Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Sinopse
1. Siso
Subia como que uma coluna de fumaça escura. Um ou outro curioso parecia
tentar entender de onde essa fumaça partia. Certamente, de alguma unidade
do bloco de três andares construído sobre a grande padaria da esquina.
Como era cedo, antes das 8h, muitas das salas que formavam aquele
complexo comercial ainda não estavam ocupadas. Das duas portas que davam
acesso aos andares, saiam poucas pessoas, algumas com jalecos brancos e
azuis e outras com uniformes de limpeza.
2
Não antes de 40min que o bloco pôde voltar a ser ocupado. A viatura
continuava lá, parada, impedindo a normalização do fluxo de veículos. Era
horário de rush para todos, exceto para a compreensão dos bombeiros.
Nenhuma escada foi necessária bem como nenhuma mangueira fora utilizada
para combater algum incêndio. Os ocupantes que haviam sido evacuados já
retornavam, exceto pelos que foram tomar um espresso na padaria.
O conjunto de número 24, união de suas salas, pertencia ao dr. Gael, cirurgião-
dentista, há exatos dez anos. Dr. Gael costumava iniciar seus atendimentos às
7h pela facilidade de seus pacientes em encontrar uma vaga para estacionar. A
zona azul começava a partir das 8h.
O paciente das 7h chegou às 7h15 e o dr. Gael iria restaurar um molar com
resina, mas teve de interromper tudo. O paciente, quando viu todo aquele
aparato envolvendo os bombeiros, preferiu remarcar a sessão a ter de esperar
sabe-se lá por quanto tempo.
- Bom dia! De modo algum. Entre, por favor. Há algum perigo para nós,
aqui?
- Não, senhor. O duto que faz a exaustão dos vapores das chapeiras da
padaria estourou e o acúmulo de gordura e sujeira entrou em combustão
e produziu a fumaça preta. Nada sério, só mesmo o susto.
- Não, tenente. Mas hoje abrirei uma exceção para cuidar desse seu
dente antes que ele infeccione e lhe cause problemas mais sérios.
Fique com meu cartão e avise-me caso o senhor não possa vir hoje, por
favor.
- À noite eu farei uma radiografia dos quatro e lhe dou pormenores sobre
o que fazer.
Dr. Gael era um tipo um tanto exótico. Quando começou a clinicar nesse
consultório tinha poucos pacientes e do que ganhava sobrava-lhe relativamente
pouco, descontando as despesas para a manutenção da clínica.
Anos mais tarde surgiu o casamento perfeito: a sala contígua à sua estava
vaga e ele precisava de um espaço adicional para um protético poder trabalhar.
Há pouco mais de dois anos outra oportunidade dessas de ouro: comprar o
conjunto das duas salas.
Esses investimentos só foram possíveis porque o dr. Gael leva jeito para a
coisa, como se diz. Ele começou trabalhando de segunda a sábado. No
sábado, até às 13h. Dr. Gael, e aí entra o seu “jeito para a coisa”, identificou
uma necessidade nos seus clientes e tratou de explorá-la.
Mas dr. Gael identificou uma outra possibilidade; a de atender também aos
domingos, pela manhã. Em pouco tempo, Dr. Gael passou a atender aos
sábados e domingos, período integral e isso propiciou-lhe ganhos como nunca
tivera antes.
Com as suas duas funcionárias também não havia problema. Duas irmãs,
solteiras, moravam juntas, já de certa idade. As duas eram envolventes no
atendimento e de absoluta confiança.
Outra situação comum era o paciente deixar o consultório sabendo que no ano
seguinte, ao menos dois tratamentos precisariam ser renovados. Isso gerava
um forte vínculo de confiança entre paciente e dentista. Dr. Gael ganhava bem
sendo um cirurgião-dentista honesto.
Dr. Gael orgulhava-se de nunca ter feito qualquer tipo de divulgação, em ponto
algum. Nem nas redes sociais. Seus pacientes vinham por meio de indicações
e ficavam maravilhados com as ofertas de horários nos finais de semana.
Alguns atravessavam a cidade para se tratarem.
2. Um caso diferente
Os colegas de Gael criticavam-no alegando que ele vivia para o trabalho e que
ele deveria aprender a trabalhar para viver. Ele dizia ainda gostar do que fazia
e que, em algum momento, circunstâncias fá-lo-iam mudar. Por ora, ele queria
ganhar dinheiro e ser independente.
6
Dr. Gael, confirmo minha ida ao seu consultório hoje, às 19h. Obrigado!
Dr. Gael avaliou o gesto do 2° Tenente como muito simpático. Sua assistente
da tarde estaria dispensada antes das 19h. Ela deixaria tudo preparado e da
extração ele cuidaria sozinho.
Hoje, ele atenderia mais um dos que fariam parte desse seleto grupo de
homens belos. E todos, sem exceção, tinham sorrisos amplos e com duas
fileiras de dentes perfeitos por que bem cuidados. A beleza desses homens
não era só física; havia simpatia e charme.
Na padaria havia os que diziam que “beleza atrai beleza” referindo-se ao fato
de que o próprio Dr. Gael era um homem muito charmoso. Seus cabelos
grisalhos para sua pouca idade conferiam-lhe um ar de beleza rara e misteriosa
que pedia para ser decifrada.
- Boa noite, tenente. Eu não sei exatamente como devo chamá-lo, se por
tenente ou se por 2° tenente.
Primeiro, eu irei anestesiar toda a sua gengiva inferior direita para que
não haja desconforto.
- Ótimo. Você vai abrir bem a boca e eu vou fazer uns movimentos.
Qualquer sinal de dor, avise-me.
- OK!
...
- Já está praticamente... Pronto! Aqui está! 25% do juízo no boticão. No
alicate.
- Pelo que vi, foi sua primeira extração. Sua dentição é ótima e está bem
cuidada.
Não mastigue do lado direito por uns três dias, não faça bochechos
fortes para não romper os pontos.
Você vai levar uma receita de Amoxicilina, 500mg, de 8-8h, por sete
dias. Se sentir dor, tome Paracetamol.
- Perfeito. Você reconheceu pelo formato das raízes. Este outro, do lado
esquerdo, também de cima, nós podemos extrair em um mês, ou antes,
se você se sentir bem.
3. Rafael e Henrique 1
Henrique tinha acabado de reler uma crônica que escrevera e intitulara Meu
casamento. Todas as vezes em que a lia, seus olhos faziam brotar lágrimas:
ele e Rafael estavam lá.
1
Rafael e Henrique são os personagens centrais dos contos Verdade e certeza no amor, O amor
encontra a amizade, O fim das migalhas de amor, O amor cura a culpa e o pecado, Lua de mel e Viva e
deixe viver.
9
Cheguei ao bistrô, subi as escadarias. Ele estava lá, pôs-se de pé. Era o
homem mais belo que eu havia visto. Ele veio na minha direção, eu consegui
dar dois passos à frente; ele abriu seus enormes braços para me abraçar;
envelopou-me por inteiro. Meu corpo tremia dos pés à cabeça.
Com sua voz de baixo-barítono, ele pediu-me em namoro. Eu, trêmulo, com
lágrimas escorrendo-me dos olhos, não consegui responder. Ele levantou-se,
puxou-me para perto de si, envolveu-me e beijou meus lábios com suavidade e
entrega. Os seres celestiais regozijavam-se. Os demais comensais ficaram
com garfos e colheres parados à boca. Alguns acenaram enamorados.
Pouco tempo depois casamo-nos; jamais dissemos “eu amo você”; era
redundante. Sempre andamos de mãos dadas portanto nossas alianças. A sós
ou em público, ele me envolve e me beija; suspiros são ouvidos. A certeza da
verdade que há em nós contagia os empertigados.
Uma sala de espera para uma consulta médica torna-se amável, se ele lá
estiver comigo. A melhor mesa, o melhor concerto, o melhor passeio, as
melhores férias e as maiores homenagens não passam de um nada, sem vida,
nem graça, se ele lá não estiver comigo.”
10
O último parágrafo fazia-o lembrar-se de que agendara consulta com o dr. Gael
para os dois. Gael havia se tornado um amigo de Henrique e,
consequentemente, de Rafael. Henrique pensou em convidá-lo para o
casamento, mas decidiram-se só pelas testemunhas Nathália e Jover.
Pelo que ainda se lembrava de Gael, Henrique não entendia muito bem sua
dedicação ao trabalho: era excessiva. Será que o trabalho tomara o lugar de
um amor? Se Gael era tão dedicado ao trabalho e aos seus pacientes, como
não seria com um amor?
Henrique lamentava que nunca surgira a oportunidade para conviver com Gael
em outros ambientes, mas entendia: Gael era solteiro e os amigos próximos de
Henrique, todos casados. Gael era daquele tipo de homem de quem é muito
fácil se gostar, logo no primeiro encontro.
- Bom dia, dr. Gael! Você está muito bem, não Rafael?
- Nisso você tem razão, Gael. Você tem saído para algum lugar, para
encontrar alguém?
- Amor, foi assim mesmo? Eu nem gosto de lembrar porque meus olhos
ficam vermelhos.
- E quem não se emocionaria, Rafael? Algo me diz que vocês vão assim
até ficarem bem velhinhos.
Não precisaria ser feito hoje, mas já que você está aqui, tão confortável,
por que não adiantar? Infelizmente não precisarei anestesiar.
- Claro, Gael. Já irei para a cadeira elétrica. Pronto. Vamos ver o que
teremos para hoje.
Henrique sempre diz que sentir saudade, sentir falta faz bem ao
relacionamento e eu concordo integralmente com ele.
E quando sei que irei vê-lo, seja no meu apartamento ou no dele, é uma
sensação de reencontrar o namorado. Esse “sentir falta”, a saudade, é
um tempero que revigora o sabor de tudo, Gael.
- Duda é mesmo nosso bebê. Está ótima e peralta. Agora sairemos para
uma caminhada com ela.
4. Juízo
No início de sua carreira, dr. Gael não recusava pacientes. Nem poderia fazê-
lo; precisava trabalhar para ganhar dinheiro, pagar as contas e principalmente
para poupar. Naquela época atendia adultos, adolescentes e até crianças.
Gael tinha acabado de almoçar na copa da consultório. Era o local onde havia
água, chá, café e uns biscoitos para todos. Lá havia um frigobar e um fogão
elétrico, de duas bocas. Quando o seu micro-ondas quebrou, Gael não o repôs.
Todos esquentavam suas refeições em banho-maria.
- Sim, senhor!
- Não, não. Não senti dor alguma, não precisei tomar Paracetamol e sim,
continuo com o antibiótico.
...
- Está tudo evoluindo muito bem, Fernando. Seu organismo está
reagindo muito bem. Sinal verde para a outra extração.
- Ótimo. Veja, Fernando, eu poderia ter feito as duas naquela noite, mas
o desconforto seria grande porque a boca toda ficaria anestesiada.
- Sim, entendo e acho sua decisão acertada. Como estou bem, pensei
em antecipar a segunda extração, ao invés de aguardar algumas
semanas.
- Vá, sim. Você será bem recebido, mas a dívida não será paga...
- Minha namorada também já me disse isso. Ela acha que uniformes têm
algum fetiche.
Você nota alguma diferença em você com farda e sem farda, com roupa
civil?
- Foi o que pensei. Mas você não encontrou um menino para amar?
17
- Dois homens?
Já houve algo como “vou ficar com você por educação”, mas isso logo
se desmancha. Eu iludia-me muito rápida e facilmente; hoje já sou mais
pés no chão, sabe?
- Pode dar certo por algum tempo, porque uma das partes anda carente
ou cansada de ficar sozinha. Pode chegar a casamento, mas é uma vida
sem brilho, sem luz.
- E o que você faz quando não recebe afeto? Você não reclama?
Fernando, eu ficaria horas aqui com você, mas acho que meu paciente
já chegou. Quem sabe, à noite, não continuamos um pouco mais?
Não muito longe dali o 2° Tenente Fernando Abatte via que não havia
respondido a três mensagens da sua namorada. Para seu espanto, também
não se sentia inclinado a fazê-lo agora.
Imerso na profusão de laudos que havia sobre sua mesa, o 2° Tenente Abatte
tentava identificar a diferença entre desejo e amor. A descrição que o dr. Gael
lhe dera, sobre os pacientes seus amigos, era claramente sobre o amor. O
amor seria um passo para além do desejo?
Fernando tentava imaginar a cena dos dois amigos do dr. Gael entrando de
mãos dadas na padaria e todos parando o que faziam para olhar para os dois.
Pela narrativa do dr. Gael, os olhares eram de espanto pela beleza dos dois.
Ele sabe de um colega que fica na segunda sala ao lado da sua que mantém
um relacionamento com um homem. Todos sabem, mas publicamente ninguém
comenta; nas rodinhas mais fechadas, há comentários e alguns depreciativos e
maldosos.
Fernando havia decidido que não avisaria sua namorada sobre a extração de
logo mais, pois ela certamente iria até sua casa para cuidar dele. Sua mãe faria
isso suficientemente bem. E ele também iria querer descansar. Nesse
momento, ocorreu-lhe pensar em reciprocidade.
Não fosse pela dedicação de sua assistente, dr. Gael nem água tomaria. O
copo estava lá, intacto. Quando ela entrou, levou o copo até ele e fê-lo beber,
interrompendo o atendimento. Ele agradeceu o zelo e o paciente ficou
surpreso. As secretárias zelosas faziam isso antigamente.
A extração de hoje deverá ser mais simples, pois não há dor como havia
na do lado direito e as raízes são menos profundas.
...
- Um pouco antes de você chegar eu enviei o link para você, daquele
texto que mencionei no café. Talvez você queira lê-lo até a anestesia
fazer efeito completo...
Relaxe, abra bem a boca e segure-se, porque terei de fazer força, como
da outra vez.
...
- Pronto, Fernando. Veja seu siso e compare-o com a imagem. Essa
extração foi mais branda, mas vou dar uns pontinhos, por cautela.
...
- Agora, Fernando, você está livre de mim. Ao menos, por enquanto.
21
5. P e J 2
Foi J quem agendou a consulta dele e de P com o dr. Gael que lhes fora
recomendado por Henrique em um momento em que P lutava contra seus
demônios internos mais vorazes. J guardava na memória um dr. Gael
atencioso e meigo; carinhoso, até.
J lembrou-se dos esforços que fez para conseguir uma entrevista com o tal
padre P: enviou-lhe uma carta manuscrita, com envelope manuscrito, na
esperança de ter seu pedido atendido. J gostava de ser perseverante e de não
desistir diante de algumas dificuldades.
E o primeiro encontro com o padre P mudou tudo. Hoje J reconhece como foi
impactado pela presença daquele homem e, mais ainda, como absorveu o
sofrimento dele vendo-o lutar consigo, com sua fé, a doutrina e com seus
princípios.
Nesse período J viu-se salvo pela sua ausência de fé, mas ainda não era
antirreligioso. A religiosidade era-lhe um mundo distante, inexpressivo e
inofensivo, mas o contato com o mundo eclesial, via padre P, alterou essa
percepção.
Aos poucos, J foi entendendo que as religiões não são inúteis; chegam a ser
nocivas: injetam doses maciças de sentimento de rejeição, de culpa e de
pecado nas pessoas, para levá-las a comprar a salvação. E frases de José
Saramago vieram-lhe à mente:
“O problema não é um Deus que não existe, mas a religião que O proclama!”
2
J e P refere-se ao jornalista J e ao ex-padre e atual professor P. Eles são os protagonistas de Confissões
sobre o Cristianismo, O fim das migalhas de amor, O amor cura a culpa e o pecado, Lua de mel e Viva e
deixe viver.
22
“Não posso crer num deus que foi capaz de criar o ser humano.”
J lembra-se de como P lutava para tentar amá-lo, mas via-se impedido por
sentimentos de culpa e de pecado e de como isso foi somatizado por P. E de
como amizades verdadeiras, como a de Rafael e Henrique, foram importantes
na sua recuperação.
De anos e anos de vida e vivência na igreja, não sobrou nem uma amizade
sequer. A maioria, por temer retaliações, preferiu isolar-se. Repetia-se o mito
de Pedro que negou seu mestre e amigo. Repetia-se a hipocrisia que esse
mestre tanto combateu e que vive e reina na igreja.
J via seus olhos marejarem-se com essas recordações; via como o amor entre
ele e P e a amizade com Rafael e Henrique foram capazes de curar P das
culpas e dos pecados. J lembra-se da primeira vez com P, do primeiro beijo, do
pedido de casamento e do casamento.
P não é só o mais belo homem para J; é o homem da sua vida e não tem a
menor dúvida de que ele, J, é o grande amor da vida de P. E de que Rafael e
Henrique são os melhores amigos que poderiam ter. E de Nara, a Narita e
Duda, como filhas dos dois casais.
