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FICHA DE TRABALHO

Educação Literária: Os Maias e Antero

Sob as rosinhas que ornavam o seu chapéu preto, os cabelos loiros, de um oiro fulvo,
ondeavam de leve sobre a testa curta e clássica: os olhos maravilhosos iluminavam-na toda; a
friagem fazia-lhe mais pálida a carnação de mármore: e com o seu perfil grave de estátua, o
modelado nobre dos ombros e dos braços que o xale cingia — pareceu a Pedro nesse instante
alguma coisa de imortal e superior à Terra.
Não a conhecia. Mas um rapaz alto, macilento, de bigodes negros, vestido de negro, que
fumava encostado à outra ombreira, numa pose de tédio — vendo o violento interesse de Pedro,
o olhar aceso e perturbado com que seguia a caleche trotando Chiado acima, veio tomar-lhe o
braço, murmurou-lhe junto à face na sua voz grossa e lenta:
— Queres que te diga o nome, meu Pedro? O nome, as origens, as datas e os feitos principais?
E pagas ao teu amigo Alencar, ao teu sequioso Alencar, uma garrafa de champanhe?
Veio o champanhe. E o Alencar, depois de passar os dedos magros pelos anéis da cabeleira e pelas pontas do bigode,
começou, todo recostado e dando um puxão aos punhos:
— Por uma doirada tarde de outono…
— André! — gritou Pedro ao criado, martelando o mármore da mesa — retira o champanhe!
O Alencar bradou, imitando o ator Epifânio1:
— O quê? Sem saciar a avidez do meu lábio?…
Pois bem, o champanhe ficaria: mas o amigo Alencar, esquecendo que era o poeta das «Vozes de Aurora», explicaria
aquela gente da caleche azul numa linguagem cristã e prática!…
— Aí vai, meu Pedro, aí vai!
Havia dois anos, justamente quando Pedro perdera a mamã, aquele velho, o papá Monforte, uma manhã rompera
subitamente pelas ruas e pela sociedade de Lisboa naquela mesma caleche com essa bela filha ao seu lado. Ninguém os
conhecia. Tinham alugado a Arroios um primeiro andar no palacete dos Vargas; e a rapariga principiou a aparecer em S.
Carlos, fazendo uma impressão — uma impressão de causar aneurismas, dizia o Alencar! Quando ela atravessava o salão,
os ombros vergavam-se no deslumbramento de auréola que vinha daquela magnífica criatura, arrastando com um passo de
deusa a sua cauda de corte, sempre decotada como em noites de gala, e, apesar de solteira, resplandecente de joias. O papá
nunca lhe dava o braço: seguia atrás, entalado numa grande gravata branca de mordomo, parecendo mais tisnado e mais
embarcadiço2 na claridade loira que saía da filha, encolhido e quase apavorado, trazendo nas mãos o óculo, o libreto, um
saco de bombons, o leque e o seu próprio guarda-chuva. Mas era no camarote, quando a luz caía sobre o seu colo ebúrneo
e as suas tranças de oiro, que ela oferecia verdadeiramente a encarnação de um ideal da Renascença, um modelo de Ticiano3…
Ele, Alencar, na primeira noite em que a vira, exclamara, mostrando-a a ela e às outras, as trigueirotas4 de assinatura:
— Rapazes! É como um ducado de oiro novo entre velhos patacos5do tempo do senhor D. João VI!
O Magalhães, esse torpe pirata, pusera o dito num folhetim do «Português». Mas o dito era dele, Alencar!
Os rapazes, naturalmente, começaram logo a rondar o palacete de Arroios. Mas nunca naquela casa se abria uma janela.
Os criados interrogados disseram apenas que a menina se chamava Maria, e que o senhor se chamava Manuel. Enfim uma
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criada, amaciada com seis pintos6, soltou mais: o homem era taciturno, tremia diante da filha, e dormia numa rede; a
senhora, essa, vivia num ninho de sedas todo azul-ferrete, e passava o seu dia a ler novelas. Isto não podia satisfazer a
sofreguidão de Lisboa. Fez-se uma devassa7 metódica, hábil, paciente… Ele, Alencar, pertencera à devassa.
EÇA DE QUEIRÓS, Os Maias, Lisboa, Livros do Brasil, 2006 [1888

(1) Epifânio: referência ao ator Epifânio Aniceto Gonçalves (1813-1857).


(2) embarcadiço: que anda habitualmente embarcado. (5) patacos: antiga moeda portuguesa, de bronze.
(3) Ticiano: pintor italiano do Renascimento. (6) pintos: moedas.
(4) trigueirotas: de «trigueiro» (moreno). (7) devassa: investigação ou inquérito.

1. Explique como as referências à escultura e à pintura são integradas da descrição física de Maria Monforte e
enfatizam os efeitos desta figura feminina em quem a observa.

2. A certa altura, Pedro exige que Alencar esqueça que era «o poeta das “Vozes de Aurora”». Clarifique o
significado desta expressão no contexto em causa.

