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DADOS DE ODINRIGHT

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© 2019 by Fundação Social Raimundo Fagner

© 2019 by Regina Echeverria

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Echeverria, Regina

E21f Fagner [recurso eletrônico] : quem me levará sou eu / Regina Echeverria. - [2. ed]. -

Rio de Janeiro : Agir, 2018.

recurso digital : il.

Formato: ebook

Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions

Modo de acesso: world wide web

ISBN 9788522005772 (recurso eletrônico)

1. Fagner, 1949-. 2. Cantores - Brasil - Biografia. 3. Livros eletrônicos. I. Título.

18-53612 CDD: 927:81640981

CDU: 929:78.07(81)

Leandra Felix da Cruz - Bibliotecária - CRB-7/6135


sumário

NOTA EDITORIAL

Capítulo 1
REVELAÇÃO

Capítulo 2
DE BEIRUTE A ORÓS

Capítulo 3
MENINO DANADO

Capítulo 4
JOVEM GUARDA CEARENSE

Capítulo 5
O ADEUS A FORTALEZA

Capítulo 6
VIDA UNIVERSITÁRIA

Capítulo 7
RIO DE JANEIRO, TEMPOS DIFÍCEIS

Capítulo 8
ENFIM, UMA GRAVADORA GRANDE

Capítulo 9
O ÚLTIMO PAU DE ARARA

Capítulo 10
FAGNER FUTEBOL CLUBE
Capítulo 11
Ideias fagnerianas

Capítulo 12
AVENTURA AMERICANA

Capítulo 13
SUCESSO É BOM

Capítulo 14
A SAGA DE TRADUZIR-SE

Capítulo 15
EM TERRAS TROPICAMERICANAS

Capítulo 16
A POLÍTICA

Capítulo 17
UMA AJUDA AOS AMIGOS POLÍTICOS

Capítulo 18
RECONHECIMENTO

Capítulo 19
UM PRODUTOR DEDICADO

Capítulo 20
AMIGOS E AMIGOS

Capítulo 21
FAGNER NO SÉCULO XXI

Capítulo 22
METRALHADORA GIRATÓRIA

Capítulo 23
UM MUTANTE PARA SEMPRE
Capítulo 24
AFINIDADES IDEOLÓGICAS E MUSICAIS

Capítulo 25
QUEM ME LEVARÁ SOU EU

Fundação Social Raimundo Fagner

Índice fotográfico

Agradecimentos

Caderno de imagens
nota editorial

L ançar um livro sobre um dos maiores artistas brasileiros e ainda

escrito por Regina Echeverria, biógrafa das mais renomadas da

atualidade, é um privilégio e tanto, só comparável à satisfação de

ter o próprio Fagner acompanhando de perto todas as etapas de

realização do livro, dedicado de corpo e alma a essa tarefa, como

faz com seus shows e seus discos. Perfeccionista, quis rever cada

parágrafo, acrescentar detalhes, explicar melhor uma ou outra

passagem, dar crédito a todos que fizeram ou fazem parte de sua

vida e carreira. Isso tudo sem abrir mão de nem um único

compromisso de sua agenda concorridíssima, que o faz viajar toda

semana pelo país, e principalmente sem perder o humor, que ao

lado do profissionalismo é uma das suas características mais

marcantes.

Espirituoso e brincalhão, adora mandar memes pelo

WhatsApp, relembrar situações engraçadas e deixar o ambiente

descontraído. Não perde uma oportunidade de fazer piada e contar

causos divertidos a respeito de si mesmo e dos outros. É história

que não acaba mais e muitas delas bem poderiam compor um

segundo volume biográfico. Também pudera, um artista como ele,

que está na estrada há tanto tempo, já fez parceria com um montão

de gente e arrebata multidões, só podia mesmo ter uma coleção de

anedotas de bastidores. Ao lado delas, há também histórias


emocionantes, principalmente dos inúmeros fãs espalhados pelo

mundo.

Com o público, por sinal, é gentil: não se furta a tirar fotos e

dar autógrafos e, vez por outra, se um amigo lhe pede uma

mensagem para um fã doente, grava um áudio personalizado na

maior boa vontade. Tem uma quantidade impressionante de

amigos, tanto que, nos encontros para discutir trechos de sua

biografia, o celular não parava quieto um segundo com chamadas e

mensagens pipocando: este querendo homenageá-lo, aquele

fazendo um convite, todos exigindo um pouquinho da sua atenção.

E Fagner sabe retribuir esse afeto imenso que recebe. Fala com

Deus e todo mundo — os porteiros do prédio em que mora, os

vizinhos, os taxistas do ponto mais próximo da sua casa, os

garçons do restaurante preferido, jogadores de futebol, políticos,

outros artistas, enfim, um mundão de gente. Com o filho e os netos

é só coração! Sempre que sua vida atribulada dá umas brechinhas,

é na companhia deles que encontra a maior e mais escancarada

alegria.

Alegria, aliás, foi a tônica desses meses de trabalho para todos

os envolvidos na edição e produção desta biografia, e o resultado

não é apenas um livro, mas o registro da trajetória de um indivíduo

que imprimiu de tal forma o seu nome na nossa cena cultural que

chega a se confundir com a própria história da música popular

brasileira nas últimas quatro décadas e meia.


A Marta Lopes, pela lembrança,

e a meus netos Luiza e Luis.


reveLação
CAPÍTULO 1
R aimundo Fagner já parecia conformado em marcar sua biografia com

a solteirice mais convicta da MPB. Em agosto de 2006, quando o

inesperado fez tocar seu telefone, o cantor e compositor cearense já

alcançara os 57 anos sem um único casamento na bagagem e nenhuma

descendência conhecida. A família dos pais, que era grande, ficou

pequena. Dos cinco filhos do libanês emigrado para o Ceará, só dois

continuavam vivos em 2018.

Numa tarde daquele agosto, do outro lado da linha falava Bruno, 32

anos, advogado trabalhista, que Fagner conhecia desde menino. Por isso

mesmo, pressentiu o teor da conversa: já imaginava que um segredo bem

guardado do passado estava para vir à tona. Sim, Bruno acabara de

tomar conhecimento, através de um exame de DNA, que o homem que

havia conhecido como pai até então, casado com sua mãe e pai de seus

irmãos, não tinha o sangue compatível com o seu: não era de fato seu pai

biológico. Pelo telefone, Bruno soube que Fagner estava saindo de

viagem e combinou de levá-lo em seu carro até o aeroporto do Galeão,

no Rio de Janeiro. No caminho do Leblon à Ilha do Governador, os dois

tiveram uma conversa definitiva que mudou a vida de ambos para

sempre.

A história de Bruno e Fagner começa nos anos 1970, quando o

cantor conheceu uma moça bonita no Rio de Janeiro e com ela teve um

caso de amor. Um caso, aliás, difícil para ambos: ela estava com o

casamento marcado, e ele, em início de carreira, lutava contra as

adversidades, sem dinheiro e com a vida pela frente. Era jovem demais

em 1973, quando lançou seu primeiro LP, Manera Fru Fru Manera. O

romance durou pouco e uma nuvem de desconfiança passou a rondar a


turma de amigos da qual faziam parte, pois a moça estava grávida

quando se casou, e o marido, sem saber, assumiu a criança. Bruno

nasceu em 1974. Porém, Fagner e a mãe conseguiram seguir a vida sem

grandes atropelos em consequência de seus atos. Quando era menino,

inúmeras vezes Bruno visitou o “tio Fagner”, aguentou brincadeiras na

escola por ser parecido com o cantor e, ao crescer, reparou a enorme

dessemelhança que havia entre ele e seus irmãos.

“Houve um momento em que a gente se afastou um pouquinho, eu

comecei a fazer outras coisas. Ele na correria. Minha mãe parou de

visitá-lo e eu, consequentemente, também parei”, conta Bruno.

No entanto, quando o rapaz completou vinte anos, em 1994, seu

“pai” sofreu um AVC e ficou hemiplégico, com o lado esquerdo do

corpo prejudicado.

“Passei a não ter mais contato com Fagner porque eu trabalhava

feito um doido para ajudar em casa.”

Um pouco mais tarde, em agosto de 2006, sem qualquer aviso, o

“pai” de Bruno o chamou para uma conversa séria e lhe disse ter quase

certeza de que ele não era seu filho biológico. Declarou ainda que

sempre havia desconfiado disso e queria saber se Bruno concordava em

fazer um teste de paternidade. O resultado do exame de DNA foi um

divisor de águas para ambos: como desconfiava o marido de sua mãe,

Bruno não era seu filho biológico.


Claro que o rapaz foi checar com a mãe, e esta não disse palavra, só

fez chorar e chorar. Segundo Bruno, ao conversarem, houve um

momento de tristeza e incerteza em que ele se perguntou: “Quem será?

Seria o Fagner?”

Em outro diálogo com o “pai”, no entanto, tais dúvidas pareciam

estar se dissipando, pois Bruno chegou a confessar que se achava muito

parecido com o cantor e, portanto, devia ser mesmo seu filho.

O que ouviu daquele que o criou foi:

“Desde que você começou a crescer eu também o achava muito

parecido com ele, mas nunca julguei necessário falar nada. Você é meu

filho de coração.”

Depois do resultado do exame, Bruno ligou para Fagner e

perguntou:

“Tio, você sabe por que é que estou te ligando?”

“Sei, sim”, foi a resposta.

“Isso é verdade?”, quis saber o rapaz.

É
“É”, confirmou Fagner e começou a contar a Bruno mais ou menos

como é que havia acontecido a história dele com sua mãe.

Para Bruno, no entanto, isso não tinha a menor importância, já que a

memória pertencia apenas aos dois e o que interessava, para ele, naquele

momento, era o seu aparecimento na vida de Fagner.

“Eu o deixei no aeroporto, a gente se abraçou forte, se beijou. É

muito bom saber quem é seu pai.”

E assim, Raimundo Fagner Candido Lopes ganhou um filho e ainda

dois netos: Clara, nascida em 29 de novembro de 2009, e Arthur, em 7

de maio de 2012, que já adoram o novo vovô. Bruno e seu pai artista

fizeram exames de DNA em 2012, para confirmar a paternidade e para

que o filho pudesse mudar seus documentos e carregar em seu RG o

nome do pai biológico e o sobrenome Lopes, estendido também aos dois

netos. O que Bruno não sabia é que Fagner o havia visitado na

maternidade e que sempre se manteve informado a seu respeito.

O processo de reaproximação dos dois diante da nova realidade

aconteceu naturalmente, já que isso correspondia a um desejo forte de

ambos. Daí veio o conhecimento e a intimidade. Hoje Bruno tem com

Fagner uma relação de pai e filho mesmo.

“Eu vejo que o nosso temperamento é muito parecido, eu só me

controlo mais do que ele. Não tenho muita paciência. Tenho esse grave

defeito e acho que ele, de alguma forma, também tem um pouquinho.

Sou muito intolerante com as pessoas, não aturo muita coisa. Já tolerei

muito, mas acho que aconteceu alguma coisa na minha vida, não sei se

pessoalmente ou profissionalmente, que me fez mudar. A diferença é que

ele solta e eu guardo um pouco mais, mas não muito.”

Bruno sabe que seu pai biológico, apesar de estourado, sem papas

na língua e amante das discussões, tem um coração grande e gosta de

ajudar as pessoas.

“Ele ajuda financeiramente e ajuda profissionalmente. E muita gente

o prejudicou. Sabemos que hoje em dia as pessoas tendem a ter um

caráter duvidoso, e ele não é mau-caráter. Tem temperamento duro, mas

não é mau-caráter.”

Fagner confessa ter sentido o “sangue libanês” dos netos em seu

termômetro pessoal.
Todos dizem que o menino Arthur tem muito a ver comigo. O
gênio, o jeito, a inquietação. Convivi pouco com meu filho, mas
estou tentando recuperar esse tempo com meus netos.

A vida, de fato, mudou para Fagner:

Eu sempre soube! A notícia trouxe um imenso alívio e vigor para a


minha vida. Foi uma época de grandes perdas: pai, mãe, irmão.
Ficamos só eu e minha irmã Marta. E no meio dessas perdas aparece
o Bruno. Então para mim não foi nem loteria, foi um renascer que
me trouxe de volta. Já estava desestimulado. E, sozinho, tudo se
torna mais banal.
De Beirute a Orós
CAPÍTULO 2
C omo bem definiu uma revista para a colônia árabe, não está no nome,

mas na cara: Raimundo Fagner é patrício. Filho do imigrante libanês

Youssef Fares Haddad Lubous e da cearense Francisca Candido, Fagner

nasceu e cresceu em Fortaleza, no Ceará, mas, em inúmeras entrevistas,

declarou que sua terra natal era Orós, no centro-sul do estado, famosa

por seu grande açude, cuja barragem se rompeu, nos anos 1960,

causando comoção nacional.

Fagner tem uma ligação com o município que a nada se compara.

Na verdade, ali passava as férias e convivia com a família da mãe e com

a do seu tio libanês, João. O cartão-postal da região é o Açude

Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, construído no leito do rio

Jaguaribe, e a ideia dessa construção vem do Brasil Império, quando

várias secas se sucederam matando pessoas e animais.

O fato é que Fagner se apaixonou definitiva e perdidamente pelo

lugar. Há quem acredite estar no próprio nome do cantor a raiz dessa

paixão. Vou tentar explicar: qual a última letra do nome Raimundo? O,

Qual a de Fagner? R, A de Candido é O, e a de Lopes, S. O + R + O + S

= OROS.
Pois foi lá que a família fincou raízes. Lá, ele foi registrado. Aliás,

registrado é modo de dizer, porque a certidão de nascimento de Fagner


contém uma incorreção: ele nasceu em Fortaleza, não em Orós, como

consta. Além disso, não existe o livro no qual a certidão deveria estar.

Sumiu. A certidão é falsa! Por que será? Bem, o cartório de Orós

pertencia a parentes, que também resolveram abrasileirar o sobrenome

do patriarca e Lubous virou Lopes. O imigrante aprendia rapidamente o

jeitinho brasileiro.

Raimundo nasceu mesmo em Fortaleza, a se crer piamente no

caderninho de sua mãe, dona Chiquinha, que anotou ali a data e o local

de nascimento de todos os seus quatro filhos. Os dados do caçula estão

assim: 13 de outubro de 1949. O parto foi feito em casa, na rua Floriano

Peixoto, 1.779, centro da cidade.

E o nome? Que nome é esse, que F é esse? Seu Fares queria

homenagear o compositor alemão Richard Wagner, porém a acentuada

pronúncia libanesa confundiu o escrivão. Conta-se essa versão como

uma brincadeira. Se não for essa a verdade, há de se levar em conta que

esse nome, Fagner, não apareceu com aquele bebê, é antigo. Palavra do

IBGE: Fagner já tinha 36 xarás nos anos 1940. Na década de 1980, já

eram 14 mil Fagners. Hoje são mais de trinta mil no país inteiro.

Raimundo Fagner foi batizado em 27 de dezembro de 1949 na Igreja

Matriz Nossa Senhora do Carmo, no centro de Fortaleza, pelos

padrinhos Ubirajara e Francisca de Aguiar. O nome Raimundo é o

mesmo do avô materno, casado com a avó Maria Clara, mesmo nome

que viria a ter a netinha de Fagner. O caçula da família é 15 anos mais

novo que seu irmão mais velho, Fares, que herdou o nome do pai, e

ainda há as irmãs Eliete (do primeiro casamento do pai), Elizete e

Marta.

Portanto, quando criança, era o mais paparicado por todos, que

guardavam com muito cuidado um segredo: o menino Raimundo não

entendia por que tantas vezes acordava de madrugada com os gritos do

pai. Eram gritos terríveis de dor, de horror. Que pesadelos tão medonhos

atormentavam seu Fares? Ele havia presenciado no Líbano o fuzilamento

do próprio pai. A família vivia em Ain Ebel, região de Nabatiye, a 120

quilômetros de Beirute. Era mais uma daquelas rivalidades entre etnias e

religiões.

Foi dali que, depois da tragédia, Youssef — que aqui se transformou

em José — embarcou num navio rumo a Fortaleza. Seu pai já estivera no


Brasil, pesquisando as possibilidades de futuro no país, e contara aos

filhos o que poderiam fazer se um dia mudassem para cá. Do Líbano até

o Ceará foram noventa dias de viagem, terminada, enfim, em 14 de

janeiro de 1923.

Seu Fares conta que tinha um dinheirinho e foi para Quixadá, onde

moravam uns parentes:

“Fiquei uns tempos na casa deles e de lá fui para Orós. Comecei a

andar pelo sertão e decidi que Orós era melhor. Fiquei negociando

tecidos, miudezas e ganhei muito dinheiro por lá. Comprei terras,

fazendas e gado, tive uma fazenda com o nome de Monte Líbano.”

O pai de Fagner conheceu a primeira mulher, Laudicéia, em Orós e

com ela teve sua primogênita. Enviuvou muito cedo (a esposa morreu

em consequência de um sarampo) e, de acordo com a história que

contaram ao filho Fagner, saiu em busca de uma nova parceira:

Mamãe era uma moça bonita, fina e sofisticada. Dizem que


conheceu papai no velório da falecida. O viúvo não tirava os olhos
dela. Flerte em pleno velório? Mamãe detestava essa história, mas
parece que aconteceu assim mesmo. Afinal, que mal havia? Ele já
não era viúvo? Ela não era solteira? Pois então...
À Eliete, enteada criada por dona Chiquinha, se juntaram os quatro

filhos que esta teve com seu Fares. A filha Marta se lembra do pai, um

homem do tipo tranquilão, sentado com o jornal aberto, dormindo a

sono solto, e dona Chiquinha a gritar:

“José, olha os meninos!!!”

Ele baixava o jornal, mirava o infinito e dizia:

“Meninos!”

E calmamente retomava a soneca interrompida.

Quando resolveu se mudar com a família para Fortaleza, seu Fares

começou a construir. Fez várias casas de parentes e também de amigos,

além daquelas em que viveu. Tinha o maior orgulho de ser construtor

sem jamais ter estudado engenharia.

Nas lembranças do caçula, o pai, que havia sido cantor de rádio no

Líbano, continuava a soltar a voz.


Quando eu era pequeno, ele me botava no colo e cantava as
músicas árabes que eu não entendia e me agoniavam. Eu vivia
naquela mistura de sons dentro de casa: o dia a dia normal com
minha mãe e meus irmãos, conversando e cantando as canções que
tocavam no rádio na língua que eu entendia; e ainda meu pai
cantando aquele som estranho na minha cabeça, numa língua que
eu não conhecia. Eu ficava nervoso porque ele me agarrava e não
parava de cantar. Isso me influenciou demais. Está no meu DNA.
Sinto uma influência enorme dele no meu jeito de cantar, na mania
de balançar a cabeça. Minha ascendência é marcante no meu
trabalho e as pessoas reparam nisso. Os patrícios, então... A
presença de meu pai em mim é fortíssima. Em fotos antigas vejo
como estou ficando cada vez mais parecido com ele. Tenho o maior
orgulho da sua história, de tudo por que ele passou, da figura
admirada por todos. Em Orós, até hoje, sou o filho de seu Zé Felix,
como ele era conhecido. Papai fez muito pelo povo, era um homem
generoso. Lá em casa, sempre teve essa coisa de ajudar o próximo.
Minhas irmãs lecionavam na periferia, e eu também, quando
menino, me interessei em ajudar as crianças do nosso bairro.

A preocupação com o contexto de pobreza e exclusão social das

famílias da região nunca abandonou o menino e o adulto Fagner. E

provavelmente foram esses exemplos que teve em casa que plantaram as

primeiras sementes da fundação que o cantor criaria em 2000, dedicada

a investir na educação complementar de crianças e adolescentes da rede

pública de ensino de suas terras natais: Fortaleza e Orós. Era o futuro

que se realizava como sonho de criança. Mas isso é uma outra história.

Francisca Candido tinha ascendência indígena, traços finos e pulso

firme, uma mulher rígida e exigente. Segundo a filha Marta, dona

Chiquinha nunca entrou numa cozinha nem sabia o preço de nada, era

tudo com o pai. Ela se levantava da cama já com salto alto e ia para a rua

fazer compras. Até os ônibus paravam na porta de casa para ela subir.

Uma das coisas que mais sofri na infância foi apanhar da mamãe.
Ela batia em mim quase todo dia, e com o mano Fares foi a mesma
coisa. Já com as mulheres foi diferente.

Fagner apanhava porque aprontava. Um dia, arrancou a casca de

uma ferida e entrou em casa com a perna jorrando sangue. Inventou que

havia sido mordido por um cachorro da vizinhança que suspeitavam


estar com raiva. Foi levado ao hospital, tomou uma antitetânica e...

entrou em coma!!! A mentira, como todo mundo sabe, tem pernas

curtas, ainda mais uma tão elaborada. Então, obviamente, isso não

acabou bem para o menino.

Marta lembra, ainda, que a mãe, muito atraente, certa vez disse para

o marido:

“Galego, fulano de tal está dizendo que tu casou com a mulher mais

bonita de Orós.”

Quando seu Fares encontrou com o tal sujeito, lhe acertou um tiro

no pé. Esse mesmo homem, anos e anos depois, quando estava nas

últimas, pediu que alguém chamasse seu Fares porque não queria morrer

sem ver atendido um último desejo. Agastado, o marido de dona

Chiquinha disse:

“Vamos ver esse desgraçado, vamos lá ver o que ele quer.”


Ao se encontrarem, o doente lhe disse que não podia morrer sem lhe

pedir perdão, e a resposta veio direta e reta:

“Pois morra que você já está perdoado!”

Seu Fares era bravo quando se enfezava. Uma vez encontrou o filho

Fares fumando e advertiu para que aquilo não se repetisse, pois na

próxima vez que o encontrasse com um cigarro cortaria seus dedos.

Passado esse episódio, certo dia seu Fares recebeu um amigo e, todo

vaidoso, foi lhe mostrar a nova caixa-d’água da casa. Para sua surpresa,

encontrou o filho fumando ali escondido. Depois que a visita foi

embora, pediu que dona Chiquinha chamasse o desobediente para que

ele lhe entregasse o maço e começou a amolar uma faca. O rapaz

chegou, viu aquela cena e pôs-se a brigar com o pai. Com os gritos, o

cachorro da casa, que testemunhava a discussão, avançou em seu Fares,

salvando os dedos do filho. Fares teve que fugir e foi resgatado pelos

amigos, entre eles Evaldo Gouveia. Passou uma semana fora de casa. Já
Fagner nunca teve coragem de fumar na frente do pai, e até mesmo já

adulto manteve o respeito.

A primeira casa que seu Fares construiu foi na praia de Iracema, em

Fortaleza, e para lá levou toda a família. Motivo: o desquite de Eliete, a

filha mais velha, um escândalo para a época. Ter uma filha desquitada

era um horror!

Segundo Fagner, no quintal da casa nova o pai construiu um

pequeno curral, em plena praia de Iracema: um areal com duas

vaquinhas que ele mesmo ordenhava. Era garantia de leite para a

filharada. Hoje aquela região é um mar de prédios.

A casa ficava perto de alguns dos tradicionais clubes da capital

cearense — o Comercial, o Massapeense, o Ideal e tantos outros que ali

proliferavam — e era animadíssima por causa da presença dos amigos

que vinham nos fins de semana. Mas teve uma vida curta — só durou

dois anos — e muitos contratempos. O primeiro foi com um cidadão que

se apresentou como amigo de Fares, embora não fosse. O rapaz chegou

com a desculpa de que teria sido convidado, entrou sem a menor

cerimônia, mas o que queria mesmo era roubar. Vinte minutos depois

estava de volta perguntando a dona Chiquinha se ela gostava de aluá.

Essa bebida, típica do Nordeste no período junino, no Ceará tem

uma versão feita de pão branco seco, cravo-da-índia, gengibre, erva-doce

e rapadura preta para adoçar.

“Gosto”, respondeu a matriarca da família.

“Me dê umas garrafas aí que vou pegar pra senhora lá no

Comercial.”

Enquanto dona Chiquinha se ausentou, ele fez a limpa. Descobriu-

se, então, que o rapaz não era sequer conhecido de Fares. Tempos depois

conseguiram reconhecê-lo e prendê-lo. O mais curioso nessa história é

que o ladrão revelou ter remorsos:

“Olha, eu roubei sua casa, mas tive tanta pena da sua mãe. Ela é tão

legal que até hoje eu me arrependo.”

A boa vida à beira-mar não durou muito. Culpa de um cadáver. Seu

Fares chamou um encanador para resolver um problema na caixa-

d’água. O tempo passava e nada do serviço terminar. Dona Chiquinha


mandou a empregada ver o que havia acontecido. A moça foi e voltou

correndo com a notícia:

“Dona Chiquinha, o homem está morto!”

Era preciso mudar. Afinal, quem, depois disso, viveria naquela casa?

Logo a família encontrou novo endereço: rua Artur Temóteo, 243, no

bairro de Fátima.
Menino danado
CAPÍTULO 3
Q uem segurava aquele moleque? Com apenas seis anos, em 1955, Fagner

foi levado até a Ceará Rádio Clube para participar de um concurso em

homenagem ao Dia das Mães, num dos tradicionais programas de

auditório, e cantou “Minha Mãezinha Querida”, ganhando na categoria de

melhor intérprete mirim. O prêmio não era para ele. Mamãe foi quem

ganhou de presente uma caixa de Sabão Pavão e mil-réis.

Foi ela quem me levou para cantar muito bem vestidinho. Não
esqueço que tiveram que colocar um caixote para eu subir e alcançar o
microfone. Fiquei fascinado com todo aquele ambiente: bastidores,
músicos da orquestra, plateia. Gostei de tudo, mas só voltei à cena ao
completar 15 anos para fazer meu primeiro teste de calouro na Rádio
Iracema, cantando o sucesso italiano da época: “Il mondo”.
Foi o primeiro microfone; o auditório da rádio, a primeira plateia. Mas

o garoto e a música já eram amigos de infância. Em casa, ouvia-se muita

cantoria. O mano Fares tinha um vozeirão, fama de bom seresteiro e era

parceiro e amigo de Evaldo Gouveia, o primeiro hit maker da música

brasileira, autor de sucessos como “Sentimental demais” e “Que queres tu

de mim” (em parceria com Jair Amorim) e integrante do Trio Nagô, que

atuou entre 1950 e 1962. Evaldo morava em frente à casa dos Lopes, no

Centro, e era afilhado de seu Fares e dona Chiquinha. Fagner, que desde

pequeno tinha contato com o músico, tempos depois gravaria “Sentimental

demais” ao lado de Altemar Dutra, intérprete que lançou a canção.

Nas suas lembranças mais remotas, além da cantoria árabe do pai e dos

duetos de Fares com Evaldo Gouveia, surgem fragmentos sonoros de astros

e estrelas que o rádio espalhava pelos céus do Brasil. Na Fortaleza dos anos

1950, predominavam as casas, não os prédios. Zanzando pelas calçadas, o

menino ouvia Orlando Silva cantando numa varanda, Ataulfo Alves numa
cozinha, Chico Alves no jardim, Moreira da Silva no quintal, Silvio Caldas

no botequim da esquina. Quem mais? Eram tantos... Ah, sim, ele, sempre

ele: Luiz Gonzaga. E, em casa, ainda reinava soberana na sala Sua

Majestade, a radiola. Sabe o que o menino ouvia? Musiquinhas infantis?

Que nada! Seu gosto musical se alinhava ao dos adultos, por isso a música

que tocava era de gente grande, e bota grande nisso. O bom ouvido do

menino amadureceu ainda na infância.

Fui uma criança com um repertório de adulto.

Não bastasse isso, vez por outra visitava a Ceará Rádio Clube. Foi

numa dessas visitas à rádio na adolescência que conheceu o amigo e artista

plástico Totonho Laprovitera. A amizade dos dois dura até hoje. Totonho

atesta a precocidade do garoto, na era de ouro do rádio no Brasil:

“Desde cedo Fagner se revelou uma pessoa muito talentosa e

determinada. Aos nove anos de idade já tinha confeccionado seu primeiro

carimbo. Aos dez, seu cartão de apresentação. Na televisão, inscreveu-se e

foi selecionado para fazer um papel na novela Oliver Twist, de Charles

Dickens.”

Aliás, certa vez, ao gravar essa novela — na época ao vivo e em preto e

branco —, foi até a emissora sozinho, de ônibus, e lá chegando, após longa

espera, veio o momento da sua participação. A cena consistia na punição

do garoto após alguma travessura, com uma grande surra de cinturão e

direito a tapas e cascudos! Pensou em desistir, mas, não podendo voltar

atrás, enfrentou o papel. O realismo empregado foi de um exagero

tremendo e, ao terminar o escarcéu, veio o grande drama: como encarar os

amigos e os vizinhos depois de tão violenta e humilhante cena? Na certa

levaria uma vaia e das grandes. Decidido, esperou passar o tempo e voltou

para casa já quase na hora do último ônibus da noite. Ao descer na parada

mais próxima, observou o movimento da rua, das casas e, em silêncio,

entrou na sua casa, fugindo de uma possível vergonha.

Em 1958, o ainda menino Raimundinho foi barrado na inauguração do

Cineteatro São Luís, o melhor cinema do Brasil, de Luís Severiano Ribeiro,

que ficava na praça do Ferreira, no centro da cidade. O filme em cartaz era

o clássico Anastácia, a princesa esquecida, com Yul Brynner e Ingrid


Bergman. Era proibido entrar no cinema sem paletó, e Fagner ainda não

tinha um.

Quem já foi barrado sabe o quanto pesa essa rejeição. E quando essa

recusa se dá por inadequação de traje, aí dói mais; é humilhante. Naquela

noite, o despaletozado ficou na rua vendo estrelas. As do céu. Ingrid

Bergman, só para os chiques. Mas o mundo dá voltas, e como dá!

Muitos anos depois, nesse mesmo cinema, sob a tela onde Ingrid

surgiu, outra estrela brilhou. Não veio de Hollywood, era daqui da terra

mesmo, do Brasil, do Ceará: o cantor Fagner, que, naquela noite de 13 de

outubro de 2016, completava 67 anos de idade. A ocasião foi comemorada

com amigos famosos em duas apresentações.

O garoto já tinha 14, 15 anos quando começou a se interessar por

instrumentos musicais. Em Orós, costumava frequentar o Clube do Rio

Seco, onde dançava — sempre foi um pé de valsa — e ficava namorando a

guitarra, a bateria... Ia lá muitas vezes só para se sentar na banqueta da

bateria. Essa paixão pelos instrumentos foi registrada nas primeiras fotos

que fizeram dele, aquelas que vinham dentro de uns pequenos monóculos.
O primeiro violão que tocou, na adolescência, foi o de um amigo da

família, Wellington Soares, um vizinho do bairro da Piedade. Ele era


boêmio e, como não tinha garagem, deixava seu Fusca guardado na casa de

Fagner.

Eu ficava de olho naquele violão trancado no carro. Nunca esqueci


daquele violão de madrepérola azul.

Mas e os estudos? Nesse quesito, havia problemas, muitos problemas.

Recebeu as primeiras lições das irmãs mais velhas e o reforço de uma

gaúcha linha dura. Dona Maria Dutra era sobrinha do General Eurico

Gaspar Dutra (1883-1974), presidente do Brasil de 1946 a 1951.

Renomada professora particular de Fortaleza, sua casa ficava no centro da

cidade, na rua Floriano Peixoto, a mesma em que Fagner nasceu.

Comecei a estudar em casa, mas, como era muito danado, logo me


puseram nas mãos de dona Maria Dutra, que era muito respeitada na
cidade. Eu tinha dez, 12 anos e sabia que ela era muito rigorosa;
mesmo assim brincava na aula e por isso era severamente punido. Ela
tinha um jeito muito cruel de me castigar: depois da aula, liberava os
outros alunos e me obrigava a vê-la comer. Com seu excelente paladar,
ficava comendo na minha frente por um tempão. Depois, deitava-se na
rede para rezar o terço e só me dispensava depois da última Ave-Maria.
Era uma tortura.

Eta castigo demorado!

Fagner fez a escola primária entre 1956 e 1960, no colégio Lourenço

Filho e, depois, no Farias Brito, mesma escola onde faria o exame de

admissão para o ginásio. Ali também cursou a primeira série ginasial, e foi

quando seus pesadelos escolares aumentaram. Deixou o Farias Brito e

terminou a primeira série já no Castelo Branco, um colégio de padres. Os

educadores do tempo do jovem Fagner, nessa época com 12 anos, tinham

maneiras de fato bizarras de punir:

Uma vez, no colégio, joguei uma bola de futebol americano em cima


dos padres. O castigo não tardou: me botaram de joelhos em cima de
grãos de feijão e milho em plena área do recreio, para servir de
exemplo.
Os piores momentos escolares de Fagner aconteceram na segunda

série. Bombou duas vezes. Quando seu Fares soube da dupla repetência,

fulminou:

“Meu filho, nunca pensei que você fosse tão burro!”

Fagner não se esqueceria da dura sentença paterna. Diante disso, a

família resolveu tomar uma atitude. O garoto precisava concluir o segundo

ano do ginásio de qualquer maneira. Então, foi matriculado no Colégio

Dom Bosco, o mais próximo de sua casa, onde não havia tanto rigor para

passar de ano.

Na adolescência, é comum muitos alunos gostarem mais das chamadas

ciências humanas e ter mais dificuldade em lidar com as exatas. Era o caso

de Fagner.

Eu tinha o seguinte problema: só estudava o que queria. Minha


maior dificuldade era com matemática e ciências, mas nas outras
matérias me saía bem.
Fagner só reencontrou o prazer nos estudos quando, finalmente,

matriculou-se no Anexo do Colégio Estadual do Ceará, na Piedade.


Foi lá onde realmente tomei gosto pelos estudos e tive um contato
mais estreito com a poesia nas aulas do exigente professor de
português João Lima. Ali também conheci Marcus Francisco Alcântara,
meu colega de classe, que se tornou meu primeiro parceiro, um cara
genial. Nessa época me toquei de que tinha que estudar por causa dos
estudantes piauienses. Como no Piauí tem muito Raimundo e eles
vinham estudar no Ceará, convivia com eles. E fiquei com muita
vergonha de mim mesmo; vi o sacrifício que eles faziam para poder
estudar e eu não dando valor à oportunidade que estava tendo. Depois
que passei dessa fase não teve jeito. Me senti obrigado a estudar.

Com certeza, os estudos eram a preocupação maior de Fagner. Tinha

que retribuir o esforço da família, mostrar resultados.

Minha família esperava muito de mim. Eles me deram tudo, eu não


podia decepcioná-los mais.

Em frente ao Colégio Castelo Branco havia um senhor muito famoso

que dava aulas de violão, o professor Cirino, tio de Wilson Cirino, com

quem Fagner futuramente gravaria seu primeiro disco. O adolescente

resolveu se matricular e em uma semana só lhe ensinaram uma única

música, “Prece ao vento”, de Fernando Mendes, um clássico nas escolas de

violão. Na semana seguinte, vieram com a mesma música na pauta e ele

pediu que lhe dessem outra, mas não foi atendido. Fagner então largou a

escola e passou a tocar de ouvido com a turma do bairro, onde já havia

ecos de música entre os jovens.

Embora fosse um amante das serestas, ele também era ligado nos

sucessos da Jovem Guarda, em Roberto, Erasmo, Renato e Seus Blue

Caps... Chegou a vestir roupas “calhambeque” do pessoal do rock nacional.

Mesmo assim, sua primeira canção foi composta para... o Carnaval!

Foi em Óros que Fagner passou boa parte da infância e adolescência,

viajando nas férias. Lá conheceu a abastada família Batista, comerciante de

algodão e dona de fábrica. Teve uma relação mais profunda com dois

membros da família. Primeiro com Branca, seu grande e primeiro amor;

depois, com Eliseu, irmão dela e companheiro até os dias de hoje.


Naquela época, Fagner já tocava violão e gostava da companhia de

Eliseu. Por coincidência, Laudicéia, primeira mulher de seu Fares, era tia

de Eliseu. Para ele, o amigo de infância era um garoto normal.

“Nós aprontávamos muito, porque fazíamos as brincadeirinhas de

adolescentes, namorando, disputando as mesmas garotas. Passávamos o dia

tomando banho de rio ou na piscina, caçando... diversões da juventude da

época. Tocávamos violão, animando as festas com discos trazidos da

capital. Não existia divulgação, não existia rádio, TV, nada, então a gente ia

para lá e fazia e acontecia, não só em Orós, mas nas cidades vizinhas

também. Íamos muito a festinhas nos municípios vizinhos. Em Icó, por

exemplo, foi muita brincadeira, e isso fez com que a gente desenvolvesse

um amor pela terra, pela gente, pelo lugar. Lembro dos nossos primeiros

porres, as primeiras bebidas, da primeira vez que ele bateu um carro

dirigindo.”

De tanto ver o adolescente Fagner com o violão nos braços, seu Eliseu

Batista, cansado das marchinhas de sempre, perguntou ao garoto:


“Raimundinho, você gosta tanto de tocar violão, por que não faz uma

música pra gente?”

Daí surgiu uma marchinha de Carnaval de que todo mundo gostou e

cantou. Depois dela, Fagner se aventurou em outra composição. Dessa vez

estava em São Miguel, uma cidade serrana perto de Orós, na fronteira com

o Rio Grande do Norte, onde tinha amigos e colegas do colégio em

Fortaleza.

Passei a andar muito por lá e via aquele povo, os chamados


“cassacos”, trabalhando debaixo de um sol escaldante na época da
seca. Ali surgiu a primeira música de que me lembro, a “Claro dia de
serra”, mais ligada aos problemas sociais.

Daquela fase da vida do cantor, o amigo Totonho Laprovitera guardou

na lembrança histórias de Fagner e Wiron Batista, irmão de Eliseu.

Grandes amigos, Raimundo e Wiron se conheceram meninos em Orós,

quando se identificaram bastante e se elegeram irmãos. Totonho relembra:

“Dali por diante, a fraternal arte da amizade tomou conta deles e os tornou

únicos de alma. De Fagner, Wiron foi constante confidente, companheiro

em diversas viagens, parceiro de peladas de futebol, de praia e sertão, de

sóis e luas, de alegrias e tristezas (pouquíssimas!), e em afinidade

profissional administrou por um bom tempo a rádio Orós FM, do amigo-

irmão.”

Wiron também era fotógrafo, e dos bons! Em sua trajetória, tirou uma

foto memorável para a contracapa do disco ABC do Sertão, em que Fagner

e Luiz Gonzaga aparecem lado a lado, de costas, no palco do show que

fizeram em Orós.

Dentre as exposições que realizou, em 1995 participou de duas com

Fagner, que também se aventura nas artes plásticas, embora poucas pessoas

saibam disso: a primeira, em Natal — coletiva Quatro Artistas Cearenses,

com Ricardo Bezerra e Totonho Laprovitera; e a segunda, em Fortaleza —

coletiva 3 Amigos, com Totonho Laprovitera.

Atento, inquieto e com uma acentuada consciência de cidadania,

Wiron defendia, por exemplo, a instalação de lixeiras em todos os espaços

públicos da cidade.

Certa vez, reuniu amigos — Fagner entre eles — para, na calada da

noite, pintar a tinta círculos amarelos em torno dos buracos do sofrido


asfalto da Monsenhor Tabosa, importante avenida do comércio de

Fortaleza, e resguardar os desatentos transeuntes. Hoje aquela ação seria

entendida como uma manifestação da chamada arte contemporânea.


De belas feições e modos simples e elegantes, Wiron viveu

avexadamente. Tinha pressa de viver, ver, conhecer, experimentar e ousar.

Aventurava-se no mundo com a alma pura e o grande coração.

Mas, na fatídica tarde de 2 de novembro de 1998 — Dia de Finados

—, Fagner recebeu um telefonema de um amigo da Polícia Rodoviária.

Dava conta de um sinistro na BR-116, nas cercanias de Fortaleza, com um

veículo de documentos em nome do Sistema Orós de Rádio e Televisão. No

acidente, uma vítima fatal: Wiron.

Como se vê, há mil e uma razões evidentes para Fagner se ligar quase

fisicamente a Orós. Mas em Fortaleza, onde levava a vida, o rapaz se

aventurava pela perspectiva da música. Em 1967, caiu um avião no Ceará e

na vida de Fagner. Não, ele não estava a bordo, nem parentes ou amigos.

Quem morreu foi o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco,

primeiro presidente da ditadura militar, de tenebrosa lembrança. Nada tem

de trágica a recordação que Fagner guarda desta data. Era a primeira vez

que saía de casa para fazer uma serenata. Um feito e tanto para um

rapazinho ainda menor de idade. Um amigo que havia passado no

vestibular pediu para ele cantar na janela de sua namorada.

Tudo muito novo, muito bonito, muito romântico, até que surge um...

caminhão do Exército. Tensão no ar. A palavra “subversivo” acabara de

entrar na moda e nos pesadelos de muita gente. Aquele violeiro estaria

entoando canções de protesto? Desrespeitando o luto nacional pela morte

do presidente cearense? Justo ali, numa rua de Fortaleza? Vieram as

explicações. Cantava-se o amor, só isso, ou tudo isso. Os soldados bateram

em retirada. A moça que ganhava a serenata fechou a janela e os “boêmios”

voltaram para casa.

E, àquela altura e em outras, Fagner não tinha a menor ideia do que

acontecia no Brasil da ditadura.

Ele costuma dizer que o bairro da Piedade era a Liverpool brasileira,

numa referência à cidade onde surgiram os Beatles. Qual a ligação? Assim

como a cidade inglesa foi o berço da banda fenomenal de John, Paul,

George e Ringo, naquele bairro surgiram muitos grupos de música, ainda

que bem mais modestos. Ele conta com entusiasmo:


Os mais famosos eram Os Faraós e Os Quem, quando disputaram
um concurso de melhor conjunto do Nordeste, em Recife. Ganharam e
deslancharam. Tinha outros também, como Os Belgas, Os Dissonantes,
Fortaleza. Por aí se vê que era uma cidade bem musical.

Enfim, esse movimento foi muito forte no bairro. O grupo de Fagner

chamava-se a princípio Os Magnatas, mas rapidamente mudou de nome

para Os Rebeldes. Contava em sua formação com Joacy, Mardônio, Zé

Silva e Mauro, e o repertório que cantavam era de Renato e Seus Blue

Caps, Roberto e Erasmo, Jerry Adriani e Wanderléa.


Jovem Guarda cearense
CAPÍTULO 4
E m 1968, ao deixar a casa da praia de Iracema, a família Lopes se

instalou na rua Artur Temóteo, 243, bairro de Fátima. Essa nova casa,

que foi sendo construída aos poucos, receberia no futuro a visita de

grandes artistas da nossa música popular, de Nelson Gonçalves a Rita

Lee. Roberto Carlos não saía de Fortaleza sem ir ali visitar dona

Chiquinha. Pois bem, naquele ano, nas redondezas daquela casa havia

uma cena musical intensa relacionada ao Colégio da Piedade, onde

Fagner foi estudar e onde surgiu seu primeiro grupo musical. As opções

eram jogar futebol ou montar uma banda, e ele preferiu a segunda. Um

senhor de lá, seu Francisco, um baiano que confeccionava guitarras, e

foi quem fez a primeira de Fagner, em formato de estrela.

Um dos pontos de encontro dessa garotada de Fortaleza era o

cinema. Fagner era fã de um cantor mirim espanhol, Joselito, estrela de

Marcelino, pão e vinho. A história se passava num convento de padres

franciscanos; era um filme meloso, bem ao gosto das plateias brasileiras

que seguiam as novelas mexicanas. O público pagava ingresso para

chorar. No escurinho do cinema, um certo jovem cabeludo deve ter

ensopado seu lenço, assistindo a várias sessões seguidas.

Quem não achava nada bonito esse monte de atividades

extracurriculares era seu Fares. A vida escolar do caçula só lhe dava

desgosto. O pai o forçou a estudar inglês, mas o adolescente matava as

aulas para jogar pingue-pongue.

Eu era um desastre nos estudos. Várias vezes papai perdeu a


cabeça comigo.
Mas a vida não era só distração, e Fagner frequentava o Colégio da

Piedade onde tinha um colega de carteira, um rapazinho bem especial,

chamado Marcus Francisco de Alcântara. Chegava no colégio sem

livros, levava apenas as revistas em quadrinhos do Bolinha e da

Luluzinha, mas era tão inteligente o danado que, perguntado sobre

qualquer questão, mostrava sua competência.

Era mais novo do que eu e morava lá perto de casa. Era um pintor


fantástico, uma fera no bico de pena. Parecia saber mais do que os
professores, que, claro, não davam o braço a torcer.

Certo dia naquele mesmo ano de 1968, ele chegou na sala de aula

com um recorte de jornal e disse a Fagner: “Vai ter um festival na

cidade, vamos fazer uma música?”

Lógico que Fagner topou na hora. Os dois amigos então resolveram

se aventurar no IV Festival de Música Popular do Ceará, promovido pelo

Conservatório de Música Alberto Nepomuceno. A parceria resultou na

canção “Nada sou”, que ganhou o primeiro lugar. Viva!


Pena que Marcus Francisco morreu jovem, aos trinta anos.

Suicidou-se. Mas, como artista plástico, deixou uma obra de muita

qualidade. Seu papel na música cearense foi fundamental para o início

de carreira de Fagner.

Diga-se de passagem que esse festival não foi a estreia de Fagner

como cantor; ele já havia se aventurado pelos corais e grupos de música

da Igreja da Piedade.

Também no começo de dezembro de 1968, Fagner participou de

outro concurso com o amigo Marcus Francisco, desta vez patrocinado

pela Rádio Assunção Cearense, o I Festival de Música Popular do Ceará

Aqui no Canto, com “Luzia do algodão”. A canção está no LP que

adotou o mesmo nome do festival, lançado pela Orgacine em 1969, e

registrou o resultado desse evento em que participaram os principais

nomes do time da música cearense.

Coube a Izaíra Silvino gravá-la em disco, pois, segundo Fagner,

Aderbal Freire Jr., produtor do festival, não deixou que ele defendesse a

música, nem tampouco que a gravasse. Hoje, Aderbal, o famoso diretor

de teatro, se defende: “Foi o Fagner quem não quis gravar.”


O que importa é que foi o primeiro registro em vinil de uma

composição de Fagner e que este teve uma foto estampada na primeira

página do jornal, deixando os repórteres ávidos para falar com ele. Teve

até entrevista para televisão. A música, enfim, estava acontecendo em

sua vida.

As portas se abriam, inclusive as do Estoril e do Anísio, bares onde

se reunia uma turma mais velha e, digamos, mais intelectualizada. Como

em tantas cidades grandes e pequenas do Brasil, onde os artistas elegem

determinado bar e restaurante como ponto de encontro, o Anísio era o

point de Fortaleza. Para os novatos, então, nem se fala. Era um lugar

mágico. Ficava na avenida Beira-Mar e seu dono, um pescador, era o

próprio Anísio. Assunto nunca faltava. Os festivais de música estavam

na moda. Quem ganhava, quem surgia, gente que poderia se transformar

num bom parceiro.

Jorge Mello, um dos precursores dessa geração, recorda como tudo

começou: “Fomos para o Anísio, eu, Belchior e Petrúcio Maia, e lá

estavam Rodger, Augusto Pontes, Dedé, Evangelista, Brandão, Cláudio

Pereira e Fausto Nilo. Ficamos até o amanhecer do novo dia. E desse

momento em diante, nunca mais paramos em outros locais para nossos

encontros diários. No Bar do Anísio, vivemos por vários anos. No início

era apenas uma mesa com dez ou 12 amigos, mas a coisa foi crescendo a

tal ponto que quando eu e Belchior resolvemos vir para o Sul [Rio de

Janeiro], frequentavam o bar pelo menos duzentas pessoas. Uma

pequena multidão de artistas e curiosos.”

