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SUMÁRIO

Prefácio
Introdução – por Eduardo Barão
Introdução – por Pablo Fernandez
A estreia tardia no rádio
Para se fazer ouvir...
... E tocar as pessoas
Frank Sinatra: lho de quem?
Horário brasileiro do Boechat
Provocador e apostador nato
O velho sungão vermelho
Sem a resposta do acusado
Buemba!, Buemba! A dupla com José Simão
Aposta sem vencedor
Ingressos para os Rolling Stones
A curta vida de repórter de TV
Perigo, tubarão!
Última chamada, Boechat!
Um Twingo para chamar de meu
Segura o choro, Boechat!
Corta o microfone dele!
Você está aí?
Santo remédio
“Vai procurar uma rola!”
“Eu vivo esse momento lindo”
Rio 2016: “Aqui eu conheço”
A tragédia dos frangos
A teoria do vestido verde
“Não me fode, Pablito!”
Eterno cantinho
Coração gigante
Falta no trabalho abonada
Arte e ciência: o mecenas oculto
Pressão! #SQN
A depressão
Fala, Jacaré!
Amigo de Maitê Proença
Mais apuros: socorro!
Boate Kiss: 242 dias de revolta
O Rappa: fã e ídolo
Bom Dia Brasil
Até que en m, férias!
PGN, o Partido da Genitália Nacional
“Black bostas”
A volta às urnas
Paixão pelo futebol e pelo Flamengo
“Perdeu, playboy” – o meme
É muita loucura sem drogas
Che a, prepara o bolso!
Lixo sobre rodas
Foto especial
Neto, me salva!
O apê do Boechat
Petrobras: como se fala mesmo?
Lava Jato: a esperança
A pasta marrom
O submundo dos óculos perdidos
Uma nova agenda
Moedinhas: quem me ajuda?
Mototáxi: o risco calculado
Alguém viu a minha aliança?
Minha mãe, minha ouvinte
Bate-boca entre amigos
Dia de alquimia: a explosão
O futuro do planeta
Rock por Aleppo
Cartilhas e autodescrição
Um dia de sorte
Ligado em Tom e Jerry
Eu pago o baseado
Âncora do Zoonews
“Cala a boca, Boechat!”
Reconhecimento a quem é de direito
Broncas: só sabe quem levou
Na retórica e na inteligência
O amor pela notícia
Amarelo piscante?
Filhos e mais lhos
Milton Neves, o Pitonisa
“Cadê a Paulinha?”
Deixa que eu chuto!
Vendedor de jazigos
A 5ª série B por trás dos microfones
O assalto no viva-voz
Basquete: a bola de papel
Perdeu? Eu também
Jantar entre inimigos: petralhas X coxinhas
“O que é Instagram?”
Almoço sagrado: a hora da família
A espera no alto da escada
Os quilos a mais em São Paulo
O primeiro e último livro
Almofadinha, senão dói
Nunca é tarde para se reinventar
O dia do encontro com Reinaldo Azevedo
Larga a minha cadeira!
Minha cadeira 2: a obra de arte
As escapadas no celular
Duas viaturas, quase cem processos e uma derrota
Margareth e o Brasileirão de 2009
Horror a chefes
O dia do adeus: não era a hora
O velório: amigos, fãs e conforto
O primeiro Dia das Mães sem ele
AGRADECIMENTOS

À minha esposa Michelle e aos meus lhos Rafael e Tomás, companheiros de


todos os momentos, principalmente dos difíceis. A meu irmão Fred e aos meus
pais Fátima e Izidoro, que me aguentaram desde cedo. À minha avó Dirce e ao
meu bisavô Barão, que me deixaram a paixão pelo rádio e pelo São Paulo. À
minha segunda mãe, Mercedes, e à minha amiga Veruska, que me fez chorar
com seu lindo prefácio. Ao meu querido parceiro Pablo, e aos meus
companheiros da Band, principalmente da BandNews FM, que junto com os
ouvintes não deixaram o barco naufragar, apesar da perda de nosso
insubstituível capitão.
Eduardo Barão

Agradeço, primeiramente, ao próprio Boechat – que deveria estar aqui – pelo


privilégio de ter trabalhado e aprendido tanto ao lado dele. À minha mãe, por
ser apenas quem é: o maior exemplo de ser humano na Terra. À minha família,
incluindo minha mulher, ais, e minhas lhas Ana Carolina e Giulia, pelo
apoio e paciência. Aos meus colegas e amigos de BandNews FM e de outras
emissoras, além das fontes  cultivadas, que fazem e zeram parte de toda essa
história.
Pablo Fernandez
PREFÁCIO
POR VERUSKA BOECHAT

O rádio foi a grande paixão do meu marido, Ricardo Boechat, no jornalismo.


Embora tenha relutado em aceitar fazê-lo e gostasse de contar publicamente
que fui eu que o convenci a isso, ele se apaixonou perdidamente por esse
veículo assim que deu o primeiro beijo. Se ressentia de ter demorado a
conhecer esse amor, que só veio depois de quarenta anos de jornal impresso e
de anos de TV ao vivo.
O que o encantava no rádio não era apenas a possibilidade de contar as suas
histórias por longos minutos, sem as amarras do tempo exíguo da televisão ou
dos poucos caracteres de uma nota de coluna de jornal. Ele amava a interação
em tempo real com os ouvintes de todas as idades e classes sociais, sempre
ligando ou escrevendo a todo o momento sobre o que ele tinha acabado de
dizer no ar, e amava mais ainda o tanto que cada um desses ouvintes se sentia
próximo o su ciente para abordá-lo, elogiá-lo, ou cobrá-lo, como a um parente
próximo, por mensagem ou na rua.
E foi nesse ambiente que ele conviveu com Eduardo Barão, Pablo Fernandez
e toda a equipe da rádio BandNews FM durante 13 anos, de fevereiro de 2006,
quando nos mudamos para São Paulo, a fevereiro de 2019, três, quatro, às
vezes até cinco horas por dia, de segunda a sexta. Ali ele se sentia em casa, em
família, à vontade para ensinar, para aprender, para dar bronca e para se
orgulhar.
Todas as histórias contadas neste livro, juntas, ilustram um pouco do que era
o meu marido, invariavelmente o mesmo, fosse no ar ou em o (fora dos
microfones), dentro de casa ou em público, se omitindo jamais, correndo risco
sempre.
Quem fosse fã do que ele dizia ao microfone gostava dele de verdade, porque
ele não tinha personagem, era o que demonstrava ser.
Eventualmente, gostava de emitir opiniões, que mesmo sendo suas, preferia
no ar atribuir à mãe, dona Mercedes, para dar mais isenção, e ela me ligava
indignada de ser citada abertamente por con ssões que havia feito no privado.
Também atribuía a mim no ar piadas que inventava, como a que eu me
recusava a entrar no Twingo dele, e eu brincando ameaçava um dia desmentir
por meio do direito de resposta. Ele chegava em casa se gabando, mesmo
correndo o risco de levar bronca depois.
Contava para a equipe coisas que fazia “escondido de mim”, como pagar
contas e planos de saúde de conhecidos e desconhecidos, e depois vinha me
confessar não só o que tinha feito, mas para quem havia contado. Igual a uma
criança.
Tinha uma bagagem de informação tão gigante, tão incrível, tão admirável do
jornalismo que chegava em cima da hora de entrar no ar e desenvolvia de
cabeça raciocínios que muitas vezes pautariam noticiários da própria Band e da
concorrência naquele dia. Na época em que teve depressão, foi difícil fazê-lo
entender que aquilo a que ele estava acostumado, o improviso, não era normal,
que o normal era se preparar minutos antes, eventualmente até escrever o texto
de abertura, como ele precisou fazer durante um período. Várias vezes vendo a
agonia pela qual ele passou naquela época diante da necessidade de se preparar
um pouco, eu brinquei: “Bem-vindo ao mundo dos simples mortais”.
Durante anos a o, ele suou de nervoso na hora mais esperada do seu
programa, o dueto com José Simão. A necessidade daqueles minutos do quadro
corresponderem diariamente às altas expectativas dos ouvintes o apavorava.
Eu nunca disse isso antes ao Barão, mas ele tinha ódio do fato de que em
várias ocasiões, justamente na “hora do Simão”, o Barão saía do estúdio, em vez
de estar lá para ajudá-lo a interagir. Perdi as contas de quantas vezes ele chegou
em casa magoado. Mas a mágoa durava meio segundo.
Cada história vivida entre Ricardo Boechat e todo o pessoal da rádio era uma
história que ele levava para casa, cada problema de cada um deles também
passava a ser um problema dele. E é por isso que mesmo neste momento em
que a minha dor e a das minhas lhas é tão recente, em que a ferida ainda está
tão aberta pela perda do meu grande amor e pai incrível das minhas duas lhas,
eu aceitei mexer em meus sentimentos e relembrar com saudade histórias dele
para escrever este prefácio − tarefa que faço aos prantos e que não teria aceitado
fazer por ninguém que não fosse realmente tão próximo e tão querido por ele,
como eram Barão e Pablo. Agradeço de coração pela homenagem a alguém que
fazia da ajuda ao próximo uma rotina de vida.
INTRODUÇÃO
POR EDUARDO BARÃO

Em outubro de 2018, eu e Ricardo Boechat tivemos esta conversa nos estúdios


da rádio BandNews FM, em São Paulo:
“Boechat, preciso te falar uma coisa.”
“Diga, Baronete, o que manda?”
“Sabe aquela história de ter um lho, plantar uma árvore e escrever um
livro?”
“Sei, o que tem?”
“Então, tenho dois lhos, plantei aquele feijão no algodão numa experiência
na escola e decidi que vou escrever um livro.”
“E sobre o que tu vai escrever, Baronete?”
“Pensei em falar sobre as histórias que a gente viveu ao longo de mais de uma
década aqui na rádio. Conversas que foram ao ar, alguns bastidores, en m,
descrever um pouco dessa bagunça diária.”
“Mas como você vai fazer isso?”
“Olha, Boechat, eu gosto muito do escritor Mario Prata e pensei em contar
pequenas histórias como ele fez no livro Minhas mulheres e meus homens.”
“Mas você vai pegar histórias só minhas ou dos outros da rádio?”
“Você é o foco principal por motivos óbvios, mas outras pessoas, não só aqui
da rádio, como da TV Band, também estarão no livro.”
“Beleza, Baronete! Boa sorte. Só não vai me pedir para escrever nenhuma
orelha do livro. Você sabe que qualquer texto que faço vira uma tortura por
causa do meu perfeccionismo.”
“Claro, Boechat, não vou pedir.”
Mas, na verdade, depois eu ia acabar pedindo. E ele sabia que, apesar de
resmungar, toparia escrever. Mas não deu tempo. Tudo por causa do trágico
acidente de helicóptero que levou o mais brilhante jornalista do país em 11 de
fevereiro de 2019.
Por um momento, decidi que não iria mais terminar o livro, que já reunia
alguns rascunhos. Logo depois, em meio a tantas homenagens prestadas em
todo o país, com tantas histórias sendo lembradas, a vontade de retomar o
projeto ganhou força. Mas, dessa vez, apenas com histórias sobre Boechat.
Ainda em meio as sessões de terapia, pedi ajuda ao meu companheiro e editor
do jornal do Boechat e da coluna que eles assinavam na IstoÉ, Pablo Fernandez,
para coletar histórias do âncora de notícias mais popular do país.
O rádio é uma delícia para quem ouve, mas é ainda mais envolvente para
quem está do outro lado, atrás dos microfones. Apesar da pressão diária para
dar as notícias em tempo real, aprofundar os temas e opinar, o tempo para
quem está no estúdio transcorre num compasso diferente. Um minuto é muito.
E em muitos minutos passados diariamente dentro do estúdio, damos muitas
informações, mas também conversamos bastante.
E com Boechat as conversas sempre foram sensacionais. Quando os assuntos
eram as notícias, eu e os outros colegas de estúdio tínhamos ali a companhia de
uma mente brilhante, astuta, inquieta, inconformada. Mas sobrava muito
tempo para conversar sobre a vida pessoal, contar os causos, os desa os e falar
besteiras. Muitas besteiras!
Fora do ar, nos intervalos, com os microfones desligados, ríamos com as
histórias de vida do peladeiro de Niterói, abríamos o coração falando sobre
questões pessoais e, claro, jamais perdíamos a chance de dar boas risadas.
Em quase quatro décadas de carreira, Boechat já tinha passado por poucas e
boas e compartilhou muitas histórias com os ouvintes ao longo dos quase 14
anos na BandNews FM.
A BandNews FM e Ricardo Boechat eram um casamento perfeito. A rádio
nasceu para ser ágil, com notícias atualizadas em jornais de vinte minutos, atual
em várias frentes, com um time de colunistas em áreas que interessavam a
todos e, principalmente, um veículo aberto à participação do ouvinte.
Ao longo dos anos, com o aumento das ferramentas de interação, das redes
sociais e de aplicativos de mensagens, essa missão de pôr o ouvinte no ar
ganhou ainda mais força.
Quando Ricardo Boechat chegou, encontrou ali uma redação enxuta,
composta principalmente de jovens jornalistas. Era o ambiente perfeito para
mostrar como realmente era. Ali, ele conseguiu expor seu lado de jornalista
brilhante e também a sua personalidade autêntica, despojada, simples e
verdadeira. Foi a oportunidade de mostrar como um ser humano
extraordinário como Boechat se consolidaria como mais importante jornalista
do país.
Todos os dias, pela manhã, mostrava como sentia desprezo por autoridades,
mas mantinha um profundo respeito pelas pessoas e pela divergência de
opiniões. Sua inconformidade com a injustiça era tão grande quanto a sua
capacidade de dar gargalhadas, como bem sabiam os fãs do Boechat, que se
acostumaram a ouvir suas risadas no ar com José Simão, com o sorriso largo
em matérias e na bancada do Jornal da Band.
Ainda tive o privilégio de ter o texto de abertura da minha amiga Veruska
Seibel Boechat, que cou eternizada pelo Careca como Doce Veruska. E textos
da minha segunda mãe, dona Mercedes Carrascal, que encantou o país com sua
lucidez e inteligência a adas, que mostram de onde vieram esses mesmos traços
do Boechat.
Ao longo deste livro você irá encontrar histórias que foram escritas em
primeira pessoa por mim ou por Pablo Fernandez, pois vivemos esses fatos – ao
nal dos textos colocamos as iniciais dos nossos nomes (E.B. e P.F.). E outras
em terceira pessoa, quando contamos histórias que ouvimos.
Prepare-se para rir e chorar, mas nunca car indiferente. Como Boechat dizia:
“Eu vim para esse mundo para transformar de alguma forma a vida das
pessoas”.
Seja então transformado por Eu sou Ricardo Boechat.
INTRODUÇÃO
POR PABLO FERNANDEZ

Foi o acaso que me colocou ao lado do meu grande ídolo, Ricardo Boechat, e
me trouxe aqui para, junto do Eduardo Barão, contar as histórias dele. E
quantas histórias!
Em 2012, quando cheguei à BandNews FM, não imaginava o que viria pela
frente. Saído da Jovem Pan depois de sete anos trabalhando de madrugada e
fazendo o Jornal da Manhã, fui contratado para trabalhar no horário da tarde.
Ufa! Finalmente eu dormiria até mais tarde. O cargo era de editor.
Em pouco tempo, sem perceber, passei a fazer o que mais gostava, e ainda
gosto: investigar. Isso só foi possível graças à ajuda e ao apoio da então chefe de
reportagem e hoje diretora da BandNews FM, Sheila Magalhães. Foi ela quem
me fez acreditar que eu era capaz, e aquilo foi só o começo. Eu não sabia.
De repente, as coisas mudaram, e eu não queria mais dormir tanto. Pela
manhã, acordava às 7:30 horas só para car ouvindo o horário do Boechat e ver
se as minhas reportagens entrariam no ar e seriam comentadas por ele. Eu me
frustrei algumas vezes, mas o acaso quis que, depois de três meses, eu passasse a
trabalhar ao lado dele. Fui convocado pela che a. Tive medo.
Eram muitas dúvidas. Ele tinha a fama de ser muito exigente – e era. Não
bastasse, trabalharia ainda com Eduardo Barão e com a Tatiana Vasconcellos,
dois dos grandes apresentadores do rádio brasileiro. Mais tarde, Carla Bigatto
assumiria o lugar da Tatiana.
Era a minha oportunidade de sugar tudo daquele cara espetacular e, o mais
importante, ganhar a sua con ança. Por isso, não abandonei a investigação.
Sempre arrumava tempo, mesmo quase não tendo algum de sobra.
E, mais uma vez, o acaso se fez presente.
Depois de passar por um dos momentos mais difíceis da minha vida (assim
como ele, tive depressão), me reergui e pensei: é agora ou nunca! Como já fazia
reportagens em São Paulo e tinha acumulado muitos contatos, passei a mexer
com o pessoal do terceiro andar: Executivo, Legislativo e Judiciário.
Boechat acreditou em mim e, para a minha surpresa, fui privilegiado com o
convite para fazer, ao lado dele e do Ronaldo Herdy, a coluna na revista IstoÉ.
Eu tinha ganhado mais uma chance de mostrar o que havia aprendido com ele.
Eu me relacionava com Boechat o dia todo. De manhã, na rádio e, à tarde, na
coluna. Às vezes, recebia ligações dele nos intervalos do Jornal da Band. Queria
tirar dúvidas ou obter alguma informação. Poucos tinham ou tiveram a mesma
oportunidade. Era o meu espelho dizendo o que eu deveria ou não fazer e até
perguntando a mim algo que, acredite, não sabia. Levei muita bronca e garanto
que aprendi com todas. “Pablito, esse tipo de fonte não vai te levar a nada. Liga
direto! Vai na jugular”, dizia.
Como poucos, eu podia falar em nome do Boechat com qualquer um,
autoridade ou não. E como ele era respeitado! Era a chave para abrir qualquer
porta. Eu sentia orgulho e admiração.
E é isso que devemos sentir por ele. Boechat sabia lidar com todos os tipos de
pessoa, independentemente de raça, cor, gênero, credo, língua, opinião ou
classe social. Não fazia diferença. Ao lado disso, ele tinha ojeriza à
desonestidade.
O acaso, o mesmo que me aproximou do Boechat, o levou na tragédia do dia
11 de fevereiro de 2019.
E foi por acreditar nele e no legado que nos deixou que aceitei o convite do
Barão para contar a vocês um pouco da vida do nosso Carequinha de todas as
manhãs. Um pai, um lho, um amigo, um professor e um gigante no
jornalismo.
Eu sou Ricardo Boechat tem um só propósito: manter viva a história dele.
A ESTREIA TARDIA NO RÁDIO

A carteira de trabalho de Ricardo Boechat foi assinada pela primeira vez em


1971, no extinto Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, jornal que muitos da
nova geração não conhecem. Era ali que começava a carreira de um dos
jornalistas mais admirados do Brasil, ao lado do gigante Ibrahim Sued, que
inovou ao misturar o colunismo social, que tratava da alta classe, com notícias
exclusivas. Em 1983, Boechat ganhou uma coluna no jornal O Globo. Foram,
ao todo, 35 anos de furos, exclusivas e muitos prêmios até que o trabalho no
impresso o levou para a televisão. Em 1996 ele passou a fazer parte da equipe
do Bom Dia Brasil, na TV Globo.
Demitido do grupo Globo (assunto para outra história ainda neste livro),
Ricardo Boechat foi chamado para dirigir a BandNews FM no Rio de Janeiro e
também aceitou apresentar um jornal matinal às segundas-feiras, na rádio
Paradiso, a pedido dos sócios Luciano Huck e Luiz Calainho. “Mas só porque
era uma vez por semana e não demandava muito esforço”, nas próprias palavras
do Boechat. O jornal se chamava Boechat com Torradas.
Tudo mudou, no entanto, em 2005. Depois de muita insistência, ele cedeu e
começou a apresentar e a comentar o noticiário do Rio de Janeiro na
BandNews FM. Sofreu pressão, pensou, re etiu e decidiu – quase que colocado
contra a parede – após ouvir uma frase de sua mulher, a Doce Veruska: “Você
já levou um pé na bunda, mais de um; então, aceita esse troço logo”.
Não demorou e, em 10 de fevereiro de 2006, com a saída de Carlos
Nascimento, até ali âncora matinal da BandNews FM, Ricardo Boechat
começou a sua história no rádio nacionalmente, o veículo que mais o projetou
e mais lhe trouxe prêmios na carreira. Até 2018, Boechat ganhou 18 prêmios
Comunique-se, o Oscar do jornalismo, e gurou como mestre em quatro
categorias, entre elas Âncora de Rádio e Mídia Falada.
Foram 13 anos de rádio e de BandNews FM, tornando-se para muitos um
dos apresentadores – ou o apresentador – mais ácido, eloquente e inteligente
do Brasil.
Ricardo Boechat lembrava uma frase do colega Heródoto Barbeiro, que por
muitos anos comandou, com sucesso, o noticiário da Central Brasileira de
Notícias (CBN). Em um evento, o atual âncora da Record News disse que só
tinha um arrependimento: ter descoberto o rádio tardiamente.
Em uma das últimas entrevistas concedidas antes de morrer, Boechat
a rmou: “Reproduzo sem tirar uma vírgula”.
PARA SE FAZER OUVIR...

Se tinha algo que Ricardo Boechat valorizava no rádio era a relação com o
ouvinte. E não tinha discussão! Para ele, que costumava dar no ar o número do
próprio celular, a BandNews FM mudou a forma e a linguagem de se
relacionar com quem estava do outro lado do dial.
Para Boechat, as principais pautas da emissora deveriam ser sempre aquelas
que de fato mexiam com o cotidiano e a vida das pessoas. Ele se preocupava
com quem não tinha remédio, com quem não conseguia atendimento em um
hospital, com a burocracia do Estado, com o buraco na rua, com a árvore que
caía. Tudo tinha um lugar na agenda do Boechat. Sem contar os inúmeros e-
mails e mensagens de SMS (ele nunca usou WhatsApp) que ele separava e
encaminhava às produtoras Nana Matos e Letícia Kuratomi. As duas, como
tantos outros, trabalharam dobrado ao lado dele, apurando e dando
andamento ao material que chegava por meio dos ouvintes.
Boechat tinha uma ideia, levou adiante e conseguiu quebrar o jornalismo
engessado que existia no rádio e ainda existe na TV, por questões comerciais e
de tempo, algo que ele tentava mudar quando fazia comentários no Jornal da
Band. O foco na BandNews FM era mudar o modelo. E, mais uma vez, ele
conseguiu!
Dizia que o rádio saiu do campo formal e foi para a esculhambação: não
havia nenhum tipo de código ou timing. Era, para ele, como as pessoas são na
vida real. Ninguém, na avaliação do Boechat, era tão engessado; sempre
poderia haver um acidente de percurso. E era a isso que se apegava. Assim, o
que ele mais gostava de dividir com os ouvintes eram as histórias.
Ricardo Boechat era apaixonado por histórias, independentemente de onde
elas vinham. Poderia ser uma tragédia, como as de Mariana e Brumadinho, em
Minas Gerais, ou um simples pedido de casamento feito no ar. A BandNews
FM era isso para ele. Um espaço dedicado e feito pelos ouvintes para dividir
experiências e contar, da forma mais real possível, o drama ou a alegria de
quem nos acompanhava.
“O povo se identi ca. Dialoga com o rádio”, dizia Boechat. Mas ele tinha
uma frase preferida para resumir tudo isso, que também era e ainda é a
preferida da diretora da BandNews FM, Sheila Magalhães: “A BandNews FM é
uma rádio para você se fazer ouvir”. E era isso que o motivava todos os dias.
... E TOCAR AS PESSOAS

Entre 1983 e 2001, Ricardo Boechat fez a coluna publicada diariamente no


jornal O Globo e, por um longo período, teve como principal concorrente o
amigo e saudoso Zózimo Barrozo do Amaral, colunista do Jornal do Brasil. Para
Boechat, um dos mais talentosos do Brasil. As informações obtidas por eles
eram exclusivas ou de bastidores, muitas vezes sequer eram con rmadas por
fontes o ciais.
Certa ocasião, os dois foram convidados para uma entrevista, e foi ali que
Boechat começou a mudar a forma de pensar. Eles tinham estilos diferentes.
Zózimo tinha um texto mais cadenciado, mais leve. Boechat, por sua vez,
queria causar impacto imediato.
O repórter perguntou aos dois o que eles mais ambicionavam quando
escreviam uma nota. Um furo? Zózimo, que era um gentleman, a rmou: “Se eu
extrair apenas um sorriso do meu leitor, atingi o que queria”. Boechat, por
outro lado, disse: “Se eu levá-lo à loucura, acho que o alcancei”.
Ele queria que o leitor mudasse o rumo de vida, que entrasse em pânico,
queria produzir uma reação que permanecesse. Essa era a visão do Boechat
naquele tempo. Passados mais de vinte anos, dizia entender perfeitamente a
so sticação do pensamento de Zózimo, a quem demonstrava grande carinho.
E diria hoje, se ainda estivesse por aqui, em uma adaptação à realidade na
BandNews FM, que o objetivo é atingido quando se consegue “tocar” as
pessoas. Pode ser falando de uma experiência, contando a história de alguém
ou fazendo um comentário político.
Segundo Boechat, o mais grati cante era ouvir “Você falou o que eu gostaria
de ter falado” ou “Você fala o que a gente não pode falar”.
FRANK SINATRA: FILHO DE QUEM?

O inusitado sempre fez diferença na carreira e na vida do Boechat. Seja quando


começou no colunismo sem nenhuma fonte, seja quando encerrou a carreira na
BandNews FM. Em outubro de 2013, uma notícia inesperada pegou o mundo
de surpresa. Mia Farrow, atriz norte-americana que atuou em clássicos do
cinema, decidiu revelar que o seu lho Ronan, que até então se pensava ser
fruto do relacionamento com Woody Allen, um dos maiores nomes do cinema,
poderia ter outro pai: ninguém menos que Frank Sinatra. Sim, seria o homem
com a voz mais bela do planeta o genitor do menino, hoje com 31 anos.
Farrow e Sinatra foram casados entre 1966 e 1968, mas nunca deixaram de se
encontrar.
Não deu outra! Boechat, com seus olhos azuis, os mesmos do compositor e
intérprete de clássicos como My way e New York, New York, levantou a bola e
sugeriu aos ouvintes que qualquer um poderia ser lho do ícone da música. Ou
seja, ele também poderia ‒ por que não? ‒ fazer parte da família Sinatra, até
porque o homem passou o rodo em meio mundo. Para tirar a dúvida, sem
combinar nada, ele mesmo ligou para a mãe, que sempre o chamava de
Ricardo. Dona Mercedes, mãe de sete, aos 82 anos estreou no rádio, pois
naquele momento foi ao ar em rede nacional.
“Alô!”
“Méccia?”
“Qué tal, Ricardo?”
“Decime, Méccia, Sinatra te...?”
“No dormi com Sinatra no.”
“No?”
“No.”
“Mas não seria uma má ideia não, mãe.”
“Por favor, já chegava com um.”
“Mas poderia ser. Iria melhorar a minha vida, mãe.”
“Não ia melhorar, não. Sinatra era ma oso.”
“Tá bom, então.”
“Seu pai podia ter muitos defeitos, mas ma oso ele não era.”
Como não podia ser diferente, os ouvintes e nós da BandNews FM caímos na
gargalhada. A história, para variar, foi parar nas redes sociais. Até mesmo sites
de notícias publicaram a estreia de ninguém menos que dona Mercedes, aquela
que deu à luz e criou o Carequinha mais admirado do Brasil.
Só para deixar claro ‒ melhor, não é? ‒, o pai do Boechat se chamava Dalton
e morreu em 1979. Ao contrário do que dizem, ele nunca foi diplomata. Era
um professor de idiomas, falava sete línguas e trabalhava para o Itamaraty. Foi
por isso que o lho nasceu em Buenos Aires. Dalton e dona Mercedes se
separaram no início da década de 1970, por vontade dela e, com certeza, se
estivesse vivo, ele teria se divertido com a história do Frank Sinatra.
HORÁRIO BRASILEIRO DO BOECHAT

“Pontualmente, sete e meia da manhã. Bom dia, bom dia, eu sou Ricardo
Boechat, essa é a BandNews FM e nós vamos car juntos até às nove e
qualquer coisa da manhã.” A frase era dita diariamente por ele na abertura do
jornal na BandNews FM, que, por curiosidade, nunca teve um nome. Era
apenas o horário do Boechat e o temor do nosso diretor comercial, Vanderley
Camargo, que teve de aprender a lidar com as particularidades do relógio mais
maluco do rádio.
Em qualquer veículo de comunicação do planeta, os horários de anúncios e
patrocínios são como uma espécie de lei: devem ser seguidos à risca. É algo
incontestável. Quando foi a última vez que você viu um jornal de TV terminar
mais tarde porque um apresentador decidiu contar uma última história enviada
por um telespectador? Isso não existe. Só que Boechat nunca seguiu essa lógica.
Pelo contrário, a veia anárquica dele transformava os horários das
programações locais e nacionais, além dos horários comerciais, em um desa o
diário. O cialmente, o horário do Boechat na rádio começava às 7:30 horas e
deveria – isso mesmo, deveria – terminar às 9:00 horas. Quase que
diariamente, no entanto, passava das 9:30 horas, ou seja, um “leve” atraso de
meia hora, invadindo os programas apresentados localmente pela Rede
BandNews FM.
Responsável por explicar a lógica do Boechat aos diretores comerciais que
vendiam os anúncios nas outras cidades, Vanderley Camargo adotou o único
discurso que poderia fazer sentido: “Esqueçam o relógio! Entre sete e meia e
nove horas – ou nove e qualquer coisa – não funciona a hora de Brasília, mas,
sim, o fuso horário do Boechat”.
PROVOCADOR E APOSTADOR NATO

