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019
2020
as outras pessoas
c. j. tudor
AOS LEITORES
A edição 019 da intrínsecos é dedicada à escritora C. J. Tudor e seu
mais novo thriller, As Outras Pessoas — nosso livro do mês. C. J., que
estreou na literatura em 2018 com o best-seller O Homem de Giz, é ago-
ra a primeira autora da Intrínseca a ter dois lançamentos no clube: no
último ano, os intrínsecos receberam em primeira mão O que aconte-
ceu com Annie, e ainda tiveram a oportunidade de se inscrever para um
happy hour exclusivo com a autora na Bienal do Livro do Rio de Janei-
ro. A interação foi fantástica, e quando nossos editores tiveram acesso
ao manuscrito de As Outras Pessoas não houve dúvidas: grande autora,
livro maravilhoso, dobradinha inevitável! A história de Gabe, um ho-
mem que perde mulher e filha em circunstâncias misteriosas e passa a
dirigir a esmo pelas rodovias da Inglaterra tentando obter respostas, é
uma road trip surpreendente, angustiante e impossível de largar. Nossa
revista 019 , é claro, vai de carona: vire as primeiras páginas para uma
entrevista exclusiva com a autora; passe com cautela pelos buracos mais
escuros da internet junto do jornalista Felipe Germano; aviste o jipe do
Henrique e da Sabrina, um casal que viaja o mundo sobre quatro rodas;
siga em frente até o ensaio do repórter de viagens Felipe Abílio e termine
seu percurso com as reflexões do psicanalista Christian Dunker sobre os
limites entre justiça e vingança. Como a jornada é tão importante quanto
o destino, não deixe de contemplar a vista cuidadosamente elaborada
pelo artista Rodrigo Fortes, que ocultou cenas do livro nos traços de suas
ilustrações — veja mais acessando o QR-code abaixo.
Boa leitura!
04AS OUTRAS
10 AS OUTRAS
PESSOAS INTERNETS
sinopse reportagem
06 A ÚLTIMA
16NOSSA CASA
QUE MORRE SOBRE RODAS
entrevista depoimento
20
editor convidado
Nathan Fernandes
Jornalista e ficcionista
@nathanef
QUAL É A SUA
ESTRADA?
colaboradores
Felipe Germano
ensaio Jornalista e roteirista,
escreve sobre tecnologia,
sexo e cultura
@fegermano
Sabrina Chinellato e
24
Henrique Fonseca
Jornalista e fotógrafo,
criadores do projeto
Terra Adentro
@terraadentro
Felipe Abílio
VINGANÇA, JUSTIÇA E
Jornalista, criador de
REPARAÇÃO conteúdo e viajante
@goabilio
Christian Dunker
artigo Psicanalista e professor
titular em psicanálise e
psicopatologia do Instituto
de Psicologia da USP
@chrisdunker
Rodrigo Fortes
Ilustrador e designer
@rfortess
/ sinopse
AS OUTRAS PESSOAS
Poucos de nós mostram sua verdadeira face para o mundo.
Por medo de que o mundo a veja e comece a gritar
U
ma menina pálida em um quarto branco. Mãe e filha em fuga, numa
corrida desenfreada e sem destino. Uma garçonete de beira de es-
trada apriosionada na monotonia dos seus dias. E um pai que perde
esposa e filha de maneira brutal e sem explicação. As histórias que se entre-
laçam em As Outras Pessoas são peças de mais um quebra-cabeça sombrio
e cheio de mistérios criado pela escritora C. J. Tudor.
Gabe é o pai desesperado que, consumido por uma esperança doentia,
conduz a trama do livro enquanto guia seu carro pelas estradas em busca da
filha. Ela, assim como a mãe, foi dada como morta num crime não soluciona-
do. Mas ele tem certeza de que não foi bem assim. Apesar de todas as provas
que o contrariam, o homem que fez da angústia sua melhor amiga jura ter visto
a filha viva em um carro desconhecido, parado à sua frente num engarrafamen-
to logo antes de voltar para casa na noite em que perdeu sua família. Três anos
depois, Gabe não tem rumo. Continua dirigindo obsessivamente pelas rodovias,
tentando encontrar um caminho que o leve à solução do mistério.
Mas é longe da estrada, nos cantos mais obscuros e doentios da internet, que
ele acaba encontrando as pistas que tanto procura. Quem navega pela deep web
sabe dos riscos, mas ele não se importa. Quem não tem nada na vida não tem nada
a perder.