- Bom dia, dr. Gael! Uma alegria estar aqui com você, novamente!
- Não sei se consigo imaginar, P. Acho que ainda não evolui para isso.
Ah, um outro paciente chegou, mas é bem rápido. Eu só vou olhar o
estado dos pontos, se vocês me permitirem.
- Tenente, nós é que somos fãs do dr. Gael. E não sinta que você está
invadindo nosso horário, por favor. Hoje, excepcionalmente, não
estamos com pressa.
- Casados no civil?
- Que bom, Gael. Então, eu já vou pagar tudo lá com a sua assistente.
- Depois de atender os dois eu estarei livre. Não sei dizer quanto tempo
levará, mas posso tentar avisá-lo, ou você ficar lá fora esperando.
- Combinado. Eu aguardo.
...
- Muito obrigado por me deixarem ser atendido no horário de vocês.
- P, você não achou que ele tem olhos para o dr. Gael?
- Sim, J, reparei, assim como reparei que o dr. Gael tem olhos para ele.
- Tenente, você fica incomodado por estar na nossa presença? Pode ser
sincero, por favor.
- Incomodado, não; estou surpreso. Eu acho vocês dois uns heróis por
andarem de mãos dadas e por serem tão corajosos.
- Mas um não precisa do outro? Por exemplo, o que dois homens que
são só ativos fariam? Ou só passivos?
- J, sou mais ainda seu fã, viu. Você é um orgulho para os que amam
iguais.
- Que nada, Gael. Foi o meu amor pelo P e o amor do P por mim que me
ajudaram a conquistar essa coragem. A coragem veio pelo caminho da
reciprocidade.
- Tenho mais uma: o sexo entre homens não vira rotina e perde a graça?
E nós temos uma vantagem porque cada um de nós tem sua própria
casa e o sentir falta do outro e a saudade são muito importantes para
tudo sempre parecer fresquinho, sabe?
27
- Mas, J, essa espera não foi dolorosa para você? Como você aguentou
isso?
- Eu estou aqui sentado ao lado do dr. Gael olhando para vocês dois e a
impressão que tenho é que tudo foi tão fácil e natural para vocês. Que
vocês nada enfrentaram, além de amor.
- Então, nós vamos seguindo, porque você deve ter mais coisas para
conversar com o nosso querido dr. Gael, não? Fiquem bem, vocês dois!
...
- E então, dr. Gael, o que você me diz disso?
- Você disse que eles estiveram aqui recentemente. Como eles estão
agora?
- Sim, mas teria de ter reciprocidade, mesmo que não fosse na mesma
intensidade. Sem reciprocidade sexual ou afetiva vira negócio.
- Eu quis dizer que já está na hora de irmos para casa, voltarmos para
casa.
- Eu acho que se eu convidasse você para ir à minha casa, você não iria.
Convite sem reciprocidade não funciona, Fernando.
30
- Pois é, acabei falando do mesmo jeito que você. Cada um vai para sua
casa, foi o que eu quis dizer.
Dr. Gael tinha uma característica que ele apreciava em si mesmo: um homem,
por mais atraente que fosse, se entrasse em seu consultório, seria visto como
paciente. Essa postura já o preveniu de fazer bobagens. Com o 2° Tenente
Abatte, caia-lhe providencialmente.
Dr. Gael sentia-se um pouco incomodado consigo por achar que devotava uma
atenção ao 2° Tenente Abatte que excedia o zelo profissional. Esse
comportamento não se justificava pelo fato de o 2° Tenente ser um homem de
porte altivo e por ser atraente.
Se fosse pela beleza, o que o dr. Gael não faria na presença de Rafael, um dos
homens mais belos que teve o privilégio de ver de perto? Ou de P que lhe
pareceu ainda mais exuberante depois do casamento? Ou de Étienne que veria
em alguns dias e cuja beleza era singular?
Havia um interesse mútuo no ar, entre dr. Gael e o 2° Tenente Abatte, mas era
muito cedo para suposições e, principalmente, para deslumbramentos. Dr. Gael
entendeu que precisaria imergir no trabalho e desocupar sua mente dos
devaneios improdutivos.
6. Étienne e Renato 3
Na sexta-feira, ainda no café da manhã, Eti lembrou Renato para agendar uma
consulta com o dentista para a avaliação periódica. Seria a segunda visita ao
dr. Gael que fora indicado ao Renato pelos professores P e Henrique.
Dr. Gael fora muito elogiado tanto por P como pelo Henrique e Renato, e Eti
comprovaram sua competência e simpatia. Outro detalhe, especialmente
confortável para Eti, era que o dr. Gael atendia vários casais homoafetivos e
suas assistentes encaravam tudo com normalidade.
Eti estava em seu laboratório, em seu jaleco branco, que lhe conferia a estatura
de um deus de ébano, quando recebeu a confirmação de Renato, com uma
pequena declaração e um beijo. Renato era a pessoa mais importante na vida
do seu marido e Eti pôs-se a recordar sua vida.
Atualmente, Eti tinha alguma vida social com alguns colegas do laboratório,
bem poucos, e com alguns colegas que viraram amigos e que conhecera por
meio do Renato. Mas nem sempre foi assim. De sua família, só sua mãe se
importava com ele, mas ela estava em Porto Príncipe.
A cena no parque em que os dois foram abordados pela polícia que veio
averiguar se Renato, o branco, corria algum perigo pela presença de Eti, o
preto. Sobre isso, ele e Renato riem até hoje, mas no dia foi constrangedor,
apesar de os policiais terem agido com bastante tato.
Nesse momento, os olhos de Eti ficam marejados: ele se lembra de que foi o
empenho pessoal do professor Renato para que seu diploma de farmacêutico
fosse convalidado pela universidade e ele pudesse requerer o registro no CRF.
Renato já o amava e esse amor o fez lutar. E muito!
3
Étienne, farmacêutico, e Renato, especialista de TI e professor-doutor, são os personagens centrais do
conto En blanc et noir.
32
Eti ainda sonha com a possibilidade de que seu pai o aceite como ele é; sua
mãe tem feito sua parte, mostrando-lhe os vídeos que Eti frequentemente lhe
envia.
- Bom dia, Étienne! Bom dia, Renato! Que bom vê-los com esse sorriso
de felicidade. Vamos para a cadeira elétrica, então?
Agora, eu quero examinar o Eti para termos uma ideia de tempo para
tudo.
...
- Eti, no seu prontuário havia uma indicação de implante na cavidade
molar. Vejo um tratamento de canal que teremos de fazer, mais duas
restaurações com aplicação de resina O seu demandará mais tempo,
Eti.
- Hoje temos tempo para sofrer, Dr. Gael. O que você propõe?
- Se lhe for possível, dr. Gael. Mas eu posso esperar você retornar do
café.
- Eti, Renato, tomem uma água que eu volto em instantes, por favor.
Venha, Tenente.
...
- O que houve, Fernando? Você está com dor ou sangramento?
- Preciso tomar cuidado com vocês três. De novo, você está bem?
- Olá, Tenente!
Quando ele descobriu que eu era farmacêutico, fez de tudo para que
meu diploma fosse convalidado. Depois, ele cuidou do meu registro
profissional no conselho regional de farmácia. Eu já estava totalmente
enamorado dele e ele de mim.
- Eti e Renato, que história mais linda essa de vocês. Vocês devem ter
enfrentado outras dificuldades também, não?
- Sim, Tenente. Nós somos marido & marido. E, Tenente, o melhor disso
tudo é que nós dois temos certeza de quem amamos e por quem somos
amados.
- O Tenente diz isso porque ele leu aquele texto que o Henrique
escreveu, o Meu casamento.
- É isso.
- Tenente, isso nós conversamos assim que percebemos que havia algo
mais entre nós. Eu me lembro como se fosse agora. Eti disse para mim
que ele era 100% ativo. Eu respondi que estava perfeito para mim.
- Dr. Gael, não é uma maravilha estarmos com pessoas com esse nível
de coragem? Isso não lhe parece esplêndido, dr. Gael?
- Tenente, se você não tiver mais dúvidas, nós iremos para casa.
- Nesse caso, ele seria um homem, mas não seria o homem da minha
vida.
- Que nada, Olímpia. Foi uma decisão acertada. A conversa não poderia
ter sido melhor. O Tenente é ótima pessoa.
Dr. Gael sentia-se mais próximo do 2° Tenente Abatte, mas não o suficiente
para conversas sobre seus sentimentos. Por outro lado, ele mesmo
interpretava seus sentimentos como mistos, para não usar a expressão
“confusos”.
Dr. Gael acreditava que se o 2° Tenente Abatte não fosse seu paciente, ele
teria menos medo de expor-se; com um paciente, confundir papéis poderia ter
consequências profissionais indesejadas.
7. Ralf e Matheus 4
Ralf havia agendado uma consulta com o dr. Gael para ele e Matheus. Seria a
segunda ida ao consultório; na verdade, a terceira: a primeira fora breve, só
para detectar o que precisaria ser feito. Matheus via muita semelhança entre
Ralf e o dr. Gael, quanto ao atendimento de pacientes.
Matheus lembrou-se do seu pai, cujo amigo judeu, Simon, é o chefe do Rafael,
de onde partiu a recomendação do dr. Gael. Os dois judeus iam ao dr. Gael
pelos seus honorários e pelos horários que disponibilizava, aos finais de
semana e feriados: para eles, grande conveniência.
4
Dr. Ralf, psicanalista e professor universitário, e Matheus, físico, são os personagens centrais do conto
O Psicanalista.
40
De como o dr. Ralf insistia que a tarefa de Matheus era cuidar de si mesmo. De
como o dr. Ralf empregou propositadamente o termo “vetor”, termo caro a um
físico, para mostrar-lhe o que Matheus, o físico, precisaria ver. E do primeiro
grande encontro de almas...
Dr. Ralf não mais poderia atendê-lo como seu psicanalista: perdera a isenção.
Iria cuidar de Matheus como namorado: juntos, fariam exercícios de
mobilidade, simples, lentos, dentro das possibilidades. A cada pequeno
sucesso, Matheus recebia um abraço ou um beijo.
O que Matheus não faria para casar-se com o amor da sua vida e ainda
mostrar para si mesmo que se havia superado? Como o dr. Ralf era capaz de
eliciar forças inimaginadas de Matheus? Como o dr. Ralf conseguiu com que
Matheus enfrentasse um mergulho no mar após o acidente?
Matheus ainda se lembra de como seu pai o fez prometer que cuidaria
muitíssimo bem do seu Ralf, o melhor homem do mundo para Matheus que se
sabia o melhor homem do mundo para seu amado Ralf.
Matheus aguardou mais alguns instantes para sair do banheiro, voltar à sua
mesa e escrever a Ralf que queria dançar com ele porque o amava.
- Então, venha que queremos dar-lhe um abraço. Da última vez isso não
foi possível.
- Eu acho que estou tão feliz quanto vocês. Foi diagnóstico equivocado,
Matheus?
- Não Gael, foi a força do amor do Ralf por mim e do meu amor por ele.
Esse seu olhar tem alguma relação com alguma reciprocidade, Gael?
- Gael, tentar é pouco; não serve. Era o que eu sempre ouvia do meu
gatão. Tem que fazer mais do que tentar.
- Ralf, você é um bruxo. Amo vocês dois. Aqui estão os valores de hoje.
Se pagarem juntos, podem parcelar em três vezes.
- Para atender você, eu cancelaria tudo. Você não pode ficar com dor.
Mas era dor em algum dente?
- O dr. Ralf identificou meu problema, deixou de ser dr. Ralf para ser
Ralf. Quando o apresentei ao meu pai, achando que ele poria um ovo,
meu pai o abraçou e chamou de genro e Ralf passou a ser meu
amorzão.
- Sozinho, Matheus?
- Sozinho significa por mim mesmo; este meu amorzão aqui nunca saiu
de perto de mim. Ele me subornava o tempo todo.
- Já entendi. Por esse “algo mais” você fez tudo o que precisava.
- Tenente, ele disse sim, mas era um sim condicional. A condição para
nos casarmos era eu participar da corrida de São Silvestre ou da corrida
de Reis. Ele permitiu que eu apenas participasse, sem compromisso
com resultados.
- Sei. Dos dois, mas com destaque para o incentivo do dr. Ralf. Entendi
o que é reciprocidade.
- Dr. Gael, cuide bem da sua reciprocidade. Está-lhe fazendo tão bem...
- Ainda não, Gael. Isso que eu chamei de dor é algo que eu preciso
resolver sozinho, por mim mesmo. É um aprendizado que eu preciso
alcançar. Aprendi isso no seminário do qual participei.
- Pensei que estava relacionado com o fato de eu não lhe ter dado meu
número privado e você teve de subornar a dona Olímpia ou a dona
Lavínia.
- Um nude?
- Era um nude.
- Mas você namora, Fernando. Seu namoro não mais lhe agrada?
- A dor tem sido maior, Gael. A dor tem sido mais forte.
- Entendo. Se você achar que precisa de mim saiba que estou disponível
para você. De verdade.
47
- Essa é uma das poucas certezas de que tenho, Gael. Obrigado por
tudo, meu querido.
- Nem vou dizer o que acaba de passar pela minha mente, dr. Gael.
Nem vou dizer.
8. Dr. Gael
Gael sentia-se feliz e resolveu aparecer na casa dos seus pais para fazer-lhes
companhia para o jantar. Contar com Gael para um almoço em um fim de
semana era contar com a sorte própria das loterias. Durante a semana isso
acontecia com alguma regularidade.
Gael nunca avisava antes porque não queria que sua mãe se esfalfasse na
cozinha por causa dele. Ele aparecia e comia daquilo que havia, como sempre
foi em sua casa. O que poderia acontecer era sua mãe ter de fritar um ovo a
mais e pronto. Assunto resolvido.
Se fosse visitar seus pais, chegaria antes do jantar para evitar que sua mãe
voltasse à cozinha e às panelas. Isso era possível quando um paciente ligava
para cancelar sua consulta, a última do dia. Não era comum, mas às vezes
acontecia e essas visitas convertiam-se em visitas aos pais.
A conversa entre Gael e Fernando foi longa, com muitas frases ditas, a maioria
sem sentido claro. Gael não responsabilizava Fernando porque ele mesmo,
Gael, não conseguia dizer exatamente o que percorria sua mente. Mas a
sensação que lhe ficara era de que tudo caminhava como devia.
Gael chegou à casa dos pais e conseguiu estacionar seu carro exatamente na
entrada. Ainda estava todo de branco o que o deixava com uma aparência bem
atraente. Gael era um homem atraente; se caminhasse por um shopping
certamente atrairia muito olhares cobiçosos.
Quando ele ia tocar a campainha, ouviu o pai abrindo a porta e chamando sua
esposa.
48
- Gael, meu filho! Ainda bem que você se lembra de que tem pai e mãe...
- Entre, filho. Eu estou finalizando o jantar para nós. Seu pai irá servir-lhe
um aperitivo.
- Essa, filho, consumimos com juízo. Para o dia a dia bebemos da Velho
Barreiro.
- Filho, eu estou achando você mais bonito, sabe? Não vejo a hora de
você vir acompanhado de alguém.
Um moço lindo como você não pode ficar sozinho tanto tempo e só
pensar em trabalho.
- Mãe, o dia que eu passar por aquela porta com alguém, vocês saberão
que é para casar. Aventuras a gente não leva à casa dos pais.
- Concordo, filho. Você está certo. Veja sua prima: a cada mês aparece
com um namorado novo.
- Filho, você teve muita sorte com essas duas irmãs. Duas senhoras, de
vida estável e que trabalham por gosto.
49
Ainda bem que não venho sempre, senão ficaria uma jubarte.
Eu tenho uma horta na minha área de serviços, mãe. Não é como a sua,
no quintal, mas tenho manjericão, orégano, tomilho, alecrim, sálvia e
pimenta malagueta.
- Pronto! Essas ervas com sal, alho e cebola, e o melhor tempero natural
está pronto.
...
- Obrigado pelo jantar delicioso e pela conversa. Assim que der, eu
retorno.
- Se vier com alguém, avise-me antes filho. Comida do dia a dia não se
serve para visita.
50
- Se eu vier com alguém, mãe, não será visita. Será da família. Se minha
irmã aparecer, deixem-lhe um beijo e outro para o cunhado.
Gael dirigiu de volta para a sua casa. Ele gostava de encontrar-se com os pais,
mas não conseguiria mais morar com eles. O tempo havia passado. Nada
como poder refugiar-se no seu próprio lar e dedicar-se às suas coisas. A
imagem de Fernando apareceu-lhe e Gael sorriu.
9. 2° Tenente Abatte
Fernando era o único que ainda morava com os pais. Suas irmãs mais velhas
já moravam com seus companheiros e Fernando ensaiava sair de casa, mas
só pensava em sair se estivesse em um relacionamento sério.
