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EDITOR

Marcos Marcionilo

CONSELHO EDITORIAL
Ana Stahl Zilles [Unisinos]
Angela Paiva Dionisio [UFPE]
Carlos Alberto Faraco [UFPR]
Celso Ferrarezi Jr. [UNIFAL]
Egon de Oliveira Rangel [PUC-SP]
Henrique Monteagudo [Universidade de Santiago de Compostela]
José Ribamar Lopes Batista Jr. [UFPI/CTF/LPT]
Kanavillil Rajagopalan [Unicamp]
Marcos Bagno [UnB]
Maria Marta Pereira Scherre [UFES]
Roberto Mulinacci [Universidade de Bolonha]
Roxane Rojo [UNICAMP]
Salma Tannus Muchail [PUC-SP]
Sírio Possenti [UNICAMP]
Stella Maris Bortoni-Ricardo [UnB]
Tommaso Raso [UFMG]
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva [UFMG/CNPq]
O que é
hipercorreção?

Vamos começar nossa conversa lendo a de nição que o Dicionário

Houaiss oferece do termo ultracorreção:

Nos estudos linguísticos, é mais habitual usar o termo

hipercorreção que, como se vê no verbete do Houaiss, é um

sinônimo de ultracorreção.

Essa de nição do dicionário está sintonizada com os resultados das

pesquisas feitas nas décadas de 1960-70 pelo sociolinguista

estadunidense William Labov. Para Labov, a hipercorreção é fruto

do que ele chamou de insegurança linguística, aquilo que no

dicionário Houaiss aparece como “o temor do falante de revelar uma

classe socialmente discriminada”: a pessoa, para não ser acusada de

“falar errado” (o que seria indício de pouca instrução formal e de

origem social humilde), exagera no emprego daquilo que considera

ser a forma “correta” e acaba obtendo o resultado exatamente

oposto, que é… o erro. Um exemplo clássico de hipercorreção gerada

por insegurança linguística é o emprego do verbo haver no plural,


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como em “houveram muitas reclamações sobre as mudanças de

horário do metrô” — por ser impessoal, o verbo haver (quando tem

sentido “existencial”) só é conjugado no singular: “houve muitas

reclamações”.

O sociólogo francês Pierre Bourdieu, por sua vez, escreveu que

muitas pessoas reconhecem a existência de uma “língua correta”

(que ele chama de “língua legítima”), mas não conhecem plenamente

esse modelo de correção (muitas vezes por não terem acesso, em

sociedades desiguais e injustas, a uma educação de qualidade).

Desse modo, na tentativa de alcançar esse ideal de “legitimidade”

nos usos linguísticos, elas acabam cometendo inadequações e

hipercorreções.

Tipos de hipercorreção
Voltando ao verbete do dicionário, vemos que os exemplos que

aparecem ali se limitam à pronúncia (mantor por mantô, rúbrica

por rubrica) ou na escolha das palavras (genitora, considerada mais

“so sticada” do que mãe). Mas também existe hipercorreção na

morfossintaxe, isto é, nos modos como construímos nossas frases,

nossos textos ou — para usar uma palavra mais conhecida — na

gramática do que escrevemos.

O caso do verbo haver no plural, que vimos acima, é um exemplo de

hipercorreção morfossintática. O elemento morfo- vem do grego e

signi ca “forma”: o erro de houveram está na forma do verbo, que

deve ser houve. O termo sintaxe, também do grego, signi ca

“organização, composição, combinação”: o erro de houveram está no

fato de que não é correto “combinar” o radical houv- com a

terminação -eram quando o verbo tem sentido impessoal nem fazer


a concordância com o que vem depois (“reclamações”, no nosso

exemplo).

Neste breve manual, vamos nos ocupar principalmente dessas

hipercorreções morfossintáticas porque nosso interesse aqui é a

escrita formal, aquela que cria no leitor a expectativa de um texto

coeso, coerente, que mostre uma escolha adequada de vocabulário e

seja bem construído gramaticalmente. Justamente por ser formal é

que essa escrita corre o risco maior de apresentar hipercorreções, se

a pessoa que escreve não tiver segurança nos usos adequados dos

recursos da língua.

Infelizmente, muitos dos fenômenos de hipercorreção — ou pelo

menos os mais comuns — se devem a um ensino de língua pouco

satisfatório, resultante de uma concepção equivocada do que seja

escrever bem. Muitas professoras e professores ainda parecem

acreditar que a gente produz um bom texto escrito pela simples

eliminação de determinadas palavras, que devem ser substituídas

por outras. Alguns casos frequentes são a troca de que por o qual e

de mas por porém. Ora, essas substituições não garantem, nem de

longe, uma boa produção escrita: os fatores que realmente garantem

um texto de qualidade são outros e eles é que deveriam ser objeto de

ensino explícito e sistemático na educação linguística em todos os

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níveis .

Outro equívoco é supor que toda manifestação escrita tem que ser

obrigatoriamente rebuscada, recheada de palavras e construções

pouco habituais, tidas por mais “so sticadas” (exatamente o que

chamo, neste livro, de “falsas elegâncias”). Esse equívoco vem da

ideia, sem fundamento, de que “escrever é diferente de falar” e de

que é preciso “eliminar as marcas de oralidade da fala”. No entanto,

um bom texto escrito é aquele que tem ritmo, que ui, que não faz a
gente tropeçar o tempo todo em pedregulhos verbais. Costumo dizer

que escrever bem é escrever simples: é perfeitamente possível

obter um texto elegante sem precisar recorrer a pérolas postiças e

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medalhas enferrujadas .

Hipercorreção e mudança linguística


Antes de partirmos para o exame dos casos de hipercorreção que

selecionei para este livro, convém mencionar alguns fatos

importantes no que diz respeito à noção de erro.

Muitos usos já consagrados na escrita formal — incluindo a escrita

literária — ainda são rotulados de “erros” pela tradição gramatical e,

talvez até de forma mais autoritária, por pessoas que se apegam a

uma concepção de “língua certa” anacrônica e obsoleta, pessoas que

escrevem em jornais e revistas, em páginas da internet ou que criam

canais de vídeo para difundir essas ideias mal fundamentadas de

correção. São as pregadoras e os pregadores daquilo que o linguista

brasileiro Carlos Alberto Faraco chamou de norma curta: uma noção

de “língua certa” que se apega a uma dúzia e meia de casos

gramaticais e trata deles com uma in exibilidade que contradiz

muitas vezes a postura mais relativizadora dos gramáticos e

dicionaristas de formação.

É triste ver que muitos livros didáticos de português adotados nas

escolas tentam xar essa norma curta no ensino, o que só contribui

para a preservação de mitos como o de que “o português é uma das

línguas mais di ceis do mundo”. A nal, se eu, falante da língua, não

me reconheço naquelas regras é porque, sem dúvida, meu modo de

falar a língua é “errado” e não tenho capacidade para apreender toda

a “complexidade” da gramática do meu próprio idioma materno. O

resultado é uma baixa autoestima linguística. Isso também


contribui para a cristalização da já citada insegurança linguística,

que é o terreno fértil onde brotam e fruti cam as hipercorreções.

Um exemplo simples dessa diferença entre a norma curta

preconizada por alguns livros didáticos em contradição com o que

dizem os gramáticos e dicionaristas pro ssionais é o do uso de onde

e aonde. Vejamos o que dizem dois livros didáticos:

• “O pronome rela vo onde deve ser empregado apenas para indicar um lugar concreto, nunca
uma situação […]. Aonde é usado quando o verbo exige a preposição a”4.
• “É preciso não confundir o emprego do pronome rela vo onde com aonde. O primeiro indica
permanência em um lugar enquanto o segundo indica movimento para um lugar”5.

Agora vamos ver como se manifestam a esse respeito dois

gramáticos e um dicionarista:

• Embora a ponderável razão de maior clareza idiomá ca jus que o contraste que a disciplina
grama cal procura estabelecer, na língua culta contemporânea, entre onde (= o lugar em
que) e aonde (= o lugar a que), cumpre ressaltar que esta dis nção, pra camente anulada na
linguagem coloquial, já não era rigorosa nos clássicos6.
• O uso dos melhores autores […] não dis ngue onde de aonde. […] Por vezes ocorre o
emprego simultâneo de um e outro advérbio com a mesma signi cação: “Nise? Nise? onde
estás? aonde? aonde?” (Cláudio Manuel da Costa, Obras poé cas, I, p. 109); “Mas aonde te
vais agora, / Onde vais, esposo meu?” (Machado de Assis, Poesias completas, p. 207). Note-
se, na abonação machadiana, que a métrica não se oporia à repe ção do aonde7.

Os gramáticos e dicionaristas mais respeitados são lólogos de

formação, têm profundo conhecimento da história da língua, da

tradição literária, e sempre foram considerados como as fontes mais

con áveis no que diz respeito aos usos da língua tidos por corretos.

Os defensores da norma curta, no entanto, passam por cima das

lições ponderadas desses lólogos e tentam ser mais normativos do

que a tradição normativa! Se Machado de Assis, considerado o mais

importante escritor brasileiro, não distinguia onde e aonde (e isso no

nal do século 19!), por que insistir em querer que a gente faça essa

diferença na terceira década do século 21?


Os casos de hipercorreção que vamos analisar aqui não têm nada a

ver, portanto, com esses supostos “erros mais comuns” que

compõem a norma curta e são martelados há décadas pelos falsos

especialistas, que agora podem contar, para nossa tristeza, com as

tecnologias mais avançadas de comunicação. Essas pessoas

costumam dizer que esses tais “erros” doem nos ouvidos, mas o que

realmente dói nos nossos ouvidos é essa ladainha incessante que se

revela, a nal, inútil: se a pregação contra esses “erros” tivesse algum

efeito, eles não estariam sendo “cometidos” por tanta gente há tanto

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tempo!

As hipercorreções apresentadas neste livro constituem usos

linguísticos ainda rejeitados por boa parte dos gramáticos e

dicionaristas, dos escritores e tradutores, dos editores e das pessoas

mais letradas em geral. Quando digo “ainda rejeitados” é porque a

história das línguas demonstra que muitos fenômenos de

hipercorreção, por força do uso frequente, acabaram se

transformando em regras da língua, adotadas e normatizadas pela

tradição gramatical. Assim, hoje em dia não se aceita a pronúncia

rúbrica para rubrica, mas a pronúncia pântano, única considerada

correta hoje em dia, é resultado de uma hipercorreção, pois sua

origem é o italiano pantáno, com acentuação paroxítona. O uso da

preposição de em construções como “tenho certeza de que Pedro

esteve aqui” é resultado também de uma hipercorreção histórica, do

mesmo tipo que ocorre hoje em frases como “eu penso de que vai ser

um trabalho complicado”. Conclusão: muito do que foi considerado

erro no passado — induzido pela hipercorreção — hoje é tido como

a única forma correta, o que leva a gente a imaginar que muito do

que agora é considerado hipercorreção pode vir a se tornar regra

normatizada no futuro.
No entanto, uma vez que a maioria das pessoas — incluindo as mais

letradas — não têm consciência desses fenômenos de mudança na

história da língua, nossa intenção aqui é trabalhar com os casos de

hipercorreção que são vistos hoje como usos inadequados que

devemos evitar na escrita formal (que permite controle, revisão e

reformulação, ao contrário da fala espontânea, que não tem por que

ser submetida a esses processos e precisa ter toda a liberdade

possível para cumprir sua função primordial de permitir a interação

social por meio da linguagem.)

1. POSSUIR
O verbo ter, e seu equivalente em qualquer língua do mundo, gura

no topo da lista dos mais empregados. Junto com ser, ver, dar,

fazer, ir, vir, pôr, querer, poder, dizer, ouvir, pegar, saber, levar,

trazer etc., é um desses verbos imprescindíveis para a interação

social por meio da linguagem em qualquer comunidade humana.

Não por acaso, são sempre esses os primeiros verbos que nos

ensinam quando aprendemos línguas estrangeiras. Com esses e uns

poucos outros é possível dizer praticamente qualquer coisa em

qualquer língua.

Também conhecemos bem a versatilidade de ter:

● verbo pleno: Minha casa tem três quartos.