3. Atente no último parágrafo do excerto. Explicite a expressividade do advérbio «naturalmente».

4. Transcreva um exemplo de tripla adjetivação e comente o seu valor expressivo.

II

Dentro do pátio desse jornal elegante fedia. Na escadaria de pedra, sem luz, cruzou um sujeito encatarroado que
lhe disse que o Neves estava em cima ao cavaco. O Neves, deputado, político, diretor d’A Tarde, fora, havia anos,
numas férias, seu companheiro de casa no Largo do Carmo; e desde esse verão alegre em que o Neves lhe ficara
sempre devendo três moedas, os dois tratavam-se por tu. [...]
– É isto, em quatro palavras [disse João da Ega]. O Carlos da Maia foi ofendido aí por um sujeito muito conhecido.
Nada de interessante. Um parágrafo imundo na Corneta do Diabo, por uma questão de cavalos... O Maia pediu-lhe
explicações. O outro deu-as, chatas, medonhas, numa carta que quero que vocês publiquem. A curiosidade do Neves
flamejou:
– Quem é?– O Dâmaso.
O Neves recuou de assombro:
– O Dâmaso!? Ora essa! Isso é extraordinário! Ainda esta tarde jantei com ele! Que diz a carta?
– Tudo. Pede perdão, declara que estava bêbedo, que é de profissão um bêbedo...
O Neves agitou as mãos com indignação:
– E tu querias que eu publicasse isso, homem? O Dâmaso, nosso amigo político!...E que não fosse, não é questão de
partido, é de decência! Eu faço lá isso!... Se fosse uma ata de duelo, uma coisa honrosa, explicações dignas... Mas
uma carta em que um homem se declara bêbedo! Tu estás a mangar!
Ega, já furioso, franzia a testa. Mas o Neves, com todo o sangue na face, teve ainda uma revolta àquela ideia de o
Dâmaso se declarar bêbedo!
– Isso não pode ser! É absurdo! Aí há história... Deixa ver a carta.
E, mal relanceara os olhos ao papel, à larga assinatura floreada, rompeu num alarido:
– Isto não é o Dâmaso nem é a letra do Dâmaso!... Salcede! Quem diabo é Sal-cede? Nunca foi o meu Dâmaso!
– É o meu Dâmaso – disse o Ega. – O Dâmaso Salcede, um gordo...
O outro atirou os braços ao ar:
– O meu é o Guedes, homem, o Dâmaso Guedes! Não há outro! Que diabo, quando se diz o Dâmaso é o Guedes!...
Respirou com grande alívio:

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– Irra, que me assustaste! Olha agora neste momento, com estas coisas de Ministério, uma carta essas escrita pelo
Guedes... Se é o Salcede, bem, acabou-se! Espera lá... Não é um gordalhufo, um janota que tem uma propriedade
em Sintra? Isso! Um maganão que nos entalou na eleição passada, fez gastar ao Silvério mais de trezentos mil reis...
Perfeitamente, às ordens... Ó Pereirinha, olhe aqui o Sr. Ega. Tem aí uma carta para sair amanhã, na primeira página,
tipo largo...

Eça de Queirós, op. cit., cap. XV, pp. 579-581.

6. Explique o equívoco que se gera neste excerto em torno do nome «Dâmaso».

7. Explicite duas críticas formuladas, neste excerto, ao jornalismo da época da ação do romance.

Antero

Leia os poemas seguintes com atenção. Se necessário, consulte as notas.

Oceano nox1

Junto do mar, que erguia gravemente


A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o voo dum pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,


Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando2, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente...

Que inquieto desejo vos tortura,


Seres elementares, força obscura?
Em volta de que ideia gravitais3?

Mas na imensa extensão, onde se esconde


O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido4, um queixume, e nada mais...

Antero de Quental, Poesia II. Sonetos completos, edição crítica de Luiz Fagundes Duarte, Lisboa, Abysmo, 2017, p. 160.

Notas: 1 Oceano nox: noite no oceano (em latim); 2 cismando: que pensa continuamente; 3 gravitar: andar em volta de um astro; atuar em função de algo.
4 bramido: rugido; grito.

1. Divida o poema em sequências lógicas e sintetize cada uma delas.

2. Atente nas duas quadras.


2.1. Descreva o cenário e o estado de espírito do sujeito poético, explicitando aspetos em comum entre os
mesmos.

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3. Tendo em conta os tercetos e o valor expressivo da conjunção adversativa no verso 12, explicite o desejo do eu
lírico expresso nas interrogações retóricas e a resposta dos «Seres elementares» a essas questões. Fundamente a
sua resposta convenientemente.

4. Explique de que forma os elementos da natureza são personificados no poema.

5. Comprove a presença das configurações do Ideal e da angústia existencial no poema.

II

Tormento do ideal

Conheci a Beleza que não morre


E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,

Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre;


Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cor, bem como a nuvem que erra
Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.

Pedindo à forma, em vão, a ideia pura,


Tropeço, em sombras, na matéria dura,
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o batismo dos poetas,


E assentado entre as formas incompletas
Para sempre fiquei pálido e triste.

1. Resuma o que é dito pelo eu poético nas duas primeiras quadras do soneto.

2. Ao longo do poema referem-se dois tipos de realidade.


2.1. Caracterize as duas realidades e apresente exemplos de cada uma delas.

3. Interprete o que é dito no primeiro terceto do soneto.

4. Interprete o terceto final do poema, a «chave de ouro», e identifique um recurso estilístico presente no verso
12, comentando o seu valor expressivo.

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