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mai

2020

a casa holandesa
ann patchett

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AOS LEITORES
A Casa Holandesa é a história de Maeve e Danny, dois irmãos que têm a
vida transformada pelo casarão nos subúrbios da Filadélfia, uma cons-
trução admirável da década de 1920 onde passaram parte da infância.
Foi lá que eles ganharam e perderam quase tudo, exceto um ao outro.
Oitava ficção de Ann Patchett, que tem publicados no Brasil, pela In-
trínseca, os romances Bel Canto e Estado de graça, a obra que inspira a
revista intrínsecos 020 toca em temas importantes, como maternida-
de e abandono, enquanto forja, ao longo do amadurecimento de Maeve
e Danny, um dos relacionamentos fraternos mais intensos e bonitos que
você verá em um livro. Dos dois, da casa, dos habitantes que por ela
passam e de suas histórias surgiram os argumentos para o ensaio de
Karin Hueck sobre madrastas e contos de fada e para a crônica inédita
de Julia Wähmann, “Uma xícara de açúcar”. Do ofício da autora, que é
também livreira, e de sua paixão por arte, surgiram os convite para que
a ex-editora Martha Ribas nos contasse a história da abertura de sua
livraria independente, a Janela, e para que Vivian Villanova, uma das
curadoras da última Bienal de Arte Contemporânea de Curitiba, inves-
tigasse a gênese de um retrato a óleo que é parte especial do livro que
você vai ler. Nas artes de Felipe Freitas, no começo, meio e fim da revis-
ta, perspectivas diferentes de um dos mais importantes personagens da
trama: a Casa Holandesa.

Boa leitura!

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04 A CASA
10 ABRA A
HOLANDESA JANELA!

sinopse depoimento

06 ANN PATCHETT
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UMA XÍCARA
DE AÇÚCAR

perfil crônica

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COLABORAÇÕES

Martha Ribas
Editora por mais de vinte
anos, fundou a
Casa da Palavra e dirigiu a
AS PARTES Leya no Brasil, hoje sócia
DE UM TODO da Janela Livraria
@janela_livraria

Julia Wähmann
cultura Autora de Cravos e Manual
da demissão, tem textos
publicados em O Globo e na
Granta em Língua Portuguesa
@aspiscinas

24
Vivian Villanova
Desde 2015 lidera o projeto
“Vivieuvi”, que distribui
conteúdo em vídeo sobre
arte e cultura gratuitamente
nas redes sociais
QUEM INVENTOU @vivillanova

A MADRASTA? Karin Hueck


Jornalista e escritora, foi
editora da Superinteressante
e pesquisadora do
ensaio
departamento de gênero da
Universidade Livre de Berlim
@karinhueck

Felipe Freitas
Ilustrador e designer
@nippx

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/ sinopse

A CASA HOLANDESA

“— Você acha que é possível enxergar o passado


como ele realmente aconteceu? — perguntei à mi-
nha irmã. Estávamos sentados no carro dela, esta-
cionados em frente à Casa Holandesa em plena luz
do dia no início do verão.”

A
pós a Segunda Guerra Mundial, graças a uma conjugação de sorte
e senso de oportunidade, Cyril Conroy entra no ramo imobiliário,
criando um negócio que logo se torna um império e leva sua família
da pobreza para uma vida de opulência. Uma de suas primeiras aquisições
é a Casa Holandesa, uma extravagante propriedade no subúrbio da Fila-
délfia. Mas o que ele imaginou que seria uma surpresa incrível para a esposa
acaba por desencadear o esfacelamento da família.
Quem nos conta essa história é o filho de Cyril, Danny, quando ele e a
irmã mais velha — a autoconfiante Maeve — já não moram mais na casa em
que cresceram, onde cada centímetro um dia ocupado por eles, pela mãe e
pelo pai agora pertence à madrasta e suas duas filhas. Danny e Maeve apren-
deram muito cedo que eram a única certeza na vida um do outro. Eles e a Casa
Holandesa.
A construção — erguida na década de 1920 pelos VanHoebeeks, um casal
que fez fortuna comercializando tabaco e cujos retratos em tamanho real ainda
estão acima da lareira, na sala de estar — exerce certa aura mágica sobre todos
os habitantes da trama, não apenas Maeve e Danny. Foi um troféu para o pai de-
les, um fardo para a mãe, uma ambição concretizada para a madrasta. Apesar de
suas conquistas ao longo da vida, Danny e Maeve só se sentem verdadeiramente
confortáveis quando estão juntos e repetidas vezes voltam àquele endereço, obser-
vadores externos da própria vida.

