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fato, nao existem sequer duas delas a que se aplique a mesma

classificar;ao; embora, é claro, assim como-os homens escrito-


res, possam ser agrupadas em escolas. De qualguer forma,
parece claro, de acordo com o Sr. Courcney, que mais e mais Profis~oes para Mulheres
romances tem sido escritos por mulheres para mulheres; o
que é causa, segundo o autor, do desaparecimento do roman-
ce como obra de arte. A primeira parte desea afirmar;ao pare-
Virginia Woolf leu este discurso para a Nacional
ce cerca; isto é, as mulheres, tendo encontrado suas vozes,
tem algo a dizer, algo que naturalmente é de suma importan- Society for Women's Service em 21 de Janeiro
cia e significar;iio para as mulheres, mascujo _valor ainda nao de 1931; ele foi publicado postumamente em
podemos determinar. Já a afirmar;ao de que as mulheres ro- The Death o/ the Moth, em 1942.
mancistas estao extinguindo o romance enguanto obra de
arte nos parece discutível. De qualquer forma, é possível que Quando a secretária1 convidou-me para vir aquí, con-
o aumento do conhecimento., através da edúcar;ao e do escu- tou-me que sua Sociedade se preocupava com o trabalho
de mulheres e sugeriu-me que contasse a voces algo sobre
do dos autores clássicos gregos e latinos 2 , poderá dar-lhes
minhas próprias experiencias profissionais. É verdade que
aquela visao mais séria da literatura que as tornará artistas; de
sou urna mulher; é verdade que estou empregada; mas
forma que, tendo deixado escapar sua ITlensagem de modo
que experienci~ profissionais eu tive? É difícil dizer.
algo informe, no tempo devido a moldará em forma artística
Minha profissao é a literatura, e nessa profissao há menos
definítiva. O Sr. Courmey nos fornece material para ques-
experiencias ,de mulheres do que em qualquer outra, com
toes como estas, mas seu livro nao comribui para que estas excessiio da arte dramática - menos, quera dizer, que sao
questoes tenham urna resposta. peculiares a mullieres. Porque a estrada foi aberta muitos
anos ati;ás - por Fanny Burney, Aphra Behn, Harriet
Martineau, Jane Auscen, George Eliot - muitas mulheres
2 Virgínia Woolf escuda_os clássicos desde 1902. A exclusao das jovens famosas, e muitas mais desconhecidas e esquecidas, que
de classe média desee aspecto da educa~lio de seus irmlios é tema fre-
qüence em seus ens.aios.
l V. Woolf se refere a Philippe Sttackez (1872-1.968)

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vieram antes de mim, tornando a trilha suave, e orientan- ser chamada de profissional, o quao pouco conhe~o das lu-
do meus passos. Portanto, quando vim a escrever, havia cas e dificuldades de tais vidas, tenho que admitir que em
poucos obstáculos concretos em meu caminho. Escrever vez de empregar aquela soma em pao e manceiga, atuguel,
era urna ocupac;ao respeitável e inofensiva. A paz familiar sapacos e meias, ou comas do ac;ougue, eu saí e comprei um
nao foi quebrada pelo arranhao de urna caneca. Nenhuma gato - um gato bonito, um gato persa. que logo me envol-
exi~encia foi feita sobre o caixa da família. Por dezshillings veu em desagradáveis discussoes com meus vizinhos.
e seis pence qualquer um pode comprar papel suficiente O que poderia ser mais fácil do que escrever artigos
para escrever todas as. pec;as de Shakespeare - se estiver e comprar gatos persas com os ganhos? Mas esperem um
com tal disposic;ao. Pianos.e modelos, Paris, Viena e Berlim momento. Artigos devem falar sobre algo. O meu, pelo
mestres e mestras nao sao necessários para urna escritora.' que lembro, era sobre o romance de um homem famoso. E
O baixo custo do papel para escrita é, cerramente, a razao enguanto eu escava escrevendo essa resenha, descobri que
pela qual mullieres foram bem-sucedidas como escritoras se fosse resenhar livros prec..isaria travar batalha com um
antes de serem bem-sucedidas em outras profissoes. cerro fantasma. E o fantasma era hma mulher, e quando
Mas para contar a voces minha história - e é urna vim a conhece-la melhor eu comecei a chamá-la como a
história simples - voces tem apenas de imaginar a figura heroína de um famoso poema, The Angel in the House (O
de urna garota em um quarto com urna caneca etn sua Anjo da Casa). Era ela que costumava aparecer entre .mim
mao. Ela só tinha que mover aquela caneca da esquerda e o papel quando eu escava escrevendo resenhas. Era ela
para a direita - das dez a urna. Entao ocorrera-lhe fazer o que me incomodava e roubava meu tempo e· assim me
que é simples e barato o bastante, afinal - enfiar algumas acormencava até que afinal eu a macei. Voces, que vem de
daquelas páginas dentro de um envelope, colar um selo de urna gerac;ao mais jovem e mais feliz nao devem ter ouvi-
um penny no canto, e jogar o envelope na caixa verrnelha do falar dela - voces nao devem saber o que eu quera dizer
da esquina. E foi assim que me tornei jornalista; e rneu com o Anjo da Casa. Eu vou descreve-la da forma mais
esforc;o foi recompensado no primeiro dia do mes seguin- sucinta possível. Ela era intensamente compassiva. Era
te - um día muito glorioso para mim - pela carta de um imensamente encantadora. Era profundamente abnegada.
editor contendo um cheque de urna libra, dez shillings e Ela dominava codas as difíceis artes da vida familiar. Sa-
seis pence. Mas para mostrar a voces o quao pouco merec;o crificava-se diariamente. Se havia galinha, ela ficava com

