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MANUEL

BANDEIRA
Seleta de Prosa

4a impressao

Organizaçiio de
Julio Castanon Guimariies

-
EDITORA
NOVA
FRONTEIRA
Estudos litmirios 50 J

deste ensaio: o de nào poder ., vir a ser um grande


, artista
_ criador. Foi .e
ais bem dotados que Ja teve o nosso pais. E nao me estendo mats
dos elogi
m
·os porque li na sua correspond'encta . esta frase, que po di a servu
.
em "P . 1h
de epigrafe a estas notas: ara mtm a me or homenagem que se pode
pres tar a um artista é discutir-lhe as realizaçôes, procurar penetrar nelas,
e dizer francamente o que se pensa".

Ü CENTENAR!O DE STÉPHANE~*

Nào foi sem grandes perplexidades que recebi do presidente des ta


casa o encargo de celebrar a passagem do centen:irio de Mallarmé. Corno
fazê-lo? A homenagem mais cara ao mestre seiia esculpir em soneto um
twnulo à maneira dos que ele proprio levantou, em versos impereciveis,
à mem6ria de Poe, de Baudelaire e de Verlaine. Seria para mirn dema-
siada ambiçào: le pitre serait châtié. Os versos de Mallarmé sao daqueles
que nos introduzem de golpe na cidadela mesma da poesia. Terni o de-
sastre numa tentariva de interpretaçào depois das palavras magistrais de
Valéry e Claudel, para s6 citar dois criticos que sào dois grandes poetas.
Relembrar-lhe a vida exemplar? "Ordonner, disse ele, en fragments intelligibles
etprobables, pour la traduire, la vie d'autrui, est toutjuste impertinent". Mas ja que
o fez a prop6sito de Rimbaud, julguei-me autorizado à ce genre de méfait.
Singular momento este, de universal convulsao, para falar de um
homem que no seu tempo deu resolutamente as costas à vida, conside-
rando a época em que viveu, como um interregno para o poeta, um
interregno de efervescência preparat6ria, em que o seu pape! nào deve-
ria ser outro senào trabalhar corn mistério en vue de plus tard ou jamais.
Trabalhar em quê? Na interpretaçào do universo, pois exprimir pela
humana linguagem, reconduzida ao seu ritrno essencial, o sentido secre-
to _d~s aparências do mundo era para ele a unica tarefa que autenticava a
eu 5tencia terrestre do verdadeiro artista. A poesia foi o seu culto, e a sua
UUciaçào literaria na adolescência assumiu o aspecto de uma clausura
religiosa. Mal saido do liceu de Sens onde terminou os estudos, e tendo
aprend.ido o inglês para Ier Poe no original, partiu para a Inglaterra, a fim
de_ fuoir · ·
,,_ Prtnc1palmente (toda a sua vida e obra foi· so bretu do uma eva-
- . , •vomzssement
. impur de /a bêtise'), mas também para apren der a ~• nuar
010gles e · , lo num curso sem outro ganha-pao - obnga· do, conqws- ·
ensina-
tando assirn a independência Ji;er:iria. Tinha enrào vinte anos e jase havia
casado
. · Um ano depois de regressar à França evocava ao calor do seu
cachimbo , . - • .
a Londres onde viveu pobremente de liçoes de frances, mw-

..
? - -·
onfertncia . "'
pronunaada na Acadcmia Brasileira de Lcrras.

h
504 MANUEL BANDEIRA: SE LETA DE PROS A

to so, porque a esposa nào pudera acompanha-lo e visitava-o de raro


em raro. Mallarmé amava os nevoeiros monumentais "q11i emmitoef!lenl
nos cervelles el 0111, là-bas, une odeur à eux, quand ils pé11ètre11I sous la troisée ". Essa
pagina em que ele revive os seus dias na Inglaterra é das mais simples e
das mais comovidas que escreveu:
Mon tabac sentait une chambre sombre aux meubles
de cuir saupoudrés par la poussière du charbon sur
lesquels se roulait le maigre chat noir; les grands feux!
et la bonne aux bras rouges versant les charbons, et le
bruit de ces charbons tombant du seau de tôle dans la
corbeille de fer, le matin - alors que le facteur frappait
le double coup solennel, qui me faisait vivre! J'ai revu
par les fenêtres ces arbres malades du square désert
- j'ai vu le large, si souvent traversé cet hier-là,
grelottant sur le pont du steamer mouillé de bruine et
noirci de fumée - avec ma pauvre bien-aimée erran-
te, en habits de voyageuse, une longue robe terne de
couleur de la poussière des routes, un manteau qui
collait humide à ses épaules froides, un de ces chapeaux
de paille sans plume et presque sans rubans, que les
riches dames jettent en arrivant, tant ils sont déchiquetés
par l' air de la mer et les pauvres bien-aimées
regarnissent pour bien des saisons encore...