● verbo suporte: tenho medo, tenho sede, tenho horror, tenho dó etc.
● verbo “existencial”: tem muita gente nessa sala; hoje tem feijoada etc.
● verbo auxiliar: tenho cantado, teriam falado, nhamos viajado etc.
Essa alta frequência de emprego do verbo ter acabou agindo contra

ele mesmo. Muitas pessoas, movidas pela visão tradicional de que a

escrita é sempre rebuscada e de que a fala é sempre “descontraída”,


se puseram a evitar o verbo ter, empregando em seu lugar um

suposto sinônimo mais “so sticado”, o verbo possuir.

O problema não está no verbo em si, é claro, mas na inadequação de

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alguns de seus empregos :

(1) Possuir seguido de complementos pouco adequados à semân ca do


verbo:
Você possui resiliência? […] Ser resiliente signi ca ter disposição e
coragem para lutar, possuir desenvoltura para se superar e ter a tude
para solucionar problemas, e não aumentá-los.
Entre os jogadores de games para plataformas móveis (tablets e
smartphones), a pesquisa aponta que o país possui 24 milhões de
jogadores.
Você possui ciclo menstrual saudável? Veja alguns distúrbios
menstruais
[…] o atestado de amamentação fornecido pelos médicos obstetras não
possui nenhum respaldo na esfera trabalhista ou previdenciária.
(2) Possuir empregado como verbo-curinga, em construções em que
outro verbo poderia conferir mais precisão semân ca ao enunciado:
Tata Nano já possui 500 mil pedidos de compra na Índia!
trata-se de um modelo de automóvel. Ora, um modelo de automóvel
não pode “possuir pedidos”; mais adequado aqui seria empregar
recebeu, por exemplo.
O Consulado Geral de Portugal, ao pedir o HC em favor de […],
sustentou que pelo fato de o português viver em união estável com
brasileira há mais de cinco anos e possuir três lhos e neta, também
brasileiros, ele não poderia ter sido expulso do território nacional.
o verbo possuir, quando tem como objeto uma pessoa, adquire o
signi cado de “possuir sexualmente, manter relações sexuais”, o que
torna a construção possuir três lhos e neta mais do que inadequada
no texto. Observe-se que aqui estamos no campo jurídico, onde a
hipercorreção faz a festa, devido ao mito de que a linguagem jurídica
tem de ser sempre rebuscada e, de preferência, hermé ca.
Carlos possui salário de R$ 2.800,00 mensais e realizou 18 horas extras.
Qual o valor bruto das horas extras que Carlos terá para receber? R: R$
343,63.
salário não é algo que alguém “possua”: as pessoas recebem salários.
Cerca de 87% dos internautas de 5 a 18 anos não possuem restrições ao
uso da internet e 63% dos pais não impõem regras para o uso que seus
lhos fazem da rede.
aqui o verbo possuir ocupa indevidamente o lugar de sofrer: os
internautas não sofrem restrições dos pais.
Advogados possuem desconto na compra de scanner.
de novo, uma imcompa bilidade semân ca entre possuir e seu objeto,
desconto. Aqui um verbo mais adequado seria recebem, têm direito a,
contam com etc.
Vegetarianos possuem menor risco de doenças crônicas
nova incompa bilidade entre verbo e objeto: os vegetarianos
apresentam / exibem / demonstram menor risco de doenças crônicas.
Homens têm mais cartões de crédito e possuem fatura mais salgada
que mulheres.
a fatura não é algo que alguém “possua”; aqui o verbo seria até
dispensável, podendo ser subs tuído por um possessivo: “e sua fatura é
mais salgada”.
(3) Possuir usado com muita frequência num mesmo texto, sintoma da
falta de segurança no bom domínio da escrita formal por parte de
quem redigiu, como nessa página da Wikipédia sobre a região
Nordeste:
A Região Nordeste é uma das cinco regiões do Brasil de nidas pelo
Ins tuto Brasileiro de Geogra a e Esta s ca (IBGE) em 1969. Possui
área equivalente à da Mongólia ou do estado do Amazonas, população
equivalente à da Itália e um IDH médio, comparável com El Salvador
(dados de 2010). […] É a região brasileira que possui o maior número de
estados (nove no total) […]. O território do Nordeste possui um enorme
acervo de pinturas e gravuras realizadas sobre um suporte xo pétreo,
seja em abrigos, em paredões po cânion ou em a oramentos
rochosos. […] A região possui os estados com a maior e a menor costa
litorânea, respec vamente Bahia, com 932 km de litoral e Piauí, com
60 km de litoral. A região toda possui 3.338 km de praias. […] O rio
Parnaíba é um dos poucos no mundo a possuir um delta em mar
aberto, com uma área de manguezal de aproximadamente, 2.700 km².
[…] Todas as capitais da região Nordeste possuem região metropolitana
(RM), com exceção de Teresina, que possui região integrada de
desenvolvimento econômico (RIDE), por abrigar municípios de
diferentes unidades federa vas. […] Todos os nove estados nordes nos
possuem ao menos uma área metropolitana em seu território, seja na
sua totalidade (como Rio Grande do Norte e Sergipe) ou parcialmente
(Piauí). Nesse sen do, o Maranhão possui três no total. São duas (São
Luís e Sudoeste Maranhense), localizadas integralmente dentro do
território maranhense, e outra (Grande Teresina) expande-se pelo Piauí.
O estado da Paraíba possui o maior número de regiões metropolitanas
(doze no total).
Esse é um ótimo exemplo do que costumo chamar de “muleta

textual”: um elemento, no caso possuir, usado em praticamente

todas as frases do texto, o que o torna enfadonho, monótono,

insosso. Além da repetição do verbo em si, também se repete a

construção sintática: é sempre “X possui Y”, quando um texto bem

escrito se caracteriza, entre outras coisas, pela diversidade de

fórmulas sintáticas. Se nos limitássemos, porém, apenas ao verbo


possuir, seria muito fácil substituí-lo por outros como ter,

apresentar, exibir, dispor de, contar com, revelar, acolher e por aí vai.

A hipercorreção chega ao cúmulo da inadequação em casos como os

seguintes:

Se você possui 18 anos e ainda não rou seu tulo, que atento ao
prazo!
Após a vitória do Estrelão por 1 a 0, os jornalistas catarinenses
a rmaram que o clube é “quase amador” e que o Estado do Acre “não
possui nada a ver com futebol”.
De nitivamente, ninguém “possui anos” e a expressão cristalizada

na língua é “não ter nada a ver”. São exempli cações claríssimas da

tentativa de conferir “so sticação” ao texto, tentativa

completamente frustrada porque o resultado atesta a falta de

habilidade na produção escrita.

Sempre que a tentação de usar possuir murmurar em seus ouvidos,


respire fundo, conte até dez e escreva… ter. Assim a hipercorreção
recolhe suas nuvens pesadas e o texto adquire o brilho sereno de um
céu azul sem nuvens.

2. ENCONTRAR-SE
Assim como possuir vem sendo tratado como o equivalente

“so sticado” de ter, também o verbo encontrar-se foi eleito como

substituto “menos comum” de estar, um dos verbos mais

empregados na língua.

O mais conhecido exemplo do uso hipercorreto de encontrar-se,

junto com outros indícios de hipercorreção (o pronome o mesmo),

está no aviso aposto em milhares de elevadores do Brasil:


Antes de entrar no elevador, veri que se o mesmo encontra-se parado
no andar. Lei nº 9.502/97
Escrito em perfeito juridiquês, ou seja, na linguagem empolada dos

textos legais, linguagem que muito frequentemente prima pela

hipercorreção, o anúncio mais complica do que alerta. Bastaria

escrever: “Antes de entrar no elevador, veri que se ele está parado

no andar”.

Exemplos do uso hipercorreto de encontrar-se:

Gostaria de uma informação de algum especialista quanto a etapa em


que encontra-se meu processo trabalhista referente a Horas Extras.
O meia Marco Aurélio Barbosa encontra-se desaparecido desde sábado
23/04/2011.
Acervo Virgílio Távora encontra-se disponível para pesquisas no Arquivo
Público do Estado do Ceará.
Na busca da clareza e da simplicidade de expressão, vamos tentar
reservar o verbo encontrar-se para as seguintes situações:
• quando o se for um pronome-sujeito inde nido: “Aqui se encontra os
melhores bolinhos de bacalhau da cidade” “Aqui [a gente] [você]
encontra os melhores bolinhos de bacalhau da cidade”.
• quando se for um pronome re exivo: “Presidente francês encontra-se
com o primeiro-ministro chinês”.

Nas demais situações, vamos evitar “escrever di cil” e empregar o

bom e velho estar, que é um dos privilégios da nossa língua, que

diferencia ser de estar, enquanto tantas outras têm um único verbo.

3. ONDE
A palavra onde vem passando por um processo chamado

discursivização, que é quando uma palavra se esvazia de seu


conteúdo semântico original (seu signi cado) e passa a servir como

mero organizador do discurso falado ou escrito. É fácil veri car isso

quando observamos alguns usos frequentes de onde. Num material

que reuni para uma pesquisa, formado exclusivamente de textos

escritos por professoras e professores em formação ou já na ativa,

encontrei diversos exemplos desses usos:

Muitos pro ssionais se recusam a enxergar a língua falada e escrita


como meio para comunicação e expressão entre os falantes, onde
esses, ao fazerem uso dessa língua, não vão sequer lembrar das
terríveis aulas de decoreba.
E tempo de novas prá cas pedagógicas, de professores que venham
enxergar um novo horizonte, onde temos de que mostrarmos a
verdadeira importância de falar, aplicar e valorizar a nossa língua
materna como ela é, um tesouro de cada um, independente de onde
veio ou da família a quem pertence, que cada indivíduo tem sua parcela
de contribuição para superarmos os desa os e di culdades que a
educação da nossa língua materna precisa vencer.
Em uma sociedade que não houvesse normas, o caos já teria tomado
conta da situação. A regulação quer seja social ou linguís ca é feita
através de inúmeros fatores, quer sejam “ascendentes ou
descendentes” que obje vam centrar a realidade linguís ca ou social
em um padrão aceitável, onde a cidadania e a comunicação possam
chegar ao obje vo.
A palavra onde, nesses exemplos, tenta organizar um discurso

escrito di cilmente organizável, na medida em que revela um

domínio de ciente das convenções da escrita formal. Na tentativa de

elaborações teóricas, os textos produzidos não esclarecem o que de

fato pensa o(a) autor(a) acerca das questões tratadas. O emprego de


onde em tais textos é sintoma de pouca familiaridade com essa

modalidade de escrita.

Revelando-se como um indício de domínio insu ciente da escrita


formal, a palavra onde deve ser reservada exclusivamente para a
função de pronome/advérbio de lugar, com referência clara a algum
lugar (concreto ou gurado) que foi mencionado imediatamente antes.

4. CONCORDÂNCIA DE HAVER/TER/FAZER IMPESSOAIS


Na língua falada espontânea, onde o verbo haver praticamente

deixou de existir, é o verbo ter que desempenha quase

categoricamente a função dita “existencial”. E em muitas ocasiões

podemos ouvir a concordância indevida, como nos exemplos abaixo,

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de língua falada, coletados no corpus do NURC-Brasil :

eu noto que an gamente nham lmes mais assim… com maior


conteúdo
e então nós jogávamos também, nham mais dois casais…
Também em textos escritos é possível encontrar a concordância

hipercorrigida:

A nadíssimo com as mais recentes pesquisas arqueológicas e


antropológicas, passa longe dos preconceitos de que não podem haver
ideias dignas desse nome na mente dos “primi vos” […].
Mas informações da área de saúde pública dão conta de que no mês de
julho e nos primeiros dias de agosto não houveram casos de dengue
em Iporá.
É necessário, portanto, ter sempre em mente que esses verbos:
• como “existenciais”, se mantêm sempre no singular,
independentemente de virem seguidos de elementos no plural: nha
muitas pessoas no evento; houve problemas; havia questões para
resolver etc.
• como verbos auxiliares, concordam com o sujeito do verbo principal:
eu tenho viajado; nós nhamos saído; elas haviam telefonado; se
vocês vessem chegado antes etc.
• como verbo pleno, ter, obviamente, concorda com o sujeito: nós
nhamos uma casa de praia; eles veram problemas com o carro etc.

O mesmo vale para o verbo fazer quando usado para se referir a

medidas de tempo: ele é impessoal e deve car sempre no singular:

• Faz dez anos que minha família se mudou para São Paulo.
• Já fazia dois meses que Jandira não recebia no cias de João.
• Ontem fez quinze dias que comecei no emprego novo.

