Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Prefácio
Introdução – por Eduardo Barão
Introdução – por Pablo Fernandez
A estreia tardia no rádio
Para se fazer ouvir...
... E tocar as pessoas
Frank Sinatra: lho de quem?
Horário brasileiro do Boechat
Provocador e apostador nato
O velho sungão vermelho
Sem a resposta do acusado
Buemba!, Buemba! A dupla com José Simão
Aposta sem vencedor
Ingressos para os Rolling Stones
A curta vida de repórter de TV
Perigo, tubarão!
Última chamada, Boechat!
Um Twingo para chamar de meu
Segura o choro, Boechat!
Corta o microfone dele!
Você está aí?
Santo remédio
“Vai procurar uma rola!”
“Eu vivo esse momento lindo”
Rio 2016: “Aqui eu conheço”
A tragédia dos frangos
A teoria do vestido verde
“Não me fode, Pablito!”
Eterno cantinho
Coração gigante
Falta no trabalho abonada
Arte e ciência: o mecenas oculto
Pressão! #SQN
A depressão
Fala, Jacaré!
Amigo de Maitê Proença
Mais apuros: socorro!
Boate Kiss: 242 dias de revolta
O Rappa: fã e ídolo
Bom Dia Brasil
Até que en m, férias!
PGN, o Partido da Genitália Nacional
“Black bostas”
A volta às urnas
Paixão pelo futebol e pelo Flamengo
“Perdeu, playboy” – o meme
É muita loucura sem drogas
Che a, prepara o bolso!
Lixo sobre rodas
Foto especial
Neto, me salva!
O apê do Boechat
Petrobras: como se fala mesmo?
Lava Jato: a esperança
A pasta marrom
O submundo dos óculos perdidos
Uma nova agenda
Moedinhas: quem me ajuda?
Mototáxi: o risco calculado
Alguém viu a minha aliança?
Minha mãe, minha ouvinte
Bate-boca entre amigos
Dia de alquimia: a explosão
O futuro do planeta
Rock por Aleppo
Cartilhas e autodescrição
Um dia de sorte
Ligado em Tom e Jerry
Eu pago o baseado
Âncora do Zoonews
“Cala a boca, Boechat!”
Reconhecimento a quem é de direito
Broncas: só sabe quem levou
Na retórica e na inteligência
O amor pela notícia
Amarelo piscante?
Filhos e mais lhos
Milton Neves, o Pitonisa
“Cadê a Paulinha?”
Deixa que eu chuto!
Vendedor de jazigos
A 5ª série B por trás dos microfones
O assalto no viva-voz
Basquete: a bola de papel
Perdeu? Eu também
Jantar entre inimigos: petralhas X coxinhas
“O que é Instagram?”
Almoço sagrado: a hora da família
A espera no alto da escada
Os quilos a mais em São Paulo
O primeiro e último livro
Almofadinha, senão dói
Nunca é tarde para se reinventar
O dia do encontro com Reinaldo Azevedo
Larga a minha cadeira!
Minha cadeira 2: a obra de arte
As escapadas no celular
Duas viaturas, quase cem processos e uma derrota
Margareth e o Brasileirão de 2009
Horror a chefes
O dia do adeus: não era a hora
O velório: amigos, fãs e conforto
O primeiro Dia das Mães sem ele
AGRADECIMENTOS
Foi o acaso que me colocou ao lado do meu grande ídolo, Ricardo Boechat, e
me trouxe aqui para, junto do Eduardo Barão, contar as histórias dele. E
quantas histórias!
Em 2012, quando cheguei à BandNews FM, não imaginava o que viria pela
frente. Saído da Jovem Pan depois de sete anos trabalhando de madrugada e
fazendo o Jornal da Manhã, fui contratado para trabalhar no horário da tarde.
Ufa! Finalmente eu dormiria até mais tarde. O cargo era de editor.
Em pouco tempo, sem perceber, passei a fazer o que mais gostava, e ainda
gosto: investigar. Isso só foi possível graças à ajuda e ao apoio da então chefe de
reportagem e hoje diretora da BandNews FM, Sheila Magalhães. Foi ela quem
me fez acreditar que eu era capaz, e aquilo foi só o começo. Eu não sabia.
De repente, as coisas mudaram, e eu não queria mais dormir tanto. Pela
manhã, acordava às 7:30 horas só para car ouvindo o horário do Boechat e ver
se as minhas reportagens entrariam no ar e seriam comentadas por ele. Eu me
frustrei algumas vezes, mas o acaso quis que, depois de três meses, eu passasse a
trabalhar ao lado dele. Fui convocado pela che a. Tive medo.
Eram muitas dúvidas. Ele tinha a fama de ser muito exigente – e era. Não
bastasse, trabalharia ainda com Eduardo Barão e com a Tatiana Vasconcellos,
dois dos grandes apresentadores do rádio brasileiro. Mais tarde, Carla Bigatto
assumiria o lugar da Tatiana.
Era a minha oportunidade de sugar tudo daquele cara espetacular e, o mais
importante, ganhar a sua con ança. Por isso, não abandonei a investigação.
Sempre arrumava tempo, mesmo quase não tendo algum de sobra.
E, mais uma vez, o acaso se fez presente.
Depois de passar por um dos momentos mais difíceis da minha vida (assim
como ele, tive depressão), me reergui e pensei: é agora ou nunca! Como já fazia
reportagens em São Paulo e tinha acumulado muitos contatos, passei a mexer
com o pessoal do terceiro andar: Executivo, Legislativo e Judiciário.
Boechat acreditou em mim e, para a minha surpresa, fui privilegiado com o
convite para fazer, ao lado dele e do Ronaldo Herdy, a coluna na revista IstoÉ.
Eu tinha ganhado mais uma chance de mostrar o que havia aprendido com ele.
Eu me relacionava com Boechat o dia todo. De manhã, na rádio e, à tarde, na
coluna. Às vezes, recebia ligações dele nos intervalos do Jornal da Band. Queria
tirar dúvidas ou obter alguma informação. Poucos tinham ou tiveram a mesma
oportunidade. Era o meu espelho dizendo o que eu deveria ou não fazer e até
perguntando a mim algo que, acredite, não sabia. Levei muita bronca e garanto
que aprendi com todas. “Pablito, esse tipo de fonte não vai te levar a nada. Liga
direto! Vai na jugular”, dizia.
Como poucos, eu podia falar em nome do Boechat com qualquer um,
autoridade ou não. E como ele era respeitado! Era a chave para abrir qualquer
porta. Eu sentia orgulho e admiração.
E é isso que devemos sentir por ele. Boechat sabia lidar com todos os tipos de
pessoa, independentemente de raça, cor, gênero, credo, língua, opinião ou
classe social. Não fazia diferença. Ao lado disso, ele tinha ojeriza à
desonestidade.
O acaso, o mesmo que me aproximou do Boechat, o levou na tragédia do dia
11 de fevereiro de 2019.
E foi por acreditar nele e no legado que nos deixou que aceitei o convite do
Barão para contar a vocês um pouco da vida do nosso Carequinha de todas as
manhãs. Um pai, um lho, um amigo, um professor e um gigante no
jornalismo.
Eu sou Ricardo Boechat tem um só propósito: manter viva a história dele.
A ESTREIA TARDIA NO RÁDIO
Se tinha algo que Ricardo Boechat valorizava no rádio era a relação com o
ouvinte. E não tinha discussão! Para ele, que costumava dar no ar o número do
próprio celular, a BandNews FM mudou a forma e a linguagem de se
relacionar com quem estava do outro lado do dial.
Para Boechat, as principais pautas da emissora deveriam ser sempre aquelas
que de fato mexiam com o cotidiano e a vida das pessoas. Ele se preocupava
com quem não tinha remédio, com quem não conseguia atendimento em um
hospital, com a burocracia do Estado, com o buraco na rua, com a árvore que
caía. Tudo tinha um lugar na agenda do Boechat. Sem contar os inúmeros e-
mails e mensagens de SMS (ele nunca usou WhatsApp) que ele separava e
encaminhava às produtoras Nana Matos e Letícia Kuratomi. As duas, como
tantos outros, trabalharam dobrado ao lado dele, apurando e dando
andamento ao material que chegava por meio dos ouvintes.
Boechat tinha uma ideia, levou adiante e conseguiu quebrar o jornalismo
engessado que existia no rádio e ainda existe na TV, por questões comerciais e
de tempo, algo que ele tentava mudar quando fazia comentários no Jornal da
Band. O foco na BandNews FM era mudar o modelo. E, mais uma vez, ele
conseguiu!
Dizia que o rádio saiu do campo formal e foi para a esculhambação: não
havia nenhum tipo de código ou timing. Era, para ele, como as pessoas são na
vida real. Ninguém, na avaliação do Boechat, era tão engessado; sempre
poderia haver um acidente de percurso. E era a isso que se apegava. Assim, o
que ele mais gostava de dividir com os ouvintes eram as histórias.
Ricardo Boechat era apaixonado por histórias, independentemente de onde
elas vinham. Poderia ser uma tragédia, como as de Mariana e Brumadinho, em
Minas Gerais, ou um simples pedido de casamento feito no ar. A BandNews
FM era isso para ele. Um espaço dedicado e feito pelos ouvintes para dividir
experiências e contar, da forma mais real possível, o drama ou a alegria de
quem nos acompanhava.
“O povo se identi ca. Dialoga com o rádio”, dizia Boechat. Mas ele tinha
uma frase preferida para resumir tudo isso, que também era e ainda é a
preferida da diretora da BandNews FM, Sheila Magalhães: “A BandNews FM é
uma rádio para você se fazer ouvir”. E era isso que o motivava todos os dias.
... E TOCAR AS PESSOAS
“Pontualmente, sete e meia da manhã. Bom dia, bom dia, eu sou Ricardo
Boechat, essa é a BandNews FM e nós vamos car juntos até às nove e
qualquer coisa da manhã.” A frase era dita diariamente por ele na abertura do
jornal na BandNews FM, que, por curiosidade, nunca teve um nome. Era
apenas o horário do Boechat e o temor do nosso diretor comercial, Vanderley
Camargo, que teve de aprender a lidar com as particularidades do relógio mais
maluco do rádio.
Em qualquer veículo de comunicação do planeta, os horários de anúncios e
patrocínios são como uma espécie de lei: devem ser seguidos à risca. É algo
incontestável. Quando foi a última vez que você viu um jornal de TV terminar
mais tarde porque um apresentador decidiu contar uma última história enviada
por um telespectador? Isso não existe. Só que Boechat nunca seguiu essa lógica.
Pelo contrário, a veia anárquica dele transformava os horários das
programações locais e nacionais, além dos horários comerciais, em um desa o
diário. O cialmente, o horário do Boechat na rádio começava às 7:30 horas e
deveria – isso mesmo, deveria – terminar às 9:00 horas. Quase que
diariamente, no entanto, passava das 9:30 horas, ou seja, um “leve” atraso de
meia hora, invadindo os programas apresentados localmente pela Rede
BandNews FM.
Responsável por explicar a lógica do Boechat aos diretores comerciais que
vendiam os anúncios nas outras cidades, Vanderley Camargo adotou o único
discurso que poderia fazer sentido: “Esqueçam o relógio! Entre sete e meia e
nove horas – ou nove e qualquer coisa – não funciona a hora de Brasília, mas,
sim, o fuso horário do Boechat”.
PROVOCADOR E APOSTADOR NATO
Depois da Operação Lava Jato, iniciada em 2014, dia sim, dia não, a
BandNews FM levava ao ar alguma acusação envolvendo políticos. Podia ser o
presidente, um governador, um deputado ou um senador. Quase que
diariamente, o Ministério Público Federal (MPF) apresentava denúncias ou
detalhes divulgados em delações premiadas, feitas sobretudo por doleiros,
operadores e executivos de empreiteiras.
Um dos pilares sagrados do jornalismo é o de sempre ouvir a outra parte,
nesse caso dar a resposta do acusado, seja dita por ele mesmo ou por seus
advogados. Com Boechat, mais uma vez, não era assim. As broncas dadas no
editor do horário, Pablo Fernandez, tinham o mesmo argumento, e não havia
discussão.