Cito o trecho para mostrar aos que so conhecem Mallarmé pela


sua fama de hermetismo, a funda ternura ex.istente nesse homem que
poderia, se quisesse, ter conquistado o grande publico, mas preferiu iso-
lar-se, quase inacessivel, no seu altivo sonho de absoluto. Onde, em qual-
quer literatura, alguma coisa de mais tocante que esse triste chapéu bati-
do ''que les pauvres bim-aimées regamissmt pour bien des saisons mcore'?
Em setembro de 63 obtinha Mallarmé o certificado de habilita-
çào ao ensino, e dois meses depois era nomeado professor no colégio
de Tournon, corn 1.700 francos anuais. Começa entào seu martirio. Era
a independência literaria que desejara, mas a que preço! o ramerrào das
classes em face de alunas desatentos que o charnavam le bonhommeMallarmé
e chegaram muitas vezes ao desplante dos apupos e das pedradas, as
manhàs e as tardes perdidas no oficio insulso e fatigante, o extenuamento
aussitôt que s'allume la lampe dN soir, ô dérision!
Entretanto, os seus primeiros poemas - "l~s Fmêtres", "Les Fleurr",
'.:4.zur", ''Brisemarine"-, publicados em L'Artisteou no primeiro Parnasse,
começavam a despertar a atençào e a estima das rodas litera.rias parisienses.
E1t11do1 li1, rtirio1 505

rsos onde se traia ainda a influência absorvente de Baudelaire,


Er:unveui e ali ja repontavam as "dt·· e 1c10sas, pu d"1cas meta1oras
,,, "
mas aq . em «c d''agua corn a sua para'bo 1a per-
:tll
. " .
allarrneanas. Ass1m J Ottp1r , Jogo

e aquele sortilégio de dissolver em imagens os elementos esparsos


da be]eza para reordena-los em seus valores essenciais:
Mon âme vers ton front où rêve, ô calme soeur,
Un automne jonché de taches de rousseur,
Et vers le ciel errant de ton oeil angélique
Monte, comme dans un jardin mélancolique,
Fidèle, un blanc jet d'eau soupire vers !'Azur!
- Vers !'Azur attendri d'Octobre pâle et pur
Qui mire aux grands bassins sa langueur infinie
Et laisse, sur l'eau morte où la fauve agonie
Des feuilles erre au vent et creuse un froid sillon,
Se traîner le soleil jaune d'un long rayon.
Bastaria a Mallarmé persistir a meio de sua personalidade para se
revelar, coma disse Valéry, o que de fato era - o primeiro poeta de seu
tempo. Mas ele nào nascera senào para tentar o desastre obscuro, para
realizar o Livra a que converge toda a vida, para escrever a versào
condensada e definitiva do unico assunto: l'antagonisme du rêve chez l'homme
avec les fatalités à son existence départies par le malheur, o drama da impotência
criadora, da açào consciente do artista - o lance de )ados - em luta
corn o acidental, corn o acaso. Foi em Tournon, aos 24 anas, que Mallarmé
teve o que chamou "a visào horrivel de uma obra pura", cometeu o
pecado "de ver o Sonho em sua nudez ideal". Dessa noite de vigilia,
dessa iluminaçào fulminante e dolorosa resultou lgitur, que Mallarmé s6
leu para alguns raros amigos e nunca publicou, que Claudel classifica
~mo um drama, "o mais belo, o mais comovente produzido no século
X". Trima anos depois a vit6ria do her6i-criança - le hasard vainc11 mot
Par
. mot . - se converte na catastrore, r d ovelh o nau , frago: non, 11n coup d,e d,,es,
Ja111ais' quand b.ien meme, ,ance
, , dans des arconsfances
. , " n 'abo,,ra
eterne11es, ,. ,e, tJasa
, rd.
desd Todavia a_visao · - d a obra pura apontou ao poeta o seu carrun · h o, e
e aquela noue de Tournon ele poderia dizer o que exprimira mais
ta rde na "P
rou pour des esseintes":
Gloire du long désir, Idées
Tout en moi s'exaltait de voir
La famille des iridées
Surgir à ce nouveau devoir.
Em 65 .
CJUatorz • nasc1mento de sua filha Geneviève, a que devemos os
illlciaJ:
· e Versos d e 'V on dII poè111e" corn o seu marav ilh oso al exan d rmo ·

fllll
)06 :\ I J\NU H . Bi\N Dl ·.IR1\: Sl : LET,\ Dl : PROS,\

Je t'appone l'enfant d'une nuit d'ldumée!