5. TRATAR-SE DE
A locução tratar-se de é uma fórmula xa. Ela é impessoal ou, se

preferirmos, traz seu sujeito devidamente cristalizado, um sujeito

indeterminado: se (“a gente trata de”). O importante é que ela só é

empregada no singular. A concordância com substantivos no

plural representa uma regra inexistente: a concordância do verbo

com seu complemento! A presença da preposição de bloqueia

qualquer tentativa de concordância. É pouco provável que alguém

escreva “precisam-se de soluções rápidas para o problema do

saneamento na cidade”, já que o sujeito, aqui também, é se, singular.

Pode ser que o excesso de concordância seja motivado pela regra

gramatical que insiste em nos exigir o plural em ocorrências como

“alugam-se salas”, muito embora a linguística brasileira já tenha

provado há mais de um século que essa concordância é irracional e

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ilógica .

O receio de “errar” na concordância leva muitas pessoas, inclusive

indivíduos altamente letrados, a atingir o efeito contrário: erram no


momento em que exionam o verbo no plural:

Tratam-se de espécies de rostro no, tão ou mais longo que o corpo,


fortemente recurvado do meio para o ápice; fêmures armados de
robusto dente em baixo.
Tratam-se de recursos interposto contra sentenças prolatada no Juizado
Especial Federal Cível desta Seção Judiciária, que declarando a
prescrição quinquenal, julgou parcialmente procedente o pedido de
pagamento de diferenças decorrentes do salário-maternidade
requerido fora do termo legal pela segurada especial (rurícola), com
correção monetária pela tabela do Conselho da Jus ça Federal desde a
data do parto, tomando-se como base de cálculo o salário mínimo
daquela época, além do acréscimo de juros de mora de 1% (um por
cento) ao mês, desde a citação.
observe-se aqui o pico linguajar jurídico que, muitas vezes, de tão
empolado, incorre em erros: no caso, o plural de “trata-se de” e, logo a
seguir, a não concordância de “recursos” com “interposto” e de
“sentenças” com o adje vo “prolatada”.
Tratam-se de regras básicas sobre o fundamento e a forma de atuação
do Ministério Público.
Entre os pontos que foram pouco ou mal cobertos pela Folha, alguns
até ignorados por ela nesse episódio, destacam-se os que se seguem.
Em primeiro lugar, a mo vação dos fraudadores, até agora não é
sa sfatoriamente inteligível. Ou se tratavam de uns completos
trapalhões ou alguma coisa ainda precisa ser revelada sobre as razões
que os levaram a cometer ato tão desastrado.
Agora empregue a vírgula antes do que nos casos necessários por se
tratarem de frases explica vas.
Outro equívoco é tentar atribuir um sujeito à locução tratar-se de:
Mas por essa matéria já ter sido colocada e re rada várias vezes do
ensino, muitas pessoas nem sabem do que se trata a Sociologia, e é por
não saberem que eles acabam menosprezando essa matéria tão
interessante, e algumas pessoas até ques onam os formados em
sociologia.
CEE x MEC — A nal, do que se trata essa briga?
Este livro trata-se de uma introdução às RI. A preocupação do autor foi
exclusivamente com o leitor que inicia-se na nova formação ou está
interessado em compreender as facetas do mundo atual.
Em síntese, é preciso saber que tratar-se de:
• é uma locução impessoal, ou seja, não tem sujeito;
• é um sintagma que introduz complementos oblíquos, ou seja, seu
verbo não tem por que concordar com esses complementos;
• em sentenças interroga vas (diretas ou indiretas), a fórmula correta
é:
Sociologia: do que se trata?
O diretor te chamou com urgência, mas não me pergunte do que se
trata, porque eu não sei.

Por m, tratar-se de com muita frequência signi ca simplesmente

ser. Assim, sempre em busca de um estilo mais claro e menos

afetado, podemos sugerir que, quando existir essa equivalência, se

pre ra sempre o bom e seguro verbo ser:

• Do que se trata a Sociologia? O que é a Sociologia?

• Este livro trata-se de uma obra de referência Este livro é uma obra de
referência.

• *A nal, do que se trata essa briga? A nal, que briga é essa? / Por
que essa briga? / Qual o mo vo dessa briga?
6. CONCORDÂNCIA INDEVIDA EM ORAÇÕES CLIVADAS (É
… QUE)
Leia com atenção os seguintes exemplos:

“Não pago, não pagaria. Espaço público não é mercadoria”. Foram com
essas palavras de ordem que mais de duas mil pessoas protestaram
ontem à noite contra a cobrança de R$ 4 para cada quatro horas de
estacionamento nos shoppings de Aracaju.
São de pessoas assim que o mundo precisa para ser melhor. Pessoas
convictas de que o bem é sempre a melhor escolha e que sem ele não
se pode ser feliz.
Não foram as conversas. Não foram os beijos. Não foram os abraços.
Muito menos suas ligações. Não foram as noites mal dormidas
pensando em você, não foi. Não foram as trocas de olhares, muito
menos sua respiração ao pé do meu ouvido. Não foram as canções que
você mandava, nem muito menos as que você costumava cantar para
mim. Não foram as tenta vas de descrever você nos meus textos pra
complementar o que deixei de dizer quando você me deixou sem
palavras. Não foram pelos passos que você conduziu nas nossas
danças. Não foram pelos sorrisos que você conseguiu arrancar de
mim. Não foi pela saudade que você deixou quando se foi, nem pela
felicidade de quando chegou, porque não foi. Não foi por você que
comecei a colecionar meus melhores sonhos, nem foi pelo suspiros
pela manhã. Não, não foi… Não foi! E que se for preciso repito quantas
vezes forem necessárias para me convencer de que não foram por
esses mo vos que me apaixonei por você.
Estamos aqui numa situação parecida com a que vimos logo acima,

com a locução tratar-se de: a concordância indevida do verbo ser

com um complemento, analisado erroneamente como sujeito.


Quando queremos dar ênfase a um determinado elemento do que

vamos expressar, podemos recorrer ao que se chama de clivagem. O

verbo clivar signi ca “fragmentar, separar”. Uma sentença clivada é

aquela que resulta precisamente da separação, do destaque que

queremos dar a um elemento do enunciado:

Na sentença clivada, o complemento “alemão” é topicalizado, isto é,

trazido para a frente, para o início do enunciado, a m de ser

enfatizado. A sentença clivada, portanto, tem um efeito pragmático

bem claro, que é o de trazer para o primeiro plano a informação

principal do enunciado. Para isso, é preciso romper com a

neutralidade da sentença em sua ordem habitual, direta.

Na sentença clivada em que ocorre um complemento, o verbo ser

deve permanecer sempre no singular, porque nesse caso ele é

unipessoal, ou seja, só se conjuga na 3a pessoa, exatamente como

vimos com tratar-se de.

Num excesso de zelo por não ferir as regras de concordância verbal

— que, como sabemos, são as que mais atraem a atenção dos falantes

letrados, que se servem dela para discriminar os que “falam errado”

—, muitas pessoas conjugam o verbo ser das sentenças clivadas no

plural, estabelecendo uma concordância não prevista pela

gramática da língua (nem pela gramática intuitiva do falante nem

pela gramática normativa!). Assim, as construções corretas são:

Foram com essas palavras de ordem que mais de duas mil pessoas
protestaram
Foi com essas palavras de ordem que mais de duas mil pessoas
protestaram
São de pessoas assim que o mundo precisa para ser melhor
É de pessoas assim que o mundo precisa para ser melhor.
Não foram pelos passos que você conduziu nas nossas danças. Não
foram pelos sorrisos que você conseguiu arrancar de mim.[…] não
foram por esses mo vos que me apaixonei por você
Não foi pelos passos que você conduziu nas nossas danças. Não foi
pelos sorrisos que você conseguiu arrancar de mim. […] não foi por
esses mo vos que me apaixonei por você.
É necessário, portanto, car atento a essas construções. Um claro

sinal de que a concordância não deve ser feita é a presença frequente

de uma preposição depois do verbo ser: se tem preposição, o

elemento a seguir só pode ser um complemento, jamais um sujeito:

● Foi com esses amigos que passei o Ano Novo.


● É para os Estados Unidos que a Janete vai se mudar.
● Foi por essas e outras que ela abandonou a carreira de atriz.
● Era das novas contratações que a diretora estava falando.

7. PARTICÍPIOS PASSADOS IRREGULARES


Os particípios passados são aquelas formas verbais terminadas em

-ado e -ido: tinha comprado, teria perdido, tínhamos vendido.

Também podem funcionar como substantivos — as deputadas, os

empregados, a subida — e, principalmente, como adjetivos: roupas

passadas, carros vendidos, lucro garantido etc.

Ao lado das formas regulares terminadas em -ado e -ido, existem

alguns particípios passados irregulares, com formas próprias: feito,

dito, escrito, visto, aberto… Além desses, existem verbos que

apresentam duas formas de particípio passado — na gramática eles


recebem o curioso nome de verbos abundantes. Os de uso mais

frequente são os seguintes:

PARTICÍPIO PARTICÍPIO
INFINITIVO
REGULAR IRREGULAR
aceitar aceitado aceito
acender acendido aceso
eleger elegido eleito
entregar entregado entregue
envolver envolvido envolto
enxugar enxugado enxuto
expressar expressado expresso
exprimir exprimido expresso
expulsar expulsado expulso
ex nguir ex nguido ex nto
ganhar ganhado ganho
gastar gastado gasto
imprimir imprimido impresso
juntar juntado junto
limpar limpado limpo
matar matado morto
morrer morrido morto
pagar pagado pago
pegar pegado pego
prender prendido preso
salvar salvado salvo
soltar soltado solto
suspender suspendido suspenso

Uma crença muito difundida é a de que, diante de duas formas

linguísticas com o mesmo signi cado, aquela menos regular, mais

distante dos usos espontâneos, é a mais correta ou mais so sticada.


Essa crença é responsável, como já vimos, por muitos casos de

hipercorreção que acabam levando a pessoa a cometer um erro.

Muita gente acha que as formas regulares dos verbos acima devem

ser evitadas — no lugar delas é preciso empregar as formas

irregulares. Alguém certa vez quis me corrigir quando eu disse que

já tinha pagado uma conta: “Não é pagado, é pago!”.

Observe que a maioria dos particípios irregulares dos verbos acima

são empregados unicamente como adjetivos: ninguém diria, por

exemplo, “ele já tinha limpo o chão depois da festa”, mas limpado.

Com outros verbos, porém, muito frequentes, a hipercorreção leva

algumas pessoas a empregar quase unicamente esses particípios

irregulares: tinha pago a conta, tinham aceito o convite, teriam

entregue o relatório, se tivesse salvo o arquivo… Esses usos já estão

consagrados, não há nada de errado com eles. O problema é

acreditar, sem razão, que somente eles estão corretos — o que não é

verdade. É perfeitamente legítimo, aceitável e conforme à gramática

da língua dizer tinha pagado a conta, tinham aceitado o convite,

teriam entregado o relatório, se tivesse salvado o arquivo… Não tem

por que torcer o nariz para eles!

Ainda sobre a combinação de particípio passado irregular com

hipercorreção, cabe falar de algumas inovações que surgiram há

pouco tempo e, por isso, sofrem a condenação unânime da maioria

dos falantes mais letrados.

Por impulso de um fenômeno chamado economia linguística, os

falantes tendem a regularizar os paradigmas linguísticos,

eliminando as formas irregulares e reconduzindo-as às formas

analógicas, mais fáceis de armazenar na memória. Incontáveis

particípios irregulares do latim se transformaram em particípios


regulares em português: cultu- > colhido; surtu- > surgido; o ertu- >

oferecido etc.

No entanto, uma das principais características da hipercorreção é

precisamente exagerar na formação irregular de elementos

linguísticos, movimento que vai na contramão da tendência, mais

natural, de regularização.

Assim como, não faz muito tempo, surgiu o particípio passado

irregular pego para o verbo pegar (e que era censurado como “erro”

pelos gramáticos e dicionaristas até a década de 1950 e hoje é aceito

alegremente por todo mundo), atualmente é comum ouvirmos as

formas trago e chego como particípios irregulares dos verbos trazer

e chegar. Se tais formas vencerão a barreira social e se instalarão

nas variedades urbanas de prestígio — tal como aconteceu com

pego — é algo que só o tempo dirá. Por ora, os falantes mais letrados

parecem rejeitar esses particípios irregulares, e a pessoa que os

emprega pode sofrer pesada recriminação. As únicas formas aceitas

são trazido e chegado, perfeitamente regulares.