Amanda achava que o relacionamento dela com Fernando era sólido e ele já
nem sabia mais o que pensar, exceto por uma palavra que ia e vinha:
reciprocidade. Nos últimos dias havia aprendido tanto sobre a importância
dessa palavra, de três fontes diferentes e convincentes.
Por um lado, acho você tão feliz e, ao mesmo tempo, sinto como se você
estivesse carregando um piano nas costas. Onde dói, filho?
- Amanda esteve aqui mais cedo. Ela veio com o saca-rolhas, sabe? Eu
estou começando a desgostar dela, filho. O temperamento dela não
combina com o seu.
- Eu penso que ela desconfia que você tem outra. Ela parecia uma loba
perdendo a posição de fêmea-alfa.
- Eu não quero mais esse namoro, mãe. Entre nós não existe
reciprocidade.
- Mas hoje seu olhar revela que você está empolgado também, mas
parece que há calmaria
- Mãe, você deve ter parte com feiticeiras. É incrível como você sabe me
interpretar.
- Filho, dos três, você é o mais transparente. Seus olhos contam tudo.
- Que você está encantado por alguém como nunca esteve antes em
sua vida. Não é só corpo; é coração. É verdadeiro e belo. Não deixe
passar essa oportunidade, filho.
- Obrigado, mãe.
52
Depois dessa conversa pesada, mas reconfortante que Fernando teve com sua
mãe, ele sentiu que precisaria dizer algo a alguém.
Ainda bem que Marco lembrou-se de que hoje à tarde, neste sábado
acinzentado, ele e Rainer teriam consulta com o dr. Gael. A agenda de Rainer
dificilmente falharia. Marco era grato ao seu colega, o professor Renato, com
quem estabelecera uma ótima parceria.
Marco havia estado com o dr. Gael por algumas vezes para tratar de um canal
infeccionado. Hoje iriam juntos, pela segunda vez e tinham a segunda metade
da tarde do sábado reservada. Gael certamente notaria como Marco parecer-
lhe-ia mais relaxado.
O casamento com Rainer foi melhor decisão de vida para os dois. Marco
sempre se lembrava de como um ingênuo envio de fotos suas para Rainer foi
ficando mais picante e revelando conteúdos comprometedores entre um
subordinado e seu chefe.
5
Marco Antonio, especialista de TI e Redes, e Rainer, seu chefe na área de Redes, são os personagens
centrais do conto O dilema.
53
Marco via, agora, as cenas em que ele revelava tudo à sua esposa, depois ao
filho Arthur e mais tarde, à filha Guiomar. O problema não era só anunciar que
havia alguém em sua vida, mas anunciar que esse alguém era um homem.
Com os olhos marejados, Marco dá-se conta da incrível força do amor que o
uniu a Rainer.
- Boa tarde, Rainer e Marco. Saudade de vocês! Vocês, sim, é que estão
com aparência ótima.
- É para isso que viemos, Gael. Para sua inspeção criteriosa. Renato e
Eti nos contaram que estiveram aqui com você e que tomaram café com
um bombeiro muito simpático.
Marco, temos duas pequenas cáries par restaurar com resina, mas antes
farei uma profilaxia, uma limpeza completa, para ver se há mais alguma.
54
- Sim, sou eu mesmo. Espero que eles não tenham ficado chateados
comigo.
- Tenente, eles ficaram encantados com você. Pediram para que nós
transmitíssemos lembranças para você, via o dr. Gael. Nós fizemos isso
assim que chegamos hoje.
- Rainer e Marco, por que você não descem e reservam uma mesa para
nós. Eu só vou examiná-lo rapidamente e desço.
55
- Pensei em uma lista de palavras com quatro letras que podem fazer
bem. É para eu continuar com esse enigma?
- Tenente, quando conheci o Marco, ele tinha uma família, era casado,
com um casal de filhos na casa do 20 anos.
Imagine contar para a esposa que surgiu alguém e que esse alguém é
um homem. E depois contar tudo aos filhos.
- Mas, e a esposa?
Pelo menos uma vez por semana estamos juntos, ela, as crianças
grandes e os agregados.
Ela continua com a chave de casa e vem e vai quando quer. E ela
renasceu com a separação.
- Tenente, quem sabe um dia você não vê isso com seus próprios olhos.
- Acho que nem assim eu acreditaria. E tudo isso vem da força do amor.
- Certo.
- Foi mesmo, por causa do “meu lindo”. Isso não foi só força de
expressão.
- Não foi força de expressão. Acho melhor irmos para casa, Fernando.
- Certo. Você merece o melhor disso. Amanhã vejo você, meu lindo, aqui
mesmo.
- Esse seu “meu lindo” foi lindo. Obrigado por esse mimo.
Dr. Gael foi para casa e, ao volante, sentiu vontade e cantar. “Quem canta,
seus males espanta” foi a frase que lhe veio à mente, mas não havia males a
espantar. Havia delícias por provar. Gael nem se lembrava mais da última vez
em que sentira algo semelhante.
Gael queria ter acesso a um desses botões que fazem o tempo avançar, como
aqueles que aumentam a velocidade em eletrodomésticos. Queria que fosse
fim da tarde do domingo em que veria Fernando novamente.
Fernando chegou à sua casa e encontrou Amanda exaltada. Ela parecia sentir
que Fernando lhe escorria por entre os dedos e tentou marcar sua posição com
firmeza de fêmea-alfa. Recuperaria seu macho reprodutor, custe o que
custasse.
- Gostar não é suficiente para se casar. Nós não nos amamos; nós
estamos habituados a ficar juntos, só isso.
- Amando. No feminino, soa horrível. Agora, filhote, você está livre para
o seu amor.
- Mãe, você não existe. Por que você acha que eu estou amando?
- Pela sua paz. Pela segurança da sua voz. Pela suavidade de cada
gesto seu. Coração de mãe não se engana, filhão.
- Contágio, filho.
Fernando pensou que o caso Amanda lhe foi muito mais simples do que
imaginara. Ela entrou com casamento na bandeja e saiu sem namorado. Foi a
melhor decisão para os dois. Antes do banho precisaria escrever para alguém.
11. Rico e Jô 6
Bela chegou pouco depois de Luma, mas era alguns meses mais velha. As
duas cresceriam juntas por um bom tempo, antes de Bela tornar-se uma
senhora idosa. Hoje, as duas já eram inseparáveis. Rico e Jô colocavam Luma
no tapete da sala e Bela fazia-lhe companhia.
Hoje, o programa dos dois adultos seriam passear de manhã pelo parque com
Luma e Bela, fazer um gostoso almoço a quatro mãos, descansar um pouco e
ir ao consultório do dr. Gael, por quem tinham estima e consideração.
6
Ricardo, ou Rico, é engenheiro florestal e Jonas, ou Jô, é advogado. Os dois são casados e são os
protagonistas do conto O acidente.
61
Pouco tempo depois do acidente de Jô, ele sentiu que precisaria de uma
avaliação odontológica. O impacto havia produzido algumas lesões na boca, já
cicatrizadas, mas Jô achava mais prudente que houvesse uma avaliação.
Rico já era paciente do dr. Gael por indicação do seu pai, Piero. Quando
Rafael, em meio a negócios de assessoria financeira, comentou sobre a
comodidade de horários que um tal dr. Gael oferecia, Piero interessou-se e
tratou de levar sua esposa Mathilde numa manhã de domingo.
Dr. Gael atendia toda a família: Piero, Mathilde, Rico e Rúbia. Algum tempo
depois, passou a atender os agregados: Jô, o marido de Rico, e Júlia, a esposa
de Rúbia. E os pais de Jô: Luciana e Adolfo. E sempre os atendia nesses
horários inusuais, em finais de semana ou feriados.
Jô, até hoje, não conseguia entender como for socorrido por aquele perfeito
estranho que o acompanhou ao hospital, avisou seus pais, ficou com ele no
quarto e, na alta, levou-o para sua casa e cuidou dele como nenhum
profissional o faria.
Jô teve alta e foi para casa desse perfeito estranho portando um colar cervical
e uma cinta de gesso no tórax e a recomendação de não mexer os braços para
coisa alguma, até o retorno.
Esse perfeito estranho deu-lhe banho, enxugou-o, secou-o como secador para
evitar a proliferação de fungos na cinta de gesso. Vestiu-o com seu roupão por
cima do corpo e com os braços esticados para baixo, para que não fossem
espontaneamente movimentados.
Jô lembra-se do confronto público com sua mãe, quando ela lhe perguntou
como ele tinha certeza de que o tal estranho era o homem de sua vida. Jô
apenas respondeu: ele me acolheu, me alimentou na boca, beijou meus
cabelos e lavou-me dos excrementos. Isso é amor!
Esse perfeito estranho tornou-se seu namorado. Com ele, foram a uma
expedição em uma fazenda no interior onde escolheram ficar em um quarto
com uma cama. Jô lembra-se da reação do gerente e de como tudo aquilo foi
libertador: o gerente declarou-se para seu parceiro.
Sentam-se e Luma recebe sua mamadeira. Os dois tomam café com leite e
torradas quentinhas com manteiga e geleia e Bela ganha sua porção. Jô conta-
lhe que chorava de emoção e de amor; a visita ao dr. Gael abrira-lhe o baú
com as mais importantes recordações.
- Luma, venha aqui no colo do seu tio. Mas você tem o sorriso mais
lindo, como seus papais.
- É o que eu digo ao Rico, dr. Gael. Ela tem o sorriso lindo dele.
- Jô, meu lindo, o sorrio dela é lindo porque é exatamente igual ao seu.
- É a Bela, dr. Gael. Aqui ela até entraria, mas na padaria, para o nosso
espresso, não iram deixar.
- Você me parece muito bem, dr. Gael. Nem aparência de cansado tem
e imagino que nós sejamos seus últimos pacientes de hoje, um domingo.
- Eu estou bem, sim. Nem me sinto cansado. Acho que o cansaço vem à
noite, em casa.
- Que bom. Vocês estão cada vez mais lindos, os dois. E essa felicidade
que vocês esparzem?
64
- Pois é. Na lua de mel foi muito divertido, pois todos pensavam que
éramos dois casais convencionais. Nós ríamos o tempo todo com as
reações das pessoas.
Eu acho que tanto você, Rico, como você, Jô, podem ter duas cáries;
vamos fazer uma profilaxia completa, isto é, limpeza, para eu me
certificar se são mesmo cáries.
- Eu também sou assim, sabe. Então, vamos lá, enquanto Luma ainda
consegue observar tudo. Rico, sinta-se à vontade para andar com ela
pelo conjunto e mostrar-lhe tudo.
- Obrigado, Gael.
...
- Pronto. A revisão periódica foi satisfatoriamente cumprida. Próximo
retorno, em 12 meses. Aqui estão os valores para Rico e para Jô. Se
pagarem tudo junto, posso parcelar em três vezes.
65
Daqui passamos em casa para pegar a Bela e vamos para a casa dos
pais do Rico, onde os meus também estão. Eles não se largam mais. E
nossas irmãs já devem estar lá com o Vitor.
...
- Fernando! Que bom que você veio. Este é Rico, engenheiro, este é Jô,
advogado e esta é Luma, futura dentista. Este é o 2° Tenente Abatte, ou
Fernando.
- Vamos, sim, Dr. Gael. Você viu, Luma, o tio Gael disse que você vai
ser dentista.
...
- Fernando, eu estou tão feliz por você estar aqui.
- É, Gael, eu estou vendo nos seus olhos. Você nem imagina como eu
estou feliz. Vamos descer, antes que eu faça uma bobagem.
...
- Tenente, a Luma gostou de você.
- Eu acho que ela tem traços de vocês dois. Olhos, nariz, boca,
bochechas... está bem dividido.
- Eu me lembro que foi logo depois do acidente, Jô, mas vocês dois já
emanavam felicidade.
- Tenente, esse estranho foi até o hospital, ficou lá, do meu lado até eu
ter alta e ele me levar para casa. A casa dele. Eu estava imobilizado.
- Jô, você não tem ideia de como esse seu depoimento é importante
para mim. Não tem ideia...
- Tenente, eu tinha todas as certezas sobre o que sentia, mas foi o amor
do Rico por mim que me deu a coragem para agir. Minha coragem se
manifestou pelo amor dele por mim.
- Fernando, você quer me matar do coração. Claro que aceito ser seu
namorado.
Rico comentou com Jô que os dois eram casamenteiros: suas irmãs, Rúbia e
Júlia, conheceram-se no apartamento de Rico, pouco depois de assumirem o
namoro. As duas casaram-se e vivem nas nuvens de felicidade, agora com o
pequeno Vitor.
Na fazenda Vila Rica, onde Rico fora realizar um trabalho acompanhado de Jô,
conheceram o gerente Walmor, o Wal, que foi seduzido pela espontaneidade
dos dois e revelou-lhes o seu amor secreto, o Antônio, Tom, seu braço direito.
Os dois também se casaram e estão felizes.
Agora, resgatariam Bela e ririam das duas avós babando como crianças com o
casal de netos. Mas o que fascinava a todos era ver como Luma e Vitor,
sentados no gramado, gargalhavam com as brincadeiras da Bela.
Gael punha a mão sobre o rosto para disfarçar sua emoção. Ele estava todo de
branco, sentado ao lado de um tenente também fardado. Dois homens
atraentes que chamavam a atenção de qualquer um. Os dois mal haviam
acabado seus turnos de trabalho.
Como Rico e Jô haviam saído meio que às pressas, ficou a impressão, entre os
atendentes, de que algo desagradável havia acontecido. Gael, freguês de
longa data, era amado por todos na padaria. Além de muito bonito, era
simpático e sorria com espontaneidade.
- Gael, com você eu perdi dois sisos e ganhei meu juízo. Eu estou livre
para amar você, como um homem ama seu companheiro.
- Gael, eu não sinto só uma atração imensa por você; eu sinto amor por
você. Levei esses dias todos, não para saber que amava você. Isso eu
já sabia e não tinha mais dúvidas.
69
Eu levei esses dias todos para ter coragem de olhar nos seus olhos e
dizer que quero você na minha vida.
- Dr. Gael, tudo bem com você? E com você, tenente? Vocês estão
passando bem?
- Não. Nem sequer chorou e disse que iria se divertir na balada. Minha
mãe sabe de nós e me apoia.
- O que significa esse “sabe de nós”, Fernando? Ela sabe que você tem
um caso com um homem?
- Elas sabiam, é? Por isso você soube dos horários dos casais e
recebeu meu número. Amanhã mesmo vou conversar com elas.
- Gaelzinho, meu lindo, veja lá o que você vai fazer. Eu devo muito a
elas.
- Eu acho que se você for para o meu lar não vai mais querer sair de lá.
- Eu não quero sair de você, meu lindo. Mas continuo sem resposta.
- Sim. E você quer saber se entre nós isso está bem definido, certo?
71
Gael seguiu-o de carro até sua casa e aguardou-o por uns instantes do outro
lado da rua, para não levantar suspeitas. Como Nando demorava, Gael achou
que ele decidira tomar um banho e colocar roupa civil. Mas Nando aparece
fardado, com uma sacola e entra no carro de Gael.
- Perdão, amor. Demorei porque disse para minha mãe que passaria a
noite com meu amor.
- E ela não quis saber nada a mais? Quem é esse “novo amor”?
72
- Ela me viu feliz; transbordando, como ela mesma falou. Ela quer me
ver feliz. Vamos ao meu novo lar?
- Espero que você se sinta mesmo em seu novo lar. Eu farei o possível
para que você se sinta acolhido. Você está com fome?
Gael tinha meia garrafa de vinho branco na geladeira. O vinho seria para o
brinde. Assim que Nando chegasse do banho, ele cuidaria dos croutons,
enquanto Gael tomaria seu banho restaurador e celebraria o início de uma
nova vida.
Os dois não estavam com fome; os pães de queijo e a fatia de bolo tinham sido
suficientes, mas uma sopa cremosa e delicada certamente far-lhes-ia bem. A
noite estava fresquinha para sopa.
Fernando chamou Gael para namorarem no sofá da sala e Gael pôde sentir
como seu namorado era beijoqueiro. Logo, viram-se incomodados pelo
excesso de roupas e os dois ficarem em êxtase ao contemplarem o corpo nu
do seu parceiro.
Um estava absurdamente faminto pelo outro, mas cada um era uma iguaria
refinada para seu parceiro que deveria ser saboreada lenta e gradativamente
para sentir cada aroma, cada crocância, os contrastes, os sucos e seivas, e
deixar-se inebriar pelo elixir de vida e amor.
O receio de decepcionar cedera lugar à entrega total; Gael, no seu melhor, era
para seu melhor, seu Fernando. E quando não conseguiram mais segurar-se,
explodiram em êxtase e exaustão. De onde retirariam energia física para
enfrentar as tantas tarefas de logo mais?
