidar da vida e de gerar solidariedade fazem a ligação entre as duas
seções de Provérbios: a primeira (1-9) e a última (31).
377
Nestes textos, o significado de “néscios” ~yliysik. kesilim e de “simplórios” ~yIat'P.. peta’im é
pejorativo, indicando que aquelas pessoas são desprezadas pela sociedade por não terem nenhuma capacidade
de pensar ou de aprender.
164
Estas não são as únicas ligações entre as duas seções, mas elas evidenciam a
continuidade entre Pr 1-9 e 31, e mostram que o símbolo da sabedoria mulher está
enraizado na vida cotidiana das mulheres sábias que preparam seus filhos para a vida,
transmitindo- lhes tradições culturais carregadas de valores éticos. Um ensinamento que não
se restringe à vida familiar, mas desperta para questões sociais e gera solidariedade. Ao
mesmo tempo em que estas ligações mostram a relação entre o símbolo da sabedoria
mulher e a mulher da vida real, elas provêm justificativas para a afirmação de que a
primeira seção do livro dos Provérbios (1-9) está diretamente ligada com a última (31),
formando uma moldura para todo o livro e contribuindo para a criação de um sentido novo
sobre a questão das mulheres.
O espaço é outro aspecto que liga as duas figuras: a sabedoria mulher e a mulher da
vida real, ao mesmo tempo em que relaciona símbolo e realidade. Em Pr 1-9, encontramos
a sabedoria mulher ocupando os espaços das ruas, praças, encruzilhadas e portas da cidade
(Pr 1,20-21; 8,1-3), onde anuncia em alta voz e com total liberdade sua mensagem. Ela
convida os ingênuos e carentes de discernimento para que venham ao seu encontro. Este
convite que é feito nos pontos altos da cidade (9,3-6), sem nenhuma interdição. Nestes
espaços, ela anuncia sua palavra com dignidade e autoridade divina, já que promete
derramar seu espírito (1,23), uma expressão que aparece somente neste verso, em todo o
livro dos Provérbios e que, na profecia, é referente a Javé. Só Javé tem o espírito para dá-lo
ao profeta ou a todo o povo (Is 30,1; 38,16; 42,1; 44,3; 59,21; Ez 36,27; 37,14; 39,29; Jl
3,1-2).
discurso. Em uma época de caos total, quando a profecia apresenta o tema de uma nova
criação (Is 51,6; 44,24; 65,17; 66,22), esta auto-revelação da sabedoria mulher como
artífice do universo, realizando de maneira alegre, relacional e harmoniosa a criação do
universo (Pr 8,30-31), tem uma função de inspirar esperança e confiança em seus ouvintes.
Ao mesmo tempo, desvela uma realidade que está acontecendo: a participação da mulher na
reconstrução de Judá a partir das relações cotidianas, na casa. Isso é o que indica o poeta ao
terminar a primeira seção do livro dos Provérbios (9,1-6), quando apresenta a sabedoria
mulher na casa, realizando tarefas próprias de mulher, de dona de casa.
Talvez seja exatamente este movimento da hokmah na primeira seção do livro dos
Provérbios, indo do espaço público para a casa, que tenha recebido a crítica de Judith
McKinlay. Segundo esta autora, a sabedoria mulher foi enquadrada na casa, já que o
movimento que ela faz vai do espaço público em direção à confinação no lar, dentro do
contexto do livro como um todo. Além disso, ela se pergunta se as mulheres da vida real
tinham esta liberdade da hokmah para transitar livremente pelo espaço público das ruas,
378
praças, encruzilhadas e portas da cidade.
378
Veja Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , p.131.
166
Desta maneira, o livro não se encerra com a mulher confinada na casa, mas louvada
e reconhecida publicamente nas portas da cidade (31,31). Esta observação sobre os espaços
ocupados pela mulher nas duas seções de Provérbios (1-9 e 31) confirma, mais uma vez, a
ligação entre a primeira e a última seção de Provérbios e a tese de que formam uma
moldura para todo o livro. Podemos encontrar nesta moldura a formação de um quiasmo
que coloca todo o livro dos Provérbios dentro de um inclusio formado pela mulher que se
movimenta do espaço público para a casa (1-9) e da casa para o espaço público (31).
afirmando que “ele e suas filhas” wyt'Anb.W aWh hu’ ubenotav participaram desses
trabalhos. Mas, grande parte das traduções ao português trazem “filhos”, em vez de
filhas. 382 Os tradutores não podem suportar a mudança de visão sobre as mulheres que o
texto apresenta. Em vez de assumi- la, preferem corrigir o texto.
379
Confira Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.170-176.
380
Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.170.
381
A expressão “conjetural” está colocada no pé de página da Bíblia de Jerusalém, p.703. Este tipo de
conjectura manifesta uma postura misógina dos tradutores.
382
Conferir Bíblia de Jerusalém, p.703; Bíblia Sagrada - Edição Pastoral, São Paulo: Paulus, 18ª impressão,
1996, p.513. Também a tradução ao espanhol La Biblia, Madri: Ediciones Paulinas/Verbo Divino, 75ª edição,
1988, p.392, traduziu wyt'Anb.W aWh hu’ubenotav como “filhos”. No entanto, a Bíblia Sagrada,
versão revisada da tradução de João Ferreira de Almeida, p.422, traz a tradução literal “ele e suas filhas”.
167
383
Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.171.
168
nacional”384 . Esta realidade transparece nos textos citados acima (Pr 1,8 e 6,20), onde o
ensinamento do pai e a instrução da mãe são nomeados conjuntamente. Textos que
desvelam a atuação das mulheres como transmissoras da tradição religiosa e da torah.
384
Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.171.
169
transferido, nesta época, para a esfera caseira. A discussão do profeta Jeremias com as
mulheres e os homens no exílio do Egito (Jr 44) mostra uma resistência ao fato de Javé ter
ocupado o espaço da religião da casa. Na discussão com Jeremias, as mulheres tomam a
palavra para dizer que o culto à Rainha do Céu não é clandestino e sim assumido por toda a
família, inclusive por seus maridos (Jr 44,19). 385 Este texto torna visível uma prática que
não era somente realizada entre os exilados do Egito. Na reação da assembléia à palavra de
Jeremias em nome de Javé, homens e mulheres afirmam que continuarão a oferecer incenso
à Rainha do Céu e a fazer- lhe libações como o faziam seus antepassados nas cidades de
Judá e nas ruas de Jerusalém (Jr 44,17). Isto indica que durante a monarquia este culto à
Rainha do Céu foi praticado em Jerusalém. A motivação para esta prática encontra-se no
final do texto citado: “tínhamos, então, fartura de pão, éramos felizes e não víamos a
desgraça” (Jr 44,17c).
Mas, no contexto de Pr 1-9, cerca de 250 anos depois, não se encontra somente um
movimento que re-elabora símbolos religiosos a partir da casa, com a mesma motivação de
obter a força necessária para garantir a vida. Há uma participação muito concreta das
mulheres na luta pela vida, no final do período persa. Elas se inspiram na memória das
mulheres que contribuíram para a reconstrução da cidade e se empenharam pela realização
da justiça, como aquelas mulheres que em Ne 5,1-5 lutaram pela manutenção da posse da
terra e protestaram contra a escravidão dos seus filhos e filhas por causa de dívidas. Elas se
sentiram responsáveis, tanto quanto seus maridos, pela integridade e dignidade de suas
filhas e filhos. Outro motivo de inspiração para estas mulheres era a memória daquela que
após o retorno do exílio tiveram uma participação importante na reconstrução de casas e
cidades, como já foi mencionado anteriormente (Ne 3,12). Como assinalamos no item
anterior, esse texto mencio na claramente que as filhas de Selum estavam participando da
construção do muro em Jerusalém. Mas, os motivos de inspiração para a luta das mulheres,
no pós-exílio tardio, não se encontrava apenas na memória mais recente de mulheres que
enfrentaram o exílio e a etapa de reconstrução da cidade e da muralha de Jerusalém. Elas se
inspiravam ainda na memória de mulheres fortes que construíram a história do povo
385
Sabemos que houve várias comunidades judaítas no Egito. Uma das mais conhecidas era a comunidade de
Elefantina, uma das ilhas do rio Nilo, em frente de Assuã. Esta comunidade remonta-se ao começo do século
6 a.C. Nela foi construído um templo semelhante ao de Jerusalém, no século 2 a.C. (1Mc 10,20).