8. “O MESMO” COMO PRONOME


Poucos fenômenos de hipercorreção caracterizam tão bem a

insegurança linguística e o domínio insu ciente da escrita formal do

que o uso pronominal de o mesmo (e exões). Em praticamente

todos os casos em que aparece é possível não empregar pronome

algum ou empregar o pronome ele (e exões).

Justamente por nunca ocorrer espontaneamente na língua falada é

que o mesmo se tornou ( unto com o qual, que vamos ver adiante)

esse sintoma tão eloquente da hipercorreção e da insegurança

linguística. E, como sempre, por ter essa origem é que seu uso
ocorre em textos truncados, francamente mal escritos, confusos.

Observe:

Na noite de ontem, 29, quarta-feira, por volta das 21h15min a equipe


Polícia Militar estava em patrulhamento quando avistou um homem em
a tude suspeita; foi dado voz de abordagem para o cidadão e o mesmo
se recusou a colocar a mão na cabeça, vindo a dizer que não aceitaria a
abordagem da equipe policial. Ao ser indagado sobre a tornozeleira, o
mesmo disse que não sabia do que era e que era para equipe procurar
no sistema quais seriam os seus antecedentes; disse ainda que estava
fumando e que não largaria o cigarro por causa de uma “abordagem de
merda” e que a equipe não poderia realizar abordagem nele porque o
mesmo não nha nada de errado, e que já pagou tudo que “devia”.
Após algumas tenta vas o mesmo disse o nome, foi solicitado apoio,
onde o indivíduo recebeu voz de prisão. Ele se recusou e entrou na
residência e dizendo que não sairia. Na residência se encontrava sua
mãe, onde relatou que o lho estava dando muito trabalho e que era
pra equipe levar o mesmo preso; foi necessário a u lização do uso da
força para contê-lo, no momento em que a equipe foi colocá-lo no
camburão o mesmo se recusou a entrar, voltando a desacatar os
policiais; após alguns minutos resis ndo a equipe conseguiu conter o
indivíduo; o mesmo foi encaminhando para a sede da 2ª Cia para a
lavratura do presente bole m, posteriormente ao Hospital Santa Casa
para realização do laudo de lesão e após para 14ª DRP para os
procedimentos cabíveis.
O texto, literalmente, fala por si e dispensa comentários, a não ser o

de que se trata de um perfeito desastre segundo qualquer critério

usado para avaliar uma redação minimamente aceitável. Como

acontece frequentemente, o uso pronominal de o mesmo é o indício

mais claro de um fraco domínio da escrita formal: no mesmo texto

aparecem erros de concordância (“foi dado voz de abordagem” em


lugar de “foi dada voz de abordagem”, “foi necessário a utilização”

em lugar de “foi necessária a utilização”), uso inadequado de onde

(“foi solicitado apoio, onde o indivíduo recebeu voz de prisão”), além

de um pleonasmo como “foi necessário a utilização do uso da força”.

Como eu já disse mais acima, escrever bem não é escrever complicado,


porque sob essa complicação o que se esconde quase sempre é a
imperícia na produção textual. Prova disso é que o uso pronominal de o
mesmo pra camente nunca ocorre nos textos dos nossos melhores
escritores, tradutores, jornalistas, ensaístas etc. É uma das mais
enferrujadas das medalhas enferrujadas resultantes da hipercorreção:
brilho falso, falsa elegância, rebuscamento oco e desnecessário.

Já mencionei, ao tratar do verbo encontrar-se, do aviso que aparece

em tantos elevadores do país: “veri que se o mesmo encontra-se

parado no andar”. Bastava um simples ele: “Antes de entrar no

elevador, veri que se ele está parado no andar”. Não por acaso, um

aviso emitido por uma câmara legislativa em juridiquês típico.

Sendo assim:

Não bata o portão: o mesmo se fecha automa camente.


Não bata o portão: ele se fecha automa camente.
Esta praça é de todos nós: ajude-nos a conservar a mesma sempre
bonita.
Esta praça é de todos nós: ajude-nos a conservá-la sempre bonita.
Foi encontrado um veículo abandonado à margem da estrada. Havia
drogas no interior do mesmo.
Havia drogas em seu interior / no interior dele / no interior.

9. EQUÍVOCO DE ANÁLISE DE OS/AS COMO SUJEITO


Se existe uma coisa que é possível a rmar sobre o português

brasileiro sem medo de cometer engano é que, nessa língua, os

pronomes oblíquos o/a/os/as não fazem parte da gramática intuitiva

dos falantes. O emprego desses pronomes, muito raro, é fruto

exclusivo da escolarização. Assim, os textos escritos formais (e a fala

formal que se inspira neles) são o principal lugar de emprego dos

oblíquos o/a/os/as. Não resta dúvida de que cabe, sim, à escola

continuar ensinando esse emprego, uma vez que esses pronomes

contribuem para a manutenção da coesão textual e dão ritmo mais

uente ao texto.

É preciso, no entanto, ter cuidado com esses pronomes: justamente

por não pertencerem à nossa intuição linguística, é comum

ocorrerem análises sintáticas equivocadas, em que os/as, que

desempenham única e exclusivamente a função de objeto direto,

são interpretados como sujeito do verbo que os acompanha:

Quem anda em pecado é escravo, pois teme todo o tempo que alguém
o descubra. Eles cam tensos, e se você, por acaso, dizer-lhes que os
viram em algum lugar, gaguejando, ou cando ruborizados, inventam
logo uma jus ca va.
o sujeito é você, portanto, o correto seria “se você, por acaso, lhes
disser que os viu…”.
Vamos ajudar o Zac Efron a beijar a sua namorada para disfarçar e se
esconder do paparazzo que os perseguem.
o sujeito é paparazzo, singular, portanto o verbo também deve estar
no singular: “o paparazzo que os persegue”.
Obviamente que estas fantasias, que inclusive já começaram a ser
reproduzidas, não serão da mesma forma que seriam anteriormente ao
incêndio que as destruíram, pois é humanamente impossível refazer
um trabalho de quase um ano em menos de trinta dias.
sujeito: incêndio, portanto: “ao incêndio que as destruiu”.
Muitas destas pessoas nem dão con nuidade num centro de prá ca
séria, e vão embora depois de uma, duas — algumas — visitas. Outras
pessoas, depois de algumas sessões de meditação, sen ndo algum
alívio do problema imediato que as trouxeram até o zazen, já relaxam
os seus ques onamentos.
sujeito: problema imediato; portanto: “problema imediato que as
trouxe”.
Nos úl mos dias, em Adelaide (Austrália), foi anunciada uma nova
medicação a ser comercializada ainda este ano com um fator de
crescimento natural, o GM-CSF, que protege embriões ar cialmente
implantados no útero materno e os tornam mais resistentes.
sujeito: um fator de crescimento natural; portanto: “e os torna mais
resistentes”.
Desse modo, sempre que você for usar os pronomes os/as cuide para

que o verbo que vem depois deles esteja em concordância com o

sujeito, e não com esses oblíquos:

10. VOSSO
Sabemos que o pronome vós não existe praticamente mais em

nenhum lugar do mundo onde se fala português, seja na Europa, na

América, na África ou na Ásia. Em Portugal, é empregado numa

pequena região e, mesmo assim, censurado pela norma-padrão do

português europeu. Junto com o sujeito vós, também se

extinguiram o clítico vos, o complemento oblíquo convosco e o


possessivo vosso (e exões). Essas formas extintas só estão

preservadas em textos parados no tempo como orações tradicionais,

hinos religiosos ou cívicos, traduções clássicas da Bíblia etc.

Não há motivo nenhum, portanto, para que as pessoas usem o

possessivo vosso hoje, no Brasil, em pleno século 21. Mesmo quando

alguém — por pura afetação ou por rigidez de protocolo — emprega

as formas de tratamento do tipo Vossa Excelência, Vossa Eminência,

Vossa Senhoria etc., o possessivo referente a tais formas é seu (e

exões): “Vossa Excelência pode ocupar o seu lugar à mesa, por

favor”.

Quando se trata de você(s) ou o senhor/a senhora (e plurais),

também o possessivo adequado é seu/sua/seus/suas e não vosso.

11. O QUAL
Ao lado do uso de o mesmo como pronome, um dos mais nítidos

índices de insegurança linguística e, por conseguinte, sintoma de

hipercorreção, é o emprego do pronome relativo o qual (e exões).

Existe, na nossa pedagogia de língua, uma série de prescrições que

se cristalizaram sem nenhum motivo que as sustente. Uma dessas é

a mania que muitas e muitos docentes têm de dizer a seus alunos

que é preciso evitar a palavra que, sem, no entanto, oferecer

alternativas adequadas para evitar o que. A única coisa que se

costuma dizer é que, no lugar do que, é possível usar o qual. O

resultado disso é que, junto com as demais marcas de hipercorreção,

esse pronome relativo aparece repetidas vezes num mesmo texto e,

quase sempre, de modo errado.

O pronome o qual pode ser empregado quando o verbo da oração

adjetiva é transitivo indireto e seu complemento é recuperado pelo


pronome relativo, combinado com a preposição regida pelo verbo:

● A China é um país com o qual o Brasil mantém um intenso comércio.


● A ponte pela qual passamos ontem foi levada pela enxurrada.
● O telefone celular hoje em dia é um apetrecho sem o qual muita gente
não consegue viver.
● O avião no qual viajamos era novo em folha.
Quando a preposição é monossilábica, também é possível empregar

o relativo que:

● A China é um país com que o Brasil mantém um intenso comércio.


● A ponte por que passamos ontem foi levada pela enxurrada.
● O avião em que viajamos era novo em folha.
Esse emprego de + , no entanto, é característico de

um estilo mais caprichado, sobretudo literário: o mais comum é

mesmo + .

Sendo assim, é preciso abandonar a prescrição incompleta de

“evitar o que” e apresentar aos alunos opções realmente válidas para

a construção de seus textos. A ideia de substituir todo e qualquer

que por o qual só gera resultados como os seguintes:

É estranho sen r saudade de algo o qual mal vivi ou evitava viver.


Eu aluguei um imóvel o qual fui morar com meus pais já idosos.
Enfarto: O lado o qual muitos desconhecem ou ngem não exis r
consigo.
Kleberson retorna ao Atlé co-PR, clube o qual o revelou para o futebol
Chegamos a um ponto o qual eu nunca imaginei chegar
Um fato o qual não posso deixar de registrar!
Caso que chocou o País, o qual uma criança foi arremessada pela janela
de seu quarto, aparentemente pelos pais, e morreu ao a ngir o solo.
A empresa o qual você está conhece bem o mercado e as estratégias
dos concorrentes?
O trabalho se fez necessário, pois sem o qual não havia como chegar
até a escola.
Em todos os exemplos acima, o pronome o qual está empregado de

forma completamente equivocada. O que mais surpreende é a falta

de percepção das pessoas de que o qual é variável em gênero e em

número: muitos empregam a forma masculina singular para

qualquer referente:

● a empresa o qual você está a empresa na qual você está

● uma cidade o qual muitos admiram uma cidade que muitos admiram

● lugares o qual nunca es ve lugares nos quais nunca es ve

● TV para o qual trabalha TV para a qual trabalha


Outro emprego também equivocado é o de o qual como sujeito,

quando não há nenhuma ambiguidade presente:

Kleberson retorna ao Atlé co-PR, clube o qual o revelou


clube que o revelou
De igual modo, o emprego desnecessário de o qual como objeto

direto:

● saudade de algo o qual mal vivi saudade de algo que mal vivi

● Enfarto: O lado o qual muitos desconhecem o lado que muitos


desconhecem

● Um fato o qual não posso deixar de registrar um fato que não posso
deixar de registrar
E, por m, os casos mais frequentes: o emprego de o qual sem a

preposição regida pelo verbo ou pelo nome que o relativo retoma:

● aluguei um imóvel o qual fui morar aluguei um imóvel no qual fui


morar

● Chegamos a um ponto o qual eu nunca imaginei chegar um ponto ao


qual nunca imaginei chegar
● Caso que chocou o País, o qual uma criança foi arremessada pela janela
de seu quarto caso no qual/em que uma criança foi arremessada
Ocorrem também situações em que o emprego de o qual se faz do

mesmo modo que vimos acima com onde, ou seja, como um

reorganizador do discurso, um marcador conversacional, e não

como um pronome de fato:

● Cobrança de serviço o qual foi dito que não seria cobrado cobrança
de serviço que disseram que não seria cobrado
● O trabalho se fez necessário, pois sem o qual não havia como chegar
até a escola pois sem ele não havia como chegar até a escola.
Um pouco de análise gramatical não faz mal a ninguém, pelo

contrário:

Limpeza é item com o qual o consumidor mais se importa


que termo da sentença o qual retoma?
R.: Item.
por que se empregou o qual no masculino nessa sentença?
R.: Porque ele retoma item, que é masculino singular.
por que antes do pronome aparece com?
R.: por causa do verbo importar-se: quem se importa, se importa com
alguma coisa.
se no lugar de item véssemos coisa, como caria a sentença?
R.: Limpeza é coisa com a qual consumidor mais se importa.