Formado em filosofia e comunicação, Augusto Pontes, um dos

grandes intelectuais daquela geração, tinha cadeira cativa ali e, de seu

lugar, ficava dando apelidos a todos. Quando se cansava da presença

indesejada dos curiosos (pessoas que não eram da turma, mas que

queriam participar), ele saía com umas tiradas antológicas que ficaram

na memória do Bar do Anísio. Certo dia, por exemplo, vendo a confusão

de gente a sua volta, se levantou e soltou essa: “Quanto mais a mesa

cresce, mais a cultura desaparece!”

O Bar do Anísio passou a ser uma animada feira musical. Nos

primeiros tempos, Fagner só aparecia lá à tarde. Era muito jovem, ainda

não era da “cultura”, desses profissionais mais biriteiros.


Foi nesse ambiente que acabou conhecendo o músico baiano Piti,

surgido na Tropicália de Gil, Caetano e companhia. Piti participou do

célebre show Nós, por exemplo, que inaugurou o teatro Vila Velha, em

Salvador, no ano de 1964. Convidado por Aderbal Freire, ele foi para o

Ceará em 1968 e participou do I Festival Aqui no Canto, aquele da

estreia de Fagner no vinil. Ele conta que ganhou um mestre:

Foi Piti quem me motivou a tocar violão. Ele bagunçou a caretice


do jeito cearense de tocar. Eu ficava alucinado com aquelas
harmonias incríveis e passei a me interessar seriamente pelo
instrumento.

E seu Fares e dona Chiquinha? Como reagiam a esse frenesi musical

que começava a tomar conta do filho?

A princípio não sabiam, mas mamãe sacou, porque eu não parava


de cantar. Pegava os discos e ouvia na casa dos amigos, cantava
nas esquinas. Gostava de dançar twist, mas não na frente dos
velhos. Longe, me soltava e me exibia.
Certa vez, teve um concurso na Rádio Iracema e me inscrevi
como calouro. A grande atração era Cauby Peixoto. Aquilo para mim
era um sonho. Eu vi o Cauby tão próximo que não resisti: encostei a
mão nele! Onde houvesse um programa de calouros, lá estava eu.
Um deles se chamava Degraus da Fama e eu estava disposto a subir
todos eles no Theatro José de Alencar, mesmo que alguns maldosos
preferissem trocar uma letrinha e chamar o programa de Degraus da
Lama.

Para muitos brasileiros, o ano de 1968 foi inesquecível, aquele que

devia terminar mesmo. Para Fagner, foi praticamente o início da

carreira.
O amigo Fausto Nilo, principal parceiro de Fagner e compositor da

MPB com mais de quatrocentas músicas gravadas, sintetiza o ambiente

musical da época: “Rio de Janeiro e São Paulo sempre foram a vitrine

cultural do país. Mas havia gente inquieta e criativa em outras capitais:

Recife, Salvador, Porto Alegre, Belo Horizonte, Fortaleza. Uma

juventude universitária ativa. A politização chegava por intermédio dos

festivais da canção que aconteciam no Rio e em São Paulo, mas que a

televisão levava para o Brasil inteiro. Apresentavam compositores,

letristas e intérpretes ainda pouco conhecidos, mas de primeiríssima

qualidade. E o público se identificava com essa nova música.

“Nós, em Fortaleza, estávamos nesse compasso. Também sabíamos

fazer música e queríamos mostrar. Podíamos ser cantoras sem ser

chamadas de prostitutas e podíamos ser cantores sem ser chamados de

vagabundos. O Brasil estava nessa transição.”

Fausto ainda conta que essas pessoas estavam envolvidas numa

experiência social pioneira com relação a “uma série de

comportamentos e pensamentos muito conservadores”. Isso nos anos

1970 ou quase. “Quando a gente ia para o bar”, prossegue o compositor,

“era como se fosse uma feira. Cada um que chegava dizia: ‘Fiz uma

música hoje e vim mostrar aqui!’ E mostrava.”

No começo, essa mesma turma torcia o nariz para Ricardo Bezerra e

Fagner. E eles, por sua vez, apelidaram os mais velhos de os “culturais”,

a “turma da cultura”, os “intelectuais”.

“Certo dia, resolvi defender os novatos”, lembra-se Fausto Nilo. “Eu

queria ouvir. Virou uma confusão. A partir daquele dia começou minha

amizade com o Fagner. Eu não fazia nada nessa área, não compunha,

não escrevia letras, só estava com aquela turma.”

No Bar do Anísio, Fagner também conheceu Belchior.

Éramos o segundo time, o plano B, mais jovens do que os outros


que não nos davam a menor trela. Belchior se levanta da mesa e
fala: “Magro.” Era como ele me chamava. “Olha essa letra aqui.”

Era “Mucuripe”. Fagner a levou para casa e, no dia seguinte, uma

surpresa: chegou com a música pronta. Todo mundo gostou. Ficaram


espantados. A partir desse episódio passaram a vê-lo com outros olhos.

E parece que tudo aconteceu de forma imprevisível. Era como se os

sonhos e anseios de Fagner começassem a tomar forma.

Lembro que eu não dormia, passava noites acordado, já me sentia


reconhecido. A partir dali fiquei mais seguro, ergui a cabeça!

Quando cantou “As curvas da estrada de Santos” na televisão,

declarou no ar que ainda seria o artista mais famoso do Ceará. Suas

palavras começavam a incomodar. Certa vez, abordou um fotógrafo que

cobria os programas da TV Ceará e que só apontava sua câmera para

artistas vindos de fora:

“Ei, fulano, bate uma foto minha porque ainda serei famoso.”

Fagner já desfilava por Fortaleza como um cantor de futuro. Pelo

menos já não se sentia mais amador. Parecia adivinhar que ali estava o

começo de tudo.

O ano de 1969 foi crucial no tocante aos estudos. O rapaz terminou

o terceiro ano científico. Ufa! O ensino básico estava finalmente

completo. Faltavam o cursinho e o vestibular para Arquitetura, escolha

influenciada pelos “culturais”. Fez o exame, mas tomou bomba!


O adeus a Fortaleza
CAPÍTULO 5
A quela geração que perseguia com afinco o sucesso através dos

festivais no Ceará acabou se enturmando com a televisão. Os programas

Porque hoje é sábado e Gente que a gente gosta, de Gonzaga

Vasconcelos, e Show do Mercantil, de Augusto Borges, apresentados na

TV Ceará no início dos anos 1970, cediam tempo e espaço para o

talento dos “grandes” nomes do canto cearense. No pequeno auditório

da TV Ceará, Belchior, Jorge Mello, Ricardo Bezerra, Ribamar,

Ednardo, Rodger Rogério, Petrúcio Maia e Fagner aprendiam a encarar

plateias e pressentiam que Fortaleza já se tornara muito pequena para

eles. O Brasil era muito maior e aquela turma já estava com a cabeça em

outro lugar.

No começo de fevereiro de 1969, como prêmio por ter vencido o IV

Festival de MPB, Fagner foi convidado para sair em excursão junto com

intelectuais de várias áreas de Fortaleza — grupo conhecido como

Capela Sistina — que promoviam eventos comandados por Claudio

Pereira e Claudio Menezes e todo fim de ano organizavam uma ida à

Argentina. Viajava com eles uma parcela considerável da sociedade

local. Claudio Pereira foi quem fez o convite a Fagner, mas este não se

juntaria à caravana sem impor uma condição: seu parceiro Marcus

Francisco teria que ir junto.

De Fortaleza a Buenos Aires foram 45 dias sacolejando dentro de

um ônibus pelas estradas do país. Foi a chance de sair do Ceará pela

primeira vez e conhecer o Brasil. Desconforto à parte, aquela era uma

baita aventura.

O viajante Fagner era mais ou menos assim: um jovem cabeludo,

magro, alto, que usava roupas no melhor estilo hippie.


Na viagem ele conheceu a Bahia, o Carnaval do Rio, a Festa da Uva,

no Rio Grande do Sul, o Uruguai, onde iriam participar do tradicional

festival de Piriápolis, e de lá seguiram para a Argentina. Nesta última, o

que mais o marcou foi a arrogância dos hermanos.

Eu era muito cabeludo e as pessoas me olhavam com cara de


nojo. Fiquei com trauma de argentino. Mas no futuro foi diferente. A
vida é cheia de voltas.

Durante a viagem, Fagner escreveu várias cartas aos pais, na ida e

na volta. Em 13 de fevereiro de 1969, esteve em Petrópolis, no Rio de

Janeiro, e relatou seu encanto em conhecer o Museu Imperial, onde pôde

ver belezas do tempo do Império, tais como a coroa de D. Pedro II,

espadas, joias, leques, a locomotiva, estátuas, quadros, “tudo muito

bacana”. Na cidade, visitou ainda a Catedral, o túmulo de D. Pedro, o

palácio da rainha e a casa em que viveu Santos Dumont.

Três dias depois, já na Cidade Maravilhosa, escreveu novamente

para seu Fares e dona Chiquinha, fazendo um resumo da viagem até ali.

Rio de Janeiro, 16 de fevereiro de 1969

Papai e querida Mamãe, abraços.

Esperando que esta encontre todos gozando de saúde, escrevo para dar algumas notícias.

Neste exato momento estou num hotel no centro do Rio de Janeiro, pagando muito pouco e

comendo muito bem em qualquer restaurante da cidade.

Já rodei vários lugares e conheci muita coisa: Juazeiro da Bahia, Petrolina, Feira de

Santana, Salvador, o interior de Minas Gerais, que é a coisa mais bonita do mundo, Petrópolis,

Teresópolis etc. e agora estou aqui no Carnaval e a cidade toda ornamentada.

Toda vez que vamos tomar café da manhã ou um lanche, o Claudio Pereira me obriga a

tomar leite e outras coisas que não gosto, porque diz ele que eu sou o caçula da excursão e ele é o

meu responsável.

Em 24 de fevereiro uma correspondência endereçada à mãe seguiu

com carimbo dos Correios e Telégrafos de Porto Alegre.


Querida Mamãe, abraços.

Espero que esta encontre todos gozando de saúde. Eu estou adorando tudo e conhecendo

todos os lugares mais bonitos do Brasil.

Neste momento estou sentado nos degraus da calçada dos Correios e Telégrafos de Porto

Alegre. [...]

Dentre tudo de bom que está acontecendo na viagem, aconteceu um fato desagradável: o

Pretextato bebeu muito, brigou com muita gente e, não acreditando na ameaça do Pereira de

chamar a polícia, provocou um rapaz da excursão, querendo brigar com todos; estava ficando

indesejável e, no dia da Festa da Uva em Caxias do Sul, que foi um verdadeiro espetáculo, ele

brigou com um rapaz e o Pereira foi chamar a polícia. Ele ficou toda a noite preso, só saindo no

outro dia.

Já está de bagagem arrumada para voltar a Fortaleza, pois o Pereira diz não querer na

excursão elementos que prejudicam o resto da turma.

Não precisa se preocupar porque estou indo muito bem e o Pereira é que está tomando

conta de tudo e de mim.

Não sei por que nunca escrevem para mim, mas se a senhora tiver meu endereço no

Uruguai e na Argentina mande cartas, pois estou sem notícias daí.

Mandei um telegrama pedindo dinheiro e, se a senhora mandou, receberei agora à tarde.

Na volta de Buenos Aires a Fortaleza, criou-se um impasse na casa

dos Lopes. Seu Fares jamais iria se conformar se o filho mais novo não

se formasse num curso superior, como todos os outros. Resolveu, então,

mandá-lo para Brasília, onde moravam duas das irmãs de Fagner, Eliete

e Elizete. Ele deveria se matricular num cursinho e prestar vestibular

novamente. Foi o que fez. Pegou um ônibus para o Rio e, de lá, para

Brasília.

Brasília, 7 de outubro de 1970

Mamãe, Papai, abençoem-me.

[...] Quanto ao cursinho, é na base de 150,00 e ainda tem a matrícula de cem a 150

cruzeiros, é tudo muito caro, e apesar da Zete [Elizete] e da Teté [Eliete] não quererem que eu

me empregue, estou pensando em arranjar um trabalho para ver se não dou muita despesa ao

papai. Acho que não é muito difícil arranjar emprego e se eu achar só meio expediente e, de

acordo com o que a senhora e o papai achem, eu agirei. [...]

Em 25 de outubro de 1970, ele informa aos pais que irá fazer a

inscrição para o vestibular da UnB no dia seguinte, que está bem e que

nos últimos três dias vem se dedicando a fazer os simulados para o


exame. Já em 4 de novembro informa que o vestibular vai acontecer nos

dias 5, 6 e 7 de janeiro e que os resultados sairão em seguida.

Como não tenho outra coisa pra fazer, só faço estudar. Aqui não tem divertimento e é muito

triste. Já fui três sábados na casa do Roger... Não se preocupem, pois, caso eu não chegue a

passar, farei na particular que é fácil, mas estou com fé de passar é na primeira mesmo.

Em 8 de dezembro, Fagner enfim revela que optou pelo vestibular de

Administração e não de Arquitetura:

Hoje fiz minha inscrição para o vestibular que se aproxima e, pela melhor qualidade do

curso e pelo meu gosto, optei por Administração, pois as demais são tão concorridas como aí,

principalmente porque vêm mais de 1.500 candidatos do Rio, de São Paulo e de Minas. Eu

estava pensando em fazer Economia ou Arquitetura também, mas recebi informações de que

estes cursos estavam bem bagunçados e terminei na Administração, que é um ótimo curso e, se

em todo caso eu passar e não gostar, posso fazer vestibular de novo no meio do ano para

Engenharia e assim terei mais condições de passar do que agora. O importante é que estou

satisfeito e espero que todos também fiquem. Mamãe, a senhora não precisa se preocupar com

nada porque aqui eu estou muito bem, não me falta nada.

Em 8 de janeiro de 1971, ele dá as boas-novas:

Até que enfim tudo acabou e muito bem, pois fiquei entre os dez primeiros lugares em

Administração e, como já sabem, só depois de dois anos básicos é que decidirei entre

Arquitetura e Administração, e tudo vai depender do que eu fizer lá dentro, o importante mesmo

é que eu passei e espero que todos estejam tão felizes quanto eu.

Obs.: descontei o pau do ano passado em Português e tirei a segunda melhor nota de

Humanismo — em cinquenta questões, 46 pontos. Uma das maiores de todo o vestibular de

Brasília — diga-se de passagem.

Fagner conta ainda que nessa época Fausto Nilo estava em Brasília

como professor da Faculdade de Arquitetura. Pessoa de confiança da sua

família, também se tornou um bom amigo antes mesmo de iniciarem a

parceria musical.

Fagner voltou para casa na Piedade, onde passaria as férias daquele

verão antes de retornar a Brasília para começar o curso superior. Em

1971, para se chegar à capital do país saindo de Fortaleza era preciso


primeiro passar pelo Rio de Janeiro — uma viagem longa a que Fagner

fez.

Eu vim de ônibus da Itapemirim, com a passagem para Brasília


para o mesmo dia. O Luis Fiuza, amigo de Fortaleza, arquiteto e
compositor, me leva para casa de uma tia dele, no Arpoador. Troquei
a passagem para o dia seguinte e, irresponsável, esqueci de avisar à
minha irmã. O ônibus que eu desisti de pegar bateu na estrada a
cinquenta quilômetros de Brasília. Morreram 19 pessoas e eu
poderia ter sido uma delas. Escapei. Aquele foi o primeiro grande
acidente da empresa Itapemirim. Quem mais sofreu com isso foi
minha irmã Elisete. Ela me esperava na Rodoviária do Plano Piloto
quando soube do desastre e foi até o local do acidente. Viu gente
morta saindo de maca. “Cadê meu irmão? Cadê meu irmão?” Foi ver
os corpos. Apontaram para ela uma maca com uma pessoa com as
pernas compridas e disseram: aquele é cearense. Elisete desmaiou
antes de ver que não era eu.

Aconteceu outra curiosidade com Fagner ligada ao episódio do

ônibus. Ele reencontrou recentemente com Badu, um amigo daquela

época, que também havia desistido de pegar o ônibus que se acidentou.

Histórias semelhantes. No vestibular brasiliense, Fagner havia guardado

uma senha na fila que garantiu a Badu sua entrada na universidade.

Em Brasília, Fagner vivia entre as casas das irmãs, as duas

advogadas. Eliete trabalhava no conceituado escritório de advocacia

Martins Rodrigues, ao lado do Hotel Nacional, e Elisete era secretária

do ministro Shigeaki Ueki, das Comunicações.

Eu morava com a Elisete na 205, mas fazia as refeições na casa


de Eliete, na 104, só precisava atravessar o Eixão.

Na época do cursinho fez novos amigos, como os irmãos Torres,

Roberto e Ricardo. Roberto conta que a amizade entre eles começou

dentro da sala de aula e que aos dois logo se agregaram o Luiz Ari e a

Beth (neta do escritor Graciliano Ramos), com quem formaram um

grupo de estudos. Os quatro se viam todo dia de manhã no curso pré-


universitário, mas também estudavam juntos à tarde e à noite,

revezando-se entre a casa de Roberto e a de Beth. Nas aulas, era uma

bagunça só, mas nos testes intermediários o quarteto sempre ficava em

boas colocações. No começo estudavam muito e não se falava em

música.

“Eu havia prometido a minha mãe que não pegaria na guitarra, e

Fagner também havia prometido a sua mãe só estudar. É fácil enganar as

mães, desde aquele tempo”, conclui Roberto com uma boa risada, antes

de prosseguir. “A amizade entre nós foi bastante intensa nesse período.

Não foram poucas as vezes que ele dormiu lá em casa. Aliás, virou

frequentador assíduo dos almoços e jantares da minha mãe. Saíamos

juntos para churrascos e festas. No nosso pequeno mundo candango,

Fagner já se tornara famoso.”

O rapaz cearense virou amigo íntimo dos dois irmãos e era muito

querido por seus pais, como conta ainda Roberto:

“Meus pais gostavam muito dele e sei que era recíproco, pois

futuramente, em um dos discos dele, escreveu na contracapa os nomes

de diversos amigos e lá estavam Ricardo [que se tornaria um futuro

parceiro musical de Fagner], Roberto, Laurindo e Irene. Esse

reconhecimento por parte dele foi muito prazeroso.”

O amigo conta ainda que ele e seu pai, torcedores fanáticos do

Fluminense, são os responsáveis por tornar Fagner tricolor, mesmo que

naquela época ele tivesse certa predileção pelo Botafogo. Convidado

para assistir à final do Campeonato Carioca de 1971 na casa dos Torres,

Fagner viu o Fluminense ganhar o título em cima do Botafogo bem no

finalzinho do jogo e acabou mudando de opinião. “O Flu me deve essa.

O Fagner é tricolor”, declarou Roberto com mais uma risada.

Como tudo que é bom dura pouco, em 1971 mesmo Fagner vai

embora atrás do seu sonho. Que me desculpem as mães, principalmente

a dele, mas... universidade para quê? Viva a música!


vida universitária
CAPÍTULO 6
O começo da vida acadêmica de Raimundo Fagner na Universidade

Federal de Brasília parecia caminhar bem, a se crer nas cartas enviadas à

família em Fortaleza. Enquanto pedia a dona Chiquinha que fosse logo

para a capital, ainda falava vagamente em arrumar emprego em um

banco, apesar de não estar muito animado com essa perspectiva. Parecia

gostar — até demais — do curso e da cidade:

Passo o dia na faculdade, tenho mais de mil amigos e no fim de semana vou para a casa do

Roberto.

Em 27 de abril de 1971, em nova carta aos pais, conta que só vai à

casa da irmã para jantar, pois passa o dia inteiro na faculdade e estuda

mesmo.

É um lugar calmo, com uma biblioteca que tem os livros que eu quiser consultar e estou

tirando notas excelentes.

Será mesmo que seu Fares e dona Chiquinha acreditavam no

milagre que transformara o renitente mau aluno de Fortaleza em

estudante exemplar? Dizem que em Brasília tudo pode acontecer e é

verdade, mas outra máxima da qual ninguém duvida é que coração de

mãe não se engana.

Fosse como fosse, o ano de 1971 foi muito mais do músico que do

estudante universitário. Fagner estava tinindo com sua voz e violão.

Tanto que participou do Festival de Música Jovem e ganhou de lavada.


Prêmio de primeiro lugar com a música “Mucuripe” (em parceria com

Belchior), sexto lugar com “Manera Fru Fru Manera” (com Ricardo

Bezerra) e ainda Prêmio Especial do Júri, hors-concours, com “Cavalo

Ferro” (também em parceria com Ricardo Bezerra), além dos prêmios

de Melhor Intérprete e Melhor Arranjo, por “Manera Fru Fru Manera”.

No festival, apresentou-se com a banda Casulo, dos irmãos Torres.

Roberto conta que “assim que abriram a inscrição, o pessoal da banda

agendou um ensaio/gravação”. Ele convidou Fagner para assistir, mas

como o cearense não era homem de ficar sentadinho na plateia, pegou o

violão e soltou a voz.

“Ficou todo mundo mudo de queixo caído. Percebemos todos que

aquele cara jamais se formaria em faculdade alguma. Era um Músico

com M maiúsculo. As canções eram maravilhosas e sua voz, marcante e

expressiva com aquele forte sotaque nordestino. Não havia como não se

impressionar com o talento musical dele. Passamos então o resto do dia

fazendo arranjos para as canções. Naquele tempo, gravar era bem

complicado. Nosso gravador era de fita de rolo e se alguém errasse

tínhamos que recomeçar tudo do zero. Foram horas intensas de gravação

e ao final tínhamos oito músicas prontas para ins crever. Quatro de

Fagner (‘Mucuripe’, ‘Manera Fru Fru’, ‘Cavalo Ferro’ e ‘Moto Um’),

três minhas (duas delas em parceira com meu irmão Ricardo) e duas do

Jorge Martins.”

Roberto conta ainda que eles usaram a estratégia de inscrever as

músicas separadamente a fim de que não fossem avaliadas todas juntas

pelos selecionadores. Para grande surpresa de todos, a estratégia deu

certo! Quando saiu o resultado, das vinte músicas classificadas, sete

eram deles. Combinaram então que dividiriam a apresentação pelos dois

dias do festival, evitando assim uma exposição demasiada do grupo.

Resolveram também chamar outros músicos para participar da banda a

fim de se apresentarem com formações diferentes. Resultado:


“Das dez finalistas, lá estavam seis músicas nossas. As quatro de

Fagner e duas minhas (‘Ana Luzia’ e ‘Mar das Tormentas’).”


A partir daí Fagner cumpriu a profecia de Roberto e deixou os

estudos em segundo plano, ou terceiro, ou último, como bem revelou o

amigo Ricardo Torres:

“Ele passava o dia inteiro lá em casa, então não estudava nada. Acho

que nem ia à aula, só queria saber de música.”

Foi nessa época que passaram a compor juntos. Bem, juntos é

maneira de dizer. Os amigos tinham que sair para trabalhar. Fagner não.

Dedicava-se à música em tempo integral. Compunha uma canção por

dia, um ritmo alucinante de criação. E quando os parceiros arrumariam

tempo para pôr letra em tanta melodia? Mas seu entusiasmo era tão

grande que os amigos davam um jeito. Fagner gostava da poesia dos

Torres, não mexia nas letras. Parceria é isso, a musicalidade do poema

casando com a melodia. Fizeram muita coisa juntos, mas só uma das

canções, “Santo e Demônio”, foi gravada e assim mesmo por Amelinha,

não por ele.

Na capital da República, a fama do moço não tardou a chegar à

Esplanada dos Ministérios. Veio o convite para cantar na festa de

despedida do ministro das Comunicações, Higyno Corsetti. Palco: Clube

das Nações do Distrito Federal.

Clube, por definição, é um lugar fechado, exclusivo para sócios.

Aquele parecia uma fortaleza. Fagner lembra que os cuidados com a

segurança começaram bem antes da realização do show.

Pediram nossas identidades e avisaram: “só vamos devolver


depois da festa.” E lá fomos nós! Um salão sofisticado, luz de velas
nas mesas, a nata da sociedade brasiliense. Chega a minha hora de
cantar, todos conversando. Baixinho, mas conversando. Ninguém
prestava atenção no palco. Aí parei e saí de mansinho sem ser
notado. Não querem me ouvir? Tudo bem. O organizador do evento,
que era um cearense ligado ao governo, veio atrás de mim. “Volta,
volta... está todo mundo esperando.” Acabei concordando. Mas disse
no microfone que estávamos ali sem documento, sem ganhar cachê
e, portanto, eles tinham a obrigação de nos ouvir. Então, cantei para
uma plateia atenta e, no final, as reações foram entusiasmadas.

Fagner podia não se meter com política nem gritar “Abaixo a

ditadura”, mas não sabia se calar diante dos poderosos.


Escreveu aos pais contando do sucesso do festival, dos prêmios e

troféus. Estava feliz por seu nome ter chegado ao Rio e a São Paulo e

pelo convite que recebera da TV Record. O diretor da Tupi também

tinha ouvido falar dele pelo cantor e radialista Barros de Alencar,

também cearense, que foi namorado de sua irmã Elizete na adolescência

e estava disposto a ajudar o jovem conterrâneo.


Antecipando a preocupação dos pais, Fagner lhes assegurou que

aquilo não ia atrapalhar a faculdade em nada e afirmou ainda que


dinheiro também não seria problema. Os prêmios haviam rendido três

milhões de cruzeiros, dos quais mandaria quinhentos ao parceiro

Belchior e usaria o restante para se manter no Rio. Os meninos que

tocaram com ele abriram mão de receber justamente para que Fagner

fosse atrás dessas oportunidades.

Eles foram espetaculares comigo. Sim, alguém ficou sabendo do


festival por aí?

Para poder passar essa temporada no Rio, no entanto, Fagner

precisava deixar a música um pouco de lado e dedicar-se com mais

afinco à vida de estudante. Sair de Brasília, sim, mas antes estudar

muito, tirar boas notas, garantir créditos, não ser reprovado de novo.

Assim, se as coisas não dessem certo no Rio, poderia voltar e retomar o

curso. Mas, no fundo, no fundo do fundo, ele queria uma viagem sem

volta. Brasília já tinha lhe dado o que tinha para dar.

Com a boa vontade e uma ajudinha generosa dos professores e

colegas de sala, obteve as notas de que precisava. Aprovado, trancou a

matrícula. Em 18 de julho de 1971, comunicou ao pai a decisão de ir

para o Rio de Janeiro.

Já estou de férias. Passei em todas as matérias e na próxima semana vou para o Rio.

Pretendo ficar lá alguns meses e possivelmente vou me transferir no próximo ano. Já concluí

quase todo o 1º ano e só faltam duas cadeiras para passar para o 2º. Vou ficar com o Belchior e o

Jorge Mello num apartamento que eles alugaram, portanto, não precisa se preocupar que tenho

certeza de que tudo vai dar certo, estou fazendo tudo com cautela.

Adeus, Brasília. Rio, me aguarde!


RIO DE JaNEIRO, TEMPOS DIFÍCEIS
CAPÍTULO 7
A inda em julho de 1971, Raimundo Fagner desembarcou no Rio de

Janeiro para morar com Belchior, Wilson Cirino, Jorge Mello e Rui

Pimentel (radialista baiano, braço direito de Belchior e entusiasta dos

cearenses) numa quitinete na rua Barata Ribeiro, 502, apartamento 805,

em Copacabana. Não era o que ele esperava nem o que havia combinado

com Belchior.

Dei a ele a minha metade do prêmio. Ganhamos pela parceria de


“Mucuripe”. O dinheiro era para ajudar no aluguel do apartamento
de Copacabana e para comprar uma cama para mim. Cama, o móvel
mais básico de uma casa! Quando cheguei lá, cadê cama para mim?
Cadê aluguel pago?

Na verdade, não havia nem lugar para dormir. Eram cinco

marmanjos para dividir apenas duas camas. Um rodízio infernal.

Nem bem chegou, Fagner tratou de mandar notícias para a mãe,

contando que morava com Belchior e Wilson Cirino e que iam para todo

lado juntos. Embora só estivesse na cidade havia três dias, já tinha

conhecido muita gente com a ajuda de Belchior; por isso, apesar de ser

cedo ainda, contava que teria muitas possibilidades. Estava

economizando para o dinheiro não acabar logo e afirmava que o pior de

tudo era ficar longe de todos.

Amanhã passarei o dia na casa do Paulo Diniz, na segunda-feira vou à casa da Cidinha

Campos e na terça na casa do Chacrinha. O Belchior vai no começo da próxima semana [agosto]

para São Paulo e talvez eu vá com ele para falar com o Barros de Alencar. Vamos ficar na casa

do Dom e Ravel.
Queria que a senhora não se preocupasse, aqui tem muita gente amiga.

Muitos passos de Fagner foram registrados nessas magníficas cartas

aos pais. Nelas, ele sempre tentava passar otimismo e, para tranquilizar

seu Fares, falava em voltar aos estudos. A do início de agosto vem

recheada de novidades:

Mamãe e Papai, beijos.

Já tenho certo um contrato com uma gravadora, mas não quis assinar nada porque estou em

contatos com a Philips e a Som Livre, que são quase certos, só faltando uma reunião que será

amanhã.

Segunda-feira irei na faculdade daqui para falar logo da transferência de Brasília para cá no

final do ano. Caso haja algum imprevisto não voltarei mais para Brasília, e, sim, para Fortaleza.

Diga ao mano Fares que fiquei amigo da Araci de Almeida, quando cantei no programa do

Cesar de Alencar.

Em nova carta, Fagner contou que acabara de sair com o jornalista e

compositor Ronaldo Bôscoli para a TV Globo. Deslumbrado, não sem

motivo, Fagner conhecia celebridades a cada dia. Esteve na casa de

Reynaldo Zangrandi junto com Magaldi, diretor financeiro da Rede

Globo, e o publicitário Carlito Maia, que futuramente seria um dos

principais fundadores do PT, responsável pelo famoso slogan “Lula-lá”.

Os dois últimos, nos anos 1960, criaram, junto com Carlos Prosperi, a

agência Magaldi, Maia & Prosperi, que revolucionou o mercado


publicitário, especialmente com a campanha marcante que lançou a

Jovem Guarda.

Foram eles que inventaram o cidadão chamado Roberto Carlos e comercializaram os

produtos da Jovem Guarda. Numa noite esse cara recebeu a gente; Reynaldo era casado com a

senhora Cássia Zangrandi, irmã da apresentadora Márcia de Windsor. A Márcia e a Cidinha

Campos abriram as portas para nós. Não passamos mais sofrimento no Rio por conta delas.

A ajuda também viria de Belchior, que já tinha contatos em São

Paulo. Acabaram conhecendo Nestor Bergamo, dono da Móveis

Bergamo, e sua mulher, Antonieta, uma incentivadora de principiantes

talentosos como aqueles cearenses. Um casal influente de São Paulo. O

que fizeram? Indicaram os jovens para cantar em casas da elite

paulistana que costumavam chamar artistas para animar suas festas.

Saíam do Rio de ônibus, cantavam e pegavam outro ônibus de volta.

Assédio de gravadoras? Até isso Fagner dizia estar encarando.

Ainda não tinha assinado com nenhuma porque estava avaliando as

propostas e queria se decidir por aquela que fosse pagar melhor. A carta

de 17 de agosto serve como um belo registro dessa fase. Nela, Fagner

fala de seu dia a dia agitado, com tantos afazeres que o impediam até de

ir ao cinema ou à praia, que ficava a apenas dois quarteirões de onde

morava. Também diz que, apesar dos convites, ainda não tinha ido

cantar na TV porque só o faria depois de lançar seu disco. De toda sorte,

já era amigo de muita gente.

Vamos sempre à casa do Reynaldo Zangrandi, uma espécie de QG da turma do Ceará. É um

pessoal muito legal com a gente. Tratam-nos como se fôssemos filhos. Ontem viemos de lá com

muitos presentes: toalhas, lençóis, um fogão pequeno, panela e muita merenda. Já saiu até no

jornal que ele é o pai da turma do Ceará aqui no Rio. Estamos com uma sorte danada, todo

mundo que nos conhece acha que temos possibilidades de fazer um movimento de empolgar

todo o país.

Empolgado, o jovem Raimundo encerra a carta dizendo que a banda

de pop-rock Os Incríveis ia gravar duas músicas suas. Nove dias depois,

reafirma que está tudo correndo bem, que estão com sorte, que o Pessoal

do Ceará já era conhecido de todos e que, no momento certo, eles


gravariam e participariam de programas. Não queriam só aparecer, mas

entrar para a história. No mais, estava bem de saúde:

Ainda não senti nenhuma doença.

Em 23 de setembro, conta sobre um show que fizeram em Além

Paraíba, cidade no interior de Minas Gerais a três horas de distância do

Rio. O sucesso foi tão grande que foram convidados para se apresentar

novamente no dia 29 daquele mês de setembro, na comemoração do

aniversário da cidade. Fagner, desde novo muito comunicativo, ficou

amigo de todo mundo, até mesmo do prefeito, do delegado e do padre

locais.

Quanto à gravadora, assegura que até o fim do mês já estaria tudo

resolvido. Seria a Philips ou a RCA Victor.


Temos muitos shows marcados, inclusive no Canecão, onde assisti ao show do Chico

Buarque. Foi ótimo.

O Canecão foi a maior casa de espetáculos do Rio de Janeiro;

durante anos e anos, o palco de maior prestígio da cidade. Ser convidado

para cantar ali era uma grande honra. Por isso Fagner não queria fazer

feio. Foi às compras e escolheu um terno quadriculado, estilo francês,

bom para o calor e para o frio.

Estava em remarcação. Vou pagar em dez prestações de vinte cruzeiros nas lojas Ducal. É

lindo!

Em 28 de outubro fala aos pais de sua satisfação com o disco que

havia gravado com Cirino num grande estúdio de São Paulo. Todos

acreditavam que o trabalho ia estourar. Já estavam sendo procurados pela

imprensa e tinham feito duas reportagens nas revistas Intervalo e

Destino. O disco sairia dia 15 de novembro e provavelmente no dia 20 já

estaria à disposição em Fortaleza.

No sábado tenho um encontro com o Marcos Lázaro, pois ele provavelmente será o nosso

empresário.

Estou gostando muito da gravadora. Assinei com a RGE Fermata e sou amigo de muitos

artistas famosos como Vinicius de Moraes, Juca Chaves etc.

Se por um lado as coisas não podiam estar melhores, por outro nem

todo mundo parecia feliz com o sucesso de Fagner. Ele conta, em carta

de 12 de novembro, sua estranheza diante do comportamento do

conterrâneo Belchior.

Ele anda meio espantado com as novidades, pois não esperava que tudo fosse acontecer tão

forte e tão depressa. Anda meio encabulado comigo, sente-se meio por baixo. Andou fazendo

uns troços meio chatos. Os convites que chegam são muito mais para mim. Ele anda com a cara

no chão. Eu tenho é muita pena dele, das imbecilidades que faz.


Um mês e um dia depois, a mudança para a Terra da Garoa é

confirmada.

Estou em São Paulo e parece que vamos ter que ficar por aqui mesmo. A casa em que

moramos fica num lugar maravilhoso, no bairro dos Jardins. Foi emprestada por Mario

Kuperman, um jovem cineasta daqui, muito rico. Nós estamos musicando um filme dele, e a

Antonieta Bergamo nos deu móveis, tapetes, roupas de cama. Enfim, mobiliou e equipou a casa

toda. Com o Natal chegando, parece que vêm mais presentes aí.

A casa está bonitinha, dois quartos, sala, corredor, cozinha e banheiro, áreas laterais e

imenso jardim. Não sabemos o preço do aluguel, mas o dos vizinhos é de aproximadamente dois

milhões. Podemos ficar até quando quisermos.

Bairro nobre, mas o novo morador vivia com quase nada: o dinheiro

era pouco e muito contadinho. O que não ia nada bem era a amizade

com Belchior.

O Belchior se achava o dono da casa só porque tinha sido


emprestada por um amigo dele. Cirino e eu ficamos no quarto dos
empregados. E o que era pior, o que mais me doía: não me deixava
tocar violão! Pode? Ele fazia bullying comigo.
Cirino e eu participamos de um festival em Além Paraíba e só não
ganhamos porque Belchior, como presidente do júri, ficou com medo
de nos dar a vitória. Alegou que podia parecer protecionismo nos
conceder aquele prêmio que, pela reação da plateia, já era nosso. A
música foi a mais aplaudida do festival.

Antonieta Bergamo, esta sim, incentivava seus pupilos. Levou

Fagner e Cirino à gravadora RGE para cantarem e lá lhes pediram que

gravassem juntos a música “Copa luz”. A canção de Cirino e Sérgio

Costa acabou sendo a primeira gravação fonográfica do cantor cearense,

mas não foi o estouro que eles esperavam. Fagner então resolveu voltar

para o Rio porque a família o pressionava para retomar os estudos. Ele

teve que resistir:

Meu pai não falava mais comigo, se recusava a me ajudar, nem


atendia telefonemas.
Estava já insatisfeito em São Paulo, na casa da Oscar Freire, 1.500,

até que um dia um evento inesperado mudou tudo. Bem ao lado da casa

estavam construindo um prédio e, por descuido, um dos operários

deixou escapar lá do alto uma ripa de madeira. Esta caiu no telhado bem

em cima do quarto dos rapazes, mais especificamente na parte onde

ficava a cama de Fagner. Por milagre ele não foi atingido, já que a ripa

ficou presa no buraco que se formou no teto.

Esse episódio foi a gota d’água. Fagner resolveu dar por encerrada

sua temporada paulistana e retornar ao Rio. Voltou, mas não para o

antigo endereço; foi morar na casa do primo Fábio, que tinha recebido

uma bolsa para estudar medicina na França, e deixou vazio o

apartamento na mesma Barata Ribeiro, 270, 3º andar. Foram tempos

difíceis. Se no antigo pouso havia duas camas para cinco marmanjos, na

nova morada não havia nenhuma. Para dormir, Fagner improvisava uma

cama com uma boia pequena de piscina em formato de esteira, usava

jornais como travesseiro e uma velha colcha de chenile como coberta.

De noite, ia ao supermercado Casas da Banha, já quase sem

movimento, disposto a cumprir um ritual: fazer ali as refeições. Entrava

e passeava pelas prateleiras à procura do que enchesse a barriga:

biscoitos, bananas, ovos crus, cenoura.

Ronaldo Bôscoli escreveu sobre isso em sua coluna:

“Fagner comia um Polenguinho, depois um tomate, um bolinho,

coisas pequenas e fáceis de comer ali mesmo. Depois, saía sem comprar

nada. A caixa o olhava desconfiada, mas não tinha provas. Ele saía com

tudo guardado no estômago. Para os amigos, qualificava essa refeição

como um ‘jantar rotativo grátis’. Muito engraçado. Mas ele encarou tudo

isso com uma grande sabedoria, sem dor e até com muito orgulho e

muita superioridade. Era fatal que acabaria sendo um vitorioso.”


Fagner não peregrinava só por prateleiras. Violão debaixo do braço,

insistia no périplo pelas gravadoras. Mas é claro que houve momentos

em que o desânimo bateu:

Eu parecia um rato em porta de gravadora com o violão na mão;


já não aguentava mais!

Numa dessas andanças, conheceu o jornalista e músico Eduardo

Athayde. Por coincidência, os dois se pareciam fisicamente a ponto de

serem confundidos na rua. Aliás, por causa disso Athayde teve até que

pagar um enterro de um conterrâneo de Fagner, pois um parente do

morto o encontrou na Cinelândia, Centro do Rio, e lhe pediu ajuda.Ele

havia produzido o célebre disco Matita Perê, de Tom Jobim, no qual

consta a gravação original de “Águas de março” do maesro. Viraram

amigos de infância. Ataúde, como Fagner o chamava, prometeu levar o


novo amigo à gravadora Philips, onde o compositor Roberto Menescal

comandava o maior cast da MPB. E cumpriu a promessa. Pediu a

Menescal que fizesse uma fita com músicas de Fagner. E ele fez.

Mas nada acontecia. Fagner já estava quase se despedindo de sua

aventura carioca quando, andando na praia, foi reconhecido pelo

assistente de Menescal que, de cima de uma moto, o abordou com

entusiasmo. Era o gaúcho Cepé, funcionário da Philips:

“Fagner, está todo mundo te procurando há um mês! A Elis está te

esperando. Ela canta quatro músicas suas no show!”

Surpresa. Ah, que surpresa boa! Ninguém havia encontrado Fagner

para lhe contar as novidades. Claro, ele estava em São Paulo. Correu

para a Philips e encontrou Menescal com aquele sorriso:

“Vá procurar a Elis no Teatro da Praia hoje à noite. Corre lá, rapaz.

Pega aqui esse bilhete: ‘Elis, este é o Raimundo!’”

Na época, Fagner era amigo de Beth Ramos, a de sua turma em

Brasília, e namorava a irmã dela, Tânia. Foi com elas que voou para o

teatro no qual Elis estrearia seu novo show. Na entrada, já avistou João

Bosco de violão em punho.

Estávamos na porta e de repente passa a Elis com a cara


amarrada. Ela já tinha dado uns esporros ali por perto. Pensei: vou
chegar não, a mulher é muito brava. Tânia tomou coragem, chamou
alguém e entregou o bilhete. Elis leu e gritou lá de dentro: “Até que
enfim esse cara aparece! Puta que pariu!”

O palavrão era, na verdade, um suspiro de alívio. Começava ali uma

bela amizade. Eles passariam a sair juntos praticamente todas as noites

para jantar. Envergonhado de não participar da conta, Fagner não pedia

nada, alegando falta de apetite. Com fome se sentava, com fome se

levantava. Depois do não jantar, Ronaldo Bôscoli lhe dava carona até a

porta do prédio da Barata Ribeiro. Uma noite resolveu subir e viu as

condições em que vivia o novo amigo. Dias depois, no restaurante,

Ronaldo aproveita a ida de Elis ao banheiro para dizer ao jovem cantor:

“Fagner, a Elis é o maior pé no saco, mas vou pedir a ela para você

ir morar com a gente.”


Do mesmo jeito, Elis aproveitou a ausência de Ronaldo e também

disse:

“Fagner, o Ronaldo é um pé no saco, mas eu queria te convidar...”

No dia seguinte, Fagner foi morar com o casal, na casa da avenida

Niemeyer. Foi ali que conheceu outro casal, desta vez de estrangeiros,

Jacques e Lydia Libion, que foram padrinhos do casamento de Elis e

Bôscoli.

Papai e mamãe, lá no Ceará, precisavam saber: Raimundinho já era

íntimo das estrelas. Em carta de janeiro de 1972, falou com

deslumbramento:

Já estou com esse pessoal da maior importância. Ronaldo e Elis estão gostando muito de

mim. É como se fossem meus pais. Ela cita meu nome em todas as entrevistas, dizendo que sou

a revelação deste ano.

O Ivan Lins está me ensinando música e, apesar da fama, se mostra como irmão. Os

meninos com quem morei ficaram com uma certa inveja e foram se afastando pouco a pouco.

Em outras cartas, seu convívio com as celebridades se traduzia em

nomes e sobrenomes. Entrevista com Cidinha Campos, um dia inteiro

com Márcia de Windsor, uma aparição no programa de Flavio

Cavalcanti.

Chegou até a escrever para a mãe de um bar em Ipanema muito bem

acompanhado por Elis, Ronaldo Bôscoli e Ivan Lins.

Eu adoro essas pessoas e elas gostam muito de mim. A Elis escreveu isso aí para a senhora:

Minha mãe

Quem tem mãe tem tudo

Quem não tem mãe

Não tem nada!

Depois de várias separações e reconciliações, Elis e Bôscoli se

desquitaram após quatro anos de casamento.

E agora? Fagner saiu da casa deles, mas seus dias sem teto duraram

pouco. Logo já estava morando com Jacques e Lydia Libion, na ladeira

da travessa Santa Leocádia, na casa que acolheu tantos artistas e

futuramente foi doada à Fundação que o cantor criaria. Batia ponto na


casa do amigo Athayde, também em Copacabana. Por coincidência,

Athayde acabara de receber uma encomenda: o cantor e compositor

Sérgio Ricardo, então diretor musical, o chamou para produzir o

segundo disco de bolso do Pasquim.

O primeiro disco lançado pelo periódico era um compacto que tinha

de um lado Tom Jobim e, do outro, João Bosco. Agora, eles queriam

lançar o número dois com Caetano Veloso de um lado e, do outro...

Bem, Athayde queria Fagner, mas Sergio Ricardo nem sabia quem ele

era. Depois de longa negociação, Athayde conseguiu: o compacto foi

lançado em março de 1972 com Caetano Veloso cantando “A volta da

Asa Branca” e Fagner, “Mucuripe”.

Depois do trabalho pronto e lançado, Athayde se sentiu

recompensado:

“Se ele não fosse competente ia ser difícil apadrinhá-lo. Não sou

jumento, não!”
enfim, uma gravadora grande
CAPÍTULO 8
D isco na praça e de volta a Copacabana. O casal Jacques e Lydia

Libion, com quem Fagner foi morar, não tinha filhos. Ele era francês,

representante no Brasil da famosa livraria Hachette. Ela era de família

russa emigrada para a Iugoslávia, com passagem pela Áustria e pela

França. Em Paris, conheceu Jacques. O namoro se firmou, viajaram

juntos para o Brasil e aqui se casaram. Poliglotas e cultos, os dois eram

interessadíssimos pela nossa música popular.

Aliás, não só pela MPB — pela arte brasileira em geral. Um

entusiasmo tão grande não se limitava a ter cadeira cativa em plateias de

shows, cinema e peças de teatro. Mais do que ver, gostavam de conviver

com artistas. Mais do que conviver, morar com gente de todas as artes.

Ronaldo Bôscoli, por exemplo, morou lá, e foi ele quem sugeriu ao

casal: “Sei de um garoto maravilhoso para vocês adotarem.” E enfileirou

muitas das mil e duas qualidades que via em Fagner, que acabou

morando muito tempo com Lydia e Jacques. Curiosamente, o cearense

tinha nascido no mesmo dia em que o casal perdera um filho e talvez

isso tenha aumentado ainda mais o carinho que sentiam por ele.

Carinho em casa, dinheiro no bolso. Tinha que comunicar as

novidades aos pais:

Recebi 600,00 do primeiro mês do show da Elis e não estou passando precisão,

principalmente porque tenho muitos amigos que vivem me convidando para almoçar ou jantar.

Estive com Caetano, os jornais aqui falaram porque ele me elogiou. Ficamos de nos encontrar ou

na Bahia ou mesmo em Fortaleza. Assinei contrato de dois anos com a gravadora Philips e

começo logo, logo a gravar um disco. Mamãe, não se preocupe com as notícias que chegam aí

não, pois todos gostam de fofocas à custa de quem está subindo. E como estou na onda, o alvo

sou eu. A senhora deve se acostumar logo, pois é a mãe do GÊNIO.


Jacques e Lydia estão sendo maravilhosos comigo e fico até chateado porque eles têm um

negócio de dar presentes que me deixa encabulado. Sábado passado, compraram um conjunto de

calça e túnica para mim muito lindo, mas também muito caro. Eles têm todo o cuidado nesse

negócio de refeições, de hora para dormir, ficam me cuidando o tempo todo.