171
bíblico, como Lia e Raquel (Gn 35,23-26; Rt 4,11), Miriam (Nm 26,59; Ex 15,20-21),
Tamar (Gn 38), Débora (Jz 4-5) e tantas outras mulheres cujas histórias eram contadas com
emoção nos momentos em que elas se reuniam para descansar e inspirar-se mutuamente.
Essa atuação decidida das mulheres está por trás do capítulo 31 dos Provérbios,
onde se encontra o louvor da mulher israelita forte e valente que dirige sua casa (Pr
31,15.21.27). É muito importante perceber esta relação, pois um mesmo contexto está por
trás de Pr 1-9 e 31. Um desafiador contexto que gera uma experiência nova de Deus e da
vida. Esta experiência nova se expressa através de uma linguagem simbólica muito
elaborada, de maneira especial nos poemas sobre a sabedoria mulher (Pr 1,20-23; 8 e 9).
Considero importante ressaltar mais uma vez que este símbolo nasce da vida concreta e da
luta das mulheres sábias e valentes do pós-exílio. Tanto daquelas que se levantaram para
exigir o reconhecimento dos seus direitos e da dignidade de seus filhos e filhas (Ne 5,1-5),
como das que conquistaram respeito e autonomia pela sua competência na administração da
sua casa e dos seus negócios. Assim, mulheres da vida real transparecem nos dois poemas
do cap.31 de Provérbios e inspiram a elaboração simbólica e teológica dos poemas da
sabedoria mulher em Pr 1,20-23; 8 e 9.
Para obter uma visão mais aproximada da mulher da vida real no período pós-
exílico, interessa- me ampliar a relação intertextual para alcançar uma compreensão maior
sobre a religião da casa, ou sobre as novas experiências religiosas expressas em textos do
pós-exílio. Neste contexto de caos, gerado pelas contínuas guerras, dominação estrangeira e
divisões internas, as imagens de Deus apresentadas em Is 40-66 estão relacionadas a uma
nova criação (Is 42,5-9) e um novo êxodo (Is 43,16-21; 46,3-4; 63,9), ainda mais
surpreendente que o primeiro. Essas comunidades proféticas demonstram uma experiência
de Deus a partir das vivências cotidianas na casa, de onde retiram as metáforas para seus
discursos teológicos. Assim, em Is 49,15, Deus é como a mãe que não se esquece nunca do
fruto do seu ventre. A imagem da mãe para falar sobre Deus no contexto do pós-exílio é
carregada de ternura em Is 66,12b. Além dos sentimentos de ternura que comunica, esse
texto apresenta aspectos de costumes cotidianos da mulher em sua relação com a criança,
apresentando o Deus de Israel como “a mãe que amamenta o filho, carrega-o sobre suas
172
ancas e o acaricia em seu colo”. Esta imagem de Deus como mãe desvela tanto uma relação
pessoal mais próxima e cotidiana com a divindade, como uma relação nova entre as pessoas
da comunidade. Parece que as experiências pessoais de sofrimento e abandono tornam as
pessoas mais sensíveis e humanas. Estou consciente de que essa observação pode conter
uma ambigüidade, já que valorizaria o sofrimento. Mas, sem generalizar a descoberta de
que há situações em que a sabedoria nasce da dor, suponho que as situações refletidas pela
comunidade de discípulos e discípulas de Isaías proporcionam- lhes um grande
amadurecimento que se expressa na simplicidade e profundidade da sua linguagem
simbólica. O processo de aprofundamento que realizam leva -os a experimentar Deus muito
perto, consolando carinhosamente seu povo (Is 40,1-2). A experiência cresce, aprofunda-se
a partir da observação das relações que sustentam a vida na casa. No final do livro, a
comunidade assegura que o Deus de Israel é como mãe que consola o povo no seu
sofrimento (Is 66,13). 386
Essas não são as únicas imagens femininas de Deus na Bíblia. Mas, elas chamam a
atenção para experiências cotidianas, vivenciadas nas relações significativas que acontecem
na família. Também chama a atenção o uso destas imagens femininas para falar de Javé em
um discurso profético que exclui a existência de outros Deuses (Is 41, 24.29; 43,11-13;
44,6-20; 57,3-9). Parece contraditório! Silvia Schroer comenta que “o monoteísmo destes
movimentos é patriarcal, mas não no sentido de fazer confronto contra as mulheres ou
contra as imagens femininas de Deus”387.
386
Para um aprofundamento sobre o contexto sócio-econômico da comunidade dos discípulos de Isaías, leia
Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita – Sua história e ideologia, Macapá: S. Gallazzi, 2002, p.34-36. Para
avaliar a contribuição do Dêutero-Isaías na formação de uma nova espiritualidade inclusiva e aberta, leia
Carlos Mesters, A missão do povo que sofre – Os cânticos de servo de Deus no livro de Isaías,
Petrópolis/Angra dos Reis: Vozes/CEBI, 1981, 194p.
387
Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.172.
173
Deus próximo dos pobres e compreende que seu culto consiste, sobretudo, na prática da
justiça (Is 58). Se houver necessidade de sacerdotes, os humilhados e sofridos é que “serão
chamados sacerdotes de Javé” (Is 61,6-7).
Certamente, esta não foi exatamente a comunidade que gerou Pr 1-9 e 31. Mas,
como já mencionamos no capítulo 2 desta tese, há uma proximidade teológica entre a
profecia e a sabedoria destes textos. Sobretudo na linguagem profética de Pr 1,20-23 e na
insistência destes textos quanto à prática da justiça (Pr 8,15-16.20; 31,5-9.20). Além disso,
a descrição feita pela comunidade de discípulos de Isaías sobre a situação da sua época tem
uma linguagem bastante similar à da sabedoria de Provérbios (Is 57; Pr 1,10-19): “reinam a
injustiça e a exploração; um tira do outro a existência; na mesma família existem ricos e
pobres”. Observo, ainda, que Pr 1,16 repete literalmente uma frase que se encontra em Is
59,7: “os seus pés correm para o mal; eles se apressam a derramar sangue inocente”388.
Assim, com os pés firmes no chão da vida diária, a casa e as comunidades de Judá
mantinham a consciência serena frente à legislação monárquica (Deuteronômio e
388
Cito este verso, embora não se encontre nos melhores manuscritos gregos e geralmente seja considerado
uma glosa tirada de Is 59,7. Veja Bíblia de Jerusalém, p.1118, nota b.
174
Depois de analisar o tema da religião da casa, não poderia deixar de fazer uma
referência à Deusa, já que a proximidade entre a sabedoria mulher e a Deusa em Pr 1-9 tem
sido muito discutida entre estudiosos e estudiosas.390 Neste item, pretendo apresentar
389
Elisabeth Schüssler Fiorenza, En memoria de ella – Una reconstrucción teológico-feminista de los
orígenes del cristianismo , p.150.