“Pablito, por que você está dando a resposta do Renan Calheiros? É óbvio
que ele vai negar qualquer coisa. Acorda para a vida”, dizia Boechat. Usar áudio
de político se defendendo, então, nem pensar. E isso seguiu inalterado pelos 13
anos de BandNews FM.
Ricardo Boechat entrou no rádio para quebrar paradigmas que ele mesmo,
um dia, até cogitou concordar. Queria algo inovador e menos pautado pela fé
pública – a palavra da autoridade contra qualquer denúncia ou acusação. A
ideia era inverter o polo, historicamente, sempre pendente para as autoridades.
Na BandNews FM, pendia sempre para o ouvinte. Ou seja, quem quisesse que
provasse o contrário.
Como não havia discussão e o volume de acusações, à época, era muito
grande, a BandNews FM adotou uma única tática. Em todos os casos, se
escrevia: “Fulano negou as acusações”. E Boechat aproveitava para esbravejar no
ar.
(P.F.)
BUEMBA!, BUEMBA! A DUPLA COM JOSÉ SIMÃO
“Perdi meu vice amado”, disse José Simão logo após a morte do Ricardo
Boechat.
A química entre os dois foi construída da forma mais simples possível. Antes
do Boechat dividir aquele espaço tão nobre, perto das 8:50 horas, com José
Simão, quem o fazia era o antecessor, Carlos Nascimento. Mas não tinha a
mesma pegada. Parecia algo engessado, sem a esculhambação diária que tornou
o quadro um sucesso nacional.
Logo no início, Boechat admitiu, ao vivo, que estava em pânico. E falou para
Simão: “Olha, Simão, eu estou muito tenso”. Isso porque ele via José Simão
como o principal nome do humor político. Para Boechat, era o cara mais
sacana. Não levava nada a sério. E foi isso que o fez adotar a mesma tática:
“Quer saber, se ele é assim, por que eu vou ser diferente? Liguei o foda-se”. A
coisa, segundo o próprio Boechat, passou a funcionar a partir daquele
momento, quando decidiu levar Simão na “galhofa”, como dizia.
As risadas são incontáveis e, naquele horário, todos os dias, de 2006 a 2019,
não havia tempo ruim. E ninguém, ninguém mesmo, fazia aquilo como o
próprio Boechat. Nem Barão, nem Tatiana Vasconcellos, nem Carla Bigatto,
nem Luiz Megale. Era uma espécie de “volta logo das férias, Boechat”.
E foram anos inesquecíveis. Lembra das imitações de Dilma Rousse e
Fernando Henrique Cardoso? Quem vai se esquecer dos predestinados, das
piadas prontas ou dos breaking news divididos por eles ao microfone? E as
músicas enviadas com exclusividade ao Simão pelos Marcheiros de Campinas,
que faziam paródias maravilhosas? Tinha piada de todos os tipos, e ninguém
era perdoado. Na última coluna, os dois falaram sobre Bolsonaro, Partido
Social Liberal (PSL), Tim Maia, Marcelo Crivella, Pezão e tantos outros.
Um dos áudios antológicos usados na esculhambação veio de um ouvinte
irritado com os dois. E como o programa sempre foi democrático, entrou no
ar: “Vocês ainda estão com essa bosta de Uenga, Uenga?! Vocês acham que o
meu ouvido é penico? É por isso que eu não estou mais ouvindo essa porra de
BandNews. É uma merda mesmo. Vou te falar... Porra, velho, já bisavô, Uenga,
Uenga! Vai pra puta que o pariu! Agora, eu ouço a CBN. Não essa merda de
BandNews [...]. Aqui é o Roberto, de Santo Antônio, Vitória do Espírito
Santo. Toma vergonha na cara”.
O bate-papo com Simão era o único momento em que Boechat se despia de
verdade para dar enormes gargalhadas ao lado do presidente do Partido da
Genitália Nacional (PGN), que, quem sabe um dia, há de ser registrado no
Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Em uma declaração depois da morte do Boechat, José Simão, que continua
no ar comigo todas as manhãs, chorou ao a rmar: “Nossa dupla jamais será
retomada”.
(E.B.)
APOSTA SEM VENCEDOR
Falar de eleições com Boechat era a certeza de um bom papo, com muitas
críticas. Ele mesmo não votava havia anos. Era um crítico feroz do voto
obrigatório. E só voltou às urnas motivado pelo grande movimento popular
que se viu nas ruas em todo o país em 2013.
Antes, no entanto, em mais um momento importante da vida política, não
perderia a oportunidade de fazer mais uma aposta tentadora. Dessa vez foi
comigo – e nada tinha a ver com gostar de um ou de outro candidato.
De próprio punho, Boechat escreveu os termos:
“Eu e Barão, pelo prazer do risco, apostamos hoje, 24 de janeiro, vinhos
Cartuxa (um dos melhores de Portugal), com base nas seguintes hipóteses:
1. Lula é eleito presidente da República este ano: Barão ganha uma garrafa.
2. Lula é derrotado no mesmo pleito: Boechat ganha uma garrafa.
3. Lula vence no primeiro turno: Barão ganha quatro garrafas.
4. Lula não vence no primeiro turno: eu ganho duas garrafas.
Dia 6 de junho de 2008. Pouco depois das 17:00 horas, o carro onde estava o
pequeno João Roberto, na época com três anos, o irmão dele, de apenas nove
meses, e a mãe Alessandra Amorim, foi alvo de 17 disparos feitos por policiais
militares na Tijuca, na zona Norte do Rio de Janeiro. Um dos tiros acertou a
cabeça do menino, que chegou a ser socorrido, mas não resistiu e morreu horas
depois. Em depoimento, os PMs alegaram ter confundido o veículo da família
com o utilizado por criminosos em fuga.
Ricardo Boechat era calejado pelos anos de jornalismo e, por isso, poucas
vezes demonstrava o que estava sentindo no ar. Nesse caso, no entanto, foi
diferente. Quase não se segurou ao entrevistar o pai de João Roberto durante o
programa que fazia diariamente no Rio de Janeiro, logo após o noticiário
nacional.
Na porta do hospital, o repórter Flávio Trindade pôs Paulo Roberto para
conversar com Boechat, de quem era fã. O pai estava aos prantos, mas
transmitia uma lucidez impressionante. Ele contou o que havia acontecido com
o lho e confessou, como não poderia ser diferente, que aquela era a grande
perda de sua vida.
Acostumado com casos de todos os tipos, ainda mais no Rio de Janeiro, onde
vítimas de bala perdida se tornaram mais uma estatística, Boechat sempre fazia
o possível para preservar a notícia. Sempre segurava a onda. Mas, dessa vez, não
segurou. Ele começou a se emocionar e, com a voz embargada, viu seus olhos
se encherem de lágrimas.
O pai de João Roberto era um ouvinte assíduo da BandNews FM e, naquele
momento de emoção, falou uma frase que Boechat passou a repetir muito na
rádio: “Eu não vou deixar o meu Rio de Janeiro. Eu não posso abandonar o
Rio de Janeiro. Se pessoas de bem deixarem a cidade, as pessoas ruins, como
essas que atiraram e mataram meu lho, e os bandidos, vão tomar conta do Rio
de Janeiro. Quem tem que sair daqui são eles. Eu não!”.
Foi essa frase nal que Boechat passou a usar quando outros casos de
violência aconteciam na capital uminense e muitas vezes se recordava do dia
do caso João Roberto como aquele de maior emoção e tristeza que teve no ar.
O dia, entre pouquíssimos, que Ricardo Boechat chegou a perder o foco.
Um dos ex-PMs envolvidos no caso teve a absolvição con rmada três dias
após a morte do Boechat, no dia 14 de fevereiro de 2019. Alegou ter feito
apenas um disparo para o chão. O outro foi julgado em 2015 e condenado a
18 anos de prisão.
CORTA O MICROFONE DELE!
Dia sim, dia também, Ricardo Boechat fazia críticas pesadas ao vivo durante a
programação da BandNews FM. Foi assim que conquistou os ouvintes e se
encontrou no rádio. Não havia um alvo prede nido. A escolha era feita no
momento em que a notícia era levada ao ar.
Alguns casos eram acompanhados de perto por ele, como o do ex-deputado
paranaense Fernando Ribas Carli Filho, que matou dois jovens em um acidente
de trânsito; a tragédia da boate Kiss – assunto para outra nota –, que deixou
242 mortos em Santa Maria, no Rio Grande do Sul; e o desastre de Mariana,
que devastou o distrito de Bento Rodrigues e matou 19 pessoas, em Minas
Gerais.
No Rio de Janeiro, o sumiço da engenheira Patrícia Amieiro era um daqueles
casos que indignavam Boechat. A jovem, então com 24 anos, voltava de uma
festa na zona Sul, não chegou em casa e nunca mais foi vista. Quatro policiais
militares são acusados de disparar contra o carro dela, matá-la e ocultar seu
corpo, além de jogar o veículo no canal de Marapendi. O assassinato aconteceu
em 2008.
Dois anos depois, o então advogado dos PMs, Nélio Andrade, pediu direito
de resposta, e Boechat concordou em lhe dar espaço. O que ele não esperava é
que o defensor dos acusados pelo crime passasse a ofender a imagem da vítima,
dizendo que ela, na verdade, havia morrido na Rocinha porque tinha dívida de
drogas. E mais: quis impor a versão dele a Boechat. Os dois começaram a
discutir.
“Corta o microfone dele! Fecha o microfone desse animal. Agora, você vai
ouvir aí quietinho, seu bandido, advogado de bandido. Você não vai vir aqui
na rádio para car maculando a imagem de uma jovem. Eu não te dou esse
direito de você vir aqui no meu programa e achar que eu vou car me
nivelando a você. Você é vagabundo!”
Nélio Andrade, que morreu em 2016, chegou a entrar com um processo
contra Boechat. Onze anos depois do crime, os PMs ainda aguardam
julgamento.
VOCÊ ESTÁ AÍ?
“Ô, Malafaia, vai procurar uma rola, vai. Não me enche o saco.”
A frase dita ao vivo no programa do Rio de Janeiro levou Boechat ao trending
topics do Twitter e gerou dezenas de memes. O áudio circulou como poucos em
grupos de WhatsApp. Para muitos, nem importava o contexto, apenas a
resposta dada ao pastor Silas Malafaia.
A troca de farpas aconteceu em junho de 2015 e começou quando Boechat
atribuiu à intolerância religiosa a agressão sofrida por uma menina de 11 anos,
apedrejada na cabeça ao sair de um terreiro de candomblé. Para ele, parte disso
vinha de grupos neopentecostais.
Não demorou muito, e o pastor Silas Malafaia postou uma mensagem
direcionada a Boechat no Twitter. Quem mostrou a ele foi a produtora Letícia
Kuratomi.
“Avisa ao jornalista Boechat que está falando asneira, dizendo que pastores
incitam éis a praticarem a intolerância. Verdadeiro idiota. Desa o Boechat
para um debate ao vivo. Falar asneira no programa de rádio sozinho é mole,
deixa de ser falastrão. Não incite o ódio.”
Foi aí que Boechat se irritou e, ao vivo, disse:
“Ô, Malafaia, vai procurar uma rola, vai. Não me enche o saco. Você é um
idiota, um paspalhão, um pilantra, tomador de grana de el, explorador da fé
alheia. E agora vai querer me processar. Você gosta muito de palanque, não vou
te dar palanque porque você é um otário.”
E continuou:
“Não vou fazer debate nenhum com você porque não quero te dar essa
con ança. O que eu falei e repito é que no âmbito de igrejas neopentecostais
estão acontecendo atos de incitação à intolerância religiosa, mais do que em
outros ambientes. Minhas falas estão gravadas, e eu não disse nada que
generalizasse as coisas. Até porque, diferente de você, não sou um idiota.”