O panorama musical brasileiro no começo dos anos 1970, que já

tinha vivido intensamente os fenômenos da Bossa Nova, do rock’n’roll,

da Jovem Guarda e da Tropicália, reunia artistas de uma MPB mais

variada, da qual faziam parte nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil,

Chico Buarque, Gal Costa, Maria Bethânia, Vinicius de Moraes,

Toquinho, Elis Regina, Milton Nascimento, Novos Baianos. Mas a nova

geração que aparecia naquele exato momento abriria o leque para uma

renovação nascida das influências passadas, só que com um passo

diferente, próprio das novidades. Djavan, Fafá de Belém, Fagner,

Belchior, Amelinha, Elba Ramalho, Alceu Valença, Zé Ramalho,

Moraes Moreira, Gonzaguinha, Ivan Lins, João Bosco, Luiz Melodia,

Cassiano, Tim Maia.

E por que a gravadora Philips? Fagner sabia muito bem que ali

estava a nata da MPB; sabia do prestígio que ela proporcionava aos

artistas e tinha muita esperança de entrar para o time dos grandes. Sua

ambição sempre foi essa, desde o início. Em 1971, os mineiros também

estavam nessa batalha — o Clube da Esquina, de Milton Nascimento, Lô

Borges e Márcio Borges — ao lado dos blacks do subúrbio carioca e,

sim, também de Raul Seixas.

De fato, para o jovem cantor cearense, as notícias eram boas. Outros

artistas estavam gravando suas músicas: em junho de 1972, o Quarteto

em Cy fez um belo registro de “Cavalo Ferro” (parceria dele com

Ricardo Bezerra). Em setembro, foi a vez do cantor e compositor Wilson

Simonal com “Noves Fora” (esta uma parceria com Belchior).

Nesse mesmo mês Fagner enfrentaria pela primeira vez uma grande

e ruidosa plateia durante o Festival Internacional da Canção, o FIC, que

aconteceu no Rio. Na ocasião defendeu “Quatro Graus” (fruto de

parceria com Dedé Evangelista), que foi incluída no LP Os Grandes

Sucessos do FIC 72.

Fagner não se esquece daquela noite no Maracanãzinho.


Foi um grande desafio. Pela primeira vez eu tinha que tocar violão
e cantar acompanhado por uma orquestra simultaneamente. Uma
experiência importantíssima, porque o festival era transmitido ao
vivo pela TV.

De fato, a música fez parte de seu primeiro compacto duplo na

Philips, que incluiu também “Fim do Mundo” (parceria com Fausto

Nilo), “Cavalo Ferro” e “Amém, Amém” (somente de Fagner), com

participações nos arranjos de Ivan Lins e Luís Cláudio Ramos.

O cantor e compositor Ivan Lins também trouxe boas notícias a

Fagner ao gravar, em seu segundo LP, uma parceria com o novo amigo

cearense, a canção “Quarto Escuro”, que compuseram no piano da casa

de Elis Regina.

“É linda essa música”, diz Ivan, “e a gravamos uns dois anos atrás,

com uma mudança na letra para atualizá-la.” A amizade entre os dois

começou no inicinho dos anos 1970, pelas rodas da música. Ivan conta

que já tinha visto Fagner no programa do Haroldo de Andrade, mas que

só se falaram pela primeira vez na Philips. Ficaram muito próximos,

mas, à medida que a carreira foi ficando mais intensa, passaram a se ver

menos. Sorte que havia o futebol — sempre ele — na vida dos dois.

“Nós nos cruzamos muitas vezes jogando bola; jogávamos no Zincão, e

formávamos uma zaga assassina.”


Não bastasse a experiência inédita de cantar com orquestra, veio

outra: compor por encomenda. Tema-desafio: Carnaval. A gravadora

queria lançar uma coletânea para a folia de 1973, só com artistas da

casa. E o elenco da Philips na época não era bolinho: Chico Buarque,

Caetano Veloso, Gal Costa e um longo etc.

Era importante estar naquele disco. Uma chance que eu não


podia perder, afinal era o maior elenco da Philips reunido pela
primeira vez. Estaria em muitíssimo boa companhia.

Para quem quiser garimpar nas lojas de vinil, a música chama-se

“Um Ano a Mais”, e o LP, Quando o Carnaval Chegou.


o último pau de arara
CAPÍTULO 9
R icardo Bezerra, parceiro e amigão de Fagner, era fã de chanchadas,

filmes que a produtora Atlântida mandava seguidamente para os cinemas

de todo o Brasil, um misto de humor, romance e música. As plateias

gargalhavam com Oscarito, Grande Otelo, Zé Trindade, Violeta Ferraz,

Zezé Macedo, entre outros — Os Trapalhões dos anos 1950 e 1960, pré-

Cinema Novo. Mas o povo gostava mesmo era de ver de corpo inteiro os

cantores e cantoras que só conheciam de voz, pelas ondas do rádio.

Pense num nome de sucesso da música daquela época. Estava lá, nas

chanchadas da Atlântida. Pense num fã dessa deliciosa mistura de

trapalhadas, beijos e canções. Eram muitos, e Ricardo Bezerra entre

eles. Tanto que nunca esqueceu uma frase de Grande Otelo que ouviu no

cinema: “Manera, Fru Fru, Manera”. Foi justamente esse o nome que

escolheu para a música que compôs com Fagner e acabou se tornando o

título do primeiro LP do cantor. Este entrou no estúdio para a primeira

de uma série de gravações com a gana de quem muito esperou por elas e

a ingenuidade de todo novato. Roberto Menescal, produtor do disco,

nunca tinha visto tamanha impulsividade.

“Fagner vivia perguntando: ‘A que horas vamos fazer não sei o quê?

A que horas eu gravo?’ Não tinha muita noção do lado industrial da

gravação de um disco: orçamentos, reuniões, trabalho de equipe, essas

coisas. Pouco a pouco aprendeu a se ajustar, exercitar a paciência.”

Depois de muita trabalheira, o disco ficou pronto e foi para as lojas.

Mas, oh, decepção, vendeu pouco. Coisa aí de umas mil cópias.

Dizem que o tempo é senhor da razão. À medida que Fagner se

tornava mais conhecido, as vendas subiam. Algumas músicas viriam a

se tornar grandes sucessos, como no caso de “Canteiros”. Fagner a


compôs inspirado em alguns versos do poema “Marcha”, de Cecília

Meireles. O devido crédito à autora foi dado no encarte que

acompanharia o LP. Só que, com a gravadora alegando falta de verba, o

disco saiu sem ele. A citação, parafraseando uma estrofe desse poema,

não foi portanto registrada, dando a impressão de que os versos eram

todos de autoria de Fagner. Mesmo anos depois, em relançamento do

disco, o encarte nunca saiu, o que nos priva até hoje das informações da

ficha técnica.

Para as filhas de Cecília, herdeiras dos direitos autorais da falecida

mãe, a omissão tinha outro nome: plágio. E abriram um processo na

Justiça que se arrastou por anos.

Fagner se defende: diz que sempre foi muito cuidadoso em dar

crédito a quem de direito. Se o encarte não estivesse previsto, tais

informações teriam que constar na contracapa, o que não aconteceu.

Quem fez o encarte foi o artista gráfico Carlos da Silva Assunção Filho,

conhecido como Cafi.

“Na época a gente fazia os encartes com muitas informações; na

contracapa tinha muito menos. Se dizem que não ia ter encarte é

mentira. O que falta na contracapa estava no encarte. E digo mais: o

encarte estava programado para ter duas páginas e eles nos fizeram

reduzir para uma apenas.”


Se esse encarte tivesse saído, teria poupado Fagner de anos de

confusão e muito aborrecimento. Mas, quando o processo começou, ele

já estava fora da gravadora, que não teve interesse em ajudar com essa

questão. Vale destacar que a canção também cita trechos de “Hora do

Almoço”, de Belchior, e de “Águas de Março”, de Tom Jobim.

CANTEIROS

(Letra e música de Raimundo Fagner)


(Citação de “Marcha”, de Cecília Meireles)

Quando penso em você

Fecho os olhos de saudade

Tenho tido muita coisa

Menos a felicidade

Correm os meus dedos longos

Em versos tristes que invento

Nem aquilo a que me entrego

Já me dá contentamento

Pode ser até manhã

Cedo, claro, feito o dia

Mas nada do que me dizem

Me faz sentir alegria

Eu só queria ter do mato

Um gosto de framboesa

Pra correr entre os canteiros

E esconder minha tristeza

(citação de “Hora do Almoço”, de Belchior)

E eu ainda sou bem moço pra tanta tristeza

E deixemos de coisa, cuidemos da vida

Pois senão chega a morte

Ou coisa parecida

E nos arrasta moço

Sem ter visto a vida

Eu só queria ter do mato

Um gosto de framboesa

Pra correr entre os canteiros

E esconder minha tristeza

E eu ainda sou bem moço pra tanta tristeza

E deixemos de coisa, cuidemos da vida

Pois senão chega a morte

Ou coisa parecida

E nos arrasta moço

Sem ter visto a vida

Á
(Citação de “Águas de Março”, de Tom Jobim)

É pau, é pedra, é o fim do caminho

É um resto de toco, é um pouco sozinho

É um caco de vidro, é a vida, é o sol

É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol

São as águas de março fechando o verão

É promessa de vida no meu coração

A gravadora não teve dinheiro para imprimir o encarte, mas investiu

pesado na divulgação do LP Manera Fru Fru Manera. Numa iniciativa

inédita, chegou a lançar um compacto com seis personalidades do

mundo da música dando sua opinião sobre o disco e o jovem talento. O

compacto de capa branca trazia depoimentos de Chico Buarque,

Ronaldo Bôscoli, Marília Pera, Erasmo Carlos, Nara Leão e Afonsinho.

Ronaldo Bôscoli:

“O que vou dizer? Que sou padrinho do Fagner? Sim, realmente

sou. Eu o conheci nos bastidores do teatro onde Elis Regina ensaiava e

ouvi as músicas dele. Fiquei fascinado. Mais por ele mesmo do que pelas

próprias músicas. Depois descobri que só os de má-fé e os míopes não

percebem o enorme talento que ele tem, que ele transborda. Ele tem uma

vantagem terrível, que é deslocar a geografia musical do Brasil. Provou

que o Brasil não acaba na Bahia como muita gente pretende. O Brasil

vai do sul ao norte. Ele tem uma coisa perigosa que é muita confiança

em si próprio, o que pode ser uma faca de dois gumes. A confiança em

si é própria dos futuros ídolos, mas é também própria dos futuros

crucificados. Eu espero que Fagner seja um ídolo antes de ser

crucificado. Tenho confiança em meu afilhado porque afinal de contas o

bicho tem 1,90m de corpo fechado e um coração aberto.”


Afonsinho:

“Nas peladas eu ficava assistindo à briga do Fagner entre ser Miguel

e ser o Moisés do Vasco e eu sempre dizia pra ele: ‘Manera, Fru Fru,

Manera.’ E bola pra frente, Fagner.”

Marília Pera:

“Quando se olha pela primeira vez para o Fagner a gente tem a

certeza de que seja o que for que ele faça — música, teatro, cultura —,

ele fará bem. Basta que se tenha um pouco de sensibilidade, só um

pouquinho, de cara a gente sente que ele é um cara bom. Muito bom.”
Chico Buarque:

“Tenho estado em contato com Fagner, primeiro porque acabei de

ouvir a fita do novo disco dele e gostei demais. A música que mais me

tocou em primeira audição foi a das velas do Mucuripe. Achei

emocionante. Pessoalmente, também é uma pessoa maravilhosa. E

também agora gravando a trilha sonora do filme Joana, a Francesa

percebi que, além de compositor, é um excelente cantor, com capacidade

de improvisar e um canto pungente, emocionante. Do pessoal novo aí

penso que é o que está mais perto das coisas.”

Erasmo Carlos:

“É um cara super da pesada, gente muito boa. Gravou uma versão de

minha autoria e fiquei muito satisfeito com o colorido todo novo da

roupagem que ele fez. Onde vier uma assinatura de Fagner a minha

estará embaixo. Acho que vocês vão gostar porque ele está sabendo de

tudo.”

Nara Leão:

“Fiz um show com o Fagner e foi aí que o conheci melhor. Ele fez

um disco que eu acho sensacional. Os arranjos são maravilhosos. São

músicas dele e dos amigos dele. É um disco muito bom e muito novo.

Acho um disco muito importante porque interessa para todo mundo.”

Mas não foi só “Canteiros” que trouxe problemas a Fagner no disco

Manera. A faixa “Penas do Tiê”, gravada magistralmente com Nara

Leão, saiu com o crédito de “folclore”, quando, na verdade, tinha dois

autores: Heckel Tavares e Nair Mesquita. Vinte e sete anos depois, a

família Tavares entrou com uma ação na Justiça, reclamando autoria,

mas esta questão já foi resolvida, a favor de Fagner.


Pensa que acabou? Pensou errado. “Sina” também deu problema. A

letra foi creditada ao parceiro Ricardo Bezerra, quando na verdade era


inspirada em versos de Patativa do Assaré. Fagner foi levado ao erro pelo

parceiro. “O que aconteceu com ‘Sina’ foi a mesma coisa que aconteceu

com ‘Canteiros’”, explica Ricardo. “E a minha leitura é a da ingenuidade

de estar entrando no mercado sem conhecimento da burocracia e sem a

corresponsabilidade da editora.”

Fagner produziu e lançou dois discos de Patativa mais tarde, e o

artista nunca o questionou.

Quanto problema para um primeiro trabalho! O fato é que, além

disso, Fagner sentiu-se acuado dentro da gravadora, preterido por outros

grupos lá de dentro.

As estrelas da companhia, naquele ano, eram os baianos da

Tropicália. Na época do lançamento de Manera Fru Fru Manera, Fagner

se julgava merecedor de um empenho especial da gravadora na

divulgação do trabalho, afinal, músicas dele corriam o Brasil na voz de

Elis Regina e Nara Leão. Seu nome aparecia em revistas sempre ligado à

palavra “revelação”. Seu primeiro LP deveria, portanto, estar sendo

muito aguardado por todos. Segundo Fagner, só a Philips não via isso.

Tinha um bom produto nas mãos, mas não se esforçava para vendê-lo.

Preferiu apostar todas as fichas no disco novo de Caetano Veloso, Araçá

Azul. Claro que a opção pelo baiano deixou o cearense furioso. Na sua

versão, a história tem uma vítima: ele próprio. E dois vilões: André

Midani, diretor-presidente da Philips, e Guilherme Araújo, empresário

dos baianos e influente no lado artístico da gravadora.

Menescal confirma que os baianos estavam com muito cartaz como

grupo e realmente dominavam a cena, por isso Fagner se sentiu

preterido.

Midani me prometeu, por conta de eu ter produzido o disco do


Naná Vasconcelos (Amazonas), que iríamos fazer meu novo disco
em Paris, com Pierre Barroux, compositor e ator do famoso filme Um
homem e uma mulher. Mas depois, não queria mais que eu fosse e
não me recebeu. Me mandou direto ao caixa para falar com Eleno de
Oliveira. Ele me informou que esse projeto não estava mais nos seus
planos e me mandou falar com Midani. Essa confusão toda
aconteceu pelo fato de meu disco estar aparecendo muito e o Araçá
Azul do Caetano estar sendo posto em questão pelo mercado. E eu
brigando pelo disco do Naná, as histórias com o André e a imprensa.
Dei uma entrevista para Regina Rito no JB dizendo que a gravadora
estava me podando.

O auge da perseguição para o jovem cantor ocorreu no show Phono

73 — O Canto de um Povo, que reuniu artistas da companhia no Palácio

das Convenções do Anhembi, em São Paulo. Era um cast tão numeroso,

e tão poderoso, que foi preciso distribuí-lo em mais de uma noite de

espetáculo, e depois essas apresentações deram origem a nada menos do

que três fortes LPs. Era a primeira vez no Brasil que se lançava um

álbum triplo. Os artistas escalados eram nada mais nada menos do que

Rita Lee, Os Mutantes, Chico Buarque, Elis Regina, Gilberto Gil, Ivan

Lins, Jorge Ben, MPB-4, Erasmo Carlos, Jair Rodrigues, Jorge Mautner,

Juca Chaves, Quinteto Violado, Raul Seixas, Ronnie Von, Sérgio

Sampaio, Vinicius de Moraes, Toquinho, Wanderléa, Wilson Simonal,

Zimbo Trio, Caetano Veloso, Gal Costa, Hermeto Paschoal, Luiz

Melodia, Macalé, Maria Bethânia, Nara Leão e Raimundo Fagner. Um

timaço!

Naquele show as faíscas entre Fagner e Guilherme Araújo se

atiçaram e viraram um fogaréu. No palco, Chico Buarque e Gilberto Gil

estavam cantando “Cálice”, ou “cale-se” para quem naqueles tempos de

ditadura braba sabia detectar o duplo sentido da palavra. De repente, a

censura corta o som dos microfones dos cantores. A plateia começa a

vaiar, fazendo um barulhão danado. Um Anhembi lotado a vaiar, a


protestar. Fagner conta que, nos bastidores, Guilherme mandou que ele

fosse para o palco e Naná Vasconcelos tomou suas dores:

O Guilherme Araújo gritou: “Entra Fagner!” Bem no pior momento


para um artista entrar em cena, que dirá um iniciante! Naná gritou
mais alto: “Você quer acabar com o Fagner?”

É de se imaginar o que voou de palavrão no bate-boca que se seguiu

nos camarins do Anhembi... Não, não estava nada fácil a situação de

Fagner na Philips. O rompimento era inevitável. Mas não foi apenas isso.

Houve também o episódio da apresentação de Fagner no programa de

Flavio Cavalcanti.

Me derrubaram ao vivo. Fui chamado para cantar e falar da minha


viagem a Paris. E lá tinha um circo armado por Armando Pittigliani,
diretor da gravadora, que fazia parte do júri. Ali começaram minhas
grandes confusões em entrevistas ao vivo. Contei o que estava
acontecendo. Os jurados já tinham se orquestrado para puxar o meu
tapete, exceto Maysa Matarazzo e Marisa Urban.

Não havia mais clima mesmo com a Philips. Fagner foi ao escritório

de André Midani, pediu para ser atendido e ficou esperando. Não foi

recebido. Perdeu então a cabeça e meteu o pé na porta. Claro que foi

posto para fora. Também não queria mais ficar ali. Pediu a Menescal

para liberá-lo do contrato e este consentiu.

Foi nesse momento que Fagner decidiu que iria a Paris de qualquer

maneira. Mais que depressa, pegou um avião e viajou. Queria deixar os

ânimos esfriarem e sua cabeça também. Já existia o convite de Naná

Vasconcelos; então, foram em busca de fazer essa gravação. Fagner

arcou com as despesas do percussionista e de outros músicos, mas

mesmo assim o disco não aconteceu. Nessa temporada na França, Naná

simplesmente sumiu.

Em outubro de 1973, Fagner escreveu aos pais de Paris:

Tudo bem por aqui, já estou mais adaptado à cidade. É tudo muito bonito, mas muito caro.

Esses primeiros dias eu fiquei com uns amigos do Rio, e com eles aprendi a me orientar melhor.
Não sei ainda direito quando vou sair daqui, mas o certo é que volto ao Brasil só para o

Natal.

Fagner encerra a carta contando que conheceu uma atriz famosa no

mundo por sua beleza e sensualidade. A loura não largava do seu pé. Seu

nome: Ursula Andress.

Bem, mas esta não era a única estrela a brilhar no céu de Fagner.

Quando cheguei à cidade, encontrei à minha espera o pessoal do


filme Joana, a Francesa, que estava em cartaz por lá. Fui recebido
por Piérre Cardin e pelos cineastas Pierre Cast e Jean-Gabriel
Albicocco, que estavam preparando, no Brasil, o fime Polichinelo,
com Vinicius de Moraes, e disseram que eu seria um provável
candidato ao papel principal.

Logo depois desses primeiros encontros estrelares, começou a se

envolver também com alguns brasileiros que faziam a cena artística de

Paris: o cantor Fábio (que compôs “Stella”), a dupla Rolando Faria e

Luiz Antônio (conhecidos como Les Étoiles), o cearense Pretextato

Melo e alguns outros que fizeram um célebre show no Olympia.


Envolvido com eles, Fagner se afastou dos contatos que tinha na

Cidade Luz.

Caí no baixo-Brasil, no sub-Brasil. Acabei mergulhando fundo no


submundo. Sumi de cena, nem a família nem os amigos sabiam
onde eu estava. Eu vagava sem rumo pelas ruas de Paris. A gente
não comia, era muito fumo e álcool e fui às últimas consequências.

No entanto, aos 49 minutos do segundo tempo, aconteceu um

episódio marcante. Levado pelo músico brasileiro Buru aos subúrbios de

Paris para mais um dia de som e farra, Fagner se viu em meio a um

apartamento cheio de gente. Lá, de repente, ouviu uma música sua tocar

no rádio. Todos pararam para apreciá-la, até que Buru resolveu tirá-lo do

anonimato: “É ele cantando.” Ninguém ali sabia quem era Fagner, muito

menos que era cantor. Foi uma surpresa. O ambiente mudou. Naquele

momento, o cearense percebeu que seu mundo havia caído. E, para

completar, também era o dia do seu aniversário e ele havia esquecido.

Estava no fundo do poço... Na volta para Paris, procurou dar um novo

rumo à vida. Ligou para a família, e eles mais que depressa lhe

mandaram uma passagem. Dias depois, Fagner pegou um avião e voltou

para o Brasil.

Para terminar bem aquele ano de 1973, tão difícil para Fagner, só

mesmo dando vazão a outra paixão sua: o futebol. No dia 19 de

dezembro, ele participou de uma partida entre ex-jogadores profissionais

e artistas. Diante de um Maracanã lotado até na geral, recebeu a

incumbência de marcar ninguém mais, ninguém menos que Mané

Garrincha. Oh, glória!


fagner futebol clube
CAPÍTULO 10
A volta de Paris aconteceu num momento propício para a paixão de

Fagner pelo futebol e por novas amizades. Aos 24 anos, não demorava a

tomar decisões e adorava mudanças. Em abril de 1974, Fagner informa

aos pais seu novo endereço: rua General Severiano, 40, apto. 1.013,

perto do campo do Botafogo. O famoso 40. Mas foi no apartamento de

um jogador do Flamengo que Fagner foi morar, a convite do amigo

Afonso Celso Garcia Reis, o Afonsinho, primeiro atleta do Brasil a

ganhar na Justiça o direito ao passe livre, em março de 1971. Um rapaz

cabeludo, charmoso e engajado na luta pela democracia em campo e fora

dele. Algo raríssimo naqueles anos de chumbo.

Nunca esqueço, foi um ano em que praticamente só joguei


futebol. Como artista eu fora jogado para escanteio pelas
gravadoras, estava marginalizado. O mercado fechou.

Com a agenda livre, jogava bola quase todo dia e passou a integrar o

time Trem da Alegria, de Afonsinho. No tempo da Philips as peladas dos

artistas aconteciam no campo da gravadora, o Zincão, onde o técnico era

Cafuringa, famoso jogador do Fluminense. Numa daquelas peladas,

Fagner teve uma atuação surpreendente, marcando o próprio Cafuringa,

considerado o ponta mais veloz do momento. Mal sabia ele que ali

estava garantindo suas futuras convocações para o time dos artistas e

que, no jogo do Maracanã, receberia do técnico a camisa de capitão.

Como a casa de Copacabana em que morou com o casal Jacques e

Lydia, o apê de Afonsinho também era point de artistas. Fagner o

conheceu na época em que produzia o disco Amazonas, de Naná


Vasconcelos, por intermédio do compositor Capinam, em sua casa em

Santa Teresa. Mas, já prestes a morarem juntos, o point era na casa de

Afonsinho. Num dia, batia ponto ali Paulinho da Viola. Noutro,

Gonzaguinha, que também morava nas redondezas. Noutro ainda, os

Novos Baianos. Sem falar nos jogadores de futebol amigos de

Afonsinho, entre eles Geraldo, Jairzinho e Marinho Chagas. Para

alimentar essa gente toda, tinham uma cozinheira de mão cheia, dona

Joana. Mas e aí, Afonsinho, como jogador, Fagner era bom de bola ou

perna de pau?

“Ele era 100% empenhado, como em tudo o que fazia.”

E mais não disse, mas para falar do amigo, ele se derrama:

“Fagner é uma das melhores pessoas que conheço, difícil achar um

homem tão bom. Um grande representante da espécie humana. Uma

autoconfiança. Um cara determinado, sabe o que quer e vai em frente. E

é um sujeito intenso o tempo todo. Isso às vezes desagrada às pessoas.

Não estou dizendo que ele seja perfeito, felizmente não é, senão seria

um monstro e não uma pessoa. Sei de encrencas dele, impossível não

saber. Mas é aquela história: para abrir caminho, às vezes é preciso

empurrar.”

Outro grande jogador virou amigo e compadre de Fagner. É Arthur

Coimbra, o Zico, ídolo eterno do Flamengo, craque da seleção, maior

artilheiro da história do Maracanã, com centenas de gols marcados,

muitos deles antológicos, inesquecíveis. Quem apresentou Zico a Fagner

foi Geraldo Cleófas Dias Alves, jogador e vizinho de prédio de

Afonsinho, que pouco tempo depois morreu, inesperada e

prematuramente, aos 22 anos.

Perdi a alegria naquele momento. Era a primeira vez que eu


perdia alguém tão próximo, e logo o Geraldo, um amigo jovem e
cheio de saúde, além de grande esperança para o futebol, formando
com Zico a sensação do momento. Isso me derrubou. Éramos muito
ligados.

Com Zico não foi diferente. Desde que se conheceram a empatia foi

forte. O que impressiona o Galinho é a lealdade de Fagner com seus

amigos.

É
“É um cara que sempre esteve comigo nos momentos mais difíceis.

A gente podia até ficar um tempo sem se ver, mas se acontecia alguma

coisa comigo, ele estava ali presente. É um amigo fiel mesmo, um cara

confiável. Gosto tanto dele que o convidei para padrinho de meu filho

Thiago. Fagner me visitava em todos os lugares onde morei: no Japão,

na Itália, na Turquia...

“Jogamos muita bola juntos. Quando jogava comigo, ele ficava

nervoso, com medo de errar, e eu dava muita bronca nele. Fominha pra

caramba, para jogar. Tem aquele fominha que é fominha só para ficar

com a bola. Fagner é o fominha que só quer fazer gols.”

A imagem de Zico está associada à de Fagner para sempre. Muita

gente pensa que o cantor torce pelo Flamengo por causa de Zico. Mas

seu time de coração é mesmo o Fluminense. O ex-jogador levou até o

filho dele, Júnior, para treinar no Tricolor das Laranjeiras.


Bem, mas essa fase de futebol acabou se encerrando, pois Fagner já

pensava novamente na sua carreira e resolveu passar um tempo em São

Paulo. Escolheu ir para lá porque o escritório que pagava seus parcos

rendimentos em direitos autorais ficava na cidade.

Hospedou-se na casa da conterrânea Amélia Colares, a Amelinha, e

seu marido, o arquiteto Maxim Bucarethi. Com ela tinha amizade antiga,

dos tempos em que ambos moravam em Fortaleza. Foi pelas mãos de

Fagner, como produtor, que ela gravou seu primeiro disco, Flor da

paisagem, e viu seu nome despertar no mundo fonográfico.


“Fizemos juntos o vestibular de Arquitetura. Ele não passou. Nem

eu. Então fui para São Paulo estudar Comunicações e ele para Brasília

tentar de novo. Eu canto desde menina, em casa, na igreja, no colégio,

mas nem de longe pensava em virar cantora. Era uma brincadeira

gostosa. Já mocinha, acompanhei o surgimento do que se convencionou

chamar de Pessoal do Ceará. Não fazia parte dessa turma, não participei

de festivais. O Fagner, este sim. Era meu amigo, chegou a ir lá em casa,

me ouvia cantar. Sempre foi muito reservado. Quando queria conversar,

procurava a gente e falava um bocado de coisas. Não era de ficar falando

da vida dele, das coisas dele, dos medos e das inseguranças. Como

mulher e amiga, eu percebia seus momentos de fraqueza, o esforço para

parecer forte, fortão mesmo, sangue árabe. Um homem fechado, sim,

mas que gostava de viver rodeado de amigos. Exigente como ele só. Por

outro lado, uma pessoa muito doce. Uma couraça de homem mau, mas

por dentro derretido.

“Acha que estou exagerando?

“Pois vou contar uma história curtinha com três personagens:

Vinicius de Moraes, Fagner e eu. O Poetinha adorava conversar com a

gente. E vice-versa, claro. Ele, com um inseparável copo na mão. Bebia,

conversava e escrevia, tudo ao mesmo tempo. Poemas, letras de música,

cartas, sempre batendo alguma coisa na máquina de escrever. De

repente, para de teclar; vira-se para mim e diz:

“‘Gosto de conversar com o Fagner porque ele é muito espirituoso.

Ele tem sempre a resposta certa. Às vezes é muito ferino. Ele é muito

rápido, inteligente, perspicaz.’”

Passada a temporada paulistana, Fagner voltou ao Rio e ao trabalho.

Em outubro de 1974, participou do 7 Cantos do Norte, show produzido

por Tiago Amorim no Convento do Carmo, em Olinda. No palco, Alceu

Valença, Geraldo Azevedo, Ave Sangria, Marco Polo, Flaviola, Ricardo

Bezerra e um guitarrista que mudaria, para melhor, o músico Fagner:

Robertinho de Recife.

Fagner o conheceu enquanto ele ensaiava no Mosteiro de São Bento.

Ficou absolutamente impressionado pela formação pop e ao mesmo

tempo sacra de Robertinho. Fizeram um show juntos em Manaus, mas

dali Robertinho rumou para Recife e mandou uma carta a Fagner

dizendo que não poderia mais tocar com ele, pois havia decidido entrar
para o convento: queria ser padre! Fagner insistiu e acabou conseguindo

que ele voltasse ao Rio. E quando chegou estava com os cabelos

raspados que nem padre, aquele corte coco.

Nesse mesmo período da volta de São Paulo, Fagner conheceu o

carioca Carlos Alberto Sion. Ele tinha vinte e poucos anos de blues,

rock, forró e samba, porque praticamente foi criado no Teatro Opinião,

palco de grandes espetáculos de música e teatro. Viraram amigos e Sion

acabou produzindo seu segundo LP, Ave Noturna. A eclética bagagem

de Sion fascinou Fagner; Sion, por sua vez, ficou impressionado com a

voz e o violão do cantor. Juntavam-se, pois, a fome e a vontade de

comer. Sion foi da maior importância para Fagner, pois o levou para uma

gravadora quando ninguém mais queria produzir discos seus. Já dentro

do estúdio, acertaram repertório e arranjos, planejaram tudo.

O delirante projeto de Sion consistia em dosar todas as levadas de

música brasileira nordestina com a música pop, fazendo uma mistura, ou

blended, como se diz no meio, de Fagner com alguns músicos que ele

conhecia.

As bases do disco foram gravadas pelo grupo Vímana (Lulu Santos,

Candinho e Luiz Paulo Simas) com a participação do maestro Paulo

Moura. Sion chamou o amigo e artista plástico Carlos Vergara para criar

a capa, e Bina Fonyat para fazer a foto.

Disco novo, casa nova. Foram gravar na Continental, empresa com

capital brasileiro, à diferença da multinacional Philips. Tinha o melhor

cast popular do Brasil, de música do Amazonas a Teixeirinha.

Ave Noturna foi para as lojas em julho de 1975 e teve boas críticas.

Contava com participações de Paulo Moura, Chico de Moraes e Paulo

Machado, Amelinha, Toninho Horta, Wagner Tiso e maestro Copinha. A

Continental, embora fosse uma grande empresa, não tinha o hábito de

fazer uma divulgação razoável. A sede ficava em São Paulo e sua

distribuição era dirigida às regiões Sul e Nordeste. Não havia no cast

artistas de ponta, como Fagner.

Mesmo nesse esquema amador, Ave Noturna vendeu 28 mil cópias.

Só que Fagner, cansado desse certo descaso, mais uma vez não

aguentou. Resolveu romper com a gravadora, porque não havia mais

diálogo entre eles. Sion lhe pediu paciência, mas não adiantou.

“Ele não tinha calma e vazou, foi embora.”


Uma curiosidade a respeito desse disco é que, na época de seu

lançamento, o cantor e compositor Cazuza trabalhava na Continental,

em seu primeiro emprego. Ele fazia parte da equipe de divulgação da

empresa e escolheu o disco de Fagner para trabalhar. Esse episódio foi

narrado pelo próprio Cazuza quando eles se conheceram pessoalmente

anos depois, apresentados pela atriz Denise Dumont.

Em julho daquele mesmo ano, Fagner fez uma viagem de São Paulo

a Belo Horizonte com o cantor Ney Matogrosso. Este havia acabado de

deixar o célebre grupo Secos & Molhados, que fez um sucesso

estrondoso apesar de ter lançado apenas dois LPs. Estavam indo para o

Festival de Belo Horizonte, no Serra Verde Country Clube, que contou

com participações de Caetano e Novos Baianos num show ao ar livre

com mais de três mil espectadores.

Foram de carro, num fusquinha dirigido pelo jornalista José Marcio

Penido, na época editor na revista Veja. Fagner e Ney ensaiaram as

canções “Ponta do Lápis” (de Clodo e Rodger Rogério) e “Retrato

Marrom” (de Rodger Rogério e Fausto Nilo). E não só elas. Iam

cantando juntos músicas e mais músicas de que gostavam. Os duetos de

vozes tão contrastantes formaram um recital inesquecível para um só

ouvinte. Que pena!

“Fagner me mostrou ‘Ponta do Lápis’ e o ‘Postal do Amor’ e criou-

se um problema seríssimo com a Amelinha, porque ela ia cantar uma

dessas músicas. Não sei se as duas ou uma delas”, revela Ney. “E aí o

Fagner me convidou para cantar com ele nesse Festival em Minas

Gerais. Foi a primeira vez que cantei sem estar paramentado com

aquelas roupas malucas dos Secos & Molhados e de cara limpa, sem

maquiagem.”

De Minas, a dupla seguiu para o Rio de Janeiro. Fagner passou dois

ou três dias na casa de Ney, no Leblon. Ney sempre gostou de Fagner,

principalmente do seu jeito de cantar.

“Aquela maneira rasgada, ibérica, me encantava.”

Ao partir, Fagner esqueceu no quarto de hóspedes uma cueca.

Depois de lavada e passada, virou troféu na parede do quarto. Todo

mundo queria ver a cueca.

“Ele nem sabe disso!”

Agora sabe.
Em novembro de 1975 foi lançado um compacto com Fagner e Ney

cantando “Ponta do Lápis”. Um crítico escreveu que aquele era um

“casamento esplendoroso”. Ney achou “linda” a expressão. Fagner, não.

“Ele achou que era pejorativo, quando não era. As pessoas gostaram

de ouvir nossas vozes juntas. Deu muito certo.”

Detalhezinho final sobre o show dos dois em Belo Horizonte: Ney

estava inscrito no festival com o nome de batismo, Ney de Souza Pereira.

“Isso lá é nome de cantor?”, resmungavam os espectadores. Mas quando

ele subiu ao palco e soltou a voz, a plateia veio abaixo: era o

Matogrosso!
Que Fagner não é homem de temperamento fácil já se percebeu.

Sabe ser agradável no trato social, é amigo querido de muita gente,

artista idolatrado por plateias que morrem de amores por ele e por seu

trabalho, mas ai de quem pisar em seu calo! Coitado de quem for

verificar se é curto, como dizem, o seu pavio.

A pinimba de Fagner com Belchior, e de Belchior com Fagner,

vinha de longe. Começou no Rio e uma tarde explodiu com fúria na casa

de Amelinha em São Paulo. Ela havia convidado amigos cearenses,

todos músicos, para uma feijoada. Eles estavam ali para fazer um show

no Teatro Bandeirantes. Ednardo, Belchior, Rodger e Teti, Pekim, Jorge

Mello, Cirino e Fagner. Seria a primeira e última vez que cantariam

juntos.

Era agosto, fazia um frio danado em São Paulo. Uma semana antes,

Fagner havia emprestado um casaco a Belchior, um belo casaco de couro

que ganhara de presente dos “pais” franceses, Jacques e Lydia; artigo

fino, grife francesa. No dia da feijoada, Belchior chega acompanhado de


um amigo, o cantor cearense Pekim. E o que vestia Pekim? O casaco de

Fagner. Para não dar mancada, foi se certificar. Podia ser outro, igual ao

dele.

“Pekim, que casaco é esse?”

“Foi o Belchior quem me deu.”

“Não, cara, esse casaco é meu. Eu emprestei pro Belchior semana

passada.”

Belchior grita lá da cozinha, onde a feijoada fervia na panela:

“Magro, o casaco é meu! ”

O caldo começou a ferver na sala: me dá, não dou, é meu, não é,

tira, não tiro... Até que entornou.

Belchior pegou o violão de Fagner, que estava por perto, e acertou a

quina da mesa com o instrumento. Destruiu o violão e partiu para cima

de Fagner com golpes de caratê. Acertou vários. Fagner, de súbito,

parou. Perplexidade no ambiente. Nesse instante, viu que havia uma

tesoura em cima da mesa. Pegou a tesoura e a jogou pela janela. Depois

reagiu e conseguiu imobilizar Belchior no chão.

Mas que fim levou o bendito ou maldito casaco? Fagner ficou com

ele. Vestiu-o para que ninguém pudesse levá-lo. Amelinha jura e foi

testemunha de que o casaco tinha sido um presente de Jacques e Lydia

para Fagner.

Esta foi uma das tantas brigas que tiveram ao longo da vida. Depois,

acabaram se afastando. E em abril de 2017, Belchior morreu aos setenta

anos.
De volta aos anos de 1975, em setembro Fagner dividiria a capa da

revista Veja com Luiz Melodia, João Bosco e Walter Franco. O título

estampado na publicação era mais que apropriado: Música, uma geração

de briga.

Seriam muito boas as notícias para o cearense naquele final de ano:

seu maior ídolo, Roberto Carlos, gravaria “Mucuripe” em seu disco

anual.

Quando fiz a música logo pensei no Roberto Carlos e depois,


quando tive a oportunidade de presenciar a gravação no estúdio da
Eldorado, foi uma emoção. Ele queria saber a minha opinião. A partir
daquele momento, ficamos muito amigos. Ele me levava para
conhecer São Paulo em seus carrões nos domingos à tarde. Bem,
mas mesmo tendo presenciado a gravação, foi em Mossoró, no Rio
Grande do Norte, quando ouvi a música pelo rádio, que a ficha caiu.
Fiquei superemocionado com aquela maneira dele cantar
acompanhado de uma orquestra regida pelo maestro Chiquinho de
Moraes. Realizei um sonho antigo.
Outro detalhe que reforçou aquela boa fase, encerrando 1975 com

chave de ouro, foi a sua eleição como Cantor do Ano pela crítica musical

de SP.
ideias fagnerianas
CAPÍTULO 11
P ronto o segundo disco, o negócio era divulgar Ave Noturna com a

urgência e a ansiedade de sempre. Fagner estreou o show Astro

Vagabundo, homônimo da música dele e de Fausto Nilo, que fazia parte

do disco. Naquele março de 1976, o cantor cigano, que mudava de casa

como mudava de roupa, já tinha novo endereço: o apartamento do casal

Abel Silva e da fotógrafa Lena Trindade, na Lagoa. Eles se conheceram

no sítio dos Novos Baianos, que sempre jogavam contra o Trem da

Alegria, time de Afonsinho.

Abel era um apaixonado pela música brasileira e um estudioso de

todas as suas facetas, do samba-canção à Bossa Nova, dos cantores da

era do rádio à moçada que vinha renovando a música no país. Como

bom poeta, prestava atenção especial nos letristas, sem deixar de lado

um faro aguçado para detectar compositores e instrumentistas fora de

série. Caso daquele amigo para quem abrira as portas da própria casa.

Completamente hipnotizado pela voz e o violão de Fagner, não

reconhecia nele nenhuma influência.

“Para mim, tudo no Raimundo era original. E ficamos amicíssimos.

Nas veias dele, o sangue árabe misturava-se ao do nordestino, do

brasileiro. Um gênio.”

Aos dois amigos, se juntou Fausto Nilo. Cearense de

Quixeramobim, Fausto formou-se em Arquitetura em Fortaleza e deu

aulas na Universidade de Brasília. Em seus tempos de estudante nem

imaginava fazer uma letra. Gostava muito de música, sim, mas como

ouvinte, como plateia. Fausto conhece música como ninguém, sabe tudo

de cor e salteado.
Ele afirma, com autoridade, que nunca houve um movimento

cearense, nem mesmo quando se gravou aquele disco do Pessoal do

Ceará, em São Paulo. Era um grupo de individualidades. Ele defende a

tese de que uma das consequências mais saudáveis do grupo é ter sido

primitivamente personalizado: “Era muito interessante. Havia conflitos

nas canções.”

Quando morava em Brasília, virou letrista a pedido de Fagner. A

letra de “Fim do Mundo” seria a primeira de inúmeras outras que o

consagrariam. A gravação original é de Marília Medalha.

No Rio de Janeiro, cidade para a qual acabou se mudando, Fausto

começou a compartilhar tudo com Fagner, que o levava a todos os

lugares e o apresentava a todo mundo que conhecia do meio musical.

Graças ao amigo, Fausto pôde mostrar seu trabalho como letrista a um

bocado de gente.

O professor universitário, no entanto, divergia do cantor quando o

assunto era popularizar demais seu trabalho. Não concordava com o

sonho fagneriano de ser mais popular do que Roberto Carlos. Fagner

dizia:

Se eu for continuar ouvindo seus palpites, Fausto, não passo dos


dez mil discos!

Lá no Ceará, dona Chiquinha continuava preocupada com o filho.

Para tranquilizar a mãe, Fagner escreveu para ela em 30 de abril de

1976.

Recebi sua carta; muito boa, cheia de toques e sinceridade.

Tem uma coisa mais importante: cada um sabe de si.

Acho que a senhora continua me achando um bebê, aquela criancinha que a senhora

carregava no colo e que determinava tudo por ela — o cabelo raspado, a calça, a camisa, o

sapato, enfim, tudo o que a senhora, ingenuamente e com muito amor, achava que eu precisava,

sabe?

Então hoje a senhora continua achando e não percebe, nem ninguém teve a oportunidade de

lhe explicar, que eu saí de casa e já rodei um pouco o mundo, passei muitos perigos, enfrentei

muitas coisas que eu nunca nem pensava que existiam, e pra mim isso foi a coisa mais

importante do mundo, ver as coisas que a gente não vê dentro do seio familiar, e por essas e

outras razões eu já sei quem sou, o que eu sou e ainda hei de saber muito mais, sempre para
minha maior segurança e tranquilidade, como também para maior segurança e tranquilidade dos

meus, no caso vocês, minha família.

Aí dentro de casa era uma coisa muito presa, como em toda boa família, e isso fez com que

eu sentisse um certo receio em falar as coisas e ser mais livre aí dentro, mas isso não importa

porque, no fundo, vocês são as pessoas que eu mais amo e sempre amarei, pois são as minhas

pessoas, entende?

Eu não quero ser anormal e nem sou uma pessoa que não pensa no futuro, muito pelo

contrário, eu arrisco o presente em favor do futuro e isso é que tem me complicado mais. Eu não

me importo com o que as pessoas achem de mim hoje, pois eu sei que no futuro todos aqueles

que não me entendem agora vão se sentir envergonhados até de me dirigir um olhar e mais uma

vez estarei tranquilo e feliz, como sou hoje — uma pessoa que não tem alegria maior do que o

trabalho, a coisa que eu faço e me entrego de corpo e alma. Só sou isso e era com isso que vocês

deveriam estar mais conscientes.

Outra coisa: quem diz que eu estou pichando os outros não deve estar sabendo ler e

interpretar as coisas. Eu falo a verdade e, como hoje em dia tudo é mentira, ficou difícil de

entender a verdade.

Endereço do remetente: rua Almirante Alexandrino, 3.780, bloco E,

apto. 102, Condomínio Equitativa, Santa Teresa. Ficava neste bairro o

primeiro apartamento adquirido por Fagner no Rio de Janeiro. Ele o

comprou à vista, do jornalista Chico Vargas. Foi importante morar

naquele apartamento. Ele ficava à beira de uma favela, em cima do corpo

de bombeiros, mas a localização era boa para quem, como ele,

trabalhava no centro da cidade, nos estúdios da CBS. Nessa época,

Fagner conheceu muito bem o Centro do Rio de Janeiro e as pessoas que

iam para lá. Foram morar ali Robertinho, artistas plásticos e também a

turma da Nuvem Cigana: poetas como Chacal, Charles, Bernardo

Vilhena e Ronaldo Santos, que renovaram a literatura brasileira. Santa

Teresa era um bairro com um grande clamor cultural e muita carioquice.

Foi uma época espetacular. Mas Fagner passava boa parte de seus

dias na CBS, que era simplesmente a gravadora do movimento da Jovem

Guarda. As coisas foram acontecendo naturalmente. Pouco a pouco ele

foi levando sua turma para lá.

Tulio Mourão, Wagner Tiso, Zé Ramalho, Amelinha, Robertinho do

Recife, Patativa do Assaré, Clodo, Climério e Clésio, Teti, Manduca,

Robertinho, Manassés, Ricardo Bezerra, os músicos que formavam a

Santarén, primeira banda profissional de Fagner, todos foram levados

para aquele estúdio meio abandonado, mas com técnicos bastante

motivados para gravar.


Fagner acredita que aquele momento da música popular brasileira,

quando ele dirigiu o selo Epic da CBS, foi bastante criativo.

Nós revolucionamos a música brasileira e não só ela, como


também o mercado. Trouxemos o que tinha de mais novo, mais
elétrico, mais contemporâneo, mais popular. O movimento dentro da
CBS ficou conhecido como Cearenses Bem-Sucedidos. Mas era bem
mais amplo. A porta do estúdio estava sempre aberta. Todos que
chegavam gravavam. Nós fizemos esse movimento, aquecemos o
mercado de discos.

Fagner produziu disco de muita gente e lutava por melhores

percentuais de direitos autorais para os artistas. Ele próprio não recebia

nada pelo trabalho de produção, pois considerava muito baixos os

royalties dos artistas em início de carreira.

Simultaneamente, tratava de cuidar da própria carreira. Em

novembro de 1976 lançava seu primeiro disco pela CBS e o terceiro da

carreira, com o título Raimundo Fagner. Foi considerado pela crítica

musical como um dos melhores do ano. O show de lançamento no

MAM bateu o recorde de público da casa até então. Um sucesso! A

temporada teve até que ser prolongada.

“Atrevido, teimoso, bom de briga: é Fagner” era o título da

reportagem sobre o cantor no “HITPOP” (suplemento da revista POP,

nº 52), em fevereiro de 1977: “Finalmente, ele é reconhecido como

artista de primeira linha da MPB. Seu último LP alcançou sucesso de

crítica e de venda; sua temporada no MAM foi concorridíssima.

Recorde de público até então na casa, com a temporada tendo que se

estender. Com essas credenciais, Fagner continua a polemizar, brigando

e denunciando o que vê de errado na nossa música.”

Em abril de 1977, estreou o mesmo show no Teatro Tereza Rachel,

também no Rio de Janeiro.