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sinopse /

Narrada ao longo de cinco décadas, A


Casa Holandesa é uma história sobre a
dificuldade de superar o passado. Sobre
maternidade e irmandade. Sobre as esco-
lhas que nós fazemos e as que os outros
fazem por nós. E, embora seja um livro
repleto de reviravoltas que nos fazem de-
vorar a trama, seus personagens perma-
necem conosco ainda por muito tempo.
O formato não linear do romance é ma-
gistralmente conduzido por Ann Patchett,
que segue por um fio temporal que vai e
vem, em cenas que soam como uma boa
conversa e se espalham por várias páginas
ou em décadas inteiras condensadas em
três, quatro linhas que fazem perder o fô-
lego. As intenções de Patchett são bem cla-
ras: ela vai envolver você e carregá-lo sem
resistência na cadência das lembranças de
Danny. Sua única escolha é se deixar levar.

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/ perfil

ANN PATCHETT

De escritora
premiada a livreira
independente

A
utora de oito romances e três obras padroeiro dos mentirosos) e se consa-
de não ficção, premiada com o grou em 2001, com Bel Canto, romance
mance
PEN/Faulkner e o Orange Prize, laureado com alguns dos mais importan-
ortan-
traduzida para mais de trinta idiomas e tes prêmios do ano e publicado no Brasil
eleita pela revista Time uma das 100 Pes- pela Intrínseca. A voz incontestavelmen-
elmen-
soas Mais Influentes te empática dass nar-
do Mundo, a ameri- rativas da escritora
ritora
cana Ann Patchett é, é uma marca queue a
em todos os outros Dizem que
Di diferencia de suas
uas
aspectos, uma pessoa contemporâneass
comum. Ela mora não sei criar — “Dizem que
com o marido em
vilões não sei criar
Nashville, Tennessee, vilões”, ela
no bairro onde cres- já afirmou em
ceu e toca com a sócia mais de uma entre-
uma aconchegante e bem-sucedida livra- vista. Do desafio de vencer essa barreira
arreira
ria independente, a Parnassus Books. surgiu Andrea, a madrasta que toma a para
Se a carreira de escritor começa com si tudo o que um dia pertenceu aos entea-
a publicação do primeiro livro, a de Ann dos em A Casa Holandesa.
iniciou-se em 1992, com o lançamento Ann Patchett, que nasceu na Califór-
alifór-
de The Patron Saint of Liars (o santo nia e mudou-se para o Tennesseee após

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perfil /

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/ perfil

o divórcio dos pais, também teve uma


madrasta e conviveu com meios-irmãos,
mas a inspiração para Andrea veio da
conversa com uma amiga que lhe conta-
ra a história de uma mãe que fez na vida
real exatamente o que o livro narra na fic-
ção. Amadurecer a ideia e encaixá-la na
trama provocou em Ann uma séria autoa-
valiação: como escrever sobre uma mãe
terrível sem nunca ter sido ou tido uma?
“Descobri que dá para ser autobiográfico
escrevendo sobre o que tememos. Eu quis
falar sobre o tipo de maternidade que não
gostaria de vivenciar.”
A Casa Holandesa começou a ser
escrito em 2016 e o trabalho não foi fá-
cil. “Eu me sentia como Thelma e Loui-
se diante do penhasco. Cometi muitos
erros”, Ann relembra. A obra começou
como uma narrativa em primeira pessoa,
foi reescrita em terceira pessoa, depois
voltou à primeira. Tais táticas não funcio-
naram, e o processo tinha que ser refeito
praticamente do zero. Em certa altura, já
em cima do prazo de entrega inadiável
estipulado pelos editores, todo o último
terço do livro foi repensado.
Tudo isso em meio ao trabalho diá-
rio de Ann no comando de sua livraria. A
Parnassus Books foi inaugurada em 2011
e fez de Ann uma verdadeira embaixado-
ra dos livreiros independentes. Recen-
temente, a gigante Amazon anunciou a
abertura de uma loja física pertíssimo da
Parnassus Books — o que para a escritora

