Você está na página 1de 32

abr

019
2020

as outras pessoas
c. j. tudor
AOS LEITORES
A edição 019 da intrínsecos é dedicada à escritora C. J. Tudor e seu
mais novo thriller, As Outras Pessoas — nosso livro do mês. C. J., que
estreou na literatura em 2018 com o best-seller O Homem de Giz, é ago-
ra a primeira autora da Intrínseca a ter dois lançamentos no clube: no
último ano, os intrínsecos receberam em primeira mão O que aconte-
ceu com Annie, e ainda tiveram a oportunidade de se inscrever para um
happy hour exclusivo com a autora na Bienal do Livro do Rio de Janei-
ro. A interação foi fantástica, e quando nossos editores tiveram acesso
ao manuscrito de As Outras Pessoas não houve dúvidas: grande autora,
livro maravilhoso, dobradinha inevitável! A história de Gabe, um ho-
mem que perde mulher e filha em circunstâncias misteriosas e passa a
dirigir a esmo pelas rodovias da Inglaterra tentando obter respostas, é
uma road trip surpreendente, angustiante e impossível de largar. Nossa
revista 019 , é claro, vai de carona: vire as primeiras páginas para uma
entrevista exclusiva com a autora; passe com cautela pelos buracos mais
escuros da internet junto do jornalista Felipe Germano; aviste o jipe do
Henrique e da Sabrina, um casal que viaja o mundo sobre quatro rodas;
siga em frente até o ensaio do repórter de viagens Felipe Abílio e termine
seu percurso com as reflexões do psicanalista Christian Dunker sobre os
limites entre justiça e vingança. Como a jornada é tão importante quanto
o destino, não deixe de contemplar a vista cuidadosamente elaborada
pelo artista Rodrigo Fortes, que ocultou cenas do livro nos traços de suas
ilustrações — veja mais acessando o QR-code abaixo.

Boa leitura!
04AS OUTRAS
10 AS OUTRAS
PESSOAS INTERNETS

sinopse reportagem

06 A ÚLTIMA
16NOSSA CASA
QUE MORRE SOBRE RODAS

entrevista depoimento
20
editor convidado

Nathan Fernandes
Jornalista e ficcionista
@nathanef

QUAL É A SUA
ESTRADA?
colaboradores

Felipe Germano
ensaio Jornalista e roteirista,
escreve sobre tecnologia,
sexo e cultura
@fegermano

Sabrina Chinellato e

24
Henrique Fonseca
Jornalista e fotógrafo,
criadores do projeto
Terra Adentro
@terraadentro

Felipe Abílio
VINGANÇA, JUSTIÇA E
Jornalista, criador de
REPARAÇÃO conteúdo e viajante
@goabilio

Christian Dunker
artigo Psicanalista e professor
titular em psicanálise e
psicopatologia do Instituto
de Psicologia da USP
@chrisdunker

Rodrigo Fortes
Ilustrador e designer
@rfortess
/ sinopse

AS OUTRAS PESSOAS
Poucos de nós mostram sua verdadeira face para o mundo.
Por medo de que o mundo a veja e comece a gritar

U
ma menina pálida em um quarto branco. Mãe e filha em fuga, numa
corrida desenfreada e sem destino. Uma garçonete de beira de es-
trada apriosionada na monotonia dos seus dias. E um pai que perde
esposa e filha de maneira brutal e sem explicação. As histórias que se entre-
laçam em As Outras Pessoas são peças de mais um quebra-cabeça sombrio
e cheio de mistérios criado pela escritora C. J. Tudor.
Gabe é o pai desesperado que, consumido por uma esperança doentia,
conduz a trama do livro enquanto guia seu carro pelas estradas em busca da
filha. Ela, assim como a mãe, foi dada como morta num crime não soluciona-
do. Mas ele tem certeza de que não foi bem assim. Apesar de todas as provas
que o contrariam, o homem que fez da angústia sua melhor amiga jura ter visto
a filha viva em um carro desconhecido, parado à sua frente num engarrafamen-
to logo antes de voltar para casa na noite em que perdeu sua família. Três anos
depois, Gabe não tem rumo. Continua dirigindo obsessivamente pelas rodovias,
tentando encontrar um caminho que o leve à solução do mistério.
Mas é longe da estrada, nos cantos mais obscuros e doentios da internet, que
ele acaba encontrando as pistas que tanto procura. Quem navega pela deep web
sabe dos riscos, mas ele não se importa. Quem não tem nada na vida não tem nada
a perder.
Assim como uma encruzilhada depois da curva, as várias histórias dessa trama
se sobrepõem quando menos se espera e de forma surpreendente. Porque mesmo
sinopse /