390
Veja Christa Kayatz, Studien zu Proverbien 1-9 – Eine form-und motivgeschichtliche Untersuchung unter
Einbeziehung ägyptischen Vergleichs-materials, p.94 -95; Alviero Nicacci, A casa da sabedoria – Vozes e
rostos da sabedoria bíblica, p.253 -254; Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo
sapiencial, p.200, entre outros.
175
somente uma síntese do debate sobre alguns aspectos mencionados nos textos de
Provérbios 1-9 e 31. Mantenho a perspectiva da elaboração simbólica e buscarei sempre
relacionar o símbolo com a realidade em que este foi gerado ou comunicado. Inicio este
estudo com o capítulo 3 de Provérbios, onde a sabedoria mulher é comparada a uma árvore:
“Ela é uma árvore da vida para os que a colhem e felizes são os que a retêm!” (3,18). Esta
comparação não somente lembra Aserá, uma Deusa cananéia que tinha a árvore como seu
símbolo principal, mas resgata duas tradições paralelas: a da árvore da vida e a da árvore do
conhecimento do bem e do mal (Gênesis 2,9 e 3,22). No texto de Pr 3,18, as duas tradições
aparecem juntas, relacionando a hokmah com um símbolo importante do imaginário
religioso do povo da Bíblia, presente tanto no Gênesis (2,9; 3,22), como no Apocalipse
(2,7; 22,14). 391
390
Silvia Schroer, “Die personifizierte Sophia im Buch der Weisheit”, em Ein Gott allein? – Jhwh Verehrung
und Biblischer Monotheismus im Kontext der israelischen und altorientalischen Religiongeschichte, p.173.
391
Mercedes Lopes, “A hokmah bem humorada”, em Mandrágora – O imaginário feminino da divindade,
São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, vol.11, 2005, p.72.
392
Monika Ottermann, “Vida e prazer em abundância – A Deusa Árvore”, em Mandrágora – O imaginário
feminino da divindade, São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, vol.11, 2005, p.47.
393
Monika Ottermann, “Vida e prazer em abundância – A Deusa Árvore”, p.48.
176
estivessem ligados à Deusa. Mas, há dados que mostram a aceitação deste símbolo da
Deusa também no templo de Jerusalém. Neste sentido, retomo uma observação de Monika
Ottermann que me parece muito interessante. Segundo esta autora, houve um processo de
substituição do corpo da Deusa por seus atributos, especialmente o da árvore. Esse processo
chega ao seu extremo no desenvolvimento do menorah, o candelabro de sete braços que era
um dos objetos centrais do segundo templo.394
Então, podemos supor que a proibição de Dt 16,21: “não plantarás nenhuma árvore
como Aserá ao lado do altar” tenha um significado muito mais amplo e real do que aquele
que aparece na historiografia bíblica. Desde os tempos do rei Asa (911-870 a.C.), que
retirou de sua mãe o título de grande dama porque ela havia feito um mipleset para Aserá
(1Rs 15,13), até a época de Josias (640-600 a.C.), Aserá foi cultuada em Jerusalém. Sobre
este culto, encontramos referências nos livros dos Reis e na Obra do Cronista (1Rs 15,13;
2Cr 15,16; 1Rs 18,19b; 2Rs 21,7; 23,4.7). Os textos citados demonstram que o culto a
Aserá foi praticado durante a monarquia, por cerca de 300 anos. Segundo José Severino
Croatto, Aserá teve “implicações na religião de Israel como uma Deusa especialmente
associada ao culto a Javé”395.
394
Conferir Monika Ottermann, “Vida e prazer em abundância – A Deusa Árvore”, p.48.
395
José Severino Croatto, “A Deusa Aserá no antigo Israel – A contribuição epigráfica da arqueologia”, p.43.
177
Ao ler o texto de Zc 5,5-11, poderíamos supor que a religião da Deusa tenha sido
totalmente eliminada em Judá, no período persa, e que as mulheres foram totalmente
silenciadas. Essa suposição teria como base uma visão de Judá que não corresponde aos
relatos bíblicos. Não existe uma Judá monolítica, que cedeu totalmente ao governo
sacerdotal do segundo templo, mesmo que esta tendência tenha sido a mais forte e a que
prevaleceu sobre as demais, especialmente em Jerusalém. São muitas as tendências
396
Norman K. Gottwald, Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica, p.470.
397
Veja Norman K. Gottwald, Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica, p.469.
398
As dimensões do rolo da lei são as mesmas do átrio em frente do templo de Jerusalém, construído por
Salomão (1Rs 6,3).
399
As adoradoras ou sacerdotizas da Deusa estão aqui simbolizadas pelas mulheres aladas. Há uma grande
discussão sobre o sentido destas imagens, mas não é meu objetivo entrar neste debate aqui, já que o objeto da
minha pesquisa é outro. Quero, apenas, visualizar um aspecto do contexto religioso oficial em Jerusalém,
durante o período persa. Para um aprofundamento sobre este tema, veja Joyce G. Baldwin, Ageu, Zacarias e
Malaquias – Introdução e comentário, tradução de Hans Udo Fuchs, São Paulo: Vida Nova, 1991. p.104 e
Erich Zenger, Introdução ao Antigo Testamento , tradução de Werner Fuchs, São Paulo: Loyola, 2003. p.534.
178
Portanto, voltamos nossa atenção para estes textos (1-9 e 31), para continuar a busca
de outras ligações entre a sabedoria mulher e a Deusa. Em Pr 8,22-31, cria-se um tempo
primordial para a apresentação da sabedoria mulher como pré-existente a toda a criação.
Em seguida, narra-se a criação do mundo e mostra-se a sabedoria mulher junto com Javé,
como artífice da criação do universo (v.30-31). O imenso prazer de criar transparece em
todo o texto e se expressa, de maneira especial, na dança da sabedoria mulher ao terminar a
artística obra da criação do mundo (Pr 8,30-31). Vários autores encontram no símbolo da
sabedoria mulher, apresentado ne ste texto, algumas reminiscências de Maat, a Deusa
Egípcia da verdade e do amor. 400
Para uma melhor interpretação de Pr 8,22-31, Silvia Schroer sugere que se faça um
estudo sobre o sistema simbólico do pós-exílio, que está por trás deste símbolo da sabedor ia
mulher. Segundo essa autora, “esta forma de falar sobre Deus dificilmente se deixa
enquadrar nos conceitos patriarcais da religião monoteísta, embora no contexto da história
das religiões muitas vezes se fale da influência do Egito e de Deusas helenistas sobre a
sophia, mesmo que nessas pesquisas não se dê muita atenção ao aspecto da
feminilidade”401. Neste sentido, retomo uma citação de Silvia Schroer, que apresentei no
primeiro capítulo. Ela aponta para a possibilidade de que imagens de Deusas do Antigo
Oriente se unam a outras imagens de Deusas e de mulheres que participaram ativamente na
construção da história de Israel para formar o símbolo da hokmah de Pr 8,22-31. Mas,
insiste em que “a hokmah é o Deus de Israel na imagem da mulher e na fala das Deusas. O
autor destes textos (Pr 1-9) renuncia totalmente às imagens de efeitos desastrosos. O que foi
400
Entre autores e autoras que vêem a figura de Maat por trás do símbolo da hokmah, encontram-se Christa
Kayatz, Studien zu Proverbien 1-9 - Eine form-und motivgeschichtliche Untersuchung unter Einbeziehung
ägyptischen Vergleichsmaterials, p.94-95; Alviero Nicacci, A casa da sabedoria – Vozes e rostos da
sabedoria bíblica, p.253-254; Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial,
entre outros.