Nos bastidores, Boechat sabia que, apesar da repercussão relativamente
positiva entre os ouvintes, tinha ido além do aceitável. Era grave, mas, mesmo
assim, concluiu:
“Você é um homofóbico, uma gura execrável, horrorosa, que toma dinheiro
das pessoas. Você é rico porque toma o dinheiro das pessoas pregando a
salvação depois da morte. Meu salário, meus patrimônios vêm do meu suor,
não do suor alheio. Você é um charlatão, cara, que usa o nome de Deus para
tomar dinheiro dos éis. Não tenho medo de você. Vai procurar uma rola.”
Logo depois, o pastor publicou 34 tweets criticando a fala de Boechat e
postou um vídeo no YouTube, ameaçando processá-lo:
“O jornalista Boechat, no seu programa de manhã, fez uma acusação leviana
e séria, de maneira generalizada. Eu respondi através do Twitter que ele estava
tremendamente equivocado e ainda o desa ei para um debate. Ele perdeu a
linha, me xingou, me difamou. E agora vou dar a oportunidade ao Boechat de
dizer na Justiça aquilo que ele falou de mim no microfone da rádio. No
microfone é molinho, Boechat.”
Silas Malafaia ainda pressionou a direção da Band, mais uma vez pelas redes
sociais:
“Vou perguntar ao meu amigo Johnny, dono da Band, se a política do grupo
é caluniar e difamar pessoas. Uma vergonha!”
De fato, após a troca de acusações, o pastor processou Boechat, e somente em
2016 o caso se encerrou em uma audiência realizada no Fórum da Barra
Funda, na zona Oeste de São Paulo. Ambos se desculparam pelo excesso e cou
tudo bem. O Careca, inclusive, reconheceu que exagerou.
Após a morte de Ricardo Boechat, que era ateu assumido, o pastor
repreendeu os evangélicos que atribuíram o trágico acidente de helicóptero à
vingança divina:
“Não trabalho com deus que se vinga porque alguém me xingou”, disse em
entrevista à Folha de S.Paulo. Malafaia ainda acrescentou que até podia não
concordar com tudo o que Boechat falava, mas era inegável que fora um
grande jornalista.
“EU VIVO ESSE MOMENTO LINDO”
Quem trabalhava com Boechat sabia que aquele era um dia especial. A
BandNews FM comemorava dez anos de vida e a festa aconteceu na cidade
dele e no maior símbolo do Rio de Janeiro: o Cristo Redentor.
A organização foi toda conduzida pelo amigo e então diretor de jornalismo
da Band no Rio, Rodolfo Schneider, com a ajuda e apoio da nossa diretora
nacional, Sheila Magalhães. Tudo parecia muito grande, mas era assim que
tinha de ser.
O jornal da BandNews FM abriu o noticiário das 7:30 horas com Boechat
falando já direto do topo do Corcovado, sob os pés do Cristo Redentor. Estava
acompanhado de duzentos ouvintes e nomes como o cantor Frejat e Falcão,
vocalista de O Rappa, banda que sempre prestou homenagens a Boechat – fã e
admirador do grupo.
Ele próprio quis participar da produção, algo não tão comum. Antes disso,
fez o mesmo em eventos como a campanha de doação de sangue da rádio, que
começou no Rio de Janeiro e depois se estendeu para todas as cidades onde a
BandNews FM está presente.
No dia 20 de maio de 2015, Boechat chegou muito cedo e logo de cara
sentiu o calor humano que vinha dos ouvintes, todos muito emocionados e
envolvidos na comemoração. O dia estava lindo, sem nuvens e sem qualquer
sinal de chuva.
Frejat havia levado o violão e emocionou a galera ao cantar a música Amor
pra recomeçar. Naquele momento, era o coral mais bonito do Rio. E, no nal,
Boechat não sabia que algo estava reservado para ele: entrar e subir no Cristo
Redentor. Ateu, aos 62 anos, aquela era uma experiência ainda não vivida por
ele.
Junto com Rodolfo Schneider, Boechat foi narrando aquele momento para
quem estava do outro lado do rádio. Subindo as escadas do Cristo, colocou a
mão no coração dele por dentro até chegar ao braço direito do maior símbolo
da Igreja Católica no Brasil. Era, com certeza, um dos dias mais felizes da vida
dele, principalmente por tudo o que construiu na rádio.
Lá de cima, Boechat estendeu a bandeira da BandNews FM e cantarolou:
“Quando eu estou aqui, eu vivo esse momento lindo...”.
E, por obra do destino, Boechat não pôde cumprir o que desejou nos braços
do Cristo Redentor: “Tomara que daqui a dez anos eu tenha saúde para voltar e
subir esses andares novamente, desse monumento único, para comemorar, mais
uma vez, um aniversário da rádio”.
RIO 2016: “AQUI EU CONHEÇO”
Com mais de quarenta anos de carreira, Boechat tinha várias teorias para
explicar fenômenos do jornalismo no Brasil e dizer o que era ou não notícia, do
seu ponto de vista. Gostava do factual – o que acontecia no dia –, mas nunca
deixava de sugerir reportagens com base em mensagens de ouvintes da
BandNews FM – a principal fonte dele nos últimos anos.
Foi assim quando denunciou, por diversas vezes, a falta de remédios para
doentes crônicos em postos de saúde, revelou o abuso na utilização de aviões da
Força Aérea Brasileira (FAB) por ministros e outras autoridades e antecipou a
informação de que a Vale sabia do risco de uma tragédia em Brumadinho,
Minas Gerais. Fato é que ele se indignava com tudo e não cansava de cobrar no
ar a responsabilidade de quem quer que fosse.
Em meio à Operação Lava Jato, em seus comentários, uma das coisas que
mais o incomodava era a lentidão da Justiça, sobretudo do Supremo Tribunal
Federal (STF), no julgamento de políticos envolvidos no esquema que saqueou
a Petrobras. Então, ele criou uma historinha para explicar como os advogados
atuavam para fazer com que os inquéritos, denúncias e processos se arrastassem
por anos. Ele a chamava de “teoria do vestido verde”.
A última vez que a utilizou foi em maio de 2017, na coluna que mantinha na
IstoÉ, quando o então presidente Michel Temer se viu diante da maior crise do
seu governo. Na época, o político do Movimento Democrático Brasileiro
(MDB) havia sido agrado dizendo a frase “Tem que manter isso, viu” em uma
conversa gravada por um dos sócios da JBS, Joesley Batista, em um diálogo
sobre a prisão de Eduardo Cunha, ex-homem-forte da Câmara. Sem entrar no
mérito do diálogo, o chefe do Executivo questionou a qualidade da gravação.
Segundo Boechat, esse foi o álibi do emedebista.
Na edição de número 2.475 da revista, ele escreveu:
Todos os dias Boechat seguia uma espécie de ritual antes de entrar ao vivo na
BandNews FM, às 7:30 horas. Na maioria das vezes, ele buzinava na entrada
do pátio e estacionava o velho Twingo por volta das 7:00 horas no
estacionamento da Band. O horário, às vezes, falhava, mas o ritual era
mantido, mesmo que fosse necessário atrasar o início do programa por um,
dois ou dez minutos. Até porque ele sempre colocava a culpa no Barão, a ponto
de a nossa diretora, Sheila Magalhães, cobrá-lo pelo atraso.
Cheio de jornais debaixo do braço, Boechat, sempre que chegava, dava bom-
dia a todo mundo, fazia uma ou outra brincadeira, largava a velha maleta –
lotada de papéis – ao lado da cadeira dele no estúdio e voltava à redação com a
pergunta que não falhava: “Valota, tem café? Te amo”.
Valota é o jornalista Ricardo Valota, que já passou por várias redações, como
as do O Estado de S. Paulo e da Jovem Pan, fazendo a checagem de ocorrências
policiais e que trabalhou nas madrugadas da BandNews FM. Boechat tinha o
costume de dizer que se casaria com ele caso o café estivesse incluído no pacote.
Curioso é que Boechat sequer enchia o copo. Ele tomava um dedo de café,
nada além disso. E lamentava sempre o fato de às segundas-feiras Valota não
encontrá-lo na redação, por estar de folga.
Com o cafezinho na mão, Boechat saía junto comigo para fumar um cigarro
e ler os jornais. No caminho, perguntava: “Pablito, tem algo novo?”.
Se havia, eu adiantava o assunto. Às vezes, ele pedia alguma informação
maluca – impossível de apurar em tão pouco tempo – que só cava pronta
quando Boechat já estava no ar.
Por mais incrível que pareça, por vários anos, sentamos ele e eu, diariamente,
em um cano do estacionamento – que evitava que os carros destruíssem o
jardim da Band – e, ali, no chão mesmo, ele despejava todos os jornais. Lia ao
menos três: Folha, Estadão e O Globo. Era o momento de ele saber o que estava
acontecendo e o que poderia comentar ao longo do programa. Invariavelmente,
pedia uma informação adicional ou algum dado especí co para utilizar no ar.
O mesmo fazia quando havia algum áudio interessante que pudesse compor o
material.
Pouco antes da tragédia, no entanto, alguém pensou na idade do Boechat, já
um sessentão. Com um tijolo e um pedaço de madeira, o cinegra sta Anísio
Barros criou uma espécie de banquinho e o nomeou como “Cantinho do
Boecht” – isso mesmo, sem a letra a. Eu me lembro da felicidade dele no
primeiro dia que o viu: “Pablito, sabe quem fez?”.
Eu também não sabia. Descobri junto com ele, já em 2019. Eu continuei no
cano, no meu espaço diário de aprendizado.
Com café tomado, cigarro fumado e notícias lidas, Boechat voltava para a
redação, abria a porta do estúdio e começava o programa: “Bom dia, bom dia,
eu sou Ricardo Boechat, essa é a BandNews FM...”.
Mesmo após a morte do Boechat, o cantinho dele continua como uma
espécie de homenagem no pátio da Band.
(P.F.)
CORAÇÃO GIGANTE
Além do carisma, Boechat tinha algo que não se vê tanto no meio jornalístico.
Muitos se acham acima do bem e do mal e utilizam o prestígio, com
frequência, para se afastar do público. Sabe aquele que não conversa, não dá
autógrafo, passa reto? Então, não era o tipo do Boechat.
Uma das histórias mais surreais dele envolveu uma crítica de cinema. Ieda
Marcondes pegou com Boechat, em 2015, um voo entre Rio de Janeiro e São
Paulo. Num primeiro momento, Ieda apenas admirou: “Ao entrar no avião, vi
Boechat na primeira cadeira”.
Ela não contava, no entanto, que o mau tempo na cidade de São Paulo faria
com que o avião tivesse que voltar ao Rio de Janeiro. Ao retornar para o
Galeão, foi obrigada a remarcar o voo e ir para o hotel indicado pela
companhia aérea, onde passou a noite. Era domingo. Na segunda-feira, Ieda
tinha que estar no trabalho e não se sabe por que a companhia aérea não
entregou a ela um documento que justi casse a sua ausência. Falta garantida!
Foi então que ela teve a ideia de enviar uma mensagem de e-mail para
Boechat, já que ele estava no voo entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Ela pedia
que respondesse à mensagem para se explicar no trabalho.
Ieda não contava com o inusitado. Boechat leu a mensagem e decidiu ir
pessoalmente conversar com a chefe da crítica de cinema: “Eu estava sentada
trabalhando na empresa e me avisaram que ele tinha ido até lá e queria falar
comigo”.
Nas redes sociais, ela relembrou aquele dia:
Ieda não só teve a falta abonada pela chefe – o que era de esperar –, como
ainda tirou uma foto com Boechat. Depois daquilo, conta que virou piada: “A
Ieda traz o Boechat aqui para compensar”.
ARTE E CIÊNCIA: O MECENAS OCULTO
Boechat estava estranho como nunca se tinha visto. Ele havia acabado de voltar
das férias. Passou uns dias no apartamento dele, em Nova York, e comentou
que mal tinha saído para passear: “Só saía para almoçar, voltava e dormia
muito”.
Não era normal. A cada dia, o editorial de abertura, sempre brilhante todas as
manhãs, se tornava um fardo, como se ele estivesse diariamente escalando o
Everest. Eu tentava brincar, tirar sarro, divertir. Mas ele não reagia, apesar de
fazer um esforço sobre-humano para parecer normal.
“Vai ver isso, Boechat. Deve ser algo fácil de resolver.”
