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Este conto é ficcional. Informações sobre locais e nomes existem apenas na


imaginação do autor e na de seus leitores.

Reciprocidade, por René Henrique Götz Licht – setembro de 2023

Sinopse

Um tenente do Corpo de Bombeiros, um cirurgião dentista e uma sequência de


casais revivendo emoções fortes de suas vidas. Haveria algo em comum para
além do fato de todos os homens e mulheres amarem iguais? Qual o impacto
das vivências desses casais para o tenente e para o dentista? Será que
haveria espaço para a diversidade dentro da própria diversidade?

1. Siso

Subia como que uma coluna de fumaça escura. Um ou outro curioso parecia
tentar entender de onde essa fumaça partia. Certamente, de alguma unidade
do bloco de três andares construído sobre a grande padaria da esquina.

O corpo de bombeiros ficava a apenas duas quadras dessa esquina e uma


viatura vinha na contramão, com as sirenes ligadas. Parou em frente à padaria
e apenas uma pista da avenida, a da esquerda, estava liberada para o trânsito.

A avenida tinha quatro pistas e o trânsito rapidamente ficou afunilado. Ao


volume da sirene juntaram-se sons de inúmeras buzinas, inclusive das de
carros que trafegavam no sentido oposto, já que alguns motoristas
desaceleravam para acompanhar a movimentação.

Era interessante observar como um evento com potencial de pequena tragédia


atraía a atenção de todos. Exceto pela fumaça que já se havia transformado
em um fio, não havia chamas visíveis.

A viatura do corpo de bombeiros continuava estacionada em frente à padaria,


com sirene e luzes piscando. Os bombeiros deviam estar no interior do prédio
e, pela movimentação, devem ter ordenado a evacuação total do prédio.

Como era cedo, antes das 8h, muitas das salas que formavam aquele
complexo comercial ainda não estavam ocupadas. Das duas portas que davam
acesso aos andares, saiam poucas pessoas, algumas com jalecos brancos e
azuis e outras com uniformes de limpeza.
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Os ocupantes haviam sido orientados a se reunirem próximos à viatura


enquanto os bombeiros procediam à verificação das condições de uso do
bloco. Alguém mencionara que o foco do incêndio estava no vizinho de trás.

Os que estavam tomando seu café da manhã na padaria não foram


molestados. A padaria recebeu mais clientes querendo consumir alguma
novidade, mas ninguém sabia o que se passava.

Não antes de 40min que o bloco pôde voltar a ser ocupado. A viatura
continuava lá, parada, impedindo a normalização do fluxo de veículos. Era
horário de rush para todos, exceto para a compreensão dos bombeiros.

Finalmente o trânsito foi interrompido de vez para que a viatura pudesse


manobrar. O motorista era habilidoso: com poucas manobras posicionou
aquele gigante corretamente na mão de direção e seguiu até a corporação.

Nenhuma escada foi necessária bem como nenhuma mangueira fora utilizada
para combater algum incêndio. Os ocupantes que haviam sido evacuados já
retornavam, exceto pelos que foram tomar um espresso na padaria.

Havia bombeiros no interior do bloco para vistorias. Estavam no 3° andar indo


de sala em sala e entrando nas que estavam abertas, possivelmente para
tranquilizar os ocupantes. Fariam o mesmo nos dois outros andares.

Com o retorno da viatura à sede da corporação, o trânsito na avenida, nos dois


sentidos, ficou normalizado. E normalizado significava muito intenso já que a
avenida ligava municípios e ainda era hora do rush.

O conjunto de número 24, união de suas salas, pertencia ao dr. Gael, cirurgião-
dentista, há exatos dez anos. Dr. Gael costumava iniciar seus atendimentos às
7h pela facilidade de seus pacientes em encontrar uma vaga para estacionar. A
zona azul começava a partir das 8h.

O paciente das 7h chegou às 7h15 e o dr. Gael iria restaurar um molar com
resina, mas teve de interromper tudo. O paciente, quando viu todo aquele
aparato envolvendo os bombeiros, preferiu remarcar a sessão a ter de esperar
sabe-se lá por quanto tempo.

A campainha da sala toca e dr. Gael vai atender à porta.

- Bom dia, senhor! 2° Tenente Abatte. O senhor se importa se eu fizer


uma rápida vistoria?
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- Bom dia! De modo algum. Entre, por favor. Há algum perigo para nós,
aqui?

- Não senhor. É só rotina e avisar que está tudo bem.

- Tenente, foi mesmo um incêndio aqui no prédio?

- Não, senhor. O duto que faz a exaustão dos vapores das chapeiras da
padaria estourou e o acúmulo de gordura e sujeira entrou em combustão
e produziu a fumaça preta. Nada sério, só mesmo o susto.

- Entendi. Um susto mesmo. Meu paciente das 7h preferiu remarcar sua


sessão.

Desculpe-me, tenente, mas é impressão minha, ou o senhor está com


um pequeno inchaço na bochecha?

- Eu não reparei no inchaço, mas sinto um pouco de dor sim, aqui no


lado direito.

- Eu gostaria de fazer uma inspeção. O lado direito está com um leve


inchaço em relação ao esquerdo.

- Se o senhor puder, eu agradeço.

- Sente-se, então, tenente. Isso, recoste-se bem. Essa posição está


ótima.
...
- É, tenente. Nos dois sisos de baixo não notei irregularidade. Já os dois
de cima, especialmente o da direita, precisam ser extraídos. O da direita,
o quanto antes, melhor.

- Dente do siso, é? Vou perder o juízo, então?

- Digamos que se extrairmos um, o senhor perde apenas ¼ do juízo. O


senhor tem seu dentista de confiança?

- Não, doutor. O senhor pode fazer essa extração?

- Posso, sim. O senhor pode retornar hoje, no meu último horário, às


19h?

- Posso sim, doutor. O senhor faz sempre essa rotina de 12 horas?


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- Não, tenente. Mas hoje abrirei uma exceção para cuidar desse seu
dente antes que ele infeccione e lhe cause problemas mais sérios.

Fique com meu cartão e avise-me caso o senhor não possa vir hoje, por
favor.

- Eu virei, doutor. Essa dorzinha já vem me incomodando há dois dias.

- À noite eu farei uma radiografia dos quatro e lhe dou pormenores sobre
o que fazer.

- Obrigado, doutor. Até mais.

Dr. Gael era um tipo um tanto exótico. Quando começou a clinicar nesse
consultório tinha poucos pacientes e do que ganhava sobrava-lhe relativamente
pouco, descontando as despesas para a manutenção da clínica.

Já naquela época, há dez anos, não era aconselhável um dentista trabalhar


sozinho, então havia despesas com pessoal. Havia despesas com aluguel e
condomínio da sala, energia elétrica e telefone. E dr. Gael tinha só uma sala.

Anos mais tarde surgiu o casamento perfeito: a sala contígua à sua estava
vaga e ele precisava de um espaço adicional para um protético poder trabalhar.
Há pouco mais de dois anos outra oportunidade dessas de ouro: comprar o
conjunto das duas salas.

Esses investimentos só foram possíveis porque o dr. Gael leva jeito para a
coisa, como se diz. Ele começou trabalhando de segunda a sábado. No
sábado, até às 13h. Dr. Gael, e aí entra o seu “jeito para a coisa”, identificou
uma necessidade nos seus clientes e tratou de explorá-la.

Dr. Gael passou a atender no contraturno, como um de seus pacientes se


expressou. Primeiro, estendeu o horário de atendimento do sábado até às 16h.
Depois, até às 18h. A procura por esses horários era muito boa, até pela
facilidade de encontrar vaga para estacionar o carro.

Mas dr. Gael identificou uma outra possibilidade; a de atender também aos
domingos, pela manhã. Em pouco tempo, Dr. Gael passou a atender aos
sábados e domingos, período integral e isso propiciou-lhe ganhos como nunca
tivera antes.

Para completar os atendimentos aos sábados e domingos, faltava-lhe atender


nos feriados também. Havia casos em que quatro sessões eram feitas em uma
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única manhã, sem que o paciente precisasse se ausentar do trabalho ou faltar


às aulas de sua pós-graduação à noite.

Havia, ainda, o sossego e a facilidade para estacionar. Esse diferencial no


atendimento era incomum e o dr. Gael viu-se amplamente recompensado. Os
pacientes não se recusavam a pagar um extra pela comodidade de poderem
ser atendidos basicamente em um único período.

Com as suas duas funcionárias também não havia problema. Duas irmãs,
solteiras, moravam juntas, já de certa idade. As duas eram envolventes no
atendimento e de absoluta confiança.

Dr. Gael e as assistentes formavam um trio que transmitia competência e zelo


profissional. Elas haviam atuado como secretárias executivas por muitos anos
e trabalhavam porque gostam do que faziam e não primeiramente pelo
dinheiro. Isso faz uma diferença enorme, dr. Gael pensava.

Os honorários do dr. Gael estavam um pouco acima da média do mercado,


mas havia uma contrapartida: ele facilitava o pagamento no cartão de crédito.
Assim, ele conseguia algo cobiçado: fidelizar seus pacientes. Todos voltavam
anualmente para uma verificação.

Mas a fidelização não era só por essas facilidades apresentadas. Seus


pacientes confiavam nos seus diagnósticos e não se sentiam explorados. Não
era incomum um paciente retornar depois de um ano e receber a notícia que
nada precisaria ser feito.

Outra situação comum era o paciente deixar o consultório sabendo que no ano
seguinte, ao menos dois tratamentos precisariam ser renovados. Isso gerava
um forte vínculo de confiança entre paciente e dentista. Dr. Gael ganhava bem
sendo um cirurgião-dentista honesto.

Dr. Gael orgulhava-se de nunca ter feito qualquer tipo de divulgação, em ponto
algum. Nem nas redes sociais. Seus pacientes vinham por meio de indicações
e ficavam maravilhados com as ofertas de horários nos finais de semana.
Alguns atravessavam a cidade para se tratarem.

2. Um caso diferente

Os colegas de Gael criticavam-no alegando que ele vivia para o trabalho e que
ele deveria aprender a trabalhar para viver. Ele dizia ainda gostar do que fazia
e que, em algum momento, circunstâncias fá-lo-iam mudar. Por ora, ele queria
ganhar dinheiro e ser independente.
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Os dias de maior movimento eram realmente o sábado e o domingo. Nos


demais, ele conseguia alguma folga para cuidar de si e das suas coisas, já que
não tinha faxineira em casa. Suas assistentes sabiam como organizar a
agenda para evitar só um atendimento no meio da manhã.

Dr. Gael, confirmo minha ida ao seu consultório hoje, às 19h. Obrigado!

Dr. Gael avaliou o gesto do 2° Tenente como muito simpático. Sua assistente
da tarde estaria dispensada antes das 19h. Ela deixaria tudo preparado e da
extração ele cuidaria sozinho.

Dr. Gael já estava acostumado a ter pacientes masculinos de beleza


deslumbrante. Dois foram modelos, o haitiano assemelhava-se a um deus de
ébano, ainda havia os cientistas, os jornalistas e tantos outros.

Dr. Gael perdera a conta do número de vezes em que fora abordado na


padaria para dar detalhes sobre esses pacientes masculinos de beleza
invulgar. Alguns vinham com seus parceiros ou maridos e invariavelmente
tomavam um espresso na padaria, para o deslumbre geral.

Hoje, ele atenderia mais um dos que fariam parte desse seleto grupo de
homens belos. E todos, sem exceção, tinham sorrisos amplos e com duas
fileiras de dentes perfeitos por que bem cuidados. A beleza desses homens
não era só física; havia simpatia e charme.

Na padaria havia os que diziam que “beleza atrai beleza” referindo-se ao fato
de que o próprio Dr. Gael era um homem muito charmoso. Seus cabelos
grisalhos para sua pouca idade conferiam-lhe um ar de beleza rara e misteriosa
que pedia para ser decifrada.

Quando ele descia para acompanhar algum de seus pacientes em um


espresso, o tempo parecia parar na padaria. O branco caia-lhe particularmente
bem e os olhares e suspiros eram inevitáveis. Além da beleza, havia a simpatia
e o bom-humor: dr. Gael era perspicaz, espirituoso e divertido.

- Boa noite, tenente. Eu não sei exatamente como devo chamá-lo, se por
tenente ou se por 2° tenente.

- Boa noite, dr. Gael. Na corporação, chamam-me por Abatte. Sou


Fernando Abatte. E não precisa do senhor. Nós dois somos jovens.

- Ótimo, Fernando. Eu sou Gael. Sente-se confortavelmente enquanto


eu lhe explico o que ou fazer.
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Primeiro, eu irei anestesiar toda a sua gengiva inferior direita para que
não haja desconforto.

Enquanto isso, farei um Raio X dos terceiros molares para conhecer


suas condições. São os sisos. Eu vou aplicar-lhe um pouco de pomada
anestésica. É xilocaína.

- Entendi, Gael. Eu estou pronto. Eu não me considero sensível à dor.

- Isso é bom, mas a pomada proporciona certo conforto no momento da


anestesia.
...
- Depois da extração eu lhe mostro as imagens. Está confirmado o que
lhe disse de manhã.

- Entendi. Estou com uma bola na boca, Gael.

- Ótimo. Você vai abrir bem a boca e eu vou fazer uns movimentos.
Qualquer sinal de dor, avise-me.

Prometo que só vou extrair o dente; a cabeça deve continuar no lugar,


se der tudo certo.

- OK!
...
- Já está praticamente... Pronto! Aqui está! 25% do juízo no boticão. No
alicate.

Agora eu vou dar alguns pontos para facilitar a cicatrização.


...
- Você está se sentindo bem, Fernando?

- Estou, Gael. Só a sensação de bola na boca.

- Pelo que vi, foi sua primeira extração. Sua dentição é ótima e está bem
cuidada.

Não mastigue do lado direito por uns três dias, não faça bochechos
fortes para não romper os pontos.

Se sangrar um pouco, coloque água gelada na boca e incline a cabeça


para o lado direito.
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Você vai levar uma receita de Amoxicilina, 500mg, de 8-8h, por sete
dias. Se sentir dor, tome Paracetamol.

- Entendi. O antibiótico já tomo hoje, certo?

- Sim, Fernando. Hoje. Vamos às imagens?

- Sim. Esse é o que acabou de sair, não?

- Perfeito. Você reconheceu pelo formato das raízes. Este outro, do lado
esquerdo, também de cima, nós podemos extrair em um mês, ou antes,
se você se sentir bem.

Os dois inferiores estão comportados, então vamos deixá-los como


estão.

- E quanto eu lhe devo, Gael.

- Eu anotei aqui as duas extrações e os quatro raios X. Esse valor você


pode parcelar em até quatro vezes.

Eu quero vê-lo daqui a três ou quatro dias para avaliar a cicatrização.


Venha direito que eu atendo você e a assistente faz a cobrança.

- Entendido, Gael. Muito obrigado e até a volta.

3. Rafael e Henrique 1

Henrique tinha acabado de reler uma crônica que escrevera e intitulara Meu
casamento. Todas as vezes em que a lia, seus olhos faziam brotar lágrimas:
ele e Rafael estavam lá.

“Eu estava lanchando na praça de alimentação; ele almoçava com um grupo,


em uma mesa distante. Olhamo-nos, ele sorriu, eu acenei achando que era
alguém conhecido; não era. Eles levantaram-se com suas bandejas para
descartá-las e passaram por mim. Ele era o último da comitiva e, ao passar por
mim, deixou cair um cartão. Foi proposital. Apanhei o cartão.

Era um cartão comercial, com nome, telefone e perfil no Instagram. Procurei


pelo perfil, encontrei-o, mas as fotos mostravam um outro: aquele perfil não era

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Rafael e Henrique são os personagens centrais dos contos Verdade e certeza no amor, O amor
encontra a amizade, O fim das migalhas de amor, O amor cura a culpa e o pecado, Lua de mel e Viva e
deixe viver.
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o dele. Examinei o cartão novamente e vi que o erro fora meu: a informação


válida era a rascunhada no verso. Escrevi-lhe, apresentando-me, mas apaguei
tudo por diversas vezes. Não era eu aquele que escrevia. Até que me veio a
frase, a que me representava. Essa eu enviei.

À noite vi a sua resposta: ele me convidava para jantar, em um bistrô francês.


Aceitei. O jantar era no dia seguinte e mal dormi: ele era atraente e tinha o
sorriso mais encantador que havia visto. Alto, barba espessa, cabelos fartos.
Não conhecia sua voz; tudo fora feito por mensagem.

Cheguei ao bistrô, subi as escadarias. Ele estava lá, pôs-se de pé. Era o
homem mais belo que eu havia visto. Ele veio na minha direção, eu consegui
dar dois passos à frente; ele abriu seus enormes braços para me abraçar;
envelopou-me por inteiro. Meu corpo tremia dos pés à cabeça.

Olhávamo-nos; as palavras eram escassas, desnecessárias; o que os olhos


emitiam era a verdade. Nessa verdade habitava a certeza: após aquele abraço
da entrada, eu ter-me-ia casado com ele para toda a vida. Começamos a
jantar. Só olhares. Descobri, ali, o que é felicidade.

Ao som de Et si tu n’existais pas, ele convidou-me para dançar. O lustre, as


arandelas, os quadros e quadrinhos, as cortinas, os varões, os souvenirs, as
mesas e cadeiras, as toalhas das mesas, os frisos, as tomadas e interruptores,
todos deleitaram-se. Anjos, arcanjos, querubins e serafins desceram do
firmamento tedioso para contemplar o nascimento da verdade do amor.

Com sua voz de baixo-barítono, ele pediu-me em namoro. Eu, trêmulo, com
lágrimas escorrendo-me dos olhos, não consegui responder. Ele levantou-se,
puxou-me para perto de si, envolveu-me e beijou meus lábios com suavidade e
entrega. Os seres celestiais regozijavam-se. Os demais comensais ficaram
com garfos e colheres parados à boca. Alguns acenaram enamorados.

Levitando, cheguei à minha casa; nosso próximo encontro seria no sábado.


Pus-me ao computador e a inspiração brotou instantaneamente e resultou em
um soneto que lhe enviei, com dedicatória. No sábado, no seu apartamento, o
soneto estava impresso e emoldurado e, no verso, havia uma frase: “soneto
escrito e dedicado a mim, pelo homem com quem me casarei”.

Pouco tempo depois casamo-nos; jamais dissemos “eu amo você”; era
redundante. Sempre andamos de mãos dadas portanto nossas alianças. A sós
ou em público, ele me envolve e me beija; suspiros são ouvidos. A certeza da
verdade que há em nós contagia os empertigados.

Uma sala de espera para uma consulta médica torna-se amável, se ele lá
estiver comigo. A melhor mesa, o melhor concerto, o melhor passeio, as
melhores férias e as maiores homenagens não passam de um nada, sem vida,
nem graça, se ele lá não estiver comigo.”
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O último parágrafo fazia-o lembrar-se de que agendara consulta com o dr. Gael
para os dois. Gael havia se tornado um amigo de Henrique e,
consequentemente, de Rafael. Henrique pensou em convidá-lo para o
casamento, mas decidiram-se só pelas testemunhas Nathália e Jover.

Henrique sempre achou Gael um homem fascinante sob muitos aspectos: é


atraente, letrado, bem-humorado, consciencioso. Gael sempre pareceu-lhe
estar no controle de sua vida e transmitia-lhe a impressão de se estar
preparando para algo que lhe chegaria no futuro.

Pelo que ainda se lembrava de Gael, Henrique não entendia muito bem sua
dedicação ao trabalho: era excessiva. Será que o trabalho tomara o lugar de
um amor? Se Gael era tão dedicado ao trabalho e aos seus pacientes, como
não seria com um amor?

Mas havia pontos em comum nas trajetórias de Henrique e Gael. Henrique


sempre vivera para cuidar das suas coisas: sua urban jungle, seus pássaros,
sua criação de camarões ornamentais, os Neocaridinas, seus estudos de
música e seu hábito de escrever.

Em um olhar retrospectivo, Henrique também poderia aplicar a expressão


“excessivo” a si mesmo. Aquele era seu mundo, no qual ele estava consigo, um
mundo que ele valorizava e que dava sentido à vida. Henrique nunca duvidou
de que levava uma vida feliz. Até encontrar Rafael.

Fascinava-lhe constatar como a mente estabelece conexões: pensar em


consulta, em Gael e um todo um emaranhado de vivências. Henrique lembrou-
se da piada de um sujeito que vê uma pena na água, puxa-a e se surpreende
ao vir toda uma galinha junto.

Henrique já perdera a conta das vezes em que esteve no consultório de Gael,


mas lembrava-se que para Rafael, seria a terceira visita, sempre anual. E
sempre em um fim de semana em que tudo pudesse ser resolvido de vez, sem
precisar retornar.

Henrique lamentava que nunca surgira a oportunidade para conviver com Gael
em outros ambientes, mas entendia: Gael era solteiro e os amigos próximos de
Henrique, todos casados. Gael era daquele tipo de homem de quem é muito
fácil se gostar, logo no primeiro encontro.

- Bom dia, dr. Gael! Você está muito bem, não Rafael?

- Bom dia, dr. Gael! Está mesmo muito bem!


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- Bom dia, meus queridos amigos! Saudade de vocês! Deixe-me olhar


bem para vocês: como o casamento lhes faz bem.

É impressionante, mas vocês exalam felicidade, exatamente como na


primeira vez em que os vi juntos. E essas alianças combinam
perfeitamente com vocês.

- Rafael e eu vínhamos conversando no carro sobre quando você irá nos


anunciar algo. De verdade, nós queremos muito ver você bem ao lado
de um bem.

- É, Henrique, eu também gostaria. Mas vocês entendem isso melhor do


que qualquer um: tem que ter reciprocidade.

Um só gostando é paixão e paixão é sofrimento. E de sofrimento um


dentista quer distância.

- Nisso você tem razão, Gael. Você tem saído para algum lugar, para
encontrar alguém?

- Tenho. Todos os dias. Venho para cá e aqui encontro muita gente.

Eu me lembro de um texto seu, Henrique, em que você descreve como


encontrou Rafael e da certeza que invadiu você. Após Rafael abraçar
você, veio-lhe a certeza para casar-se com ele ali mesmo.

- Amor, foi assim mesmo? Eu nem gosto de lembrar porque meus olhos
ficam vermelhos.

Foram tantos os momentos fortes que esse moço Henrique me fez


passar. Tudo daria um livro...

- A história de vocês, Rafael e Henrique, é a mais linda e verdadeira


história de amor que eu conheço.

Um dia eu comentarei sobre essa história de vocês com alguém e vocês


serão os primeiros a saber.

Mas quem vem primeiro para a cadeira elétrica?

- Eu vou! Se eu começar a pensar na nossa história de amor, eu me


emociono.
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- E quem não se emocionaria, Rafael? Algo me diz que vocês vão assim
até ficarem bem velhinhos.

- Eu também nos vejo assim, Gael. Juntos, com bengala ou andador.

- Sim, Henrique. E vejo mais, a história de vocês é tão verdadeira que


se um partir, o outro parte logo. Mas vamos trabalhar porque parece que
acordei romântico hoje.

- Gael, há alguém. Tenho certeza, não amor?

- Gael, Rafael e eu sentimos em você que há alguém...


...
- Rafael, há uma cárie bem no início, aqui onde estou cutucando. Veja
com o espelho. Eu vou proceder a uma restauração e aplicar uma
camada de resina.

Não precisaria ser feito hoje, mas já que você está aqui, tão confortável,
por que não adiantar? Infelizmente não precisarei anestesiar.

- Gael, você está no comando. Uma lástima não precisar de anestesia...


...
- Pronto, Rafael. Retorno daqui um ano. Henrique, posso examinar
você?

- Claro, Gael. Já irei para a cadeira elétrica. Pronto. Vamos ver o que
teremos para hoje.

- Vocês dois são péssimos pacientes para um dentista. Não há o que


fazer; como cobrar?
...
- Até nisso vocês andam juntos. Você também está com uma cárie bem
no início, Henrique. Veja com o espelho, aqui onde vou cutucar.

Vou fazer o mesmo procedimento que fiz na do Rafael, se você não se


importar. Nós poderíamos esperar, mas porque não aproveitar a vinda e
já deixar feito?

- Claro, Gael. E também não precisarei ser anestesiado, não?

- Não, infelizmente. Quem sabe, no próximo ano?


...
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- Eu vou deixar registrado no prontuário de vocês para retornarem em 12


meses. Este é o valor total, para as duas consultas. Podem parcelar em
duas vezes, se quiserem.

- Obrigado, Gael. Vamos parcelar e depois, tomar um espresso lá na


padaria?

- Podemos, sim. Tenho meia hora disponível até o próximo atendimento.


Vamos, então?

- Nossos amigos, J e P, comentaram que viriam para uma consulta


também.

- Sim. Estão agendados para terça-feira, se não me engano. Vocês


veem-se com frequência?

- Sim, P é meu vizinho e nós quatro nos encontramos todos os fins de


semana. Durante a semana é mais raro por conta das nossas tarefas,
mas às vezes nos encontramos também.

- Vocês dois são a minha referência de número um e eles, a de número


dois. Vocês continuam morando cada um em sua casa?

- Sim, Gael. E J e P, também. Nós gostamos de nossa privacidade e


quando estamos juntos, tem sabor de namoro, sabe?

Henrique sempre diz que sentir saudade, sentir falta faz bem ao
relacionamento e eu concordo integralmente com ele.

- Eu nunca me vi numa situação assim, então não sei o que escolheria.

Provavelmente eu seria como vocês, porque gosto muito da minha


privacidade, mas a chegada de um amor pode mudar tudo, não?

- Quando eu deixo o apartamento do Rafael, ou ele o meu, fica uma


sensação de vazio. Essa sensação é produto da minha mente; não há
vazio: Rafael preenche cada espaço de mim.

E quando sei que irei vê-lo, seja no meu apartamento ou no dele, é uma
sensação de reencontrar o namorado. Esse “sentir falta”, a saudade, é
um tempero que revigora o sabor de tudo, Gael.

- Eu entendo isso. Quem sabe, um dia eu tenha a oportunidade de sentir


isso. E o bebê de vocês, como está?
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- Duda é mesmo nosso bebê. Está ótima e peralta. Agora sairemos para
uma caminhada com ela.

- E eu vou subir para me preparar para o próximo atendimento. Gostei


muito de revê-los, Rafael e Henrique.

Prometo-lhes que se houver novidades, vocês serão os primeiros que


informarei.

- Obrigado, Gael. Cuide-se bem e até breve...

4. Juízo

No início de sua carreira, dr. Gael não recusava pacientes. Nem poderia fazê-
lo; precisava trabalhar para ganhar dinheiro, pagar as contas e principalmente
para poupar. Naquela época atendia adultos, adolescentes e até crianças.

Uma colega de faculdade e de estágio tinha o perfil profissional diferente do de


Gael. Ela tinha como que uma inclinação natural para atender crianças, pré-
adolescentes e adolescentes. Com o passar do tempo, estruturou seu
consultório para receber esse tipo de paciente.

Os dois passaram a trabalhar em conjunto: se Gael fosse procurado para um


atendimento de um paciente não adulto, encaminhava-o para sua colega e ela
encaminhava-lhe os atendimentos de adultos. Essa parceria já durava mais de
cinco anos e mostra-se funcionando e consolidada.

Gael tinha acabado de almoçar na copa da consultório. Era o local onde havia
água, chá, café e uns biscoitos para todos. Lá havia um frigobar e um fogão
elétrico, de duas bocas. Quando o seu micro-ondas quebrou, Gael não o repôs.
Todos esquentavam suas refeições em banho-maria.

Gael ia descer para um espresso na padaria quando o 2° Tenente Abatte


aparece. Ele não tinha hora marcada e nem precisava. Dr. Gael queria apenas
vistoriar os pontos e a cicatrização.

- Bom dia, tenente! Venha para o consultório, por favor.

- Bom dia, doutor. Ou boa tarde?

- Para mim, boa tarde. Eu acabei de almoçar e ia descer para um


espresso.
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- Pode ir, doutor. Eu fico aqui aguardando.

- Os pacientes sempre têm prioridade, senhor Fernando. E como você


tem passado? Sentiu dores? Continua tomando o antibiótico?

- Sim, senhor!

- Esse “sim, senhor” é para as dores?

- Não, não. Não senti dor alguma, não precisei tomar Paracetamol e sim,
continuo com o antibiótico.
...
- Está tudo evoluindo muito bem, Fernando. Seu organismo está
reagindo muito bem. Sinal verde para a outra extração.

- Eu gostaria de fazê-la logo, ainda enquanto estou tomando o


antibiótico.

- Ótimo. Veja, Fernando, eu poderia ter feito as duas naquela noite, mas
o desconforto seria grande porque a boca toda ficaria anestesiada.

Há também as dores e a dificuldade para mastigar. Por isso, preferi


dividir em duas etapas. Você entende isso, Fernando?

- Sim, entendo e acho sua decisão acertada. Como estou bem, pensei
em antecipar a segunda extração, ao invés de aguardar algumas
semanas.

- Também não vejo problemas em anteciparmos. Se você puder, hoje às


19h tenho disponibilidade.

- Combinado, Gael. Estarei aqui. E faço o pagamento quando voltar para


a sua avaliação.

- Como você preferir. Qualquer coisa vou até a corporação para


reclamar a dívida.

- Vá, sim. Você será bem recebido, mas a dívida não será paga...

- Fernando, você aceita um convite para um espresso?

- Não aceito. O convite é meu! Vamos?


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- Não se desobedece a uma ordem de um oficial.

- Ainda não, mas espero chegar a oficial!


...
- Você fica muito distinto com essa farda, Fernando. Fardas imprimem
algo no homem.

- Minha namorada também já me disse isso. Ela acha que uniformes têm
algum fetiche.

- Eu também acho. E é fetiche sexual, desses que acentuam a


masculinidade.

Você nota alguma diferença em você com farda e sem farda, com roupa
civil?

- Eu me sinto mais empoderado com a farda, mas acho que é reflexo de


como as pessoas olham para mim. E você? Você também veste seu
uniforme.

- Eu, com o uniforme, sinto-me com mais autoridade profissional, mas


não me acho mais sexy, por exemplo. No seu caso, a farda deixa você
mais sexy.

- Isso é bem interessante, Gael. Quando eu visto a farda sinto-me um


profissional pronto para atender a uma emergência, por exemplo. Pronto
para prestar socorro.

Agora, eu acho que você fica sexy de uniforme.

- Então, a gente atrai mais olhares com o uniforme; nosso uniforme


chama a atenção sobre nós.

- Sim. Mas e você? Você tem alguém na sua vida?

- Um relacionamento afetivo, você quer dizer?

- É. Uma namorada, por exemplo?

- Não tenho namorada nem namorado. Eu gosto de meninos, Fernando.

- Foi o que pensei. Mas você não encontrou um menino para amar?
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- Eu tenho vários amigos que se encontraram e a magia aconteceu.


Conversei sobre isso há poucos dias com um casal que veio ao
consultório.

Eles se conheceram e no mesmo dia tinham a certeza de que se


casariam...

- Dois homens?

- Sim. Casaram-se e você vê no olhar deles como são felizes. Quando


nós descemos para um espresso, a padaria parou de tão bonitos que
são. Andam de mãos dadas e as alianças reluzem em seus dedos.

E outros pacientes meus vivem o mesmo tipo de casamento. Amor entre


iguais...

- Mas, e quanto ao seu menino?

- Veja, Fernando, eu já gostei de alguns e alguns já gostaram de mim.


Em nenhum houve reciprocidade.

Já houve algo como “vou ficar com você por educação”, mas isso logo
se desmancha. Eu iludia-me muito rápida e facilmente; hoje já sou mais
pés no chão, sabe?

- Sei. Entendo. Então, você acha que um relacionamento assim, morno,


não dá certo?

- Pode dar certo por algum tempo, porque uma das partes anda carente
ou cansada de ficar sozinha. Pode chegar a casamento, mas é uma vida
sem brilho, sem luz.

Esses amigos que estiveram comigo exalam amor e felicidade pelos


poros. É lindo olhar para os dois.

- Então, acho que nunca vi algo assim, Gael.

- Depois de amanhã um outro casal virá ao consultório. Eles são amigos


muito próximos desses que estiveram aqui. Eles também emitem muita
luz.

Se você os visse, Fernando, entenderia o que quero dizer. Um amor


assim eu queria para mim.
18

- E se não for assim? Você vai preferir ficar sozinho?

- Hoje, eu responderia que sim. Não precisa ter a luz que o


relacionamento deles tem, mas tem que ter reciprocidade.

É horrível você mandar uma mensagem e esperar horas para receber


uma resposta; a falta de interesse é visível. Para que iludir-se com algo
assim?

- Minha namorada reclama que eu levo horas para responder. Ela me


cobra muito, sabe Gael?

- Eu não consigo cobrar afeto de alguém. Quando há reciprocidade, as


coisas fluem espontaneamente. Quando não há, você recebe alguma
migalha só mediante cobrança.

- E o que você faz quando não recebe afeto? Você não reclama?

- Não. Se eu não recebo afeto, eu tomo consciência do pouco que


significo para aquela pessoa e afasto-me. Já vivi em dieta afetiva; hoje,
ou eu tenho alguém comigo por inteiro, ou eu fico comigo por inteiro.

Fernando, eu ficaria horas aqui com você, mas acho que meu paciente
já chegou. Quem sabe, à noite, não continuamos um pouco mais?

- Verdade, Gael. Extrapolei minha hora de almoço. Obrigado pela


conversa. Até mais tarde.

Felizmente, o paciente ainda não havia chegado. Estava atrasado e a desculpa


clássica seria o trânsito. Enquanto aguardava, Gael consultou sua lista de
mensagens que ele gravava para si mesmo, e ouviu-as, uma a uma.

Hoje peguei-me com vontade de rever o 2° Tenente Fernando Abatte.

O conteúdo dessa mensagem era verdadeiro, mas tudo ficaria restrito à


vontade. O 2° Tenente Fernando Abatte tinha uma namorada, embora não
parecesse estar muito entusiasmado. Quando Rafael e Henrique entraram em
sua sala, de mãos dadas, sobrava entusiasmo de um pelo outro.

Gael enviaria um link ao 2° Tenente com o texto que Henrique escreveu e


publicou, sobre seu casamento com Rafael. Agora, retornaria ao trabalho, pois
seu paciente acabara de chegar.
19

Não muito longe dali o 2° Tenente Fernando Abatte via que não havia
respondido a três mensagens da sua namorada. Para seu espanto, também
não se sentia inclinado a fazê-lo agora.

Imerso na profusão de laudos que havia sobre sua mesa, o 2° Tenente Abatte
tentava identificar a diferença entre desejo e amor. A descrição que o dr. Gael
lhe dera, sobre os pacientes seus amigos, era claramente sobre o amor. O
amor seria um passo para além do desejo?

Fernando tentava imaginar a cena dos dois amigos do dr. Gael entrando de
mãos dadas na padaria e todos parando o que faziam para olhar para os dois.
Pela narrativa do dr. Gael, os olhares eram de espanto pela beleza dos dois.

Ele sabe de um colega que fica na segunda sala ao lado da sua que mantém
um relacionamento com um homem. Todos sabem, mas publicamente ninguém
comenta; nas rodinhas mais fechadas, há comentários e alguns depreciativos e
maldosos.

Fernando recorda-se do dia em que o Capitão, sem ser específico, lembrou


todos de que estavam lá para fazer cada um seu trabalho e não para cuidar da
vida alheia. Prestar socorro era diferente de cuidar da vida alheia. E o caso do
colega acabou no esquecimento.

Fernando havia decidido que não avisaria sua namorada sobre a extração de
logo mais, pois ela certamente iria até sua casa para cuidar dele. Sua mãe faria
isso suficientemente bem. E ele também iria querer descansar. Nesse
momento, ocorreu-lhe pensar em reciprocidade.

Não fosse pela dedicação de sua assistente, dr. Gael nem água tomaria. O
copo estava lá, intacto. Quando ela entrou, levou o copo até ele e fê-lo beber,
interrompendo o atendimento. Ele agradeceu o zelo e o paciente ficou
surpreso. As secretárias zelosas faziam isso antigamente.

Ela também praticamente o obrigou a fazer um lanche entre um atendimento e


outro. Ela tinha idade para ser sua mãe e autoridade de quem cuida do bem-
estar para ser mais direta nas suas abordagens. Dr. Gael era grato às duas
assistentes por serem como eram.

Dr. Gael era desses que esquecia de si mesmo quando estava em


atendimento. Mas as duas irmãs intervinham quando ele exagerava. Apesar de
não serem fisicamente parecidas, o temperamento das duas era bastante
parecido. Elas o obrigavam a cuidar de si mesmo.
20

A assistente deixou tudo preparado para a extração das 19h, inclusive as


imagens de Raio X, caso ele quisesse visualizá-las novamente. Era
impressionante como ela pensava em tudo; sua irmã era igualzinha. Ele
raramente precisava pedir-lhes algo; tudo já estava ali, disposto para ele.

Dr. Gael sentou-se um pouco para descansar. A conversa com o 2° Tenente


Abatte havia-lhe drenado energia. Aproveitou o momento de paz e enviou-lhe o
link que prometera na hora do almoço, onde ele encontraria a página intitulada
Meu casamento.

Menos de um minuto após o envio da mensagem com o link, o 2° Tenente


Abatte está à porta do consultório.

- Boa noite, Fernando. Entre. Eu já ia dizer 2° Tenente Abatte.

- Boa noite, Gael. Eu também tenho que me forçar a chamá-lo pelo


nome.

- É o hábito de ser formal, não? Podemos ir à parte II?

- Claro. Mais um problema que consigo resolver.

- Eu vou adotar o mesmo procedimento, Fernando. Pomada anestésica


e anestesia.

A extração de hoje deverá ser mais simples, pois não há dor como havia
na do lado direito e as raízes são menos profundas.
...
- Um pouco antes de você chegar eu enviei o link para você, daquele
texto que mencionei no café. Talvez você queira lê-lo até a anestesia
fazer efeito completo...

- Obrigado, Gael. Vou lê-lo já.


...
- Acho que já posso extrair mais 25% do seu juízo.

Relaxe, abra bem a boca e segure-se, porque terei de fazer força, como
da outra vez.
...
- Pronto, Fernando. Veja seu siso e compare-o com a imagem. Essa
extração foi mais branda, mas vou dar uns pontinhos, por cautela.
...
- Agora, Fernando, você está livre de mim. Ao menos, por enquanto.
21

Continue com o antibiótico até o fim e retorne em três ou quatro dias


para eu poder fazer uma avaliação geral. Não precisa marcar horário; é
só aparecer e aguardar um pouco, se necessário.

- Obrigado, Gael. Muito obrigado!

5. P e J 2

Foi J quem agendou a consulta dele e de P com o dr. Gael que lhes fora
recomendado por Henrique em um momento em que P lutava contra seus
demônios internos mais vorazes. J guardava na memória um dr. Gael
atencioso e meigo; carinhoso, até.

As associações que se estabeleciam na mente de J quando relembrava seu


momento de vida, em que se deu a primeira consulta com o dr. Gael, podiam
ser sintetizadas na palavra superação. E J permitiu-se percorrer essa jornada
desde quando se interessara pelo caso de um padre.

J lembrou-se dos esforços que fez para conseguir uma entrevista com o tal
padre P: enviou-lhe uma carta manuscrita, com envelope manuscrito, na
esperança de ter seu pedido atendido. J gostava de ser perseverante e de não
desistir diante de algumas dificuldades.

E o primeiro encontro com o padre P mudou tudo. Hoje J reconhece como foi
impactado pela presença daquele homem e, mais ainda, como absorveu o
sofrimento dele vendo-o lutar consigo, com sua fé, a doutrina e com seus
princípios.

Nesse período J viu-se salvo pela sua ausência de fé, mas ainda não era
antirreligioso. A religiosidade era-lhe um mundo distante, inexpressivo e
inofensivo, mas o contato com o mundo eclesial, via padre P, alterou essa
percepção.

Aos poucos, J foi entendendo que as religiões não são inúteis; chegam a ser
nocivas: injetam doses maciças de sentimento de rejeição, de culpa e de
pecado nas pessoas, para levá-las a comprar a salvação. E frases de José
Saramago vieram-lhe à mente:

“O problema não é um Deus que não existe, mas a religião que O proclama!”

2
J e P refere-se ao jornalista J e ao ex-padre e atual professor P. Eles são os protagonistas de Confissões
sobre o Cristianismo, O fim das migalhas de amor, O amor cura a culpa e o pecado, Lua de mel e Viva e
deixe viver.
22

“Não posso crer num deus que foi capaz de criar o ser humano.”

“Por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo,


principalmente o mais horrendo e cruel.”

“Nós somos manipulados, enganados, desde que nascemos!”

“Quando a igreja inventou o pecado, inventou um instrumento de controle, não


tanto das almas, porque à igreja não importam as almas, mas dos corpos.”

“Como podem homens com Deus serem tão maus?”

J lembra-se de como P lutava para tentar amá-lo, mas via-se impedido por
sentimentos de culpa e de pecado e de como isso foi somatizado por P. E de
como amizades verdadeiras, como a de Rafael e Henrique, foram importantes
na sua recuperação.

De anos e anos de vida e vivência na igreja, não sobrou nem uma amizade
sequer. A maioria, por temer retaliações, preferiu isolar-se. Repetia-se o mito
de Pedro que negou seu mestre e amigo. Repetia-se a hipocrisia que esse
mestre tanto combateu e que vive e reina na igreja.

J via seus olhos marejarem-se com essas recordações; via como o amor entre
ele e P e a amizade com Rafael e Henrique foram capazes de curar P das
culpas e dos pecados. J lembra-se da primeira vez com P, do primeiro beijo, do
pedido de casamento e do casamento.

P não é só o mais belo homem para J; é o homem da sua vida e não tem a
menor dúvida de que ele, J, é o grande amor da vida de P. E de que Rafael e
Henrique são os melhores amigos que poderiam ter. E de Nara, a Narita e
Duda, como filhas dos dois casais.

- Bom dia, dr. Gael! Uma alegria estar aqui com você, novamente!

- J! P! Eu me sinto feliz por vê-los! Posso olhar para essas alianças de


perto? Vocês não imaginam como sinto orgulho de vocês dois!

- Gael, essas alianças significam tanto para nós.

- Não sei se consigo imaginar, P. Acho que ainda não evolui para isso.
Ah, um outro paciente chegou, mas é bem rápido. Eu só vou olhar o
estado dos pontos, se vocês me permitirem.

- Gael, por favor. Nós sabemos do seu zelo.


23

- Este é o 2° Tenente Abatte. Este é o jornalista J e este é o professor P.


Rafael e Henrique estiveram aqui há alguns dias e eu comentei deles e
de vocês, com o 2° Tenente, dizendo-lhe que vocês são meu orgulho e
minha grande inspiração.

- Tenente, nós é que somos fãs do dr. Gael. E não sinta que você está
invadindo nosso horário, por favor. Hoje, excepcionalmente, não
estamos com pressa.

- Obrigado, meus queridos J e P. Eu vou examinar os pontos. É rápido.


Sentem-se, por favor.
...
- Gael, esses dois homens são casados?

- São, sim, Fernando. Você consegue imaginá-los entrando na padaria,


de mãos dadas, sem chamar a atenção? Repare no brilho dos olhos
deles: é puro amor. No carinho com que um segura a mão do outro.

- Casados no civil?

- Sim. Casados no civil.


...
- Fernando, você está ótimo. Os 50% de juízo perdidos estão
excelentes. Não precisa fazer nada; os pontos cairão por si ou serão
absorvidos.

- Que bom, Gael. Então, eu já vou pagar tudo lá com a sua assistente.

- Se precisar de algo, você sabe onde me encontrar.

- Eu gostaria de conversar mais um pouco com você, se você puder,


Gael.

- Depois de atender os dois eu estarei livre. Não sei dizer quanto tempo
levará, mas posso tentar avisá-lo, ou você ficar lá fora esperando.

- Combinado. Eu aguardo.
...
- Muito obrigado por me deixarem ser atendido no horário de vocês.

- Não foi nada, Tenente. Foi o tempo de tomarmos uma água.

- Agora, J e P, a cadeira elétrica os espera.


...
24

- Rafael e Henrique deixam-lhe um forte abraço, Gael.

- Por favor, retribuam. Vocês quatro são meus ídolos. De verdade.

- E esse Tenente, Gael?

- Ele é muito simpático. E tem namorada.

- P, você não achou que ele tem olhos para o dr. Gael?

- Sim, J, reparei, assim como reparei que o dr. Gael tem olhos para ele.

- Vocês dois sabem o que torna o amor de vocês tão especial? A


reciprocidade. Com Rafael e Henrique é assim também.

- Isso não se pode negar. Sem reciprocidade, vive-se de migalhas e de


sofrimento.
...
- J, você leva seu dentista à falência. Desta vez não há nada a ser feito.
Retorno, em 12 meses.

Agora, vamos ver se com P ganho algum dinheiro.


...
- P, esse molar aqui, veja no espelho, tem uma cárie. Vou restaurá-lo e
aplicar resina. Prefiro fazer hoje a esperar seis meses ou um ano. Pode
ser?

- Claro, Gael. Você é quem manda.

- Só um instante que darei um recado à minha assistente.


...
- Pronto, P. Veja o resultado. Eu vou anotar no seu prontuário para
avaliarmos a necessidade de um branqueamento quando você retornar,
em 12 meses. Acho que é isso.

- Quanto lhe devemos, Gael?

- Aqui está. Podem parcelar em duas vezes, se preferirem.

Se vocês não estiverem com pressa, podíamos tomar um espresso. Que


tal?

- Ótimo, Gael. Vamos, então.


25

- Tenente, eu só vou tomar um espresso e volto para conversarmos.

- Tenente, por que você não vem conosco para um espresso?

- Obrigado. Vou com prazer, se eu não for atrapalhar.


...
- Eu vou pedir uns pães de queijo para nós.

- Tenente, você fica incomodado por estar na nossa presença? Pode ser
sincero, por favor.

- Incomodado, não; estou surpreso. Eu acho vocês dois uns heróis por
andarem de mãos dadas e por serem tão corajosos.

- Isso, Tenente, vem do amor, sabe? Às vezes notamos um ou outro


nariz retorcido, mas nossa convicção é mais forte. Nos condomínios em
que moramos somos muito bem-vistos.

- Eu tenho algumas dúvidas, mas sinto-me envergonhado de perguntar.

- Tenente, ajuda se pedirmos para o dr. Gael tapar os ouvidos?

- Ajuda. É dele mesmo que tenho vergonha. Principalmente quando me


chamam de Tenente.

- Isso é fácil, Fernando. Melhorou?

- Um pouco. Eu penso na pergunta “quem é o homem do casal”. Já ouvi


dizer que essa pergunta é ofensiva, mas não entendi o porquê. Vocês
teriam uma explicação para isso?

- Essa eu vou deixar para o J responder. Amor, por favor.

- Fernando, você conhece as expressões “ativo” e “passivo”? Sabe o


que elas significam?

- Perfeitamente. Em inglês usam top e bottom, não é?

- Sim. Culturalmente, o homem que prefere atuar como passivo é visto


como inferior, com demérito, enquanto o ativo é visto como homem de
verdade e, portanto, com mérito. Então, perguntar se alguém é passivo
pode ser constrangedor para o homem.
26

- Mas um não precisa do outro? Por exemplo, o que dois homens que
são só ativos fariam? Ou só passivos?

- Exatamente, Fernando. Você matou a charada. Um precisa do outro.

Há homens que navegam confortavelmente nos dois papeis, mas nem


todos são assim. Vou ilustrar conosco: P é 100% ativo e eu, 100%
passivo. Eu já me envergonhei de ser passivo, mas isso ficou lá no meu
passado. Hoje, eu tenho orgulho de ser como sou.

Então, nós dois nos complementamos e, assim, nos completamos. Eu


não quero ser ativo, nem P quer ser passivo; estamos bem na nossa
configuração de fábrica, digamos assim.

- J, sou mais ainda seu fã, viu. Você é um orgulho para os que amam
iguais.

- Que nada, Gael. Foi o meu amor pelo P e o amor do P por mim que me
ajudaram a conquistar essa coragem. A coragem veio pelo caminho da
reciprocidade.

- J, eu também estou fascinado com a forma clara como você explicou


esse tema tão espinhoso e como sente orgulho de ser quem você é.

- Obrigado, Fernando. E se você tiver mais dúvidas, é só perguntar.

- Tenho mais uma: o sexo entre homens não vira rotina e perde a graça?

- Essa eu vou responder agora, posso J, meu lindo?

- Por favor, P. Fale por nós.

- Fernando, sexo está ligado a desejo e o desejo perde potência com o


passar do tempo. E isso afeta homens e mulheres, em qualquer
configuração.

J e eu nunca fizemos sexo; sempre fizemos amor e nesse ato de fazer


amor, o sexo tem um papel, mas é secundário. O amor não murcha;
sexo, sim.

E nós temos uma vantagem porque cada um de nós tem sua própria
casa e o sentir falta do outro e a saudade são muito importantes para
tudo sempre parecer fresquinho, sabe?
27

- Obrigado, P. Mas eu vou abusar e fazer mais uma pergunta: como


você concluiu que gostava do J para além da amizade?

- Essa é uma ótima pergunta e sobre a qual penso com alguma


frequência, Fernando.