Ja aqui vemos aplicado o conceito orquesttal de poesia desenvol-
vido em prosa nas Divagations: attavés dos véus da ficçâo, desprender o
assunto de sua estagnaçào acumulada ou dissolvida corn arte - come-
çar por uma afirmaçào como um portico de acordes triunfais convi-
dando a que se componha, em retardas liberados pelo eco, a surpresa;
ou o inversa: atestar um estado de espirito em certo ponto por um
sussurro de duvidas para que delas saia um esplendor definitivo simples.
0 primeiro processo, empregado em 'Von du poème" coma em ''L'Apris-
midi d'un jaune" (Ces nynrphes,je les veux perpétuer.'; o segundo mais freqüen-
te, em varias sonetos, rematados por um verso que se diria organizar
todo o poema numa constelaçào de que ele fica sendo a esttela alfa:
Ainsi qu'une joyeuse et tutélaire torche ...
De scintillations sitôt le septuor...
Une rose dans les ténèbres ...
Em 66 as manobras, junto à administtaçào, de alguns pais de
alunas escandalizados corn os versos do professor-poeta conseguem, se
nào a demissào, ao menos a remoçào do funcionario para Besançon,
onde a vida se lhe tornou ainda mais dura, longe dos seus caros felibres,
Mistral, Aubanel, Roumanille, Gras, Roumieux. Felizmente um ano de-
pois volta ele ao Sul e até 72 assiste em Avignon. No mês de outubro,
graças ao historiador Seignobos, seu ex-aluno de Tournon, que alias o
considerava uma espécie de degenerado inofensivo, Mallarmé obtém a
nomeaçào para o Liceu Fontanes, depois Condorcet, em Paris. A vinda
para a capital encheu-o de grandes esperanças, e houve um momento
mesmo que aquele Hamlet-professor, como lhe chamou Remy de
Gourmont, teve a ilusào de poder evadir-se do ingrato oficio de ensinar
inglês em liceus, lançando uma revis ta - La Dernière mode, na quai, desde
o titulo até os anuncios, tudo, salvo algumas colaboraçôes literarÎi!S, era
da propria mào de Mallarmé. A revistazinha definia-se como uma gaze-
ta do mundo e da familia, onde se promulgavarn as leis e verdadeiros
principios da vida estética, corn o exame dos menores detalhes: toilettes,
joias, mobiliario e até espetaculos e menus de jantares. Oito paginas de
pequeno formata in-folio, capa azul-turquesa, e no texto, aqui e ali,
vinhetas desenhadas por Morin. Durance nove numeros Mallarmé
despendeu em beneficio de suas caras leitoras desconhecidas, de ses tris
vraies chèm abonnées, os tesouros de suas delicadezas de poeta. As descri-
çôes de vestidos na Dernière mode têm o sabor de poemas compostas
especialmente para lisonjear a imaginaçâo feminina. As senhoras aqui
presentes gostarào de ouvir, estou certo, um ou dois exemplos dessa
,,,,,..-
Es1t1dos litmirios 507
--
.
Literatu ra de modas introduzida no dominio da grande arte de um gran-
de poeta.
Toilette de diner (en cachemire, je l'ai vue rose, comme
vous pouvez la voir bleue): le tablier de la première
jupe est garni de maint bouillon horizontal, froncé à
deux fils avec têtes étroites de chaque côté ...

Continua a descriçào e acaba corn estas palavras que esclarecem a


origem do costume atual dos Worth e das Schiapparelli, de dar nome
aos vestidos-modelos:
À celle d'entre vous, Mesdames, qui la première portera
cette toilette, l'honneur de l'appeler, car un joli usage,
datant de quelques jours [a revista é de 74] veut qu'une
robe se nomme de la femme qui, par son port, charme
et distinction, lui a, dans le monde, acquis la célébrité
et le prestige!

Outro vestido, este bleu-rêve, é assim descrito:


On n'a qu'à le vouloir, pour se figurer une longue jupe
à traine de reps de soie, du bleu le plus idéal, ce bleu si
pâle, à reflets d'opale, que enguirlande quelquefois les
nuages argentés ...

Nào tardou a se desfazer a ilusào do cronista estético: Mallarmé


foi roubado de sua iniciativa e do seu trabalho.
Je ne sais au juste entre les mains de qui va tomber
cette feuille, mais tout me fait croire qu'elle va servir
à de vagues chantages, à des mariages et à d'autres
combinaisons.
. De fato, a gazeta caiu nas màos de uma mulher que fez dela uma
revista banal.
Foi nesse mesmo anode 75 que Mallarmé se instalou no famoso
mento da rue de Rome, e alugou em Valvins, à beira do Sena e a• vtsta '

da. flore sta d e Fontainebleau, uma casinha onde passava as 1enas. c• . A sua
Vida era a mais discreta possfvel: nào ia a parte alguma, salvo os concer-
~os dominicais e a visita cfüiria, de volta do liceu, ao pintor Manet; nào
ava colaboraçao - .li teraria senào às pequenas revtstas
· d e novos e gratui -
. · Ia algumas vezes à casa de Hugo, que gostava d e O ch amar,
tamente
b
eliscand 0 1h . . • · "· · _
- e afetuosamente a orelha "mon cher poete 1mpress1onrste , avis
tava-se
tin frequentemente
·· · · d e l'I sIe Ad am,
corn Banville, ' que, corn Villiers
n· ham a preferência entre todos os confrades que admirava, e Mallarmé,
sao· bstante os seus pontos de vista e gosto tao - requmta· damente pes -
0
0
ais' po ssma· raro dom generoso da admiraçào, disttngum · · ·dO pron-
O
508 MANUEL BANDBI RA: SB LUTA Dll PR OSA