Gael foi o primeiro a acordar com o som suave do ronco do seu amado. Ali,
bem juntinho, estava Fernando, seu Nando, para quem Gael não encontrava
mais palavras: restava-lhe contemplá-lo em silêncio e ver como todos os seus
medos, inseguranças, dúvidas, como tudo se desfazia.
Mas naqueles dois momentos, tudo era desejo, lascívia; era furor que beirava o
desespero. Depois, nas conversas, no tom de voz, nos olhares, o desejo
recebeu a companhia de um sentimento de paz, de bem-estar, de serenidade.
O amor havia chegado e batido à sua porta.
- Bom dia, meu suave Nando. Você dormiu bem nessa cama nova para
você?
- Oh, meu poeta! Aqui em casa você produziu um buquê. Como eu amei
ser cuidado por você, Nando!
- Como eu amei sentir que você me amava como nunca fui amado
antes. E era isso mesmo que eu queria e quero: cuidar de você. Cuidar
do amor da minha vida.
Gael tinha um iogurte na geladeira que separou para Nando. E um papaia que
seria dividido. Gael cuidaria de Nando que cuidaria de Gael. E não é que
Nando cantarolava no chuveiro?
- O jantar foi pensado para mim que ficarei em casa, mas não para você
que irá trabalhar, sem falar do gasto de energia do turno da noite.
76
- Posso até esconder-me; fugir, jamais! Amo você, Nando. Muito mesmo!
Antes de sair do apartamento para levar Nando à corporação, Gael pôs roupas
na máquina de lavar e pegou sua lista de compras de supermercado.
Precisaria passar no chaveiro e na papelaria que ficava praticamente ao lado.
E comprar chocolates.
O freezer de Gael estava bem abastecido, então hoje não cozinharia para
congelar. Guardou todas as compras, estendeu as roupas nos varais da área
de serviço, arrumou o simpático envelope que comprara e dois cartõezinhos.
Gael estava sem fome. Para o café da manhã servira cinco ovos com bacon,
três para Nando e dois ele consumiu. Antes de sair para o consultório, comeu
uma pera portuguesa e isso era mais que suficiente.
Hoje, Lavínia viria só na parte da tarde. Quando o dr. Gael chegou, ela havia
ido ao banco o que era providencial. A surpresa já estava lá, sobre sua mesa.
Essas duas senhoras, Olímpia e Lavínia valiam ouro.
- Lavínia, por tudo o que vocês fizeram, minhas palavras só podem ser
de agradecimentos. E as do Nando, também!
- Dr. Gael, eu quero dar-lhe um abraço bem apertado. Você merece ser
feliz e o Tenente cuidará disso que eu sei. Em casa, Olímpia e eu
brindaremos a vocês dois.
77
Dr. Gael não esperava por tanto afeto, do mesmo modo como não esperava
que as duas estivessem mancomunadas com o Tenente para que os dois
iniciassem um namoro. Gael estava feliz por saber que suas duas assistentes
se empenhavam por sua felicidade.
Ele estava à mesa e havia posto o pequeno envelope que comprara de manhã
do lado em que Fernando se sentaria. No envelope lia-se “lar do Nando”.
Começou a olhar suas mensagens e viu Nando pelo vidro que lhe acenou que
chegaria logo. De certo, foi falar com Lavínia.
Fernando abiu o envelope com zelo e retirou um lindo chaveiro com as chaves
do apartamento de Gael, uma tag para a portaria de pedestres e um controle
para o estacionamento. Era tudo do que precisava para Fernando acessar seu
lar. O coração do proprietário já lhe pertencia.
- Você, amor, tem alguma dúvida de que nós vamos nos casar?
- Não tenho, Nando. Por mim, seria agora. Você falou com Lavínia?
- Sim. Fui agradecer todo o empenho secreto das duas. Ela mostrou-me
seu cartão e os chocolates. Tão sensível da sua parte, Gaelzinho.
78
- E com sua mãe fica tudo bem? Se você quiser ficar lá, eu não me
importo. Eu penso que você é a pessoa mais indicada para saber onde
ficar.
Gael pôs-se no caixa quando sentiu um beijo nos seus cabelos da nuca. Muitos
viram, mas fingiram nada ter visto. Fernando sorriu para uma das atendentes
que viu tudo e sorriu de volta. Gael sentiu o beijo e riu gostosamente.
7
Paulo, técnico-mecânico aposentado, e Orlando, professor de matemática aposentado, são os
protagonistas do conto O acompanhante.
79
Orlando recordava-se disso tudo, pois o início for marcado pela primeira
consulta com o dr. Gael, por indicação do professor Renato, colega de Orlando.
Dr. Gael era como um filho dileto para Orlando e Paulo, não só pela idade, mas
pelo zelo e apreço com a língua portuguesa.
Faz pouco tempo que muitas transformações ocorreram na vida dos dois e
Orlando sente-se mais e mais tomado de emoção. Foi pela coragem obstinada
de Paulo que Orlando foi enfrentando sentimentos arraigados de medo e
rejeição. Agora, escorria-lhe uma lágrima, mas de felicidade.
Paulo tornara-se “varão” para Orlando que se tornara ”amor” para Paulo, e Lua
acompanhava-os em tudo como fiel escudeira. Tinham um casal de amigos,
desses de frequentar a casa para um café ou mesmo um almoço.
- Amor, hoje eu acordei mais feliz por saber que tenho você.
- Varão, você é meu poeta para o corpo e para a mente. Vamos deixar
Lua solta no jardim de trás enquanto vamos visitar nosso filho do
coração.
...
- Bom dia, dr. Gael! Estávamos com saudade de você.
80
- Bom dia, Orlando e bom dia, Paulo! De qual água vocês andam
bebendo, meus queridos? Vocês estão rejuvenescendo.
- Gael, você é o filho que eu não tive e seu olhar mostra que você está
radiante, não é Paulo?
- Falei que eram dois bons amigos, talvez mais próximos do que poderia
parecer.
Vejam, aqui estão os valores para você, Paulo, e para você, Orlando. Se
pagarem tudo junto, eu consigo parcelar em até seis vezes.
- Paulo, onde vimos dois homens tão bonitos assim, pela última vez?
- Para nós, Fernando, ela é tão importante que fez com que
passássemos a morar juntos, a adotarmos uma cachorrinha e o
principal, que nos casássemos.
- Agora, nós iremos para o nosso lar. Lua quer jantar. Fiquem bem e
cuidem bem um do outro.
...
- Esses dois são incríveis, Gaelzinho.
- Eu quero visitar seu corpo e entrar até o seu coração, Zinho meu.
Já fazia algumas semanas em que Fernando alternava suas noites entre a sua
casa e o seu lar. Gael entendia que Fernando também precisava do contato
com seus pais. Algumas vezes, Fernando jantava com seus pais e ia dormir em
seu lar.
Hoje era quarta-feira, dia em que Cecília, a mãe do dr. Gael, tinha aulas na
universidade da 3ª. Idade.
- Boa tarde!
- Então, até a próxima semana. Uh, casa cheia! Fernando, mamãe! Que
alegria encontrar os dois! Lavínia, será que tenho tempo para um café
com esses dois?
- Sim, filho. Lavínia contou-me o básico e já que estou aqui, que tal eu
saber do essencial?
- Perdão, mamãe, eu devia ter falado antes, mas faltou o tempo certo.
Fernando é o homem da minha vida.
- Janice, obrigado pelos cafés. Você não ouviu uma palavra, certo?
- Nadinha, dr. Gael. Mas todos já sabem e torcem por vocês. Não está
mais aqui quem falou...
- Mamãe, você foi a primeira que notou que eu estava enamorado. Você
já sabia de tudo e hoje veio conhecer o culpado.
- Que a sua irmã não me ouça, filho, mas Fernando será o genro mais
lindo.
- Oi, filho. Sim. Seu pai vai se atrasar um pouco. Você vai jantar aqui?
- Mamãe, como está seu coração para conhecer o amor da minha vida?
- Meu coração está sereno. Eu sinto que desta vez é sério, como nunca
foi antes.
- Dr. Gael! Um nome lindo para um homem lindo! Obrigada por ser o
responsável pelo sorriso de felicidade do meu Nando, como eu nunca
tinha visto antes.
- Você já é meu genro. Venha, que quero abraçá-lo para você sentir a
minha gratidão.
...
88
- Agora eu fico mais tranquila porque sei com quem você pernoita, filho.
Você pretende morar de vez com o dr. Gael?
- Eu acho que sua mãe tem razão. Assim você fica mais prevenido.
- Impossível não aceitar nem amar esse lindo desse dr. Gael.
Impossível! Doutor, cuide bem do nosso Nando.
Amanhã faz uma semana que as mães do Dr. Gael e do 2° Tenente Abatte
foram informadas dos amores dos seus filhos. Parece que as duas fizeram
suas lições de casa e os maridos, os pais, não precisaram de socorro médico.
Hoje seria um dia típico de rotina tanto para o 2° Tenente, como para o dr.
Gael. As turbulências haviam passado. Os ares eram de calmaria.
89
- Wanda... É aquela senhora que olhou para trás e fez sinal com a mão.
O senhor pode acompanhá-la.
...
- Bom dia, dona Wanda. Eu sou o Fernando.
- Que bom, senhor Fernando, que o senhor veio depressa. Vamos até a
minha sala.
- Sim, nós saímos algumas vezes, por pouco tempo. Ocorreu algo com
ela, dona Wanda?
- Nas duas primeiras vezes, sim. Depois não mais. Acho que foram mais
duas ou três.
- Senhor Fernando, é uma linda menina, de dois dias. Chegou hoje cedo
e não dá trabalho. O senhor não gostaria de conhecê-la?
- Claro. Pegue sua filha e sinta todo o amor de pai invadir o seu coração.
- Veja, ela acordou e deu um sorriso para o papai. Difícil saber quem é
mais bonito, não Wanda?
- Então, de Wanda para Fernando, ela é sua filha e você sentiu isso.
Leve-a, antes que seja adotada.
- Eu saio daqui às 18h. Se até lá não houver uma decisão sua, ela vai
hoje para o abrigo e algum plantonista pode convocar o primeiro da lista
para buscá-la amanhã logo cedo.
- Vou agilizar aqui. Ainda temos tempo até o seguinte chegar. Vamos ver
o que ele me traz.
...
- Olá, Fernando. Nós estamos aflitos. Será que eu cancelo a próxima
consulta?
- Agende seu retorno com a Olímpia, por favor. Tchau. Entre, Fernando.
Estou angustiado.
- Nando, eu estou aqui com você. Olhe para mim. Agora, respire fundo e
conte-me tudo. Dê-me sua mão gelada para eu aquecê-la.
Eu a peguei no colo e meu coração falou que ela é minha filha. Eu saí
algumas vezes com a mãe e, pelas contas que fiz, ela deve mesmo ser
minha filha.
- Já cancelei tudo em boa hora. Eu vou levar uma água com açúcar para
o Fernando.
...
- Gaelzinho, eu achei que você ia me largar. Eu fiquei apavorado com
essa possibilidade.
- Nossa filha? Pare o carro que eu vou dar-lhe um abraço e um beijo. Ela
é linda, sim.
- Que pais lindos que essa mocinha tem. Desculpem-me, mas é para
descontrair. Vão levá-la, não?
- Claro, Wanda. Vamos levá-la e cuidar dela. Como fica, se o DNA der
negativo?
- Gael, não vai dar. A mãe foi categórica e não tinha outro parceiro. Mas,
respondendo à sua pergunta, aí o caso volta para o juiz decidir.
95
- E quanto à mãe? Ela não pode alegar que foi decisão precipitada?
- Wanda, seu eu fosse juiz, nem pedia DNA. Ainda bem que puxou o pai,
viu?
A coleta para o exame de DNA da mocinha será feito junto com a sua
coleta. Eu entrarei em contato com você, Fernando, para agendar a
coleta dos dois. Vocês são casados ou têm união estável?
- Olá Gael! Claro. Olá, Tenente! Como vocês estão, depois daquele
pedido lindo de namoro, o primeiro que a Luma presenciou?
- Que maravilha! O Jô vai ficar feliz. Por que vocês não vem até aqui. É
pertinho.
- Gael, um amor como o seu não existe. Ela adormeceu aqui, nos meus
braços. É muita emoção, Gaelzinho.
- E esta lindeza aqui. Esperem, ela é muito parecida com você, tenente.
- Ela nos entregou a Luma e nos pediu para que cuidássemos muito
bem um do outro porque amor de pai é amor de pai e amor de marido é
amor de marido.
- Desde hoje, às 9h25, quando ela ligou para mim. Ela é minha filha e foi
deixada pela mãe para adoção e eu fui informado que tinha uma filha e
fui resgatá-la com esse amor imenso aqui que parece mais feliz que eu.
Eu já liguei para o Jô e disse que vocês três estavam a caminho. Ele não
acreditou; disse que viria pessoalmente para constatar.
- Sem dúvida. É o mais importante, Gael. Eu fiz uma lista de coisas que
vocês precisam comprar.
- Vejam como ela voltou a deitar-se junto com as duas. Ela pensa que é
mãe das duas.
99
- Amor, eu vou doar para eles tudo o que a Luma não usa mais e nós
precisamos ensiná-los a preparar a mamadeira e a trocar fraldas.
- Vejam, Fernando e Gael, Isso tudo vocês levarão: essa bolsa sacola, o
berço portátil, o bebê conforto e a banheira. O berço eu desmontei e
vocês só precisam montá-lo novamente.
Está tudo limpinho e pronto para ser usado: casaco de linha, body
manga curta e longa, culote, macacão, meias, fraldas de pano, gorro,
toalha, protetor para o colchão, lençóis e mantas. As roupinhas para ela
vestir servirão por pouco mais de um mês.
Ele me olhou nos olhos, disse-me que o nosso casamento era para valer
e me deu bronca porque estávamos perdendo tempo ao invés de irmos
ao fórum.
A boca pode repetir “eu amo você” mil vezes; um gesto como o do Gael
ou do Rico são infinitamente mais valiosos. Até eu estou ficando com...
Primeiro, uma mesa para não prejudicar a coluna. Forrar com algo macio
e, por cima, um plástico. Ter tudo à mão e verificar se há correnteza de
ar.
Cada um dos pais vai fazer uma troca completa, com limpeza do
bumbum. E, como bônus, trocarão Luma também. É um modelo um
pouco maior, mas o processo é o mesmo. Então, mãos à obra!
...
- Agora, estagiários, aula de culinária. O prato da tarde será mamadeira
gourmet. Higienização é fundamental, assim como a temperatura correta
da água.
- Nossa filhinha um dia vai saber que os tios Rico e Jô socorreram seus
papais em um momento emocionalmente muito delicado, não é
Gaelzinho?
- Rico, Jô, vocês são dois homens com H maiúsculo. Tenho muito
orgulho por tê-los como amigos queridos.
- Nós vamos com vocês até o carro para ajudá-los a levar tudo. E a
mocinha já irá no bebê conforto, certo papais?
- Certíssimo!
- Nós compramos muita coisa na loja que fica na segunda rua, à direita.
Fraldas e leite vocês certamente encontram lá.
8
Tradução livre: um amigo na necessidade, é um amigo de verdade.
102
- Pois eu amo ser cuidado pelo homem da minha vida que, não por
acaso, é você, tenente!
- Você acha que todos são bons porque você é de uma bondade sem
paralelo. E de uma lindeza sem paralelo também.
Amanhã vou falar com a dra. Regina Viviane. Ela é minha paciente e é
pediatra bem experiente. Seria bom ela examinar a Alice, não?
- Hoje cedo, quando eu peguei a Alice no colo pela primeira vez, eu tive
a mesma certeza que tenho quando você está em meus braços,
Gaelzinho.
Assim como você é o amor da minha vida, ela é a minha filha biológica.
Gael notou que Alice acordava bem-humorada, assim como o pai que saia
lindo do banho. Em outros braços, Alice mostrava que estava faminta e queria
sua mamadeira enquanto o outro pai ia ao banho. Rico garantira-lhes que em
poucos dias tudo virava rotina.
Foram no carro do Gael e direto para seu consultório. Quem os viu chegando,
estranhou o bebê conforto, mas não houve perguntas. Olímpia estava para
chegar e Alice dormia como um anjinho. Olímpia certamente teria boas
sugestões sobre onde deixar a pequena Alice.
Qual seria a reação das avós? Ficariam histéricas pela neta, sem dúvida. Seria
a primeira neta para as duas. Talvez os pais nem conseguissem mais cuidar da
própria filha. A vida era mesmo uma grande escola. Olímpia chegou e
encontrou os dois um tanto agitados.
- Olímpia, nós queremos que você conheça nossa filha e sua sobrinha:
Alice!