Eu sabia que tinha sentimentos pelo J, mas levei um tempo para


identificar que era amor e mais um tempo para aceitar esse sentimento
que havia dentro de mim.

Passado esse tempo de maturação interna, eu passei a ter pressa para


me declarar para ele. E como eu não tinha prática, fui aprendendo tudo
devagar com o meu amado J.

- E como foi para o J esperar sem saber o que ia acontecer, P?

- Ele podia responder, mas eu prefiro responder, Fernando.

J nunca me cobrou, nem me sufocou nem me ameaçou: ele teve toda a


paciência do mundo comigo e esperou até que eu estivesse pronto. E
nunca deixou de estar ao meu lado e do meu lado, com atenção, carinho
e apoio.

Que nome podemos dar a isso, Fernando, se não amor?

- Mas, J, essa espera não foi dolorosa para você? Como você aguentou
isso?

- Fernando, bem antes disso, eu tinha embarcado em uma jornada com


P em que ele enfrentou grandes conflitos. Eu estava envolvido; largá-lo
seria largar-me. Se ele sofria, eu lhe seria solidário dando-lhe apenas o
que eu podia: minha presença, minha compreensão, meu apoio.

E eu só fui capaz disso porque o amava muito, mesmo sem poder


esperar algo em troca.

- Eu estou aqui sentado ao lado do dr. Gael olhando para vocês dois e a
impressão que tenho é que tudo foi tão fácil e natural para vocês. Que
vocês nada enfrentaram, além de amor.

- Além do nosso amor, Rafael e Henrique foram nossos grandes


amparos. A amizade deles, o exemplo deles foi fundamental para tudo.
Eu pedi J em casamento no apartamento deles.
28

- Obrigados, J e P, por essa aula sobre amor e amizade. Eu nem sei o


que dizer.

- Então, nós vamos seguindo, porque você deve ter mais coisas para
conversar com o nosso querido dr. Gael, não? Fiquem bem, vocês dois!
...
- E então, dr. Gael, o que você me diz disso?

- O que dizer dessa aula de reciprocidade no amor?

- Eu tive a impressão de que o P nunca tinha tido experiência com


homens antes.

- Fernando, alguns dos meus pacientes homens são héteros, mas


apaixonaram-se por um homem, um homem específico. Não gostam de
meninos, mas amam um homem.

A sexualidade humana é muito mais abrangente do que a dicotomia


homem-mulher.

- Pelo que acompanho, principalmente nas redes sociais, hoje fala-se


mais em identidade de gênero do que em sexo, como vem descrito em
formulários, por exemplo: sexo masculino ou sexo feminino. Mas eu não
consigo entender isso bem.

- Eu também tenho muitas dúvidas, então eu tento me entender nisso


tudo, sabe?

- Você nunca sentiu vontade de beijar a boca de um de seus pacientes,


Gael? Quando estão lá, deitados na cadeira elétrica?

- Poucas vezes, Fernando. O foco no trabalho acaba me absorvendo.


Mas houve uma vez, sim, no começo da minha carreira, em que quase
fiz essa loucura.

Você conseguiu ler o texto que lhe enviei naquele link?

- Li e reli e achei que é invenção. Acho impossível aquilo ter acontecido


daquele jeito. Você acreditou no que leu?

- Sim, Fernando, porque eu já os conhecia. Eu assisti a um vídeo deles,


em que o Rafael recebe um prêmio numa cerimônia e Henrique aparece
de surpresa para entregar o prêmio. Eu senti o amor transbordar dos
dois.
29

- Você disse que eles estiveram aqui recentemente. Como eles estão
agora?

- Fernando, quando eles entraram aqui comigo, todos pararam de


comer. Eles não são só extremamente bonitos; deles emana uma
energia que vem do amor. E sempre foi assim: a reciprocidade foi
instantânea. Para J e P, a reciprocidade foi sendo construída aos
poucos.

- Então, você acredita no amor?

- Eu mesmo já amei algumas vezes. Poucas, bem poucas. Mas como


não havia reciprocidade, não evoluiu.

- Gael, você teria um amante? Um relacionamento com um homem


casado, por exemplo?

- Se houvesse reciprocidade, sim.

- Mesmo que não houvesse amor, só desejo sexual?

- Sim, mas teria de ter reciprocidade, mesmo que não fosse na mesma
intensidade. Sem reciprocidade sexual ou afetiva vira negócio.

- Negócio? Como? Sexo pago?

- Sim. Sexo pago, sem envolvimento, sem afeto, transação profissional.

- E você já fez isso?

- Já, mas o resultado foi desanimador. Não faria mais, não.

Fernando, hoje conversamos bem, não? Vamos para casa?

- Você está me convidando para ir para sua casa?

- Eu quis dizer que já está na hora de irmos para casa, voltarmos para
casa.

- Ah. Agora, entendi. Achei que você tinha me convidado, Gael.

- Eu acho que se eu convidasse você para ir à minha casa, você não iria.
Convite sem reciprocidade não funciona, Fernando.
30

- Você tem razão. Melhor irmos para casa mesmo.

- Para a sua? É um convite?

- Pois é, acabei falando do mesmo jeito que você. Cada um vai para sua
casa, foi o que eu quis dizer.

- Então, vamos. Fernando, obrigado pela sua companhia. Você é um


homem muito agradável e eu gosto dessa sua mente curiosa. Não se
esqueça do Gael nem do dr. Gael.

- Obrigado, Gael. Acho que não me esquecerei de nenhum dos dois.

Dr. Gael tinha uma característica que ele apreciava em si mesmo: um homem,
por mais atraente que fosse, se entrasse em seu consultório, seria visto como
paciente. Essa postura já o preveniu de fazer bobagens. Com o 2° Tenente
Abatte, caia-lhe providencialmente.

Dr. Gael sentia-se um pouco incomodado consigo por achar que devotava uma
atenção ao 2° Tenente Abatte que excedia o zelo profissional. Esse
comportamento não se justificava pelo fato de o 2° Tenente ser um homem de
porte altivo e por ser atraente.

Se fosse pela beleza, o que o dr. Gael não faria na presença de Rafael, um dos
homens mais belos que teve o privilégio de ver de perto? Ou de P que lhe
pareceu ainda mais exuberante depois do casamento? Ou de Étienne que veria
em alguns dias e cuja beleza era singular?

Havia um interesse mútuo no ar, entre dr. Gael e o 2° Tenente Abatte, mas era
muito cedo para suposições e, principalmente, para deslumbramentos. Dr. Gael
entendeu que precisaria imergir no trabalho e desocupar sua mente dos
devaneios improdutivos.

O 2° Tenente Abatte deixou a padaria e seguiu para sua sala, na corporação.


As conversas com J, P e Gael não lhe saiam da cabeça. Ficou irritado consigo,
pois lera o mesmo parágrafo de um laudo por três vezes e nada havia
guardado. Como conseguiria recobrar sua concentração?

O 2° Tenente Abatte precisou levantar-se, caminhar pela sala, ir até o corredor


e percorrê-lo de ponta a ponta, na tentativa de exorcizar os fantasmas de sua
namorada e de Gael. A única vantagem que via nesse emaranhado é que
conseguira esquecer-se dos dentes extraídos.
31

6. Étienne e Renato 3

Na sexta-feira, ainda no café da manhã, Eti lembrou Renato para agendar uma
consulta com o dentista para a avaliação periódica. Seria a segunda visita ao
dr. Gael que fora indicado ao Renato pelos professores P e Henrique.

Dr. Gael fora muito elogiado tanto por P como pelo Henrique e Renato, e Eti
comprovaram sua competência e simpatia. Outro detalhe, especialmente
confortável para Eti, era que o dr. Gael atendia vários casais homoafetivos e
suas assistentes encaravam tudo com normalidade.

Eti estava em seu laboratório, em seu jaleco branco, que lhe conferia a estatura
de um deus de ébano, quando recebeu a confirmação de Renato, com uma
pequena declaração e um beijo. Renato era a pessoa mais importante na vida
do seu marido e Eti pôs-se a recordar sua vida.

Atualmente, Eti tinha alguma vida social com alguns colegas do laboratório,
bem poucos, e com alguns colegas que viraram amigos e que conhecera por
meio do Renato. Mas nem sempre foi assim. De sua família, só sua mãe se
importava com ele, mas ela estava em Porto Príncipe.

E as recordações começaram a aparecer na mente de Eti. As devastações


sucessivas por terremotos e tsunamis, as guerras civis, a corrupção, a
impossibilidade de plasmar um futuro em seu país. A sentença de morte caso
fosse pego em ato libidinoso com um homem.

Os primeiros dias na Favela do Cigano, a presença de sua irmã, a saudade dos


pais que ficaram para trás. O trabalho como faxineiro terceirizado na unidade
de zeladoria e limpeza de uma universidade onde um professor ajudou-o a
manter seu hobby favorito: a leitura de livros.

A cena no parque em que os dois foram abordados pela polícia que veio
averiguar se Renato, o branco, corria algum perigo pela presença de Eti, o
preto. Sobre isso, ele e Renato riem até hoje, mas no dia foi constrangedor,
apesar de os policiais terem agido com bastante tato.

Nesse momento, os olhos de Eti ficam marejados: ele se lembra de que foi o
empenho pessoal do professor Renato para que seu diploma de farmacêutico
fosse convalidado pela universidade e ele pudesse requerer o registro no CRF.
Renato já o amava e esse amor o fez lutar. E muito!

3
Étienne, farmacêutico, e Renato, especialista de TI e professor-doutor, são os personagens centrais do
conto En blanc et noir.
32

Eti também se lembrou do episódio de homofobia e racismo que Renato teve


de enfrentar na sala dos professores por estar “de caso com um faxineiro
haitiano daqueles bem pretos”. Mas isso tudo só reforçou os laços que havia
entre eles e fê-los celebrar juntos e sozinhos o primeiro Natal.

E no dia do casamento? Os poucos convidados não foram ao cartório e


perderam uma linda declaração de amor apreciada pelos estranhos que lá
estavam. E Eti, agora em seu laboratório, sentindo-se pessoa de verdade e
acordando cada dia feliz, porque tem seu príncipe ao seu lado.

Eti ainda sonha com a possibilidade de que seu pai o aceite como ele é; sua
mãe tem feito sua parte, mostrando-lhe os vídeos que Eti frequentemente lhe
envia.

- Bom dia, dr. Gael! Viemos para sofrer um pouco.

- Bom dia, Étienne! Bom dia, Renato! Que bom vê-los com esse sorriso
de felicidade. Vamos para a cadeira elétrica, então?

- Gael, você está com ótima aparência, não é mesmo, Eti?

- Sim! Será que esse sorriso vem lá do coração, Gael?

- Acho que é o sorriso de vocês que me contagia.


...
- Renato, você vai precisar de duas restaurações que envolverão
remoção de cárie e aplicação de resina. Também há focos de tártaro
para ser removido e quero ainda fazer uma profilaxia, isto é, limpeza
geral.

Agora, eu quero examinar o Eti para termos uma ideia de tempo para
tudo.
...
- Eti, no seu prontuário havia uma indicação de implante na cavidade
molar. Vejo um tratamento de canal que teremos de fazer, mais duas
restaurações com aplicação de resina O seu demandará mais tempo,
Eti.

- Hoje temos tempo para sofrer, Dr. Gael. O que você propõe?

- No seu caso, Eti, hoje eu faço as duas restaurações, você toma um


antibiótico e no feriado fazemos o canal e preparamos tudo para o
implante. Vantagem: só o lado direito superior será anestesiado.
33

Já no seu, Renato, eu quero fazer tudo hoje: as restaurações com


resina, a remoção do tártaro e a profilaxia completa.

- Acho que está ótimo, não Eti? E os valores disso tudo?

- Estou finalizando cada caso. Vejam: esse é o valor do Eti e esse, do


Renato. Se pagarem juntos, faço em até quatro vezes.

- Depois do feriado, Eti ainda terá de voltar ou você consegue terminar


tudo no dia, Gael?

- Consigo terminar no dia, exceto se encontrar algo que não vi no raio X.

- Então, podemos começar, Gael?


...
- Gael, fiquei com a sensação de casa limpa, mesmo.

- É verdade, Renato. A remoção do tártaro e a profilaxia deixam os


pacientes com essa sensação. Eti, aqui está a prescrição da Amoxicilina,
500mg, tomar de oito em oito horas durante sete dias. Isso reduz
bastante a probabilidade de encontrarmos surpresas ao tratar o canal e
já previne a intervenção para o implante.

Acho que é isso. Acho que merecemos um espresso, não?

- Seu consultório está em um local estratégico, Gael. Essa padaria aqui


embaixo é um chamariz.

- É mesmo. Vamos, então? Olá, Tenente, que surpresa! Preciso olhar


algo?

- Se lhe for possível, dr. Gael. Mas eu posso esperar você retornar do
café.

- Eti, Renato, tomem uma água que eu volto em instantes, por favor.
Venha, Tenente.
...
- O que houve, Fernando? Você está com dor ou sangramento?

- Eu vim porque eu queria conhecer os dois que estão lá fora. Eu estou


ótimo.

- Como você sabia que eles viriam hoje?


34

- Eu me tornei amigo das suas assistentes. Mas, por favor, eu assumo


toda a responsabilidade.

- Preciso tomar cuidado com vocês três. De novo, você está bem?

- Estou muito bem. Só queria conhecê-los.


...
- Pronto! Já podemos descer para o nosso espresso.

- Não demorou nada, Gael. Ele não nos acompanhará?

- Você vem conosco, Tenente? Este é o farmacêutico Étienne, mas nós


o tratamos por Eti e este é o professor Renato. Este é o 2° Tenente
Abatte, da corporação aqui ao lado.

- Olá, Tenente!

- Prazer em conhecê-los, Eti e Renato.

- O Tenente conheceu e conversou bastante com J e P quando eles


estiveram aqui e ele veio para eu examinar os pontos.

J e P contaram-nos como se conheceram e um pouco sobre como


vivem. Foi uma aula de amor e reciprocidade. Então, vamos.
...
- Então, Tenente, você gostaria de saber como nós nos conhecemos?

- Eu não vou mentir. Gostaria, sim, se vocês não se importarem.

- Príncipe, posso contar um pouco da nossa história?

- Amorzão, fique à vontade. Acho que o Gael também não conhece


detalhes.

- Não mesmo e estou interessado. Vocês dois me são muito especiais e


queridos.

- E você, Gael, é o melhor dentista do mundo.

- Verdade, príncipe. Tenente, eu cheguei ao Brasil como refugiado do


Haiti. Fui morar na favela e fui trabalhar como faxineiro na universidade
onde Renato é professor.
35

Ele estava no laboratório e eu fazendo a limpeza e começamos a


conversar. Ele retirou livros da biblioteca para eu ler e eu já senti que
gostava dele, mas ele é branco e professor e eu, preto e faxineiro.

Quando ele descobriu que eu era farmacêutico, fez de tudo para que
meu diploma fosse convalidado. Depois, ele cuidou do meu registro
profissional no conselho regional de farmácia. Eu já estava totalmente
enamorado dele e ele de mim.

Hoje sou responsável por um laboratório no Laboratório TopHealth e


completamente apaixonado pelo meu príncipe. Nossa história dá um
romance, Tenente.

- Eti e Renato, que história mais linda essa de vocês. Vocês devem ter
enfrentado outras dificuldades também, não?

- Claro, Gael. Qual a primeira coisa que as pessoas pensam quando um


professor branco se enamora de um faxineiro preto? Mas entre nós dois
sempre houve sinceridade, confiança e apoio.

E o mais importante: amor verdadeiro. Hoje, Eti é amado por muitos e


respeitado por todos.

- E vocês também são casados? No civil?

- Sim, Tenente. Nós somos marido & marido. E, Tenente, o melhor disso
tudo é que nós dois temos certeza de quem amamos e por quem somos
amados.

- O dr. Gael fala muito em reciprocidade. J e P também falaram de


reciprocidade.

- Tenente, se não fosse pela reciprocidade, eu continuaria sendo um


faxineiro preto morando na favela. É melhor não amar, do que amar sem
reciprocidade, Tenente.

- Se eu não visse vocês e ouvisse tudo isso, eu não acreditaria em uma


única palavra.

- O Tenente diz isso porque ele leu aquele texto que o Henrique
escreveu, o Meu casamento.

- Li e disse para o dr. Gael que para mim, era ficção.


36

- Rafael e Henrique são especiais. Nós conhecemos o Gael por


indicação do Henrique e do professor P. Tenente, o que está naquele
texto é um resumo do que aconteceu entre eles. Eles são uma
inspiração para nós, assim como o J e o P.

- Então, vocês também confirmam que o texto não é ficção?

- Tenente, Eti e eu os vimos abraçando-se e beijando-se em público, no


Parque da Independência. Um abraço e um beijo com tanta elegância e
verdade que eles foram aplaudidos por alguns enquanto outros
mandavam-lhes coraçõezinhos.

Eles quatro e nós dois encontramos os amores das nossas vidas,


Tenente.

- É a terceira vez que me sinto como que no paraíso: quando tomei um


espresso com Rafael e Henrique, depois com J e P, e hoje, com vocês
dois.

- Eu fiz uma pergunta bem delicada para o J e o P e eles responderam


de forma muito clara. Eu queria fazer a mesma pergunta para vocês
dois, mas sintam-se à vontade para me bater, se for o caso.

Eu queria saber se os papeis íntimos de vocês estão bem definidos.

- Tenente, você quer saber quem é o ativo e quem é o passivo? É isso?

- É isso.

- Posso responder, amor?

- Por favor, meu príncipe.

- Tenente, isso nós conversamos assim que percebemos que havia algo
mais entre nós. Eu me lembro como se fosse agora. Eti disse para mim
que ele era 100% ativo. Eu respondi que estava perfeito para mim.

Estava perfeito, está perfeito e permanecerá prefeito. Tudo estava


esclarecido. Nunca mais precisamos voltar ao assunto.

- Dr. Gael, não é uma maravilha estarmos com pessoas com esse nível
de coragem? Isso não lhe parece esplêndido, dr. Gael?

- É, tenente. Eu tenho muito a aprender dos meus pacientes. Muito!


37

- Tenente, se você não tiver mais dúvidas, nós iremos para casa.

- Não, não. Muito obrigado, por tudo.

- Gael, nós nos vemos no feriado, então. Até lá e obrigado.

- Obrigado, meus queridos Eti e Renato.


...
- Formou-se um silêncio entre nós, Fernando.

- Você gosta de mim, Gael?

- Você gosta de mim, Fernando?

- É difícil dizer o que vagueia pela mente.

- Verdade, Fernando. Eu mesmo não digo, por medo.

- Medo? Por que medo?

- Medo de fazer um papel ridículo. Medo de ser rejeitado e ouvir um “sai


fora”.

- Você beijaria um homem em público, em um parque?

- Se fosse o homem da minha vida, sem dúvida.

- Mas, e se não houvesse reciprocidade?

- Nesse caso, ele seria um homem, mas não seria o homem da minha
vida.

- Eu gosto de você, dr. Gael.

- Eu também gosto de você, 2° Tenente Abatte. Vamos para casa?

- Para a sua ou para a minha?

- O que você prefere, 2° Tenente Abatte?

- Quer mesmo que eu responda?

- Só se você quiser responder.


38

- Eu estou confuso e inseguro, Gael.

- Eu também, Fernando. Melhor cada um ir para a sua respectiva casa.

- Obrigado por tudo, Gael.

- Eu sou obrigado. Eu gosto de estar com você. De verdade, Fernando.

- Eu também gosto de estar com você, Gael. Nós parecemos duas


bananas verdes.

- Eu já me acho mais um banana, mesmo.


...
- Dr. Gael, o senhor ficou chateado porque avisei o Tenente?

- Que nada, Olímpia. Foi uma decisão acertada. A conversa não poderia
ter sido melhor. O Tenente é ótima pessoa.

- Sim, Lavínia e eu gostamos muito dele. Ele é simpático e espontâneo.

- Isso ele é mesmo: simpático e espontâneo.

O 2° Tenente Abatte retornou à sua sala na corporação e ainda se sentia como


que abalado com o que ouvira de Renato e Étienne. O porte altivo de Étienne o
impressionou e a força das palavras dos dois, também.

O 2° Tenente Abatte participaria de um seminário na baixada santista. Sua


participação e desempenho seriam consignados em seu prontuário o que
poderia ajudá-lo a aspirar ao oficialato. Novos ares seriam bem-vindos para
decantar seus pensamentos turvos.

Dr. Gael sentia-se mais próximo do 2° Tenente Abatte, mas não o suficiente
para conversas sobre seus sentimentos. Por outro lado, ele mesmo
interpretava seus sentimentos como mistos, para não usar a expressão
“confusos”.

Dr. Gael acreditava que se o 2° Tenente Abatte não fosse seu paciente, ele
teria menos medo de expor-se; com um paciente, confundir papéis poderia ter
consequências profissionais indesejadas.

Dr. Gael viu que havia uma mensagem do 2° Tenente Abatte.


39

Dr. Gael, de tantas conversas esqueci-me de avisá-lo que estarei em um


seminário em Santos, a partir de amanhã, à tarde. Se der, passo no
consultório para me despedir. Manterei contato. Abraço!

Obrigado por me avisar 2° Tenente Abatte. Desejo-lhe sucesso no


seminário. Gostaria de vê-lo, antes de partir, se lhe for possível.
Abração!

2° Tenente Abatte, perdoe-me, por favor, pela minha falta grave.


Eu deveria ter-lhe passado meu número privado. Por sorte, uma das
assistentes achou que eu o faria e passou-lhe o número. Agora fiquei
chateado comigo...

Dr. Gael não recebeu mais resposta do 2° Tenente Abatte.

7. Ralf e Matheus 4

Ralf havia agendado uma consulta com o dr. Gael para ele e Matheus. Seria a
segunda ida ao consultório; na verdade, a terceira: a primeira fora breve, só
para detectar o que precisaria ser feito. Matheus via muita semelhança entre
Ralf e o dr. Gael, quanto ao atendimento de pacientes.

Matheus lembrou-se do seu pai, cujo amigo judeu, Simon, é o chefe do Rafael,
de onde partiu a recomendação do dr. Gael. Os dois judeus iam ao dr. Gael
pelos seus honorários e pelos horários que disponibilizava, aos finais de
semana e feriados: para eles, grande conveniência.

Desde a primeira visita, tanta coisa havia mudado: Matheus libertara-se da


cadeira de rodas, seu pai engatava um novo romance com uma judia mais
velha e sua mãe deixara o pentecostalismo e assumira seu relacionamento
com a amiga Yolanda, em Florianópolis.

Matheus, só de passar em revista todas as transformações, sentiu seus olhos


cheios de lágrimas. O diagnóstico inicial de paraplegia, a primeira consulta com
o psicanalista de sua mãe, a necessidade de fazer sua mãe feliz, o espectro da
culpa que secretamente carregava.

Matheus lembra-se de muitas conversas que mantivera com seu psicanalista, o


Dr. Ralf, e de como Ralf devolvia-lhe as questões mais complexas para

4
Dr. Ralf, psicanalista e professor universitário, e Matheus, físico, são os personagens centrais do conto
O Psicanalista.
40

reflexão e debate: por que Matheus entendia-se como responsável pela


felicidade da mãe?

De como o dr. Ralf insistia que a tarefa de Matheus era cuidar de si mesmo. De
como o dr. Ralf empregou propositadamente o termo “vetor”, termo caro a um
físico, para mostrar-lhe o que Matheus, o físico, precisaria ver. E do primeiro
grande encontro de almas...

Matheus deixou sua mesa no laboratório e recorreu à privacidade do banheiro.


Sentou-se e pensou no primeiro abraço que deu em Ralf, no consultório. Ralf o
ajudara a erguer-se da cadeira de rodas e a ficar de pé, apoiado, mas de pé.
Matheus já sabia que conseguira aquilo por Ralf.

Depois do acidente, Matheus nunca mais experimentou uma ereção: estava


inutilizado como homem. Matheus pegou papel para enxugar as lágrimas que
escorriam por sua face ao lembrar-se que, ao abraçar o dr. Ralf, sentiu um forte
ereção. E o dr. Ralf, também.

Dr. Ralf não mais poderia atendê-lo como seu psicanalista: perdera a isenção.
Iria cuidar de Matheus como namorado: juntos, fariam exercícios de
mobilidade, simples, lentos, dentro das possibilidades. A cada pequeno
sucesso, Matheus recebia um abraço ou um beijo.

Enxugando mais lágrimas, Matheus lembrou-se do seu temor de não conseguir


ser um homem de verdade para Ralf, mas logo percebeu que era apenas mais
um de seus medos infundados. Matheus explodiu como homem para Ralf como
nunca antes havia acontecido.

Matheus agora via diante de si a cena em que pede Ralf em casamento, e


recebe como resposta um sim condicional: Matheus deveria participar da
Corrida de São Silvestre ou da Corrida de Reis, duas modalidades que
Matheus sempre valorizara.

O que Matheus não faria para casar-se com o amor da sua vida e ainda
mostrar para si mesmo que se havia superado? Como o dr. Ralf era capaz de
eliciar forças inimaginadas de Matheus? Como o dr. Ralf conseguiu com que
Matheus enfrentasse um mergulho no mar após o acidente?

As lágrimas de Matheus haviam se acalmado, mas ressurgiram com força


quando ele se lembrou do discurso do pai, no dia do casamento: Ralf recebera
Matheus paraplégico e devolvera-o curado e melhor do que antes porque o
amor cura, restaura e embeleza.
41

Matheus ainda se lembra de como seu pai o fez prometer que cuidaria
muitíssimo bem do seu Ralf, o melhor homem do mundo para Matheus que se
sabia o melhor homem do mundo para seu amado Ralf.

E pensar que o dr. Gael, indiretamente, o conectara com essas


reminiscências...

Matheus aguardou mais alguns instantes para sair do banheiro, voltar à sua
mesa e escrever a Ralf que queria dançar com ele porque o amava.

- Boa tarde, dr. Gael. Como você está?

- Boa tarde, meus queridos Ralf e Matheus. Desculpem-me. Acho que


estou muito sensível...

- Então, venha que queremos dar-lhe um abraço. Da última vez isso não
foi possível.

- Desculpem-me as lágrimas... Vocês estão tão bem e Matheus...

- Gael, Matheus teve ótima classificação na São Silvestre e na de Reis e


estamos casados.

- Eu acho que estou tão feliz quanto vocês. Foi diagnóstico equivocado,
Matheus?

- Não Gael, foi a força do amor do Ralf por mim e do meu amor por ele.

- É! De novo, vejo a reciprocidade. Hoje pela manhã atendi o Étienne,


casado com o professor Renato, amigo do professor P que Ralf
conhece. Aliás, Eti e Renato saíram há pouco. Lembrei-me da
reciprocidade com eles e, agora, com vocês.

- Sim, nós dois conhecemos P e J. E conhecemos Renato e Étienne


também. Acho que temos muito em comum e seria tão bom se fôssemos
mais próximos, sabe Gael. E você é um polo comum nessas amizades.

Esse seu olhar tem alguma relação com alguma reciprocidade, Gael?

- Matheus, enquanto eu faço um raio X do dente, os psicanalistas fazem


raio X da mente. Ralf nota tudo, não? Mas acho que tem sim, Ralf. Você
viu o essencial.
42

- Gael, você está amando. Empenhe-se por você como você se


empenha por nós.

- Vou tentar seguir seu conselho, Ralf.

- Gael, tentar é pouco; não serve. Era o que eu sempre ouvia do meu
gatão. Tem que fazer mais do que tentar.

- Prometo a você que farei mais, Matheus. E prometo a você também,


Ralf.

Agora, convido-os para experimentarem um assento na nossa cadeira


elétrica.
...
- As duas radiografias panorâmicas mostram que está tudo em ordem no
complexo dentomaxilar de vocês dois. Eu vou deixar uma indicação no
prontuário do Ralf para voltar a examinar um molar que pode requerer
tratamento de canal, mas não hoje.

Eu suspeito de uma cárie, em cada um de vocês, então, vou fazer a


profilaxia, isto é, a limpeza completa, para me certificar se é mesmo
cárie. Se for, faremos a restauração. Ficou alguma dúvida?

- Não, Gael. Tudo claro.

- Então, vamos começar com o Ralf, cujo prontuário já está aqui na


minha frente.
...
- Pronto. A profilaxia mostrou que o que parecia cárie, não era. Sugiro
retorno para nova avaliação, em 12 meses.

- Gael, no nosso retorno, essa situação da tal reciprocidade tem que


estar resolvida. Nós dois queremos encontrar Gael com alguém; com
esse mesmo que passeia pelo seu coração.

- Ralf, você é um bruxo. Amo vocês dois. Aqui estão os valores de hoje.
Se pagarem juntos, podem parcelar em três vezes.

- Sim, eu vou pagar tudo, Gael.

- Eu sinto que preciso de um espresso. Vocês me acompanham?

- Claro. Só não vamos comer, porque eu vou preparar um lanchinho


para um amor em casa.
43

- Como é bom ter alguém para mimar e estragar, não Matheus?

- A gente gosta de se estragar mutuamente. A culpada de tudo é a dona


reciprocidade...
...
- Olá Fernando! Que bom que você já voltou. Quer que eu veja algo?

- Se for possível, dr. Gael.

- Este é o 2° Tenente Abatte da corporação aqui do lado. Este é o


psicanalista Ralf e este é o físico, Matheus. Vocês se importam se eu
examinar o tenente? É bem rápido.

- Em absoluto. Nós vamos descer e reservar uma mesa para quatro.


Tenente, você nos acompanha no café, não?

- Sim, se não houver contraindicação. Obrigado.


...
- Eu sei que você está magoado comigo, Fernando. E não sem razão.
Como foi seu seminário? Correu tudo bem?

- Mais ou menos. Eu senti dor.

- Dor? Como? Poderia ter me avisado.

- Você está muito atarefado, Gael.

- Para atender você, eu cancelaria tudo. Você não pode ficar com dor.
Mas era dor em algum dente?

- Não. Era outra dor. Vamos tomar nosso café?

- Você não quer falar dessa dor? Vamos.


...
- Dr. Gael, Matheus e eu já entendemos a lição sobre a reciprocidade.

- Essa palavra me persegue. Ouço-a com frequência. Vocês se


importariam em me falar um pouco sobre reciprocidade?

- Em absoluto, tenente. Eu falarei e Ralf me ajudará. Eu cheguei ao


consultório do dr. Ralf sentado em uma cadeira de rodas, com um pré-
diagnóstico de paraplegia, depois de um mergulho acidentado na praia.
44

Eu não mexia os membros inferiores; nenhum, para você me entender


bem.

- Nenhum? Ai, ai, ai.

- O dr. Ralf identificou meu problema, deixou de ser dr. Ralf para ser
Ralf. Quando o apresentei ao meu pai, achando que ele poria um ovo,
meu pai o abraçou e chamou de genro e Ralf passou a ser meu
amorzão.

Da cadeira de rodas fui para um andador, depois uma bengala até


conseguir ficar em pé, sozinho.

- Sozinho, Matheus?

- Sozinho significa por mim mesmo; este meu amorzão aqui nunca saiu
de perto de mim. Ele me subornava o tempo todo.

- Subornava? Isso é interessante. Como ele fazia isso.

- Se eu fizesse os exercícios com ele direitinho, eu ganhava um abraço,


um beijo e, se eu me superasse, um algo mais.

- Já entendi. Por esse “algo mais” você fez tudo o que precisava.

- Antes de conhecer o dr. Ralf, eu era um esportista bem ativo.


Participava de corridas e maratonas. Quando falamos em casamento,
sabe o que ele me disse?

- Sim, ele disse. Com toda a certeza ele disse sim.

- Tenente, ele disse sim, mas era um sim condicional. A condição para
nos casarmos era eu participar da corrida de São Silvestre ou da corrida
de Reis. Ele permitiu que eu apenas participasse, sem compromisso
com resultados.

- Gael, eu estou encantado com esses subornos. E o que aconteceu?


Você participou, Matheus?

- Para casar-me com o amor da minha vida eu faria tudo. Participei,


concluí as duas e na de Reis ainda fui premiado. Agora, tenente, uma
pergunta para você: sabe de quem foi o mérito disso tudo?
45

- Sei. Dos dois, mas com destaque para o incentivo do dr. Ralf. Entendi
o que é reciprocidade.

- Amorzão, vamos seguindo a vida?

- Vamos sim, Matheus. Vá que eu sigo você.

- Por que você não vem comigo, Ralf?

- Porque você acabou de falar “vamos seguindo a vida”. E você é minha


vida, Matheus, meu gatão.

- Quem aguenta um marido tão maravilhoso como esse meu? Vamos,


vida minha.

- Dr. Gael, cuide bem da sua reciprocidade. Está-lhe fazendo tão bem...

- Obrigados, Ralf e Matheus. Preciso esmerar-me nesses cuidados.


Beijo grande!
...
- Gael, como você tem tantos pacientes incríveis assim?

- Todos eles vieram por indicação. A história do Ralf e do Matheus é de


superação obtida por meio do amor. E pensar que o Matheus poderia
ainda estar em uma cadeira de rodas por acreditar que era paraplégico.
Você não vai me falar da sua dor, Fernando?

- Ainda não, Gael. Isso que eu chamei de dor é algo que eu preciso
resolver sozinho, por mim mesmo. É um aprendizado que eu preciso
alcançar. Aprendi isso no seminário do qual participei.

- Pensei que estava relacionado com o fato de eu não lhe ter dado meu
número privado e você teve de subornar a dona Olímpia ou a dona
Lavínia.

- A dona Lavínia me deu o número porque sabia que você o daria de


qualquer jeito. Ela só antecipou as coisas, como ela mesma disse.

- Ah, é? Ela achava que eu lhe daria o número, então?

- Sim. E eu também acho que você me daria o número. Eu mandei uma


mensagem para você, lá da baixada, mas deletei.

- Eu vi. Pensei em algum xingamento deletado.


46

- Não. Era uma foto que fiz no hotel.

- Um nude?

- Era um nude.

- Fernando? Era um nude mesmo?

- Era. E estava bom, viu?

- E você não vai me dizer porque mudou de ideia e deletou a


mensagem.

- Deletei, porque achei um gesto infantil. Se já tivesse acontecido ao


vivo, seria diferente.

- Para mim, Fernando, você é precioso demais para ser desperdiçado.


Você é um homem de princípios.

- A dor que mencionei está relacionada exatamente a isso, Gael. Você


vai entender porque você também é um homem de princípios.

- Não sei se entendo, mas respeito a sua necessidade de resolver algo


dentro de você. Eu sei, Fernando, que, por ora, eu ajudo mais se não
atrapalhar.

- Gael, você é a pessoa na qual eu mais confio. Por seu intermédio eu


tenho visto um mundo novo. Esses três casais que eu conheci são
pessoas incríveis, com história incríveis que contagiam e encorajam.

- Eu os vejo exatamente assim, Fernando. Eles são minha inspiração


para um romance.

- Eu também gostaria de viver um romance assim, viu Gael?

- Mas você namora, Fernando. Seu namoro não mais lhe agrada?

- A dor tem sido maior, Gael. A dor tem sido mais forte.

- Entendo. Se você achar que precisa de mim saiba que estou disponível
para você. De verdade.
47

- Essa é uma das poucas certezas de que tenho, Gael. Obrigado por
tudo, meu querido.

- Vamos para casa, então, 2° Tenente Abatte?

- Nem vou dizer o que acaba de passar pela minha mente, dr. Gael.
Nem vou dizer.

8. Dr. Gael

Gael sentia-se feliz e resolveu aparecer na casa dos seus pais para fazer-lhes
companhia para o jantar. Contar com Gael para um almoço em um fim de
semana era contar com a sorte própria das loterias. Durante a semana isso
acontecia com alguma regularidade.

Gael nunca avisava antes porque não queria que sua mãe se esfalfasse na
cozinha por causa dele. Ele aparecia e comia daquilo que havia, como sempre
foi em sua casa. O que poderia acontecer era sua mãe ter de fritar um ovo a
mais e pronto. Assunto resolvido.

Se fosse visitar seus pais, chegaria antes do jantar para evitar que sua mãe
voltasse à cozinha e às panelas. Isso era possível quando um paciente ligava
para cancelar sua consulta, a última do dia. Não era comum, mas às vezes
acontecia e essas visitas convertiam-se em visitas aos pais.

A conversa entre Gael e Fernando foi longa, com muitas frases ditas, a maioria
sem sentido claro. Gael não responsabilizava Fernando porque ele mesmo,
Gael, não conseguia dizer exatamente o que percorria sua mente. Mas a
sensação que lhe ficara era de que tudo caminhava como devia.

Se havia desconforto para Gael, quanto de desconforto não haveria para o 2°


Tenente Abatte? Cada um necessitava de seu tempo para ruminar tudo o que
se passava. O resultado dessa ruminação? Um sim ou um não. E a esperança
de que houvesse reciprocidade.

Gael chegou à casa dos pais e conseguiu estacionar seu carro exatamente na
entrada. Ainda estava todo de branco o que o deixava com uma aparência bem
atraente. Gael era um homem atraente; se caminhasse por um shopping
certamente atrairia muito olhares cobiçosos.

Quando ele ia tocar a campainha, ouviu o pai abrindo a porta e chamando sua
esposa.
48

- Gael, meu filho! Ainda bem que você se lembra de que tem pai e mãe...

- Pai, que exagero. Falamo-nos ontem ao telefone. Olá, mãe! Como


vocês estão?

- Entre, filho. Eu estou finalizando o jantar para nós. Seu pai irá servir-lhe
um aperitivo.

- Ainda é daquela caninha artesanal de São Luiz do Paraitinga?

- Essa, filho, consumimos com juízo. Para o dia a dia bebemos da Velho
Barreiro.

- Filho, eu estou achando você mais bonito, sabe? Não vejo a hora de
você vir acompanhado de alguém.

Um moço lindo como você não pode ficar sozinho tanto tempo e só
pensar em trabalho.

- Mãe, o dia que eu passar por aquela porta com alguém, vocês saberão
que é para casar. Aventuras a gente não leva à casa dos pais.

- Concordo, filho. Você está certo. Veja sua prima: a cada mês aparece
com um namorado novo.

- Filho, o feijão acabou no almoço. Só vou cozinhar amanhã. Hoje


teremos coxa e sobrecoxa com batatas e salada de chuchu que fiz
ontem. Salada de chuchu feita de véspera é mais saborosa.

- Saudade de salada de chuchu, mãe. Até com cebola, apesar do bafo e


dos gases.

- Essa tem bastante cebola, mas eu acrescentei salsinha. Dizem que a


salsinha diminui esses efeitos todos. E o consultório, como está?

- Bombando, mãe. É assim que falam lá na padaria: bombando.


Principalmente aos sábados, domingos e feriados.

Eu reservo a segunda-feira para descansar e cuidar das minhas coisas,


mas uma das assistentes fica lá para cuidar da agenda e deixar as salas
em condições de uso.

- Filho, você teve muita sorte com essas duas irmãs. Duas senhoras, de
vida estável e que trabalham por gosto.
49

- Sem dúvida, pai. Elas amam o que fazem, são competentes,


atenciosas e prestativas. E vocês? O que têm feito? Como está aquele
curso para a terceira idade?

- Sua mãe vai duas tardes, às segundas e quartas e eu estou todos os


dias na oficina. Lá também está bombando, filho.

- E você está gostando do curso, mãe? Tem valido a pena?

- Eu gosto da maioria dos temas apresentados e da maioria dos


professores. Uma ou outra tem um nível de português sofrível,
especialmente as mais jovens.

A interação em sala e no intervalo é muito boa e o café sempre com


bolos, tortas, biscoitos que nós mesmas preparamos e levamos.

- Todas as segundas e quartas temos algum doce por aqui, filho.

- Aproveitem o último gole, pois já vou pôr as panelas sobre a mesa.


...
- Sabe, mãe, eu mesmo cozinho para mim, às segundas-feiras e eu
gosto do que preparo. Mas os seus pratos têm aquele gosto de comida
caseira, da infância.

Ainda bem que não venho sempre, senão ficaria uma jubarte.

- Filho, se você engordar dois ou três quilos continuará esbelto.

- O segredo é não comer por gula e comer o que chamam de “comida de


verdade”.

Eu tenho uma horta na minha área de serviços, mãe. Não é como a sua,
no quintal, mas tenho manjericão, orégano, tomilho, alecrim, sálvia e
pimenta malagueta.

- Pronto! Essas ervas com sal, alho e cebola, e o melhor tempero natural
está pronto.
...
- Obrigado pelo jantar delicioso e pela conversa. Assim que der, eu
retorno.

- Se vier com alguém, avise-me antes filho. Comida do dia a dia não se
serve para visita.
50

- Se eu vier com alguém, mãe, não será visita. Será da família. Se minha
irmã aparecer, deixem-lhe um beijo e outro para o cunhado.

- Está certo, filho. Eles devem aparecer no sábado ou no domingo. Fique


bem, viu!

- Filho, trabalhe menos e viva um pouco a vida.

- Pai, você já consegue pôr isso em prática?

- Estou tentando, filho.

- Eu também vou tentar, paizão. Tchau!

Gael dirigiu de volta para a sua casa. Ele gostava de encontrar-se com os pais,
mas não conseguiria mais morar com eles. O tempo havia passado. Nada
como poder refugiar-se no seu próprio lar e dedicar-se às suas coisas. A
imagem de Fernando apareceu-lhe e Gael sorriu.

9. 2° Tenente Abatte

Fernando era o único que ainda morava com os pais. Suas irmãs mais velhas
já moravam com seus companheiros e Fernando ensaiava sair de casa, mas
só pensava em sair se estivesse em um relacionamento sério.

Amanda achava que o relacionamento dela com Fernando era sólido e ele já
nem sabia mais o que pensar, exceto por uma palavra que ia e vinha:
reciprocidade. Nos últimos dias havia aprendido tanto sobre a importância
dessa palavra, de três fontes diferentes e convincentes.

Fernando tinha feito uma descoberta fundamental: em seu relacionamento não


havia reciprocidade. Tudo começou no fogo do desejo e, ao menos para ele,
tudo logo acabou. Mas o hábito de ficar junto estava formado. Hoje, nem
desejo ele sentia por Amanda.

- Nando, você não vai comer? O que está acontecendo?

Por um lado, acho você tão feliz e, ao mesmo tempo, sinto como se você
estivesse carregando um piano nas costas. Onde dói, filho?

- Sua descrição é perfeita, mãe. Sinto-me feliz, mas com um peso


imenso.
51

- Amanda esteve aqui mais cedo. Ela veio com o saca-rolhas, sabe? Eu
estou começando a desgostar dela, filho. O temperamento dela não
combina com o seu.

- Ela queria saber algo sobre mim? Foi isso?

- Eu penso que ela desconfia que você tem outra. Ela parecia uma loba
perdendo a posição de fêmea-alfa.

- Eu acho que já perdeu e faz algum tempo, mãe.

- E por que você não conversa com ela e vocês se acertam.

- Eu não quero mais esse namoro, mãe. Entre nós não existe
reciprocidade.

- Aleluia! Finalmente você percebeu isso. Na primeira semana eu disse


para você que entre vocês não havia afinidade. Mas eu quis mesmo era
dizer da falta de reciprocidade.

- Eu me lembro disso, mãe. Mas naquela época eu estava empolgado


com o corpo dela.

- Mas hoje seu olhar revela que você está empolgado também, mas
parece que há calmaria

- Mãe, você deve ter parte com feiticeiras. É incrível como você sabe me
interpretar.

- Filho, dos três, você é o mais transparente. Seus olhos contam tudo.

- E o que meus olhos lhe contam, mãe?

- Que você está encantado por alguém como nunca esteve antes em
sua vida. Não é só corpo; é coração. É verdadeiro e belo. Não deixe
passar essa oportunidade, filho.

- Eu estou me fortalecendo para isso, mãe, pois será uma batalha.

- Seja qual for, há verdade nisso e eu estarei do seu lado, filho.

- Obrigado, mãe.
52

Depois dessa conversa pesada, mas reconfortante que Fernando teve com sua
mãe, ele sentiu que precisaria dizer algo a alguém.

Se eu tivesse de nomear algo que me faz bem, eu precisaria de quatro


letras: a, e, g, l.

10. Marco Antonio e Rainer 5

Ainda bem que Marco lembrou-se de que hoje à tarde, neste sábado
acinzentado, ele e Rainer teriam consulta com o dr. Gael. A agenda de Rainer
dificilmente falharia. Marco era grato ao seu colega, o professor Renato, com
quem estabelecera uma ótima parceria.

Marco e Renato conheceram-se em um simpósio sobre Robótica e Redes e o


professor Renato convidou Marco para desenvolverem um projeto em que a
empresa onde Marco atua e a universidade onde Renato atua estabeleceriam
uma parceria.

A aproximação estreitou-se grandemente quando os dois descobriram que


estavam em relações homoafetivas e eram casados. Visitavam-se com alguma
regularidade e foi daí que veio a recomendação do dr. Gael que Marco e
Rainer amaram.

Marco havia estado com o dr. Gael por algumas vezes para tratar de um canal
infeccionado. Hoje iriam juntos, pela segunda vez e tinham a segunda metade
da tarde do sábado reservada. Gael certamente notaria como Marco parecer-
lhe-ia mais relaxado.

O casamento com Rainer foi melhor decisão de vida para os dois. Marco
sempre se lembrava de como um ingênuo envio de fotos suas para Rainer foi
ficando mais picante e revelando conteúdos comprometedores entre um
subordinado e seu chefe.

Marco recorda-se com clareza da força do desejo que aproximou os dois, da


primeira ida ao motel, do horror que sentiu quando notou que esquecera a
aliança no quarto do motel e de como precisou disfarçar para que sua esposa
não notasse.

5
Marco Antonio, especialista de TI e Redes, e Rainer, seu chefe na área de Redes, são os personagens
centrais do conto O dilema.
53

Marco via, agora, as cenas em que ele revelava tudo à sua esposa, depois ao
filho Arthur e mais tarde, à filha Guiomar. O problema não era só anunciar que
havia alguém em sua vida, mas anunciar que esse alguém era um homem.

E Rainer apresentou-lhe uma metáfora: Marco havia atingido o meio de uma


ponte. Se voltasse, retornaria ao seu casamento; se seguisse em frente, Rainer
esperava por ele. Que dilema! Marco desejava tanto estar com Rainer como
desejava seus vínculos familiares com os filhos amados.

Com os olhos marejados, Marco dá-se conta da incrível força do amor que o
uniu a Rainer.

- Boa tarde, dr. Gael. Quase fim de expediente de um sábado que


imagino, tenha sido intenso, e você me parece leve e energizado.

- Boa tarde, Rainer e Marco. Saudade de vocês! Vocês, sim, é que estão
com aparência ótima.

- Gael, o casamento só nos tem feito bem, na vida pessoal, na familiar,


na profissional.

- Eu imagino, Rainer. Os letreiros nos seus rostos informam exatamente


isso. Posso convidá-los para a cadeira elétrica?

- É para isso que viemos, Gael. Para sua inspeção criteriosa. Renato e
Eti nos contaram que estiveram aqui com você e que tomaram café com
um bombeiro muito simpático.

E pediram-lhe para você repassar as lembranças deles, Gael.

- É verdade. Foi uma feliz coincidência. Repassarei as lembranças, sim.


Eu gostaria de começar examinando o Marco e, na sequência, você
Rainer. Pode ser?

- Já estou me ajeitando aqui.


...
- As duas radiografias panorâmicas não mostram alterações.

O canal que tratamos da última vez também não apresenta alterações.


Então, as intervenções de hoje serão mais superficiais.

Marco, temos duas pequenas cáries par restaurar com resina, mas antes
farei uma profilaxia, uma limpeza completa, para ver se há mais alguma.
54

Para o Rainer, eu estou anotando no prontuário examinar um canal; não


há alterações, mas é melhor registrar essa preocupação.

De resto, Rainer, farei remoção de tártaro em três molares e a profilaxia.


Esse será o programa para esse fim de sábado.
...
- Já escureceu, mas conseguimos concluir tudo.

- Sábado é um bom dia para a limpeza. Nós fizemos a do nosso


apartamento hoje.

- Aqui estão os valores para o Marco e este, para o Rainer. Se pagarem


junto, dá para parcelar em três vezes.

- Sim, eu vou pagar tudo e vamos tomar um espresso, não?

- Certamente. Não nos encontramos todas as semanas.


...
- Que surpresa boa, Fernando! Faz muito tempo que você está
esperando?

- Boa tarde! Faz menos de 10min. Podemos conversar rapidinho, dr.


Gael?

- Claro. Este é o 2° Tenente Abatte. Este é Marco e este é Rainer, dois


especialistas em TI.

- Não é ele o tenente que conversou com Renato e Eti?

- Sim, sou eu mesmo. Espero que eles não tenham ficado chateados
comigo.

- Tenente, eles ficaram encantados com você. Pediram para que nós
transmitíssemos lembranças para você, via o dr. Gael. Nós fizemos isso
assim que chegamos hoje.

- É verdade, Fernando. Você foi descrito textualmente como “o bombeiro


muito simpático”.

- Ufa! Que bom.

- Rainer e Marco, por que você não descem e reservam uma mesa para
nós. Eu só vou examiná-lo rapidamente e desço.
55

- Tenente, venha junto, por favor!

- Obrigado! Irei, sim!