“Não tenho nada, Baronete. Não sinto dor.”
“Já tive um amigo que teve e só se curou com ajuda. Procure um médico.”
Ele não procurou e sofreu durante semanas, piorando a cada dia. Era visível
que não estava bem, apesar de nunca deixar transparecer no ar. Era um
sofrimento para ele e para nós, que víamos todos os dias aquela fortaleza de
vida se transformar em um ser humano frágil, quase indefeso. Muito triste.
Um dia, faltando poucos minutos para o noticiário ir ao ar, ele não havia
conseguido encontrar, em meio aos jornais, alguma notícia para fazer seu
comentário: “Baronete, hoje não vai dar. Nada está fazendo sentido”. E foi do
estúdio direto para o camarim, onde se trancou e só saiu horas depois quando a
Doce Veruska chegou.
Foi uma barra-pesadíssima. Primeiro, porque tivemos de tocar a rádio por
mais de um mês preocupados com a recuperação dele. Segundo, porque não
dissemos no ar que Boechat estava se recuperando de uma depressão. Não
tínhamos esse direito. Só que isso abriu espaço para todas as teorias de
conspiração, inclusive a de que a Band teria se rendido às exigências de algum
político e censurado Boechat por algum ataque. Isso nunca aconteceu!
Felizmente, após ser tratado, Boechat voltou. Ele nunca cou curado, mas
aprendeu a lidar com os males da depressão e largou os remédios. Mesmo
assim, a tristeza ainda batia forte em alguns dias.
Após ler esta carta no ar, Boechat se tornou referência e deu voz para muita
gente que sentia vergonha de falar sobre o assunto:
Acho que devo uma explicação às centenas de pessoas que me escreveram nos
últimos dias perguntando o que eu tinha e desejando minha pronta
recuperação.
Pois bem, queridos amigos, o que eu tive foi um surto depressivo agudo.
Minutos antes de começar o programa de rádio da quarta-feira retrasada eu
simplesmente sofri um colapso, um apagão aqui no estúdio. Nada na minha
cabeça fazia sentido. Nenhum texto era compreensível. Os pensamentos não
fechavam e uma pressão insuportável dava a nítida sensação de que o peito ia
explodir. Fiquei completamente desnorteado e achei melhor me refugiar no
meu camarim e esperar socorro médico. Quando nalmente minha Doce
Veruska me levou ao doutor e eu descrevi o que estava sentindo, ele foi
categórico em dizer que era depressão. Que o estado de pânico, a balbúrdia
mental, a insegurança e tudo o mais eram sintomas clássicos do surto
depressivo.
Quem cai num quadro desses perde qualquer condição de continuar ativo, de
pensar as coisas mais simples. A pessoa morre cando viva.
E eu quei impressionado nestes dias com a quantidade de gente que sofre do
mesmo problema. Quando contei a alguns ouvintes que me ligaram o que
estava acontecendo, muitos disseram já ter passado por isso, ou conhecer
alguém que ainda passa ou já passou.
Barão me mostrou um vídeo produzido pela ONU indicando que esse
fenômeno é global. Uma amiga minha citou números da Organização Mundial
da Saúde a rmando que a depressão é a doença que mais cresce no mundo. E
Bruno Venditti me mandou um texto muito bom do pregador Élder Holland
sobre o assunto.
Tanto o vídeo da ONU quanto esse texto deixam claro que é importante não
esconder a doença, não esconder a depressão. Não tratá-la na clandestinidade.
É importante aceitá-la para combatê-la ‒ e todo o silêncio, do próprio doente
ou de quem está à sua volta, di culta a recuperação. Essa necessidade de não
fazer segredo, além da sinceridade que faço questão de manter na relação com
os ouvintes, é a razão deste depoimento pessoal.
O texto que eu li fala do “transtorno depressivo maior”, lembrando que isso
não signi ca apenas um dia ruim, ou um contratempo, ou momentos de
desânimo ou ansiedade, que são coisas que todos temos normalmente.
A depressão é muito mais que isso e muito mais séria. É uma a ição tão
severa que restringe a capacidade de uma pessoa funcionar plenamente, um
abismo mental tão profundo que ninguém pode achar que vai se safar apenas
endireitando os ombros ou pensando coisas positivas.
Não, minha gente, essa escuridão da mente e do estado de espírito é mais do
que um simples desânimo. É um desequilíbrio da química cerebral, algo tão
físico quanto uma fratura óssea, ou um tumor maligno. É um fenômeno que
atinge todo mundo: quem perde um ente querido, mães jovens com depressão
pós-parto, estudantes ansiosos, militares veteranos, idosos de uma maneira
geral e pais preocupados com o sustento da família.
A depressão não escolhe vítimas por seu grau de instrução ou situação
econômica. Castiga sem piedade e da mesma forma pobres e ricos, anônimos e
famosos.
Os médicos que estão me tratando disseram que eu estiquei a corda demais,
que z mais coisas do que deveria fazer e em menos tempo do que seria
razoável. Eu fui além dos limites que minha saúde permitia e ignorei todos os
sinais físicos e avisos domésticos. Quantas vezes minha Doce Veruska me disse:
“Você vai pifar! Você vai pifar!”...
O texto que eu li ensina que para prevenir a doença da depressão é preciso
estar atento aos indicadores de estresse em sua própria vida. Assim como
fazemos com nosso carro, é fundamental observar a temperatura do nosso
motor interno, os limites de nossa velocidade, ou o nível de combustível que
temos no tanque. Quando ocorre a “depressão por exaustão”, que foi o meu
caso, é preciso fazer os ajustes necessários. A fadiga é o inimigo comum e
recuperar forças passa a ser uma questão de sobrevivência.
A experiência mostra que, se não reservarmos um tempo para nos sentirmos
bem, sem dúvida depois teremos que despender tempo passando mal. E foi o
que aconteceu. Mas a cura existe. Às vezes requer tratamentos demorados. Mas,
como está no texto que eu li, “mentes despedaçadas também podem ser
curadas, assim como corações partidos”.
Eu sei que quem liga o rádio numa estação de notícias quer receber
informações de interesse geral, quer saber da política, da economia, dos
acidentes, do engarrafamento nosso de cada dia.
Então peço desculpas por não entregar nada disso a vocês neste papo inicial
no dia de minha volta. Nada de impeachment, de renúncia, de Cunha, de
Renan, de in ação, de ajuste scal e de tantas outras coisas que só têm
infernizado nossas vidas, mas que são as manchetes do momento.
Não falei neste bate-papo nem mesmo das abobrinhas de que eu gosto tanto
e que nos ajudam a cumprir a jornada diária sofrendo menos.
Este papo de hoje é sobre depressão. Um mal que afeta milhões de pessoas,
milhares delas no Brasil, um mal sobre o qual é preciso estar informado e não
fazer segredo.
Como eu agora me descobri fazendo parte dessa população doente, pensei
muito nas noites sem dormir dos últimos dias e tomei a decisão de dividir essa
experiência com vocês. Se com isso eu conseguir ajudar algum ouvinte a
prevenir a depressão ou a curá-la, já me dou por satisfeito.
E toca o barco.
Na última entrevista que me deu, ele disse que, depois dessa revelação, passou
a ser convidado para dar palestras sobre depressão, mais do que qualquer outro
assunto. E brincou: “Se soubesse que a depressão me daria essa grana, já teria
tido há muito tempo”.
(E.B.)
FALA, JACARÉ!
Não bastasse ser preso na ponte Rio-Niterói, Ricardo Boechat passou outro
apuro com a amiga, a atriz Maitê Proença. Os dois estavam na estrada e
pararam para socorrer um homem que havia sido atropelado.
Foi uma semana com vários desabamentos no Rio de Janeiro e os
atendimentos de emergência estavam todos lotados. Demorou, mas eles
conseguiram uma vaga para aquele homem e um médico que pudesse atendê-
lo.
Na saída, dois policiais falaram com eles, e um sugeriu:
“Quem garante que não foram vocês que atropelaram aquele homem?”
Nervosa, Maitê quis pular no pescoço do policial. Foi segurada pelo amigo e
compadre, em um momento que ela mesma classi cou como de grande a ição.
O homem sobreviveu.
BOATE KISS: 242 DIAS DE REVOLTA
Naquela época, Boechat foi chamado pelo O Rappa para escrever o texto que
apresentaria o novo CD da banda. Ele cou envaidecido com o convite, mas
exagerou na mão. Escreveu um texto tão grande que a mensagem não coube no
espaço reservado pela banda. O problema é que o grupo gostou tanto que
mandou refazer a arte do disco para incluir o texto completo. Boechat, como
era, conseguiu atrasar a venda do CD. Ainda em 2013, abriu um dos shows
d’O Rappa no Rio de Janeiro, sem saber que o faria. Foi chamado ao palco de
última hora. Ficou tremendo, mas não resistiu. A galera foi ao delírio.
“O coração de 61 anos foi submetido a duas grandes emoções. A primeira,
quando O Rappa me convidou para apresentar o disco de vinte anos. A
segunda, lá no camarim, o pessoal da banda perguntou: quer encarar o público
e anunciar a entrada d’O Rappa? Eu tremi e estou tremendo agora, mas não
resisti à tentação. E queria dizer para vocês o seguinte: nunca tem m mesmo.
A luta continua, minha gente.”
A ideia foi tão bem-recebida que, cinco anos depois, na última turnê da
banda, todos os shows d’O Rappa foram abertos por Ricardo Boechat.
Gravada, a mensagem era exibida no telão antes mesmo da entrada de Falcão,
Lobato, Xandão e Lauro Farias. Era a despedida do grupo depois de 25 anos, e
ele, mais uma vez, estava lá:
Boechat tirava férias duas vezes por ano. Com as pequenas Valentina e Catarina
na escola, sempre saía em janeiro e julho. Essa rotina era sagrada para ele, mas
nem sempre foi assim.
Antes disso, quando começou na carreira pro ssional, as coisas eram bem
diferentes. Boechat trabalhava no Diário de Notícias com um dos colunistas
mais respeitados do Brasil, Ibrahim Sued. Era o início da vida de jornalista e,
por nove anos, ele não tirou férias. Admitia que tinha medo.
Boechat achava que, se tirasse uns dias de descanso, seria demitido pelo Turco
logo na volta. Jornalista não tirar férias, por mais absurdo que possa parecer
hoje, era uma prática comum no mercado. E alguns, de fato, foram demitidos
por tirarem férias em outras épocas, em meio aos 48 anos de jornalismo de
Boechat.
Além do medo da demissão, Boechat não tirou outros períodos de férias
durante muito tempo pelos motivos mais diversos. Mas recentemente
mostrava-se arrependido: “Tem que tirar. É uma questão terapêutica”.
Segundo Boechat, além de ser um direito, é preciso dar uma desligada. No
último período de férias, antes da tragédia, falou comigo fora do ar: “Barão, eu
não aguentava mais”.
A expectativa era como ele encontraria o mundo – ou o Brasil – depois de
viajar para Alhures e Nenhures, como dizia. Fato é que nada mudava: “Saí,
voltei e tudo continua igual”. Esse era, no retorno, religiosamente, o assunto de
abertura do jornal na BandNews FM, como foi no dia 21 de janeiro de 2019,
ao falar do enrosco envolvendo o senador Flávio Bolsonaro e o ex-assessor
Fabrício Queiroz.
Dizia, ao voltar, que “os políticos ainda são políticos, os governos ainda são
governos e as tragédias ainda são tragédias” e, o mais importante: “a
esculhambação ainda é esculhambação”.
(E.B.)
Retratos de infância: Mercedes e Dalton estão com os filhos mais velhos: Beatriz, Ricardo e
Carlos Roberto (no alto); Carlos Roberto e Ricardo aparecem no colo do pai e na bicicleta
(acima).
Dalton e Mercedes tiveram sete filhos. Na foto, estão com Beatriz, Ricardo (atrás, no centro),
Carlos Roberto (atrás, à direita), e Sérgio e Alexandre (à frente). Os dois caçulas, César e
Dalton Filho, não tinham nascido ainda.
Boechat começou a carreira no Diário de Notícias, em 1971, ao lado de Ibrahim Sued, que
inovou o colunismo social (no alto).