- Como é? Mas quem é esse anjinho mais doce? Gente, é parecida com
o Fernando, não é?
- Mas é claro. Eu já vou ligar para a Lavínia. Nós iremos àquele da Rua
Pará, não?
A manhã passou voando e Gael, num dos intervalos deu de mamar para Alice
e esperou uns minutinhos para trocar o pacote cheinho. Alice funcionava como
um relógio. Lavínia estava avisada e a dra. Regina Viviane, confirmara a
consulta para as 18h30.
- Sr. Fernando e sr. Gael, está tudo em ordem. Em cinco dias podem vir
e retirar a habilitação.
- Eu pensei que levaria pelo menos 30 dias, por causa dos proclamas.
Cinco dias é perfeito.
- Pelo contrário. Fiquei é feliz por vocês. Mas eu sempre tive para mim
que vocês eram irmãs, até porque o sobrenome é o mesmo.
106
- Isso tudo vai ser comemorado quando essa correria estiver amenizada.
Fernando não chegou a conversar sobre detalhes com seu superior imediato,
mas tinha crédito de horas e gozava de grande estima e consideração na
corporação.
Dr. Gael preparava-se para iniciar seu atendimento quando seu telefone toca e
ele percebe que aquele era o aparelho do Fernando. Ele resolve atender.
- Wanda, boa tarde! É o dr. Gael. Fernando deixou o telefone dele aqui
no meu consultório e deve ter levado o meu. Ainda estamos meio
atrapalhados com a chegada da Alice, sabe?
Se ele não puder vir, eu preciso ser informada com antecedência para
não termos problemas internos.
- Nada! Ariã é 100% garantido. Quem ele me trouxe é para a vida toda.
- Gael, que prazer rever você! Eu irei ao seu consultório no próximo mês.
Já está na agenda.
- Olá, dra. Regina. Que bom que você conseguiu nos ver.
- Dona Alice, vamos fazer um strip-tease para a tia poder examinar você
direitinho?
...
- Gael e Fernando, ela me parece bem saudável. Não encontrei indício
algum que requeira alguma intervenção.
O coto do cordão umbilical deve cair em dois ou três dias, as fezes que
estavam na fralda têm coloração e consistência esperadas. Vocês
podem empregar um pouco mais de óleo aqui, nas dobrinhas.
Ela deve tomar sua primeira vacina o quanto antes, contra hepatite B e
BCG. Aqui está a prescrição. Melhor levá-la ao posto de saúde mais
próximo do que ir a uma clínica particular, mesmo porque ela ainda
tomará muitas outras, logo, logo.
Minha pesagem aqui mostrou 3.480gr, ou seja, ganho de 10gr, mas não
confio muito no peso inicial. Daqui em diante, nós faremos o controle de
peso dela.
- Olhe, muito obrigado, dra. Regina. Para principiantes como nós, essas
informações são relevantes.
- Pelo que pude ver, vocês dois estão se saindo muito bem.
...
- Nando, mais uma que reconheceu sua paternidade.
- Amor, pare aqui! Aquele posto está aberto. Já que estamos aqui,
vamos tentar, não?
...
- Boa noite! Nós trouxemos nossa princesa, Alice, para a sua primeira
vacina.
- É só aguardar.
...
110
- Nando, Alice é sua filha biológica, então Abatte tem que ser seu
sobrenome.
- Gaelzinho, você é tão pai como eu. Capobianco tem que constar
também.
- Lindo e forte!
Segundo, para compartilhar uma cena que fez lágrimas virem a meus
olhos: Fernando, com Alice no colo, conversando com ela como se
conversa com gente grande.
- Sua sugestão é melhor porque vai ser do tipo visita de médico. Mas eu
estou pensando em uma outra possibilidade: chamamos as duas até o
consultório, elas se conhecem, conhecem a netinha e fazemos um
lanche lá mesmo. Que tal, Zinho?
- Mas?
Num determinado momento, eu fui até o quarto para rir porque ela não
só prestava atenção como parecia entender cada palavra. E Bela
também. Uma cena hilária e tocante.
Hoje, Gael teria de pôr roupas na máquina porque ontem, o papai Nando, ao
dar banho na Alice, resolveu que era hora de brincar na água. Resultado?
Todas as toalhas tiveram de ser substituídas. E a farra desses dois? Claro,
Gael acabou juntando-se à dupla.
Embora trocasse mensagens com sua mãe, fazia alguns dias que Fernando
não ia mais para sua casa paterna. Nem sabia se a mãe havia mencionado
Gael ao pai. Hoje a veria e saberia de tudo.
De qualquer modo, hoje Fernando tentaria conversar sobre tudo com seu
superior imediato.
Gael ligou para sua mãe e pediu-lhe que viesse ao consultório um pouco antes
do meio-dia. Conversariam e lanchariam lá mesmo. Cecília aceitou sem hesitar
e disse que levaria algo para o lanche.
Fernando também ligou para sua mãe e pediu-lhe que fosse à recepção da
corporação, um pouco antes do meio-dia. Explicou-lhe que iriam até o
consultório do Gael e lanchariam lá. Wilma mostrou-se feliz por conhecer o
consultório e prometeu que levaria algo para o lanche.
113
Fernando era unanimidade por seu porte masculino, sua voz grave, sua
capacidade de argumentar e negociar em situações tensas e de risco.
Fernando tinha um enorme potencial de dominação, de sedução, e era um líder
natural, informal, entre os membros da corporação.
Fernando estava na sua sala quando vê sua mãe sendo escoltada por uma
colega. O superior hierárquico passa pelas duas e fica sabendo que aquela
senhora é a mãe do 2° Tenente Abatte. Ele a cumprimenta e lhe dá os
parabéns, mas ela não imagina o porquê.
114
- Que bom, Wilma, nos conhecermos. Nós, mães, não podemos ficar de
fora.
- Wilma, eles já são lindos sérios, agora, com esse sorriso, ficam
impossíveis.
- O quê? Na semana que vem? Sem recepção, sem nada? Para que
essa pressa?
- Olímpia? É verdade?
- Bem, pelo que entendi, não haverá convidados para esse casamento.
115
- Acho que sim, Cecília. Vamos lá. Esses dois querem ficar órfãos das
mães...
As duas puderam ver Alice pela primeira vez e ficaram espantadas com sua
semelhança com Fernando. Até então, pensavam-na adotada. As avós
abraçaram seus filhos, seus genros, Olímpia e abraçaram-se longamente, aos
prantos de alegria. Alice dormia como um anjo.
Gael enfatizou que não contaram sobre Alice antes, pela mais absoluta falta de
tempo. As duas entenderam a razão do casamento às pressas, mas deixaram
claro que as coisas não ficariam assim. Em algum momento, uma recepção
modesta precisaria acontecer.
Fernando queria saber se havia novidades sobre as reações dos pais. Cecília
comentou que Otávio ficou feliz e desejoso de conhecer o genro Fernando.
Wilma contou que Benício reagiu tentando mostrar indiferença. Agora, com a
chegada de uma neta, tudo mudaria para melhor.
Como Gael e Fernando ainda estariam atarefados nos próximos dias, muito
atarefados, as mães foram incumbidas de contar tudo aos maridos e às filhas.
Antes de fechar a porta, Gael notou que as mães confabulavam com Olímpia e
a linguagem corporal indicava que tramavam algo em secreto. Unirem-se faria
bem a todos.
À noite, já no lar, Gael e Fernando comeram das sobras do que deveria ter sido
apenas um lanchinho e viram que só no café da manhã dariam conta de
liquidar com tudo. Até agora, Alice não apresentou sinal algum de reação à
vacina de ontem.
Os dois sentaram-se no sofá da sala e puseram Alice para dormir sobre suas
coxas, ora de um, ora de outro. Eles queriam sentir sua pulsação e queriam
que ela lhes sentisse a pulsação também. Nessa pulsação corria amor, e amor
dos bons.
- Nando, esses dias agitados trazem um quê de paz. Você não sente
isso também?
- Zinho, desde que ficamos próximos, essa paz tem tomado conta de
mim, mesmo com essas turbulências todas.
- Eu enviei uma foto sua, aquela que eu tirei, em que você está mais
lindo do que nunca, e uma foto da Alice; meus dois lindos. Mas não
forneci outras informações.
- Se fosse possível, seria ótimo para nós três. Nem que fosse por
apenas um ou dois dias. Por outro lado, minha mãe já entendeu que não
mais voltarei para sua casa, agora que sou pai da família mais linda.
- Para mim, Zinho, o importante nisso tudo é estar com você. Eu não
preciso de nomes, alianças, nem certidão de casamento. Mas sou
prático também e concordo com você. Vamos deixar como está, exceto
pelo casamento para registrarmos nossa filha.
- Eu estou com muito desejo por esse pai aqui do meu lado.
Os dois deitaram-se para dormir o sono dos justos, não sem antes amarem-se
intensamente como dois homens jovens, saudáveis e vigorosos fazem quando
estão apaixonados um pelo outro. Antes de serem pais, eram homens que se
amavam intensamente.
Parecia que hoje seria um dia normal dentro desse novo normal.
Os dois ficaram encantados com a simpatia do dr. Gael e logo perceberam que
ele não era um explorador como tantos profissionais em todos os setores.
9
Nuno, biólogo, e Ryan, químico, são os protagonistas do conto A vingança.
119
Depois de quase oito meses, a segunda visita estava agendada para sábado,
às 8h.
Nuno lembra-se de Ryan ter comentado que o dr. Gael certamente derreteria
muitos corações naquela cadeira odontológica. Além de ser um homem muito
atraente, era simpático e portava um sorriso natural.
Nuno tentava relembrar tudo o que ocorrera nesses meses, mas sua mente fê-
lo voltar um pouco mais no tempo, naquele tempo em que ele era
marcadamente hétero. Logo veio-lhe a primeira abordagem feita por Ryan e de
como foram tomar o primeiro espresso com palmiers.
Nuno viu-se sentado com Ryan no mesmo café, para um segundo espresso,
logo no dia seguinte, revelando a Ryan alguns pormenores do seu plano de
vingança justa e convidando-o para ser seu parceiro e cúmplice.
Nuno sente seu coração bater mais forte ao relembrar o primeiro jantar dos
dois justiceiros e de como aquela experiência mostrou-se um divisor de águas
na vida de Nuno.
Nuno lembra-se de como seu pai notou “coisas no ar” e de como foi visionário
ao afirmar que Nuno jamais fora tão amado por mulher alguma. Seu pai e
Ryan pareciam conspirar em secreto e Nuno lembra-se de como passou a
ruminar sobre seus sentimentos a respeito de Ryan.
E como uma lembrança meio que vai puxando outras, Nuno lembrou-se da
comemoração do seu aniversário e do de Ryan, dos pedidos de casamento, de
sua transformação de alguém que desdenhava da instituição casamento até
ver-se inebriado pela ideia de casar-se.
- Bom dia, dr. Gael! Que bom começarmos esse sábado já ensolarado
na sua presença.
- Bom dia, Nuno e Ryan. Uma alegria vê-los novamente. Vocês dois já
nasceram bonitos, mas esse amor que carregam torna-os iluminados,
sabem? Vocês não têm ideia do brilho no olhar de vocês dois.
- Dr. Gael, como não amar um marido lindo e poeta como este aqui?
Diga-me? Mas, você tem os olhos brilhantes também, dr. Gael. E um
sorriso de felicidade. Acho que temos novidades, não?
Vamos nos casar na próxima semana para que nossos nomes constem
do registro de nascimento dela.
- Nós dois usamos luvas também, mas não na mesma frequência que
você, dr. Gael. Às vezes, a luva fica presa e chega a rasgar, mas acho
que já nos acostumamos.
- Sim, Ryan. A higienização dos dois está muito boa e isso previne
muitos problemas.
- Por favor.
- E você guardou e hoje nos brinda com essa lembrança. Você não
existe, dr. Gael.
- Fernando, sinta-se à vontade. Eu acho que sei o que você quer dizer.
Hoje eu sei que todas as minhas relações com mulheres foram só orgia.
Com Ryan é orgia e amor que não cabe em descrições. No nosso
primeiro espresso com palmiers eu senti que ele me amava; da parte
dele foi amor à primeira vista.
- Nuno, você não imagina como lhe sou grato por esse depoimento. Eu
só tive relacionamentos com mulheres e foram vários. Muitos, mesmo.
Alice é fruto de um deles.
- Verdade, Ryan.
...
- Aspirante Dalmo, seu dente do siso inferior direito está bem inflamado.
Há presença de pus. Vou precisar extrai-lo, o que lhe dará alívio
imediato da dor. Posso prosseguir?
- Fernando, foi meu pai que me fez ver onde havia amor e como esse
amor era verdadeiro.
- Minha mãe também viu no meu olhar que eu amava como nunca havia
amado antes. Obrigado por essa manhã reveladora. De coração!
- Alice ainda dorme e o dr. Gael vai extrair um siso do Aspirante Dalmo.
A sorte é que os dois anteriores levaram pouco tempo e essa
emergência provavelmente não interferirá no próximo atendimento.
- Dr. Gael, a dor sumiu. Graças a Deus, a dor insuportável sumiu. Era
uma dor que invadia toda a minha cabeça.
Fernando subira com dois espressos, um para Lavínia e outro par seu Gael.
Mostrou Alice para o Aspirante Dalmo que ficou comovido.
- Dalmo, o que está acontecendo? O dr. Gael disse que era para você
comprar já e tomar já, por causa da infecção.
- Você não quer desabafar um pouco, Dalmo? Quem sabe, não alivia o
seu coração?
- Você está em um momento tão bom da sua vida que não merece se
envolver com os meus problemas.
- Abatte, minha mulher saiu de casa e levou minha filha junto. Disse que
ia para a casa da mãe, mas eu acho que ela tem alguém.
Tente conversar com ela com calma. Quem sabe ela entende a situação.
Ela pode até sair de casa, mas não pode levar um cartão que é seu.
- Ela não pode levar o seu cartão sem comunicá-lo. E você também
precisa dele. Além disso, você é o titular, não? Você tem chave PIX?
Lavínia já havia preparado tudo para o lanche dos dois. Aos sábados, as
sessões eram corridas e o horário do almoço, reduzido. Gael havia revisto sua
agenda e notou que Kevin e Allan viriam amanhã à tarde, no segundo e último
horário. Um domingo e tanto!
- Sem dúvida. Dor é horrível, ainda mais dor de dente. E você conseguiu
conversar com sua esposa, Dalmo?
- É, acho que já sei como é brincar com a filha. E sobre o cartão, Dalmo?
- Ela não usou o cartão e vai devolvê-lo hoje à noite. Disse-me que não
aguenta mais ficar na casa da mãe e ouvir a filha reclamando a ausência
do pai.
Também viu que havia mensagem em seu celular da portaria remota avisando-
o de que havia encomenda a ser retirada. Provavelmente era erro, pois Gael
não esperava encomenda alguma.
- Zinho, obrigado por ter socorrido o Dalmo. Depois eu acerto com você.
- Ele é um bom sujeito, sabe Zinho. Ele chorou quando viu a Alice
porque estava com saudades da filha.
- Não, pelo tamanho. Não parece que foi entregue por alguma
transportadora.
...
- Nando, veja isso! E vem na hora certa, viu!
...
Mães e sogras, obrigados pela caixa com produtos de primeira
necessidade. A sua neta é grande consumidora de fraldas e de leite.
Mais lindo ainda é vê-las lutando conosco e por nós. Amamos vocês
duas!
...
Queridos Nuno e Ryan, perdão por não ter ficado com vocês para o
espresso com palmiers. Vocês conhecem o ditado “o dever, antes do
prazer”. Era um caso urgente, mas quinze minutos a mais não fariam
diferença. O problema é que eu não consigo. Perdoem-me. Vocês dois
moram no meu coração. No nosso coração, corrigindo.
...
Gael, é exatamente por você ser como é que admiramos e amamos
você. Nossa conversa com o lindo Fernando foi maravilhosa. Ele é um
homem encantador, como você. Beijos saudosos nossos.
...
- Gaelzinho, sabe que as refeições que temos levado me têm feito muito
bem? Eu sei que mais um peso para você, mas vamos ter de procurar
uma maneira de não sobrecarregar você.
- Olhe e veja como seu Nando está pronto para seu exame, amor!
Kevin está preparando o café da manhã para os dois, enquanto Allan foi à
padaria para uns pães franceses quentinhos; a padaria fica a uma quadra e o
cheirinho dos pães de manhã é tentador. Kevin e Allan retornarão ao dr. Gael
hoje à tarde só que em uma situação diferente da anterior.
Kevin ri enquanto cantarola porque a vida lhe parece muito engraçada. Mas o
amor é bizarro, Kevin reconhece. E fulminante. Sim fulminante! Foi um certo
choque saber da existência de um meio-irmão, sobretudo pelas possíveis
reações de sua mãe.