...
- Gael, gostei da sua resposta, mas você me deixou em dúvida. Você
fala em algo que lhe faz bem e que tem quatro letras também.

- Verdade, Fernando. Só quatro.

- Pensei em uma lista de palavras com quatro letras que podem fazer
bem. É para eu continuar com esse enigma?

- Se você quiser, sim.

- Mas eu posso arriscar?

- Vamos descer, senão ainda examino você aqui mesmo.


...
- Pedimos quatro espressos e uns pães de queijo para nós.

- Fiquei feliz por ter sido considerado um “bombeiro muito simpático”.

- E nossa opinião é a mesma, tenente. Você é muito simpático por conta


desse sorriso que mostra belos dentes bem cuidados por um belo
dentista.

- É verdade. O dr. Gael é tudo isso mesmo. E vocês também são


casados?

- Sim, tenente. Casados e muito felizes, mas enfrentamos boas barreiras


juntos.

- É mesmo? Vocês se importariam em falar um pouco sobre essas


barreiras?

- Nossa história daria uma novela, não é amor?

- Tenente, quando conheci o Marco, ele tinha uma família, era casado,
com um casal de filhos na casa do 20 anos.

Imagine contar para a esposa que surgiu alguém e que esse alguém é
um homem. E depois contar tudo aos filhos.

- Nem vou perguntar sobre como foi isso.


56

- Tenente, vou encurtar: os filhos do Marco são meus enteados e nós


vivemos abraçados em todos os lugares. Já houve pessoas achando
que eles eram meus filhos.

- Mas, e a esposa?

- Prepare-se, Tenente. Ela comprou meu apartamento e eu comprei a


parte dela na casa.

Pelo menos uma vez por semana estamos juntos, ela, as crianças
grandes e os agregados.

Ela continua com a chave de casa e vem e vai quando quer. E ela
renasceu com a separação.

- Não é possível. Isso está me parecendo ficção.

- Tenente, quem sabe um dia você não vê isso com seus próprios olhos.

- Acho que nem assim eu acreditaria. E tudo isso vem da força do amor.

- Exato, tenente. A família do Marco foi estruturada no amor e o nosso


amor não permitiu que isso se perdesse.

- Gael, isso não é reciprocidade?

- Bingo, tenente! Reciprocidade, nas quatro letrinhas da palavra amor, é


a palavra-chave.

- Obrigados pela aula sobre reciprocidade. Estou levitando, sabem?

- Tenente, aproveite a levitação que nós vamos seguindo. Vemo-nos em


breve. Abração!
...
- Gael, eu já ira falar uma bobagem.

- Pois fale. Agora eu quero saber.

- Eu ia perguntar se entre seus pacientes há casais normais.

- É só força de expressão. Sim, atendo os “casais normais” também,


mas não vêm juntos nem exalam isso que a gente tem visto nesses
últimos quatro cafés.
57

- Será que há mais casais parecidos com esses?

- Fernando, amanhã à tarde receberei um casal de jovens, na nossa


idade, com uma das mais lindas histórias de amor de que tomei
conhecimento. Virão no último horário também.

- Você acha que eu deveria aparecer para o café?

- Se você quiser chorar um pouco de emoção...

- Você viu que Rainer falou em quatro letras, lembra-se?

- Sim. Fiquei arrepiado.

- E ele nomeou a palavra, certo?

- Certo.

- E você não vai confirmar?

- Fernando, meu lindo, não estamos fazendo jogo de adivinhação.


Estamos tentando identificar algo em nós para declarar.

- Essa paulada eu mereço integralmente e em duplicata.

- Não foi paulada. Foi um carinho.

- Foi mesmo, por causa do “meu lindo”. Isso não foi só força de
expressão.

- Não foi força de expressão. Acho melhor irmos para casa, Fernando.

- Hoje eu irei mesmo para resolver algo importante.

- E você não vai me dizer o que é, certo Fernando?

- Certo. Você merece o melhor disso. Amanhã vejo você, meu lindo, aqui
mesmo.

- Esse seu “meu lindo” foi lindo. Obrigado por esse mimo.

- Eu é que estou obrigado a você, dr. Gael!


58

Dr. Gael foi para casa e, ao volante, sentiu vontade e cantar. “Quem canta,
seus males espanta” foi a frase que lhe veio à mente, mas não havia males a
espantar. Havia delícias por provar. Gael nem se lembrava mais da última vez
em que sentira algo semelhante.

Gael queria ter acesso a um desses botões que fazem o tempo avançar, como
aqueles que aumentam a velocidade em eletrodomésticos. Queria que fosse
fim da tarde do domingo em que veria Fernando novamente.

Fernando chegou à sua casa e encontrou Amanda exaltada. Ela parecia sentir
que Fernando lhe escorria por entre os dedos e tentou marcar sua posição com
firmeza de fêmea-alfa. Recuperaria seu macho reprodutor, custe o que
custasse.

- Fernando, nós precisamos conversar agora.

- Você tem razão, Amanda. Vamos para o meu quarto.

- Não, eu não quero ir para a cama com você. Nós precisamos


conversar.

- Sim e podemos conversar aqui também.

- Fernando, nós precisamos marcar a data do nosso casamento.

- Amanda, nós precisamos ter um tempo para nós.

- O quê? Eu venho para casar e você quer terminar?

- Amanda, quando nós começamos, havia fogo de desejo e esse fogo


acabou-se.

- Mas a gente se gosta.

- Gostar não é suficiente para se casar. Nós não nos amamos; nós
estamos habituados a ficar juntos, só isso.

- Mas a gente pode tentar reconstruir nosso amor.

- Amanda, relacionamento não se reforma como se fosse uma casa. Se


nós nos casarmos em seis meses, em outros seis estaremos separados.

- Mas, afinal, o que você acha que falta na nossa relação?


59

- Falta reciprocidade, Amanda. Reciprocidade é tudo.

- Então, você não sente mais nada por mim. É isso?

- Não sinto o suficiente para nos casarmos e nem para continuarmos


como namorados. E você sente-se assim também. Nesse quesito há
reciprocidade.

- Então, você está terminando comigo. É isso?

- Eu estou terminando o que nunca deveria ter começado: nosso


relacionamento.

- Eu não vou perder a minha noite de sábado ficando aqui, me


humilhando para ficar com quem não me merece. Eu vou para a vida e
amanhã espero estar acompanhada.

- Vá, sim, Amanda. Cuide-se bem!


...
- Aleluia! Esse estrupício não volta mais! Filho, eu achei tão lindo como
você estava calmo; sua voz não se alterou. Você só pode estar amando.
Essa palavra soa mal no feminino.

- Que palavra, mãe?

- Amando. No feminino, soa horrível. Agora, filhote, você está livre para
o seu amor.

- Mãe, você não existe. Por que você acha que eu estou amando?

- Pela sua paz. Pela segurança da sua voz. Pela suavidade de cada
gesto seu. Coração de mãe não se engana, filhão.

- Mãe, suas palavras são de romantismo.

- Contágio, filho.

Fernando pensou que o caso Amanda lhe foi muito mais simples do que
imaginara. Ela entrou com casamento na bandeja e saiu sem namorado. Foi a
melhor decisão para os dois. Antes do banho precisaria escrever para alguém.

Dr. Gael, acabo de resolver satisfatoriamente minha lição. Agora, preciso


ter forças para esperar até o fim da tarde de amanhã.
Abraço saudoso do seu Fernando.
60

2° Tenente Abatte, mensagem recebida, mas não integralmente


entendida. Se a solução foi satisfatória, eu também fico satisfeito. Eu
também busco forças para essa espera pelo entardecer do domingo.
Segue abração saudoso do seu Gael.

Ao ler a mensagem, dr. Gael notou o “seu Fernando” e exultou. Ao ler a


resposta, o 2° Tenente Abatte notou o “seu Gael” e regozijou-se. O início da
sincronia havia sido estabelecido.

11. Rico e Jô 6

Rico e Jô acordaram cedo, como de costume, apesar de ser domingo. Tinham


tido uma linda noite de amor, completa, sem interrupções de algum choro.
Luma dormia como um anjo no quarto ao lado e Bela dormia no sofá da sala.

Bela chegou pouco depois de Luma, mas era alguns meses mais velha. As
duas cresceriam juntas por um bom tempo, antes de Bela tornar-se uma
senhora idosa. Hoje, as duas já eram inseparáveis. Rico e Jô colocavam Luma
no tapete da sala e Bela fazia-lhe companhia.

Jô ria quando ouvia Luma gargalhando e Bela latindo de felicidade. A primeira


palavra de Luma foi “pa” de papai, e a segunda, ”be”, de Bela. Nem “papai”
saia, mas “be”, sim. Rico ficava um bom tempo abraçado a Jô e contemplando
as duas divertindo-se.

Enquanto um preparava o café da manhã e a mamadeira, o outro trocava a


fralda de Luma e repetiria a operação após a mamada. Luma funcionava como
um relógio: se havia entrada, logo viria a saída. E Vitor, filho das irmãs Júlia e
Rúbia, funcionava com a mesma regularidade.

As avós estavam insuportáveis com o casal de netos. Cada uma queria


estragá-los mais do que a outra, o que as uniu a ponto de se tornarem amigas
inseparáveis. Jô comentara com Rico que não estranharia se as duas mães
estivessem tendo um caso.

Hoje, o programa dos dois adultos seriam passear de manhã pelo parque com
Luma e Bela, fazer um gostoso almoço a quatro mãos, descansar um pouco e
ir ao consultório do dr. Gael, por quem tinham estima e consideração.

6
Ricardo, ou Rico, é engenheiro florestal e Jonas, ou Jô, é advogado. Os dois são casados e são os
protagonistas do conto O acidente.
61

Pouco tempo depois do acidente de Jô, ele sentiu que precisaria de uma
avaliação odontológica. O impacto havia produzido algumas lesões na boca, já
cicatrizadas, mas Jô achava mais prudente que houvesse uma avaliação.

Rico já era paciente do dr. Gael por indicação do seu pai, Piero. Quando
Rafael, em meio a negócios de assessoria financeira, comentou sobre a
comodidade de horários que um tal dr. Gael oferecia, Piero interessou-se e
tratou de levar sua esposa Mathilde numa manhã de domingo.

Dr. Gael atendia toda a família: Piero, Mathilde, Rico e Rúbia. Algum tempo
depois, passou a atender os agregados: Jô, o marido de Rico, e Júlia, a esposa
de Rúbia. E os pais de Jô: Luciana e Adolfo. E sempre os atendia nesses
horários inusuais, em finais de semana ou feriados.

Jô estava na cozinha entretido com a preparação do café da manhã e da


mamadeira. Dr. Gael o conhecera pouco depois do acidente, quando já
namorava Rico que foi quem o levou até o consultório. Depois disso, os dois
retornaram alguns dias antes de buscarem Luma no fórum.

Hoje a levariam ao consultório. Eles só frequentavam locais em que pudessem


levar Luma; restaurantes, só os pet friendly em que Bela pudesse estar
presente. Bela não era um cachorro; Bela era membro da família, irmã canina
um pouco mais velha de Luma.

Jô, até hoje, não conseguia entender como for socorrido por aquele perfeito
estranho que o acompanhou ao hospital, avisou seus pais, ficou com ele no
quarto e, na alta, levou-o para sua casa e cuidou dele como nenhum
profissional o faria.

Jô teve alta e foi para casa desse perfeito estranho portando um colar cervical
e uma cinta de gesso no tórax e a recomendação de não mexer os braços para
coisa alguma, até o retorno.

Esse perfeito estranho deu-lhe banho, enxugou-o, secou-o como secador para
evitar a proliferação de fungos na cinta de gesso. Vestiu-o com seu roupão por
cima do corpo e com os braços esticados para baixo, para que não fossem
espontaneamente movimentados.

Jô, já com lágrimas no olhos, lembrou-se da primeira refeição que o estranho


lhes preparara: parafuso com molho de gorgonzola. Era seu aniversário; foi o
melhor que já tinha tido em sua vida. Jô foi alimentado na boca, porção por
porção e bebia com o auxílio de um canudinho.
62

Uma colherada de parafusos o estranho levava cuidadosamente à boca de Jô


e a outra, o estranho consumia. Jô sempre em primeiro lugar. Depois do
almoço, o constrangimento: Jô precisou fazer cocô. O estranho ajudou-o a
sentar-se, deixou-o a sós e voltou para a descarga.

O estranho pôs Jô no box e deu-lhe banho com chuveirinho e lavou as partes


íntimas com o zelo de quem cuida do bem maior. E Jô viu como era amado
pelo estranho e como o amava. E como sentiu-se fortalecido por esse amor
para confessar tudo à sua família.

Jô lembra-se do confronto público com sua mãe, quando ela lhe perguntou
como ele tinha certeza de que o tal estranho era o homem de sua vida. Jô
apenas respondeu: ele me acolheu, me alimentou na boca, beijou meus
cabelos e lavou-me dos excrementos. Isso é amor!

Esse perfeito estranho tornou-se seu namorado. Com ele, foram a uma
expedição em uma fazenda no interior onde escolheram ficar em um quarto
com uma cama. Jô lembra-se da reação do gerente e de como tudo aquilo foi
libertador: o gerente declarou-se para seu parceiro.

Depois, veio a inscrição para a adoção, o casamento, a chegada de Luma e a


chegada de Bela. Jô lembra-se da surpresa que preparara para o amor da sua
vida, em seu aniversário: um carro novo de que ele tanto precisava.

E Jô, inundado em lágrimas, finalizando o café e a mamadeira, vê Rico chegar


com Luma no colo e Bela ao lado. Rico abraça seu amor e comprime-o junto a
si e Luma. Ela sorri, feliz, porque sorri feliz para tudo. Rico beija os cabelos dos
amores da sua vida.

Sentam-se e Luma recebe sua mamadeira. Os dois tomam café com leite e
torradas quentinhas com manteiga e geleia e Bela ganha sua porção. Jô conta-
lhe que chorava de emoção e de amor; a visita ao dr. Gael abrira-lhe o baú
com as mais importantes recordações.

Enquanto Rico cuidava da cozinha, o papai Jô foi cuidar da limpeza de Luma,


sob o olhar atento de Bela. Parecia que uma havia cochichado para a outra que
sairiam para passear e ver os papais mais lindos do mundo andando de mãos
dadas.

Na volta do passeio, mais uma refeição e um soninho e um passeio sem Bela,


excepcionalmente. Do consultório, passariam em casa para pega Bela e
seguiriam para visitar os avós e o priminho Vitor que já se encantava com Bela
também.
63

- Boa tarde, dr. Gael! Hoje, a família veio quase completa.

- Bem-vindos, Rico e Jô. E essa lindeza aqui?

- Esta é a Luma, nossa filha. Luma, dê um sorriso daqueles bem lindos


para esse tio lindo.

- Luma, venha aqui no colo do seu tio. Mas você tem o sorriso mais
lindo, como seus papais.

- É o que eu digo ao Rico, dr. Gael. Ela tem o sorriso lindo dele.

- Jô, meu lindo, o sorrio dela é lindo porque é exatamente igual ao seu.

- Pronto. Está empatado. Mas, e a parte faltante da família? Que é e


onde está?

- É a Bela, dr. Gael. Aqui ela até entraria, mas na padaria, para o nosso
espresso, não iram deixar.

- A Bela é a irmã quadrúpede da Luma, é isso?

- Exato. As duas não se largam. Rico e eu ficamos escondidos só para


ouvir as risadas da Luma e os latidinhos da Bela quando brincam.

- Vocês sabem que eu já pensei várias vezes em ter um cãozinho e ir


com ele para lá e para cá? Em casa tenho plantas e uma horta, mas
falta um cãozinho. Entrem, por favor.

- Você me parece muito bem, dr. Gael. Nem aparência de cansado tem
e imagino que nós sejamos seus últimos pacientes de hoje, um domingo.

- Eu estou bem, sim. Nem me sinto cansado. Acho que o cansaço vem à
noite, em casa.

Hoje eu vou começar com radiografias panorâmicas dos dois e, na


sequência, definir os que precisará ser feito. Temos alguma queixa
específica ou é só mesmo a verificação periódica?

- Sem queixas, dr. Gael. Aparentemente, tudo em ordem nas nossas


bocas.

- Que bom. Vocês estão cada vez mais lindos, os dois. E essa felicidade
que vocês esparzem?
64

- Alguns dias depois da chegada da Luma, veio o nosso sobrinho Vitor,


filho das nossas irmãs que estão juntas, casadas e felizes como nós.

- Que maravilha, Rico! Os irmãos casaram-se e as irmãs, também.

- Pois é. Na lua de mel foi muito divertido, pois todos pensavam que
éramos dois casais convencionais. Nós ríamos o tempo todo com as
reações das pessoas.

- Imagino. Que casamentos estranhos, em que os homens ficam juntos e


as mulheres também...
...
- Rico e Jô, as radiografias panorâmicas não apresentam ponto algum
de alteração.

As intervenções que realizei com o Jô, logo após o acidente, estão


perfeitas. Então, os dois estão livres de tratamento de canal.

Eu acho que tanto você, Rico, como você, Jô, podem ter duas cáries;
vamos fazer uma profilaxia completa, isto é, limpeza, para eu me
certificar se são mesmo cáries.

Se forem, faremos a restauração. Não vi sinais de tártaro, mas vamos


aguardar o resultado da profilaxia.
...
- Não identifiquei presença de tártaro, mas cada um de vocês tem uma
cárie bem no início. Eu gostaria de restaurá-las hoje mesmo com resina,
embora pudéssemos esperar uns seis meses. O que vocês preferem?

- Vamos fazer hoje, não, amor?

- Sim. Eu gosto do “não deixe para amanhã, se pode fazer hoje”.

- Eu também sou assim, sabe. Então, vamos lá, enquanto Luma ainda
consegue observar tudo. Rico, sinta-se à vontade para andar com ela
pelo conjunto e mostrar-lhe tudo.

- Obrigado, Gael.
...
- Pronto. A revisão periódica foi satisfatoriamente cumprida. Próximo
retorno, em 12 meses. Aqui estão os valores para Rico e para Jô. Se
pagarem tudo junto, posso parcelar em três vezes.
65

- Eu pago tudo, dr. Gael.

- Será que conseguimos tomar um espresso?

- Sem dúvida, dr. Gael. Nossas consultas sempre se encerram com um


espresso.

Daqui passamos em casa para pegar a Bela e vamos para a casa dos
pais do Rico, onde os meus também estão. Eles não se largam mais. E
nossas irmãs já devem estar lá com o Vitor.
...
- Fernando! Que bom que você veio. Este é Rico, engenheiro, este é Jô,
advogado e esta é Luma, futura dentista. Este é o 2° Tenente Abatte, ou
Fernando.

Eu só vou olhá-lo rapidamente. Vocês não querem descer e reservar


uma mesa para nós?

- Vamos, sim, Dr. Gael. Você viu, Luma, o tio Gael disse que você vai
ser dentista.
...
- Fernando, eu estou tão feliz por você estar aqui.

- É, Gael, eu estou vendo nos seus olhos. Você nem imagina como eu
estou feliz. Vamos descer, antes que eu faça uma bobagem.
...
- Tenente, a Luma gostou de você.

- Será que eu poderia pegá-la no colo?

- Claro, tenente. Bombeiros são ótimos socorristas. E ela vai mesmo,


essa sapeca. E vai rindo.

- Eu acho que ela tem traços de vocês dois. Olhos, nariz, boca,
bochechas... está bem dividido.

- E vocês também são casados, não?

- Sim, tenente. E recebemos a benção de um reverendo anglicano.


Depois veio a Luma e alguns dias depois, a Bela, nossa cachorrinha que
se tornou a melhor companheira da Luma.

- E pelos sorrisos de vocês, pela felicidade que transborda dos olhos de


vocês eu fico emocionado. E o Gael também, com toda a certeza.
66

- Tenente, hoje pela manhã o Rico trocava a Luma e eu preparava nosso


café e a mamadeira dela.

Quando ele chega, ele me pega chorando. Eu estava chorando de


alegria pelo melhor homem do mundo, pela nossa filha, pela nossa
cachorrinha e pela nossa família.

E isso começou porque pensei na nossa consulta e no estado em que o


dr. Gael me examinou naquela época.

- Eu me lembro que foi logo depois do acidente, Jô, mas vocês dois já
emanavam felicidade.

- Foi em um acidente que vocês se conheceram?

- Sim, tenente. Eu provoquei o acidente pedalando em uma avenida


quando vi um homem que literalmente virou minha cabeça. Para não o
atropelar, joguei a bicicleta contra um vaso de concreto e acordei na
cama de um hospital.

- Nem vou tentar adivinhar quem era esse homem...

- Tenente, esse estranho foi até o hospital, ficou lá, do meu lado até eu
ter alta e ele me levar para casa. A casa dele. Eu estava imobilizado.

Esse estranho punha comida na minha boca, deu-me banho e lavava-


me depois que eu fazia as minhas necessidades, sem sentir nojo.

Esse estranho logo se tornou o homem da minha vida, tenente. E foi


com ele que eu tive o privilégio de me casar e ter uma filha.

- Jô, você não tem ideia de como esse seu depoimento é importante
para mim. Não tem ideia...

- Tenente, quando eu dava banho no Jô, eu ficava sem roupa também. E


aí veio a grande descoberta para mim: eu lavava aquele corpo que me
enchia de desejo, mas não podíamos fazer coisa alguma. Ele ainda não
se podia mexer direito.

Eu só conseguia beijar-lhe os cabelos, consumido de desejo, mas


naquele corpo habitava um homem que já era o grande amor da minha
vida.
67

- E como foi contar tudo para as famílias de vocês?

- Tenente, eu tinha todas as certezas sobre o que sentia, mas foi o amor
do Rico por mim que me deu a coragem para agir. Minha coragem se
manifestou pelo amor dele por mim.

- Jô e Rico, vocês acabam de me destravar.

- Que bom, tenente, sobretudo se for para o bem?

- Gael, você aceita ser meu namorado?

- Uh, tenente! Que gesto mais lindo esse seu?

- Fernando, você quer me matar do coração. Claro que aceito ser seu
namorado.

- Luma, você acaba de presenciar um pedido de namoro que vai


terminar em casamento. Amor, vamos para a casa dos nossos pais para
que esses dois lindos possam namorar. Beijos para vocês.

- Obrigados por tudo, meus dois lindos, Rico e Jô.

Rico e Jô deixaram a padaria amplamente recompensados. Os dois tinham


grande carinho pelo dr. Gael e sentiram, no pedido do tenente, uma verdade
espontânea. Eles sentiam-se como que imantados por aqueles eflúvios
amorosos.

Rico comentou com Jô que os dois eram casamenteiros: suas irmãs, Rúbia e
Júlia, conheceram-se no apartamento de Rico, pouco depois de assumirem o
namoro. As duas casaram-se e vivem nas nuvens de felicidade, agora com o
pequeno Vitor.

Na fazenda Vila Rica, onde Rico fora realizar um trabalho acompanhado de Jô,
conheceram o gerente Walmor, o Wal, que foi seduzido pela espontaneidade
dos dois e revelou-lhes o seu amor secreto, o Antônio, Tom, seu braço direito.
Os dois também se casaram e estão felizes.

Agora, os dois têm o privilégio de presenciar o 2° Tenente Abatte pedir o dr.


Gael em namoro e ver como Luma sorriu e ergueu seus bracinhos. De certo,
Fernando e Gael casar-se-ão e Rico e Jô, com Luma e Bela, quem sabe,
estarão lá para festejar.
68

Agora, resgatariam Bela e ririam das duas avós babando como crianças com o
casal de netos. Mas o que fascinava a todos era ver como Luma e Vitor,
sentados no gramado, gargalhavam com as brincadeiras da Bela.

Depois de alguma farra, já foram filmados dormindo, recostados sobre Bela.


Nos encontros familiares, Bela jamais faltaria.

12. Fernando e Gael

Gael punha a mão sobre o rosto para disfarçar sua emoção. Ele estava todo de
branco, sentado ao lado de um tenente também fardado. Dois homens
atraentes que chamavam a atenção de qualquer um. Os dois mal haviam
acabado seus turnos de trabalho.

Como Rico e Jô haviam saído meio que às pressas, ficou a impressão, entre os
atendentes, de que algo desagradável havia acontecido. Gael, freguês de
longa data, era amado por todos na padaria. Além de muito bonito, era
simpático e sorria com espontaneidade.

O tenente e Gael conversavam como que em cochichos o que acentuava a


impressão de que algo estava errado. Mal sabiam que tudo estava
maravilhosamente certo...

- Gael, com você eu perdi dois sisos e ganhei meu juízo. Eu estou livre
para amar você, como um homem ama seu companheiro.

- Fernando, eu ainda não estou acreditando que o homem da minha vida


quer me namorar. Se bem que eu havia decidido que hoje eu me
declararia a você, pois eu andava feliz, mas angustiado. Eu não estava
sendo eu mesmo e eis que você me aparece e faz tudo...

- A partir de hoje eu sou o seu homem, o homem da sua vida, e você é o


amor da minha vida. Nós temos muito para conversar e muito para
comemorar.

- Eu acho que alguém colocou alguma droga alucinógena neste café. O


homem mais lindo do mundo está me pedindo em namoro? O melhor
homem do mundo me ama? Não é possível!

- Gael, eu não sinto só uma atração imensa por você; eu sinto amor por
você. Levei esses dias todos, não para saber que amava você. Isso eu
já sabia e não tinha mais dúvidas.
69

Eu levei esses dias todos para ter coragem de olhar nos seus olhos e
dizer que quero você na minha vida.

- Eu preciso de mais um espresso. Janice, por favor!

- Dr. Gael, tudo bem com você? E com você, tenente? Vocês estão
passando bem?

- Janice, você nem imagina como estamos bem. Dois espressos e um


pedaço daquele bolo de maçãs.

- É pra já. Se não tiver do de maçãs, vou trazer dois pedaços do de


cenoura.

- Jô tem uma irmã e Rico também. As duas casaram-se e tem um filho


de nome Vitor, priminho da Luma. É mais uma manifestação do amor.

- Gael, meu lindo, seus olhos estão avermelhados. É o efeito dessa


droga chamada amor.

- Fernando, eu estou apenas feliz. Como o Jô contou, chorando de tanta


felicidade. Felicidade porque vejo claramente a presença da
reciprocidade.

- É isso, Gaelzinho. No nosso amor há reciprocidade. Nesses casais que


conheci aqui mesmo, nesta padaria, havia amor e esse amor é
recíproco. A reciprocidade é tudo.

- Fernando, eu queria abraçar e beijar você e sentir você todo em mim.

- Isso é exatamente o que eu quero e isso vai acontecer hoje, se você


me convidar para ir à sua casa. Mas eu preciso aprender muita coisa; eu
nunca amei um homem antes. Você vai precisar ter paciência e me
ajudar.

- Fernando, você, inteligente como é, deve ter pensado nas


consequências disso tudo, não?

- Claro, Gaelzinho. O primeiro pontapé ocorreu ontem à noite quando


encontrei Amanda em casa. Ela veio para me dizer que queria que nos
casássemos. Eu a convenci de que não havia mais desejo, nem amor e
muito menos nossa palavra-chave: reciprocidade.

- Você acha que ela ficou muito abalada, Fernando?


70

- Não. Nem sequer chorou e disse que iria se divertir na balada. Minha
mãe sabe de nós e me apoia.

- O que significa esse “sabe de nós”, Fernando? Ela sabe que você tem
um caso com um homem?

- Gaelzinho, meu lindo, eu não tenho caso com ninguém. Eu amo um


homem e esse homem é você. Voltando, ela ainda não sabe que se trata
de um homem, mas ela me vê amando e sendo amado.

- E quem serão as próximas pessoas às quais você revelará sobre nós?

- Serão as suas duas assistentes, Olímpia e Lavínia, que desde o início


me incentivaram. Elas sabiam que você me amava.

- Elas sabiam, é? Por isso você soube dos horários dos casais e
recebeu meu número. Amanhã mesmo vou conversar com elas.

- Gaelzinho, meu lindo, veja lá o que você vai fazer. Eu devo muito a
elas.

- Sim eu já percebi. Amanhã eu vou agradecer-lhes pelo empurrão.


Agradecer entusiasticamente.

- Gaelzinho, eu queria abraçar você por trás e passar a língua na sua


nuca, bem devagar, até eu sentir que você está todo derretido por mim,
pelo seu Nando.

- Meu Nando e seu Gaelzinho. Nós formamos uma linda dupla.

- Você não respondeu se vai me convidar para ir à sua casa. Eu não


queria ter de levar você para um motel.

- Eu acho que se você for para o meu lar não vai mais querer sair de lá.

- Eu não quero sair de você, meu lindo. Mas continuo sem resposta.

- Nando, gatão, você tem todas as respostas. Você já me conhece tão


bem. Você se lembra quando perguntou a J sobre ativo/passivo e sobre
quem era o homem do casal?

- Sim. E você quer saber se entre nós isso está bem definido, certo?
71

- Sim, eu já havia fornecido algumas pistas, mas essa é uma questão


delicada e que, se não for bem conversada, resulta em confusão.

- O homem da sua vida, Gaelzinho, é bombeiro e onde houver incêndio,


ele aparecerá com a mangueira e saberá usá-la até debelar as chamas.
E este bombeiro será carinhoso e cuidadoso.

- Nando, você é o melhor homem do mundo. Eu me sinto honrado por


ter você comigo.

- E eu me sinto um privilegiado por ter um homem de caráter e ainda tão


lindo e gostoso como você.

- E o que vamos fazer agora?

- Amor. Assim que eu conseguir me levantar daqui sem escandalizar a


plateia.

- Vamos voltar a mangueira ao carretel.

Homens tinham esse problema: quando ficavam excitados chamavam a


atenção, principalmente se estivessem fardados, se fossem exuberantes e
ainda por cima, protuberantes. Mas a calmaria veio e os dois puderam levantar-
se sem causar assombros.

13. A primeira noite

Amanhã, Gael não iria ao consultório, exceto se houvesse uma emergência.


Ele sugeriu que Nando levasse seu carro da corporação até sua casa,
apanhasse uma muda de roupas e fosse com ele para seu apartamento.
Amanhã, Gael o traria logo cedo ao trabalho, já fardado.

Gael seguiu-o de carro até sua casa e aguardou-o por uns instantes do outro
lado da rua, para não levantar suspeitas. Como Nando demorava, Gael achou
que ele decidira tomar um banho e colocar roupa civil. Mas Nando aparece
fardado, com uma sacola e entra no carro de Gael.

- Perdão, amor. Demorei porque disse para minha mãe que passaria a
noite com meu amor.

- E ela não quis saber nada a mais? Quem é esse “novo amor”?
72

- Ela me viu feliz; transbordando, como ela mesma falou. Ela quer me
ver feliz. Vamos ao meu novo lar?

- Espero que você se sinta mesmo em seu novo lar. Eu farei o possível
para que você se sinta acolhido. Você está com fome?

- Sim, e muita. Fome do meu amor. A meia fatia de bolo é suficiente. Eu


só não abraço e beijo você agora, porque seria um ato inseguro e uma
condição insegura.

- Lembro-me disso, ato inseguro e condição insegura, dos treinamentos.


Com você, sinto proteção e segurança.

- Como seu homem, é meu dever garantir-lhe proteção e segurança.

Gael chegou ao seu condomínio, estacionou o carro em sua vaga e os dois


subiram até o apartamento. Nando quase esqueceu-se de retirar a sacola de
roupas.

Assim que entraram e fecharam a porta da cozinha, Nando abraçou Gael,


apertou-o com força contra si e repetia que aquela era a melhor sensação que
tinha em meses.

Gael acariciava-lhe os fartos cabelos pretos e beijava-lhe a pontinha da orelha


esquerda. O tempo pertencia aos dois; não havia pressa alguma para coisa
alguma, exceto sentirem-se, acariciarem-se e desfrutarem desse primeiro
momento de magia na vida conjunta.

Gael dispôs duas toalhas para Nando no banheiro do corredor. Enquanto


Nando tomasse seu banho, ele descongelaria uma sopa creme de beterrabas e
prepararia croutons na manteiga. Havia peras portuguesas como sobremesa.

Gael tinha meia garrafa de vinho branco na geladeira. O vinho seria para o
brinde. Assim que Nando chegasse do banho, ele cuidaria dos croutons,
enquanto Gael tomaria seu banho restaurador e celebraria o início de uma
nova vida.

Os dois não estavam com fome; os pães de queijo e a fatia de bolo tinham sido
suficientes, mas uma sopa cremosa e delicada certamente far-lhes-ia bem. A
noite estava fresquinha para sopa.

Nando aparece na cozinha vestindo bermuda e camiseta. Se seu corpo era


atlético ao aparecer com sua farda de tenente, com bermuda e camiseta suas
73

pernas, fortes e peludas, seus braços igualmente fortes e peludos tornavam-no


absolutamente irresistível.

Gael observava Nando parado à porta da cozinha e contemplava aquele


homem todo proporcional que portava o sorriso mais envolvente que havia
visto em sua vida. Nando abriu seus braços para envelopá-lo, beijá-lo e
assegurar-lhe de que seria o seu homem protetor.

Relutante, Gael seguiu para o banho e deixou os croutons sob


responsabilidade do tenente.

Gael ainda não se havia convencido de que essa experiência estava


ocorrendo; não era alucinação. Nando não era apenas um corpo absurdamente
másculo; era um homem carinhoso e amoroso.

- Nando, eu descongelei uma sopa cremosa de beterrabas, com


pedacinhos de linguiça e esses croutons para acompanhar.

Temos um pouco de vinho para nosso brinde e peras portuguesas. Se


você achar pouco, eu peço uma pizza para nós.

- Gaelzinho, será meu primeiro banquete com você, meu namorado,


meu lindo, meu companheiro de vida.

- Nando, eu estou preocupado com o que ocorrerá depois. Eu tenho


medo de desapontá-lo, sabe?

As experiências que eu tive nunca foram com um homem como você. E


você também não tem experiência íntima com homens...

- Gaelzinho, nós aprenderemos juntos. Nossos papéis estão definidos e


isso é o que importa. Vamos brindar às lições que aprendemos dos mais
experientes e brindar a nós e ao nosso amor.

Esse equilíbrio era importante: Gael preocupava-se e Fernando tratava de


despreocupá-lo e esse movimento permitiu que os dois tivessem um jantar
simples e acolhedor. Fernando mostrava-se um homem descomplicado, prático
e de ação. Ele assumiu seu papel masculino.

Depois de arrumarem a cozinha e deixarem tudo ajeitado para o café da


manhã, foram responder mensagens e verificar suas agendas de
compromissos e atividades para a segunda-feira. Gael tinha uma agenda cheia
de atividades domésticas e Fernando, alguns laudos para finalizar.
74

Fernando chamou Gael para namorarem no sofá da sala e Gael pôde sentir
como seu namorado era beijoqueiro. Logo, viram-se incomodados pelo
excesso de roupas e os dois ficarem em êxtase ao contemplarem o corpo nu
do seu parceiro.

Um estava absurdamente faminto pelo outro, mas cada um era uma iguaria
refinada para seu parceiro que deveria ser saboreada lenta e gradativamente
para sentir cada aroma, cada crocância, os contrastes, os sucos e seivas, e
deixar-se inebriar pelo elixir de vida e amor.

Os corpos foram criteriosamente escrutinizados, cada saliência e reentrância


notada, estimulada e sorvida. Ao longo dessa trajetória de descobertas, o
nervosismo, o desajeitamento, os medos, as vergonhas foram sendo
dissipadas como fumaça ao vento.

A constatação de que o prazer de um desencadearia o prazer do outro surgiu e


foi sendo explorada com maestria por Fernando e recebendo pronta resposta
da parte de seu parceiro. Essa exploração provocava arrepios sucessivos em
Gael que levavam Fernando ao delírio.

O receio de decepcionar cedera lugar à entrega total; Gael, no seu melhor, era
para seu melhor, seu Fernando. E quando não conseguiram mais segurar-se,
explodiram em êxtase e exaustão. De onde retirariam energia física para
enfrentar as tantas tarefas de logo mais?

Gael foi o primeiro a acordar com o som suave do ronco do seu amado. Ali,
bem juntinho, estava Fernando, seu Nando, para quem Gael não encontrava
mais palavras: restava-lhe contemplá-lo em silêncio e ver como todos os seus
medos, inseguranças, dúvidas, como tudo se desfazia.

E Gael lembrou-se do desejo quase incontrolável que teve, de inclinar-se e


beijar a boca de Fernando antes de anestesiá-lo para a primeira extração. Na
segunda, então, Gael sentiu-se ainda mais duramente provocado por aquele
homem fardado.

Mas naqueles dois momentos, tudo era desejo, lascívia; era furor que beirava o
desespero. Depois, nas conversas, no tom de voz, nos olhares, o desejo
recebeu a companhia de um sentimento de paz, de bem-estar, de serenidade.
O amor havia chegado e batido à sua porta.

E Gael foi percebendo, pouco a pouco, o surgimento da reciprocidade. E Gael


perguntava-se qual a influência que as conversas com P e J, com Étienne e
Renato, com Ralf e Matheus, com Marco Antonio e Rainer, e com Rico e Jô
tiveram para que eles dois manifestassem coragem?
75

Fernando virou-se e acordou e recebeu um beijo de bom-dia na testa, de Gael.


Fernando acordou e sorriu para seu amor. Aquele sorriso valia tesouros porque
provinha do seu bem mais valioso.

- Bom dia, meu suave Nando. Você dormiu bem nessa cama nova para
você?

- Amor, eu dormi como um anjo e estou restaurado. Com todas as


energias vitais pulsando.

- Nando, obrigado por essa noite. Foi a mais maravilhosa de toda a


minha vida.

- Gaelzinho, eu estou com vontade de sair dançando pela rua e entregar


uma flor de felicidade para cada morador.

- Oh, meu poeta! Aqui em casa você produziu um buquê. Como eu amei
ser cuidado por você, Nando!

- Como eu amei sentir que você me amava como nunca fui amado
antes. E era isso mesmo que eu queria e quero: cuidar de você. Cuidar
do amor da minha vida.

Eu sentia tanta falta de poder cuidar de alguém como consegui fazer


ontem e farei sempre, daqui para a frente.

- É melhor eu preparar o nosso café porque estou cheio de intenções de


fazer você atrasar-se...

Como o jantar fora magro e houve grande dispêndio de energia à noite,


Fernando precisaria de um café da manhã substancioso: ovos estrelados com
bacon em fatias e pão aquecido para limpar os pratos. E, claro, espresso com
leite bem quente.

Gael tinha um iogurte na geladeira que separou para Nando. E um papaia que
seria dividido. Gael cuidaria de Nando que cuidaria de Gael. E não é que
Nando cantarolava no chuveiro?

- Gaelzinho, que banquete é esse? Adoro ovos fritos com bacon. E


iogurte. E papaia. Hotel Gael, seu cinco estrelas!

- O jantar foi pensado para mim que ficarei em casa, mas não para você
que irá trabalhar, sem falar do gasto de energia do turno da noite.
76

- Que noite esplendorosa. A melhor, Gaelzinho! De longe, a melhor da


minha vida.

- Nem me fale. Eu levo você à corporação e vou ao consultório no final


da tarde. Se você puder, tomamos um espresso e conversamos sobre
nossa programação. Pode ser?

- Combinado, amor. Você não me foge mais...

- Posso até esconder-me; fugir, jamais! Amo você, Nando. Muito mesmo!

- Eu sei. Senti nessa noite e você sentiu a reciprocidade.

Antes de sair do apartamento para levar Nando à corporação, Gael pôs roupas
na máquina de lavar e pegou sua lista de compras de supermercado.
Precisaria passar no chaveiro e na papelaria que ficava praticamente ao lado.
E comprar chocolates.

O freezer de Gael estava bem abastecido, então hoje não cozinharia para
congelar. Guardou todas as compras, estendeu as roupas nos varais da área
de serviço, arrumou o simpático envelope que comprara e dois cartõezinhos.

Gael estava sem fome. Para o café da manhã servira cinco ovos com bacon,
três para Nando e dois ele consumiu. Antes de sair para o consultório, comeu
uma pera portuguesa e isso era mais que suficiente.

Hoje, Lavínia viria só na parte da tarde. Quando o dr. Gael chegou, ela havia
ido ao banco o que era providencial. A surpresa já estava lá, sobre sua mesa.
Essas duas senhoras, Olímpia e Lavínia valiam ouro.

Gael estava em sua sala quando ouviu Lavínia cumprimentando-o. Ele


respondeu e continuou o que fazia.

- Dr. Gael, estou emocionada e Olímpia certamente chorará pelos


dizeres do seu cartão. Obrigadas, também, pelos chocolates. Você já
sabe bem quais são os nossos favoritos.

- Lavínia, por tudo o que vocês fizeram, minhas palavras só podem ser
de agradecimentos. E as do Nando, também!

- Dr. Gael, eu quero dar-lhe um abraço bem apertado. Você merece ser
feliz e o Tenente cuidará disso que eu sei. Em casa, Olímpia e eu
brindaremos a vocês dois.
77

Dr. Gael não esperava por tanto afeto, do mesmo modo como não esperava
que as duas estivessem mancomunadas com o Tenente para que os dois
iniciassem um namoro. Gael estava feliz por saber que suas duas assistentes
se empenhavam por sua felicidade.

Gael sabia que o horário de fim de expediente de Nando estava próximo.


Enviou-lhe mensagem para informá-lo de que o esperaria na padaria, para o
espresso combinado. Assim que entrou, sentiu-se recebido mais
calorosamente do que era habitual. Será que alguém sabia de algo?

Ele estava à mesa e havia posto o pequeno envelope que comprara de manhã
do lado em que Fernando se sentaria. No envelope lia-se “lar do Nando”.
Começou a olhar suas mensagens e viu Nando pelo vidro que lhe acenou que
chegaria logo. De certo, foi falar com Lavínia.

Fernando chegou e quase beijou Gael; já se havia inclinado quando a lucidez


lhe veio. Sentou-se e estava tão aéreo a contemplar seu amado que nem viu o
envelope. Os espressos chegaram, com uma porção de pães de queijo. Só
então deu-se conta do envelope e leu o texto.

Fernando abiu o envelope com zelo e retirou um lindo chaveiro com as chaves
do apartamento de Gael, uma tag para a portaria de pedestres e um controle
para o estacionamento. Era tudo do que precisava para Fernando acessar seu
lar. O coração do proprietário já lhe pertencia.

A mordida que acabara de dar no pão de queijo fumegante ficou-lhe presa na


boca. Fernando deu-se conta que ele era tão sério para Gael, quanto Gael se
havia tornado para ele. Seus olhos másculos de tenente ficaram marejados.

- Gaelzinho, aquele texto que chamei de ficção acaba de vir à minha


mente. Aquele, lembra-se, intitulado Meu casamento?

- Sim, lembro-me bem dele. Henrique escreve que após o primeiro


abraço, ele se casaria com Rafael naquele instante.

- Você, amor, tem alguma dúvida de que nós vamos nos casar?

- Não tenho, Nando. Por mim, seria agora. Você falou com Lavínia?

- Sim. Fui agradecer todo o empenho secreto das duas. Ela mostrou-me
seu cartão e os chocolates. Tão sensível da sua parte, Gaelzinho.
78

- Aquelas delatoras merecem. E como está sua programação,


amorzinho?

- Eu queria ir para sua casa, meu gato.

- Você leu o texto do envelope?

- Eu queria ir para o nosso lar, meu gato.

- E com sua mãe fica tudo bem? Se você quiser ficar lá, eu não me
importo. Eu penso que você é a pessoa mais indicada para saber onde
ficar.

- Você é um doce, Gaelzinho. Hoje eu vou para o nosso lar e amanhã,


para a minha casa.

- Então, podemos repetir o esquema de ontem. Eu levo você até sua


casa e, de lá, para o seu lar e amanhã deixo você na corporação ou na
sua casa, para você ir de carro.

- Perfeito, amor. Você já reparou que estamos sendo olhados de um jeito


diferente?

- Eu notei que fui tratado mais calorosamente quando entrei. Podemos


ir?

- Vamos, amorzão. Eu pago.

- Eu tenho uma continha. Pago tudo junto.

Gael pôs-se no caixa quando sentiu um beijo nos seus cabelos da nuca. Muitos
viram, mas fingiram nada ter visto. Fernando sorriu para uma das atendentes
que viu tudo e sorriu de volta. Gael sentiu o beijo e riu gostosamente.

14. Paulo e Orlando 7

Pela janela, Orlando observava seu jardim frontal e lembrava-se de como


estava quando se mudou para tornar-se vizinho de Paulo. A horta os fundos
também estava irreconhecível; havia de tudo o que ele e Paulo mais gostavam
de consumir.

7
Paulo, técnico-mecânico aposentado, e Orlando, professor de matemática aposentado, são os
protagonistas do conto O acompanhante.
79

Os dois sobrados geminados receberam alguns vãos internos, de modo que


Orlando, Paulo e Lua pudessem circular pelos dois imóveis como se fosse um
único. Preservava-se certa privacidade e preservava-se a vida em família. Além
de um poder cuidar do outro, já que eram sexagenários.

Orlando recordava-se disso tudo, pois o início for marcado pela primeira
consulta com o dr. Gael, por indicação do professor Renato, colega de Orlando.
Dr. Gael era como um filho dileto para Orlando e Paulo, não só pela idade, mas
pelo zelo e apreço com a língua portuguesa.

Orlando ri-se internamente quando se lembra em que circunstâncias acabou


sendo o acompanhante de Paulo em um exame no hospital de olhos e como
isso evoluiu para uma boa amizade e para um excelente relacionamento. E
com tantas outras peripécias paralelas.

Orlando encontrou em Paulo um amante da língua portuguesa, das


construções gramaticais, das regras e exceções e do saber expressar-se. Esse
apreço mútuo aproximou-os e cimentou o relacionamento e os dois foram
percebendo que não estavam velhos demais para coisa alguma.

Faz pouco tempo que muitas transformações ocorreram na vida dos dois e
Orlando sente-se mais e mais tomado de emoção. Foi pela coragem obstinada
de Paulo que Orlando foi enfrentando sentimentos arraigados de medo e
rejeição. Agora, escorria-lhe uma lágrima, mas de felicidade.

Paulo tornara-se “varão” para Orlando que se tornara ”amor” para Paulo, e Lua
acompanhava-os em tudo como fiel escudeira. Tinham um casal de amigos,
desses de frequentar a casa para um café ou mesmo um almoço.

Na primeira consulta com o dr. Gael e, depois, no retorno, Orlando e Paulo


eram amigos e um acompanhava o outro. Dois idosos desocupados que se
ajudavam mutuamente e que foram mimados por um jovem dedicado,
competente e lindo, como só um filho poderia ser.

- Amor, hoje eu acordei mais feliz por saber que tenho você.

- Varão, você é meu poeta para o corpo e para a mente. Vamos deixar
Lua solta no jardim de trás enquanto vamos visitar nosso filho do
coração.

...
- Bom dia, dr. Gael! Estávamos com saudade de você.
80

- Bom dia, Orlando e bom dia, Paulo! De qual água vocês andam
bebendo, meus queridos? Vocês estão rejuvenescendo.

- Gael, você é o filho que eu não tive e seu olhar mostra que você está
radiante, não é Paulo?

- Eu acho que nosso dr. Gael encontrou um bom cardiologista para


cuidar do seu coração.

- Vocês acham mesmo que estou feliz porque encontrei alguém?

- Eu apostaria que sim, Gael.

- Então, vocês acertaram. Talvez ele apareça quando descermos para o


nosso espresso. Eu comentei sobre vocês dois e ele manifestou
interesse em conhecê-los.

- Gael, você falou que nós éramos o quê, exatamente?

- Falei que eram dois bons amigos, talvez mais próximos do que poderia
parecer.

- Gael, querido, você precisará atualizar essa informação hoje mesmo.

- Não me digam que você se casaram?

- Sim, Gael, casamo-nos e temos uma filhota de quatro patas, a Lua.

- Será que eu posso dar-lhes um abraço? Eu fico feliz por vocês.


...
- Eu começarei fazendo radiografias panorâmicas dos dois.

Quero verificar se algum canal precisa de intervenção e quero verificar


os dois implantes que fizemos “da vez passada e da mosca frita”.

- Esses cacófatos são ótimos, não Orlando?

- Sim! Esse, da vespa assada combina com a mosca frita.

- Humor é fundamental. Com as panorâmicas, avaliaremos o que precisa


ser feito hoje.
...
81

- Eu começo pelo Paulo. Um canal de um molar ainda não é problema,


mas logo poderá sê-lo. Minha sugestão é abri-lo e limpá-lo hoje e você
não precisará de antibiótico.

Temos duas pequenas cáries para restaurar e resinar e, ao final, quero


fazer uma limpeza geral, a profilaxia.

Para o Orlando, os canais e implantes estão ótimos. Há duas cáries


também que vou restaurar e resinar e, por fim, fazer a profilaxia. O que
vocês acham?

- Já que estou aqui, posso continuar aqui mesmo.

- Então, passemos ao trabalho.


...
- Vocês ainda estão firmes? Hoje foi uma sessão e tanto!

- Nós somos fortes, Gael. Sobrevivemos à crueza da têmpera da vida.

- Eu posso imaginar. Se hoje ainda há problemas para nós, como não


deve ter sido há 30 ou 40 anos.