401
Silvia Schroer, “Die personifizierte Sophia im buch der Weisheit, em Ein Gott allein? – Jhwh Verehrung
und Biblischer Monotheismus im Kontext der israelischen und altorientalischen Religionsgeschichte, p.173.
179
ao longo de muitos séculos pensado de maneira problemática, aqui, pela primeira vez é
experienciado e pensado de maneira integradora.”402
Concluindo, podemos afirmar que este símbolo da sabedoria mulher tem sua raiz na
vida e organização da casa, em Judá, com seus costumes religiosos e rituais que buscavam
garantir a sobrevivência familiar. Estes ritos eram comuns, sobretudo no campo, onde havia
momentos de celebração para pedir a chuva e a fertilidade dos campos e rebanhos. Através
dos rituais, ainda que inconscientemente, as famílias de Judá mantinham viva a memória
dos antigos cultos às Deusas.
Pr 9,13-18 chama a atenção para aspectos opostos àqueles que transparecem no símbolo da
sabedoria mulher, apresentando uma realidade muito mais complexa. Toda realidade é
formada por aspectos que unem, congregam, geram solidariedade e por elementos que
excluem, expressando medo, intolerância, divergências e até mesmo a destruição e a morte.
Esta contradição transparece no cap.9 de Provérbios. Se o símbolo da “sabedoria mulher”
(9,1-6) tem a função de incluir e de integrar, carregando uma memória histórica que
contribui para a formação da identidade do povo de Judá, a figura da “mulher insensata”
(9,13-18) está colocada no texto como sua antítese. Portanto, faz-se necessário abordar essa
figura para não ficar com uma visão muito idealizada da situação que gerou Pr 1-9 e 31.
Este é o meu objetivo ao realizar um estudo sobre este tema.
tWlysiK. tv,ae ’exet kesilut, fazendo um paralelo com a “sabedoria mulher” de 9,1-6.
Percebe-se que há uma intencionalidade neste texto, mas ao fazer a exegese de Pr 9,13-18,
no capítulo 2 desta tese, apenas explicitei uma pergunta sobre a intenção do autor ou editor,
ao elaborar este paralelo. Naquela etapa da investigação, apresentei um quadro comparativo
para visualizar as semelhanças e as diferenças entre as duas personagens: a sabedoria
mulher (9,1-6) e a mulher de insensatez (9,13-18).404 Esse quadro comparativo tornou
evidente que a construção literária do cap.9 de Provérbios tem uma intenção pedagógica.
Segundo Luís Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, a intenção do texto é preparar os
jovens para fazerem escolhas acertadas na vida. Esses autores encontram no convite da
mulher insensata para “beber água roubada” e “comer pão escondido” (9,17) uma sedução
sexual. Para esses autores, a mulher insensata representa ou é parente da mulher alheia e da
prostituta, que perverte o jovem inexperiente com sua sedução. A advertência presente no
texto visa impedir que o jovem inexperiente ceda à sua atração.405 Também Judith E.
McKinlay observa que as conotações sexuais estão evidentes neste texto. 406 Além disso,
essa autora considera que é possível encontrar em Pr 9,13-18 a sugestão de Deusas
estrangeiras ligadas ao poder de destruir, como Ixtar e a assíria babilônica Kilili, cuja
404
Veja o referido quadro no capítulo 2 desta tese, item 2.3.2, análise de Pr 9,13-18.
405
Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p.246.
406
Veja Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.57.
181
destruição é atestada na mitologia, 407 uma afirmação que Luis Alonso Schökel considera
infundada. 408
Antes de fazer esta aproximação, olhemos o texto mais de perto para ver como se
apresenta a “mulher insensata”409 neste poema. No mesmo verso em que ela é mostrada
pela primeira vez (Pr 9,13), encontramos três termos utilizados pelo autor com a intenção
hY"miho homiyah, um verbo que se encontra no particípio qal, feminino, singular e que
significa “agitada” ou “barulhenta”410 . É interessante observar que em toda a Bíblia
Hebraica, este verbo, nesta forma, só aparece aqui e em Pr 7,11. 411 Junto a esse termo, em
Pr 9,13, aparece, ainda, uma terceira palavra para caracterizar a mulher de insensatez:
autoridade: “e senta-se à porta de sua casa” Ht'yBe xt;p,l. hb'v.y'w. ve-yaxbah le-
407
Confira Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.57.
408
Veja Luis Alonso Schökel, Bíblia do peregrino, p.1433.
409
Literalmente, “mulher de insensatez” tWlysiK. tv,a ’exet kesilut. Esta forma feminina unida à palavra
mulher aparece somente neste texto, embora o masculino seja muito comum nos escritos sapienciais.
410
Veja Carl Philip Weber, em Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p.361, verbetes
505a e 505b ; Veja também Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico -português, p.181.
411
Mais adiante farei a relação entre os dois versos (9,13 e 7,11).
412
O termo tWYt;P. petaut vem da raiz htp pth, que significa “ser simples”, “ser ingênuo”.
182
petah betah. Então, a mulher insensata, agitada e simplória tem sua casa, tem autoridade, e
coloca-se em um lugar estratégico. Mas, por que, com que objetivo, ela se coloca neste
ponto estratégico da cidade? Os versos 9,15-16 indicam que é para “chamar os que passam
pelo caminho, os que seguem retos em suas sendas”. Então, seu público não é o mesmo da
sabedoria mulher, que convida especialmente os néscios e os carentes de entendimento
(9,4). A mulher insensata chama os justos, isto é, “aqueles que seguem por caminhos retos”
(9,15b). E o que ela oferece aos que aceitam seu convite? Oferece “água roubada” e “pão
para ser comido às ocultas” (9,17).
informado que esta mulher está vestida de hn"Az zonah, um termo que significa
“prostituta”413 e que aparece em Pr 6,26. Mas, o que liga a mulher insensata com a
prostituta? No interior da seção 1-9 de Provérbios, encontram-se afirmações que ligam a
413
Originariamente, hn"Az zonah (znh) designa simplesmente todo tipo de relação sexual irregular e ilegal
entre homem e mulher. A linguagem teológica emprega znh em sentido metafórico, referindo-se ao ato de
separar-se de Javé para buscar outros Deuses. Veja J. Kühlewein, em znh, Diccionario teológico manual del
Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westerman, vol. 1, p.725-726. A palavra hn"Az zonah
aparece somente duas vezes em Pr 1-9 (6,26; 7,10). É importante lembrar que hn"Az carrega, também, o
sentido de “mulher autônoma”, aquela que se vira por sua própria conta. Segundo Mercedes de Budallés Diez,
“a mulher zonah era uma mulher livre, economicamente autônoma e, por isso, independente”, Raab – Mulher
da vida – Uma proposta de leitura feminista da mulher zo nah no Antigo Testamento a partir da história de
Raab (Josué 2), São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2002, (Dissertação de
mestrado), p.129.
414
Segundo R. Martin-Achard, nokri adquiriu importância depois do exílio, quando Israel colocou de maneira
especial o problema de suas relações com os países estrangeiros. O termo nokri significa, também, aquilo que
pertence a outro (Pr 5,10; 20,16). A nokriah de Pr 2,26; 5,20; 6,24; 7,5; 23,27; 27,13 não significa uma
estrangeira pagã, mas a mulher de outro israelita, ou a mulher estranha à vida do clã. Uma visão panorâmica
sobre o uso de nekar/nokri no AT está marcada por uma atitude que vai da reserva até à rejeição. Isto se
expressa nas passagens de orientação deuteronômica que destacam a função corruptora dos deuses
estrangeiros. Veja R. Martin-Achard, nekar, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado
por Ernst Jenni e Claus Westerman, vol.2, p.97-100.