Assim como uma encruzilhada depois da curva, as várias histórias dessa trama
se sobrepõem quando menos se espera e de forma surpreendente. Porque mesmo
sinopse /
A ÚLTIMA
QUE MORRE Por que a
esperança vai
devorar vivo
o leitor na
nova obra de
C. J. Tudor
NATHAN FERNANDES
E
xiste um pouco de Gabe — o per- gação dos brasileiros aí do outro
sonagem principal de As Outras lado do oceano? O que os leitores
Pessoas — na escritora C. J. Tudor. podem esperar desse livro?
Apesar de a vida da autora ser evidente- Eu também estou muito empolgada. Quis
mente menos dramática, ambos encon- fazer algo diferente, então esse livro tem
tram na esperança um porto seguro para muito mais suspense do que os outros,
ancorar seus anseios. Depois de dez anos apesar de ainda ter uma reviravolta si-
sendo recusada por editoras, Tudor aba- nistra. Os leitores que curtem os aspectos
lou o mundo editorial com o lançamento mais sombrios e sobrenaturais dos meus
de O Homem de Giz, o que abriu cami- livros não vão se decepcionar.
nhos para o lançamento de O que acon-
teceu com Annie e o mais recente As Ou- Como foi sua passagem pelo Brasil
tras Pessoas. Conversamos com a autora durante a Bienal do Livro, no Rio de
sobre a nova obra, sua vinda ao Brasil Janeiro?
em 2019 e como se manter firme quando Foi maravilhoso. As pessoas foram muito
tudo parece perdido. receptivas e amáveis. Foi um choque ver
como O Homem de Giz é popular. Não
Depois de O que aconteceu com esperava tanta atenção! Também fiquei
Annie, que foi um sucesso, esse é o bastante impressionada com a Bienal e
seu segundo livro lançado pelo in- em ver a multidão que apareceu lá, o en-
trínsecos. Dá para sentir a empol- tusiasmo pelos livros e a área infantil, que
/ entrevista
estava fabulosa. Foi um evento que me Eu nunca entrei de verdade na dark web.
surpreendeu muito. Pesquisei como fazer e o que isso en-
volvia, e também falei com um detetive.
Sua vida mudou bastante depois do Acredito que certas coisas devem perma-
sucesso de O Homem de Giz. Agora, necer intocadas.
você pode se dedicar mais à escrita e
aos eventos literários, por exemplo. Mesmo com uma forte trama prin-
Como essa mudança afetou o proces- cipal, As Outras Pessoas traz quatro
so de criação de As Outras Pessoas? histórias paralelas. Você já tinha
É, a vida mudou, mas não mudou. Eu imaginado todas essas histórias an-
ainda sou mãe. Ainda tenho que levantar tes de começar a escrever ou os per-
toda manhã, fazer o café da minha filha sonagens foram se encontrando no
e preparar o lanche dela para a escola. A caminho?
diferença é que não tenho mais que con- Eu não tinha nenhum plano nesse senti-
ciliar minha escrita com outros trabalhos. do. A história e as conexões foram cres-
Escrever é meu trabalho. E, sim, é ótimo cendo conforme eu escrevia o livro. Só
ser convidada para os eventos literários tive uma vaga ideia de aonde chegaria
para poder falar dos meus livros, conhe- depois que comecei, e isso acabou me
cer os leitores e outros autores. Mas meu levando para direções que eu nem tinha
momento preferido ainda é em casa, com imaginado. Obviamente, eu tinha o Gabe
a minha família. como personagem principal. E também
tinha escrito um capítulo separado para
Como o tema da dark web apareceu Fran e Alice. Já Katie começou como um
na sua vida? personagem pequeno que eu decidi au-
Não era um tema sobre o qual eu queria mentar.