As gramáticas nos ensinam que é preciso usar o qual quando, numa

frase, existirem dois elementos que podem ser recuperados pelo

pronome relativo; para evitar ambiguidade, usa-se o qual para

retomar o que estiver mais próximo:

O principal adversário do prefeito, o qual esteve hoje em nosso estúdio,


não aceitou nosso convite para um debate.
Para deixar claro que quem esteve no estúdio foi o prefeito, e não seu
adversário, usa-se o qual.
Casos assim, no entanto, são extremamente raros, e o mais

conveniente, sempre, é procurar escrever de forma a evitar possíveis

ambiguidades de interpretação. Desse modo, vamos reservar o qual

para os usos preposicionados que vimos acima.

12. NUM / NUMA / NUNS / NUMAS


Por algum motivo inexplicado (mais uma prescrição da escola?),

muitas pessoas recentemente têm evitado escrever num, numa etc.,

alegando que isso é “coisa da oralidade”. Está aqui em ação o

princípio da hipercorreção que apresentamos acima, agravado pelo

mito de que é possível “evitar marcas da oralidade na escrita” — se

evitarmos todas as marcas da oralidade na escrita, não poderemos

escrever mais nada, uma vez que a escrita é uma forma simbólica de

representar… a oralidade!

Podemos escrever à vontade em um, em uma etc. Só não devemos


alegar que essas formas são mais “elegantes” ou mais “corretas” do que
num, numa etc., que estão registradas na língua há mais de quinhentos
anos, usadas em toda a literatura da língua desde sempre! Além do
mais, tem uma grande incoerência aí: se ninguém escreve em ela, em o,
em esse, em aquela etc., por que dar esse tratamento somente ao
num?

13. “CUJO O”
Todas as pesquisas feitas sobre o pronome cujo deixam bem claro

que ele não faz parte da nossa intuição linguística, ou seja, seu uso é

uma regra gramatical que não pertence à nossa língua materna.

Justamente por isso, seu emprego é considerado di cil por muitas

pessoas.

Por causa dessa sua qualidade de “corpo estranho” na língua, cujo

frequentemente aparece em construções onde seu uso é totalmente

equivocado, mesmo quando feito por pessoas muito letradas:

Inventário, cujo o lho não concorda com o que tem para receber por
direito.
Nesse exemplo temos uma construção perfeitamente agramatical,

ou seja, inaceitável para a intuição linguística do falante nativo e,

também, errada do ponto de vista da tradição normativa. Sabemos

que cujo é um relativo indicador de posse: na sentença acima,

atribui-se um lho a “inventário”, o que não faz nenhum sentido.

Uma construção mais adequada seria algo como: “Inventário com o

qual um lho não concorda quanto ao que tem para receber por

direito”. Outro erro presente no exemplo é o emprego do artigo o

depois do relativo cujo. Mais uma vez, temos aqui um exemplo

extraído da linguagem jurídica na qual, na ânsia de escrever de

forma rebuscada e, se possível, hermética para o “leigo”, o que mais

encontramos é hipercorreção.

O problema é muito simples de enunciar: nunca se usa ar go depois


do pronome rela vo cujo (e exões).
Portanto, nos exemplos abaixo (todos em juridiquês), o emprego do

artigo é um erro:

Pode uma assembleia aprovar conta cujo o gasto de origem contraria a


Convenção?
Cer dões rela vas às empresas falidas ou em concordata devem ser
ob das junto aos Liquidantes Judiciais, cujo o endereço é Avenida Nilo
Peçanha n° 11, 3° andar - Castelo, Rio de Janeiro/ RJ.
Dívida cuja a existência é anterior à renovação do contrato.
Através do presente, cam no cados os senhores advogados e/ou
Rosálio Leopoldo de Souza, Valéria da Silva Fidélis (Adv. Reclamada),
das DECISÕES prolatadas no processo Nº 0000576- 88.2010.7.22.0001,
cujos os resultados e conclusões são os seguintes: RESULTADO:
JULGADO PROCEDENTE O PEDIDO

14. MEDIANTE
O verbo latino mediare (“mediar”) tinha como particípio presente,

no acusativo singular, a forma mediantem que, com a perda do -m

nal, resultou na palavra mediante do português.

O antigo particípio presente se gramaticalizou na preposição

mediante, com o sentido de “por meio de”, “graças a”, “através de”,

“por intermédio de” etc. No entanto, pela semelhança com diante,

muitas pessoas vêm empregando mediante com o sentido de “diante

disso”, “frente a isso” etc. Não existe nenhum parentesco entre

diante e mediante. Por isso, estão errados usos como os que

aparecem nos seguintes exemplos, onde o correto seria diante de,

devido a, por isso…:

Qual o nosso futuro mediante isso?


Através de busca em vários sites da internet, encontramos apenas
nomes de escolas e professores que atuam nesta área. Mediante isso
agendamos com uma professora do Departamento de Letras da
Universidade de Caxias do Sul — UCS — que nos orientou e forneceu
material para darmos início à pesquisa.
O estágio supervisionado tem como natureza o conhecimento da
aplicação dos conhecimentos teóricos pelas empresas. Mediante essas
caracterís cas, o NEA mantém em seu acervo materiais que são
pesquisados pelos alunos dos cursos envolvidos.

15. EMPREGO INCORRETO DA ÊNCLISE


Uma das mais persistentes e renitentes irracionalidades da tradição

gramatical brasileira é a condenação daquela que é, simplesmente, a

nossa regra única de colocação pronominal: a próclise ao verbo

principal, sobretudo em início de frase. Essa perseguição descabida

— e, repito, irracional — só tem como resultado fazer crescer a já

grande insegurança linguística de tantos brasileiros no trato com

sua língua materna, sobretudo em situações de maior formalidade

de linguagem.

Aqui é onde vemos mais claramente em ação o princípio da

hipercorreção que leva à ideia de que “se é assim que eu falo, então

deve estar errado”. Ora, se a próclise — o pronome antes do verbo —

é a única colocação pronominal intuitiva do brasileiro, quando ele

tiver de escrever um texto minimamente formal, vai recorrer quase

exclusivamente à ênclise (o pronome depois do verbo) — se ela é

contraintuitiva, deve ser, por essa distorção de raciocínio, a mais

“certa”.

Disso resultam textos pouco uentes, muitas vezes repletos de

problemas de toda ordem, mas com todos os pronomes oblíquos em


ênclise (quando não aparecem também as mesóclises, muito mais

estranhas ainda à nossa língua materna).

A ênclise em si não é nenhum problema. O problema está, como

sempre, nos usos hipercorrigidos, que não seguem nem a gramática

intuitiva do contemporâneo nem a tradição gramatical. São eles,

principalmente:

● A ênclise com verbos no futuro do presente e no condicional (futuro do


pretérito): Farei-te; daremos-lhe; poderia-se; convidará-me etc. A
tradição grama cal recomenda a mesóclise nesses casos (far-te-ei, dar-
lhe-emos, poder-se-ia, convidar-me-à etc.), mas todos sabemos que a
mesóclise simplesmente não existe na nossa língua, e mesmo os
manuais de redação das grandes empresas jornalís cas proíbem o seu
uso por parte dos redatores da casa. Para muita gente, a mesóclise
chega a ser ridícula e é usada para obter humor. A solução é explicitar o
sujeito: Eu te farei / Nós lhe daremos / Ele me convidará etc. Ou, de
modo igualmente válido, simplesmente iniciar a sentença com o clí co:
Te farei / Lhe daremos / Se poderia; Me convidará. Repe ndo: a
proibição de iniciar sentença com um pronome oblíquo é
absolutamente irracional e não tem apoio em absolutamente nenhum
argumento de ordem foné ca, morfológica, sintá ca etc. E nossa
melhor literatura, de cem anos para cá, já vem desobedecendo
alegremente a regra irracional.
● A ênclise com par cípio passado: nha permi do-lhe, havia convidado-
me, nhamos encontrado-a etc. A tradição grama cal recomenda o
oblíquo antes do verbo auxiliar (Pedro lhe nha permi do usar o carro;
Ela me havia convidado; Nós a nhamos encontrado etc.). Mas,
seguindo a regra única já citada, o clí co pode vir tranquilamente
interposto entre o auxiliar e o par cípio passado: Pedro nha lhe
permi do usar o carro etc. Essa colocação também já está consagrada
na escrita formal brasileira há muito tempo. Até uns cinquenta anos
atrás, era costume usar um hífen: Pedro nha-lhe permi do usar o
carro. Mas isso também já foi abandonado.
São portanto erradas as construções como as dos exemplos abaixos:
Primeiro recurso conhecido e dado-lhe provimento.
Encontrarei-me então no chão á procura de mim…
Segundo Mendes declarou à revista Veja e con rmou em entrevistas,
Lula teria ofertado-lhe “blindagem” na Comissão Parlamentar Mista de
Inquérito (CPMI) que apura o escândalo Cachoeira-Demóstenes-Delta.
O mo vo da proteção na CPMI teria sido o nanciamento feito por
Cachoeira de uma viagem a Berlim feita por Mendes em companhia de
Demóstenes. […] O “Mensalão”, que Mendes sustenta haver Lula
pedido-lhe para adiar, já foi objeto de sessões administra vas (com
par cipação de Mendes), quando se acertou até o tempo para
manifestação das partes.
Me parece que já passou da hora de nosso ensino de língua materna

abandonar esses medos infundados de errar no que não está errado

e assumir de vez o português brasileiro culto contemporâneo como

seu verdadeiro objeto de trabalho! Próclise para todos em todos os

lugares!

16. CONFUSÃO ENTRE VERBO CONJUGADO E INFINITIVO


VERBAL
Certa vez, recebi uma comovente mensagem de um “jovem

estudante de Letras” do estado do Tocantins. Ao falar de como a

ciência linguística tinha mudado sua vida, ele escreveu frases como

as seguintes: “eu nunca me sentir à vontade e seguro para falar”;

“apesar de gostar muito de lê”; “quando terminei de lê”; “infelizmente,

perdir meu precioso tempo”. Na mesma época, fui convidado a dar

uma palestra numa cidade do interior da Bahia. A pessoa que me

convidava escreveu: “você estar livre para discorrer o tema”. Mais

recentemente, numa rede social, encontrei duas postagens com os

seguintes dizeres: “Pode não dá certo, mas você só vai saber se


arriscar” e “Você acha ela bonita? Então click no link para vê como ela

era antes”.

A essa altura, você já percebeu (espero) a questão que vou tratar aqui

e que aparece já no título da seção. Vem ocorrendo uma confusão

por parte de muitas pessoas no momento de escrever verbos no

in nitivo e verbos conjugados. Como tudo o que acontece na

língua, essa confusão não é obra do acaso. A nal, se tantas pessoas

“erram” de maneira idêntica, tem que haver uma explicação lógica

para o “erro” — e, de fato, tudo o que se chama de “erro” em língua

tem uma razão de ser, tem uma explicação.

Para começar, é preciso ter consciência de que não é todo e qualquer

verbo que se deixa apanhar nessa rede. Os poucos exemplos dados

acima já nos permitem tirar pelo menos uma conclusão: o fato

ocorre quando o verbo conjugado tem uma forma que, na pronúncia,

é idêntica à do in nitivo. Esse caso se resume a poucos verbos:

crer/crê; dar/dá; estar/está; ler/lê; ver/vê. Poucos, sim, mas com uma

altíssima frequência de uso. Esses verbos estão conjugados no

presente, mas o mesmo fenômeno ocorre com verbos da 3a

conjugação no pretérito perfeito: ouvir/ouvi; sentir/senti;

corrigir/corrigi etc.