183
Recomenda-se insistentemente aos homens que não se deixem seduzir por estas mulheres,
“porque sua casa se inclina para a morte” (2,18), “os seus pés levam para a morte” (5,5),
“suas escadas levam para os átrios da morte” (7,27b), “em sua casa estão as sombras da
morte” (9,18a).
Por que haveria tanta necessidade de recomendar aos homens que não se deixassem
seduzir pela mulher estrangeira ou estranha que enleia com suas palavras (2,16-19)? Por
que é necessário avisar-lhes que a estrangeira, cujos lábios destilam mel, é mais amarga do
que o absinto (5,2-23)? O texto insiste em que é necessário ter cuidado com a mulher
estranha, pois tem a língua suave, porém ela é má (6,24-27) e deixa claro que ela é a mulher
casada, isto é, “mulher de um homem” vyai tv,ae ’exet ’ixix (6,26). Usando a metáfora
do fogo, que não se pode carregar sem se queimar e das brasas, sobre as quais não se pode
caminhar sem ter como conseqüência os pés queimados, nosso texto continua suas
recomendações para que os homens não se envolvam com a mulher casada (6,27-35). Os
avisos e admoestações continuam no cap.7 de Provérbios, para que o jovem se guarde da
mulher estrangeira, da estranha, cuja palavra é sedutora (7,5). Todo o cap.7 insiste nestas
recomendações, detalhando-as, repetindo-as. O que estaria acontecendo na vida real das
famílias, nas relações entre homem e mulher, para que tão insistente ensinamento se fizesse
necessário?
Ao observar que os termos mais repetidos para identificar a mulher perigosa são
“estranha” hr"z' zarah e “estrangeira” hY"rIk.n" nokriyah, suponho que este medo da
mulher pode estar ligado à questão da identidade cultural de Israel que, naquele tempo, era
apenas um pequeno grupo tentando se reorganizar, dentro de um imenso império. As
repetidas recomendações sobre a necessidade de tomar distância das mulheres estrangeiras
levam a supor que as relações com elas representavam um perigo para a identidade do povo
de Israel. Esta preocupação transparece, especialmente, nos textos de Esdras e Neemias.
Para eles, a relação marido/mulher era muito próxima e representava o perigo de cair na
“impureza” dos povos das terras (Esd 9,11), tanto através dos costumes da vida diária,
como através do culto (Ne 13,23-27). No entanto, há uma grande diferença entre as
proibições de casamento com mulheres estrangeiras em Esdras 9-10 e Neemias 13 e as
184
Mas, qual seria a situação existencial que originou esta insistência para não cair nas
ciladas e seduções das mulheres estrangeiras? Podemos pensar que esta insistente instrução
sobre o perigo da relação sexual com mulheres estrangeiras indica que havia uma prática
comum deste tipo de relacionamento, naquela época. Mais explicitamente, qual seria o
problema que esta relação significava? Para Tâmara C. Eskenazi, detrás da polêmica contra
as mulheres estrangeiras encontra-se uma preocupação fundada mais em interesses sociais e
econômicos do que em preocupações étnicas ou religiosas. Segundo esta autora, na
ausência da monarquia, a organização familiar volta a adquirir importância econômica na
sociedade, o que representa um aumento do poder das mulheres, incluindo a possibilidade
de herdarem propriedades familiares e de participarem de transações econômicas.415 Para
esta autora, o relacionamento com outras mulheres, fossem elas judias ou estrangeiras,
colocava em risco o patrimônio familiar.
415
Tâmara C. Eskenazi, “Out from the Shadows: Biblical Women in the Postexilic Era”, em Journal for the
Study of the Old Testament 54, 1992, p.32.
416
Veja Elisabeth M. Cook Steike, La mujer como extranjera en Israel – Estudio exegético de Esdras 9 y 10,
San José/Costa Rica: Universidad Bíblica Latino Americana, 2004, (Tesis de maestría en Ciencias Bíblicas),
p.25-26.
185
impiedade, representando não somente um perigo de desvio sexual, mas também a heresia.
Na figura da mulher estrangeira se estabelece o limite entre o “próprio” e o do “outro”, ou
“estranho”. Podemos concluir, então, que o medo da mulher estranha ou estrangeira é um
reflexo da comunidade que está por trás do texto: de seus temores do diferente, do outro, de
tudo o que lhe é desconhecido, da angústia frente às guerras e da insegurança em relação ao
futuro; com o medo dos grupos da elite de perder privilégios.
Na tentativa de fechar este tema, quero lembrar Clifford Geertz, em uma de suas
definições provocadoras. Para esse autor, “a religião é um sistema de símbolos que atua
para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações... vestindo
estas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem
singularmente realistas”419 . A religião é uma das estruturas que permite encontrar coerência
nesta disposição, extremamente discriminadora, de colocar as mulheres, sobretudo as
417
Fokkelien van Dijk-Hemmes, “Rute – Produto de uma cultura de mulheres?”, em Rute a partir de uma
leitura de gênero , p.180. Neste texto a autora comenta que esta voz não é muito ouvida, pois ainda é
predominante o androcentrismo de teorias e estruturas de interpretação.
418
Elisabeth Schüssler Fiorenza, En memoria de ella – Una reconstrucción teológico-feminista de los
orígenes del cristianismo , p.150.
419
Clifford Geertz, A interpretação das culturas, Rio de Janeiro: LTC, 1989, p.67.
186
Neste item, buscarei visualizar, com maior clareza, algo que já está emergindo nesta
pesquisa, desde o capítulo 2: a função social de Pr 1-9 e 31. Se estes textos brotam das
experiências cotidianas das famílias de Judá, no pós-exílio, reagindo às situações e
expressando suas vivências cotidianas e suas crenças religiosas, certamente teria uma
função nesta sociedade. Já foi explicitado que estes poemas reagem a situações
desafiadoras para as famílias de Judá. Hans G. Kippenberg busca encontrar os motivos
econômicos que geram a crise descrita em Ne 5, levantando hipóteses sobre questões
relacionadas à posse e à capacidade produtiva da terra. Segundo esse autor, outro motivo de
420
Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução feminista da história de Israel”, em Feministische
Exgese – Forschungserträge zur Bibel aus der Perspektive von Frauen, p.27.
187
421
Veja Hans G. Kippenberg, Religião e formação de classes na antiga Judéia, p.56.
188
Na recomendação que a mãe de Lemuel faz ao seu filho rei, para que “abra sua boca
em favor do mudo, em defesa dos abandonados, julgando com justiça e defendendo o pobre
e o indigente” (31,7-8), encontra-se um eco do discurso da sabedoria mulher de 8,15-16.20.
Este tema é um dos elos que ligam a primeira e a última seções do livro dos Provérbios, ao
mesmo tempo em que realiza a função de mostrar uma saída para a difícil situação social
que se revela através de termos como “mudos” ~Leaii ’ilem, “todos os filhos de
abandono” @Alx] yneB.-lK' kol bene halop, “oprimido” yni[' ‘ani e “pobre”
!AyIb.a, ’ebion.