tamente em cada um o que era digno de apreço e assinalando-o corn


tacto impecavel. Teve verdadeiramente o gênio da amizade, exercido
sem derramamentos, antes corn uma discriçào que deixava encantados
os que dele recebiam uma palavra ou uma linha de louvor. Nunca disse
mal de ninguém nem jamais revidou à campanha de ridiculo que lhe
moviam na imprensa os que nào lhe compreendiam a poesia.
Em 75 estava concluido "L'Après-midi d'un faune", o qual, na falta
do grande Livra sonhado na memoravel noite de Tournon, de que Igitur
permaneceu esboço e Un coup de dés um capirulo que a ele proprio deixa-
va em estado vertiginoso, representa a sua realizaçào mais perfeita.
0 poema deveria ser dito por Coquelin ainé, pois o poeta imaginara-o
absolutamente cênico, nào passive! no teatro mas exigindo o teatro.
0 alexandrino de ''L'Après-midi" marca o rompimento corn a técnica
oficial parnasiana. Nào que Mallarmé aborrecesse o alexandrino classi-
co, o alexandrino en grande tenue, grande voz da tradiçào, cara a quem nâo
aceitava o banimento de nada que tivesse sido belo no passado; mas ao
lado do orgâo veneravel queria ele também a maliciosa siringe, instru-
mento das fugas; queria, ao lado do alexandrino bem ortodoxo na sua
cesura regular, urna espécie de jeu courant pianoté autour, como urn acom-
panhamento musical feito pelo proprio poeta e nâo permitindo ao ver-
so oficial comparecer senâo nas grandes ocasiôes.
Muitos sâo os poemas de Mallarmé de interpretaçâo dificil se
nâo impossivel. Nâo assim a sua estética e a sua técnica, de que podemos
collier quase toda a teoria nas paginas de prosa das Divagations.
Nâo me parece a poesia mallarmeana tâo pura quanto se tem
afigurado aos seus criticos. Certo purificou-a o poeta de todo elemento
estranho ao sentido poético essencial, da hurnana paixâo que chora (porque
nâo se assoa também? perguntou de uma feita), e daquilo a que chamou
o dom elocut6rio, e mesmo da mera realidade dos materiais naturais. A
este ultimo aspecto é a sua poesia de natureza platônica, no esforço de
subir dos acidentes à noçâo pura, espécie de metaffsica poética em que a
flor, por exemplo, se transcendentaliza em l'absente de tous bouquets. A divi-
na transposiçâo, obra por excelência do poeta, devia ir do fato ao ideal.
Mas se o conceito de poesia pura exige a autonomia dela em relaçào às
outras artes, nâo se pode falar de pureza em Mallarmé, porque a sua
poesia esta referta de elementos plasticos, e nisto ela é ainda bem
parnasiana, e musicais, no que consuma, corn o seu carater espiritual, o
simbolismo.
A poesia mallarmeana é essencialmente musical ele mesmo o
declarou. Musical nâo no sentido puramente sonoro ou ~elodioso, mas
no sentido definido por Boris de Schloezer, ou seja na imanência do
EI1Ndo1 1;1,,ario1 ;09

, do corn a forma. Neste sentido diz o critico russo, que é autori-


conteU
dade em musica, um texto pode ser musical apesar de duro aos ouvi-
e a esse ângulo a mus1ca nos parece como o limite da poesia.
dos,
Mallarmé foi sobretudo sensivel ao lado orquestral da musica. A sua
técnica de poeta é uma orquestraçào da linguagem, e o alexandrino foi
rincipalmente para ele uma combinaçào de doze timbres. Toda vez
pue define a poesia, Mallarmé se reporta à musica. Alguns fragmentos:
1 Poesia nào é senào a expressào musical, superaguda, emocionante, de
urn estado de alma; as palavras se iluminarn de reflexos reciprocos como
urn virtual rastilho de luzes sobre pedrarias... Esse carâter aproxima-se
da espontaneidade da orquestra; bu,scar diante de uma ruptura dos gran-
des rirmos literârios e sua dispersào em frênùtos articulados, proximos
da instrumentaçào, uma arte de rematar a transposiçào para o livro da
sinfonia ou simplesmente retomar-lhe o que nos pertence: pois nào é
das sonoridades elementares dos metais, das cordas e das madeiras ine-
gavelmente mas da intelectual palavra em seu apogeu, que deve, corn
plenitude e evidência, resultar, como o conjunto das relaçôes em tudo
cxistentes, a Musica. Poderia prolongar as citaçôes mas essas bastam.
Quem nào percebe a face orquestral na poesia de Mallarmé, nào poderâ
compreendê-la; nào poderâ sentir a beleza do alexandrino Hi/art or de
cimbalr à des poings irrité e so verâ nela a ousadia insolita da imagem. Mas
na infinidade dos idiomas nem sempre o timbre da palavra corresponde
à imagem por ela evocada: Mallarmé confessou a sua decepçào em face
da perversidade que confere a jour timbre escuro, a nuit timbre claro.
Precisarnente para remediar essas contradiçôes das linguas existe o ver-
so, complemento superior de cada uma delas na falta do idioma supre-
mo em que as palavras figurassem materialmente a verdade. A poesia é
que di o verdadeiro timbre às coisas por meio das imagens. E aqui
e_ntramos em outro dominio, onde o leitor mal dotado de instinto poé-
llco se perde na incompreensào do poeta. Mallarmé jogava corn as
analogias numa espécie de contraponto, instituia entre as imagens (e rara-
mente exptirnia o primeiro termo delas) uma certa relaçào donde se
destacava
. um terce1ro· aspecto fu sivel e encantatono' · apresentado a· adi -
~açào. Nomear o objeto seria a seu ver suprimir três quartas partes
0
• gozo do poema, gozo que nasce da felicidade de adivinhar. A poesia
eGeUJn sorti!' · uma força de sugestao. No poema fCJto
., egio, · para sua filha
nevieve a pa1avra "!eque" so aparece no o'tu!o e sena · di spensav
' el:
0 rêveuse, pour que je plonge
Au pur délice sans chenùn,
Sache, par un subtil mensonge,

...
Garder mon aile dans ta main.
510 ~lt\N UL:.L UAN Dl~IRA: SE LET,\ DE PR OSA

Une fraîcheur de crépuscule


Te viente à chaque battement
Dont le coup prisonnier recule
L'horizon délicatement.

Vertige! voici que frissonne


L'espace comme un grand baîscr
Qui fou de naître pour personne,
Ne peut jaillir ni s'apaiser.

Sens-tu le paradis farouche


Ainsi qu'un rire enseveli
Sc couler du coin de ta bouche
Au fond de l'unanime pli!