Menos de um ano depois, outro disco. Desta vez, o título escolhido

foi uma homenagem à cidade que Fagner ama tanto que até diz ter

nascido lá: Orós. Ele mesmo produziu o LP, mas para os arranjos

convocou um mestre, Hermeto Pascoal, o mago do som universal. Era

julho de 1977. Ao divulgar o trabalho, deu uma entrevista ao jornal

Ú
Última Hora dizendo que não se incomodava que os classificassem, a ele

e a outros de sua geração, de Pessoal do Ceará. Se hoje estava ali não era

porque tinha virado moda ser cearense; ele achava fundamental

representar sua terra, seu sertão. Desde menino já sabia que um dia faria

sucesso, só não sonhava que seria um sucesso tão grande.

Em O Globo, Ana Maria Bahiana começa seu artigo tentando

definir a persona e a personalidade do cantor: alto, magro, anguloso,

aquilino, duro, antipático para muitos. Genial, excelente cantor e muito

gente (para Hermeto Pascoal). El Puro (para o cantor flamenco Pepe de

la Matrona). Mau-caráter e sem talento (segundo Caetano Veloso). Com

relação a esta última apreciação, Fagner disse à jornalista:

Eu não tenho nada contra nenhum baiano, nada, absolutamente


nada contra seu Caetano Veloso. Tenho muito amor por ele. Acho
que ele está perdido e gostaria muito de encontrar com ele para
dizer que ele está errado, equivocado.

Já a implacável Maria Helena Dutra, do Jornal do Brasil, espinafrou

o show de lançamento do disco Orós, a começar pelo título de sua

crítica: “Universo fechado e desleixado.”

“Nada é tão antigo como tentar ser novo. Só que intenções,

pretensões e compromissos valem pouco e muito raramente é possível

planejar originalidade. Talvez só mesmo em concurso de fantasia de

carnaval ou na fabricação de fugazes ídolos e modas ainda mais rápidas.

[...] Em lugar de crescer, Fagner se amesquinha em seu universo fechado

preocupando-se unicamente em se fingir diferente. Acrescenta óculos

pretos ao visual do boné, mas as composições chegam a lembrar

Caetano Veloso e Roberto Carlos, em mesas separadas, é claro.”

O Jornal de Música noticia que “Raimundo Fagner é destaque do

ano de 1977 nas categorias Vocal Solo, Violão, Compositor e Show (ao

vivo)”.

Em 2 de outubro, o “Folhetim”, suplemento da Folha de S.Paulo,

publica uma declaração de Caetano Veloso em que ele explica o motivo

da desavença com Fagner:

“[...] O que me ‘enraivou’ com o Fagner foi o fato dele dar uma

entrevista na revista POP, há muito tempo [...] Eu dizia que Fagner é


mau-caráter, é um absurdo, é péssimo, é uma porcaria. Detesto ele,

porque ele chegou nessa revista e disse que eu e Gil impedíamos o

aparecimento de novos artistas, com medo da concorrência e que pra

isso nós controlávamos as gravadoras. Não só a gravadora em que nós

trabalhávamos como também as outras gravadoras, quer dizer,

atribuindo a mim e ao Gil um poder impressionante. Você imagine que

imagem não deve ter o Fagner, na cabeça dele, minha e do Gil, né? Não

tenho medo da concorrência nem da Greta Garbo. E é uma acusação

grave, moralmente, porque é uma coisa terrível, é mentira. Eu podia

processá-lo por calúnia. A vontade que eu tive foi de dar um soco, no

primeiro dia que eu encontrasse ele. Dar uma porrada na cara dele. Mas

aconteceu o seguinte: a primeira vez que eu o encontrei, Fagner foi todo

falso, vinha falar comigo, dizia eu lhe adoro, me dava beijo e tal... Ainda

pensei, será que inventaram na redação, que ele não falou? Mas ele

falou. Não só eu sei que ele falou, não só porque as pessoas da revista

confirmaram e eu conheço o repórter que o entrevistou, ele voltou a

dizer essas coisas, em outros lugares, para outras pessoas.”

Em 1977, Fagner já tinha perdido totalmente o medo de se

pronunciar e declarar.

Não quero que ninguém me ache bonzinho. Não quero que


ninguém passe a mão na minha cabeça.

Nessa eterna dicotomia entre o bem e o mal, o bom e o mau, se um

ídolo o detestava, outro o amava. Fagner joga Caetano para escanteio e

deixa entrar em campo um amigo novo, um craque que fazia música com

os pés: o jogador Rivelino, ídolo do Corinthians e da Seleção Brasileira.

Rivelino foi um dos frequentadores do show de Fagner no Teatro Tereza

Rachel, já que jogava no Fluminense, time do cantor.

“Conheci Fagner no fim dos anos 1970, e até hoje tenho uma

ligação grande com ele. A gente se fala agora pelo WhatsApp. Não

perco um show. Ele tem uma casa de praia em Beberibe, pertinho de

Fortaleza, que frequento.”

E nas peladas, Riva, que tal o jogador Fagner?

É
“É um goleador. Ele não é um jogador muito técnico, mas tem uma

vantagem: é muito rápido e gosta de fazer gol. Tem uma cabeça boa. É

fantástico. Ele é meu irmão. Uma pessoa maravilhosa.”


aventura americana
CAPÍTULO 12
E m fevereiro de 1978, Fagner viaja pela primeira vez aos Estados

Unidos, a convite do presidente internacional da CBS, Dick Asher, que

nomeou Julie Sayres como sua assistente. Em Nova York, Fagner

visitaria os estúdios e conheceria músicos e maestros, entre eles Tom

Scott, arranjador de George Harrison.

Essa viagem começou numa festa da CBS em São Paulo, onde

Fagner conheceu o presidente Dick Asher. Foi por sugestão do

percussionista brasileiro Laudir de Oliveira, que também estava na festa

e tocava com um grupo em Chicago, que Fagner se animou a ir gravar

nos Estados Unidos.

Passou por Miami e em seguida foi para Nova York. Lá conheceu

muita gente do meio musical. Quando foi visitar o primeiro estúdio, no

qual encontrou pela primeira vez a nata dos músicos americanos, o disco

Orós estava passando de mão em mão. Hermeto era muito admirado por

todos e eles estavam fascinados com a capa do LP.

Confraternização na Califórnia, apreensão em Fortaleza. O filho

escrevedor de cartas parou de mandar notícias para a família. Com

coração de mãe não se brinca, e dona Chiquinha entrou em aflição. Cadê

esse menino que não escreve mais? Marta então foi à luta atrás do irmão

sumido. Telefonemas para Rio, São Paulo, Brasília. Enfim descobre:

Fagner estava a muitos quilômetros do Brasil, com amigos. Toca o

telefone na casa dos músicos Flora Purim e Airto Moreira, em Los

Angeles, e o sexto sentido de filho apita:


Quer apostar que é a minha mãe?

Dito e feito. Coração de filho desconhece fronteiras, o de mãe então,

nem se fala. Dona Chiquinha o achava em qualquer lugar do universo, ao

que parece.

Em 17 de março de 1978, o filho pródigo toma vergonha e escreve:

Mamãe e papai, saudades. Estou em Los Angeles. Aqui na Califórnia encontrei o Laudir, a

Catarina, sua mulher, e os dois filhos. Me sinto em casa com eles. Que sorte a minha!

Tudo aqui é muito organizado, até os mínimos detalhes. Tudo parece um sonho, a cidade, a

paisagem, tudo o que se vê.


No restante da carta, o de praxe: planos de viagens, encontros com

músicos, um desejo surpreendente (conhecer a Disneylândia).

Antes de voltar, passou por Nova York, onde resolveu trocar sua

passagem e rumar para Paris. Bye, bye, América. Bonjour, Paris. A

palavra francesa chance significa “sorte” em português, e Fagner teria a

sorte e a chance de se exibir aos conterrâneos de Aznavour, Jacques Brel

e Yves Montand.

Nessa viagem a Paris, conheceu Carlos Marques, jornalista

pernambucano radicado havia décadas na França. Para reforçar o

orçamento, Marques agenciava artistas brasileiros de passagem por

Paris. Foi o que fez com Fagner.

“Comecei apresentando-o a dois amigos próximos: o guitarrista

Pedro Soler e um dos mais consagrados intérpretes flamencos de todos

os tempos, o quase centenário Pepe de La Matrona, também famoso por

sua parceria com Garcia Lorca. Pepe fazia sua última turnê parisiense.”

Foi com Pepe, por sinal, que Fagner pôde confirmar algo que já

intuía: a ligação entre a música flamenca espanhola e a nordestina. Sorte

dele por ter, aos 29 anos, um mestre como Pepe, de 91. O novo velho

amigo deu-lhe de presente uma boina com uma estrela, que Fagner não

tirava da cabeça. Houve até quem achasse tratar-se de uma homenagem a

Che Guevara, que usava uma igualzinha.

Quanto a Carlos Marques, não precisaria fazer muito esforço para

agenciar o cearense e comprovar a qualidade do seu trabalho, já que ele

fora gravado até pela exigente Elis Regina. Só faltava mesmo ir atrás de

um teatro onde o artista pudesse se apresentar.

Essa teria sido uma tarefa difícil, não fosse pela ajuda de colegas

jornalistas franceses e alguns apaixonados pela música brasileira, como

Dominique Dreyfus, Remy Kopa e a saudosa Régine Mellac,

colaboradora muito próxima de Jacques Lang, posteriormente ministro

da Cultura do presidente Mitterrand. Eles tiveram sorte em conseguir

um bom espaço em Montparnasse, um dos melhores points da capital

francesa. O Théâtre Campagne-Première, na rua de mesmo nome, seria

a primeira casa de espetáculos a acolher um acústico de Raimundo

Fagner.

A estreia foi modesta. Por falta de divulgação, o teatro ficou vazio,

só umas poucas pessoas na plateia. Lá no fim da sala, em meio a tantos


lugares vagos, o diretor José Celso Martinez Correa era um desses gatos

pingados que foram prestigiar o cantor. No segundo dia o público

aumentou um bocadinho. Fagner ficou preocupado com o show. Mas

uma crítica do jornal Le Monde, tecendo elogios que poucos artistas

recebiam, mudou tudo. Dois dias depois, houve um estouro de público.

O músico Manassés de Souza se lembra bem daqueles dias:

“O ano era 1978. Eu morava em Paris já fazia três anos quando fui

procurado por um cara de nome Carlos Marques que me falou que o

Raimundo Fagner gostaria de montar um quarteto para shows em Paris,

e que eu tinha sido indicado pelo Naná Vasconcelos. Na verdade, seriam

três shows — quarta, quinta e sexta — no Théâtre Campagne-Première.

Além de mim, participaram o baixista Ozias Gonçalves e o

percussionista Fernando Falcão.

“No primeiro dia de show, só umas trinta pessoas na plateia.

Cabiam quatrocentos. Só que entre os trinta pagantes estava uma crítica

de jornal, que adorou o show e escreveu uma matéria elogiando bastante.

No dia seguinte o teatro lotou. Na sexta também e acabou que ficamos

duas semanas em cartaz, com filas de dobrar quarteirão. Depois disso

viemos para o Brasil gravar o LP Quem Viver Chorará. Mas, aí, já é

outra história.”

Diante de tanto sucesso, o dono do teatro, um egípcio de nome

André, irascível e de má vontade no início, implorou quase de joelhos e

lágrimas nos olhos que Fagner prolongasse a temporada. André o queria

até de sócio do teatro e sugeriu que substituíssem um restaurante indiano

que funcionava no estabelecimento por um brasileiro. O cantor recebeu

convites também de vários outros lugares, mas não tinha intenção de

abandonar a carreira no Brasil e investir em um novo percurso na

França. Disse não aos convites. Era hora de voltar para casa.
Antes de voltar ao Brasil, porém, foi à Alemanha para o show

promovido pela Anistia Internacional, em Colônia. A ideia era marcar


com um protesto os 14 anos da ditadura brasileira, com os eLivross

presentes, entre eles Miguel Arraes e Francisco Julião.

Foi o primeiro show em que se falou em anistia. Eu estava em


Paris e Heloísa Buarque de Holanda mandou me convidar para
colaborar. Foi um encontro de emoções e reencontro com os amigos
eLivross, saudosos de sua terra. Só pedi para retirarem os cartazes
do palco, preocupado em não ficar panfletário.

Fagner voltou para o Rio com uma ideia fixa na cabeça. Queria ser

um cantor verdadeiramente popular. Queria suas músicas nas rádios

AM. Naquela época, as redes FM eram mais voltadas para um público

alternativo. Roberto Carlos certa vez lhe dissera, em Los Angeles:

“Bicho, quando é que você vai cantar para o povo?”

Estava resolvido, ia ser agora!

Gravou o quinto disco da carreira, Quem Viver Chorará. Era o disco

de “Revelação” (Clodo e Clésio) e “Jura Secreta” (Fagner e Abel Silva),

de fato o primeiro supersucesso popular de Fagner. Vendeu como pão

quente e lhe rendeu o primeiro Disco de Ouro da carreira.

“Revelação” entrou para a trilha sonora da novela Cara a Cara, da

TV Bandeirantes, protagonizada por Fernanda Montenegro. O show de

lançamento do disco estreou no Teatro Tereza Rachel em setembro de

1978.

Para aumentar ainda mais a vendagem, Fagner saiu em turnê pelo

Brasil cantando para grandes plateias, em Brasília, São Paulo, Belo

Horizonte e Porto Alegre. Chegou a Fortaleza, Teatro José de Alencar,

em 2 de janeiro de 1979. Na plateia, seu Fares viu pela primeira vez o

filho num palco. Será que gostou?

“Você é muito mal-educado, meu filho. Não fala nem boa-noite para

o povo!”

Daí em diante, nunca mais Fagner abriu um show sem

cumprimentar a plateia.

Compositor, cantor e instrumentista, Fagner também continuava

exercitando seu talento como produtor musical.

Na CBS, continuou produzindo discos: o primeiro, de Patativa do

Assaré, chamado Poemas e Canções; depois, Chapada do Corisco, dos


irmãos piauienses Clodo, Clésio e Climério; e ainda o LP do magnífico

violonista Manassés, com o título que levou apenas o nome do

instrumentista; seguido de Equatorial, da cantora cearense Teti, e de E

Agora pra Vocês, do guitarrista Robertinho do Recife. E não parou por

aí. Teve ainda Elba, Amelinha, Cátia de França, Banda Santarén,

Petrúcio Maia, Ricardo Bezerra e Nonato Luiz. Ufa!

Em meio a tanta atividade e concentração, Fagner recebeu, em

março de 1979, chegando a Recife para uma temporada de uma semana

no Teatro de Santa Isabel, uma das piores e mais dolorosas notícias de

sua vida. Vítima de um acidente de carro, morrera em Brasília sua irmã

Elizete.

Ela estava dirigindo seu Fusca no meio de um temporal na L2. A

barra de direção se quebrou, o carro bateu num poste e um dos fios caiu.

Ao tentar sair do carro, morreu eletrocutada.

Elizete era minha irmã-madrinha, minha âncora. Exercia uma


influência muito forte sobre mim. Sempre me apoiou em tudo.
Desde morar em sua casa em Brasília, até a decisão de largar a
faculdade. Eu a amava demais. Sua perda foi uma tragédia familiar.
Deixou quatro filhos ainda crianças. E virei pai muito cedo.
Fagner dedicaria a Elizete o próximo disco, Beleza, que lançou em

novembro de 1979 e incluía uma música em sua homenagem.


ELIZETE

(Letra e música de Raimundo Fagner)

Tu és maravilha singular

Do lugar

O céu, a terra, o mar

És o lugar

Quem te ensinou a ser

O céu e o mar

A me guiar e descansar

E trabalhando sei o meu lugar

O chão, o ar

O lugar

Foi nessa época que Fagner escalou mais um craque para o seu time

de amigos do mundo do futebol: Walter Casagrande Jr., o Casão, recém-

contratado pelo Corinthians. Um rapaz de 18 anos, longos cabelos

encaracolados, disposto a provar em campo a fama de bom de bola que o

levara ao clube.

Os dois se conheceram num show da Anistia no Corinthians. O time

era liderado por um doutor em medicina e em futebol, Sócrates

Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira. Numa só palavra:

Magrão. E o doutor era amigo de quem?

“Casão, quero te apresentar o Fagner, um amigão meu.”

O encontro aconteceu no Ceará.

“A gente estava em Fortaleza. O Corinthians tinha ido jogar lá.

Acabada a partida, Fagner nos convidou para sair, beber alguma coisa

num bar. Eu fiquei todo sem jeito porque, apesar de estar jogando com o

Sócrates, eu era mais fã do que companheiro. E Fagner, eu tinha acabado

de conhecer. Então fiquei na mesa muito quietinho. Voltamos a nos

encontrar tempos depois, no Maracanã. No fim do jogo comemorativo

(Seleção Carioca x Seleção Paulista), saímos para jantar. Nós ficamos

amigos assim de cara, rapidinho. Nos dias seguintes, outras mesas de

bar, mais e mais conversas e sempre dois assuntos: música e futebol. São

as paixões do Fagner, são as minhas paixões.”


Era fim de ano e ele comunicou ao amigo que ia passar o Natal com

a família em Fortaleza. Entregou-lhe a chave de seu apartamento no Rio,

onde Casão já estava hospedado, e lhe disse:

Pode ficar aqui. Pedi à empregada para cuidar de você.

Casagrande ficou impressionado com a generosidade do amigo e

orgulhoso de estar podendo conhecer não só o artista, mas o homem

Raimundo Fagner.

“Um cara afetuoso, gentil, inteligente, bom de papo, sabe falar e

sabe ouvir. Ao me confiar a chave de casa, me fez descobrir o homem

bom que ele é. Essa chave abriu para mim muito mais do que uma

porta.”

O bem-amado amigo de Casagrande também era o xodó das

multidões. Em novembro, Fagner participou do Festival 79 da MPB — É

Hora de Cantar, promovido pela Rede Tupi de Televisão, com a música

“Quem Me Levará Sou Eu”, de Dominguinhos e Manduka, e venceu. A

música virou um enorme sucesso. E o incansável Fagner naquele mesmo

ano lançou seu sexto LP, Beleza, aquele que dedicou à irmã Elizete.

Que ano cheio! Acha que acabou? Que nada, tem mais. Ainda fez a

produção do LP Soro, álbum-fonográfico-literário-visual. Soro era um

disco simples, mas acompanhado por 37 folhas contendo desenhos,

poemas, artigos, fotos; uma grande salada artística de alta qualidade. As

participações incluíam Ferreira Gullar, Fausto Nilo, Capinam, Alano,

Abel Silva, Lena Trindade, Zé Pinto, Ieda Estergilda, Brandão, Ricardo

Bezerra, Patativa do Assaré e o único registro em disco de Fagner e

Belchior, na faixa “Aguapé”. O LP ainda é encontrado nas lojas, mas ele

completo, com todas as lâminas, virou raridade.

Fechando o ano, Fagner foi eleito o Melhor Cantor do Prêmio

Playboy de MPB. Dividiu o primeiro lugar com Roberto Carlos.


sucesso é bom
CAPÍTULO 13
N o começo do ano de 1980, Fagner estava com tudo. Em 9 de janeiro,

foi o tema de uma reportagem de seis páginas da revista Veja,

originalmente destinada à capa da publicação. A revista o definiu como

uma “figura estranha, agreste e dissonante”. Para Augusto Pontes (já

falecido), o intelectual do Bar do Anísio, Fagner “tem um admirável

jorro intuitivo que substitui com vantagem o embasamento teórico que

lhe falta. Ele talvez seja incapaz de formalizar uma ideia estética

elaborada, mas poucos se igualam a ele na intuição”. Ficamos sabendo

também que, no ano anterior, 72 emissoras de rádio, de sete capitais,

executaram 3.770 vezes a música “Revelação”. A reportagem termina

com a frase: “Fagner tem a impaciência dos iluminados.”

A música “Noturno” (de Graco e Caio Sílvio) entrou na trilha

sonora da novela do horário nobre da Rede Globo. A autora, Janete

Clair, ao ouvir a canção, trocou o nome original da novela, que passou a

se chamar Coração Alado. Isso aconteceu também com Pedra sobre

Pedra, de Dias Gomes, cujo título foi inspirado pela música “Pedras que

cantam”.

Em março, o artista assina novamente contrato com a CBS por mais

três anos e sai pelo Brasil fazendo shows: Aracaju, Recife, Salvador. Em

Belo Horizonte, uma pesquisa perguntou aos moradores qual artista

deveria fazer o show inaugural do Mineirinho, a grande arena de

esportes e espetáculos ao lado do estádio Mineirão. Os mineiros

poderiam ter escolhido Milton Nascimento, ídolo musical das Alterosas,

mas elegeram um cearense: deu Fagner na cabeça.

Em julho, o show Beleza chegou ao Rio e ao Teatro João Caetano.

Em entrevista à revista Manchete, o cantor declarou:


Faço o trabalho mais revolucionário da música brasileira.

Junto com os shows, continuava se dedicando à produção de discos

pelo selo Epic da CBS. Em 1981 chegou até a dividir a direção artística

e de produção do disco do compositor maranhense João do Vale com

Chico Buarque e Fernando Faro.

Não havia nada que o fizesse parar. Tinha compulsão pelo trabalho.

Não achava tempo para folgas e férias.

Em novembro de 1980, saiu seu sétimo LP, Vento Forte, com

direção artística e produção dele mesmo, arranjos de Oberdan

Magalhães, Zé Alves, Sivuca, Naná Vasconcelos, Nonato Luiz e Banda

Santarén e participações de Egberto Gismonti, Zé Ramalho, Leo

Gandelman, Dominguinhos e Lincoln Olivetti.

O arranjador Lincoln Olivetti dominava o cenário musical na época.

Era sucesso atrás de sucesso. Fagner o conheceu em Fortaleza, por

intermédio do falecido cantor Antônio Marcos, que queria fazer uma

parceria com ele. Foram os dois para Fortaleza, mas lá o arranjador

pegou uma hepatite e acabou ficando algum tempo na cidade, tocando

em casas da elite cearense e cuidando da doença. Nesse período de

maior proximidade a amizade entre os dois se estreitou.

Lincoln Olivetti modernizou a música brasileira, era muito


talentoso, um gênio. Eu somava a viola de Manassés e a guitarra do
Robertinho de Recife ao som padronizado do Lincoln para manter a
característica do meu trabalho. Usava a modernidade sem perder a
identidade. Combinamos de fazer um disco em Nova York, no
estúdio Hit Factory, onde John Lennon gravou seu último LP, Double
Fantasy. Aliás, descobri recentemente que o estúdio estava fechado
e só foi reaberto para a realização desse meu disco. Naquela mesma
época, George Martin, produtor dos Beatles, me convidou para
gravar em Londres. Ele tinha me conhecido através do George
Harrison, que, numa vinda a São Paulo para assistir a uma corrida de
Fórmula 1, ganhou de uma fã minha todos os meus discos. Como eu
já tinha um acordo com Olivetti, recusei o convite. Depois me
arrependi amargamente por não ter gravado com o maestro do
quarteto de Liverpool. Não tem beatlemaníaco maior que eu.
O ano de 1980 termina com Fagner eleito novamente o Melhor

Cantor do ano pela revista Playboy. Desta vez dividiu o prêmio com

Cauby Peixoto. No Programa do Chacrinha, novo troféu de Melhor

Intérprete. Este ele ganhou sozinho.

Três meses depois de ter sido lançado, em março daquele mesmo

ano, o LP Vento Forte ganha o Disco de Ouro. E Fagner volta aos

estúdios para produzir com Fausto Nilo, a pedido de Menescal, então

diretor da gravadora, o novo disco de Nara Leão, Romance Popular.

O cantor estava no Riocentro no show de Primeiro de Maio de 1981,

o da bomba. Naquele ano homenageava-se Luiz Gonzaga. Por volta das

21 horas, o carro em que estavam o sargento Guilherme Pereira do

Rosário e o capitão Wilson Dias Machado explodiu no estacionamento

do ginásio onde permaneciam os maiores da MPB que ainda iriam se

apresentar. A bomba, que tinha como destino o próprio edifício do

Riocentro, explodiu antes da hora, matando o sargento e ferindo

gravemente o capitão Machado. Uma segunda explosão ocorreu a alguns

quilômetros de distância, na miniestação elétrica responsável pelo

fornecimento de energia do Riocentro. A bomba foi jogada por cima do

muro da miniestação, mas explodiu em seu pátio e a eletricidade do

pavilhão não chegou a ser interrompida. O atentado que felizmente não

deu certo marcou o início da decadência do governo militar. Dali a

quatro anos tudo seria diferente.

Fagner se lembra muito bem daquela noite:

“Revelação” e “Noturno (Coração Alado)” eram as músicas que


lideravam as paradas de sucesso do Brasil. E cheguei depois da
bomba explodir. Estava uma confusão e a imprensa me perguntava
sobre a bomba. Respondi: a imprensa bota bomba em tudo o que é
lugar. Eu não estava sabendo de nada.

Simone fazia sua estreia naquele show e cantou as duas músicas

com Fagner. Na apresentação, o cantor teve que ser cavalheiro, mudando

seu tom de voz para acompanhar o dela. Era a primeira vez que a baiana

se apresentava para grandes plateias no Brasil.


Da estreante à veterana, naquele final de 1981, a vida de Fagner se

reencontrou com a de Elis Regina quando o cantor, acompanhado de

Nara Leão e do diretor de teatro Flavio Rangel, foi assistir a Trem Azul, o

último show da cantora, na casa de espetáculos Canecão de São Paulo.

Pelo velho histórico das duas, Nara estava irredutível, mas eles a

convenceram a acompanhá-los. Na mesa da casa de espetáculos, ela

estava trêmula, pálida, pois todo mundo sabia que as duas cantoras não

se bicavam.

Foi a última vez que vi Elis. Eu não acreditei. Ela no palco... o que
estava fazendo no palco? Parecia estar em transe. Quando o show
estava prestes a terminar, Fernando Faro, diretor do espetáculo, nos
convidou para o camarim. Nara não quis ir, mas foi convencida pelo
próprio Faro de que seria tranquilo. Fizemos novamente a cabeça
dela. Quando Elis nos viu, parou. Por um instante, o seu olhar
pareceu congelado e, depois, nos encarou por uns cinco minutos
sem dizer nada. Então, virou as costas e saiu. Um pavor. Nara
começou a chorar. Quando afinal Elis voltou, Fernando Faro estava
entrando, e ela se ajoelhou e o reverenciou. Depois, voltou-se para
mim e me abraçou apertado dizendo: “Vou te dar um cheiro, porque
sei que você gosta muito.” Não olhou para Nara. Ignorou a presença
dela. A musa da bossa nova saiu dali arrasada.
a saga de "traduzir-se"
CAPÍTULO 14
E m 14 de maio de 1981, Fagner já estava longe. Aquele foi o ano de

sua aventura espanhola. Ele havia gravado um disco em espanhol aqui

no Brasil, mas não gostou do resultado, não ficou como deveria. Queria

passar um período na Espanha, familiarizar-se com o idioma, aprimorar

a pronúncia, conhecer a cena artística local. A indústria fonográfica,

como qualquer outra, trabalha com orçamentos, prazos, metas a cumprir

— e o tempo que Fagner pediu lhe foi negado. Venceu a pressa, eterna

inimiga da perfeição.

O disco já estava pronto e, na mentalidade que rege a indústria, não

poderia virar produto encalhado no depósito da gravadora. Daí a ideia: o

artista não quer lançar no Brasil? Vamos lançar na Espanha. Dito e feito.

Lá se foram todos para Madri. O lançamento seria anunciado numa

entrevista coletiva à imprensa espanhola.

A direção da empresa, no entanto, não sabia com quem estava

lidando, que quando Fagner diz não é não. Se é ele o criador do disco, se

é dele a cara estampada na capa do LP, se a ele não agradou o resultado

final, não há força nesse mundo que o faça mudar de ideia.

Jornalistas a postos, microfones e câmeras ligados, Thomaz

Munhoz, presidente da CBS, inicia a apresentação do artista sentado a

seu lado. Fagner o interrompe:

Não vou lançar esse disco. Não saiu no Brasil e não vai sair aqui.
O lançamento está abortado. Vou fazer um LP sim, mas vou começar
a gravar agora.
E Fagner foi em busca de parceiros para acompanhá-lo no disco que

viria a se chamar Traduzir-se. Gente da pesada: Joan Manuel Serrat, o

maior ídolo da Espanha, que pela primeira vez gravaria com outro

artista; Mercedes Sosa, cantora argentina que vivia no exílio em Madri e

gravou com ele o sucesso “Años (El Tiempo Pasa)”, do cubano Pablo

Milanés; Camarón de la Isla, o maior mito da música flamenga; e o

cantor pop Manzanita. Como colaboradores, chamou os amigos Fausto

Nilo e Carlos Marques, e ainda Adrian Vogel, executivo espanhol da

CBS, na coordenação executiva. O disco foi gravado em julho de 1981,

nos estúdios Eurosonic de Madri, com o renomado técnico Pepe

Loeches. Apenas a faixa “Fanatismo” foi registrada no estúdio

Transamérica, no Rio de Janeiro, poucos meses depois.

Nas semanas de gravação, Fagner ganhou um novo amigo: Joan

Manuel Serrat, que se recusou a receber cachê por sua participação no

disco. Pediu só uma coisa: a camisa do Garrincha que o cearense vestia

no estúdio. Então fizeram a troca e Fagner ficou com a camisa do

catalão.

Além de Serrat, Fagner encantou-se com Manzanita, ídolo da

garotada espanhola. Catalão de Barcelona, puro castiço, um artista com

muita energia, sempre disposto a colaborar.

Camarón de la Isla, que morava perto do Estreito de Gibraltar, na

cidade de La Línea de la Concepción, foi o maior cantor flamenco de

todos os tempos. Tinha então 13 discos gravados; nove com o fenômeno

Paco de Lucía, que, assim como Serrat, também ficou com uma camisa

de Fagner da Seleção Brasileira.

Já com Mercedes Sosa ele começou uma amizade bem bonita.

Encontrou-a muito triste, sofrida, exilada pela ditadura argentina, e

passou a frequentar sua casa e compartilhar de seu dia a dia.

Fui um amigo presente, fiz tudo para amenizar a saudade que ela
sentia de seu país. Eu me identifiquei com o seu sofrimento. Era
uma grande artista que dedicou a vida e a arte por um ideal político.
Essa mulher comoveu a América Latina, comoveu o mundo inteiro.

Fagner brincava com Mercedes, fazendo com que ela cantasse um

pouco acima do seu tom.


Você tem que cantar igual à Ângela Maria, buscar o som mais
radiofônico possível. Quero que essa música estoure no Brasil.

Não deu outra: foi o primeiro sucesso do disco!

Mercedes reconhece e agradece o carinho fraternal, até mesmo

filial, do amigo: “Eu não me encontrei com esse homem famoso do

Brasil, encontrei com uma pessoa extremamente terna e doce e isso

conta muito para nós, artistas e cantores. Fagner é um homem tenaz.

Certamente isso justifica tudo que ele conseguiu na Espanha.”

A gravação de “Años” é antológica. Uma peça rara no cenário

musical. E Mercedes, La Negra, como também é chamada, reconheceu

em Fagner um divisor de águas em sua trajetória: “Toda a minha vida

mudou depois de eu ter cantado ‘Años’ com ele, em 1981. A divulgação

do disco num especial da Rede Globo abriu espaço para eu voltar a

cantar na Argentina.”
Traduzir-se foi o grande disco da vida de Raimundo Fagner. Fausto

Nilo foi com ele para a Espanha e se incluiu como participante ativo

daquela jornada-aventura. Ele relembra que, quando chegaram, foram

direto a Alcalá de Henares, cidade histórica onde nasceu Cervantes,

perto de Madri, para assistir à exibição de um grande elenco de música

flamenca da época, que incluía Camarón e Lole y Manuel, dupla de

muito sucesso.

A cada artista que surgia no palco, Fagner se entusiasmava e dizia:

“Esse eu quero!” Vinha outro e ele exclamava: “Esse vai gravar

comigo!”, identificando-os como possíveis participantes de seu projeto.

E assim foi o show inteiro.

Fausto explica: “Para nós aquela música toda era uma grande

surpresa. Não existia nenhuma ponte cultural com o Brasil naquela

época.”

Ficaram amigos de Adrian Vogel e de sua mulher Begônia, que tinha

um excelente conhecimento da cultura e poesia espanholas. Passadas

mais de três décadas, Adrian Vogel ainda fala com saudade daquela

aventura madrilenha e sevilhana. “Era fácil vislumbrar um paralelo entre

o estilo de Fagner e a música flamenca. E também pontos em comum

entre os versos de García Lorca e as letras de Fausto Nilo. O dueto com

Camarón também é histórico: foi a primeira vez que o genial cantor

flamenco registrou um dueto. Fagner e eu somos amigos desde então.”

Adrian Vogel é compadre de Fagner, que batizou o único filho do

amigo espanhol. Concretamente, segundo Adrian, Raimundo era um

furacão que ninguém conseguia controlar. Seu carisma pessoal foi

fundamental para convencer e seduzir os artistas espanhóis a gravar algo

que sequer compreendiam, mas que os inquietava e despertava sua

curiosidade pelo estilo e personalidade do cantor e compositor

brasileiro.

“Fagner era também produtor, executivo e empresário. Muito

completo. Um fenômeno.”

Carlos Marques, aquele amigo brasileiro que vivia em Paris,

também participou da aventura madrilenha. Atuou com eficiência na

comunicação do projeto.

Rafael Alberti, que acabara de chegar de um exílio de mais de vinte

anos e era considerado o maior dos poetas vivos de seu tempo, amigo
íntimo de Pablo Picasso, também se engajou emocionalmente no projeto.

Fagner musicou e gravou o poema “Málaga”, de sua autoria. Convidado

por Carlos Marques para escrever um texto que seria incluído no encarte

de Traduzir-se, Alberti se mostrou bastante comovido: “Isto é fantástico

e maravilhoso e é preciso que se diga: eu estou emocionado. Um poema

meu como ‘Málaga’, aparentemente tão difícil, tão quebrado, o moderno

dentro da minha obra, recebendo este tratamento musical, me emociona.

Creio que será grande sucesso no Brasil e um êxito na Espanha. E por

isto estou emocionado. Além disso, neste ano do centenário de Picasso,

no mesmo dia em que a Guernica chega a Madri, nada poderia causar

tanta surpresa: estou contente. Esse Fagner tem muita valentia, é um

valente. Creio que conseguiu botar suficiente carga emocional no que

fez. Espécie de corte anticlássico. Fez renascer meus elos com o Brasil.

Vivi em Punta del Este e em minha casa tinha um mural de Candido

Portinari. Conheci Di Cavalcanti. Vivia fascinado pelo Brasil sem ir lá.

Em Praga convivi com Jorge Amado e na Itália uma amiga brasileira,

Marcia Teófilo, poetisa, sempre me levava à poesia de João Cabral de

Melo Neto. Escutando este disco de Fagner foi como se percorresse

caminhos muito parecidos. Me veio à mente Portinari, Di Cavalcanti,

Jorge Amado, Marcia Teófilo, João Cabral. E fico contente. O trabalho

de Fagner e Pachón me deu essa alegria. É um êxito.”

Atribui-se ao mais renomado produtor de música flamenca na

Espanha, Ricardo Pachón, a frase bombástica: “O flamenco nunca mais

será o mesmo depois de Fagner.” Segundo ele, o artista brasileiro trouxe

para o flamenco uma conotação nova que certamente permitiria àquele

ritmo romper certas fronteiras. Além do mais, a seu ver, Fagner tinha

uma grande identificação, inclusive física, com os gitanos. “Há algo de

muito árabe nessa criação”, acrescenta Pachón, “e a presença da

percussão, como é constatada, dá uma força até então desconhecida.”

Disco pronto. Hora de dar por finda aquela longa aventura musical e

pessoal na Espanha. Próximo destino: Portugal. Outro disco? Dessa vez

não. Queria visitar a terrinha. O voo entre Madri e Lisboa é como a

ponte aérea Rio-São Paulo. Vapt-vupt. Mas Fagner resolveu incluir uma

escala no projeto: Tânger, cidade no norte de Marrocos, para uma visita


a La Línea e ao amigo Camarón, que lá residia. Péssima ideia. Foi detido

pela alfândega no aeroporto ao desembarcar. Também pudera: levava na

bagagem, sem haver declarado, um pacote com o equivalente hoje a 22

mil dólares, 15 mil libras esterlinas e mais dinheiro brasileiro. Os

agentes aduaneiros confiscaram tudo.


Na minha entrada no país ninguém me questionou sobre o que eu
levava nem me orientou a declarar nada. Fui assaltado pelo governo
marroquino!

Resultado: teve que seguir viagem para Lisboa com uma mão na

frente e outra atrás, sem um tostão no bolso. Ainda bem que tinha a CBS

para resolver o problema.

Chegando às plagas lusitanas, soube que Jorge Amado também

estava na capital portuguesa e o procurou para que o ajudasse com o

problema ocorrido em Tânger. Por ele, tomou conhecimento de que o

embaixador do Brasil ali era seu conterrâneo, Dario Castro Alves. Sua

ajuda foi preciosa.

Fagner visitaria também, a pedido de Jorge Amado, o cineasta

Glauber Rocha, que estava internado num hospital de Sintra, muito

doente. Que Fagner ajudasse o conterrâneo e amigo no que fosse

possível.

Tratamos dele com todo carinho. Fausto, Carlos e eu, além do


escritor João Ubaldo Ribeiro, demos toda a assistência possível ao
cineasta agonizante.

Fausto Nilo, hospedado no mesmo hotel que Fagner em Lisboa,

conta que um dia, por sugestão de um professor do Ceará, compraram

um livro de Florbela Espanca, poeta perseguida e censurada pelas

décadas de ditadura salazarista. Fagner pegou o livro e, uma hora

depois, violão em punho, já estava musicando um poema da autora:

“Minha alma de sonhar-te anda perdida...” Várias músicas foram feitas

no próprio hotel. A criatividade do compositor não escolhia hora nem

lugar. E por falar em gênio criativo que irrompe não importa onde nem

quando, vale relacionar os arroubos de Fagner, artista no auge da

mocidade, com os que Fausto Nilo presenciou naquele hospital de Sintra

vindos de outro artista, Glauber, também jovem, mas já no fim.

Fausto Nilo continuava a acompanhar Fagner nas visitas ao doente.

Certo dia ficaram sozinhos no quarto, ele e Glauber.

“Quem é você?”

“Sou Fausto Nilo, arquiteto, urbanista e letrista de canções.”


E a conversa rolou solta. Fausto tinha diante de si um homem

alquebrado, sofrendo dores fortíssimas, que às vezes o faziam gritar, mas

com a cabeça fervilhando de ideias e projetos delirantes. “Eu queria

fazer um filme sobre o Antonio Conselheiro em Quixeramobim...”

Queria montar a ópera O Guarani no Teatro Municipal do Rio de

Janeiro, com Fagner no papel de Peri. Queria montar o musical num

cenário de selva amazônica. Para convencer Fagner, dizia: “Você é o

índio mais nobre do Brasil.”

Mas veio a morte e pôs um ponto final naquelas ideias. Comoção

em Portugal, lágrimas no Brasil.


Antes que partissem de Lisboa, Jorge Amado ainda deixou um

registro escrito sobre Fagner:


Dentro do conjunto da música popular brasileira, este moço trouxe ao mesmo tempo uma

continuidade de tudo que se vem fazendo, ele não nasceu sozinho, não nasceu do nada, ele

nasceu do trabalho realizado e ao mesmo tempo ele traz alguma coisa de novo, no sentido de que

é um músico extremamente nordestino nas suas raízes, da mesma maneira que Caymmi é um

músico extremamente baiano. Ele é um músico extremamente nordestino, daquelas raízes que

vão do Pernambuco ao Ceará. Eu acho muito importante, é um músico de importância evidente e

definitiva.

Eu me recordo que há alguns anos, vários anos, Vinicius de Moraes, que era um homem

que sabia das coisas, sobretudo no que se refere à poesia e à música, chamava a nossa atenção

pra um jovem que vinha mostrar suas primeiras coisas, suas intenções e seu programa inicial de

trabalho.

Dizia este: Fagner é alguém que a gente deve estar seguindo, vendo o que ele vai fazer,

porque ele vai fazer coisas grandes e sérias.

Quanto ao disco que ele veio realizar na Espanha, com a cooperação de artistas espanhóis e

de cantores, de músicos e do povo da Espanha, do povo do sul da Espanha, Andaluzia, ciganos,

eu acho que corresponde também a uma concepção importante do que é a criação brasileira,

sobretudo a criação nordestina no campo da poesia e da música. Daí esse disco marca a obra de

Fagner. E na criação da música brasileira, da música popular brasileira, um momento

importante, um momento que eu diria esplêndido.

No Brasil, as críticas ao disco foram boas. A do paulistano Jornal

da Tarde, por exemplo, era assinada por Sergio Vaz:

“Os fanáticos com a arte irremediavelmente presa às raízes, os que

não aceitam mistura ou evolução, as pessoas que acham que lugar de

músico crioulo é (só) na quadra da escola de samba, ou na Marquês de

Sapucaí, e que lugar de músico nordestino é (só) nos forrós, puxando

xote e baião, esses devem passar bem ao largo de Traduzir-se, oitavo LP

de Raimundo Fagner.

“O disco é, antes de mais nada, um canto de amor justamente à

mistura, à mescla, à soma de elementos diversos, diferentes. À

cooperação, ao intercâmbio de culturas, tradições, sonoridades de

origens variadas. Tem Brasil, tem Nordeste, tem a Espanha dos ciganos,

da influência moura, da música flamenca. Tem um toque de Argentina e

uma pitada da Cuba de hoje. Tem a sutileza requintada de poetas como

Federico García Lorca e Rafael Alberti e a força apaixonada, solta,

violenta e abertamente presunçosa de Raimundo Fagner. Tudo

misturado.

“Os puristas, que esconjurem e passem ao largo. Os que exigem da

música popular qualidade, em vez de pureza, certamente terão motivos

de sobra para ficar satisfeitos.”


De fato, foi uma saga a história de Traduzir-se. Pouco depois do

lançamento do disco, em setembro de 1981, a TV Globo levou ao ar o

especial Grandes Nomes: Raimundo Fagner Candido Lopes.

Participações especiais de Nara Leão (“Penas do Tiê”), Cauby Peixoto

(“Tortura”), Zizi Possi (“Meio-dia”), Mercedes Sosa (“Calma

Violência” e “Años”), Henrique de Mechor (“Trianera”) e Manzanita

(“Verde”). Raimundo Fagner recheou o especial com os clássicos “As

Rosas Não Falam”, “Mucuripe”, “Sinal Fechado”, “Riacho do Navio”,

“Bom Vaqueiro”, “Fanatismo” e “Traduzir-se”.

Ainda participaria naquele momento do LP A Arca de Noé, com a

música “O Leão” (uma parceria sua com Vinicius de Moraes).

Mais uma vez, foi eleito Melhor Cantor do Prêmio Playboy de MPB,

dividindo pela segunda vez a honraria com Cauby Peixoto.

Para encerrar o glorioso ano de 1981, foi organizada uma festa em

Fortaleza que durou cinco dias e serviu para a CBS lhe entregar seis

discos: quatro de ouro e dois de platina.

Festa de Fagner sem futebol? Impensável! Dizem que em pelada de

garotada o dono da bola é sempre escalado ou não tem jogo. Fagner

virou também dono do campo. Seu campo de futebol foi batizado com

um aumentativo de uma de suas canções: Canteirão, sugestão do

compadre Zico.

E foi um encontro memorável, segundo Fagner. Um momento

histórico do futebol brasileiro, porque era a primeira vez que se reuniam

as gerações de 70 e 82. Foram convidados para inaugurar o campo do

cantor, e depois jogar no Castelão, os craques Rivelino, Sócrates,

Jairzinho, Reinaldo, Afonsinho, Batista, Éder, Toninho Cerezo, Marinho

Chagas, Roberto Dinamite e, é claro, Zico, que chegou depois por estar

disputando a final do Mundial de Clubes daquele ano no Japão, e

levando o Flamengo a conquistar o título, vencendo o Liverpool. Na

inauguração do campo de Fagner, todos eram astros do futebol.


Em terras tropicamericanas
CAPÍTULO 15
o ano de 1982 chegou e encontrou Fagner mergulhado em planos e

projetos. Para ele, ano novo significava trabalho novo. E novo carimbo

no passaporte: Estados Unidos da América, cidade de Nova York, ilha

de Manhattan. Era chegada a hora de Fagner encantar a Big Apple. E lá

se foi ele, de mala e cuia, viola e comitiva: Manassés, Jamil Joanes e

Lincoln Olivetti. A esses músicos que moravam no Brasil iriam se juntar

os radicados nos EUA: Airto Moreira, Flora Purim, Naná Vasconcelos e,

na impossibilidade de contar com Steve Gadd, escalaram o baterista

Allan Schwartzberg e o percussionista Laudir de Oliveira. O novo disco,

que se chamaria Sorriso Novo, seria gravado nos 48 canais do Hit

Factory Studio, o mesmo onde John Lennon havia registrado seu último

LP.

Laudir, vencedor de 25 Discos de Ouro e de Platina, vendeu 127

milhões de álbuns. Integrante do grupo Chicago, tocou ainda com os

Jackson 5, Joe Cocker e outras estrelas. Foi ele quem convenceu o

pessoal da CBS americana a gravar com Fagner. No fim do trabalho de

gravação, Laudir convidou o cantor para passar uma temporada na sua

casa, em Los Angeles. Chegando lá foi realizado um show no Veterans

Memorial Auditorium, em Culver, reduto da comunidade negra. Ali foi

gravado um disco ao vivo da apresentação, acompanhada de músicos

muito especiais: o grande maestro Moacir Santos no piano, Alex Acunã

(baterista integrante do Weather Report), Tião Neto (baixista de Sérgio

Mendes), no contrabaixo Manassés, Laudir e o guitarrista também do

grupo de Sérgio Mendes. A apresentadora do evento foi sua conterrânea

Florinda Bolkan. À época, Laudir apresentou esse disco à gravadora

CBS brasileira, mas o tape sumiu. Quem sabe algum dia ainda se acha?
Muitos aplausos das 1.800 pessoas que lotaram a plateia e um

elogio do Los Angeles Times, que deve ter enchido de orgulho o peito do

cearense:

“Fagner é o Bob Dylan brasileiro.”

Ele planejava ficar apenas duas semanas em Los Angeles.

Encantado, porém, com o condomínio em que vivia Laudir, foi ficando,

foi ficando...

O condomínio, chamado Hidden Hills, na verdade é quase uma

cidadezinha dentro de Los Angeles, Hollywood. São 340 casas com uma

entrada e uma saída apenas. Um lugar bonito, para quem gosta da vida

no campo. Laudir criava seis cavalos. Seus vizinhos eram Marvin Gaye,

Sarah Vaughan e outros famosos. Fagner teve oportunidade de conhecer

essas pessoas todas lá na casa do amigo.

“Tinha um quintalzinho e a gente vivia batendo bola, todo dia tinha

futebol”, conta Laudir. “Eu e meu filho contra ele e um primo do

vizinho. Dois contra dois. Eu tinha um estúdio dentro de casa, então

Fagner ficava lá relaxado, longe, muito longe dos problemas do Brasil.

Fagner é um grande amigo. Era e continua sendo.”

Meses depois de dar esse depoimento, em 17 de setembro de 2017,

Laudir de Oliveira morreu tocando bateria, em pleno palco, vítima de

infarto do miocárdio durante um show em homenagem ao maestro Paulo

Moura. Foi no Reduto Pixinguinha, em Olaria, Zona Norte do Rio,

praticamente ao lado do bairro em que o músico nasceu e que originou o

apelido carinhoso com que Fagner o chamava: Ramos.