Vejam, aqui estão os valores para você, Paulo, e para você, Orlando. Se
pagarem tudo junto, eu consigo parcelar em até seis vezes.

E quando quitarem a última parcela eu quero examiná-los novamente.

- Perfeito, Gael. Orlando já registrará tudo em sua agenda eletrônica.


Agora, eu estou ávido por um bom espresso e uns pães de queijo,
mesmo que industrializados.
...
- Dr. Gael, o Tenente acaba de descer.

- Obrigado, Olímpia. Nós já o encontraremos.

- Eu vou rapidamente à toalete.


...
- Olá, Tenente! Estes são Orlando e Paulo; este é o 2° Tenente Abatte,
ou Fernando.

- Paulo, onde vimos dois homens tão bonitos assim, pela última vez?

- Tenente, você é o cardiologista do nosso querido dr. Gael?


82

- Sim. Ele cuida do meu sorriso porque eu cuido do seu coração.

- Notável, não Orlando? Nada como a reciprocidade no amor.

- Por que vocês não me falam um pouco sobre a importância da


reciprocidade no amor?

- Para nós, Fernando, ela é tão importante que fez com que
passássemos a morar juntos, a adotarmos uma cachorrinha e o
principal, que nos casássemos.

Se nossas vidas antes disso eram boas, agora estão ótimas.

- Fernando emociona-se quando alguém lhe fala de reciprocidade e


imprime verdade na fala.

- Eu penso que a nossa reciprocidade vai além: quando um de nós


partir, o outro não aguentará por muito tempo e partirá também.

Agora, nada mais faria sentido sem a presença do outro.

- Paulo escreveu umas linhas sobre isso que acabei memorizando.

Pode-se morrer a qualquer momento


mesmo com 25 ou 30 anos, ou antes.

Com 70 anos também se pode morrer


a qualquer momento também, só que
esse qualquer momento não é um momento
qualquer: está bem mais próximo de você.

- Acabo de conhecê-los, e já os admiro profundamente.

- Sabem, às vezes fazemos descobertas deliciosas.

Durante anos, meu relacionamento com meus vizinhos era restrito ao


bom-dia. Vimos uma placa de “vende-se” e conversamos com eles. Eles
queriam um apartamento. Orlando e o casal fizeram negócio e trocaram
os imóveis.

Como são sobrados geminados, abrimos vãos de passagem na sala e


em um quarto. Ganhos um bom jardim frontal e um ótimo jardim nos
fundos. Temos a privacidade de que cada um de nós precisa, mas
temos toda a proximidade que queremos.
83

Eles foram nossas testemunhas no casamento; a filha deles é casada


com uma mulher e nós todos somos amigos bem próximos. Não é
maravilhoso.

- Pois é, Paulo, e hoje descobrimos que nosso dentista lindo encontrou


seu cardiologista lindo.

- Vocês dois são muito amáveis.

- Agora, nós iremos para o nosso lar. Lua quer jantar. Fiquem bem e
cuidem bem um do outro.
...
- Esses dois são incríveis, Gaelzinho.

- Você é incrível, Nandinho.

- Você está com saudade do seu amor?

- Muita, Nandinho. Saudade dessa boca que me sussurra as mais


deliciosas indecências.

- Gaelzinho, a farda mostra tudo. Não posso me levantar agora.

- Nando, se você se levantar os presentes verão apenas uma parte


fenomenal de você.

- Gaelzinho, você me põe à loucura.


...
- Hoje eu quero virar você do avesso, meu Zinho lindo.

- Vire-me e desvire-me, Nandinho. Tudo com você tem sabor de delícia.

- Eu quero visitar seu corpo e entrar até o seu coração, Zinho meu.

- E eu quero sentir a sua força e beber da sua seiva, Nandinho.

Apesar do pouco tempo em que estavam juntos, o relacionamento tornara-se


forte e resistente. Será que a força não vinha exatamente da reciprocidade?

15. Um dia incomum


84

Já fazia algumas semanas em que Fernando alternava suas noites entre a sua
casa e o seu lar. Gael entendia que Fernando também precisava do contato
com seus pais. Algumas vezes, Fernando jantava com seus pais e ia dormir em
seu lar.

Tanto os pais de Fernando como os de Gael sabiam da existência de alguém e


sabiam que desta vez era relacionamento de verdade. No tempo oportuno, as
apresentações ocorreriam.

Hoje era quarta-feira, dia em que Cecília, a mãe do dr. Gael, tinha aulas na
universidade da 3ª. Idade.

Cecília, professora de Português, aposentada, insultava-se com os erros


vernaculares de algumas das suas professoras, jovens, a quem faltavam os
rudimentos da língua.

Saiu no intervalo e resolveu ir ver seu filho, no consultório. Teve alguma


dificuldade para encontrar uma vaga, mas acabou achando uma própria para
idoso. Subiu até o conjunto do filho.

- Lavínia, boa tarde! Como você está?

- Olá, dona Cecília. Estou ótima, obrigada. E a senhora?

- Não chegou ainda. Deve estar presa no trânsito.

- Verdade! Cecília. Ele está no finzinho de um atendimento. Quer uma


água?

- Obrigada, Lavínia. Eu saí mais cedo da aula da 3ª. Idade e resolvi


passar aqui para vê-lo.

- Olá, Tenente! Como você está?

- Bem, e você, Lavínia? Boa tarde, senhora!

- Boa tarde!

- Tenente, esta é Cecília, mãe do dr. Gael e este é o 2° Tenente Abatte.

- Olá, Tenente. Bem, se Lavínia nos apresentou é porque você não é


paciente...
85

- Então, até a próxima semana. Uh, casa cheia! Fernando, mamãe! Que
alegria encontrar os dois! Lavínia, será que tenho tempo para um café
com esses dois?

- Tem sim, dr. Gael. Eu ligo, se for preciso.

- Obrigado, Lavínia. Vamos tomar um espresso?


...
- Vocês já foram apresentados?

- Sim, filho. Lavínia contou-me o básico e já que estou aqui, que tal eu
saber do essencial?

- Dona Cecília, a senhora está na presença dos dois homens mais


felizes do planeta.

- Uh! E dos mais lindos também! Fernando, há semanas tenho notado


que Gael não cabe em si de felicidade. E que bom gosto ele teve! Você
é um príncipe, Fernando. Um príncipe!

- Perdão, mamãe, eu devia ter falado antes, mas faltou o tempo certo.
Fernando é o homem da minha vida.

- Dona Cecília, eu vou me casar com meu Gaelzinho. Ele é o grande


amor da minha vida.

- Janice, obrigado pelos cafés. Você não ouviu uma palavra, certo?

- Nadinha, dr. Gael. Mas todos já sabem e torcem por vocês. Não está
mais aqui quem falou...

- E eu, a mãe, sendo a última a saber...

- Mamãe, você foi a primeira que notou que eu estava enamorado. Você
já sabia de tudo e hoje veio conhecer o culpado.

- O felizardo, amor. A minha mãe sabe, mas não sabe...

- Fernando, as mães sempre sabem, de um modo ou de outro.

- Talvez a minha espere que eu lhe apresente uma nova namorada.


86

- Você é todo amoroso, Fernando, e isso vem da mãe também. Ela


aceitará. Afinal, é só trocar o “a” final pelo “o”. Leve o Gael para ela
conhecê-lo de perto. Ela ficará encantada.

Dos pais, as mães cuidam. Nós vamos amolecendo os maridos até


ficarem macios e aceitarem.

- Mamãe, você está toda filósofa hoje. O que acontece?

- Estou feliz porque vejo a felicidade brotar de você, Gael, e de você,


Fernando. Eu não tenho a menor dúvida de que vocês se casarão.

- Nós já nos consideramos casados, dona Cecília, mas o amparo legal é


imprescindível.

- Que a sua irmã não me ouça, filho, mas Fernando será o genro mais
lindo.

- Mamãe, você é uma peça! Você quer mais um espresso?

- Não filho. Obrigada. Eu vou para casa feliz e renovada e farei


suspense para o senhor Otávio até ele implorar que eu lhe revele o
segredo.
...
- Gaelzinho, nessa prova, eu passei. Você iria comigo para conhecer
minha mãe?

- Agora? Claro! Vamos aproveitar as boas energias.

- Eu entro e preparo o terreno e você fica no carro até receber minha


mensagem.

- Combinado. Aí entramos e realizamos o assalto.


...
- Olá, mãe! Você está sozinha?

- Oi, filho. Sim. Seu pai vai se atrasar um pouco. Você vai jantar aqui?

- Mamãe, como está seu coração para conhecer o amor da minha vida?

- Meu coração está sereno. Eu sinto que desta vez é sério, como nunca
foi antes.

- Você pode se decepcionar, mãe. Você está preparada?


87

- Se eu me decepcionar, logo passará, pois o seu olhar de felicidade


varrerá toda a decepção do meu coração.

- Uh! Mãe! Você também está uma filósofa.

- Por que esse também, filho?

- Eu acabei de conhecer aquela que me chamou de “genro mais lindo” e


ela disse que as mães sempre sabem.

- Estou gostando desse suspense, filho. Para onde iremos?

- Não iremos. Vamos esperar aqui mesmo.


...
- Chegou, mamãe! Este é o dr. Gael, meu dentista e amor da minha vida
e esta é Wilma, minha mãe muito amada.

- Dr. Gael! Um nome lindo para um homem lindo! Obrigada por ser o
responsável pelo sorriso de felicidade do meu Nando, como eu nunca
tinha visto antes.

- Obrigado, dona Wilma. Seu Nando é o meu Nando e é o homem da


minha vida. Minha mãe acaba de fazer o mesmo comentário sobre o
meu sorriso que a senhora fez do dele.

- Eu gostaria de conhecer a sua mãe, dr. Gael.

- Mãe, ele não é um príncipe doce?

- É sim, meu filho. Ele parece-me doce como você.

- Dona Wilma, eu vou casar-me com o Fernando; nossa relação é de


verdade.

- Eu já imaginava isso, pelas reações do Nando. Eu fico feliz. Vamos até


a cozinha que eu quero comemorar com um cafezinho.

- Eu serei o seu genro, dona Wilma.

- Você já é meu genro. Venha, que quero abraçá-lo para você sentir a
minha gratidão.
...
88

- Agora eu fico mais tranquila porque sei com quem você pernoita, filho.
Você pretende morar de vez com o dr. Gael?

- Por enquanto, mãe, eu gostaria de ficar dividido como tenho estado, se


você não se incomodar.

- Em absoluto. Eu quero que você se sinta livre para fazer as suas


escolhas. Mas você poderia separar algumas coisas suas para deixar lá,
não?

- O que você acha, Gaelzinho?

- Eu acho que sua mãe tem razão. Assim você fica mais prevenido.

- Então, vamos ao meu quarto para eu separar algumas coisas?

- Mas vai ser só para separar algumas coisas?

- Só, mãe. Infelizmente...


...
- Obrigado, mãe, por tudo. Sua aceitação é importante para mim.

- Impossível não aceitar nem amar esse lindo desse dr. Gael.
Impossível! Doutor, cuide bem do nosso Nando.

- Preciso fazê-lo, dona Wilma. Ele é meu bem maior.


...
- Gaelzinho, sabe o que eu quero agora?

- Sei. Exatamente o que eu quero.

- É bom sabermos que as sogras são nossas aliadas.

- É bom saber que nos amamos de verdade, Gaelzinho.

16. O mais incomum dos dias

Amanhã faz uma semana que as mães do Dr. Gael e do 2° Tenente Abatte
foram informadas dos amores dos seus filhos. Parece que as duas fizeram
suas lições de casa e os maridos, os pais, não precisaram de socorro médico.

Hoje seria um dia típico de rotina tanto para o 2° Tenente, como para o dr.
Gael. As turbulências haviam passado. Os ares eram de calmaria.
89

- Alô. Eu preciso falar com o senhor Fernando Abatte.

- Sou eu mesmo. Quem fala, por favor?

- Aqui é Wanda, assistente social da Vara da Infância e da Juventude do


Fórum do Ipiranga.

- Pois não, dona Wanda. Em que posso ajudá-la?

- Eu preciso que o senhor compareça aqui no fórum, o mais depressa


possível. De preferência, agora. Aqui eu lhe darei todas as informações
pessoalmente e o senhor entenderá o motivo do meu pedido de
urgência.

- A senhora não pode me adiantar nada, dona Wanda?

- Infelizmente, não senhor Fernando. Só pessoalmente. Mas eu tenho


certeza de que o senhor entenderá tudo depois que conversarmos.

- E aí no fórum eu procuro pela senhora?

- Sim, logo na entrada o senhor se identifica e informa o guarda de que


eu estou à sua espera: Wanda, assistente social. Por favor, senhor
Fernando, venha o mais depressa possível.

- Entendi, dona Wanda. Eu já estou saindo. Até já.


...
- Bom dia, eu sou Fernando e a dona Wanda, a assistente social, está
esperando por mim.

- Wanda... É aquela senhora que olhou para trás e fez sinal com a mão.
O senhor pode acompanhá-la.
...
- Bom dia, dona Wanda. Eu sou o Fernando.

- Que bom, senhor Fernando, que o senhor veio depressa. Vamos até a
minha sala.

- Dona Wanda, eu estou assustado. O que houve, por favor?

- Pronto. Aqui está o prontuário. Senhor Fernando, o senhor manteve um


relacionamento com uma moça de nome Vanessa?
90

- Sim, nós saímos algumas vezes, por pouco tempo. Ocorreu algo com
ela, dona Wanda?

- O senhor se lembra do nome completo dela?

- Vanessa Teixeira de Magalhães. Ela está bem?

- O senhor manteve relações sexuais com ela, senhor Fernando?

- Sim. Por quê?

- Nessas relações sexuais, o senhor usou preservativo?

- Nas duas primeiras vezes, sim. Depois não mais. Acho que foram mais
duas ou três.

- O senhor ficou sabendo se ela engravidou?

- Não. Nós ficamos alguns meses nos encontrando ocasionalmente e foi


havendo um afastamento dos dois.

- O namoro de vocês durou quanto tempo, aproximadamente?

- Nós não namoramos, dona Wanda. Nós nos encontrávamos às vezes,


só para diversão. Não terminamos porque não havia relacionamento
oficial. Dona Wanda, por favor, diga-me o que está acontecendo.

- Já vou chegar lá, senhor Fernando. Só mais um pouco de paciência. O


senhor sabe me dizer se ela usava algum método de contracepção?

- Ela me assegurou que tomava pílula porque não queria engravidar de


forma alguma.

- Depois que o relacionamento acabou, ela o procurou por quantas


vezes?

- Na verdade, não houve uma conversa nossa para terminar o


relacionamento. Nós dois havíamos perdido o interesse e o afastamento
foi natural. Eu não a procurei mais, nem ela tampouco voltou a me
procurar.

- Desde então, houve algum contato entre os dois, senhor Fernando? Ou


alguém conhecido lhe deu alguma informação sobre ela?
91

- Não, dona Wanda. Nenhuma informação da parte dela e não havia


conhecidos comuns.

- Entendi, senhor Fernando. Essa moça, Vanessa, entrou em contato


com a vara da infância e da juventude porque estava grávida e decidida
a entregar a criança para adoção.

Nesse processo de entrega da criança ela, na presença do promotor e


do juiz, renunciou a todos os seus direitos de mãe. Nessa ocasião, ela
afirmou que o senhor é o pai da criança que estava para nascer.

O juiz determinou que assim que a criança fosse entregue à vara da


infância e da juventude, o pai deveria ser chamado. O senhor me
acompanhou até aqui?

- Sim, dona Wanda. Pode prosseguir.

- Eu tenho uma autorização temporária para o senhor levar o bebê. É


uma menina. Nasceu no domingo, às 7h40, com 51cm e 3.470gr,
saudável e mamando.

Se o senhor não quiser levar a menina, ela seguirá para um abrigo e


automaticamente estará disponível para adoção. Se o senhor levar a
menina, os dois farão exame de DNA.

Comprovada a paternidade, o juiz concede-lhe o direito de registrar a


menina como sua filha biológica. O senhor me entendeu até aqui,
senhor Fernando?

- Dona Wanda, isso é um soco no estômago. Eu, pai de uma menina?

- Senhor Fernando, é uma linda menina, de dois dias. Chegou hoje cedo
e não dá trabalho. O senhor não gostaria de conhecê-la?

- Eu estou tonto, dona Wanda. Tonto com esse soco.

- Se o senhor olhar para ela irá se apaixonar. Vamos vê-la?

- Vamos. Onde ela está?

- Estamos indo para a sala da enfermagem.


92

- Eu me lembrei agora, dona Wanda, que a Vanessa me disse que não


estava bem, com ânsia de vômito. Isso, na última vez em que íamos
sair.

Não saímos e depois disso, não nos falamos mais. Eu estou


mentalmente fazendo contas, dona Wanda.

- Veja que princesinha mais linda, senhor Fernando.

- Oi, Wanda. Ele é o pai, não? Ela é a cara dele.

- Esta é nossa enfermeira plantonista, dona Rosália. Pode pegá-la no


colo, senhor Fernando.

- Claro. Pegue sua filha e sinta todo o amor de pai invadir o seu coração.

- Veja, ela acordou e deu um sorriso para o papai. Difícil saber quem é
mais bonito, não Wanda?

- É, Rô. E você tem razão; são muito parecidos.

- Dona Wanda, posso levá-la até sua sala?

- Deixe-a aqui, aos cuidados da Rô. Vamos até minha sala.

- Agora, de Fernando para Wanda, de pessoa para pessoa. O que eu


faço?

- Então, de Wanda para Fernando, ela é sua filha e você sentiu isso.
Leve-a, antes que seja adotada.

Bebês recém-nascidos são adotados imediatamente. Se eu chamar o


primeiro da lista dos cadastrados, hoje mesmo ela segue para um lar.

- Qual é o prazo máximo que eu tenho, Wanda?

- Eu saio daqui às 18h. Se até lá não houver uma decisão sua, ela vai
hoje para o abrigo e algum plantonista pode convocar o primeiro da lista
para buscá-la amanhã logo cedo.

- Eu volto, Wanda. Cuide para que ninguém a leve até eu voltar.

- Mas você volta antes das 18h, certo?


93

- Antes das 18h. Vou correr. Um beijo para você, Wanda.

- Só mais uma coisinha, Fernando: todas as informações que você me


forneceu coincidem com as informações da Vanessa. Essa é a minha
segurança. Vá e volte para buscar sua filha, Fernando.
...
- Dr. Gael, Fernando ligou. Está vindo para cá e precisa falar-lhe com
urgência. Ele me pareceu aflito.

- Vou agilizar aqui. Ainda temos tempo até o seguinte chegar. Vamos ver
o que ele me traz.
...
- Olá, Fernando. Nós estamos aflitos. Será que eu cancelo a próxima
consulta?

- Por favor, Olímpia. Nós vamos precisar sair. É uma emergência e eu só


saberei se é boa ou não, dependendo da reação dele.

- Eu vou avisá-lo de que você já está aqui. Ah, já abriu a porta.

- Agende seu retorno com a Olímpia, por favor. Tchau. Entre, Fernando.
Estou angustiado.

- Gael, eu estou chegando do...

- Nando, eu estou aqui com você. Olhe para mim. Agora, respire fundo e
conte-me tudo. Dê-me sua mão gelada para eu aquecê-la.

- Eu fui chamado às pressas à vara da infância e da juventude do fórum


do Ipiranga. Uma moça entregou sua filha recém-nascida para adoção e
afirmou ao juiz que eu sou o pai.

Eu a peguei no colo e meu coração falou que ela é minha filha. Eu saí
algumas vezes com a mãe e, pelas contas que fiz, ela deve mesmo ser
minha filha.

Eu tenho até as 18h para buscá-la; tenho a guarda provisória até o


resultado do DNA. Se eu não for, ela vai para um abrigo e será adotada
na hora.

- E o que nós estamos esperando? Eu vou dirigindo porque meu tenente


favorito não me parece confiável para assumir o volante com carga
preciosa.
94

- Gaelzinho, você ouviu o que eu disse?

- Naquele dia em que você recebeu as chaves do seu lar, você me


perguntou se eu tinha alguma dúvida de que nós iríamos nos casar,
lembra-se? Eu respondi que não; que, por mim, seria agora, lembra-se?

- Lembro-me perfeitamente, mas...

- Lindão, nós estamos perdendo tempo. Olímpia, por favor...

- Já cancelei tudo em boa hora. Eu vou levar uma água com açúcar para
o Fernando.
...
- Gaelzinho, eu achei que você ia me largar. Eu fiquei apavorado com
essa possibilidade.

- Só espero que nossa filha tenha puxado para o pai.

- Nossa filha? Pare o carro que eu vou dar-lhe um abraço e um beijo. Ela
é linda, sim.

- Nandinho, não podemos perder tempo. Anote os beijos e os abraços; à


noite acertamos tudo.

- Pode deixar o carro naquele estacionamento, Gaelzinho. Seguimos por


aqui.
...
- Olá, Wanda. Chegamos! Ufa! Que correria!

- Ah, e já trouxe um médico. Que bom. Entrem e sentem-se.

- Este é Gael, meu companheiro. Ele é dentista. Esta é a Wanda,


assistente social.

- Que pais lindos que essa mocinha tem. Desculpem-me, mas é para
descontrair. Vão levá-la, não?

- Claro, Wanda. Vamos levá-la e cuidar dela. Como fica, se o DNA der
negativo?

- Gael, não vai dar. A mãe foi categórica e não tinha outro parceiro. Mas,
respondendo à sua pergunta, aí o caso volta para o juiz decidir.
95

Se o Fernando não a levar hoje, isso é entendido como desistência e ela


segue para um abrigo e fica disponível para adoção. Amanhã cedo
aparece o primeiro da lista e a leva. Branca, recém-nascida, saudável...
É claro que o pai pode reavê-la, mas será bem mais complicado.

- E quanto à mãe? Ela não pode alegar que foi decisão precipitada?

- Faz um bom tempo que ela disponibilizou a criança aqui na vara da


infância e da juventude e nós fizemos um trabalho para tentar fazê-la
mudar de ideia. Ela estava segura na sua decisão. Vamos vê-la?

- Gaelzinho, segure meu coração.


...
- Aqui está a prescrição do leite dela: leite NAN Supreme1: 90ml de água
a 70°C em seis mamadeiras por dia, por duas semanas; depois, 120 ml,
cinco vezes ao dia. Evitar mamadeira de madrugada.

Eu acabei de trocá-la, então terão folga. Ela é bem-comportada, viu.

- Obrigado, Rô. E agora, o que faremos?

- Vamos voltar para a minha sala. Gael, você notou a semelhança?

- Wanda, seu eu fosse juiz, nem pedia DNA. Ainda bem que puxou o pai,
viu?

- Fernando, é o Gael que cuida do sorriso dos seus dentes?

- É, Wanda. Ele cuida do sorriso dos meus dentes e do sorriso do meu


coração. Ele é o pai mais lindo do mundo!

- Vocês dois são uns encantos. Além de lindos, são simpáticos e


agradáveis. Este é meu número pessoal. Liguem se tiverem alguma
problema.

A coleta para o exame de DNA da mocinha será feito junto com a sua
coleta. Eu entrarei em contato com você, Fernando, para agendar a
coleta dos dois. Vocês são casados ou têm união estável?

- Ainda não, mas vamos nos casar.

- Se vocês forem casados, o juiz pode despachar para que os nomes


dos dois constem na certidão de nascimento dela. De qualquer modo,
Gael, digitalize esses documentos e envie-os para mim.
96

Eu vou anexá-los ao processo para o juiz dar seu despacho depois do


resultado do DNA. Esse despacho do juiz ajuda se alguém solicitar o
registro de nascimento. Posso ajudá-los em mais alguma coisa?

- Obrigado, Wanda, por tudo. Principalmente por este presente no colo


do pai Nando.

- Só mais uma coisinha. Na verdade, é um conselho que gosto de dar:


lembrem-se sempre de que pai é pai e marido é marido.

Cuidem muito bem um do outro, agora que essa princesinha chegou. O


amor de pai não substitui o amor de marido ou companheiro.
...
- Rico, é Gael, o dentista. Você pode falar um momento? Eu coloquei no
viva-voz para o Fernando acompanhar nossa conversa.

- Olá Gael! Claro. Olá, Tenente! Como vocês estão, depois daquele
pedido lindo de namoro, o primeiro que a Luma presenciou?

- Estamos felizes e apavorados e acho que precisaremos da sua ajuda.

- Claro, mas o que aconteceu?

- Estamos saindo do fórum do Ipiranga e...

- Não me digam que deram entrada em um pedido de adoção?

- Nós somos mais rápidos, Rico. Nós acabamos de receber o produto.

- O produto? Como? Você estão com seu bebê? É isso?

- É Rico. E sabemos nada e temos menos ainda. Então, eu me lembrei


de você e do Jô.

- Que maravilha! O Jô vai ficar feliz. Por que vocês não vem até aqui. É
pertinho.

- Rico, você e Jô serão nossos anjos salvadores.

- Anotem o endereço e venham. Vou aguardá-los com um espresso.

- Estamos indo até você.


97

- Em dez minutos estaremos lá, Nando. Eu vou escrever para Olímpia,


para tranquilizá-las.

- Amor, o que você contará a elas?

- Que amanhã elas conhecerão a sobrinha mais linda do mundo porque


é filha do pai mais lindo do mundo.

- Gael, um amor como o seu não existe. Ela adormeceu aqui, nos meus
braços. É muita emoção, Gaelzinho.

- Pode chorar, paizão. Em casa, eu revezo com você.


...
- Rico, que bom que você pôde nos atender.

- E esta lindeza aqui. Esperem, ela é muito parecida com você, tenente.

- Rico, é um longa história que vai consumir alguns espressos. A


assistente social foi muito amável e deu-nos bons conselhos, sabe?

- Por um acaso foi a Wanda?

- Ela mesma. Você a conhece?

- Ela nos entregou a Luma e nos pediu para que cuidássemos muito
bem um do outro porque amor de pai é amor de pai e amor de marido é
amor de marido.

- Foi exatamente esse conselho que ela nos deu, Rico.

- Desde quando vocês estavam esperando pela adoção?

- Desde hoje, às 9h25, quando ela ligou para mim. Ela é minha filha e foi
deixada pela mãe para adoção e eu fui informado que tinha uma filha e
fui resgatá-la com esse amor imenso aqui que parece mais feliz que eu.

- Fernando, você se lembra que você pegou a Luma no colo, lá na


padaria. Tudo já estava escrito nas estrelas.

Eu já liguei para o Jô e disse que vocês três estavam a caminho. Ele não
acreditou; disse que viria pessoalmente para constatar.

- Nem nós acreditamos, Rico. Nando, veja! A Luma e a Bela dormindo


lado a lado.
98

- Não é lindo, isso? Eu estava desenvolvendo uns gráficos e coloquei a


Luma na nossa cama para Bela cuidar dela para mim.

- Se contar, ninguém acredita. Eu posso colocar este pacotinho lá


também?

- Claro, Nando. Bela só descerá da cama quando Jô chegar, mas ela


volta correndo.

- Isso eu preciso registrar, Gaelzinho. Aliás, venha que você me deve


uns abraços e uns beijos.

- Gael e Fernando, eu comecei a separar algumas coisas que irão ajudá-


los nos próximos dias. Quando fomos chamados para buscar a Luma,
não tínhamos nada. Nossas irmãs estavam mais adiantadas e nos
ajudaram nas compras.

- Será que teremos um tutorial sobre como trocar fraldas e preparar a


mamadeira, Rico?

- Sem dúvida. É o mais importante, Gael. Eu fiz uma lista de coisas que
vocês precisam comprar.

Vejam: leite em pó NAN Supreme 1, mamadeira, fraldas descartáveis,


algodão, hastes com algodão, pomada antiassaduras e sabonete líquido.
O leite deve ser o mesmo, não?

- É, sim. Quantas latas, Rico?

- Comecem com pelo menos duas. Ah, o Jô chegou. Observem a reação


da Bela.

- Ela desceu e foi recebê-lo. Olhe só!

- Oi, meu lindo! Veja a nossa cama!

- Olá, Gael e Fernando. Quem é essa joia?

- É nossa filha, Jô. Acabamos de recebê-la no fórum, das mãos da


mesma dona Wanda.

- Vejam como ela voltou a deitar-se junto com as duas. Ela pensa que é
mãe das duas.
99

- Amor, eu vou doar para eles tudo o que a Luma não usa mais e nós
precisamos ensiná-los a preparar a mamadeira e a trocar fraldas.

- Vocês vieram à escola certa, com os melhores mestres.

- Vejam, Fernando e Gael, Isso tudo vocês levarão: essa bolsa sacola, o
berço portátil, o bebê conforto e a banheira. O berço eu desmontei e
vocês só precisam montá-lo novamente.

Isso nós compramos na emergência e depois fomos ganhando outros


dos pais, das irmãs e de amigos.

- Eu nem sei como agradecer por isso tudo, Rico e Jô.

- Não agradeçam; íamos doar de qualquer modo e vocês apareceram


em boa hora. Aqui, nós temos roupas.

Está tudo limpinho e pronto para ser usado: casaco de linha, body
manga curta e longa, culote, macacão, meias, fraldas de pano, gorro,
toalha, protetor para o colchão, lençóis e mantas. As roupinhas para ela
vestir servirão por pouco mais de um mês.

- Amor, é um enxoval completo. Eu estou emocionado, Gaelzinho.

- Venha aqui, meu Nandinho. Você é um pai maravilhoso. E eu também!


E eu amo você, muito!

- Eu não consigo... Rico, Jô, eu tremia de medo de que meu Gaelzinho


fosse me largar quando soubesse que eu tenho uma filha.

Ele me olhou nos olhos, disse-me que o nosso casamento era para valer
e me deu bronca porque estávamos perdendo tempo ao invés de irmos
ao fórum.

Só vocês, com a história de vocês, para entender isso.

- É, Fernando. É exatamente assim que eu me senti quando vim para cá


e Rico começou a me lavar todas as vezes que eu fazia cocô.

Rico lavava-me com amor e a primeira fralda que troquei da Luma,


fedida, eu troquei com amor também.
100

A boca pode repetir “eu amo você” mil vezes; um gesto como o do Gael
ou do Rico são infinitamente mais valiosos. Até eu estou ficando com...

- Vamos para a cozinha. Nós quatro precisamos de um café. A mamãe


Bela nos avisa se houver qualquer movimento: ela é melhor que uma
babá eletrônica.
...
- Pais, venham que o recreio acabou. Aula prática de como trocar
pacotes.

Primeiro, uma mesa para não prejudicar a coluna. Forrar com algo macio
e, por cima, um plástico. Ter tudo à mão e verificar se há correnteza de
ar.

Cada um dos pais vai fazer uma troca completa, com limpeza do
bumbum. E, como bônus, trocarão Luma também. É um modelo um
pouco maior, mas o processo é o mesmo. Então, mãos à obra!
...
- Agora, estagiários, aula de culinária. O prato da tarde será mamadeira
gourmet. Higienização é fundamental, assim como a temperatura correta
da água.

Outro detalhe é sobre como segurar o bebê durante as mamadas, ajudá-


lo a arrotar e saber que depois da mamada haverá novo pacote cheio.
Como temos duas mocinhas, cada pai fará uma mamadeira sob nossa
supervisão.
...
- Rico, nossos aprendizes já podem ser diplomados, não?

- Diplomados com louvor. Saíram-se muito bem! Nossa central de


atendimento funciona 24 horas.

- Nossa filhinha um dia vai saber que os tios Rico e Jô socorreram seus
papais em um momento emocionalmente muito delicado, não é
Gaelzinho?

- Rico, Jô, vocês são dois homens com H maiúsculo. Tenho muito
orgulho por tê-los como amigos queridos.

- Obrigados, Fernando e Gael. Liguem, mesmo se for de madrugada. Eu


tenho certeza de que se eu ligasse para você, Gael, de madrugada, com
uma enorme dor de dente, você me atenderia e Fernando, mesmo no
sono mais profundo, iria atender a uma ocorrência.
101

- Lembrei-me de “A friend in need is a friend indeed.” 8

- Nós vamos com vocês até o carro para ajudá-los a levar tudo. E a
mocinha já irá no bebê conforto, certo papais?

- Certíssimo!

- Nós compramos muita coisa na loja que fica na segunda rua, à direita.
Fraldas e leite vocês certamente encontram lá.

- Obrigados por mais essa dica. Iremos para lá agora mesmo.


...
- Que loja era aquela, não amor! Quanta coisa que eu nem sequer
imaginava que pudesse existir. Pelo menos, conseguimos tudo o de que
precisávamos e mais uns extras, claro...

- Papai tenente, o papai dentista que dar-lhe um abraço e um beijo.

- É o que mais preciso, amor da minha vida. Do seu abraço, do seu


beijo, do seu carinho, do seu amor, Gaelzinho. Mais tarde vou precisar
das outras coisas também...

- Você terá tudo porque você é o melhor marido e o melhor pai do


mundo.

- Ninguém supera você, Gaelzinho. Ninguém. Enquanto nossa filha


dorme, nós precisamos conversar sobre como faremos amanhã.

- Sim, isso será feito enquanto o homem da casa monta o berço e eu


arrumo todas as outras coisas e monto nossa mesa de trabalho.

- Homem da casa é referência a mim. Vamos, então, homem da casa...


...
- Gaelzinho, você alguma vez pensou que aqui, neste apartamento,
haveria um berço com uma ocupante?

- Nandinho, eu nunca pensei que aqui moraria o homem da minha vida e


isso acabou acontecendo. O resto é consequência.

- Você está cuidando mais de mim do que eu, de você.

8
Tradução livre: um amigo na necessidade, é um amigo de verdade.
102

- Eu atuo para tratar o agudo e você, o crônico, Nandinho. Ninguém


jamais cuidou de mim melhor do que você.

- Essa é mais uma qualidade que admiro em você, Gaelzinho: você


gosta de ser cuidado por mim. Essa é a grande diferença para com as
mulheres que passaram pela minha vida: nenhuma gostava de ser
cuidada.

Era como se se sentissem inferiorizadas sendo cuidadas por um


homem.

- Pois eu amo ser cuidado pelo homem da minha vida que, não por
acaso, é você, tenente!

- Nem a Vanessa gostava. Ela era boa moça, sabe Gaelzinho.

- Você acha que todos são bons porque você é de uma bondade sem
paralelo. E de uma lindeza sem paralelo também.

- Não cutuque um trabalhador...


...
- Gaelzinho, nossa filha já não é mais uma sem-teto, mas é uma sem-
nome. Como vamos chamá-la?

- Ela veio para um lar com dois pais maravilhosos.

- É isso, Gaelzinho. O que você acha de Alice?

- Alice no lar das maravilhas. Ela tem um nome, Nandinho. E nosso


jantar já está pronto.

Amanhã vou falar com a dra. Regina Viviane. Ela é minha paciente e é
pediatra bem experiente. Seria bom ela examinar a Alice, não?

- Muito bem lembrado. E nós precisamos saber das vacinas também.

- Eu vou ver se ela nos atende no finalzinho da tarde ou à noitinha. Eu


pensei em levar Alice ao meu consultório. Lá eu posso cuidar dela,
Lavínia ou Olímpia podem me ajudar e você pode vê-la em qualquer
folguinha que tiver. O que você acha, Nandinho?

- Acho perfeito. Eu não tenho como cuidar dela na corporação. E temos


as nossas mães que podem nos ajudar também.
103

- Depois do jantar, eu vou separar todos os documentos que a Wanda


solicitou, digitalizá-los e já enviá-los para ela. Você já pensou na
possibilidade de o DNA resultar negativo?

- Hoje cedo, quando eu peguei a Alice no colo pela primeira vez, eu tive
a mesma certeza que tenho quando você está em meus braços,
Gaelzinho.

Assim como você é o amor da minha vida, ela é a minha filha biológica.

- Você é simplesmente incrível, Nandinho. Minha intuição me diz que


você está certo.

- Depois de tudo feito, hoje, eu só vou querer amar meu Gaelzinho do


coração. Você se casaria comigo às pressas, para termos a
documentação em ordem para o registro da Alice com nossos nomes?

- Você acha que consegue fugir amanhã, para darmos entrada na


documentação, no cartório de pessoas naturais? Eu tenho uma janela na
hora do almoço. Eu só preciso falar com Lavínia e Olímpia para serem
as nossas testemunhas.

17. O dia quase normal

Fernando e Gael seguiram o conselho dado pela assistente social Wanda:


amor de marido é amor de marido e amor de pai é amor de pai. Amaram-se
com as forças que lhes restavam, mas amaram-se, d e modo até santificado.

A pequena Alice só chorou quando Gael já estava de pé; provavelmente ouviu


o barulho do chuveiro em que o pai tomava banho. Gael acolheu-a e aprendeu
que é possível fazer muita coisa na cozinha, mesmo com um bebê nos braços.

Gael notou que Alice acordava bem-humorada, assim como o pai que saia
lindo do banho. Em outros braços, Alice mostrava que estava faminta e queria
sua mamadeira enquanto o outro pai ia ao banho. Rico garantira-lhes que em
poucos dias tudo virava rotina.

Tomaram um café da manhã reforçado, pois provavelmente teriam de suprimir


o almoço. A mamadeira da noite fora dada pelo Fernando e a da manhã, pelo
Gael. A fralda da noite fora trocada pelo Gael e a da manhã, pelo Fernando.
Sintonia perfeita!
104

Antes de sair do apartamento verificaram se a pasta continha todos os


documentos para o cartório e se a bolsa sacola continha tudo o de que
precisariam durante o dia todo. Os dois papais fizeram a conferência. Os
ofícios dos dois obrigavam-nos a serem organizados.

Foram no carro do Gael e direto para seu consultório. Quem os viu chegando,
estranhou o bebê conforto, mas não houve perguntas. Olímpia estava para
chegar e Alice dormia como um anjinho. Olímpia certamente teria boas
sugestões sobre onde deixar a pequena Alice.

Qual seria a reação das avós? Ficariam histéricas pela neta, sem dúvida. Seria
a primeira neta para as duas. Talvez os pais nem conseguissem mais cuidar da
própria filha. A vida era mesmo uma grande escola. Olímpia chegou e
encontrou os dois um tanto agitados.

- Bons dias! Estou atrasada, ou vocês estão adiantados?

- Olímpia, nós queremos que você conheça nossa filha e sua sobrinha:
Alice!

- Como é? Mas quem é esse anjinho mais doce? Gente, é parecida com
o Fernando, não é?

- É sim, Olímpia. Essa foi a emergência que me fez cancelar as


consultas da tarde de ontem.

- Sente-se, Olímpia, que nós lhe contaremos tudo em detalhes.


...
- Assim, Olímpia, hoje, lá pela hora do almoço, assim que o Fernando
puder, nós iremos ao cartório para dar entrada nos papéis para o nosso
casamento e nós queríamos que você e Lavínia fossem as nossas
testemunhas. Podemos pedir isso a vocês duas?

- Mas é claro. Eu já vou ligar para a Lavínia. Nós iremos àquele da Rua
Pará, não?

- Sim, naquele mesmo. E teremos de levar Alice, já que não haverá


ninguém para ficar com ela.

- Mas ela só tem três dias. Não é arriscado?

- Bem, Olímpia, ela já foi da maternidade para o fórum, depois para a


casa do Rico e do Jô, depois para a loja e para a nossa casa e, agora,
está aqui. A contaminação já ocorreu. Assim, ela desenvolve resistência.
105

- Eu também penso assim, Gaelzinho. E, à noite, ainda irá à pediatra...

- Em menos de dois dias já rodou meia cidade...Estou amando vocês


dois: anteontem, namoro; ontem filha e hoje, casamento!

- É, Olímpia, tempos modernos... Tempos modernos!

A manhã passou voando e Gael, num dos intervalos deu de mamar para Alice
e esperou uns minutinhos para trocar o pacote cheinho. Alice funcionava como
um relógio. Lavínia estava avisada e a dra. Regina Viviane, confirmara a
consulta para as 18h30.

Gael estava informalmente em horário de almoço e aguardava a chegada de


Fernando para irem, com Olímpia e Alice, ao cartório, onde encontrariam
Lavínia. Fernando chegou e todos desceram as escadarias até o carro, rumo
ao cartório.

- Sr. Fernando e sr. Gael, está tudo em ordem. Em cinco dias podem vir
e retirar a habilitação.

- Eu pensei que levaria pelo menos 30 dias, por causa dos proclamas.
Cinco dias é perfeito.

- A lei mudou no ano passado. Agora, o prazo mínimo é de cinco dias e


o máximo continua 90 dias.

- Que bom. Muito obrigado. Vamos, então?

- Um momento, por favor. Nós também queremos dar entrada no nosso


processo. Aqui estão nossos documentos. Vocês dois podem ser as
nossas testemunhas?

- Mas com toda a alegria do mundo, não é Nandinho?

- Com surpresa bem alegre!


...
- Lavínia e Olímpia, que notícia maravilhosa!

- Você não ficou decepcionado conosco, Gael?

- Pelo contrário. Fiquei é feliz por vocês. Mas eu sempre tive para mim
que vocês eram irmãs, até porque o sobrenome é o mesmo.
106

- Verdade. Nosso sobrenome é o mesmo e isso nos deu a ideia de nos


passarmos por irmãs para não sermos hostilizadas. Mas vocês nos
deram a coragem que nos faltava. Nossos nomes não mudarão, mas
teremos proteção legal.

- E nós nos casaremos no mesmo dia, Lavínia?

- Sim. Para nós, será mera formalidade, mas uma formalidade


necessária.

- Para nós também, Lavínia. Especialmente agora, com a chegada da


nossa filha Alice.

- Isso tudo vai ser comemorado quando essa correria estiver amenizada.

De volta ao consultório, foi a vez de Fernando preparar a mamadeira e de


trocar o pacotinho que ficou cheio depois da mamada. Fernando retornou à
corporação com um pequeno atraso e Olímpia assumiu o controle. Logo mais,
o primeiro paciente da tarde chegaria.

Fernando não chegou a conversar sobre detalhes com seu superior imediato,
mas tinha crédito de horas e gozava de grande estima e consideração na
corporação.

Dr. Gael preparava-se para iniciar seu atendimento quando seu telefone toca e
ele percebe que aquele era o aparelho do Fernando. Ele resolve atender.

- Boa tarde! Aqui é Wanda, assistente social da vara da infância e da


juventude do fórum do Ipiranga. Preciso falar com o senhor Fernando
Abatte.

- Wanda, boa tarde! É o dr. Gael. Fernando deixou o telefone dele aqui
no meu consultório e deve ter levado o meu. Ainda estamos meio
atrapalhados com a chegada da Alice, sabe?

- Olá, Gael! E ela passou bem de ontem para hoje?

- Muito bem, Wanda. É um reloginho e não dá trabalho; dormiu a noite


todinha. Você quer anotar meu número para tentar falar com o
Fernando?

- Eu só preciso que você dê um recado para ele. O laboratório que faz a


coleta para os exames de DNA estará aqui na segunda-feira próxima e a
coleta do Fernando está agendada para as 9h30.
107

Se ele não puder vir, eu preciso ser informada com antecedência para
não termos problemas internos.

- Ele estará aí, sem falta. Eu tenho novidades. Acabamos de chegar do


cartório e nosso casamento será na próxima semana. Eu vou digitalizar
o documento e enviar para você, por e-mail.

- Mas não leva 30 dias para a corrida dos proclamas?

- Eu também pensava isso. A lei mudou no ano passado. Agora o prazo


mínimo é de cinco dias.

- Isso é excelente, Gael. Quando o resultado do DNA for para o promotor


e para o juiz, a certidão de casamento já estará apensa ao processo.
Muito bom. Obrigada por me atualizar.

- Por nada Wanda. Vemo-nos na segunda-feira. Abraço e muito obrigado


por tudo.
...
- 2° Tenente Abatte, quem é Ariã?

- Ariã? É um xamã que eu contratei para me trazer o amor da vida em


três dias. Levou um pouco mais, mas compensou porque o pacote veio
completo!

- Bom, ele, não? E não tem risco de ruptura?

- Nada! Ariã é 100% garantido. Quem ele me trouxe é para a vida toda.

- Nando, você é impossível. Mas vamos aos fatos: a Wanda ligou. As


duas coletas para o DNA estão agendadas para segunda-feira, às 9h30.

- Que bom! Você quer que eu vá até aí para trocarmos os aparelhos?

- Não, porque eu ainda não xeretei em tudo, sabe.

- Eu já! Vi sua filha! É linda como você!

- Amor, você não existe. Até daqui a pouco.


...
- Olá, Regina! Que bom que você conseguiu um horário para mim. Quer
dizer, para a Alice.
108

- Gael, que prazer rever você! Eu irei ao seu consultório no próximo mês.
Já está na agenda.

- Regina, este é o 2° Tenente Fernando Abatte, meu marido, e esta é


Alice, a sua nova paciente.

- Olá, Fernando! Vamos examinar essa mocinha que é a cara do papai


Fernando.

- Olá, dra. Regina. Que bom que você conseguiu nos ver.

- Eu nem poderia, sabem, mas um pedido do Gael acaba sendo


irrecusável. Você lembra-se, Gael, daquela noite de domingo? Acho que
você já estava no carro e voltou ao consultório para esperar por mim e
me atender. Gael tem muito crédito comigo, Fernando.

- É, eu sei. Ele é muito devotado a tudo e a todos.

- Regina, ela nasceu no domingo, às 7h40, com 51cm e 3.470gr. Mama


90ml do leite NAN Supreme 1, dorme a noite inteira e funciona como um
reloginho.

- Dona Alice, vamos fazer um strip-tease para a tia poder examinar você
direitinho?
...
- Gael e Fernando, ela me parece bem saudável. Não encontrei indício
algum que requeira alguma intervenção.

O coto do cordão umbilical deve cair em dois ou três dias, as fezes que
estavam na fralda têm coloração e consistência esperadas. Vocês
podem empregar um pouco mais de óleo aqui, nas dobrinhas.

Ela deve tomar sua primeira vacina o quanto antes, contra hepatite B e
BCG. Aqui está a prescrição. Melhor levá-la ao posto de saúde mais
próximo do que ir a uma clínica particular, mesmo porque ela ainda
tomará muitas outras, logo, logo.

Minha pesagem aqui mostrou 3.480gr, ou seja, ganho de 10gr, mas não
confio muito no peso inicial. Daqui em diante, nós faremos o controle de
peso dela.

Eu quero vê-la daqui a 30 dias, ou a qualquer momento, se houver


necessidade.
109

- E mais nada é necessário, dra. Regina?

- Não, Fernando. Gael e eu temos visões muito parecidas: se não


precisa, não precisa. Preparem um pouco mais de leite, 100ml ou 110ml
e avaliem; se ela estiver saciada, ela para pôr si só.

Esses valores expressam ordens de grandeza, referências, mas não


precisam ser seguidos como se fossem lei.

Se ela se mostrar inquieta, procurem acomodá-la com o ouvidinho sobre


o coração de vocês até ela se acalmar. Na dúvida, mandem mensagem.
Os dois, certo Fernando?

- Olhe, muito obrigado, dra. Regina. Para principiantes como nós, essas
informações são relevantes.

- Pelo que pude ver, vocês dois estão se saindo muito bem.
...
- Nando, mais uma que reconheceu sua paternidade.

- É, eu notei. Assim como notei que você me apresentou como marido.


Eu quase dei um beijo em você, Gaelzinho.

- Eu tomei por garantido o que vai acontecer na próxima semana. No


meu coração, eu queria você como marido desde a primeira extração.
Foi o feitiço do seu xamã!

- Amor, pare aqui! Aquele posto está aberto. Já que estamos aqui,
vamos tentar, não?
...
- Boa noite! Nós trouxemos nossa princesa, Alice, para a sua primeira
vacina.

- Ela já tem carteirinha?

- Não! É recém-nascida. Ainda não está registrada, mas temos esse


documento do juiz.

- Eu posso ver a prescrição?

- Ah, sim! Aqui está.

- É só aguardar.
...
110

- Gaelzinho, ela nem chorou. E já tem a carteirinha, papai lindo.

- Eu também não choraria estando no colo do pai mais lindo do planeta.

- Em casa, eu pego você no colo, amor. Prometo.


...
- Como é bom estar em casa. Você vai tomar banho, Gaelzinho?

- Vá você primeiro que eu adianto a mamadeira da Alice para quando


você voltar.

- Precisamos pensar no sobrenome da Alice, meu Zinho.

- Nando, Alice é sua filha biológica, então Abatte tem que ser seu
sobrenome.

- Gaelzinho, você é tão pai como eu. Capobianco tem que constar
também.

- Nesse caso, eu sugiro Alice Capobianco Abatte. Fica lindo!

- Lindo e forte!

- Lindo e forte como o pai que eu admiro e amo.


...
Olá, Rico e Jô. Escrevo por dois motivos: primeiro, para agradecer a
ajuda material e psíquica que o amor fraterno de vocês nos concedeu.

Segundo, para compartilhar uma cena que fez lágrimas virem a meus
olhos: Fernando, com Alice no colo, conversando com ela como se
conversa com gente grande.

Ela, com os olhos arregalados, presta atenção e reage erguendo os


bracinhos. E, de repente, ele gargalha e ela tenta uns gritinhos, e
continuam no mais lindo dos colóquios.

Vocês dois entendem tudo da força desse amor.

Dois dias consecutivos marcados por emoções novas e intensíssimas.