Os furos, as notas exclusivas e os muitos prêmios o levaram do jornalismo impresso para a TV.
Em 1983, ele ganhou uma coluna em O Globo e, em 1996, passou a fazer o Bom Dia Brasil, na
TV Globo.
No estúdio do Jornal da Band: Boechat entrou para o grupo em 2005, inicialmente na
BandNews FM do Rio de Janeiro.
Em 2012, os irmãos se reuniram para comemorar os oitenta anos de dona Mercedes.
Da esquerda para a direita: César, Sérgio (sentado), Carlos Roberto, Ricardo, Alexandre e
Dalton Filho.
Foi no Encontro Internacional do Vinho do Espírito Santo, em 2003, que Boechat conheceu
Veruska, na época colunista do jornal Gazeta de Vitória. Os dois passaram a trocar mensagens
e o namoro começou um mês depois, em uma viagem a trabalho que ela fez ao Rio de Janeiro.
Amor incondicional: Boechat, Doce Veruska e as filhas Valentina (nascida em 2006) e Catarina
(em 2008). Na foto do meio, aparece também a spitz alemã Nina.
Um abraço em Ricardo Valota, colega da BandNews FM e responsável pelo café que Boechat
tomava todas as manhãs. A diferença era de 22 centímetros (1,90 e 1,68 metro), mas Boechat
fez Barão se tornar um gigante. À direita, a cadeira que virou obra de arte pelas mãos de Alê
Jordão.
Dois times que o amenguista Boechat adotou: Portuguesa e América Mineiro. Acima, com
Barão: pânico e galhofa na conversa com José Simão.
No alto do Cristo Redentor em 2015: “Eu vivo esse momento lindo”; Boechat divertia a
redação com a camiseta do PGN, partido criado por ele, ou com suas brincadeiras.
Boechat também fazia desenhos e escrevia bilhetes daqueles de “tirar as crianças do carro”.
Uma maratona para pegar em casa os ingressos do show dos Rolling Stones, no Morumbi:
Boechat foi com Veruska e Barão com Michelle (à esquerda). À direita, com a diretora de
jornalismo da BandNews FM, Sheila Magalhães.
O apego pelo Twingo: Boechat teve dois, um prata e outro meio azul, meio roxo, igual a uma
berinjela. Ele dizia que o carro cumpria bem sua tarefa: “levar e trazer”.
À direita, a linda homenagem do jornal Metro ao Senhor Jornalista.
Nos eventos da BandNews FM. Boechat dava atenção a todos os ouvintes. Distribuía abraços
e sorrisos.
No estúdio, ao lado da apresentadora Carla Bigatto. Retornando das Olimpíadas do Rio-2016,
Boechat faz uma demonstração de carinho para o fotógrafo Barão. Rodolfo Schneider ao lado
de dona Mercedes.
Boechat encontrou um cantinho no estacionamento da Band para ler os jornais, tomar café e
fumar todas as manhãs.
Era onde fazia reuniões com Letícia Kuratomi e Pablo Fernandez (à direita). Hoje o local
ganhou uma placa em sua homenagem (à esquerda).
Boechat é um dos maiores ganhadores da história do Prêmio Comunique-se, considerado o
Oscar da imprensa brasileira. Foram 18 troféus ao todo.
No dia da morte, a homenagem dos colegas: todas as redações do Grupo Bandeirantes
pararam para aplaudir Boechat no encerramento do Jornal da Band.
PGN, O PARTIDO DA GENITÁLIA NACIONAL
Desde que entrou da BandNews FM, Boechat sempre foi ácido, direto,
agressivo. Lembro que não se conformava com a passividade do povo brasileiro,
apesar de todas as barbaridades praticadas por políticos de partidos diversos.
“Tem que jogar tomate no carro o cial do deputado. Tem que ir na porta do
salão de beleza da primeira-dama e protestar para causar constrangimento. Tem
que parar de assistir a tudo com nariz de palhaço. Tem que sair de trás dos
computadores e ir às ruas.”
Tudo isso Boechat falou por anos na rádio desde meados de 2006. Uma
entrevista dada ao site Pato com Laranja, em junho de 2012, ganhou
repercussão inesperada e também rendeu uma acusação leviana contra ele.
Boechat disse: “Essa realidade só vai mudar se a população tirar a bunda da
cadeira, se a população for para a rua, se a população botar a boca no
trombone, se a população denunciar, se a população atacar, partir para o
contra-ataque”.
Muitos analistas políticos disseram que as palavras do Boechat eram o
prenúncio das manifestações que vieram em 2013. Mas outros o acusaram de
ter sido um incentivador de um movimento mais agressivo, o dos black blocs:
“Eu sou favorável a arranhar carro de autoridade, eu sou favorável a jogar
ovo, sou favorável à revolta, a quebra-quebra e o caralho. Ah, mas isso é
vandalismo! Vandalismo é o cacete! Vandalismo é botar as pessoas quatro horas
nas las das barcas todos os dias. Vandalismo é mandar segurança baixar a
porrada em passageiro da Central do Brasil, que não aguenta mais ser tratado
como gado. Isso é que é vandalismo! Vandalismo é roubar como um
condenado o dinheiro público. Vandalismo é matar meu lho dentro do
hospital público por falta de médico e remédio. Isso é vandalismo.”
E continuou:
“Acho que tem de perturbar a família deles. Quando entrar em restaurante,
tem que vaiar e por aí vai. Na Argentina, quando um torturador, já velhinho, ia
para o teatro, na porta se reunia uma galera e começava a gritar: ‘Esse é fulano
de tal, matou beltrano, torturou sicrano, arrancou unha com alicate’. Então
cava esse constrangimento, e isso ajuda porque se cria uma consciência crítica
nos mais novos.”
As declarações, que eram frequentes na rádio, levaram inconsequentes a dizer
que Boechat foi incentivador de ações violentas de grupos de black blocs, os
arruaceiros mascarados que aproveitavam a multidão para quebrar patrimônio
público e saquear lojas em meio às manifestações.
Boechat estava incomodado com a acusação e chamava os mascarados de
“black bostas”. Ele esclareceu a situação em uma entrevista dada a mim no
canal Barões do Rádio, no YouTube:
“Eles aproveitaram uma entrevista que eu tinha dado antes e recuperaram no
meio das manifestações, sugerindo que eu estava endossando aquilo, e não é
verdade. O black bloc é uma deformação priápica, acho que tem a ver com
juventude. É aquela testosterona da garotada que transforma qualquer coisa
que você não aceite no campo da sua avaliação pessoal num inimigo a ser
abatido, a ser destruído. O que eu nunca preguei. Eu estava fazendo uma
conclamação a uma reação mais hostil mesmo, física mesmo, mas contra o
Estado e seus agentes. E não contra a banca de jornal, não ao orelhão, não à
vitrine da loja de dona Juventina. Teve ato de black bloc que quebrava vitrine
para roubar lingerie. Que ação política é essa?”
Boechat não gostava da comparação porque sabia diferenciar o vandalismo da
crítica política.
(E.B.)
A VOLTA ÀS URNAS
Virava e mexia, Boechat tinha algum compromisso fora de São Paulo. Eram
eventos, festas da rádio, palestras ou audiências na Justiça. Ele se tornou o
jornalista mais premiado pelo Comunique-se, o chamado Oscar do jornalismo.
Recebeu 18 troféus e foi coroado mestre em três categorias: Âncora de Rádio,
Colunista de Notícia e Âncora de TV.
Nas cerimônias, Boechat tinha o costume de conversar – e muito –, debater
assuntos do cotidiano, dar entrevistas e tirar fotos com amigos, admiradores,
colegas de trabalho e fãs. Ele não perdia uma história nem a oportunidade de
contar alguma a quem interessasse. E, como se sabe, valorizava muito esse
contato pessoal.
Em uma das premiações, Boechat sabia que precisava sair cedo porque, no
outro dia, deveria estar em Curitiba, de onde apresentaria o noticiário da rádio
às 7:30 horas. Ele tinha um voo agendado naquela noite e a diretora de
jornalismo da rádio Sheila Magalhães, que estava no evento, percebeu que não
daria mais tempo. E mais: não haveria outro voo depois daquele. Enquanto
isso, Boechat seguia falando com todo mundo – e como falava... E não faltou
alerta: “Ah, deixa comigo!”.
Além do noticiário, ele tinha uma audiência na Justiça – das várias às quais
compareceu – no único caso que perdeu, para o senador Roberto Requião
(MDB), ao chamá-lo de corrupto e de outras coisas mais para defender um
repórter da Band à época que acusou o ex-governador de dar um soco nele e de
arrancar o seu gravador.
Depois da festa, ninguém sabia para onde tinha ido o senhor Ricardo
Eugênio Boechat. Pela manhã, Sheila ligou para o então chefe de redação,
Bruno Venditti, e perguntou se ele tinha alguma notícia de Boechat. A resposta
foi não.
Quando o relógio marcou 7:30 horas, o microfone se abriu e ele mandou ver:
“Bom dia, bom dia, eu sou Ricardo Boechat, esta é a BandNews FM e nós
vamos car juntos até às nove e tanto da matina [...]. E che a, prepara o bolso,
porque eu vim de táxi para Curitiba.”
Mais uma vez, o inesperado. E ele mesmo contou que foi dormindo de São
Paulo até lá. E, na volta, ainda levou a conta. Perto das 17:00 horas, depois de
passar parte do dia em Curitiba, o próprio Boechat foi até Jaqueline Moss,
nossa secretária de redação, e apresentou a notinha: o táxi custou 927 reais, sem
incluir a passagem perdida.
Sheila, claro, cou muito brava. O gasto acabou com a caixinha do mês.
“E aí, Boechat?”
“Fui de táxi, minha preta.”
“Você está de sacanagem, velho?”
“Porra, Boechat, o quê? Não era para estar às sete e meia da manhã em
Curitiba? Eu estava...”
A Band pagou tudo.
LIXO SOBRE RODAS
Boechat tinha um lema: tratar os ouvintes com o mesmo carinho com que eles
tratavam a rádio. Ele não fazia distinção e dava atenção para todo mundo.
Todo mundo, mesmo!
Em maio de 2017, a BandNews FM completou 12 anos e fez uma festança
no parque Villa-Lobos, na zona Oeste de São Paulo. Estávamos todos lá.
Sempre que Boechat chegava era aquele furdunço. Todo mundo queria
conversar e tirar foto com ele. Como diz a nossa diretora Sheila Magalhães, um
fenômeno: “Boechat nunca quis que colocasse segurança nos eventos”. Antes,
até tinha algum tipo de barreira, mas ele mandou tirar. Era uma coisa que não
queria.
No dia do evento, entre os ouvintes, um deles se destacou. Sheila estava ao
lado do Boechat quando um senhorzinho, bem idoso, se aproximou dele e
falou:
“Ah, Boechat, meu sonho é tirar uma foto com você. Mas eu não tenho
máquina fotográ ca, eu não tenho celular, eu não tenho essas coisas de e-mail.”
“Não seja por isso”, disse ele. “Sheila Magalhães, está com o seu celular aí?”
“Sim, estou.”
“Então tira uma foto minha com ele aqui.”
Sheila obedeceu. E Boechat chamou o ouvinte:
“Escreve aqui no papel o endereço da sua casa porque a gente vai mandar a
foto pelos Correios para você.”
Mais uma vez Sheila concordou e ouviu:
“Olha, Magalhães, estou entregando na sua mão. Não vai perder isso. Vamos
mandar a foto para a casa dele.”
Dito e feito. Quando chegou a segunda-feira, Sheila mandou revelar a foto –
uma coisa cada vez mais incomum – e enviou, assim como foi pedido, pelos
Correios.
Esse era o tipo de preocupação do Boechat. A foto, provavelmente, está
guardada em um bom lugar.
NETO, ME SALVA!
Por ser uma rádio nacional, a BandNews FM sempre teve pro ssionais de
qualidade espalhados pelo país. Como a cabeça de rede, como chamamos a
sede, ca em São Paulo, jornalistas que se destacam nas redações de outras
cidades recebem convites para integrar a nossa equipe na capital paulista.