Ricardo Boechat era um provocador nato e adorava uma aposta, normalmente


contra a corrente. Várias vezes no ar, na rádio, ele dizia que colocaria a língua
dele na guilhotina. Por sorte, as guilhotinas eram manejadas por carrascos
bonzinhos; caso contrário, o querido falador não teria feito o estrondoso
sucesso que fez: na maior parte das vezes, ele errou seus prognósticos.
Foi assim na cassação do mandato de Eduardo Cunha, investigado na Lava
Jato por manter contas no exterior; no impeachment de Dilma Rousse ,
acusada de crime de responsabilidade; ou na provável, mas não concretizada,
queda do então presidente Michel Temer, que cou até o último dia no cargo,
mesmo com o escândalo da JBS.
E o mais bacana é que essa vontade do Boechat de contestar e ir contra o
pensamento comum sempre encontrava um grande rival, o diretor de
jornalismo da Band, Fernando Mitre, um excelente administrador de debates e
com habilidade de colocar panos quentes em todas as fervuras acendidas por
Boechat. Os dois apostavam quase que diariamente sobre assuntos do
cotidiano, o que logo se tornou um hábito. Muitas vezes pelo simples prazer de
apostar. A divergência era clara. Enquanto um apostava que Dilma Rousse , já
cambaleando no cargo, sofreria impeachment, o outro dizia que não. Enquanto
um tinha convicção de que o empresário e dono da JBS, Joesley Batista, caria
preso, o outro apostava que não.
O prêmio do vencedor era sempre o mesmo: um bom vinho.
Boechat sempre disse que toda vez que ele perdia, e não eram poucas, pagava
a aposta. Mas reclamava que, nas vezes que ganhou de Fernando Mitre, o
veterano jornalista mineiro jamais cumpriu o acordo. Boechat o chamava de
pão-duro.
Nota: Fernando Mitre disse a estes autores que Boechat inventou toda essa
história e que quem não pagava a aposta era ele (apesar de termos visto uma
garrafa pouquíssimas vezes, ou quase nenhuma).
O VELHO SUNGÃO VERMELHO

Por anos a o, às sextas-feiras, Ricardo Boechat encerrava o programa na


BandNews FM pela manhã dizendo que passaria o m de semana no Rio de
Janeiro, terra que tanto amava. E justi cava: “Minha gente, estou indo para a
praia do Leblon. Vou usar meu sungão vermelho. Nós nos vemos mais tarde no
Jornal da Band e, na segunda-feira, estou de volta às sete e meia da matina. Até
lá!”.
Apesar da imagem que os ouvintes criavam em suas cabeças, do Boechat em
trajes sumários, ele nunca – isso mesmo, nunca – teve um sungão vermelho.
No Rio de Janeiro, preferia car curtindo um pouco de tranquilidade em seu
apartamento no Leblon e só descia para a areia no m da tarde, com o sol mais
baixo.
Em uma dessas idas, em janeiro de 2016, Boechat, que vestia um calção de
futebol, foi para a praia com um grupo de amigos, dentre os quais alguns
estrangeiros. O cenário, no entanto, era de entristecer. Havia lixo por toda
parte, como se um tufão tivesse espalhado tudo pela areia e a Companhia
Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) não passasse por ali há tempos.
Como se sabe, algo comum em nossas belas praias.
Inconformada, uma amiga bradou: “Essa Comlurb é um absurdo. Olha a
quantidade de sujeira espalhada”.
Um dos gringos que estava no grupo perguntou o que era a Comlurb. Eles
explicaram que se tratava de uma empresa da prefeitura responsável por limpar
a cidade do Rio de Janeiro. Então, o gringo perguntou: “Mas essa Comlurb é
quem joga o lixo na areia?”. A resposta, claro, foi “não”.
Dias depois, a Doce Veruska gravou e postou um vídeo no Facebook do
Boechat recolhendo restos de coco, garrafas, latinhas e papéis jogados pelos
próprios frequentadores da praia do Leblon. As imagens viralizaram e foram
parar nos principais portais de notícias do país.
Ao m, além de dar o exemplo, Boechat fez a sua graça, com uma
barriguinha saliente: “Mas o objetivo desse vídeo é para mostrar o meu
corpinho”. E saiu dando risada.
SEM A RESPOSTA DO ACUSADO

Depois da Operação Lava Jato, iniciada em 2014, dia sim, dia não, a
BandNews FM levava ao ar alguma acusação envolvendo políticos. Podia ser o
presidente, um governador, um deputado ou um senador. Quase que
diariamente, o Ministério Público Federal (MPF) apresentava denúncias ou
detalhes divulgados em delações premiadas, feitas sobretudo por doleiros,
operadores e executivos de empreiteiras.
Um dos pilares sagrados do jornalismo é o de sempre ouvir a outra parte,
nesse caso dar a resposta do acusado, seja dita por ele mesmo ou por seus
advogados. Com Boechat, mais uma vez, não era assim. As broncas dadas no
editor do horário, Pablo Fernandez, tinham o mesmo argumento, e não havia
discussão.
“Pablito, por que você está dando a resposta do Renan Calheiros? É óbvio
que ele vai negar qualquer coisa. Acorda para a vida”, dizia Boechat. Usar áudio
de político se defendendo, então, nem pensar. E isso seguiu inalterado pelos 13
anos de BandNews FM.
Ricardo Boechat entrou no rádio para quebrar paradigmas que ele mesmo,
um dia, até cogitou concordar. Queria algo inovador e menos pautado pela fé
pública – a palavra da autoridade contra qualquer denúncia ou acusação. A
ideia era inverter o polo, historicamente, sempre pendente para as autoridades.
Na BandNews FM, pendia sempre para o ouvinte. Ou seja, quem quisesse que
provasse o contrário.
Como não havia discussão e o volume de acusações, à época, era muito
grande, a BandNews FM adotou uma única tática. Em todos os casos, se
escrevia: “Fulano negou as acusações”. E Boechat aproveitava para esbravejar no
ar.
(P.F.)
BUEMBA!, BUEMBA! A DUPLA COM JOSÉ SIMÃO

“Perdi meu vice amado”, disse José Simão logo após a morte do Ricardo
Boechat.
A química entre os dois foi construída da forma mais simples possível. Antes
do Boechat dividir aquele espaço tão nobre, perto das 8:50 horas, com José
Simão, quem o fazia era o antecessor, Carlos Nascimento. Mas não tinha a
mesma pegada. Parecia algo engessado, sem a esculhambação diária que tornou
o quadro um sucesso nacional.
Logo no início, Boechat admitiu, ao vivo, que estava em pânico. E falou para
Simão: “Olha, Simão, eu estou muito tenso”. Isso porque ele via José Simão
como o principal nome do humor político. Para Boechat, era o cara mais
sacana. Não levava nada a sério. E foi isso que o fez adotar a mesma tática:
“Quer saber, se ele é assim, por que eu vou ser diferente? Liguei o foda-se”. A
coisa, segundo o próprio Boechat, passou a funcionar a partir daquele
momento, quando decidiu levar Simão na “galhofa”, como dizia.
As risadas são incontáveis e, naquele horário, todos os dias, de 2006 a 2019,
não havia tempo ruim. E ninguém, ninguém mesmo, fazia aquilo como o
próprio Boechat. Nem Barão, nem Tatiana Vasconcellos, nem Carla Bigatto,
nem Luiz Megale. Era uma espécie de “volta logo das férias, Boechat”.
E foram anos inesquecíveis. Lembra das imitações de Dilma Rousse e
Fernando Henrique Cardoso? Quem vai se esquecer dos predestinados, das
piadas prontas ou dos breaking news divididos por eles ao microfone? E as
músicas enviadas com exclusividade ao Simão pelos Marcheiros de Campinas,
que faziam paródias maravilhosas? Tinha piada de todos os tipos, e ninguém
era perdoado. Na última coluna, os dois falaram sobre Bolsonaro, Partido
Social Liberal (PSL), Tim Maia, Marcelo Crivella, Pezão e tantos outros.
Um dos áudios antológicos usados na esculhambação veio de um ouvinte
irritado com os dois. E como o programa sempre foi democrático, entrou no
ar: “Vocês ainda estão com essa bosta de Uenga, Uenga?! Vocês acham que o
meu ouvido é penico? É por isso que eu não estou mais ouvindo essa porra de
BandNews. É uma merda mesmo. Vou te falar... Porra, velho, já bisavô, Uenga,
Uenga! Vai pra puta que o pariu! Agora, eu ouço a CBN. Não essa merda de
BandNews [...]. Aqui é o Roberto, de Santo Antônio, Vitória do Espírito
Santo. Toma vergonha na cara”.
O bate-papo com Simão era o único momento em que Boechat se despia de
verdade para dar enormes gargalhadas ao lado do presidente do Partido da
Genitália Nacional (PGN), que, quem sabe um dia, há de ser registrado no
Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Em uma declaração depois da morte do Boechat, José Simão, que continua
no ar comigo todas as manhãs, chorou ao a rmar: “Nossa dupla jamais será
retomada”.
(E.B.)
APOSTA SEM VENCEDOR

Falar de eleições com Boechat era a certeza de um bom papo, com muitas
críticas. Ele mesmo não votava havia anos. Era um crítico feroz do voto
obrigatório. E só voltou às urnas motivado pelo grande movimento popular
que se viu nas ruas em todo o país em 2013.
Antes, no entanto, em mais um momento importante da vida política, não
perderia a oportunidade de fazer mais uma aposta tentadora. Dessa vez foi
comigo – e nada tinha a ver com gostar de um ou de outro candidato.
De próprio punho, Boechat escreveu os termos:
“Eu e Barão, pelo prazer do risco, apostamos hoje, 24 de janeiro, vinhos
Cartuxa (um dos melhores de Portugal), com base nas seguintes hipóteses:

1. Lula é eleito presidente da República este ano: Barão ganha uma garrafa.
2. Lula é derrotado no mesmo pleito: Boechat ganha uma garrafa.
3. Lula vence no primeiro turno: Barão ganha quatro garrafas.
4. Lula não vence no primeiro turno: eu ganho duas garrafas.

Nenhum de nós torce por qualquer resultado. Consideramos todos os


candidatos a mesmíssima merda.”
Bom, não preciso dizer que nenhum dos dois ganhou nada. Até porque Lula
não foi autorizado a concorrer nas eleições de 2018. Sorte do meu bolso!
(E.B.)
INGRESSOS PARA OS ROLLING STONES

Depois de 18 anos, os Rolling Stones estavam de volta ao Brasil. Era o ano de


2016, e claro que eu, amante do rock, não queria perder essa apresentação
histórica. Convidado por um diretor do São Paulo Futebol Clube para assistir
ao show de Mick Jagger e companhia no Estádio do Morumbi, avisei Ricardo
Boechat que havia um par de ingressos reservado para ele e para a Doce
Veruska.
De cara ele recuou:
“Baronete, já fui a um show dos Stones na década de oitenta. Estou velho
para isso.”
Mas eu insisti:
“Você que sabe, Boechat. A gente caria no camarote.”
E Boechat ainda se mostrava reticente:
“Camarote de quem? Não quero rolo com empresa. Vão falar por aí que
quei em um camarote de alguém enrolado na Lava Jato.”
Garanti que não o meteria em qualquer roubada. Mas ele mesmo se meteu
em uma ao dizer:
“Faz o seguinte, Barão. Liga pra Veruska. Ela que manda na minha vida.”
O convite, na prática, estava aceito. Ela topou na hora, e os ingressos
chegaram uma semana antes da tão esperada apresentação. Sugeri guardar os
bilhetes, mas Boechat disse que os colocaria em um local seguro: a maleta dele
– a mesma cheia de papéis que carregava de um lado para o outro.
Já diz o ditado: “Quem avisa, amigo é!”. E eu avisei: “Beleza, Boechat. Sem
eles, não dá para entrar”.
Na sexta-feira, véspera do show, combinamos de ir juntos. Deixaríamos o
carro na Band e iríamos de táxi até o Morumbi. Eu, mais uma vez, insisti:
“Não se esqueça de levar os ingressos”.
Mas a história envolvia Boechat e, como qualquer outra, sempre haveria uma
surpresa. No sábado, 27 de fevereiro, todos já estávamos no táxi quando, perto
do Morumbi, num trânsito infernal, eu perguntei:
“Boechat, só para ter certeza, você trouxe os ingressos?”
A resposta:
“Caralho, Baronete, esqueci! Moço, dá meia-volta que eu preciso passar em
casa.”
Não acreditei:
“Jura?”
O taxista, que provavelmente nunca vai esquecer essa história, salvou os dois
casais. Ele nos levou até a casa deles e todos voltamos a tempo de assistir ao
show.
Ricardo Boechat não se conformava ou não acreditava no vigor daqueles
homens de idade avançada no palco, principalmente de Mick Jagger. Ele o
chamava de “pintocéfalo” (algo que não preciso explicar).
A carona da volta foi com o então comentarista de futebol da BandNews FM
Sérgio Xavier. Éramos seis no mesmo carro: Boechat, Veruska, eu (que ocupo o
espaço de dois), Michelle, Serginho e a mulher dele.
A noite, como não poderia ser diferente, cará para sempre guardada na
memória, assim como o gesto de Mick Jagger mandando um “beijinho no
ombro” em pleno Estádio do Morumbi. Foi demais!
(E.B.)
A CURTA VIDA DE REPÓRTER DE TV

Enquanto Shakira, no auge da carreira, fez explodir a música-tema da Copa do


Mundo de 2010, na África do Sul, Ricardo Boechat estreou em algo que ainda
não havia experimentado. Acostumado aos estúdios, ele teve uma ideia e
decidiu se aventurar ao lado do cinegra sta da Band, Claudinei Matosão, sem
saber o que o esperava.
Boechat sugeriu à direção da emissora fazer um diário do Mundial, com
informações divulgadas nos jornais africanos. A sugestão foi aceita e a primeira
externa – jargão utilizado para gravar em certo lugar – foi na Mandela Square,
um dos locais mais famosos de Johannesburgo.
Apesar dos anos de jornais, revistas, rádio e TV, Ricardo Boechat
con denciou a Matosão que aquela seria a sua primeira reportagem de rua. A
temperatura era baixa, típica da época, o que não o agradou desde o início.
O quadro, no entanto, foi um sucesso. Até mesmo uma vinheta especial foi
feita pela Band. O triste é que durou apenas dois dias. Boechat se cansou logo
do trânsito maluco da cidade e não aguentava mais o frio das ruas. Não pensou
duas vezes e ligou para a emissora com o objetivo de informar: “Cancela tudo”.
Foi assim, brilhante e com apenas dois episódios, a estreia de Boechat como
repórter de rua depois de tantos anos de jornalismo. Traumatizou, mas não o
impediu de, em 2015, longe da África do Sul, enfrentar trens lotados para
mostrar o drama da população em São Paulo. Se quisesse, teria uma longa
carreira. Ou não...
PERIGO, TUBARÃO!

É muito comum que jornalistas envolvidos em grandes coberturas aproveitem


as folgas do trabalho para visitar lugares conhecidos no mundo inteiro.
O trabalho exige horas de dedicação, mas uma escapulida sempre traz boas
lembranças. No caso de Boechat, o que mais o fascinou na Copa do Mundo da
África do Sul foi o Museu do Apartheid, que conta a história da segregação
racial no país, personi cada por Nelson Mandela. Ele foi conhecê-lo com os
companheiros Luiz Megale e André Coutinho, além de Marcelo Cruz,
responsável pela operação de áudio das transmissões.
No ar, Boechat contou, incrédulo, os detalhes de um tempo absurdo da
história, que nunca deixará saudades, mas que deixou feridas até hoje não
curadas. Ele chegou a voltar mais duas vezes ao museu e nunca se conformou
com o que testemunhou e aprendeu.
Longe de Johannesburgo, em Porto Elizabeth, Boechat viu de perto a
eliminação do Brasil diante da Holanda. Placar: 2 X 1. Ele estava hospedado
em um hotel de luxo à beira-mar e, antes do jogo, teve a brilhante ideia de dar
um mergulho.
Boechat arregaçou as calças jeans e se jogou no mar. Era, para ele, mais um
mergulho, como os que dava na praia do Saco de São Francisco, em Niterói,
onde cresceu. Entre uma braçada e outra, percebeu que uma funcionária da
recepção gritava, chamando-o. Sem entender quase nada de inglês, ele percebeu
que algo não estava certo e decidiu voltar.
Já na areia, Boechat tomou uma bronca inesquecível e só entendeu horas
depois que a área onde ele mergulhou carregava um pequeno detalhe: era
abarrotada de tubarões. Por sorte, não se feriu. Vai saber o que teria acontecido
se ele estivesse com o sungão vermelho...
ÚLTIMA CHAMADA, BOECHAT!

Embarcar em um avião com Boechat, acostumado a idas e vindas dos


aeroportos, era uma das coisas mais irritantes do mundo. Ele sempre cava no
saguão e jamais entrava na la com os demais passageiros para chegar à
aeronave.
Em outubro de 2014, Boechat foi com a equipe da TV Band entrevistar a
então presidente Dilma Rousse no Palácio da Alvorada. Ao chegar, cou
admirando as obras de arte expostas nos salões, o que sempre o atraiu por ser
um amante da cultura. “Esse quadro do Portinari é espetacular. Olha esse
Volpi. E que demais essa escultura do Victor Brecheret!” Isso enquanto se
montava todo o equipamento – câmeras e microfones – para a entrevista.
Terminada a entrevista, por volta das 20:00 horas, e ao lado do editor-chefe
do Jornal da Band, Fernando Mattar, Boechat partiu de volta para o aeroporto
Juscelino Kubitschek. A ideia era retornar na mesma noite para São Paulo. O
voo estava marcado para as 21:00 horas.
Todos sabiam que Boechat era campeão em perder voos. Ele sempre achava
que daria tempo e, em várias ocasiões, foi obrigado a pagar multas pelo excesso
de con ança. Sabendo disso, ao sair do táxi, Mattar já avisou:
“Estamos meio em cima da hora, faltam vinte minutos para decolar.”
Boechat, como já se esperava, respondeu:
“Por que a pressa, Mattar?”
Mattar argumentou:
“É no último portão, ca do outro lado, Boechat.”
Mesmo com o alerta, Boechat não aumentou a velocidade e calmamente deu
seus passos rumo ao portão. No meio do caminho, admiradores, ouvintes e
telespectadores pediam para tirar fotos. E ele, como se estivesse em casa,
parava, conversava e contava piadas. Tudo isso enquanto seguia tranquilamente
para o portão – o último do aeroporto. “Trouxe aqui, Boechat, uma denúncia
num dossiê para você.” “Você parece mais alto na TV.” “Minha tia é
funcionária pública e não recebeu aposentadoria.” E Boechat dava corda.
Após tirar inúmeras fotos, o tempo cou mais curto: “Calma, Mattar! Para
que esse desespero, você é lho de chocadeira?”. O avião decolaria em cinco
minutos. Mattar e a equipe já entravam no avião: “Boechat, se quiser car em
Brasília, ca. Eu vou embarcar. Não tem mais ninguém na la”.
Foi aí que Boechat soltou mais uma de suas pérolas históricas: “Eu não entro
enquanto não anunciarem o meu nome no alto-falante”.
Ele cou sentado no saguão enquanto todos os outros passageiros já estavam
acomodados nas poltronas do avião. Cinco minutos depois, com o devido
nome anunciado no alto-falante, no aviso de última chamada, nalmente a
“donzela” embarcou. A justi cativa é que Boechat não suportava car sentado
nas apertadas poltronas do avião. Por isso, esperava sempre o último minuto
para embarcar. Pelo menos, dessa vez, ele não perdeu o voo.
UM TWINGO PARA CHAMAR DE MEU

Além da família, para a qual vivia e se dedicava diariamente, Ricardo Boechat


tinha algumas paixões, muitas delas incompreensíveis para quem olhava de
fora. A mais exótica ou incomum era o apego ao velho Twingo. Não só um,
mas dois. A questão não era a grana, era amor mesmo pelo modelo criado em
1993 e vendido pela Renault no Brasil até 2002.
O primeiro, de cor prata, era um lixão a ponto de a Doce Veruska se recusar a
andar nele. Estava todo batido, inclusive no teto. O banco não inclinava mais,
uma das portas não abria, e até mesmo restos de comida e potes de iogurte
dividiam o espaço com Boechat dentro do veículo. Era um horror!
Certo dia, pela manhã, Boechat cou todo feliz ao mostrar para nós da
BandNews FM que o Twingo abrigava um formigueiro – isso mesmo, um
monte de formigas.
O objeto da paixão, no entanto, caiu no colo do nosso Carequinha. Em
2006, ao mudar-se do Rio de Janeiro para São Paulo para trabalhar na Band,
Boechat cou em um apartamento emprestado de um amigo, e um Twingo
fazia parte do pacote. Era usado no transporte de quadros – o dono do imóvel
era um negociador – e estava à disposição na garagem. Boechat decidiu usá-lo.
Virou paixão!
Em entrevista à revista Carro e Vida, em 2013, Boechat declarou: “Ele me
empresta uma colaboração inestimável e eu rendo a ele esse reconhecimento de
mérito”.
Com o Twingo prata, Boechat foi até o limite. Um dia, o próprio mecânico
condenou o companheiro dele de todos os dias. A morte estava decretada, mas
não sem deixar lembranças.
O nobre m ao amigo de tantos anos foi dado pelo artista plástico Alê
Jordão. A pedido de Boechat, ele transformou o Twingo em várias peças de
arte, que rodaram o Brasil na exposição “Spectrum”, em 2015. Boechat não
saiu dessa de mãos abanando: recebeu do artista uma cadeira, feita da lataria do
carro, com a placa dele grudada. A peça é guardada até hoje, com carinho, na
casa de Ricardo.
Incansável e sentindo falta do modelo da Renault, pouco tempo depois, ele
decidiu comprar outro Twingo, do mesmo ano. Pagou 11 mil reais pelo
modelo na cor meio azul, meio roxa. Parecia uma berinjela. Estava estampada
na cara dele a felicidade pela nova aquisição.
Segundo Boechat, independentemente do ano ou das condições, o Twingo
cumpria a sua tarefa: levar e trazer, e isso, no entendimento dele, o carro fazia
muito bem.
SEGURA O CHORO, BOECHAT!

Dia 6 de junho de 2008. Pouco depois das 17:00 horas, o carro onde estava o
pequeno João Roberto, na época com três anos, o irmão dele, de apenas nove
meses, e a mãe Alessandra Amorim, foi alvo de 17 disparos feitos por policiais
militares na Tijuca, na zona Norte do Rio de Janeiro. Um dos tiros acertou a
cabeça do menino, que chegou a ser socorrido, mas não resistiu e morreu horas
depois. Em depoimento, os PMs alegaram ter confundido o veículo da família
com o utilizado por criminosos em fuga.
Ricardo Boechat era calejado pelos anos de jornalismo e, por isso, poucas
vezes demonstrava o que estava sentindo no ar. Nesse caso, no entanto, foi
diferente. Quase não se segurou ao entrevistar o pai de João Roberto durante o
programa que fazia diariamente no Rio de Janeiro, logo após o noticiário
nacional.
Na porta do hospital, o repórter Flávio Trindade pôs Paulo Roberto para
conversar com Boechat, de quem era fã. O pai estava aos prantos, mas
transmitia uma lucidez impressionante. Ele contou o que havia acontecido com
o lho e confessou, como não poderia ser diferente, que aquela era a grande
perda de sua vida.
Acostumado com casos de todos os tipos, ainda mais no Rio de Janeiro, onde
vítimas de bala perdida se tornaram mais uma estatística, Boechat sempre fazia
o possível para preservar a notícia. Sempre segurava a onda. Mas, dessa vez, não
segurou. Ele começou a se emocionar e, com a voz embargada, viu seus olhos
se encherem de lágrimas.
O pai de João Roberto era um ouvinte assíduo da BandNews FM e, naquele
momento de emoção, falou uma frase que Boechat passou a repetir muito na
rádio: “Eu não vou deixar o meu Rio de Janeiro. Eu não posso abandonar o
Rio de Janeiro. Se pessoas de bem deixarem a cidade, as pessoas ruins, como
essas que atiraram e mataram meu lho, e os bandidos, vão tomar conta do Rio
de Janeiro. Quem tem que sair daqui são eles. Eu não!”.
Foi essa frase nal que Boechat passou a usar quando outros casos de
violência aconteciam na capital uminense e muitas vezes se recordava do dia
do caso João Roberto como aquele de maior emoção e tristeza que teve no ar.
O dia, entre pouquíssimos, que Ricardo Boechat chegou a perder o foco.
Um dos ex-PMs envolvidos no caso teve a absolvição con rmada três dias
após a morte do Boechat, no dia 14 de fevereiro de 2019. Alegou ter feito
apenas um disparo para o chão. O outro foi julgado em 2015 e condenado a
18 anos de prisão.
CORTA O MICROFONE DELE!

Dia sim, dia também, Ricardo Boechat fazia críticas pesadas ao vivo durante a
programação da BandNews FM. Foi assim que conquistou os ouvintes e se
encontrou no rádio. Não havia um alvo prede nido. A escolha era feita no
momento em que a notícia era levada ao ar.
Alguns casos eram acompanhados de perto por ele, como o do ex-deputado
paranaense Fernando Ribas Carli Filho, que matou dois jovens em um acidente
de trânsito; a tragédia da boate Kiss – assunto para outra nota –, que deixou
242 mortos em Santa Maria, no Rio Grande do Sul; e o desastre de Mariana,
que devastou o distrito de Bento Rodrigues e matou 19 pessoas, em Minas
Gerais.
No Rio de Janeiro, o sumiço da engenheira Patrícia Amieiro era um daqueles
casos que indignavam Boechat. A jovem, então com 24 anos, voltava de uma
festa na zona Sul, não chegou em casa e nunca mais foi vista. Quatro policiais
militares são acusados de disparar contra o carro dela, matá-la e ocultar seu
corpo, além de jogar o veículo no canal de Marapendi. O assassinato aconteceu
em 2008.
Dois anos depois, o então advogado dos PMs, Nélio Andrade, pediu direito
de resposta, e Boechat concordou em lhe dar espaço. O que ele não esperava é
que o defensor dos acusados pelo crime passasse a ofender a imagem da vítima,
dizendo que ela, na verdade, havia morrido na Rocinha porque tinha dívida de
drogas. E mais: quis impor a versão dele a Boechat. Os dois começaram a
discutir.
“Corta o microfone dele! Fecha o microfone desse animal. Agora, você vai
ouvir aí quietinho, seu bandido, advogado de bandido. Você não vai vir aqui
na rádio para car maculando a imagem de uma jovem. Eu não te dou esse
direito de você vir aqui no meu programa e achar que eu vou car me
nivelando a você. Você é vagabundo!”
Nélio Andrade, que morreu em 2016, chegou a entrar com um processo
contra Boechat. Onze anos depois do crime, os PMs ainda aguardam
julgamento.
VOCÊ ESTÁ AÍ?

Trabalhar com Boechat na TV ou na BandNews FM era não saber o que ia


acontecer. Ele era pouco previsível, o que causava certa tensão entre os colegas
de redação. Mesmo as pessoas que o conheciam havia anos eram surpreendidas
com alguma bronca no ar ou nos bastidores. Às vezes, nem tinha destino certo.
Fato é, no entanto, que Boechat gostava de ensinar, e junto a qualquer crítica
vinha a explicação.
Muitas vezes, o repórter estava na rua e o próprio Boechat dizia como ele
deveria agir. Não tinha muito aquela coisa de falar fora do ar: “Você tem que
fazer assim: vai lá, bate na porta, pergunta isso e aquilo”. Falava ao vivo mesmo.
Em uma sexta-feira, apresentando o noticiário do Rio de Janeiro nos estúdios
de São Paulo, o que fazia diariamente na BandNews FM, o sinal caiu. Isso
irritava Boechat como poucas coisas no dia a dia da rádio. O nosso
companheiro Rodolfo Schneider, na tentativa de restabelecer a conexão,
colocou um comercial para rodar. Na volta, a surpresa: Boechat não sabia que
estava no ar e começou a esculachar:
“Porra, Alemão!”, era assim que ele chamava Rodolfo. “Caralho, eu tô aqui
no estúdio falando ‘alô, Rio, alô, Rio’ e ninguém me ouve nessa merda. Puta
que o pariu! Tem que ter paciência, caralho!, porra!, para fazer esse programa.”
E Rodolfo apenas informou:
“Boechat, a gente está no ar.”
“O quê?”
“A gente está no ar.”
De repente, fez-se silêncio, e o que se pôde ouvir foi o barulho de um soco
dado na mesa. O WhatsApp da rádio bombou de mensagens. Os ouvintes
caram em polvorosa.
Passado o m de semana, Boechat abriu o programa na segunda-feira
constrangido. E se explicou: “Olha, queria dizer aqui, e os ouvintes que
acompanham o programa sabem, que isso aqui é a sala da minha casa, o
quanto eu falo da minha vida e o quanto eu abro meu coração. Na sexta-feira,
eu falei um monte no ar. E eu queria pedir desculpas”.
E a resposta dos ouvintes consolou Boechat, que, no m das contas, saiu bem
na foto: “Porra, Boechat. Do caralho! Tu fala palavrão”; “É isso aí mesmo, meu
irmão”; “Foda-se!”.
Foi, de novo, do jeito dele.
SANTO REMÉDIO

Dias antes do início da Copa do Mundo de 2010, Ricardo Boechat


desembarcou na África do Sul e logo cou desesperado. Havia se esquecido de
levar um dos “quinhentos” remédios que tomava todos os dias. Um deles era o
omeprazol, medicamento indicado para o tratamento de gastrite e as dores
causadas por ela. Boechat perguntou para todo mundo se alguém tinha levado
o remédio e, sem sucesso, foi procurá-lo nas farmácias de Johannesburgo.
Desistiu!
A tortura maior se deu porque ele era apaixonado por vinhos e não perdia a
oportunidade de apreciar os sul-africanos de diferentes adegas e uvas. O alívio
só veio com a chegada da Doce Veruska, que foi encontrá-lo. Com o
omeprazol, e as garrafas garantidas, Boechat não precisava de mais nada, ou
quase nada.
Por causa do fuso horário, o Jornal da Band ia ao ar lá pelas duas da manhã,
no horário da África do Sul. Por isso, normalmente, Boechat jantava sozinho,
por volta da meia-noite. Enquanto o material que iria ao ar no jornal era
preparado pela equipe, sua única companhia era o vinho.
Em um desses dias, Fernando Mattar, editor-chefe do Jornal da Band,
percebeu que o néctar de Baco havia deixado Boechat “calibrado”. Ele mesmo
confessou que tinha tomado três garrafas. E argumentou: “Os vinhos eram
muito bons. Uma delícia”.
Apesar da tensão de toda a equipe, Boechat mostrou a mesma categoria de
sempre. Não errou nada, nenhuma leitura, tampouco deixou transparecer que,
se estivesse ao volante, seria autuado e submetido ao bafômetro. Santo
omeprazol!
“VAI PROCURAR UMA ROLA!”