Le sceptre des rivages roses


Stagnants sur les soirs d'or, ce l'est,
Cc blanc vol fermé que tu poses
Contre le feu d'un bracelet.

Essa incomparavel j6ia de poesia esta cheia de imagens audacio-


sas em sua extrema delicadeza. Assim ampliar o vaîvém do leque no
gesto de aproximar e recuar o horizonte. Imagens que repugnam a tan-
tos, cuja incompreensào se assemelha à de certos meus alunos de litera-
tura, adolescentes mal iniciados à verdade superior da poesia e que riem
quando lhes cito a comparaçào do Cântico do~ cânticor. "O teu cabelo é
como o rebaoho de cabras que pastam no monte de Gilead". A mesma
incompreensào dos discipulos de Jesus que, ouvindo-o dizer: "Eu sou o
pào que desceu do céu", se puseram a murmurar perplexos: "Duro é
este discurso: quem o pode ouvir?"
Conta Valéry que certa vez o pintor Degas se queixou a Mallarmé
de ter perdido o dia na và tentativa de escrever um soneto. "No entan-
to", acrcscentou, "nào sào as idéias que me faltam ... Tenho-as até de-
maîs". Ao que o mestre respondeu: "Mas, Degas, nào é corn idéias que
se fazem versos: é corn palavras". Para Mallarmé, como para todo ver-
dadeiro pocta, a poesia se confunde corn a linguagem, e, cordo explicou
Valéry, é linguagem em cstado nascente.
Todos esses aspcctos, pontos capitais da técnica de Mallarmé, e
aquelc perpétuo designio de transmudar a realidade cm sooho, motivo
de todos os seus dc'vaneios, ou nas noites de vigilia no gabinete da me de
Rome, junto àfalgurante ron;ok, ou em suas horas solitarias na iole de Valvins,
cstào prescntes ncsse pocma do fauno, em que renovou magistralrnente
Estudos lilmin"os 511

0
gênero antigo da égloga. Por isso Thibaudet classificou-o na obra do
oeta como le morceau des connaisseurs.
p Pois bem, essa obra-prima, transparente em seu tema e tào limpida
de forma, foi recusada pelo leitor de Lemerre para o terceiro fasciculo
do Parnasse Contemporain. E sabeis quem era esse leitor? Anatole France.
o voto de France foi secundado por Coppée e venceu apesar do pro-
testo de Banville - Non, ponderou France, on se moquerait de nous! O
mesmo juri condenou um soneto de Verlaine. Que soneto? Aquele in-
cluido depois em 5agesse, que começa pelo verso famoso: Beauté desjenmi'es,
/eurfaiblesse et ces mains pâles... A sentença de France: Non, l'auteur est indigne
el /es vers sont des plus mauvais qu'on ait vus. Cabe lembrar aqui a diferença de
tratamento dispensada a Verlaine por France e por Mallarmé. France,
cuja libertinagem de autor e de hornern todos conhecemos, puritanissirno
diante dos erras de seu desgraçado confrade; Mallarmé, tào puro ern sua
ane e na sua vida, salvo o leve pecadilho corn Méry Laurent, mais tema de
luminosos sonetos do que evasào na sensualidade, compreendendo fra-
ternalmente a atirude do hornern e até exaltando-a corno a unica nurna
época em que o poeta esta fora da lei: a de aceitar todas as dores e todas
as rrùsérias corn urna tào soberba crânerie. Mallarmé e Verlaine foram ex-
cluidos do Parnasse, onde tiveram enttada D'Artois, Delthil, Dujolier, Marc,
Marrot, Grandmoujin, Pigeon e Popelin. J:i ouvistes falar nesses nomes?
Nào, decerto. Entào moq11ons-no11S d'Anatole France.
0 poeta, tào atorrnentado na sua ingrata labuta de professor que
todas as tardes ao voltar do liceu nunca attavessava a ponte sern que o
assaltasse a vontade· de acabar corn a vida atirando-se ao Sena, viveu
desconhecido e solit:irio até que o retrato enrusi:istico de Verlaine em Les
Poètes maudits e as paginas de Huysmans em  Rebours vieram revel:i-lo
ao grande pûblico. Se a compreensào nào chegou, todavia a partir de
entào, em 84, Mallarmé corneça a sentir em torno de si a veneraçào de
urn_grupo de moços que o afeiçoam como um idolo. 0 mestre recebia-
m as~ças-,eu:as.
dade. c· ·
Quem quiser sentir o encanto dessas_n~ttes de tntt~-
· · ·
Ma tntelectual com o poeta nào tem mais que Ier as pagtnas de Camille
ucJair no seu livro Mallarmé chez /11i. O proprio Mallarmé vinha abrir a
P0 rta ao ..
s VIsttantes e inttoduzia-os nurn aposento que era ao mesmo
tempo sat·
tn. . ao e sala de jantar: urn fogào de faiança a urn canto, alguns
0
veis de · d
China . nogueu:a e ao centto urna mesa onde pousava urn vaso a
d• cheio de tabaco; nas paredes urna paisagem de rio de Monet, um
,senho d M .
0 te e anet representando Harnlet, uma agua-forte de Whistler,
urn ~ ~ • L n
m.auarme •
por Manet, urna aquarela de Ber thM'
e onssot e
Pastel d fl . .
lltn e ores ptntado por Odilon Redon; sobre o guarda-louça
gesso de R~.J:_ . azinh
•=wu, ntnfa nua agarrada por urn fauno, e uma escultur a
5 12 MANUEL BAN DEIRA: SELETA DE PROSA