Kevin coloca o leite para aquecer e lembra-se bem do dia em que conheceu
seu meio-irmão; no contato dos olhares, fagulhas incendiárias manifestaram-
se. A reciprocidade era forte.
10
Kevin, administrador, e Allan, engenheiro, são os coprotagonistas do conto A vingança.
132
O pouco que sentia pela namorada evaporou-se e Kevin viu-se atônito, embora
sem perder a espirituosidade nem o bom-humor. E recorreu ao apoio do seu
amado irmão Ryan e ao do seu amado pai. Kevin estava enamorado de um
homem e esse homem era seu meio-irmão.
E Kevin, que jamais duvidou da força do amor, nem mais queria saber de tentar
entender como ele, um homem hétero, que exclusivamente se relacionou com
mulheres, encontrou em um igual o prazer e a satisfação que mulher alguma
lhe proporcionara.
Allan também vê a fisionomia da sua mãe, até então de tez endurecida pela
vida, e como Kevin a arrebatou com sua espontaneidade, sua beleza, sua
masculinidade e seu amor. Allan amava cada centímetro quadrado da
espontaneidade, da verdade que brotava do seu marido lindo.
Hoje almoçariam na casa dos pais e poderiam brincar com o mais novo
sobrinho, o Dudu. Allan já preparava seu coração, pois Kevin, em algum
momento, iria querer ter um bebê em casa. E Allan jamais lhe negaria esse
pedido.
- E vamos almoçar em casa e alguém vai querer rolar com o Dudu pelo
chão.
- Você quer levar uma muda de roupas para não chegar muito estragado
no dr. Gael?
133
- Não precisa, lindão. Ele vai entender se eu explicar que fiquei rolando
com meu sobrinho.
- Bom dia, Dalmo. Como você está? Pelo menos, o inchaço sumiu.
- Bom dia, Abatte. Estou ótimo, sabe. Muito obrigado por tudo. Você me
ajudou muito, ontem.
- O reencontro com minha filha foi o melhor de tudo. Minha esposa está
muito envergonhada do que fez. Deve ter tomado umas boas broncas da
mãe, sabe?
- Às vezes fazemos coisas impensadas. Que bom que uma certa paz
voltou ao lar.
- Eu só vim para acertar as contas com o dr. Gael. E com você também.
Estou firme no antibiótico. Você vai comigo até ele?
- Vou, sim. Só quero ver se há algo por aqui que precise da minha
intervenção.
...
- Bom dia, dr. Gael. O senhor tem um minutinho para acertarmos nossas
contas?
- Bom dia, Aspirante Dalmo. Tenho sim, mas primeiro eu quero saber
como você passou a noite. Conseguiu dormir bem? Sentiu alguma dor?
134
- Estou ótimo, dr. Gael. Dormi bem, sem dor e sem Paracetamol. Vou
continuar com o antibiótico pelos setes dias. O Abatte comprou o
antibiótico para mim, ontem. Se o senhor puder acrescentar na minha
cobrança, já que vocês são uma família...
- Por favor, então. E eu posso olhar a Alice mais uma vez? Hoje, sem
chorar?
- Eu vou com Alice para casa para adiantar algumas coisas. À tarde, nós
viremos para buscar você, porque as dívidas precisam ser saldadas no
mesmo dia.
...
- Dr. Gael, nosso lindão, boa tarde!
- Gael, você já deve saber pelo Nuno e pelo Ryan que nós nos casamos.
Aliás, o Ryan nos disse ontem que você também tinha novidades, mas
não quis revelar qual era.
- Amorzão, que lindo isso. É mesmo. Gael está feliz. Sai dos poros dele.
- Vamos ver como anda nossa saúde bucal? Quem será o privilegiado a
tomar assento nesta confortável poltrona odontológica?
Allan, temos duas cáries claras para restaurar, temos tártaro para
eliminar, mas vamos começar com a profilaxia.
- Este é o total para o Allan e este, para você, Kevin. Se pagarem tudo
junto, posso parcelar em quatro vezes.
- Eu pago tudo, Gael. Estou ansioso para saber das surpresas. Deve ser
algo especial, senão meu lindão Ryan teria dito.
- Olá, Fernando! Lindão, olhe para essa joia! Olhe! Não é a coisinha
mais linda? E é a cara do Fernando.
- Amorzão, eles são uma linda família feliz. Pense no que lhe disse hoje
de manhã.
- Eu e o Ryan somos irmãos. O Allan, este gatão aqui, é nosso irmão por
parte de pai. E é o meu marido mais lindo do mundo.
- Eu fui registrado pelo meu pai adotivo, então não apareço como irmão
do Kevin nos documentos. E nós nos conhecemos, sem termos tido
convivência de irmãos.
- A Alice faz uma semana hoje. Ela é minha filha biológica e a mãe a
entregou na vara da infância e a juventude na terça-feira. Se eu não a
levasse, ela seria entregue para adoção. E Gaelzinho, o amor da minha
vida, foi o primeiro a insistir para que o desejo do meu coração
prevalecesse.
Fomos buscá-la juntos e vamos nos casar na semana que vem para que
os nossos nomes constem na certidão de nascimento da Alice. Amanhã,
haverá coleta para o nosso exame de DNA.
- Que história mais, linda, Fernando e dr. Gael. Mas, DNA para quê? Ela
é a cara do pai assim como eu sou a cara do meu. A mãe do Kevin
quando me viu teve certeza de que eu era filho do seu marido.
- Kevin e Allan, por que vocês não nos acompanham amanhã à vara da
infância e da juventude, no fórum do Ipiranga? Nós apresentamos vocês
para a Wanda, a assistente social que dá início ao processo de adoção.
- Por que não a conhecer, conversar com ela, informar-se, tirar dúvidas?
Não custa nada, exceto pelas horas de ausência do trabalho. Nós
poderíamos nos encontrar na recepção às 9h, que tal?
- Claro, Fernando. Nada me assusta, depois que meu lindão deu luz
verde...
A Wanda, assistente social, nos ensinou que amor de pai é amor de pai
e amor de marido é amor de marido. Estamos seguindo à risca esse
ensinamento.
O amor transforma; o amor cura. Alice veio para nós na terça-feira, mas
é como se ela sempre tivesse feito parte de nós. Allan, eu acho que você
se sentiria como eu.
- Lindão, vamos para casa para ruminar sobre isso. Que tal?
- Vamos, amorzão. Além disso, o dr. Gael deve estar exausto e precisa
descansar.
Ela não participara da farra paterna e estava, obviamente, faminta. Gael foi
para a cozinha preparar a mamadeira e o café da manhã. Fernando daria de
139
mamar e Alice tomaria seu banho depois do cocô matinal e antes de receber a
fralda limpinha.
Fernando começou a dar a mamadeira para Alice e viu uma tira de papel sob
seu prato. Puxou-a e leu “você é o melhor marido do mundo”. Seus olhos
ficaram marejados e ele começa a contar para Alice sobre a tira, a frase e o
significado. Alice estava focada na mamadeira.
Assim que os dois terminaram o café da manhã, Alice já havia produzido seu
cocô matinal. Agora, podia tomar banho e receber fralda nova. Iria para a
coleta com um macacãozinho das vovós. Hoje, essa tarefa era do papai
Fernando.
- Óleo é bom; hidrata. Ela é muito saudável. Como é a cara do pai, deve
ter essa boa genética saudável também.
- Eu ligo para você vir retirar o despacho do juiz para o registro dela,
com os nomes dos dois.
- Obrigado mais uma vez. Vamos, sim, colocá-los em contato com Rico
e Jô.
...
- E então? A coleta já foi feita?
- Nós não tivemos esses três dias. Nós nos casamos em um domingo
com feriado prolongado, para facilitar a vinda dos parentes do Allan, lá
de Maria da Fé.
Kevin e Allan ainda conversaram mais um pouco com Wanda. Fernando e Gael
foram ao estacionamento. Gael deixaria Fernando na corporação. Essas horas
tinham dispensa judicial para Fernando.
Mal Gael sai do estacionamento e dirige por uma quadra e meia, seu celular
toca. É Lavínia. Fernando atende e coloca no viva-voz.
- Pode sim, Lavínia. Obrigado. Veja, por favor, para que nossos nomes
permaneçam como estão.
- Viu, Alice? Os papais vão se casar e você não será mais filha de pais
solteiros. E você irá junto ao cartório para ver tudo.
...
- Nandinho, você está entregue. Tenha um ótimo dia. Amamos você,
viu?
Gael aproveitaria esta sua segunda-feira de folga para adiantar várias tarefas
no apartamento. A primeira, seria aproveitar que Alice estava acordada para
143
caminhar com ela no colo e conversar muito sobre a vida. Ela ouvia seu pai
falando sobre a beleza do amor; ouvia-o e sentia-o.
Gael tinha poucas panelas, mas as que tinha eram caldeirões e uma panela de
pressão grande. Sua rotina de cozinha era preparar grandes quantidades,
porcioná-las e congelá-las. Hoje, prepararia um quilo de arroz e pouco mais de
dois quilos de coxão duro em cubinhos.
Seus temperos tradicionais eram alho, cebola, sal, louro, pimenta malagueta da
horta e alecrim da sua horta também. Assim, Gael produzia pratos simples,
próprios para o dia a dia, que eram leves e nutritivos e que Nando amava
também.
Sentiu um alívio ao ver um vídeo que Gael lhe enviara: uma selfie de Gael
caminhando com Alice pelo apartamento e falando do amor que tinham pelo
papai Nando. Ele ficou tão feliz que tinha vontade de percorrer todas as salas
para mostrar seus tesouros.
Alice mamou e teve a fralda trocada. Caminhou no colo do pai Nando pelo
apartamento, olhou as luzes dos prédios pela janela e tombou no soninho
gostoso. Gael e Nando namoraram um pouco no sofá e deitaram-se para
dormir o sono dos bons e dos justos.
22. Casamentos
A terça-feira foi especialmente intensa para Fernando que não queria deixar
pendências para alguém resolver enquanto estivesse em licença gala.
Oficialmente, só o seu superior hierárquico sabia do casamento amanhã, mas
as notícias correm depressa.
Fernando e Gael ainda não tinham estado com seus pais e estranhavam o fato
de nenhum deles ter-se manifestado. Depois do casamento certamente
levariam Alice aos avós paternos. O fato de Gael trabalhar muito aos sábados
e domingos desencorajava qualquer tipo de convite social.
ele esperava que fosse acontecer. Embora fossem situações distintas, é difícil
separar uma coisa da outra. Fernando ficou feliz.
Olímpia deixara tudo preparado para que os três dias em que dr. Gael ficasse
sem as assistentes fluísse com o mínimo de contratempos. Nos dias mais
pesados, sábado e domingo, elas reassumiriam o posto.
Gael já havia informado Kevin e Allan dos contatos de Rico e Jô. Aos poucos,
Gael sentia que haveria uma aproximação maior com alguns de seus pacientes
e isso era bom, até porque eram casais em que havia amor entre iguais e a
presença de um bebê. As semelhanças importavam.
Gael sentiu-se um pouco arrependido por ter escolhido não usar aliança.
Lembrava-se das alianças fortes nas mãos de Rafael e Henrique, de P e J, de
Rico e Jô, de Nuno e Ryan, de Kevin e Allan. Se essa vontade persistisse,
conversaria com Nando. Sempre haveria tempo.
Gael entrou, sentou-se e ganhou um longo beijo de Fernando que foi visto por
alguns clientes e funcionários da padaria. Dois homens arrebatadoramente
belos e apaixonados um pelo outro. Fernando dirigiu até o estacionamento
mais próximo do cartório, mas estava lotado.
Olímpia e Lavínia tomaram Alice para que os noivos pudessem abraçar e beijar
seus familiares. O comandante, impecavelmente fardado, abraçou
afetuosamente os noivos e cumprimentou todos os familiares. Olímpia, Lavínia
e duas amigas também foram abraçadas com muito carinho.
Como não havia troca de alianças nem votos pessoais, o casamento civil foi
simultâneo, meramente protocolar, mas teve um ar de leveza e descontração.
Quando os dois casais foram declarados casados, Olímpia e Lavínia
abraçaram-se e choraram muito, uma no ombro da outra.
Com Gael e Fernando, até por serem de uma geração bem mais jovem, a
reação foi de abraçarem-se e de beijarem-se escandalosamente como se
estivessem sozinhos no recinto. E foi, talvez, o beijo mais sincero que os
familiares acompanharam. Irromperam em aplausos.
Nos bastidores do cartório o comentário era sobre o que emanava das noivas e
dos noivos. Quando dois homens ou duas mulheres decidiam casar-se é
porque havia algo intenso que os unia, fortalecia e enchia de coragem para
enfrentarem-se e enfrentar a sociedade vitoriosamente.
Gael, no consultório, sentia falta da sua Alice. E das assistentes. Ele estava só
no conjunto, no dia do casamento. Já havia almoçado e seu paciente chegaria
a qualquer momento. Seria arriscado descer para saborear um espresso. Alice,
um dia, saberia dessa história.
dois lances e viu, com alegria, seu marido e sua filha aguardando-o no carro.
Ele estava comovido: estava casado com o homem da sua vida.
Fernando produziu uma estrutura de modo que o bebê conforto pudesse ser
afixado à cadeira com uma inclinação que possibilitaria Alice participar das
refeições com seus pais, ao mesmo tempo em que estava confortável e
seguramente instalada. Fernando tinha dotes de artesão.
Mas Nando não deixou que Zinho xeretasse nas panelas; era surpresa e a
ordem era para ele ir tomar seu banho e voltar lindo e cheiroso para seu marido
e filha. A cadeira da sala estava na cozinha e Alice ouvia as explicações do seu
pai atentamente.
Nando pensou que ela dormia tanto por falta de estimulação: ela agora
passaria a ser mais envolvida na rotina da vida dos dois. Nando pôs o óleo
para aquecer; todo o restante estava pronto para o jantar. Esqueceu-se da
vela, mas Alice à mesa seria a novidade.
Gael chegou e recebeu seu copinho de vodca para o brinde; estava quase
cremosa, na temperatura ideal. Alice ouviu o barulho da fritura; eram batatas
frescas que seriam servidas. A salada era de folhas com uma emulsificação de
aceto, azeite e mostarda Dijon.
- Se eu lhe pedir para você não se conter mais, você me atende? Você é
o meu homem, o meu marido, o meu amado e eu adoraria ser acordado
sentindo você tomar conta dos meus espaços.
- Quando olho para os seus braços fortes e peludos, para o seu peito
largo e peludo, para os seus braços, o seu pescoço, eu sinto um desejo
intenso de ser dominado por você. Como agora, por exemplo...
Tanto Fernando como Gael tinham uma característica própria; eram autênticos
e verdadeiros. Não vestiam máscaras quando estavam a sós porque não
competiam nem jogavam. Abrir o coração ao marido era a melhor forma de
manter um relacionamento verdadeiro.
Fernando fez uma edição interessante dos dois vídeos que ele e Gael
gravaram durante o jantar surpresa do casamento. Alice estava em primeiro
plano. Ficou divertido e tocante, com a narração dos dois atores globais,
Fernando e Gael.
Fernando enviou o vídeo aos seus familiares, ao comandante e a dois dos seus
mais próximos na corporação.
Gael também enviou o vídeo para Wanda, a assistente social, e para as suas
duas assistentes, Lavínia e Olímpia.
151
Fernando revelou-se ser um perfeito marido de aluguel, tão perfeito como era
homem e marido. E a banheira, no novo suporte, era ideal para ele e Alice
brincarem na água, como gostam de fazer durante os banhos.
O banho dado por Gael não levava mais de dez minutos; o de Fernando, no
mínimo, meia hora. Fernando instalou um gancho quase no teto do banheiro
para que a banheira pudesse ser pendurada sem ocupar espaço. A plataforma
era basculante: após o uso, o tampo era rebaixado.
Não muito longe dali, Rico aguardava a vinda de Jô do escritório e a visita dos
convidados, Kevin e Allan que se ofereceram para levar uns salgados para
comerem enquanto fossem conversando. Allan achava particularmente
interessante conversar com quem passou pela situação.
- Boa noite, Rico. Eu sou o Kevin e este lindão é o meu Allan. Aqui estão
os salgadinhos.
- Eu estou cada dia mais motivado com a ideia de ter um bebê, sabe
Rico?
152
Eu disse ao Gael para colocar a Alice junto com a Luma e a Bela logo
entendeu que tinha mais uma filha. Ah, o Jô chegou.
- Rico, você sentiram alguém torcendo o nariz pelo fato de vocês serem
dois homens?
Fomos ter com a Wanda que nos levou à sala de enfermagem, onde
recebemos a Luma, com dias apenas. E indicações sobre qual leite dar
e como segurá-la.