“Ô, Malafaia, vai procurar uma rola, vai. Não me enche o saco.”
A frase dita ao vivo no programa do Rio de Janeiro levou Boechat ao trending
topics do Twitter e gerou dezenas de memes. O áudio circulou como poucos em
grupos de WhatsApp. Para muitos, nem importava o contexto, apenas a
resposta dada ao pastor Silas Malafaia.
A troca de farpas aconteceu em junho de 2015 e começou quando Boechat
atribuiu à intolerância religiosa a agressão sofrida por uma menina de 11 anos,
apedrejada na cabeça ao sair de um terreiro de candomblé. Para ele, parte disso
vinha de grupos neopentecostais.
Não demorou muito, e o pastor Silas Malafaia postou uma mensagem
direcionada a Boechat no Twitter. Quem mostrou a ele foi a produtora Letícia
Kuratomi.
“Avisa ao jornalista Boechat que está falando asneira, dizendo que pastores
incitam éis a praticarem a intolerância. Verdadeiro idiota. Desa o Boechat
para um debate ao vivo. Falar asneira no programa de rádio sozinho é mole,
deixa de ser falastrão. Não incite o ódio.”
Foi aí que Boechat se irritou e, ao vivo, disse:
“Ô, Malafaia, vai procurar uma rola, vai. Não me enche o saco. Você é um
idiota, um paspalhão, um pilantra, tomador de grana de el, explorador da fé
alheia. E agora vai querer me processar. Você gosta muito de palanque, não vou
te dar palanque porque você é um otário.”
E continuou:
“Não vou fazer debate nenhum com você porque não quero te dar essa
con ança. O que eu falei e repito é que no âmbito de igrejas neopentecostais
estão acontecendo atos de incitação à intolerância religiosa, mais do que em
outros ambientes. Minhas falas estão gravadas, e eu não disse nada que
generalizasse as coisas. Até porque, diferente de você, não sou um idiota.”
Nos bastidores, Boechat sabia que, apesar da repercussão relativamente
positiva entre os ouvintes, tinha ido além do aceitável. Era grave, mas, mesmo
assim, concluiu:
“Você é um homofóbico, uma gura execrável, horrorosa, que toma dinheiro
das pessoas. Você é rico porque toma o dinheiro das pessoas pregando a
salvação depois da morte. Meu salário, meus patrimônios vêm do meu suor,
não do suor alheio. Você é um charlatão, cara, que usa o nome de Deus para
tomar dinheiro dos éis. Não tenho medo de você. Vai procurar uma rola.”
Logo depois, o pastor publicou 34 tweets criticando a fala de Boechat e
postou um vídeo no YouTube, ameaçando processá-lo:
“O jornalista Boechat, no seu programa de manhã, fez uma acusação leviana
e séria, de maneira generalizada. Eu respondi através do Twitter que ele estava
tremendamente equivocado e ainda o desa ei para um debate. Ele perdeu a
linha, me xingou, me difamou. E agora vou dar a oportunidade ao Boechat de
dizer na Justiça aquilo que ele falou de mim no microfone da rádio. No
microfone é molinho, Boechat.”
Silas Malafaia ainda pressionou a direção da Band, mais uma vez pelas redes
sociais:
“Vou perguntar ao meu amigo Johnny, dono da Band, se a política do grupo
é caluniar e difamar pessoas. Uma vergonha!”
De fato, após a troca de acusações, o pastor processou Boechat, e somente em
2016 o caso se encerrou em uma audiência realizada no Fórum da Barra
Funda, na zona Oeste de São Paulo. Ambos se desculparam pelo excesso e cou
tudo bem. O Careca, inclusive, reconheceu que exagerou.
Após a morte de Ricardo Boechat, que era ateu assumido, o pastor
repreendeu os evangélicos que atribuíram o trágico acidente de helicóptero à
vingança divina:
“Não trabalho com deus que se vinga porque alguém me xingou”, disse em
entrevista à Folha de S.Paulo. Malafaia ainda acrescentou que até podia não
concordar com tudo o que Boechat falava, mas era inegável que fora um
grande jornalista.
“EU VIVO ESSE MOMENTO LINDO”

Quem trabalhava com Boechat sabia que aquele era um dia especial. A
BandNews FM comemorava dez anos de vida e a festa aconteceu na cidade
dele e no maior símbolo do Rio de Janeiro: o Cristo Redentor.
A organização foi toda conduzida pelo amigo e então diretor de jornalismo
da Band no Rio, Rodolfo Schneider, com a ajuda e apoio da nossa diretora
nacional, Sheila Magalhães. Tudo parecia muito grande, mas era assim que
tinha de ser.
O jornal da BandNews FM abriu o noticiário das 7:30 horas com Boechat
falando já direto do topo do Corcovado, sob os pés do Cristo Redentor. Estava
acompanhado de duzentos ouvintes e nomes como o cantor Frejat e Falcão,
vocalista de O Rappa, banda que sempre prestou homenagens a Boechat – fã e
admirador do grupo.
Ele próprio quis participar da produção, algo não tão comum. Antes disso,
fez o mesmo em eventos como a campanha de doação de sangue da rádio, que
começou no Rio de Janeiro e depois se estendeu para todas as cidades onde a
BandNews FM está presente.
No dia 20 de maio de 2015, Boechat chegou muito cedo e logo de cara
sentiu o calor humano que vinha dos ouvintes, todos muito emocionados e
envolvidos na comemoração. O dia estava lindo, sem nuvens e sem qualquer
sinal de chuva.
Frejat havia levado o violão e emocionou a galera ao cantar a música Amor
pra recomeçar. Naquele momento, era o coral mais bonito do Rio. E, no nal,
Boechat não sabia que algo estava reservado para ele: entrar e subir no Cristo
Redentor. Ateu, aos 62 anos, aquela era uma experiência ainda não vivida por
ele.
Junto com Rodolfo Schneider, Boechat foi narrando aquele momento para
quem estava do outro lado do rádio. Subindo as escadas do Cristo, colocou a
mão no coração dele por dentro até chegar ao braço direito do maior símbolo
da Igreja Católica no Brasil. Era, com certeza, um dos dias mais felizes da vida
dele, principalmente por tudo o que construiu na rádio.
Lá de cima, Boechat estendeu a bandeira da BandNews FM e cantarolou:
“Quando eu estou aqui, eu vivo esse momento lindo...”.
E, por obra do destino, Boechat não pôde cumprir o que desejou nos braços
do Cristo Redentor: “Tomara que daqui a dez anos eu tenha saúde para voltar e
subir esses andares novamente, desse monumento único, para comemorar, mais
uma vez, um aniversário da rádio”.
RIO 2016: “AQUI EU CONHEÇO”

Era um dia inesquecível para o Brasil. Os olhos do mundo inteiro estavam


voltados para o Rio de Janeiro. Pela primeira vez, o país recebia uma
Olimpíada.
Eu, Rodolfo Schneider e Ricardo Capriotti, no Maracanã, faríamos a
transmissão da abertura na rádio com o apoio do Murilo Borges, que dava as
coordenadas no Centro de Imprensa.Boechat, ao lado de Ana Paula Padrão e
Álvaro José, comandaria a transmissão na tela da Band.
Naquele 5 de agosto de 2016, Boechat estava preocupado com duas coisas: a
primeira, como a Doce Veruska assistiria à cerimônia de abertura porque estava
sem transporte. Sozinha, ela decidiu ir de metrô e deixou Boechat mais
preocupado. Ele não parava de ligar para saber onde ela estava. A segunda era
uma insegurança desnecessária: “Vou ter que ir lá para a abertura e não sei
porra nenhuma desse negócio. O que eu vou falar?”.
Faltando perto de meia hora para começar o evento, ele ligou para o Rodolfo:
“Alemão, vem me dar uma força aqui. Vai começar e eu não sei o que falar”.
Puro charme! Não consegui ver a abertura na TV porque estava transmitindo
para a rádio, mas a repercussão foi ótima. E, apesar da insegurança inicial e de a
Veruska ter desligado o celular para ver a cerimônia fora da sala de transmissão,
o que o deixou preocupado, Boechat deu o show de sempre.
Saindo da abertura, já na porta do Maracanã, a galera da Band se
reencontrou. Tinha um carro separado para as “estrelas” da transmissão. Ana
Paula Padrão rapidamente entrou no carro e seguiu com o motorista. Enquanto
decidíamos o que fazer no meio da muvuca, Boechat falou: “Agora é mais fácil
ir de metrô. Deixa que aqui eu conheço”.
E lá fomos nós: eu, Boechat, Rodolfo, Capriotti e toda a galera que lotou o
Maracanã para a abertura dos Jogos Olímpicos.
O problema é que todo mundo parava Boechat a cada dez segundos para tirar
uma foto, para bater papo ou fazer um elogio, enquanto a equipe estava
cansada, com fome e queria ir embora logo. Dentro do metrô, recebemos
orientações:
“Não vai descer aqui, Barão. A próxima estação ca mais perto.”
“Tá bom, Boechat.”
Saímos do Maracanã e fomos até a zona Sul, com Boechat distribuindo
simpatia e aulas das estações do Rio no meio da galera. Foi animal!
(E.B.)
A TRAGÉDIA DOS FRANGOS

A cena era desoladora. Em Guaratiba, na zona Oeste do Rio de Janeiro, o


espaço reservado para a vigília e a missa de encerramento da Jornada Mundial
da Juventude, com a presença do papa Francisco, foi tomado pela lama. A
chuva castigou a região dias antes, e o evento teve de ser transferido para a praia
de Copacabana, na zona Sul.
A BandNews FM enviou repórteres ao chamado Campo da Fé, com o
objetivo de ouvir moradores e pessoas que tinham comprado produtos, como
comida, para vender no domingo, dia 28 de julho de 2013.
Ao vivo, no ar com Boechat, uma mulher lamentou a própria situação:
“Eu perdi tudo. Eu comprei duzentos frangos e não tenho para quem
vender.”
E ele, como jornalista e curioso que era, perguntou:
“Que tragédia! A senhora comprou esses frangos por quanto, hein?”
A ideia era fazer uma conta. E ela respondeu:
“Comprei a três reais.”
Na hora, sem se atentar para o fato em si, ele falou:
“Caramba, três reais?”
E meio que brincou com a situação:
“Olha lá, pagou três reais. Queria até saber onde ela comprou. Está barato
esse frango.”
A senhora se irritou e, no ar, disse:
“Vocês só podem estar de sacanagem com a minha cara. Eu estou aqui fudida,
perdi tudo. Os duzentos frangos que eu comprei, não tenho o que fazer, estou
sem dinheiro, e você está rindo da minha cara?”
No mesmo momento, Boechat não sabia onde se en ar e pediu desculpas:
“Olha, minha senhora, perdão, eu não queria tirar onda com a sua cara.”
Ela, no entanto, continuou esculachando Boechat. Ao m do programa ele
ligou para Rodolfo Schneider e deu a ordem:
“Alemão, compra todos os frangos dessa mulher agora. Eu vou bancar essa
porra. Liga agora para a repórter que está lá e avisa para pegar a conta da
senhora que estou transferindo o dinheiro já.”
Mesmo com a conta paga, ninguém soube qual foi o m dado aos frangos.
A TEORIA DO VESTIDO VERDE

Com mais de quarenta anos de carreira, Boechat tinha várias teorias para
explicar fenômenos do jornalismo no Brasil e dizer o que era ou não notícia, do
seu ponto de vista. Gostava do factual – o que acontecia no dia –, mas nunca
deixava de sugerir reportagens com base em mensagens de ouvintes da
BandNews FM – a principal fonte dele nos últimos anos.
Foi assim quando denunciou, por diversas vezes, a falta de remédios para
doentes crônicos em postos de saúde, revelou o abuso na utilização de aviões da
Força Aérea Brasileira (FAB) por ministros e outras autoridades e antecipou a
informação de que a Vale sabia do risco de uma tragédia em Brumadinho,
Minas Gerais. Fato é que ele se indignava com tudo e não cansava de cobrar no
ar a responsabilidade de quem quer que fosse.
Em meio à Operação Lava Jato, em seus comentários, uma das coisas que
mais o incomodava era a lentidão da Justiça, sobretudo do Supremo Tribunal
Federal (STF), no julgamento de políticos envolvidos no esquema que saqueou
a Petrobras. Então, ele criou uma historinha para explicar como os advogados
atuavam para fazer com que os inquéritos, denúncias e processos se arrastassem
por anos. Ele a chamava de “teoria do vestido verde”.
A última vez que a utilizou foi em maio de 2017, na coluna que mantinha na
IstoÉ, quando o então presidente Michel Temer se viu diante da maior crise do
seu governo. Na época, o político do Movimento Democrático Brasileiro
(MDB) havia sido agrado dizendo a frase “Tem que manter isso, viu” em uma
conversa gravada por um dos sócios da JBS, Joesley Batista, em um diálogo
sobre a prisão de Eduardo Cunha, ex-homem-forte da Câmara. Sem entrar no
mérito do diálogo, o chefe do Executivo questionou a qualidade da gravação.
Segundo Boechat, esse foi o álibi do emedebista.
Na edição de número 2.475 da revista, ele escreveu:

Há uma historinha que costumava repetir nos tempos de coluna diária,


nas quais ralei por quatro décadas. Começa com uma notícia no jornal:
“Um homem branco, de 38 anos, foi agrado, num terreno baldio
próximo a uma escola, abusando sexualmente de uma aluna de 12 anos.
Com escoriações e em estado de choque, a menina, cujo vestido verde
exibia marcas de sangue, foi levada para exames no Instituto Médico
Legal e entregue à família. O criminoso aguardará decisão judicial preso
na delegacia do bairro. Uma semana depois, o tarado move ação por
calúnia contra o repórter, alegando que o vestido era vermelho”.
Não pensem que esse tipo de reação é rara. Perguntem aos advogados.
O processo começa, tramita, vai, volta, entre audiências, recursos,
intimações e tudo mais, produzindo, enquanto dura, “uma divergência
legal relativa ao que foi exposto”. Até que a Justiça se coce, no ritmo
que conhecemos, o processo se arrasta inde nidamente, embolando os
e postergando resultados. O tempo, claro, joga a favor de quem tem
culpa.

Para Boechat, a estratégia era utilizada apenas com o objetivo de postergar o


que um dia, quem sabe, seria de fato julgado pela Justiça – ou pelo STF. E dava
certo, na avaliação dele, porque os advogados dos gurões – sempre os mesmos
– sabiam o caminho da lentidão e as brechas legais existentes no Brasil.
(P.F.)
“NÃO ME FODE, PABLITO!”

Além de ser editor e “fechador” do horário do Boechat na BandNews FM, eu


escrevia com ele e o Ronaldo Herdy a coluna assinada por Boechat na IstoÉ. As
notas, umas 15, eram publicadas semanalmente na internet e na revista.
Fui chamado por ele após uma série de reportagens feitas sobre o uso de
aviões da FAB por ministros e outras autoridades, além de obter informações
exclusivas sobre inquéritos da Lava Jato, processos no Supremo Tribunal
Federal e bastidores do governo.
Mas ele era exigente! No início, como um bom professor, eu escrevia as notas
e Boechat as reescrevia e me orientava como deveria ser feito. Foram semanas e
meses até que ele tivesse con ança e achasse que eu estava pronto para enviar as
notas ao Herdy, companheiro dele de longa data e responsável por reunir o
material, decidir o que seria publicado e fechar a página.
Fazer coluna é muito diferente do jornalismo de rádio, TV ou até mesmo
jornal. Como dizia Boechat, você tem que dar o tiro certeiro. Dar a informação
e fazer com que o leitor se interesse por aquilo logo de cara. Ele vivia dando
exemplos e, assim como na rádio, tinha o costume de soltar a frase que mais
escutei ao longo dos sete anos ao lado dele: “Não me fode, Pablito!”.
Ele queria o melhor, o inusitado, os bastidores, e quando eu surgia com
alguma nota que trouxesse dados interessantes, mesmo que exclusivos, ele
soltava: “Pablito, interessante é o cu do elefante!”.
Ao longo do tempo, fui conquistando novas fontes – aquelas pessoas que
poderiam garantir notícias exclusivas – e, com ele, aprendi que nem todas eram
con áveis. Na maioria dos casos, havia um interesse por trás daquilo tudo.
Eu sabia que aquela oportunidade na revista não surgiria novamente e, por
pura pressão, me adaptei. Os elogios me motivavam a tocar o barco.
(P.F.)
ETERNO CANTINHO

Todos os dias Boechat seguia uma espécie de ritual antes de entrar ao vivo na
BandNews FM, às 7:30 horas. Na maioria das vezes, ele buzinava na entrada
do pátio e estacionava o velho Twingo por volta das 7:00 horas no
estacionamento da Band. O horário, às vezes, falhava, mas o ritual era
mantido, mesmo que fosse necessário atrasar o início do programa por um,
dois ou dez minutos. Até porque ele sempre colocava a culpa no Barão, a ponto
de a nossa diretora, Sheila Magalhães, cobrá-lo pelo atraso.
Cheio de jornais debaixo do braço, Boechat, sempre que chegava, dava bom-
dia a todo mundo, fazia uma ou outra brincadeira, largava a velha maleta –
lotada de papéis – ao lado da cadeira dele no estúdio e voltava à redação com a
pergunta que não falhava: “Valota, tem café? Te amo”.
Valota é o jornalista Ricardo Valota, que já passou por várias redações, como
as do O Estado de S. Paulo e da Jovem Pan, fazendo a checagem de ocorrências
policiais e que trabalhou nas madrugadas da BandNews FM. Boechat tinha o
costume de dizer que se casaria com ele caso o café estivesse incluído no pacote.
Curioso é que Boechat sequer enchia o copo. Ele tomava um dedo de café,
nada além disso. E lamentava sempre o fato de às segundas-feiras Valota não
encontrá-lo na redação, por estar de folga.
Com o cafezinho na mão, Boechat saía junto comigo para fumar um cigarro
e ler os jornais. No caminho, perguntava: “Pablito, tem algo novo?”.
Se havia, eu adiantava o assunto. Às vezes, ele pedia alguma informação
maluca – impossível de apurar em tão pouco tempo – que só cava pronta
quando Boechat já estava no ar.
Por mais incrível que pareça, por vários anos, sentamos ele e eu, diariamente,
em um cano do estacionamento – que evitava que os carros destruíssem o
jardim da Band – e, ali, no chão mesmo, ele despejava todos os jornais. Lia ao
menos três: Folha, Estadão e O Globo. Era o momento de ele saber o que estava
acontecendo e o que poderia comentar ao longo do programa. Invariavelmente,
pedia uma informação adicional ou algum dado especí co para utilizar no ar.
O mesmo fazia quando havia algum áudio interessante que pudesse compor o
material.
Pouco antes da tragédia, no entanto, alguém pensou na idade do Boechat, já
um sessentão. Com um tijolo e um pedaço de madeira, o cinegra sta Anísio
Barros criou uma espécie de banquinho e o nomeou como “Cantinho do
Boecht” – isso mesmo, sem a letra a. Eu me lembro da felicidade dele no
primeiro dia que o viu: “Pablito, sabe quem fez?”.
Eu também não sabia. Descobri junto com ele, já em 2019. Eu continuei no
cano, no meu espaço diário de aprendizado.
Com café tomado, cigarro fumado e notícias lidas, Boechat voltava para a
redação, abria a porta do estúdio e começava o programa: “Bom dia, bom dia,
eu sou Ricardo Boechat, essa é a BandNews FM...”.
Mesmo após a morte do Boechat, o cantinho dele continua como uma
espécie de homenagem no pátio da Band.
(P.F.)
CORAÇÃO GIGANTE

O que poucos sabem é que Boechat tinha um coração gigante e usava o


próprio dinheiro para ajudar pessoas que nem mesmo conhecia. Ele acreditava
demais na palavra daqueles que o procuravam. Muitas vezes, o pedido vinha da
rádio e, mesmo assim, se estivesse ao alcance dele, não pensava duas vezes.
Não raro, pagou cursos, faculdades e até tratamentos médicos com o salário
que recebia da Band e a grana extra que obtinha com eventos, como aquele do
qual participou horas antes de o helicóptero em que ele estava cair na rodovia
Anhanguera, em São Paulo.
Ricardo Boechat ajudava famílias inteiras e, se estivesse por aqui, não gostaria
que este texto fosse publicado. Dias antes de morrer, pediu para Rodolfo
Schneider, do Rio de Janeiro, arrumar um ônibus e levar pessoas para doar
sangue no Hemorio. Deu tudo certo!
Aos mais próximos, Boechat contava que fazia algumas palestras apenas para
bancar as ações de caridade com as quais havia se comprometido. Ele tinha até
um livrinho, um caderninho, uma espécie de contabilidade, em que anotava
quem estava ajudando.
Em um dos casos, ele decidiu dar assistência a um menino que tinha atro a
muscular espinhal (AME), doença degenerativa que atinge a coluna de crianças
e que, na maioria das vezes, culmina na morte do paciente. O pai havia
procurado a rádio e Boechat pediu para levarem o garoto para São Paulo. A
ideia era que ele fosse atendido pelo maior especialista no assunto e, se possível,
dar o máximo de qualidade de vida ao menino.
Chegando a São Paulo para o tratamento, houve algum problema com a
reserva do hotel e, sem pensar duas vezes, Boechat levou o pai e a criança para
dormirem na casa dele, sem tê-los visto uma única vez na vida. Consulta feita,
foi de nido um tratamento, que Boechat bancou por completo, sem contar a
ajuda nanceira dada à família. A criança morreu pouco tempo depois e o
enterro também foi pago por Boechat.
São tantas as histórias que nem mesmo a família dele conhecia todas. Era
Boechat sendo Boechat, aberto às críticas e aos elogios – às vezes, um pouco
avesso –, mas sempre pronto para agir quando algo tocava o seu coração.
Logo após a tragédia, Veruska foi até o banco onde ele mantinha conta, e a
gerente, Roberta Napole, revelou que ele pagava diversas mensalidades de
universidades e pelo menos quatro planos de saúde. Uma espécie de segredo
que só quem era ajudado poderia agradecer.
FALTA NO TRABALHO ABONADA

Além do carisma, Boechat tinha algo que não se vê tanto no meio jornalístico.
Muitos se acham acima do bem e do mal e utilizam o prestígio, com
frequência, para se afastar do público. Sabe aquele que não conversa, não dá
autógrafo, passa reto? Então, não era o tipo do Boechat.
Uma das histórias mais surreais dele envolveu uma crítica de cinema. Ieda
Marcondes pegou com Boechat, em 2015, um voo entre Rio de Janeiro e São
Paulo. Num primeiro momento, Ieda apenas admirou: “Ao entrar no avião, vi
Boechat na primeira cadeira”.
Ela não contava, no entanto, que o mau tempo na cidade de São Paulo faria
com que o avião tivesse que voltar ao Rio de Janeiro. Ao retornar para o
Galeão, foi obrigada a remarcar o voo e ir para o hotel indicado pela
companhia aérea, onde passou a noite. Era domingo. Na segunda-feira, Ieda
tinha que estar no trabalho e não se sabe por que a companhia aérea não
entregou a ela um documento que justi casse a sua ausência. Falta garantida!
Foi então que ela teve a ideia de enviar uma mensagem de e-mail para
Boechat, já que ele estava no voo entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Ela pedia
que respondesse à mensagem para se explicar no trabalho.
Ieda não contava com o inusitado. Boechat leu a mensagem e decidiu ir
pessoalmente conversar com a chefe da crítica de cinema: “Eu estava sentada
trabalhando na empresa e me avisaram que ele tinha ido até lá e queria falar
comigo”.
Nas redes sociais, ela relembrou aquele dia:

Em 2015, meu voo foi cancelado e perdi um dia de trabalho. A


companhia aérea não me deu documento algum que eu pudesse levar
no trabalho e ter a minha falta abonada. Boechat estava no voo, escrevi
para ele pedindo ajuda e ele FOI ATÉ O MEU TRABALHO FALAR
COM A MINHA CHEFE.

Ieda não só teve a falta abonada pela chefe – o que era de esperar –, como
ainda tirou uma foto com Boechat. Depois daquilo, conta que virou piada: “A
Ieda traz o Boechat aqui para compensar”.
ARTE E CIÊNCIA: O MECENAS OCULTO

Boechat era apaixonado por cultura e ciência, apaixonado de verdade. Era um


cara que entendia de quadros, exposições, livros e adorava um novo estudo,
uma nova descoberta. Viajava o mundo em companhia da família, muitas vezes
só para ver alguma mostra ou visitar um museu.
Na BandNews FM, falava do assunto como ninguém e sempre aproveitava a
descoberta de um novo planeta parecido com a Terra para declarar que já estava
comprando a primeira passagem. A ideia era se livrar das mazelas do mundo,
sobretudo as produzidas por políticos no Brasil.
Era também um mecenas oculto. Queria levar cultura àqueles que não
tinham acesso. Não queria que seu nome aparecesse e sempre agia de forma
muito discreta. Foi assim com a Orquestra Sinfônica Brasileira, no Rio de
Janeiro, que passava por di culdades nanceiras. Sem dinheiro, as
apresentações estavam sob o risco de serem canceladas. Mas, em 2018, Boechat
garantiu a realização de um dos eventos. Comprou metade dos ingressos e
mandou distribuir entre os ouvintes da BandNews Fluminense FM: “A
prioridade são idosos e crianças. Os idosos porque ganham mal e não têm
possibilidade de ir à apresentação, e as crianças, para aprenderem a gostar de
música erudita”.
E foi por sugestão de uma ouvinte, em uma mensagem lida no ar por
Boechat, que o AquaRio decidiu criar um projeto voltado apenas às crianças
autistas. A visita gratuita é realizada no último domingo de cada mês, a partir
das 8:30 horas. A programação, uma parceria com o grupo CapaciTEAutismo,
é especial, com o apoio de voluntários e luzes acesas durante todo o circuito. A
iniciativa rendeu a Boechat uma homenagem depois da sua morte. Um
tubarão-martelo (Sphyrna tiburo) foi batizado com o nome dele.
A espécie, segundo o AquaRio, é conhecida por ser um grande farejador de
campos eletromagnéticos, assim como Boechat era no jornalismo: um grande
farejador de notícias.
PRESSÃO! #SQN

Boechat sempre teve liberdade para dizer exatamente o que pensava no


microfone da BandNews FM, e ele soube aproveitar esse espaço como poucos.
Fez denúncias e atacou quem achou que devia atacar. As críticas quase sempre
eram endereçadas aos privilegiados, aos poderosos, normalmente políticos.
E esse tipo de gura em geral usa artimanhas abomináveis, que não sei se um
dia vão mudar. Numa tentativa de constrangimento, os tais gurões chegam a
ligar para diretores de empresas jornalísticas. O objetivo é fazer pressão, cobrar
uma retratação, questionar as informações divulgadas, os exageros e, no caso do
Boechat, fazer eventuais xingamentos.
As ligações eram quase que diárias e envolviam políticos de cargos e partidos
diferentes. Em comum, todos foram alvos da língua a ada do Boechat e se
queixavam do que consideravam “injustiças”. Por anos, a diretoria da Band
matou no peito e quase nunca passou o assunto adiante. Eventualmente, havia
uma conversa sobre algum exagero, como, por exemplo, quando Boechat
desejava a morte de alguém. Mas o assunto, na grande maioria das vezes, se
encerrava rapidamente.
Em uma das ocasiões, a situação virou piada interna. Boechat detonou um
ministro da Comunicação que só viajava para fora do país e usou dinheiro do
Senado para passear com a família nos Estados Unidos. Não vou dar o nome
do sujeito porque foram tantas as ligações e pressões durante anos que não vale
a pena citar apenas um nome. Esse caso, no entanto, foi engraçado.
O vice-presidente das rádios do Grupo Bandeirantes, Mário Baccei, estava
dirigindo na marginal do Tietê, em São Paulo, quando recebeu a ligação do
gabinete do ministro. O roteiro é bem parecido: “Se não houver uma retratação
do Boechat, vou processar a rádio”.
Acostumado à pressão, Baccei rebateu imediatamente: “Então processa e não
precisa mais ligar”.
Eu era chefe de redação da rádio na época; Baccei me ligou para dizer o que
tinha acontecido, e o jornal transcorreu normalmente. Naquele dia, Boechat
terminou um pouquinho mais cedo, antes das nove da manhã: era
comemoração do Dia dos Pais na escola das crianças.
Para surpresa geral, Baccei recebeu uma nova ligação de Brasília, do mesmo
gabinete do ministro: “Baccei, não precisava ter tirado o Boechat do ar. Não era
para tudo isso. Põe ele de volta”.
Rindo por dentro, Baccei mostrou “autoridade”: “Comigo é assim mesmo. E
passe muito bem”.
Nunca mais esse gurão voltou a ligar para pressionar. Mas Boechat e Baccei
davam gargalhadas sempre que se lembravam dessa história.
(E.B.)
A DEPRESSÃO

Boechat estava estranho como nunca se tinha visto. Ele havia acabado de voltar
das férias. Passou uns dias no apartamento dele, em Nova York, e comentou
que mal tinha saído para passear: “Só saía para almoçar, voltava e dormia
muito”.
Não era normal. A cada dia, o editorial de abertura, sempre brilhante todas as
manhãs, se tornava um fardo, como se ele estivesse diariamente escalando o
Everest. Eu tentava brincar, tirar sarro, divertir. Mas ele não reagia, apesar de
fazer um esforço sobre-humano para parecer normal.
“Vai ver isso, Boechat. Deve ser algo fácil de resolver.”
“Não tenho nada, Baronete. Não sinto dor.”
“Já tive um amigo que teve e só se curou com ajuda. Procure um médico.”
Ele não procurou e sofreu durante semanas, piorando a cada dia. Era visível
que não estava bem, apesar de nunca deixar transparecer no ar. Era um
sofrimento para ele e para nós, que víamos todos os dias aquela fortaleza de
vida se transformar em um ser humano frágil, quase indefeso. Muito triste.
Um dia, faltando poucos minutos para o noticiário ir ao ar, ele não havia
conseguido encontrar, em meio aos jornais, alguma notícia para fazer seu
comentário: “Baronete, hoje não vai dar. Nada está fazendo sentido”. E foi do
estúdio direto para o camarim, onde se trancou e só saiu horas depois quando a
Doce Veruska chegou.
Foi uma barra-pesadíssima. Primeiro, porque tivemos de tocar a rádio por
mais de um mês preocupados com a recuperação dele. Segundo, porque não
dissemos no ar que Boechat estava se recuperando de uma depressão. Não
tínhamos esse direito. Só que isso abriu espaço para todas as teorias de
conspiração, inclusive a de que a Band teria se rendido às exigências de algum
político e censurado Boechat por algum ataque. Isso nunca aconteceu!
Felizmente, após ser tratado, Boechat voltou. Ele nunca cou curado, mas
aprendeu a lidar com os males da depressão e largou os remédios. Mesmo
assim, a tristeza ainda batia forte em alguns dias.
Após ler esta carta no ar, Boechat se tornou referência e deu voz para muita
gente que sentia vergonha de falar sobre o assunto:

Acho que devo uma explicação às centenas de pessoas que me escreveram nos
últimos dias perguntando o que eu tinha e desejando minha pronta
recuperação.
Pois bem, queridos amigos, o que eu tive foi um surto depressivo agudo.
Minutos antes de começar o programa de rádio da quarta-feira retrasada eu
simplesmente sofri um colapso, um apagão aqui no estúdio. Nada na minha
cabeça fazia sentido. Nenhum texto era compreensível. Os pensamentos não
fechavam e uma pressão insuportável dava a nítida sensação de que o peito ia
explodir. Fiquei completamente desnorteado e achei melhor me refugiar no
meu camarim e esperar socorro médico. Quando nalmente minha Doce
Veruska me levou ao doutor e eu descrevi o que estava sentindo, ele foi
categórico em dizer que era depressão. Que o estado de pânico, a balbúrdia
mental, a insegurança e tudo o mais eram sintomas clássicos do surto
depressivo.
Quem cai num quadro desses perde qualquer condição de continuar ativo, de
pensar as coisas mais simples. A pessoa morre cando viva.
E eu quei impressionado nestes dias com a quantidade de gente que sofre do
mesmo problema. Quando contei a alguns ouvintes que me ligaram o que
estava acontecendo, muitos disseram já ter passado por isso, ou conhecer
alguém que ainda passa ou já passou.
Barão me mostrou um vídeo produzido pela ONU indicando que esse
fenômeno é global. Uma amiga minha citou números da Organização Mundial
da Saúde a rmando que a depressão é a doença que mais cresce no mundo. E
Bruno Venditti me mandou um texto muito bom do pregador Élder Holland
sobre o assunto.
Tanto o vídeo da ONU quanto esse texto deixam claro que é importante não
esconder a doença, não esconder a depressão. Não tratá-la na clandestinidade.
É importante aceitá-la para combatê-la ‒ e todo o silêncio, do próprio doente
ou de quem está à sua volta, di culta a recuperação. Essa necessidade de não
fazer segredo, além da sinceridade que faço questão de manter na relação com
os ouvintes, é a razão deste depoimento pessoal.
O texto que eu li fala do “transtorno depressivo maior”, lembrando que isso
não signi ca apenas um dia ruim, ou um contratempo, ou momentos de
desânimo ou ansiedade, que são coisas que todos temos normalmente.
A depressão é muito mais que isso e muito mais séria. É uma a ição tão
severa que restringe a capacidade de uma pessoa funcionar plenamente, um
abismo mental tão profundo que ninguém pode achar que vai se safar apenas
endireitando os ombros ou pensando coisas positivas.
Não, minha gente, essa escuridão da mente e do estado de espírito é mais do
que um simples desânimo. É um desequilíbrio da química cerebral, algo tão
físico quanto uma fratura óssea, ou um tumor maligno. É um fenômeno que
atinge todo mundo: quem perde um ente querido, mães jovens com depressão
pós-parto, estudantes ansiosos, militares veteranos, idosos de uma maneira
geral e pais preocupados com o sustento da família.
A depressão não escolhe vítimas por seu grau de instrução ou situação
econômica. Castiga sem piedade e da mesma forma pobres e ricos, anônimos e
famosos.
Os médicos que estão me tratando disseram que eu estiquei a corda demais,
que z mais coisas do que deveria fazer e em menos tempo do que seria
razoável. Eu fui além dos limites que minha saúde permitia e ignorei todos os
sinais físicos e avisos domésticos. Quantas vezes minha Doce Veruska me disse:
“Você vai pifar! Você vai pifar!”...
O texto que eu li ensina que para prevenir a doença da depressão é preciso
estar atento aos indicadores de estresse em sua própria vida. Assim como
fazemos com nosso carro, é fundamental observar a temperatura do nosso
motor interno, os limites de nossa velocidade, ou o nível de combustível que
temos no tanque. Quando ocorre a “depressão por exaustão”, que foi o meu
caso, é preciso fazer os ajustes necessários. A fadiga é o inimigo comum e
recuperar forças passa a ser uma questão de sobrevivência.
A experiência mostra que, se não reservarmos um tempo para nos sentirmos
bem, sem dúvida depois teremos que despender tempo passando mal. E foi o
que aconteceu. Mas a cura existe. Às vezes requer tratamentos demorados. Mas,
como está no texto que eu li, “mentes despedaçadas também podem ser
curadas, assim como corações partidos”.
Eu sei que quem liga o rádio numa estação de notícias quer receber
informações de interesse geral, quer saber da política, da economia, dos
acidentes, do engarrafamento nosso de cada dia.
Então peço desculpas por não entregar nada disso a vocês neste papo inicial
no dia de minha volta. Nada de impeachment, de renúncia, de Cunha, de
Renan, de in ação, de ajuste scal e de tantas outras coisas que só têm
infernizado nossas vidas, mas que são as manchetes do momento.
Não falei neste bate-papo nem mesmo das abobrinhas de que eu gosto tanto
e que nos ajudam a cumprir a jornada diária sofrendo menos.
Este papo de hoje é sobre depressão. Um mal que afeta milhões de pessoas,
milhares delas no Brasil, um mal sobre o qual é preciso estar informado e não
fazer segredo.
Como eu agora me descobri fazendo parte dessa população doente, pensei
muito nas noites sem dormir dos últimos dias e tomei a decisão de dividir essa
experiência com vocês. Se com isso eu conseguir ajudar algum ouvinte a
prevenir a depressão ou a curá-la, já me dou por satisfeito.
E toca o barco.
Na última entrevista que me deu, ele disse que, depois dessa revelação, passou
a ser convidado para dar palestras sobre depressão, mais do que qualquer outro
assunto. E brincou: “Se soubesse que a depressão me daria essa grana, já teria
tido há muito tempo”.
(E.B.)
FALA, JACARÉ!

O atual presidente da República, Jair Bolsonaro, sempre foi uma fonte da


coluna do Boechat, desde os tempos de O Globo e do Jornal do Brasil.
Jacaré, como ambos se chamavam, sequer era político, mas passava notícias
em primeira mão, matéria-prima para quem atua com material exclusivo.
Inicialmente no Exército e, depois, no Congresso.
Apesar da boa relação, os dois nunca foram amigos. Bolsonaro chamava
Boechat de comunista, enquanto Boechat chamava Bolsonaro de fascista. Tudo
na brincadeira.
Na campanha vitoriosa à presidência, no primeiro turno, Bolsonaro chegou a
participar do primeiro debate na Band, mas após o ataque à faca em Juiz de
Fora, Minas Gerais, ele não compareceu a mais nenhum encontro na TV.
No segundo turno, quando Bolsonaro já se recuperava em sua casa na Barra
da Tijuca, no Rio de Janeiro, Boechat se envolveu diretamente na tentativa de
convencer o futuro presidente a debater com o adversário, Fernando Haddad,
do Partido dos Trabalhadores (PT), no segundo turno.
O papel de um mediador, normalmente, se limita a bater pênaltis e
apresentar o debate. Existe uma produção prévia gigantesca, que envolve desde
as negociações com os partidos, a de nição de regras, a logística, segurança e
convidados, além da cobertura jornalística da Band e de outros veículos de
comunicação. É uma organização monstruosa que levou a Band a ser
reconhecida internacionalmente. Por esse motivo, Boechat viajou e participou
de congressos em vários países.
Voltando à tentativa de conseguir convencer Bolsonaro, Boechat fez de tudo.
Mas logo de cara, ele percebeu que a coordenação da campanha era
fragmentada demais. Tentou com a ala dos militares, sem sucesso. Conversou
com lideranças do PSL, partido de Bolsonaro, e nada. Chegou a propor aos
lhos dele que o debate fosse realizado em um hotel próximo à residência do
então candidato na Barra da Tijuca, e não na sede da Band, em São Paulo.
Tudo isso com o consentimento do adversário, Fernando Haddad, que, atrás
nas pesquisas, topou ir ao Rio. Também não rolou.
Ao nal, Boechat desabafou: “Ofereci tudo que pude, defendi o debate até o
m, propondo soluções que a Band nem me deu autorização para negociar. Ele
não quer. Não posso fazer mais nada”. O debate não foi realizado, nem na
Band, nem em qualquer outra emissora no segundo turno.
Depois disso, nunca mais um Jacaré falou com o outro.
AMIGO DE MAITÊ PROENÇA

Ricardo Boechat era padrinho da lha do empresário Paulo Marinho com a


atriz Maitê Proença, de quem se tornou grande amigo. Juntos, passaram por
alguns perrengues, e um deles foi em 1987, quando Boechat era secretário
estadual de Comunicação no Rio de Janeiro. Ficou apenas seis meses no cargo
e dizia ter sido o pior período de sua vida. Na época, ele vivia na capital e os
lhos em Niterói.
Em um sábado de manhã, como não tinha carro, Boechat não pensou duas
vezes e pediu o da Maitê – o mais novo e bonito que existia – emprestado. Era
um Monza, fabricado pela General Motors (GM). Um dos mais desejados na
época.
Boechat vestiu bermuda e camiseta, calçou chinelos de dedo e pegou o
volante para ver os lhos, com um pequeno detalhe: ele não tinha carteira de
habilitação. E ele fazia isso desde os 15 anos.
Na ponte Rio-Niterói, o Monza da Maitê Proença, sem a atriz, foi parado
pela Polícia Rodoviária Federal. Naquela época, Boechat não aparecia na TV e,
por isso, não tinha o rosto conhecido. O agente logo pediu:
“Por favor, a habilitação.”
“Olha, seu guarda, eu não tenho, não”, disse Boechat.
“Você não tem habilitação? Então sai do carro.”
O policial olhou-o de cima a baixo e perguntou:
“Esse carro é seu?”
“Não, não é meu. É da minha comadre”, a rmou.
“Os documentos do carro. E como chama sua comadre?”
“Maitê Proença.” Isso no auge da carreira dela.
“A atriz?”
“Sim, a atriz.”
O guarda chamou outro guarda e mandou Boechat repetir a história. E, sem
acreditar, perguntou de novo:
“Quer dizer que a sua comadre é a atriz Maitê Proença e ela te emprestou esse
carro? E você não tem habilitação e está dirigindo de chinelos de dedo, que é
proibido?”
“É, seu guarda. É isso.”
E o policial:
“E quem é esse cara que é dono do carro, que está no documento?”
Era o pai da Maitê Proença, mas Boechat não sabia o nome dele.
Não deu outra: Boechat foi preso.
Chegando à delegacia, ele teve que registrar as digitais e foi autuado por
dirigir sem habilitação. Isso tudo sendo secretário estadual de Comunicação.
Boechat não ligou para Maitê Proença, mas para um advogado, que o tirou da
cadeia.
Dois dias depois, o procurador-geral do estado ligou para ele:
“Boechat, você foi preso?”
“Fui.”
“Mas como você foi preso? Você é secretário de estado!”
A conversa parou por aí e a punição não passou de uma bronca.
Anos depois, ele mesmo admitiu que estava errado e disse que, se fosse o
guarda, também o prenderia por contar uma história como aquela.
MAIS APUROS: SOCORRO!

Não bastasse ser preso na ponte Rio-Niterói, Ricardo Boechat passou outro
apuro com a amiga, a atriz Maitê Proença. Os dois estavam na estrada e
pararam para socorrer um homem que havia sido atropelado.
Foi uma semana com vários desabamentos no Rio de Janeiro e os
atendimentos de emergência estavam todos lotados. Demorou, mas eles
conseguiram uma vaga para aquele homem e um médico que pudesse atendê-
lo.
Na saída, dois policiais falaram com eles, e um sugeriu:
“Quem garante que não foram vocês que atropelaram aquele homem?”
Nervosa, Maitê quis pular no pescoço do policial. Foi segurada pelo amigo e
compadre, em um momento que ela mesma classi cou como de grande a ição.
O homem sobreviveu.
BOATE KISS: 242 DIAS DE REVOLTA

Eu me lembro até hoje do sentimento de revolta do Boechat com a tragédia da


boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. O incêndio, ocorrido no
dia 27 de janeiro de 2013, ceifou a vida de 242 jovens.
Abalado como nunca o tinha visto, Boechat queria histórias. Queria saber
quem eram aquelas vítimas, o que faziam e o que desejavam para o futuro.
Mesmo no domingo, ele nos questionava sobre tudo o que havia acontecido.
“Como começou o incêndio? Quem acendeu o sinalizador? Qual era a banda
que tocava? Por que as pessoas não conseguiram sair?”
Estávamos de plantão, eu e Maiara Bastianello, que no mesmo dia viajou para
Santa Maria. Logo no começo da manhã, conseguimos falar com um dos DJs
que tocavam na festa, sobreviventes, autoridades e outros envolvidos na
tragédia. A primeira informação dava conta de vinte mortos. Mas o número
não parava de crescer.
Um dos relatos obtidos naquele dia foi o de uma jovem que chegou a ser
impedida de sair da casa noturna por seguranças que exigiam o pagamento da
comanda. Boechat, que já estava revoltado, cou louco – louco mesmo.
Na segunda-feira, o clima era de consternação. Boechat queria falar com todo
mundo que fosse possível, incluindo os repórteres enviados à região. Ele queria
mais histórias e quase não se conteve ao ouvir de um bombeiro que muitas
vítimas morreram no banheiro – por onde tentaram fugir – e que os celulares
delas ainda tocavam.
No meio de tudo aquilo, surge um herói. Um jovem que não pôde abraçar a
família depois de salvar 14 pessoas na noite da tragédia. Estudante de educação
física, Vinicius Montardo Rosado tinha 26 anos, era jogador de rúgbi e tinha
ido à boate com a irmã. Ajudando no resgate das vítimas, acabou morrendo,
intoxicado pela fumaça, causa do óbito da maioria das vítimas. Maiara
descobriu a história do herói ao ouvir uma conversa em frente à boate. Foi
então que ela começou a fazer um dos relatos mais comoventes em meio à
tragédia.
Depois de ouvir a história daquele jovem, Maiara perguntou se o pai dele,
Ogier Rosado, não falaria ao vivo com Boechat na BandNews FM. Ele topou,
ainda com dor no coração. Os dois conversaram por mais de meia hora.
Boechat queria saber tudo sobre Vinicius e, naquele momento, acabou se
tornando um ombro amigo para os parentes, que precisavam muito desabafar.
Vinicius era conhecido pelo bordão “Ah, muleque!”, expressão que foi
escolhida como nome de uma organização não governamental de apoio às
famílias.
Dali em diante, Boechat decidiu fazer algo que nunca tinha feito. Para que
aquela tragédia nunca fosse esquecida, nós nos lembraríamos dela no ar por
242 dias, sem falta. O número de vítimas do incêndio. Era uma forma de
homenagear aqueles jovens e pressionar as autoridades para que alguém fosse
responsabilizado.
Boechat morreu e, até hoje, ninguém – ninguém mesmo – foi punido. Logo
depois do acidente com o nosso Carequinha, o pai de Vinicius fez questão de
enviar uma mensagem à Maiara. Só queria oferecer um ombro amigo.
(P.F.)
O RAPPA: FÃ E ÍDOLO

Boechat era fã de O Rappa e O Rappa era fã do Boechat. Foram inúmeras as


vezes em que o jornalista e os integrantes da banda trocaram elogios no ar ou
fora dele. Tornaram-se amigos ao longo dos últimos anos por partilharem do
mesmo entendimento sobre o Brasil. A banda expunha suas ideias em forma de
música, e Boechat, em seus comentários diários na BandNews FM e no Jornal
da Band.
Em setembro de 2013, Boechat chegou a utilizar uma música de O Rappa,
Auto-reverse, para abrir o jornal na BandNews FM, e traçou um paralelo entre
as letras da banda e a atual situação do país. Estávamos no governo Dilma
Rousse e vivíamos um momento conturbado, uma pré-eleição que mostrava
um país cada vez mais polarizado.

Felizes, de uma maneira geral, geral


Estamos vivos
Aqui agora brilhando como um cristal
Somos luzes que faíscam no caos
E vozes abrindo um grande canal

Nós estamos na linha do tiro


Caçando os dias em horas vazias, vizinhos do cão
Mas sempre rindo e cantando, nunca em vão

Uma doce família que tem a mania


De achar alegria, motivo e razão
Onde dizem que não
Aí que tá a mágica, meu irmão

Naquela época, Boechat foi chamado pelo O Rappa para escrever o texto que
apresentaria o novo CD da banda. Ele cou envaidecido com o convite, mas
exagerou na mão. Escreveu um texto tão grande que a mensagem não coube no
espaço reservado pela banda. O problema é que o grupo gostou tanto que
mandou refazer a arte do disco para incluir o texto completo. Boechat, como
era, conseguiu atrasar a venda do CD. Ainda em 2013, abriu um dos shows
d’O Rappa no Rio de Janeiro, sem saber que o faria. Foi chamado ao palco de
última hora. Ficou tremendo, mas não resistiu. A galera foi ao delírio.
“O coração de 61 anos foi submetido a duas grandes emoções. A primeira,
quando O Rappa me convidou para apresentar o disco de vinte anos. A
segunda, lá no camarim, o pessoal da banda perguntou: quer encarar o público
e anunciar a entrada d’O Rappa? Eu tremi e estou tremendo agora, mas não
resisti à tentação. E queria dizer para vocês o seguinte: nunca tem m mesmo.
A luta continua, minha gente.”
A ideia foi tão bem-recebida que, cinco anos depois, na última turnê da
banda, todos os shows d’O Rappa foram abertos por Ricardo Boechat.
Gravada, a mensagem era exibida no telão antes mesmo da entrada de Falcão,
Lobato, Xandão e Lauro Farias. Era a despedida do grupo depois de 25 anos, e
ele, mais uma vez, estava lá:

Salve rapaziada, salve a juventude. Somos vozes na linha do tiro e


também estamos brilhando no caos. Nós estamos aqui hoje para
participar de uma noite histórica. Esta noite que não vai se apagar de
nossas mentes, que jamais deixará nossos corações. A noite do último
show d’O Rappa [...]. O Rappa pede passagem para dar um tempo [...].
Talvez um até já, um até logo, mas um tempo que será dono de si e do
seu destino. Que o nosso grito seja o mais alto de todos, para cantar e
agradecer por todas as viagens que zemos juntos, na mesma onda, no
mesmo barco. Obrigado, O Rappa, por nos unir. O Rappa é espírito e
matéria. É alma e corpo. É sonho e luta. O Rappa, minha gente, não
está partindo. Está virando luz [...]. Valeu, meus irmãos.

Até os últimos dias, Boechat expressava, sempre que possível, a ligação e o


carinho que tinha com os integrantes d’O Rappa. No dia da queda do
helicóptero, em um vídeo postado na internet, Falcão, chorando, resumiu o
que era, visivelmente, recíproco: “Acordei arrebentado. Perdi meu ídolo
máximo”.
BOM DIA BRASIL

Minha experiência com Boechat começou bem antes de encontrá-lo pela


primeira vez. Aos 18 anos, fui radioescuta da Jovem Pan, quando ainda cursava
jornalismo na Universidade Metodista de São Paulo, em São Bernardo do
Campo, no ABC Paulista.
Enquanto dava meus primeiros passos na pro ssão, Boechat já tinha uma
longa estrada e, à época, fazia aparições diárias no Bom Dia Brasil, da TV
Globo, ao lado de Renato Machado e Leilane Neubarth. Na JP, meu papel era
ouvir o que ia ao ar em outras emissoras e alertar à che a sempre que houvesse
alguma notícia que a rádio não tinha.
O meu chefe direto nessa época era o Anchieta Filho, importante jornalista
paraibano e palmeirense, que sempre me serviu de inspiração na carreira.
Anchieta era muito direto, franco, severo e justo. Tudo o que um estagiário
precisa para aprender. Todos os dias ele dizia: “Barão, ca esperto com o que
aquele carioca (Boechat) vai dizer no Bom Dia Brasil”.
No m da década de 1990, a internet ainda engatinhava e, por isso, era
fundamental ter atenção e acompanhar a informação com cuidado. Depois,
seria muito difícil recuperar o que havia sido dito.
Anos mais tarde, já na Band, contei essa história ao Boechat e a resposta não
foi a que eu imaginava: “Barão, era um sacrifício acordar cedo todos os dias
para estar, minimamente, pronto com uma notícia de bastidores”.
A mudança de empresa fez muito bem a ele.
(E.B.)
ATÉ QUE ENFIM, FÉRIAS!

Boechat tirava férias duas vezes por ano. Com as pequenas Valentina e Catarina
na escola, sempre saía em janeiro e julho. Essa rotina era sagrada para ele, mas
nem sempre foi assim.
Antes disso, quando começou na carreira pro ssional, as coisas eram bem
diferentes. Boechat trabalhava no Diário de Notícias com um dos colunistas
mais respeitados do Brasil, Ibrahim Sued. Era o início da vida de jornalista e,
por nove anos, ele não tirou férias. Admitia que tinha medo.
Boechat achava que, se tirasse uns dias de descanso, seria demitido pelo Turco
logo na volta. Jornalista não tirar férias, por mais absurdo que possa parecer
hoje, era uma prática comum no mercado. E alguns, de fato, foram demitidos
por tirarem férias em outras épocas, em meio aos 48 anos de jornalismo de
Boechat.
Além do medo da demissão, Boechat não tirou outros períodos de férias
durante muito tempo pelos motivos mais diversos. Mas recentemente
mostrava-se arrependido: “Tem que tirar. É uma questão terapêutica”.
Segundo Boechat, além de ser um direito, é preciso dar uma desligada. No
último período de férias, antes da tragédia, falou comigo fora do ar: “Barão, eu
não aguentava mais”.
A expectativa era como ele encontraria o mundo – ou o Brasil – depois de
viajar para Alhures e Nenhures, como dizia. Fato é que nada mudava: “Saí,
voltei e tudo continua igual”. Esse era, no retorno, religiosamente, o assunto de
abertura do jornal na BandNews FM, como foi no dia 21 de janeiro de 2019,
ao falar do enrosco envolvendo o senador Flávio Bolsonaro e o ex-assessor
Fabrício Queiroz.
Dizia, ao voltar, que “os políticos ainda são políticos, os governos ainda são
governos e as tragédias ainda são tragédias” e, o mais importante: “a
esculhambação ainda é esculhambação”.
(E.B.)
Retratos de infância: Mercedes e Dalton estão com os filhos mais velhos: Beatriz, Ricardo e
Carlos Roberto (no alto); Carlos Roberto e Ricardo aparecem no colo do pai e na bicicleta
(acima).
Dalton e Mercedes tiveram sete filhos. Na foto, estão com Beatriz, Ricardo (atrás, no centro),
Carlos Roberto (atrás, à direita), e Sérgio e Alexandre (à frente). Os dois caçulas, César e
Dalton Filho, não tinham nascido ainda.
Boechat começou a carreira no Diário de Notícias, em 1971, ao lado de Ibrahim Sued, que
inovou o colunismo social (no alto).
Os furos, as notas exclusivas e os muitos prêmios o levaram do jornalismo impresso para a TV.
Em 1983, ele ganhou uma coluna em O Globo e, em 1996, passou a fazer o Bom Dia Brasil, na
TV Globo.
No estúdio do Jornal da Band: Boechat entrou para o grupo em 2005, inicialmente na
BandNews FM do Rio de Janeiro.
Em 2012, os irmãos se reuniram para comemorar os oitenta anos de dona Mercedes.
Da esquerda para a direita: César, Sérgio (sentado), Carlos Roberto, Ricardo, Alexandre e
Dalton Filho.
Foi no Encontro Internacional do Vinho do Espírito Santo, em 2003, que Boechat conheceu
Veruska, na época colunista do jornal Gazeta de Vitória. Os dois passaram a trocar mensagens
e o namoro começou um mês depois, em uma viagem a trabalho que ela fez ao Rio de Janeiro.
Amor incondicional: Boechat, Doce Veruska e as filhas Valentina (nascida em 2006) e Catarina
(em 2008). Na foto do meio, aparece também a spitz alemã Nina.
Um abraço em Ricardo Valota, colega da BandNews FM e responsável pelo café que Boechat
tomava todas as manhãs. A diferença era de 22 centímetros (1,90 e 1,68 metro), mas Boechat
fez Barão se tornar um gigante. À direita, a cadeira que virou obra de arte pelas mãos de Alê
Jordão.
Dois times que o amenguista Boechat adotou: Portuguesa e América Mineiro. Acima, com
Barão: pânico e galhofa na conversa com José Simão.
No alto do Cristo Redentor em 2015: “Eu vivo esse momento lindo”; Boechat divertia a
redação com a camiseta do PGN, partido criado por ele, ou com suas brincadeiras.
Boechat também fazia desenhos e escrevia bilhetes daqueles de “tirar as crianças do carro”.
Uma maratona para pegar em casa os ingressos do show dos Rolling Stones, no Morumbi:
Boechat foi com Veruska e Barão com Michelle (à esquerda). À direita, com a diretora de
jornalismo da BandNews FM, Sheila Magalhães.
O apego pelo Twingo: Boechat teve dois, um prata e outro meio azul, meio roxo, igual a uma
berinjela. Ele dizia que o carro cumpria bem sua tarefa: “levar e trazer”.
À direita, a linda homenagem do jornal Metro ao Senhor Jornalista.
Nos eventos da BandNews FM. Boechat dava atenção a todos os ouvintes. Distribuía abraços
e sorrisos.
No estúdio, ao lado da apresentadora Carla Bigatto. Retornando das Olimpíadas do Rio-2016,
Boechat faz uma demonstração de carinho para o fotógrafo Barão. Rodolfo Schneider ao lado
de dona Mercedes.
Boechat encontrou um cantinho no estacionamento da Band para ler os jornais, tomar café e
fumar todas as manhãs.
Era onde fazia reuniões com Letícia Kuratomi e Pablo Fernandez (à direita). Hoje o local
ganhou uma placa em sua homenagem (à esquerda).
Boechat é um dos maiores ganhadores da história do Prêmio Comunique-se, considerado o
Oscar da imprensa brasileira. Foram 18 troféus ao todo.
No dia da morte, a homenagem dos colegas: todas as redações do Grupo Bandeirantes
pararam para aplaudir Boechat no encerramento do Jornal da Band.
PGN, O PARTIDO DA GENITÁLIA NACIONAL

Poucas coisas eram combinadas na coluna diária de José Simão. Normalmente,


chegavam às mãos de Boechat alguns tópicos anotados pelo produtor como
“piada pronta, breaking news, predestinado e placa”. Toda a conversa que vinha
na sequência era pura mágica e resultado do entrosamento entre os dois.
Ao longo dos anos, quadros foram criados do nada e tiveram sucesso. O que
mais pegou, principalmente em período de eleições, foi o PGN. O Partido da
Genitália Nacional, que tinha como presidente José Simão, Boechat como vice
e os liados eram toda a galera interessada em participar da zoeira matutina.
Às vésperas da reeleição da presidente Dilma Rousse , em 2014, Boechat
decidiu investir e mandou fazer centenas de camisetas com a inscrição PGN,
com logotipo e tudo. Era a peça mais desejada de qualquer guarda-roupa, e os
ouvintes queriam ter uma de qualquer jeito.
O PGN representava toda a raiva sentida e escancarava o quanto
inconformada a sociedade estava diante dos absurdos da política no país, que,
infelizmente, duram até hoje.
No sábado, antes da eleição, Boechat teve uma ideia genial, na visão dele.
Tentando angariar mais eleitores, ele mesmo foi até o parque Ibirapuera, na
zona Sul de São Paulo, e distribuiu as últimas camisetas do PGN que sobraram.
O gesto não alterou os rumos do país, mas fez muita gente feliz. Eram os
novos liados ao PGN.
#PGNFOREVER
“BLACK BOSTAS”

Desde que entrou da BandNews FM, Boechat sempre foi ácido, direto,
agressivo. Lembro que não se conformava com a passividade do povo brasileiro,
apesar de todas as barbaridades praticadas por políticos de partidos diversos.
“Tem que jogar tomate no carro o cial do deputado. Tem que ir na porta do
salão de beleza da primeira-dama e protestar para causar constrangimento. Tem
que parar de assistir a tudo com nariz de palhaço. Tem que sair de trás dos
computadores e ir às ruas.”
Tudo isso Boechat falou por anos na rádio desde meados de 2006. Uma
entrevista dada ao site Pato com Laranja, em junho de 2012, ganhou
repercussão inesperada e também rendeu uma acusação leviana contra ele.
Boechat disse: “Essa realidade só vai mudar se a população tirar a bunda da
cadeira, se a população for para a rua, se a população botar a boca no
trombone, se a população denunciar, se a população atacar, partir para o
contra-ataque”.
Muitos analistas políticos disseram que as palavras do Boechat eram o
prenúncio das manifestações que vieram em 2013. Mas outros o acusaram de
ter sido um incentivador de um movimento mais agressivo, o dos black blocs:
“Eu sou favorável a arranhar carro de autoridade, eu sou favorável a jogar
ovo, sou favorável à revolta, a quebra-quebra e o caralho. Ah, mas isso é
vandalismo! Vandalismo é o cacete! Vandalismo é botar as pessoas quatro horas
nas las das barcas todos os dias. Vandalismo é mandar segurança baixar a
porrada em passageiro da Central do Brasil, que não aguenta mais ser tratado
como gado. Isso é que é vandalismo! Vandalismo é roubar como um
condenado o dinheiro público. Vandalismo é matar meu lho dentro do
hospital público por falta de médico e remédio. Isso é vandalismo.”
E continuou:
“Acho que tem de perturbar a família deles. Quando entrar em restaurante,
tem que vaiar e por aí vai. Na Argentina, quando um torturador, já velhinho, ia
para o teatro, na porta se reunia uma galera e começava a gritar: ‘Esse é fulano
de tal, matou beltrano, torturou sicrano, arrancou unha com alicate’. Então
cava esse constrangimento, e isso ajuda porque se cria uma consciência crítica
nos mais novos.”
As declarações, que eram frequentes na rádio, levaram inconsequentes a dizer
que Boechat foi incentivador de ações violentas de grupos de black blocs, os
arruaceiros mascarados que aproveitavam a multidão para quebrar patrimônio
público e saquear lojas em meio às manifestações.
Boechat estava incomodado com a acusação e chamava os mascarados de
“black bostas”. Ele esclareceu a situação em uma entrevista dada a mim no
canal Barões do Rádio, no YouTube:
“Eles aproveitaram uma entrevista que eu tinha dado antes e recuperaram no
meio das manifestações, sugerindo que eu estava endossando aquilo, e não é
verdade. O black bloc é uma deformação priápica, acho que tem a ver com
juventude. É aquela testosterona da garotada que transforma qualquer coisa
que você não aceite no campo da sua avaliação pessoal num inimigo a ser
abatido, a ser destruído. O que eu nunca preguei. Eu estava fazendo uma
conclamação a uma reação mais hostil mesmo, física mesmo, mas contra o
Estado e seus agentes. E não contra a banca de jornal, não ao orelhão, não à
vitrine da loja de dona Juventina. Teve ato de black bloc que quebrava vitrine
para roubar lingerie. Que ação política é essa?”
Boechat não gostava da comparação porque sabia diferenciar o vandalismo da
crítica política.
(E.B.)
A VOLTA ÀS URNAS

Boechat admitia no ar que não votava desde a eleição de 1989, quando


Fernando Collor de Mello se tornou o primeiro presidente do Brasil eleito por
meio do voto direto desde a ditadura militar (1964-85). Dizia que tinha se
desiludido com a política e que não encontrava motivos para acreditar em
partidos e, principalmente, nos políticos.
Apesar de sempre ser acusado de privilegiar em seus comentários um lado ou
outro, Boechat se mostrava, diariamente, indignado, apesar de ter reconhecido
que, num passado bem distante, frequentou reuniões do Partido Comunista e
ainda que, por alguns meses, foi secretário de Comunicação do então
governador do Rio de Janeiro, Moreira Franco, período do qual se arrependeu
profundamente.
Para minha surpresa e da Carla Bigatto ‒ e imagino que de muitos ouvintes
‒, no meio de 2018 Boechat falou ao microfone que iria regularizar o título de
eleitor. Estava, en m, disposto a voltar a eleger alguém nas eleições de outubro
de 2018:
“Você está falando sério?”, perguntei no ar.
“Estou sim, acho que essa politização que estamos vendo agora me deu
vontade de voltar a tentar escolher alguém para melhorar o país.”
Apesar da minha perplexidade, achei sensacional! A falta de esperança em
algum político, por motivos óbvios, dava lugar a um Boechat que acreditava
que não mais havia espaço para erros nas urnas.
“É hora de escolher um bom parlamento, com pessoas que pensem e ajam de
forma diferente.”
“Caramba”, pensei.
“Mas em quem você vai votar, Boechat?”
“Não sei, vou ver. Só vou votar para as Câmaras Legislativas. Não quero
escolher nem governador, nem presidente. Ninguém me representa. E você,
Baronete?”
“Também vou anular para governador e presidente, Boechat. Mas tenho
meus candidatos a deputado e senador.”
Depois, expliquei por que votaria neles. E assim se passaram os dias até a data
do primeiro turno. No dia 7 de outubro, recebo uma mensagem da Veruska:
“Barão, Boechat quer saber os números dos caras em quem você vai votar.
Manda no WhatsApp”.
O cara ca quinhentos anos sem votar e agora vai escolher os mesmos que eu.
Que louco! Mandei os números e toquei a vida. Alguns minutos depois,
Veruska me chama de novo: “Barão, acho que um dos números que você
mandou estava errado. Boechat teve de descobrir na urna”.
Pior é que estava mesmo. Faltava um número, e esse candidato, mesmo com
o nosso apoio, acabou não sendo eleito.
(E.B.)
PAIXÃO PELO FUTEBOL E PELO FLAMENGO

Flamenguista desde os tempos de criança, Ricardo Boechat tomou uma


decisão, depois de adulto, nos microfones da BandNews FM, e adotou outros
clubes para chamar de seus em São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais.
Nascia ali, no dia a dia da rádio, o amor pela Portuguesa, o Brasil de Pelotas e
o América Mineiro, de quem se tornou sócio em uma das transmissões da
BandNews FM no Mercado Central, em Belo Horizonte, em setembro de
2015. O espaço chegou a abrigar o primeiro estádio do Coelho.
No evento, Boechat ganhou um cartão VIP de sócio-torcedor, três camisas da
equipe e outros suvenires. Saiu todo alegre por se aproximar de uma das novas
paixões no futebol. Os dois anos seguintes, com os títulos do Campeonato
Mineiro e da Série B do Brasileirão, foram especiais, mas nem tudo eram ores.
Em 2018 o América voltou para a Série B.
A situação da Portuguesa – que também chegou a presentear Boechat com
uma camisa e um par de chinelos – era a mais difícil. Mas Boechat não desistia
e, a cada vitória – rara à época –, comemorava e sonhava com uma reviravolta
do clube. Morreu sem ver um novo título da Lusa desde 2013, quando
conquistou a Série A2 do Paulistão. O Brasil de Pelotas era um amor mais
contido, mas não menos apaixonado.
Dias após a tragédia que vitimou Boechat, o América Mineiro fez uma
homenagem antes da partida contra o Cruzeiro pelo Campeonato Mineiro. Os
jogadores entraram em campo com uma camisa – a de número 10 – com o
nome do Boechat e uma mensagem no Twitter: “Valeu, Boechat! Você sempre
estará em nossa memória!”.
A partida terminou empatada: 0 X 0. Boechat, se estivesse aqui, iria querer
mais.
“PERDEU, PLAYBOY” – O MEME

Boechat era o inusitado, o improvável, um quebrador de regras e de protocolos.