em madeira de Gauguin. As 10 horas, Geneviève, a filha do poeta


trava, grande, silenciosa e sorridente, trazendo o grog para os visitan:e;n-
se retirava logo. So entào começava a conversaçào ou antes O mo . ' e
noo-
1
go, porque os amigos e admiradores do poeta se limitavam a Jançar-lhe
alguma deixa para ouvi-lo discorrer. Quando Mauclair principiou a fre-
qüentar as terças-feiras do mestre, tinha Mallarmé 48 anos, mas parecia
mais velho. Estatura mediana, barba e cabelos grisalhos, bigode espesso
olhos penetrantes, muito afastados, orelhas de fauno, voz melodiosa, d:
um timbre raro, corn subitas notas agudas talvez j:i sintoma da moléstia
de laringe que o vitimaria. Sorriso de extraordin:irio encanto. Vestia sem-
pre roupa preta, comprada pronta, lavalliè" preta e nos ombros, porque
era muito friorento, um plaid. Na atitude em que o representa o famoso
retrato de Whistler, encostava-se ao fogào e ficava em pé todo o tempo,
fumando o seu insepar:ivel cachirnbo. Quem eram os visitantes? Henri
de Régnier, que Remy de Gourmont conta ter visto corar ao receber 0
primeiro discreto elogio de Mallarmé, Gide, que acabara de publicar
Les Cahiers d'André Walter, Pierre Louys, André Fontainas, Odilon Redon,
Albert Mockel, Vielé-Griffin, Stuart Merri!, Edouard Dujardin, o médi-
co Edouard Bonniot, que depois veio a casar corn Geneviève, Valéry,
que confessou ter sentido diante da obra e da figura do mestre "a progres-
sào fulminante de uma conquista espiritual definitiva". E outros. Às ve-
zes apareciam estrangeiros de passagem por Paris: o inglês Symonds, o
alemào Stefan George, o dinamarquês Brandes. Oscar Wilde anunciou-
se uma noite, o que provocou um petit-ble11 do malicioso Whistler corn a
recomendaçào cautelosa ao mestre: "Wilde viendra chez vo11s. Serrez
l'argenterie".
"Mallarmé", conta Mauclair, "nâo nos ensinava. Mas fazia me-
lhor que isso: pelo encanto de sua palavra e de sua pessoa punha cada
um de nos em estado de poesia". Foi essa mocidade que, em 97, elevou
Mallarmé ao posto de Principe dos Poetas, vago corn a morte de Verlaine.
Nada, porém, desarmava a incompreensâo. É verdade que o
poeta, por seu lado, nada fazia para desarma-la. Ao contrario, cada vez
se envolvia em névoas mais densas, ironicamente satisfeito de afastar de
sua obra os espîritos superficiais, encantados de ver num escrito que
nada lhes concerne à primeira vista. Diante da agressào de ininteligibilidade,
preferia retorquir que a maioria dos contemporâneos nào sabem Ier
senào os jornais.
Às obscuridades naturais resultantes de seu conceito de poesia,
juntou as de uma sintaxe propria, substancial e concentrada como uma
formula algébrica. 0 que ele escrevia nâo parece produto do pensa-
mento, mas o proprio pensar em sua origem e evoluçào dialética, fecun;
do em incidentes atentos em se organizar num sistema indeformavel a
E studos litmirios 5 1J

révu d'inversions. Despojava-se por elipse, o mais possivel, dos


ba"'fl,. c,e111et1fP çao Gostava de separar, as - vezes, o a d"Jetlvo· qualificativo
·
s de re1a . . ,
terrJJ 0 bstantivo por algumas palavras ou uma s1mples virgula como
de seu :car entre os dois um instante de reflexao, de escolha. Ainsi, par
para_~ /' utre dimanche, automnal.. le pauvre trumeau, suranné... avec le rien de
ce ,,,,~,, .:irllensable... plutôt que tendre le nuage, précieux... Escrever para ele era
f//J stere,tfl ·r d - fu . .
. . ar roda a sorte e sugestoes gtt1vas em tomo a 1 e1a e nessa
d .d , .
mobiliz i)iza ao a sua di spos1çao · - h ab.ttual era re fugar a so1uçao . di ata corn
- 1me
mob luz çcrua, a soluçao - vulgar, pots · vutgatre
, · I'est ce a- quot·on uecerne,
J'
pas pms,
,