O primeiro que fez esse movimento foi Guilherme Calil, que atualmente está
na GloboNews e por anos cumpriu as mais variadas funções no Rio de Janeiro,
inclusive a de ser produtor do programa do Boechat por lá.
Logo que veio para São Paulo, em novembro de 2007, Calil se adaptou
rapidamente. Por sua competência e carisma, ele passou de produtor da rádio
ao cargo de âncora, apresentando os jornais da BandNews FM.
Em junho de 2009, ele chamou toda a galera da redação para ir ao seu
casamento com Marcelle Ribeiro, que também é jornalista, no Rio de Janeiro.
À época, eu era chefe de redação e Luiz Megale apresentava o jornal com
Boechat pela manhã. Quando falamos que íamos ao Rio para o casamento do
Calil, Boechat ofereceu o apartamento dele no Leblon, o que aceitamos com
alegria – muita alegria. A outra parte da redação se arrumou em albergues e
hotéis da cidade.
Pegamos um avião numa sexta, o casamento era no sábado e a volta no
domingo. Megale foi com a esposa, Aninha, e eu fui com a minha Michelle e o
meu lho mais velho, Rafa, que tinha menos de um ano de idade.
Nos instalamos no apê do Boechat e partimos em busca de um boteco. Para a
nossa alegria, exatamente ao lado do prédio descobrimos as delícias do bar
Belmonte, onde bebericamos até altas horas.
Na volta, já no apartamento de novo, Megale descobriu a senha de acesso aos
canais eróticos na TV por assinatura do quarto do Careca.
“Não é difícil. Botei ‘1234’ e já apareceu tudo.”
No sábado, dia do casório, zemos o tradicional passeio de turistas no Rio.
Fomos ao Corcovado, ao Cristo Redentor e, na teoria, já era hora de voltar
para almoçar no boteco ao lado do apartamento e então nos arrumarmos para a
cerimônia.
Megale e eu nos sentamos para almoçar ‒ e beber ‒ lá pela uma da tarde e só
saímos de lá por volta das oito da noite. A cerimônia de casamento estava
marcada para as 17:00 horas, na Igreja São José, no centro da cidade. Ou seja,
fomos ao Rio exatamente por causa do casamento do nosso amigo e não
aparecemos, nem para dar um alô para nossas esposas.
Nós nos arrumamos rapidamente para pelo menos ir à festa do casamento em
um espaço no Alto da Boa Vista, na zona Norte. O problema – mais um ‒ é
que vários taxistas se recusaram a fazer o trajeto, dizendo que o lugar era escuro
e ermo, o que não é agradável de ouvir, ainda mais com um bebê a tiracolo.
Quando nalmente um corajoso taxista aceitou a corrida, lá fomos nós com
certo receio ao espaço reservado para a festa. Já estávamos alcoolizados. No
trajeto conversamos animadamente sem falar quem éramos, tampouco que
trabalhávamos na BandNews FM, que nessa época tinha apenas quatro anos no
ar.
Na hora de desembarcar no local da festa, pagamos a conta e o taxista falou:
“Vou falar pro Boechat que você e o Megale estavam bêbados aqui no Rio”. E
deu risada.
O taxista havia nos reconhecido apenas pelas nossas vozes. Na hora, mesmo
alcoolizados, sacamos o quanto a rádio e Boechat já eram populares na Cidade
Maravilhosa.
(E.B.)
PETROBRAS: COMO SE FALA MESMO?
Com tantas mazelas no cenário político, a Lava Jato, na cabeça do Boechat, era
o início de algo que poderia, de vez, mudar a história do Brasil. Não raro, ele
lembrava no ar de outras operações, como a Satiagraha e a Castelo de Areia
(embriões da Lava Jato), que não deram em nada por obra da lentidão da
Justiça e das artimanhas utilizadas por advogados para atrasar ou anular as
investigações. Foi o que aconteceu.
Eu, assim como Ronaldo Herdy, escrevia a coluna da IstoÉ com ele e quase
toda semana tinha alguma nota exclusiva da operação conduzida pelo
Ministério Público Federal do Paraná. O trabalho era difícil, garanto. E, claro,
ele gostava. Mas tinha um lado que incomodava Boechat: a exposição midiática
de fatos que poderiam apenas ter sido revelados sem coletivas ou PowerPoint.
Em 2014, quando foi de agrada a primeira fase da operação, eu já era o
editor do horário dele na BandNews FM, trabalhando ao lado do Barão, da
Tatiana Vasconcellos e do chefe de redação Bruno Venditti e, por gostar demais
do assunto, me aprofundava cada dia mais. O objetivo era trazer o máximo
possível de informações ou algum material exclusivo. Boechat gostava dos
números. “Quantos presos? Qual o valor devolvido? Quantos são
investigados?” E ainda outros dados que dariam munição às aberturas feitas por
ele no jornal da BandNews FM.
Em maio de 2018, a rádio concordou em me enviar para Curitiba. O
objetivo era eu me encontrar com os principais personagens da Lava Jato, como
o próprio juiz Sérgio Moro, o procurador da República, Deltan Dallagnol, e
advogados dos investigados e delatores. A viagem foi perfeita.
Na época, o agora ministro Sérgio Moro andava muito ocupado, mas aceitou
me receber por alguns minutos. Conversamos sobre diversos assuntos e, ao
falarmos do Boechat, que era um fã da Lava Jato, ele lembrou: “Eu gosto muito
do Boechat, é um ótimo jornalista, um defensor da Lava Jato, mas outro dia fez
várias críticas sobre uma entrevista que eu dei. Eu não me esqueço”.
Lembrei que, para Ricardo Boechat, independentemente de quem fosse, juiz
não deveria dar palestras ou entrevistas. Tanto é que ele nunca o entrevistou,
apesar da admiração que tinha pelo trabalho desenvolvido por Sérgio Moro.
Logo após a escolha do então juiz para a equipe de Jair Bolsonaro, Boechat
disse esperar que a Lava Jato avançasse mais ainda no combate à corrupção e,
veja só, elogiou a entrevista coletiva dada por Moro aos jornalistas. O ministro
falou por mais de duas horas.
Mas, agora, ele podia, na visão do Boechat.
(P.F.)
A PASTA MARROM
uma agenda com folhas rasgadas, que tinha telefones antigos ‒ e põe
antigos nisso;
óculos e mais óculos de cores e modelos diferentes que comprava de
penca, sem receita, em alguma farmácia ou banca de jornal;
dose diária de medicamentos, que ia desde remédios de pressão, do
estômago, da depressão ‒ que normalmente ele se esquecia de tomar, o
que os ouvintes rapidamente identi cavam por causa de seus rompantes
matutinos;
papéis dos mais diversos, que ele mesmo não lembrava por que
estavam todos socados naquela pastinha;
um relógio quebrado que era da avó dele, marcando a mesma hora, o
que deixava os ouvintes intrigados e, num afã de ajudar, mandavam
mensagens para ele arrumar o horário.
Usar óculos para Boechat era uma aventura diária e, primeiro, era preciso
encontrar um par deles. Ele não tinha apenas um par de óculos. Tinha uma
coleção que se perdia ao longo do tempo e era a justi cativa para aqueles
comprados na farmácia ou na banca de jornal.
A BandNews FM tinha duas gavetas grandes reservadas para o material do
Boechat, e quem cuidava de toda aquela bagunça era a produtora Letícia
Kuratomi. Entre os itens, os óculos eram os mais procurados.
Havia óculos de todas as cores possíveis, do preto ao rosa, ou até mesmo
óculos sem as hastes que os prendiam às orelhas. Ele não estava nem aí.
Boechat não enxergava de perto e isso o impedia, por exemplo, de ler os jornais
ou alguma reportagem na internet.
Em dezembro de 2018, ele viajou para Vitória (ES) e passou dois dias sem
ver porcaria nenhuma porque perdeu o único par que tinha levado. Por lá, os
óculos de grau prontos não são vendidos em óticas, farmácias e bancas de
jornal, como em São Paulo.
Ele tinha certeza que aquele modelo roxo, de aros grossos – mais um de
vários –, tinha ido para o mesmo limbo dos demais: o submundo dos óculos
perdidos.
À época, como ele mesmo disse, encontrou o “desgraçado” em um lugar
inimaginável. Estava dentro, não se sabe como, de um sapato que ele ainda não
havia usado.
Arriscaria dizer, por cima, que ao longo dos quase 14 anos na BandNews FM,
Boechat perdeu uns cem “desgraçados”.
UMA NOVA AGENDA
Até 2015, Boechat, por mais incrível que pareça, não tinha uma simples
agenda. Ele fazia eventos em várias partes do país, às vezes um dia em cada
estado, mas não tinha nada organizado em um único lugar. Tudo que ele
precisava estava dentro da velha pasta marrom, que dizia gostar por ter sido um
presente da Veruska.
Eram papéis de todo o tipo: folhas inteiras, cortadas ao meio ou em pedaços
menores ainda. Os compromissos estavam ali, naquela bagunça mesmo.
Inclusive, ele guardava as laudas do Jornal da Band para usar de rascunho e as
acomodava em pilhas na própria mesa.
Quem o salvou foi Nana Matos, que, assim como Letícia Kuratomi na
BandNews FM, era estagiária dele na TV e decidiu colocar um ponto- nal
naquela desorganização. Ela passou a fazer uma lista dos compromissos que ele
tinha, imprimir e sempre entregar uma nova, atualizada, para Boechat. Ele
amava, claro! Alguém o tirou da bagunça de papéis jogados.
Em 2018, Nana saiu de férias e entregou a última versão para ele. Na volta,
Boechat estava desesperado, com a folha amassada, cheia de rabiscos, mas tudo
continuava lá. Pelo menos, ele nalmente havia criado o hábito de consultar a
agenda antes de marcar um novo compromisso.
MOEDINHAS: QUEM ME AJUDA?
O perigo rondava a vida do Boechat e, de fato, medo era uma coisa que ele não
tinha. Cheio de compromissos dentro e fora de São Paulo, quase que
rotineiramente precisava ir e voltar do Aeroporto de Congonhas, na zona Sul.
Com o trânsito caótico, ele chamava um motoboy que o levava na garupa para
que não perdesse o voo.
Uma das regras do Boechat era estar na Band às 16:00 horas, a tempo de
participar do fechamento e apresentar o Jornal da Band. Às vezes, ele passava
em casa ou em outro lugar e atrasava um pouco, mas não muito.
Certa vez, ele foi almoçar com um amigo em um restaurante, algo incomum,
mas, como o papo estava bom, se atrasou e se viu preso às 17:30 horas no
congestionamento da cidade. Ao perceber que não chegaria a tempo, ligou para
sua produtora na TV, Nana Matos, e decretou: “Nana, estou preso no trânsito.
Pede para um motoboy vir me buscar rapidinho, por favor. Enquanto ele não
chegar, eu vou andando pela avenida. Pede para ele me encontrar”.
E desligou o telefone. Sabia-se apenas que ele havia deixado o carro em algum
lugar e que seria encontrado na marginal do rio Pinheiros, via movimentada de
São Paulo, perto da ponte Cidade Jardim.
A equipe se mobilizou: um pegou o capacete no camarim; outro acionou o
motoboy; um terceiro pediu para a gurinista separar a roupa dele e car na
porta do estúdio; e o último avisou o maquiador para fazer tudo rapidinho. Foi
a maior loucura! Até mesmo o chefe de reportagem, Sérgio Gabriel, trocou de
roupa e cou de stand-by, caso precisasse substituir o Careca na bancada do
jornal naquele dia.
Depois de tanta correria, Boechat chegou gargalhando e disse: “Fazia tempo
que eu não aprontava uma dessas, né?”.
Pontualmente às 19:20 horas, lá estava ele sentado na bancada e apresentando
o Jornal da Band, como se nada tivesse acontecido.
ALGUÉM VIU A MINHA ALIANÇA?
Sabe aquele dito popular “Só não perde a cabeça porque está grudada”? Pois
bem, cairia como uma luva na história de vida do Boechat. Ele já perdeu de
tudo, até mesmo a lha em uma praia (assunto para outro capítulo).