uma garçonete desencantada e entediada


pode guardar informações que ninguém
imagina. As figuras mais isoladas e enig-
máticas podem um dia se converter em
grandes aliados. Os personagens à mar-
gem da sua vida podem ser mais relevan-
tes do que parecem. E os limites que se-
param o bem e o mal podem ser apenas
pontos de vista diferentes.

Enquanto isso, uma nota de piano soa no


quarto branco de uma menina pálida.
/ entrevista

A ÚLTIMA
QUE MORRE Por que a
esperança vai
devorar vivo
o leitor na
nova obra de
C. J. Tudor
NATHAN FERNANDES

E
xiste um pouco de Gabe — o per- gação dos brasileiros aí do outro
sonagem principal de As Outras lado do oceano? O que os leitores
Pessoas — na escritora C. J. Tudor. podem esperar desse livro?
Apesar de a vida da autora ser evidente- Eu também estou muito empolgada. Quis
mente menos dramática, ambos encon- fazer algo diferente, então esse livro tem
tram na esperança um porto seguro para muito mais suspense do que os outros,
ancorar seus anseios. Depois de dez anos apesar de ainda ter uma reviravolta si-
sendo recusada por editoras, Tudor aba- nistra. Os leitores que curtem os aspectos
lou o mundo editorial com o lançamento mais sombrios e sobrenaturais dos meus
de O Homem de Giz, o que abriu cami- livros não vão se decepcionar.
nhos para o lançamento de O que acon-
teceu com Annie e o mais recente As Ou- Como foi sua passagem pelo Brasil
tras Pessoas. Conversamos com a autora durante a Bienal do Livro, no Rio de
sobre a nova obra, sua vinda ao Brasil Janeiro?
em 2019 e como se manter firme quando Foi maravilhoso. As pessoas foram muito
tudo parece perdido. receptivas e amáveis. Foi um choque ver
como O Homem de Giz é popular. Não
Depois de O que aconteceu com esperava tanta atenção! Também fiquei
Annie, que foi um sucesso, esse é o bastante impressionada com a Bienal e
seu segundo livro lançado pelo in- em ver a multidão que apareceu lá, o en-
trínsecos. Dá para sentir a empol- tusiasmo pelos livros e a área infantil, que
/ entrevista

estava fabulosa. Foi um evento que me Eu nunca entrei de verdade na dark web.
surpreendeu muito. Pesquisei como fazer e o que isso en-
volvia, e também falei com um detetive.
Sua vida mudou bastante depois do Acredito que certas coisas devem perma-
sucesso de O Homem de Giz. Agora, necer intocadas.
você pode se dedicar mais à escrita e
aos eventos literários, por exemplo. Mesmo com uma forte trama prin-
Como essa mudança afetou o proces- cipal, As Outras Pessoas traz quatro
so de criação de As Outras Pessoas? histórias paralelas. Você já tinha
É, a vida mudou, mas não mudou. Eu imaginado todas essas histórias an-
ainda sou mãe. Ainda tenho que levantar tes de começar a escrever ou os per-
toda manhã, fazer o café da minha filha sonagens foram se encontrando no
e preparar o lanche dela para a escola. A caminho?
diferença é que não tenho mais que con- Eu não tinha nenhum plano nesse senti-
ciliar minha escrita com outros trabalhos. do. A história e as conexões foram cres-
Escrever é meu trabalho. E, sim, é ótimo cendo conforme eu escrevia o livro. Só
ser convidada para os eventos literários tive uma vaga ideia de aonde chegaria
para poder falar dos meus livros, conhe- depois que comecei, e isso acabou me
cer os leitores e outros autores. Mas meu levando para direções que eu nem tinha
momento preferido ainda é em casa, com imaginado. Obviamente, eu tinha o Gabe
a minha família. como personagem principal. E também
tinha escrito um capítulo separado para
Como o tema da dark web apareceu Fran e Alice. Já Katie começou como um
na sua vida? personagem pequeno que eu decidi au-
Não era um tema sobre o qual eu queria mentar.
escrever, mas surgiu conforme fui desen-
volvendo a história. Achei interessantíssi- No início do livro, durante os mo-
mo quando comecei a pesquisar. mentos difíceis do Gabe, você com-
para a esperança com o vício em
E quanto você se aprofundou nesse crack, e escreve: “É a esperança
tema? Encontrou alguma coisa as- que vai devorá-lo de dentro para
sustadora durante as pesquisas? fora como um parasita (...) Mas a
entrevista /