Fernando e Gael estavam exaustos, mas profundamente recompensados pelo
amor que lhes brotava de todos os lados.

- Zinho, amanhã eu gostaria de apresentar Alice às avós, se ela estiver


bem.
111

- Ah, sim. A vacina. Vamos, sim, apresentá-la . Podíamos fazer uma


visita na hora do almoço e a outra, à tardinha. Que tal? Ou você prefere
as duas depois do nosso expediente?

- Sua sugestão é melhor porque vai ser do tipo visita de médico. Mas eu
estou pensando em uma outra possibilidade: chamamos as duas até o
consultório, elas se conhecem, conhecem a netinha e fazemos um
lanche lá mesmo. Que tal, Zinho?

- Ótimo, Nando. Unimos o útil ao agradável, damos uma explicação só


para as duas e pronto. Amanhã cedo cada um convida a sua. Ou seria
melhor “convoca a sua”?

- Começamos convidando. Se alguma relutar, convocamos.

- Eu observei você em conferência com a Alice e fiquei com lágrimas nos


olhos. Escrevi para o Rico e para o Jô, descrevendo a cena de amor.

Sabe, Nando, eu nunca pensei em filhos e nem sequer me imaginava


com alguma inclinação para a paternidade, mas vejo que estava
totalmente enganado.

Eu comecei a amar a Alice ainda no fórum. A força do amor é


impressionante.

- Zinho, isso virou realidade por sua causa. Você praticamente me


empurrou ao fórum. E, agora, somos três, mas...

- Mas?

- Amor de pai é amor de pai e amor de marido é amor de marido...

- Você ainda tem forças para o “amor de marido”?

- Venha comigo que lhe mostro a força...


...
Gael e Fernando! Nós dois ficamos emocionados ao ler a mensagem;
tantas sensações vieram à nossa mente e inundaram o nosso coração.

Ontem mesmo eu estava na cozinha e Jô chegou com Luma no colo e


sentaram-se enquanto eu finalizava nosso jantar. Jô começou a contar
para ela como fora seu dia no fórum e a conversa com o juiz.
112

Num determinado momento, eu fui até o quarto para rir porque ela não
só prestava atenção como parecia entender cada palavra. E Bela
também. Uma cena hilária e tocante.

É o poder do amor. Amamos vocês! Estamos aqui!

18. O dia quase normal II

Fernando e Gael levantaram-se e enquanto um foi para o banho, o outro ia


adiantando mamadeira e café da manhã para a família toda. O trio parecia
faminto.

Hoje, Gael teria de pôr roupas na máquina porque ontem, o papai Nando, ao
dar banho na Alice, resolveu que era hora de brincar na água. Resultado?
Todas as toalhas tiveram de ser substituídas. E a farra desses dois? Claro,
Gael acabou juntando-se à dupla.

Gael e Fernando haviam internalizado a rotina das manhãs, desde o levantar-


se até a entrada no elevador, passando por mamadeira, troca de fralda,
reposição de itens da bolsa sacola etc. O treinamento profissional ajudava
muito nessas situações.

Embora trocasse mensagens com sua mãe, fazia alguns dias que Fernando
não ia mais para sua casa paterna. Nem sabia se a mãe havia mencionado
Gael ao pai. Hoje a veria e saberia de tudo.

De qualquer modo, hoje Fernando tentaria conversar sobre tudo com seu
superior imediato.

Fernando tinha estima e consideração por seu superior hierárquico e não se


sentia bem ocultando-lhe informações, mesmo que pessoais. Na corporação,
manifestações racistas, homofóbicas, gordofóbicas e etaristas eram proibidas.

Gael ligou para sua mãe e pediu-lhe que viesse ao consultório um pouco antes
do meio-dia. Conversariam e lanchariam lá mesmo. Cecília aceitou sem hesitar
e disse que levaria algo para o lanche.

Fernando também ligou para sua mãe e pediu-lhe que fosse à recepção da
corporação, um pouco antes do meio-dia. Explicou-lhe que iriam até o
consultório do Gael e lanchariam lá. Wilma mostrou-se feliz por conhecer o
consultório e prometeu que levaria algo para o lanche.
113

Hoje, Lavínia estava no comando e a pequena Alice estava bem aconchegada.


Nenhuma das duas tinha experiência com crianças, muito menos com recém-
nascidos, mas nunca é tarde para um novo aprendizado. Lavínia e Olímpia
tinham gatos em seu apartamento todo telado.

Elas ficavam envergonhadas de revelar o número real de bichanos que


mantinham, e apenas diziam que eram alguns que elas haviam resgatado da
rua, a maioria em péssimo estado. Os gatos eram seus filhos, diziam com
orgulho.

Fernando tinha um bom acesso pessoal ao seu superior hierárquico. Os dois


respeitavam-se profissional e pessoalmente e essa relativa proximidade
permitiu a Fernando uma tática inusual: ele enviou-lhe uma foto de Gael e uma
de Alice, sem explicações. Faria isso na conversa.

Fernando era unanimidade por seu porte masculino, sua voz grave, sua
capacidade de argumentar e negociar em situações tensas e de risco.
Fernando tinha um enorme potencial de dominação, de sedução, e era um líder
natural, informal, entre os membros da corporação.

Fernando conversou com seu superior hierárquico de homem para homem e


disse-lhe absolutamente tudo sobre seu relacionamento com Gael, o
surgimento de Alice e o casamento na semana seguinte. Conversaram sobre
os dias de licença paternidade e os de licença gala.

Fernando sugeriu que os cinco dias de licença paternidade fossem gozados a


partir do dia do despacho do juiz autorizando o registro de Alice. Já os três dias
de licença gala seriam gozados no casamento, como é de praxe. O superior
hierárquico não viu obstáculo algum.

O superior hierárquico ouviu todo o relato de Fernando sem esboçar reação


alguma. Ao final, Fernando perguntou-lhe se ele, Fernando, continuaria sendo
merecedor da admiração do seu superior. O superior simplesmente respondeu:
“sua hombridade sempre será reconhecida”.

Despediram-se com um fortíssimo aperto de mão, que só ocorre quando dois


homens se respeitam e se admiram mutuamente. Ao deixar a sala, Fernando
ouviu um “muito obrigado!” em tom firme, enfático e solidário.

Fernando estava na sua sala quando vê sua mãe sendo escoltada por uma
colega. O superior hierárquico passa pelas duas e fica sabendo que aquela
senhora é a mãe do 2° Tenente Abatte. Ele a cumprimenta e lhe dá os
parabéns, mas ela não imagina o porquê.
114

Fernando prepara-se para recepcioná-la. Mostra-lhe rapidamente sua sala e os


dois seguem em direção à recepção e, de lá, para o consultório do dr. Gael.
Sobem os dois lances de escadas e veem Gael conversando com sua mãe e
Olímpia que alivia as duas de suas sacolas.

- Esta é minha mãe, Cecília, e esta é a mãe do Nando, Wilma. E esta é


Olímpia.

- Que bom, Wilma, nos conhecermos. Nós, mães, não podemos ficar de
fora.

- Verdade, Cecília! Muito bom podermos nos conhecer. E o mais


importante são os olhares de felicidade dos nossos meninos, não é
mesmo?

- Wilma, eles já são lindos sérios, agora, com esse sorriso, ficam
impossíveis.

- Sentem-se, mães. Estamos em família. Temos muitas novidades para


vocês. Como está o coração de cada uma?

- Gael, se é para anunciar o casamento, para mim não é novidade e nem


deve ser para a Wilma.

- Mães, nós vamos nos casar na semana que vem.

- O quê? Na semana que vem? Sem recepção, sem nada? Para que
essa pressa?

- Só casamento protocolar no cartório. Olímpia e Lavínia serão nossas


testemunhas e nós seremos as testemunhas do casamento delas.

- Olímpia? É verdade?

- É, sim, Cecília. Lavínia e eu fomos encorajadas por esses moços e


decidimos que já passou da hora de oficializarmos nossa relação.

- Mas, eu sempre achei que vocês fossem irmãs, Olímpia.

- É verdade, eu sei. Como coincidentemente temos o mesmo


sobrenome, apresentávamo-nos como irmãs para não sermos
hostilizadas. Nós somos medrosas demais, sabem?

- Bem, pelo que entendi, não haverá convidados para esse casamento.
115

- Verdade, mamãe. É uma formalidade urgente, dona Wilma.

- Gael, até parece aqueles casos de antigamente em que havia uma


gravidez a caminho.

- Gravidez, não, dona Cecília, mas a criança já chegou.

- Wilma, você está entendendo alguma coisa?

- Se você está perplexa, Cecília, eu mais ainda.

- Nando, você não quer esclarecer o mistério?

- Mamães, venham até aqui para conhecerem a sua neta Alice.

- Uma neta? Wilma? Você ouviu o mesmo que eu?

- Acho que sim, Cecília. Vamos lá. Esses dois querem ficar órfãos das
mães...

As duas puderam ver Alice pela primeira vez e ficaram espantadas com sua
semelhança com Fernando. Até então, pensavam-na adotada. As avós
abraçaram seus filhos, seus genros, Olímpia e abraçaram-se longamente, aos
prantos de alegria. Alice dormia como um anjo.

Olímpia serviu o vinho branco que dormia no frigobar há meses e os


salgadinhos começaram a ser consumidos. As mães trouxeram um bolo de
cenouras com coco e uma torta de banana. Alice dormia no colo de uma e no
colo da outra vó. Elas mal comiam para evitar acordá-la.

Fernando então contou-lhes tudo, pormenorizadamente. E não conseguiu


esconder as lágrimas, quando mencionou o entusiasmo de Gael para irem ao
fórum a jato. Fernando mencionou a ajuda dos amigos Rico e Jô e detalhou um
pouco da trajetória deles.

Gael enfatizou que não contaram sobre Alice antes, pela mais absoluta falta de
tempo. As duas entenderam a razão do casamento às pressas, mas deixaram
claro que as coisas não ficariam assim. Em algum momento, uma recepção
modesta precisaria acontecer.

Cecília insistiu que Olímpia e Lavínia participassem dessa celebração, como


protagonistas pelo casamento. Olímpia sentiu-se tocada pela lembrança e
levantou-se para servir mais vinho quando Alice acordou faminta.
116

As avós, experientes, mas destreinadas, foram escaladas para preparar a


mamadeira, dar de mamar e trocar a fralda. Aquilo ficou hilário porque parecia
uma junta médica em torno de um caso complicado. As duas revezaram-se
para dar de mamar e para trocar a fralda.

Fernando queria saber se havia novidades sobre as reações dos pais. Cecília
comentou que Otávio ficou feliz e desejoso de conhecer o genro Fernando.
Wilma contou que Benício reagiu tentando mostrar indiferença. Agora, com a
chegada de uma neta, tudo mudaria para melhor.

Como Gael e Fernando ainda estariam atarefados nos próximos dias, muito
atarefados, as mães foram incumbidas de contar tudo aos maridos e às filhas.

Revelações feitas, lanchinho consumido, sobras embaladas, Alice dormindo.


Hora de Fernando voltar à corporação e Gael preparar-se para o primeiro
atendimento da tarde. As mães decidiram descer para um espresso, conversar,
e retornar ao consultório para ficar com a neta.

Antes de fechar a porta, Gael notou que as mães confabulavam com Olímpia e
a linguagem corporal indicava que tramavam algo em secreto. Unirem-se faria
bem a todos.

À noite, já no lar, Gael e Fernando comeram das sobras do que deveria ter sido
apenas um lanchinho e viram que só no café da manhã dariam conta de
liquidar com tudo. Até agora, Alice não apresentou sinal algum de reação à
vacina de ontem.

Os dois sentaram-se no sofá da sala e puseram Alice para dormir sobre suas
coxas, ora de um, ora de outro. Eles queriam sentir sua pulsação e queriam
que ela lhes sentisse a pulsação também. Nessa pulsação corria amor, e amor
dos bons.

- Nando, esses dias agitados trazem um quê de paz. Você não sente
isso também?

- Zinho, desde que ficamos próximos, essa paz tem tomado conta de
mim, mesmo com essas turbulências todas.

Hoje eu conversei com o meu superior na corporação. Nós temos um


certo relacionamento pessoal, com WhatsApp, por exemplo, mas só
usamos em emergências.

- Você contou-lhe tudo? Sobre nós e sobre a Alice?


117

- Eu enviei uma foto sua, aquela que eu tirei, em que você está mais
lindo do que nunca, e uma foto da Alice; meus dois lindos. Mas não
forneci outras informações.

A nossa conversa fora marcada pelos canais oficiais da corporação. Ele


viu, mas nada falou. Na conversa, eu contei do seu significado na minha
vida, de como a Alice surgiu e do nosso casamento.

Fiz-lhe uma proposta para gozar os meus dias de licença paternidade e


de licença gala.

- E ele não retrucou?

- Não. Ficou em silêncio o tempo todo. Ao final, perguntei-lhe se eu


continuaria sendo merecedor de sua admiração e ele respondeu
afirmativamente.

Quando estava saindo, agradeceu, provavelmente por eu lhe ter


confiado esses assuntos tão pessoais. Depois, quando minha mãe
apareceu lá ele a viu e deu-lhe os parabéns, sem explicações.

- Você acha que poderá sofrer algum tipo de retaliação na corporação?

- Dele, não. Dos outros, eu duvido, porque as regras contra


discriminação são claras e frequentemente discutidas. Isso começou
com a chegada de mulheres à corporação, sabe Zinho?

- Eu conheço muitos de lá de vista e sempre nos cumprimentamos.


Espero que isso não mude. E que bom que você poderá gozar alguns
dias com essas duas licenças. Eu vou ver com Lavínia ou Olímpia se há
a possibilidade de alguma folga para mim também.

- Se fosse possível, seria ótimo para nós três. Nem que fosse por
apenas um ou dois dias. Por outro lado, minha mãe já entendeu que não
mais voltarei para sua casa, agora que sou pai da família mais linda.

- Nando, você pensou em alterações nos nomes e em alianças? Eu


gostaria muito de incorporar o Abatte e de usar uma aliança bem vistosa,
mas eu também sou muito prático.

Mudar meu nome significaria mudar todos os documentos, inclusive os


do consultório: tempo, trabalho e dinheiro gasto. Anel com luva não
combina muito e luvas eu coloco e tiro o tempo todo.
118

- Para mim, Zinho, o importante nisso tudo é estar com você. Eu não
preciso de nomes, alianças, nem certidão de casamento. Mas sou
prático também e concordo com você. Vamos deixar como está, exceto
pelo casamento para registrarmos nossa filha.

- E, Nandinho, com a flexibilização da legislação, podemos mudar


nossos nomes a qualquer momento, se o desejo crescer, assim como
podemos passar a usar alianças.

Se der tudo certo com as nossas folgas, precisaremos comprar roupas


para a dona Alice que, aliás, dorme aqui como um anjinho, à luz da lua.

- Falando em lua, Zinho, estou pensando no mel...

- Delícia. Vamos pôr nosso bebê no berço e vamos cuidar do “amor de


pai”?

- Eu estou com muito desejo por esse pai aqui do meu lado.

Os dois deitaram-se para dormir o sono dos justos, não sem antes amarem-se
intensamente como dois homens jovens, saudáveis e vigorosos fazem quando
estão apaixonados um pelo outro. Antes de serem pais, eram homens que se
amavam intensamente.

A cada nova manhã, notavam como as tarefas já eram rotineiras e como os


dois operavam em sintonia harmônica. Alice mamou, fez novo cocô e tomou
um banho quentinho. Os dois alternavam-se nos cuidados, incluindo o café da
manhã. Todas as tarefas eram de todos.

Parecia que hoje seria um dia normal dentro desse novo normal.

19. Nuno e Ryan 9

Seu colega de laboratório, o haitiano Étienne, havia sugerido um dentista a


Nuno ressaltando a praticidade dos horários oferecidos: blocos nos fins de
semana ou em feriados. Nuno achara essa disponibilidade de horários muito
conveniente e, junto com Ryan, agendaram a primeira consulta.

Os dois ficaram encantados com a simpatia do dr. Gael e logo perceberam que
ele não era um explorador como tantos profissionais em todos os setores.

9
Nuno, biólogo, e Ryan, químico, são os protagonistas do conto A vingança.
119

Depois de quase oito meses, a segunda visita estava agendada para sábado,
às 8h.

Nuno lembra-se de Ryan ter comentado que o dr. Gael certamente derreteria
muitos corações naquela cadeira odontológica. Além de ser um homem muito
atraente, era simpático e portava um sorriso natural.

Nuno tentava relembrar tudo o que ocorrera nesses meses, mas sua mente fê-
lo voltar um pouco mais no tempo, naquele tempo em que ele era
marcadamente hétero. Logo veio-lhe a primeira abordagem feita por Ryan e de
como foram tomar o primeiro espresso com palmiers.

Nuno viu-se sentado com Ryan no mesmo café, para um segundo espresso,
logo no dia seguinte, revelando a Ryan alguns pormenores do seu plano de
vingança justa e convidando-o para ser seu parceiro e cúmplice.

Nuno ri-se internamente ao relembrar como ficaram à espreita do assessor de


investimentos até ele deixar o banco BXabiú e como o seguiram até o
supermercado, onde a vingança foi perpetrada. Os dois assessores tiveram
uma lição e tanto sobre o que significa sofrer prejuízos.

Nuno sente seu coração bater mais forte ao relembrar o primeiro jantar dos
dois justiceiros e de como aquela experiência mostrou-se um divisor de águas
na vida de Nuno.

Ele levanta-se em seu laboratório e caminha um pouco por entre as bancadas,


ainda surpreso com a intensidade daquela primeira noite. E das descobertas,
sobretudo de como ele tornara-se importante para Ryan. Tudo ocorreu tão
depressa e foi igualmente intenso.

Nuno lembra-se de como seu pai notou “coisas no ar” e de como foi visionário
ao afirmar que Nuno jamais fora tão amado por mulher alguma. Seu pai e
Ryan pareciam conspirar em secreto e Nuno lembra-se de como passou a
ruminar sobre seus sentimentos a respeito de Ryan.

Se desde o início, os palmiers tinham importância para os dois, a expressão


“cheiro de homem” marcou indelevelmente as impressões de Nuno: Ryan não
era um experimento para um homem, nem uma diversão. Essa constatação era
ao mesmo tempo assustadora e deliciosa.

Nuno também se recorda do quanto seu pai o incentivou a valorizar Ryan e de


como a relação polarizava-se: Nuno sentia agora o que Ryan havia
manifestado, provavelmente já no primeiro encontro com espresso e palmiers.
120

Se um deleitava-se com o cheiro de homem do outro, um chamava o outro de


poeta e era chamado de lenhador. E nada havia mudado, desde então: a
necessidade de sentir o cheiro de homem permanecia, assim como
permaneciam o poeta e o lenhador.

Nuno lembrou-se da viagem inesperada até Maria da Fé para encontrarem-se


com os irmãos de Ryan: Allan e Kevin. E das peripécias que vivenciaram,
especialmente com outro irmão, João, que atravessava um momento pessoal
conturbado.

E como uma lembrança meio que vai puxando outras, Nuno lembrou-se da
comemoração do seu aniversário e do de Ryan, dos pedidos de casamento, de
sua transformação de alguém que desdenhava da instituição casamento até
ver-se inebriado pela ideia de casar-se.

Nuno sentia-se pleno em um casamento em que os dois se admiram,


respeitam-se, valorizam-se e amam-se mutuamente. Não há exigências, nem
ciúmes, nem competições, nem rotinas, nem máscaras. Há certeza que brota
da verdade do amor.

- Bom dia, dr. Gael! Que bom começarmos esse sábado já ensolarado
na sua presença.

- Bom dia, Nuno e Ryan. Uma alegria vê-los novamente. Vocês dois já
nasceram bonitos, mas esse amor que carregam torna-os iluminados,
sabem? Vocês não têm ideia do brilho no olhar de vocês dois.

- Dr. Gael, Nuno é o melhor homem do mundo e eu sou um privilegiado


por tê-lo por marido.

- Dr. Gael, como não amar um marido lindo e poeta como este aqui?
Diga-me? Mas, você tem os olhos brilhantes também, dr. Gael. E um
sorriso de felicidade. Acho que temos novidades, não?

- Tenho e muitas e todas maravilhosas. Caso-me na próxima semana


com outro homem que é o melhor do mundo e vejam o que já temos
aqui. Venham comigo...

- Não acredito! Veja, amor! Um bebê! E dorme profundamente.

- Hoje o Fernando tem plantão na corporação e eu aqui, então


trouxemos a Alice. Ela nasceu domingo e fomos buscá-la na terça-feira.
121

Vamos nos casar na próxima semana para que nossos nomes constem
do registro de nascimento dela.

- Dr. Gael, do fundo do coração, viva intensamente tudo isso porque é


bom demais.

- Vocês também se casaram, não? Eu vejo por essas lindas alianças.

- Sim, casamo-nos junto com o Kevin e o Allan. Aliás, Allan comentou


comigo que eles estão para agendar uma consulta com você.

- Se não me engano, eles virão amanhã à tarde. Ou no próximo


domingo, não me lembro exatamente. Eu disse ao Fernando que
gostaria muito de uma aliança nesse modelo da de vocês, mas eu acho
que terei problemas com as luvas cirúrgicas.

- Nós dois usamos luvas também, mas não na mesma frequência que
você, dr. Gael. Às vezes, a luva fica presa e chega a rasgar, mas acho
que já nos acostumamos.

- Quando formos descer para o nosso espresso, Fernando virá também.


Ele quer muito conhecê-los; você são uma inspiração, sabiam?

- Estou em dúvida sobre quem inspira quem...

- Dr. Gael, trago-lhe recomendações do Étienne e do Renato e, na


segunda-feira, já vou atualizar Eti sobre as novidades.
...
- Hoje eu quero começar com duas radiografias panorâmicas para ter
clareza sobre o estado, principalmente, dos canais e, na sequência,
veremos se algo precisa ser feito hoje.
...
- As duas panorâmicas permitem-me concluir que tudo está em ordem.
Na avaliação bucal eu suspeito de uma cárie em cada um de vocês, mas
eu farei uma profilaxia, isto é, uma limpeza geral e então saberemos se
há mesmo uma cárie, ou não. Não há sinais de tártaro.
...
- Não há mesmo cáries. Eu vou deixar registrado no prontuário para
reavaliar os dois pré-molares quando vocês retornarem, quando Alice
completar seu primeiro aninho de vida.

- Então, estamos liberados?


122

- Sim, Ryan. A higienização dos dois está muito boa e isso previne
muitos problemas.

- E quanto lhe devemos, Dr. Gael?

- Este é o total; metade é para o Ryan e metade para o Nuno. Se forem


pagar tudo junto, posso parcelar em até três vezes.

- Perfeito. Então, estamos liberados para o nosso espresso?

- Sim. Eu vou mandar uma mensagem para o Fernando, de que já


estamos descendo.

- Alice ficará sozinha?

- Não. Lavínia já chegou.


...
- Janice, três espressos, por favor. Nós temos palmiers?

- Vou ver. Se tiver, trago três, pode ser?

- Por favor.

- Como você sabe, dr. Gael?

- Vocês me falaram quando estiveram aqui pela primeira vez. Tudo


começou com espresso e palmiers.

- E você guardou e hoje nos brinda com essa lembrança. Você não
existe, dr. Gael.

- Ah, ali, Fernando é o da esquerda. Ele já nos viu.


...
- Eu estava ansioso para conhecer vocês dois. Gael os considera
inspiradores.

- Fernando, nós já sabemos do casamento e vimos sua Alice dormindo.


Estamos felizes por vocês; temos grande estima e consideração pelo dr.
Gael.

- Vejam como ele é: meu colega estava reclamando de dor de dente,


mas não queria vir. Precisei insistir; eu queria que o Gael desse ao
menos uma olhada.
123

Ele larga tudo para socorrer alguém, mesmo um desconhecido. Como


não amar um homem como esse?

- Verdade, Fernando. Ele tem um senso profissional incrível. Ele é muito


correto.

- Se vocês me permitem eu queria conversar um pouquinho sobre um


tema mais delicado.

- Fernando, sinta-se à vontade. Eu acho que sei o que você quer dizer.

- Nuno, você teve sempre relacionamentos com mulheres, certo? Até


conhecer o Ryan e chegarem aonde estão: casados e felizes. Eu me
vejo exatamente como você.

- Fernando, eu fui muito namorador e levei muitas mulheres para a


cama. Com nenhuma - nenhuma - eu senti o prazer que senti e sinto
com meu poeta. Por nenhuma - nenhuma - eu me senti tão amado como
me sinto amado pelo meu poeta.

Hoje eu sei que todas as minhas relações com mulheres foram só orgia.
Com Ryan é orgia e amor que não cabe em descrições. No nosso
primeiro espresso com palmiers eu senti que ele me amava; da parte
dele foi amor à primeira vista.

Entre mim e ele não há competição, não há ciúmes, não há máscaras


nem rotina. Nem na primeira vez fizemos sexo apenas; tudo já começou
sendo amor. Foi com Ryan que experimentei pela primeira vez o que é
um relacionamento com reciprocidade.

Eu era totalmente contra casamento enquanto instituição que achava


falida. Com Ryan eu senti grande necessidade de casar-me. Como eu
dizia para meu poeta: “se isso não é amor...”

- Nuno, você não imagina como lhe sou grato por esse depoimento. Eu
só tive relacionamentos com mulheres e foram vários. Muitos, mesmo.
Alice é fruto de um deles.

Mas em nenhum - nenhum - como você enfatizou, eu senti o que sinto


com o Gael, de amar e ser amado; de ter um prazer muito maior e
melhor.
124

Na terça-feira, eu tremia ao contar-lhe da Alice, achando que ele poderia


me deixar. Eu acabara de descobrir que era pai e via o grande amor da
minha vida me deixando.

Ele segura as minhas mãos, diz que eu tenho um lar no apartamento


dele, que nós vamos nos casar e que estamos perdendo tempo; já
podíamos estar a caminho do fórum.

E sobre a reciprocidade? Eu sabia o que era, mas nunca havia


vivenciado. Foi com o meu Gaelzinho que eu senti como a reciprocidade
opera e como é maravilhosa. É exatamente o que você disse, Nuno: “se
isso não for amor...”

- Fernando, nós dois estamos com os olhos marejados.

- Verdade, Ryan.
...
- Aspirante Dalmo, seu dente do siso inferior direito está bem inflamado.
Há presença de pus. Vou precisar extrai-lo, o que lhe dará alívio
imediato da dor. Posso prosseguir?

- Por favor, dr. Gael. Eu não estou aguentando de dor.

- Então, eu irei anestesiá-lo. Tudo vai dar certo. Confie!

- Eu confio, dr. Gael. Eu confio.


...
- Fernando, o pai do Nuno foi meu maior aliado, sabia? Desde o início
ele viu tudo.

- Fernando, foi meu pai que me fez ver onde havia amor e como esse
amor era verdadeiro.

- Minha mãe também viu no meu olhar que eu amava como nunca havia
amado antes. Obrigado por essa manhã reveladora. De coração!

Eu vou subir para ver como andam as coisas por lá.

- Conte conosco, Fernando. Você e o dr. Gael.


...
- Lavínia, alguma novidade?
125

- Alice ainda dorme e o dr. Gael vai extrair um siso do Aspirante Dalmo.
A sorte é que os dois anteriores levaram pouco tempo e essa
emergência provavelmente não interferirá no próximo atendimento.

- O Dalmo é muito teimoso. Há dias que ele se queixava, mas não


procurava por ajuda. Hoje precisei insistir. Ainda bem que é com o Gael;
um outro o mandaria para o pronto-atendimento. Eu vou descer e já
volto para ver como estão as coisas.
...
- Aspirante Dalmo, seu siso foi bem anestesiado, mas a inflamação
costuma roubar o poder da anestesia. Você vai precisar me ajudar e
aguentar, certo?

- Certo, doutor. Tudo o que eu quero é livrar-me da dor.

- O 2° Tenente Abatte chegou. Ele vai nos inspirar. E ele me trouxe um


espresso que eu estava mesmo precisando. Obrigado, Nando, isto é 2°
Tenente Abatte.

- O Fernando é meu amigão. E você, agora, também é.

- Obrigado, Aspirante Dalmo, por confiar em mim. Vamos finalizar o


trabalho.
...
- Aqui está o que lhe causava essa dor insuportável. Agora, eu vou
higienizar bem para remover o máximo do pus e dar alguns pontinhos.

- Dr. Gael, a dor sumiu. Graças a Deus, a dor insuportável sumiu. Era
uma dor que invadia toda a minha cabeça.

- E pioraria ainda mais, se não fosse extraído, aspirante.


...
- Agora, fim do sofrimento. Tente não mastigar desse lado da extração
nem faça bochechos fortes desse lado. Se doer, tome Paracetamol.

Ao sair daqui, passe em uma farmácia e compre este antibiótico:


Amoxicilina, 500mg, e tome de oito em oito horas, durante sete dias,
sem interrupção.

Volte na terça-feira para que eu veja como está a cicatrização.

- Quanto eu lhe devo, doutor?


126

- Vamos voltar, Dalmo. Depois eu converso com o dr. Gael. Antes, eu


quero que você veja a nossa filha, Dalmo.

Fernando subira com dois espressos, um para Lavínia e outro par seu Gael.
Mostrou Alice para o Aspirante Dalmo que ficou comovido.

Lavínia achou que ele estava um tanto descompensado emocionalmente


porque chorou ao ver Alice.

Mal desceram e o paciente seguinte surgiu; devem ter-se encontrado nas


escadarias. Esse também seria um caso complicado de tratamento de canal,
mas o dr. Gael estava acostumado.

Fernando e Dalmo retornavam à corporação e Dalmo ignorou a compra do


antibiótico.

- Dalmo, vamos passar ali na farmácia e comprar o antibiótico.

- Eu compro depois, Abatte.

- Dalmo, o que está acontecendo? O dr. Gael disse que era para você
comprar já e tomar já, por causa da infecção.

- Esse antibiótico é caro. Eu compro mais tarde.

- Vamos, você compra e eu pago.


...
- Pronto, aqui está a água. Vamos tomar a primeira cápsula?

- Obrigado, Abatte. Eu nem sei o que dizer.

- Você não quer desabafar um pouco, Dalmo? Quem sabe, não alivia o
seu coração?

- Você está em um momento tão bom da sua vida que não merece se
envolver com os meus problemas.

- Eu não quero me envolver com seus problemas, mas desabafar alivia o


coração a gente.

- Abatte, minha mulher saiu de casa e levou minha filha junto. Disse que
ia para a casa da mãe, mas eu acho que ela tem alguém.

- E o que isso tem a ver com sua falta de dinheiro?


127

- Ela levou meu cartão de débito/crédito. Não tenho como fazer


pagamentos.

- E ela não vai devolver o cartão?

- Ela disse que precisa do cartão.

- As coisas não funcionam assim, Dalmo. Se ela não o devolver você


precisa cancelá-lo. Por que você não fala com ela? Aproveite agora e
ligue para ela.

Tente conversar com ela com calma. Quem sabe ela entende a situação.
Ela pode até sair de casa, mas não pode levar um cartão que é seu.

- Eu pensei nisso, mas e se ela precisar?

- Ela não pode levar o seu cartão sem comunicá-lo. E você também
precisa dele. Além disso, você é o titular, não? Você tem chave PIX?

- Tenho, sim. Esqueci-me do PIX. Eu vou ligar para ela e tentar


conversar. Se ela se recusar a devolver o cartão, eu ligo para o banco e
peço para que seja bloqueado. Eu vou tentar me manter calmo e
conversar civilizadamente.

O fato de a corporação distar menos de duas quadras do consultório


possibilitava a Fernando umas corridas para ver sua filha e, se possível, seu
amado. Hoje, excepcionalmente, conseguiram até fazer um lanche juntos, na
hora do almoço. Lanche que prepararam em casa.

Um pouco antes, Fernando havia preparado a mamadeira da Alice seguindo a


recomendação da dra. Regina, de preparar um pouco mais que Alice mamou
até a última gota. A quantidade recomendada era insuficiente para ela, embora
ela não reclamasse.

Fernando também aproveitou, trocou a fralda e sentou-se na recepção para


conversar com Alice como gostava de fazer. Lavínia apreciava essas cenas
maravilhada. Os dois tinham o dom da paternidade: Gael também andava com
ela no consultório e conversava sobre tudo.

Um casal deixou a sala do consultório e viram Fernando com Alice no colo,


conversando animadamente. Ficaram encantados com o modo como aquele
bombeiro escultural conversava com o bebezinho. Desceram e Fernando ouvi-
os dizer que a criança era “a cara do pai”.
128

Lavínia já havia preparado tudo para o lanche dos dois. Aos sábados, as
sessões eram corridas e o horário do almoço, reduzido. Gael havia revisto sua
agenda e notou que Kevin e Allan viriam amanhã à tarde, no segundo e último
horário. Um domingo e tanto!

- Abatte, obrigado por tudo. Você me ajudou muito, começando com a


ida ao dr. Gael. Parece que depois que a dor some, os pensamentos
fluem melhor.

- Sem dúvida. Dor é horrível, ainda mais dor de dente. E você conseguiu
conversar com sua esposa, Dalmo?

- Consegui. Ela me pediu se podia retornar para casa e eu disse-lhe que


era a nossa casa.

- E você está feliz com essa decisão dela, de retornar?

- Estou, pela minha filha, sabe? É duro pensar na possibilidade de só ver


a filha em um fim de semana. Minha filha e eu somos muito ligados um
no outro. Brincamos muito em casa, sabe?

- É, acho que já sei como é brincar com a filha. E sobre o cartão, Dalmo?

- Ela não usou o cartão e vai devolvê-lo hoje à noite. Disse-me que não
aguenta mais ficar na casa da mãe e ouvir a filha reclamando a ausência
do pai.

- Seria bom vocês conversarem sobre a relação de vocês, Dalmo. Sobre


o que a levou a sair de casa. Quem sabe, vocês não descobrem juntos o
problema.

Conversar civilizadamente, com calma, sem cobranças nem acusações


costuma ajudar muito. Mesmo que a separação seja a única saída, fica
menos traumática, sem agressões.

- Você tem razão, Abatte. Eu vou tentar. Na segunda-feira, conto para


você o desfecho.

O plantão do sábado chegou ao fim. Fernando foi novamente ao consultório e


encontrou Gael finalizando a arrumação e deixando tudo pronto para amanhã
cedo, domingo. Atenderia seis pacientes amanhã e estaria sem as suas
assistentes.
129

Também viu que havia mensagem em seu celular da portaria remota avisando-
o de que havia encomenda a ser retirada. Provavelmente era erro, pois Gael
não esperava encomenda alguma.

- Zinho, obrigado por ter socorrido o Dalmo. Depois eu acerto com você.

- Eu já preparei a conta dele, Nandinho: dois abraços, três beijos e um


“algo mais”.

- Pago, sem nem sequer me endividar.

- O siso dele estava bem infeccionado e deve ter doído no momento da


extração porque o pus interfere na ação do anestésico. Mas ele
aguentou bem e o alívio foi imediato.

- Ele é um bom sujeito, sabe Zinho. Ele chorou quando viu a Alice
porque estava com saudades da filha.

- Eu só senti não ter podido conversar com o Nuno e o Ryan. Espero


que eles não me tenham levado a mal. Em casa, eu mando uma
mensagem para eles, desculpando-me.

- Nada. Pelo contrário. Admiraram seu senso profissional.


...
- Olhe, Nando, há mesmo uma caixa aqui e é bem grande. Tem os
nossos nomes.

- Estranho. Ninguém sabe de nós dois, exceto nossos familiares mais


próximos. Eu levo a Alice e a bolsa sacola e você leva a caixa. Está
pesada, Zinho?

- Não, pelo tamanho. Não parece que foi entregue por alguma
transportadora.
...
- Nando, veja isso! E vem na hora certa, viu!

- O quê? Dois pacotes de fraldas, duas latas de leite, dois macacões de


manga curta e dois de manga longa. E adivinhe de quem veio isso tudo?

- Está me parecendo obra das nossas mães. Acertei?

- Acertou, Zinho. Aqui há um bilhete das duas. Que amores, não?


130

- Melhor que esses presentes é elas estarem unidas e conosco, Nando.


Não querendo ser desagradável, mas o lindo 2° Tenente Abatte tem uma
dívida comigo.

- Zinho, essa dívida é do homem da sua vida e vai ser paga em


prestações nada suaves.

...
Mães e sogras, obrigados pela caixa com produtos de primeira
necessidade. A sua neta é grande consumidora de fraldas e de leite.
Mais lindo ainda é vê-las lutando conosco e por nós. Amamos vocês
duas!
...
Queridos Nuno e Ryan, perdão por não ter ficado com vocês para o
espresso com palmiers. Vocês conhecem o ditado “o dever, antes do
prazer”. Era um caso urgente, mas quinze minutos a mais não fariam
diferença. O problema é que eu não consigo. Perdoem-me. Vocês dois
moram no meu coração. No nosso coração, corrigindo.
...
Gael, é exatamente por você ser como é que admiramos e amamos
você. Nossa conversa com o lindo Fernando foi maravilhosa. Ele é um
homem encantador, como você. Beijos saudosos nossos.
...
- Gaelzinho, sabe que as refeições que temos levado me têm feito muito
bem? Eu sei que mais um peso para você, mas vamos ter de procurar
uma maneira de não sobrecarregar você.

- Nandinho, uma alimentação saudável é importante. É o que chamam


de “comida de verdade”.

Eu não gostaria de dar sucos industrializados para a nossa filha; basta


nos organizarmos e as coisas acontecem. E com a sua participação,
tudo fica ainda mais gostoso.

- Nuno também enfatizou a palavra reciprocidade quando descreveu um


pouco da história dele e do Ryan. Esse é um termo que não podemos
perder de vista.

- É, Nandinho. A gente vai fazendo as descobertas na vida. Aliás,


amanhã, no último horário virão dois irmãos do Ryan que se casaram
junto com Nuno e Ryan. Valeria a pena tomarmos um espresso com eles
antes de voltarmos para cá, não?

- Dois irmãos e casados? Essa história interessa-me, Zinho.


131

Amanhã, levo você ao consultório, dou uma passada rápida na


corporação, venho para cá para pôr coisas em ordem, fico com a Alice
para você poder trabalhar, já que as assistentes não virão e vamos
buscar você.

- Ótimo, Nandinho. Eu acho que sentirei falta da Alice, se bem que a


correria será grande amanhã; só casos complexos na parte da manhã.

O dia vai passar em um piscar de olhos e trabalho algum vai me fazer


esquecer que amor de marido é amor de marido.

- Zinho, você é o melhor marido do mundo. O mais lindo e o mais


gostoso. E o melhor pai também.

- Nandinho, você deixa o seu Zinho examinar você assim, bem de


pertinho? Cada pelinho?

- Olhe e veja como seu Nando está pronto para seu exame, amor!

20. Kevin e Allan 10

Kevin está preparando o café da manhã para os dois, enquanto Allan foi à
padaria para uns pães franceses quentinhos; a padaria fica a uma quadra e o
cheirinho dos pães de manhã é tentador. Kevin e Allan retornarão ao dr. Gael
hoje à tarde só que em uma situação diferente da anterior.

Kevin cantarola na cozinha; está apenas insuportavelmente feliz ao lado do


amor da sua vida. Kevin reconhece-se como alguém que nasceu para amar:
seus pais, seus irmãos, seus cunhados, seu sobrinho. E Allan, seu amor.

Kevin ri enquanto cantarola porque a vida lhe parece muito engraçada. Mas o
amor é bizarro, Kevin reconhece. E fulminante. Sim fulminante! Foi um certo
choque saber da existência de um meio-irmão, sobretudo pelas possíveis
reações de sua mãe.

Kevin coloca o leite para aquecer e lembra-se bem do dia em que conheceu
seu meio-irmão; no contato dos olhares, fagulhas incendiárias manifestaram-
se. A reciprocidade era forte.

10
Kevin, administrador, e Allan, engenheiro, são os coprotagonistas do conto A vingança.
132

O pouco que sentia pela namorada evaporou-se e Kevin viu-se atônito, embora
sem perder a espirituosidade nem o bom-humor. E recorreu ao apoio do seu
amado irmão Ryan e ao do seu amado pai. Kevin estava enamorado de um
homem e esse homem era seu meio-irmão.

E Kevin, que jamais duvidou da força do amor, nem mais queria saber de tentar
entender como ele, um homem hétero, que exclusivamente se relacionou com
mulheres, encontrou em um igual o prazer e a satisfação que mulher alguma
lhe proporcionara.

A primeira visita ao consultório do dr. Gael ocorreu por indicação de Ryan, em


boa parte devido à flexibilidade de horários que o dentista oferecia. A simpatia,
o sorriso, a solicitude do dr. Gael conquistaram os dois e hoje retornarão com
muitas novidades.

Allan retorna da padaria, recebe um beijo do seu beijoqueiro favorito e


contempla-lhe a fisionomia: estava diante de um homem másculo,
absurdamente atraente, e insuportavelmente feliz. Allan lembra-se do milagre
que Kevin operou em um outro irmão, João, em Maria da Fé.

Allan também vê a fisionomia da sua mãe, até então de tez endurecida pela
vida, e como Kevin a arrebatou com sua espontaneidade, sua beleza, sua
masculinidade e seu amor. Allan amava cada centímetro quadrado da
espontaneidade, da verdade que brotava do seu marido lindo.

Hoje almoçariam na casa dos pais e poderiam brincar com o mais novo
sobrinho, o Dudu. Allan já preparava seu coração, pois Kevin, em algum
momento, iria querer ter um bebê em casa. E Allan jamais lhe negaria esse
pedido.

- Amorzão, hoje nós vamos ver o dr. Gael, às 15h30.

- Eu estava pensando nele, sabe? Eu gosto dele: simples, competente,


amoroso.

- E vamos almoçar em casa e alguém vai querer rolar com o Dudu pelo
chão.

- Lindão, Dudu é minha paixão. E ele corresponde. É impressionante!

- Você quer levar uma muda de roupas para não chegar muito estragado
no dr. Gael?
133

- Não precisa, lindão. Ele vai entender se eu explicar que fiquei rolando
com meu sobrinho.

- Amorzão, se você sentir que deseja um também, saiba que estarei do


seu lado, viu?

- O quê? Lindão! Você iria gostar de ter um serzinho engatinhando aqui


pela sala?

- Se este for o seu desejo, sim.

- Lindão, venha aqui que eu quero cobrir você de beijos...

Alice, Gael e Fernando chegaram ao consultório e Fernando foi até a


corporação para ver se algo precisaria de sua intervenção. Chegou
praticamente junto com o aspirante Dalmo, cujo semblante parecia bem mais
aliviado do que ontem.

- Bom dia, Dalmo. Como você está? Pelo menos, o inchaço sumiu.

- Bom dia, Abatte. Estou ótimo, sabe. Muito obrigado por tudo. Você me
ajudou muito, ontem.

- E a conversa com sua esposa foi boa?

- O reencontro com minha filha foi o melhor de tudo. Minha esposa está
muito envergonhada do que fez. Deve ter tomado umas boas broncas da
mãe, sabe?

- Às vezes fazemos coisas impensadas. Que bom que uma certa paz
voltou ao lar.

- Eu só vim para acertar as contas com o dr. Gael. E com você também.
Estou firme no antibiótico. Você vai comigo até ele?

- Vou, sim. Só quero ver se há algo por aqui que precise da minha
intervenção.
...
- Bom dia, dr. Gael. O senhor tem um minutinho para acertarmos nossas
contas?

- Bom dia, Aspirante Dalmo. Tenho sim, mas primeiro eu quero saber
como você passou a noite. Conseguiu dormir bem? Sentiu alguma dor?
134

Precisou tomar o Paracetamol? Está tomando o antibiótico desde


ontem?

- Estou ótimo, dr. Gael. Dormi bem, sem dor e sem Paracetamol. Vou
continuar com o antibiótico pelos setes dias. O Abatte comprou o
antibiótico para mim, ontem. Se o senhor puder acrescentar na minha
cobrança, já que vocês são uma família...

- Eu até faria, mas a contabilidade não me permite. Eu posso parcelar o


seu em duas vezes, se você quiser.

- Por favor, então. E eu posso olhar a Alice mais uma vez? Hoje, sem
chorar?

- Mas é claro. Com alegria.


...
- Nandinho, meu lindo, a dívida mudou de mão, então teremos de fazer
um novo acerto.

- Zinho, nas mesmas bases da de ontem, certo? Abraços, beijos e “algo


mais”, correto?

- Corretíssimo. Anotado na contabilidade do meu ursinho.

- Eu vou com Alice para casa para adiantar algumas coisas. À tarde, nós
viremos para buscar você, porque as dívidas precisam ser saldadas no
mesmo dia.
...
- Dr. Gael, nosso lindão, boa tarde!

- Kevin, Allan, sejam muito bem-vindos, se é que alguém consegue


sentir-se bem-vindo ao consultório do dentista. Vocês dois estão
radiantes. Acho que é reflexo desses anéis, não?

- Gael, você já deve saber pelo Nuno e pelo Ryan que nós nos casamos.
Aliás, o Ryan nos disse ontem que você também tinha novidades, mas
não quis revelar qual era.

- Eu tenho sim, mas só revelarei depois da nossa consulta, quando


descermos para o nosso espresso de fim de domingo.

- Dr. Gael, sua expressão de felicidade já me convence. Você


naturalmente já esparze luz, mas hoje ilumina um centro cirúrgico.
135

- Amorzão, que lindo isso. É mesmo. Gael está feliz. Sai dos poros dele.

- Vamos ver como anda nossa saúde bucal? Quem será o privilegiado a
tomar assento nesta confortável poltrona odontológica?

- Eu vou, Gael lindão. Eu vou!

- Hoje, eu gostaria de ter duas radiografias panorâmicas para verificar


tudo, em detalhes, especialmente os canais. Depois dessa análise,
saberemos o que precisa ser feito.
...
- Kevin, sua radiografia não mostra anormalidade, mas há um pequeno
foco de tártaro e possivelmente um cárie. Vamos fazer uma profilaxia,
uma limpeza geral e aí confirmo.

Allan, temos duas cáries claras para restaurar, temos tártaro para
eliminar, mas vamos começar com a profilaxia.

- Até os 18 anos eu praticamente não conhecia visitas ao dentista. Eu


nasci e cresci na roça, como se diz.

- Fique tranquilo, Allan, que resolveremos tudo hoje.


...
- Agora, depois das profilaxias, tenho clareza. Kevin, temos tártaro e
uma cárie para restaurar. Allan, temos tártaro também e duas cáries
maiores para restaurar. Então, posso continuar?

- Por favor, Gael. Faça o que você achar que é necessário.


...
- Pronto. Tudo terminado e em ordem. Ah, a surpresa já está esperando
por nós.

- Quanto nós lhe devemos, Gael?

- Este é o total para o Allan e este, para você, Kevin. Se pagarem tudo
junto, posso parcelar em quatro vezes.

- Eu pago tudo, Gael. Estou ansioso para saber das surpresas. Deve ser
algo especial, senão meu lindão Ryan teria dito.

- Vocês são dois casais excepcionais. Eu tenho muito orgulho de vocês


quatro! Eu vou desligar tudo aqui e podemos ver a surpresa.
136

- Este é o 2° Tenente Abatte, o Fernando. Estes são Kevin e Allan. Esta


é Alice.

- Olá, Fernando! Lindão, olhe para essa joia! Olhe! Não é a coisinha
mais linda? E é a cara do Fernando.

- Os detalhes vocês saberão à mesa, com espressos.


...
- Lindão, que dois homens bonitos são esses, não?

- Amorzão, eles são uma linda família feliz. Pense no que lhe disse hoje
de manhã.

- Eu conheci o Nuno e o Ryan e fiquei encantado eles. E agora, vocês


dois, tão simpáticos e acolhedores. Quem é irmão de quem, afinal.

- Eu e o Ryan somos irmãos. O Allan, este gatão aqui, é nosso irmão por
parte de pai. E é o meu marido mais lindo do mundo.

- E, mesmo sendo irmãos, você conseguiram casar-se?

- Eu fui registrado pelo meu pai adotivo, então não apareço como irmão
do Kevin nos documentos. E nós nos conhecemos, sem termos tido
convivência de irmãos.

Mas, falem-nos de vocês. Eu gostaria de saber da surpresa...

- A Alice faz uma semana hoje. Ela é minha filha biológica e a mãe a
entregou na vara da infância e a juventude na terça-feira. Se eu não a
levasse, ela seria entregue para adoção. E Gaelzinho, o amor da minha
vida, foi o primeiro a insistir para que o desejo do meu coração
prevalecesse.

Fomos buscá-la juntos e vamos nos casar na semana que vem para que
os nossos nomes constem na certidão de nascimento da Alice. Amanhã,
haverá coleta para o nosso exame de DNA.

- Que história mais, linda, Fernando e dr. Gael. Mas, DNA para quê? Ela
é a cara do pai assim como eu sou a cara do meu. A mãe do Kevin
quando me viu teve certeza de que eu era filho do seu marido.

- Eu fico fascinado em ver como nas nossas vidas existe reciprocidade.


Nada é de mão única. Hoje mesmo falávamos sobre a possibilidade de
um serzinho engatinhando na nossa sala.
137

- Kevin e Allan, por que vocês não nos acompanham amanhã à vara da
infância e da juventude, no fórum do Ipiranga? Nós apresentamos vocês
para a Wanda, a assistente social que dá início ao processo de adoção.