escrever, mas surgiu conforme fui desen-
volvendo a história. Achei interessantíssi- No início do livro, durante os mo-
mo quando comecei a pesquisar. mentos difíceis do Gabe, você com-
para a esperança com o vício em
E quanto você se aprofundou nesse crack, e escreve: “É a esperança
tema? Encontrou alguma coisa as- que vai devorá-lo de dentro para
sustadora durante as pesquisas? fora como um parasita (...) Mas a
entrevista /
AS OUTRAS
INTERNETS A dark web
existe? Entenda
o mundo de
crimes que se
desenrola debaixo
do seu nariz
FELIPE GERMANO
S
ealand”. Jogue esse termo no Goo- comprar o pequeno país. Mas então sur-
gle Imagens e tente adivinhar o que giu um problema: o timing. Na mesma
é aquilo. Um destroço? Uma ilha? década, uma nova tecnologia apareceu
Um país? As respostas são sim, sim e sim. prometendo anonimato completo — e
O nome completo, na verdade, é “Princi- sem nem precisar de uma nação para
pado de Sealand”, uma base náutica des- chamar de sua. Era uma internet sem
truída na Segunda Guerra Mundial, que, rastros. O interesse em Sealand desapa-
apesar de não ser reconhecida pela ONU, receu, enquanto essa nova rede só cres-
luta desde 1967 para fazer seus 4 mil me- cia. Era o fim do principado tecnológico.
tros quadrados se consagrarem como a E o começo da dark web.
menor nação autônoma do planeta. Mas Em As Outras Pessoas, a dark web é
o simples fato de você não a conhecer já o veículo de comunicação de um grupo
prova que algo deu errado. Era para o misterioso. Faz sentido. Nenhum assas-
país ser famosíssimo. sino quer deixar pegadas na lama — e é
Nos anos 2000, tentaram transfor- exatamente isso que fazemos quando
mar o local em um depósito de servi- usamos a internet comum. Você pode
dores onde poderiam ser armazenados não saber, mas absolutamente tudo o que
quaisquer documentos sem a vigilância faz on-line é rastreável. Na dark web, no
do Estado. Um monte de gente se inte- entanto, a situação se complica. É prati-
ressou. Em determinado momento, por camente impossível descobrir de quem (e
exemplo, o Pirate Bay chegou a tentar de onde) veio uma postagem criminosa.
reportagem /
S
abrina e Henrique estão sempre mos a sonhar em dar uma volta ao mun-
em movimento, e, através do ca- do de carro. Depois de dois anos de muito
nal no YouTube, do Instagram trabalho e planejamento, abrimos mão de
e dos livros do projeto Terra Adentro, tudo, de trabalhos a bens materiais, para
o casal mostra como é viver na estra- começar nossa aventura.
da. Enquanto passeavam de camelo na Viajar de carro é o tipo de viagem
Mauritânia, eles compartilharam um que nos deixa mais felizes e completos.
pouco dessa vivência e dicas valiosas O caminho é cheio de surpresas e desco-
para quem pensa em experimentar uma bertas. Não é só o destino final. Por isso,
aventura parecida. quando decidimos que a viagem seria de
carro, no caso um Land Rover Defender
*** 110, começamos a construir dentro dele
uma pequena casa, com cozinha, cama,
Em 2014, fizemos uma viagem de carro armários... Nosso lar sobre rodas nos
pela Patagônia e pelo deserto do Ataca- permite economizar na viagem, em ho-
ma. Depois de 40 dias viajando por Ar- téis e alimentação, além de tornar possí-
gentina, Chile e Uruguai, voltamos dife- vel acamparmos em qualquer lugar. Mas
rentes. A simplicidade e a intensidade da também têm os desafios. O mais difícil foi
vida na estrada nos fez perceber que não fazer tudo caber dentro de um espaço tão
estávamos realizados com nossas vidas pequeno. Nossa casinha tem quatro me-
convencionais no Brasil. Então, começa- tros quadrados. E o mais trabalhoso foi
NORUEGA
PENSE NA ACESSIBILIDADE
Se demoramos mais de trinta segundos para encontrar um objeto dentro do carro,
com o tempo acabamos não usando. Tudo tem que estar acessível, senão vira
um elefante branco.
CAPADÓCIA, TURQUIA
MONTANHAS TATRA, ESLOVÁQUIA
ACEITE A IMPERFEIÇÃO
É preciso entender que o carro nunca vai estar 100% pronto, até por conta das
necessidades de cada região. Na estrada, aprendemos que estamos sempre em
transformação, e o carro também.
ABRACE A EXPERIÊNCIA
Viver no motorhome é transformador. Aprendemos que o essencial não está nos
armários, mas em fazermos o que gostamos. Assim, damos menos importância
para as coisas que a gente tem, e mais para o nosso quintal, que muda a cada dia.