O fez por diversas vezes no rádio, nas redes sociais e na TV, quando, por
exemplo, ngiu estar ligando para a mãe, dona Mercedes, ao vivo, no Jornal da
Band, para ironizar políticos acusados de receber propina: “Alô, mãe. Foi você
que recebeu o dinheiro das empreiteiras? Não? Os deputados da Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) também estão dizendo que não [...]. Mas não
tem nenhum dinheirinho para nós, então?”.
Ou quando se divertiu com um carimbo de “foda-se” que ganhou de um
ouvinte e publicou um vídeo no Facebook: “Esse presente não tem uma única
utilização, mas mil e uma utilidades. Você pode usar em várias situações.
Querem ver qual é o presente?”. Boechat carimbou uma folha em branco e
chorou de rir.
Teve ainda o dia que usou uma peruca na TV após uma reportagem sobre
calvície e encerrou o Jornal da Band, com a companheira Lana Canepa quase
não se aguentando de rir: “E o Jornal da Band termina aqui!”.
Ah, não se pode esquecer o dia em que foi se vacinar contra a gripe e, ao tirar
a camisa, apareceu de sutiã. “Estou dando esse recado só para os velhos, como
eu. Vacine-se contra a gripe e faça como vou fazer agora”. Olhando para a
enfermeira, ele mandou um “Vai, meu bem!”.
Uma das mais memoráveis, no entanto, se deu em um debate entre os
candidatos à presidência em 2018. Ciro Gomes do Partido Democrático
Trabalhista (PDT) se queixou de não ter usado todo o tempo previsto para
responder a uma pergunta do folclórico cabo Daciolo, do Patriota.
Boechat foi direto: “Perdeu, perdeu, playboy”.
Sem querer, virou meme nas redes sociais.
É MUITA LOUCURA SEM DROGAS

“Esses caras só podem estar tomando ácido ou fumando um baseado.”


A constatação era feita por Boechat toda vez que alguma decisão inexplicável
saía do Congresso, do Palácio do Planalto e até do Supremo Tribunal Federal.
Foi o que fez em abril de 2015, quando todos os jornais anunciavam que
Dilma Rousse – ainda sem saber que levaria uma rasteira – havia escolhido
seu vice, Michel Temer, para fazer a articulação política.
“Eu pergunto a você que está aí envolvido com suas contas. Você que está
envolvido com a qualidade da escola de seus lhos. Com a ausência de médicos
no hospital. Com a falta de remédio nas farmácias populares [...]. Você que está
sem emprego. Você que está endividado. Eu queria te perguntar: quem está
preocupado com a articulação política do governo no Brasil real? E nos
envolvem nessa loucura. Eu tô descon ado que eles não estão fumando um
baseado. Estão tomando LSD. Tá todo mundo doidão na capital federal.”
Boechat falava com conhecimento de causa. No ar, ao vivo, numa ocasião,
contou uma experiência própria:
“Uma vez eu tomei LSD na praia de Itaipuaçu (RJ). Fui jogar frescobol, eu e
outro maluco que tinha feito a mesma coisa. Era um dia de semana, tava de
férias, sei lá o que eu tava fazendo. A gente foi jogar frescobol, a maré foi
enchendo e a perna da gente foi enterrando na areia. Acho que foi a única
partida de frescobol jogada com areia na cintura.”
O resto da história, onde dormiu e acordou, ninguém sabe!
CHEFIA, PREPARA O BOLSO!

Virava e mexia, Boechat tinha algum compromisso fora de São Paulo. Eram
eventos, festas da rádio, palestras ou audiências na Justiça. Ele se tornou o
jornalista mais premiado pelo Comunique-se, o chamado Oscar do jornalismo.
Recebeu 18 troféus e foi coroado mestre em três categorias: Âncora de Rádio,
Colunista de Notícia e Âncora de TV.
Nas cerimônias, Boechat tinha o costume de conversar – e muito –, debater
assuntos do cotidiano, dar entrevistas e tirar fotos com amigos, admiradores,
colegas de trabalho e fãs. Ele não perdia uma história nem a oportunidade de
contar alguma a quem interessasse. E, como se sabe, valorizava muito esse
contato pessoal.
Em uma das premiações, Boechat sabia que precisava sair cedo porque, no
outro dia, deveria estar em Curitiba, de onde apresentaria o noticiário da rádio
às 7:30 horas. Ele tinha um voo agendado naquela noite e a diretora de
jornalismo da rádio Sheila Magalhães, que estava no evento, percebeu que não
daria mais tempo. E mais: não haveria outro voo depois daquele. Enquanto
isso, Boechat seguia falando com todo mundo – e como falava... E não faltou
alerta: “Ah, deixa comigo!”.
Além do noticiário, ele tinha uma audiência na Justiça – das várias às quais
compareceu – no único caso que perdeu, para o senador Roberto Requião
(MDB), ao chamá-lo de corrupto e de outras coisas mais para defender um
repórter da Band à época que acusou o ex-governador de dar um soco nele e de
arrancar o seu gravador.
Depois da festa, ninguém sabia para onde tinha ido o senhor Ricardo
Eugênio Boechat. Pela manhã, Sheila ligou para o então chefe de redação,
Bruno Venditti, e perguntou se ele tinha alguma notícia de Boechat. A resposta
foi não.
Quando o relógio marcou 7:30 horas, o microfone se abriu e ele mandou ver:
“Bom dia, bom dia, eu sou Ricardo Boechat, esta é a BandNews FM e nós
vamos car juntos até às nove e tanto da matina [...]. E che a, prepara o bolso,
porque eu vim de táxi para Curitiba.”
Mais uma vez, o inesperado. E ele mesmo contou que foi dormindo de São
Paulo até lá. E, na volta, ainda levou a conta. Perto das 17:00 horas, depois de
passar parte do dia em Curitiba, o próprio Boechat foi até Jaqueline Moss,
nossa secretária de redação, e apresentou a notinha: o táxi custou 927 reais, sem
incluir a passagem perdida.
Sheila, claro, cou muito brava. O gasto acabou com a caixinha do mês.
“E aí, Boechat?”
“Fui de táxi, minha preta.”
“Você está de sacanagem, velho?”
“Porra, Boechat, o quê? Não era para estar às sete e meia da manhã em
Curitiba? Eu estava...”
A Band pagou tudo.
LIXO SOBRE RODAS

Dizem as más-línguas que os Twingos do Boechat – ele teve dois – eram


verdadeiros lixões. Na verdade, eram mesmo. Não seria estranho encontrar no
porta-malas gnomos, duendes e outros bichos estranhos. Papel era o que não
faltava.
Foi por isso que Luiz Megale, apresentador do Café com Jornal e ex-âncora da
BandNews FM, e o repórter Arthur Covre, decidiram fazer uma sacanagem
com Boechat, depois de perceber que a porta do carro cava aberta no
estacionamento do pátio da Band. A ideia era ótima: juntar o máximo de
jornais velhos e en á-los todos no Twingo n° 1 do Boechat. Feito o plano,
executaram.
Em uma sexta-feira, os dois saíram pegando jornais velhos de todas as
redações na Band. Nas TVs, nas rádios, na diretoria, no próprio lixo e
espremeram – atolaram – tudo dentro do Twinguinho. Encheram de verdade.
Passa um dia, o m de semana, mais um dia, outro e nada de Boechat
reclamar da sujeira. Os dois estranharam e acharam que, provavelmente, ele
estaria preparando um contra-ataque.
Depois de quase uma semana, Megale não aguentou e perguntou a Boechat:
“Enchi teu carro de jornal e você nem percebeu que estava cheio de lixo.”
E ele:
“Puta, é verdade. Eu vi que o Twingo estava um pouco mais bagunçado.”
Pelo visto, nem os gnomos reclamaram.
FOTO ESPECIAL

Boechat tinha um lema: tratar os ouvintes com o mesmo carinho com que eles
tratavam a rádio. Ele não fazia distinção e dava atenção para todo mundo.
Todo mundo, mesmo!
Em maio de 2017, a BandNews FM completou 12 anos e fez uma festança
no parque Villa-Lobos, na zona Oeste de São Paulo. Estávamos todos lá.
Sempre que Boechat chegava era aquele furdunço. Todo mundo queria
conversar e tirar foto com ele. Como diz a nossa diretora Sheila Magalhães, um
fenômeno: “Boechat nunca quis que colocasse segurança nos eventos”. Antes,
até tinha algum tipo de barreira, mas ele mandou tirar. Era uma coisa que não
queria.
No dia do evento, entre os ouvintes, um deles se destacou. Sheila estava ao
lado do Boechat quando um senhorzinho, bem idoso, se aproximou dele e
falou:
“Ah, Boechat, meu sonho é tirar uma foto com você. Mas eu não tenho
máquina fotográ ca, eu não tenho celular, eu não tenho essas coisas de e-mail.”
“Não seja por isso”, disse ele. “Sheila Magalhães, está com o seu celular aí?”
“Sim, estou.”
“Então tira uma foto minha com ele aqui.”
Sheila obedeceu. E Boechat chamou o ouvinte:
“Escreve aqui no papel o endereço da sua casa porque a gente vai mandar a
foto pelos Correios para você.”
Mais uma vez Sheila concordou e ouviu:
“Olha, Magalhães, estou entregando na sua mão. Não vai perder isso. Vamos
mandar a foto para a casa dele.”
Dito e feito. Quando chegou a segunda-feira, Sheila mandou revelar a foto –
uma coisa cada vez mais incomum – e enviou, assim como foi pedido, pelos
Correios.
Esse era o tipo de preocupação do Boechat. A foto, provavelmente, está
guardada em um bom lugar.
NETO, ME SALVA!

Você sabia que o craque Neto, apresentador da Band e ídolo do Corinthians, já


salvou Ricardo Boechat?
A história remete ao ano de 2010, durante a Copa do Mundo na África do
Sul. A equipe da Band, inicialmente, estava hospedada em Johannesburgo, a
maior cidade do país, e lá os carros circulam na chamada “mão-inglesa” ou, se
preferir, na nossa contramão. O volante é do lado oposto e, em vez de olhar
para o lado esquerdo para atravessar a rua, se olha para o lado direito.
Em determinado dia, Boechat estava saindo do hotel para ir almoçar e olhou
para o lado errado, claro. Quando pôs o primeiro pé na rua, Neto agiu e puxou
Boechat pela camisa. Uma van passou por eles em alta velocidade, o que, para
Boechat, não era uma novidade: “Todas as vans do mundo andam a mil
quilômetros por hora”.
Mas depois admitiu: “Ela ia me triturar”.
O APÊ DO BOECHAT

Por ser uma rádio nacional, a BandNews FM sempre teve pro ssionais de
qualidade espalhados pelo país. Como a cabeça de rede, como chamamos a
sede, ca em São Paulo, jornalistas que se destacam nas redações de outras
cidades recebem convites para integrar a nossa equipe na capital paulista.
O primeiro que fez esse movimento foi Guilherme Calil, que atualmente está
na GloboNews e por anos cumpriu as mais variadas funções no Rio de Janeiro,
inclusive a de ser produtor do programa do Boechat por lá.
Logo que veio para São Paulo, em novembro de 2007, Calil se adaptou
rapidamente. Por sua competência e carisma, ele passou de produtor da rádio
ao cargo de âncora, apresentando os jornais da BandNews FM.
Em junho de 2009, ele chamou toda a galera da redação para ir ao seu
casamento com Marcelle Ribeiro, que também é jornalista, no Rio de Janeiro.
À época, eu era chefe de redação e Luiz Megale apresentava o jornal com
Boechat pela manhã. Quando falamos que íamos ao Rio para o casamento do
Calil, Boechat ofereceu o apartamento dele no Leblon, o que aceitamos com
alegria – muita alegria. A outra parte da redação se arrumou em albergues e
hotéis da cidade.
Pegamos um avião numa sexta, o casamento era no sábado e a volta no
domingo. Megale foi com a esposa, Aninha, e eu fui com a minha Michelle e o
meu lho mais velho, Rafa, que tinha menos de um ano de idade.
Nos instalamos no apê do Boechat e partimos em busca de um boteco. Para a
nossa alegria, exatamente ao lado do prédio descobrimos as delícias do bar
Belmonte, onde bebericamos até altas horas.
Na volta, já no apartamento de novo, Megale descobriu a senha de acesso aos
canais eróticos na TV por assinatura do quarto do Careca.
“Não é difícil. Botei ‘1234’ e já apareceu tudo.”
No sábado, dia do casório, zemos o tradicional passeio de turistas no Rio.
Fomos ao Corcovado, ao Cristo Redentor e, na teoria, já era hora de voltar
para almoçar no boteco ao lado do apartamento e então nos arrumarmos para a
cerimônia.
Megale e eu nos sentamos para almoçar ‒ e beber ‒ lá pela uma da tarde e só
saímos de lá por volta das oito da noite. A cerimônia de casamento estava
marcada para as 17:00 horas, na Igreja São José, no centro da cidade. Ou seja,
fomos ao Rio exatamente por causa do casamento do nosso amigo e não
aparecemos, nem para dar um alô para nossas esposas.
Nós nos arrumamos rapidamente para pelo menos ir à festa do casamento em
um espaço no Alto da Boa Vista, na zona Norte. O problema – mais um ‒ é
que vários taxistas se recusaram a fazer o trajeto, dizendo que o lugar era escuro
e ermo, o que não é agradável de ouvir, ainda mais com um bebê a tiracolo.
Quando nalmente um corajoso taxista aceitou a corrida, lá fomos nós com
certo receio ao espaço reservado para a festa. Já estávamos alcoolizados. No
trajeto conversamos animadamente sem falar quem éramos, tampouco que
trabalhávamos na BandNews FM, que nessa época tinha apenas quatro anos no
ar.
Na hora de desembarcar no local da festa, pagamos a conta e o taxista falou:
“Vou falar pro Boechat que você e o Megale estavam bêbados aqui no Rio”. E
deu risada.
O taxista havia nos reconhecido apenas pelas nossas vozes. Na hora, mesmo
alcoolizados, sacamos o quanto a rádio e Boechat já eram populares na Cidade
Maravilhosa.
(E.B.)
PETROBRAS: COMO SE FALA MESMO?

Paloma Tocci, que começou a carreira e se destacou no jornalismo esportivo,


apresentou o Jornal da Band entre maio de 2015 e fevereiro de 2019 ao lado do
Boechat. Nova na bancada, no início tinha seus medos e a vontade de fazer
tudo aquilo dar certo. Não queria errar de jeito nenhum, até porque estava ao
lado de um jornalista muito respeitado.
Nos primeiros dias, leu a chamada para uma reportagem sem nenhum tipo
de receio. Era sobre a Petrobras. Sem se preocupar, leu – como muitos fazem –
Pétrobras, com o acento agudo no e. Boechat olhou para ela e disse:
“Por que Pétrobras?”
Paloma gelou e titubeou ao responder:
“Porque vem do petróleo.”
“Então, Paloma, se vem do petróleo é Petrobras e não Pétrobras.”
Recém-chegada, a apresentadora cou mal e ao longo de vários dias se
questionou se havia feito algo tão errado. Ouvindo a BandNews FM, percebeu
que muita gente falava como ela e, por isso, se perguntou: “Poxa, por que ele
implicou comigo?”.
Chegou a perder o sono pela Pétrobras e, sempre que aparecia algo no Jornal
da Band, passou a ler Petrobras. Pensava: “Agora está certo”.
Um dia, enquanto os dois conversavam na bancada durante o intervalo, ela
falou para Boechat:
“Você já chamou a minha atenção.”
“Eu te chamei a atenção? Você nunca fez nada, imagina.”
“Não, eu nunca vou esquecer. No meu começo no jornal, você me chamou a
atenção por ter falado Pétrobras e não Petrobras.”
A reação foi inesperada. Boechat caiu na gargalhada, e só disse:
“Bem-feito!”
LAVA JATO: A ESPERANÇA

Com tantas mazelas no cenário político, a Lava Jato, na cabeça do Boechat, era
o início de algo que poderia, de vez, mudar a história do Brasil. Não raro, ele
lembrava no ar de outras operações, como a Satiagraha e a Castelo de Areia
(embriões da Lava Jato), que não deram em nada por obra da lentidão da
Justiça e das artimanhas utilizadas por advogados para atrasar ou anular as
investigações. Foi o que aconteceu.
Eu, assim como Ronaldo Herdy, escrevia a coluna da IstoÉ com ele e quase
toda semana tinha alguma nota exclusiva da operação conduzida pelo
Ministério Público Federal do Paraná. O trabalho era difícil, garanto. E, claro,
ele gostava. Mas tinha um lado que incomodava Boechat: a exposição midiática
de fatos que poderiam apenas ter sido revelados sem coletivas ou PowerPoint.
Em 2014, quando foi de agrada a primeira fase da operação, eu já era o
editor do horário dele na BandNews FM, trabalhando ao lado do Barão, da
Tatiana Vasconcellos e do chefe de redação Bruno Venditti e, por gostar demais
do assunto, me aprofundava cada dia mais. O objetivo era trazer o máximo
possível de informações ou algum material exclusivo. Boechat gostava dos
números. “Quantos presos? Qual o valor devolvido? Quantos são
investigados?” E ainda outros dados que dariam munição às aberturas feitas por
ele no jornal da BandNews FM.
Em maio de 2018, a rádio concordou em me enviar para Curitiba. O
objetivo era eu me encontrar com os principais personagens da Lava Jato, como
o próprio juiz Sérgio Moro, o procurador da República, Deltan Dallagnol, e
advogados dos investigados e delatores. A viagem foi perfeita.
Na época, o agora ministro Sérgio Moro andava muito ocupado, mas aceitou
me receber por alguns minutos. Conversamos sobre diversos assuntos e, ao
falarmos do Boechat, que era um fã da Lava Jato, ele lembrou: “Eu gosto muito
do Boechat, é um ótimo jornalista, um defensor da Lava Jato, mas outro dia fez
várias críticas sobre uma entrevista que eu dei. Eu não me esqueço”.
Lembrei que, para Ricardo Boechat, independentemente de quem fosse, juiz
não deveria dar palestras ou entrevistas. Tanto é que ele nunca o entrevistou,
apesar da admiração que tinha pelo trabalho desenvolvido por Sérgio Moro.
Logo após a escolha do então juiz para a equipe de Jair Bolsonaro, Boechat
disse esperar que a Lava Jato avançasse mais ainda no combate à corrupção e,
veja só, elogiou a entrevista coletiva dada por Moro aos jornalistas. O ministro
falou por mais de duas horas.
Mas, agora, ele podia, na visão do Boechat.
(P.F.)
A PASTA MARROM

Todo santo dia, Boechat entrava carregado de jornais e de outros badulaques


no estúdio da BandNews FM. Depois, seguia um protocolo quase litúrgico:
café, cigarro e leitura dos jornais da manhã, sentado no lugar que hoje se
tornou praticamente um santuário. Além dos jornais, durante anos Boechat
levava para todo lado uma pasta de couro marrom onde carregava:

uma agenda com folhas rasgadas, que tinha telefones antigos ‒ e põe
antigos nisso;
óculos e mais óculos de cores e modelos diferentes que comprava de
penca, sem receita, em alguma farmácia ou banca de jornal;
dose diária de medicamentos, que ia desde remédios de pressão, do
estômago, da depressão ‒ que normalmente ele se esquecia de tomar, o
que os ouvintes rapidamente identi cavam por causa de seus rompantes
matutinos;
papéis dos mais diversos, que ele mesmo não lembrava por que
estavam todos socados naquela pastinha;
um relógio quebrado que era da avó dele, marcando a mesma hora, o
que deixava os ouvintes intrigados e, num afã de ajudar, mandavam
mensagens para ele arrumar o horário.

Em meio a esse cenário caótico diário, Boechat costumava carregar também


para o estúdio um iogurte integral que misturava com uns pedacinhos de
granola, que levava envoltos num guardanapo.
Um dia, no meio do caos formado pela zona de papéis, contas, jornais e
óculos, ao gesticular durante um comentário, Boechat esbarrou no iogurte que
caiu em cima dele, da cadeira e dos aparelhos de transmissão da rádio.
A cara dele era exatamente a de uma criança que derruba a papinha do
almoço, para seu próprio desespero e do pessoal da limpeza que teve de
socorrê-lo. Mas fez a alegria da galera da redação, que adorava ver o circo pegar
fogo.
Um detalhe que o entristeceu, mais do que a lembrança do iogurte, foi que
antes de morrer Boechat perdeu o relógio da avó, que mesmo marcando a
mesma hora, ele usava com orgulho. Toda detonada, a pasta marrom foi dada
ao amigo e diretor de jornalismo da Band, Fernando Mitre, que a guarda com
grande carinho.
O SUBMUNDO DOS ÓCULOS PERDIDOS

Usar óculos para Boechat era uma aventura diária e, primeiro, era preciso
encontrar um par deles. Ele não tinha apenas um par de óculos. Tinha uma
coleção que se perdia ao longo do tempo e era a justi cativa para aqueles
comprados na farmácia ou na banca de jornal.
A BandNews FM tinha duas gavetas grandes reservadas para o material do
Boechat, e quem cuidava de toda aquela bagunça era a produtora Letícia
Kuratomi. Entre os itens, os óculos eram os mais procurados.
Havia óculos de todas as cores possíveis, do preto ao rosa, ou até mesmo
óculos sem as hastes que os prendiam às orelhas. Ele não estava nem aí.
Boechat não enxergava de perto e isso o impedia, por exemplo, de ler os jornais
ou alguma reportagem na internet.
Em dezembro de 2018, ele viajou para Vitória (ES) e passou dois dias sem
ver porcaria nenhuma porque perdeu o único par que tinha levado. Por lá, os
óculos de grau prontos não são vendidos em óticas, farmácias e bancas de
jornal, como em São Paulo.
Ele tinha certeza que aquele modelo roxo, de aros grossos – mais um de
vários –, tinha ido para o mesmo limbo dos demais: o submundo dos óculos
perdidos.
À época, como ele mesmo disse, encontrou o “desgraçado” em um lugar
inimaginável. Estava dentro, não se sabe como, de um sapato que ele ainda não
havia usado.
Arriscaria dizer, por cima, que ao longo dos quase 14 anos na BandNews FM,
Boechat perdeu uns cem “desgraçados”.
UMA NOVA AGENDA

Até 2015, Boechat, por mais incrível que pareça, não tinha uma simples
agenda. Ele fazia eventos em várias partes do país, às vezes um dia em cada
estado, mas não tinha nada organizado em um único lugar. Tudo que ele
precisava estava dentro da velha pasta marrom, que dizia gostar por ter sido um
presente da Veruska.
Eram papéis de todo o tipo: folhas inteiras, cortadas ao meio ou em pedaços
menores ainda. Os compromissos estavam ali, naquela bagunça mesmo.
Inclusive, ele guardava as laudas do Jornal da Band para usar de rascunho e as
acomodava em pilhas na própria mesa.
Quem o salvou foi Nana Matos, que, assim como Letícia Kuratomi na
BandNews FM, era estagiária dele na TV e decidiu colocar um ponto- nal
naquela desorganização. Ela passou a fazer uma lista dos compromissos que ele
tinha, imprimir e sempre entregar uma nova, atualizada, para Boechat. Ele
amava, claro! Alguém o tirou da bagunça de papéis jogados.
Em 2018, Nana saiu de férias e entregou a última versão para ele. Na volta,
Boechat estava desesperado, com a folha amassada, cheia de rabiscos, mas tudo
continuava lá. Pelo menos, ele nalmente havia criado o hábito de consultar a
agenda antes de marcar um novo compromisso.
MOEDINHAS: QUEM ME AJUDA?

Assim como na BandNews FM, antes de ir ao estúdio apresentar o Jornal da


Band, Boechat tinha o costume de tomar alguma coisa e de fumar um
cigarrinho. Eram três por dia. De manhã, a companhia era o café. À tarde, o
chazinho de limão. O mundo poderia cair, mas lá estava ele na escada da
redação, esperando a hora de se sentar na bancada. Ele dizia que o ritual o
acalmava, e que ritual!
Tudo começava na própria redação e o objetivo era arrecadar 1,25 real para
poder comprar o chá na máquina de bebidas. Com algumas moedas na mão,
saía fazendo barulho e perguntando um a um “Tem uma moedinha aí?”, até
conseguir levantar o valor mágico de 1,25 real. Se não tinha cigarro, ia à mesa
de todos os fumantes perguntar quem podia colaborar com um Marlboro.
Depois de conseguir o dinheiro e o cigarro, se dirigia à “não muito amiga”
máquina de bebidas, que frequentemente xingava por dar algum problema. Às
vezes não saía o chá, vinha só o copo com água ou o chá caía primeiro que o
copo. Era uma relação con ituosa, mas o chazinho fazia parte do ritual.
Esse era o horário escolhido para passar a agenda a limpo com Nana Matos,
que cava espantando a fumaça com as mãos enquanto ele dizia para parar de
abanar, em tom de piada. Ela retrucava que iria processá-lo por inalar tanta
nicotina.
O combinado era Boechat estar às 19:16 horas no estúdio, uma vez que o
Jornal da Band começava – e ainda começa – às 19:20 horas. Ele ainda
precisava colocar o microfone e, por esse motivo, Vladimir Pinheiro,
coordenador do jornal, vivia correndo atrás dele. Boechat reclamava e dizia que
ainda dava tempo.
Com o paletó em um braço e desenrolando a manga da camisa, saía
conversando com todo mundo, fazia piada e pedia para alguém fechar o seu e-
mail, tarefa atribuída normalmente à Nana. Isso quando não voltava por ter
esquecido alguma coisa.
Era um ritual. Para ele e para todos da equipe.
MOTOTÁXI: O RISCO CALCULADO

O perigo rondava a vida do Boechat e, de fato, medo era uma coisa que ele não
tinha. Cheio de compromissos dentro e fora de São Paulo, quase que
rotineiramente precisava ir e voltar do Aeroporto de Congonhas, na zona Sul.
Com o trânsito caótico, ele chamava um motoboy que o levava na garupa para
que não perdesse o voo.
Uma das regras do Boechat era estar na Band às 16:00 horas, a tempo de
participar do fechamento e apresentar o Jornal da Band. Às vezes, ele passava
em casa ou em outro lugar e atrasava um pouco, mas não muito.
Certa vez, ele foi almoçar com um amigo em um restaurante, algo incomum,
mas, como o papo estava bom, se atrasou e se viu preso às 17:30 horas no
congestionamento da cidade. Ao perceber que não chegaria a tempo, ligou para
sua produtora na TV, Nana Matos, e decretou: “Nana, estou preso no trânsito.
Pede para um motoboy vir me buscar rapidinho, por favor. Enquanto ele não
chegar, eu vou andando pela avenida. Pede para ele me encontrar”.
E desligou o telefone. Sabia-se apenas que ele havia deixado o carro em algum
lugar e que seria encontrado na marginal do rio Pinheiros, via movimentada de
São Paulo, perto da ponte Cidade Jardim.
A equipe se mobilizou: um pegou o capacete no camarim; outro acionou o
motoboy; um terceiro pediu para a gurinista separar a roupa dele e car na
porta do estúdio; e o último avisou o maquiador para fazer tudo rapidinho. Foi
a maior loucura! Até mesmo o chefe de reportagem, Sérgio Gabriel, trocou de
roupa e cou de stand-by, caso precisasse substituir o Careca na bancada do
jornal naquele dia.
Depois de tanta correria, Boechat chegou gargalhando e disse: “Fazia tempo
que eu não aprontava uma dessas, né?”.
Pontualmente às 19:20 horas, lá estava ele sentado na bancada e apresentando
o Jornal da Band, como se nada tivesse acontecido.
ALGUÉM VIU A MINHA ALIANÇA?