Entendo que o poema de Pr 31,1-9 foi escrito em uma época anterior ao final do
império persa. Ele já era conhecido quando se realizou a edição do livro, tendo sido
inserido na coletânea de Provérbios como uma conclusão para a obra, junto com Pr 31,10-
31. Pelos termos utilizados no poema de Pr 31,1-9 e pela temática que esse poema
desenvolve, podemos inferir que no contexto que gerou o texto havia uma terrível situação
de marginalidade social e de carência. Uma situação que se encontrava tanto na época da
sua elaboração, quanto na época em que o texto foi editado. Estes conflitos sociais
189
deveriam ser enfrentados pelos governantes, responsáveis diretos pelo bem estar do povo.
Mas, os governantes tinham outros interesses. Estavam preocupados em manter seus
privilégios e em realizar a reorganização religiosa do povo de Judá, criando coesão interna
através da insistência no monoteísmo e a partir de normas que estabelecem traços de
identidade.
Por tudo isso, a questão social teve que ser enfrentada pela casa, que busca
pequenas saídas para os problemas da marginalização, fome, insegurança e angústia. Na
vida da casa, a busca de uma saída para a difícil situação é concretizada tanto através dos
ensinamentos teóricos sobre a importância da justiça e do direito, como na prática da
solidariedade. Justamente quando os governantes colocam a lei (Ne 8; Esd 7,26; 10,3), o
templo (Ne 10,33.39-40; Esd 6,3s) e a raça (Ne 9,2; Esd 9,1-2; 10,11) como bases
principais para a reorganização do povo, as famílias de Judá reagem, buscando aquilo que
realmente importa: as relações de justiça e de solidariedade que sustentam a vida nas
pequenas e desafiadoras situações do dia-a-dia das famílias e comunidades.
Ela se dirige “aos filhos de Adão” ~d"a' yneB.-la, ’el-bene ’adam (Pr 8,4): uma
expressão genérica e inclusiva. Outra proposta de inclusão aparece na transmissão do
convite da sabedoria mulher para o seu banquete. Ela envia suas criadas para anunciar nos
pontos altos da cidade (Pr 9,4). Ainda que esta expressão (pontos altos) possa sugerir ritos
religiosos cananeus, a prática de transmitir mensagens em lugares elevados é conhecida em
Israel (Is 13,12; 40,20). Esta prática tem a finalidade de fazer com que a mensagem que
está sendo transmitida seja recebida por todas as pessoas. Portanto, o convite que faz a
sabedoria não é seletivo, mas aberto e inclusivo.
~yIåat'p. peta‘yim e os “néscios” ~yliysik. kesilim (Pr 8,5). Ao convidar o néscio para
que seja sábio, a sabedoria mulher introduz uma proposta de relação nova com estas
pessoas, geralmente desprezadas e excluídas por causa de seu comportamento. No interior
do livro dos Provérbios, encontramos a afirmação de que é inútil ensinar alguma coisa ao
néscio, pois este é incapaz de aprender e mudar (14,24; 17,10.16; 23,9; 26,11). 422 Há,
claramente, um preconceito em relação a estas pessoas. Inclusive, recomenda-se não falar
com elas (23,9), usando comparações muito repugnantes (26,11). Certamente, os néscios e
insensatos eram excluídos dos círculos sapienciais, já que estes termos se opõem aos sábios
e prudentes. Mas, no banquete da sabedoria mulher, eles são os principais convidados.
422
Confira M. Sæbø, kesil, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e
Claus Westerman, vol.1, col.1144-1147.
423
Hans G. Kippenberg, Religião e formação de classes na antiga Judéia, p.63.
191
Se, nesta época, a casa e a família são o referencial básico de reflexão e de ação, fica
ainda mais clara a participação da mulher nestes textos. Uma participação que tem suas
raízes na vida diária. Não é um padrão, um ideal de mulher que se propõe no poema de Pr
31,10-31. É uma realidade que se descreve, sendo aqui apresentada como um horizonte que
se abre, uma pequena saída para situações desafiadoras, aparentemente sem saídas. Como
já foi mencionado, houve participação concreta de mulheres na reconstrução dos muros da
cidade de Jerusalém (Ne 3,12) e na história do povo (Rute). Tanto em Pr 9,1-6, como em Pr
31,10-31 a mulher sábia constrói sua casa, organizando-a de maneira inclusiva e solidária.
Nestes textos, a atuação das mulheres não se limita ao espaço das relações familiares e aos
trabalhos próprios de uma dona de casa. Sua atuação se estende ao espaço público,
chegando a ser reconhecid a e louvada na porta da cidade.
Como já foi mencionado, esta posição inédita das mulheres no período pós-exílico
reflete-se na elaboração dos textos da época, através do esforço para incluir homens e
mulheres, filhos e filhas, etc. A repetição de termos, como “casa dela”, “casa da mãe” e o
uso de verbos e seus complementos em feminino (Rute, Pr 1-9 e 31; Cântico dos Cânticos),
além das belíssimas imagens femininas usadas por Is 40-66 para falar sobre o Deus de
Israel desvelam uma realidade nova. E uma característica principal desta novidade é o
reconhecimento e a visibilização da efetiva participação das mulheres na defesa da vida do
povo e na reconstrução das relações feridas. Algo que, certamente, esteve sempre presente
na história do povo de Israel, mas que a maioria dos textos oficiais deixam na
invisibilidade.
424
Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.160.
192
utilizadas para falar sobre Deus neste período. 425 Elas indicam que houve uma aproximação
muito grande nas relações das pessoas com seu Deus, já que estas imagens apresentam
traços de ternura, carinho e prazerosa convivência (Pr 8,30-31). São imagens tão simples e
próximas que surpreendem.
425
Veja Is 46,3; 49,15-16; 66,12-13; Pr 8,30-31 entre outros textos.
193
Conclusão
Comunicar algo através de um símbolo é como abrir uma janela e convidar outras
pessoas para que venham contemplar a paisagem através deste novo ângulo. O símbolo da
sabedoria mulher é, antes de tudo, um convite para descobrir a nova visão da vida, de Deus,
da mulher e da história que se desvela em um momento tão conturbado da história de Israel.
É a partir das experiências da casa, e especialmente da mulher, que este instigante símbolo
é elaborado, no período do pós-exílio. A aproximação entre o símbolo da sabedoria mulher
de Pr 1,20-23; 8 e 9 e a mulher da vida real de Pr 31 mostrou as raízes de onde brotou este
símbolo e evidenciou a ligação entre os dois textos (Pr 1-9 e 31). A pesquisa feita me
permite afirmar que a primeira e a última seções de Provérbios formam uma moldura,
possib ilitando ao leitor e à leitora obter uma nova visão sobre a mulher em todo o livro.
modo especial, na apresentação da sabedoria mulher como promotora da justiça (8, 8.15-
16.20) e na visão da mulher sensível ao sofrimento dos outros (31,6) e solidária com as
pessoas carentes (31,7-9.20). Esta postura da mulher “que abre sua mão ao pobre e ajuda o
indigente” (Pr 31,20; Dt 15,11) revela sua fidelidade a torah e atesta sua capacidade para
transmiti-la (1,8; 6,20; 31,26).
portas da cidade (31,31). Esta é uma forma de ocupação dos espaços públicos e privados.