esperança não vai matá-lo. Não é quais são as outras referências de


tão gentil assim.” Você esperou dez que ninguém fala muito?
anos para ter seu primeiro livro pu- Hummm… Eu comecei lendo Agatha
blicado. Teve algum momento em Christie quando era mais nova — foi as-
que se sentiu consumida pela ex- sim que comecei a me interessar por mis-
pectativa? térios e assassinatos. Também sou muito
Acho que houve momentos em que eu fã do Harlan Coben. Amo as reviravoltas
achei que nunca seria publicada. Mas, inteligentes e o humor dele.
no geral, sou otimista. Apesar de ter sido
frustrante e decepcionante, tentei ver O livro é cheio de referências à cul-
pelo lado positivo. Publiquei alguns con- tura pop, como Scooby-Doo e Peppa
tos, e isso me ajudou financeiramente. Pig. Você tem algum “guilty plea­
Tive minha filha aos 41 anos, e foi maravi- sure”, algo que se culpa por gostar?
lhoso. Também trabalhei como passeado- Não acredito em “culpa” quando falamos
ra de cães, e gostava. Então, mesmo que em prazer. Deveríamos celebrar todos os
eu nunca tivesse sido publicada, eu ainda nossos prazeres. Eu amava Scooby-Doo
teria a escrita. Nunca me desesperei por- quando era criança e agora minha filha
que tive muitas outras coisas na vida pe- ama também — inclusive, assistimos jun-
las quais eu me sentia grata. Na verdade, tas. Sou uma grande fã de CSI, e o meu
eu me sinto muito grata. Acho que todas filme favorito é Os Garotos Perdidos.
as rejeições ajudaram de alguma forma, Também me empolgo muito com Os Caça-
porque me tornaram mais focada em ser -Fantasmas 3. Ah, além disso sou uma fã
uma escritora melhor — provavelmente, geek de Doctor Who.
eu ainda não era boa o suficiente, não
tinha encontrado minha voz como escri-
tora. Às vezes, as coisas na vida devem
acontecer em momentos certos. É assim
que eu vejo.

Muita gente compara seu traba-


lho com o de Stephen King, que é
uma referência sua declarada. Mas
/ reportagem

AS OUTRAS
INTERNETS A dark web
existe? Entenda
o mundo de
crimes que se
desenrola debaixo
do seu nariz
FELIPE GERMANO

S
ealand”. Jogue esse termo no Goo- comprar o pequeno país. Mas então sur-
gle Imagens e tente adivinhar o que giu um problema: o timing. Na mesma
é aquilo. Um destroço? Uma ilha? década, uma nova tecnologia apareceu
Um país? As respostas são sim, sim e sim. prometendo anonimato completo — e
O nome completo, na verdade, é “Princi- sem nem precisar de uma nação para
pado de Sealand”, uma base náutica des- chamar de sua. Era uma internet sem
truída na Segunda Guerra Mundial, que, rastros. O interesse em Sealand desapa-
apesar de não ser reconhecida pela ONU, receu, enquanto essa nova rede só cres-
luta desde 1967 para fazer seus 4 mil me- cia. Era o fim do principado tecnológico.
tros quadrados se consagrarem como a E o começo da dark web.
menor nação autônoma do planeta. Mas Em As Outras Pessoas, a dark web é
o simples fato de você não a conhecer já o veículo de comunicação de um grupo
prova que algo deu errado. Era para o misterioso. Faz sentido. Nenhum assas-
país ser famosíssimo. sino quer deixar pegadas na lama — e é
Nos anos 2000, tentaram transfor- exatamente isso que fazemos quando
mar o local em um depósito de servi- usamos a internet comum. Você pode
dores onde poderiam ser armazenados não saber, mas absolutamente tudo o que
quaisquer documentos sem a vigilância faz on-line é rastreável. Na dark web, no
do Estado. Um monte de gente se inte- entanto, a situação se complica. É prati-
ressou. Em determinado momento, por camente impossível descobrir de quem (e
exemplo, o Pirate Bay chegou a tentar de onde) veio uma postagem criminosa.
reportagem /