Foi mais ou menos o que fizemos com o Gael e o Fernando: eles vieram
aqui com a Alice e nós doamos tudo o que podíamos. Ficaram faltando o
leite e as fraldas.
- Pelo que ouvimos lá, isso ocorre, sobretudo com as maiorzinhas. Ser
entregue para adoção é um trauma, não ser adotado, é outro e ser
devolvido, o pior de todos.
...
- Rico, Jô, muito obrigados, de coração, pelo tempo que despenderam
conosco. Amamos conhecer vocês e amamos vocês.
- Está bem, Zinho. Eu vou ficar esperando por você para terminarmos a
sobremesa.
...
- Nando, estas são a psicóloga Cátia e a assistente social Lucila. Vieram
para nos visitar.
- Ela já tomou seu banhinho, mamou bem, está com fralda limpinha e
acompanhando os papais no jantar, não é Alice?
- Fiquem à vontade.
...
- Durante o dia, com quem a Alice fica?
- Gael, como dentista, não tem licença gala. De quarta até hoje ela ficou
aqui em casa, comigo. Precisei sair uma vez para umas compras e levei-
a junto comigo.
- Sim, Cátia. Nós a levamos a uma paciente minha que é pediatra. E ela
já tomou a primeira vacina. Temos retorno agendado para daqui a três
semanas.
- Obrigados!
...
158
Bello saiu cedo para acompanhar uma diligência, mas retornaria antes do
meio-dia. À tarde, iriam a uma consulta com o dr. Gael. Da última consulta até
hoje, tanta coisa havia mudado na vida dos dois. A principal era que se haviam
casado e os dois transbordavam felicidade.
11
Bernardo, jornalista e repórter policial, e Bello, advogado e perito criminal, são os protagonistas do
conto A carvoaria.
159
Bernardo achava que o dr. Gael era o dentista perfeito para todos que haviam
enfrentado traumas em consultórios dentários: seu sorriso cativante, sua
segurança, sua doçura, sua autenticidade curariam traumas e restaurariam a
confiança quase que instantaneamente.
Bernardo concordava com Bello, de que dr. Gael era cortejado, mas achava
que o dr. Gael havia superado aquela fase da vida de se encantar facilmente.
Dr. Gael transmitia a convicção de que só ficaria com alguém que lhe
parecesse ser definitivo. De experiências, talvez estivesse farto.
E Bernardo se recorda de que era amor mesmo: Bello não fazia exigências,
não reclamava, não apresentava objeções. O que Bernardo oferecia a Bello
nos momentos íntimos parecia ser exatamente o que Bello procurava.
Bernardo suspeita que deve ter sido por esse tempo que o tal ponto de
mutação tenha ocorrido: Bernardo sentia afetos cada vez mais intensos por
Bello, para muito além do desejo insano. Tudo o que Bernardo não recebia no
seu casamento, Bello entregava-lhe feliz e sorridente.
Bernardo nunca antes sentira-se tão amado por mulher alguma, como se sentia
desejado e amado por Bello. Bernardo reconhecia que muitas vezes se sentiu
desejado por algumas mulheres, mas amado por poucas, e jamais amado na
intensidade como era amado por Bello.
160
Ele me acariciava com lascívia, com sensualidade, mas com devoção: eu era-lhe
importante!
Então, vi-me com um homem atraente, doce, puro e selvagem.
Vi-me com um homem que se derretia por mim.
Um toque de minha mão pelo seu corpo causava-lhe arrepios que me imploravam
para possuí-lo.
O que era ser amado por alguém: amor sem exigências, sem competições, sem
reclamações.
Foi com ele que eu senti como a força do amor renova e enche a vida de esperanças.
Então, dei-me conta de que eu era um homem casado.
Casado com uma mulher muito bonita, bem-sucedida e ótima companheira.
161
Ele seguia comigo nas selvagerias, não competia, não reclamava, não exigia.
O que eu lhe proporcionava era exatamente o que ele buscava.
Ele me tratava bem. Muito bem; com afeto, com carinho, com zelo.
Claro, ele me amava. Parece que desde o primeiro instante ele me amou.
- Boa tarde, Bernardo. Boa tarde, Bello! Estava relendo algo aqui.
Venham ver. Quero saber do último verso.
- Ele é o homem da minha vida e eu sei que sou o amor da vida dele. E
há outra novidade que deixarei para depois.
- Ainda não. A cada mês surge uma nova múmia e as pistas continuam
sendo zero. Bê parou com os informes para não termos problemas, já
que estamos casados.
...
- Da última vez, registrei nos prontuários que gostaria de fazer uma
verificação geral.
- A fonte de onde brotam esses homens tão lindos que vêm ao seu
consultório.
- Janice, obrigado. Esse lindão aqui é o Bello, meu marido. Ele é policial.
- Dr. Gael, conte-nos em qual fonte você encontrou esse tesouro e essa
princesa que, aliás, é a carinha do tesouro.
Para garantir o sucesso, extraí logo dois sisos, ele perdeu 50% do juízo,
notou-me e casamo-nos.
- Bello, nós íamos nos casar sim, mas não agora. Mas aí surgiu a Alice,
que hoje faz duas semanas, e o casamento facilitaria as coisas para que
os nossos nomes constassem da certidão de nascimento dela.
Lá descobriu que era pai e que teria apenas algumas horas para retirá-la
ou ela seria entregue para adoção.
- Aí vem a parte mais linda dessa história, Bello. Eu saí do fórum e vim
direto para falar com ele, achando que ele me deixaria.
Ele me lembrou de que eu tinha um lar com ele, de que iríamos nos
casar, de que estávamos juntos para todos os momentos e de que
estávamos apenas perdendo tempo.
- Ninguém quer trabalhar nesse caso por medo de ser mumificado, Gael.
O pior é que não avançamos nem um milímetro sequer. O caso dos
fenômenos inexplicáveis é semelhante, só que não há o agravante das
mortes.
- Amorzão, acho que devemos nos pôr a caminho. O dr. Gael teve um
domingo longo e deve estar cansado, não?
Fernando levou Gael e Alice para casa. Gael pôde tomar seu banho e sentar-
se para jantar porque seu amado havia cuidado de tudo. Alice já havia sido
banhada e só aguardava o papai Gael sair do banho para receber a sua
mamadeira.
- Nando, amanhã você volta à sua rotina. E fez tanto aqui em casa. Tudo
ficou melhor depois de você. A começar pela minha vida.
- Zinho, você já fez tanto por mim. Sabe que eu vou acompanhar você
nos plantões, aos domingos? Mas serei obrigado a folgar um domingo
por mês.
- Eu quero acompanhar você, Nando. Você tem como prever essa folga?
Se sim, eu oriento Olímpia e Lavínia a não marcarem pacientes naquele
domingo. Assim, nós dois teríamos pelo menos um domingo no mês
para nós.
Olímpia e Lavínia contaram, orgulhosas, ao dr. Gael, que as duas amigas que
estiveram no casamento convidaram-nas para um almoço no Outback que se
revelou maravilhoso: um ponto de mutação na relação de amizade, com
verdade e fortalecimento.
Durante sua licença gala, Fernando aproveitou para visitar sua mãe com Alice
e retirar praticamente todos os seus pertences pessoais. No apartamento de
Gael espaço não faltava e o plano original, de pernoitar algumas vezes na casa
dos pais, sucumbiu com a vinda de Alice.
- Todos nós precisamos, dr. Gael. Também por isso que eu gostaria
muito de tê-lo aqui.
De qualquer modo, a iniciativa era muito apropriada e ele iria com Alice,
prestigiar o marido e pai. Gael achava o comandante muito atencioso, mas
extremamente reservado: era difícil saber se ele agia por dever de ofício ou se
agia espontaneamente. O comandante era um aliado de peso.
Então, Fernando estava há dez anos na corporação; o mesmo tempo que ele,
no consultório. Gael lembra-se de tê-lo visto algumas vezes na padaria e de até
terem trocado cumprimentos e sorrisos. Um homem fardado, estonteantemente
belo como Fernando, chama a atenção mesmo.
Gael lembra-se das vezes em que via Fernando na padaria, sempre cordial e
sorridente; até recebê-lo em sua poltrona odontológica. Pouco tempo depois,
tornaram-se namorados e agora estão casados e com uma filha. Gael
controlava-se para não chorar durante o atendimento.
- Zinho, o que houve, meu príncipe? Conte aqui para o seu Nando.
Aí, pego-me segurando minha filha; não faz um mês e sinto Alice como
minha filha, gerada por mim. Ela não é a sua filha que entrou na nossa
vida.
- Oh, meu príncipe mais doce! Eu sinto-me como você. Tudo aconteceu
tão rapidamente que não consegui metabolizar metade.
- Sabe, Nando, que me arrependo de ter optado por não usar aliança?
Às vezes, sinto-me como se eu quisesse esconder dos outros que estou
casado.
- Para mim, seria um alívio e uma honra portar uma aliança que
simboliza que sou casado com você. É algo estranho, Nando. Já
começou na vara da infância quando vi Alice; estabeleceu-se uma
conexão.
Alice é minha filha. Ela não é minha filha porque é filha sua e você é
meu marido amado. Não! Ela é minha filha! Você entende isso,
amorzão?
- Zinho, acho que essas coisas não são para serem entendidas; são
para serem vividas. E mais uma vez há reciprocidade entre nós. Eu
nunca achei um homem bonito, muito menos senti atração por um
homem.
171
- Você tem razão, Nando. Isso não dá para ser entendido; basta sentir e
entregar-se.
Ben acabara de confirmar o horário para a consulta com o dr. Gael: ele queria
a manhã do domingo e era o único horário que ainda estava disponível. Ele e
Alex gostavam de levantar-se cedo no domingo para compras no
supermercado ou para caminhar sossegadamente.
Bernardo ficou particularmente feliz quando descobriu que o colega Ben era
testemunha ocular de alguns deles. Evidentemente que Ben jamais relataria
que não era testemunha, mas coautor dos acontecimentos perfeitamente
explicáveis pela força da mente.
Ben queria que a imprensa contribuísse para disseminar um certo temor para
os que insistiam em agir contra os elementos do bom-senso. Bernardo foi o
pioneiro em divulgar essa versão e Ben acompanhou-o, com relatos e
testemunhos.
12
Benjamin, escritor, e Alex, operador de telecomunicações, são os protagonistas do conto A mente.
172
E Ben viu-se seduzido pela força que ele tinha, mas apenas com a presença de
Alex. Alex sentiu o mesmo efeito e Ben recorda-se como essa reciprocidade
desdobrou-se em presença, bem-querer, intimidade e amor.
- Nem eu, Ben. Mas o amor provoca tantas mudanças. Logo mais o pai
virá para conhecê-los e vocês me dirão com quem ela se parece mais.
- Eu acho que a Alice é a cara do pai Fernando, mas vejo traços seus
nela também, Gael.
- Não, Gael. Nós temos a Sampaio, uma caramelo SRD que adotou o
Alex como pai desde o primeiro dia em que ele esteve em casa.
- Veja, Alex, como ela mama em paz no colo do Gael. E os olhares que
ela atrai, não?
- Verdade, Alex!
Esse foi mais um domingo agitado para o Dr. Gael. Passava das 17h quando
encerrou os trabalhos no consultório e Olímpia tratou de fechar tudo e acionar
176
O domingo seguinte seria de folga para os dois e o dr. Gael havia feito planos
para os dois dias em que ficaria em casa. Amanhã estaria de folga, exceto pela
consulta da Alice, à noitinha.
Em casa, Nando deu a mamadeira da noite para Alice e Gael esperaria pelo
processamento para dar-lhe banho e trocar a fralda. Gael achava que ela
estava fofinha e Fernando, gordinha. Os dois jantaram com a companhia de
Alice na estrutura que Fernando havia montado.
Toda refeição gerava um vídeo que ia aos pais do Gael, do Fernando e para
Rico e Jô. Wanda também recebia os mais engraçados, ocasionalmente. Em
resposta, havia comentários que destacavam a semelhança de Alice com
Fernando e com Gael. Quem diria?
Fernando era sistemático: assim que Alice adormecia no berço era o momento
de se dedicar ao “amor de marido é amor de marido”. O amor pela Alice não
transmutava sua imensa energia sexual: ele desejava seu marido e sentia-se
ardentemente desejado também.
Alice adorava esse tipo de passeio, já que em casa, na estrutura que Fernando
montara, ela podia acompanhar tudo o que se passava. Gael, com sua
aparência jovial, seu sorriso arrebatador e seus cabelos grisalhos arrancava
suspiros por onde passasse.
- Bom dia, Wanda! Eu estava digitando uma mensagem para você neste
instante para saber se tínhamos alguma novidade.
- Ouvir sua voz e olhar para essa carinha linda aqui na cadeira afasta
qualquer chatice. Pode falar.
- Sim. Vamos registrar nossa filha. Você passa aqui? Eu vou justificar a
minha ausência ao comandante.
- O senhor já sabe onde fica a sala dela, certo? Podem ir para lá. Ah, ela
está ali, no bebedouro...
- Parabéns, Wanda, por vocês serem tão meticulosas nas análises. Rico
e Jô já nos haviam dado essa informação.
- Agorinha mesmo!
179
Gael deixou Fernando na corporação e seguiu para casa para retomar a rotina
interrompida por tão auspicioso acontecimento. Fotografou a certidão e
anexou-a a mensagens que enviou ao pai Fernando, aos pais dos dois pais, a
Olímpia e Lavínia, a Rico e Jô, a Kevin e Allan e a Wanda.
Fernando tinha direito à licença paternidade de cinco dias e combinou com seu
superior hierárquico, o comandante Canutto, que a gozaria na semana
seguinte, até para deixar tudo preparado para poder se ausentar da corporação
por uma semana.
A resposta de Wanda foi “não se esqueçam que amor de pai é amor de pai e
amor de marido é amor de marido” e Gael tratou de repassar essa dica
fundamental de Wanda para Rico e Jô e para Kevin e Allan.
Esse peso está ótimo para ela. Quanto vocês tem dado para ela mamar?
Ela também vai para casa com uma lista de vacinas: Hexavalente (DTPa
+ Hepatite B + Haemophilus + Poliomielite) e Pneumo 13 conjugada
Rotavírus (Pentavalente). Quanto mais cedo, melhor.
- Então, estão liberados. Ela já está limpinha, com fralda trocada. Quero
vê-la em 30 dias novamente.
A caminho de casa foram até o posto de saúde para as vacinas, só que agora,
com a certidão de nascimento. Alice foi atendida, vacinada, fez uma carinha de
que queria chorar, mas estava no colo do papai Fernando e com o papai Gael
do lado. Haveria companhia melhor?
A moranga recheada e tampada foi ao forno, pincelada com óleo, até murchar
e dourar. Os pratos seriam montados na cozinha, por praticidade. Quando
Fernando pega seu prato encontra a tira de papel e lê “ao marido e pai que dá
o melhor sentido às nossas vidas”. Lágrimas surgem-lhe.
O resultado ficou acima das expectativas. Era a primeira vez que Gael
arriscava-se a preparar camarão na moranga. Se não ficasse bom, seria
devorado do mesmo jeito. Fernando achava lindo que Gael preparava tudo
pensando nas sobras que ele levaria para seu almoço.
Vou barbear-me para ficar bem. Você poderia barbear-se também, não
Nando?
- Zinho, você é lindo de qualquer jeito. Se você pede, vou fazer a barba.
Fica mesmo melhor.
- Sim. E eu tenho algo em mente, mas ainda preciso refletir melhor sobre
o que fazer.
O comandante Canutto chamaria Fernando até seu gabinete para que todos
pudessem ir para a sala de confraternizações, onde seria servido o café festivo.
Dr. Gael já tinha as instruções sobre quando aparecer e para onde dirigir-se,
com Alice.
Foi apenas quando chegou à frente da sala que notou seu bem-maior: Gael
portando Alice na bolsa canguru que, assim que viu o pai, ergueu os bracinhos.
Os olhos de Fernando já estavam marejados e os de Gael, também.
183
Fernando não pensou duas vezes: abraçou e beijou seu marido e sua filha e
dois fotógrafos registraram o momento do abraço e o beijo. Eram da imprensa
local e um artigo seria publicado. O comandante assumiu a tribuna e pediu
para que todos se sentassem.
- Dr. Gael, a sua postura sóbria como cidadão conta muito para nós e
nos dignifica. O senhor é um legítimo amigo da nossa corporação o que
muito nos honra.
O Coronel Quintão também veio para cumprimentar o dr. Gael como amigo da
corporação. Coronel e comandante ficaram mais um pouco e estavam para
ausentar-se quando um dos aspirantes foi ao microfone e pediu um minutinho
de atenção.