Depois de Los Angeles, enfim, férias. Era chegada a hora de bater

asas e voar rumo a Madri para assistir à Copa do Mundo de 1982. Férias

entre aspas, porque em julho, durante a Copa, ele se apresentou para

mais de cinco mil pessoas na Plaza de España, em Sevilha, ao lado de

Camarón de la Isla.

No fim do Mundial, com a cabeça quente pelos três gols de Paolo

Rossi que eliminaram o Brasil, musicou e gravou “Los Ocho Nombres

de Picasso”, tirado do livro Lo que canté y dije de Picasso, de Rafael

Alberti.

Em agosto de 1982, saiu no Brasil o disco gravado nos Estados

Unidos, que contava com participações de David Sanborn, Michael

Brecker, Paco de Lucía, Tânia Maria, Lincoln Olivetti, Flora Purim,


Jamil Joanes, Manassés, Allan Schwartzberg, Laudir de Oliveira, Naná

Vasconcelos, Airto Moreira, Sérgio Dias, Jon Faddis, Lew Soloff, Tom

Malone, Alan Rubin, George Young, Hamiet Bluiett, Portinho. Nos

arranjos, Lincoln Olivetti. E, como arregimentador, a pedido de Flora

Purim, ninguém mais, ninguém menos do que Gil Evans, o maestro do

genial Miles Davis. Alguns críticos torceram o nariz. Para eles, a

superprodução abafava a intuição e a ousadia de Fagner. De qualquer

maneira, gostando a crítica ou não, Fagner ganhou um Disco de Ouro

por Sorriso Novo (com destaque para “Qualquer Música”, uma das

canções do LP).

Para encerrar 1982, às vésperas do Natal, a Globo levou ao ar o

especial Sorriso Novo, com participações de Nara Leão (“Como é

Grande o Meu Amor por Você” e “Traduzir-se”), Agnaldo Timóteo

(“Ressurreição”), Martinho da Vila (“Cantos do Rio”), depoimentos dos

amigos, como o cartunista Mino, Zé Pinto, Patativa do Assaré, e direção

de Augusto Cesar Vannucci. Estava bem na Globo: a música

“Pensamento” era parte da trilha sonora da novela Final Feliz.

Entre um feliz Natal e um próspero Ano-novo, Fagner já estava de

olho no Carnaval. Há quem tenha pupilas nos olhos; Fagner tem

binóculos. Seria um disquinho compacto com duas músicas de Petrúcio

Maia, “Batuquê de Praia” e “Cantos do Rio”. Faria dueto com um

bamba, Martinho da Vila, mas na última hora a gravadora do sambista

desautorizou sua participação. Fagner viu-se num mato sem cachorro. E

agora, com o trabalho pronto? Ia gravar com quem? Volta sua atenção

para alguém que estava bem próximo e já conhecia as músicas. Zico, o

jogador de futebol? Ele mesmo, já estava escalado.

“Eu não sabia a loucura que iria ser. Não podia faltar no clube, tinha

treino com hora marcada, acabei achando uma brecha e disse: ‘Vamos

lá, seja o que Deus quiser.’ Pensei que seríamos só nós dois, mas não. A

gravação era com um bocado de sambistas, eu tinha que cantar na frente

deles! Aí travei. Disse pro Fagner: ‘Compadre, não vai dar. Na frente

desse povo todo, não consigo.’ Ele me puxou de lado, pegou um coco

verde e meteu uns uísques lá dentro. Dez horas da manhã e o atleta aqui

tomando uísque com água de coco. Que tal? E os músicos comentando:

‘Pô, o Zico adora água de coco, toma sem parar.’ A gravação ficou
bacana, a música era gostosa, todo mundo brincando. Viva a água de

coco!”

“Batuquê de Praia” fez um sucesso danado nos carnavais daquele

ano.

O álbum A Picasso foi planejado para as comemorações do

centenário de nascimento do pintor, escultor e ceramista espanhol Pablo

Picasso (1881-1973), mas problemas com a liberação de alguns artistas

envolvidos no projeto — Paco de Lucía, Mercedes Sosa e Rafael Alberti

— atrasaram o lançamento do disco, que somente aconteceu em outubro

de 1983. Do disco ainda participaram os músicos Manassés, Nonato

Luiz, Airto Moreira, Chico Batera, John Helliwell (saxofonista do

Supertramp), Gilson, Wagner Tiso, Lincoln Olivetti, Reinaldo Arias,

Jamil Joanes, Paulinho Braga. E a direção musical, de produção e

arranjos ficou a cargo do próprio Raimundo Fagner.


Foi exatamente no lançamento desse disco-homenagem ao pintor

espanhol que o escritor Jorge Amado deu outro belo depoimento sobre

Fagner:

Não foi o exército mouro que voltou para reconquistar a Espanha, estabelecer quartel em

Sevilha e ditar leis. Não, desta vez foi um único cidadão de sangue levantino e não chegou do

norte da África ou do Oriente Médio, veio de mais longe: do nordeste do Brasil, da legendária

terra cearense onde nasceram José de Alencar, o romancista, e Aldemir Martins, o pintor. Essa

gente cearense é fabulosa: o sol abrasador acende as fogueiras da imaginação e multiplica o

talento dos artistas. Esse que invadiu a Espanha, chama-se Raimundo Fagner, filho de pai

libanês, brasileiro, comandando o ritmo e a estrofe dos melhores, jogador de futebol, amoroso de

todas as mulheres, um músico porreta.

Na Espanha reuniu o que havia de mais ilustre e importante para juntos homenagearem o

principal de todos os criadores de cultura e arte em nosso tempo: mestre Pablo Picasso, um

gênio e por isso mesmo um homem simples, igual a todos os demais homens. Rafael Alberti,

companheiro e amigo, poeta preferido, canto de esperança e de amor. Mercedes Sosa, a

magnífica, voz de combate, militante da liberdade e do ser humano. Paco de Lucía, a guitarra e a

Andaluzia, o som da Espanha. Todos em torno aos oito nomes de Picasso.

Mais uma vitória do guerreiro Raimundo Fagner, o verso, a melodia, o canto, a música e a

poesia. A pátria cearense não conhece fronteiras nem teme concorrentes: está no Rio, em
Marraquexe, na praça de touros em Madri, na praia de Iracema em Fortaleza, em Sevilha, em

São Paulo, onde quer que esteja Fagner, comandante.

Em 1983, ao completar dez anos de carreira, Fagner comemorou a

data declarando:

Não estou aqui para agradar ninguém. Eu chego lá, podem ter
certeza disso.

Em maio foi para a Nicarágua com Chico Buarque em razão de um

show beneficente, pois o país estava em situação crítica, em guerra. Na

volta participou do Festival de Águas Claras, célebre por ter durado três

dias e pela chuva que não deu trégua, dando ensejo aos mais gaiatos de

apelidar o evento de Festival da Lama. Aconteceu em Iacanga, próximo

a Bauru, no interior paulista. Participaram cerca de cem mil pessoas.

Entre os convidados, estavam João Gilberto, Raul Seixas, Erasmo,

Fagner. Naquela noite, o grande nome da bossa nova, que se apresentaria

depois do cearense já na madrugada, assistiu à apresentação de Fagner

debaixo de chuva. A partir disso, viraram amigos e se falavam horas e

horas, mas só por telefone, como é de costume de João. Ao vivo e a

cores mesmo, nunca mais se viram.

Em julho, Fagner estava a postos nos estúdios da Som Livre para

gravar disco novo: Palavra de Amor, com arranjos de Lincoln Olivetti e

Cesar Camargo Mariano. Para aquele seu mais novo trabalho, Fagner

pediu ao jornalista Ricardo Boechat que publicasse uma nota pedindo

músicas de novos compositores. A nota saiu e congestionou a caixa

postal da gravadora. Fagner ouviu mais de mil e tantas fitas e a partir daí

criou-se uma tradição de lhe enviarem músicas e poemas.


O produtor musical seria Mariozinho Rocha, nome conhecido e

respeitado, com passagens pelas gravadoras EMI e Polygram (ex-

Philips), mais tarde diretor musical da Rede Globo por mais de vinte

anos. Era seu primeiro trabalho na CBS. Não faltaram avisos de cautela:

Fagner é isso, Fagner é aquilo. Até “bucha de canhão” Mariozinho

chegou a ouvir de um colega, referindo-se ao cearense.

“Mas se enganaram. Fagner foi um doce. Falo com o maior carinho.

Foi uma época muito legal, um trabalho que me deu um prazer enorme

sob todos os aspectos, artístico e profissional. Sem problemas, a não ser

controlar as mulheres que queriam entrar no estúdio a todo custo.”

Epa! Sem problemas com o Fagner? E aquela discussão que tiveram

por causa da trilha sonora da novela Tropicaliente, de Walter Negrão, da

Globo, que se passava no Ceará?

“Fagner ficou bravo comigo. Ele não sabia do lance comercial da

novela. Era um contrato da Globo com o governo do Ceará e o governo

espanhol. A companhia aérea Ibéria estava lançando um voo direto

Madri-Fortaleza e queria vender aos espanhóis a ideia de que o Ceará

era um novo Caribe. Uma das primeiras coisas que o Walter Negrão

escreveu na sinopse foi: ‘Atenção, não quero música regional, a ideia é

mostrar o Caribe brasileiro.’ Eu expliquei isso ao Fagner, mas ele não

aceitou. Foi para o jornal, meteu o pau na Globo, meteu o pau em mim.”

Sobrou bronca de Fagner até para os baianos:


Se a novela fosse na Bahia, vocês iam botar tudo que é música
baiana. Mas como é aqui no Ceará...

Fagner tem outra versão deste entrevero com Mariozinho Rocha:

Ao convidá-lo para produzir meu disco, ele passou a ser também


o diretor artístico da gravadora. Eles estavam sem esse profissional.
Além das fitas pedidas pela imprensa, Mariozinho, como produtor
forte que era na época, também recebeu fitas de outros
compositores. Eu ouvia tudo. Nunca fui influenciado por produtor
para gravar discos, mas eu gostava do Mariozinho. Começou a me
seduzir quando eu estava na Philips, me chamando para a Odeon,
gravadora dele na época. Gonzaguinha foi um dos que mandou
música para o Mariozinho e me avisou. Eu trabalhava em casa
ouvindo as fitas e pedi para que ele me mostrasse a música que o
Moleque tinha mandado. E ele me disse: “Gonzaguinha mandou uma
música feita nas coxas.” Mas eu insisti e, para minha surpresa, foi
pura emoção. Até chorei. Era “Guerreiro Menino”, que se tornou a
música de trabalho do disco. Contei essa história na rádio
Transamérica em São Paulo e Mariozinho ficou muito bravo comigo.
A partir daí passei a ser preterido nos trabalhos seguintes na Globo.

Em agosto, sai enfim Palavra de Amor, seu décimo LP, dedicado às

Bodas de Ouro dos pais, José Fares Lopes e Francisca Candido, com

participações especiais de Chico Buarque, César Camargo Mariano,

Eduardo Souto, Reinaldo Arias, Leo Gandelman, o grupo Roupa Nova e

os músicos do Nil Caatinga.

O disco operou em Fagner uma curiosa metamorfose. Em entrevista

ao jornal O Estado de S. Paulo, baixou a crista, reconheceu defeitos,

mas sem deixar de adorá-los. Fagner raramente se mostra confessional.

Desta vez abriu exceção:

Essa é a primeira vez que trabalho em equipe e sinto um respeito


muito grande pelo trabalho de todos eles. Uni minha emoção à
técnica deles. Com esse disco, quero colocar definitivamente de lado
a imagem do homem narcisista, arrogante e agressivo. Essa imagem
eu adoro, porque é fruto da minha geração. A competição artística
impôs o meu estilo, fabriquei o meu marketing. Se hoje sou assim é
porque quis. A única coisa que fiz foi jogar minha loucura na cara de
todo mundo. Mas tudo isso passou, estou em outra.
Nessa época, a 5ª Vara Civil do Rio dá ganho de causa à família

Meireles por aquela pendenga com “Canteiros”. Polygram e Fagner são

condenados a pagar sessenta e oitenta milhões de cruzeiros,

respectivamente. Tanto a gravadora quanto o cantor recorrem da decisão

no começo de setembro de 1983.

O que me pegou de surpresa foi que aquela audiência era de


cartas marcadas. A família tinha que ganhar a causa. Não tinha
como me defender. Até meu advogado já sabia que eu ia perder.
Tinha uma jornalista do jornal O Globo que estava na porta e me
disse: “O juiz entrou com vários discos seus dizendo que existem
outros plágios.” E eu respondi: “Não, ele deve estar querendo
autógrafo!”
E entramos. Fui massacrado. Meu advogado, doutor Carlos Eboli,
me cutucou várias vezes por debaixo da mesa para eu não dizer
nada. Chegou um momento em que a filha da poetisa pediu uma
soma absurda por um disco que praticamente não tinha vendido. Foi
quando eu não aguentei e disse: “Dona Matilde, a senhora é uma
brincalhona.”
Apesar de nunca ter passado por aquilo, eu estava sendo
bombardeado. Eles eram a elite intelectual do Brasil, e, no meio da
audiência, no meu maior sufoco, o juiz, como que entendendo
aquele sofrimento, olhou para mim e falou: “Fagner, você é um
gênio, dando vida à coisa morta!” Foi um alívio inesperado. Deus
existe!
Aquele foi um momento inesquecível. Quando acabou, tirou a
beca e me pediu para autografar os discos que estavam atrás da
sua bancada. Assinei todos. Na saída, falei para a jornalista: “Você
viu como era para eu autografar?” Ela entendeu o recado. Bem, foi
um ataque fulminante a mim. Fui atacado pela imprensa, um kit
completo.

Em setembro daquele mesmo ano, Fagner foi a Fortaleza participar,

ao lado de Luiz Gonzaga, do show Nordeste Urgente e ganhou mais um

Disco de Ouro pela venda de 120 mil cópias do LP Palavras de Amor.

“Guerreiro Menino” foi a canção mais executada em todas as emissoras

do Brasil, AM e FM.

Sobre o disco, o jornalista musical Roberto Moura escreveu uma

resenha, intitulada “As palavras de amor de Fagner para ele mesmo”, no

jornal O Dia, do Rio.


Poucas pessoas administram o seu narcisismo com tanta eficiência quanto o Fagner. Não

foram poucas as declarações dos artistas que deixaram transparecer este controvertido aspecto de

sua personalidade. Fagner gosta de ser grande, faz tudo para ser grande. Visa o mercado externo,

quer o mundo, mas não abre mão do fato de ser cearense mais que brasileiro. Está sintonizado

com o universo, mas mora em Fortaleza. Quando disse que com dois meses de treino tinha lugar

pra ele na seleção brasileira que foi à Espanha, não estava pilheriando. Confia em si mesmo.

Fagner costuma receber Zico em seu campo particular no Ceará. É capaz de reclamar de uma má

jogada do galinho numa pelada que só para ele tem importância. Esses traços, porém, são

capitalizados por Fagner de uma forma invejável e esse seu LP Palavras de Amor é prova disso.

Hoje o guerreiro menino é ele, não o Gonzaguinha, que fez a música. O enorme poeta que é

Ferreira Gullar, quando musicado por Fagner, perde sua autonomia. Aconteceu com “Traduzir-

se”, acontece com “Contigo”, onde a palavra dita é tolice, canta por isso mesmo como se

dormisse.

Reparem, das dez músicas do LP só essa e mais “Visagem”, parceria com Fausto Nilo, são

assinadas por Fagner e o Brasil todo sabe que ele é um bom compositor, mas o narcisismo bem

administrado pode gerar conclusões deste tipo. Colocou duas joias raras no disco e preferiu as

canções alheias, certo de que ser Fagner é mais importante do que ser um bom compositor. Com

essa decisão garimpou pelo menos duas maravilhas: “Sertão Azul”, de Petrúcio Maia, e

“Acalanto e Paixão”, de Nonato Luís e Capinam, e regravou um dos arquétipos da canção

brasileira, imortal, “Prelúdio para Ninar Gente Grande”, que cantou de maneira tão expressiva

que deve ter mexido também com a vaidade de Luís Vieira.

Em 1º de novembro, a Rede Manchete leva ao ar o especial Bar

Academia: Raimundo Fagner Candido Lopes, com apresentação de

Walmor Chagas, textos de Renato Sérgio e Marlene Matos, produção de

J. de Camillis. Participações especiais de Chico Buarque (em

“Contigo”), Cauby Peixoto (em “Tortura”), Zé Ramalho (em “Cavalo

Ferro”), Joanna (em “Penas do Tiê”), Ivan Lins (em “Quarto Escuro”) e

Céu da Boca (em “Vapor do Luna”).


a política
CAPÍTULO 16
Com A se escreve amor e arma

Com B se escreve bola e bala

Com C se escreve cela e casa

(“ABC”, letra de Fausto Nilo)

T em cafezinho em todas as padarias, tem cachaça em qualquer

botequim. Não há feira sem fruta, nem açougue sem carne. Não existe

mar sem onda, nem céu sem estrela. No Brasil de 1984, não havia lugar

onde Fagner não estivesse. Nas bancas de revistas, com o fascículo

“Fagner” dentro da coleção História da Música Popular Brasileira –

Grandes Compositores, da Editora Abril, acompanhado de um disco de

12 polegadas com as músicas mais famosas do compositor. A gravadora

Opus Columbia lança a coletânea Fagner 10 Anos. Na televisão,

cantando no Fantástico e embalando os amores e desamores da novela

Corpo a Corpo. No aeroporto, indo e voltando da Europa. No rádio, em

tudo que é emissora, AM ou FM.

Em março, assinou um manifesto em favor das Diretas Já para

presidente da República, a pedido de Oscar Niemeyer.

No mês seguinte, anunciou viagem para a Inglaterra, onde deveria

gravar A Mesma Pessoa, seu 11º LP. Fagner declarou, ainda, em seu

estilo de sempre:
Se os Beatles podem tocar em Orós, por que eu não posso ser
ouvido em Liverpool?

Na viagem à Europa, passou por Madri e se apresentou ao lado de

Rafael Alberti no Palácio Real, para os reis da Espanha e seus filhos.

Mercedes Sosa deveria ter ido com eles, mas não conseguiu. Quando

Fagner passou por sua casa para pegá-la, ela estava em crise, sem

condições de acompanhá-lo, em profunda depressão.

Em setembro, o disco é lançado no Brasil. Produzido por Joni

Galvão com o próprio Fagner e, como ele queria, gravado em Londres.

A música de destaque do LP é “Cartaz”, de Francisco Casaverde e

Fausto Nilo.

Foi nessa mesma época que experimentou a emoção — emoção não,

emoçãozona — de poder tocar e cantar com seu ídolo de infância, Sua

Majestade Luiz Gonzaga. Isso aconteceu no disco Danado de Bom, em

que Gonzaga cantou com artistas da nova geração. Os dois fizeram dueto

no pot-pourri “Respeita Januário/ Riacho do Navio/ Forró no Escuro”. E

não parou por aí não. Os dois acabaram gravando dois álbuns juntos

depois desse primeiro encontro.

Naquele mesmo período, Fagner se encontraria cara a cara com

outro grande ídolo do passado, o cantor Nelson Gonçalves, que em uma

entrevista à Manchete respondeu à pergunta “E esse cantor que surgiu aí,

Fagner?” com a seguinte frase bombástica: “Se esse surge na minha

época levava uma surra de vara!”

Fagner se recusou a responder a provocação, mas não digeriu o

ataque.
Quando se encontraram no aeroporto do Galeão, Nelson se dirigiu a

Fagner, que estava com Luiz Gonzaga, e lhe disse: “Desculpe, mas tudo

aquilo era cascata, é porque você está por cima.”

O cearense devolveu de bate-pronto:

Artista nordestino que levava surra de vara era na tua época, hoje
a gente está batendo.

Os dois foram interrompidos pelo filho de Nelson, que pediu

desculpas a Fagner e ainda confessou que ele era querido pela família e
que o pai já tinha sido advertido.

A partir dali ele mudou comigo, virou um paizão. Ficamos amigos


de verdade.

A intimidade chegou a tal ponto que os dois protagonizaram uma

cena surreal nas dependências da gravadora RCA. De repente, na

presença de vários artistas, Nelson começou a simular uma luta de boxe

com o cantor, que se defendeu como pôde. Nelson, lembrando seus

tempos de boxeador, foi avançando e a brincadeira foi ficando séria, a

ponto de Fagner ter que se defender: “Eu o joguei no chão. Aí ele passou

o relógio na minha cara acidentalmente e fez um corte no meu rosto, que

começou a sangrar. Paramos às gargalhadas.”

Foi uma brincadeira que ninguém entendeu, só os dois. Que cena!

O que ainda havia de acontecer naquele 1984 de muitos tapas e

poucos beijos? Um acidente. E foi no Ceará. Fagner fazia esqui aquático

no açude de Orós para gravar o clipe da música “Cartaz” quando levou

um tombo. Tombo feio. Uma séria torção no pescoço deu início a um

período de muito sofrimento. As dores fortíssimas duraram por um

tempo. Só ficou bom depois de um tratamento em São Paulo com o

doutor Nishimura, o mesmo que cuidou da coluna do presidente João

Figueiredo.

Mesmo alquebrado, acompanhava de perto a repercussão de seu

disco A Mesma Pessoa. Sobre esse trabalho, o crítico de música Tárik de

Souza escreveu no Jornal do Brasil, em 11 de outubro:

Evidentemente o atual Fagner de 34 anos, 11 LPs, não poderia ser a mesma pessoa e está

muito distante do artista imigrante inicial. Nem é o mesmo cantor. Aprendeu a explorar nuances

do seu trêmulo que lhe toma toda a cabeça em vibrações. Sabe ser coloquial quase como se

segredasse ao ouvinte em “Tiro Certeiro” ou berrar, impulsionado por guitarras de rock em “Só

Você”.

Cantor que sempre soube cercar-se de bons músicos como Hermeto Pascoal, Antonio

Adolfo, Copinha ou Dino 7 Cordas, além de revelar conterrâneos como Manassés, Nonato Luís e

o pernambucano Robertinho do Recife. De qualquer forma, para tornar mais leve seu salto para

outros mercados, é patente que Fagner atirou fora quase todo o seu lastro nordestino, abrindo

mão em boa parte da definição brasileira de sua música. Tomara que não lhe falte combustível

para seguir essa viagem de ida, já que a volta não parece preocupá-lo no momento.
O show de lançamento do disco aconteceu em São Paulo, no Palace.

Fagner estava curtindo sua maturidade e só fazia o que queria, sem ligar

para o que diziam dele.

Não sou polêmico, sou autêntico.

Ora, os críticos. Fagner nunca foi de lhes dar importância.

Esbravejava, sim, contra quem escrevia, sem discutir o possível mérito

das ponderações feitas pelos críticos. Mostrava-se sempre

olimpicamente acima de qualquer reparo. Erram os que não gostam de

tudo que faz. “Fagner não erra nunca”, disse em entrevista ao Jornal da

Tarde, de São Paulo.


Ao jornal O Globo, fez uma pequena concessão a quem o

recriminava por muito gritar em seu canto.

Passei a minha voz num esmeril. Não tenho mais que estar
berrando pra ser ouvido. Eu sou ouvido. Antes eu não queria fazer
outra coisa a não ser berrar. Hoje posso até berrar, mas não é o
mais importante. Com esse disco, A Mesma Pessoa, me vejo jogando
uma cartada decisiva num momento importantíssimo para mim
dentro da música popular brasileira. Não quero correr atrás do
sucesso lá fora. Quero que o trabalho seja bem realizado aqui no
Brasil. Essa sempre foi a minha intenção, mas nunca saiu tão
perfeito como esse disco.
O apresentador Silvio Santos, em sua coluna no jornal Notícias

Populares, tratou do show em cartaz em São Paulo, afirmando que a

mulherada havia elegido Fagner como o novo símbolo sexual da música

brasileira.

Quem diria!

Símbolo sexual é um conceito de amplíssima vastidão. Nele cabem

homens e mulheres de qualquer idade, cores variadas, nacionalidades

diferentes, formosura e personalidade, jeito de pensar, de falar, de sorrir,

de cantar e etc. e tal. Mas que era um rótulo novo para Fagner, isso era.

Há elogios que soam como música nos tímpanos de quem ouve. Nos de

Fagner ecoavam como sinfonia.

Endossando esse status de galã, o produtor e jornalista Walter Silva,

conhecido como Pica-Pau, publicou em sua coluna no final de 1985,

uma lista dos dez homens mais bonitos do Brasil, segundo Sonia Braga:

Éder (jogador), Fábio Jr., Evandro Mesquita, Fagner, Chico

Buarque, Roberto Dinamite, Falcão, Rivelino, Antonio Fagundes e

Rômulo Arantes.

Mas como nem só de beleza vive o homem, eis aqui a agenda de

shows que Fagner cumpriu no final de 1984, atestando que a fama de

artista-trabalhador é ainda mais adequada para defini-lo:

1, 2 e 3/12: Ibirapuera, São Paulo

5/12: Mineirinho, Belo Horizonte

8/12: Presidente Médici, Brasília

11/12: Rio Vermelho, Goiânia

19/12: Geraldão, Recife

22/12: Praia Leste Oeste, ao ar livre, Fortaleza

Na roda-viva da vida do cantor, uma notinha no jornal O Povo, de

Fortaleza, levanta uma suspeita:

Apesar dos desmentidos dele (somos apenas bons amigos) tudo indica que o nosso Fagner

está in love com Denise Dumont. Os dois têm sido vistos seguidamente juntos, inclusive no

Prêmio Molière. De smoking, o cearense é um dos homens mais elegantes do Brasil.


E ele ainda achava pouco! Ao fazer um balanço do ano que

terminava, afirmou ao mesmo jornal que, embora não tendo feito todas

as coisas que queria, todas as que fez tiveram eco, inclusive em si

mesmo.

O ano de 1985 começou bem para os amantes da música. Em 11 de

janeiro começava o Rock in Rio, um supershow em que tudo era gigante.

Atrações para todos os gostos musicais, cobertura de imprensa,

patrocínio da Globo, multidões a cada dia e a cada noite de espetáculo.

Tudo ao ar livre, piso de terra, chuvaradas de verão, uma depois da

outra. Resultado: plateias ensopadas e enlameadas, mas felizes. Cada

artista! Cada banda! Cada show! A festança aconteceu na antiga Cidade

do Rock, no bairro carioca de Jacarepaguá, durou dez dias e registrou

um total de 1 milhão e 380 mil espectadores, numa jornada que

consumiu cerca de 11 milhões de dólares. Quanto rendeu não se sabe,

certamente muito mais.

Entre os estrangeiros, se apresentaram Queen, Iron Maiden, George

Benson, James Taylor e Rod Stewart. Quanto aos brasileiros, estavam lá

Baby Consuelo, Rita Lee, Gilberto Gil, Moraes Moreira, Alceu Valença,

Ney Matogrosso, Elba Ramalho, Ivan Lins. E nada de Fagner. O que

aconteceu?

Não fui e não me arrependo. Eu havia combinado com o diretor do


evento de participar. O presidente da CBS, Thomaz Munhoz, já tinha
me indicado e escalado para o Rock in Rio. Eu era prioridade da
gravadora. A princípio era brincadeira e depois foi ficando sério.
Falei para o diretor: “Cara, todos os estrangeiros vão receber cachê
em dólar. Quero o meu na mesma moeda.” Depois disso, ele sumiu.
Nunca mais falou comigo sobre o Rock in Rio. Achei uma
sacanagem. Mais tarde, Ramón Segura, presidente geral da BMG,
gravadora com a qual eu tinha acabado de assinar, veio à minha
casa me perguntar o que eu achava de o diretor do Rock in Rio
presidir a BMG no Brasil. Fiquei quieto, não dei opinião e ainda
convivemos durante sua gestão sem nunca tocarmos no assunto.

Tempos depois, Fagner resolveu juntar vários artistas em seu

apartamento, no bairro do Leblon. Convocou todos eles, ou quase todos,


para uma criação coletiva. Gravar uma música composta, tocada e

cantada pelos participantes da reunião — e vários outros. Tudo por uma

causa nobre.

O Nordeste sofria com uma das piores cheias da história. Toda a

renda do disco seria destinada aos flagelados. Todos toparam, a começar

por Roberto Carlos, que foi um dos primeiros a se entusiasmar com a

ideia. O Rei naquela noite, em vez do habitual trono, teve que se

acomodar no pequeno escritório de Fagner, onde já estavam todos

apertados. A música chamou-se “Chega de Mágoa”. Também estavam

lá, no apê de Fagner, Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso e

Erasmo Carlos. Aquele passou a ser um ponto de encontro para qualquer

assunto que mobilizasse a classe artística. Frequentemente se reuniam

ali Gonzaguinha, Lobão, Paulo Coelho e outros, às vezes sem pauta, só

para curtir o som. A discoteca do anfitrião era variada.

Era um compacto simples. Foi gravado no Multistudio (RJ) e, pela

primeira vez, uma gravação reuniu cerca de setenta cantores. “Seca

d’água” foi o poema feito especialmente para a ocasião por Patativa do

Assaré, e que Fagner musicou às pressas para ocupar o outro lado do

disco.
Em julho de 1985, o cantor cearense recebeu um convite para

participar do 12º Festival Internacional da Juventude Comunista, evento

que acontecia a cada dois anos. Daquela vez, o encontro seria em

Moscou, com representantes de cinquenta países. Era a primeira vez que

o Brasil enviava uma delegação artística: 22 pessoas. Esses convites

foram feitos por José Luis Toledo.

“Levamos, de cinema, o Sílvio Tendler; como atriz, a Débora Bloch;

escritor, o Marcelo Rubens Paiva; de jornalismo, foi Belisa Ribeiro; de

música, Gonzaguinha, Fagner, Geraldo Azevedo, Joyce, Martinho da

Vila, Blitz, Manassés, Jotinha e Pascoal Meireles. Um detalhe: ninguém

ganhou cachê. De graça, apenas a viagem de avião, comida e um crachá.

Aécio Neves, bem jovem, estava também na delegação, mas na política,

ao lado de José Sarney Filho.”

Nas vésperas da segunda apresentação, os músicos reunidos para

discutir detalhes do show, toca o telefone. Havia um brasileiro preso no

aeroporto que tinha tentado entrar no país sem visto. E quem era?

Justamente o empresário Guilherme Araújo, a quem Fagner atribuiu seu

desentendimento com Caetano Veloso. Nenhuma mágoa do passado o

impediu de providenciar que Guilherme se incorporasse à delegação.

Emocionado, ele me agradeceu muito. Guilherme veio para a


nossa comitiva, virou o diretor que faltava na caravana.

Afinal, a chegada de Guilherme Araújo a Moscou resolvera um

problema imediato da comitiva. Não havia sequer um diretor artístico

para a equipe.

Durante o show, no Teatro das Crianças, vizinho ao Bolshoi,

Guilherme até serviu de iluminador e, ao terminar, apresentou Fagner a

uns russos que queriam conhecê-lo.

Os caras estavam enlouquecidos, não entendiam o que eu estava


cantando, mas ficaram loucos com o som. Eles falavam e eu não
entendia russo. O Gonzaguinha tinha um amigo que era casado com
uma russa, que virou nossa intérprete. O cara queria o quê? Fazer
um jantar para mim. Ele era gerente de um restaurante. Queria que
eu fosse à casa dele. Morava numa comunidade muito distante, mas
dizia que era perto do hotel, para me convencer. E eu fiquei
animado, porque a gente passava fome, comia-se muito mal em
Moscou.

Gonzaguinha, que presenciou a conversa, se prontificou a ir com

outro amigo que morava em Moscou para servir de intérprete. Porém, no

dia seguinte, mudou de ideia. O intérprete também não pôde ir. E o

cearense resolveu se aventurar e sair sozinho com os russos, com os

discos debaixo do braço. Pararam num lugar que parecia o subúrbio do

subúrbio e chegaram a um condomínio popular, um prediozinho simples,

sem elevador, de três andares.

Entrei em desespero quando cheguei ao condomínio: na porta


havia uma multidão me esperando, o cara era líder comunitário. Me
levaram para o terceiro andar e ele começou a botar meus discos
numa vitrola antiga, que o povo já identificou. E o povo bebendo. Eu
era a festa. E o cara começou a tomar cerveja e a música tocando, o
cara olhava para mim, dava aquele golão que esvaziava a cerveja e
jogava o casco pela janela. Uma loucura! Saquei que tinha entrado
numa fria. Então, relaxei na certeza de que eu não teria como sair
dali. Só consegui sair de lá no dia seguinte.

De volta ao Brasil após a aventura de Moscou, Fagner acabou se

envolvendo com a luta dos militantes e moradores da praia de Canoa

Quebrada contra a especulação imobiliária da época, hoje um dos mais

concorridos destinos turísticos do mundo. A seu lado, um amigo do

passado, o arquiteto Raimundo Limaverde. Foi naquele mesmo ano de

1985 que Limaverde foi convidado para desenvolver um projeto de

loteamento na Praia do Estevão, em Canoa Quebrada. A praia fica a

oitocentos metros da “Broadway” — nome carinhoso dado à rua central

de Canoa, devido à grande afluência de estrangeiros nos embalos

noturnos... A proposta era criar uma minicidade ao lado das residências

dos moradores. Mas, ao apresentar o projeto, percebeu que aquilo não

daria certo nunca. “Que fiz? Me aliei a eles para que o loteamento não

fosse implantado... Em oito meses de luta, criaram a AME CANOA

QUEBRADA – Associação dos Moradores do Estevão de Canoa

Quebrada”, conta Limaverde.


Certa manhã de domingo, num dos intervalos dos rachas de vôlei na

praia da América do Sol, Limaverde encontrou Raimundo Fagner e,

depois de relembrá-lo de que tinha sido ele que o levara de fusca para o

primeiro festival em que o cantor se saiu vitorioso, disse que precisava

de sua ajuda. Contou então toda a luta em que estava empenhado e pediu

ao amigo que promovesse um ato-show com os vários artistas que

estavam lá na praia. “Estamos pleiteando a anulação deste

empreendimento. Topas essa parada?”

Fagner resolveu entrar de cabeça naquela briga e ajudou em tudo o

que foi possível, com um show, com reuniões e, principalmente, junto ao

seu amigo, o governador Gonzaga Mota, a quem foi pedido o

tombamento da praia do Estevão, o que acabou acontecendo. Canoa

Quebrada, um dos maiores pontos turísticos do Brasil, foi a sua primeira

grande vitória política!

O 12º LP de Fagner chegou ao público sem título, somente com o

nome do artista na capa. Disco produzido por ele, Fausto Nilo, Dora

Cortez e Reinaldo Arias, e com participações especiais de Chico

Buarque (“Paroara”), Cazuza (“Contramão”) e Beth Carvalho (“Te

Esperei”). Quase simultaneamente, fez a mesma coisa em discos de

colegas. Em O Corsário do Rei, de Edu Lobo e Chico Buarque, os três

cantam “Verdadeira Embolada” (de Edu e Chico); no LP/Projeto

Especial Patativa do Assaré; e no LP Eu & Eles, do cantor Nelson

Gonçalves, fazendo uma releitura histórica de “Mucuripe”.

Não estava nada satisfeito com o descaso da CBS na divulgação de

seu último disco. O novo xodó da gravadora era o grupo RPM, liderado

pelo jovem e carismático Paulo Ricardo. Repetia a ciumeira de anos

atrás, quando deixou a Philips por julgar-se preterido pelos jovens

baianos da Tropicália. Hoje, reconhece que foi capricho.

A gravadora chegou a me oferecer um milhão de dólares para


continuar no elenco. Mesmo assim assinei em branco com a RCA
Victor quando as portas me foram abertas pelo presidente
internacional, o espanhol Rámon Segura.
No final de setembro, ao fazer um show em Brasília, no Teatro

Villa-Lobos, falou de Caetano Veloso ao Correio Braziliense. Desta vez,

muito bem. A pergunta se referia à bronca de Caetano com as emissoras

de televisão por não veicularem o videoclipe de “Chega de Mágoa”.

O Caetano é uma pessoa muito sensível, um grande sacador. Ele


viu essa coisa com muita nitidez. Concordo com ele, plenamente. O
que é mais importante não é o número de discos vendidos, mas a
ideia de solidariedade que o disco passa. O mutirão dos artistas
brasileiros, inédito no Brasil, buscava contribuir, ainda que
modestamente, para a solução de um grave problema nacional.

Tancredo Neves já havia sido eleito pelo colégio eleitoral em

novembro de 1985 quando cantores e compositores lhe entregaram um

documento com as resoluções tiradas do I Encontro da MPB, que

aconteceu em Araxá (MG). Reivindicavam, entre outras coisas, a

eliminação do fornecimento da matriz estrangeira, que entra no país

quase a custo zero. Foi a chamada “Carta de Araxá”. Para Fagner, o

encontro foi uma retomada dos direitos dos artistas e da cultura

nacional, no rumo de sua própria identidade.

Não se pode afirmar que Fagner tenha sido um militante político no

sentido estrito da palavra. Apoiou a luta contra a ditadura militar e o

movimento por eleições livres, o Diretas Já. O povo queria eleger um

novo presidente, mas a escolha ficou por conta do Congresso Nacional,

que cravou o nome de Tancredo Neves. Por trapaças do destino, este

adoeceu na véspera da posse e, em 21 de abril de 1985, morreu.

Fagner o conheceu, apoiou sua candidatura, mas seu foco na política

era mais regionalista, mais nordestino, decididamente mais cearense.

O atual senador Tasso Jereissati, por exemplo, teve seu apoio

quando se candidatou ao governo do estado em 1986.

“Fagner sempre foi muito ligado ao Ceará. Tem uma coisa muito

importante nele, muito rara de se ver num artista que nasceu aqui e

depois ganhou fama nacional. Chico Anysio, por exemplo, era cearense,

falava sempre de folclore ao redor da vida dele no Ceará, mas não voltou

para cá. O Fagner tem uma raiz, nunca largou. Montou uma rádio em

Orós, montou uma fundação. Ele vive intensamente suas raízes em todos
os sentidos, familiares, culturais etc. Fagner me ajudou muito na minha

campanha de 1986. Fez show, fez comício, trouxe amigos para fazer

show. Ele me deu uma força muito grande, não só nesse sentido, mas

também fisicamente, quer dizer, de perder tempo, de largar seus afazeres

e ir para o interior comigo, fazer campanha.”

Eleito governador, não era raro Fagner vir pedir a Tasso ajuda para

Orós. E sempre foi uma flor de pessoa?

“Claro que não. Ninguém é inteiramente uma coisa só. Fagner é um

homem de extremos. Num momento, muito carinhoso. No momento

seguinte, grosseiro. Muda da água para o vinho numa rapidez

impressionante. É um sujeito absolutamente imprevisível. Na campanha,

vinha alguém reclamar comigo do comportamento dele. No dia seguinte,

voltava dizendo que Fagner era um encanto de pessoa. Meu

relacionamento com ele sempre foi mais carinhoso que desagradável.

Felizmente! Fagner é meu irmão. Vou repetir: meu irmão.”


uma ajuda aos amigos políticos
CAPÍTULO 17
O ano de 1986 começou, para Raimundo Fagner, com uma participação

no LP/Projeto Especial Poets in New York, lançado em homenagem aos

cinquenta anos de morte do poeta Federico García Lorca, dividindo os

versos da música “A Aurora” com Chico Buarque. Ele gostava dessas

participações especiais e com satisfação gravou nos LPs de Luiz Vieira, de

Carlinhos Vergueiro, de Cauby Peixoto e de Joan Manuel Serrat, na

música “Cantares”.

Em outubro, quando completou 37 anos, lançou o 13º disco de sua

carreira, um CD só com seu nome na capa. O primeiro na RCA. As

músicas de maior destaque desse novo trabalho foram “Lua do Leblon”

(composição de Lisieux Costa e Fausto Nilo) e “Dona da Minha Cabeça”

(de Geraldo Azevedo e Fausto Nilo). Esta última, infelizmente, também

acabou lhe dando tantos dissabores que passou a não cantar mais em seus

shows, apesar de ser um grande sucesso com muita aceitação popular. O

disco contou ainda com a voz de Gonzaguinha, em “Forró do Gonzagão”,

e com a participação do maestro Isaac Karabtchevsky, em “Cantigas”.

Seis meses depois, vai ao ar, pela TV Bandeirantes, um especial sobre

Fagner com depoimentos de vários artistas.

Ferreira Gullar:

“O Fagner, além de ser o grande cantor e o grande compositor que é,

também é uma pessoa irresistível. É muito afetuoso e a minha relação de

amizade com ele nasceu basicamente em função dessa característica dele.”


Milton Nascimento:

“Eu fiquei muito feliz de ter vindo aqui ver o show do Fagner hoje e

encontrá-lo num momento muito inspirado, muito solto, muito forte, e a

rapaziada curtindo horrores. Então estou completamente satisfeito com o

sucesso do meu amigo aí.”

Chico Buarque:

“Grande amigo e muito generoso, só no futebol que ele é fominha.”

Em julho, Fagner viaja a São Paulo para participar do espetáculo

Entre Amigos, no Teatro Zácaro, show em benefício do cantor Antônio

Marcos, internado num hospital. E, em 28 de agosto, no palco da casa de

shows Saudosa Maloca, em Fortaleza, faz um espetáculo inesquecível ao

lado de Chico Buarque, e com Miúcha nos vocais de “João e Maria” e

“Olhos nos Olhos”.

O 14º disco, Romance no Deserto, é lançado em novembro pela BMG

Ariola, com tiragem inicial de duzentas mil cópias. Foi pouco... logo se

esgotaram. Outras oitocentas mil chegaram às lojas nos meses seguintes. A

produção foi de Fagner e Michael Sullivan; na direção artística, Miguel

Plopschi, com apoio de produção de Fausto Nilo, e a assistência musical

ficou a cargo de Ivair Vila Real. Disco campeão, bateu mais de um milhão

de cópias vendidas. A música “Deslizes” (de Michael Sullivan e Paulo

Massadas) foi a mais tocada.

Logo em seguida, Fagner participou do LP Sullivan & Massadas. Os

compositores reuniram vários amigos-intérpretes numa só música, “Dê

uma Chance ao Coração”, que, além dele, contou com Rosana, José

Augusto, Alcione, Sandra de Sá, Fafá de Belém, Patrícia (Marx), Joanna e

o grupo Roupa Nova.

Repararam na ficha técnica? Produção de Fagner e Michael Sullivan.

Ora, que gringo é esse? Gringo nada, Sullivan é um artista made in Brazil,

nascido em Pernambuco. Ladies and gentlemen, senhoras e senhores,

apresento-lhes Ivanildo de Souza Lima, que se iniciou na música com a

banda Renato e Seus Blue Caps, nos longínquos anos 1970, mas estourou

como cantor de grandes sucessos populares em inglês, daí a adoção desse

nome artístico encontrado depois de uma busca por nomes interessantes na


lista telefônica. Michael Sullivan fez carreira como produtor musical na

RCA. Foi lá que um belo dia nasceu o convite:

Quer produzir meu disco novo?

Trabalhar com Fagner! Michael nem dormiu aquela noite, tamanha a

alegria, a excitação — e responsabilidade.

“Fagner é um dos maiores ídolos que tenho na música. O jeito dele de

cantar, o talento de compositor, a poesia das letras. Tanto que abalou a

mim, o Brasil e o mundo. Foi maravilhoso receber o convite.”

No dia a dia das gravações, Sullivan descobriu certas particularidades

de seu ídolo: “Ele é meio ranzinza, reclama de tudo, tem dúvidas e

certezas. Acho que é da dúvida que nasce a certeza. Todo talento, todo

homem grande, de sucesso, tem dúvidas. E ele tem. A gente que produz é

que tenta acalmar e arrumar respostas e soluções. Aprendi muito com ele.

É intuitivo, inteligente, muito culto.


Fala de política, de economia, conhece tudo. É um filósofo e também

anda com um divã nas costas.”


Sullivan produziu dois discos de Fagner: Romance no Deserto e O

Quinze. Foram LPs com vendagem de três milhões de cópias. Dentro do

estúdio, revela o produtor, Fagner é perfeccionista:

“Ele grava uma música umas duzentas vezes, e é duzentas mesmo.

Duzentos canais, não é brincadeira. Ele canta pelo menos três, quatro,

cinco dias a mesma música. Depois de pronta, às vezes mixada, ele ainda

diz: quero cantar de novo. Ele canta e aí é preciso remixar tudo outra vez.”

Bem, o esforço valeu a pena. Mais de um milhão de brasileiros

compraram o LP Romance no Deserto e o sucesso da parceria se repetiu

no disco seguinte, O Quinze, que foi outro estouro de vendagem. Faz

sentido. Para usar uma linguagem tão ao gosto de Fagner, música e futebol

têm algo em comum: quando dois craques são bons de tabelinha, o

resultado é gol.

Sempre inquieto, querendo ser artilheiro em gramados nunca dantes

pisados, Fagner resolve virar ator de televisão. Aceita um convite de uma

produtora independente, depois vinculada à Rede Manchete, para

participar da minissérie A Rainha da Vida (título de uma música de Fagner

e Ferreira Gullar). A protagonista era a conterrânea Florinda Bolkan. O

cantor interpretou o padre Vitor, antigo amor da personagem de Florinda.

Foram no total 15 capítulos, exibidos em novembro e dezembro de 1987.

A minissérie abordava as desigualdades sociais, políticas e econômicas do

sertão nordestino nos tempos do coronelismo.

Foi uma experiência terrível. O que eu sofri! Nas externas, tinha


vergonha de atuar na frente daquele povão que não separava
realidade da ficção e não deixava que eu me concentrasse. Não estava
preparado para aquele ofício, mas encontrei companheiros formidáveis
como Ângela Leal, Nuno Leal Maia, Maurício do Vale, e especialmente
o grandioso Jorge Dória.

Findo o trabalho, Fagner tirou a batina e voltou ao que sabia e gostava

de fazer: música. E nada melhor que um show com as canções do disco do

momento, Romance no Deserto, ainda por cima com entrada franca, na

Casa de Cultura Candido Mendes, que estava promovendo um projeto

chamado Show do Meio-Dia, para alegrar os fãs.

Quer mais? Outra canção de Fagner virou tema de novela. “Bola de

Cristal”, composta em parceria com Fausto Nilo, tocava na abertura de


Uma Esperança no Ar. E em dezembro o cantor participou do álbum

duplo Há Sempre um Nome de Mulher, cantando “Xandusinha”, clássico

de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, gravado originalmente em 1950.

Logo em 21 de janeiro de 1988, participou do show de lançamento do

LP Fausto Nilo — 12 Letras de Sucesso, que reuniu grandes canções do

compositor na interpretação de Teti, Toninho Horta, Kátia Freitas, Nonato

Luiz, Manassés e Fernando Brant.

Em agosto, Fagner fez um grande show na quadra da Beija-Flor, em

Nilópolis, que foi condensado em 13 minutos e exibido no Fantástico.

Mais de dez mil pessoas ouviram os grandes sucessos do cantor, entre os

quais “Fanatismo”, “Noturno”, “Deslizes” e uma canção inédita na voz de

Raimundo Fagner, “Gostoso Demais”, de Dominguinhos e Nando Cordel,

música, aliás, que ele nunca gravou.

O segundo trabalho com o velho Lua, no disco Gonzagão & Fagner

vol. 2, saiu com a recriação de clássicos de Luiz Gonzaga como “ABC do

Sertão”, “Xamego”, “Noites Brasileiras”, “Juazeiro” e “Vozes da Seca”.