Em As Outras Pessoas, a dark web é o veículo


de comunicação de um grupo misterioso. Faz
sentido. Nenhum assassino quer deixar pegadas
na lama — e é exatamente isso que fazemos
quando usamos a internet comum.
Para entender um pouco melhor a si­ rer, o Tor é a tal tecnologia que afundou
tuação, é importante diferenciar a dark Sealand. Ao usá-lo, você apaga todos os
web da sua prima mais famosa: a deep web. seus rastros. Como? Pense em uma cebola.
Há três zonas na internet: a mais usual é a A ferramenta cria anéis de encriptação,
superfície. São sites comuns, como a pági- sobrepondo senhas em cima de senhas,
na do intrínsecos, em que qualquer um enquanto faz suas mensagens viajarem
pode entrar livremente. A superfície aca- por servidores randômicos ao redor do
ba aí, porque tudo que está protegido por mundo. Tudo para despistar. Somando os
uma senha já é considerado deep web. Ao códigos com uma volta ao mundo digna
logar no site do intrínsecos, por exem- de Carmen Sandiego, não é possível refa-
plo, você já adentrou a internet profunda. zer o caminho de volta. Tal qual a famosa
O conceito é que tudo que não pode ser ladra, você desaparece.
acessado diretamente pelo Google é deep. Não é de surpreender, então, que tipo
Logo, você provavelmente tem algumas de interesses a dark web acaba atraindo.
dezenas de páginas desse tipo associadas “Ali encontramos muitas postagens que
ao seu nome. Ainda bem: imagine o caos não são legais. No sentido jurídico mes-
que seria se um link on-line levasse qual- mo, estamos falando de crimes: desde a
quer um para sua caixa de e-mails. Nesse venda de drogas, armas, assassinos de alu-
território deep, porém, ainda é possível, guel e até tutoriais para experimentos hu-
para a polícia, por exemplo, descobrir de manos”, afirma Pollyana Notargiacomo,
onde veio aquele e-mail ameaçador, mes- pesquisadora da Cultura Hacker e profes-
mo sem saber a senha de quem mandou. sora da Faculdade de Computação e In-
Isso porque o e-mail deixa rastros quan- formática da Universidade Presbiteriana
do sai de um servidor e passa para outro. Mackenzie. Há ainda crimes mais moder-
Tudo fica registrado. Já na dark web, as nos, como os Doppelgangers. Uma inteli-
coisas não funcionam assim. gência artificial percebe como você gasta
Se para ir às profundezas do oceano dinheiro para te roubar disfarçadamente.
você precisa de um traje de mergulho, para Ela embolsa seu dinheiro e nomeia como
acessar as profundezas da internet você despesas muito parecidas com as suas.
precisa de ferramentas como o Tor. Sem Talvez você nunca tenha pegado aquele
h mesmo (é a sigla em inglês para “The Uber. Esse truque sozinho gerou um pre-
Onion Router”, o roteador de cebola). juízo de 22 bilhões de dólares em 2018.
Um navegador muito mais específico E não pense que isso é problema de
do que o Chrome ou o Internet Explo- gringo, não. Nós, portadores de CPF, tam-
bém temos que nos preocupar. “Encontrei na dark web para usuários de países onde
vendedores de identidade que comercia- a rede social é proibida. Jornalistas tam-
lizavam passaportes brasileiros e cartões bém conseguem informações sigilosas
de créditos emitidos no país”, afirma por lá: lembra do Wikileaks? Foi na dark
Thomas Holt, professor da Universidade web que o site revelou cenas de abuso por
de Michigan e autor de pesquisas sobre parte dos soldados americanos no Orien-
a dark web. A boa notícia é que não es- te Médio. A própria comunidade hacker
tamos completamente desprotegidos. “É está combatendo a parte negativa da dark
possível coibir crimes ao colocarmos po- web em prol de um ambiente mais saudá-
liciais à paisana, fingindo ter interesse em vel. Em 2017, o grupo de ativistas hackers
comprar ou vender ilegalidades”, conta Anonymous derrubou 20% da dark web
Holt. ao tomar o controle de um famoso hub de
A própria polícia brasileira já vem conteúdo criminoso. Em um comunicado,
se destacando na luta contra o crime na disseram que não tolerariam conteúdos
rede. Uma pesquisa feita por membros da como os de pedofilia na dark web.
Polícia Federal em parceria com a Uni- No fim, a dark web é mais um (pode-
versidade de Limerick, na Irlanda, reve- roso) espaço. O que é feito ou não lá de-
lou um sistema que identifica quais são pende das pessoas, que podem cometer
os usuários que mais postam em fóruns ou denunciar crimes, matar ou salvar vi-
de pedofilia. A pesquisa mostra que esses das, fazer uma filha aparecer misteriosa-
membros ativos possuem fortes conexões mente ou transformar um pai em um de-
entre si e que, ao capturarem um, é mui- tetive desesperado. Histórias como essas
to mais fácil prender outros na mesma podem acontecer na deep, na dark, na su-
operação. O estudo foi publicado na mais perfície ou até no menor país do mundo.
importante revista de ciência do planeta,
a Nature.
Mas por que não derrubam logo esse
sistema todo? Porque a dark web tam-
bém tem muitas coisas boas. O próprio
Tor recebeu investimentos massivos do
governo americano sob pretexto de que
poderia ajudar países sob ditaduras a se
comunicarem com o resto planeta. O Fa-
cebook, por exemplo, criou uma página
/ depoimento