Sabe aquele dito popular “Só não perde a cabeça porque está grudada”? Pois
bem, cairia como uma luva na história de vida do Boechat. Ele já perdeu de
tudo, até mesmo a lha em uma praia (assunto para outro capítulo).
Doce Veruska, como ele mesmo chamava a sua amada, sempre o
acompanhava na BandNews FM pela manhã e no Jornal da Band à noite.
Claro, estava atenta a tudo e pronta para colocá-lo contra a parede. O apelido,
por sinal, foi criado no ar e, fora dele, Boechat só a chamava de Doce quando
ela estava brava. Sabia o risco que corria.
Em um dos tantos dias que apresentou o jornal na TV, Boechat se viu sem
saída. Havia perdido a aliança de casamento e não queria entrar no ar sem ela.
Veruska ia car “p” da vida. Mas o que fazer?
A solução encontrada pelo próprio Boechat foi arrumar uma aliança
emprestada. Quem o salvou foi um produtor do Jornal da Band, Renan
Salmin, que tinha duas vezes o tamanho dele. A aliança cou larga, mas,
mesmo assim, ele decidiu usar. Do outro lado, o produtor tremia de medo.
Medo de que Boechat, como de costume, perdesse a aliança que havia sido
emprestada. Ele também não podia chegar em casa sem ela.
Boechat apresentou o jornal e, para alívio do produtor, devolveu a aliança que
bambeava em seu dedo.
Ninguém sabe, até hoje, se Boechat achou ou comprou outra aliança. Nem a
própria Veruska.
MINHA MÃE, MINHA OUVINTE

Dona Mercedes, além de mãe, era a principal fã de Boechat. Briguenta, como


ela mesma admite, sempre estava colada no rádio ou na TV, atenta a tudo o
que ele falava pela manhã na BandNews FM e à noite no Jornal da Band:
“Adoro uma briga, adoro!”.
Todos os comentários que ele fazia eram analisados pela mãe. De Niterói,
onde vive, dona Mercedes criticava e respondia na mesma hora ao lho, na
frente do rádio ou da TV, toda vez que ele falava, segundo ela, uma besteira.
Mas depois, era raro que zesse as cobranças na presença dele: “Eu nem
lembro depois. Com a idade que eu tenho (87 anos), eu já esqueço. Essa é a
grande vantagem de ser velha. A gente esquece muita coisa”.
Tinha uma teoria sobre a pro ssão do lho, que começou lá atrás com
Ibrahim Sued, no Diário de Notícias: “Quem tem lho jornalista é uma
desgraça. Só quer saber de notícia”.
BATE-BOCA ENTRE AMIGOS

Diretor de jornalismo da Band, Fernando Mitre era um dos grandes amigos do


Boechat. Estavam sempre juntos, discutindo pautas, reportagens e assuntos do
dia a dia. Isso quando não estavam apostando ‒ eles adoravam!
Ambos vinham de uma geração em que as redações, muitas vezes,
funcionavam no grito. Eu mesmo vivi isso. E não é nenhum demérito. São
apenas formas diferentes de lidar com um mesmo assunto. O velho e o novo.
Um dia, por volta de 17:30 horas (o Jornal da Band começa às 19:20 horas),
Boechat e Mitre se desentenderam no meio da redação.
Foi uma discussão feia sobre política. O diretor de jornalismo queria fazer a
matéria de um jeito e o apresentador, de outro. A discussão virou briga, com
um gritando para o outro no meio da redação.
Mitre se excedeu e admite isso: “Eu raramene gritava e, dessa vez, exagerei”.
O negócio foi tão longe que Boechat decidiu sair da redação: “Vou embora!”.
E Mitre: “Vai mesmo!”.
Mitre voltou para a sala dele, pensou muito e decidiu voltar atrás. O objetivo
era consertar o estrago. Ele retornou para o mesmo lugar na redação e
telefonou para Boechat: “Boechat, eu estou aqui, no mesmo lugar, a redação
toda está me ouvindo e eu estou te ligando para pedir desculpa”.
Ferido na alma, Boechat de pura sacanagem, respondeu: “Exijo viva-voz”.
Mitre pediu desculpas para todo mundo ouvir e falou um monte de coisas.
De volta à Band, Boechat aproveitou a oportunidade para fazer um discurso no
meio da redação, exaltando que era assim mesmo, divergindo, que se faz bom
jornalismo. Um tempo que não volta mais.
(E.B.)
DIA DE ALQUIMIA: A EXPLOSÃO

Poucas pessoas chamam Boechat de Ricardo. Uma delas é dona Mercedes,


personagem fundamental na vida e na carreira do lho. Ela guarda histórias
maravilhosas, como a do dia em que Boechat explodiu o banheiro de casa.
Entre tantas estripulias quando criança e adolescente, Boechat vivia correndo
da mãe porque sabia que dona Mercedes não pensaria duas vezes se precisasse
dar nele a velha palmada. E ela até tem uma teoria sobre isso: “A natureza é tão
perfeita que a mão se encaixa direitinho no bumbum”. Mesmo se estivesse
machucado, se merecesse, não escaparia das mãos dela.
Em um desses dias, Boechat tentou fugir da mãe, que corria atrás dele com
um chinelo, e se escondeu no banheiro de casa. Achava que, se casse ali, sairia
ileso. “Ricardo, abre. Abre porque você tem que apanhar. Ricardo, abre.” Nada
de Boechat abrir. Dona Mercedes logo falou: “A hora que sair vai apanhar”.
Podia sair 24 horas depois que a palmada ainda estaria garantida.
De repente, uma explosão e um grito do Boechat. O coração de dona
Mercedes saiu pela boca e, mesmo insistindo, Boechat – que não parava de
chorar – não abria a porta. Ela mesma a arrombou e encontrou o lho com a
cara cheia de sangue. O espelho estava quebrado.
Mas o que tinha explodido no banheiro? Dona Mercedes tinha um
armarinho embutido e lá guardava remédios do dia a dia (que não punham as
crianças em risco) e outras coisas, como algodão, pasta de dentes e sabonete.
Um desses medicamentos era o sal de fruta do pai do Boechat, Dalton Boechat.
Como estava preso no banheiro, Boechat decidiu dar uma de alquimista e
misturar os remédios para passar o tempo. Não deu certo. O pote do sal de
fruta se transformou em uma bomba e causou toda aquela explosão.
Dona Mercedes, como não é de fazer escândalo, colocou Boechat debaixo do
chuveiro. O sangue saía de um corte no supercílio, logo estancado. A promessa
da palmada poderia, en m, ser cumprida. E foi.
O FUTURO DO PLANETA

Boechat tinha uma preocupação absurda com as transformações do nosso


planeta. Não só com o aquecimento global e a destruição das orestas, mas
também com pequenas áreas degradadas e malcuidadas pelo poder público.
Em 2017, a BandNews FM no Rio de Janeiro recebeu muitas denúncias de
sujeira no parque Lage, no Jardim Botânico, na zona Sul. Tombado pelo
Patrimônio Histórico, o espaço – de responsabilidade do Estado – ca aos pés
do Corcovado e ainda abriga, além de um palácio, a Escola de Artes Visuais.
São 52 hectares, abertos à população, com trilhas e até cavernas.
No ar, depois de dar um sermão daqueles aos turistas e moradores da Cidade
Maravilhosa, uma vez que a sujeira que se espalhava era formada por
embalagens, plásticos, latinhas e outros resíduos, Boechat decidiu fazer a parte
dele: “Não quero a participação de ninguém. Eu vou pagar”.
Assim foi. Boechat comprou e doou vinte novas lixeiras ‒ grandes mesmo –
para o parque Lage e as entregou à direção do espaço. Todas levavam a
logomarca da BandNews FM.
Em fevereiro de 2019, a reportagem da rádio passou pela área e constatou:
todas estavam lá. O lixo, en m, estava sendo jogado no lixo, pelo menos boa
parte dele.
ROCK POR ALEPPO

Boechat buscava não só ajudar pessoas no Brasil, mas, se tivesse a


oportunidade, faria o possível para dar a sua colaboração às tragédias mundiais.
Em meio à guerra civil na Síria, que matou mais de 500 mil pessoas e deixou
5 milhões de refugiados, um evento que seria realizado por aqui em 2017
pretendia arrecadar recursos para as crianças atingidas pela crise humanitária.
Com apoio da ONG Save the Children, o Rock por Aleppo reunia bandas
como Detonautas e Tihuana e estava com di culdade para vender ingressos.
Boechat decidiu divulgar o show no ar.
Não bastasse isso, comprou cem ingressos e distribuiu entre os ouvintes. O
objetivo do evento, realizado na Fundição Progresso, uma das principais casas
de show do Rio de Janeiro, era angariar 30 mil reais. Porém, ao nal, o valor
ultrapassou essa meta.
No Facebook, após a morte de Boechat, representantes da ONG zeram uma
homenagem: “Gratidão eterna ao nosso amado Ricardo Boechat, maior
apoiador do Projeto Rock por Aleppo. Descanse em paz”.
CARTILHAS E AUTODESCRIÇÃO

Muitas questões sensibilizavam Boechat, sobretudo aquelas que envolviam as


minorias que não tinham a oportunidade de viver como os demais.
No Rio de Janeiro, certa vez, pessoas com de ciência visual estavam com
di culdade para ter acesso a cartilhas informativas em braile, que eram
disponibilizadas por estabelecimentos comerciais. Boechat decidiu então apoiar
um projeto de autodescrição, que facilitaria a compreensão por todas elas.
Ele mesmo gravou as cartilhas, que zeram um sucesso enorme entre os
moradores da cidade. Pela iniciativa, muitos ouvintes da BandNews FM e o
próprio coordenador do projeto, Antônio Renato, ligaram para a rádio e
zeram questão de agradecer.
UM DIA DE SORTE

Conversa era o que não faltava quando se tratava do Boechat. Ele falava com
todo mundo, fosse na rua, no shopping, no restaurante e no rádio – e não
poderia ser diferente. A ponte área Rio-São Paulo era mais uma oportunidade
de conhecer gente, ouvir histórias e, se precisasse, dar aquela força.
Em uma dessas viagens, Boechat conheceu dois meninos, ambos cadeirantes,
que viajavam com a mãe. Eram alles Henrique Badan e Victor Augusto
Lima.
Boechat conheceu um pouco da história daquela família, cou sensibilizado e
pôs na cabeça que iria proporcionar um dia único para os três.
Assim que o avião pousou no Rio de Janeiro, ele ligou para a redação:
“Vamos lá, eu vou passar o número do cartão de crédito da Veruska e vocês vão
comprar todos os ingressos necessários para que eles conheçam e visitem a
cidade”.
Dito e feito: com o cartão da Veruska, a equipe da BandNews FM comprou
bilhetes para as principais atrações da cidade. A família visitou, entre outros
lugares, o AquaRio e o Pão de Açúcar. E Boechat ainda alugou um carro para
que pudessem circular pelo Rio de Janeiro.
LIGADO EM TOM E JERRY

Conseguir a atenção do Boechat para alguma notícia que estava indo ao ar na


BandNews FM nem sempre era uma das tarefas mais fáceis. Inúmeras vezes ele
estava lendo uma reportagem, atendendo um ouvinte, falando com alguém na
redação ou até mesmo assistindo a um desenho na TV. Sim, o preferido dele
era Tom e Jerry, que felizmente o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) parou
de transmitir. Ele gargalhava vendo o gato e o rato enquanto o programa, com
notícias de Brasília, Rio de Janeiro e outras praças, estava no ar.
Muitas vezes, os responsáveis pelo jornal colocavam uma manchete, uma
notícia especi camente para Boechat comentar, mas a atenção dele permanecia
no desenho. Era, na maioria dos casos, uma notícia escolhida a dedo para ser
concluída com um de seus comentários brilhantes. Mas, como numa péssima
jogada mal-ensaiada, a bola passava, e isso irritava todo mundo.
Nem me lembro de quantas artimanhas usei para ter a atenção do Boechat
em um assunto com o qual ele precisava interagir na rádio. Gritávamos,
xingávamos e até repetíamos os áudios de repórteres para ele acompanhar. Sem
contar as vezes que jogávamos na direção dele bolinhas de papel, tampas de
caneta e outras coisas que estavam ao nosso alcance: “Presta atenção, Boechat!
A próxima você tem que ouvir! Desliga isso e ouve o que vai entrar! Boechat,
ouve o que está no ar!”.
Essa rotina diária era a que mais dava trabalho para quem estava ali,
aguardando seus comentários ácidos. Muitas vezes ia ao ar uma bobagem dita
por um político ou uma barbaridade qualquer, dessas a que, infelizmente,
estamos acostumados, apenas para ele “acordar” e bater.
Mas às vezes a estratégia não surtia efeito, ele cava irritado e esbravejava:
“Por que estão dando espaço para esse cafajeste? Esse otário não fala no meu
horário!”. A ideia, com ótimas intenções, era sempre sgar a atenção dele, mas
Tom e Jerry era quase sempre imbatível.
(E.B.)
EU PAGO O BASEADO

Eu me arrependo de não ter tirado uma foto da carta, mas felizmente essa
história cou famosa na Band porque muita gente ouviu na rádio e viu na TV.
Boechat ajudava nanceiramente pessoas que nunca tinha visto, mas
especialmente seus lhos e até suas ex-esposas: “Faço isso sem Veruska saber,
Barão. Ela caria brava demais”, confessava.
Além de telefonemas que recebia para quebrar eventuais galhos de todos,
quase mensalmente tinha compromissos que não precisaria mais ter
legalmente, já que quase todos os seus lhos já tinham mais de 18 anos.
Mesmo assim, fazia questão de dar uma mão.
Uma de suas ex-mulheres sempre mandava uma lista com os gastos que a
lha teve ou teria tido. Normalmente, era uma carta escrita à mão, mais ou
menos assim:
Gastos do mês:
R$ 1.570,00 ‒ Faculdade
R$ 480,00 – Carro
R$ 350,00 – Curso de inglês
R$ 2.780,00 – Aluguel
R$ 670,00 – Maconha
R$ 380,00 – Seda para maconha
R$ 200,00 – TV a cabo
R$ 130,00 – Energia
Ao ler a carta com os pedidos, Boechat falou:
“Para que tanta seda? Se for assim, ela vai passar o mês todo fumando.”
E eu rebati quase não aguentando de rir:
“E você vai pagar?”
“Vou, porra! É melhor do que a mãe dela me encher o saco.”
Pagou e continuou fazendo a transferência bancária, mesmo sabendo que
aquela grana nunca seria usada na compra da erva.
(E.B.)
ÂNCORA DO ZOONEWS

Depois do sucesso no rádio, Boechat não precisava de mais nada. Ele já era o
grande âncora da BandNews FM e do Jornal da Band e nunca deixou de ser
um dos colunistas mais respeitados em todo o Brasil. Quando morreu, ainda
fazia a coluna da IstoÉ, publicada semanalmente. Tinha a minha ajuda e a do
companheiro Ronaldo Herdy.
Mas ele podia mais e queria mais. A primeira surpresa veio da Disney. Em
2015, Boechat foi chamado para interpretar um jornalista no lme Zootopia,
lançado no ano seguinte. Seria a onça-pintada Onçardo Boi Chá, âncora do
ZooNews. Ele foi o escolhido no Brasil, assim como outros jornalistas no
restante do mundo.
À época, ele disse ter aceitado o convite pelo convívio com a Disney desde o
início: “Eu, com seis lhos, não paro de ter contato com ela. Sou capaz de
cantar a música de Frozen de trás para a frente, graças às minhas lhas
Valentina e Catarina”.
Não se frustrou quando soube que a participação seria curta: “Eu nunca z
algo nessa área, mas quei mais confortável por ser algo parecido com o que eu
faço. Eu me preparei até demais, z gargarejo com gengibre, e no nal durou
apenas 15 segundos a minha participação”.
A notícia era sobre a prisão da ex-prefeita Bellwether, uma ovelha, acusada de
aterrorizar Zootopia. Boechat entra logo na sequência: “Seu antecessor,
Leonardo Léo Rei, nega seu envolvimento com o plano e alega que só quis
proteger a cidade”.
E não parou por aí. Apaixonado por ciência e natureza, Boechat foi
convidado em 2017 para fazer a locução do documentário Planeta Terra II, do
Discovery Channel. A versão original era com o naturalista David
Attenborough, a quem ele admirava demais: “Minha primeira reação foi ter um
receio absoluto. Eu já tinha visto a primeira série (lançada em 2006 e
vencedora de quatro prêmios Emmy), e Attenborough é um monstro, o
trabalho dele é absurdo. Tem uma impostação de voz e uma dramaticidade que
eu não conseguiria repetir”.
Mas ele aceitou, claro: “Como as comparações com o narrador original são
inevitáveis, eu mesmo já as faço e digo que acho a versão inglesa bem melhor”.
Coisas de Boechat. Após sua morte, o canal Animal Planet fez uma exibição
do documentário no estilo maratona. Foram seis episódios seguidos, que
duraram mais de cinco horas.
(P.F.)
“CALA A BOCA, BOECHAT!”

Colunista da Folha de S.Paulo, Mônica Bergamo tinha um enorme respeito e


admiração por Boechat antes mesmo de entrar na BandNews FM. No começo
da carreira dela, Boechat era o cara a ser batido, uma das grandes referências no
jornalismo. Escrevendo para O Globo, ele tinha a coluna mais lida e a que mais
trazia notícias exclusivas na época.
Em mais de dez anos de convivência na BandNews FM, os dois dividiram
grandes momentos. Mônica era chamada por ele de “a colunista de todas as
manhãs”. O grau de exigência era gigante. Isso causava certa tensão. Ela sabia
que, junto com a informação, na sequência, viriam as perguntas – e quantas
perguntas! Era um sufoco, ela admitia, mas tirava de letra.
De tanto interrompê-la nas manhãs da BandNews FM, surgiu uma das
brincadeiras mais gostosas entre os dois: o “Cala a boca, Boechat!”. Tudo
porque uma tia da Mônica, dona Ruth, cava chateada com a situação – as
interrupções – e dizia: “Ele não deixa você falar”. Mônica comentou isso com o
Boechat, que adorou.
Ele contou a história no ar, pediu desculpas e não se furtou de fazer o mesmo
com a Mônica toda vez que ela não parava de falar – mesmo quando
interrompida. Era a vez do “Cala a boca, Mônica!”. Muitos até pensavam que
os dois estavam brigando – até poderiam estar –, mas na maioria das vezes os
dois caíam na gargalhada.
Boechat, na verdade, gostava de testar a paciência da Mônica. Tanto é que,
certa vez, ela trouxe uma denúncia na coluna da Folha de S.Paulo que envolvia
o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, na época, homem-forte do
Congresso. Ao ser questionado sobre a notícia, o deputado falou para os
repórteres: “Eu não respondo coluna social”. Era uma provocação. O próprio
Cunha conhecia – e bem – o trabalho da Mônica.
Depois disso, Boechat passou a usar o áudio toda vez que a Mônica falava do
Cunha. Os dois se divertiam. Depois da tragédia, Mônica escreveu na Folha:
“Certa vez, no começo da minha participação matinal, ele me surpreendeu:
‘Mônica, você vai chorar quando eu morrer?’. Comecei a dar risada. Ele disse
algo como: ‘Estão vendo, estão vendo?’. E caiu na gargalhada. A hora da
despedida chegou. Muito mais cedo do que nós imaginávamos.”
RECONHECIMENTO A QUEM É DE DIREITO

Quebrar paradigmas era algo que Boechat adorava, até porque alguns deles,
depois de tanto tempo, não faziam mais sentido.
No jornalismo, qualquer apuração, reportagem, nota têm nome e sobrenome.
Pode vir da TV, do rádio ou de um grande jornal em circulação. Mesmo os
pequenos têm lá sua importância e publicam o que chamamos de “furo”, ou
seja, uma notícia em primeira mão.
Nas redações era muito comum – e hoje bem menos – que qualquer notícia
dada por outro veículo deveria ser checada e, se con rmada, levada ao ar ou
publicada sem o devido crédito de quem a apurou pela primeira vez.
A ideia, na cabeça das direções, era não fazer “propaganda” dos veículos
concorrentes.
Mas isso não funcionava para Boechat. Desde que assumiu os microfones da
BandNews FM, decidiu, sem nenhum comunicado prévio, dar cara e voz
àqueles que, de fato, tinham feito alguma reportagem de repercussão nacional.
Falava, sem se preocupar e com a certeza de que estava fazendo o certo, não
só o nome do jornal, revista ou emissora que tinha feito a apuração, mas
também dos jornalistas responsáveis.
Falava da CBN e da Jovem Pan, concorrentes da BandNews FM, sem dó. O
mesmo acontecia com notícias dadas por jornais como O Estado de S. Paulo,
Folha de S.Paulo e O Globo, além de sites como o G1 e o UOL. Foi assim com
o caso da Re naria de Pasadena, as delações da Lava Jato e de tantas outras
feitas por outros veículos.
Boechat enxergava no trabalho do jornalista aquilo que, muitas vezes, nem
mesmo as próprias redações valorizavam. Era um cara além do seu tempo.
BRONCAS: SÓ SABE QUEM LEVOU

Boechat não era santo, nem queria ser. O objetivo dele era apenas passar a
informação correta e estar munido para fazer os comentários ou dar uma
notícia no ar. Todos que trabalharam com ele, sem exceção, foram alvos de seus
esporros.
Podia estar no ar ou fora do ar. Fato é que ele não deixava passar se algo
estivesse errado. Muitas vezes se arrependia e chegava a pedir desculpa, da
forma dele. Na maioria das ocasiões, tentando explicar por que aquilo estava
certo ou errado.
Uma das últimas broncas foi dada à produtora e atual coordenadora digital
da BandNews FM, Letícia Kuratomi, e viralizou na internet. No UOL, o título
era: “Boechat perde a paciência e tem ataque de fúria em programa de rádio”.
Isso aconteceu no dia da tragédia no Ninho do Urubu, centro de treinamento
do Flamengo, quando dez jovens morreram em um incêndio que começou
com um curto-circuito no ar-condicionado. A discussão teve início quando
Boechat anunciou a entrevista com um integrante do Corpo de Bombeiros:
“Temos outro o cial do Corpo de Bombeiros, o tenente-coronel Douglas.
Não? Por que botaram na minha mão, então? Vou devolver esse papel e vocês,
quando puderem me acionar adequadamente, me acionem”.
Com os microfones desligados, mas tudo registrado na transmissão ao vivo,
ele começou a discutir com Letícia Kuratomi. Boechat gesticulou e mostrou o
papel para ela, como uma forma de cobrança. Estava, de fato, bem nervoso.
Nas redes sociais, muitos o criticaram, mas quem trabalhava com ele sabia
que aquele era um dos muitos “pitis” já dados por Boechat.
A discussão aconteceu poucos dias antes de sua morte e a Letícia resumiu o
que viria pela frente – ou não mais viria: “Ainda não consigo acreditar. Não
pode ser que não vai ter mais SMS, ligação, e-mail, briga, bronca, risada. É
inacreditável que você não vai aparecer amanhã às sete horas. Não consigo
acreditar”.
Laura Ferreira, meteorologista e apresentadora da Band, assim como outros,
aprendeu muito com os erros cometidos ao lado do Boechat. Certa vez, tomou
uma bronca ao tratar uma chuva que castigou o Rio de Janeiro como um
transtorno. Foram dez minutos de esporros, no ar:
“Laura, transtorno não é aquilo. Transtorno é eu car parado no
congestionamento. Aquilo lá foi um dilúvio. Aquilo lá mata pessoas. Não é
assim que você tem que falar.”
E falou mais:
“Eu não estou falando com a Laura que eu conheço. Estou te entrevistando.
Então, faz o favor de me responder.”
Ele tinha uma teoria para tudo: “Você tem que falar de maneira simples, para
que as minhas lhas Valentina e Catarina ou para que o seu Adamastor e a
dona Juventina entendam. Então, Laura. Não entre aqui para falar termos
técnicos que isso não me interessa.”
Boechat sabia aonde queria chegar e quem atingir. E o mais importante: as
brigas nunca saíam do estúdio. Acabavam ali.
NA RETÓRICA E NA INTELIGÊNCIA

Algo inquestionável em Boechat era o poder de síntese e o dom da palavra.


Conseguia construir um raciocínio gigante – falava por mais de dez minutos na
abertura do programa da BandNews FM – sem perder o o da meada. Era,
sem dúvida, o melhor no que fazia.
Atualmente âncora da CBN, Tatiana Vasconcellos trabalhou por seis anos ao
lado do Boechat, entre 2010 e 2016. Durante a programação especial pela
morte do Boechat, ela resumiu, como ninguém, quem era o jornalista Ricardo
Boechat com o poder do microfone:
“O que mais me impressionava no Boechat era a imensa e, talvez inigualável,
capacidade de se comunicar. Quando ele abria o jornal às 7:30 horas, ele
escolhia o assunto e dizia: ‘Eu vou falar sobre esse assunto’. Boechat então
falava de improviso, com referências históricas, com exemplos anteriores, num
raciocínio encadeado muito impressionante. E, mais surreal, ele conseguia
voltar do ponto de onde partiu e fazer uma conclusão, um raciocínio fechado,
lógico.”
Segundo a própria Tatiana, e tantos outros como nós que o acompanhávamos
todos os dias, isso é uma coisa que ninguém tem no jornalismo de hoje. E
di cilmente teremos outro Ricardo Boechat.
O AMOR PELA NOTÍCIA

Sabe lutador de jiu-jítsu que tem aquela orelha toda deformada? Então,
Boechat também tinha, mas por outro motivo.
Foi pelo amor à notícia. Dizem os mais antigos que aqueles calos foram
conquistados de tanto car com o telefone colado na orelha para apurar
informações à época em que foi colunista, passando pelo Diário de Notícias, O
Globo, Jornal do Brasil, Estadão e pela revista IstoÉ.
Sucessor de Ibrahim Sued, Boechat foi um dos melhores em tudo aquilo que
fazia. No colunismo, ganhou três prêmios Esso, a mais importante premiação
do país, que existiu até 2015.
Além dos calos nas orelhas, Boechat tinha outro hábito. Era característico,
quando estava falando com alguém, às vezes com mais de duas pessoas ao
mesmo tempo, colocar a gravata para trás do pescoço. Seria um rito – ou
apenas uma demonstração de desconforto?
Rodolfo Schneider, então diretor da Band no Rio de Janeiro, trabalhava ao
lado do Boechat todos os dias e tinha o Careca como um segundo pai.
“Boechat era inigualável. Ele não passava despercebido na vida de ninguém.
Se ele passasse dez segundos na vida de alguém, ia marcar a vida daquela
pessoa. Ou ele falaria alguma coisa, daria um abraço ou abriria um sorriso. Ele
não veio ao mundo a passeio.”
Rodolfo começou como estagiário, na época em que o diretor da emissora era
o próprio Boechat. As salas cavam frente a frente, e Rodolfo tinha até medo
dele. Mas aprendeu demais ao acompanhar o dia a dia daquele fenômeno.
No início, ouviu dele:
“Alemão, se eu estiver em campo, é para fazer gol. Se eu estiver em campo, é
para defender. Se eu estiver em campo, é para comer a grama. Comigo só
trabalha se for assim. Eu só vou fazer se for desse jeito.”
E fez.
AMARELO PISCANTE?