Mesmo tendo se apresentado em Miami em junho, Fagner volta aos

Estados Unidos em setembro, para cantar em Nova York, Boston, Newark

e Nova Jersey. O jornal Brazilian Voice destacou: “Fagner cantou e

encantou.”

Naquela ocasião, em Nova York, Fagner encontrou-se na entrada do

prédio da CBS com o líder dos Rolling Stones, o astro inglês Mick Jagger,

que se dirigia ao elevador. Alguém segurou a porta para o brasileiro, que

distribuía autógrafos, entrar. E Mick Jagger esperando. Quando já estava

no elevador, os dois não trocaram uma palavra sequer.

Eu não falava inglês e, se fosse o Paul McCartney, eu tinha me


ajoelhado.

Foi também em 1988 que Fagner começou a trabalhar por outro

político e amigo, Ciro Gomes. Na verdade, Ciro o conhecia dos anos 1970,

quando o político era estudante e fazia artesanato em couro para completar

a renda. Em 1982, Ciro já era deputado estadual e ficou amigo de Augusto

Pontes, aquele mesmo do Bar do Anísio, e acabou entrando para a turma

da qual fazia parte também Fausto Nilo. Foi aí que se aproximou de

Fagner.
“A gente jogava sinuca, o Fagner joga sinuca muito bem, enfim,

acabou virando amigo.”

Em 1988, quando fazia campanha para prefeito, Fagner o ajudou, já

que Ciro Gomes era desconhecido em Fortaleza, pois vinha de Sobral (na

verdade, nasceu em Pindamonhangaba, no estado de São Paulo). Ele conta

que o amigo cantor fez tudo para ele e nunca cobrou nada. Nunca. Zero.

Nenhum centavo. Nunquinha. E ai dele se fosse falar nesse assunto com

Fagner.

Ciro Gomes foi prefeito de Fortaleza aos 29 anos, e governador aos

32.

“Fagner é um poeta absolutamente extraordinário. Ele tem um apego à

diversidade, o que é uma coisa muito rara num artista. Tem interesse e

curiosidade por qualquer tipo de música popular que se faz no Brasil. Não

é músico de um estilo só. Veja o seu repertório: tem de tudo um pouco.

Quase ninguém no Brasil sabe, por exemplo, do trabalho social que

realiza. Faz questão de não exibir. Sabe por que gente simples gosta do

Fagner? Porque, no trato com os simples, Fagner é um deles.”

Ciro aprecia a simplicidade porque diz persegui-la. Não gosta de se

ver rodeado de seguranças. É conhecido em todo o Ceará, mas gosta de dar

umas fugidinhas, deixando a imagem de homem público para virar um

cidadão qualquer, ficar longe da política, dos políticos e da politicagem.

Certa vez, já governador, meteu-se num carro com os amigos Fagner e

Fausto Nilo e saíram os três estrada afora, com direito a banho de rio,

cachaça e sinuca nos botecos do caminho, as doces delícias do anonimato.

A estrada liga o Ceará ao Rio Grande do Norte, indo de Pereiro a São

Miguel, onde Ciro teve a maior votação em sua primeira campanha à

presidência da República. “Até cantar com o Fagner eu cantei num corinho

improvisado de um show que ele fez no caminho.”

É... só mesmo Raimundo Fagner para fazer um governador de estado

virar um mero figurante.

O ano de 1989 começa com suas participações especiais em discos

alheios. Toquinho, no LP À Sombra de um Jatobá, na música “Lindo e

Triste Brasil”; Nando Cordel, no LP Jogo de Cintura, na música “Minha

Doce Estrela”. E a CBS lança duas compilações de Raimundo Fagner:

Cartaz — Sucessos de Fagner e Presença de Fagner.


Em 6 de junho de 1989, no palco do Teatro Guararapes, em Recife, o

cantor participa de um espetáculo realizado com discípulos fiéis de Luiz

Gonzaga, como Alceu Valença, Marinês, Pinto do Acordeon,

Gonzaguinha, Dominguinhos, Joquinha Gonzaga, Waldonys e Nando

Cordel. Foi a última vez que o Velho Lua subiu num palco, sua derradeira

apresentação pública. Morreria dois meses depois, no dia 2 de agosto.

Ainda em agosto, Fagner colocaria mais uma música em novela, desta

vez na trilha sonora de Tieta: “Amor Escondido”. E também “Nossa Luz”,

canção inédita de Eduardo Dusek, na novela Que Rei Sou Eu?.

Também estreou no cinema como ator, no longa Santa Dica do Sertão,

de Carlos del Pino, rodado em Pirinópolis, Goiás. Fez o papel do poeta

Jorge de Lima, contracenando com a atriz Tânia Alves.

Logo depois, em outubro, lançou o seu 15º LP, O Quinze, o segundo

que produziu com Michael Sullivan. Nesse trabalho os destaques foram as

músicas “Retrovisor” (com Fausto Nilo), “Amor Escondido” (com Abel

Silva), “Oração de São Francisco” (Padre Irala) e quatro regravações:

“Tortura de Amor” (clássico na voz de Waldick Soriano), “As Dores do

Mundo” (de Hyldon), “Não Me Deixes Mais” (versão de Fausto Nilo para

“Ne Me Quitte Pas”, de Jacques Brel) e a releitura de “Joana Francesa”,

mais uma vez com a participação de Chico Buarque.

O final do ano foi repleto de shows: Santo André (18 de novembro);

São Paulo, no Olympia (de 23 a 26 de novembro); Campinas (29 de

novembro); novamente em São Paulo (de 1 a 3 de dezembro); e no Gallery

(5 de dezembro).

Antes que o ano acabasse, Fagner recebeu um telefonema de Cazuza,

perguntando se havia apartamento para alugar no seu prédio, no Leblon,

lugar em que mora até hoje por sinal. Já estava muito doente e queria se

mudar.

Eu disse: tem sim, no 20º andar. No dia seguinte, às sete e meia da


manhã, apareceram ele e a mãe, Lucinha. Quando chegamos, vimos
que o apartamento, que era de um gringo, tinha uma decoração
pesadíssima: móveis grandes, quadros de Velásquez, além de um baú
enorme e estranho. Ao vê-lo, Cazuza bateu de pronto: “Tá legal pra
mim, porque já me instalo aí dentro!” Todos riram, já dando meia-
volta. Fomos informados de que havia outro recém-reformado lá no
prédio. Corremos para ver: era a coisa mais linda. Ele falou: “Daqui eu
não saio.” E não saiu. Ficou alguns meses, até perto de sua morte.
reconhecimento
CAPÍTULO 18
F oi num estádio de futebol, o centenário Defensores Del Chaco, em

Assunção, Paraguai, que Fagner começou o ano de 1990. Ele já era

conhecido no país e as arquibancadas ficaram lotadas, com um público

que mais parecia uma torcida de futebol, tamanho o entusiasmo. Foi um

show inesquecível.

Ali contou com a ajuda de seu amigo e compadre Julio César

Romero Insfrán, mais conhecido como Romerito, famoso ex-jogador

paraguaio. Quando Fagner o conheceu, ele ainda jogava no Cosmos, de

Pelé. O craque paraguaio acabou indo para o Fluminense, time de

coração do cantor.

O Romerito fez uma festa para mim inesquecível e levou toda a


torcida do bairro dele, Luque, para assistir ao show que também
tinha participação de Mercedes Sosa. Contratou um ônibus para
levar seus amigos. Foi emocionante ser recebido com tanto carinho
num outro país. Era como se eu estivesse na minha casa.

Na volta ao Brasil, cantou com Chico Buarque, em Brasília, e fez

um show particular na casa do jogador Zico. Em Fortaleza, lançou o

álbum O Quinze, no Parque de Vaquejada, Clube do Vaqueiro,

inaugurando o palco que leva o seu nome.

É muita coisa. E Fagner passou praticamente todo o ano de 1990 no

Ceará, saindo apenas para cumprir a agenda de shows. Em abril, a

convite do então governador Tasso Jereissati, foi à cidade de Canindé,

maior centro de romeiros do mundo, para o lançamento do compacto

simples com as músicas “Oração de São Francisco” e “Ave Maria” (de


Gounod), que ele cantou para uma multidão. Tasso não se esquece

daquele dia e conta que nunca viu Fagner tão tocado quanto no momento

em que foi convidado para cantar em Canindé, na inauguração da praça

dos Romeiros da cidade.

“Ave Maria” de Gounod talvez seja a oração musicada mais

conhecida no mundo inteiro. Uma infinidade de artistas do canto lírico e

do canto popular já gravaram esse louvor à Virgem Maria. Detalhe: em

latim. “Oração a São Francisco” é um dos mais belos poemas do

cristianismo. Fala de amor em cada verso. Amor em seu sentido mais

amplo e generoso. A missa foi celebrada por Dom Helder Câmara e

Dom Aloísio Lorscheider.

É de se imaginar a comoção daquela gente simples ao ouvir essas

preces na voz poderosa de seu ídolo, ao vivo. E, depois, ouvir de novo,

quantas vezes quisesse, em gravação. Sim, porque, no fim do show, dez

mil compactos com as duas músicas foram distribuídos gratuitamente

para o povo da cidade. Fagner em feitio de oração.

Em 18 de agosto, durante o Prêmio Sharp de Música Popular,

Fagner arrasou. Ganhou como Melhor Cantor do Ano. Em cerimônia no

Hotel Nacional do Rio, os prêmios não pararam de chegar. Na categoria

Canção Popular, Lincoln Olivetti foi escolhido o Melhor Arranjador pelo

álbum O Quinze, também escolhido Melhor Disco do Ano. Ainda por

cima, o prêmio de Melhor Música foi para “Amor Escondido” (de

Fagner e Abel Silva). Não parou aí. Raimundo Fagner ainda faturou o

prêmio de Melhor Disco Regional, com o álbum Gonzagão & Fagner

vol. 2.
Ainda naquele ano, o artista fez uma participação no LP Luizinho de

Gonzaga, do cantor e compositor Gonzaguinha, na música “Asa

Branca”. Depois da morte de Gonzagão, seu filho e Fagner se

aproximaram bastante. Tanto que ele o convidou para batizar sua caçula,

Mariana. A amizade acabou nas curvas de uma estrada no Paraná, onde

Gonzaguinha morreu, cerca de um ano depois, em 19 de abril de 1991.

Em 30 de janeiro de 1991, na reabertura do Theatro José de

Alencar, em Fortaleza, aconteceu o espetáculo Raimundo & Nonato. Um

encontro inusitado do cantor com o grande violonista cearense Nonato

Luiz. No roteiro, valorizaram os clássicos de seresta “Serenata do

Adeus” e “Chão de Estrelas”, além de algumas músicas até então

inéditas, como “Outra Estória” e “Baú de Brinquedos” (parcerias de

Nonato Luiz com Abel Silva) e “Primeiro Encanto” (de Walter Santos).

Nonato Luiz desfilou algumas de suas principais obras, como

“Mosaico”, “Choro Acadêmico”, “Contemplação” e “Mourisca”. Fagner

relembra sua relação com Nonato e como foi aquele show:


Era a reinauguração do Theatro José de Alencar, que é um marco
da nossa cidade. Ensaiamos exaustivamente durante uns dois
meses pensando em fazer várias outras apresentações. Não passou
desse único show. Eu e Nonato não parávamos de tocar. Ele é um
cara que não larga o violão e eu também.

Ainda em junho, realizou um sonho de infância. Subiu no mesmo

palco do Theatro José de Alencar, em Fortaleza, para cantar com Silvio

Caldas, o Caboclinho, que ele considera o maior de todos os seresteiros

do Brasil. Acompanhados pelos violonistas Voltaire Sá e Nonato Luiz,

Raimundo Fagner e Silvio Caldas desfilaram serenatas, marchinhas de

Carnaval e outros clássicos da música popular, como “Serenata”,

“Suburbana”, “As Rosas Não Falam” e “Cidade Maravilhosa”.

Não me perdoo por não ter deixado registrado em áudio ou


imagem esse encontro raro com um artista que já estava se
despedindo dos palcos e que viria a engrandecer meu currículo:
Silvio Caldas. Gravei com Cauby, com Agnaldo, com Nelson, com
Ângela Maria. Ficou faltando o Silvio, que pena! Ele era um mito. Só
estar próximo a ele era uma realização pessoal. Jamais imaginei que
isso pudesse acontecer comigo. Era o maior ídolo do meu irmão
Fares, também seresteiro e muito exigente.
Em setembro de 1991 saiu Pedras que Cantam, pela BMG, com

produção e direção musical de Raimundo Fagner. Destaque para as


músicas “Borbulhas de Amor” (de José Luís Guerra, em versão de

Ferreira Gullar), “Pedras que Cantam” (de Dominguinhos e Fausto Nilo)

e “Cabecinha no Ombro” (de Paulo Borges) e para as participações

especiais do grupo Roupa Nova e da cantora sertaneja Roberta Miranda.

Roberto Carlos pretendia gravar “Borbulhas de Amor”, mas Fagner o fez

antes. A música foi e ainda é um sucesso estrondoso na carreira do

cantor, uma das mais executadas durante anos em todo o país.

Com versões de Julio Lacarra, foi lançado em outubro, na

Argentina, o segundo LP de Raimundo Fagner em espanhol, alavancado

pelo estrondoso sucesso da música “Deslizes” naquele país. A gravadora

BMG utilizou os mesmos fonogramas dos discos originais,

acrescentando somente a voz de Fagner. Resultado: o trabalho tornou-se

um sucesso em toda a América Latina.

Nesse finzinho de ano, Fagner participa ainda do disco para o

projeto Uma Canção para a Amazônia, em homenagem a Chico

Mendes, assassinado em janeiro de 1989.

O show do disco recém-lançado, Pedras que Cantam, foi

apresentado numa temporada no Olympia, em São Paulo, no mês de

novembro, e em dezembro em Belém. Em 25 de dezembro, dia de Natal,

participou do especial de Roberto Carlos, Viva a Luz. Cantaram juntos

“Mucuripe”, com Fagner muito chique num smoking e de cabelos

curtos, cortados naquela mesma tarde, entre o ensaio e a apresentação, o

que deixou Roberto perplexo. Para terminar 1991, é escolhido o Melhor

Cantor do Ano, desta vez pela Rádio Globo.


No primeiro dia do novo ano, Raimundo Fagner estava novamente

em Fortaleza para a reinauguração da praça do Ferreira — quinta

reforma em quase 150 anos de existência. Cantou “Lua do Leblon” ao


lado de Fausto Nilo, parceiro, arquiteto e autor do novo projeto da praça,

e “Meu Primeiro Amor”, com Ayla Maria, a eterna voz de ouro do

Ceará.

Em seguida, foi para a Argentina e se apresentou ao lado do

compositor Victor Heredia e também da cantora Mercedes Sosa.

Foi um encontro único. Nunca esqueci da reação da plateia


naquele show. Quando subi no palco, o público não parava de
aplaudir de pé e eu não tinha como começar a cantar. Isso demorou
muito tempo e eu fiquei sem graça. Nunca tinha visto uma cena
daquelas.

Fevereiro ainda não tinha acabado, mas Fagner já estava fazendo

show em Orós, apresentado por Tom Cavalcanti. Tom e Fagner se

conheceram quando ambos participavam dos comícios de Tasso

Jereissati para eleger-se governador do Ceará. Tom queria mais, uma

plateia maior, do tamanho do Brasil. Procurou o conterrâneo Chico

Anysio, que acenou com várias promessas, nenhuma cumprida. O tempo

ia passando e... nada. Aí resolveu procurar Fagner.

“Ele me recebeu em casa, fomos estreitando a amizade, ele virou

uma espécie de tutor meu. Dava conselhos, sua palavra de ordem era:

‘Vá pra cima, meu irmão.’”

Até o seu empresário na época, Eriberto Leão, foi indicado por

Fagner. Mas a convivência dos amigos, claro, não era só um mar de

rosas.

“Quando Fagner quer uma coisa, tem que ser atendido na hora. Não

aceita um não como resposta. Quando eu dizia, a gente brigava. É o jeito

Fagner de ser. Ele diz que quem não briga com ele não é seu amigo.

Então posso dizer que sou amigo dele e compadre, já que é padrinho da

Antônia.”

Tom e Fagner viajaram muito juntos. Fizeram showmícios. Na

campanha de Mário Covas andaram por dez estados. Tom apresentava e

Fagner cantava. Mas e aí, Tom, essa amizade de tapas e beijos rendeu

alguma coisa? Você conseguiu aparecer na telinha da Globo?

“Custou, mas aconteceu. Chico Anysio me chamou para trabalhar

na Escolinha do Professor Raimundo.”


Nada como um Raimundo depois do outro.

Enquanto Tom começava a brilhar na telinha, Fagner emplacava três

sucessos em trilhas sonoras de novelas. Aliás, pela primeira vez uma

novela incluía duas músicas interpretadas por Fagner em sua trilha

sonora: “Pedras que Cantam” foi o tema da abertura de Pedra sobre

Pedra, que também tocava “Cabecinha no Ombro”, com a participação

de Roberta Miranda. Ao mesmo tempo que a Rede Globo prendia o

telespectador com Pedra sobre Pedra, a TV Manchete exibia Amazônia.

Na trilha sonora, mais uma participação de Raimundo Fagner com a

música “Somos Todos Índios”. Também estava na trilha sonora da

minissérie Tereza Batista, baseada no romance de Jorge Amado e

exibida na Globo, no horário das 22 horas, com a música “Verso de

Bolero” (de Danilo Caymmi e Dudu Falcão). Fora da TV, entra no CD

Viva Cazuza com a música “Completamente Blue”. Faltava alguém na

lista dos grandes cantores da MPB que Fagner não tivesse acompanhado

no palco ou num disco? Faltava. Altemar Dutra. Mas ele já havia

morrido. Dá-se um jeito. Afinal, para que serve a tecnologia? Graças a

ela, foi possível reunir, em dueto, o falecido Altemar e Fagner na música

“Sentimental Demais”. Esta era sua canção preferida do repertório de

Altemar Dutra, a que ele mais cantava nas suas serestas pelas noites

boêmias de Fortaleza.

No Dia das Mães de 1992, dona Chiquinha dá uma entrevista ao

jornal O Povo, de Fortaleza, falando do filho famoso. Ser mãe de um

artista tão conhecido não mudou sua rotina, conta ela. “Apesar do

grande sucesso do Raimundo, para mim todos os meus filhos são

famosos.” Como todas as outras mães brasileiras, ela também seria

homenageada naquele dia, e, apesar de estar viajando, Fagner já havia

mandado um presente e com certeza, de onde estivesse, ligaria para ela.

Casada havia quase sessenta anos com José Fares Lopes, então com

noventa anos, dona Chiquinha contou que quase ficou louca quando o

filho largou a faculdade de Arquitetura para se dedicar à música... Agora

que ele era famoso ela havia esquecido o sofrimento daquela época, mas

ainda se lembrava do primeiro show dele a que assistiu. Sobre as suas

canções, não tinha nenhuma predileta, apesar de gostar mais das

românticas e dizer que “Mucuripe” era especial, por ter sido o seu

primeiro sucesso em nível nacional.


Confessando não ser uma mãe agarrada com os filhos, dona

Chiquinha declarou que Fagner não era muito carinhoso, mas, quando

estava em casa, tinha o hábito de tomar a bênção antes de dormir. “Criei

meus filhos na época em que as crianças rezavam e tomavam a bênção

aos pais todas as noites. Hoje, as netas que moram comigo não fazem

mais isso”, comentou a matriarca da família Lopes, que mesmo com

idade avançada tinha saúde e lucidez suficientes para administrar sua

casa e educar as duas netas que criava desde a morte de sua filha Elizete,

13 anos antes.

Dos quatro filhos de dona Chiquinha e seu Fares, somente Marta e o

caçula Fagner não nasceram em Orós, como o cantor alardeia por todo o

Brasil. Como já registramos, ela confirmou: “O Raimundo nasceu em

Fortaleza, na Floriano Peixoto, 1.779”, revelou ela, “mas passava todas

as férias em Orós, onde mora grande parte da família da minha mãe.

Além disso, seu registro de nascimento foi feito em um cartório de

Orós”.

Quanto ao lado musical de Fagner, dona Chiquinha garantiu que era

uma herança da sua família, pois seus irmãos e sobrinhos ainda

animavam as noites de Orós tocando acordeão e violão. Contou também

que, dos seus quatro filhos, Fagner não era o único que tinha herdado o

lado musical. “A Marta canta e toca piano e o Fares tem uma voz muito

mais bonita que a do Raimundo.”

Ainda em maio de 1992, o jornalista Tárik de Souza publica notícia

sobre as vendagens de Fagner. Em plena crise, o disco Pedras que

Cantam aproximava-se das 580 mil cópias vendidas.

Nos trabalhos anteriores, os resultados foram:

Fagner (1986) – 240 mil

Romance no Deserto (1987) – 800 mil

O Quinze (1989) – 490 mil

Fagner não concorda muito com os números.

Estou certo de que sempre vendi mais do que se diz. Mas quero
deixar registrada a minha insatisfação, porque tenho sido lesado
desde meus primeiros discos. Artista não tem controle sobre os
ganhos das gravadoras gananciosas.
Na quinta edição do Prêmio Sharp de Música Popular, no Rio de

Janeiro, em homenagem a Luiz Gonzaga, Fagner recebe o prêmio da

categoria Melhor Canção Popular por “Pedras Que Cantam” (de

Dominguinhos e Fausto Nilo).

De janeiro a outubro de 1992, Pedras que Cantam ocupou o

primeiro lugar na lista dos dez discos mais vendidos em todo o país. O

amigo Ronaldo Bôscoli foi assistir ao show de Fagner no Canecão e

escreveu no Jornal do Brasil:

“Ninguém amadureceu tanto num palco como Fagner. Comanda seu

rebanho como um simpático pastor. Simpático, porém decidido. A

primeira parte do show é — ao contrário do que deveria ser — a mais

densa, a mais sofisticada. Depois ele ‘concede’ cantar alguns sucessos e,

no bloco final, volta às suas raízes. É tão forte seu desempenho que a

gente sente cheiro de suor e terra molhada.”

Fagner tem saudade do amigo e padrinho, que morreu em novembro

de 1994. Diz nunca ter esquecido a frase/desabafo que dele ouviu: “Não

posso mais lhe dar conselho algum, porque tudo que eu digo para você

não fazer, você faz e dá certo.”

Fagner cansou de ouvir, ao longo da carreira, comentários e

tentativas de definição de seu jeito de cantar.

Alguém disse que minha voz era metálica demais, gritante. Só


que eu faço isso de propósito. Quero que minha voz seja diferente,
não soe piegas ou macia. Tenho o sangue flamenco, espanhol e
nordestino, não dá para ser uma coisa doce e meiga. E meu público
gosta dela assim e é isso que me importa. Chegaram a dizer que
minha voz era a encarnação do desespero do jovem nordestino.

Foi também nesse começo dos anos 1990 que Fagner conheceu

Lilibeth Monteiro de Carvalho, moça da alta sociedade carioca, que hoje

trabalha na empresa da família, no escritório do grupo Monteiro Aranha.

A boataria correu solta: os dois estão namorando.

“Alina Bulcão, irmã de Florinda, passou em casa, me apresentou o

Fagner e saímos para jantar. Nunca mais a gente se separou, até hoje. Ele

é de uma inteligência extremamente rápida e é muito engraçado. É


brabo, né, muito brabo, superbravo, mas uma pessoa diferente, a palavra

é essa, ele é tão diferente!”

Lilibeth não esconde que adora Fagner incondicionalmente. “Ele

não tem censura. Não tem censura e não tem limite.”

E o namoro, rolou ou não rolou?

“A gente teve um ensaio de namoro. Não foi adiante porque ele

quase não parava no Rio. Só vinha pro Rio mesmo pra fazer show ou de

passagem. A vida dele era muito mais Fortaleza. Sou muito grata ao

Fagner. Quando eu o conheci, estava acabando meu casamento com

Fernando Collor, um mês depois. Uma época difícil para mim, pior para

os meus filhos.”

Certa noite, Lilibeth e seus pais foram assistir a um show de Fagner

e depois jantar no Hippopotamus, a casa noturna mais badalada no Rio.

Um fotógrafo flagrou o momento em que Fagner segurou sua mão e

pronto, saiu no jornal que estavam namorando. Ela ligou para contar e

ele lhe disse:

Quer saber de uma coisa? É muito melhor você estar me


namorando do que ser ex-mulher do Collor, deixa falarem sim!

Certa vez, em viagem a Limoeiro, interior do Ceará, um radialista

os anunciou assim: “E agora chegando Raimundo Fagner com a sua

noiva Lady Beth.” Lilibeth não perdeu a piada; virou-se para o cantor e

disse: “Está vendo? O Roberto Carlos tem a Lady Laura e você tem a

Lady Beth!”

E acrescenta: “Era eu e aqueles quinhentos amigos dele, aqueles

malucos todos. Raramente Fagner está sozinho, muito raramente. Ele

tem um coração enorme, mas demonstrar afeto é uma dificuldade. E o

Pessoal do Ceará é muito assim. Lá em casa só trabalham cearenses.

Não conseguem demonstrar afetividade e, quando demonstram, é através

de uma respostinha, ou uma piadinha.”

Outra característica de Fagner que a amiga destaca é que ele está

sempre rodeado de homens.

“Na turma dele, quase não tem uma mulher, amigas. Eu acho que

sou a única mulher que sai com ele, vai para os bares com ele. E sou o
oposto do Raimundo. Não falo mal de ninguém, sou incapaz de levantar

a voz, você pode dizer horrores para mim que vou ficar parada, olhando.

Nos gostamos, de quebra eu amo o Nordeste, amo. Adoro o Ceará. Os

grandes amigos que eu tenho hoje vieram por intermédio do Raimundo.”

Amigos, amigos e amigos. Fagner é um colecionador de amigos.

Pode ser rico ou pobre, intelectual ou iletrado. Tanto faz.

Aceita um cafezinho? Quem oferece é Raimundo Fagner. Na

televisão, o convite é feito a telespectadores do Ceará, Maranhão e

Pernambuco. Só eles tiveram a chance de ver o garoto-propaganda do

Café Santa Clara, hoje comercializado pelo grupo Três Corações. Apesar

de o nome lembrar a cidade natal de Pelé, no sul de Minas, a empresa

tem origem na cidade de São Miguel, no Rio Grande do Norte, como

seus donos, os irmãos Pedro Lima, Paulo e Vicente. Lá no começo dos

anos 1980, foi deles a ideia de fazer a empresa no Ceará, que estava se

desenvolvendo mais que o estado deles, e procuraram Raimundo para

usar sua figura e sua voz e assim tornar conhecida a marca do café que

produziam. Deu tão certo que são parceiros até hoje. Parceiros e amigos.

Tem até muita gente que pensa que Fagner é dono da empresa, mas ele

apenas participou de sua fundação.

Fagner passava credibilidade. Os anúncios sucessivos alavancaram

as vendas do café. Os laços entre ele e os irmãos Lima se transformaram

numa relação de respeito mútuo e de afeto profundo. As duas famílias se

uniram, cada uma se fazendo presente nos bons e maus momentos. “Eu

e meus irmãos amamos e respeitamos Fagner como um irmão mais

velho”, sintetiza Pedro. A recíproca é muito verdadeira. Fagner e os

irmãos Lima estão sempre juntos, especialmente no projeto da

Fundação, em que são os parceiros mais importantes.


um produtor dedicado
CAPÍTULO 19
F agner abriu o ano de 1993 mais uma vez em cima do palco. Foi o

show Pedras que Cantam, realizado em 2 de janeiro no Parque

Ecológico do Rio Cocó, em Fortaleza, dentro do programa Verão Vivo,

comandado por Luciano do Valle e promovido pela Rede Bandeirantes

de Televisão, e pela primeira vez com transmissão ao vivo para todo o

país. Para um público de aproximadamente sessenta mil pessoas,

Raimundo Fagner cantou sucessos como “Riacho do Navio”, “Tudo Está

Contigo”, “Asa Branca”, “Canteiros”, “Revelação”, “Noturno”,

“Borbulhas de Amor”, “Deslizes” e “Pedras Que Cantam”. Quatro

meses depois, colocou na praça um novo CD, Demais, com produção de

Roberto Menescal. Um reencontro que levou vinte anos para acontecer.

Menescal era o diretor e produtor da gravadora Philips na época da

briga com Fagner, mas isso tinha ficado para trás. Segundo o cantor, os

dois tinham amadurecido com o tempo.

Daquela vez a sintonia foi total, em menos de um mês o disco


ficou pronto. Uma beleza: arranjos fantásticos, tudo muito bem
azeitadinho. Foi o Menescal quem me ensinou a produzir discos me
carregando pelos estúdios como seu assistente. Um mestre e tanto!

Roberto Menescal diz que o trabalho transcorreu na maior

tranquilidade. “Não tivemos nenhum problema, nenhum. Ele estava

numa fase muito boa. Fiquei até surpreso.”

Décimo sétimo disco de Raimundo Fagner, Demais, para a BMG,

não é um disco de carreira. É um projeto surpreendente de intérprete, em

que o artista resgata clássicos da música popular brasileira, obras-primas


de compositores geniais, e que surpreendentemente se tornou um

sucesso popular, que nunca saiu de catálogo.

O lançamento do disco em show foi em junho, no Golden Room do

Copacabana Palace Hotel, no Rio de Janeiro, com muitos convidados,

como Tasso Jereissati, Ciro Gomes, Elke Maravilha, Elba Ramalho e

Lobão. Para o público em geral, houve um outro show mais popular, no

Canecão. Depois, seguiu em turnê pelo país.

A popularidade de Fagner era tão grande que seus amigos da

política, Ciro e Tasso, começaram a especular. Está aí um cara que pode

ganhar votos no Ceará inteiro. Popular que nem ele, só o Renato Aragão.

Será que topa disputar a Prefeitura de Fortaleza pelo PSDB? Não tinha

anunciado seu desejo de voltar a morar em Fortaleza? Pois então, que

volte como prefeito da capital, com Ciro Gomes disputando o governo

do estado. Uma tabelinha para ganhar a eleição de goleada. Só que a

famosa mosca azul do poder jamais pairou sobre a cabeça de Fagner.

Recebi convites, sim, para entrar na política, mas sempre deixei


claro que esse não era o meu desejo. Preferia os bastidores, que já
me tomavam muito tempo. As campanhas de que participei
atrasaram muito a minha carreira. Por um lado foi bom, pude ter
contato com uma realidade que eu não conhecia. Valeu.
Em agosto, viajou a Portugal para apresentar o show Caboclo

Sonhador, título do disco lançado em 1994. O espetáculo percorreu

várias cidades portuguesas, mostrando aos patrícios esse trabalho mais

voltado para as suas raízes nordestinas.

As participações especiais em discos alheios continuavam: no CD

João Batista do Vale, do cantor e compositor maranhense João do Vale,


com a música “Na Asa do Vento”; no CD Som da Terra, da dupla

mineira Pena Branca e Xavantinho, com uma releitura de “Penas do

Tiê”. O disco foi produzido por Fernando Faro, Chico Buarque e o

próprio Fagner.

Se todo artista tem que ir aonde o povo está, como diz a canção de

Milton Nascimento e Fernando Brant, e se Fagner tem uma legião de fãs

no Japão, é para lá que ele voou em outubro de 1993. Fez um show em

Tóquio e lançou um CD com gravação ao vivo e participação de

Menescal e Zico, que, aliás, jogava no Kashima e colocou o Japão no

mapa do mundo do futebol. O disco, Uma Noite Demais, não saiu no

Brasil. O público-alvo eram os admiradores espalhados Oriente adentro

e mundo afora.

Fagner começa o ano de 1995 de férias em Fortaleza, numa

temporada programada para muito descanso, bate-bola com amigos e, o

melhor, outro show no Clube do Vaqueiro. Na verdade, foi mais uma

festa para aproveitar o bom momento em Fortaleza. Era um show de

entressafra que marcou o fim de um trabalho e o início de outro (ele

estava gravando um disco em segredo), reunindo novos e velhos

sucessos, músicos amigos e muita coisa do último disco, que resgatava a

música nordestina. Apesar da promessa de descanso, também inaugura o

Centro de Convenções do Hotel Praia das Fontes, em Beberibe, Ceará,

acompanhado do violonista Nonato Luiz e do humorista Falcão, ainda

desconhecido do grande público.

Um show hilário aconteceu no Congresso Nacional do Judiciário,

em Fortaleza, quando Fagner lançou o cantor e compositor Falcão em

grande estilo. Desde o início, este último se apresenta como uma figura

extravagante, tanto no vestir como no cantar. Sempre parecendo disposto

a desconstruir e fazer o povo dar risadas. Fagner relembra o

acontecimento:

Realmente foi um negócio assim bizarro demais, muita gente se


levantou na hora e foi embora. Algumas autoridades, chocadas com
o ineditismo e as sacanagens, também saíram. Ninguém esperava
por aquilo. Ele subiu ao palco no ambiente mais careta possível. Foi
um deboche total. Mas 99% do público que estava lá não arredou
pé, foi um sucesso. Momento surreal.

Já Falcão lembra-se que, quando resolveu convidar Fagner para

cantar em seu disco, ele disse que queria produzir o LP, mas não

precisava participar dele, não queria cantar uma sacanagem daquelas.

“Fizemos o primeiro disco e aí foi uma coisa louca, porque foi quando

eu comecei a conhecê-lo realmente. Ele é um líder, ele é o cara. Tanto

que me levou para a BMG.”

Fagner produziu três discos de Falcão na BMG com Robertinho do

Recife, que, na sequência, também produziu um disco seu.

Em julho de 1995, sai o disco Retrato com músicas como “Acorda,

Sorri” (de Petrúcio Maia e Brandão), “Toque a Madeira” (também de

Petrúcio Maia em parceria com Abel Silva) e “Rubi Grená” (de Nonato

Luiz e Sérgio Natureza). Merecem destaque ainda as músicas

“Distância” (Fagner e Guilherme de Brito), “O Amor Riu de Mim”

(Altay Veloso) e “Baião da Rua” (Nonato Luiz e Fausto Nilo). No mês

de outubro, ele apresenta o show Retrato no Olympia, de São Paulo, e no

Canecão, do Rio.

Mas a maior tristeza de 1995 veio com a morte do pai, José Fares,

uma pessoa de imensa influência em sua vida e carreira. Ele morreu

dormindo, aos 94 anos. Foi uma perda muito sofrida para Raimundo,

que estava no Rio e revela que teve um pressentimento ruim.

Fui dormir bem tarde da madrugada sem hora para acordar. Em


pouco tempo, me levantei da cama com uma sensação estranha e
fui conferir uma chamada na secretária eletrônica. Era meu irmão
Fares dando a notícia do falecimento do nosso pai.

No ano seguinte, já refeito, Fagner lança novo disco, Bateu Saudade,

voltando às origens e reunindo alguns dos principais temas do

cancioneiro nordestino numa compilação de forrós e baiões

anteriormente lançados em seus discos de carreira. De inédita, apenas a

música-título do disco, de autoria de João Lyra e Paulo César Pinheiro.

Em fevereiro, um jornalista de O Povo pergunta se ele não ficava

cansado por fazer tantos shows, tantos discos. Fagner não hesita em
responder:

A satisfação que sinto no palco e no estúdio compensa qualquer


cansaço. Muitas vezes você se cansa de determinadas rotinas de
promoção, que se repetem. Já conheço o caminho das pedras;
quando não quero, me afasto. Também procuro dar força ao trabalho
dos outros e fazer um bom disco. Esse último, Retrato, teve uma
crítica legal, até me surpreendi.

Voltam também a lhe perguntar sobre sua falta de ambições

políticas.

O meu interesse é de lutar pelo Orós e pelo interior, onde as


pessoas são muito humildes, não sabem a quem recorrer. A gente
ainda está com uma geração política que não tem peso nenhum. No
próprio PSDB, que é um partido forte, mais consciente, tem muita
gente fraca. Se um dia resolvesse entrar para a política, gostaria de
trabalhar num lugar pequeno, como Orós. Jamais sonhei ser prefeito
de uma cidade grande como Fortaleza, cheia de problemas.

No mês de maio, apresenta-se ao lado de Ângela Maria no especial

de lançamento do CD Amigos, exibido na Rede Globo, cantando “Lábios

de Mel”.

Já em junho, volta à Argentina para o show Astor Tango, em

homenagem a Astor Piazzolla, cantando os clássicos “Balada de un

Loco” e “Vuelvo al Sur”, com a presença do poeta Fernando Solanas.

No final do mês, apresenta-se nos festejos de São João, na conhecida

casa de shows Spazio, em João Pessoa, ao lado da banda Chiclete com

Banana.

Em outubro do mesmo ano, Fagner lançou mais um disco de

carreira, intitulado Pecado Verde, embora na capa conste somente o

nome do cantor. Trata-se de uma produção de José Milton e Raimundo

Fagner, arranjos de Chico de Moraes, Cristovão Bastos e Eduardo Souto

Neto. É praticamente um disco de intérprete. Das 11 músicas, Fagner

divide uma parceria com Fausto Nilo (“Pecado Verde”) e outra com

Abel Silva (“Pra Quem Não Tem Amor”). Destacam-se ainda as músicas
“Volto ao Sul” e uma tradução para “Un Vestido y Un Amor”, de Fito

Paez.

Valeu a pena o trabalho. O resultado é um disco maduro, com


arranjos de qualidade desses grandes maestros brasileiros.

As ilustrações do encarte foram feitas pelo próprio Fagner, em 1975.

São quadros que ficaram guardados durante muitos anos e que quase

ninguém tinha visto.

Eles são bem amadores. Coisa simples. Feitos com nanquim


misturado à tinta.

A foto da capa foi tirada na varanda da sua casa em Orós. A

cidadezinha, a quatrocentos quilômetros de Fortaleza, é para onde ele

vai quando quer paz.

Lá é tranquilo e, como em toda cidade do interior, se conhece


todo mundo.

Foi seu vigésimo LP e, naquele momento, poderia parecer o último.

Na foto, Fagner aparece de costas, como se estivesse dando adeus à

carreira.

Mas, dono de uma energia impressionante e de uma criatividade

inesgotável, o artista nunca quis realmente saber desse negócio de tirar

férias, sumir do mapa, dar um tempo, recarregar baterias. A eletricidade

que alimenta seu cérebro nunca desliga. As pilhas ocultas em seu violão

jamais se acabam.

O ímpeto de parar foi embora tão depressa quanto veio: logo ele

estava no Teatro Palace, de São Paulo, com o show Pecado Verde.


Depois de três anos ausente dos palcos paulistas, Fagner apresenta-

se acompanhado de uma orquestra composta por oito violinos, dois

cellos e duas violas, além da banda de base que o segue por todo lado.

Do trabalho mais recente, canta “Pra Quem Não Tem Amor”, “Un

Vestido y Un Amor”, “Mucuripe”, “Letras Negras” e “Autonomia”. Das

canções antigas, mostra apenas três: “Borbulhas de Amor”, “Deslizes” e

“Canteiros”. Esse show foi exibido pela Rede Bandeirantes em 23 de

dezembro, mês em que, com a participação do mestre Dominguinhos, o

cantor fez o espetáculo de abertura da XI Reunião de Cúpula do

Conselho do Mercado Comum do Sul (Mercosul), no Ideal Clube, em

Fortaleza, com a presença de presidentes de vários países da América

Latina, além, é claro, do presidente Fernando Henrique Cardoso, do

Brasil.
Em 1997, Fagner participa do CD Pela Saudade Que Me Invade, da

cantora Ângela Maria, cantando a música “Que Será” (Mário Rossi e

Marino Pinto). Em 6 de junho, realiza-se em Fortaleza o VII Cine

Ceará, no cinema São Luiz, na época do lançamento da Lei Jereissati de

incentivo ao cinema brasileiro, com a presença de um grande número de

artistas famosos. Na abertura, que teria a exibição do filme O Sertão das

Memórias, do diretor cearense José Araújo, Fagner apresenta um show

com o percussionista Naná Vasconcelos.

O disco desse ano, seu 21º álbum solo, recebeu o título Terral.

Lançado inicialmente no Ceará, o trabalho evoca o nome da canção mais

famosa de Ednardo, gravada por ele em 1973. Foi uma produção de

Alfredo Moura, Rildo Hora, Fagner e Robertinho de Recife, com direção

artística de Jorge Davidson para a BGM Ariola.

O produtor José Milton, velho conhecido de Fagner, já havia

produzido grandes nomes da MPB, de Chico Buarque a Dominguinhos.

Seu primeiro contato com Raimundo foi em meados dos anos 1970, e os

dois começaram uma relação artística quando ele foi convidado para

cantar “Mucuripe” com Nelson Gonçalves num disco que estava sendo

gravado sob sua responsabilidade.

“Produzi quatro álbuns dele, sendo dois duplos. Todos muito bons e,

posso dizer, também comercialmente. Entre eles, destaco o disco de

duetos com grandes amigos da música: Amigos e Canções. Produzi

também com ele três DVDs: Me Leve, Amigos e Canções e Fagner ao

Vivo. Todos muito bons. Raimundo se comporta muito bem no estúdio,

pois também é bom produtor. Ouve não só a mim como também os

músicos e técnicos que trabalham conosco. É aquele amigo irmão que a

vida nos dá. Uma grande pessoa. Amigo dos amigos, sincero, não faz

média com ninguém, diz o que acha na boa. Ter um amigo como

Raimundo é um grande presente da vida.”

Pouco depois, Fagner participa do CD Dominguinhos &

Convidados, homenagem do compositor a Luiz Gonzaga, reunindo

Chico Buarque, Tânia Alves, Zé Ramalho, Guadalupe, Ivan Lins, Elba

Ramalho, Alceu Valença e outros. Dominguinhos e Fagner apresentam

“De Terezina a São Luís” (João do Vale e Helena Gonzaga).

Fagner passou praticamente todo o ano de 1997 no Ceará. No dia 28

de novembro, na praça do Ferreira, em Fortaleza, três nomes da música


cearense — Ednardo, Belchior e Fagner — se apresentaram para mais

de vinte mil pessoas, uma plateia ao ar livre, como parte da Festa da

Luz, evento que marcou a abertura do Natal na cidade. Fagner explica

que foi o idealizador do encontro:

Tinha um sonho de fazer um disco com os três. Foi na época do


grande encontro dos paraibanos com os pernambucanos. Fui
convidado por Zé Ramalho e Robertinho, junto com a gravadora,
para substituir o Alceu. Mas não aceitei e vi que era hora de apostar
num projeto com meus parceiros do Ceará. Aproveitei esse convite
para fazer a Festa da Luz e chamei Belchior e Ednardo, na esperança
de que desse certo. Mas a tentativa foi frustrante. Não rolou. Até
porque eu não sabia que eles eram brigados judicialmente e isso
refletiu na convivência. Na entrevista coletiva, o Belchior não
apareceu. Com minha molecagem, peguei uma cartolina, fiz um
desenho de uma pessoa com bigode e coloquei entre mim e o
Ednardo.

Naquela época surgiu uma mulher na vida de Fagner. Iris Gamenha

entrou em cena, e nunca mais saiu. Quando se conheceram, Iris era

secretária do diretor artístico da RCA. Uma parceira profissional

É
definitiva, polivalente, um misto de agente, secretária, amiga... É o que

se costuma chamar de faz-tudo. Mas será que tudo mesmo?

“É um casamento sem beijo na boca”, diz ela. “A gente se conheceu

e foi amor à primeira vista. Amor fraternal. Parece um elevador, um

sobe e desce constante. Num minuto dá porrada, no seguinte faz carinho.

Sou uma espécie de madrinha na vida dele, por isso me chama de

Dinda.”

Quando ia a Orós, Iris jogava buraco com seu Fares, que roubava

escandalosamente. Dona Francisca então lhe dizia: “Cuidado, Iris, Fares

é conhecido em Orós por trapacear no jogo.” Ao que a moça respondia:

“Está vendo, é ladrão, é sua mulher que está dizendo, não eu.”

Mas seu Fares não era conhecido em Orós apenas por trapacear nas

cartas. A história com o irmão dele entrou para o folclore da cidade.

Esse irmão morava em Feiticeiro, cidade perto de Orós, e se chamava

João. Tio João, um libanês que desaprendeu a própria língua e também

não sabia falar direito o português, era uma alma pura, se emocionava

com tudo.

Seu Fares resolveu fazer uma visita quando soube que o irmão

estava doente e levou o filho Fagner junto. Em Feiticeiro, na casa do tio,

Fagner ouviu a seguinte conversa do pai, recostado numa

espreguiçadeira, com o irmão doente, deitado numa rede:

“Oh, Zé, os meninos estão querendo que eu vá morrer lá em

Fortaleza, o que você acha?”

“Morra aqui mesmo, hôme”, respondeu seu Fares. “Lá você vai dar

trabalho a seus filhos, vai gastar mais dinheiro, ter que comprar cova

nova. Aqui você passou a vida e conhece o cemitério. Quem quiser e

puder que venha te ver.”

Não acreditei no que estava ouvindo. Dei um pulo da rede onde


estava deitado e fui ao bar mais próximo para tomar uma. Nunca
esqueci desse episódio. Os boêmios fizeram a festa. Estava tocando
mestre Djavan.

Iris ouviu muitas dessas histórias, mas seu trabalho com Fagner

seria na produção. O empresário Eriberto Leão, já falecido, a partir de


1996 lhe deu a incumbência de cuidar do dinheiro do cantor: “Você tira

o seu e dá o resto para o Fagner.”

“Raimundo Fagner é bom de música. No trato com o dinheiro,

contas a pagar, o lado prático da vida, é um desastre. Deixa tudo por

minha conta”, revela Iris. “Sou responsável pelo lado cidadão do artista

Fagner. Lógico que tem o dinheiro dele. O resto é comigo. Minha agenda

de compromissos mensais não é brincadeira. Mas tem coisas que só ele

pode resolver, tem que vir dele a palavra final. Eu o procuro em casa, ele

me bota para fora, sem decidir nada. Raimundo não é fácil! Como não

sou santa nem nada, às vezes perco a cabeça. Tenho vontade de voar em

cima, apertar o pescoço dele e dar umas cacetadas. Digo: ‘Aprenda a

tratar as pessoas! Presta atenção!’”

Iris sabe lidar com os problemas que surgem no caminho de Fagner.

Prova disso foi um show em Pombal, na Paraíba. O juiz da cidade se

sentiu incomodado com o “barulho” da música e da plateia

entusiasmada e simplesmente mandou desligar a mesa de som, embora o

volume não fosse maior que o de outros eventos que aconteciam no

local.

Claro que Fagner não deu a menor pelota para a reclamação. Iris

ouviu a ameaça: “Ou desliga ou levo todo mundo preso!”

Estávamos atentos a essa questão do barulho. Nossa produção


não entendeu aquilo e a população ficou do nosso lado. Posso até
acreditar que houve alguma ciumeira.

Sentindo-se prejudicado, Fagner reagiu dizendo que aquilo era coisa

de juiz de aquário, que só prendia peixe pequeno. Sua Excelência não

gostou nem um pouco da classificação e processou o cantor. Ganhou a

causa e Iris teve que pagar 25 mil reais de indenização por danos morais.

Segundo o cantor, já existia um incômodo da população com a

autoridade. Ele reconhece que exagerou na dose, mas não era o primeiro

caso de desentendimento com o juiz.