NOSSA CASA Os criadores


SOBRE RODAS do projeto
Terra Adentro
contam como
é dar a volta ao
mundo dentro
SABRINA CHINELLATO E de um carro
HENRIQUE FONSECA

S
abrina e Henrique estão sempre mos a sonhar em dar uma volta ao mun-
em movimento, e, através do ca- do de carro. Depois de dois anos de muito
nal no YouTube, do Instagram trabalho e planejamento, abrimos mão de
e dos livros do projeto Terra Adentro, tudo, de trabalhos a bens materiais, para
o casal mostra como é viver na estra- começar nossa aventura.
da. Enquanto passeavam de camelo na Viajar de carro é o tipo de viagem
Mauritânia, eles compartilharam um que nos deixa mais felizes e completos.
pouco dessa vivência e dicas valiosas O caminho é cheio de surpresas e desco-
para quem pensa em experimentar uma bertas. Não é só o destino final. Por isso,
aventura parecida. quando decidimos que a viagem seria de
carro, no caso um Land Rover Defender
*** 110, começamos a construir dentro dele
uma pequena casa, com cozinha, cama,
Em 2014, fizemos uma viagem de carro armários... Nosso lar sobre rodas nos
pela Patagônia e pelo deserto do Ataca- permite economizar na viagem, em ho-
ma. Depois de 40 dias viajando por Ar- téis e alimentação, além de tornar possí-
gentina, Chile e Uruguai, voltamos dife- vel acamparmos em qualquer lugar. Mas
rentes. A simplicidade e a intensidade da também têm os desafios. O mais difícil foi
vida na estrada nos fez perceber que não fazer tudo caber dentro de um espaço tão
estávamos realizados com nossas vidas pequeno. Nossa casinha tem quatro me-
convencionais no Brasil. Então, começa- tros quadrados. E o mais trabalhoso foi
NORUEGA

encontrar um equilíbrio na convivência dizados de quem vive uma vida incerta


de duas pessoas 24 horas por dia. Foram e fora dos padrões. Mas a melhor coisa,
meses para entendermos melhor as nos- sem dúvida nenhuma, é abrir a porta de
sas ações, inclusive abrindo mão de mui- trás do carro, depois de uma boa noite de
tas coisas que, numa vida convencional, sono, e descobrir, a cada dia, cenários na-
eram normais, mas que agora traziam turais belíssimos e intocados — como nas
instabilidade. Esse aprendizado fortale- noites que passamos contemplando as es-
ceu nossos laços de amor e possibilitou tonteantes auroras boreais de dentro do
um ambiente incrível de convivência. Nos nosso carro, entre um cochilo e outro. Ter
consideramos muito sortudos. Encontrar um novo quintal a cada dia é uma sensa-
alguém que pense da mesma forma que ção deliciosa de liberdade e conquista.
você, que compartilha dos mesmos so- Quem planeja ter um vida assim tem
nhos, é fundamental para cair na estrada. que estar preparado para os desafios de
A viagem seria muito diferente se estivés- deixar a zona de conforto e para as mu-
semos sozinhos. danças rápidas e contínuas. O apren-
Nosso carro já enguiçou em lugares dizado proveniente dessa experiência é
isolados, deparamos inesperadamente gigantesco, bem como as incalculáveis
com animais selvagens e tivemos até uma recompensas de experimentar culturas,
arma apontada para nós por um oficial pessoas, sabores e paisagens magníficas
de fronteira. Claro que sempre tratamos ao longo da jornada.
esses momentos como profundos apren-
6 DICAS PARA QUEM QUER VIVER NO CARRO
DESAPEGUE
Se você leva muita coisa, fica sem espaço. Na maioria das vezes, não usamos nem
70% do que levamos. Precisamos de muito pouco para viver.