- Segundo Tenente Abatte, dr. Gael, ali sobre a mesa há uma modesta
demonstração do afeto que cada um de nós tem por vocês dois.
Aceitem, pois vem dos nossos corações.
Um dos aspirantes deu o sinal de que era hora de todos voltarem aos seus
postos. Dr. Gael recebeu um generoso prato com salgados e doces para levar
ao consultório. Fernando despediu-se de Gael e Alice com um abraço, um beijo
e os olhos bem vermelhos.
Olímpia havia desligado tudo e só esperava pelo dr. Gael para acionar o
alarme de trancar a porta do conjunto 24. Desceram as escadarias e Gael
sentia que Alice pesava. Ela estava acordada e ambos iram buscar o papai e
os presentes.
185
Fernando ficou com Alice na bolsa canguru, com a bolsa sacola e com algumas
sacolas e Gael ficou com todo o resto. Os três e as sacolas ocuparam todos os
espaços do elevador.
- Foi maravilhosa, Nando. Vou contar para você. Alice foi comigo e lá
nós encontramos o homem mais lindo do mundo e festejamos a sua
subida de patente. Você tinha que ter visto aquilo tudo!
- Alice, você lembra de ter ouvido hoje pela manhã “faça a barba, amor”?
Tudo combinado e ainda bem que fiz. Mas no jantar, os papais terão
uma conversinha...
O jantar seria uma salada de folhas variadas, os salgados que Gael aqueceria
no forno e faria acompanhar por Tabasco e os doces como sobremesa. O luxo
ficaria por conta de um vinho branco para selar a semana e a subida de
patente.
- Nando, eu vou amar isso. Hoje eu gostaria muito de ter portado minha
aliança. É só um símbolo, mas no nosso caso tem um valor diferenciado.
Você já tem um modelo em mente?
- Vamos lá: nossos pais, nossas irmãs com agregados, Rafael &
Henrique, P & J, Étienne & Renato, Ralf & Matheus, Marco & Rainer,
Rico & Jô, Orlando & Paulo, Nuno & Ryan, Kevin & Allan, Bernardo &
Bello, Benjamin & Alex, Olímpia & Lavínia.
- Muito boa, essa lista, Nando. Posso acrescentar mais quatro: Marie &
Luíza e Júlia & Rúbia? Luíza é a ex do Bernardo, Júlia e Rúbia são as
irmãs do Rico e do Jô. As quatro virão amanhã.
- Eu acho lindo, mas vou chorar de emoção. E você também vai, Nando.
Hoje retornariam novamente e logo cedo para terem o sábado disponível para
os outros afazeres. E a mente de Rúbia como que retrocedeu no tempo,
aleatoriamente, ao dia em que conheceu Júlia, sua futura cunhada, no
apartamento de Rico.
Rúbia pensava em como a vida podia ser bizarra: seu irmão Rico é quase
atropelado por Jô à bicicleta, ajuda a socorrê-lo, fica com ele no hospital e leva-
o para casa depois da alta. Cuida dele, dando-lhe banho e comia na boca e a
magia do amor opera seus milagres.
13
Júlia, arquiteta, e Rúbia, química, são irmãs de Jô e Rico, respectivamente, mães de Vitor e aparecem
no conto O acidente.
188
Quantas vezes Rúbia deixou o pequeno Vitor aos cuidados do tio Rico, junto
com Luma e Bela? Algumas vezes o trio ficou com o tio Jô, no escritório, para
deleite do clientes que se encantavam ao ver como Jô era pai e tio zeloso. Em
cada gesto Rúbia sentia a presença da reciprocidade.
- Bom dia, dr. Gael! Como você está? Aliás, como vocês estão?
- Bom dia, Rúbia, bom dia, Júlia e bom dia Vitor! Nós estamos muito
bem. Fernando está em casa, com Alice.
- Nós soubemos pelo Rico e pelo Jô e ficamos muito, muito felizes por
vocês três!
- A gente sabe como é. Nosso caso não foi muito diferente. Mas é
maravilhoso tudo isso!
Júlia não apresenta tártaro nem sinal visível de cárie. Rúbia não
apresenta tártaro, mas há duas cáries que preciso restaurar e resinar
hoje, antes que evoluam e afetem algum canal.
189
- Sim, Gael.
...
- Pronto. As cáries eram mais superficiais do que supus inicialmente.
Pensei que pudessem ser consequência da gestação ou da lactação,
mas não me parece ser isso.
- Olá, Lavínia. Da outra vez que viemos havia uma outra senhora
também muito simpática.
Mas há uma mensagem que Gael lê lentamente enquanto seus olhos enchem-
se de água.
Zinho, meu lindo amorzão! Você recebeu-me por inteiro em sua vida,
com direito a pacote-surpresa. Quando você me ama, você vem inteiro
para entregar-se a mim. Minha admiração por você aumenta, assim
como o meu desejo. Isso, sem mencionar o amor que sinto por você,
meu príncipe. Uma pena que você não pôde brincar de banho conosco.
Mas amanhã, você não escapa! Beijo do homem da sua vida.
Nando, assistir a essa farra do boi perpetrada por pai & filha na hora do
banho faz um bem danado, sabe? Saber de você, poder sentir você
todo, faz um bem danado, sabe? Saber que Alice, a peralta, é nossa
filha, faz um bem danado, sabe? Saber que eu não escaparei de você
nem hoje, nem amanhã, faz um bem danado, viu?
Beijo safado no primeiro e único Tenente!
Esse beijo safado é o que eu deveria ter dado quando o mais lindo
tenente do planeta se deitou na poltrona odontológica pela primeira vez
e exibiu-se todo para mim...
Passava das 12h30 quando Luíza e Marie decidiram-se por sair da cama.
Tomariam o café da manhã, depois um banho e seguiriam até o consultório do
dr. Gael. Luíza via-se outra, principalmente depois do casamento com Marie.
Agora, ela achava-se verdadeira.
14
Marie, editora de moda, e Luíza, publicitária, são casadas e aparecem no conto A carvoaria.
191
Luiza raciocinava que o casamento com Bernardo havia sido um grande erro e
que desse grande erro nasceu a salvação para os dois. Um grande erro que
mostrou-se ser o melhor acerto. Hoje, ela e Bernardo amam-se de verdade,
como grandes amigos que são.
Como foi doce o dia em que Bernardo a chamou para conversarem e propôs
que se afastassem da condição de marido e mulher. Foi fácil para ele, pois ele
já amava um outro alguém. Naquele dia, Luíza e Marie comemoraram a
libertação do passado e a promessa de um futuro juntas.
E o jantar com Bernardo foi hilário quando cada um viu que o outro amava um
igual. Marie encantou-se com Bernardo e com Bello. Marie e Bernardo estavam
192
próximos, na Revista Pare! A aceitação por parte dos familiares foi bem mais
suave do que Luíza imaginava.
Quantas avaliações equivocadas, apenas por medo de viver a própria vida, por
medo de ser quem se é. E a preciosa amizade com Bernardo foi preservada e
um dos frutos foi a indicação do dr. Gael, que logo na primeira consulta caiu no
coração dela e de Marie.
- Boa tarde, Marie e boa tarde, Luíza. Vocês estão radiantes, sabiam?
Depois, quero fazer uma profilaxia, uma limpeza geral que me permitirá
avaliar melhor se há tártaro ou alguma cárie em estágio inicial. Podemos
prosseguir esse modo?
- É isso, Marie.
...
- As radiografias panorâmicas não apresentam alterações visíveis, o que
significa que raízes e canais não apresentam anormalidades.
- O valor total é este aqui, metade para cada uma. Se pagarem tudo
junto, posso parcelar em duas vezes.
- Olá, Lavínia. Da última vez que viemos havia uma outra senhora aqui
e...
Alice dormia no bebê conforto e Gael estava para acionar o alarme quando
Fernando o segurou, puxou-o para perto de si, abraçou-o com força masculina
e beijou-o escandalosamente. Gael derreteu-se nos braços do homem da sua
vida; amoleceu de desejo.
Gael achou mais seguro ele mesmo assumir o volante. O marido ainda parecia
nocauteado. Alice dormia, mas só até chegarem à casa: o reloginho interno
informava que haveria mamadeira, cocô, banho gostoso e fralda limpinha. E
durante o banho haveria alguma bagunça na água.
Por isso, agora, pedi que acompanhasse Marie e Luíza também. Uma
renovação de ares é sempre bom, não amorzão?
Que delícia! Você queria mesmo ter feito tudo aquilo, no primeiro dia,
Zinho?
O almoço e a pizza na casa dos pais, hoje, seria para comemorar a guarda
definitiva da Alice, seu registro de nascimento e a subida de patente de
Fernando. E, claro, a folga do dr. Gael, rara nos últimos meses.
Hoje, domingo, não havia pressa, mas os dois estavam habituados a uma certa
rotina que invariavelmente começava com o café da manhã, a mamadeira, o
banho de Alice e a fralda limpinha.
Hoje, o papai Gael daria o banho, então haveria mais banho e menos farra. Ou
será que não? Fernando, da cozinha, ouvia a algazarra e alguém fora seduzido
a entregar-se à bagunça também.
Depois que uma certa calmaria voltou a reinar no apartamento, Gael foi
verificar se já havia alguma nota da imprensa, no periódico local, versão online.
E Gael de imediato identificou a nota, não pelo texto, mas pela foto dos dois.
Gael perguntava-se o que estava, de fato, subjacente àquela matéria. Gael não
acreditava em “gestos bonzinhos”; algo havia naquela ação. Seria pressão para
parecer inclusivo? Seria combater a sisudez e a pecha de violentos atribuída
aos militares? Seria um esforço para ficar conhecido para ambição política?
Gael achou de enviar a nota também aos que ultimamente se tornaram mais
próximos: os casais Rico & Jô, e Kevin & Allan. Ah, Wanda não poderia ficar de
fora dessa lista.
Alguns itens que levavam no início, hoje eram desnecessários, enquanto outros
tornaram-se imprescindíveis. Como os dois alternavam-se em tudo, esse
conhecimento e essa prática eram de domínio de ambos.
Fernando ficara encantado com a tal bolsa canguru que servia tanto para Alice
dormir como para passear e observar tudo. O contato com o peito e com os
batimentos cardíacos tinha poder de tranquilizá-la. Assim foram ao shopping.
- Muito. Eu gostei, Zinho. Será que você teria desse modelo, em ouro?
- Esse par que vocês escolheram, em outro branco é mais caro que o
mesmo par em ouro, porque são mais espessas. Comparem o peso.
- Pronto. Vamos conferir juntos? Aqui não pode haver erro. Ele também
parece conferir tudo, não?
Gael explicou que eles se alternavam em tudo para manter a prática e todos
observavam a destreza com que Fernando dava conta das tarefas paternas.
- Fê, eu nunca achei que um dia veria você fazendo isso e com tanta
habilidade.
- Flora, isso hoje, porque lá no início foi tudo lento e desajeitado. Agora
temos prática. Pense em oito a dez mamadas por dia e o mesmo de
troca de fraldas.
200
- Fê, eu assisti ao vídeo que o Gael nos mandou de você dando banho
nela. É de morrer de rir. Olhando assim, dá até vontade de ter um
também.
- Mamãe fez o que você gosta, Fê: bife à parmegiana com purê, arroz e
salada de chuchu com cebola. E pudim de leite na sobremesa.
- Seu pai também montou uma para nós lá no jardim de trás. Temperos
frescos são maravilhosos.
- Viva! Saúde!
- Sim, Benício, mas com alguma flexibilidade. Hoje, por exemplo, resolvi
dar-me folga. Agora, tenho que pensar na família também...
- Eu acho que você está certo, Gael. Inclusive, as pessoas podem vir de
longe com essas facilidades, não é mesmo?
- Sim, Flora. A maioria dos que vêm nos finais de semana vêm de
bairros distantes de São Paulo ou do ABC.
Gael ficou feliz ao saber que as duas mães, Wilma e Cecília, estreitaram laços
e encontravam-se ao menos uma vez por semana. Já os pais, Benício e
Otávio, tentavam superar certa rivalidade de cunho masculino.
Em casa, andando com Alice pelo apartamento, Gael viu uma mensagem de
Kevin com um vídeo.
Não demorou muito para a resposta do Kevin chegar, com o contato do Giu e
as melhores recomendações. Kevin voltou a mencionar que o Giu era amigo do
seu pai e que preparara tudo para o casamento dele e do Ryan.
Fernando viu todas as informações e resolveu ligar para falar com o tal Giu.
- Giu falando.
203
- Claro. Podemos fazer. Por que você não passa aqui entre 17h e 18h?
Aí podemos conversar e você pode até fazer alguma degustação.
Fernando conversou com Gael sobre a sua proposta: faria convites eletrônicos
que enviaria por WhatsApp, individualmente. Primeiro, elaboraria a lista com
todos os contatos, cadastraria a todos e enviar-lhes-ia o convite com RSVP.
Um pouco antes das 17h, levemente descansados, foram para o carro, com
Gael ao volante. Não levaram mais de 20min até a cantina e estacionaram ali
mesmo. A bolsa canguru com Alice foi para o papai Gael. Entraram.
- Sejam bem-vindos. Você e Alice são bem parecidos; os dois são, viu?
Sentem-se e contem-me o que vocês pretendem.
- Não, Giu. Nós já somos casados, mas só agora vamos poder fazer a
festa.
- Está sendo construído. Até lá, estará pronto para ser usado.
Eu pedi para o meu pessoal preparar uma tábua com alguns petiscos.
Enquanto vocês degustam, eu vou verificar os preparativos para o jantar.
- Muito obrigado, Giu. Vá aos seus afazeres que nós continuamos aqui.
- Isso seria ótimo, Giu. Assim já teríamos uma ideia de quanto essa festa
nos custaria.
- Está certo, então, Giu. Voltamos nos falar amanhã. Aqui estão os
nossos e-mails. Obrigado por tudo e bom resto de domingo.
Assim que Gael estacionou o carro, Otávio veio para recebê-los. Logo vieram a
mãe, Cecília, a irmã, Renata e o marido Enzo. Fernando estava com Alice na
bolsa canguru e ela parecia gostar de toda essa movimentação atípica.
- Sim, claro. Já fizemos um pacto de nunca falar sobre futebol para não
sairmos no tapa.
- Vocês podiam pedir produtos para a Alice, por exemplo. Fraldas, leite
em pó, conjuntinhos, sapatinhos, toalhas, mantinhas, colônia, xampu.
- Eu amo.
Na segunda-feira, outro dia de folga do trabalho para os dois, saíram cedo com
Alice para compras na Coop. Gael comprou coxão duro, filés de peito e um
sortido de legumes. Faria carne refogada, filés grelhados e cozido de legumes.
Fernando e Gael
Benício e Wilma
Flávia e Sando
Flora e David
Otávio e Cecília
Renata e Enzo
Rafael, Henrique e Duda
P, J e Nara
Étienne e Renato
Ralf e Matheus
Marco Antonio e Rainer
Rico, Jô, Luma e Bela
Orlando, Paulo e Lua
Nuno e Ryan
Kevin e Allan
Bernardo e Bello
Benjamin, Alex e Sampaio
Marie e Luíza
Júlia, Rúbia e Vitor
Lavínia e Olímpia
Fernando e Gael cumprimentaram Giu pelo fraldário. Fora feito por alguém que
entendia do assunto. Fernando estava com a bolsa canguru na qual Alice
acompanhava tudo com curiosidade.
211
Mas havia mais: Bernardo entrou com Bello e Alex entrou com Ben. Bernardo
e Alex possivelmente eram obras dessa mesma oficina. Nuno e Ryan e Étienne
e Renato também chamaram a atenção. Nuno e Étienne, especialmente.
Nunca antes houve uma concentração tão elevada da mais refinada beleza
masculina na Cantina do Giu. Aquele evento passaria tranquilamente por uma
convenção de modelos ou de uma prévia para um concurso de mister universo.
Todos os convidados estavam lá. Duda, Nara, Lua, Bela e Sampaio, as cinco
fêmeas caninas, já não estavam mais presas às guias; a porta principal estava
fechada. Luma, Vitor e Alice ainda estavam com seus pais.
Só essa cena foi capaz de desviar os olhos dos convidados, das obras de arte
masculinas presentes. A iniciativa de Jô foi elogiadíssima e os pais e mães até
puderam distrair-se um pouco, pois mamãe Bela era extremamente zelosa.
- Viva!
- Eba!
A sobremesa ia ser servida quando a voz rouca de Billie Holliday foi ouvida na
sua magistral interpretação de The man I love. Nesse momento, todas as
atenções voltaram-se para o centro do espaço em que Rafael e Henrique
dançavam sinuosamente. Foram acompanhados por P e J.
Amar um igual era dançar com esse igual; era responder e corresponder; era
um exercício pleno de reciprocidade.
Fim!