/ ensaio
D
a mesma forma que nascemos e é a sua estrada, homem? A estrada do mís-
vamos, aos poucos, descobrindo os tico, a estrada do louco, a estrada do ar-
caminhos para sentimentos como a co-íris, a estrada dos peixes, qualquer es-
alegria e a raiva, quando estamos no início trada. Há sempre uma estrada em algum
de uma estrada não sabemos o que vamos lugar para alguém de alguma maneira”,
encontrar no fim. Em que curva vai estar escreveu em uma passagem do livro.
nossa próxima alegria ou decepção? Kerouac trilhou um caminho de evo-
Com caminhos estreitos, cheios de la lução pessoal levando na mala o lema:
ma, cascalhos e pedras, a temida Zoji La, “Uma viagem não é só uma viagem, mas
na Índia, é uma estrada que fica na parte uma busca espiritual.” O livro — escrito
ocidental da mais alta cadeia de monta- em três semanas, em 35 metros de papel
nhas do Himalaia, a cerca de 3.528 me- de telex sem parágrafos, espaços ou pon-
tros de altura. É considerada uma das tos — virou a bíblia do movimento beat. O
mais perigosas do mundo. A paisagem poder da história de superação à procura
fascinante, assim como os riscos de bus- de veredas possíveis fez com que pensa-
car o próprio caminho, recompensam. dores como Bob Dylan e Jim Morrison
É a mesma premissa defendida por despertassem para os caminhos que esta-
Jack Kerouac no clássico On The Road, no vam construindo. Ambos mudaram seus
qual ele conta a própria história a caminho rumos e seguiram em busca de vias mais
da liberdade, atravessando as longas rodo- sinuosas, sem atalhos para a realização
vias que cruzam os Estados Unidos. “Qual pessoal.
ensaio /
Manzarek, que o The Doors nasceu. Mas, como na vida, qualquer deslize nos
desfiladeiros neozelandeses, pode ser fatal. São as nossas escolhas que nos ga-
rantem um final seguro. Com a carreira em ascensão, Jim acabou perdendo o
rumo, assumindo os riscos do consumo indiscriminado de álcool e drogas, e
morrendo aos 27 anos.
“Nada atrás de mim, tudo à minha frente, como sempre acontece na estrada”,
diria Kerouac, reforçando o ímpeto aventureiro de Morrison e lembrando que a
vida não passa de uma linha reta a ser moldada por quem ousa caminhar por ela.
/ artigo
VINGANÇA, JUSTIÇA
E REPARAÇÃO
A lei júridica
versus a lei moral
CHRISTIAN DUNKER
H
á muitos anos escuto de meus ami- No entanto, nada disso contempla o
gos promotores e juízes que o direi- fato de que o desejo e a vivência da jus-
to não tem nada a ver com justiça. tiça são experiências psíquicas muito im-
A justiça é um conceito muito maior, feito portantes — qualquer discrepância entre
de sentimentos sociais e avaliações interes- a justiça jurídica (da esfera pública) e a
sadas, fortemente ligado à subjetividade justiça moral (da esfera privada) é vivida
dos indivíduos e suas posições contextuais. como um sofrimento.
O direito seria um mero instrumento para Freud descreveu uma estrutura cha-
tentar traduzir, ainda que imperfeitamen- mada supereu, definida pela interioriza-
te, nosso desejo de justiça. A essência do ção da lei a partir das figuras parentais e
direito é o processo, uma ordem de pro- de sua relação genealógica com seus an-
cedimentos que tentam reunir situações tecedentes, como lugar dessa contradição
equivalentes que ajudem a definir crité- entre justiça e direito.
rios equivalentes que produzam resulta- Coube a Lacan mostrar que o proble-
dos equivalentes, assim novas situações ma do supereu não é ele representar a lei
poderão ser encaixadas nesses parâme- que o neurótico quer transgredir, mas sim
tros, criando um padrão justo de soluções. representar uma “falsa lei”, que é pessoal
Por isso não há crime sem um código ante- e particular daquela família mas se equi-
rior que o tipifique. Por isso também o di- vale, para o indivíduo, à lei impessoal e
reito se fundamenta nas leis escritas, para social do direito. Por isso, quando sen-
tentar evitar as artimanhas da oratória. timos que a instituição do direito falha,
artigo /
projeto editorial
Intrínseca
direção de arte
Aline Ribeiro | linesribeiro.com
diagramação
Julio Moreira | Equatorium Design
imagens
Foto da autora © Cheese Scientist / Alamy Stock Photo; páginas 17, 18 e 19: Terra
Adentro; página 21: David Wall / Alamy Stock Photo; demais imagens: ShutterStock
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