TENHA ALGUNS OBJETOS...


A gente é muito feliz por ter uma geladeira 12 volts, além de um rastreador via
satélite, com um botão de SOS com assistência mundial. Nunca usamos, mas nos
deixa mais confortáveis.

...MAS NÃO MUITOS


É importante ter boas ferramentas para consertar o carro. Um fogão também é
essencial, além de uma lanterna para fazer as atividades à noite.

PENSE NA ACESSIBILIDADE
Se demoramos mais de trinta segundos para encontrar um objeto dentro do carro,
com o tempo acabamos não usando. Tudo tem que estar acessível, senão vira
um elefante branco.

CAPADÓCIA, TURQUIA
MONTANHAS TATRA, ESLOVÁQUIA

ACEITE A IMPERFEIÇÃO
É preciso entender que o carro nunca vai estar 100% pronto, até por conta das
necessidades de cada região. Na estrada, aprendemos que estamos sempre em
transformação, e o carro também.

ABRACE A EXPERIÊNCIA
Viver no motorhome é transformador. Aprendemos que o essencial não está nos
armários, mas em fazermos o que gostamos. Assim, damos menos importância
para as coisas que a gente tem, e mais para o nosso quintal, que muda a cada dia.
/ ensaio

QUAL É A SUA Os caminhos das


ESTRADA? rodovias mais
perigosas do
mundo se cruzam
com as histórias
dos artistas de
alma livre
FELIPE ABÍLIO

D
a mesma forma que nascemos e é a sua estrada, homem? A estrada do mís-
vamos, aos poucos, descobrindo os tico, a estrada do louco, a estrada do ar-
caminhos para sentimentos como a co-íris, a estrada dos peixes, qualquer es-
alegria e a raiva, quando estamos no início trada. Há sempre uma estrada em algum
de uma estrada não sabemos o que vamos lugar para alguém de alguma maneira”,
encontrar no fim. Em que curva vai estar escreveu em uma passagem do livro.
nossa próxima alegria ou decepção? Kerouac trilhou um caminho de evo-
Com caminhos estreitos, cheios de la­ lução pessoal levando na mala o lema:
ma, cascalhos e pedras, a temida Zoji La, “Uma viagem não é só uma viagem, mas
na Índia, é uma estrada que fica na parte uma busca espiritual.” O livro — escrito
ocidental da mais alta cadeia de monta- em três semanas, em 35 metros de papel
nhas do Himalaia, a cerca de 3.528 me- de telex sem parágrafos, espaços ou pon-
tros de altura. É considerada uma das tos — virou a bíblia do movimento beat. O
mais perigosas do mundo. A paisagem poder da história de superação à procura
fascinante, assim como os riscos de bus- de veredas possíveis fez com que pensa-
car o próprio caminho, recompensam. dores como Bob Dylan e Jim Morrison
É a mesma premissa defendida por despertassem para os caminhos que esta-
Jack Kerouac no clássico On The Road, no vam construindo. Ambos mudaram seus
qual ele conta a própria história a caminho rumos e seguiram em busca de vias mais
da liberdade, atravessando as longas rodo- sinuosas, sem atalhos para a realização
vias que cruzam os Estados Unidos. “Qual pessoal.
ensaio /