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perfil /

foi uma prova do grande sucesso de seu


negócio. Avessa à internet e à tecnologia,
ela não chega nem perto do Twitter e do
Instagram e não tem o hábito de ver tevê,
muito menos de comprar on-line. Ela só
tem um celular relativamente moderno
porque seu aparelho — um modelo com
flip de quinze anos atrás — saiu de linha.
E o telefone só é usado para falar com
o marido quando está em turnê. Quem
manda mensagem de texto já sabe que
não haverá resposta e, quando, por acaso,
uma chamada cai na caixa-postal, o reca-
do avisa que Ann não sabe acessá-la.
Assumidamente influenciada por fi-
guras como Philip Roth, John Updike e
Saul Bellow, Ann conta que esses eram
os escritores que os pais dela liam e os
livros que estavam pela casa na sua ado-
lescência. Mas ela acredita que o modo
como a leitura nos toca tem menos a ver
com quem você está lendo e mais com
quando está lendo. Em cada fase da vida,
o mesmo livro desperta sentimentos dis-
tintos — um argumento que imprime à li-
teratura uma deliciosa liberdade e que se
reflete, claro, na obra da escritora. Como
diz Jojo Moyes: “Poucos romancistas hoje
combinam um olhar tão aguçado e um
entendimento tão profundo da natureza
humana. De Ann Patchett, eu leria até a
lista de supermercado.”

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/ depoimento

ABRA A
JANELA! Uma livraria
aberta e afetiva
pode transformar
a relação das
pessoas através
dos livros
MARTHA RIBAS

A
Janela nasceu de um sonho e de um lugar para falar das histórias que tan-
um desejo. Quando Leticia Bosi- to amamos. Um lugar para o brinde e o
sio me convidou para ser sua sócia abraço.
numa livraria, eu recusei e aceitei. Durante 22 anos trabalhei no mercado
Recusei pensando na luta e no esforço editorial, fui editora e empreendedora, e
que é abrir um ne- pensei em mudar.
gócio no Rio de Ja- Deixar de ser filtro
neiro, pensando nas e passar a ser pon-
planilhas, pensando Escrevo hoje
Es te. Tantos livros
nos gigantes on-li-
depois de uma são publicados,
ne, pensando nas tantas novidades...
pesquisas de mer- semana de Em vez de conti-
cado que apontam nuar abarrotando
ano a ano a queda portas abertas. as. as prateleiras, por
no número de leito- que não ajudar a
res e de exemplares esvaziá-las? Preci-
vendidos. samos de gente para encantar os leitores!
Aceitei pensando na alegria que é ter Tive algumas experiências de venda
um espaço pequeno e acolhedor, com li- direta ao público, nas Primaveras dos
vros, gente boa, café e bolo, vinho e em- Livros e nas Bienais, e sempre conside-
panada, um lugar de pausa e encontro, rei esses momentos um dos melhores

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depoimento /

“A Janela nasceu de um
sonho e de um desejo.”

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do trabalho. A troca com o leitor, a
possibilidade de ouvir e aprender,
conhecer.
E acredito que tem lugar para o
algoritmo e para o acaso. Essa pala-
vrinha que permite a gente se deixar
levar pela sorte. A correria está in-
sana, a agenda lotada, o ritmo alu-
cinante. A produtividade é a palavra
da vez, seguir planejamentos, focar
no sucesso, no acerto, no retorno.
Mas a vida é mais do que isso, pode
e deve ser mais do que isso. Então
o sonho venceu, Leticia me conven-
ceu e a jornada de montar a livraria
começou em outubro de 2019. Em
março, abrimos as portas. Pensei em
como uma livraria muda um bairro,
abre uma janela para o mundo.
Foram meses de muito traba-
lho e aprendizado. Pensamos em
cada detalhe. Até curso de barista
fizemos. Fomos a São Paulo visi-

Na foto acima,
Martha Ribas
arrumando os
livros nas estantes
da Janela.
Na foto ao lado,
Martha e a sócia,
Leticia Bosisio,
durante a obra.
Na página
seguinte, espaço
para cursos,
encontros e livros
infantis.