Ao responder ao convite para a palestra, chamei a atenção da pessoa,

que trabalhava na secretaria de educação do município, para o uso

que ela fazia da forma estar no lugar de está. Curiosamente, na

mensagem seguinte, ela agradeceu minha observação: “Obrigado,

professor, já corrigir”. O que para muitas pessoas seria motivo para

fazer uma piada e arrancar risos da plateia, para mim era um dado

de pesquisa importante, a con rmar minhas hipóteses.


No caso do estudante de Tocantins, a ocorrência de perdir em vez de

perdi (in nitivo: perder) revela também um fenômeno de

hipercorreção, ou seja, a tentativa de acertar sempre, exagerando

uma regra normatizada. As pessoas que confundem os in nitivos

com as formas conjugadas provavelmente já eliminaram de vez em

sua variedade linguística o som [r] do nal das palavras e,

principalmente, dos in nitivos verbais. Por isso, no momento de

escrever, e sabendo que em algumas ocasiões deve existir um r no

nal da palavra, elas escrevem essa letra sem ter muita certeza de

onde ela deveria aparecer.

Como tudo o que acontece na língua, estamos aqui na presença de

um fenômeno híbrido, no qual interferem traços da variedade

linguística do falante (a eliminação do [r] do nal das palavras na

pronúncia) e o sentimento de insegurança linguística que leva à

hipercorreção (escrita do r onde ele não deveria aparecer pelas

regras da ortogra a o cial).

Diversos estudiosos da fonologia, a ciência dos sons das línguas,

apontam para a existência, nas diferentes línguas do mundo, de uma

tendência à “sílaba ideal” — um conjunto de sons que segue a ordem

CVCV, isto é, consoante-vogal-consoante-vogal, como em cavalo. Por

que essa sílaba é ideal? Porque, do ponto de vista articulatório, é

melhor iniciar uma palavra com uma explosão/oclusão e terminá-la

com uma vogal, que é uma passagem livre do ar pela garganta e pela

boca. Analisando centenas de línguas diferentes, os pesquisadores

têm demonstrado que essa tendência se veri ca na história das

línguas. Algumas já atingiram esse ideal, como o japonês, o malaio, o

tupi entre várias outras, que não admitem encontros consonantais

nem palavras terminadas em consoantes. Veja que a palavra cruz foi


transformada pelos falantes de tupi em curuçá, assim como Brasil

em japonês é Burajiru.

Em muitas línguas também, o [r] pode se reduzir a uma simples

aspiração (um “sopro”) e, mais tarde, desaparecer. No inglês

britânico culto, por exemplo, o [r] em nal de sílaba ou de palavra

não é pronunciado, e o mesmo acontece em alemão. No francês, o [r]

dos in nitivos da conjugação mais comum, a que termina em -er,

não é pronunciado, de modo que parler (“falar”) se pronuncia parlê.

No catalão, todo [r] em nal de palavra é omitido. Em muitas

variedades do espanhol falado na América o [r] nal dos in nitivos

também cai, e o resultado são formas idênticas à do português

brasileiro como amá, cantá, esperá etc. Quando um mesmo

fenômeno ocorre em muitas línguas, é porque se trata de alguma

tendência natural que nós, seres humanos, deixamos agir no

momento de falar.

Tudo isso explica satisfatoriamente a confusão que já aparece em

textos formais entre dá/dar, está/estar, corrigi/corrigir etc. Por isso,

na hora de escrever, é importante estarmos atentos a isso. Como já

vimos em alguns casos de hipercorreção por aqui, um pouco de

análise linguística não faz mal a ninguém.

Vamos observar, por exemplo, o refrão da conhecida canção “Quem

te viu, quem te vê”, de Chico Buarque:

Hoje o samba saiu procurando você,


quem te viu, quem te vê,
quem não a conhece não pode mais ver pra crer,
quem jamais a esquece não pode reconhecer.

Re ita e responda: por que no segundo verso aparece vê e no terceiro


aparece ver?
Depois de verbos auxiliares, a única forma possível é o in nitivo,

escrito portanto com r no nal:

● Olga não vê a di culdade que vai enfrentar


mas

● Olga não quer ver a di culdade que vai enfrentar


● Olga não pode ver a di culdade que vai enfrentar
● Olga não consegue ver a di culdade que vai enfrentar
● Olga não parece ver a di culdade que vai enfrentar
● Olga não deve ver a di culdade que vai enfrentar
● Olga não sabe ver a di culdade que vai enfrentar etc.

17. TINHA FALADO / HAVIA FALADO


Os dois verbos empregados em português como auxiliares para a

formação dos tempos compostos são ter e haver. O verbo haver, no

entanto, já desapareceu da fala espontânea, tanto como auxliar

quanto como “existencial”, substituído por ter. Como auxiliar, ele

sobrevive, na escrita formal, em alguns poucos tempos compostos,

especialmente o chamado pretérito-mais-que-perfeito (havia falado,

havíamos chegado etc.).

É perfeitamente legítimo empregar o verbo haver como auxiliar na

formação dos tempos compostos. O que não é legítimo nem tem

justi cativa é a atitude, assumida recentemente por muitas pessoas,

de considerar que no pretérito-mais-que-perfeito composto só se

deve usar haver, como se formas do tipo tinha falado, tinha

comprado, tinham reagido etc. fossem menos “elegantes” ou mais

“coloquiais”. Não são: elas estão registradas há séculos na língua, e

na literatura moderna são de longe as mais empregadas.


Observe que vai ser di cil encontrar quem fale ou escreva “hei

viajado muito esse ano”, “eu haveria aceitado o convite” ou “às dez

horas vocês já haverão chegado a Brasília”. O uso auxiliar de haver

vai se con nando cada vez mais a alguns poucos tempos compostos.

Quem preferir usar “havia falado”, que à vontade, mas não tente

convencer ninguém de que “tinha falado” deve ser evitado, porque

não deve.

18. O PORQUÊ
Uma di culdade comum para quem escreve — incluindo

pro ssionais da escrita — é saber distinguir por que, por quê, porque

e porquê. A dica mais conhecida é de que, nas interrogações, se

escreve por que, separado, enquanto nas respostas se usa porque,

12
junto . Quando o que é a última palavra da frase, ele vem acentuado:

“Ele se aborreceu comigo sem me explicar por quê”.

Por sua vez, a palavra porquê é um substantivo e sempre vem

acompanhada do artigo o: “Ele não quis me explicar o porquê de seu

aborrecimento comigo”. E com muita frequência, como no exemplo,

vem seguido da preposição de, sozinha ou combinada com os artigos

(do / da / dos / das).

Talvez por causa da di culdade de distinguir entre por que e porque,

muitas pessoas vêm empregando, nas perguntas indiretas, a forma o

porquê, quando um simples por que bastaria:

Gostaria que o Banco Itaú me esclarecesse o porquê de meu CPF


constar no registro do SIS-Bacen
Gostaria que o Banco Itaú me esclarecesse por que meu CPF consta no
registro do SIS-Bacen.
Explique o porquê a Resistência Medicamentosa pode ser um processo
vantajoso.
Explique por que a Resistência Medicamentosa pode ser um processo
vantajoso.
[Para empregar “o porquê” teria sido necessário formular a frase assim:
“Explique o porquê da [ou de a] Resistência Medicamentosa poder ser
um processo vantajoso”. O uso de por que simpli ca a redação, além de
evitar prováveis erros.]
Meu boleto veio mais caro do que o anunciado no site da loja: pode me
explicar o porquê?
Meu boleto veio mais caro do que o anunciado no site da loja: pode
me explicar por quê?
O deputado quis saber o porquê seu voto não apareceu no painel
eletrônico.
O deputado quis saber por que seu voto não apareceu no painel
eletrônico.
[Aqui, novamente, teria sido necessário usar de e o verbo no in ni vo
passado: O deputado quis saber o porquê de seu voto não ter
aparecido no painel eletrônico.]
Em perguntas indiretas, portanto, a forma escrita que ocorre é

sempre por que, separado. Se for a última palavra da frase, por quê.

O uso de o porquê torna o texto desnecessariamente pesado, já que

exigiria, como vimos acima, o emprego da preposição de e a

reformulação do tempo verbal no in nitivo. Para que complicar?

Não há por quê.

19. USO DA PREPOSIÇÃO SOBRE À MANEIRA DO INGLÊS


O predomínio praticamente absoluto do inglês como língua de

comunicação mundial — algo que algumas pessoas têm chamado de

imperialismo linguístico — tem, entre outras consequências, a

impregnação de construções próprias daquela língua na


morfossintaxe de outras línguas, além, é claro, da adoção de

incontáveis palavras.

Recentemente, no Brasil, um dos resultados dessa “colonização”

gramatical é um uso da preposição sobre completamente estranho à

gramática do português. Trata-se, evidentemente, de uma tentativa

capenga de traduzir frases do inglês em que aparece a preposição

about. Embora em muitas circunstâncias seja possível traduzir

about por sobre, existem diversos usos muito especí cos de about

em inglês que não correspondem ao nosso sobre.

Em inglês, por exemplo, é absolutamente normal dizer: “Love is

about sharing all the good and bad moments in life”. Uma boa

tradução para isso seria: “Amar é compartilhar todos os bons e maus

momentos da vida”. Veja que nessa tradução simplesmente não

aparece nada no lugar do about inglês: o verbo é basta. Uma

tradução como “Amar é sobre compartilhar todos os bons e maus

momentos da vida” faz um uso da preposição sobre que não

corresponde a nenhuma das possibilidades autênticas previstas em

português.

Outro erro frequente na tradução do about inglês é o emprego de

trata-se de. Como vimos acima, trata-se de é impessoal, não admite

sujeito. No entanto, muita gente, ao querer traduzir about por trata-

se de, acaba caindo no erro de atribuir sujeito à locução do

português. Algo como: “Amar trata-se de compartilhar todos os bons

e maus momentos da vida”.

O escritor Sérgio Rodrigues censurou, com razão, esse uso de sobre

13
num texto intitulado: “Ser brasileiro é sobre imitar o inglês” . Ele

analisa esse uso equivocado de sobre como re exo na nossa baixa

autoestima cultural e, consequentemente, linguística. Essa


interpretação do fenômeno vai na mesma linha, me parece, da

de nição que venho dando aqui de hipercorreção: o desejo de

parecer mais “so sticado” que leva ao erro puro e simples.

Em muitas ocasiões, como lembra o mesmo Sérgio Rodrigues, é

possível traduzir “is about” por tem a ver com ou ter relação com.

Ele critica, por exemplo, uma pessoa que escreveu: “Liberdade não é

sobre transar na primeira noite, e sim sobre não querer transar e não

transar”. Muito melhor teria sido escrever: “Liberdade não tem a ver

com transar na primeira noite, e sim com não querer transar e não

transar”.

Hipercorreção com colonização linguística é um problema em dose

dupla para a boa produção de textos escritos formais. Se na prática

da tradução esse uso de sobre à inglesa é dispensável, porque em

tudo contrário às regras da língua, ainda pior é fazer esse uso

diretamente em português, como numa musiquinha bem autoajuda

que andou circulando um tempo atrás:

Não é sobre ter todas pessoas do mundo pra si


É sobre saber que em algum lugar alguém zela por
É sobre cantar e poder escutar mais do que a própria voz
É sobre dançar na chuva de vida que cai sobre nós…

O que vai na contramão da gramática do português são esses é sobre

sem sujeito. Aqui caria mais adequada a locução trata-se de,

porque ela, sim, como vimos, é impessoal: “Não se trata de ter todas

as pessoas do mundo para si”.

Em inglês é muito comum a construção “X is all about”, que reforça o

“X is about”. Por exemplo, depois de explicar o que faz em seu

trabalho, uma pessoa pode dizer: “That’s what my job is all about”.

Um modo de traduzir isso seria: “É disso que consiste todo o meu


trabalho” ou algo semelhante. Nunca jamais: “Meu trabalho é sobre

tudo isso” — menos ainda: “Meu trabalho trata-se de tudo isso”.