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o pé¡ .se havia uma,•correme de ar, comava seu lugar nela _ que agi em legítima defesa. Se eu nao a tivesse matado,
resumi.ndo, .da era tao condescendente que nunca cinha ela ceria me matado. Ela teria arrancado o cora~ao do meu
urna idéii;t ou,desejo pró,prio - em vez disso preferia con- . cexco. Porque, como percebi no momento que coloquei a
cordar s~mpre comas idéias e desejos dos ouc,ros. Acima
caneta no papel , voce nao pode resenhar séquer um ro-
de cudo - nem preciso diz~r - era pura. A pureza era consi-
mance sem ter urna opiniao sua, sem expressar o que voce
derada.sua.maior beleza - o rubor de suas:faces., sua grai;a
acha ser verdadeiro nas rela~oes humanas, na moral , no
maior,,Naqueles dias - os últimos da Rainha Vitó.ria - cada
sexo. E codas essas questoes, de acordo com o Anjo da
casa Linha seu, aojo. ,E quando -vim a escrever encpntrei
Casa, nao podem ser tocadas livre e abercamence por mu-
com; ela bem nas, primeiras palavras'.- A,-sombra- de . suas
lheres; elas devem encantar, elas devem conciliar, elas de-
asas ,caiu sobre.a página; eu ouv.i -no quarco o roc;ar de suas
vem - para ser direca - mentir, se for preciso para que se
saw- Na mesma'. ,hora, sisto é:, quando .peguei a .car,ieca em
saiam bem. Porcanco, todas as vezes que eu sentia a som-
minha mao,para-resenhar aquele 1romance do homem fa-
bra de sua-asa ou a luz de sua aura radjante sobre a página:,
moSQ, ,da-deslizou por .eras de mim e sussurrou: "Minha
eu pegava o pote de tinta e jogava nela. Ela custou a mor-
9,uen"d.a, vocee uma m~a. vooe
A , '
1 " est:a.esG
, reven do sob re um
ree. Sua nacureza ficcícia era para ela de grande valia. É
liyro que. fui _escriti;> por, .t un. homem. Seja complacence,
extremamente mais difícil macar um fantasma que urna
seja-tema,-adule,. iluda, use .codas as arces e truques de seu
realidade. Ela escava sempre deslizando de volta quando
se~o. Nunca.dei-x.e fiinguém supor q.ue voce tem um,a ·yon-
eu pensava que tinha liquidado com ela.· Emboca me gabe
cad.e p,rópri-a. A.mes de cud0, seja pura". E .ela como que
de te-la matado no fim, a luta foi dura, tomou muito tem-
g.uiava rninha canéca, Eu agora me cecordo de um ato de ·
po que poderia ter sido melhor empregado no aprendiza-
que ,t omo algum crédito a mim mesma, emboFa o crédito
d~ de gramática grega, ou errando pelo mundo em busca
sej.a ¡,ropri,amenct; de alguns .de , meus ancescrais que me
de aventuras. Mas foi urna experiencia de verdade; urna
deixaram .um.a cerca quantia .de dinhei.ro - digamos 500
experiencia que escava prestes a acontecer com todas as
libras por ano? - porcamo nao foi necessário depender ape-
escritoras daquele tempo. Matar o Anjo da ~asa era parce
nas de ene-aoco para minh~ subsiscen<da;.Eu me volcei con-
das carefas de urna escritora.
cr-a..ela~ agarrei:-a,peto pesc~o. Fiz-o po.ssível para matá-la.
Mas para continuar minha história, o Anjo éscava
Minha alega~ao, se. fosse lev.áda a julgamemo, seria a de
morco. E o que rescou encao? Voces poderiam dizer que o
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("''- ..
que res·tou foi um objeto simples e comum - urna jovem
concar-lhes urna experiencia muito escranha que me acon-
num quarco com um pote de tinta, Em •outras palavras
agora que ela tiaha se livrado da falsidade, que a jovem s¿ ceceu. E para encende-la voces devem primeiro tentar
imaginar o estado -de espírico de um romancista. Eu espe-
tinha _q ue ser ela mesma. Ah~ mas o que é 'ela mesma'?
Quer dizer, o que é uma mulher? Eu lhes asseguro, eu nao ro •níi~ estar r~velando segredos_ profissionfs ~o dize~ que
sei. Nao acredit.o que voces saibam. Nao acredito que al- 0 ma10r dese10 de um romancista é ser tao inconsciente