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tar editoras, cafés e livrarias, vimos um E cada exemplar vendido, cada elogio
renascimento de pequenas livrarias in- ao café, cada agradecimento pela exis-
dependentes, o que nos deu muita força: tência da Janela faz o coração bater mais
Mandarina, Livraria da Tarde, Livraria forte, faz os olhos brilharem, faz a gente
do Comendador, Livraria da Travessa, acreditar que é possível.
Mega Fauna, Livraria Simples, Casa Pla- O tempo escorre entre os dedos, mas
na, Banca Tatuí, Banca Curva... temos que cuidar de nós, dos outros, do
Escrevo hoje depois de uma semana de planeta. Compramos e vendemos pro-
portas abertas. Uma luta imensa, adminis- dutos locais, não usamos plástico, esti-
trar o café em conjunto com a livraria foi mulamos o consumo consciente. Acre-
uma aposta ousada. Montamos um car- ditamos na soma e não no contraponto,
dápio leve e simpático, mas tudo dá mui- que há lugar para a praticidade e para a
to trabalho. Eu brinquei que é mais fácil experiência individual e coletiva. E todas
editar um livro de mil páginas do que fazer as formas de amor valem a pena. O re-
um café chegar quente à mesa junto com nascimento das livrarias independentes,
o pão de queijo! O sistema não existia, foi a gigante multinacional, os clubes do li-
complicado. O povo bebendo uma taça de vro. Todos juntos e separados, tudo isso
vinho e lendo Jojo Moyes, levando livros e mais um pouco, tudo para você curtir a
para mesa sem receio, pagando tudo junto vida, relaxar e mergulhar neste universo
— não faz ideia da saga, mas acha graça e extraordinário que encontramos nas pá-
começa a entender que a gente vende aqui ginas de um livro.
muito mais do que livros. Vende outra
possibilidade de viver a vida.

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/ crônica

UMA XÍCARA
DE AÇÚCAR

JULIA WÄHMANN

C
enas domésticas: um macaco-pre- dezembro aparece o sujeito que se veste
go na bancada da cozinha comendo de Papai Noel e encarna o personagem a
fruta-do-conde e jogando os ca- ponto de comparar os preços locais àque-
roços no chão. A reação mais óbvia vem les praticados no Polo Norte. O Papai
como conselho: “Você devia colocar telas Noel da padaria é autônomo, não tem re-
nas janelas.” E, embora os bichos vez ou lação com estabelecimentos comerciais, é
outra façam sujeiras com as quais eu não motivado exclusivamente pelo desejo e,
gostaria de lidar, ainda não estou conven- assim como os demais de sua espécie, de-
cida disso. Nem quando eles arruínam saparece durante o restante do ano.
os meus planos para o café da manhã. Inicialmente achei que Papai Noel e a
Do meu prédio até a padaria da esquina vizinha que varre a rua compartilhavam
são sete minutos, segundo o aplicativo de desse sentimento do desejo. Com o tem-
mapas. Mas ele não leva em consideração po, porém, percebi que a vizinha que var-
macacos, borboletas ou vizinhos. re tem toda pinta de sofrer de algum tipo
A padaria, cá entre nós, fabrica um de transtorno obsessivo. Territorialista,
pão terrível, e tudo lá é mais ou menos ela varre sempre o mesmo trecho da rua,
péssimo, a depender da fome do dia. Mas ali bem na curva. O figurino é invariável:
tem Artênio, o poeta árcade que, entre vestido de malha azul desbotado e boti-
um atendimento e outro, compartilha nhas marrons daquelas indicadas para
seus versos bucólicos com quem se ar- trilhas e caminhadas. Tente estacionar o
risca com os sonhos de balcão. Quando é carro no perímetro da vizinha que varre