Doce Veruska, como ele mesmo chamava a sua amada, sempre o
acompanhava na BandNews FM pela manhã e no Jornal da Band à noite.
Claro, estava atenta a tudo e pronta para colocá-lo contra a parede. O apelido,
por sinal, foi criado no ar e, fora dele, Boechat só a chamava de Doce quando
ela estava brava. Sabia o risco que corria.
Em um dos tantos dias que apresentou o jornal na TV, Boechat se viu sem
saída. Havia perdido a aliança de casamento e não queria entrar no ar sem ela.
Veruska ia car “p” da vida. Mas o que fazer?
A solução encontrada pelo próprio Boechat foi arrumar uma aliança
emprestada. Quem o salvou foi um produtor do Jornal da Band, Renan
Salmin, que tinha duas vezes o tamanho dele. A aliança cou larga, mas,
mesmo assim, ele decidiu usar. Do outro lado, o produtor tremia de medo.
Medo de que Boechat, como de costume, perdesse a aliança que havia sido
emprestada. Ele também não podia chegar em casa sem ela.
Boechat apresentou o jornal e, para alívio do produtor, devolveu a aliança que
bambeava em seu dedo.
Ninguém sabe, até hoje, se Boechat achou ou comprou outra aliança. Nem a
própria Veruska.
MINHA MÃE, MINHA OUVINTE
Conversa era o que não faltava quando se tratava do Boechat. Ele falava com
todo mundo, fosse na rua, no shopping, no restaurante e no rádio – e não
poderia ser diferente. A ponte área Rio-São Paulo era mais uma oportunidade
de conhecer gente, ouvir histórias e, se precisasse, dar aquela força.
Em uma dessas viagens, Boechat conheceu dois meninos, ambos cadeirantes,
que viajavam com a mãe. Eram alles Henrique Badan e Victor Augusto
Lima.
Boechat conheceu um pouco da história daquela família, cou sensibilizado e
pôs na cabeça que iria proporcionar um dia único para os três.
Assim que o avião pousou no Rio de Janeiro, ele ligou para a redação:
“Vamos lá, eu vou passar o número do cartão de crédito da Veruska e vocês vão
comprar todos os ingressos necessários para que eles conheçam e visitem a
cidade”.
Dito e feito: com o cartão da Veruska, a equipe da BandNews FM comprou
bilhetes para as principais atrações da cidade. A família visitou, entre outros
lugares, o AquaRio e o Pão de Açúcar. E Boechat ainda alugou um carro para
que pudessem circular pelo Rio de Janeiro.
LIGADO EM TOM E JERRY
Eu me arrependo de não ter tirado uma foto da carta, mas felizmente essa
história cou famosa na Band porque muita gente ouviu na rádio e viu na TV.
Boechat ajudava nanceiramente pessoas que nunca tinha visto, mas
especialmente seus lhos e até suas ex-esposas: “Faço isso sem Veruska saber,
Barão. Ela caria brava demais”, confessava.
Além de telefonemas que recebia para quebrar eventuais galhos de todos,
quase mensalmente tinha compromissos que não precisaria mais ter
legalmente, já que quase todos os seus lhos já tinham mais de 18 anos.
Mesmo assim, fazia questão de dar uma mão.
Uma de suas ex-mulheres sempre mandava uma lista com os gastos que a
lha teve ou teria tido. Normalmente, era uma carta escrita à mão, mais ou
menos assim:
Gastos do mês:
R$ 1.570,00 ‒ Faculdade
R$ 480,00 – Carro
R$ 350,00 – Curso de inglês
R$ 2.780,00 – Aluguel
R$ 670,00 – Maconha
R$ 380,00 – Seda para maconha
R$ 200,00 – TV a cabo
R$ 130,00 – Energia
Ao ler a carta com os pedidos, Boechat falou:
“Para que tanta seda? Se for assim, ela vai passar o mês todo fumando.”
E eu rebati quase não aguentando de rir:
“E você vai pagar?”
“Vou, porra! É melhor do que a mãe dela me encher o saco.”
Pagou e continuou fazendo a transferência bancária, mesmo sabendo que
aquela grana nunca seria usada na compra da erva.
(E.B.)
ÂNCORA DO ZOONEWS
Depois do sucesso no rádio, Boechat não precisava de mais nada. Ele já era o
grande âncora da BandNews FM e do Jornal da Band e nunca deixou de ser
um dos colunistas mais respeitados em todo o Brasil. Quando morreu, ainda
fazia a coluna da IstoÉ, publicada semanalmente. Tinha a minha ajuda e a do
companheiro Ronaldo Herdy.
Mas ele podia mais e queria mais. A primeira surpresa veio da Disney. Em
2015, Boechat foi chamado para interpretar um jornalista no lme Zootopia,
lançado no ano seguinte. Seria a onça-pintada Onçardo Boi Chá, âncora do
ZooNews. Ele foi o escolhido no Brasil, assim como outros jornalistas no
restante do mundo.
À época, ele disse ter aceitado o convite pelo convívio com a Disney desde o
início: “Eu, com seis lhos, não paro de ter contato com ela. Sou capaz de
cantar a música de Frozen de trás para a frente, graças às minhas lhas
Valentina e Catarina”.
Não se frustrou quando soube que a participação seria curta: “Eu nunca z
algo nessa área, mas quei mais confortável por ser algo parecido com o que eu
faço. Eu me preparei até demais, z gargarejo com gengibre, e no nal durou
apenas 15 segundos a minha participação”.
A notícia era sobre a prisão da ex-prefeita Bellwether, uma ovelha, acusada de
aterrorizar Zootopia. Boechat entra logo na sequência: “Seu antecessor,
Leonardo Léo Rei, nega seu envolvimento com o plano e alega que só quis
proteger a cidade”.
E não parou por aí. Apaixonado por ciência e natureza, Boechat foi
convidado em 2017 para fazer a locução do documentário Planeta Terra II, do
Discovery Channel. A versão original era com o naturalista David
Attenborough, a quem ele admirava demais: “Minha primeira reação foi ter um
receio absoluto. Eu já tinha visto a primeira série (lançada em 2006 e
vencedora de quatro prêmios Emmy), e Attenborough é um monstro, o
trabalho dele é absurdo. Tem uma impostação de voz e uma dramaticidade que
eu não conseguiria repetir”.
Mas ele aceitou, claro: “Como as comparações com o narrador original são
inevitáveis, eu mesmo já as faço e digo que acho a versão inglesa bem melhor”.
Coisas de Boechat. Após sua morte, o canal Animal Planet fez uma exibição
do documentário no estilo maratona. Foram seis episódios seguidos, que
duraram mais de cinco horas.
(P.F.)
“CALA A BOCA, BOECHAT!”
Quebrar paradigmas era algo que Boechat adorava, até porque alguns deles,
depois de tanto tempo, não faziam mais sentido.
No jornalismo, qualquer apuração, reportagem, nota têm nome e sobrenome.
Pode vir da TV, do rádio ou de um grande jornal em circulação. Mesmo os
pequenos têm lá sua importância e publicam o que chamamos de “furo”, ou
seja, uma notícia em primeira mão.
Nas redações era muito comum – e hoje bem menos – que qualquer notícia
dada por outro veículo deveria ser checada e, se con rmada, levada ao ar ou
publicada sem o devido crédito de quem a apurou pela primeira vez.
A ideia, na cabeça das direções, era não fazer “propaganda” dos veículos
concorrentes.
Mas isso não funcionava para Boechat. Desde que assumiu os microfones da
BandNews FM, decidiu, sem nenhum comunicado prévio, dar cara e voz
àqueles que, de fato, tinham feito alguma reportagem de repercussão nacional.
Falava, sem se preocupar e com a certeza de que estava fazendo o certo, não
só o nome do jornal, revista ou emissora que tinha feito a apuração, mas
também dos jornalistas responsáveis.
Falava da CBN e da Jovem Pan, concorrentes da BandNews FM, sem dó. O
mesmo acontecia com notícias dadas por jornais como O Estado de S. Paulo,
Folha de S.Paulo e O Globo, além de sites como o G1 e o UOL. Foi assim com
o caso da Re naria de Pasadena, as delações da Lava Jato e de tantas outras
feitas por outros veículos.
Boechat enxergava no trabalho do jornalista aquilo que, muitas vezes, nem
mesmo as próprias redações valorizavam. Era um cara além do seu tempo.
BRONCAS: SÓ SABE QUEM LEVOU
Boechat não era santo, nem queria ser. O objetivo dele era apenas passar a
informação correta e estar munido para fazer os comentários ou dar uma
notícia no ar. Todos que trabalharam com ele, sem exceção, foram alvos de seus
esporros.
Podia estar no ar ou fora do ar. Fato é que ele não deixava passar se algo
estivesse errado. Muitas vezes se arrependia e chegava a pedir desculpa, da
forma dele. Na maioria das ocasiões, tentando explicar por que aquilo estava
certo ou errado.
Uma das últimas broncas foi dada à produtora e atual coordenadora digital
da BandNews FM, Letícia Kuratomi, e viralizou na internet. No UOL, o título
era: “Boechat perde a paciência e tem ataque de fúria em programa de rádio”.
Isso aconteceu no dia da tragédia no Ninho do Urubu, centro de treinamento
do Flamengo, quando dez jovens morreram em um incêndio que começou
com um curto-circuito no ar-condicionado. A discussão teve início quando
Boechat anunciou a entrevista com um integrante do Corpo de Bombeiros:
“Temos outro o cial do Corpo de Bombeiros, o tenente-coronel Douglas.
Não? Por que botaram na minha mão, então? Vou devolver esse papel e vocês,
quando puderem me acionar adequadamente, me acionem”.
Com os microfones desligados, mas tudo registrado na transmissão ao vivo,
ele começou a discutir com Letícia Kuratomi. Boechat gesticulou e mostrou o
papel para ela, como uma forma de cobrança. Estava, de fato, bem nervoso.
Nas redes sociais, muitos o criticaram, mas quem trabalhava com ele sabia
que aquele era um dos muitos “pitis” já dados por Boechat.
A discussão aconteceu poucos dias antes de sua morte e a Letícia resumiu o
que viria pela frente – ou não mais viria: “Ainda não consigo acreditar. Não
pode ser que não vai ter mais SMS, ligação, e-mail, briga, bronca, risada. É
inacreditável que você não vai aparecer amanhã às sete horas. Não consigo
acreditar”.
Laura Ferreira, meteorologista e apresentadora da Band, assim como outros,
aprendeu muito com os erros cometidos ao lado do Boechat. Certa vez, tomou
uma bronca ao tratar uma chuva que castigou o Rio de Janeiro como um
transtorno. Foram dez minutos de esporros, no ar:
“Laura, transtorno não é aquilo. Transtorno é eu car parado no
congestionamento. Aquilo lá foi um dilúvio. Aquilo lá mata pessoas. Não é
assim que você tem que falar.”
E falou mais:
“Eu não estou falando com a Laura que eu conheço. Estou te entrevistando.
Então, faz o favor de me responder.”
Ele tinha uma teoria para tudo: “Você tem que falar de maneira simples, para
que as minhas lhas Valentina e Catarina ou para que o seu Adamastor e a
dona Juventina entendam. Então, Laura. Não entre aqui para falar termos
técnicos que isso não me interessa.”
Boechat sabia aonde queria chegar e quem atingir. E o mais importante: as
brigas nunca saíam do estúdio. Acabavam ali.
NA RETÓRICA E NA INTELIGÊNCIA
Sabe lutador de jiu-jítsu que tem aquela orelha toda deformada? Então,
Boechat também tinha, mas por outro motivo.
Foi pelo amor à notícia. Dizem os mais antigos que aqueles calos foram
conquistados de tanto car com o telefone colado na orelha para apurar
informações à época em que foi colunista, passando pelo Diário de Notícias, O
Globo, Jornal do Brasil, Estadão e pela revista IstoÉ.
Sucessor de Ibrahim Sued, Boechat foi um dos melhores em tudo aquilo que
fazia. No colunismo, ganhou três prêmios Esso, a mais importante premiação
do país, que existiu até 2015.