guém possa saber até que ela tenha se expressado em to- \ quanto possível. Ele quer induzir a si mesmo a um estado
das as arces e profissoes aberras a habilidade humana. Essa de perpétua lecargia. Ele quer que a vida continue com a
é na . ver<lade uma das razoes que me trouxeram .aqui _ máxima quiecude e regularidade. Ele quer ver os mesmos
além -do respeito por v_oces, que-estao em vía de nos mos- roscos, ler os mesmos livros, fazer as mesmas coisas dia
trar por suas experiencias.o.que é a mulher, que estao em após dia, mes após mes·, enquanco ele está escrevendo, de t
f
via de nos fornecer, por seus fracassos e sucessos, essa in- forma que nada deve quebrar a ilusao em que ele está vi-
forma~ao tao valiosa. vendo - de forma que nada deve perturbar ou inquietar as t
Mas para continuar a história das minhas e~perien-
cias profiss.io.nais, eu ganhei urna libra-, dez s.hillings e seis
misteriosas bisbilhocices, impressoes, tiros, golpes e des-
cobercas súbitas daquele mesmo espírito tímido e ilusivo,
t
pence pela minha primeira resenha, e comprei tim gato persa a imagina~ao: Suspeico que esse estado seja o mesmo para
comos ganhos. Encao tornei-me ambiciosa ..U m gato persa homens e mulheres. Seja como for, quero que voces me
até serve - eu disse -, mas um gato persa nao é suficiente. imaginem escrevendo um romance em estado de transe.
E cenho -que ter um-carro. E foi assim portancó que me Quero que voces figurero Urna menina sentada com urna
tornei romancista - porque é muito estranho que as pesso- caneca na mao, que por minutos, e na verdade por horas,
as deem a voce um carro se voce lhes concar urna hiscória. ela nunca molha no pote de tinta. A imagem que i:ne vem
É urna coi.sa ainda mais escranha que. nao haja nada tao a mente quarido penso nessa menina é a de um pescador
prazeroso no mundo quanco contar hiscórias. É muico mais imerso em sonhos a beira de um lago profundo, seguran-
prazeroso que escrever resenhas de romances famosos. E do um cani~o sobre a ·água. Ela escava deixando sua ima-
gina~ao disparar desenfreada por entre codas as rochas e
.ainda ' se for obedecer sua secretária e contar a voces mi-
nhas experiencias . profissionais como romancista, devo fendas do mundo que ficam submersas nas profundezas
Jo nosso ser inconsciente. Agora veio a experiencia, a expe-
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riencia que acredito ser realmente mais comum corn as bre minhas próprias experie~cias :cwno ijOrpo; .e u nio ~cho
mulheres escritoras que com homens. A linha correu pelos que resolvi-. Duviclo que alguma muJher já tenha ,teSplv,ido.·
dedos da menina. Sua imaginai;ao disparou. Buscou as la- Os obstáculos conti:a ela ainda sao imens.amente ~ e r ~.
goas, as profundezas, os lugares escuros onde cochi la o maior
• e sao a~nda muito difí~~is de;se definir.,Apar.ei:icement.e-t.A
peixe. E de repente, um estroncio. Urna explosao. Espuma e
que é_mais simples que !;:SCr~ve.r liy_~r A~eQtemente"> qw::
confusao. A imaginai;ao havia se lan~ado contra algo duro.
obstáculos exi~tem · ma!s ,par~ uma:,muJ.he,r _q4e p~ra, µ,.q\
A garota foi despertada de seu sonho. Ela escava na verdade
homem? Mas ,visto por ~enrr~ •. pens.o eu, o caso _é ~~itq
no estado de mais aguda e difícil afli~ao. Para falar sern
diferente_; ela ainda .r~m muitos .fantasmas C(?ll) _qu~_.
meias-palavras, ela tinha pensado em algo, algo sobre o cor-
muitos preconceitos s,upera.r. Na verdade, Cfe\0 q~e
po, sobre as paixoes que para ela, como -mulher, nao seria
ainda passará um longo te,mpoant.es.q~e m';llh~r-~ sti
apropriado dizer. Os homens, sua ~zao·dizia, ficariam cho-
sencar para escrever um liyro se~ eQcontrar \lffi (anr~rpa,
cados. A consciencia do que os. homens diriam de urna · • • • • • 1 .. • .•