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/ crônica

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crônica /

e ela vai pedir para que dê uma voltinha vência. O aplicativo de mapas diz que a
até ter terminado a tarefa. No dia seguin- cachoeira mais próxima fica a quinze mi-
te, e pelos próximos, qual um funcionário nutos a pé. Mas ele não leva em conside-
exemplar — ou um robô —, a vizinha que ração a banca de doces no ponto final do
varre varrerá, alheia aos cumprimentos ônibus, as oferendas a Oxum, o cachorro
de bom-dia, boa-tarde, boa-noite. abandonado e amarrado ao poste que
A aptidão social da vizinha que varre acabo convencendo uma vizinha a adotar.
é o avesso da disponibilidade do sujeito Dilermando — era esse o nome do
que faz ioga ao ar livre durante o inverno. cachorro de uma das minhas escritoras
Exibido em posturas e em seu calção ver- preferidas. Convenci a vizinha de que cai-
melho, o iogue simpático dispara sorrisos ria bem no vira-lata simpático que virou
e até mesmo interrompe a prática para uma espécie de cachorro compartilhado.
acenar ou seguir o sol até a última nes- Fiquei responsável pelos passeios mati-
ga, o que o leva a fazer seus pranayamas nais, eventos em que posso ser vista es-
tanto na calçada quanto no meio da rua, baforida, usando tênis de corrida, sendo
em comunhão com o asfalto, a depender levada por Dilermando por caminhos que
do alcance dos raios. Em comum com o os aplicativos de mapas desconhecem.
Papai Noel, mas em um calendário al- Talvez alguém me julgue digna de um dia
ternado, ele é pouco visto no restante do figurar em uma eventual crônica sobre o
ano. Nos períodos mais quentes do verão, bairro. E também o vizinho que planta
quando as piscinas infláveis dominam tomates e os distribui quando a colhei-
o cenário, o iogue deve recorrer a locais ta é boa. Ou a moça que pragueja contra
mais bem refrigerados para saudar o sol. quem come os frutos da pitangueira dire-
“Você devia escrever sobre todos esses to do pé, sem higienizá-los. Mas é difícil
personagens”, me dizem as mesmas pes- manter a concentração com tanta coisa
soas entusiastas das telas contra macacos, acontecendo lá fora. Aqui na esquina de
sem notarem a contradição que é querer casa até que o mundo é legal.
algumas histórias ao mesmo tempo que
montam proteções contra outras. Até
penso nisso, confesso. Mas pela janela,
além dos bichos, também entra a algazar-
ra das crianças e das amigas que colocam
suas cadeiras de plástico na calçada para
papear nos dias em que a sensação térmi-
ca atinge níveis insuportáveis. De biquíni
ou maiô, as mais velhas se banham com
a mangueira enquanto as crianças fazem
das piscinas infláveis a chave da sobrevi-

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/ cultura

AS PARTES
DE UM TODO
Noah Saterstrom
e o quadro da
Casa Holandesa
VIVIAN VILLANOVA

T
enho uma amiga que compra livros pela capa. Ela lê poucos ou quase nenhum
dos títulos que coleciona, o que encanta sua alma é mesmo a escolha das cores,
as figuras, as formas, a fonte, o alinhamento do texto e a dança de elementos
que antecipam as emoções de uma história. Para ela, ir à livraria é como passear por
um museu. E foi nessa amiga que pensei de imediato quando fui convidada a escrever
sobre a obra que ilustra a capa da primeira edição de A Casa Holandesa, publicada nos
Estados Unidos.
Uma menina de cabelos escuros, amarrados atrás das orelhas, encara o leitor. Ela
tem os olhos azuis, o nariz delicado, a boca vermelha como o vestido, preso na cintura
por um laço preto. Suas mãos repousam uma sobre a outra à frente do corpo e o tronco
está levemente torcido em uma posição que lembra a tradição de retratos da história da
arte. O fundo da pintura é decorado por um papel de parede com andorinhas azuis que