A perigosa e cinematográfica Skippers Road,


uma das estradas mais impressionantes
do mundo, na Nova Zelândia.
/ ensaio

A história da vida de Bob Dylan poderia ter sido talhada nos


desfiladeiros perigosos da rodovia Trollstigen, na Noruega, uma
das mais difíceis de todo o mundo. Para encarar as onze curvas
íngremes da estrada, o motorista precisa ter coragem e estar
no comando do próprio destino. Deve ter sido isso que Dylan
sentiu quando decidiu abandonar a Universidade de Minne-
sota em direção a Nova York. A ideia era conhecer seu ídolo
musical, Woody Guthrie, que estava em estado avançado de
uma doença degenerativa, em um hospital psiquiátrico. Com as
visitas recorrentes ao hospital de Guthrie, o músico virou amigo
do assistente dele, Ramblin Jack Elliott, com quem passou algum

tempo e absorveu boa parte do repertório do ídolo e sua sensibilidade para a


arte. Não por acaso o músico vencedor do prêmio Nobel de literatura dedi-
ca todo o início de sua carreira a Guthrie.
Jim Morrison também foi impactado pelas palavras de Kerouac,
levando a influência do autor para vários de seus poemas, alguns
dos quais se tornariam letras famosas do The Doors. Objetivo nas
coisas que almejava, Morrison trilhou um caminho só de ida, sem
tempo para olhar para trás ou refazer trajetos. História que cabe
como uma luva nos desafios de atravessar a Skipper Canyon Road,
na Nova Zelândia.
Quem trafega por ela e tem o azar de encontrar gente vindo no sentido
oposto terá que voltar alguns quilômetros — ou contar com a boa vontade
ensaio /

do companheiro de estrada não solicitado. No caso de


Morrison, o motorista “rival” levaria a pior, já que
voltar atrás nunca esteve em seus planos. Depois
de cursar filosofia e psicologia na Florida State
University, onde passava a maior parte do tem-
po bêbado, ele quis cursar cinema. Mas Jim de-
pendia financeiramente dos pais e dos avós e
o caminho para convencê-los foi árduo. Sem
freio e longe de ser intimidado pelos obstá-
culos, o músico finalmente se mudou para
a Califórnia para estudar cinema. Foi lá,
num encontro cósmico com o colega Ray

Manzarek, que o The Doors nasceu. Mas, como na vida, qualquer deslize nos
desfiladeiros neozelandeses, pode ser fatal. São as nossas escolhas que nos ga-
rantem um final seguro. Com a carreira em ascensão, Jim acabou perdendo o
rumo, assumindo os riscos do consumo indiscriminado de álcool e drogas, e
morrendo aos 27 anos.
“Nada atrás de mim, tudo à minha frente, como sempre acontece na estrada”,
diria Kerouac, reforçando o ímpeto aventureiro de Morrison e lembrando que a
vida não passa de uma linha reta a ser moldada por quem ousa caminhar por ela.
/ artigo

VINGANÇA, JUSTIÇA
E REPARAÇÃO
A lei júridica
versus a lei moral

CHRISTIAN DUNKER

H
á muitos anos escuto de meus ami- No entanto, nada disso contempla o
gos promotores e juízes que o direi- fato de que o desejo e a vivência da jus-
to não tem nada a ver com justiça. tiça são experiências psíquicas muito im-
A justiça é um conceito muito maior, feito portantes — qualquer discrepância entre
de sentimentos sociais e avaliações interes- a justiça jurídica (da esfera pública) e a
sadas, fortemente ligado à subjetividade justiça moral (da esfera privada) é vivida
dos indivíduos e suas posições contextuais. como um sofrimento.
O direito seria um mero instrumento para Freud descreveu uma estrutura cha-
tentar traduzir, ainda que imperfeitamen- mada supereu, definida pela interioriza-
te, nosso desejo de justiça. A essência do ção da lei a partir das figuras parentais e
direito é o processo, uma ordem de pro- de sua relação genealógica com seus an-
cedimentos que tentam reunir situações tecedentes, como lugar dessa contradição
equivalentes que ajudem a definir crité- entre justiça e direito.
rios equivalentes que produzam resulta- Coube a Lacan mostrar que o proble-
dos equivalentes, assim novas situações ma do supereu não é ele representar a lei
poderão ser encaixadas nesses parâme- que o neurótico quer transgredir, mas sim
tros, criando um padrão justo de soluções. representar uma “falsa lei”, que é pessoal
Por isso não há crime sem um código ante- e particular daquela família mas se equi-
rior que o tipifique. Por isso também o di- vale, para o indivíduo, à lei impessoal e
reito se fundamenta nas leis escritas, para social do direito. Por isso, quando sen-
tentar evitar as artimanhas da oratória. timos que a instituição do direito falha,
artigo /