Na conclusão, bem irônica, de seu texto, Sérgio Rodrigues escreve:

Vai ver que o errado sou eu e que um dia teremos de traduzir para o “sobrismo” diversas frases
famosas de nossa história: “Um país é sobre homens e livros” (Monteiro Lobato); “Governar é
sobre abrir estradas” (Washington Luís); “O mundo é sobre um moinho” (Cartola).

Na história do português, foram adotadas algumas construções

sintáticas vindas de outras línguas, especialmente do francês e do

espanhol. Mas são idiomas próximos, da mesma família, de maneira

que essas adoções não constituíram um “corpo estranho” na

gramática do português. O mesmo não se pode dizer desse uso de

sobre, que resulta, na verdade, de tradução malfeita e, muito

provavelmente, de uma subserviência ao que vem do centro do

império. Talvez isso garanta que a hipótese lançada por Sérgio

Rodrigues não se con rme e que o modismo passe logo.

20. O QUÃO
Um caso parecido com o uso do sobre “à inglesa” e também de o

porquê que já vimos é o da presença cada vez mais frequente em

textos escritos da forma o quão. Acredito que essa reaparição de um

advérbio que tinha desaparecido da prática escrita contemporânea

também se deve a traduções apressadas e capengas do inglês, neste

caso do advérbio how. Uma frase como “You don’t know how di cult

my life is” seria bem traduzida por “Você não sabe o quanto é di cil a

minha vida” ou “o quanto a minha vida é di cil”, ainda mais natural.

Traduzir por “o quão di cil é a minha vida” deixa um cheiro de mofo

no ar, além de estar errado. E assim como ocorre frequentemente

com os casos de hipercorreção, não corresponde aos usos correntes,

espontâneos, à fala autenticamente brasileira, mesmo das pessoas

ditas “cultas”. É pouco provável que numa conversa entre essas


pessoas, ainda que marcada por algum grau de formalidade, apareça

“o quão”. Já disse e repito: um texto escrito que tenha a uidez, o

ritmo e a naturalidade da fala é sempre um prazer para os olhos e

14
para os ouvidos, se lido em voz alta .

Da tradução ruim para a produção de textos diretamente mal

ajambrados em português foi um pulo. Seguem alguns exemplos:

Eleições nos EUA: O quão diferente seria um segundo mandato de


Trump (e por que essa perspec va assusta tanto seus crí cos)?
Mr. Perfect: O quão perfeito você é? [ tulo de um livro, evidentemente
{mal} traduzido!]
O quão efe vos são os mandatos de nanciadores para o acesso
aberto?
Não importa o quão bonita são as suas fotos ou o quão reais são as suas
citações, algumas pessoas nunca vão apertar o botão “CURTIR” só
porque é você.
O quão perigoso é o coronavírus comparado a outras doenças?
Quais são os problemas com esses exemplos?

O primeiro deles é que, no uso tradicional de quão em português,

especialmente em interrogações, não se emprega o artigo o, mas

apenas quão seguido do adjetivo: “quão diferente seria um segundo

mandato?”, “quão perfeito você é?”, “quão perigoso é o

coronavírus?”. Outro erro presente num dos exemplos é o modo

verbal: “não importa quão bonitas sejam as suas fotos ou quão reais

sejam as suas citações…”.

A forma o quão, com o artigo o, tem o valor de uma conjunção

integrante, isto é, que une duas orações:


A principal conjunção integrante é que e pode ser substituída por o

quão se o objetivo for intensi car o adjetivo:

Para usar o quão, com o artigo, é necessário, portanto, haver duas

orações que precisam ser “integradas”.

O segundo problema é que, como já adiantei, esse uso de [o] quão +

adjetivo foi abandonado há bom tempo na escrita literária,

ensaística etc. e é sentido pelos bons estilistas da língua como

“cafona”, antiquado, tanto quanto a mesóclise e palavras do tipo

outrossim, destarte, entrementes etc. A construção que se rmou

entre nós é o quanto + ser + adjetivo: “O quanto é perigoso o

coronavírus se comparado a outras doenças?”. Também é possível

ocorrer na fórmula o quanto + sujeito + ser + adjetivo: “O quanto o

coronavírus é perigoso se comparado a outras doenças?”. Também

como integrante: “Ele deixou claro o quanto cou decepcionado com

o resultado do trabalho”. Leia em voz alta: não soa mais natural?

De novo, a pergunta: para que usar uma forma antiquada — e, para

piorar, de maneira errada — se a língua moderna oferece modos

mais autênticos e espontâneos de dizer a mesma coisa? E por que

não traduzir diretamente para a nossa língua, em vez de tentar

“escrever português em inglês”?

21. GRATIDÃO
O caso que vamos abordar agora não é propriamente de

hipercorreção, mas faz parte de uma corrente atual de

posicionamento político que pretende destituir a língua de

expressões que supostamente trariam algum conteúdo racista,


machista, preconceituoso etc. Infelizmente, a falta de conhecimento

da história da língua acaba levando muita gente a condenar sem

razão o uso de palavras que nunca tiveram nenhuma conotação

negativa.

Um exemplo gritante dessa perspectiva distorcida é a etimologia

falsíssima da palavra aluno, que muitas pessoas dizem que signi ca

“sem luz”, quando na verdade, em latim, alumnus signi cava

“criança de peito, que está sendo amamentada” e, em sentido

gurado, “pessoa que está se alimentando de conhecimento”. Não

tem absolutamente nada na etimologia da palavra que remeta a

“falta de luz”. Em vez de repetir o que alguém diz ter ouvido de

alguém que ouviu o galo cantar sem saber onde, basta consultar

qualquer bom dicionário.

Parece que essa mesma interpretação equivocada atingiu a palavra

obrigado/obrigada, que é usada em português há mais de trezentos

anos como forma de agradecimento. Muitas pessoas alegam que a

ideia de “obrigação” é autoritária, indica opressão, subserviência ou

coisa assim. No lugar dela, tem gente que agora usa “gratidão”. Mas é

uma tentativa inútil de “reformar” a língua: existem fórmulas

idiomáticas que estão de tal modo enraizadas na cultura dos povos

que a falam que muito di cilmente deixarão de ser usadas para

serem substituídas por outras. E duvido que alguém vá ensinar

português a uma pessoa estrangeira dizendo que ela deve dizer

“gratidão” em lugar de obrigada.

Alguém pode ser cem por cento ateu e até antirreligioso, mas nem

por isso vai deixar de dizer “adeus” só porque nessa fórmula está

embutida a palavra “Deus” — a menos que a pessoa se policie o

tempo todo, o que torna seu uso da língua um verdadeiro fardo para

si mesma.
Será que vamos ter de desistir também do prático tchau? A nal,

essa palavra vem do italiano ciao que, por sua vez, deriva do

veneziano s’ciao, “escravo”, com a ideia de “pelo que você me fez eu

agora sou seu escravo”. Que outro nome vamos dar ao vermelho, que

deriva do latim vermiculu-, “vermezinho”? É que a tintura de cor

vermelha era obtida esmagando-se as larvas (os vermezinhos) do

inseto chamado cochonilha.

Temos de combater, isso sim, o emprego das palavras e expressões

que nos dias de hoje veiculam posturas racistas, sexistas,

homofóbicas, preconceituosas em geral. O que deve, sim, ser posto

em xeque e combatido é o hábito de chamar alguma coisa ruim ou

malfeita de “trabalho de índio”, é usar “mulherzinha” como termo

pejorativo (especialmente para se referir a meninos que não

encarnam o estereótipo do “macho”), é empregar o rótulo “coisa de

preto” com pesada conotação racista, en m, denunciar e combater o

recurso a toda uma grande quantidade de expressões que deixam

transparecer as opressões sofridas por tantas pessoas há tanto

tempo. Porque são essas que exercem violência simbólica (muitas

vezes acompanhada de violência sica) contra os mais diferentes

grupos sociais, são essas que têm força discursiva na consciência

atual das pessoas que se valem delas para agredir ou que são

agredidas por ela. Não faz sentido lutar contra traços culturais do

passado que, de tão passado, não dizem nada aos falantes atuais da

língua: quantas pessoas sabem que trabalho vem do latim tripalium,

um instrumento de tortura? Que rosto vem do latim rostru-, o bico

das aves, ou que testa em latim signi cava “vaso de barro”?

O mais grave é que, no caso de obrigado, nem sequer alguma coisa

negativa da cultura do passado a gente encontra.


Nosso verbo obrigar vem do latim obligare, formado de ob-, uma

preposição com o sentido (entre outros) de “diante de; com relação

a”, e de ligare, “ligar”. Seria então algo como “ligar uma coisa a outra,

vincular”. Embora o verbo obrigar tenha perdido esse sentido para

se tornar o que é hoje, o particípio obrigado conservou aquele

sentido mais remoto. Quando alguém dizia “obrigado”, a ideia

primitiva era: “pelo favor que você me fez, eu estou ligado a você por

um vínculo”, no caso, um vínculo de gratidão, de reconhecimento e,

por extensão, de favor a ser retribuído — tanto que a gente costuma

até dizer “ co te devendo essa” como forma de agradecimento. É

fácil ver que em obrigado a marca cultural que está embutida é a da

cortesia, a de uma forma de sociedade em que as pessoas cavam

ligadas entre si pelos favores que se prestavam mutuamente.

Esse sentido de obrigado como ligado pela gratidão está presente

em várias línguas. Em francês dizemos merci para agradecer; em

espanhol, gracias, semelhante ao italiano, grazie. Em inglês, usa-se o

verbo to thank: “thank you” ou “thanks”. Só em português é que se

generalizou entre o povo o agradecimento do tipo obrigado ou muito

obrigado. Mas em francês, numa linguagem mais formal, é possível

usar obligé com o sentido original da palavra: “Je vous suis très

obligé”, literalmente “eu vos sou muito obrigado”, ou seja, reconheço

o que você me fez e isso cria um vínculo entre nós. O mesmo se diz

em italiano com obbligato (e mesmo com obbligatissimo) e em inglês

com much obliged, que é a exata tradução do nosso muito obrigado.

São usos formais, ao contrário do nosso.

Por que abrir mão de um modo de expressão tão antigo e com uma

história tão bonita? Em nome de uma falsa interpretação

etimológica? Não, obrigado…


EM SÍNTESE…
Seria muito bom se pudéssemos abandonar a secular superstição de

que escrever é sempre sinônimo de “escrever di cil”. A desigualdade

social, que reserva a uma minoria o acesso a uma boa educação e,

com ela, à aprendizagem adequada da leitura e da escrita, pode estar

na origem dessa superstição, como se escrever bem fosse um dom

especial, um privilégio “natural” de poucas pessoas, uma espécie de

atributo das classes sociais privilegiadas — quando, de fato, a leitura

e a escrita são direitos de toda cidadã e de todo cidadão, sendo um

dever do Estado criar condições para que toda a população se

apodere dessas habilidades tão importantes, fundamentais para a

vida moderna.

É perfeitamente possível escrever um texto, mesmo com maior grau

de formalidade, usando palavras simples, construções sintáticas

habituais etc. Uma escrita elegante e bem-sucedida não precisa

obrigatoriamente ser hermética e empolada. É até melhor que não

seja.

A insegurança linguística, já vimos, é o terreno em que brota a

hipercorreção. E a hipercorreção, por sua vez, se caracteriza pelo

uso e pelo abuso de “muletas” lexicais e gramaticais que,

erroneamente tidas como so sticadas, na verdade deixam o texto

atravancado, mal articulado e, muitas vezes, incoerente.

É importante também desconstruir a crença — igualmente

infundada — de que “escrever é diferente de falar” e de que, por isso,

é preciso “evitar os traços de oralidade” na escrita. As relações entre

fala e escrita são muito mais complexas do que essa visão simplória.

E se um texto escrito puder “falar” aos nossos ouvidos, mesmo que


em silêncio, é porque tem ritmo, tem harmonia, está bem

lubri cado, nada arranha.

Escrever bem é escrever o necessário e de forma clara.

Evidentemente, isso se aplica à escrita sem nalidades literárias,

estéticas — a nal, a profusão de palavras pode fazer parte do

projeto criativo dos artistas de uma língua como Euclides da Cunha

e Guimarães Rosa, no Brasil; James Joyce, na Inglaterra; Marcel

Proust, na França etc. Mas os artistas da língua não se formam na

escola, nem pode ser objetivo da escola formar grandes escritores e

poetas: como formadora de cidadãs e cidadãos, cabe à escola

propiciar às pessoas que a frequentam o acesso à cultura letrada e às

tecnologias da leitura e da escrita para nalidades da vida em

sociedade, do exercício dos direitos e deveres de cada um e cada

uma.