Um casal de amigos nossos recebeu sua filha pelas mãos dela.

- Por que não a conhecer, conversar com ela, informar-se, tirar dúvidas?
Não custa nada, exceto pelas horas de ausência do trabalho. Nós
poderíamos nos encontrar na recepção às 9h, que tal?

- Fernando, Gael, muito obrigado por essas dicas. Eu já disse ao Kevin


que, se for do desejo do coração dele, eu estou com ele. E estarei
sempre! É a tal reciprocidade, não?

- Fechado. Se meu lindão está comigo, estaremos lá amanhã, às 9h.

- Kevin, se você me permitir, eu tenho uma pergunta.

- Claro, Fernando. Nada me assusta, depois que meu lindão deu luz
verde...

- Você sempre namorou mulheres, certo? Como o Nuno e como eu.


Como foi para você sentir-se envolvido com o Allan?

- Nuno e eu estávamos em relacionamentos com mulheres, quando


conhecemos os nossos gatões. Eu conheci o meu lindão quando nosso
pai o apresentou em uma reunião familiar.

Ryan foi o primeiro que se levantou para abraçar o Allan, abraço de


boas-vindas, sabe? Depois eu fui. Nesse abraço, gostoso, apertado, eu
senti uma mágica acontecer.

Depois conversamos e eu sentia algo estranho, mas muito bom,


Fernando. Eu tinha medo, porque nunca tinha tido intimidades com um
homem, mas queria muito ter com o Allan.

E quando aconteceu, foi apenas maravilhoso: com Allan eu descobri um


mundo que eu nunca havia sentido antes, com mulher alguma.

Eu nunca me senti tão verdadeiramente desejado e amado como pelo


Allan. Depois, foi só aceitar que eu estava irreversivelmente envolvido
com o grande amor da minha vida.
138

Casamo-nos e, pela nossa expressão, você pode ver que nos


arrependemos a cada dia do que fizemos.

- Obrigado, Kevin. De coração. A minha história é muito, muito parecida


com a sua. E agora, com a Alice, nem se fala.

A Wanda, assistente social, nos ensinou que amor de pai é amor de pai
e amor de marido é amor de marido. Estamos seguindo à risca esse
ensinamento.

- Eu queria contar para vocês as cenas que eu vejo do Nandinho. Às


vezes, preciso sair de perto e rir longe. Ele pega a Alice no colo e
conversa com ela como gente grande e ela fica com os olhos atentos e,
às vezes, ergue o bracinhos e tenta falar.

Acho que você, Kevin, faria exatamente o mesmo. Eu já peguei esse


hábito no consultório: pego-a no colo e explico-lhe tudo o que vou fazer,
como se estivesse conversando com um adulto.

E então, eu sinto algo fortíssimo em mim: a voz da paternidade, do


amor. Alice é minha filha e eu sinto nas vibrações que ele é filha
biológica do Nandinho.

O amor transforma; o amor cura. Alice veio para nós na terça-feira, mas
é como se ela sempre tivesse feito parte de nós. Allan, eu acho que você
se sentiria como eu.

- Lindão, vamos para casa para ruminar sobre isso. Que tal?

- Vamos, amorzão. Além disso, o dr. Gael deve estar exausto e precisa
descansar.

- Vamo-nos amanhã, às 9h, na recepção do fórum do Ipiranga.

21. Compromissos legais

Gael e Fernando aproveitaram que tinham compromisso só às 9h para


descansar porque o pagamento da dívida com juros e correção acabou
estendendo-se noite adentro e cansando-os. Agora, estavam deitados na cama
com Alice, em bons colóquios.

Ela não participara da farra paterna e estava, obviamente, faminta. Gael foi
para a cozinha preparar a mamadeira e o café da manhã. Fernando daria de
139

mamar e Alice tomaria seu banho depois do cocô matinal e antes de receber a
fralda limpinha.

Fernando começou a dar a mamadeira para Alice e viu uma tira de papel sob
seu prato. Puxou-a e leu “você é o melhor marido do mundo”. Seus olhos
ficaram marejados e ele começa a contar para Alice sobre a tira, a frase e o
significado. Alice estava focada na mamadeira.

Assim que os dois terminaram o café da manhã, Alice já havia produzido seu
cocô matinal. Agora, podia tomar banho e receber fralda nova. Iria para a
coleta com um macacãozinho das vovós. Hoje, essa tarefa era do papai
Fernando.

- Zinho, o coto do cordão umbilical secou e caiu. Depois do banho vou


passar um pouco de óleo para não coçar. E ela não teve reação à
vacina. Essa mocinha é um doce.

- Óleo é bom; hidrata. Ela é muito saudável. Como é a cara do pai, deve
ter essa boa genética saudável também.

Quando Fernando e Gael saiam do estacionamento, Kevin e Allan entraram.


Allan trazia uma pastinha na mão; sinal de que iriam mesmo dar entrada no
processo de adoção. Abraçaram-se, beijaram-se e caminharam juntos até o
fórum. Quatro homens estonteantemente belos.

- Bom dia! Nós vamos falar com dona Wanda.

- O senhor sabe onde ela fica?

- Sim. Já estivemos aqui antes.

- Podem seguir, então.


...
- Bom dia, Wanda! Voltamos com reforços.

- Bom dia, Gael e Fernando. E princesinha linda, também.

- Wanda, esses são nossos amigos Kevin e Allan. Eles gostariam de


falar com você sobre adoção.

- Olá, Kevin e Allan. Eu já vou atendê-los. Sentem-se aqui um pouco. Eu


só vou encaminhar os dois para a coleta e volto em seguida.
...
- Esperem aqui, por favor. Eu vou avisar que vocês já estão disponíveis.
140

- Obrigado, Wanda. Agora, nós vamos ficar esperando até chamarem o


papai e você. E vamos esperar pelos titios também.

- Chegamos um pouco antes, mas parece que já estavam atendendo.

- Senhor Fernando Lourenço Abatte e criança.

- Vá, Nandinho. Tudo vai dar certo.


...
- Pronto, Zinho. Coleta feita. Eu achei que iam colher sangue, mas
coletaram saliva. A enfermeira informou-me que o laudo comparativo
leva até 20 dias.

- De qualquer maneira, a documentação do nosso casamento ficará


pronta antes disso. E agora? Retornamos à sala da Wanda?

- Acho que sim. Vamos esperar pelos dois, não?


...
- Olá, Wanda. Tudo feito. Qual o próximo passo?

- Eu preciso de cópia autenticada da certidão de casamento de vocês.


Se puderem, tragam-na para mim na próxima segunda-feira.

- O laudo vem para vocês, diretamente? Em 20 dias, certo?

- Sim. Vem para mim e eu o entrego fechado ao promotor. Esse é o


prazo máximo, mas eles geralmente antecipam quando há registro
pendente, como no caso dela.

- E você liga para mim? É isso?

- Eu ligo para você vir retirar o despacho do juiz para o registro dela,
com os nomes dos dois.

- Entendi. Você sabe se nossos amigos já foram?

- Estão com a psicóloga e não vão demorar. Hoje é só triagem inicial.

- Wanda, obrigado por tudo.

- Eu entro em contato com vocês. Não precisam ficar preocupados.


Podem esperar pelos dois aqui mesmo.
141

Eles estão na sala 4. Se vocês puderem, coloquem-nos em contato com


o Rico e o Jô para irem se familiarizando com o processo. Abraço e
fiquem bem!

- Obrigado mais uma vez. Vamos, sim, colocá-los em contato com Rico
e Jô.
...
- E então? A coleta já foi feita?

- Já, Kevin. E o processo de vocês?

- Iniciamos agora. Já deixamos cópias dos nossos documentos e o


contato será sempre feito pela Wanda. A instrução é aguardar que
seremos acionados.

- Então, podemos ir, não? Eu vou deixar o Nando na corporação e sigo


para casa com Alice.

- Ah, é. Hoje você não tem consultório.

- Hoje, não. Na quarta-feira casamo-nos e Nando tem três dias de


licença gala, o que será bom para colocarmos tudo em dia.

- Nós não tivemos esses três dias. Nós nos casamos em um domingo
com feriado prolongado, para facilitar a vinda dos parentes do Allan, lá
de Maria da Fé.

- Quando registrarmos a Alice, o Nando terá direito a mais cinco dias.


Isso tudo já ajuda.

- Amigos queridos, vamos nos manter em contato.

- Vamos, sim! Eu vou apresentá-los ao Rico e ao Jô que já passaram


pelo processo. Beijos!

Kevin e Allan ainda conversaram mais um pouco com Wanda. Fernando e Gael
foram ao estacionamento. Gael deixaria Fernando na corporação. Essas horas
tinham dispensa judicial para Fernando.

Mal Gael sai do estacionamento e dirige por uma quadra e meia, seu celular
toca. É Lavínia. Fernando atende e coloca no viva-voz.

- Bom dia, Lavínia. É Fernando. Gaelzinho está ao volante. Está no viva-


voz. Pode falar.
142

- Então, bom dia aos dois. Eu estou no cartório e quero confirmar os


nossos casamentos para quarta-feira, às 11h30. Posso prosseguir?

- Será que teriam o horário das 12h, Lavínia?

- Sim, está disponível. Posso confirmar quarta-feira, às 12h?

- Pode sim, Lavínia. Obrigado. Veja, por favor, para que nossos nomes
permaneçam como estão.

- Sim, já verifiquei. Os nossos também. Esse horário é bom porque o dr.


Gael não precisa cancelar consulta alguma.

- Excelente, Lavínia. Afinal, eu não terei a licença gala. Obrigado por


tudo. Pai e filha já fizeram a coleta para o DNA. Eu vou deixar o Nando
na corporação e volto para casa com Alice.

- Ótimo. Obrigada vocês dois. Até amanhã.

- Viu, Alice? Os papais vão se casar e você não será mais filha de pais
solteiros. E você irá junto ao cartório para ver tudo.
...
- Nandinho, você está entregue. Tenha um ótimo dia. Amamos você,
viu?

- Zinho, amor da minha vida, cuide-se e cuide de nossa filha. Amo


vocês! Muito!
...
Bom dia, Rico, Jô, Luma e Bela. Estamos bem, aprendendo novas lições
a cada dia. Estamos voltando do fórum, onde Fernando e Alice
submeteram-se à coleta de DNA. Levamos dois amigos casados, Kevin
e Allan, para falar com Wanda sobre adoção. Ela sugeriu que os dois
conversassem com vocês, sobre a dinâmica do processo. Vocês
concordariam em conversar com eles? Abraço e beijo nossos. Dos três!
...
Bom dia, trio lindo! Claro que conversamos com eles. Que bom que o
processo de vocês está caminhando. Podem passar meu contato para
eles que a gente vê a melhor maneira de nos falarmos. Mantenham-nos
informados, por favor. Abraço, beijo e lambidinhas dos quatro!

Gael aproveitaria esta sua segunda-feira de folga para adiantar várias tarefas
no apartamento. A primeira, seria aproveitar que Alice estava acordada para
143

caminhar com ela no colo e conversar muito sobre a vida. Ela ouvia seu pai
falando sobre a beleza do amor; ouvia-o e sentia-o.

Gael intuitivamente acreditava que amar não é só limpar e alimentar; amar é


relacionar-se, é conversar, é sentir as pulsações de energia mutuamente.
Nando ficava revigorado após um colóquio com Alice e Gael precisava
experimentar desse outro néctar vital.

Ouvir atentamente e entender os relatos de um pai provoca certa fadiga e logo


Alice entregou-se ao soninho. Gael deixou-a num canto protegido na cozinha
enquanto colocava roupa na máquina de lavar, preparava arroz e carne de
panela para congelar.

Gael tinha poucas panelas, mas as que tinha eram caldeirões e uma panela de
pressão grande. Sua rotina de cozinha era preparar grandes quantidades,
porcioná-las e congelá-las. Hoje, prepararia um quilo de arroz e pouco mais de
dois quilos de coxão duro em cubinhos.

Seus temperos tradicionais eram alho, cebola, sal, louro, pimenta malagueta da
horta e alecrim da sua horta também. Assim, Gael produzia pratos simples,
próprios para o dia a dia, que eram leves e nutritivos e que Nando amava
também.

Se houvesse tempo, Gael prepararia umas panquecas que seriam recheadas


com um resto de patinho moído incrementado com ovos cozidos e azeitonas.
As panquecas receberiam do molho de tomates caseiro, bem encorpado e
seriam levemente gratinadas.

Fernando tinha uma segunda-feira cheia na corporação: receber visitas


externas, participar de uma audiência interna sobre um processo disciplinar e
tentar finalizar todos os laudos entre hoje e amanhã, já que a partir de quarta-
feira estaria em licença gala.

Sentiu um alívio ao ver um vídeo que Gael lhe enviara: uma selfie de Gael
caminhando com Alice pelo apartamento e falando do amor que tinham pelo
papai Nando. Ele ficou tão feliz que tinha vontade de percorrer todas as salas
para mostrar seus tesouros.

Em meio a todas essas tarefas, a segunda-feira foi findando. Gael havia


abastecido o freezer, preparado o jantar, lavado roupas e arrumado
razoavelmente o apartamento. Também cuidou das suas plantas da sala e
especialmente da horta.
144

Fernando chegou e abraçou longamente seu Zinho. Abraçou-o e sentiu um


forte desejo dominá-lo e um grande parênteses foi aberto em tudo o mais, para
que os dois pudessem se amar forte e intensamente. Amor de marido não era
para ser amor de marido?

O desejo, aquela força avassaladora, não deveria ser sempre programado.


Algumas vezes tinham que dar um osso ao cachorro e cuidar de si mesmos.
Hoje foi assim, tudo espontâneo, intenso, feérico, selvagem até. O fogo ardia
nos corpos dos dois.

Refeitos da vertigem, foram juntos para o banho, massagearam-se, abraçaram-


se, beijaram-se e amaram-se pela segunda vez. Mais uma noite para ficar na
história. Havia tempo para tudo e Alice, a prioridade, ainda não acordara.

As panquecas ficaram deliciosas e Gael havia feito uma quantidade suficiente


para Nando levar duas para seu almoço da terça-feira e ainda sobrar uma para
ele consumir no consultório.

Alice mamou e teve a fralda trocada. Caminhou no colo do pai Nando pelo
apartamento, olhou as luzes dos prédios pela janela e tombou no soninho
gostoso. Gael e Nando namoraram um pouco no sofá e deitaram-se para
dormir o sono dos bons e dos justos.

22. Casamentos

A terça-feira foi especialmente intensa para Fernando que não queria deixar
pendências para alguém resolver enquanto estivesse em licença gala.
Oficialmente, só o seu superior hierárquico sabia do casamento amanhã, mas
as notícias correm depressa.

Fernando e Gael ainda não tinham estado com seus pais e estranhavam o fato
de nenhum deles ter-se manifestado. Depois do casamento certamente
levariam Alice aos avós paternos. O fato de Gael trabalhar muito aos sábados
e domingos desencorajava qualquer tipo de convite social.

Havia uma novidade: o superior hierárquico de Fernando chamou-o à sua sala


inesperadamente para repassarem os registros de seu prontuário e para
Fernando tomar ciência da avaliação do seu superior. Fernando surpreendeu-
se com o que considerou uma avaliação generosa.

Aparentemente, o fato de Fernando assumir um relacionamento homoafetivo,


com casamento e paternidade, não impactou negativamente a avaliação, como
145

ele esperava que fosse acontecer. Embora fossem situações distintas, é difícil
separar uma coisa da outra. Fernando ficou feliz.

O Aspirante Dalmo foi ao consultório do dr. Gael, no finalzinho da tarde, para


que ele avaliasse a cicatrização. O aspecto era de plena recuperação e Dalmo
saiu com duas recomendações: não suspender o antibiótico e não esperar
tanto tempo em uma próxima ocorrência.

Olímpia deixara tudo preparado para que os três dias em que dr. Gael ficasse
sem as assistentes fluísse com o mínimo de contratempos. Nos dias mais
pesados, sábado e domingo, elas reassumiriam o posto.

Gael já havia informado Kevin e Allan dos contatos de Rico e Jô. Aos poucos,
Gael sentia que haveria uma aproximação maior com alguns de seus pacientes
e isso era bom, até porque eram casais em que havia amor entre iguais e a
presença de um bebê. As semelhanças importavam.

A quarta-feira começou cedo, já que Gael seguiria ao consultório. Nando levou


os dois e ficou de buscar Gael às 11h30. Como Gael não conseguiria trocar de
roupa, Nando achou que deveria casar-se fardado. Foi com uniforme e farda
que tudo começou e seria assim no casamento.

Gael sentiu-se um pouco arrependido por ter escolhido não usar aliança.
Lembrava-se das alianças fortes nas mãos de Rafael e Henrique, de P e J, de
Rico e Jô, de Nuno e Ryan, de Kevin e Allan. Se essa vontade persistisse,
conversaria com Nando. Sempre haveria tempo.

Às 11h30, Gael desceu os dois lances de escadas e viu o carro de Fernando


aproximar-se. Alice havia mamado e estava com fralda limpinha e tinha aquele
cheirinho gostoso de nenê. Gael viu como Fernando reluzia em sua farda: que
homem estonteantemente belo era aquele!

Gael entrou, sentou-se e ganhou um longo beijo de Fernando que foi visto por
alguns clientes e funcionários da padaria. Dois homens arrebatadoramente
belos e apaixonados um pelo outro. Fernando dirigiu até o estacionamento
mais próximo do cartório, mas estava lotado.

Vaga em zona azul, neste horário? Impensável. Acabaram encontrando um


com vagas disponíveis, mas tiveram de fazer uma boa caminhada até o
cartório, carregando o bebê conforto com Alice e a bolsa sacola.

Caminharam de mãos dadas e foram a sensação por onde passavam. Um


bombeiro fardado e um médico? Dois homens masculinos caminhando de
146

mãos dadas e carregando um bebê. Uma cena para ser registrada e


compartilhada nas redes sociais.

Fernando e Gael chegaram 12 minutos antes do tempo e foram orientados a


dirigir-se à sala contígua. Olímpia e Lavínia certamente já estavam lá. Era hora
de almoço e o cartório começou a receber mais pessoas. Fernando e Gael
foram à sala designada, de mãos dadas e com Alice.

Ao entrarem, não acreditaram no que viam. Olímpia e Lavínia estavam lá,


vestidas como de costume e haviam organizado tudo: os pais e as irmãs de
Fernando, os pais e a irmã de Gael e o superior hierárquico de Fernando.

Olímpia e Lavínia tomaram Alice para que os noivos pudessem abraçar e beijar
seus familiares. O comandante, impecavelmente fardado, abraçou
afetuosamente os noivos e cumprimentou todos os familiares. Olímpia, Lavínia
e duas amigas também foram abraçadas com muito carinho.

Como não havia troca de alianças nem votos pessoais, o casamento civil foi
simultâneo, meramente protocolar, mas teve um ar de leveza e descontração.
Quando os dois casais foram declarados casados, Olímpia e Lavínia
abraçaram-se e choraram muito, uma no ombro da outra.

Parecia que aquele choro, no aconchego do ombro de todas as horas, era um


ato de lavarem-se e livrarem-se dos pesos que por tantos anos carregaram
caladas. As duas amigas também estavam muito emocionadas e arriscaram-se
a ficar de mãos dadas. O ambiente era seguro.

Com Gael e Fernando, até por serem de uma geração bem mais jovem, a
reação foi de abraçarem-se e de beijarem-se escandalosamente como se
estivessem sozinhos no recinto. E foi, talvez, o beijo mais sincero que os
familiares acompanharam. Irromperam em aplausos.

Ali mesmo, receberam as suas certidões de casamento com as cópias


autenticadas que já estavam quitadas. Olímpia, Lavínia e as duas amigas
tinham reserva para o almoço. Os demais, retornariam às suas ocupações,
inclusive o agora marido, Gael.

O comandante despediu-se de todos e abraçou fortemente Fernando e Gael.


Os pais já estavam reunidos em volta de Alice para conhecer a neta. Como não
havia outro casamento agendado, puderam ficar na sala até por mais algum
tempo, mas Gael teria de retornar ao consultório.

Para Fernando e Gael, o casamento foi a oportunidade para reverem suas


irmãs: duas de Fernando e uma, de Gael. A presença do comandante foi uma
147

surpresa muito bem-vinda para Fernando e Gael. E os pais dos dois, os


varões, estavam com ar descontraído.

Aliás, os pais, os varões, ficaram encantados com a pequena Alice e ensaiou-


se um certo ciúme pelo fato de Alice ser a cara de apenas um dos pais. As
irmãs, as titias, mostraram-se comovidas com a paternidade amorosa dos
irmãos.

Nos bastidores do cartório o comentário era sobre o que emanava das noivas e
dos noivos. Quando dois homens ou duas mulheres decidiam casar-se é
porque havia algo intenso que os unia, fortalecia e enchia de coragem para
enfrentarem-se e enfrentar a sociedade vitoriosamente.

Quando casamentos homoafetivos aconteciam, muitas barreiras haviam sido


transpostas, muitas lutas haviam sido travadas e vencidas, sobretudo as
internas, e muitas curas ocorreram pela força do amor. Essa energia inundava
qualquer ambiente e tocava corações.

Era praticamente impossível manter-se imune ao influxo poético da força do


amor. Fernando e Gael, do alto de sua beleza, charme e elegância, esparziam
reciprocidade no amor e um amor com reciprocidade impõe-se e salva.

Os pais de Fernando e Gael ficaram admirados ao ver que Gael retornaria ao


trabalho no dia do seu casamento. A explicação era simples: o casamento não
fora programado e a agenda não pôde ser readequada. O foco era o papel: a
tal certidão de casamento que Wanda receberia.

Fernando retornou com Alice para o apartamento, após deixar o marido no


consultório. Fernando sentiu falta de algo: uma aliança linda no seu dedo. Gael
sentia exatamente a mesma coisa, apesar do trabalho que teria com o tira-e-
põe de luvas.

Gael, no consultório, sentia falta da sua Alice. E das assistentes. Ele estava só
no conjunto, no dia do casamento. Já havia almoçado e seu paciente chegaria
a qualquer momento. Seria arriscado descer para saborear um espresso. Alice,
um dia, saberia dessa história.

Pacientes movimentavam o consultório e a nostalgia foi para longe. Quando


um paciente deixava a sala do consultório, o seguinte já aguardava na
recepção. E Gael tinha de fazer toda a higienização antes. Era um trabalho
extra, mas ele não morreria por isso.

Quando o último paciente deixou o consultório, Gael desligou tudo. A


higienização seria feita amanhã, logo cedo. Trancou o conjunto e desceu os
148

dois lances e viu, com alegria, seu marido e sua filha aguardando-o no carro.
Ele estava comovido: estava casado com o homem da sua vida.

Ao entrar na cozinha do apartamento, Gael sentiu que havia uma surpresa


aguardando por ele. Haveria algum aperitivo e um jantar. A surpresa maior
ficou por conta de uma adaptação que Fernando fez em uma das cadeiras da
sala e usando apenas duas tiras de couro com fivelas.

Fernando produziu uma estrutura de modo que o bebê conforto pudesse ser
afixado à cadeira com uma inclinação que possibilitaria Alice participar das
refeições com seus pais, ao mesmo tempo em que estava confortável e
seguramente instalada. Fernando tinha dotes de artesão.

Fernando também experimentou o serviço de delivery da Coop para ter os


ingredientes de que precisava para o jantar, já que não se arriscaria a sair e
deixar Alice sem supervisão. Funcionou bem e possibilitou-lhe homenagear seu
marido que em pouco tempo se tornou tão indispensável.

Mas Nando não deixou que Zinho xeretasse nas panelas; era surpresa e a
ordem era para ele ir tomar seu banho e voltar lindo e cheiroso para seu marido
e filha. A cadeira da sala estava na cozinha e Alice ouvia as explicações do seu
pai atentamente.

Nando pensou que ela dormia tanto por falta de estimulação: ela agora
passaria a ser mais envolvida na rotina da vida dos dois. Nando pôs o óleo
para aquecer; todo o restante estava pronto para o jantar. Esqueceu-se da
vela, mas Alice à mesa seria a novidade.

Gael chegou e recebeu seu copinho de vodca para o brinde; estava quase
cremosa, na temperatura ideal. Alice ouviu o barulho da fritura; eram batatas
frescas que seriam servidas. A salada era de folhas com uma emulsificação de
aceto, azeite e mostarda Dijon.

O prato principal: estrogonofe de filé mignon, com creme de leite fresco e


muitos champignons frescos. Acompanhamento: arroz branco feito pelo Zinho
e fritas. Muitas fritas crocantes e caseiras. Um vinho branco seco e uma
sobremesa simples, de morangos com chantili caseiro.

Fernando estava gostando da linha culinária de Gael: preparar tudo em casa e


evitar, ao máximo, adquirir produtos industrializados e ultraprocessados. O
jantar era uma homenagem ao marido Gael, o melhor marido do mundo, o mais
lindo, o mais cheiroso e o mais gostoso.
149

Os dois fizeram alguns vídeos para a família, com depoimentos de ambos e


declarações de amor. Alice estava desperta, acompanhava tudo e parecia
aprovar essa nova disposição. Ela, claro, foi o ponto alto dos vídeos e arrancou
lágrimas das avós e dos avôs.

- Nando, eu não me canso de repetir que você é o melhor homem do


mundo. Acho que até seu comandante pensa assim. E essa estrutura
para a Alice? Você é meu artesão.

- Você me acha um artesão, Zinho?

- Que me deixa sem o ar.

- Gostei! Agora, Zinho, de marido para marido, eu às vezes acho que


sou muito dominador.

- Nando, eu amo sentir-me dominado por você. Inteiramente; com toda


sua masculinidade e virilidade subjugando-me. E eu correspondo,
entregando-me.

Amo quando você me assalta a mão armada e eu ergo as minhas mãos


e rendo-me inteiramente a você.

- Zinho, isso me dá um prazer louco, sabe? É o momento em que me


sinto totalmente o seu homem. E você me proporciona um prazer
insano, Zinho.

- E você, a mim, quando se mostra como meu homem. É uma


combinação perfeita entre o seu querer e o meu querer.

- Às vezes, eu acordo de madrugada com um desejo imenso por você,


mas contenho-me.

- Se eu lhe pedir para você não se conter mais, você me atende? Você é
o meu homem, o meu marido, o meu amado e eu adoraria ser acordado
sentindo você tomar conta dos meus espaços.

- Meu receio é que só eu esteja tendo um prazer descomunal com você.

- Então, amorzão, espante esse receio. Quando você se aproxima de


mim, eu me arrepio; quando você me toca, eu me arrepio; quando você
acaricia as minhas costas, eu tenho quase vertigem; quando você está
em mim, eu deliro.
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Você tem um efeito inacreditável sobre mim, Nando.

- Eu fico excitado só de pensar em você, Zinho. Quando vejo você, sinto


um desejo imenso percorrer todo o meu corpo. Tudo pulsa e a
consequência é imediata e visível.

- Quando olho para os seus braços fortes e peludos, para o seu peito
largo e peludo, para os seus braços, o seu pescoço, eu sinto um desejo
intenso de ser dominado por você. Como agora, por exemplo...

23. Adotar não é para amadores

Fernando e Gael acabaram concluindo que, às vezes, exageravam no respeito


que tinham um pelo outro. Respeito é bom, é necessário, mas precisa
conceder um certo espaço à selvageria, sobretudo entre dois homens jovens,
cheios de saúde e vitalidade.

O repentino papel de pai ainda precisava ser adequadamente metabolizado.


Para eles, havia algo de sagrado na paternidade e o sagrado convive mal com
a safadeza própria do profano. Nem um, nem outro estavam errados; faltava-
lhes acostumarem-se a dosá-los equilibradamente.

Tanto Fernando como Gael tinham uma característica própria; eram autênticos
e verdadeiros. Não vestiam máscaras quando estavam a sós porque não
competiam nem jogavam. Abrir o coração ao marido era a melhor forma de
manter um relacionamento verdadeiro.

Fernando fez uma edição interessante dos dois vídeos que ele e Gael
gravaram durante o jantar surpresa do casamento. Alice estava em primeiro
plano. Ficou divertido e tocante, com a narração dos dois atores globais,
Fernando e Gael.

Fernando enviou o vídeo aos seus familiares, ao comandante e a dois dos seus
mais próximos na corporação.

Gael enviou o vídeo aos seus familiares também e enviou-o a Rafael e


Henrique, P e J, Étienne e Renato, Ralf e Matheus, Marco Antonio e Rainer,
Rico e Jô, Orlando e Paul, Nuno e Ryan, e Kevin e Allan.

Gael também enviou o vídeo para Wanda, a assistente social, e para as suas
duas assistentes, Lavínia e Olímpia.
151

Fernando aproveitou a folga e instalou, no banheiro da suíte, uma ducha


higiênica que facilitaria muito os banhos da Alice. A mangueira do chuveiro foi
uma solução emergencial, mas não era prática, mas corria o risco de virar
definitiva, não fosse pela licença gala.

Fernando instalou uma plataforma dobrável na parede, sobre a qual colocaria a


banheira da Alice. Tudo pensado para servir na altura correta para os dois. Do
chuveiro, Fernando puxou uma extensão devidamente escondida por canaletas
discretas. Uma obra de um profissional.

Fernando revelou-se ser um perfeito marido de aluguel, tão perfeito como era
homem e marido. E a banheira, no novo suporte, era ideal para ele e Alice
brincarem na água, como gostam de fazer durante os banhos.

O banho dado por Gael não levava mais de dez minutos; o de Fernando, no
mínimo, meia hora. Fernando instalou um gancho quase no teto do banheiro
para que a banheira pudesse ser pendurada sem ocupar espaço. A plataforma
era basculante: após o uso, o tampo era rebaixado.

Com todos esses pequenos reparos e ajustes, o apartamento foi sendo


adaptado para a vida com bebê. Além dessas melhorias, Fernando também
deixava o jantar preparado, já que Gael vinha de uma rotina intensa no
consultório, sem as assistentes.

Não muito longe dali, Rico aguardava a vinda de Jô do escritório e a visita dos
convidados, Kevin e Allan que se ofereceram para levar uns salgados para
comerem enquanto fossem conversando. Allan achava particularmente
interessante conversar com quem passou pela situação.

No apartamento de Rico, o interfone anunciava a chegada de Kevin e Allan.

- Boa noite, Rico. Eu sou o Kevin e este lindão é o meu Allan. Aqui estão
os salgadinhos.

- Sejam bem-vindos, Kevin e Allan. O Jô não deve demorar. Esta é a


Bela e aquela dorminhoca, é a Luma. Reparem que a Bela mal sai de
perto da sua filha.

- Lindão, olhe que cena mais linda!

- Eu estou cada dia mais motivado com a ideia de ter um bebê, sabe
Rico?
152

- No dia em que Fernando e Gael pegaram a Alice no fórum, eles


passaram aqui. Luma estava na nossa cama, e Bela dormia ao seu lado.

Eu disse ao Gael para colocar a Alice junto com a Luma e a Bela logo
entendeu que tinha mais uma filha. Ah, o Jô chegou.

- Amor, estes são Kevin e Allan. Vamos nos sentar?


...
- Desculpem-me, mas eu precisava de um banho. Hoje tive audiência no
fórum e suei muito.

- Jô, sinta-se à vontade, por favor.

- Gael nos disse que vocês estiveram lá na vara da infância e da


juventude, no fórum do Ipiranga, e que já conversaram com a Wanda.

- Sim, falamos com a Wanda, preenchemos um longo formulário e


conversamos com a psicóloga plantonista.

- Eu vou contar como tudo aconteceu conosco. Às vezes algum


procedimento muda, em virtude da mudança de alguma lei.

Nós recebemos a visita de uma psicóloga e de uma assistente social


aqui, sem aviso prévio. Foi à noite, em um dia da semana. O Jô desceu
para ver se eram mesmo quem diziam ser.

- Eu subi com as duas e elas observavam tudo. Aqui, apresentei-lhes o


Rico e autorizei-as a olharem o apartamento. Elas não haviam pedido,
mas achei que se vieram, vieram para ver tudo. E olharam mesmo tudo:
os quartos, os banheiros e a área de serviço.

- Depois tomamos um café e elas nos fizeram perguntas sobre nossas


famílias, quem eram, o que faziam e se sabiam da adoção.

Nossas irmãs também estavam com processo e elas já as haviam


visitado. Acho que isso facilitou as coisas. Depois de mais ou menos
uma hora, foram embora.

- Nesse momento, Rico e Jô, vocês já sabiam qual criança queriam?

- Sim. Queríamos um recém-nascido, menino ou menina. Só que algum


tempo depois, veio a pior fase do processo. A mais traumática.
153

Nós dois recebemos um formulário com muitas perguntas e todas


chocantes. Eu lembro-me que sai de lá me sentido muito mal. E o Rico,
também.

- Jô, por que essas perguntas eram chocantes para vocês?

- Nós tínhamos que assinalar com um X o que queríamos ou o que não


queríamos. Por exemplo: criança com surdez, criança com cegueira,
criança seviciada, criança sem dedos, sem mãos, sem pés, com lábio
leporino, com paralisia cerebral, com HIV etc.

A gente sempre se acha bonzinho e, nesse momento, todos os nossos


preconceitos e discriminações estavam bem na nossa frente.

- Estou entendendo. Isso deve ter sido muito forte, não?

- Allan, foi um soco no estômago. Nossas irmãs não aguentaram essa


fase e desistiram do processo. Partiram para fertilização assistida.

Nós dois conversamos muito e assinalamos o nosso padrão: recém-


nascido, branco, saudável e íntegro.

- Vocês notaram algum tipo de pressão para escolherem uma criança


fora desse padrão?

- Eu não chamaria de pressão, mas nós dois sentimos um certo


direcionamento para nos decidirmos por alguma criança fora desse
nosso padrão. Quando perceberam que manteríamos a nossa escolha,
esse direcionamento foi suspenso.

- Acredito que essas crianças fora do padrão já estejam disponíveis para


adoção imediata, não?

- Sim, Allan, assim como as mais velhas. A oferta dessas crianças é


numerosa, mas a procura é baixa. Depois disso tivemos mais uma ou
duas sessões com assistentes sociais e psicólogas.

- E aí foram chamados? Como funcionou?

- É um trabalho complexo que envolve assistentes sociais, psicólogas e


depois a promotoria e o juizado. Naquele momento, havíamos passado
pela longa fase que eu chamo de triagem.
154

- Rico, você sentiram alguém torcendo o nariz pelo fato de vocês serem
dois homens?

- Não. Jô e eu conversamos sobre isso algumas vezes, mas não nos


sentimos diminuídos ou preteridos por sermos um casal homoafetivo.

Eu sempre achei o relacionamento profissional e depois mais próximo,


quase pessoal, sabem?

- Depois dessa triagem, como o Rico mencionou, vocês ficaram


aguardando, certo?

- Isso, Kevin. Depois de algumas semanas em que tínhamos completado


a tal triagem, a Wanda liga para mim e me diz que precisa conversar
conosco. Por alguma razão de trabalho, o Jô não pôde ir.

Eu fui, conversei com ela e fui informado que estávamos habilitados.


Agora, estaríamos no cadastro nacional de adoção.

- Ah, olhe só. Eu achei que os nomes de vocês já estivessem no


cadastro.

- Não, Allan. A entrada no cadastro é mediante ordem do juiz que


trabalha com o promotor de justiça.

Nessa conversa, Wanda me informou que quando nós fôssemos


chamados tínhamos que nos apresentar imediatamente para aceitar ou
recusar a criança. Eu não me lembro bem, mas era em um prazo de
duas horas.

Nossa não manifestação imediata significaria recusa e a criança seria


oferecida ao próximo da fila no cadastro.

- Acho que com Fernando e Gael foi assim, não?

- Sim. Fernando, na condição de pai, tinha absoluta precedência, mas se


ele demorasse, alguém poderia interpretar a demora como desistência
ou não interesse.

- Isso significa que a gente é pego de surpresa?

- Totalmente, Kevin. Eu estava trabalhando ao computador quando a


Wanda ligou dizendo que eu tinha de ir já, naquele instante para buscar
155

a criança. Liguei para o Jô, fui buscá-lo no escritório e nós dois


tremíamos de emoção.

Fomos ter com a Wanda que nos levou à sala de enfermagem, onde
recebemos a Luma, com dias apenas. E indicações sobre qual leite dar
e como segurá-la.

- E o que vocês fizeram? Vocês já tinham tudo para o bebê?

- Tínhamos só o desejo de sermos pais. Fomos para a casa da minha


mãe e o restante da família foi chegando. Saímos para comprar o
básico, orientados pela irmã do Jô.

Foi mais ou menos o que fizemos com o Gael e o Fernando: eles vieram
aqui com a Alice e nós doamos tudo o que podíamos. Ficaram faltando o
leite e as fraldas.

- E quando vocês saíram do fórum, já receberam toda a documentação?

- Não, Allan. Recebemos a guarda provisória expedida pelo juiz; Luma


só poderia nos ser tirada pela justiça. Recebemos mais uma visita de
outra assistente social e de outra psicóloga, à noite também, para verem
o estado em que mantínhamos a Luma.

Elas queriam ver tudo, desde carteirinha de vacinação até o estado da


fralda. Nós achamos que tudo fora feito com bastante seriedade,
sabem?

O documento com a guarda definitiva, para registrarmos Luma como


nossa filha, nos foi entregue pela Wanda depois de um mês.

- Será que há casais que mudam de ideia e devolvem a criança?

- Pelo que ouvimos lá, isso ocorre, sobretudo com as maiorzinhas. Ser
entregue para adoção é um trauma, não ser adotado, é outro e ser
devolvido, o pior de todos.
...
- Rico, Jô, muito obrigados, de coração, pelo tempo que despenderam
conosco. Amamos conhecer vocês e amamos vocês.

- Kevin e Allan, estamos à disposição. Mandem mensagem ou liguem se


surgir alguma dúvida. O que pudermos responder, faremos com gosto e
na torcida. Não desanimem! Fiquem bem!
156

Gael e Fernando estavam na sobremesa, tendo Alice como plateia, quando o


interfone soou. Gael foi atender ao chamado e Fernando só o ouviu dizer
“estou descendo”.

- Nando, há alguém na portaria procurando por mim. Vou ver quem é, Já


subo.

- Está bem, Zinho. Eu vou ficar esperando por você para terminarmos a
sobremesa.
...
- Nando, estas são a psicóloga Cátia e a assistente social Lucila. Vieram
para nos visitar.

- Olá, Cátia e Lucila. Estávamos finalizando nosso jantar. Sentem-se por


favor.

- Como eu disse para o Gael, nós somos representantes da vara da


infância e da juventude, do fórum do Ipiranga e viemos visitar a mocinha.

- Ela já tomou seu banhinho, mamou bem, está com fralda limpinha e
acompanhando os papais no jantar, não é Alice?

- Ela sempre fica assim com vocês?

- Nós nos casamos na quarta-feira e eu estou em licença gala e fiz esse


suporte para ela ficar conosco quando está acordada.

Aproveitei e instalei uma ducha para facilitar nosso trabalho na hora de


dar banho.

- Será que nós poderíamos ver essa instalação?

- Claro, venham comigo. Olhem, aqui é o nosso quarto e aqui, o da


Alice. E ali, no banheiro da suíte está a estrutura que eu instalei. Vejam:
levanto a plataforma, coloco a banheira e uso a ducha.

- Parabéns, ficou muito prático. Posso tirar algumas fotos?

- Fiquem à vontade.

- Vocês aceitam um espresso? Nós costumamos tomar um após o


jantar.

- Se não for dar trabalho, eu gostaria. Nós gostaríamos.


157

...
- Durante o dia, com quem a Alice fica?

- O meu consultório é praticamente ao lado da corporação onde o


Fernando fica lotado. Nós vamos juntos e a Alice fica comigo, no
consultório. Quando minha assistente está, ela olha a Alice e quando
estou sozinho, a Alice fica comigo, na sala, e eu desligo o ar-
condicionado.

- Gael, como dentista, não tem licença gala. De quarta até hoje ela ficou
aqui em casa, comigo. Precisei sair uma vez para umas compras e levei-
a junto comigo.

- A Alice já visitou um pediatra?

- Sim, Cátia. Nós a levamos a uma paciente minha que é pediatra. E ela
já tomou a primeira vacina. Temos retorno agendado para daqui a três
semanas.

- Eu posso ver a carteirinha de vacinação dela?

- Eu vou buscá-la. Um momento.

- Vocês disseram que se casaram na quarta-feira, certo? Podemos ver a


certidão de casamento?

- Lucila, eu vou fazer o seguinte: copiar a carteirinha de vacinação e dar-


lhes uma cópia autenticada da certidão de casamento que nós íamos
levar para a Wanda na segunda-feira.

- Isso é ótimo, Gael. A Wanda volta na segunda-feira e nós entregamos


tudo para ela. Eu gostaria que vocês se sentassem como estavam
quando chegamos. Eu quero fazer uma foto também.
...
- Desculpem-nos por chegarmos à noite e sem aviso. Agradecemos o
café e já vamos indo. Fiquem tranquilos que a certidão estará com a
Wanda na segunda-feira, logo cedo.

- Obrigados. Tenham um bom fim de semana.

- Parabéns por serem pais tão zelosos.

- Obrigados!
...
158

- Nando, elas devem ter ficado encantadas com o suporte para a


banheira e com essa estrutura aqui, na cadeira. E flagraram-nos no
nosso dia a dia, sem maquiagem.

- Verdade, Zinho. E Alice estava alimentada e limpinha. Elas verificaram


se a fralda estava cheia.

- E recebemos até parabéns. E nem precisaremos ir ao fórum, na


segunda-feira.
...
Gael e Fernando, acabamos de chegar do apartamento do Rico e do Jô.
Que casal lindo e hospitaleiro. Deram-nos todas as informações e
estamos bem mais seguros agora. Obrigados, de coração, por nos
indicarem esses dois anjos. Anjos nossos, como vocês dois lindos! O
vídeo de vocês está correndo nossa família, indo até Maria da Fé!
...
Kevin, Allan, que bom que tudo deu certo. Nós acabamos de receber a
visita surpresa de uma assistente social e de uma psicóloga. Acho que
gostaram, pois nos parabenizaram ao sair. Esperamos que aquele vídeo
que o Nando fez tão lindamente sirva de inspiração para muitos. Beijos
saudosos!

24. Bernardo e Bello 11

Bello saiu cedo para acompanhar uma diligência, mas retornaria antes do
meio-dia. À tarde, iriam a uma consulta com o dr. Gael. Da última consulta até
hoje, tanta coisa havia mudado na vida dos dois. A principal era que se haviam
casado e os dois transbordavam felicidade.

Bernardo já se considerava paciente veterano do dr. Gael, mas Bello iria ao


seu consultório pela segunda vez. Da primeira, Bello foi como policial, perito e
amigo. Hoje, retornaria como marido. Evidentemente que o dr. Gael deve ter
notado, já na primeira vez, que Bello não era só amigo.

Bernardo achava dr. Gael o melhor garoto-propaganda de si mesmo: seus


dentes eram perfeitos, mas o encanto vinha do seu sorriso. Dr. Gael tinha um
sorriso autêntico, verdadeiro. E lindo! Quando deixaram o consultório, Bello
comentara que o dr. Gael devia ter muitos admiradores.

11
Bernardo, jornalista e repórter policial, e Bello, advogado e perito criminal, são os protagonistas do
conto A carvoaria.
159

Bernardo achava que o dr. Gael era o dentista perfeito para todos que haviam
enfrentado traumas em consultórios dentários: seu sorriso cativante, sua
segurança, sua doçura, sua autenticidade curariam traumas e restaurariam a
confiança quase que instantaneamente.

Bernardo concordava com Bello, de que dr. Gael era cortejado, mas achava
que o dr. Gael havia superado aquela fase da vida de se encantar facilmente.
Dr. Gael transmitia a convicção de que só ficaria com alguém que lhe
parecesse ser definitivo. De experiências, talvez estivesse farto.

E Bernardo viu semelhanças em Bello. Bernardo viu a cena em que os dois se


haviam excedido na caipirinha e acabaram em um quarto de motel. Apesar do
torpor, Bernardo lembra-se de como aquela pulada de cerca superara todos os
prazeres que havia tido com mulheres.

E Bernardo tenta identificar o ponto de mutação: em que momento Bello deixou


de ser apenas a perfeita conjunção carnal? Em que momento, os afetos
recíprocos foram ganhando importância? Para Bello, desde o primeiro dia;
Bello sentiu e emitiu amor por Bernardo desde o primeiro dia.

E Bernardo se recorda de que era amor mesmo: Bello não fazia exigências,
não reclamava, não apresentava objeções. O que Bernardo oferecia a Bello
nos momentos íntimos parecia ser exatamente o que Bello procurava.

Bernardo suspeita que deve ter sido por esse tempo que o tal ponto de
mutação tenha ocorrido: Bernardo sentia afetos cada vez mais intensos por
Bello, para muito além do desejo insano. Tudo o que Bernardo não recebia no
seu casamento, Bello entregava-lhe feliz e sorridente.

Bernardo dava-se conta de que Bello sempre o munira com informações


privilegiadas dos bastidores das investigações para que a Revista Pare! saísse
na frente dos outros veículos. Bernardo era-lhe muito grato por isso. Mas seus
sentimentos por Bello não eram de gratidão.

Com esse ponto de mutação vieram os conflitos internos: um homem hétero,


casado, sentindo não só desejo por um homem, mas talvez até, ... amor. Não
podia ser verdade. Bernardo pensa no momento em que a solução lhe veio à
mente. Esse momento trazia uma revelação clara.

Bernardo nunca antes sentira-se tão amado por mulher alguma, como se sentia
desejado e amado por Bello. Bernardo reconhecia que muitas vezes se sentiu
desejado por algumas mulheres, mas amado por poucas, e jamais amado na
intensidade como era amado por Bello.
160

E Bernardo recorda-se de como sua dúvida, sobre se era hétero, bi ou gay


acabou por tornar-se insignificante. A verdade de sua vida estava diante dos
olhos: ele amava Bello. Amava-o e sentia-se amado a ponto de desposá-lo.

Bernardo celebrava a beleza da reciprocidade no amor com uma crônica


publicada na Revista Pare! que deu o que falar. A profecia do final concretizou-
se!

Conheci um homem em um momento de descontração.


Eu não sabia, mas andava carente de tudo: de afeto, de cuidados e de alguma
selvageria.
Bebemos, os dois, para além dos nossos limites do bom-senso.
Eu senti que ele me desejava e eu não tinha coisa alguma a perder.

Meus desejos andavam reprimidos e cada vez mais fortes.


Nossa primeira vez juntos proporcionou-me um prazer indescritível, mas havia mais.
Ele tocou-me de alguma maneira: eu fui cuidadoso com ele e o prazer foi de ambos.
Ele satisfez as minhas vontades mais secretas, porque eram as suas também.

Nenhum de nós olhou para o outro como objeto.


Éramos os sujeitos das nossas ações e de nós mesmos.
Nossa despedida não foi fria.
Houve um segundo encontro.

Com ele, eu me sentia inteiramente livre para me expressar.


Já havia notado que o fazia com distinção, com respeito.
Nossa selvageria era pura. Ele claramente já me amava.
Nunca exigiu coisa alguma; o que eu lhe oferecia era o que ele mais desejava.

Ele me acariciava com lascívia, com sensualidade, mas com devoção: eu era-lhe
importante!
Então, vi-me com um homem atraente, doce, puro e selvagem.
Vi-me com um homem que se derretia por mim.
Um toque de minha mão pelo seu corpo causava-lhe arrepios que me imploravam
para possuí-lo.

Ele conseguia de mim o que mulher alguma conseguira.


Ele sabia como prolongar o meu prazer e só me deixar explodir no limite.
Ele sabia como exaurir-me. E ele me amava. Ele me amava muito.
Foi com ele que eu comecei a sentir o que é verdadeiramente ser importante para
alguém.

O que era ser amado por alguém: amor sem exigências, sem competições, sem
reclamações.
Foi com ele que eu senti como a força do amor renova e enche a vida de esperanças.
Então, dei-me conta de que eu era um homem casado.
Casado com uma mulher muito bonita, bem-sucedida e ótima companheira.
161

Havia tudo menos selvageria e essa força renovadora do amor.


Minha vida de casado era uma linda caixa, estilosa, embrulhada com requinte
e decorada com um laço vistoso, brilhante, todo ornado, por cima.
O que havia na caixa?
Nada!

Minha vida de casado era um belíssimo pacote, cheio de vazio.


Minha esposa era uma ótima companhia com quem eu gostava de estar.
Ele, esse homem, era alguém com quem eu queria estar; precisava estar.
Ele, esse homem, era alguém de quem eu não conseguia mais ficar apartado.

O período mais tenebroso nas minhas reflexões enfim ocorreu.


Ocorreu quando suspeitei que pudesse estar afetivamente envolvido com esse
homem.
Logo eu, um homem hétero, grande conquistador de mulheres.
Todas as que eu decidira levar para a cama, foram abatidas.

Quantas eu decidira levar para o meu coração?


Talvez, nem mesmo a minha esposa.
Aquele homem me havia enfeitiçado.
Seu feitiço era dos fortes.