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cultura /

voam entre flores cor-de-rosa. Do lado Os lóbulos quase se misturam com o fun-
direito, um vaso com flores cor de laran- do. No cabelo, camadas finas de tinta pre-
ja. A moldura é azul e de linhas retas do ta foram absorvidas pela tela e o pescoço
lado de fora, dourada e com entalhes exibe um detalhe laranja que eu não havia
do lado de dentro. percebido ao observar a pintura inteira,
O retrato que acabei de descrever foi algo que poderia ser um lenço ou um pe-
pintado por Noah Saterstrom especial- daço de camisa.
mente para a capa do livro. A menina é A segunda postagem, de 27 de setem-
Maeve, uma das protagonistas da histó- bro, mostra a pintura das mãos de Maeve
ria que, junto ao irmão, Danny, vivencia ao lado da foto das mãos de uma criança
o abandono da mãe, a morte do pai e os real. Saterstrom conta que, quando esta-
percalços da convivência com uma ma- va terminando a pintura, Julia, sua espo-
drasta terrível. A pintura é mencionada sa, disse que as mãos estavam esquisitas
em duas passagens do romance e estaria e que ele deveria se basear nas de Vivian,
pendurada na casa que dá título ao livro. a filha deles. Saterstrom então levou a fi-
Para a produção do retrato, Ann Patchett lha ao estúdio e reproduziu suas mãos re-
enviou a Noah Saterstrom as páginas com pousadas uma sobre a outra, exatamente
a descrição da tela, e o artista lhe entre- como vemos na pintura de Maeve.
gou o quadro pronto em quatro dias. Maeve é uma criação trazida à vida
Como não conhecia o trabalho de através das palavras de Ann Patchett, das
Saterstrom, procurei seu perfil no Ins- cores dos pincéis de Saterstrom e cujas
tagram (@noahsats) para ver o estilo do mãos vêm do corpo de Vivian. Maeve é
traço e a escolha de cores em suas ou- o retrato de uma pessoa que é tantas ou-
tras produções. Entre esboços e retratos tras e isso é o que sempre me encantou
de pintores famosos como Pablo Picasso nesse gênero de pintura. Afinal, quantas
e Helen Frankenthaler, me deparei com vidas se misturam em um retrato entre
Maeve viajando pelo mundo, em um pro- as nuances do retratado e as mãos do ar-
grama de TV, admirando um lago, intera- tista? Maeve poderia estar pendurada em
gindo com Tom Hanks. Mas duas posta- uma galeria, mas está exposta em livra-
gens me chamaram atenção e gostaria de rias por todo o mundo. Minha amiga co-
dividi-las aqui. lecionadora de capas de livros ficará feliz
Em uma postagem de 22 de março quando se deparar com ela.
vemos o rosto de Maeve em detalhes.
As pinceladas de Saterstrom são nítidas.
Movimentos circulares partem do lábio
superior em direção aos olhos. Uma ca-
mada espessa de tinta branca ilumina a
testa. As sobrancelhas são curtas e altas.

Maeve, de Noah Saterstrom, 2018.

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QUEM INVENTOU Todo conto


de fadas tem
A MADRASTA? uma. Mas nem
todas são fruto
da fantasia. Uma
explicação histórica
para as madrastas
más da ficção.
KARIN HUECK

E
ra uma vez um menino que perdeu Essa narrativa se chama “O pé de zimbro”
a mãe logo quando nasceu e mora- e faz parte dos Contos maravilhosos in-
va em uma casa com o pai e a nova fantis e domésticos, dos irmãos alemães
esposa dele. Acontece que a mulher era Jacob e Wilhelm Grimm, o mesmo livro
muito malvada, muito desalmada, e odiou de onde saíram contos de fadas um pou-
a criança desde o primeiro momento em co menos macabros, como “Cinderela” e
que a viu. Um belo dia, a madrasta acor- “Branca de Neve” — que, aliás, também
dou com vontade de comer maçã e pediu têm madrastas más.
ao enteado que buscasse uma no baú da Ao longo do século XX, os psicana-
cozinha. Bastou o menino se debruçar listas foram os primeiros a analisar a
para pegar a fruta que — pá! — a madras- existência dessas figuras malévolas nas
ta fechou a tampa do baú no pescoço dele histórias. Para eles, as madrastas repre-
e o decapitou. Sem hesitar, a mulher re- sentavam, metaforicamente, os defeitos
solveu fazer ensopado com o corpinho do das próprias mães e seriam uma maneira
menino: cozinhou-o lentamente em um aceitável de a criança odiar a pessoa que
caldeirão e serviu para o marido no jan- deveria amar acima de tudo. Mas essa
tar. “Quero mais, quero comer tudo isso não é a única interpretação possível.
sozinho”, disse o pai, deliciando-se sob o Nos últimos anos, historiadores re-
olhar dissimulado da esposa. solveram se debruçar sobre os contos
Madrastas más são presença frequen- infantis e as narrativas folclóricas em
te nas histórias que lemos desde criança. busca de indícios sobre o modo de vi-