No inusitado encontro com o Rei Pelé, em 1997, não teve peixe;

foram de carne vermelha. Fagner foi convidado para uma conversa com

ex-jogador, então ministro dos Esportes do governo de Fernando


Henrique Cardoso, e se encontraram numa churrascaria famosa de São

Paulo. O cantor conta que, naquele dia, Pelé o chamou para concorrer à

vice-presidência da República, numa chapa encabeçada pelo Rei. Fagner

achou aquilo tudo muito engraçado e a saída de Pelé foi desconversar.

“Quando fui ministro dos Esportes no governo do Fernando

Henrique Cardoso, eu me lembro que fiz essa brincadeira com ele.

Conheço o Fagner desde os tempos em que o Santos ia jogar no Ceará.

Ficamos amigos. O Fagner que eu conheço, além de ser um grande

cantor e compositor, é uma pessoa sensível e muito séria. Fico feliz de

tê-lo como amigo.”


amigos e amigos
CAPÍTULO 20
C omo um bom cristão, Fagner começou o ano de 1998 num evento

religioso. Em janeiro participou do XI Queremos Deus, que reuniu mais

de 150 mil pessoas no Estádio do Castelão, em Fortaleza, cantando “Ave

Maria” e “Oração de São Francisco”. No final do mês, de fininho,

chegou sem avisar à sede do Sindicato dos Jornalistas do Ceará, onde o

cantor e compositor Ricardo Bezerra comemorava seu retorno à música.

Ao lado de amigos de longa data, os dois, junto com Fausto Nilo,

improvisaram um show tipo “hora da saudade”, com canções como

“Sina”, “Cavalo Ferro”, “Postal de Amor”, “Coração Condenado” e

“Tudo Está Contigo”.

Naquele ano tinha Copa do Mundo de Futebol na França. Fagner

não fora convocado pelo técnico Zagallo, mas estava lá, a convite da

CBF.

A Seleção ficou concentrada num velho e majestoso castelo nos

arredores de Paris, assediada por jornalistas e fãs de todo canto do

mundo, inclusive Orós, ali representada por seu queridíssimo filho

adotivo. No horário reservado aos familiares dos jogadores, lá estava

Sandra, mulher de Zico, acompanhada por Fagner, amigão e compadre

do marido. Em outro canto do salão, Ronaldo, o Fenômeno, conversava

com os pais, seu Nélio e dona Sonia. O casal não tirava os olhos do

cantor. Olhos de fãs. Logo partiram para cima do ídolo (Fagner, não

Zico) em cenas de tietagem explícita.

Seu Nélio pediu para tirar um retrato com o cantor. Dona Sonia

queria filmar o encontro, mas... e a câmera? Tinha ficado no quarto de

Ronaldo. “Pois vá lá buscar a máquina, meu filho”, ordenou ela. Fagner

ficou esperando o Fenômeno voltar. Curioso, não era ele o craque da


Seleção? Não era ele quem deveria posar? Mas a câmera veio e o foco se

manteve em Fagner, que virou o artista daquela gravação, mesmo

achando que devia ser o contrário.

Numa daquelas tardes parisienses, o cearense jogou, ao lado dos

craques Tita e Afonsinho, uma peladinha contra Chico Buarque no

Boulevard Lannes. Era dia do aniversário de Chico (19 de junho) e o

time de Fagner ganhou a partida de goleada, registrada numa matéria da

revista Caras, o que não agradou em nada o aniversariante. Fagner

também virou colunista esportivo, mandando notícias da França para o

jornal O Povo, de Fortaleza.

Infelizmente, a Seleção Brasileira encontrou uma pedra no caminho

do pentacampeonato: a Seleção Francesa. O dia 12 de julho de 1998

ficará para sempre atravessado na memória dos brasileiros: França 3,

Brasil 0. Fagner não assistiu ao jogo. Já estava em Madri, na companhia

do compadre Adrian.

Depois da viagem à Europa, em 8 de agosto retornou a Fortaleza

para fazer três shows de lançamento de Amigos e Canções, um CD

duplo. Era o 22º em 25 anos de carreira, o que não é pouco. Não mesmo.

No CD, contou com a participação dos amigos Ângela Maria, Chico

Buarque, Djavan, Emílio Santiago, Fábio Júnior, Fafá de Belém, Ivan

Lins, Joanna, Milton Nascimento, Ney Matogrosso, Zé Ramalho e Zezé

Di Camargo & Luciano.

Nossa, quanta gente boa reunida! Que repertório mais eclético! Que

capacidade tem esse cantor de valorizar a voz dos colegas de profissão!

Não deu outra. O povo amou o CD, que vendeu 440 mil cópias em

menos de três meses. Claro, teve também quem não tenha gostado. O

crítico da revista Veja foi especialmente cruel nos reparos que fez,

publicados na edição de 12 de agosto de 1988.

Convidar cantores de sucesso para fazer participações especiais é uma maneira eficiente de

ressuscitar carreiras em decadência no mundo do disco. Pelo menos é isso o que pensam as

gravadoras, no Brasil e no exterior, a julgar por dois lançamentos. Um deles é Amigos e Canções,

de Fagner.

[...] os CDs nem sempre chegam a resultados empolgantes. É o que acontece com Fagner,

que vinha de uma entressafra. Ao convidar Fábio Júnior e Zezé Di Camargo & Luciano, nomes

que vendem dez vezes mais discos, o cearense parece estar disposto a reaver a popularidade dos
tempos de “Coração Alado”. A alquimia sertanejo-nordestina, no entanto, é tão indigesta quanto

uma moqueca de galinha cabidela.

Cada um escreve o que quer e como quer, afinal, é isso a liberdade

de imprensa.

No início de dezembro, Fagner fez um show de lançamento do CD

Amigos e Canções no Via Funchal, em São Paulo. Gravado na íntegra, a

Rede Record exibiu o espetáculo para todo o país na noite do dia 23 de

dezembro de 1998. Abriu o show com um pot-pourri das músicas

“Mucuripe”, “Custe o Que Custar” e “Um Homem Também Chora”. O

primeiro convidado foi Dori Caymmi, que cantou com Fagner “As Rosas

Não Falam”, de Cartola, e “Cantar”, de Godofredo Guedes. Ângela

Maria entrou em seguida cantando “Lábios de Mel”; depois foi a vez de

Joanna, interpretando “Saudade” e “Meu Primeiro Amor”. Outros

convidados: Fábio Júnior, Zé Ramalho, Dominguinhos e o guitarrista

Robertinho de Recife.
Como bom cearense, Fagner não se afasta da sua terra. Mora em

outra cidade, visitou outros países, mas sempre volta: é lá que ele se

sente em casa. Começa o ano de 1999 como convidado especial dos

irmãos Zezé Di Camargo & Luciano em show na Casa de Engenho, em

Fortaleza, no dia 13 de janeiro. No dia 23, organiza um espetáculo

beneficente para a Santa Casa de Misericórdia da capital, dividindo a

cena com artistas novos e nomes conhecidos da música cearense.

Já em março, participa dos festejos em comemoração aos noventa

anos do poeta Patativa do Assaré (nascido em 5 de março de 1909).

Gravou uma música em homenagem ao poeta, “Festa da Natureza”,

composição de Gereba a partir de um poema de Patativa. Esta gravação

foi feita para o Dia da Floresta, no Acre, a pedido do seu amigo Jorge

Viana, então governador do estado. Distribuída em CD para as rádios do

Ceára, só mais recentemente foi gravada no projeto que realizou com Zé

Ramalho em 2014.

Do Ceará, o artista voa para Salvador, para o I Encontro Nacional de

Forró, realizado no Centro de Convenções da Bahia e com a presença de

estrelas como Dominguinhos, Elba Ramalho, Marinês, Adelmário


Coelho, Hugo Luna, Leonardo, Alcymar Monteiro, Maciel Melo, Carlos

Pitta, Virgílio, Edgar Mão Branca e das bandas Mastruz com Leite,

Limão com Mel, Cabelo de Fogo e Colher de Pau.

Música e tecnologia. Assim, a Veja Rio de 12 de maio anunciou um

projeto inédito que juntaria uma banda e cinco cantores da MPB para

uma transmissão ao vivo pela internet: Paralamas do Sucesso, Fernanda

Abreu, Elba Ramalho, Fagner, Milton Nascimento e Moraes Moreira.

Todos seriam ouvidos simultaneamente no Rio, em Belo Horizonte,

em Fortaleza e no Recife. A isso se dá o nome de onipresença, estar em

toda parte ao mesmo tempo. Um dom, até então, exclusivamente divino.

O projeto Vozes do Brasil seria uma espécie de casamento da máquina

com o fascínio da música. Oito telões e 38 câmeras captavam e

mostravam todo o evento, que foi o maior transmitido ao vivo pela

internet na América do Sul. Naquele finzinho de século, a internet não

era ainda o pão nosso de cada dia.

Ainda em junho, um contratempo daqueles. O Diário do Nordeste

noticiou o início de outra polêmica envolvendo Fagner e uma acusação

de apropriações indébitas. Teriam descoberto que os versos da letra da

música “Sina”, até então atribuídos a Fagner e Ricardo Bezerra, na

verdade eram do poeta Patativa do Assaré, publicados no livro Cante lá

que eu canto cá com o título “O Vaquêro”.

Curiosamente, ambas as canções que provocaram tais acusações

fazem parte do seu primeiro LP, Manera Fru Fru Manera.

E não é que, 26 anos depois, se descobre que “Penas do Tiê”,

música incluída no mesmo disco, também não pertence a Fagner; nem

ela, nem mesmo a adaptação livre a ele creditada? Quem primeiro

alertou para o fato foi o jornalista Tárik de Souza, do Jornal do Brasil,

depois que Alberto Hekel Tavares, filho do compositor Hekel Tavares

(1886-1969), ouviu uma gravação recente dessa música com a cantora

Itamara Koorax e a Orquestra Pró-Música do Rio de Janeiro. Segundo

Alberto, “Você”, a canção original, de seu pai e Nair Mesquita,

composta em 1928, não era de domínio público e muito menos do

folclore. Portanto, não podia ser adaptada e transformada em “Penas do

Tiê” sem a devida autorização. Fagner tentou negociar com os herdeiros


de Hekel Tavares, já que ninguém, nem a gravadora, nem a editora,

sequer aventou a hipótese de a obra não ser parte do folclore.

As participações especiais de Fagner em discos de colegas se

sucedem em 1999: no CD Ângela & Agnaldo — Sucesso Sempre, com a

recriação da música “Deslizes”; no CD Marcos Valle — Songbook, com

a releitura de “Viola Enluarada”, a antológica canção gravada por

Milton Nascimento e Marcos Valle em 1968; no CD Jackson do

Pandeiro — Revisto e Sampleado, com a releitura de “A Cantiga do

Sapo” (Buco do Pandeiro e Jackson do Pandeiro). A gravadora Abril

Music também lançou o CD da trilha sonora do filme Uma aventura do

Zico, com a participação de Raimundo Fagner na música “Galinho de

Briga” (dele em parceria com Paulinho Tapajós).

Chega o dia 13 de outubro de 1999. Raimundo Fagner completa

cinquenta anos. Oba! Vai ter festa de arromba? Garrafa cheia eu não

quero ver sobrar? Jogo festivo no Maracanã com craques do futebol e da

música, todos envergando o número 50 nas costas da camisa? Capa de

revista, telegrama do presidente, mensagem do papa?

Nada disso. Na manhã daquele dia, o aniversariante foi visto

ajoelhado. Quem conseguiu a façanha? Deus. Naquela manhã estava na

Catedral de Fortaleza assistindo à missa de ação de graças que mandou

celebrar.

Deus te abençoe, Raimundinho.


fagner no século xx1
CAPÍTULO 21
F im de século, fim de uma novela que atormentou a vida de Fagner por

duas décadas. A música “Canteiros”, proibida durante todo esse tempo,

pôde enfim ser regravada. A pendenga jurídica arrastou-se, como de

praxe, por anos e anos de idas e vindas. Várias tentativas de acordo,

todas em vão.

Fagner sempre defendeu a autenticidade de sua canção. Um dos

maiores sucessos de sua longa carreira, “Canteiros” estava finalmente

liberada. A gravadora acabou firmando acordo com as herdeiras e a

música ganhou novo arranjo no show que o cantor fez no Centro

Cultural Dragão do Mar, de Fortaleza. Na verdade, a música nunca

deixou de fazer parte do seu repertório e as plateias sempre pediam para

ouvi-la.

Em abril, Fagner lança oficialmente o CD Raimundo Fagner — Ao

Vivo no programa do Faustão. O disco saiu em CD duplo e em dois CDs

separados. No mesmo mês, participa do 2º Encontro Nacional do Forró,

no Centro de Convenções de Salvador, em homenagem a Jackson do

Pandeiro.

E finalmente em maio faz um show de lançamento no Olympia, em

São Paulo, e no Canecão, no Rio. Aliás, não se apresentava para os

cariocas havia cinco anos. Naquele momento político do Brasil, declara

seu apoio à candidatura de Ciro Gomes à presidência da República na

eleição que aconteceria dali a dois anos.

Em junho e julho faz o circuito das festas juninas, apresentando-se

em Quixeramobim e em Crato, na Feira de Agropecuária.

Já com 51 anos completos, volta a Brasília em dezembro, também

depois de longa ausência. Informou ao repórter Irlam Rocha Lima, do


Correio Braziliense, que já havia vendido oitocentas mil cópias do CD

ao vivo. Naqueles shows, sua banda era formada por Luis Antônio

(teclados), Adelson Viana (teclados/sanfona), João Lyra (violão/viola),

Cristiano Pinho (guitarra), Jamil Joanes (baixo), Carlos Bala (bateria),

Mingo Araújo (percussão) e Spock (sopros).

Uma das mais elogiadas iniciativas de Fagner foi criar, nesse mesmo

ano, uma fundação que leva o seu nome. A organização desenvolve suas

atividades pedagógicas através do projeto Aprendendo com Arte,

proposta pautada na arte-educação, que vê na arte um forte aliado para a

socialização das crianças e dos adolescentes.

A Fundação Raimundo Fagner tem duas sedes: uma em Orós, outra

em Fortaleza. Cada uma delas atende hoje mais de duzentas crianças.

Aulas de canto coral, flauta, violão, teoria musical, musicalização,

prática em conjunto, capoeira, informática, leitura e escrita, literatura e

história da arte são atividades desenvolvidas dentro do plano pedagógico

que visa à integração entre cultura, tecnologia, educação formal e

formação de consciência reflexiva da realidade vivida pelo público

atendido por ela.

Os alunos ainda têm aulas de teatro e dança inspirados na cultura e

nas tradições locais, mesclando elementos da cultura popular a

coreografias de balé clássico e dança contemporânea. As turmas têm

também acesso a oficinas de trabalhos manuais, de onde saem os

figurinos e cenários usados nas encenações teatrais que buscam retratar

o cotidiano daquelas crianças e daqueles adolescentes. No ano de 2005,

foi encenado em Orós e em Fortaleza o espetáculo cênico musical O Boi

da Fundação.
A instituição é comandada por Marta Lopes, irmã do músico, e

administrada por Tereza Tavares. É uma batalha constante conseguir

apoio para seus projetos, mas as duas vêm obtendo êxitos seguidos.

Aliás, para Marta, o irmão caçula foi objeto de trabalho desde que se

tornou um artista. Sendo bibliotecária, ela guardou recortes e mais

recortes com entrevistas, reportagens e tudo o que estava ligado a ele, no

que foi ajudada pelo próprio Fagner, que também costuma guardar a

memória dos seus percursos.

O disco do ano de 2001, o primeiro do século XXI, leva apenas o

seu nome. Mais uma vez, Fagner recorreu à imprensa: pôs um anúncio

no jornal O Globo pedindo composições e recebeu mais de setecentas

fitas com músicas inéditas. O crítico João Máximo elogiou o lançamento

no mesmo periódico:

“Podem se alegrar os fãs porque poucos dos 26 discos de Fagner

terão repertório tão adequado. Sinal de que o intérprete abandonou

projetos desconfortáveis como aquele, de anos atrás, de gravar standards

da MPB, para retomar o caminho do romantismo do começo de

carreira.”

Para Fagner, enfrentar a avalanche de fitas foi uma atividade até bem

agradável. As caixas de correio do prédio da Sony chegaram a ficar

congestionadas.

Sobre o disco, Fagner comentou que sempre dialogou com os

artistas do Piauí e do Maranhão. O Brandão, os irmãos Clodo, Climério

e Clésio, o poeta Ferreira Gullar.

O cantor, como se sabe, é muito criterioso na escolha de seu

repertório. Exigente, detalhista, perfeccionista. Mas existem coisas na

vida que surgem à revelia do planejado. Coisas como o acaso, a surpresa,

o destino, a coincidência, o mistério... Quando o imprevisto bate à sua

porta, ele abre e o deixa entrar. Na escolha de músicas para o novo

disco, abriu passagem para dois amigos compositores, Cazuza e

Gonzaguinha.

O primeiro, nos últimos anos de vida, foi também seu vizinho, e

Fagner tem boas recordações dessa época.


Cazuza sempre me procurava de tarde. Eu tocava violão e ele
cantava, meio sem destino, improvisando. Gravei algumas fitas
cassetes desse período.

A boa vizinhança, infelizmente, pouco durou. Cazuza, já muito

doente, teve que se mudar para não voltar mais. Durante anos, Fagner

guardou uma fita e papéis que o amigo lhe mostrara. Um belo dia

resolveu revirar esse baú de recordações e ali pinçou uma joia: o blues

“Olhar Matreiro”. Coisa do acaso. Ou da sorte. Ou do destino...

Na história de Fagner com Gonzaguinha quem comparece é aquela

dama misteriosa chamada coincidência. Fagner tinha resolvido gravar

“Feliz”, composição do amigo que também partiu cedo demais. Seu

companheiro de estúdio era Jota Moraes, maestro de Gonzaguinha. De

repente, Moraes lhe diz: “Hoje é dia 30 de abril de 2001. Gonzaguinha

morreu há exatos dez anos.” Na verdade, ele morreu no dia 29.

Foi pura coincidência. Eu não tinha ligado uma coisa à outra. Não
tinha lido nada sobre a data nos jornais. Simplesmente acordei com
essa vontade.

E a canção foi gravada. A história de uma música com um título

como aquele só poderia acabar assim: com um final feliz.


No mês de agosto, Fagner vai a Caxias do Sul (RS) para reencontrar

a grande amiga Mercedes Sosa e faz um show com ela, inaugurando o

teatro da UCS, a universidade local. Fazia dez anos que os dois não se

viam. Mercedes declarou ao jornal Pioneiro: “Somos amigos há longo

tempo. Ainda não pude visitá-lo no Ceará, mas espero a oportunidade.”

Em 28 de março do ano seguinte, ano de Copa do Mundo, Fagner

foi convidado a cantar o Hino Nacional antes da partida entre Brasil e

Iugoslávia. É também desse período o encontro de Fagner com o cantor

e compositor maranhense Zeca Baleiro. Em abril, ele faz um show com

o novo parceiro na praça Verde do Centro Cultural Dragão do Mar, em

Fortaleza. E seguem juntos em turnê por São Luiz, Aracaju, Brasília e

Porto Alegre.

Em julho, recebe a notícia da morte do poeta Patativa do Assaré,

Antonio Gonçalves da Silva.

Deus foi generoso com Patativa, porque ele morreu feliz.


No mês seguinte, a revista Veja Rio comenta que, em tempos de

vacas magras, a estratégia mais conveniente para as gravadoras é

despejar uma série de CDs ao vivo nas prateleiras. A tendência ganhou

ainda mais força com a popularização do DVD. O compositor Fagner

lança seu segundo disco nesse formato num intervalo de dois anos. O

primeiro foi gravado em 2000, no Centro Cultural Dragão do Mar, no

Ceará. O segundo no Teatro João Caetano, no Rio. As apresentações

contam com a participação do jovem compositor maranhense na faixa

“A Tua Boca”, parceria de Fagner, Capinam e do próprio Zeca Baleiro.

Zeca é genial. Tenho afinidade com o trabalho dele e a química


entre nós foi perfeita. Logo estávamos rodando o país numa
temporada de shows e preparando o disco e o DVD.

O show misturava canções conhecidas dos dois artistas e as novas

que já estavam compondo juntos.

Em outubro de 2003, a Fundação Raimundo Fagner abre a

exposição permanente Raimundo Fagner — Vida e Obra. Troféus, fotos

e vídeos compõem o acervo que mostra a vida e a obra do cantor e

compositor, num total de mais de sete mil imagens.

Nesse mesmo ano, depois do CD Me Leve, Fagner ainda lança

Donos do Brasil, pela gravadora Indie, e, em seguida, a mesma

gravadora põe na praça seu disco com Zeca Baleiro.

Zeca é um artista completo, toca, canta e escreve. Para mim foi


uma grata surpresa o seu surgimento. Me estimulou num momento
importante, me deu um estalo. Eu estava bem acomodado. As
nossas origens libanesas, os papos de futebol — além de tudo, joga
uma bola redonda —, é muita afinidade. Zeca sou eu ontem.

Em cena, Fagner é um artista de inegável carisma. Incendeia

plateias, tem domínio de palco, empolga como

compositor/cantor/instrumentista, enfim... um artista genuinamente

popular. Na vida pessoal, age diferente. É um homem reservado, cioso


de sua intimidade, avesso a discutir temas tabu. Mas, em entrevista

concedida em 2003, ele se abre, solta o verbo, dá opinião sobre maconha

e revela como foi sua iniciação sexual. Perguntado se era contra jovens

fumarem maconha, declarou que não.

Os moralistas acham que podem dar o primeiro tapa e os outros,


não. A vida está aí para ser experimentada. Não custa nada o pai
falar: “Ó, meu filho, quer fumar maconha? Vamos dar um tapa nós
dois e ver esse barato aí.” A minha primeira incursão nas drogas foi
deprimente. Fumei [maconha], entrei no carro de meu primo,
acelerei e fiz a curva sem tirar o pé do acelerador. Achei que não
estivesse acontecendo nada. Ao contrário de Bill Clinton e FHC, eu
traguei.

Sobre sua primeira experiência sexual, declarou:

Foi com uma jumenta. É sério, pô! Tu acha que criança vai pegar
quem? Brincadeira de menino no interior era ir para o rio, empilhar
uns tijolos e... Também tinha os cabarezinhos em Orós. Mil histórias!
Em 1969, quando cheguei no Rio, saí pela Lapa e fiquei conversando
com um travesti. Depois um amigo me chamou e disse: “Raimundo,
é um travesti!” E eu: “O que é travesti?” Não consigo me imaginar
casado, com obrigações. Pode até ser que aconteça. O espaço do
artista é muito invadido, então sempre busquei estar um pouco só.

Zeca Baleiro conheceu Fagner por intermédio de dois padrinhos:

Fausto Nilo e Sérgio Natureza. Os dois viviam lhe dizendo que ele e

Fagner precisavam se conhecer, que tinham muitas afinidades. Depois de

se encontrarem, passaram a se comunicar constantemente.

“Ele manda mensagem”, diz Zeca, “e eu levo uma semana para

responder, porque se alimentar o monstro ele te manda tudo o tempo

todo. O Fagner é um queridão, uma pessoa muito bacana, mas acho que

ele é muito só, por isso que se cerca de muita gente o tempo todo e fica

procurando com quem repartir as coisas. É difícil estar a sós com ele,

não é?”

A relação pessoal entre os dois só fez se fortalecer à medida que

seguiam trabalhando juntos. Zeca foi aprendendo a conviver com

Raimundo Fagner.
“Fui começando a entender como é que ele funcionava. Ele tem essa

coisa meio juvenil da música e ao mesmo tempo também tem umas

relações de um outro universo, um pendor político que é muito forte

nele. Fagner tem uma grande qualidade: chega de igual para igual, tem

uma coisa de brother, de peladeiro. Chegou de um jeito afável, bonito, e

aquilo me emocionou, me tocou, porque ele era uma referência

fortíssima. Quando surgiu, foi um acontecimento, como foram outros

também, mas com nenhum tive esse tipo de aproximação. Consegui me

tornar amigo e parceiro de alguns músicos dessa geração, mas com o

Fagner foi uma coisa a mais, parecia que a gente era da mesma idade,

que a gente tinha jogado bola a adolescência inteira.”

Zeca conta que eles nunca brigaram, quer dizer, quase nunca.

Aconteceu apenas uma estranheza durante a segunda excursão que

fizeram. Foi em Goiânia. Fagner acordou de mau humor e telefonou para

o seu quarto. O maranhense dorme muito tarde e não gosta de acordar

cedo. Eram dez da manhã quando Fagner ligou e o acordou.

Fagner: Estamos indo para Brasília.

Zeca: Espera aí, rapaz, não estamos em grupo? Vamos juntos!

Fagner: Não, não sei, se vira!

Zeca: Tá bom, Fagner, pode ir, vá.

Zeca decidiu que não iria viajar tão cedo e maldormido. Quando

chegou a Brasília, não foi falar com Fagner, ficou no camarim. Minutos

antes de entrarem no palco, decidiu abordá-lo: “Parceiro, é o seguinte: a

gente está junto nessa história, você é você, eu sou eu, você tem a sua

importância e tal, mas não estou aqui de favor, não pedi nada a você,

estamos juntos nessa. Ou você me trata de igual pra igual, com respeito,

ou isso aqui acabou. Pronto.”

Fagner pediu mil desculpas, ficou se desculpando ainda no palco,

para a plateia, coisa que ninguém entendia; aquelas desculpas acabaram

sendo um código dos dois.

“Ele sabe ser delicado quando quer. Sabe cantar suave, mas criou

aquele personagem. Eu adoro, ele é único, tem um jeito de ser que

remete um pouco a essa coisa dos antepassados arabescos, essa coisa

meio Andaluzia, andaluza, moura. Ele é único. E é um baita farejador de

talentos. Gravou muita gente, redescobriu muita gente.”


Em dezembro de 2003, a revista Veja Rio registrou as afinidades

entre os dois artistas. “Ambos possuem ascendência moura, raízes

nordestinas, são fãs dos Beatles, adoram chope e futebol.”

Deu certo.
Metralhadora giratória
CAPÍTULO 22
A paixão de Raimundo Fagner pela poesia já fazia parte de seu

coração de artista. Sempre procurou bons parceiros, além de poetas

consagrados, cujos versos musicou. Em 2004, quando lançou o disco

Donos do Brasil, transformou em canções quatro poemas de Francisco

Carvalho, um senhor de oitenta anos que vivia recluso no Ceará.

Esse trabalho foi mais divulgado no meio literário, por causa da


descoberta do novo poeta. O disco foi um sucesso na mídia impressa
e teve uma boa vendagem para a época, em se tratando de uma
gravadora independente.

O show de lançamento aconteceu em novembro de 2004 no

Canecão. Fagner teve a companhia do produtor musical e celebrado

gaitista Rildo Hora, que também assinou os arranjos do novo CD.

Donos do Brasil foi indicado para concorrer na sexta edição do

Grammy Latino, na categoria Melhor Disco Brasileiro de Música

Romântica. Por aqui, ganhou elogios de boa parte da crítica, além de um

destaque pela “revelação” do veterano e laureado poeta Francisco

Carvalho, vencedor do Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira.

Naquele ano Fagner também havia participado do lançamento do

CD Rio 2004, início da campanha da cidade do Rio de Janeiro para

sediar os Jogos Olímpicos de 2016. Interpretara “Aquele Abraço”,

música de Gilberto Gil. Uma legião de cantores fez do clássico uma

adoração à Cidade Maravilhosa. Estão na gravação, entre outros,

Adriana Calcanhoto, Ney Matogrosso, Beth Carvalho, Angélica, Moreira

da Silva, Elba Ramalho, Caetano Veloso, Emílio Santiago, Geraldo


Azevedo, Tiririca, Djavan, Edu Lobo, Paulo Ricardo, Joanna, Roberta

Miranda, Jerry Adriani, Simone, Daniela Mercury, Fernanda Abreu,

Gilberto Gil e Pelé.

No ano seguinte, chamou muita atenção com uma polêmica

entrevista para as Páginas Amarelas da Veja, concedida à repórter

Juliana Linhares, intitulada “Comigo é no tapa”. A matéria definiu

Fagner como “independente, rebelde e briguento”. Na entrevista, ele

acusa os colegas de se omitirem diante da crise do governo que ajudaram

a eleger, critica a obsessão dos artistas pelas opiniões “politicamente

corretas” e diz que “Lula só não sofreu impeachment até agora por

incompetência da oposição”.

Encerrando 2005, Fagner inaugurou os grandes shows de réveillon

na praia de Iracema, em Fortaleza.

Meses mais tarde, em setembro de 2006, um episódio desagradou

bastante o cantor: sua participação, em Nova York, no Brazilian Day, na

esquina da rua 43 com a Sexta Avenida.


Aquilo lá foi uma tremenda roubada em que me meteram. Me
usaram para cantar o Hino Nacional, quando na verdade era para eu
ter feito o show, pois fui um dos preferidos do público. De toda
forma acabou virando uma homenagem, afinal, do outro lado,
cantando o hino dos Estados Unidos, estava o ídolo Billy Paul.

Em julho daquele mesmo ano, lançou o DVD Fagner ao Vivo, com

um CD duplo, contendo vinte músicas e entrevistas.

Em outubro, depois de fazer shows no Rio de Janeiro e em São

Paulo de seu novo CD, Fortaleza, retorna à sua terra para uma

apresentação especial no encerramento da famosa festa dos romeiros do

Dia de São Francisco, em Canindé. Segundo a organização, o público

para a bênção final e para o show de Fagner, com repertório de canções

religiosas tradicionais e transmissão ao vivo pela TV Diário, chegou a

120 mil pessoas.


Entre agosto e novembro, o cantor retoma os shows pelo país,

passando por Natal (RN), Palmas (TO), Belo Horizonte (MG) e interior

do estado de São Paulo.

Que ano!!!
um mutante para sempre
CAPÍTULO 23
E m 2008, quando completou 59 anos, Fagner acumulava 35 anos de

carreira, a contar do lançamento de seu primeiro LP, Manera Fru Fru

Manera, em 1973.

Resolveu então comemorar a data lançando um DVD gravado em 28

de janeiro de 2000, quando fez o histórico show para quarenta mil

conterrâneos, no Centro Cultural Dragão do Mar, uma importante

referência da cidade de Fortaleza. Tais imagens só vieram a público

tanto tempo depois porque, na época, não lhes ocorreu fazer o registro

em vídeo, e aí, paciência, o espetáculo tinha ficado apenas na memória

dos sortudos que puderam estar presentes naquele dia. Mas o destino

tem lá os seus caprichos, e eis que, para a felicidade de todos, imagens

do show acabaram aparecendo. O cineasta Rosemberg Cariry havia

registrado tudo, e a partir da sua filmagem foi possível recompor aquele

momento tão especial.

Seguindo sua trajetória, o cantor continuou trabalhando como

sempre, com shows e projetos de discos novos. Em fevereiro, recebeu em

Fortaleza a visita do tenista Guga Kuerten, que gravou um vídeo falando

da Fundação de Fagner. Aliás, o tenista fundou, em Florianópolis,

também em 2000, o Instituto Guga Kuerten, uma associação civil sem

fins lucrativos que visa a garantir oportunidades de inclusão social para

crianças, adolescentes e pessoas com deficiência. Essa amizade

proporciona também momentos especiais para os dois. O cantor fez um

show para o Instituto do tenista em Florianópolis, e Guga escolheu

Fortaleza para passar sua lua de mel.


Em outubro, Fagner fez uma série de shows por Minas Gerais e

Bahia, abrindo a temporada no Teatro Santo Agostinho, em Belo

Horizonte, como relembra:

Isso foi muito por conta da minha relação com o Aécio Neves, pois
somos amigos desde a época das Diretas Já. Participei da sua vida
política, fazendo campanhas quando ele ainda era candidato a
deputado no seu estado. Quando se tornou governador, fizemos
uma parceria que resultou no projeto Canteiros Musicais.

O projeto tinha por objetivo a iniciação do aprendizado musical com

um método simples e informatizado. Com um teclado ligado ao

computador e instrutores virtuais, crianças e adolescentes de várias

localidades de Minas podiam aprender música de uma forma interativa e

divertida, desenvolvendo ainda habilidades motoras e perceptivas.

Na verdade, nosso cantor cearense tem um enorme apreço por

Minas Gerais. Tudo começou em 1977, quando dois jovens mineiros,

Ralph Justino e Cacá Moreno, ouviam músicas de Fagner vindas de um

carro estacionado à frente de um boteco.

Ali conheceram o jornalista Carlos Marques, que os apresentou a

Fagner, em Fortaleza. Ralph conta que, quando chegaram lá, foram

direto para um pequeno hotel no Centro e ligaram para o cantor, que os

atendeu com a maior gentileza, dizendo que já estava indo encontrá-los.


“Quando chegou, disse para pegarmos as malas e perguntou se

gostaríamos de jogar futebol. Fomos direto para um campo e, após a

pelada, ele nos levou para ficar hospedados em sua casa. Um sonho

começava a se materializar. Carlos Marques tinha conversado com o

Fagner sobre a possibilidade de fazermos a produção de um show em

BH. Eu estava na época com vinte anos e nunca tinha feito qualquer

trabalho nessa área. Entusiasmado com a possibilidade e confiança,

voltamos para Belo Horizonte e começamos a entender como se

produzia, como se liberava e principalmente como faríamos a


divulgação do espetáculo. Conseguimos datas no Teatro Francisco

Nunes e os shows foram grande sucesso de público, contando os dois

dias da casa.”

Depois, Fagner os convidou para produzir outros shows no Rio e em

São Paulo, tornando-os seus empresários. Ralph abandonou o curso de

Arquitetura e se mudou para o Rio. Juntos, fizeram uma temporada de

um mês no Teatro Tereza Rachel, em Copacabana, com casa cheia, e

depois outra na capital paulista. No ano seguinte, realizaram uma grande

excursão pelo Nordeste, num ônibus especial alugado de Gilberto Gil, e

também mais uma temporada em Fortaleza, no Teatro Castro Alves,

além de um grande espetáculo ao ar livre em Orós.

Dois shows marcaram muito a trajetória de Fagner em Minas

Gerais. O primeiro em 1979, no lançamento do disco Beleza, que

estourou com a música “Noturno (Coração Alado)”. O show aconteceu

no ginásio do Minas Tênis Clube, na época o maior espaço de BH, com

capacidade para cinco mil pessoas.

Lembro que, quando cheguei ao ginásio, vi uma fila que dava


volta em todo o quarteirão, e lá dentro a lotação já estava esgotada.
Tivemos que fechar os grandes portões de ferro da entrada. O
público que não conseguiu entrar não ficou satisfeito e começou a
empurrar os portões, que foram jogados no chão, com centenas de
pessoas entrando até não caber mais ninguém. Com a chegada de
reforço policial, conseguimos conter a multidão.

Em respeito às pessoas que tinham comprado ingressos e aos outros

milhares que ficaram de fora, Fagner anunciou que realizaria outro show

grátis no Parque Municipal, ao lado do Palácio das Artes, um mês

depois, e, até aquele momento, o evento registrou o maior público do

cantor em BH.

Outro episódio memorável aconteceu na inauguração do ginásio do

Mineirinho em 1980. Fagner fez o primeiro show da inauguração na

sexta, e Roberto Carlos no sábado. Um ginásio com capacidade para

mais de vinte mil pessoas teve os dois dias com lotação esgotada.

Também, pudera, estava ali ninguém mais, ninguém menos que o novo

“Rei da Juventude”, eleito na enquete que o Estado de Minas promoveu


entre os leitores. Fagner tinha se tornado uma grande estrela nacional e

aparecia nas capas das principais revistas brasileiras; tornara-se um

cantor de massa, como sempre sonhou.

Posso dizer que Belo Horizonte foi um divisor de águas na minha


carreira, até porque Minas Gerais sempre foi uma chancela de
qualidade em matéria de música. Meus primeiros shows com grande
público aconteceram nessa cidade.

Os periódicos mineiros não lhe poupavam elogios. Em 7 de outubro,

o Jornal de Casa publicou:

Foi em junho que Raimundo Fagner se tornou a personagem central de um dos espetáculos

mais curiosos que Beagá assistiu nos últimos tempos. E que, de certa forma, nos trouxe de volta

ao tempo dos grandes ídolos de auditório, das multidões enfurecidas querendo varar o cordão de

isolamento, loucas em seu incontrolável delírio.

No dia seguinte, foi a vez do Estado de Minas:

Nem mesmo na apresentação de Orlando Silva em São Paulo, quando o cantor das

multidões perdeu todas as suas roupas, o entusiasmo do povo para com um cantor popular foi tão

grande. Nunca em Belo Horizonte se reuniu tanta gente (quase sessenta mil pessoas) para ver um

artista. Não dá para calcular direito o número, mas creio que esse é um dos maiores públicos já

reunidos no país.

Voltando a 2008, em outubro Fagner cantou a “Ave Maria”, de

Schubert, em Fortaleza, nas comemorações dos 91 anos da última

aparição da Virgem de Fátima, em Portugal. Ainda em sua cidade natal,

recebeu, no começo de 2009, a Medalha da Abolição, a mais alta

honraria do estado, concedida a pessoas de grande importância na

sociedade.

Em maio do mesmo ano, diante da situação de calamidade pública

no Ceará, Fagner fez um show em prol das vítimas das enchentes. Um

mês depois, foi ao Senado Federal, em Brasília, para uma homenagem

ao poeta e repentista Patativa do Assaré. Na ocasião, declarou

ironicamente:
Só quem não sabe quem é Patativa do Assaré é a Academia
Brasileira de Letras. Lamentável.

No evento, cantou as músicas “Festa da Natureza” e “Vaca Estrela e

Boi Fubá” da tribuna do Senado. Foi sua homenagem ao amigo Antônio

Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré.

O disco de 2009, Uma Canção no Rádio, saiu em julho. Os jornais

comentaram o repertório e a participação especial de Zeca Baleiro. Com

letra do parceiro Fausto Nilo, fez a balada “A Voz do Silêncio”,

inspirada, segundo ele, nos Beatles. Outra música entoada nos forrós da

vida que ganha roupagem mais pop no disco é “Flor do Mamulengo”, de

Luiz Fidélis, compositor do Cariri, já gravada por Dominguinhos, Elba

Ramalho e tantos outros artistas nordestinos. Ali nasciam as bandas de

forró que marcaram o início da divulgação maciça desse gênero musical

e que chegaram até os dias de hoje.

Nesse trabalho, Fagner foi em busca de um produtor jovem,

Clemente Magalhães, que o ajudou a explorar essa nova seara.

Quis mudar de timbre e, ao mesmo tempo, tomar conhecimento


do que essa moçada estava produzindo.

A ideia desse CD começou a surgir quando Fagner ouviu pela

primeira vez o compositor Oliveira do Ceará, um conterrâneo que ele

não conhecia.

Foi uma grata surpresa, adorei o repertório dele. Na época, fui


apresentado ao Clemente pelo produtor e pesquisador Marcelo Fróes
e já partimos para a concretização do trabalho.

Aquela experiência contribuiu para que novos músicos, como André

Carneiro, Rick de La Torre e Léo Fernandes, se incorporassem à banda

de Fagner e já participassem do novo show.

Depois de Uma Canção no Rádio, Raimundo Fagner ficaria cinco

anos sem gravar.


afinidades ideológicas e musicais
CAPÍTULO 24
P ara Fagner, o ano de 2010 começa em 15 de março, quando se

apresenta no show de abertura do IV Encontro Nacional dos Pontos de

Cultura, na praça Verde, do Dragão do Mar, em Fortaleza. Tratava-se de

um projeto do governo federal que contemplava as melhores fundações

do Brasil. Naquele dia, caiu um toró que fazia anos a cidade não via. Um

batizado inesperado.

E o ano termina com um grande show gratuito, em comemoração ao

Natal, que se realizou na praça em frente ao Theatro José de Alencar

(um dos mais famosos prédios em estilo art nouveau do país), e outro

para celebrar o réveillon da cidade de Juazeiro do Norte.

Em dezembro de 2011, Raimundo Fagner já havia sido considerado

um dos maiores cantores da música latina pela revista Fale! e também

recebeu a Medalha Lauro Maia, juntamente com o compositor e

instrumentista Manassés e a Universidade Federal do Ceará. Esta

medalha é atribuída a pessoas ou instituições que tenham contribuído de

forma significativa para o cenário musical da capital cearense.

2012 foi o ano em que se comemorou o centenário de nascimento de

Luiz Gonzaga. Em março, Fagner e Dominguinhos inauguraram o

Centro Cultural da Assembleia Legislativa em Fortaleza com um show

em homenagem ao Velho Lua. Na ocasião, aproveitaram para gravar um

DVD que acabou sendo o último encontro dos dois artistas e discípulos

do Rei do Baião.
Na mesma época, também foi lançado um disco de duetos, e Fagner

participou de diversos outros shows, sempre homenageando o grande

Luiz Gonzaga.

A Virada Cultural paulistana de 2013 aconteceu em maio. Em meio

às inúmeras apresentações de praxe do evento, Fagner se apresentou no

Teatro Municipal com um show baseado no antológico Manera Fru Fru

Manera, de 1973. Esse show foi produzido por seu parceiro Zeca

Baleiro e contou com a banda dele e o guitarrista de Fagner, Cristiano

Pinho. O teatro lotou e ainda havia uma fila gigantesca ao redor do

prédio, esperando uma segunda sessão que acabou não acontecendo.

Em junho, como sempre, Fagner participou das festas pelo interior:

São João da Copa das Federações, Festa no Parque de Eventos Luiz

Gonzaga, Pátio do Forró. Em agosto, marcou presença no show de

Amelinha, que lançava seu primeiro DVD e disco ao vivo, no anfiteatro

do Dragão do Mar, em Fortaleza.

No dia 17 do mesmo mês, Fagner foi ao Senado, em Brasília,

acompanhar a votação da PEC 123, que propunha a isenção do ICMS e

IPI à produção fonográfica brasileira. A PEC da Música era uma

proposta de emenda constitucional para isentar de impostos a fabricação

de discos, assim como ocorria com os livros.

Essa deveria ser a bandeira de qualquer músico, mas nem todos


estavam engajados, muitos preferiram a visibilidade midiática do
projeto Procure Saber, que resultou num dos maiores micos da
classe artística. Eu sabia que a nossa luta tinha seus dias contados,
porque o mercado estava afundando, mas defender a causa já seria
importante para mostrar que estávamos unidos. Nós, do pequeno
grupo de artistas que foi a Brasília, recebemos o apoio unânime de
deputados e senadores que se envolveram afetivamente com a
causa.
Em outubro, Fagner e Zeca Baleiro fizeram parte do curta-metragem

A vida que passa, da produtora Del Picchia Filmes, de Aracati, inspirado

na canção “A Tua Boca”, parceria dos dois. Filmado em parte em

Aracati, em parte na praia de Canoa Quebrada, o curta, de cerca de dez

minutos, é ambientado nos anos 1940 e aborda, com humor e leveza, o

drama e os desencontros de um sujeito apaixonado por uma garçonete.

Finalmente, em outubro de 2014, Fagner quebra o hiato de cinco

anos lançando um disco inédito, Pássaros Urbanos, e outro, ao vivo,

com Zé Ramalho. Por ironias do destino, compromissos de carreira ou

mera questão de acaso, Fagner e Zé Ramalho nunca haviam se

encontrado nos palcos, apesar de serem parceiros, compadres e até

mesmo vizinhos de porta.

Tinham também muitas afinidades musicais. Eram de uma geração

que mostrou ser possível fazer música brasileira com influências que não

fossem só nossas, principalmente por causa do pop. Ouviam muito

Beatles, música progressiva.

Os dois se conheceram num evento no Parque Lage, no Rio, na

década de 1970. O futuro autor paraibano de “Avôhai” acabara de gravar

o psicodélico LP Paêbiru, com o artista pernambucano Lula Côrtes.

Quando viraram amigos, o contato era diário, segundo Fagner.

Ele vinha à minha casa e passávamos horas no violão. Nossos


timbres se casaram perfeitamente e os violões se harmonizaram
bem entre o meu nylon e o aço das cordas dele. Um dia Zé chegou
um pouco constrangido e me falou de uma música que tinha sido
recusada pelo Roberto Carlos. Pedi para ouvir e, depois que ele
cantou, eu lhe disse: “Esquece isso; essa é minha.” Era “Eternas
Ondas”, que foi o meu grande sucesso daquele ano. Também me
lembro quando ele ligou contando: “Não falei que não íamos mais
nos afastar? Estou morando no seu prédio.”

Fagner e Zé Ramalho moram até hoje nesse mesmo prédio, que

também foi a última parada de Cazuza.

Para Fagner, 2014 foi um ano interessante, com muitos shows e

plateias incríveis. Teve, ainda, a oportunidade de lançar um disco de


inéditas. Em 2015, porém, queria um descanso.

E conseguiu descansar? Que nada! 2015 foi um ano de tocar seus

projetos e de muitos shows e viagens pelo país, soltando a voz e as

palavras. Foi a Natal, a Belo Horizonte, e apresentou-se nas festas

juninas pelos sertões do Brasil. O trabalho se estendeu por 2016:

Brasília, Juiz de Fora, São Paulo, Marechal Deodoro (em Alagoas), onde

sua Fundação também foi homenageada na VII Flimar, a Festa Literária

local, que aconteceu entre 31 de agosto e 3 de setembro daquele ano. E o

futebol, hein? Continuava sendo sua grande paixão, tanto que viajou do

Rio a São Paulo só para comparecer ao lançamento do livro Sócrates &

Casagrande — Uma história de amor, de Walter Casagrande Júnior.


quem me levará sou eu
CAPÍTULO 25
D urante toda a carreira, que em 2018 já completou 45 anos, Fagner

viveu surpresas bastante desagradáveis, e uma das piores, com certeza,

foi o fato de ter seu patrimônio dilapidado duas vezes! Em cada uma

delas, perdeu tudo. E esse tudo não era pouco, afinal, sempre foi um

artista de sucesso, grande vendedor de discos. Vivia uma vida simples e

tinha seu patrimônio muito bem aplicado.

Naquela época nossa moeda fazia frente ao dólar. Um dia fui


dormir rico e acordei pobre. De repente, não tinha nada. A grana
tinha sumido. Foi um pesadelo. Mas os amigos mais próximos
entraram em cena, especialmente os irmãos Pedro, Paulo e Vicente
e me deram todo apoio, me afastando dos problemas. Vida que
segue.

Mas da mesma maneira que teve amigos que traíram sua confiança,

também teve os que o ajudaram nesse momento difícil.

A segunda vez foi pior ainda. De novo, foi embora tudo o que tinha

guardado. Ser traído pelos amigos, ver roubada a fortuna acumulada em

anos de trabalho, tudo isso machucou muito o homem e o artista. Mas

não foi só. Nessa reincidência a barra foi ainda mais pesada porque se

conjugou com perdas pessoais, perdas daquilo que de mais precioso se

pode ter: a família. Em curto espaço de tempo, perdeu Fares, o irmão

mais velho, e dona Chiquinha, a mãe. Foram muitas perdas e muita dor

ao mesmo tempo.

Com muito trabalho, Fagner conseguiu se recuperar dos grandes

abalos em sua vida e carreira e está bem novamente, batalhando,

fazendo valer suas origens libanesas errantes com sua saga cearense.
Muito ligado ao Ceará, sempre deu muito valor à sua terra. Quando

o estado começou a fazer propagandas turísticas, os comerciais do

governo maciçamente veiculados contavam com Chico Anísio, Renato

Aragão, José Wilker e Luiza Tomé. Mas mesmo com todos esses

globais, a maioria dos turistas que ali chegava revelava em pesquisas que

era Fagner e sua relação com aquela terra que os tinha motivado a

conhecer o Ceará.