Ele seguia comigo nas selvagerias, não competia, não reclamava, não exigia.
O que eu lhe proporcionava era exatamente o que ele buscava.
Ele me tratava bem. Muito bem; com afeto, com carinho, com zelo.
Claro, ele me amava. Parece que desde o primeiro instante ele me amou.

Mas, e eu? Ele de há muito deixara de ser uma diversão.


Eu pensava nele, queria estar com ele.
Então, criei coragem e arrisquei: beijei-o na boca.
O primeiro contato dos meus lábios com sua barba foi repulsivo.

Ele não me deixou ir: afagou meus cabelos na nuca.


Ele correspondeu ao beijo com suavidade e desejo por mim.
Senti seu corpo arrepiar-se da ponta dos pés ao alto da cabeça.
Eu explodia de desejo por ele, e o beijo,

essa forma tão absurdamente íntima de contato,


trouxe-me a resposta de tudo.
Era ele! Meus lábios estavam colados à boca do amor da minha vida.
Eu finalmente consegui admitir para mim que amava.

Amava um homem, mas não qualquer um. Era ele!


Então, deu-se o paradoxo: terminei a noite completamente exaurido fisicamente.
Exaurido e forte.
Fortíssimo para enfrentar tudo e todos.
162

Enfrentar olhares, gracejos, reprimendas.


Enfrentar decepções de qualquer um, inclusive dos de minha família.
A certeza do amor que eu sentia por ele era tão verdadeira que não mais seria adiada.

Ele, Bello, meu Bellão, meu amorzão, é o amor da minha vida!


Ele, Bello, meu Bellão, meu amorzão, foi habitar meu coração.
Ele, Bello, é o homem com quem me casarei.

Crônica dedicada a Bellarmino Infante Veiga


Ao homem com quem me tornei outro homem.
Um outro homem que ama um homem.
por Bernardo de Bulhões

- Boa tarde, dr. Gael! Como você está?

- Boa tarde, Bernardo. Boa tarde, Bello! Estava relendo algo aqui.
Venham ver. Quero saber do último verso.

- Realizou-se, dr. Gael. Estamos casados e felizes, como você deve


notar pelos nossos olhos. Mas você me parece reluzente também, dr.
Gael. Será que seu coração está habitado?

- Meu coração está habitado, sim. O dono virá me buscar e vocês o


conhecerão. Casamo-nos na quarta-feira.

- O quê? Que notícia maravilhosa, não é amorzão?

- Falávamos sobre a importância de se encontrar a pessoa certa. A


pessoa com a qual há reciprocidade. Aconteceu para Bê e para mim;
aconteceu para você.

- Ele é o homem da minha vida e eu sei que sou o amor da vida dele. E
há outra novidade que deixarei para depois.

- Bê, ele quer nos atiçar de curiosidade.

- Eu acompanhei o desenvolvimento do caso das múmias e não vi mais


menção na Pare! Conseguiram resolver o caso?

- Ainda não. A cada mês surge uma nova múmia e as pistas continuam
sendo zero. Bê parou com os informes para não termos problemas, já
que estamos casados.

- Entendo. Mas vamos nos espreguiçar um pouco na nossa poltrona


odontológica?
163

...
- Da última vez, registrei nos prontuários que gostaria de fazer uma
verificação geral.

Hoje farei radiografias panorâmicas para avaliar o estado geral das


arcadas dentárias, principalmente o estado dos canais.

E farei profilaxias, limpeza geral, para então determinar o que


precisamos resolver hoje. Podemos prosseguir assim?

- Perfeito, dr. Gael.


...
- As radiografias panorâmicas não mostram alterações.

A profilaxia permitiu-me ver que Bernardo tem pontos de tártaro e duas


pequenas cáries que quero restaurar e resinar. Bello também apresenta
tártaro, um pouco mais extenso e há duas cáries, no início, que eu
gostaria de restaurar e resinar.

Tanto as cáries de Bello como as de Bernardo aguentam mais seis


meses. Então, deixo para vocês decidirem se fazemos tudo hoje ou se
deixamos as cáries para daqui a seis ou oito meses.

Se fizermos hoje, não precisarei anestesiá-los. Se esperarmos,


provavelmente terei de anestesiá-los.

- Amorzão, vamos fazer tudo hoje, não? Sem anestesia.

- Claro, Bê. Dr. Gael, vamos deixar as casas bucais em ordem.


...
- Pronto! Tudo limpo e restaurado. Gostaria de revê-los em 12 meses
para nova avaliação.

- E quanto lhe devemos, dr. Gael?

- Metade desse valor para cada um de vocês. Se pagarem tudo junto,


posso parcelar em quatro vezes.

- Eu pago o valor integral.

- Ótimo. Se vocês puderem me aguardar na recepção enquanto eu


arrumo tudo por aqui. Ah, lá está o dono do coração. Bernardo, Bello,
este é o 2° Tenente Abatte, Fernando, e esta é nossa Alice.
164

- Dr. Gael! Deixamos você sozinho e, em menos de oito meses, você me


aparece casado e com um bebê? Fernando, nós estamos muito felizes
por vocês dois. Três, corrigindo!

- Obrigado, Bernardo. Enquanto esperava por vocês, eu estava relendo


essa crônica. E notei algo que me é particularmente caro: a
reciprocidade no amor.

- Verdade, Fernando. Primeiro, foi reciprocidade no desejo e depois, no


amor.
...
- Janice, quatro espressos e pães de queijo, por favor.

- Dr. Gael, as meninas estão pedindo o endereço da fonte?

- Fonte? Eu não estou ligando as coisas, Janice.

- A fonte de onde brotam esses homens tão lindos que vêm ao seu
consultório.

- Janice, obrigado. Esse lindão aqui é o Bello, meu marido. Ele é policial.

- Não está mais aqui quem falou. Vou buscar os espressos...

- Janice e as meninas são ótimas pessoas. Somos muito bem tratados


aqui.

- Dr. Gael, conte-nos em qual fonte você encontrou esse tesouro e essa
princesa que, aliás, é a carinha do tesouro.

- Foi assim: ele estava aqui por conta de um princípio de incêndio. Eu


fiquei arrebatado e pensei: se eu extrair um dente do siso, ele perderá
25% do juízo e poderá me notar.

Para garantir o sucesso, extraí logo dois sisos, ele perdeu 50% do juízo,
notou-me e casamo-nos.

- Meu Gaelzinho é o melhor marido do mundo. E o melhor pai do mundo


também. Parece incrível, Bernardo, mas o seu texto retrata muito da
nossa vivência, só que em outra ordem.

No nosso caso, a união física ocorreu depois da descoberta do amor. A


reciprocidade no amor veio primeiro e, depois, a reciprocidade física.
165

- E então, resolveram casar-se.

- Bello, nós íamos nos casar sim, mas não agora. Mas aí surgiu a Alice,
que hoje faz duas semanas, e o casamento facilitaria as coisas para que
os nossos nomes constassem da certidão de nascimento dela.

- Entendi. Como vocês conseguiram adotá-la assim tão rapidamente?

- Bernardo, a Alice é filha biológica do Nando, sem que ele soubesse da


gravidez. A mãe entregou-a para adoção na vara da infância e
Fernando, como pai biológico, foi chamado.

Lá descobriu que era pai e que teria apenas algumas horas para retirá-la
ou ela seria entregue para adoção.

- E como você, Gael, reagiu a isso?

- Aí vem a parte mais linda dessa história, Bello. Eu saí do fórum e vim
direto para falar com ele, achando que ele me deixaria.

Ele me lembrou de que eu tinha um lar com ele, de que iríamos nos
casar, de que estávamos juntos para todos os momentos e de que
estávamos apenas perdendo tempo.

Ele cancelou os atendimentos e fomos buscá-la. Dizer “eu amo você” é


simples; fazer o que o amor da minha vida fez, é único. Eu não sei se eu
teria tido a coragem de buscar minha filha, se não fosse por ele.

- Verdade, Fernando. Você tem toda a razão. Isso é reciprocidade. Mas,


vocês alguma vez tinham falado em ter filhos?

- Nunca e acho que nem iriamos querer ter. E hoje consideramo-nos


dois pais muito felizes. Na sexta-feira recebemos uma visita surpresa de
uma assistente social e de uma psicóloga lá da vara da infância e as
duas nos parabenizaram ao sair.

- E os familiares de vocês estão felizes?

- Bernardo, nossos pais, nossas irmãs e até meu comandante


apareceram de surpresa no nosso casamento. Ninguém fora convidado,
porque era casamento protocolar, para termos a certidão.

- Os espressos e os pães de queijo. Isso aqui é de todas nós, para


vocês três. É simples, mas vem dos nossos corações.
166

- Janice, o que é isso? Dois pacotes de fraldas e dois macacõezinhos!


Que maravilha. Obrigado, de coração a cada uma de vocês.

- Meninas, vocês moram no nosso coração!

- Como é bom ser querido, não é amorzão?

- Se é, Bê. Lindos e queridos.

- Como andam as investigações daqueles casos misteriosos de carros


com pneus furados e de carros abandonados que apareceram virados,
com as rodas para cima? Nós fomos acionados nas primeiras
ocorrências e depois vi a matéria na revista Pare!

- Esse, Fernando, é mais um caso misterioso. Há vários relatos das


próprias pessoas envolvidas nesses fenômenos inexplicáveis. Nas
imagens das câmeras só se nota a nova posição, mas nada do que
possa tê-la causado.

- Então, assemelha-se ao caso das múmias, não Bernardo?

- O das múmias é caso de assassinato em série. Pessoas são mortas e


mumificadas; um dos nossos melhores peritos que investigava o caso,
foi morto e mumificado.

Bernardo me prometeu que nem chegaria perto para investigar.

- Esse caso das múmias parece-me assustador, Bello.

- Ninguém quer trabalhar nesse caso por medo de ser mumificado, Gael.
O pior é que não avançamos nem um milímetro sequer. O caso dos
fenômenos inexplicáveis é semelhante, só que não há o agravante das
mortes.

- Amorzão, acho que devemos nos pôr a caminho. O dr. Gael teve um
domingo longo e deve estar cansado, não?

- Eu fiquei muito feliz pelo privilégio de tê-los conhecido.

- Obrigados, Fernando. Nós ficamos encantados com você, com a


pequena Alice e com o casamento.
167

Fernando levou Gael e Alice para casa. Gael pôde tomar seu banho e sentar-
se para jantar porque seu amado havia cuidado de tudo. Alice já havia sido
banhada e só aguardava o papai Gael sair do banho para receber a sua
mamadeira.

- Que simpático, não, esse gesto das meninas da padaria, de se


preocuparem conosco.

- Elas gostam de nós, Zinho. E de você, em especial.

- Nando, amanhã você volta à sua rotina. E fez tanto aqui em casa. Tudo
ficou melhor depois de você. A começar pela minha vida.

- Zinho, você já fez tanto por mim. Sabe que eu vou acompanhar você
nos plantões, aos domingos? Mas serei obrigado a folgar um domingo
por mês.

- Eu quero acompanhar você, Nando. Você tem como prever essa folga?
Se sim, eu oriento Olímpia e Lavínia a não marcarem pacientes naquele
domingo. Assim, nós dois teríamos pelo menos um domingo no mês
para nós.

- Isso seria ótimo. Na corporação, todos fogem do plantão aos


domingos. Eu nunca me incomodei e agora, menos ainda, já que você
também trabalha aos domingos. E se pudermos ter um domingo, isso já
será de boa ajuda.

Mas agora, eu estava pensando em aproveitar o domingo com meu


amorzinho...

- Engraçado, Nando, eu tive a mesma ideia, sabe?

25. A boa rotina

Olímpia e Lavínia contaram, orgulhosas, ao dr. Gael, que as duas amigas que
estiveram no casamento convidaram-nas para um almoço no Outback que se
revelou maravilhoso: um ponto de mutação na relação de amizade, com
verdade e fortalecimento.

As duas assistentes estavam convencidas de que a verdade que emanava do


tenente e do dentista serviu de inspiração às amigas e teve como
consequência um salto qualitativo considerável na relação de amizade entre as
quatro.
168

Fernando lidava cada vez melhor com a desconstrução de preconceitos e


discriminações que trazia, principalmente nas conversas com casais como P &
J, Étienne & Renato, Ralf & Matheus, Marco & Rainer, Rico & Jô, Orlando &
Paulo, Nuno & Ryan, Kevin & Allan, e Bernardo & Bello.

Uma outra experiência não convencional Fernando tinha ao relacionar-se com


Olímpia e Lavínia, duas senhoras sensíveis, letradas e conscienciosas.
Fernando era-lhes muito grato por toda a ajuda que teve para aproximar-se do
dr. Gael. As duas sabiam do caráter de Fernando.

Durante sua licença gala, Fernando aproveitou para visitar sua mãe com Alice
e retirar praticamente todos os seus pertences pessoais. No apartamento de
Gael espaço não faltava e o plano original, de pernoitar algumas vezes na casa
dos pais, sucumbiu com a vinda de Alice.

No consultório, tudo caminhava bastante bem: os horários estavam


praticamente todos preenchidos, de terça a domingo, Alice era chamada a
participar do tour pelo consultório sempre após mamar e ter a fralda trocada.
Gael notou como essa interação fazia-lhe bem.

- Dr. Gael, uma ligação para você, na minha mesa.

- Já vou, Lavínia. Com licença, por favor.

- Alô! Gael falando.

- Dr. Gael, aqui é o Comandante Canutto. Perdão por interrompê-lo. O


senhor pode falar um minuto?

- Olá, Comandante! Posso, sim. Mas antes, quero agradecer-lhe mais


uma vez por nos haver honrado com sua presença, no nosso
casamento. Nós dois ficamos comovidos.

- Eu fui por mim e fui representando a corporação. Dr. Gael, eu estou


ligando para fazer-lhe um pedido.

- Pois não, comandante. Se estiver ao meu alcance, irei atendê-lo.

- Na última sexta-feira do mês, faz 10 anos que o tenente Abatte está na


corporação. Nós vamos organizar um café da tarde surpresa para ele e
eu gostaria muito que o senhor viesse e trouxesse sua filha também.
Não levará mais de 40 minutos. Este é o meu pedido, dr. Gael.
169

- Conte conosco, comandante. Eu confesso-lhe que preciso rever meus


conceitos, sabe?

- Todos nós precisamos, dr. Gael. Também por isso que eu gostaria
muito de tê-lo aqui.

- Eu entendo que tudo é segredo, não?

- Sigilo de Estado, dr. Gael. Queremos surpreendê-lo. Obrigado por


aceitar. Fique bem.

- Eu é que me sinto obrigado. Igualmente, comandante.

Gael retornou ao seu atendimento e perguntava-se se havia uma mudança de


ares na corporação, se sempre foi assim e ele desconhecia essa fato, se era
iniciativa particular do comandante ou se era política institucional. Ou se era
uma mistura de tudo.

De qualquer modo, a iniciativa era muito apropriada e ele iria com Alice,
prestigiar o marido e pai. Gael achava o comandante muito atencioso, mas
extremamente reservado: era difícil saber se ele agia por dever de ofício ou se
agia espontaneamente. O comandante era um aliado de peso.

Então, Fernando estava há dez anos na corporação; o mesmo tempo que ele,
no consultório. Gael lembra-se de tê-lo visto algumas vezes na padaria e de até
terem trocado cumprimentos e sorrisos. Um homem fardado, estonteantemente
belo como Fernando, chama a atenção mesmo.

Gael lembra-se das vezes em que via Fernando na padaria, sempre cordial e
sorridente; até recebê-lo em sua poltrona odontológica. Pouco tempo depois,
tornaram-se namorados e agora estão casados e com uma filha. Gael
controlava-se para não chorar durante o atendimento.

À noite, Fernando finalizava a arrumação da cozinha e Gael tinha ido sentar-se


no sofá da sala. As lembranças da tarde surgiram-lhe todas com força
revigorada.

- Zinho, o que houve, meu príncipe? Conte aqui para o seu Nando.

- Nandinho, são lágrimas de felicidade. O homem dos meus sonhos


pede-me em namoro; ele revela-se o melhor homem do mundo, o mais
lindo, o mais sensual, o mais zeloso, o melhor marido o melhor pai.
170

Aí, pego-me segurando minha filha; não faz um mês e sinto Alice como
minha filha, gerada por mim. Ela não é a sua filha que entrou na nossa
vida.

São realidades nas quais custo a acreditar que estejam ocorrendo


comigo, Nando. É muita felicidade, que chega a derramar, sabe?

- Oh, meu príncipe mais doce! Eu sinto-me como você. Tudo aconteceu
tão rapidamente que não consegui metabolizar metade.

Nem sei se preciso metabolizar; quero vivenciar cada um desses


momentos com você.

- Sabe, Nando, que me arrependo de ter optado por não usar aliança?
Às vezes, sinto-me como se eu quisesse esconder dos outros que estou
casado.

Eu sei do incômodo com as luvas, mas eu já me habituei a tantas


novidades, em tão pouco tempo. A aliança é um símbolo da escolha que
fiz para a minha vida, sabe?

- Zinho, eu também não estou confortável sem aliança. Vamos corrigir


isso?

- Para mim, seria um alívio e uma honra portar uma aliança que
simboliza que sou casado com você. É algo estranho, Nando. Já
começou na vara da infância quando vi Alice; estabeleceu-se uma
conexão.

Depois, com os banhos, as mamadas, as trocas de fraldas, nossos


colóquios. Expressões como “adotada”, ”enteada” não existem no meu
imaginário.

Alice é minha filha. Ela não é minha filha porque é filha sua e você é
meu marido amado. Não! Ela é minha filha! Você entende isso,
amorzão?

- Zinho, acho que essas coisas não são para serem entendidas; são
para serem vividas. E mais uma vez há reciprocidade entre nós. Eu
nunca achei um homem bonito, muito menos senti atração por um
homem.
171

Até deitar-me naquela cadeira elétrica e ser enfeitiçado e achar você o


homem mais irresistível do planeta por quem tenho uma atração de força
magnética incalculável.

- Você tem razão, Nando. Isso não dá para ser entendido; basta sentir e
entregar-se.

- Falando em entregar-se, que tal nós nos entregarmos um ao outro?

- Tipo delivery express?

26. Benjamin e Alex 12

Ben acabara de confirmar o horário para a consulta com o dr. Gael: ele queria
a manhã do domingo e era o único horário que ainda estava disponível. Ele e
Alex gostavam de levantar-se cedo no domingo para compras no
supermercado ou para caminhar sossegadamente.

Ben lembra-se de que Bernardo, o repórter policial da Revista Pare! sugeriu-lhe


o nome do dr. Gael e, no mesmo dia, o professor Renato, que se tornou
próximo de Alex, também lhe sugeriu o mesmo nome.

Duas referências de casais homoafetivos mais a praticidade do horário da


consulta fizeram com que Ben e Alex não hesitassem em consultá-lo. E ficaram
encantados: dr. Gael é competente e honesto como profissional.

Benjamin e Bernardo conheciam-se superficialmente da Revista Pare! para a


qual Ben ocasionalmente escrevia alguma crônica da vida cotidiana. Um dos
assuntos que os aproximou foi exatamente a série e acontecimentos
inexplicáveis sobre os quais os dois escreviam.

Bernardo ficou particularmente feliz quando descobriu que o colega Ben era
testemunha ocular de alguns deles. Evidentemente que Ben jamais relataria
que não era testemunha, mas coautor dos acontecimentos perfeitamente
explicáveis pela força da mente.

Ben queria que a imprensa contribuísse para disseminar um certo temor para
os que insistiam em agir contra os elementos do bom-senso. Bernardo foi o
pioneiro em divulgar essa versão e Ben acompanhou-o, com relatos e
testemunhos.

12
Benjamin, escritor, e Alex, operador de telecomunicações, são os protagonistas do conto A mente.
172

Renato era um dos professores do curso preparatório do qual Alex participou


para conquistar a sua certificação, com menção honrosa. Renato queria,
inclusive, que Alex mudasse de empresa, mas ele achou que, como recém-
promovido e com um bom desafio pela frente, ainda era cedo.

E caminhando mentalmente por todas essas conexões, Ben viu-se recebendo


o técnico Alex em seu apartamento para substituição de modem e roteador.
Naquela mesma manhã, ocorreu o primeiro episódio que, tempos depois, foi
parar na imprensa local, na regional e na internacional.

Ben recorda-se com clareza de como as primeiras experiências dos dois,


testando a força da energia mental, acabou por aproximá-los. Primeiro, a
curiosidade; depois, a ação conjunta para tentar coibir abusos de todo o tipo.
Estava lançado o projeto pedagógico de reeducação.

E Ben viu-se seduzido pela força que ele tinha, mas apenas com a presença de
Alex. Alex sentiu o mesmo efeito e Ben recorda-se como essa reciprocidade
desdobrou-se em presença, bem-querer, intimidade e amor.

Ben lembra-se de como fora impactado pela beleza estonteante do técnico


Alex e de como sua reação foi de desejo por ele. Não havia esperanças: Alex
era casado e a esposa tentava engravidar. Mas as forças da mente são
imensas; as do coração, incomensuráveis.

E Ben pôde acompanhar a evolução daquele que se mostrou o mais resistente


ao novo relacionamento, o pai do Alex, e de que como ele foi subjugado pela
força do amor. Quando há reciprocidade, parece que a força de conversão do
amor fica duplicada.

Ben sempre soube que Alex trazia algo de especial em si o que já se


comprovou na primeira visita quando Sampaio, a caramelo de poucos amigos,
rapidamente afeiçoou-se a Alex e adotou-o como membro da família. Ben
acredita que os cães são bons avaliadores do caráter humano.

- Bom dia madrugadores, Alex e Ben! Como vocês estão?

- Bom dia, dr. Gael? Estamos muito bem, felizes e casadinhos.

- Vocês também? Que excelente notícia! Parabéns!

- Obrigado, Gael, mas por que o “vocês também”?

- Porque eu também estou casado e feliz. Venham e vejam como somos


rápidos.
173

- Dr. Gael, esse bebê lindo é seu?

- Sim. É a Alice e já tem quase um mês.

- Sabe que eu não o imaginava com um bebê, Gael?

- Nem eu, Ben. Mas o amor provoca tantas mudanças. Logo mais o pai
virá para conhecê-los e vocês me dirão com quem ela se parece mais.

- Combinado. Eu acho que ela tem traços seus dr. Gael.

- É mesmo, Alex? Então, acho que sou bonito.

- Bonito? Você é lindão, Gael.

- Obrigado, Ben. Quem será o primeiro a enfrentar a cadeira elétrica?


...
- Na primeira consulta de vocês, eu fiz umas anotações no prontuário
que eu quero verificar hoje.

Eu começarei com radiografias panorâmicas para avaliar o estado das


raízes e canais. Depois, farei uma profilaxia, uma limpeza geral, que me
mostrará o tipo de trabalho que teremos hoje. Combinado? Podemos
prosseguir assim?

- Claro, Gael. Você manda!


...
- As radiografias panorâmicas de vocês não revelaram anomalias e a
profilaxia mostrou que a higiene bucal dos dois é excelente.

Há uma pequena cárie em cada um que eu gostaria de restaurar e


resinar. Não precisaria ser feito hoje, mas eu tenho certo receito de que
avance e cause problemas futuros que podemos evitar hoje. Posso
prosseguir com as restaurações?

- Por favor, dr. Gael.


...
- Pronto! Tudo concluído. Gostaria de fazer nova verificação em 12
meses.

- Anotado. E quanto lhe devemos, dr. Gael?


174

- Este é o valor para os dois. Se pagarem junto, posso parcelar em três


vezes. Vocês ainda tem tempo para um espresso?

- Claro. Para o espresso e para conhecer o marido felizardo.


...
- Este é o 2° Tenente Abatte, Fernando e estes são Alex e Ben. Olímpia
só virá na parte da tarde, então teremos de levar Alice e a mamadeira à
padaria.

- Olá, Fernando! Então, você é o felizardo que conquistou o coração do


dr. Gael.

- Olá, Alex e olá, Ben! Felizardo caracteriza bem meu estado.

-Vocês ainda me devem uma resposta: Alice parece-se mais com


Fernando ou comigo?
...
- Vocês querem pão de queijo? Nós ficaremos apenas com o espresso.

- Só espressos para nós, também, Gael.

- Eu acho que a Alice é a cara do pai Fernando, mas vejo traços seus
nela também, Gael.

- Eu penso como o Alex. Alice é o Fernando escrito, mas carrega


elementos do Gael também.

- Eu já li vários relatos de pessoas que afirmam que crianças adotadas


acabam parecendo-se com os pais adotivos.

- Eu também já vi isso, Ben. Vocês alguma vez pensaram em filhos?

- Não, Gael. Nós temos a Sampaio, uma caramelo SRD que adotou o
Alex como pai desde o primeiro dia em que ele esteve em casa.

- Minha ex fazia tratamento para engravidar. Agora está no nordeste,


casada com sua companheira. E eu, casado com esse lindão aqui.

- Como foi par você, Alex, descobrir-se em um relacionamento com um


homem?

- Fernando, todas as novas descobertas foram ocorrendo de modo muito


natural. Claro, há o choque quando você vê suas convicções
175

desmoronando, mas Ben sempre me deixou livre para fazer as minhas


escolhas e jamais se afastou de mim.

Chegou o dia em que eu vi que nunca antes uma mulher me havia


amado como o Ben me amava. Amar alguém e ser amado por esse
mesmo alguém é uma experiência única. Eu via o amor recíproco entre
nós crescer.

- A Alice é minha filha biológica, fruto de um relacionamento fortuito. Eu


já havia pedido o Gaelzinho em namoro quando descubro, por uma
assistente social da vara da infância e da juventude, que sou pai e que
se eu não buscasse a minha filha ela seria entregue para adoção.

Aí deu-se o momento mais elevado da nossa história: eu achava que o


Zinho poderia me deixar. Ele não me deixou contar os detalhes; eu não
conseguia dirigir. Ele me levou ao fórum e saímos de lá com a Alice.

Na semana seguinte casamo-nos para que nossos nomes constem da


sua certidão de nascimento. Não há exemplo maior de reciprocidade no
amor.

- É Fernando, você é mesmo um felizardo.

- Eu também sou, Ben. Nando é o homem da minha vida, o melhor


marido e o melhor pai. E eu me sinto tão pai da Alice como ele. Alice não
é “a filha do meu marido”; Alice é nossa filha!

- Veja, Alex, como ela mama em paz no colo do Gael. E os olhares que
ela atrai, não?

- Aqui, muitos já estão acostumados. Ora eu dou a mamadeira, ora o


Nando. Ela mama até a última gota; é uma comilona.

Amanhã teremos consulta com a pediatra e vamos ver quanto de peso


ela ganhou nesse primeiro mês.

- O amor tem um poder extraordinário de curar tudo que é, não é


Fernando?

- Verdade, Alex!

Esse foi mais um domingo agitado para o Dr. Gael. Passava das 17h quando
encerrou os trabalhos no consultório e Olímpia tratou de fechar tudo e acionar
176

o alarme. Olímpia estava sem carro e Fernando deu-lhe uma carona,


desviando um pouco sua rota: era por uma boa causa.

O domingo seguinte seria de folga para os dois e o dr. Gael havia feito planos
para os dois dias em que ficaria em casa. Amanhã estaria de folga, exceto pela
consulta da Alice, à noitinha.

Em casa, Nando deu a mamadeira da noite para Alice e Gael esperaria pelo
processamento para dar-lhe banho e trocar a fralda. Gael achava que ela
estava fofinha e Fernando, gordinha. Os dois jantaram com a companhia de
Alice na estrutura que Fernando havia montado.

Fernando achava que o resultado do DNA já havia sido enviado à vara da


infância e da juventude. Amanhã, ele mandaria um mensagem para a Wanda,
para especular se já não havia novidades.

Na sexta-feira haveria a comemoração secreta na corporação e Gael já havia


instruído Lavínia para deslocar o horário do último paciente. Fora isso, a
semana seria de absoluta tranquilidade.

À mesa do jantar, Fernando fingia brincar de aviãozinho com Alice e punha um


pedaço de carne ou legume na boca do pai Gael. Alice participava emitindo
sons e agitando os bracinhos gorduchos.

Toda refeição gerava um vídeo que ia aos pais do Gael, do Fernando e para
Rico e Jô. Wanda também recebia os mais engraçados, ocasionalmente. Em
resposta, havia comentários que destacavam a semelhança de Alice com
Fernando e com Gael. Quem diria?

Fernando era sistemático: assim que Alice adormecia no berço era o momento
de se dedicar ao “amor de marido é amor de marido”. O amor pela Alice não
transmutava sua imensa energia sexual: ele desejava seu marido e sentia-se
ardentemente desejado também.

Depois, dormiriam o sono dos bons e dos justos.

27. O turbilhão está de volta

Na segunda-feira levantaram-se no horário costumeiro e assumiram as tarefas


costumeiras. Gael deixaria Fernando na corporação e seguiria até a Coop para
umas comprinhas. Gael vestia a bolsa canguru, prática e ergonômica, e ficava
com as mãos livres.
177

Alice adorava esse tipo de passeio, já que em casa, na estrutura que Fernando
montara, ela podia acompanhar tudo o que se passava. Gael, com sua
aparência jovial, seu sorriso arrebatador e seus cabelos grisalhos arrancava
suspiros por onde passasse.

Fernando estava em sua mesa preparando-se para mandar uma mensagem


para a assistente social Wanda. Estava digitando quando recebe uma ligação.

- Bom dia! Aqui é a assistente social Wanda, da vara da infância e a


juventude do fórum do Ipiranga. Preciso falar com Fernando Abatte.

- Bom dia, Wanda! Eu estava digitando uma mensagem para você neste
instante para saber se tínhamos alguma novidade.

- Fernando, vamos lá. Você quer a novidade boa ou a má primeiro?

- Ai, ai! A má primeiro.

- A má notícia é que você precisa vir aqui.

- E a boa notícia, Wanda?

- A boa notícia é que hoje você vai registrar sua filha.

- Wanda! Saiu o despacho do juiz, então?

- Sim! O DNA deu positivo; você é o pai biológico da Alice. Na sexta-


feira, bem no final da tarde, eu retirei o despacho em que vocês dois
recebem a guarda definitiva e a autorização para registrá-la como filha.

- Wanda, você merece um beijo.

- Então venha para cá que um beijo de um homem lindo como você eu


quero!
...
- Zinho, meu lindo. Tenho uma notícia chata para você.

- Ouvir sua voz e olhar para essa carinha linda aqui na cadeira afasta
qualquer chatice. Pode falar.

- Cancele seus planos. Teremos uma manhã cheia.

- Não me diga que...


178

- Sim. Vamos registrar nossa filha. Você passa aqui? Eu vou justificar a
minha ausência ao comandante.

- Alice, vamos buscar o papai mais lindo do planeta e registrar você.


...
- Bom dia, senhor. Nós vamos falar com dona Wanda. Ela está
esperando por nós.

- O senhor já sabe onde fica a sala dela, certo? Podem ir para lá. Ah, ela
está ali, no bebedouro...

- Bom dia, Wanda! Bom dia, mesmo!

- Bom dia, meus amores. Demorou um pouco, mas saiu a


documentação. Vamos à minha sala que eu entrego tudo para vocês.

- Wanda, essa é a guarda definitiva?

- É, sim. O relatório da visita feita pela assistente social Lucila e pela


psicóloga Cátia, com as fotos e os vídeos foi fundamental.

Tudo é levado em conta, sabem? O apartamento é do Gael, mas foi todo


adaptado para receber a Alice. A cena de vocês jantando com Alice no
suporte acompanhando vocês foi marcante. A preocupação de casarem-
se também foi notada.

Nosso trabalho requer que nos certifiquemos se o que nos é


apresentado é real ou se é cenografia. No caso de vocês está claro que
Alice encontrou o melhor lar.

- Parabéns, Wanda, por vocês serem tão meticulosas nas análises. Rico
e Jô já nos haviam dado essa informação.

- Nosso papel é defender os direitos do recém-nascido. Vejam o


despacho do juiz: tem a data de nascimento da Alice e os nomes
completos dos dois pais.

Agora, é só vocês irem ao cartório para registrá-la. Ficou alguma


dúvida?

- Sim. Quando podemos abraçá-la?

- Agorinha mesmo!
179

Do fórum, Gael dirigiu diretamente para o cartório, o mesmo no qual casara-se


com Fernando. Os funcionários lembravam-se dos dois e da pequena Alice, de
dias. Mas quem não se lembraria de dois homens escandalosamente bonitos
como Gael e Fernando?

Em menos de meia hora estavam com o registro de nascimento de Alice


Capobianco Abatte nas mãos e já com três cópias autenticadas. Agora,
Fernando e Gael eram pais de fato e de direito. No cartório, Gael não se
conteve e abraço e beijou seu marido. Suspiros foram ouvidos...

Gael deixou Fernando na corporação e seguiu para casa para retomar a rotina
interrompida por tão auspicioso acontecimento. Fotografou a certidão e
anexou-a a mensagens que enviou ao pai Fernando, aos pais dos dois pais, a
Olímpia e Lavínia, a Rico e Jô, a Kevin e Allan e a Wanda.

Sem saber do acontecimento, Gael havia comprado algumas delícias na Coop


que seriam empregadas hoje, em um jantar comemorativo a três, assim que
retornassem da consulta da Alice com a dra. Regina Viviane.

Fernando tinha direito à licença paternidade de cinco dias e combinou com seu
superior hierárquico, o comandante Canutto, que a gozaria na semana
seguinte, até para deixar tudo preparado para poder se ausentar da corporação
por uma semana.

Cecília e Wilma, as mães de Gael e Fernando, responderam que os avôs


quase choraram de emoção ao ver que Alice tinha os dois sobrenomes: ela era
uma Abatte e uma Capobianco. A “máfia” estava salva...

Olímpia e Lavínia consideravam-se tias-avós de Alice e ficaram emocionadas.


Rico e Jô responderam que logo, logo, seria a vez de Kevin e Allan festejarem
e Kevin respondeu que tinha lágrimas nos olhos por todos.

A resposta de Wanda foi “não se esqueçam que amor de pai é amor de pai e
amor de marido é amor de marido” e Gael tratou de repassar essa dica
fundamental de Wanda para Rico e Jô e para Kevin e Allan.

O jantar já estava pré-pronto e a mesa arrumada com um bilhete escondido


sob o prato de Fernado. Gael desceu com Alice para buscarem o papai
Fernando e visitarem a dra. Regina.

- Boa tarde, Regina. Ou boa noite, acho que é melhor.

- Boa noite, Gael e Fernando. E você, mocinha? Sabem que eu acho


que ela se parece com você também, Gael?
180

- Tenho ouvido isso com alguma frequência e fico muito feliz.

- Primeiro, dona Alice, vamos fazer um strip-tease para a titia avaliar


você direitinho. E é bom porque vou poder ver a consistência das fezes.
...
- Na primeira consulta ela pesava 3.480gr e agora está com 4.300gr.
Teve uma ganho de 820gr em um mês. Está mamando bem, dona Alice!

Esse peso está ótimo para ela. Quanto vocês tem dado para ela mamar?

- Geralmente 120ml e ela seca a mamadeira. Ela toma nove


mamadeiras em 24 horas e geralmente faz cocô logo após mamar.
Continua funcionando como um reloginho, Regina.

- Ótimo. E vocês não a acordam para mamar, certo?

- Certo. Ela raramente acorda de madrugada e chora.

- As fezes estão com cor e consistência normais. Vamos mantê-la só no


leite, sem água, chazinhos ou suquinhos. Como vocês têm feito.

Ela também vai para casa com uma lista de vacinas: Hexavalente (DTPa
+ Hepatite B + Haemophilus + Poliomielite) e Pneumo 13 conjugada
Rotavírus (Pentavalente). Quanto mais cedo, melhor.

Ela apresentou alguma reação à primeira vacina?

- Nenhuma que tivéssemos percebido, dra. Regina.

- Então, estão liberados. Ela já está limpinha, com fralda trocada. Quero
vê-la em 30 dias novamente.

- Viremos, Regina. Abraço grande para você.

A caminho de casa foram até o posto de saúde para as vacinas, só que agora,
com a certidão de nascimento. Alice foi atendida, vacinada, fez uma carinha de
que queria chorar, mas estava no colo do papai Fernando e com o papai Gael
do lado. Haveria companhia melhor?

De volta ao apartamento, Fernando foi tomar seu banho enquanto Gael


finalizava o jantar. Ao passar pela sala, Fernando notou que haveria algo de
especial. Alice já estava no suporte que o papai Fernando instalara com as
tiras de couro e que encantou Cátia e Lucila.
181

Fernando veio à cozinha, abraçou Gael por trás e cochichou-lhe alguma


indecência no ouvido que o fez arrepiar-se de alto a baixo. Os dois estavam
com fome de comida e de amor.

Gael cuidou de preparar um camarão na moranga, com requeijão e leite de


coco que serviria com arroz branco e salada de folhas variadas. O maior
trabalho foi assar a moranga o suficiente para poder escavá-la levemente, pois
queria que a polpa fosse consumida com o camarão.

Comprou camarões graúdos, daqueles congelados em que mais da metade é


água. Dourou-os na manteiga e no azeite e reservou-os. Fez um refogado com
cebolas, pimentões vermelhos, requeijão, leite de coco e pimenta malagueta.
Depois de bem apurado, acrescentou os camarões.

A moranga recheada e tampada foi ao forno, pincelada com óleo, até murchar
e dourar. Os pratos seriam montados na cozinha, por praticidade. Quando
Fernando pega seu prato encontra a tira de papel e lê “ao marido e pai que dá
o melhor sentido às nossas vidas”. Lágrimas surgem-lhe.

Fernando vai à cozinha, abraça Gael novamente e beija-o com gratidão e


imenso desejo. Gael reluzia de felicidade por ter Fernando em sua vida e por
ser pai. Os dois sentaram-se para saborear o camarão na moranga.

O resultado ficou acima das expectativas. Era a primeira vez que Gael
arriscava-se a preparar camarão na moranga. Se não ficasse bom, seria
devorado do mesmo jeito. Fernando achava lindo que Gael preparava tudo
pensando nas sobras que ele levaria para seu almoço.

Ninguém, nunca, cuidara de Fernando com tanta dedicação como Gael. E


ninguém, nunca, proporcionara tanto prazer carnal como Gael conseguia
proporcionar-lhe. E Gael jamais sentira tanto prazer como o que sente com
Fernando, seu Nando mais lindo do mundo.

E junto com os dois papais apaixonados estava Alice já querendo adormecer,


mas ouvindo o que os papais lhe diziam, com um esforço extra de
concentração. Alice emitia seus próprios sons e gostava de balançar os
bracinhos gorduchos.

Depois de tudo arrumado e do almoço de Fernando já separado, os dois


colocaram Alice no berço e foram para a sala para namorar. A noite foi agitada
para Alice: passeios, strip-tease, vacinas. Ufa! A noite ainda seria bem agitada
para os papais Nando e Zinho.
182

Fernando tomou Gael pelos braços e o fez ser inteiramente seu.

A sexta-feira chegou. Era o dia de celebrar os dez anos de Fernando na


corporação. Gael iria com Alice e tratou de barbear-se para ficar bem bonito e
compor boa figura. Mas era segredo.

- Hoje à tarde eu tenho um evento social no conselho regional de


odontologia. Vai ser uma reunião pertinho do consultório.

Vou barbear-me para ficar bem. Você poderia barbear-se também, não
Nando?

- Zinho, você é lindo de qualquer jeito. Se você pede, vou fazer a barba.
Fica mesmo melhor.

- E domingo teremos folga. Nem acredito, Nando. E você terá sua


licença paternidade de cinco dias, não?

- Sim. E eu tenho algo em mente, mas ainda preciso refletir melhor sobre
o que fazer.

Gael deixou Fernando na corporação e subiu com Alice para o consultório. A


parte da manhã seria intensa, com um canal e uma extração. À tarde, haveria
mais trabalho de rotina, até o momento de dirigir-se à corporação.

O comandante Canutto chamaria Fernando até seu gabinete para que todos
pudessem ir para a sala de confraternizações, onde seria servido o café festivo.
Dr. Gael já tinha as instruções sobre quando aparecer e para onde dirigir-se,
com Alice.

Fernando estava no gabinete do comandante, mas tudo era um tanto estranho.


O comandante entrava e saia da sala e nada de tocar no assunto pelo qual o
chamara. Por fim, o comandante pediu para Fernando acompanhá-lo.

O comandante foi à frente, abriu a porta da sala de confraternizações, entrou e


segurou a porta para que Fernando entrasse. E que susto foi aquele: todos
puseram-se de pé. O alto comando da corporação estava todo lá. O coração de
Fernando começou a bater mais forte.

Foi apenas quando chegou à frente da sala que notou seu bem-maior: Gael
portando Alice na bolsa canguru que, assim que viu o pai, ergueu os bracinhos.
Os olhos de Fernando já estavam marejados e os de Gael, também.
183

Fernando não pensou duas vezes: abraçou e beijou seu marido e sua filha e
dois fotógrafos registraram o momento do abraço e o beijo. Eram da imprensa
local e um artigo seria publicado. O comandante assumiu a tribuna e pediu
para que todos se sentassem.

O comandante agradeceu a presença do coronel da corporação, do


representante da câmara, da prefeitura, da imprensa e do dr. Gael. Fernando
foi posicionado para ficar ao lado do dr. Gael.

- Eu quero novamente agradecer ao nosso vizinho, dr. Gael, que


gentilmente concordou em participar deste café da tarde e trazer a
filhinha Alice que ostenta o nome dos dois pais: Alice Capobianco
Abatte.

Os tempos mudam e nós precisamos saber nos adaptar às mudanças. O


Coronel Quintão fez questão de vir pessoalmente para estar conosco e
reforçar o compromisso da corporação com a diversidade ao mesmo
tempo em que combatemos todas as formas de discriminação,
independentemente das justificativas apresentadas.

O primeiro motivo para estarmos reunidos aqui é que exatamente hoje


faz 10 anos que Fernando Lourenço Abatte juntou-se à corporação
mediante aprovação em concurso público de provas e títulos.

Aqui, o 2° Tenente Abatte construiu uma ficha corrida respeitosa. Na


próxima semana, ele estará em licença paternidade, de cinco dias.

Eu chamo agora o Coronel Quintão que entregará ao 2° Tenente Abatte


o documento que comprova a sua subida de patente. Quando o
2°Tenente Abatte retornar da licença, retornará como 1° Tenente Abatte.

Todos puseram-se imediatamente de pé e aplaudiram a entrega que o coronel


fez, da subida de patente. Fernando recebeu os cumprimentos do coronel e o
comandante liberou os presentes para a comemoração. Enquanto isso, o
comandante foi ao dr. Gael.

- Dr. Gael, a sua postura sóbria como cidadão conta muito para nós e
nos dignifica. O senhor é um legítimo amigo da nossa corporação o que
muito nos honra.

- Comandante Canutto, eu não encontro palavras para descrever a


minha emoção por esse gesto por parte das autoridades dessa
corporação. Realmente, novos ventos espalham-se por aqui.
184

O Coronel Quintão também veio para cumprimentar o dr. Gael como amigo da
corporação. Coronel e comandante ficaram mais um pouco e estavam para
ausentar-se quando um dos aspirantes foi ao microfone e pediu um minutinho
de atenção.

- Segundo Tenente Abatte, dr. Gael, ali sobre a mesa há uma modesta
demonstração do afeto que cada um de nós tem por vocês dois.
Aceitem, pois vem dos nossos corações.

Fernando foi receber os presentes: eram muitos pacotes de fraldas, latas de


leite e macacõezinhos para Alice usar até os seis meses. As lágrimas não
paravam de correr dos olhos de Fernando. Só diminuíram quando foi
carinhosamente abraçado por Gael com sua Alice.

Com a saída do comandante e do coronel, a atmosfera ficou mais descontraída


e todos puseram-se ao que tinham ido fazer lá: tomar café, comer salgados e
doces e confraternizar. Gael, com Alice na bolsa canguru passou pelas rodas
para agradecer pessoalmente pelos presentes.

Um dos aspirantes deu o sinal de que era hora de todos voltarem aos seus
postos. Dr. Gael recebeu um generoso prato com salgados e doces para levar
ao consultório. Fernando despediu-se de Gael e Alice com um abraço, um beijo
e os olhos bem vermelhos.

Dr. Gael retornou ao consultório e Olímpia ganhou salgadinhos e docinhos para


si e para Lavínia. E viu os olhos vermelhos do dr. Gael e Alice dormindo na
bolsa canguru. Dr. Gael comentou que precisaria de um caminhão para
conseguir levar todos os presentes para casa.

O bom nisso tudo era de que as pessoas estavam preocupadas em dar


presentes realmente úteis como fraldas, leite e macacõezinhos; todos eram de
consumo intenso. Agora, dr. Gael atenderia mais uma paciente e estaria livre
para ir para casa.

Gael notou que alguns bombeiros haviam filmado o evento e perguntava-se se


haveria um vídeo para poder enviar aos familiares. Mas agora era hora de
trabalhar e, depois, de buscar o marido na corporação e encher o carro com os
presentes.

Olímpia havia desligado tudo e só esperava pelo dr. Gael para acionar o
alarme de trancar a porta do conjunto 24. Desceram as escadarias e Gael
sentia que Alice pesava. Ela estava acordada e ambos iram buscar o papai e
os presentes.
185

Quando Gael chegou, um aspirante apareceu carregado e seguido por


Fernando, também carregado. O porta-malas e o banco traseiro quase não
eram suficientes. Uma parte do banco era ocupado pelo bebê conforto.
Fernando despediu-se do aspirante e os três seguiram para o lar.

Fernando ficou com Alice na bolsa canguru, com a bolsa sacola e com algumas
sacolas e Gael ficou com todo o resto. Os três e as sacolas ocuparam todos os
espaços do elevador.

- Zinho, como foi a sua reunião no conselho regional de odontologia?

- Foi maravilhosa, Nando. Vou contar para você. Alice foi comigo e lá
nós encontramos o homem mais lindo do mundo e festejamos a sua
subida de patente. Você tinha que ter visto aquilo tudo!

- Então, vocês dois sabiam de tudo, não?

- O comandante nos convidou para um café para celebrar os seus 10


anos de corporação. E junto, veio essa notícia maravilhosa da sua
merecidíssima promoção.

- Zinho, eu fiquei tão orgulhoso quando vi você e Alice lá na frente. É tão


libertador você poder mostrar a sua família, não?

- Eu também fiquei tocado quando fui agradecer pessoalmente pelos


presentes que ganhamos.

Também fiquei tocado pela sensibilidade do comandante Canutto e do


coronel Quintão. Estou curioso para ver o que a imprensa publicará.

- Alice, você lembra de ter ouvido hoje pela manhã “faça a barba, amor”?
Tudo combinado e ainda bem que fiz. Mas no jantar, os papais terão
uma conversinha...

O jantar seria uma salada de folhas variadas, os salgados que Gael aqueceria
no forno e faria acompanhar por Tabasco e os doces como sobremesa. O luxo
ficaria por conta de um vinho branco para selar a semana e a subida de
patente.

Alice vai receber a mamadeira do papai Gael e, depois do cocô, banho


quentinho com a ducha que o papai Fernando instalou e que revolucionou tudo.
E só depois uma fralda novinha.
186

- Zinho, amanhã eu levo e busco você. No domingo, nós iremos ao


shopping comprar as nossas alianças.

- Nando, eu vou amar isso. Hoje eu gostaria muito de ter portado minha
aliança. É só um símbolo, mas no nosso caso tem um valor diferenciado.
Você já tem um modelo em mente?

- Eu gostei daquelas alianças em outro branco, um pouco mais largas. E


você?

- Exatamente o modelo que eu queria. Acho-as tão distintas, Nando.

- E sabe onde as usaremos pela primeira vez?

- Não. Pela sua carinha, já temos um plano, não?

- Zinho, receberei um quinquênio e o novo soldo com 1° Tenente, então


penso em algo especial para nós.

- Estou gostando a ideia, Nando. Vamos aos pormenores...

- Penso em um almoço no seu próximo domingo de folga, daqui a quatro


semanas. É o tempo para organizar tudo. Um almoço de casamento,
com nossas famílias e alguns amigos.

- Nando, isso seria maravilhoso. E quem você pensa em convidar?

- Vamos lá: nossos pais, nossas irmãs com agregados, Rafael &
Henrique, P & J, Étienne & Renato, Ralf & Matheus, Marco & Rainer,
Rico & Jô, Orlando & Paulo, Nuno & Ryan, Kevin & Allan, Bernardo &
Bello, Benjamin & Alex, Olímpia & Lavínia.

- Muito boa, essa lista, Nando. Posso acrescentar mais quatro: Marie &
Luíza e Júlia & Rúbia? Luíza é a ex do Bernardo, Júlia e Rúbia são as
irmãs do Rico e do Jô. As quatro virão amanhã.

- Pelas minhas contas, 40 pessoas ao todo, Zinho. Eu pensei em pedir


você em casamento logo no início e, no fim, trocarmos alianças na
presença de todos. O que você acha?

- Eu acho lindo, mas vou chorar de emoção. E você também vai, Nando.

- Sem choro não tem muita graça, amor.


187

Fernando recebeu um vídeo mostrando o salão, os convidados, o momento da


entrega do documento de subida de patente e o abraço e beijo em Gael. E no
finzinho, as sacolas com presentes. Fernando enviou o vídeo aos familiares.