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ver dos séculos passados. Se as histórias


falam de príncipes e princesas, castelos
e cavaleiros – todos elementos que de
fato existiram —, será que não há mais
nada que possamos apreender da reali-
dade daquele tempo através delas? É aí
que entram as madrastas. Ao que tudo
indica, naquela época era muito mais
comum que uma criança fosse criada
por uma mulher que não a gerou do que
atualmente.
Antes do advento da técnica do parto
cesariano, da anestesia e das noções bá-
sicas de higiene, a taxa de mortalidade
durante o parto era altíssima. De acordo
com uma pesquisa realizada pelo médico
inglês Geoffrey Chamberlain, na Londres
do século XVII, 23 mulheres morriam ao
dar à luz a cada mil partos (hoje, a OMS
recomenda que esse número não passe
de 0,2 morte a cada mil partos). Parir era
algo tão perigoso que a expectativa de
vida das francesas da Borgonha do sécu-
lo XIX era de apenas 25 anos. No Reino
Unido, nos séculos XVI e XVII, a taxa de
mortalidade das mulheres casadas nos
primeiros cinco anos de união era 70%
maior do que a dos homens casados —
um número que só pode ser explicado
pela mortalidade materna. Some esses
dados à taxa de fertilidade elevadíssima
dos séculos passados e está pronta a mis-
tura explosiva: as chances de uma mulher
viver para ver a prole crescer eram muito
menores do que as de hoje em dia.
Quando uma mulher morria ao dar

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à luz, restava ao viúvo cuidar dos filhos.


Mas o viúvo raramente ficava sozinho;
logo casava-se de novo e trazia para den-
tro de casa uma nova mulher que deveria
criar os filhos dele. De acordo com Eugen
Weber, historiador francês que analisou
contos infantis, na França do século XVII,
entre 40% e 80% dos homens se casavam
uma segunda vez. Ou seja, todos os fi-
lhos do primeiro matrimônio iam parar
na mão de mulheres que não os haviam
gerado.
É claro que isso por si só não explica
os enredos dos contos de fadas. Muito
menos serve como prova de que toda ma-
drasta da vida real é má. O que as narrati-
vas infantis fizeram foi exagerar um com-
portamento humano: a predileção que as
mulheres podem ter pelos próprios filhos
em detrimento dos enteados. Nada deixa
isso mais claro do que as primeiras linhas
de outra história dos irmãos Grimm, A
senhora Holle: “Era uma vez uma viúva
com duas filhas, uma bela e trabalhadora;
a outra, feia e preguiçosa. A senhora tinha
imensa predileção pela feia e preguiçosa,
porque essa era sua própria filha.” É fá-
cil imaginar o destino sofrido da menina
bela e trabalhadora.

Carl Simon, 1910, pintura em vidro.


Artes inspiradas na história
A senhora Holle, dos irmãos Grimm.

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A revista intrínsecos é uma publicação exclusiva do clube
de assinatura da editora Intrínseca e chega aos leitores mensalmente
acompanhando o livro distribuído pelo clube.

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PROJETO EDITORIAL
Intrínseca

DIREÇÃO DE ARTE
Aline Ribeiro | linesribeiro.com

DIAGRAMAÇÃO
Julio Moreira | Equatorium Design

IMAGENS
Foto da autora © Heidi Ross; fotos pág. 11, Mônica Ramalho;
pintura pág. 22 © Noah Saterstrom; págs. 25-27 © United Archives GmbH/Alamy Stock;
demais imagens: arquivos Shutterstock.

As aspas citadas no perfil da autora foram extraídas de entrevistas aos jornais Guardian e
The New York Times.

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Nos contos de fadas, jovens órfãos e desprotegidos invariavelmente m
sofrem nas mãos de madrastas. A Rainha Má é o primeiro lugar
incontestável na lista de madrastas malignas, pois cometeu não uma,
mas duas tentativas de assassinato contra sua enteada, Branca de Neve.

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