Ela é uma demonstração da grande mudança cultural e religiosa que aconteceu em Judá, no
período pós-exílico. Um exemplo concreto desta mudança é a participação das mulheres na
reconstrução das muralhas de Jerusalém (Ne 3,12). Outro exemplo importante, encontra-se
no livro de Rute, que narra a participação efetiva de mulheres (Rute e Noemi) na defesa dos
direitos dos pobres. Mulheres que se unem para lutar pelo seu próprio futuro, da sua família
e do seu povo. A postura corajosa de Noadias (Ne 6,14), que se opõe ao projeto de
excludente de reconstrução realizado por Neemias, é outro exemplo da ocupação de
espaços públicos pelas mulheres de Judá, na época persa. Estes são apenas alguns dos
exemplos que o texto registra. Eles nos permitem vislumbrar a mudança cultural e religiosa
que está acontecendo em Judá, nesta época. Mudança cultural que transparece também na
preocupação de dar visibilidade às mulheres nos relatos do pós-exílio (Rt 2 e 3; Is 43,6; Ne
5,1-2; 8,3). Uma mudança que se inicia quando a casa começa a exercer as funções que
eram próprias do palácio e do templo, na época da monarquia. Com a destruição do estado,
a organização da vida e da religião passa a ser função principal da casa, em Judá. É na casa
que se realizam os ritos mais importantes que mantêm a memória histórica e a identidade
do povo judaíta; é na casa que se re-elaboram os símbolos e os discursos religiosos com a
finalidade de obter a inspiração e a força necessárias para garantir o futuro do povo.
Uma das características mais importantes da religião da casa é a sua visão de Deus.
Através de imagens tiradas da vida real, sobretudo, da imagem da mãe cheia de ternura (Is
49,15; 66,12b-13), a religião da casa elabora um novo discurso sobre Deus, apresentando-o
próximo, presente nas relações cotidianas e, ao mesmo tempo, princípio de vida e criador
do universo, como transparece em Pr 8,22-31. O símbolo da sabedoria mulher que é usado
para formular este novo discurso teológico carrega a memória de Deusas cultuadas em ritos
familiares de Judá e, até mesmo, no templo de Jerusalém. No entanto, é uma visão de Deus
apresentada de forma harmoniosa e integradora, mostrando o Deus de Israel na imagem da
sabedoria mulher, apresentada com autoridade divina, já que promete derramar seu espírito
a quem para ela se voltar (Pr 1,23) e de dar a vida a quem a busca (Pr 8,34-35). O prazer de
viver e de conviver transparece no símbolo da sabedoria mulher (a hokmah criadora), em
sua prazerosa relação com a humanidade (Pr 8,30-31). Este é um aspecto importante da
196
religião da casa: uma religião lúdica e alegre que em seus ritos familiares cultuava a
hokmah criadora do universo. A visão de Deus que a religião da casa nos transmite
demonstra que ela não foi utilizada para manter o controle ou dar sustentação a um grupo
de elite. Mas sua função principal é a inclusão e a integração das pessoas, na casa: mulheres
e homens, néscios e sábios.
No entanto, a ambigüidade não está ausente da religião da casa. Nem poderia ser
assim, já que a contradição faz parte da realidade. Ao lado do simbólico que tem a função
de unir, congregar, integrar, incluir está o diabólico que desagrega, fragmenta, divide,
197
exclui. Este é o sentido de dia-bállein que, literalmente, significa “lançar para fora”,
representando desta maneira o oposto de simbólico. Segundo Leonardo Boff, “diabólico e
simbólico são princípios estruturadores da natureza e do cosmos, dos comportamentos
sociais e da própria natureza humana”426.
426
Leonardo Boff, O despertar da águia – O dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade,
Petrópolis: Vozes, 8ª edição, 1998, p.13.
427
Veja as diferentes opiniões sobre este tema no item 4.3 “A sabedoria mulher e a mulher insensata”.
198
Esta visão aberta e inclusiva, que transpõe os limites da religião e da casa, tem suas
bases na tradição de Israel (confira Ex 10,18-19) e promove relações de justiça e de
solidariedade com a finalidade de sustentar a vida dos pobres. Uma demonstração de
abertura e de inclusão social transparece nos destinatários do convite para o banquete
oferecido pela sabedoria mulher (Pr 9,1-6). Ela envia suas criadas para anunciar os convites
em pontos elevados da cidade a fim de que sua mensagem possa ser recebida por todas as
pessoas (Pr 9,4). 428 Portanto, o convite que faz a sabedoria não é seletivo, mas aberto e
inclusivo. Outra característica desta nova postura é o reconhecimento e a visibilização da
efetiva participação das mulheres na defesa da vida do povo, na transmissão da torah e na
reconstrução das relações feridas.
Mas, a grande novidade está no discurso teológico, nos símbolos escolhidos para
falar de Deus. Estes símbolos indicam que houve uma aproximação muito grande nas
relações da casa do interior de Judá com seu Deus, já que a linguagem simbólica utilizada
428
Em Israel, havia este costume de anunciar sobre as montanhas as mensagens que deveriam chegar a todas
as pessoas (conferir Is 13,2; 40,9).
199
para falar sobre a divindade apresenta-a com traços de ternura, carinho e de prazerosa
convivência (Pr 8,30-31). São comparações tão simples e próximas que até surpreendem.
Elas desvelam uma saída encontrada para superar a dolorosa situação social em que viviam
as famílias de Judá, na época do pós-exílio. É uma saída pequenina, que não chega a
transformar toda a realidade, mas humaniza as relações diárias e promove a partilha que
concretiza os laços de irmandade. Por tudo isso, estou convencida de que as ligações entre
Pr 1-9 e 31 desvelam a mulher da vida real no período pós-exílico com poder e força de
vida, capaz de garantir o resgate da solidariedade tribal e de realizar a inclusão de
diferentes, como uma saída para a difícil situação do seu povo.
Conclusão
Estas e outras perguntas levaram- me a iniciar esta pesquisa. Suspeitava que por trás
deste tesouro da tradição judaica haveria um discurso sobre Deus/Deusa inspirado na força
429
Ao chegar na Bolívia, em 1983, entrei em contato direto com mulheres indígenas e causou-me um enorme
impacto a observação da sua força e da sua grande sabedoria para superar as situações difíceis do seu
cotidiano. Um exemplo das organizações de mulheres da Bolívia é a Confederação das mulheres campesinas
cujo significativo nome é “Las hijas de Bartolina Sisa”, que foi uma grande líder nas guerras da
independência.
201
de vida que se manifesta nas lutas e na grande sabedoria das mulheres de Israel. Queria
descobrir as ligações entre as diferentes visões de mulher que aparecem nos textos de Pr 1-
9 e 31, que formam a primeira e a última seções do livro dos Provérbios. Existiriam
ligações tranversais entre estas seções? Que aspectos sobre a vida das mulheres israelitas,
contemporâneas aos textos mencionados, estas ligações visibilizariam? Estas e outras
perguntas levaram-me a iniciar também uma investigação sobre a época e as situações
concretas que permitiram a expressão deste símbolo da sabedoria mulher e quais teriam
sido as suas funções sociais e religiosas.
Minha intenção, ao iniciar esta pesquisa, era oferecer não somente um paradigma
bíblico democrático e inclusivo para falar sobre Deus, mas também apresentar uma imagem
da divindade com a qual as mulheres cristãs de nossa época pudessem se identificar. Para
isso, utilizei as ferramentas oferecidas pelas metodologias exegéticas, buscando superar a
tensão entre a hermenêutica da suspeita e a hermenêutica do “crédito”. 430 Ao analisar os
textos, realizei os passos da exegese, a partir de uma perspectiva feminista, democrática e
inclusiva.431 Também busquei, através do método histórico crítico, situar o texto em uma
determinada época, para obter dados que me permitissem uma aproximação da vida
concreta das mulheres, através de uma análise da situação sócio-econômica, cultural e
religiosa da casa, neste período.