Ao longo da vida, o cantor investiu em vários imóveis e terrenos na

sua terra. Fez seu pé-de-meia com muito cuidado. Não sabe muito bem

onde gasta seu dinheiro no dia a dia (boa parte distribui entre amigos e

nunca cobra). É controlado com mão de ferro pela secretária e amiga Iris

Gamenha.

A maior parte dos integrantes de sua equipe de 15 pessoas é

cearense. Fagner sabe que uma viagem com todos eles ao Sudeste ou ao

Sul custa muito dinheiro, mas vale a pena. A banda é fantástica, os

melhores estão com ele: Cristiano Pinho (guitarra), André Carneiro

(contrabaixo), Marcus Vinnie e Rafael Maia (teclados), Robertinho

Marçal (bateria), Manassés (viola e violão), Ricardo Neto (trompete),

Rômulo Santiago (trombone), Thiago Rocha (sax tenor e flauta). Os

convites chegam de toda parte. Fagner aceita quando pode levar a banda

toda.

Hoje, na companhia de Bruno, o filho inesperado, reconhecido em

2010, e dos netinhos Arthur e Maria Clara, Fagner vive entre o Rio e

Fortaleza. Sua pequena família tardia mora no Rio, e sua irmã, Marta,

na capital cearense. Faz suas caminhadas tranquilamente pelas ruas do

Leblon, bate ponto na rede de volêi do Baixo Vovô e, no posto 11, na

escolinha de futebol do vascaíno Paulinho Pereira. Vai à praia e aonde

quer, sem fugir do assédio. Aliás, Fagner é muito gentil com os fãs,

atende a todos, sem fugir de autógrafos e das populares selfies.

Tudo isso tem um retorno de carinho, de agradecimento. Minha


vida é muito corrida. Tenho meus cachorros, meu filho, meus netos,
que mal vejo, mas dou atenção. Não dá para me prender a nada.
Nós, artistas em atividade, na verdade não somos donos da nossa
vida, estamos sempre aonde nos levam e temos que estar na
estrada até para manter aqueles que dependem da gente. Com a
queda da venda de discos, temos que fazer mais shows. Graças a
Deus, continuo na ativa. Feliz do artista que tem um público que o
prestigia. Posso dizer isso com orgulho.

Valorizar a poesia e seus inúmeros parceiros poetas ao compor seu

repertório tornou-se uma das características marcantes de Fagner. Ele

hoje dá valor ao professor João Lima, que o obrigava a decorar Camões,

Guerra Junqueiro e Olavo Bilac. Acredita que sem o professor não teria

caído no mundo da poesia. Em sua voz foram popularizados desde

Belchior e Fausto Nilo, a quem incentivou que escrevesse, até Abel

Silva, Clodo, Ferreira Gullar, Cecília Meireles e a portuguesa Florbela

Espanca.
Os poetas foram o horizonte da minha música. Sem a valorização
das palavras com certeza não teria tido esse diferencial; também
não teria entrado na vida das pessoas sem essa quantidade de
parceiros e seus universos tão distintos. Antigos ou modernos, os
poetas fazem parte da minha música.

Na música, teve influência de cantores tradicionais — Luiz

Gonzaga, Francisco Alves, Sílvio Caldas, Orlando Silva, Dilermando

Reis, Vicente Celestino, Ataulfo Alves, Dalva de Oliveira, Anísio Silva,

Altemar Dutra, Agnaldo Timóteo, Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto,

Ângela Maria — e de contemporâneos seus da qualidade de Caetano

Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Edu Lobo,

Geraldo Vandré e até o popular Amado Batista. Uma geração muito rica,

como sempre foi a música brasileira.

Também não economizou na escolha de parceiros. Em duetos,

cantou com vários desses ídolos do passado e com talentos das novas

gerações, como Cazuza, Zeca Baleiro, Jorge Vercilo e ainda com


renomados cantores sertanejos, tais como Zezé Di Camargo & Luciano

e Chitãozinho e Xororó.

A voz de Fagner, queiram ou não, tem personalidade, tem potência,

tem afinação e tem um fôlego absurdo, fruto dos mergulhos nas águas

do Orós e das brincadeiras de apneia. Seu assombroso recorde de 4

minutos e 17 segundos sem respirar foi carinhosamente guardado no

relógio do primo Eliseu. Certamente entrará no rol dos maiores cantores

da história da música brasileira. Implicam com seu sotaque, implicam

com seus gemidos árabes. No início da carreira alguém disse que ele

tinha voz de taquara rachada. Seu médico nunca detectou qualquer

problema nas suas cordas vocais em função da força com que emite as

notas das canções.

Prometeu, em público, parar de fumar. E tenta de fato. Reduziu um

pouquinho, mas continua. O doutor Wilson Meireles, foniatra, é quem

cuida da voz de Fagner e garante: “Ele tem uma força vocal, tem um

quadro vocal bem saudável. O problema ali é uma alteraçãozinha crônica

pelo uso prolongado do cigarro, mas ele emite o som com muita

facilidade mesmo. O pulmão tem uma resistência muito, muito boa. Para

a emissão da voz, o pulmão é de suma importância, é o interligador.”

Nada parece abalar a confiança de Raimundo Fagner em Raimundo

Fagner. Suas declarações, às vezes, beiram a arrogância. Não assume,

em hipótese alguma, a postura dos humildes. Sempre fala o que quer e

os jornalistas gostam disso, pois poucos se comportam assim. A maior

parte está no deserto dos que se escondem e preferem aderir ao

pensamento da maioria. Esse não é Fagner. Jamais ficou em cima do

muro. Com ele é tudo ou nada. Fagner é osso duro de roer!

Muitos se magoam com seu estilo mandão e suas palavras ásperas,

em geral dirigidas aos mais próximos. Os que o conhecem e gostam dele

não levam essas broncas a sério, pois sabem que é coisa momentânea,

muitas vezes está apenas tirando sarro. Depois se desculpa. É difícil

encontrar alguém como ele. Incomparável. Adora fazer amigos, como

também adora uma boa piada. Com o talento dos cearenses para a

galhofa (basta lembrar Chico Anysio, Renato Aragão e Tom Cavalcanti),

é como diz o ditado: perde o amigo, mas não perde a piada.

A lei das compensações faz com que seja, ao mesmo tempo, um

sedutor. Muitos, mulheres e homens, se encantaram e se apaixonaram


por ele ao longo da vida. Mas Fagner nunca se casou ou viveu um longo

romance. Podem ter sido muitos, intensos, mas passageiros. Parece que

toda a sua sexualidade se manifesta no palco ou nos estúdios. É uma

doação que atinge a profundidade, como um poço, que talvez nem ele

mesmo compreenda.

Tem amigos em todas as partes do Brasil, dos mais ricos aos mais

pobres. É amigo para qualquer hora e, em situações de emergência, é um

dos primeiros a agir. Gosta de ajudar, gosta de se sentir no comando.

No final de 2016 precisou operar o manguito rotador do ombro

direito, onde pendura a alça do violão. As dores foram insuportáveis,

mas o problema acabou graças à cirurgia e à fisioterapia com Helder

Montenegro, introdutor das técnicas de fisioterapia manual no Brasil,

uma verdadeira sumidade na área. Foi uma longa batalha. Depois de

consultar especialistas em Porto Alegre, São Paulo e Rio, saiu correndo

para se operar em Fortaleza. Queria estar em casa para se restabelecer.


Adora andar e estar com muita gente. É difícil encontrá-lo sozinho.

Quando está no Rio — e também quando viaja —, conta com a ajuda de

Jonatas, quase um filho adotivo, com quem tem um laço afetivo grande.

Fagner o conheceu como garçom e hoje é uma espécie de secretário seu.

Em Fortaleza, conta com a competência de Jones Cabbo, que começou a

trabalhar cedo com Fagner e hoje é seu roadie, produtor e braço direito

nas apresentações pelo Brasil. Jones é grande conhecedor da obra de

Fagner e um amigo para todas as horas.

Em Fortaleza, tem vários destinos: a casa da Aldeota, em que vive

sua irmã Marta; a casa de praia em Beberibe, onde vive há trinta anos,

sempre acompanhado de gerações de cachorros (paixão!); gosta de ir a

Orós (a quatrocentos quilômetros da capital) ou de ficar bem mais perto,

no Bar do Vaval, no bairro de Fátima, frequentado desde a adolescência.

É ali que encontra os amigos da antiga e tantos outros que foram se


agregando a essa turma da boemia e da gozação; características, aliás,

bem comuns do povo cearense.

O compadre e amigo de longa data, Ésio, que cuida das

propriedades de Fagner, também passou a frequentar o bar e conta o que

acontece naquelas mesas. “Fagner só escuta o que quer e acho que ele

está certo. O pessoal fala: ‘Fagner é grosso!’ Não é. Fagner não tem

nada de grosso. O pessoal vem com cada coisa idiota que ele, às vezes,

não consegue se segurar. Quando existia essa coisa de autógrafo, ele

passava a noite inteira dando autógrafo. Hoje é selfie. E ele faz pose com

todo mundo. Ou melhor, todo mundo faz pose com ele.”

Outro amigo, Siqueira, o Charutinho, tem verdadeira adoração por

Fagner:

“Ele é um iluminado. Tenho um sítio aqui perto, em Aquiraz, e o

Datena, apresentador da TV Record, o convidou para gravar um especial

e ele fez um show para aquele programa Coração do Brasil. Todo

mundo que entrava lá dizia: ‘Irmão, isso tudo aqui está em harmonia por

causa de Fagner.’ Eram umas cem pessoas. Ele pegou o violão e

ninguém deu um pio. Até os bichos que eu tinha, gansos, patos, todos

ficaram em silêncio. O Datena não acreditava, ele disse: ‘Pensei que eles

iam perturbar a música o tempo todo.’ Ficou aquele silêncio e ele cantou

‘Canteiros’, ‘Mucuripe’. Tudo em harmonia com as pessoas, os bichos e

a natureza do sítio.”

Silêncio é o que Fagner cultiva em dias de show. Não gosta de falar

nem de fazer nada. Para estar esperto à noite, dorme de tarde. Uma

caminhada à beira-mar também faz parte do ritual, que inclui um

mergulho no mar quando é possível. Siqueira conta o que ouviu de

Fagner: a água do mar faz um bem danado ao sistema respiratório

quando inalada.

A amizade — ou um certo medinho — faz com que os

frequentadores do Vaval tomem atitudes surpreendentes e engraçadas.

Quando marcam uma pelada e Fagner se atrasa, todos ficam segurando o

jogo e não fazem gol até que ele esteja em campo, porque o primeiro tem

que ser do Raimundo.

Olival Benício de Sampaio Sobrinho, o Vaval, dono do bar, conta

que Siqueira mandou fazer um ofurô na casa dele e não deixou ninguém

usar: “Não, quem vai inaugurar vai ser o Fagner!”


De fato, Fagner sempre formou times, turmas. Turma de amigos em

mesa de bar, bandas musicais, times de futebol, casa sempre cheia,

assédio de fãs — gosta de se ver rodeado de gente. Quando quer

privacidade ou precisa poupar a voz, recolhe-se. Os amigos mais

chegados sabem reconhecer seus momentos de enturmar-se ou isolar-se

e respeitam.

Na casa de praia, Fagner chegou a ter seis cães, dobermann com

weimaraner. Só entrava ali quem fosse muito amigo e tivesse coragem de

ficar perto dos cães. Eles não atacavam, mas metiam medo. E quando

chegava gente chata, parece que adivinhavam e encarnavam na pessoa.

Quem dormia na casa às vezes tomava muitos sustos à noite com aqueles

cachorros enormes circulando.

Em Orós, o ritual é parecido. Ele mora no topo de um morro,

construiu um apartamento em cima da sua rádio, que leva o nome da

cidade: Orós FM, 105.7. Vários artistas gravaram vinhetas para ela. É o

xodó da região e uma atração turística. Por estar no alto, recebe o vento

do Aracati, que ameniza o calor do sertão.

Em junho de 2017, Fagner recebeu uma notícia que o deixou feliz

da vida. Por iniciativa de políticos da Bahia, foi agraciado com o título

de Cidadão Baiano numa calorosa manifestação popular nas

dependências da Assembleia Legislativa. Por toda a influência que

recebeu da Bahia e de seus ilustres amigos — personalidades do quilate

de Jorge Amado, Glauber Rocha, seu parceiro Capinam, o tropicalista

Piti — e pelo que esse estado representa na cultura brasileira, a

homenagem foi uma das mais emocionantes para o cantor. Tinha

consciência de que o público baiano sempre foi dos mais calorosos com

ele, mas receber esse título foi uma grande e grata surpresa.

No início da carreira, ainda muito jovem e com a petulância que lhe

é característica, Fagner garantia alcançar um dia a popularidade de

Roberto Carlos. Com talento, trabalho e personalidade, tornou-se o que

é hoje: um ídolo popular.

Tem um estilo próprio e inimitável. É um dos grandes vendedores de

disco do país e não precisa se queixar de nada. Provou, ao longo da

carreira, que é uma pantera de movimento rápido. Para onde o vento

bater, é para lá que ele irá. Durante o término deste livro, o vento bateu
por muitos lugares, por isso Fagner segue na estrada, preparando um

novo trabalho, tocando sua Fundação e em busca de novas parcerias.

Vida longa a Raimundo.


Fundação social Raimundo Fagner
Q uem entra no site da FRF (http://www.fundacaofagner.org.br/) logo

se depara com um breve texto que lhe serve de epígrafe e que resume

muito bem o propósito dessa instituição:

“Promover o crescimento integral do ser humano, relacionando

desenvolvimento e aprendizagem, cultura e educação. Investindo na

formação de gerações futuras, dos jovens, e acreditando que estes sejam

capazes de transformar suas realidades.”

A Fundação Raimundo Fagner foi criada em abril de 2000, na

cidade de Orós, por iniciativa do cantor e compositor Raimundo Fagner,

que, preocupado com o contexto de pobreza e exclusão social das

famílias do município, resolveu investir na educação complementar para

o desenvolvimento de duzentas crianças e adolescentes. A proposta logo

recebeu apoio da Prefeitura Municipal e da Fundação Banco do Brasil,

através do Programa AABB Comunidade.

Três anos depois, o projeto se estendeu a Fortaleza, desta vez em

parceria com o Café Santa Clara, futuramente Café Três Corações. Foi

criada mais uma sede para atender ao mesmo tipo de público que, nesse

caso, se compõe de moradores do bairro Parque Itamaraty, localizado na

periferia da capital do estado.


2
Em Orós, a instituição fica situada numa área de 3.100m com

quadras poliesportivas, piscina, salas de atividades artísticas e

educacionais, laboratório de informática, biblioteca e videoteca.


2
Já em Fortaleza, a sua sede ocupa uma área bem maior, de 7.000m ,

adaptada especialmente para o desenvolvimento das atividades a que se

propõe a Fundação. Essa unidade dispõe de salas de aula voltadas para o

ensino de instrumentos musicais, história da arte, dança, capoeira, artes


plásticas, além de salas de som e de vídeo, piscina, campo de futebol,

laboratório de informática e áreas de lazer.

É ali que está instalada a exposição permanente Raimundo Fagner

— Vida e Obra, abrangendo um acervo de trinta anos de carreira do

presidente da Fundação.

As atividades da FRF atendem a um público formado por crianças e

adolescentes de sete a 17 anos, todos regularmente matriculados em

escolas públicas. E esses educandos têm acesso ainda a grupos de arte-

terapia e formação cidadã, que tem como objetivo trabalhar aspectos

ligados ao fortalecimento da identidade, à elevação da autoestima, à

melhoria do relacionamento social e familiar, além de acompanhamento

escolar e atividades lúdicas.

Realizam-se também palestras e ministram-se aulas com enfoque

nos princípios constituintes do desenvolvimento humano, tais como

Direitos Humanos, Equidade, Justiça, Responsabilidade, Preservação

Ambiental e Cidadania.

Para enriquecer ainda mais esse aprendizado, organizam-se visitas

regulares a locais, comunidades e equipamentos que façam parte da

nossa história ou representem marcos artístico-culturais.


Depoimentos

MARTA LOPES – Vice-presidente da Fundação Raimundo Fagner

Quando criamos a Fundação Raimundo Fagner na cidade de Orós,

já sabíamos dos inúmeros benefícios que ela traria para as crianças e

adolescentes daquele município. A ideia de promover a educação

integral teve de imediato o apoio da Prefeitura Municipal de Orós e da

Fundação Banco do Brasil, através do programa AABB Comunidade.

Em outubro de 2003, iniciamos o trabalho da Fundação no Sítio

Canteirão, na comunidade do Parque Itamaraty, na periferia de

Fortaleza, em parceria com a Café Três Corações. Ampliamos o

atendimento para uma comunidade carente e excluída de direitos e

cidadania, dando maior visibilidade a nossa proposta de educação

integral. Trouxemos ainda a exposição Raimundo Fagner — Vida e Obra

para o Canteirão, que teve minha curadoria. Trata-se de um trabalho

minucioso sobre os anos de história do cantor Raimundo Fagner, meu

irmão, que catalogamos ao longo de sua carreira. Hoje a Fundação está

consolidada através dos programas e projetos que desenvolve. Me sinto

realizada em contribuir para o desenvolvimento social e cultural das

famílias atendidas pela Fundação. Só temos a agradecer o trabalho e o

carinho com que todos tratam as crianças aqui e em Orós!!

TEREZA TAVARES – Diretora

Minha história com a Fundação Raimundo Fagner começou em

2003, quando fui convidada para implementar a instituição em

Fortaleza. Nesse momento, decidiu-se pelo fortalecimento das ações da

entidade através do projeto Aprendendo com Arte, com foco na música.

Investimos no potencial das crianças e jovens no sentido de lhes


propiciar formação integral para o trabalho e a vida. Em 2011, num

momento de transição profissional, aceitei o convite para ser diretora da

instituição.

Experimentamos um modelo de gestão participativa, integrando

coordenação e equipe, e fomos gradativamente expandindo as ações do

projeto e das parcerias. Esse movimento impulsionou um novo fazer, um

novo pensar da Fundação Raimundo Fagner. Nesse período, os desafios

materializaram nossas falas e atitudes, constituindo uma ação de

inclusão social, de acesso à cultura, de conhecimento da arte junto a

crianças, adolescentes e famílias de classes populares. Tudo feito por

meio da arte, que nos permitirá tornar o impossível possível na vida das

crianças e dos adolescentes que vivem hoje no Parque Itamaraty, em

Fortaleza, e na cidade de Orós, acenando para novas conquistas, para a

construção de novos sentidos e de uma vida diferenciada, movida pela

esperança e pela ética.

São 15 anos de muito trabalho, muito aprendizado e enorme

expansão de olhar para o desenvolvimento humano, em especial dos

Direitos Humanos e da Cidadania. São enormes os desafios quando o

presente nos aponta um futuro cheio de possibilidades, invenções e

compromissos em torno da infância e da adolescência cearense. Juntos

aprendemos a entender o papel da Fundação para a sociedade.

DÉBORA CIPRIANO – Psicóloga

Falar sobre a Fundação Raimundo Fagner é antes de tudo falar sobre

a minha história de vida. Cresci com a sensação de que Fagner era uma

pessoa muito próxima a mim, um ente querido, um rosto familiar, uma

espécie de tio distante que sempre estava presente de alguma forma.

Essa sensação de parentesco foi cultivada em mim através da influência

direta de minha mãe, uma fã número 0! Muitos momentos em família

foram embalados pelas canções de Fagner. Momentos simples, sem

grandes cenários e enredos, como a faxina de sábado e a limpeza da

louça. Fagner estava presente em nosso cotidiano. Aquela voz forte me


contou histórias sobre o sertão e sobre minha identidade nordestina.

Anos mais tarde, já finalizando o curso de Psicologia, participei de uma

seleção para estagiária na FRF e fui aprovada. Entrei ali com a ideia

pequena de estar numa instituição que levava arte e música para crianças

e adolescentes, um espaço de ensino de música erudita e popular. Mas,

para minha felicidade, eu estava enganada! É muito maior que isso. A

FRF utiliza a música como uma ferramenta de transformação social,

atendendo crianças e adolescentes que, de alguma forma, estão em

situação de vulnerabilidade e risco. A Fundação é um espaço onde se

ensina cidadania, ética e pensamento crítico como ferramentas

importantes para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

É um espaço onde a criança e o jovem são estimulados a serem

protagonistas de suas histórias, fortalecendo sua autoestima, sua

capacidade crítica e tornando-os cidadãos responsáveis e ativos perante

sua comunidade. Muitas histórias são contadas e reescritas

cotidianamente nesse espaço. Tantas histórias já presenciei e

acompanhei nessa longa jornada... Quantas crianças e famílias foram

impactadas positivamente pelo projeto. E, mesmo após oito anos na

instituição, é difícil descrever a grandiosidade desse lugar. Hoje

compreendo que o maior legado de Raimundo Fagner não é apenas sua

obra como artista, coisa que todos sabem. O legado de Fagner está na

periferia de Fortaleza, no Parque Itamaraty; está no interior do Ceará, no

município de Orós, alimentando os sonhos de quatrocentas crianças e

dizendo a elas todos os dias que é possível transformar suas realidades.


Obrigada Fagner, obrigada equipe FRF! É uma honra fazer parte

desta história.
JHON SOUSA – Ex-aluno e professor de flauta

“Nosso futuro se realiza como sonho de criança.”

Eu me chamo Jhon, tenho 25 anos, nasci na cidade de Fortaleza

(CE). Fui educando e atualmente sou educador de Musicalização

Infantil e Flauta Doce na Fundação Social Raimundo Fagner.

Tudo começou em 2004, em um bairro abandonado pelo poder

público, onde as drogas e a criminalidade sempre foram presentes na

vida de jovens e adultos. Passei por muitas dificuldades por ser filho de

pais separados. Com isso, somente minha mãe trabalhava em casa de

família para me sustentar e ao meu irmão. Foi aí que ouvi falar da

Fundação na escola em que eu estudava, por meio de colegas que se

referiam a esse projeto que oferecia aulas de música e esporte gratuitas.

Rapidamente informei minha mãe sobre as inscrições, mas sem sucesso,

porque, como ela trabalhava durante a semana toda e só voltava para

casa aos finais de semana, era impossível ir comigo fazer minha

inscrição.

Mas isso não me impediu de ir até lá e fazer tudo sozinho. Da

primeira vez, não fui selecionado para entrar e fiquei muito triste, já que

a maioria dos meus colegas da escola havia sido selecionada.

Com o passar do tempo, em agosto de 2004, ligaram para um

orelhão na rua onde morava e moro até hoje. Eu mesmo atendi o

telefonema e recebi a notícia de que tinha sido selecionado para

participar do projeto. E foi aí que tudo começou...

Conhecer a arte, vivenciar grandes espetáculos, aprender com

grandes professores, conhecer tudo aquilo que eu jamais sonhava por

viver em um bairro em que as oportunidades eram vistas como um

futuro incerto.

Hoje posso dizer que por meio da Fundação e pela pessoa do nosso

grande presidente Raimundo Fagner, vidas foram transformadas, e

continuam sendo, por meio da competência e seriedade desse trabalho

na vida de várias crianças e adolescentes que lutam por um futuro

melhor.

À
Às vezes, faltam até palavras para definir a grandiosidade desse

projeto e desse trabalho que transforma vidas, dando oportunidades e

escolhas diferentes. Não se trata de se tornar um grande músico ou um

professor, mas, sim, de mostrar caminhos por meio da arte como

instrumento veiculador para formar grandes cidadãos e profissionais

através da cultura.

Tenho orgulho de falar do meu passado e do meu presente: hoje

estou cursando Licenciatura em Música na Universidade Estadual do

Ceará — UECE, e sou educador de Musicalização Infantil e Flauta Doce

na Fundação Social Raimundo Fagner.

Transcrição de depoimento oral de RAFAELA – mãe dos alunos

Marina e Rian

Eu me chamo Rafaela e tenho dois filhos na Fundação Raimundo

Fagner, a Marina e o Rian. Para mim, a fundação representa um local de

apoio e aprendizado para as crianças e também para os pais, pois,

quando resolvi inscrever a minha filha no programa, foi para ela não

ficar em casa sem fazer nada. Mas o tempo passou e vi que não era só

aquilo: lá ela teria oportunidade de conhecer coisas que não conheceria

de outro jeito, pois nem em casa nem na escola Marina teria condições

de ter esse contato com instrumentos e com a música. Assim que percebi

como o projeto era maior do que eu imaginava, quis inscrever o meu

outro filho na Fundação. Hoje posso dizer que esse lugar fez a diferença

na vida dos meus filhos e da minha família. Que orgulho ver os dois

tocando flauta e outros instrumentos! No ano passado, o Rian participou

de um espetáculo de teatro e fiquei toda orgulhosa vendo aquele menino

tão tímido e envergonhado atuando e falando naquele palco. Assisti às

quatro apresentações e chorei em todas elas porque, graças a esse

projeto, o meu filho deixou a timidez de lado, foi em frente e sei que isso

o ajudou muito. Já a minha filha, que também é muito tímida, adora

tocar flauta e agora está encantada com o piano — mais um aprendizado

para ela e, para mim, mais um motivo para vibrar com as suas
conquistas e apoiá-la. Chego a me emocionar quando eles tocam, pois

vejo nos seus olhos que os dois gostam do que estão fazendo. Então, só

tenho a agradecer à Fundação Raimundo Fagner por existir no nosso

bairro, por fazer parte da nossa vida, por ajudar tanto os nossos filhos.

Mas sempre digo que esse projeto tem que ser uma via de mão dupla,

pois a Fundação precisa contar com a presença e o apoio das famílias

para poder seguir o seu caminho. Queria terminar esse depoimento

agradecendo a Raimundo Fagner pela criação do projeto e por acreditar

que é possível transformar. Que Deus abençoe a todos que fazem parte

da Fundação e que eles sejam perseverantes para que muitas outras

crianças tenham a oportunidade que meus filhos tiveram. Muito

obrigada.
índice fotográfico
Todos os esforços foram feitos para identificar corretamente a

origem das imagens deste livro. Nem sempre foi possível. Teremos

prazer em creditar as fontes, caso se manifestem, nas próximas

edições.

Imagem 1: Em show, nos primeiros anos da carreira. Acervo

Raimundo Fagner.

Imagens 2, 3 e 4: Raimundo Fagner, 1973. Acervo Raimundo

Fagner.

Imagem 5: Arthur e Maria Clara, netos de Fagner. Acervo

Raimundo Fagner.

Imagem 6: Fagner com o filho Bruno e a neta Maria Clara. Acervo

Raimundo Fagner.

Imagem 7: Fagner tirando uma selfie com o neto Arthur e o filho

Bruno. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 8: Contato com fotos da trajetória de Fagner: com um

mês; com seis meses; com dois anos; em 1970 com Ricardo, Jorge

Mello e Ribamar Vaz; em 1968 no Rio Grande do Sul, indo para a

Argentina; em 1970, com Ricardo, em Brasília; em 1971, em Paris


com Pedro Soler e Pepe de La Matrona. Foto:Silvio

Ferreira/Acervo Abril.

Imagem 9: Rua da Capela; Estação da RVC; Rua do Comércio;

Prefeitura Municipal; Vista parcial da cidade; Orós, Ceará. Acervo

IBGE.

Imagem 10: O imigrante libanês Youssef Fares Haddad Lubous e a

cearense Francisca Candido, pais de Fagner. Acervo Raimundo

Fagner.

Imagem 11: Vista parcial da cidade; Orós, Ceará. Acervo IBGE.

Imagens 12, 13, 14, 15, 16 e 17: Fotos de Fagner criança. Acervo

Raimundo Fagner.

Imagem 18: Durante a infância com a irmã, Elizete. Acervo

Raimundo Fagner.

Imagem 19: Brincando de dirigir. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 20: Primeira foto de Fagner com um instrumento. Clube

do Rio Seco – Orós, Ceará. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 21: Fagner em Orós, Ceará. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 22: Posando para foto de braços cruzados. Acervo

Raimundo Fagner.

Imagem 23: Em sua primeira comunhão. Acervo Raimundo

Fagner.
Imagem 24: Cantando no programa Sete dias em destaque, de João

Ramos, na TV Ceará. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 25: Fagner adolescente. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 26: Com seus pais e sua irmã Marta. Acervo Raimundo

Fagner.

Imagens 27, 28 e 29: Fotos de Fagner na adolescência. Acervo

Raimundo Fagner.

Imagem 30: Com Ricardo Bezerra no programa Porque Hoje é

Sábado, TV Ceará, 1969. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 31: Fagner (violão), Cláudio Pereira (ao lado direito),

Sérgio Pinheiro e membros do grupo Capela Sistina em excursão

para Buenos Aires em 1968. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 32: No Festival de Música Jovem do CEUB, Brasília,

1971. Acervo Raimundo Fagner.

Imagens 33 e 34: Fagner recebendo prêmio e cantando no Festival

de Música Jovem do CEUB, Brasília, 1971. Acervo Raimundo

Fagner.

Imagens 35 e 36: Fagner com troféus do Festival de Música Jovem

do CEUB, Brasília, 1971. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 37: Fagner cantando durante o Festival de Música Jovem

do CEUB, Brasília, 1971. Acervo Raimundo Fagner.


Imagem 38: Fagner com o Pão de Açúcar, famoso cartão-postal do

Rio de Janeiro, ao fundo. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 39: Fagner com Ricardo Bezerra, Jorge Mello e Ribamar

Vaz. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 40: Fagner com Maestro Briamonte e Cirino durante

gravação no Studio Gazeta. São Paulo, 10 de novembro de 1971.

Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 41: Belchior e Fagner na TV Cultura. Outubro de 1971.

Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 42: Fagner na TV Cultura São Paulo. Outubro de 1971.

Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 43: Fagner com Elis Regina e Ronaldo Bôscoli. Acervo

Raimundo Fagner.

Imagem 44: Fagner com a mãe Francisquinha e Lydia Libion, que

o acolheu no Rio de Janeiro. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 45: Ivan Lins ao piano, Roberto Torres (ao fundo) e

Fagner no violão durante o Festival de Música do CEUB, em 1972.

Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 46: Raimundo Fagner durante apresentação no Phono 73

no Ginásio do Anhembi, em São Paulo, 15 de maio de 1973. Foto:

Claudine Petroli/Estadão Conteúdo.

Imagem 47 e 48: Capa e contracapa do LP Manera Fru Fru

Manera, 1973. Acervo Raimundo Fagner.


Imagem 49: Fagner e Ricardo Bezerra. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 50: Jornal do Brasil, 3 de junho de 1973. Página 14.

Imagens 51, 52, 53, 54, 55 e 56: Patativa do Assaré e Fagner.

Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 57: Com Naná Vasconcelos, 15 de maio de 1973. Foto:

Luis Paulo/Agência O Globo.

Imagem 58: Jorge Ben (esquerda), Raimundo Fagner (centro) e

Gilberto Gil durante o Phono 73 realizado no Pavilhão de

Exposições do Anhembi, em São Paulo, 11 de maio de 1973. Foto:

Claudine Petroli/Estadão Conteúdo/AE.

Imagem 59: Jornal do Brasil, 2 de outubro de 1973. Página 5.

Imagem 60: Os músicos Jorge Ben, Fagner e Gilberto Gil durante

o show Phono 73, realizado no Anhembi, em São Paulo, 16 de

maio de 1973. Foto: Claudine Petroli/Estadão Conteúdo/AE.

Imagem 61: Fagner e Garrincha em partida de futebol entre ex-

jogadores profissionais e artistas, 19 de dezembro de 1973. Acervo

Raimundo Fagner.

Imagem 62: Moraes Moreira, Paulinho da Viola e Fagner em jogo

de futebol. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 63: Na comemoração de seu disco de platina, Fagner

levou ao Castelão os amigos Sérgio Lopes, Batista, Edu, Osmar

Guarneli, Roberto Dinamite, Reinaldo, Eder, Rivelino, Sócrates,

Cláudio Adão e Jairzinho. Acervo Raimundo Fagner.


Imagem 64: Fagner e sua amiga Amelinha. Acervo Raimundo

Fagner.

Imagem 65: Com o ex-jogador Afonsinho. Acervo Raimundo

Fagner.

Imagem 66: Ney Matogrosso com Fagner no Festival de Belo

Horizonte, 1975. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 67: Ney Matogrosso e Raimundo Fagner na época que

gravaram disco juntos. Acervo Raimundo Fagner.

Imagens 68 e 69: Contato de fotos de Fagner com Chico Buarque;

Roberto Carlos; Paulinho da Viola e Moraes Moreira; Ney

Matogrosso. Fotos: Silvio Ferreira/Acervo Abril.

Imagem 70: O cantor e compositor Fagner, em 1977. Acervo

Folhapress.

Imagem 71: Fagner com Paulinho da Viola, Jards Macalé, João

Bosco, Lena Trindade e Abel Silva. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 72: Terezinha de Jesus, Grace, Dominguinhos, Abel Silva

e Fagner. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 73: Raimundo Fagner com sua boina de estimação.

Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 74: Capa do LP Eu Canto — Quem Viver Chorará, 1978.

Acervo Raimundo Fagner.


Imagem 75: Carlos Marques com Fagner em Paris. Acervo

Raimundo Fagner.

Imagem 76: Raimundo Fagner com a irmã Elizete e os sobrinhos

Leonardo, Vicente Junior, Larissa e Lorena. Acervo Raimundo

Fagner.

Imagem 77: Em show ao ar livre na década de 1970, com camisa

da seleção brasileira. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 78: Com a amiga Nara Leão. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 79: Assinatura do contrato com a CBS. Lydia, Ronaldo

Bôscoli, Helio, Marcos Lazaro, Claudio Conde, Jacques, Fagner,

Tomaz Munhoz (presidente da gravadora no Brasil). Acervo

Raimundo Fagner.

Imagem 80: Fagner com Mercedes Sosa no programa Grandes

Nomes — Raimundo Fagner Candido Lopes, TV Globo, 1981.

Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 81: Manzanita, Mercedes Sosa, Fagner e Henrique de

Melchor. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 82: Fagner e Jorge Amado. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 83: Fagner e Jorge Amado visitam Glauber Rocha em

Portugal. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 84: Nara Leão e Raimundo Fagner no programa Grandes

Nomes — Raimundo Fagner Candido Lopes, TV Globo, 1981.

Acervo Raimundo Fagner.


Imagem 85: Fagner no especial Sorriso Novo, TV Globo, 1982.

Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 86: Zico e Fagner em foto promocional do LP Batuque de

Praia. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 87: Rafael Alberti, Mercedes Sosa e Fagner. Acervo

Raimundo Fagner.

Imagem 88: Recorte de jornal “Tudo sobre o especial de Fagner”.

Acervo Raimundo Fagner.

Imagens 89 e 90: Capa e contracapa do LP Palavra de Amor,

1983. Acervo Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB).

Imagem 91: Discursando em comício pelas Diretas Já, na

Candelária (Rio de Janeiro), em 1984. Foto: Aníbal Philot/Agência

O Globo.

Imagem 92: Com Nelson Gonçalves. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 93 e 94: Capa e contracapa de A Mesma Pessoa, 1983.

Acervo Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB).

Imagem 95: Jornal do Brasil, 11 de outubro de 1984. Página 32.

Imagem 96: Fagner e Tasso Jereissati. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 97: Tasso Jereissati, Fagner e Ciro Gomes. Acervo

Raimundo Fagner.
Imagem 98: Luiz Gonzaga e Fagner. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 99: Fagner e Joanna. Acervo Raimundo Fagner

Imagem 100 e 101: Contracapas dos LPs O Quinze (Acervo

Instituto Memória Musical Brasileira) e Romance no Deserto

(Acervo Raimundo Fagner), ambos produzidos por Michael

Sullivan.

Imagem 102: Fagner no especial Roberto Carlos, TV Globo, 1991.

Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 103: Roberto Carlos com Fagner e Xororó nos bastidores

do seu especial, em 1991. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 104: Chico Buarque com Raimundo Fagner. Acervo

Raimundo Fagner.

Imagem 105: Gonzaguinha, Fagner e Luiz Gonzaga. Acervo

Raimundo Fagner.

Imagem 106: Silvio Caldas com Fagner. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 107: Clarín, 19 de janeiro de 1991. Página 5. Acervo

Raimundo Fagner.

Imagem 108: Fagner e Lilibeth Monteiro de Carvalho. Acervo

Raimundo Fagner.

Imagem 109: Fafá de Belém, Roberto Carlos e Fagner nos

bastidores do especial Roberto Carlos, 1991. Acervo Raimundo


Fagner.

Imagem 110: Roberto Menescal e Fagner em show. Acervo

Raimundo Fagner.

Imagem 111: O Povo, 24 de fevereiro de 1996. Acervo Raimundo

Fagner.

Imagem 112: Ângela Maria com Fagner no programa Som Brasil,

TV Globo, 1996. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 113: Fafá de Belém, Djavan, Agnaldo Timóteo, Roberto

Carlos, Luciano, Zezé Di Camargo, Ângela Maria, Fagner, Milton

Nascimento, Nana Caymmi, Alcione e Emílio Santiago no

programa Som Brasil, 1996. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 114: Fagner e Pelé. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 115: Com Zezé Di Camargo no programa Planeta Xuxa,

TV Globo. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 116: Ângela Maria e Raimundo Fagner. Acervo Raimundo

Fagner.

Imagem 117: Dori Caymmi, Fagner e Maurício, maestro do grupo

Boca Livre. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 118: Marta e seu irmão Fagner. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 119: Sala com LPs do cantor na Fundação Raimundo

Fagner, em Fortaleza. Acervo Raimundo Fagner.


Imagem 120: Dona Chiquinha com o filho Fagner na Fundação

Raimundo Fagner. Acervo Raimundo Fagner.

Imagens 121 e 122: Raimundo Fagner em show no Dragão do Mar.

Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 123: Fagner abraçado com Cazuza. Acervo Raimundo

Fagner.

Imagens 124 e 125: Inauguração e fachada da sua Fundação, em

Fortaleza. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 126: Raimundo Fagner, em 20 de setembro de 2004. Foto:

Salvador Scofano/Agência O Globo.

Imagens 127 e 128: Recortes de jornal sobre a carreira de Fagner.

Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 129: Fagner, em 20 de setembro de 2004. Foto: Salvador

Scofano/Agência O Globo.

Imagem 130: Em show no Dragão do Mar. Acervo Raimundo

Fagner.

Imagem 131: Em 8 de outubro de 2008, Fagner abre a temporada

de shows em comemoração aos dez anos do Teatro Santo

Agostinho, em Belo Horizonte. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 132: Capa do LP da trilha sonora da novela Coração

Alado. Acervo Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.

Foto: Pepe Schettino.


Imagens 133 e 134: Os músicos Fagner e Zeca Baleiro posam para

fotos em hotel na zona sul de São Paulo, 17 de dezembro de 2003.

Foto: Juca Varella/Folhapress.

Imagem 135: Show no bar Chico e Adelaide, no Leblon, 26 de

agosto de 2013. Foto: Simone Marinho/Agência O Globo.

Imagem 136: Zé Ramalho, Moraes Moreira, Fagner e Jackson do

Pandeiro. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 137: Fagner e Zé Ramalho. Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 138: O cantor Raimundo Fagner, ao lado dos cantores

Nando do Cordel e Falcão, na Comissão de Constituição e Justiça

do Senado durante discussão sobre a PEC da Música, 11 de

setembro de 2013. Foto: Givaldo Barbosa/Agência O Globo.

Imagem 139: Fagner com seu inseparável violão. Acervo

Raimundo Fagner.

Imagem 140: Foto feita por Fagner do Rio de Janeiro. Acervo

Raimundo Fagner.

Imagem 141: Foto feita por Fagner de sua cadela. Orós,

Ceará.Acervo Raimundo Fagner.

Imagem 142: Fagner, Chico Anysio e Tom Cavalcanti. Acervo

Raimundo Fagner.

Imagem 143: Show do cantor no Teatro Municipal durante a

Virada Paulista de 2013. Foto: Ariel Martini.


Imagens 144, 145, 146, 147, 148, e 149: Crianças da Fundação

Raimundo Fagner, em Fortaleza. Acervo Raimundo Fagner.


agradecimentos

José Marcio Penido, Susana Horta Camargo, Erika Trujillo, Marta

Lopes, Tereza Tavares, Leonardo Netto, Wagner Baldinato, José

Mario Pereira, Fausto Nilo, Jones Cabbo, Janaína Senna, Daniel

Stycer e a todos os entrevistados.


caderno de imagens
Álbum de família — Fagner com dona Chiquinha, sua mãe; os pais do artista: Francisca

Candido e Youssef Fares Haddad Lubous; e Raimundo Fagner com dois anos. O caçula da

família recebeu esse nome por uma confusão do tabelião.


Com a neta Maria Clara.

Com o filho Bruno e o neto Arthur.


O compositor durante a juventude. Com os prêmios do Festival de Música Jovem do CEUB de

1971, em Brasília, Fagner pôde se aventurar a tentar a carreira de músico no Rio de Janeiro.
Fotos do cantor nas décadas de 1980 e 1990. Eleito como símbolo sexual por Silvio Santos,

Fagner foi muito assediado, mas sempre preservou sua vida pessoal.
Apresentação no Forró Caju, em 2005. O público do festival na capital sergipana assistiu à

homenagem feita pelo cantor ao amigo Luiz Gonzaga.


Registros de diversas apresentações de Fagner durante sua carreira. Conhecido pela presença

forte e voz marcante, o artista foi influenciado pela cantoria árabe do pai e pelas canções que

tocavam no rádio.
Durante apresentação de Gilberto Gil no Phono 73 — O Canto de um Povo. Além dos dois

cantores, participaram do festival, realizado entre 10 e 13 de maio de 1973, artistas como Rita

Lee, Os Mutantes, Chico Buarque, Elis Regina, Ivan Lins, Jorge Ben, Vinicius de Moraes,

Caetano Veloso, Gal Costa, Luiz Melodia, Maria Bethânia e Nara Leão. Foto: Mário Luiz

Thompson.
Ingressos de vários shows de Raimundo Fagner. A coleção faz parte da memorabília da

Fundação Raimundo Fagner.


O cantor durante apresentação do show Me Leve, de 2002. O trabalho foi gravado ao vivo no

Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro.


Capas de seus discos em ordem cronológica:
Disco de bolso do Pasquim (1972); coletânea Os Grandes Sucessos do F.I.C. (1972); Manera

Fru Fru Manera (1973); Ave Noturna (1975); Raimundo Fagner (1975); Orós (1977); Soro

(1977); Eu Canto — Quem Viver Chorará (1978); Beleza (1979); coletânea Programa Especial

— Volume 3 (1979); trilha sonora da novela Coração Alado (1980); Fagner e Belchior (1980);

Raimundo Fagner (1980); Traduzir-se (1980); Fagner (1982). Acervo Instituto Memória Musical

Brasileira (IMMuB); Fumo (1982); A Mesma Pessoa (1983).

Exceto pela capa do IMMuB, todas as outras foram reproduzidas no acervo do Museu da

Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Foto: Pepe Schettino.

Homenagem a Picasso (1983); Palavra de amor (1983); Dez anos (1983); História da Música

Popular Brasileira — Série Grandes Compositores (1984). Instituto Memória Musical Brasileira

(IMMuB); Luiz Gonzaga e Fagner (1984); Fagner (1986); Gonzagão e Fagner (1987); Romance

no Deserto (1987); capa do LP Cartaz (1989); Chave de Mim (1989); O Quinze (1989);

Presença (1989); Pedras que Cantam (1989); Raimundo Fagner — En Español (1991). Acervo

Raimundo Fagner; Fagner, Elba, Zé, Amelinha (1992); Demais (1993); Caboclo Sonhador

(1994).
Durante a juventude, com alguns amigos, como Ricardo Bezerra (na rede), Bete, Petrúcio Maia

(mãos nas bochechas), Jorge Mello, Pitty Melo e Nelson Bezerra.


Em um dos grandes momentos de sua carreira: o dueto com Cauby Peixoto cantando “Tortura”

no programa Grandes Nomes: Raimundo Fagner Candido Lopes, na TV Globo, em setembro de

1981.
Com o ídolo da Jovem Guarda Erasmo Carlos.
Registro com a amiga e cantora Elba Ramalho.
Com Abelardo Barbosa, o Chacrinha, de quem recebeu em 1980 o troféu de Melhor Intérprete.
Com o poeta Vinicius de Moraes, que teria dito: “Gosto de conversar com o Fagner porque ele é

muito espirituoso. Ele tem sempre a resposta certa. Às vezes é muito ferino.”
Com Djavan, que participou do CD Amigos e Canções, o 22o álbum da carreira de Fagner.
Com o instrumentista Armadinho.
Com o amigo e companheiro dos palcos Dominguinhos.
Entre Danilo e Dorival Caymmi.

Estrelas da música popular brasileira na gravadora CBS durante a década de 1980: Fábio Júnior,

Fagner, Djavan, Roberto Carlos, Ritchie, Simone e Tomaz Munhoz, presidente da gravadora no
Brasil.
Com o multi-instrumentista Hermeto Pascoal, responsável pelos arranjos do aclamado LP Orós,

de Fagner.

Com Paco de Lucía, com quem gravou o álbum Homenagem a Picasso, em 1983, que contou

ainda com outros cantores ilustres.


Com o guitarrista Pedro Soler e o cantor de flamenco Pepe de la Matrona, com quem se

apresentou em Paris na década de 1970.


Com Milton Nascimento.
Com Chitãozinho e Xororó nos bastidores do especial Roberto Carlos de 1991.
Com os parceiros musicais: Zezé Di Camargo & Luciano.

Com Ivan Lins, amigo que fez assim que chegou ao Rio de Janeiro.
Com Jerry Adriani, ídolo da Jovem Guarda.
Em estúdio com o amigo Luiz Melodia.
Com Naná Vasconcelos.
Abraçado ao ídolo de infância Luiz Gonzaga, com quem gravou dois LPs.
Ao lado de Miúcha e do compositor maranhense João do Vale.

Fagner participou de vários jogos amistosos como esse em 1989 no campo do Flamengo na

Gávea, Rio de Janeiro. Na foto Chico Buarque, Vinícius França, Vinícius Cantuária e Miltinho.
Apaixonado por futebol, fez amizade com vários esportistas. Entre Zico e Sócrates.
Recebendo um disco de ouro das mãos de Jairzinho.

Com Rivelino.
Com Ronaldo Fenômeno na Copa do Mundo de Futebol na França.
Seu Fares, pai do cantor, entre o jogador de futebol Roberto Dinamite e o filho.
Fagner posa com a camisa do Fortaleza Esporte Clube para um álbum de figurinhas do seu time

do coração.
Em 1982, gravou com o compadre Zico um compacto com a música “Batuquê de Praia”, sucesso

no Carnaval daquele ano.

Capa do convite da exposição individual das pinturas e fotografias do artista Raimundo Fagner.
Algumas de suas obras.
DIREÇÃO EDITORIAL

Daniele Cajueiro

EDITORA RESPONSÁVEL

Janaína Senna

PRODUÇÃO EDITORIAL

André Marinho

Carolina Rodrigues

REVISÃO

Ana Grillo

Luisa Suassuna

PROJETO GRÁFICO DE MIOLO

Larissa Fernandez Carvalho

DIAGRAMAÇÃO

Letícia Fernandez Carvalho

PESQUISA DE IMAGEM

Priscila Serejo

PRODUÇÃO DO EBOOK

Ranna Studio

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