Boechat tinha acabado de desembarcar em São Paulo. Era o segundo dia como
apresentador da BandNews FM.
Como sempre, abriu o jornal: “Eu sou Ricardo Boechat e nós vamos car
juntos até às 9:00 horas, com as nossas praças e nosso time de colunistas e
comentaristas”.
Na abertura do primeiro noticiário local, Luiz Megale, que fazia o jornal ao
lado dele, disse que um semáforo da avenida Faria Lima, em São Paulo, estava
no amarelo piscante.
“Como é que é? Como é que é? Amarelo o quê? Amarelo piscante? É a cor da
tua calcinha, Megale? O que é amarelo piscante?”, perguntou Boechat.
E o Megale tentou explicar:
“Não, aqui em São Paulo o pessoal sabe.”
Mas não adiantou:
“Que amarelo piscante, meu irmão? Fala aí o que está acontecendo.”
E o Megale, en m, explicou:
“Não, o sinal está piscando porque não está funcionando.”
Boechat cou convencido:
“Tá vendo como é mais fácil? Tá quebrado.”
FILHOS E MAIS FILHOS

Quando conheceu a Doce Veruska, Boechat – vinte anos mais velho – já tinha
quatro lhos e não esperava ter mais. Pouco tempo depois, no entanto, os
planos mudaram.
Na época, a futura esposa tinha uma coluna no jornal Gazeta de Vitória. Os
dois se viram pela primeira vez em 2003, no Encontro Internacional do Vinho
do Espírito Santo, em Pedra Azul, uma cidade na região serrana do estado. Ela
era colunista de variedades e achou Boechat muito educado, romântico e
gentil: “Ficou grudado em mim. Falou que ia ler minha coluna e tudo o mais”,
contou.
Os dois começaram a trocar mensagens e, um mês depois, Veruska foi para o
Rio de Janeiro. Cobriria, na época, a posse da escritora Ana Maria Machado na
Academia Brasileira de Letras. Boechat aproveitou a oportunidade e a levou
para jantar. Os dois começaram a namorar.
Logo no início, alguém – não se sabe quem – mandou para ele uma
mensagem com uma entrevista dela, falando sobre o futuro e a vida pessoal.
Em uma das respostas, ela dizia: “Eu quero ser mãe, eu quero ter lhos”.
Em um dos primeiros jantares, daquele do tipo bem romântico, Boechat
soltou: “A propósito, eu vi uma entrevista sua. Você quer ter lhos, né?”.
Veruska foi direta: “Olha, eu não abordaria esse tipo de assunto agora. Mas,
já que você perguntou, deixa eu te dizer o seguinte: eu estou adorando sair com
você, estou vivendo um momento muito feliz, mas, em algum momento, eu
quero ter lhos. Poderei tê-los com você ou não”.
Foi ali que Boechat percebeu que a conta de quatro lhos cresceria para cinco
ou seis, como de fato aconteceu, com a chegada de Valentina, em 2006, e de
Catarina, em 2008. Ele já tinha Beatriz, Rafael, Paula e Patrícia, todos adultos.
Com a chance de a prole crescer ainda mais, Veruska sugeriu que ele zesse
uma vasectomia. “Tudo bem, claro. Vamos fazer.”
Veruska marcou horário em uma clínica, e Boechat foi para conversar com o
médico. O médico começou a explicar quais eram os riscos (quase nulos) e
quanto tempo levaria a cirurgia. Boechat ouviu e achou que marcaria outro dia
para fazer o procedimento.
Ao nal, o doutor perguntou: “Você entendeu tudo, senhor Boechat? Então,
vamos levantar e ir para a sala de cirurgia”.
Foi assim, de surpresa, que Boechat entrou na faca.
MILTON NEVES, O PITONISA

Pitonisa = profeta, adivinhador, aquele que consegue prever o futuro. Assim era
como Ricardo Boechat se referia a Milton Neves. O apelido se dava pelos
palpites, que passavam longe do placar, ditos pelo rei do “merchan” do rádio e
da TV nos microfones da BandNews FM.
A relação era de amor e ódio (muito mais amor), mas às vezes Boechat perdia
a paciência. Foi assim em 2015, quando Milton tentou fazer mais um
“merchan” de forma disfarçada. Ele falava sobre a criação de um centro
esportivo de alto rendimento da família Diniz, controladora, até então, do Pão
de Açúcar e de outras grandes empresas.
“Vai nascer agora, no começo de março, o NAR – Núcleo de Alto
Rendimento Esportivo de São Paulo –, [...] em Santo Amaro, lá estaremos...”
Foi interrompido por Boechat:
“Pitonisa, isso é de quem? Essa obra?”
“Essa obra é do João Paulo Diniz”, respondeu Milton.
Boechat continuou:
“Mas eu acho o seguinte, Milton. Numa boa, manda ele botar um anúncio.”
“Não, Boechat. Não é anúncio...”
Milton é interrompido de novo:
“Não me interessa. Liga para o Diniz. Diz que ele é maravilhoso. Janta com
ele. Se é público, vamos nessa. Mas coisa privada, esse oba-oba...”
Os dois caram discutindo por mais de dois minutos até que Tatiana
Vasconcellos chamou os jogos da rodada – sobre os quais ele palpitava todos os
dias.
E foi assim que surgiu uma das mais brilhantes brincadeiras com Milton
Neves. O Pitonisa, além de participar na BandNews FM, entra em todas as
outras rádios do grupo Bandeirantes.
Boechat, uma vez, teve a ideia de juntar todos os palpites dados pelo Milton
nas rádios, e a conclusão, claro, foi a que todos imaginavam.
Em cada rádio, ele dava um palpite diferente. A justi cativa: pelo menos um
palpite iria acertar. De fato, o Pitonisa fazia jus ao apelido.
“CADÊ A PAULINHA?”

Boechat era um recordista de perder coisas e até mesmo pessoas – por que não
a lha?
Separado pela primeira vez, Boechat tinha o costume de pegar as crianças nos
ns de semana e levar para a praia em Niterói, onde cresceu e antes vivia com a
antiga esposa.
Mas não parava por aí. Ele gostava mesmo era de juntar a garotada. Além dos
três lhos, vários amigos deles. O limite era o espaço da Variant, carro da
década de 1970, em que cabia tudo e mais um pouco. A estratégia era baixar o
banco de trás e abrir uma espécie de salão para acomodar toda a galera. Muitas
viagens eram feitas com os lhos dormindo em um colchonete colocado no
porta-malas. Segundo ele, se assemelhava à primeira classe de uma companhia
aérea árabe.
Em uma das vezes, Boechat estava sozinho para cuidar de quase dez crianças.
Tinha gente dentro da água, do lado de fora, fazendo castelo e jogando bola.
Na hora de ir embora, naquele negócio de “lava a bunda”, “tira a areia do pé”,
“troca de roupa”, ele foi colocando um por um na Variant. Ligou o motor e foi
embora.
Passados dez minutos, Boechat deu uma conferida e se desesperou: “Cadê a
Paulinha?”.
Sim, ele havia largado a lha na praia. Sem saber se a encontraria ou não, deu
meia-volta, desceu do carro voando, olhou para onde tinham estado na praia e
se acalmou: ela estava lá brincando, no mesmo lugar, e nem notou que havia
sido deixada para trás.
Puxou o pai.
DEIXA QUE EU CHUTO!

Boechat passou a infância e a adolescência em Niterói. Era apaixonado por


futebol, não pelos clubes, mas pelo jogo mesmo: a pelada de todas as semanas.
Jogava desde os dez anos de idade na praia de São Francisco e tinha um
apelido: Pato Feio ou Pato Rouco.
Não era um craque, longe disso, e passava a partida inteira na banheira.
Tinha um único objetivo: fazer gols. Ninguém sabia quem era Ricardo
Boechat. Tinha que perguntar pelo Patinho.
Visto que não daria certo com a bola, o pseudoatleta decidiu trocar a areia
pelo jornalismo. Foi uma surpresa para quem convivia com ele. Quem estudava
com Boechat, no entanto, sabia que a praia dele era escrever.
Certa vez, foi fazer um trabalho em Paris, já como jornalista. Na sexta-feira,
ele já estava livre, mas tinha mais dois dias na cidade que adorava. Voltaria
apenas no domingo. Não quis nem saber. Foi até a companhia aérea e explicou
que tinha um compromisso. Assim, conseguiu antecipar a volta e, no dia
seguinte, estava lá de novo, para o futebol de todos os sábados, nas areias da
praia de São Francisco.
Na escola, não era diferente. Admitia que chegou a matar aula só para jogar
futebol. Mais velho e já conhecido no jornalismo, ele mesmo passou a
combinar as peladas. E não pense que o jogo era apenas repleto de estrelas.
Nada disso. Misturava o diretor, o ex-jogador, o empresário e também os
estagiários, os motoristas e todos aqueles que quisessem bater uma bolinha.
VENDEDOR DE JAZIGOS

Boechat não fez faculdade. Parou no secundário, o antigo ensino médio. Na


época, os alunos optavam pelo curso cientí co, voltados para ciências e exatas,
ou pelo clássico, com foco em loso a e línguas. Eram os três anos que
precediam o vestibular. Por gostar da área de humanas, Boechat escolheu o
curso clássico.
No segundo ano, Boechat largou os estudos, estava cheio, como ele mesmo
dizia. Aquilo não correspondia mais aos anseios dele, que queria ganhar
dinheiro, ter independência e morar sozinho. Sair de casa, segundo ele, era algo
muito presente na sua geração.
Boechat resolveu procurar emprego. Foi à luta de verdade. Tudo isso antes de
começar no jornalismo, no Diário de Notícias, em 1971. Ele olhava os
classi cados dos jornais todos os dias.
Mas no currículo não tinha quase nada:

Ricardo Eugênio Boechat


17 anos
Secundário incompleto
Sem experiência
Não fala inglês
Fluente em espanhol

Seu primeiro trabalho foi ao lado do pai, Dalton, e da mãe, dona Mercedes,
como revendedor de livros, de várias editoras e coleções. Mas, paralelamente,
Boechat continuou procurando um emprego xo, que lhe rendesse um salário
no m do mês.
Depois de bater em algumas portas, Boechat viu um anúncio de emprego do
Cemitério Parque Jardim da Saudade, uma novidade no Rio de Janeiro. Eles
estavam formando equipes. O anúncio não dizia que a vaga era para vendedor
de jazigo, e Boechat foi até lá. Chegando ao lugar, cou interessado mesmo
assim. Ele queria um salário, com carteira assinada. Mas Boechat não
conseguiu o emprego porque era menor de idade.
O jornalismo, como ele mesmo dizia, foi um acidente. Mas, depois de um
tempo, veio a certeza de que havia nascido para isso.
A 5ª SÉRIE B POR TRÁS DOS MICROFONES

“Tirem as crianças do carro”, gritava Boechat toda vez que José Simão indicava
que na sequência viria uma piada, digamos, mais pesada. Mas o que ninguém
sabia é que as piadas, brincadeiras ou histórias que rolavam nos intervalos do
programa da rádio também não eram destinadas ao público infantil. Quer
dizer, as tais brincadeiras internas eram feitas pelas nossas crianças interiores.
Depois que as transmissões do rádio passaram a ser exibidas nas redes sociais,
muitos ouvintes começaram a nos ver nos intervalos, às gargalhadas no estúdio,
e sempre queriam saber o motivo. Normalmente, eram idiotices ou baixarias
que faço questão de revelar aqui, mas já aviso: “Tirem as crianças do livro”.
Boechat era um excelente desenhista. Sempre tinha à mão uma caixa de lápis
de cor, que usava, inclusive, no intervalo do Jornal da Band para desenhar o
que lhe vinha à cabeça. Só que apenas Freud talvez explique por que ele tinha
xação em desenhar pintos! E lógico que depois fazia questão de dar de
presente para alguém. Eu recebi uns cinquenta desenhos de todos os tipos e
tamanhos. Alguns até dobráveis, dependendo da criatividade do dia.
Uma vez ele e Luiz Megale, que também desenhava bem, competiram para
saber qual era o pinto mais realista, e eu tive a honra de ser o juiz. Era como
Tatiana Vasconcellos dizia, “Chegou a 5ª série B”. Mas não era só isso. Os
intervalos eram cercados de trocadilhos imbecis, em meio ao noticiário sempre
duro do dia a dia. Antes do acidente, com Carla Bigatto no estúdio, a diversão
era a famosa brincadeira do “Você conhece o Mário?”, só que com os nomes
mais complicados possíveis, como:
“Você conhece a Astrid?”
“Que Astrid?”
“As tridimensionais bolas do meu saco.”
Dizem que médicos, em meio a cirurgias, falam sobre amenidades enquanto
o paciente está anestesiado. Essa era nossa hora do recreio, nossa válvula de
escape. Ali aparecia o genial jornalista de carne e osso.
Como sempre gostou de contar histórias, algumas eram reveladas em pílulas
nos intervalos do jornal da BandNews FM. Uma delas (e já falei para tirar as
crianças do carro) Boechat contou para mim, mas com vergonha porque Carla
estava no estúdio.
“Fala logo, Boechat. Para com isso!”
“Então, é o seguinte: eu estava no Rio de Janeiro, solteiro, na minha casa, no
Leblon, num m de semana, com os lhos grandes e sem porra nenhuma para
fazer. Decidi pegar os jornais e vi que nos classi cados tinha anúncios dessas
agências de garotas de programa. Nunca tinha pedido, não era do meu feitio,
mas decidi testar. Eu liguei e um cara me atendeu perguntando que tipo eu
queria. Aí eu disse: ‘amigo, me manda uma mignon, não gosto de mulher
grande’.”
“Fechado, às 18:00 horas ela chega aí.”
Na hora combinada, toca a campainha. Quem aparece? Uma anã. O cara
entendeu que mignon era anã.
“Mas e aí, Boechat?”, perguntei.
“E aí, nada, Barão. A moça entrou, conversamos, tomamos um drinque,
paguei e ela foi embora. Nunca mais pedi garota de programa na vida.”
(E.B.)
O ASSALTO NO VIVA-VOZ

Boechat não perdia a oportunidade de contar uma boa história e não perdoava
nem a mãe ou a esposa. Mesmo de longe.
Na África do Sul, onde fazia a cobertura da Copa do Mundo de 2010, cou
sabendo que dona Mercedes e a Doce Veruska tinham sido assaltadas durante
um passeio em São Paulo. Boechat, ao lado do grande jornalista esportivo
Mauro Beting, decidiu narrar e gravar a história, por sinal, maravilhosa.
Do outro lado da linha, Veruska contava os detalhes e Boechat repetia:
“Quatro caras entraram na Casa do Churro no Tatuapé, onde a minha mãe
obrigou minha mulher a ir porque ela leu em algum lugar que eram churros
ótimos.”
Ao fundo, Mauro Beting gargalhava, claro, junto com Boechat:
“Chegaram lá, um lugar aberto, sem porta, um frio do cão, em uma esquina
erma, um breu! Comeram os churros. Minha mãe descobriu que o dono da
casa de churros era catalão. E cou conversando. Contou para ele que viu o
anúncio do lugar na revista do avião. Era uma nota de gastronomia.”
As gargalhadas só aumentavam:
“De repente, entraram quatro caras. Um foi direto na Veruska e mandou:
‘Me dá a bolsa, me dá a bolsa. Quero dinheiro, dinheiro, dinheiro’. E Veruska
deu a bolsa.”
Enquanto contava, Boechat caía na risada:
“O cara tentou levar a bolsa, e minha mãe, Mercedes, começou a xingar em
espanhol. Aí, a Veruska mandou a babá sair com as meninas e entrar no carro.
Enquanto isso, a minha mãe corria para bater nos bandidos.”
Cada vez cava mais engraçado:
“Quando os caras tentavam entrar no carro de outro cliente, minha mãe tirou
os sapatos, foi atrás deles e começou a dar sapatadas, gritando com os bandidos
e com todo mundo que não reagia com o palavrão em espanhol: ‘Hijos de una
puta!’. Depois, elas entraram no carro e saíram dali.”
Dona Mercedes conseguiu recuperar a bolsa de Veruska. Do outro lado da
linha, Veruska dizia que não foi nada engraçado. Mas ainda tinha o desfecho:
“Como levaram o celular da minha mulher, elas caram sem GPS para voltar.
A minha mãe fez questão de passar em um shopping antes. Para comprar um
celular? Não, sapatos novos porque os dela foram embora junto com os
bandidos.”
Depois, a própria dona Mercedes admitiu que se excedeu.
BASQUETE: A BOLA DE PAPEL

Boechat era cheio de rituais para tudo. Para entrar no ar, para arrumar a
bagunça, para ler jornais e até para brincadeiras que gostava de fazer com a
redação.
Uma deles começava quando ele ia ao banheiro – dizia que a próstata não
ajudava. Saía do estúdio, abria a porta da redação, entrava à direita e logo
estava no sanitário masculino da Band. Todos já sabiam o que esperar. Boechat
lavava as mãos e, com os papéis que as enxugava, fazia uma bola. Era uma bola
de tamanho razoável. Quando ele voltava, a redação parava – por quê?
Ele entrava pela porta de vidro, olhava para ver se todos estavam atentos e
mirava na lata de lixo que cava atrás do estúdio. Adorava fazer aquilo,
sobretudo quando chamava a atenção das pessoas. Nunca se sabia onde a bola
cairia de verdade. A média de acerto, para quem acompanhava, era de 10%,
mas ele nunca admitia.
Uma vez, faltando menos de um minuto para o jornal entrar no ar, ele e eu
decidimos fazer uma aposta. Quem acertasse... não ganhava nada!
Fizemos as bolas, miramos e... nada! Esse era um dos nossos divertimentos.
(P.F.)
PERDEU? EU TAMBÉM

Se juntassem Mauro Beting e Ricardo Boechat, alguém voltaria para casa sem
alguma coisa. Perder ou esquecer para os dois era uma espécie de hobby. Na
Copa do Mundo de 2010, na estreia do Brasil contra a Coreia do Norte, os
dois eram os únicos entre os mais de cem pro ssionais da Band sem luvas, em
meio ao frio de Johannesburgo, na África do Sul. Mauro chegou a sentar nas
mãos para aquecê-las, mas a boca tremendo não o ajudava a entrar no ar.
Durante a cobertura do Mundial isso virou brincadeira. Os dois passaram a
competir para ver quem era mais esquecido. O lho do grande jornalista
Joelmir Beting, parceiro do Boechat por muito tempo no Jornal da Band,
achou que venceria essa competição:
“Chupa, Boechat! Perdi ontem à noite aquele cartão de crédito pré-pago de
viagem. Foi bem no caixa eletrônico.”
Boechat perguntou:
“Que horas? Ontem à noite? Chupa, você! Eu perdi ontem de manhã.”
JANTAR ENTRE INIMIGOS:
PETRALHAS X COXINHAS

Não importava o assunto, Boechat recebia críticas de todos os lados com seu
comentário de abertura, todos os dias, às 7:30 horas na BandNews FM. O
curioso é que um único comentário gerava opiniões completamente opostas.
Se falasse da Dilma, era porque falou da Dilma e era chamado por muitos de
defensor da petista e, por outros tantos, de antipetista. Se fosse do Aécio, era
porque citou algo do Aécio e, de novo, era criticado por defender e era
criticado por atacar o político, a partir do mesmo comentário. O mais curioso é
que, independentemente do teor, tanto os de direita como os de esquerda se
irritavam.
Boechat se divertia com isso e pedia, quase que diariamente, para que eu e
Carla Bigatto lêssemos as mensagens para ele, e muitas iam para o ar.
Na época do impeachment ou das ações da Lava Jato, por exemplo, era
chamado de coxinha ou petralha depois de um comentário. A interpretação
dependia do ouvinte. Ele se questionava: “Eu z a mesma abertura, e os caras,
dos dois lados, me detonam?”.
Um dia Boechat se irritou e pediu o telefone de dois ouvintes. Um de cada
lado. Era uma moça do Rio de Janeiro e um cara de São Paulo. Boechat ligou
para os dois e marcou um jantar – e pagou – para os dois carem discutindo se
ele era petralha ou se era coxinha.
Nem mesmo Boechat sabe qual foi o veredicto porque não participou do
encontro. Mas, com certeza, o debate deve ter sido inesquecível.
(E.B.)
“O QUE É INSTAGRAM?”

O mundo girava e Boechat girava com ele, muitas vezes no sentido contrário.
Era avesso às redes sociais até que a Band deu o ultimato: “Boechat, você
precisa ter um per l no Facebook”. Ele não queria. Achava que o celular já era
demais.
Ele não sabia sequer como entrar na página da rede social de Mark
Zuckerberg. Instagram, nem pensar! “O que é Instagram?”, perguntava.
A saída foi terceirizar. Doce Veruska foi a escolhida para publicar os textos, as
fotos e os vídeos do marido. Ele até tentava, mas só na hora da “galhofa”.
Foi assim quando apareceu tomando vacina de sutiã, por exemplo. O vídeo
foi um pedido da Veruska para estimular que outras pessoas se imunizassem
contra a gripe. Mas era só para fazer o vídeo, e não a “graça”.
As ideias, muitas vezes, eram do próprio Boechat, mas no dia a dia a tarefa de
executá-las cava nas mãos da Veruska. Era ela quem publicava os vídeos do
Jornal da Band ou algum texto que ele escrevia, como o da depressão.
Ele sempre reclamava, mas, no fundo, adorava saber que estava
compartilhando parte da vida pessoal e do sucesso com outras pessoas, como
fazia no rádio e na TV.
Morreu com quase 1,5 milhão de seguidores no Facebook. A última
postagem é uma foto da mão da Doce Veruska com as duas alianças – dela e
dele – no dedo.
“E no meio de tanta dor, recebi o melhor presente que eu poderia receber, já
sem esperanças de conseguir. Meu coração é só amor. Te amo para sempre,
Ricardo Boechat. Da sua Doce Veruska.”
Até a publicação deste livro, essa postagem tinha mais de 3.500 comentários.
ALMOÇO SAGRADO:
A HORA DA FAMÍLIA

“Boechat, vamos almoçar juntos?”


“Não dá.”
“Boechat, eu pago.”
“Não dá.”
A hora do almoço era sagrada na vida de Boechat. E isso tinha uma
explicação.
Quando se mudou para São Paulo com a família, ele entrava na BandNews
FM às 7:00 horas, e não às 7:30 horas como fazia nos últimos anos. Então, não
via as lhas acordadas antes da escola e só voltava para casa às 21:00 horas,
depois do Jornal da Band. E como Valentina e Catarina eram pequenas, elas
dormiam cedo.
Doce Veruska – sempre ela – avisou: “Você tem que passar mais tempo com a
família”. Então cou combinado – ou determinado – que a hora de estar com a
família seria a hora do almoço. Ele saía da BandNews FM às 11:00 horas e ia
direto para casa.
Quando renovou seu contrato com a emissora, ganhou mais trinta minutos
para car com as meninas antes da escola e, como já eram maiores, mais um
tempo à noite. Mesmo assim, o horário sagrado, de todos sentados à mesa,
permaneceu. Como Veruska era do Espírito Santo, não conhecia tanto a cidade
de São Paulo. E dizia: “Eu não tenho família aqui. O que vou fazer se nem te
vejo?”.
Sempre que questionada, a resposta da Doce Veruska era simples: “É só você
explicar a sua rotina e que você tem família. As pessoas vão entender”.
Ela sabia que, se desse moleza, ele abusaria.
A ESPERA NO ALTO DA ESCADA

Além da mulher e das lhas, sempre tinha mais alguém esperando Boechat
chegar do trabalho. Depois do Jornal da Band, o horário era marcado. Lá estava
Nina, uma spitz alemã, pequena e clara, no topo da escada, na entrada da casa,
sabendo que logo, logo ele estaria com ela.
A relação entre os dois era de amor incondicional mesmo. Nina, segundo
Veruska, foi adotada depois de sofrer maus-tratos dos antigos donos e pertencia
às lhas Catarina e Valentina. Sendo assim, Boechat era o avô. E tinha um
cuidado absurdo com ela. Se não tivesse horário no pet shop, por exemplo, era
ele quem dava banho nela na pia ou no tanque – e a secava também.
A cadelinha era educada a ponto de Boechat levá-la ao trabalho, quando
tinha viagem programada ao Rio de Janeiro. Depois da apresentação do Jornal
da Band, ele e Nina pegariam a ponte aérea para encontrar a família que viajara
mais cedo. Nina cava atrás dele, solta, na bolsa de viagem.
Depois da tragédia, uma foto da Nina foi postada no Instagram da Veruska e
teve mais de 150 mil curtidas. E ela ainda não se acostumou com a ausência
dele: “Toda noite ela ca no alto da escada esperando ele voltar da Band”, disse
Veruska.
OS QUILOS A MAIS EM SÃO PAULO

São Paulo oferecia a Boechat algo que não se encontra em todas as cidades do
Brasil: uma gastronomia diversi cada, premiada e cheia de bons pratos. O
efeito disso na vida dele foram uns quilos a mais. Quando chegou à capital,
com seus 1,68 metro de altura, pesava setenta quilos.
Ele adorava sair com Veruska e comia tarde, sem se preocupar com calorias, o
que não favorecia muito e o impedia até de fazer a digestão antes de dormir.
Apesar de o jantar estar pronto em casa, muitas vezes ele chegava pilhado
depois do Jornal da Band e inventava de conhecer um novo lugar.
Não só a comida, mas os vinhos também sempre o atraíam. Um dos
restaurantes preferidos do casal era o japonês Kosushi, no Itaim Bibi, na zona
Oeste.
A combinação dos jantares com a falta de exercícios, claro, não poderia ser
outra: os quilos a mais, dos quais, virava e mexia, ele sempre se queixava.
Apesar de reclamar do ganho de peso – morreu com 77 quilos –, Boechat
nunca chegou a car obeso. Apenas comparava sua gura, agora freguesa da
gastronomia paulistana, com a silhueta do magrelo peladeiro das praias
cariocas.
O PRIMEIRO E ÚLTIMO LIVRO

Dizem que toda pessoa, antes de morrer, precisa ter lhos, plantar uma árvore e
escrever um livro. Boechat teve seis lhos, ajudou o meio ambiente como
poucos e, sim, é autor de um livro publicado na década de 1990. Copacabana
Palace: um hotel e sua história recuperou a memória do famoso hotel onde ele
chegou a trabalhar, como assessor de imprensa.
Sempre que questionado, era enfático: “O único e último! Nunca mais quero
escrever um livro. Exige muito tempo, muita dedicação e esse não é o meu
estilo”.
A obra traz os bastidores do Copa, inaugurado em 1923, ao abrigar
celebridades e autoridades. Lá estão hóspedes ilustres como Carmen Miranda,
Ava Gardner, Lady Di, Janis Joplin e Madonna. Nesse livro ele lembra ainda o
episódio em que o ex-presidente Washington Luiz foi baleado pela amante, a
marquesa italiana Elvira Maurich, durante uma discussão em um dos quartos.
São, ao todo, 184 páginas em que Boechat repassou, à época, os 75 anos do
hotel, com ilustrações do fotógrafo Sérgio Pagano, trazendo detalhes, como o
brilho dos botões colocados nos uniformes dos funcionários.
O próprio Boechat se casou com a Doce Veruska no Copacabana Palace. Os
dois namoraram um ano e meio antes. Nas redes sociais, ela recordou:
“Tínhamos combinado de convidar trinta pessoas cada um. Eu convidei trinta
(até hoje tenho parentes que não falam comigo por não terem sido chamados),
ele convidou 120”. A grana, segundo ela, era curta, mas por causa da relação
antiga que ele tinha com o Copa, deram a eles um megadesconto.
Boechat até poderia escrever um novo livro e chegou a admitir que seria
diferente: “Eu escreveria cção. Ficção que utilizasse elementos da realidade”.
ALMOFADINHA, SENÃO DÓI

Pudor não era o forte de Boechat. Ele não se privava de contar qualquer
história escalafobética ou constrangedora aos ouvintes da BandNews FM. Isso
incluía intimidades, segredos e até problemas de saúde. Ele sempre dizia: “Eu
não sou no ar diferente do que sou na vida”.
Foi assim no caso da hemorroida. Como tinha se ausentado da rádio,
Boechat não queria dar brecha para interpretações erradas, como “ele foi
demitido” ou “ele foi afastado”. Os boatos já circulavam.
Em 2014, ele foi obrigado a dar uma pausa de uns dois dias para uma
cirurgia. E, na volta, foi direto ao falar nos microfones da BandNews FM:
“Olha, minha gente, eu quei afastado porque fui fazer uma cirurgia de
hemorroida”.
A reação, tanto dos ouvintes quanto de quem estava no estúdio, foi apenas
rir. Mas Boechat via de outra forma e enfatizou: “Era como se o cu não tivesse
relevância. Por que a hemorroida tem que ser tratada na clandestinidade?”.
A cura se deu em seguida, com Boechat carregando de um lado para outro a
almofadinha que aliviava a dor na hora de sentar no período pós-cirúrgico.
NUNCA É TARDE PARA SE REINVENTAR

Todo jornalista que trabalha com informações de bastidores e notas exclusivas


coleciona fontes nos mais diversos setores, do poder público à iniciativa
privada. É com o material colhido que, diária ou semanalmente, publica a
coluna que, via de regra, leva o seu nome.
Foi assim com Boechat ao longo dos mais de trinta anos em que trabalhou no
jornal O Globo e, por lá, ganhou dois prêmios Esso, o mais importante do
jornalismo.
Em 2001, em mais uma apuração, ele colhia informações para publicar uma
reportagem sobre a guerra travada por grandes grupos pelo controle de
companhias de telefonia celular.
Tinha como fonte, à época, o amigo e compadre Paulo Marinho, então
assessor de Nelson Tanure, acionista do Jornal do Brasil e aliado da canadense
TIW na disputa com o Banco Opportunity, de Daniel Dantas.
Grampeado ilegalmente, Boechat, que assinava a coluna mais lida de O
Globo, teve as conversas publicadas pela revista Veja. Em uma delas, a que
causou a sua demissão, ele leu para Paulo Marinho a reportagem que seria
publicada no jornal.
Não havia, no entanto, nenhuma menção a práticas ilegais. Tanto que o
próprio Boechat a rmou, publicamente, que seu interesse era pela notícia e,
por causa do trabalho, falava com pessoas de todo tipo. E isso foi uma verdade
até seu último dia por aqui.
Não adiantou. Depois de 31 anos, foi demitido pelas Organizações Globo,
onde também participava do programa Bom Dia Brasil, na TV.
Na mesma época, publicou um artigo em que chegou a reconhecer o mal-
estar, mas não por dinheiro ou dolo (intenção de fazê-lo), e questionou a
decisão do jornal: “Cruzei a barreira da boa conduta pro ssional por um
motivo tolo: vaidade. A vaidade de me supor em posição de prestígio nos dois
maiores jornais de minha cidade cegou a autocrítica com que sempre procurei
orientar minha atividade jornalística”.
E concluiu:
“Quem me iniciou nos caminhos do colunismo foi Ibrahim Sued, de quem
fui ‘foca’ em minha distante juventude. Aprendi com ele que a matéria-prima
do colunista são as notas em primeira mão. A coluna que assinei em O Globo
consagrou-se entre as mais lidas do Brasil graças à capacidade de chegar à
notícia antes das outras. Seu acervo de furos, alguns de enorme repercussão, foi
construído a partir de relações que mantive com todos os tipos de informantes,
fossem eles bem-intencionados ou não, fossem eles guras de reputação ilibada
ou nem tanto. Muitos dos diálogos que possibilitaram momentos memoráveis
a O Globo, garimpados por minhas orelhas, talvez ruborizassem os neotalibãs
da mídia e alguns analistas da ética jornalística, mas tanto uns quanto outros
ganham a vida longe da apuração de notícias. Pois informo a esses teóricos de
mãos limpas: é dura a vida de um repórter. O colunista às vezes fala frases
impróprias, lida com sujeira, publica notas que prejudicam negócios e pessoas.
Mas ele procura sempre a verdade. Obtê-la, de preferência com exclusividade, é
a sua recompensa.”
Boechat, desempregado havia alguns meses, chegou ao Grupo Bandeirantes e
se tornou um maiores e mais queridos jornalistas do Brasil. Ganhou ainda uma
coluna, com seu nome, na revista IstoÉ.
O DIA DO ENCONTRO COM REINALDO AZEVEDO

Reinaldo Azevedo e Ricardo Boechat tinham opiniões muito divergentes. Isso


cava claro, por exemplo, quando ambos tratavam de um mesmo assunto da
Lava Jato. Um era – e ainda é – mais legalista, e o outro, mais passional.
Chegaram, no passado, a mandar recados um ao outro quando estavam em
casas diferentes. Reinaldo apresentava o Pingo nos Is na Jovem Pan e era
colunista da Veja. Boechat estava na BandNews FM e fazia a coluna na IstoÉ.
Em 2001, quando Boechat foi demitido de O Globo, Reinaldo chegou a
escrever um texto na Veja explicando todos os motivos que levaram o jornal a
tomar aquela decisão. Um deles era o fato de o colega de pro ssão ter sido
grampeado ilegalmente. Contou toda a história, mas deu a entender que
Boechat tinha ido além do bom jornalismo.
Em 2017, 16 anos depois, o alvo do grampo ilegal foi Reinaldo Azevedo. O
jornalista teve uma conversa com Andrea Neves, irmã de Aécio Neves, vazada
pela Lava Jato. Nada de ilegal foi gravado, mas o su ciente para sair tanto da
Veja quanto da Jovem Pan.
Foi pego de surpresa quando o próprio Boechat, ao saber de sua saída,
defendeu que Reinaldo fosse contratado pela Band, exatamente para trabalhar
na BandNews FM, onde ganhou o programa O É da Coisa. Após a tragédia,
reconheceu o apoio:
“Quando, há pouco menos de dois anos, fui alvo de uma safadeza do
Ministério Público Federal ou da Polícia Federal, com a colaboração de
vagabundos disfarçados de jornalistas ‒ jamais se saberá a autoria porque a
‘investigação’ não chegou aos criminosos ‒, deixei a emissora em que
trabalhava (Jovem Pan). Boechat imediatamente se solidarizou e passou a
defender a minha contratação pelo Grupo Bandeirantes. Deixei o emprego
anterior numa terça e conversei com a direção do Grupo Bandeirantes numa
sexta. Na segunda seguinte, estreava O É da Coisa na BandNews FM.”
A direção do grupo sabia que, uma hora ou outra, os dois se encontrariam no
ar – fora dele, não havia nenhum tipo de rusga. E isso, claro, causava certa
apreensão, por não saber o que viria de cada um dos lados. O encontro se deu
no dia 5 de abril de 2018, durante a cobertura da prisão do ex-presidente Lula.
E partiu de Reinaldo Azevedo a primeira frase:
“Boa noite, querido Boechat!”
“Boa noite, querido. Reinaldo Azevedo e eu, que somos as duas pessoas mais
odiadas da rádio BandNews FM, por razões opostas, o que é mais sensacional.”
“Agora, eu não sei. A direita o odiava, porque dizia que você falava o que a
esquerda queria ouvir. E comigo era o contrário. A esquerda me odiava porque
dizia que eu falava o que a direita queria ouvir. Hoje, certamente, eu falei coisas
que a direita detestou ouvir”, disse Reinaldo.
“Você, agora, é amado pelo PT e eu virei odiado. Queria, inclusive, convidar
você para fazer um dueto aqui no ar: eu pre ro ser essa metamorfose
ambulante...”, cantarolou Boechat.
E concluiu: “As coisas estão muito escalafobéticas”.
Ninguém naquele momento tinha a razão absoluta, e ambos sabiam disso.
LARGA A MINHA CADEIRA!