No capítulo 1, apresentei, ainda, uma visão geral do livro dos Provérbios, mostrando
sua diversidade de conteúdos e o longo processo de sua formação. Para situar este processo
e as diferentes visões sobre este livro, apresentei também a forma como a Septuaginta
organizou as coleções de Provérbios. Ao dar atenção às diferentes vozes que comentaram
sobre o livro dos Provérbios, encontrei também alguns problemas relacionados a posturas
preconceituosas de estudiosos e estudiosas. Observei que estas posturas comprometeram
suas pesquisas, impedindo- lhes de obter uma visão mais próxima do texto. Como resultado
desta observação, anotei estes problemas como um alerta para meu trabalho, pois tal
postura poderia impedir-me de chegar a uma investigação mais aprofundada.
Nos versos seguintes (8,11-21), a sabedoria mulher mostra a importância dos seus
dons, mais preciosos que o ouro puro e as jóias (v.11.19). Ela afirma, de maneira
203
reiterativa, sua postura ética em favor da justiça e do direito. Ao expressar os seus dons, a
sabedoria mulher usa uma linguagem muito próxima à esperança messiânica contida no
texto de Is 11,1-9.432 É importante assinalar aqui este messianismo feminino de Pr 8,11-21.
uma postura inclusiva, escolhendo gente sem conhecimento (petayim) e sem um sentido
para a vida (hasar leb) como seus convidados especiais. Demonstra também que, neste
poema (9,1-6), a sabedoria mulher está muito mais próxima da mulher da vida real.
Mas, há outros traços que ligam estas duas personagens. Um deles é a preocupação
com os pobres (v.5.9.20), cuja situação é explicitada através de adjetivos como
“amargado”, “aflito” (v.7), “mudo” (v.8) e “oprimido” (v.20). Nos dois poemas, estes
termos desvelam aspectos da situação social do seu tempo e demonstram que uma das
carácterísticas da mulher sábia da vida real é a compaixão e a solidariedade com as pessoas
marginalizadas da sociedade. Pr 31,10-31 mostra também outras qualidades da mulher,
descrevendo-a como forte e valente, capaz de administrar sua casa com muita competência
e proporcionar o bem estar das pessoas que com ela convivem (v.12.14.15). Apresenta-a
como uma mulher que trabalha com as mãos (v.19) e que usa de inteligência para fazer
bons investimentos (v.16). É surpreendente a autonomia desta mulher, pois ela mesma
busca a matéria prima necessária para realizar seu trabalho (v.13) e o alimento para sua
casa (v.14), fazendo os contatos necessários para a comercialização dos seus produtos
(v.16.24). O poeta enfatiza, ainda, a proximidade desta mulher com Deus, usando frases
que são dirigidas a Javé como elogio ou louvação nos Salmos (Sl 65,7; 104,1). No final do
poema, os filhos e o marido desta mulher a louvam. Mas, no meio da bonita e justa
louvação mostra-se a ambigüidade presente no contexto cultural: a mulher forte e valente é
chamada por seu marido de “filha”, desvelando um aspecto da realidade cultural da sua
época. Esta mesma abigüidade está presente no v.30, onde transparece um desprezo pela
graça e a beleza. Mas, esta interrupção é superada e o louvor da mulher vai terminar nas
portas da cidade (v.31). Também a ação da mulher forte percorre o mesmo caminho:
começa na casa e alcança o espaço público, através do reconhecimento que seu marido
recebe entre as autoridades da época (v.23) e através do louvor que ela mesma recebe na
porta da cidade, pelas obras que realiza (v.31).
433
Ainda que não possa afirmar exatamente qual a Deusa que estaria por trás dos poemas de Pr 1-9.
206
textos somente foram possíveis devido a uma nova situação das mulheres, depois da
destruição da cidade de Jerusalém e do templo. Com a ausência do templo e de um governo
que centralizasse a organização do povo, a casa passou a ser ao mesmo tempo um espaço
de culto e de organização para a defesa da vida. Esta nova função da casa acontece tanto
entre os que foram exilados, como entre os remanescentes de Judá (Jr 44,17-19). Desta
maneira, a nova situação criada possibilita uma grande mudança no cotidiano da casa, onde
a mulher tinha grande liderança e autoridade, apesar de todos os preconceitos de uma
sociedade patriarcal. Esta liderança cresce na medida em que o poder do império vai se
enfraquecendo, no final do período persa. Além do fracasso dos primeiros projetos de
reconstrução, as diferentes tendências internas do judaísmo impossibilitavam que a
dominação dos sacerdotes zadoquitas penetrasse até o interior de Judá e pudesse controlar a
vida da casa. Além disso, as exigências tributárias do império persa levaram a mulher a
trabalhar ainda mais intensamente e a entrar no comércio, exercendo funções de
administração, compra e venda (Pr 31,10-31). A participação efetiva das mulheres na
reconstrução das muralhas de Jerusalém (Ne 3,12), nas lutas pela justiça (Ne 5,1-5) e na
denúncia de projetos centralizadores para a reconstrução da história do povo (Ne 6,14) gera
uma nova visão sobre as mulheres e lhes dá maior autonomia. Este é o contexto que
possibilitou a elaboração e a aceitação do símbolo da sabedoria mulher.
Mas, esta nova visão das mulheres confronta-se com a contradição do sistema
patriarcal, no dia-a-dia da vida das mulheres. É muito difícil conviver com uma realidade
marcada pela dominação, quando se tem a mente desperta e uma consciência crítica em
relação a esta realidade. Uma amostra da insatisfação das mulheres, neste sentido, aparece
no interior do livro dos Provérbios, onde há um ditado muito repetido: “melhor é morar
numa região deserta do que com uma mulher queixosa e iracunda” (Pr 21,19; 21,13; 19,13;
25,24). A visão bonita de mulher que se encontra na moldura do livro dos Provérbios (1-9
e 31) leva-nos a perguntar: de que se queixaria essa mulher? Uma queixa pode conter algo
da reivindicação e luta das mulheres e supõe uma consciência do próprio valor e dignidade.
Podemos concluir que esta ira das mulheres tenha sido uma reação delas à dominação,
levando-as não somente a se indignar, mas a lutar para conquistar novos espaços de atuação
e de reconhecimento. Por isso, considero que os textos de Provérbios que apresentam a
207
Outro aspecto que evidenciei foi a íntima relação entre sabedoria e justiça, na
tradição sapiencial de Israel e, especificamente, nos textos de Provérbios analisados nesta
tese. Na introdução do livro dos Provérbios (1,2-3), afirma-se que a sabedoria é
imprescindível para o conhecimento da justiça e do direito. A sabedoria mulher afirma, em
seu discurso, que tem os mesmos dons do messias esperado e que sua missão é promover a
justiça. Já foi indicado que em Pr 8,11-21 há uma referência a Is 11,1-9, onde se apresenta
o messias vindouro cheio do espírito profético para estabelecer a justiça e restabelecer a
harmonia do universo. Este compromisso religioso de estabelecer e praticar a justiça é um
dos aspectos mais importantes da identidade do povo bíblico. Ele mantém viva a memória
da libertação do Egito e da dependência tributária aos reis cananeus. O compromisso
histórico/religioso de estabelecer a justiça e de cuidar da harmonia do universo possibilitou
a aceitação do símbolo da sabedoria mulher com suas múltiplas faces, que retratam a
mulher da vida real, as Deusas cuidadoras da vida e o próprio Javé. Foi o tema da justiça
que possibilitou a formulação de um messianismo feminino em Pr 8,11-21.
Transliteração utilizada
a ’
b b
434
Leonardo Boff, O despertar da águia, p.26.
209
g g
d d
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Nota: Fiz opção por estes sinais para transliterar o hebraico porque poderão ser
reconhecidos por leitores e leitoras do Brasil, meus principais interlocutores.
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