Í
EXERCÍCIOS
Da hipercorreção para a
simples correção

1. Reescreva os trechos abaixo substituindo o verbo possuir em cada

ocorrência por um verbo ou locução verbal diferente:

(a) A Região Nordeste é uma das cinco regiões do Brasil de nidas pelo
Ins tuto Brasileiro de Geogra a e Esta s ca (IBGE) em 1969. Possui
área equivalente à da Mongólia ou do estado do Amazonas, população
equivalente à da Itália e um IDH médio, comparável com El Salvador
(dados de 2010). [...] É a região brasileira que possui o maior número
de estados (nove no total) [...]. O território do Nordeste possui um
enorme acervo de pinturas e gravuras realizadas sobre um suporte xo
pétreo, seja em abrigos, em paredões po cânion ou em a oramentos
rochosos. [...] A região possui os estados com a maior e a menor costa
litorânea, respec vamente Bahia, com 932 km de litoral e Piauí, com
60 km de litoral. A região toda possui 3.338 km de praias. [...] O rio
Parnaíba é um dos poucos no mundo a possuir um delta em mar
aberto, com uma área de manguezal de aproximadamente, 2.700 km².
[...] Todas as capitais da região Nordeste possuem região metropolitana
(RM), com exceção de Teresina, que possui região integrada de
desenvolvimento econômico (RIDE), por abrigar municípios de
diferentes unidades federa vas. [...] Todos os nove estados nordes nos
possuem ao menos uma área metropolitana em seu território, seja na
sua totalidade (como Rio Grande do Norte e Sergipe) ou parcialmente
(Piauí). Nesse sen do, o Maranhão possui três no total. São duas (São
Luís e Sudoeste Maranhense), localizadas integralmente dentro do
território maranhense, e outra (Grande Teresina) expande-se pelo Piauí.
O estado da Paraíba possui o maior número de regiões metropolitanas
(doze no total).
(b) Dia das Mães possui pacotes especiais na Rede Mabu de Hotéis &
Resorts […] O Mabu Parque Resort está situado em uma belíssima área
verde, localizado a 20 minutos do centro de Curi ba e próximo às
grandes empresas da cidade. O hotel possui 36 mil metros quadrados
de paisagismo planejado, com amplo estacionamento, piscinas, saunas,
quadras poliespor vas, restaurante com uma bela vista, além de um
amplo centro de congressos. A diária no m de semana do Dia das
Mães possui o valor de R$158,00, além das taxas, para o apartamento
single, e de R$ 178,00 mais taxas para o apartamento duplo. […] O
resort possui uma completa estrutura de lazer que possibilita
revitalização junto à natureza, prá ca de esportes, descanso do corpo e
da mente e diversas atrações para todas as idades como rolesa,
parede de escalada, paintball, arco e echa, pesca espor va, torneiro
de futebol, hidroginás ca e caminhadas, tudo organizado pela equipe
de recreação.
2. Complete as lacunas dos trechos abaixo com a forma adequada do

verbo entre parênteses:

(a) Por muitos anos considerados produção descartável e/ou voltada


exclusivamente para o público infantojuvenil, nas úl mas décadas
testemunha-se uma mudança de status dos quadrinhos que os
__________ do status da literatura. [ ]
(b) As comerciantes, que poderiam ser condenadas a até seis meses de
prisão, além de pagar multa de US$ 2.500, argumentaram que sua fé
cristã as __________ de par cipar de alguma forma na promoção de
um casamento gay. [ ]
(c) O diretor de Pânico tentou apostar mais uma vez no lão que ajudou a
rede nir, mas, dessa vez, não conseguiu muito sucesso. No terror
Amaldiçoados, três jovens precisam encontrar e matar um lobisomem
que os __________ para se livrar de uma maldição... [ ]
(d) Nos úl mos dias, em Adelaide (Austrália), foi anunciada uma nova
medicação a ser comercializada ainda este ano com um fator de
crescimento natural, o GM-CSF, que protege embriões ar cialmente
implantados no útero materno e os __________ mais resistentes.
[ ]
(e) É impossível desconsiderar, no caso desses imigrantes, a traumá ca
experiência da fome que os __________ a fugir de seus países de
origem. [ ]
3. Corr a as formas assinaladas nos trechos abaixo:

(a) O trabalho com imagens banalizadas pela mídia, o qual elas são
transformadas em obras de arte, provocou estranhamento e
ques onou o que de fato faz de um objeto uma obra ar s ca.
(b) Região de Santo Ângelo, o qual São Borja faz parte, entra na bandeira
vermelha.
(c) Os “S” de um novo mundo, o qual o Brasil deveria ser protagonista.
Saúde, sanidade e sustentabilidade serão temas-chave no pós-
pandemia, cujas discussões poderiam ser lideradas pelo Brasil de uma
forma proa va.
(d) Um demônio o qual se pode vencer: o mito de “El Familiar” e as
representações do demônio em três lmes argen nos.
(e) A guarnição da Polícia Militar realizava rondas preven vas quando foi
abordada por populares que relataram que havia um terreno baldio o
qual suspeitavam que estava ocorrendo trá co de drogas e plan o de
maconha.
4. Vimos que a notícia abaixo é um perfeito desastre textual.

Reescreva-a, conservando todas as informações, de modo que se

torne um texto coeso e coerente, descartando, é claro, todas as

ocorrências de o mesmo:

(a) Na noite de ontem, 29, quarta-feira, por volta das 21h15min a equipe
Polícia Militar estava em patrulhamento quando avistou um homem em
a tude suspeita; foi dado voz de abordagem para o cidadão e o mesmo
se recusou a colocar a mão na cabeça, vindo a dizer que não aceitaria a
abordagem da equipe policial. Ao ser indagado sobre a tornozeleira, o
mesmo disse que não sabia do que era e que era para equipe procurar
no sistema quais seriam os seus antecedentes; disse ainda que estava
fumando e que não largaria o cigarro por causa de uma “abordagem de
merda” e que a equipe não poderia realizar abordagem nele porque o
mesmo não nha nada de errado, e que já pagou tudo que “devia”.
Após algumas tenta vas o mesmo disse o nome, foi solicitado apoio,
onde o indivíduo recebeu voz de prisão. Ele se recusou e entrou na
residência e dizendo que não sairia. Na residência se encontrava sua
mãe, onde relatou que o lho estava dando muito trabalho e que era
pra equipe levar o mesmo preso; foi necessário a u lização do uso da
força para contê-lo, no momento em que a equipe foi colocá-lo no
camburão o mesmo se recusou a entrar, voltando a desacatar os
policiais; após alguns minutos resis ndo a equipe conseguiu conter o
indivíduo; o mesmo foi encaminhando para a sede da 2ª Cia para a
lavratura do presente bole m, posteriormente ao Hospital Santa Casa
para realização do laudo de lesão e após para 14ª DRP para os
procedimentos cabíveis.
5. Reescreva as frases abaixo eliminando o quão:

(a) Vez ou outra me perguntam o quão di cil é car sem viajar em


tempos de pandemia, para mim, que sou viajante.
(b) O quão diferente é o português de hoje do português do Brasil
Imperial?
(c) Não há subs tuto para o contacto pessoal e envolvimento com o
assunto, não importa o quão desagradável que seja.
(d) Usabilidade, o quão importante este termo é para o desenvolvimento
de aplicações?
(e) Comecei o curso de licenciatura em matemá ca sem saber o quão me
apaixonaria por dar aula e poder passar o conhecimento.
6. Reescreva os trechos abaixo eliminando o é sobre:

(a) A vice-presidente eleita dos EUA, Kamala Harris, fez sua primeira
manifestação pelo Twi er depois que Joe Biden foi declarado como o
próximo presidente dos EUA por órgãos de imprensa americana. “Esta
eleição é sobre muito mais do que sobre Joe Biden e eu. É sobre a alma
da América e nossa boa vontade em lutar por ela. Temos muito
trabalho pela frente. Vamos começar”, escreveu.
(b) “A vida não é sobre ter, é sobre dar e ser”, Kevin Kruse. Mas isso não
signi ca que não seja importante conquistar coisas, alcançar posições,
ter obje vos, construir uma família.
(c) Branding não é só sobre a marca. É sobre a qualidade das relações
que ela constrói.
(d) Estupro não é sobre desejo, é sobre poder.
(e) Para a GolSat, tudo que fazemos não é sobre produtos e serviços: é
sobre pessoas.
1
As formas de uso resultantes de hipercorreção vão aparecer sempre riscadas, para deixar

claro que são inadequadas e para não haver o risco de se xarem na memória visual da

leitora. Por sua vez, as formas adequadas virão sublinhadas.

2
Como este nosso pequeno manual se destina a pessoas maduras, uma boa indicação para o

aprimoramento da produção textual é a coleção Escrever na universidade, em quatro

volumes, de Francisco Eduardo Vieira e Carlos Alberto Faraco (Parábola Editorial).

h ps://www.parabolaeditorial.com.br/escrever-na-universidade-3.
3
Evidentemente, estamos falando aqui de textos não literários, não ccionais, que são

produzidos com objetivos diferentes dos textos informativos, acadêmicos, institucionais,

jurídicos etc. Por isso, é desonesta a velha tradição que a rma ser necessário “imitar os

clássicos” para fazer bom uso da língua: temos que ensinar as pessoas a escrever bem para

cumprir com e ciência as tarefas sociais que exigem o uso da escrita. A nal, é uma

pequena minoria delas que vai se tornar romancista, poeta ou dramaturga!


4
Projeto Araribá, obra coletiva, vol. 7, p. 314 (São Paulo: Moderna, 2008).
5
Praticando nossa língua, Cristina S. L. Azeredo, vol. 8, p. 53 (São Paulo: Ática, 2008).

6
Nova gramática do português contemporâneo, Celso Cunha e Luís Felipe Lindley Cintra, p.

342-343 (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985).

7
Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, Aurélio B. H. Ferreira, verbete aonde

(Curitiba: Positivo, 2020).


8
Um manifesto explícito contra essas tentativas de ser mais normativo que a tradição

normativa é meu livro Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro (Parábola

Editorial), em que apresento cinquenta desses supostos “erros” e mostro que são usos já

perfeitamente incorporados à norma culta brasileira, muitos deles há mais de 150 anos.
9
Todos os exemplos foram retirados da internet. Vêm sem indicação de autoria porque

nosso objetivo aqui não é acusar ninguém, mas examinar os problemas dos textos e sugerir

soluções para eles.


10
O NURC-Brasil é um conjunto de 15 gravações selecionadas pelos pesquisadores do

projeto Gramática do português falado como material de suas investigações sobre o

funcionamento do português brasileiro culto. São 3 entrevistas de cada uma das 5 cidades

do Projeto NURC (Norma Urbana Culta) — Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e

Porto Alegre — num total de quase 12 horas de fala contínua.


11
Até mesmo um gramático muito conservador como Evanildo Bechara reconhece que o se

de “aluga-se salas” é o sujeito da oração e que salas é o objeto, e a concordância se dá

sempre entre o verbo e seu sujeito (Moderna gramática portuguesa, Rio de Janeiro: YHL,

1999, p. 178). Mas já em 1908, o lólogo Manuel Said Ali criticava essa regra sem sentido.
12
Esse é um problema que os portugueses não têm: tanto na pergunta quanto na resposta,

eles escrevem sempre porque. A pronúncia é diferente da nossa: nós sempre pronunciamos
“porquê” ou “purquê”, com ênfase na última sílaba, enquanto os portugueses dizem “púrc”,

com ênfase na primeira sílaba e apagamento quase total da vogal nal. Na ortogra a do

português brasileiro, porém, a distinção permanece.

13
O texto está disponível em h ps://bit.ly/2Odk3OL.
14
O grande escritor francês Gustave Flaubert (1821-1880), autor do famosíssimo romance

Madame Bovary, tinha em sua casa uma sala vazia onde lia em voz alta as páginas que já

tinha escrito. Se não tivessem ritmo harmonioso, uidez e boa cadência, ele as reescrevia

até atingirem esse ideal.

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