Nas redações do Grupo Bandeirantes, as cadeiras são, na maioria das vezes,


todas iguais no formato e da mesma cor ‒ vermelhas. Mas, sem muita
explicação, cada um se acostuma com a sua. Tem gente que até coloca o nome
para não correr o risco de usar outra. Rola até briga se a sua cadeira não estiver
no lugar. Boechat era muito chato com isso, tanto na BandNews FM quanto
na TV.
Em um dos tantos dias que trabalhou no Jornal da Band, Boechat chegou à
redação e percebeu que a cadeira dele não estava no lugar, o qual estava
simplesmente vazio. Isso o deixou puto!
Boechat percorreu todas as baias e achou a digníssima: estava na mesa da
então chefe de redação, Débora Cunha. E, então, decidiu deixar uma marca
para que ninguém, nunca mais, usasse a sua cadeira: “Quero ver, agora, alguém
sentar na minha cadeira”, esbravejou. Pegou um canetão e desenhou um pênis
na cadeira. Nem a pegou de volta, foi embora e desceu para a maquiagem,
onde se prepararia para o Jornal da Band.
Quando Débora chegou, ela – assim como Boechat – cou furiosa. O
desenho estava perfeito, como só ele sabia fazer. A chefe quase fez um
escândalo: “Quero saber quem fez isso. Pode puxar as imagens das câmeras. Eu
vou demitir a pessoa que fez isso”.
Ela achava que algum funcionário a estava desrespeitando, tirando com a cara
dela, trollando a chefe. Até que Nana Matos, a produtora que trabalhava com
Boechat, se aproximou dela e falou bem baixinho:
“Débora, eu acho que você não vai demitir quem fez isso.”
“Claro que vou. Quem é? Quem é?”
“Boechat.”
A chefe não se conteve:
“Filho da puta. Cadê esse Careca para me zoar?”
No m das contas, todo mundo caiu na risada.
MINHA CADEIRA 2: A OBRA DE ARTE

Assim como na TV, na BandNews FM, Boechat também tinha uma cadeira de
estimação. Era velha, com o couro todo desgastado e alguns pequenos buracos.
Só passava por reforma, contrariando-o, quando ele saía de férias.
Diferentemente da redação do Jornal da Band, na rádio todo mundo
respeitava o lugar dele, mas não deixava de usá-lo para apresentar os demais
jornais do estúdio. O importante era que estivesse no mesmo lugar às 7:30 da
manhã. Boechat, na BandNews FM, não tinha uma baia na redação, apenas o
seu lugar no estúdio.
Logo após a tragédia, não fazia mais sentido que a cadeira casse por ali.
Depois de uma conversa com a diretora Sheila Magalhães, anunciei ao vivo a
aposentadoria da cadeira, no dia seguinte à queda do helicóptero.
Essa foi a primeira transmissão do programa sem Boechat. A cadeira estava
no mesmo lugar, com uma camisa do PGN, o Partido da Genitália Nacional,
criado pelo amigo José Simão, presidente da legenda imaginária. Boechat era
seu vice. Estavam no estúdio comigo Luiz Megale, Rodolfo Schneider, Rodrigo
Orengo, Laura Ferreira e Tatiana Vasconcellos, que trabalhavam ou
trabalharam com ele ao longo dos últimos anos na rádio:
“Eu só quero dizer que essa cadeira aqui, bem aqui na minha frente, onde ele
se sentou por 13 anos, vai ser aposentada. Ninguém nunca mais vai se sentar
nessa cadeira. Ela será eternamente do Boechat. Então, assim como qualquer
time de futebol que pendura camisas, a gente vai pendurar essa cadeira. É dele
para sempre.”
Claro que a cadeira não caria no estúdio para sempre, mas seria para sempre
do Boechat. E a ideia era que se tornasse uma espécie de homenagem ao Careca
de todas as manhãs, como era chamado por nós.
A peça, velha e desgastada, foi entregue ao artista plástico Alê Jordão, o
mesmo que transformou o primeiro Twingo do Boechat em várias peças de
arte. Três meses depois da morte dele, a nova cadeira do Boechat foi
apresentada no aniversário de 14 anos da rádio, que contou com a presença da
Doce Veruska, das lhas Valentina e Catarina e de sua mãe, dona Mercedes.
A cadeira foi toda decorada com luzes de neon na cor laranja e, atrás, leva
uma espécie de leme, uma alusão à frase tão famosa do Boechat: “Toca o
barco”.
(E.B.)
AS ESCAPADAS NO CELULAR

Foram tantas vezes que não caberiam nem em cem páginas. Fato é que Boechat
não conseguia se desligar da notícia, dos ouvintes e do celular, cujo número ele
mesmo dava diariamente no ar. Ele sabia que, a cada mensagem, a cada ligação,
haveria uma história diferente e, muitas vezes, um furo ou um pedido de ajuda.
Fora do trabalho, nos ns de semana ou nas férias, a Doce Veruska, pensando
no bem-estar de todos, proibia o uso do telefone, mas não adiantava!
Boechat se escondia no banheiro ou em qualquer outro canto, longe dos
olhos da família, para espiar e encaminhar mensagens para as redações de São
Paulo e do Rio de Janeiro.
As mensagens de texto – Boechat nunca usou o WhatsApp – eram lidas e
encaminhadas em questão de segundos, até porque era o tempo que ele tinha.
Eu mesmo, como fazia com ele a coluna da IstoÉ, recebia algum SMS quando
menos esperava.
No ar, ele admitia as escapadas, mesmo correndo o risco de tomar uma
bronca da Veruska. Se não fosse descoberto, a conta do celular o entregaria,
especialmente quando viajavam para os Estados Unidos e a Europa.
(P.F.)
DUAS VIATURAS, QUASE CEM PROCESSOS E UMA
DERROTA

Boechat não acumulou apenas prêmios ao longo da vida. Tinha também um


acervo de processos, vindos de todos os lugares possíveis.
Um dos episódios mais marcantes envolveu a Polícia Militar de São Paulo.
Foi em setembro de 2013, quando duas viaturas da PM ocuparam uma faixa
da avenida Washington Luiz, uma das principais vias da cidade, no acesso ao
túnel Paulo Autran, diante do risco de um protesto perto do Aeroporto de
Congonhas.
Os veículos o ciais travaram o trânsito e deixaram o jornalista revoltado, até
porque não havia nenhum sinal de manifestação, prejudicando quem se
locomovia pela metrópole. Boechat até pediu ajuda do repórter Robson
Ramos, que estava no helicóptero da BandNews FM:
“Você que está no helicóptero da Band, sobrevoando o Aeroporto de
Congonhas, poderia jogar um tijolo ou fazer pipi nessas duas viaturas, que, por
ato próprio, decidiram fechar uma pista do Corredor Norte-Sul?”
E continuou:
“Eu queria perguntar ao comandante da PM, coronel Benedito Meira, que
atitude disciplinar ele vai tomar contra esses idiotas? Manda esses caras
descascar batata [...]. Tem o idiota cabo, o idiota sargento, o idiota major, o
idiota tenente.”
Boechat se tornou alvo de quase cem processos, motivado por associações e
sindicatos de policiais. No Departamento Jurídico da Band, se acumulava uma
pilha de ações movidas por PMs que se sentiram ofendidos. Pediam
indenização por danos morais, a rmando que Boechat desquali cou e
desmoralizou o trabalho da tropa.
No m das contas, os processos não prosperaram, e a PM não soube explicar
o motivo pelo qual manteve as viaturas no local mesmo com a ausência de
protestos.
Por essas e outras, a equipe jurídica da Band vivia ocupada com os processos
movidos contra Ricardo Boechat.
Políticos eram outros de seus alvos. Em 2009, ele desejou o m de todos os
descendentes de Antônio Carlos Magalhães (ACM), ex-governador da Bahia,
ex-ministro das Comunicações e ex-presidente do Senado, falecido em 2007.
Foi processado por ACM Neto, mas se livrou de qualquer punição. Estava em
uma época de cassar clãs que tomaram conta do Brasil, como os Sarney, os
Gomes e os Barbalho.
No caso de ACM, um detalhe: não se sabia se o fax que servia de enfeite na
mesa da Jaqueline Moss, secretária de redação, funcionava ou não, mas quando
Boechat desejou a morte de toda a família, o aparelho se mostrou e ciente. A
ação chegou por ele. 
Outro caso emblemático envolveu a ex-ministra da Pesca, Ideli Salvatti.
Boechat a chamou de “baleia”.
A defesa achou a saída perfeita: Boechat a chamou de baleia para dar a
dimensão de que ela abarcava muita responsabilidade. Tudo tinha a ver com o
estilo ácido e a forma do próprio Boechat de se comunicar.
A única exceção – ou derrota – aconteceu no caso Boechat X Roberto
Requião. O Careca foi condenado a fazer trabalhos comunitários pelo crime de
calúnia. Em 2011, acusou o ex-senador de corrupção e nepotismo ao defender
o então repórter da Rádio Bandeirantes, Victor Boyadjian, que teve o gravador
arrancado pelo ex-governador do Paraná e disse até ter levado um soco. Depois,
o repórter voltou atrás.
Todos os outros processos foram arquivados ou encerrados.
MARGARETH E O
BRASILEIRÃO DE 2009

O Fluminense estava na lama. Para os especialistas, não havia outro desfecho, a


não ser a degola! A previsão era certeira e, claro, rati cada ao vivo na
BandNews FM pelo comentarista esportivo Milton Neves.
Logo depois de Milton Neves prever que o Fluminene seria rebaixado para a
segunda divisão, Boechat, contrariando a lógica e a matemática da tabela,
decretou fora do ar: “O Flu não cai”. Ao lado dele, Luiz Megale, então
apresentador do jornal, garantiu:
“Já caiu, Boechat. Já era! Se não cair, pode me chamar de Margarete.”
Boechat segurou Megale pelo braço e o desa ou a dizer para os ouvintes o
que havia dito em o . Megale foi obrigado a falar e ainda arrumou confusão
com a torcida do Fluminense:
“Recebi várias mensagens violentas”, disse o jornalista.
Depois da troca de técnicos, os matemáticos chegaram a apontar que o
Tricolor tinha 99% de chances de cair. Mas uma surpreendente arrancada
começou na 27ª rodada, com o empate contra o Corinthians. O Flu não
perdeu mais, e o milagre se concretizou no 1 X 1 contra o Coritiba. O Time de
Guerreiros, comandado pelo atacante Fred, escapou do rebaixamento.
Era a hora de Luiz Megale pagar a aposta. Na segunda-feira, Boechat o
encontrou e começou a gargalhar.
“Hahahahahaha, Margareth! Se fodeu, hahahahaha!”
A brincadeira durou pelo menos duas semanas. Na BandNews FM, Luiz
Megale havia se tornado “Margareth”.
Na hora de começar o noticiário, o Boechat não perdoava:
“Bom dia aos ouvintes, bom dia Cassia Godoy [âncora que dividia o estúdio],
bom dia Margareth…”
Numa entrevista ao vivo com um senador, Boechat chegou a perguntar:
“Alguma pergunta, Margareth?”
Sabendo que não faria Boechat mudar de ideia, Megale decidiu embarcar na
brincadeira. E, no meio do bate-papo com o parlamentar, disse:
“Boechat, notei que pronunciou meu nome com ‘th’. Por favor, me respeite.
Meu nome é Mar-ga-re-te, com ‘e’.”
HORROR A CHEFES

Boechat sempre admitiu: não gostava de chefe. Apesar de entender a


necessidade de uma estrutura hierárquica e de ter sido chefe em diferentes
momentos de sua carreira, ele tinha horror a padrões e ordens, principalmente
quando pensava diferente. Por isso, a relação entre as duas partes não era muito
pací ca e, na TV ou na rádio, as discussões eram frequentes.
Aos 27 anos, o então chefe de reportagem da Rádio Bandeirantes, André Luiz
Costa, foi chamado para assumir a direção de jornalismo da BandNews FM.
Sua missão, além de implantar um veículo novo num mercado altamente
competitivo, incluía lidar com um veterano casca grossa como Boechat, que
passou a comandar o noticiário matutino com a saída de Carlos Nascimento.
Boechat fazia exatamente o contrário do que era determinado. Se você
quisesse que ele falasse algo no ar, jamais deveria lhe contar isso – com raras
exceções.
Era comum, por exemplo, quando recebia ordem de não dar uma notícia,
apenas para que fosse mais bem-apurada, ele, sem titubear, a mandasse para o
ar.
“Olha, ainda estamos apurando, mas a informação que temos até agora é
que...”
Não havia nenhum tipo de censura. Era apenas um jornalismo diferente de
tudo aquilo que havia sido visto em uma emissora de rádio. Boechat ia
construindo a notícia com a ajuda dos ouvintes. No m, Boechat, que não
queria ter nenhum cargo de che a, acabava diariamente exercendo essa função,
com suas lições e constantes desobediências.
Para ele, o mais importante era valorizar a liberdade criativa das pessoas,
premiar a ousadia, premiar o incorreto, premiar o irreverente, premiar quem
sempre vai um pouco – ou muito – além do que é considerado padrão.
A ideia era que valia muito mais a pena ter pessoas que ultrapassassem os
limites do que aquelas que atuassem dentro do espaço pré-delimitado ou
preestabelecido.
Foi nas conversas com Boechat que André Luiz Costa aprendeu – assim
como tantos na rádio – que ninguém seria como ele, tão irreverente, eloquente
e, muitas vezes, chato.
André Luiz Costa saiu da BandNews FM para assumir o cargo de diretor
executivo de jornalismo da TV, onde continuou discutindo e aprendendo com
o Careca no Jornal da Band.
O DIA DO ADEUS: NÃO ERA A HORA

Foi o pior dia na história da BandNews FM. Não era para ser assim. Ninguém
estava preparado. Ele estava no auge e nós também.
No dia da tragédia, 11 de fevereiro de 2019, Boechat tinha chegado mais
cedo ao Grupo Bandeirantes, às 6:00 horas. Foi de táxi (o Twingo havia cado
no pátio na sexta-feira) e seguiu direto para o camarim. Por volta das sete da
manhã, como de costume, se dirigiu até a rádio e cumpriu seu ritual, mas não
por completo. Como o Ricardo Valota (nosso jornalista noturno) folgava na
madrugada de domingo para segunda, o café daquele dia era o da máquina
mesmo.
Sentamos, ele e eu, no pátio da Band, discutimos o que tinha de mais
importante e, como eu precisava resolver outras coisas, o deixei ali até que
voltasse para a redação.
No ar, no último comentário de abertura, lembrou duas tragédias,
Brumadinho e CT do Flamengo, além de tantas outras sem solução ou
punições. Citou um levantamento feito pelo jornal O Globo sobre os dez
últimos grandes casos sem nenhuma sentença da Justiça. Isso sempre o
incomodava – e muito!
No estúdio, Barão, ele e Carla Bigatto falavam de assuntos diversos e riam
como sempre. Ele contou que tinha um evento de uma indústria farmacêutica,
a Libbs, em Campinas, no interior de São Paulo, e perguntou:
“Barão, Campinas é longe?”
“Nada, uma hora, Boechat.”
Ele não fazia questão de ir de helicóptero, mas a Libbs, que o contratou,
marcou a participação dele no evento para logo depois de ele sair do ar. Os
horários eram quase incompatíveis. Mas não se importou, pois estava feliz por
ter passado um m de semana como poucos, ao lado de todos os lhos, o que
era muito raro.
Logo depois do jornal, fez o caminho até o heliponto da Band. Eu fumava
um cigarro e conversava com uma das produtoras do evento. Vi o helicóptero,
que seria pilotado por Ronaldo Quattrucci.
Na redação, tocamos o barco sabendo que no dia seguinte ele estaria
novamente ao nosso lado. Soube que ele encerrou o evento em Campinas com
uma piada sobre os carecas:
“Esse negócio de car careca não é nenhuma vantagem. ‘É dos carecas que
elas gostam mais.’ Isso é tudo mentira da grossa. Só os carecas dizem isso.
Comecei a perder cabelo, estou (quase) com 67 anos, por volta dos quarenta,
por aí.”
Mas ele não voltou para os microfones da BandNews FM. Às 12:20 horas
chegou uma notícia que nos preocupou: “Ouvintes da rádio BandNews FM
informam a queda de um helicóptero agora no Rodoanel, na região da via
Anhanguera, na Grande São Paulo. Ainda não há informações de feridos”.
O Corpo de Bombeiros, logo depois, falava em dois mortos: “O porta-voz do
Corpo de Bombeiros de São Paulo, Marcos Palumbo, con rma dois mortos na
queda de um helicóptero no Rodoanel, na região da via Anhanguera”.
Ao ver as primeiras imagens, comecei a chorar e fui direto falar com nossos
chefes. Pus o capitão Marcos Palumbo para conversar com a nossa diretora
Sheila Magalhães. Não queríamos acreditar. O mundo desabou!
Nana Matos, que trabalhava com Boechat na TV e organizava a agenda dele,
trouxe o dado que con rmava a tragédia. O pre xo era o mesmo do
helicóptero contratado pela empresa. Boechat e o piloto estavam mortos.
Nessa hora, Barão estava no ar no BandNews TV dando a notícia da queda
de um helicóptero, ainda sem saber quem estava a bordo. Felipe Felix, nosso
gerente de jornalismo, ligou três vezes para a che a do canal, mas nada de
tirarem Barão do ar. O próprio Felipe decidiu falar diretamente. Ele e Carla
Bigatto foram ao estúdio para dar a notícia. Barão caiu em prantos e desceu
correndo para a rádio. Não era possível. Por que daquele jeito? Por que tão
cedo?
Seguramos a informação o máximo que pudemos. A preocupação, naquele
momento, era avisar a família, incluindo Veruska, as duas meninas e dona
Mercedes. De todos os veículos da imprensa, somente a Veja – que causou sua
demissão da Globo em 2001 – não respeitou e deu a notícia antes do aviso pela
Band, por meio da coluna de Maurício Lima. Os outros esperaram.
Assim que veio a con rmação, Barão e Sheila tiveram a triste incumbência de
levar a pior notícia na história da BandNews FM aos nossos ouvintes. Pela
primeira vez a rádio saiu do ar. Era o início de um luto que nos atingia
diretamente na alma.
Coube à Sheila informar a tragédia:
“Lamentamos profundamente informar que o nosso âncora Ricardo Boechat
estava a bordo do helicóptero que caiu na rodovia Anhanguera, na região do
Rodoanel, em São Paulo. Boechat foi a Campinas hoje, apresentou o noticiário
da BandNews FM logo pela manhã e estava no interior para um evento de um
laboratório farmacêutico. Foi a bordo de um helicóptero, acompanhado de um
piloto, e retornava a São Paulo. Pegou o helicóptero às 11:50 horas e pousaria
aqui no Grupo Bandeirantes por volta das 12:15 horas, o que não aconteceu.
Depois de alguns minutos, conseguimos a con rmação do pre xo do
helicóptero que caiu e esse número batia. Era o helicóptero do Boechat. É com
profunda tristeza que informamos que o nosso âncora de todas as manhãs
estava a bordo do helicóptero que caiu há pouco na Anhanguera. Estão aqui no
estúdio eu, Barão e Carla Bigatto também, que todos os dias dividiam o
microfone com Ricardo Boechat.”
Barão mal conseguia falar:
“É uma notícia que nos pegou de surpresa. Hoje, Boechat, conversando
comigo e com Carla, perguntava se Campinas cava muito longe de São Paulo.
Ele está aqui faz muitos anos, mas ainda perde a noção de distância. Falamos
que era pertinho, uma hora. Nos últimos tempos, ele vinha fazendo muitos
eventos. Era o maior jornalista do país. Ele se deslocava de avião, de
helicóptero [...] e agora surge essa notícia da perda do nosso companheiro de
todos os dias. Que fez a BandNews ser o que é hoje. Uma rádio de referência
para todos nós e que colocou o ouvinte como o principal parceiro. E a gente dá
essa notícia tão triste que é a perda do nosso companheiro de todos os dias.
Mas Boechat já deixou a marca dele no jornalismo, nas nossas vidas e na vida
da BandNews. E a gente se pergunta: por que ele não pegou um carro daqui
até Campinas? [...] Mas ele tinha a lógica dele e jamais imaginou que seria
vítima de uma queda de helicóptero. Ele tem uma história no jornalismo linda
e nunca estudou jornalismo. E teve enorme sucesso por onde passou [...]. É
uma perda gigantesca. Um cara admirável. Quantas vezes ele não parou para
uma foto? Quantas vezes ele ajudou alguém? Ele tentava enxergar o lado que
ninguém via. E é isso.”
Carla também falou:
“A gente não consegue acreditar quando acontece. E a gente passou um
tempo se questionando: É verdade mesmo? Será que ele não entrou nesse
helicóptero? Será que ele não está em um carro? Será que não está chegando?”
Sheila decidiu tirar a rádio do ar por algum tempo:
“A gente pede a compreensão dos nossos ouvintes. É uma tragédia e muito
próxima da gente. Da nossa vida, da nossa vida pessoal, porque a gente se
envolveu com o trabalho da maneira mais profunda possível. Assim é a equipe
da BandNews FM. É a sensação de estar perdendo um familiar. Então, peço a
compreensão dos nossos ouvintes porque Boechat sempre falou que essa é uma
rádio feita por gente, para a gente. E nós, nesse momento, precisamos de um
tempo, um tempo para a gente. Por isso, momentaneamente, a programação da
BandNews FM estará fora do ar.”
Mesmo sendo muito difícil, era a hora de prestar todas as homenagens
possíveis àquele cara que nos ensinou muito – ou quase tudo. Mas, antes disso,
fomos até a casa dele levar uma palavra de conforto à Doce Veruska e às
pequenas Valentina e Catarina.
O dia foi longo, difícil e terminou com uma justa homenagem preparada
pelo Grupo Bandeirantes. O Jornal da Band foi encerrado apenas com os
aplausos de todos aqueles que trabalharam com Boechat, momento que cará
eternizado na memória.
(P.F.)
O VELÓRIO: AMIGOS, FÃS E CONFORTO

Depois de um dia cansativo, difícil, angustiante, triste e tantos outros adjetivos


para a família e todos aqueles que trabalhavam com ele, chegou o momento de
mostrar ao mundo o quanto Boechat era querido e respeitado.
O velório foi realizado no Museu da Imagem e do Som (MIS), nos Jardins,
em São Paulo, e reuniu milhares de pessoas, entre fãs, amigos e colegas de
pro ssão, familiares e autoridades. Perto do caixão, dona Mercedes e Doce
Veruska faziam questão de cumprimentar um por um.
Forte como poucos, dona Mercedes fez o relato mais emocionante e
aproveitou aquele momento para elogiar o que o lho sempre apoiou:
“Tenho muito orgulho do homem que foi meu lho. Um homem honesto,
correto e sincero. Era um homem que falava com o faxineiro, com um
mendigo de rua, com o mesmo carinho que falaria com qualquer outra pessoa.
Não existe uma raça superior. Tem tanto valor um porteiro quanto um médico,
porque cada um desempenha o seu trabalho com dignidade e cada um é
importante para toda a sociedade.”
E disse mais:
“Nós não vamos acabar com os problemas sociais enquanto não mudarmos
nossa cabeça e exigirmos dos que estão acima de nós, que querem mandar, o
respeito que o povo tem que ter e merece ter. Tem que nos dar respeito, e não
caridade pública, mas respeito. Que os hospitais nos atendam com decência,
que os colégios públicos sirvam para as crianças aprenderem realmente para
poderem crescer. Trânsito ordenado; não é porque o meu carro é melhor do
que o seu que vou passar na sua frente, entende? Temos muito que aprender.”
E brincou:
“Quando nasceu, o médico disse para a minha mãe: ‘Ainda bem que é um
menino porque é muito feio’. Só que assim como o patinho feio, com dois
meses era um bebê muito bonitinho, bocão grande, aqueles olhinhos muito
vivos, carinha cor-de-rosa, carequinha; quando começou a falar, com um ano e
pouco, começou a falar perfeitamente.”
Do lado de fora, taxistas – sempre defendidos por Boechat – zeram uma
carreata como forma de adeus.
Ele era ateu, mas a Doce Veruska resumiu a essência do marido:
“Meu marido era o ateu que mais praticava o mandamento mais importante
de todos, que era o amor ao próximo, porque sempre se preocupou com todo
mundo, sempre teve coragem. E é muito difícil fazer o que ele sempre tentou
fazer. Então, com erros e acertos, como qualquer pessoa, tenho muito orgulho
dele.”
Essa era a essência do Boechat. Lidar com a vida, de maneira séria, se
preocupando com os demais, mas sempre encontrando um momento para nos
fazer sorrir.
Ele foi cremado no cemitério Horto da Paz, em Itapecerica da Serra, na
Grande São Paulo.
O PRIMEIRO DIA DAS MÃES SEM ELE

Boechat não lembrava data alguma. Segundo dona Mercedes, nem de


nascimento, nem de casamento, nem de aniversário.
Dia das Mães, se deixasse, passaria despercebido. Não de propósito, mas
porque, como já dissemos, esquecer fazia parte do dia a dia do Boechat: “Ele só
vem passar o Natal aqui com a gente porque é a Veruska que empurra”. Mas ele
tinha a quem puxar, de acordo com a mãe: “O pai, por exemplo, não sabia
nem quando tinha casado, nem com quem”.
Argentina de nascimento e brasileira de coração, dona Mercedes é mãe de
sete lhos – além do Ricardo, o nosso Boechat, Carlos Roberto, Alexandre
Alceu, Sérgio, Dalton, César e Beatriz – e perdeu dois em vida: Ricardo e a
única mulher, a Bia, que morreu aos 16 anos de uma hepatite malcurada. Vem
da mãe a força da família e o lado inconformado do Boechat.
Logo após a tragédia com o helicóptero, ela escreveu – e a BandNews FM
levou ao ar em sua própria voz – um texto emocionante sobre o Dia das Mães.
Era para falar sobre a perda. E, principalmente, dar apoio àquelas mães que
passaram pela mesma dor que ela:

No segundo domingo de maio festejamos as mães, as biológicas, as


adotivas, as presentes e as ausentes. Lembranças de nossa infância e dos
nossos lhos vêm à nossa mente. Beijos, abraços, presentes e a
felicidade de estarmos juntos, mas há outro grupo de mulheres que
nesse dia o coração ca mais apertado. São aquelas que quando passam
escutam murmurar: “Coitadas, perderam o lho”. Isso não é verdade!
Não perderam nada, elas tiveram um lho, que permanece em sua
mente e em seu coração. Que tiveram com eles sonhos, esperanças,
sofrimentos, frustrações, com os quais riram e choraram, que os viram
aprender a andar, a levantar-se, a cair, a pular, a ler, a escrever e que
depois escolheram seus caminhos. En m, que se zeram homens e
mulheres. Sim, os tivemos pulando dentro de nós, são parte de nós.
Não importa em qual parte do caminho eles deixaram de percorrer, mas
eles nos deixaram sua presença, permanecem em nossa mente, estão
vivos em nosso coração. Os sentimentos daquilo que eles nos deram
permanecem em nós. Por isso, devemos festejar essa data, pois sempre
seremos mães. Feliz Dia das Mães.
Mercedes Carrascal
© Eduardo Barão e Pablo Fernandez
Diretor editorial
Marcelo Duarte
Diretora comercial
Patth Pachas
Diretora de projetos especiais
Tatiana Fulas
Coordenadora editorial
Vanessa Sayuri Sawada
Assistente editorial
Olívia Tavares
Capa
Vanessa Sayuri Sawada
Diagramação do livro impresso
Victor Malta
Foto de capa
Eduardo Knapp/Folhapress
Preparação
Beatriz de Freitas Moreira
Revisão
Ana Maria Barbosa
Diagramação para e-book
Natalli Tami Kussunoki

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Barão, Eduardo
Eu sou Ricardo Boechat/Eduardo Barão, Pablo Fernandez. – 1. ed. – São Paulo: Panda Books, 2019.

e-ISBN: 978-85-7888-747-6

1. Biogra a. 2. Ricardo Boechat. I. Fernandez, Pablo. II. Título


Bibliotecária: Vagner Rodolfo da Silva – CRB-8/9410
2019-1509
CDD: 920
CDU: 929

2019
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