a sua 'e're immédiat. Eis um bom exemplo da sua sin taxe. Falando da
11,, carac,,
?
Academia francesa, prezad~ tào al~o qu~ ato de a nivelar às outras
tasses do Instituto lhe parecta de mao polit1ca e sacrilega, começou corn
:stas palavras: Lz plus haute institution puisque la "!)'auté finie et les empires,
'(Jve, superbe, rituelle est, n'attendez la Chambre représentative, directe, du P'!Ys si
~e autre dure que tarder à nommer parait irrespectuex, l'Académie. Esse curto
periodo resume todo o processo mallarmeano de composiçao, de or-
ganizaçao de um sistema de incidentes em tomo de uma idéia e tenden-
do nao à cadência redonda, mas a um remate agudo como o bico da
pena pingando o ponto final. Este ultimo processo, tào inabitual na pro-
sa francesa desde a reforma de Guez de Balzac, é freqüentissimo em
Mallarmé. A anilise do segredo é alias facil: um substantivo, de uma ou
duas silabas, separado de sua regência por uma longa incidente, termina
bruscamente o periodo: A côté de l'Amérique que vous et moiportons haut dans
notre estime (il est, hélas! comme un pt!Js dans unP'!Ys),j'en sais une àjamais offusquée
par cet état trop vif, Poe... Outro exemplo: Constater que la notation de vérités ou
de sentiments pratiquée avec une justesse presque abstraite, ou simplement littéraire
dans le vieux sens du mot, trouve, à la rampe, la vie.
M Todos esses traços pessoais de sintaxe dificultam a leitura de
al allarmé,_ ~as essa espécie de obscuridade se dissipa depressa corn
pranca do autor. Afinal a sintaxe é um habito, e como condenar
por IIUnt ligi' .
06 ·a1 e veis as singularidades do poeta em nome de uma sintaxe
sinCl que admite o anacoluto? A sintaxe de Mallarmé reagiu contra a
de t:ocpe corrente do século XIX para acentuar os mil cambiantes do ato
ensar a . .
forrnas d ' os quats correspondiam nos séculos antenores outras tantas
lingu e construçào, ricas de expressividade, e infelizmente banidas da
no . poagem , . escrita em nome de uma clareza tào empobreced ora d o mtste- · '
ettco da palavra.
0 . de arte a que poeta sacrificou maten·a1mente
a SUa Vidaustero _ conce.ito O
bagatela a,naoadmi·t:J.u nunca outra diversào senào aquelas dli. e Ciosas
v-..''"¾os . s Por ele ch d . b c
ama as vers de czrronstance-. para cele rar restas e aru- .
lltn 1:llVr ' Para envtar · um presente - flores ou frutas, ovos- d e-pascoa, '
0
' Utn le
........____ que, um tettato, Malfatmé fa,;,-o sempte acompanhat
f 14 MANU IIL UANDEIRA : Sl:J.bTi\ DL PROS,\

de alguns versos onde punha a dupla delicadeza do seu afeto e da sua


arte. A imagem do horizonte no leque de Mlle. Mallarmé reaparece
corn uma nova graça nesta quadra:
Jadis frôlant avec émoi
Ton dos de licorne ou de fée.
Aile ancienne, doone-moi
L'horizon dans une bouffée.

i\Jgumas dessas quadras sào madrigais de uma sutileza jamais ex-


cedida:
Avec mon souhai t le plus tendre,
Comme il sied entre vieux amis,
Dans cette main qu'on aime à tendre
Je dépose le fruit permis.

Ces vers gui se ressembleroncl


Prêtez-leur la voix spontanée
De dire, moins que votre front,
Le mensonge de toute année.

Um copo de agua lhe suscita este cristal do mais puro brilho


mallarmeano:
Ta lèvre contre le cristal
Gorgée à gorgée y compose
Le souvenir pourpre et vital
De la moins éphémère rose.

Nesses momentos de dé/mie no seu àrduo esfo rço para o livre


ideal, o poeta se permite até o sorriso de um trocadilho:
Ici même l'humble greffi er
Arteste la mélancolie
Qui le prend d'orthob,raphier
Julie autrement que Jolie.
As vezes lhe bastam apenas dois versos de oito snabas para caprar
o in finito da aurora ou de um rosto fcminino:
Tends-nous aujourd'hui comme jow:
Cette rose où l'aube se joue.
E cnviando uma redezinha de pc:sca:
Je vo us rc:nds, Clai re de Paris,
Le filet, mais j'y reste pris.
Um dia a rdaçào evidcmc entre a formata dos cnvclopcs c a dis-
posiçào de uma quadra levou MaJlarmé, por puro sentirncnto esrécico, 3
,.,
E111tdo1 lilmin'o1 5 1i

escre~cr cm vers~s os endereços das cartas que mandava aos amigos. E


convem que se diga, para honra dos Correios de França, que nenhuma
deixou de chegar ao destinatario, por mais mallarrneano que fosse 0
endereço, o que sem dùvida deve ter consolado um pouco O poeta da
agressào de obscuridade.
Alguns exemplos:
Courez, les facteurs, demandez
Afin qu'il foule ma pelouse
Monsieur François Coppée, un des
Quarante, rue Oudinot, douze.
Je te lance mon pied vers l'aine,
Facteur, si tu ne vas où c'est
Que rêve mon ami Verlaine,
Ru'Didot, Hôpital Broussais.
L'âge aidant à m'appesantir,
Il faut que toi, ma pensée, ailles
Seule rue, 11, de Traktir,
Chez l'aimable Monsieur Séailles.

Leur rire avec la même gamme


Sonnera si tu te rendis
Chez Monsieur Whistler et Madame,
Rue antique du Bac 1 1O.
Até agui temos apenas o jogo verbal, que nào exclui o bala11ce111ent
d'inventio11s habituai na sua grande arte. Mas os dois endereços seguintes,
feitos para pintores queridos, ja sào autênticos poemas:
Ville des Arts, près I' Avenue
De Clichy, peint Monsieur Renoir
Qui devant une épaule nue
Broie autre chose que du noir.

Au cinquante-cinq, avenue
Bugeaud, ce gracieux Helleu
Peint d'une couleur inconnue
Entre le délice et le bleu.
A casa n° 9 do Boulevard Lannes ficou imortalizada em varias
quadras, tanto quanto em vârios sonetos, fulgurantes e sibilinos, a sua
locatiria, por quem O coraçào do poeta ardeu numa chama, de que fez
confidente a administraçào dos Correios. Pois nào é confidência clizer:
j 16 MANL' H ll 1\ NDUl< 1\: SI U ·Tt\ Dl l' HU!11\

Facteur qui de l'état émanes


C'est au neuf que nous nous plai sons
De te lancer, Boulevard Lannes,
À la seule entre les maisons.