Gael e Fernando, meus lindões, escrevo para informá-los de que


acabamos de receber a visita de uma assistente social e de uma
psicóloga. Conversamos bastante, falamos de vocês e descobrimos que
são as mesmas que visitaram vocês. Quiseram ver todo o apartamento e
o lugar que reservamos para nosso bebê. Elas chegaram quando
estávamos terminando nosso jantar e flagraram-nos em um momento de
família. Beijos nossos para vocês dois.

28. Júlia e Rúbia 13

Rúbia é colega de trabalho de Ryan, mas conheciam-se apenas de vista.


Comentários discretos aqui e ali, de que se haviam casado com iguais e uma
participação em um evento técnico interno acabaram por colocá-los em
contato.

Vencidas as primeiras barreiras, tornaram-se próximos não só profissional


como pessoalmente e foi assim que Rúbia obteve a indicação do dr. Gael para
uma avaliação durante a gravidez do Vitor. Rúbia encantou-se pelo dr. Gael e
retornou em um outro momento com sua esposa Júlia.

Hoje retornariam novamente e logo cedo para terem o sábado disponível para
os outros afazeres. E a mente de Rúbia como que retrocedeu no tempo,
aleatoriamente, ao dia em que conheceu Júlia, sua futura cunhada, no
apartamento de Rico.

Rúbia pensava em como a vida podia ser bizarra: seu irmão Rico é quase
atropelado por Jô à bicicleta, ajuda a socorrê-lo, fica com ele no hospital e leva-
o para casa depois da alta. Cuida dele, dando-lhe banho e comia na boca e a
magia do amor opera seus milagres.

Naquele apartamento impregnado pela magia do amor ela conhece Júlia, a


irmã de Jô, e o mundo das suas faísca instantaneamente. Esse amor captura
as mães e os pais das duas em uma amizade forte e duradoura. E tudo
começou com um acidente.

13
Júlia, arquiteta, e Rúbia, química, são irmãs de Jô e Rico, respectivamente, mães de Vitor e aparecem
no conto O acidente.
188

Os pais tornaram-se amigos inseparáveis, assim como as mães. Seu irmão


casou-se com Jô e os dois tornaram-se pais de Luma e da cachorrinha Bela.
Ela casou-se com Júlia e as duas tornaram-se mães do Vitor. Rúbia foi para
visitar o irmão amado e encontrar sua amada esposa.

Quantas vezes Rúbia deixou o pequeno Vitor aos cuidados do tio Rico, junto
com Luma e Bela? Algumas vezes o trio ficou com o tio Jô, no escritório, para
deleite do clientes que se encantavam ao ver como Jô era pai e tio zeloso. Em
cada gesto Rúbia sentia a presença da reciprocidade.

- Bom dia, dr. Gael! Como você está? Aliás, como vocês estão?

- Bom dia, Rúbia, bom dia, Júlia e bom dia Vitor! Nós estamos muito
bem. Fernando está em casa, com Alice.

- Nós soubemos pelo Rico e pelo Jô e ficamos muito, muito felizes por
vocês três!

- Obrigado! Eu, às vezes, acho que estou levitando ou sonhando,


sabem? Foi tudo muito rápido e eu ainda estou assimilando tudo.

- A gente sabe como é. Nosso caso não foi muito diferente. Mas é
maravilhoso tudo isso!

- Vamos, então, fazer a nossa avaliação periódica? Vocês estão com


coragem para ocupar a cadeira elétrica?

- Gael, nossa confiança em você é imensa e seu sorrido lindo é tão


tranquilizante...
...
- No prontuário eu registrei que no retorno faríamos uma radiografia
panorâmica para avaliarmos toda a estrutura e os canais.

Na sequência, eu quero fazer uma profilaxia, uma limpeza geral, para


avaliar presença de tártaro e/ou cáries. Podemos prosseguir assim?

- Claro, Gael. Por favor...


...
- As radiografias panorâmicas não mostram alterações o que significa
que os canais estão todos preservados.

Júlia não apresenta tártaro nem sinal visível de cárie. Rúbia não
apresenta tártaro, mas há duas cáries que preciso restaurar e resinar
hoje, antes que evoluam e afetem algum canal.
189

Como são superficiais, acredito que não precisaremos anestesiá-la,


Rúbia. Podemos prosseguir?

- Sim, Gael.
...
- Pronto. As cáries eram mais superficiais do que supus inicialmente.
Pensei que pudessem ser consequência da gestação ou da lactação,
mas não me parece ser isso.

Por hoje, estão dispensadas, mas eu gostaria de revê-las em12 meses.

- Já deixaremos pré-agendado, Gael. E quanto lhe devemos?

- Este é o valor da Júlia e este, o seu, Rúbia. Se pagarem tudo junto,


posso parcelar em até três vezes.
...
- Rúbia e Júlia, eu quero que conheçam Lavínia.

- Olá, Lavínia. Da outra vez que viemos havia uma outra senhora
também muito simpática.

- É a Olímpia. Nós duas somos assistentes do dr. Gael há muitos anos.

- O bonito nisso tudo é que nos casamos juntos, na mesma cerimônia:


Lavínia e Olímpia e Fernando e eu.

Por que vocês não descem para um espresso e para conversarem um


pouco?

- Bem, eu adoraria um espresso. Vamos, Lavínia?

- Lavínia, eu tomo conta de tudo e os espressos são na minha conta,


certo?

- Lavínia, vamos deixá-lo sonhar...

Gael retorna à sala do consultório e põe-se a arrumar tudo para o próximo


atendimento. Será um caso trabalhoso, de tratamento de canal. O primeiro
paciente da tarde também será um tanto trabalhoso: extração de siso. Aliás, foi
com uma extração assim que sua vida mudou.

Gael checa suas menagens e encontra um vídeo de dois arruaceiros fazendo


folia no banho: a dupla Nando & Alice. Será que Nando não instalou essa
190

ducha pensando exatamente na bagunça que faria com Alice, durante o


banho? Difícil saber quem se diverte mais...

Mas há uma mensagem que Gael lê lentamente enquanto seus olhos enchem-
se de água.

Zinho, meu lindo amorzão! Você recebeu-me por inteiro em sua vida,
com direito a pacote-surpresa. Quando você me ama, você vem inteiro
para entregar-se a mim. Minha admiração por você aumenta, assim
como o meu desejo. Isso, sem mencionar o amor que sinto por você,
meu príncipe. Uma pena que você não pôde brincar de banho conosco.
Mas amanhã, você não escapa! Beijo do homem da sua vida.

Gael respira fundo e responde à mensagem, cuidando para que lágrima


alguma caia na tela.

Nando, assistir a essa farra do boi perpetrada por pai & filha na hora do
banho faz um bem danado, sabe? Saber de você, poder sentir você
todo, faz um bem danado, sabe? Saber que Alice, a peralta, é nossa
filha, faz um bem danado, sabe? Saber que eu não escaparei de você
nem hoje, nem amanhã, faz um bem danado, viu?
Beijo safado no primeiro e único Tenente!

Esse beijo safado é aquele no qual estou pensando? O 2° Tenente


precisa de um, como despedida, e o 1° Tenente precisa de vários para
ser bem recebido.

Esse beijo safado é o que eu deveria ter dado quando o mais lindo
tenente do planeta se deitou na poltrona odontológica pela primeira vez
e exibiu-se todo para mim...

O primeiro paciente da tarde vem escoltado por Lavínia que trouxe um


espresso quentíssimo para o Dr. Gael, em sinal de agradecimento por tê-la
feito conversar com Rúbia e Júlia. A nova geração tinha algo a ensinar...

29. Marie e Luíza 14

Passava das 12h30 quando Luíza e Marie decidiram-se por sair da cama.
Tomariam o café da manhã, depois um banho e seguiriam até o consultório do
dr. Gael. Luíza via-se outra, principalmente depois do casamento com Marie.
Agora, ela achava-se verdadeira.

14
Marie, editora de moda, e Luíza, publicitária, são casadas e aparecem no conto A carvoaria.
191

Com Bernardo, Luíza também se achava verdadeira, mas aquela Luíza


verdadeira era uma falsa Luíza. Aquela verdade vinha da necessidade de
cumprir as expectativas alheias e de viver segundo o socialmente esperado.
Hoje, casada, ela vivia a si; vivia a sua vida.

Luiza raciocinava que o casamento com Bernardo havia sido um grande erro e
que desse grande erro nasceu a salvação para os dois. Um grande erro que
mostrou-se ser o melhor acerto. Hoje, ela e Bernardo amam-se de verdade,
como grandes amigos que são.

Bernardo reluz de felicidade ao lado do marido, Bello; Luíza resplandece ao


lado de sua esposa Marie. E Luíza lembra-se de como Bernardo sempre foi
homem com H maiúsculo: respeitou-a, jamais a forçou a qualquer coisa que ela
não quisesse.

Praticamente tudo o que Bernardo queria, ela detestava. E os dois seguiam


casados, bons companheiros, esforçando-se para se convencerem de que
fizeram o certo, quando nada estava certo. Luíza representava o protótipo da
boa esposa e seu nível de carência só fazia aumentar.

Ela lembra-se nitidamente do dia em que conheceu Marie em um evento na


Revista Pare! A força do olhar sedutor de Marie teve efeito devastador na
carência crônica de Luíza. Trocaram contatos, encontraram-se, conversaram e
as duas perceberam que podia haver mais.

Luíza lembra-se de como Marie a estimulava e apoiava a viver a sua própria


vida e não uma vida que ela mesma se havia imposta, por conta de
expectativas profissionais e sociais. Luíza carregava traumas com momentos
íntimos, apesar de sempre ter sido respeitada por Bernardo.

Luíza viu medos, bloqueios, inseguranças desfazerem-se no ar quando teve


seu primeiro momento íntimo com Marie. Finalmente, ela se encontrara. Sua
escolha tinha nome: Marie e a de Marie também: Luíza. A reciprocidade existia
em plenitude.

Como foi doce o dia em que Bernardo a chamou para conversarem e propôs
que se afastassem da condição de marido e mulher. Foi fácil para ele, pois ele
já amava um outro alguém. Naquele dia, Luíza e Marie comemoraram a
libertação do passado e a promessa de um futuro juntas.

E o jantar com Bernardo foi hilário quando cada um viu que o outro amava um
igual. Marie encantou-se com Bernardo e com Bello. Marie e Bernardo estavam
192

próximos, na Revista Pare! A aceitação por parte dos familiares foi bem mais
suave do que Luíza imaginava.

Quantas avaliações equivocadas, apenas por medo de viver a própria vida, por
medo de ser quem se é. E a preciosa amizade com Bernardo foi preservada e
um dos frutos foi a indicação do dr. Gael, que logo na primeira consulta caiu no
coração dela e de Marie.

Graças a Bernardo, os pais de Luíza não a recriminaram tanto no início e até


receberam Marie em casa. Hoje, Marie é a queridinha, e Bernardo continua
sendo o queridão dos pais. De alguma forma, dr. Gael está conectado a toda
essa rede de relacionamentos e será uma alegria revê-lo.

Eu quero essa boca do beijo safado!

Gael leu a mensagem do seu Nando e soltou uma gargalhada. Respondeu


rapidinho.

Esse tenente tarado vai ter seu beijo safado!


...
- Boa tarde, dr. Gael! Estamos felizes por poder revê-lo!

- Boa tarde, Marie e boa tarde, Luíza. Vocês estão radiantes, sabiam?

- Dr. Gael, acho que é reflexo da sua felicidade. Nós soubemos de


tudo...

- Será que há algo mais sublime do que amar, Marie e Luíza?

- Principalmente quando o amor vem para nos libertar de quem


achávamos que éramos...

- É, Luíza. O amor tem um poder incomensurável. Mas, vamos entrar.


Certa cadeira elétrica as espera.
...
- No prontuário de vocês, eu havia registrado a necessidade de avaliar
toda a estrutura gengival.

Eu começarei com uma radiografia panorâmica para as duas, para poder


fazer essa análise, especialmente para avaliar o estado das raízes e dos
canais.
193

Depois, quero fazer uma profilaxia, uma limpeza geral que me permitirá
avaliar melhor se há tártaro ou alguma cárie em estágio inicial. Podemos
prosseguir esse modo?

- Podemos, sim, Gael. Acho importante termos uma visão do estado


geral da dentição.

- É isso, Marie.
...
- As radiografias panorâmicas não apresentam alterações visíveis, o que
significa que raízes e canais não apresentam anormalidades.

A profilaxia revelou ausência de tártaro nas duas e revelou, também,


uma cárie inicial em cada uma. Eu gostaria de restaurar essas cáries e
resiná-las. Como será trabalho superficial, não precisaremos de
anestesia. Podemos prosseguir?

- Boas notícias, não? Claro, vamos fazer tudo hoje.


...
- Trabalho finalizado. Eu gostaria de revê-las em 12 meses para uma
nova avaliação, ou a qualquer momento, se surgir alguma intercorrência.

- Ótimo. Vamos deixar agendado. Quanto precisamos pagar, dr. Gael.

- O valor total é este aqui, metade para cada uma. Se pagarem tudo
junto, posso parcelar em duas vezes.

- Pagarei tudo. E por hoje, chega?

- Sim, chega, e amanhã terei, excepcionalmente, uma folga. Tenho


família agora, sabem?
...
- Marie, Luíza, este é Fernando, o maridão do coração, e esta é a nossa
filha, Alice.

- Fernando, você é um encanto e a Alice é 100% você, viu?

- Sabe que eu acho que Alice tem muitos traços do Gael?

- Se ela for bonita, ela puxou o pai Gael.

- Fernando, vocês dois são estonteantemente belos.

- Marie e Luíza, eu quero que vocês conheçam a Lavínia.


194

- Olá, Lavínia. Da última vez que viemos havia uma outra senhora aqui
e...

- Sim, a Olímpia. Nós duas somos as assistentes do dr. Gael há vários


anos.

- Lavínia e Olímpia casaram-se conosco, na mesma cerimônia. Eu acho


que vocês teriam algo a conversar, se puderem. Por que não descem e
tomam um bom espresso?

- Vamos conversar, Lavínia, e trocar experiências.

- Podem ir que eu fecho tudo aqui e aciono o alarme. Lavínia, os


espressos e os pães, na conta do dr. Gael, certo?

- Obrigada, dr. Gael. Tenham um bom fim de semana e até terça-feira.

Alice dormia no bebê conforto e Gael estava para acionar o alarme quando
Fernando o segurou, puxou-o para perto de si, abraçou-o com força masculina
e beijou-o escandalosamente. Gael derreteu-se nos braços do homem da sua
vida; amoleceu de desejo.

- Agora, Zinho, eu vou deitar-me na cadeira elétrica e você vai fazer


exatamente aquilo que você queria ter feito no primeiro dia.

- Posso fazer o que eu desejei fazer naquele dia?

- Deve. Depois nós vamos ver se há coincidências.

- Naquele dia, eu pensei em duas etapas.

- Como você pode ver, estou pronto.

- Seu pedido é uma ordem, tenente gatão!


...
- Zinho, você quase acaba comigo. Como isso é bom...

- Nandinho, lembra-se de que eu falei em duas etapas?

- Mas precisa ser assim, na sequência?

- Não. Eu havia pensado que a segunda etapa seria em casa.


195

- Quando você dizia para mim “vamos para casa”?

- É. Tinha essa segunda intenção, sabe?

- Eu sabia. Você falava com um tom de insinuação...

- Mas agora, é sério. Segunda etapa em casa...

- Como isso é bom... mal posso esperar...

Gael esperou Nando recuperar-se da vertigem para acionar o alarme e


descerem, devagar, os dois lances de escadas. Nando levitava de prazer,
felicidade, alegria e espalhava-se em sorrisos.

Gael achou mais seguro ele mesmo assumir o volante. O marido ainda parecia
nocauteado. Alice dormia, mas só até chegarem à casa: o reloginho interno
informava que haveria mamadeira, cocô, banho gostoso e fralda limpinha. E
durante o banho haveria alguma bagunça na água.

- Nando, de manhã, atendi as irmãs do Rico e do Jô, as que têm um


menino. Pedi para Lavínia acompanhá-las em um espresso e parece
que lhe fez bem.

Por isso, agora, pedi que acompanhasse Marie e Luíza também. Uma
renovação de ares é sempre bom, não amorzão?

- Eu que o diga. Ainda estou me recuperando dos ares que me foram


renovados.

Que delícia! Você queria mesmo ter feito tudo aquilo, no primeiro dia,
Zinho?

- Queria, claro! Um homão como você, estonteantemente atraente, cheio


de libido e testosterona? E ainda fardado? Só eu sei o esforço que tive
de fazer para me manter um profissional.

- Eu já estou pronto para a parte II. É só chamar que comparecerei!

- Eu preciso desse comparativo, sabe? De quem é mais fogoso: o


2°Tenente, ou o 1° Tenente?

- Muitas provas serão necessárias para se chegar a alguma conclusão,


amorzão!
196

- Quanto mais provas, melhor. Você agendou algo para amanhã,


Nando? Com nossos pais?

- Sim. Almoço na casa dos seus e pizza com os meus. E, se der,


comprar nossas alianças.

- Ótimo. Será um domingo bem diferente dos últimos. E ficaremos juntos


na segunda-feira também. Podemos ir à Coop para compras e adiantar
algum prato para ser congelado.

- E fazer mais um montão de amorzinho. Hoje estou aceso, meu


príncipe. Um bombeiro aceso é sinal de perigo iminente.

- Estou vendo e gostando. Aguarde-me, amorzão.

30. O grande reencontro

Depois de uma noite em que um bombeiro causa um incêndio e ele mesmo,


com sua mangueira, vem para apagá-lo, os dois dormiram o sono dos justos.
Alice dormiu a noite toda, mas agora estava acordada e na cama com os pais.

O almoço e a pizza na casa dos pais, hoje, seria para comemorar a guarda
definitiva da Alice, seu registro de nascimento e a subida de patente de
Fernando. E, claro, a folga do dr. Gael, rara nos últimos meses.

Hoje, domingo, não havia pressa, mas os dois estavam habituados a uma certa
rotina que invariavelmente começava com o café da manhã, a mamadeira, o
banho de Alice e a fralda limpinha.

Hoje, o papai Gael daria o banho, então haveria mais banho e menos farra. Ou
será que não? Fernando, da cozinha, ouvia a algazarra e alguém fora seduzido
a entregar-se à bagunça também.

Depois que uma certa calmaria voltou a reinar no apartamento, Gael foi
verificar se já havia alguma nota da imprensa, no periódico local, versão online.
E Gael de imediato identificou a nota, não pelo texto, mas pela foto dos dois.

A foto mostrava o momento em que Gael, de branco e com Alice na bolsa


canguru, abraça Fernando e estão para beijar-se. A legenda diz: “Tenente
abraça seu marido e filha em evento na Corporação”.
197

O título da matéria é: “Corporação dá exemplo de diversidade e revê posturas


conservadoras”. Gael gostou da chamada da matéria e segue para o texto.
Estava clara a intenção de aproximar a corporação da população.

“A Corporação dos Bombeiros Militares vivenciou um momento histórico na


sexta-feira que contou com autoridades militares e civis da região.
A sensação não ficou apenas por conta da subida de patente de um jovem
tenente, um fato que ocorre uma vez ao ano. O tenente estava acompanhado
do seu marido, um dentista querido da comunidade, e da filha de pouco mais
de um mês.
A julgar pela quantidade de presentes que o casal recebeu, sacolas e sacolas
com fraldas descartáveis, leite em pó e vários macacões de diversos tamanhos
e pelos abraços dos membros da Corporação, tanto o tenente como seu
marido dentista são respeitados e bem-quistos. Ao Comandante Canutto e ao
Coronel Quintão ficam os cumprimentos pelo empenho em prol da igualdade.”

Gael salvou a matéria e repassou-a a Fernando e aos pais, às irmãs e às suas


assistentes. Tirando o cunho promocional da matéria, não deixava de retratar
um fato importante: um oficial em uma relação homoafetiva sendo promovido.

Gael perguntava-se o que estava, de fato, subjacente àquela matéria. Gael não
acreditava em “gestos bonzinhos”; algo havia naquela ação. Seria pressão para
parecer inclusivo? Seria combater a sisudez e a pecha de violentos atribuída
aos militares? Seria um esforço para ficar conhecido para ambição política?

Isso pouco importava. Os colegas de Fernando continuavam a respeitá-lo e a


admirá-lo. E Gael sempre se sentiu respeitado por toda a corporação, mesmo
com rumores de que, apesar de “parecer masculino, gostava de homens”.

Gael achou de enviar a nota também aos que ultimamente se tornaram mais
próximos: os casais Rico & Jô, e Kevin & Allan. Ah, Wanda não poderia ficar de
fora dessa lista.

Gael e Fernando fecharam a programação para hoje: lista de todas as


pendências, ida ao shopping para escolher as alianças, almoço na casa dos
pais de Gael, descanso em casa após o almoço e pizza à noite, na casa dos
pais do Fernando.

Fernando já havia guardado os pacotes de fraldas descartáveis e os


macacões, por tamanho. As latas de leite em pó descansavam protegidas na
despensa, organizadas por data de validade.

Fernando ria-se quando se lembrava do esforço que os dois precisavam fazer


assim que Alice chegou antes de sair de casa: nada podia ser esquecido.
Passado pouco mais de um mês, tudo estava internalizado e automatizado.
198

Alguns itens que levavam no início, hoje eram desnecessários, enquanto outros
tornaram-se imprescindíveis. Como os dois alternavam-se em tudo, esse
conhecimento e essa prática eram de domínio de ambos.

Fernando ficara encantado com a tal bolsa canguru que servia tanto para Alice
dormir como para passear e observar tudo. O contato com o peito e com os
batimentos cardíacos tinha poder de tranquilizá-la. Assim foram ao shopping.

- Bom dia! Nós gostaríamos de ver alianças para nós.

- Bom dia! Vocês já tem preferência por algum modelo?

- Sim. Nós queremos alianças em outro branco, com 4mm de largura.

- Retas ou curvadas? Lisas ou com entalhe?

- Ah, sim. Retas e lisas.

- As de 4mm eu não tenho na loja no momento. Eu tenho essas aqui,


com 3,5mm. São lisas e retas e permitem gravação do nome.

- Nando, são muito distintas, você não acha?

- Muito. Eu gostei, Zinho. Será que você teria desse modelo, em ouro?

- Em ouro amarelo eu tenho nos dois tamanhos: 3,5mm e 4mm. Lisas e


retas também. Vejam.

- Eu gostei mais das em outro branco, Zinho. E você?

- Também, Nando. Essas são perfeitas para nós. Como estão os


preços?

- Esse par que vocês escolheram, em outro branco é mais caro que o
mesmo par em ouro, porque são mais espessas. Comparem o peso.

- Verdade. Eu não havia reparado. Mais um ponto de vantagem para as


em outro branco.

- Esse valor eu posso parcelar em até seis vezes e a gravação dos


nomes é cortesia. No próximo sábado poderão ser retiradas aqui na loja.
199

- Está ótimo. Agora, vamos ver os tamanhos e associar os nomes: Gael


e Fernando.

- Pronto. Vamos conferir juntos? Aqui não pode haver erro. Ele também
parece conferir tudo, não?

- Alice presta atenção a tudo e parece que aprovou as alianças dos


papais.

Como era a primeira visita de Alice a um shopping, Fernando e Gael


aproveitaram para um tour com a pequena. Os dois estavam de bermuda e
camiseta e Fernando carregava Alice na bolsa canguru.

Ainda era cedo para um domingo no shopping, mas Fernando e Gael


chamavam a atenção por onde passavam por serem muito atraentes e por
andarem de mãos dadas. Foram abordados por duas moças para uma selfie.

Caminharam também pelo estacionamento para Alice tomar um pouco de sol e


mais uma vez chamaram a atenção dos que chegavam. Ela lindo olhar para
aqueles dois belos homens, pais, irradiando felicidade.

Voltaram para o interior do shopping, deram uma volta pela praça de


alimentação e Alice parecia querer dormir. Trocaram-na de posição na bolsa
canguru que foi para Gael. Fernando dirigiria até a casa dos seus pais.

Passava um pouco das 13h quando Fernando estacionou o carro em frente à


casa dos seus pais. Logo vieram o pai Benício, a mãe, Wilma, a irmã Flávia e
seu companheiro Sandro, e a irmã Flora com o companheiro David.

Gael surpreendeu-se com a recepção calorosa de todos, inclusive dos


concunhados. Fernando rumou para a cozinha para preparar a mamadeira, dar
de mamar e trocar a fralda. À noite, Gael faria o mesmo na casa de seus pais.

Gael explicou que eles se alternavam em tudo para manter a prática e todos
observavam a destreza com que Fernando dava conta das tarefas paternas.

- Fê, eu nunca achei que um dia veria você fazendo isso e com tanta
habilidade.

- Flora, isso hoje, porque lá no início foi tudo lento e desajeitado. Agora
temos prática. Pense em oito a dez mamadas por dia e o mesmo de
troca de fraldas.
200

- Engraçado, mas ela é a cara do Fernando com traços do Gael. Como


pode uma coisa dessas?

- Fê, eu assisti ao vídeo que o Gael nos mandou de você dando banho
nela. É de morrer de rir. Olhando assim, dá até vontade de ter um
também.

- Sandro, você ouviu a Flávia?

- Flavinha, vamos conversar a respeito, em casa?


...
- Família, vamos sentando que eu vou servir o almoço.

- Mamãe fez o que você gosta, Fê: bife à parmegiana com purê, arroz e
salada de chuchu com cebola. E pudim de leite na sobremesa.

- Mãe, você é dez! Eu estou aprendendo a cozinhar com o Gaelzinho.


Temos uma horta em casa com manjericão, orégano, alecrim, sálvia e
tomilho.

- Seu pai também montou uma para nós lá no jardim de trás. Temperos
frescos são maravilhosos.

- Sirvam-se do vinho que eu quero fazer um brinde à chegada do Gael à


nossa família, à chegada da Alice, ao casamento dos dois e à promoção
do Fernando. Viva e saúde a todos!

- Viva! Saúde!

- Gaelzinho e eu vamos reunir algumas pessoas para celebrar nosso


casamento.

Vai ser um almoço no último domingo do próximo mês e vocês todos já


estão convidados. O convite oficial eu envio esta semana.

- Gael, você continuará com a rotina de trabalhar nos finais de semana e


nos feriados?

- Sim, Benício, mas com alguma flexibilidade. Hoje, por exemplo, resolvi
dar-me folga. Agora, tenho que pensar na família também...

Nando fará plantões aos domingos e eu farei o mesmo, acompanhando


a folga dele, em um domingo do mês. Por isso que nossa festa será no
último domingo do próximo mês.
201

- Mas, filho, vale a pensa esse sacrifício todo?

- Vale, Wilma. A procura é imensa porque as pessoas estão de folga, há


menos trânsito e há vagas para estacionar à vontade.

E posso fazer um procedimento mais demorado como obturar um canal,


em uma manhã, por exemplo, sem necessidade de retorno.

- Eu acho que você está certo, Gael. Inclusive, as pessoas podem vir de
longe com essas facilidades, não é mesmo?

- Sim, Flora. A maioria dos que vêm nos finais de semana vêm de
bairros distantes de São Paulo ou do ABC.

- E como vocês têm feito com Alice?

- Temos usado um carro apenas e Alice sempre fica no consultório, com


o Zinho e as assistentes. Temos procurado mantê-la mais acordada e
participando da vida da gente.

Eu vou instalar um suporte com cintas de couro em uma das cadeiras do


consultório para ela aprender logo o ofício do pai.

- Então, você não pretendem colocá-la em um berçário?

- Não, David. Talvez quando ela já estiver andando e mexendo em tudo


a gente a coloque na creche.

Engatinhar ela pode lá no conjunto e isso ainda vai levar um tempo.

- É um alívio ter toda a documentação dela regularizada, não? Vocês


não ficaram com medo de o exame de DNA dar negativo?

- Engraçado, mas no momento em que a vi e notei a tremenda


semelhança com o Nando, meu coração estava tranquilo.

- Quando peguei Alice no colo pela primeira vez, na sala da


enfermagem, no fórum, senti que ela era minha filha e nunca mais tive
dúvidas.

- Vocês sabem que eu sinto a mesma coisa? Alice não é “a filha do


Nando que veio para mim”; Alice é nossa filha; é filha do Nando e minha.
202

- Digam o que quiserem, mas o amor tem sua linguagem própria.

- Eu também acho, Flora.

As conversas com os familiares do Fernando fizeram Gael sentir-se totalmente


em casa, sem restrições. Alice havia dormido um pouco depois da mamadeira,
mas já acordara e estava fazendo um tour de colos com avós, tias e tios.

Depois do café, começaram as despedias pelas filhas, pois os companheiros


precisariam visitar seus pais. Gael e Fernando aproveitaram e despediram-se
também para que todos pudessem descansar.

Gael ficou feliz ao saber que as duas mães, Wilma e Cecília, estreitaram laços
e encontravam-se ao menos uma vez por semana. Já os pais, Benício e
Otávio, tentavam superar certa rivalidade de cunho masculino.

Em casa, andando com Alice pelo apartamento, Gael viu uma mensagem de
Kevin com um vídeo.

Lindões, parabéns pelas conquistas. A família está aqui na Cantina do


Giu, onde celebramos nosso casamento, e fizemos um brinde a vocês.
Beijos nossos!

Gael respondeu à simpática mensagem do Kevin, retribuiu os votos, abraços e


beijos e pediu o contato do Giu. Poderia ser uma opção interessante para
Nando iniciar suas pesquisas.

Não demorou muito para a resposta do Kevin chegar, com o contato do Giu e
as melhores recomendações. Kevin voltou a mencionar que o Giu era amigo do
seu pai e que preparara tudo para o casamento dele e do Ryan.

Fernando viu todas as informações e resolveu ligar para falar com o tal Giu.

- Boa tarde, por favor, o Giu.

- Boa tarde. É sobre reserva de mesa?

- Não exatamente de mesa, mas do restaurante.

- Só um momento. Eu vou chamá-lo.

- Giu falando.
203

- Giu, meu nome é Fernando e a sua cantina me foi indicada por um


amigo que ainda deve estar aí, o Kevin e o seu marido, Allan.

- Ah, sim. Eles acabaram de sair. Acho que ainda os alcanço no


estacionamento.

- Não é necessário, Giu. Eu queria falar com você sobre um evento


fechado, no último domingo do próximo mês.

- Seria para um almoço em família?

- Sim, um almoço para 40 pessoas.

- Claro. Podemos fazer. Por que você não passa aqui entre 17h e 18h?
Aí podemos conversar e você pode até fazer alguma degustação.

- Combinado, Giu. Estaremos aí. O Kevin já me passou o endereço. Fica


na Moóca, certo?

- Sim, bem fácil de chegar e estacionar. Venham que aguardo vocês.


Agora, ainda está um pouco corrido por aqui.

- Obrigado, Giu. Até daqui a pouco.

Fernando conversou com Gael sobre a sua proposta: faria convites eletrônicos
que enviaria por WhatsApp, individualmente. Primeiro, elaboraria a lista com
todos os contatos, cadastraria a todos e enviar-lhes-ia o convite com RSVP.

Agora, descansariam um pouco antes de irem conhecer a Cantina do


Giuseppe, o Giu, e de lá, visitar a família do Gael para uma típica pizza de
domingo. Muitos passeios novos para Alice, com diversão garantida.

Um pouco antes das 17h, levemente descansados, foram para o carro, com
Gael ao volante. Não levaram mais de 20min até a cantina e estacionaram ali
mesmo. A bolsa canguru com Alice foi para o papai Gael. Entraram.

- Boa tarde. Eu sou o Fernando e marquei com o Giu.

- Ele está na cozinha. Eu vou avisá-lo.

- Boa tarde, Fernando! Venham para cá. Vamos conversar no escritório.

- Giu, este é meu marido Gael e esta é nossa filha, Alice.


204

- Sejam bem-vindos. Você e Alice são bem parecidos; os dois são, viu?
Sentem-se e contem-me o que vocês pretendem.

- Nós queremos oferecer um almoço para nossos familiares e alguns


amigos, 40 pessoas ao todo. É uma confraternização para celebrar
nosso casamento.

- Vocês pretendem casar-se aqui, com a vinda de um celebrante?

- Não, Giu. Nós já somos casados, mas só agora vamos poder fazer a
festa.

- Entendi. Então não haverá reserva de espaço para algum celebrante.


Vocês precisariam de algum espaço para dançar, por exemplo?

- Giu, se fosse possível, isso seria muito bom.

- É possível, sim, dispormos as mesas para 40 pessoas. Temos mesas


para acomodar quatro e para acomodar seis pessoas, com espaço livre.

O que temos visto é que as pessoas acabam juntando mesas e o


espaço livre aumenta. Posso apresentar-lhes uma sugestão de
cardápio?

- Por favor, Giu.

- Vamos começar com as bebidas. Caipirinha de vodca ou de cachaça


como aperitivo. Vinho tinto da casa ou cerveja. Água e sucos naturais e
espressos ao final. Posso prosseguir?

- Sim, Giu. Gael já sinalizou que aprovamos as bebidas.

- As entradas seriam: pão italiano, patês e brusquetas, tudo feito em


casa.

O prato principal seria servido na forma de rodízio: peito de frango à


parmegiana, brachola com bacon e polpetone recheado com queijo.

Serviríamos também risoto de gorgonzola, espaguete à bolonhesa,


canelone recheado, ravioli recheado, talharim ao molho branco, nhoque
de mandioca com molho branco ou vermelho, berinjela à parmegiana e
lasanha aos quatro queijos.
205

- Giu, esse sortimento é maravilhoso. Não é à toa que Kevin elogiou


você.

- Que bom! Para finalizar, como sobremesa teríamos tiramisu, sorvete e


espressos. O restaurante estaria aberto para vocês das 11h30h às
17h30 e o almoço começaria a ser servido entre 13h30 e 14h.

- Eu estou achando tudo perfeito, Giu. Você tem um espaço como


fraldário, por exemplo?

- Está sendo construído. Até lá, estará pronto para ser usado.

Eu pedi para o meu pessoal preparar uma tábua com alguns petiscos.
Enquanto vocês degustam, eu vou verificar os preparativos para o jantar.

- Obrigado, Giu. Mais uma pergunta: você permite a entrada de cães?

- Sim, mas todos os cuidados ficam por conta do tutor. Já recebemos


alguns cães até grandes e nunca tivemos problemas.

- Muito obrigado, Giu. Vá aos seus afazeres que nós continuamos aqui.

- Nando, onde vamos arrumar espaço para a pizza?

- Zinho, isso está muito bom. Experimente esse tiramisu.

- Realmente, os sabores são ótimos.


...
- Desculpem-me, mas a gente sempre precisa verificar o andamento das
coisas pessoalmente. O que acharam?

- Nós gostamos muito, Giu e gostaríamos de saber sobre valores.

- Certo. Eu não vou conseguir montar um orçamento para vocês, agora.


Posso fazê-lo amanhã e enviar para vocês. Mas eu posso definir o valor
de tudo o que conversamos, para 40 pessoas.

- Isso seria ótimo, Giu. Assim já teríamos uma ideia de quanto essa festa
nos custaria.

- Este é o valor total. Se vierem mais de 40, faremos o ajuste, do mesmo


modo que se vierem menos.
206

Geralmente peço um sinal de 30% e o restante é quitado no dia do


evento. Pagamento pode ser em cartão ou pix.

Comam mais um pouco que eu volto em seguida.

- Eu acho que o valor é bem razoável, Nando.

- Eu também, Zinho. A Alice já quer beliscar algo...


...
- Pronto! Desculpem-me mais uma vez!

- Giu, nós vamos fechar. Você quer o sinal já?

- Eu prefiro elaborar o orçamento e enviá-lo a vocês e vocês fazem um


pix. Amanhã na parte da tarde resolvemos tudo. Eu já deixo a reserva
feita.

- E os clientes que vêm aos domingos? Como você faz?

- A maioria é de habitués que costumam ligar para saber se a casa


estará aberta.

- Está certo, então, Giu. Voltamos nos falar amanhã. Aqui estão os
nossos e-mails. Obrigado por tudo e bom resto de domingo.

Fernando e Gael deixaram o restaurante bem impressionados com o cuidado


pessoal do dono. Gael assumiu o volante rumo à casa dos seus pais e Alice
ainda não dava sinais de que queria dormir.

Assim que Gael estacionou o carro, Otávio veio para recebê-los. Logo vieram a
mãe, Cecília, a irmã, Renata e o marido Enzo. Fernando estava com Alice na
bolsa canguru e ela parecia gostar de toda essa movimentação atípica.

- Maninho e cunhado, parabéns por tudo. Estamos superfelizes com


essas conquistas de vocês, não é Enzo?

- Sim, felizes e com uma pontinha de inveja...

- Obrigado, Rê. Você entendeu a indireta do Enzo?

- Indireta? Nem notei...

- Que orgulho ver vocês dois abraçados na foto do Diário.


207

- Obrigado, paizão. E vocês, como têm estado?

- Trabalhando. Sua mãe resolveu parar o curso da 3ª. Idade e tem


conversado com a Wilma todas as semanas.

- Otávio, eu não parei o curso; eu não vou mais às quartas-feiras porque


os erros de português das duas que se intitulam professoras me
incomodam. Aproveito a folga da quarta para encontrar-me com Wilma.

- Mamãe parece animada com esses encontros, Cecília.

- Eu tenho para mim que nos tornaremos ótimas amigas. E Lavínia e


Olímpia, estão bem?

- Estão ótimas, mamãe. Sobretudo depois do casamento. Ontem,


Lavínia conversou com dois casais de pacientes, todas mulheres, e acho
que isso foi bom para ela perder o medo de ser quem é.

- Elas são de uma geração em que relacionamentos homoafetivos eram


fortemente discriminados. Aos poucos, perceberão que estão em terreno
mais seguro.

- E você, paizão? Tem tido contato com o Benício?

- Sim, claro. Já fizemos um pacto de nunca falar sobre futebol para não
sairmos no tapa.

- Excelente progresso, eu diria.

- Vocês todos estão desde já convidados para um almoço no qual


celebraremos nosso casamento.

Será na Cantina do Giu, na Moóca, no último domingo do próximo mês,


a partir das 11h30.

- Na próxima semana vocês receberão o convite oficial.

- E sobre presentes? Vai ter lista ou algo parecido?

- Não pensamos nisso, não Zinho?

- Não mesmo. Você tem alguma sugestão?


208

- Vocês podiam pedir produtos para a Alice, por exemplo. Fraldas, leite
em pó, conjuntinhos, sapatinhos, toalhas, mantinhas, colônia, xampu.

- Dona Renata, de onde a senhora tirou todas essas ideias?

- Enzo, amor, toda mulher sabe dessas coisas.

- Rê, você nos deu uma ótima ideia.

- Sim, porque as pessoas vão querer dar algo aos noivos/esposos.

- Eu comentei com a Cecília hoje mesmo que achava que a Renata


estava grávida.

- De onde você tirou isso, pai?

- Intuição de pai. E sabe qual foi a resposta da sua mãe?

- Minha sogra disse: tomara! É ou não é, sogronis?

- Fernando, você entrou para uma família impossível. Acho melhor


pedirmos as pizzas.

- Eu vou pedir duas grandes: meia portuguesa e aliche e meia


gorgonzola e palmito. E vamos tomar vinho.

- Mamãe, eu vou preparar a mamadeira, dar de mamar e trocar a fralda


da Alice. Na hora do almoço, Nando fez tudo; agora é a minha vez.

- Filho, você está em casa.

- Cunhado Enzo, você não quer ter suas primeiras lições?

- Perfeitamente. Não vejo a hora de poder praticar em casa...


...
- Nós vamos comer menos; acabamos degustando uma demonstração
do cardápio lá na Cantina do Giu.

- A fome aparece, meus filhos. Entre uma conversa e um vinho, a fome


aparece.

- A Rê e o Enzo não gostam muito de pizza fria, mas o Gael, ama. E


você Fernando?
209

- Eu amo.

- Quem? A pizza fria ou o Gael?

- O Zinho é o grande amor da minha vida e eu amo pizza fria.

- Pronto. Vocês levam as sobras. Se houver, claro!

Alice estava alimentada e trocada e as duas pizzas foram devoradas na


íntegra. Fernando e Gael acabaram comendo mais do que esperavam porque
as pizzas estavam realmente muito boas. Despediram-se e foram para casa.

Na segunda-feira, outro dia de folga do trabalho para os dois, saíram cedo com
Alice para compras na Coop. Gael comprou coxão duro, filés de peito e um
sortido de legumes. Faria carne refogada, filés grelhados e cozido de legumes.

Fernando trabalhava no desenvolvimento do convite e na lista dos convidados.

Fernando e Gael
Benício e Wilma
Flávia e Sando
Flora e David
Otávio e Cecília
Renata e Enzo
Rafael, Henrique e Duda
P, J e Nara
Étienne e Renato
Ralf e Matheus
Marco Antonio e Rainer
Rico, Jô, Luma e Bela
Orlando, Paulo e Lua
Nuno e Ryan
Kevin e Allan
Bernardo e Bello
Benjamin, Alex e Sampaio
Marie e Luíza
Júlia, Rúbia e Vitor
Lavínia e Olímpia

Duda, Nara, Lua, Bela e Sampaio, as cinco fêmeas caninas.

O texto do convite personalizado seria algo como:


210

Convidamos você para festejar nosso casamento saboreando pratos da


culinária italiana. Se você gosta de dançar, venha preparado. Se não quiser
deixar seu cãozinho em casa, traga-o. Haverá fraldário para nossos bebês!
Nós não precisamos de presentes, mas se não conseguir controlar-se, pode
trazer algo para a Alice desta lista: fraldas (Pampers, RN+ ou P), leite em pó
(NAN Supreme 1), macacão (P), toalha de banho em algodão, manta em
algodão, xampu para bebê, colônia para bebê.

Gael ocupava-se das panelas na cozinha enquanto Fernando tratava de


organizar tudo para o evento. Alice estava na sala, com Fernando, mas
posicionada de modo que tinha visão do papai Gael também.

À tarde, como havia prometido, Giu enviou o orçamento detalhado por


WhatsApp e Fernando fez o pix e enviou-lhe o comprovante.

Fernando usava o WhatsApp no computador também o que lhe possibilitou


enviar convites personalizados. No convite havia dia, hora, endereço do evento
e um pedido de RSVP.

Na terça-feira, Fernando deixou Gael no consultório, mas subiu junto com


Alice, pois faria a instalação das cintas de couro afiveladas para receber o bebê
conforto e Alice poder prestar atenção a tudo à sua volta.

No sábado, Fernando retornou ao shopping com Alice para buscar as alianças


e ficou emocionado ao ver que na sua estava escrito Gael e que seu nome
constava na aliança que o amor da sua vida usaria.

E a licença paternidade de Fernando chegou ao fim. Todos os convidados


confirmaram presença no almoço e muitos elogiaram a clareza do convite.
Tudo estava preparado.
...
...
...

E o domingo festivo chegou. Fernando e Gael haviam aparado os cabelos, feito


a barba e estavam lindos como eles só. Alice estava com roupinha leve, mas
festiva. O dia amanheceu ensolarado e com céu praticamente sem nuvens.

Fernando e Gael cumprimentaram Giu pelo fraldário. Fora feito por alguém que
entendia do assunto. Fernando estava com a bolsa canguru na qual Alice
acompanhava tudo com curiosidade.
211

Os pais dos “noivos” chegaram primeiro e Giu começou a servir os aperitivos.


Lavínia e Olímpia também chegaram, mas foram desencorajadas a ajudar: elas
eram convidadas da festa.

Dois convidados, ao entrarem, causaram suspiros: Henrique entrou com Duda


e de mãos dadas com Rafael. Rafael não era um homem mortal; era uma obra
da mais fina arte. As irmãs de Fernando e Gael pararam de respirar.

Reação semelhante ocorreu quando J entrou segurando Nara e de mãos


dadas com P. P era outra obra de arte, possivelmente da mesma oficina. Era
muita beleza masculina por metro quadrado.

Mas havia mais: Bernardo entrou com Bello e Alex entrou com Ben. Bernardo
e Alex possivelmente eram obras dessa mesma oficina. Nuno e Ryan e Étienne
e Renato também chamaram a atenção. Nuno e Étienne, especialmente.

Nunca antes houve uma concentração tão elevada da mais refinada beleza
masculina na Cantina do Giu. Aquele evento passaria tranquilamente por uma
convenção de modelos ou de uma prévia para um concurso de mister universo.

Todos os convidados estavam lá. Duda, Nara, Lua, Bela e Sampaio, as cinco
fêmeas caninas, já não estavam mais presas às guias; a porta principal estava
fechada. Luma, Vitor e Alice ainda estavam com seus pais.

Jô trouxe uma manta grande que dobrou e estendeu no chão, próximo à


parede. Sobre a manta dispôs um travesseiro e duas almofadas e colocou os
três, lado a lado. E Bela assumiu seu papel de mãe e guardiã. Alice amou Bela.

Só essa cena foi capaz de desviar os olhos dos convidados, das obras de arte
masculinas presentes. A iniciativa de Jô foi elogiadíssima e os pais e mães até
puderam distrair-se um pouco, pois mamãe Bela era extremamente zelosa.

Fernando tomou o microfone e, emocionado, tentou ser o anfitrião.

- Primeiro, nossos agradecimentos a cada um de vocês. Todos os


convidados vieram. Nossos amigos do coração estão aqui.

Aqui há casais formados por um homem e uma mulher, casais formados


por dois homens e casais formados por duas mulheres. O que há em
comum? Amor.

Reparem lá onde estão nossos bebês: a Luma, o Vitor e a Alice. Estão


sendo guardados pela Bela, mas não estão sozinhos: Duda, Nara, Lua,
e Sampaio estranhamente estão lá também.
212

Aqui há amor de todas as formas, tipos e tamanhos. É isso que viemos


fazer aqui.

Gaelzinho, meu Zinho, amor da minha vida, você aceita casar-se


comigo?

- Fernando, meu Nando, o homem da minha vida e pai da minha filha, é


uma honra ter o privilégio de casar-me com você!

- Viva!

- Nós já somos casados, mas a pressa não me permitiu pedir o meu


Zinho em casamento.

Mas nós celebramos também um outro casamento muito especial: o da


Lavínia com a Olímpia. Nós nos casamos juntos, na mesma cerimônia.

- Vivas para Olímpia e Lavínia!

- Já que estamos em clima de casamento, eu Sandro, peço você, Flávia,


em casamento. Você aceita casar-se comigo, amor?

- Claro que aceito, amorzão. Claro!

- E continuando no clima, eu David, peço você, Flora, em casamento.


Você aceita casar-se comigo?

- Oh, meu lindo. Aceito de todo o meu coração.

- Eu sou o Kevin casado com esse lindão, Allan, e eu quero anunciar


que nós fomos habilitados para a adoção. Então, ali onde estão três, há
uma vaga para um quarto.

- Eu sou a Renata, irmã do Gael, e quero anunciar que Enzo e eu


estamos grávidos.

- Eba!

- Se não houver mais anúncios, eu gostaria de chamar meu Zinho até


aqui para trocarmos alianças. Com medo de esquecê-las, coloquei a
caixinha ontem na bolsa sacola da Alice.
213

Fernando e Gael não conseguiam controlar as lágrimas. Eram tantas notícias


auspiciosas. Em meio a muita tremedeira conseguiram colocar as alianças um
no outro, abraçaram-se e beijaram-se cinematograficamente.

O almoço começou a ser servido e as mães e pais revezavam-se para usar o


fraldário. Ninguém parecia estar deslocado. Os eixos norteadores eram Gael,
Lavínia e Olímpia que todos conheciam.

A sobremesa ia ser servida quando a voz rouca de Billie Holliday foi ouvida na
sua magistral interpretação de The man I love. Nesse momento, todas as
atenções voltaram-se para o centro do espaço em que Rafael e Henrique
dançavam sinuosamente. Foram acompanhados por P e J.

Na sequência, ouviu-se Joe Dassin interpretando Et si tu n’existais pas e


Rafael e Henrique continuaram dançando e encantando. P e J continuaram
dançando e foram seguidos por Marie e Luíza e por Étienne e Renato.

O espaço central era pequeno, mas os casais dançavam próximos às suas


mesas. As duas canções foram sendo alternadas, pois manifestavam o espírito
dos presentes.

Ralf e Matheus começaram a dançar; Marco Antonio e Rainer levantaram-se e


ensaiaram uns passos; Rico e Jô dançavam enamorados; Orlando e Paulo
deixaram a vergonha na mesa e foram dançar.

Nuno e Ryan dançavam apaixonados; Kevin e Allan, dançavam alegres e


sorridentes; Bernardo e Bello dançavam sensualmente; Benjamin e Alex
dançavam e emitiam faíscas; Júlia e Rúbia largaram a timidez e finalmente
Lavínia e Olímpia foram vencidas e dançaram.

Fernando e Gael assistiam a tudo e uma palavra vinha-lhes à mente:


reciprocidade. Como no amor, dançar era um ato que requeria reciprocidade;
ao movimento de um precisaria corresponder um movimento do outro, em
sintonia entre que conduzia e que se deixava conduzir.

Amar um igual era dançar com esse igual; era responder e corresponder; era
um exercício pleno de reciprocidade.

Fim!

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