quando ela é complacente de-


mais ou cruel demais, quando
deixa escapar ou pune indevida-
mente, nosso supereu quer “com-
pletar” a tarefa. A questão é que há
uma diferença crucial entre a justiça
pública e a justiça pessoal: a pessoal
tem suas inclinações e paixões — em
outras palavras, gozamos ao praticar a lei
pessoal em nome da falha da lei impessoal.
Isso significa que nossa fantasia pessoal de
justiça, junto com nossos preconceitos do
que seja equidade, igualdade e equivalência,
foram ativados.
O paradoxo é que essa ativação replica exa-
tamente o procedimento subjetivo dos perversos,
dos sociopatas, dos sádicos e das personalidades
antissociais, que tanto repudiamos. Talvez aí esteja
uma das explicações para a nossa fascinação por serial
killers, matadores e outros sicários justiceiros. Eles dão
margem, por meio da ficção literária e do distanciamento
/ artigo

narrativo, à solução do paradoxo da lei. Essa mudança


do plano da ação para o plano da linguagem é essencial.
Quando passamos do real para a literatura não apenas
substituímos qualquer ato por palavras, mas também
ajustamos nossa própria identificação entre lei pública
e lei pessoal. Com isso, vislumbramos uma reparação
não só das injustiças que sofremos, mas também das que
praticamos.
No romance As Outras Pessoas, C. J. Tudor visita
esse dilema da justiça com uma mimetização da impes-
soalidade da lei. Como faz Agatha Christie em Os crimes
ABC, trama em que uma série de crimes aleatórios, li-
gados aos nomes das vítimas, também acabam por pro-
duzir um efeito de impessoalidade. Ora, a investigação
do crime é tão fascinante nesses casos porque ela nos
coloca, como leitores, na trilha da reconstrução da ex-
periência que pode nos levar a descobertas imprevistas,
por nossa própria fantasia, quanto à relação entre vin-
gança e justiça.
artigo /

É claro que juízes, promotores ou defensorias e procuradores têm seus interesses,


e o ordenamento jurídico, em qualquer país, é também político. Poderíamos fazer uma
analogia com o processo científico e sua obsessão com as questões de método. Todos sa-
bemos que existem outras formas de conhecimento, mas a vantagem do método cientí-
fico é que ele é público, de aspiração universal, e por isso tenta reduzir tudo a processos
formais expressos em uma linguagem depurada de ambiguidades. As instituições são
necessárias, mas não são tão impessoais como gostam de se apresentar, e acabam des-
prezando as singularidades do caso particular, as condições únicas que afinal ocorrem
na vida real, tal como ela é. Assim, o herói solitário torna-se um símbolo de nosso desejo
de sermos reconhecidos pela exceção que nos constitui. Afinal, somos todos exceções.
A revista intrínsecos é uma publicação exclusiva do clube
de assinatura da editora Intrínseca e chega aos leitores mensalmente
acompanhando o livro distribuído pelo clube.

© 2020 Editora Intrínseca Ltda.

projeto editorial
Intrínseca

direção de arte
Aline Ribeiro | linesribeiro.com

diagramação
Julio Moreira | Equatorium Design

imagens
Foto da autora © Cheese Scientist / Alamy Stock Photo; páginas 17, 18 e 19: Terra
Adentro; página 21: David Wall / Alamy Stock Photo; demais imagens: ShutterStock

www.intrinsecos.com.br
www.intrinseca.com.br

Intrínsecos® e Clube Intrínsecos® são propriedade da Editora Intrínseca Ltda.


CNPJ 05.660.045/0001-06 — Rua Marquês de São Vicente 99, 3º andar, Gávea,
Rio de Janeiro, RJ, CEP 22451-041
Telefone: (21) 3206-7474 — e-mail: contato@intrinsecos.com.br
Em uma das principais rodovias do Brasil, a BR-101, há mais de cem
anos, morreu uma menina. Frequentemente, motoristas avistam
a Menina Fantasma no acostamento ao longo de vários pontos da
rodovia. Só no ano de 2013 houve mais de 40 boletins de ocorrência.
Sua primeira aparição foi na Bahia, em 1996, e a história é sempre
a mesma: às 2h da madrugada, uma menina, em trajes do século
passado, pede carona, mas, quando o motorista para, ela desaparece.

Você também pode gostar