Estes ultimos endereços nào levavam o nome da desti ..


. . . . . natana sô
escnto num, tmpessoal e 1romco: '
Paris, chez Madame Méry
L1urent, que vit loin des profanes
Dans sa maisonnette very
Select du 9 Boulevard Lannes.

Por mais obvio que seja nessas bagatelas o desejo de brincar, hà


sempre nelas aquela intençào que Mallarmé pôs cm seus poemas mais
ambiciosos, isto é, a de traduzir o fugaz e o subito em idéia, de isolar
para os olhos um sinal de esparsa beleza geral. Pode-se dizer que depois
de Hérodiade e de L 'Après-midi d'11n fa1111e, e excetuados o soneto do Cisne
e o que começa pelo verso Q11a11d l'ombre 111enaça de la fatale loi, e o poema
tipogr:ifico do Coup de dés, toda a obra poética de Mallarmé sào versos
de circunstância, em que no fundo ele como que descansava da sua
eterna meditaçào sobre o grande tema unico.
Em 85, depois de passar pelo liceu Janson de Sailly, foi o profes-
sor de inglês ·cransferido para o Collège Rollin, onde permaneceu até à
sua jubilaçào em 93. 0 seu pedido de aposentadoria é um documento
comovente em sua cligna simplicidade:
Aprés trente ans de service, je me trouve à cause d'un
état maladif que détermine la fatigue de l'enseignement,
arrêté dans mes fonctions et incapable de continuer,
quoique je n'aie que cinquante et un ans et demi d'âge...

Mas o cansaço de Mallarmé nào o incapacitava tào-somente para


o ensino: incapacitava-o também para a obra sonhada na vigilia de
Tournon. 0 poeta foge de Pari s e se recolhe à solidào da casinha de
Valvins. Foi là que concluiu, em 97, Un coup dedés, tào estranho, a todos os
aspectos que o proprio Mallarmé, lendo-o para um amigo, per1,,untou-
lhe depois: - Est-ce q11e cela ne vo11s parai/ /011/ àfait iuseusé? N'est-ce pal 1111
acte de dé111e11ce?
É de fato um ato de demência, mas o amigo poderia respondcr-
lhe corn as palavras de Novalis: "O poeta é verdadeiramente insensato,
e é por isso que tudo acontece realmente nele. 0 poeta representa, no
sentido proprio da palavra, o sujeito-objeto: a alma deste mundo".
EslNdos liltrân'os 5 17

No dia 9 de setembro de 98 o Mestre morria quase subitamente


num espasmo da laringe. Morria sem realizat o sonho da juventude, mas
deixando à posteridade uma obra da natureza daquelas que lhe mereciam,
sobre todas, a simparia: obra restrita e perfeita, onde ha uma atte que
encanta par unefidélité à tout ce quifut une simple et superbe tradition et ni gêne ni
ne masque l'avenir.
Minhas senhoras e meus senhores, chegando ao fun destas po-
bres palavras, dom obscuro à gloria do grande artista de França, sinto
que o meu cato anùgo, o ilustre presidente desta casa, fiou demais da
minha qualidade de poeta. Reli o mestre muitas vezes, li tudo o que pude
achat sobre ele. Mas de toda essa aplicaçào nào pude tirat senào o con-
fono de viver durante algumas semanas na sombra do mono inesqueci-
vel. Guardo a impressào de ter freqüentado um pouco o salàozinho
da rue de Rnme, de ter ouvido o mestre dizer através das fumaças do seu
cachimbo as palavras que nos confirmam na dignidade do labor poé-
tico. E vejo mais claro do que antes aquela plumazinha que se salvou
da catastrofe do Coup de Dés, pluma certamente caida da gorra da
Hamlet, frémissement vers l'idée, pousar, misteriosa e eterna, no céu da
mais alta poesia.

UM POEMA DE C ASTRO ALVES

Castro Alves chegou ao Recife em 28 de janeiro de 1862. la com-


pletar os preparatorios para se habilitar à matricula na Faculdade de
Direito. A liberdade aos quinze anos é coisa perigosa. 0 poeta achou a
cidade insipida. Corno ocupava os seus dias? Disse-o em carta a um
amigo da Bahia: "Minha vida passo-a aqui numa rede olhando o telha-
do, lendo pouco, fumando muito. O meu 'cinismo' passa a misantropia.
Acho-me bastante afetado do peito, tenho sofrido muito. Esta apatia
mata-me. De vez em quando vou à Soledade." Que era a Soledade?
Um bairro do Recife, onde O poeta-menino rinha uma namorada. 0
resultado dessa vadiagem foi a reprovaçào no exame de geometria. Por
Pedro Caimon vim a saber que entre os reprovadores do poeta estava
meu avô paterno Antônio Herculano de Souza Bandeira, professor de
füosofia da faculdade, tradutor de Charma. Nào cheguei a conhecer
meu avô, mas me contou meu pai, que era muito severo corn os proprios
filhos. Quando li a informaçào de Pedro Calmon, fiquei a imaginat o
tête-à-tête entre O anciào austero e o rapazola de cabeleira romântica ja
conhecido como abolicionista. Afinal em 64 consegue o adolescente

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