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que, naqueles dias, era para ele, na Europa, como uma dessas celas
em que o homem aprende a conhecer o homem através daquilo que
o transcende.
Na manhã do segundo dia, embora estivesse no campo plano, o
trem diminuiu sensivelmente a marcha. Breslau ficava a algumas
horas de distância, e o dia abria-se sobre a longa planície da Silésia,
sem uma árvore, pegajosa de lama, sob um céu encoberto e inchado
de chuva. A perder de vista, e a distância regulares, grandes pássaros
negros, de asas luzidias, voavam em bando, a alguns metros do chão,
incapazes de elevarem-se mais alto, sob o céu pesado como uma
imensa laje. Voavam em círculos, num vôo lento e pesado, e, às
vezes, um deles deixava o bando, fazia um vôo rasante, quase
confundindo-se com a terra, e afastava-se com o mesmo vôo
arrastado, interminável, até que estivesse bastante longe para
destacar-se como um ponto negro no alvorecer. Mersault apagara
com as mãos o vapor da vidraça e olhava avidamente pelas longas
estrias que seus dedos haviam deixado no vidro. Da terra devastada
ao céu sem cor erguia-se para ele a imagem (2) de um mundo
ingrato, onde, pela primeira vez, voltava finalmente a si mesmo.
Nesta terra, levada ao desespero da inocência, viajante perdido num
mundo primitivo, ele redescobria suas amarras, e, com o punho
cerrado contra o peito, o rosto esmagado contra a vidraça,
representava o seu arrebatamento em relação a si próprio e à certeza
das grandezas que nele dormiam. Gostaria de ter-se deitado naquela
lama, de ter entrado na terra por aquele banho de barro, e, erguido
sobre a planície sem limite, coberto de lama e os braços abertos
diante do céu de esponja e de fuligem, como que diante do símbolo
desesperador e esplêndido da vida, gostaria de afirmar a sua
solidariedade com o mundo, naquilo que tinha de mais repugnante, e
de declarar-se cúmplice da vida até na sua ingratidão e na sua
imundície. O imenso arrebatamento que o soerguia explodiu, afinal,
pela primeira vez desde a sua partida. Mersault esmagou as lágrimas
e os lábios contra o vidro frio. Novamente, o vidro tremeu, a planície
desapareceu.
Horas depois, ele chegava a Breslau. De longe, a cidade
apareceu-lhe como uma floresta de chaminés de fábricas e de torres
de catedrais. De perto, era feita de tijolos e de pedras negras;
homens de boné com uma viseira curta perambulavam lentamente
pelas ruas. Ele seguiu-os, passou a manhã num bar de operários. Lá,
um rapaz tocava gaita: melodias de uma boa e pesada frivolidade,
que repousavam a alma. Mersault decidiu descer em direção ao sul,
depois de ter comprado um pente. No dia seguinte, estava em Viena.
Dormiu uma parte do dia e a noite toda. Quando acordou, a febre
baixara totalmente. Encheu-se de ovos quentes e de creme de leite
no café da manhã, e, um pouco enjoado, saiu para uma manhã
cortada de sol e de chuva. Viena era uma cidade revigorante: lá não
havia nada a visitar. A catedral de Santo Estêvão, grande demais,
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entediava-o. Preferiu os bares que ficavam em frente, e, à noite, um
pequeno cabaré à beira do canal. De dia, passeava pelo Ring, no luxo
das belas-vitrines e das mulheres elegantes. Por algum tempo,
usufruía desse cenário frívolo e luxuoso, que separa o homem de si
próprio na cidade menos natural do mundo. Mas as mulheres eram
belas, as flores carnudas e reluzentes nos jardins, e, no Ring, ao cair
da tarde, na multidão brilhante e fácil que circulava, Mersault
contemplava, no topo dos monumentos, a vã decolagem dos cavalos
de pedra na tarde vermelha. Foi então que se lembrou de Rose e
Claire, suas amigas. Pela primeira vez desde a partida, escreveu uma
carta. Era, na verdade, o excesso de seu silêncio que transbordava no
papel (3):
Minhas Filhas:
Patrice Mersault.