Não houve terremoto, e para Rieux o dia seguinte passou-se
simplesmente em longas corridas aos quatro cantos da cidade, em conversas com
as famílias dos doentes e em discussões com os próprios doentes. Nunca Rieux achara sua profissão tão pesada. Até então os doentes facilitavam-lhe o trabalho, entregando-se a ele. Pela primeira vez, o médico sentia-os reticentes, refugiados no fundo da sua doença, com uma espécie de espanto desconfiado. Era uma luta a que ainda não estava habituado. E por volta das dez da noite, com o carro parado diante da casa do velho asmático, que ele visitava por último, Rieux sentia dificuldade em se levantar do assento. Demorava-se a contemplar a rua escura e as estrelas que apareciam e desapareciam no céu negro. O velho asmático estava sentado na cama. Parecia respirar melhor e contava os grãos-de-bico, de uma panela para a outra. Recebeu o médico com um ar Fitisfeito. - Então, doutor, é cólera? - Que história é essa? - Li no jornal. E o rádio disse também. - Não, não é cólera. - De qualquer maneira - disse o velho, muito excitado -, como falam, hem! - Não acredite nisso - respondeu o médico. Examinara o velho e agora estava sentado no meio daquela sala de jantar miserável. Sim, tinha medo. Sabia que no próprio subúrbio uma dezena de doentes o esperariam no dia seguinte, curvados sobre seus furúnculos. Apenas em dois ou três casos a incisão provocara uma melhora. Para a maioria, porém, seria o hospital e ele sabia o que isso significava para os pobres. ”Não quero que ele sirva para as experiências deles”, dissera-lhe a mulher de um dos seus doentes. Não serviria para as experiências deles. Morreria, nada mais. Era evidente que as medidas decretadas eram insuficientes. Quanto às salas ”especialmente equipadas”, sabia bem do que se tratava: dois pavilhões apressadamente evacuados dos seus outros doentes, com as janelas calafetadas, um cordão sanitário ao redor. Se a epidemia não parasse por si própria, não seria vencida pelas medidas que a administração tinha imaginado. Entretanto, à noite, os comunicados oficiais continuavam otimistas. No dia seguinte, a Agência Ransdoc anunciava que as medidas da prefeitura haviam sido acolhidas com serenidade e que já uns trinta doentes se tinham notificado. Gastei telefonara a Rieux: - Quantos leitos tem o pavilhão? - Oitenta. - Certamente, há mais de trinta doentes na cidade. - Há os que têm medo e os outros, mais numerosos, os que não tiveram tempo. - Os funerais não são fiscalizados? - Não. Telefonei a Richard para lhe dizer que eram necessárias medidas completas, não frases, e que ou era preciso erguer contra a epidemia uma verdadeira barreira, ou absolutamente nada. - E então? - Respondeu-me que não tinha poderes. Em minha opinião, a coisa vai aumentar. Em três dias, na verdade, os dois pavilhões ficaram cheios. Richard julgava que iam desativar uma escola e um hospital auxiliar. Rieux aguardava as vacinas e abria os tumores. Gastei voltava aos seus velhos livros e fazia longos estágios na biblioteca. - Os ratos morreram da peste ou de qualquer coisa muito parecida - concluía ele. - Puseram em circulação dezenas de milhares de pulgas que irão transmitir a infecção segundo uma progressão geométrica, se não conseguirmos detê-la a tempo. Rieux calava-se. Por essa época, o tempo pareceu estabilizar-se. O sol enxugava as poças dos últimos temporais. Um céu azul, transbordante de luz amarela, roncos de aviões no calor nascente, tudo na estação convidava à serenidade. Em quatro dias, no entanto, a febre deu quatro saltos surpreendentes: dezesseis mortos, vinte e quatro, vinte e oito, trinta e dois. No quarto dia, anunciou-se a abertura do hospital auxiliar numa escola maternal. Nossos concidadãos, que até então tinham continuado a disfarçar sua inquietação com gracejos, pareciam, nas ruas, mais abatidos e mais silenciosos. Rieux decidiu telefonar para o prefeito. - As medidas são insuficientes. - Estou com os números - respondeu -, na verdade, são ínquietantes. - São mais que Ínquietantes. São claros. - vou pedir ordens ao governo-geral. Rieux desligou, diante de Gastei. - Ordens! O que falta é imaginação. - E o soro? - Chega esta semana. A prefeitura, por intermédio de Richard, pediu a Rieux um relatório destinado à capital da colónia, para solicitar ordens. Rieux fez uma descrição clínica e colocou números. No mesmo dia, contaram-se cerca de quarenta mortos. O prefeito assumiu a responsabilidade, como ele dizia, de intensificar a partir do dia seguinte as medidas prescritas. A notificação compulsória e o isolamento foram mantidos. As casas dos doentes deviam ser fechadas e desínfetadas, os que os rodeavam, submetidos a uma quarentena de segurança, os enterros, organizados pela cidade nas condições que veremos a seguir. Um dia depois, o soro chegava por avião. Era suficiente para os casos em tratamento. Era insuficiente se a epidemia viesse a se alastrar. Responderam ao telegrama de Rieux que o estoque de reserva estava esgotado e que estava sen^-b iniciada nova produção. Durante esse tempo, de todos os subúrbios, a primavera chegava aos mercados. Milhares de rosas murchavam nas cestas dos vendedores, ao longo das calçadas, e seu perfume adocicado flutuava por toda a cidade. Aparentemente, nada mudara. Os bondes continuavam sempre cheios nas horas de afluência, vazios e sujos o resto do dia. Tarrou observava o velhinho, e este escarrava nos gatos. Grand se recolhia em casa todas as noites para seu misterioso trabalho. Cottard vagueava sem destino e o Sr. Othon, o juiz de instrução, continuava a passear com seus animais. O velho asmático despejava os grãos-de-bico de um recipiente para o outro, e, por vezes, encontrava-se o jornalista Rambert com um ar tranqüilo e interessado. À noite, a mesma multidão enchia as ruas e as filas estendiam-se diante dos cinemas. Aliás, a epidemia pareceu recuar, e durante alguns dias contou-se apenas uma dezena de mortos. Depois, de repente, subiu de modo vertiginoso. No dia em que o número dos mortos atingiu de novo trinta, Bernard Rieux olhava o telegrama oficial que o prefeito lhe estendera, exclamando: ”Estão com medo!” O telegrama dizia: ”Declarem estado de peste. Fechem a cidade”.