para ,ser assassinado, u.ma r~ha para se~ sol_P,ea.~~; E,,Sti ~~


mulher que falasse a verdade sobre suas paixoes havia a des-
assim_em literatura, a ~aisJiyre ~e t.od~ .(?fOhSS~ ~rµ,
pertado do estado de inconscien~ia da artista. Ela nao podia
mulheres, como será nas .nQv~s profi~soes _em.que ,v~.es es-
mais escrever. O transe tinha acabado. Sua im~gina~ao nao
tao ingre~ndo agora pela primeira vez_? .
podia mais funcionar. Eu acredito que isto seja urna experi-
encia de fato comum com as mulheres escritoras - elas sao
Aquetas sa?:.as perg~~c~. qu~ e~
$0S~~i~.~ se ,ti~~se
tempo, de fazer a voces. E na ,;erdade, se enfatizei essas' mi-
impelidas pelo extremo convencionalismo do-o.ucro sexo. • • 1 '

nhas experiencias ·profissior1~is~¿ porq~e acredtto que elás


Porque apesar de os homens sensatamente se permitirem
sejam, ainda que em forma difer~nc~. suas·também. Me~o
grande liberdade nesse aspecto, eu duvido que eles perce-
'quando a trilha está no~i.nalmente aberra - quando' nao !há
bam ou possam controlar a extrema severidade com que
nada impedindo urna m ulher de se~ médica, idvogada." futi-
1

condenam cal liberdade nas mulheres.


cionária pública - há muitos fa~tasrnas·e obstácul~s, conÍ~
, Essas foram portanto duas de minhas experiencias acredito, avultando em seu·caminho. Acho q~e discútí-los
bem típicas. Essas foram duas das aventuras da minha vida e defini-los seja de grande valia e importancia; pois sornen-
profissional. A primeira - matar o Anjo da Casa - eu acho ce a partir daí o tmbalho pode ser repartido, e as dificulda-
que resolvi. Ela morreu. A segunda, contar a verdade so- des serem superadas. Mas além disso, é necessário tarnbém

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discutir os fins e os objetivos pelos quais estamos lutando
pelos quais vamos batalhar contra aqueles terríveis obstá-'
culos. Tais objetivos nao podem ser tomados por cerros;
devem ser perpetuamente questionados e examinados. A
sicua~ao como um codo, como a vejo - aqui nesce audicório
cercada de mulheres exercendo pela primeira vez na histó-
ria nao sei quantas profissóes diferentes - é de excraordiná-
rio inceresse ·e importancia. Voces ganharam seu próprio
espa~o na casa até agora possuída exclusivamente por ho-
mens: Voces sao capazes, embora nño sem grande crabalho e
esfor~o, de pagar o aluguel. Voces estao ganhando suas qui-
nhentas libras ao ano. Mas esta liberdade é apenas um co-
me~o; o comodo é de voces, mas ainda está vazio. Ele tem
que ser mobiliado; tem que ser decorado, cem que ser re-
parcido.-Como voces vao mobiliá-lo, como voces yao decorá-
lo? Com quem vao dividi-lo, e em que termos? Escas, eu
acho, sao quescoes da maior importancia e inceresse. Peln
primeira vez na história voces sao capazes decolocá-las; pela
primeira vez voces sao capazes de decidir por si mesmas
quais poderiam.ser as resposcas. Eu poderia ficar e discutir
essas questóes e resposcas de bom grado - mas nao esca noi-
ce. Meu tempo acabou, e devo terminar. ')

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