Além dos calos nas orelhas, Boechat tinha outro hábito. Era característico,
quando estava falando com alguém, às vezes com mais de duas pessoas ao
mesmo tempo, colocar a gravata para trás do pescoço. Seria um rito – ou
apenas uma demonstração de desconforto?
Rodolfo Schneider, então diretor da Band no Rio de Janeiro, trabalhava ao
lado do Boechat todos os dias e tinha o Careca como um segundo pai.
“Boechat era inigualável. Ele não passava despercebido na vida de ninguém.
Se ele passasse dez segundos na vida de alguém, ia marcar a vida daquela
pessoa. Ou ele falaria alguma coisa, daria um abraço ou abriria um sorriso. Ele
não veio ao mundo a passeio.”
Rodolfo começou como estagiário, na época em que o diretor da emissora era
o próprio Boechat. As salas cavam frente a frente, e Rodolfo tinha até medo
dele. Mas aprendeu demais ao acompanhar o dia a dia daquele fenômeno.
No início, ouviu dele:
“Alemão, se eu estiver em campo, é para fazer gol. Se eu estiver em campo, é
para defender. Se eu estiver em campo, é para comer a grama. Comigo só
trabalha se for assim. Eu só vou fazer se for desse jeito.”
E fez.
AMARELO PISCANTE?
Boechat tinha acabado de desembarcar em São Paulo. Era o segundo dia como
apresentador da BandNews FM.
Como sempre, abriu o jornal: “Eu sou Ricardo Boechat e nós vamos car
juntos até às 9:00 horas, com as nossas praças e nosso time de colunistas e
comentaristas”.
Na abertura do primeiro noticiário local, Luiz Megale, que fazia o jornal ao
lado dele, disse que um semáforo da avenida Faria Lima, em São Paulo, estava
no amarelo piscante.
“Como é que é? Como é que é? Amarelo o quê? Amarelo piscante? É a cor da
tua calcinha, Megale? O que é amarelo piscante?”, perguntou Boechat.
E o Megale tentou explicar:
“Não, aqui em São Paulo o pessoal sabe.”
Mas não adiantou:
“Que amarelo piscante, meu irmão? Fala aí o que está acontecendo.”
E o Megale, en m, explicou:
“Não, o sinal está piscando porque não está funcionando.”
Boechat cou convencido:
“Tá vendo como é mais fácil? Tá quebrado.”
FILHOS E MAIS FILHOS
Quando conheceu a Doce Veruska, Boechat – vinte anos mais velho – já tinha
quatro lhos e não esperava ter mais. Pouco tempo depois, no entanto, os
planos mudaram.
Na época, a futura esposa tinha uma coluna no jornal Gazeta de Vitória. Os
dois se viram pela primeira vez em 2003, no Encontro Internacional do Vinho
do Espírito Santo, em Pedra Azul, uma cidade na região serrana do estado. Ela
era colunista de variedades e achou Boechat muito educado, romântico e
gentil: “Ficou grudado em mim. Falou que ia ler minha coluna e tudo o mais”,
contou.
Os dois começaram a trocar mensagens e, um mês depois, Veruska foi para o
Rio de Janeiro. Cobriria, na época, a posse da escritora Ana Maria Machado na
Academia Brasileira de Letras. Boechat aproveitou a oportunidade e a levou
para jantar. Os dois começaram a namorar.
Logo no início, alguém – não se sabe quem – mandou para ele uma
mensagem com uma entrevista dela, falando sobre o futuro e a vida pessoal.
Em uma das respostas, ela dizia: “Eu quero ser mãe, eu quero ter lhos”.
Em um dos primeiros jantares, daquele do tipo bem romântico, Boechat
soltou: “A propósito, eu vi uma entrevista sua. Você quer ter lhos, né?”.
Veruska foi direta: “Olha, eu não abordaria esse tipo de assunto agora. Mas,
já que você perguntou, deixa eu te dizer o seguinte: eu estou adorando sair com
você, estou vivendo um momento muito feliz, mas, em algum momento, eu
quero ter lhos. Poderei tê-los com você ou não”.
Foi ali que Boechat percebeu que a conta de quatro lhos cresceria para cinco
ou seis, como de fato aconteceu, com a chegada de Valentina, em 2006, e de
Catarina, em 2008. Ele já tinha Beatriz, Rafael, Paula e Patrícia, todos adultos.
Com a chance de a prole crescer ainda mais, Veruska sugeriu que ele zesse
uma vasectomia. “Tudo bem, claro. Vamos fazer.”
Veruska marcou horário em uma clínica, e Boechat foi para conversar com o
médico. O médico começou a explicar quais eram os riscos (quase nulos) e
quanto tempo levaria a cirurgia. Boechat ouviu e achou que marcaria outro dia
para fazer o procedimento.
Ao nal, o doutor perguntou: “Você entendeu tudo, senhor Boechat? Então,
vamos levantar e ir para a sala de cirurgia”.
Foi assim, de surpresa, que Boechat entrou na faca.
MILTON NEVES, O PITONISA
Pitonisa = profeta, adivinhador, aquele que consegue prever o futuro. Assim era
como Ricardo Boechat se referia a Milton Neves. O apelido se dava pelos
palpites, que passavam longe do placar, ditos pelo rei do “merchan” do rádio e
da TV nos microfones da BandNews FM.
A relação era de amor e ódio (muito mais amor), mas às vezes Boechat perdia
a paciência. Foi assim em 2015, quando Milton tentou fazer mais um
“merchan” de forma disfarçada. Ele falava sobre a criação de um centro
esportivo de alto rendimento da família Diniz, controladora, até então, do Pão
de Açúcar e de outras grandes empresas.
“Vai nascer agora, no começo de março, o NAR – Núcleo de Alto
Rendimento Esportivo de São Paulo –, [...] em Santo Amaro, lá estaremos...”
Foi interrompido por Boechat:
“Pitonisa, isso é de quem? Essa obra?”
“Essa obra é do João Paulo Diniz”, respondeu Milton.
Boechat continuou:
“Mas eu acho o seguinte, Milton. Numa boa, manda ele botar um anúncio.”
“Não, Boechat. Não é anúncio...”
Milton é interrompido de novo:
“Não me interessa. Liga para o Diniz. Diz que ele é maravilhoso. Janta com
ele. Se é público, vamos nessa. Mas coisa privada, esse oba-oba...”
Os dois caram discutindo por mais de dois minutos até que Tatiana
Vasconcellos chamou os jogos da rodada – sobre os quais ele palpitava todos os
dias.
E foi assim que surgiu uma das mais brilhantes brincadeiras com Milton
Neves. O Pitonisa, além de participar na BandNews FM, entra em todas as
outras rádios do grupo Bandeirantes.
Boechat, uma vez, teve a ideia de juntar todos os palpites dados pelo Milton
nas rádios, e a conclusão, claro, foi a que todos imaginavam.
Em cada rádio, ele dava um palpite diferente. A justi cativa: pelo menos um
palpite iria acertar. De fato, o Pitonisa fazia jus ao apelido.
“CADÊ A PAULINHA?”
Boechat era um recordista de perder coisas e até mesmo pessoas – por que não
a lha?
Separado pela primeira vez, Boechat tinha o costume de pegar as crianças nos
ns de semana e levar para a praia em Niterói, onde cresceu e antes vivia com a
antiga esposa.
Mas não parava por aí. Ele gostava mesmo era de juntar a garotada. Além dos
três lhos, vários amigos deles. O limite era o espaço da Variant, carro da
década de 1970, em que cabia tudo e mais um pouco. A estratégia era baixar o
banco de trás e abrir uma espécie de salão para acomodar toda a galera. Muitas
viagens eram feitas com os lhos dormindo em um colchonete colocado no
porta-malas. Segundo ele, se assemelhava à primeira classe de uma companhia
aérea árabe.
Em uma das vezes, Boechat estava sozinho para cuidar de quase dez crianças.
Tinha gente dentro da água, do lado de fora, fazendo castelo e jogando bola.
Na hora de ir embora, naquele negócio de “lava a bunda”, “tira a areia do pé”,
“troca de roupa”, ele foi colocando um por um na Variant. Ligou o motor e foi
embora.
Passados dez minutos, Boechat deu uma conferida e se desesperou: “Cadê a
Paulinha?”.
Sim, ele havia largado a lha na praia. Sem saber se a encontraria ou não, deu
meia-volta, desceu do carro voando, olhou para onde tinham estado na praia e
se acalmou: ela estava lá brincando, no mesmo lugar, e nem notou que havia
sido deixada para trás.
Puxou o pai.
DEIXA QUE EU CHUTO!
Seu primeiro trabalho foi ao lado do pai, Dalton, e da mãe, dona Mercedes,
como revendedor de livros, de várias editoras e coleções. Mas, paralelamente,
Boechat continuou procurando um emprego xo, que lhe rendesse um salário
no m do mês.
Depois de bater em algumas portas, Boechat viu um anúncio de emprego do
Cemitério Parque Jardim da Saudade, uma novidade no Rio de Janeiro. Eles
estavam formando equipes. O anúncio não dizia que a vaga era para vendedor
de jazigo, e Boechat foi até lá. Chegando ao lugar, cou interessado mesmo
assim. Ele queria um salário, com carteira assinada. Mas Boechat não
conseguiu o emprego porque era menor de idade.
O jornalismo, como ele mesmo dizia, foi um acidente. Mas, depois de um
tempo, veio a certeza de que havia nascido para isso.
A 5ª SÉRIE B POR TRÁS DOS MICROFONES
“Tirem as crianças do carro”, gritava Boechat toda vez que José Simão indicava
que na sequência viria uma piada, digamos, mais pesada. Mas o que ninguém
sabia é que as piadas, brincadeiras ou histórias que rolavam nos intervalos do
programa da rádio também não eram destinadas ao público infantil. Quer
dizer, as tais brincadeiras internas eram feitas pelas nossas crianças interiores.
Depois que as transmissões do rádio passaram a ser exibidas nas redes sociais,
muitos ouvintes começaram a nos ver nos intervalos, às gargalhadas no estúdio,
e sempre queriam saber o motivo. Normalmente, eram idiotices ou baixarias
que faço questão de revelar aqui, mas já aviso: “Tirem as crianças do livro”.
Boechat era um excelente desenhista. Sempre tinha à mão uma caixa de lápis
de cor, que usava, inclusive, no intervalo do Jornal da Band para desenhar o
que lhe vinha à cabeça. Só que apenas Freud talvez explique por que ele tinha
xação em desenhar pintos! E lógico que depois fazia questão de dar de
presente para alguém. Eu recebi uns cinquenta desenhos de todos os tipos e
tamanhos. Alguns até dobráveis, dependendo da criatividade do dia.
Uma vez ele e Luiz Megale, que também desenhava bem, competiram para
saber qual era o pinto mais realista, e eu tive a honra de ser o juiz. Era como
Tatiana Vasconcellos dizia, “Chegou a 5ª série B”. Mas não era só isso. Os
intervalos eram cercados de trocadilhos imbecis, em meio ao noticiário sempre
duro do dia a dia. Antes do acidente, com Carla Bigatto no estúdio, a diversão
era a famosa brincadeira do “Você conhece o Mário?”, só que com os nomes
mais complicados possíveis, como:
“Você conhece a Astrid?”
“Que Astrid?”
“As tridimensionais bolas do meu saco.”
Dizem que médicos, em meio a cirurgias, falam sobre amenidades enquanto
o paciente está anestesiado. Essa era nossa hora do recreio, nossa válvula de
escape. Ali aparecia o genial jornalista de carne e osso.
Como sempre gostou de contar histórias, algumas eram reveladas em pílulas
nos intervalos do jornal da BandNews FM. Uma delas (e já falei para tirar as
crianças do carro) Boechat contou para mim, mas com vergonha porque Carla
estava no estúdio.
“Fala logo, Boechat. Para com isso!”
“Então, é o seguinte: eu estava no Rio de Janeiro, solteiro, na minha casa, no
Leblon, num m de semana, com os lhos grandes e sem porra nenhuma para
fazer. Decidi pegar os jornais e vi que nos classi cados tinha anúncios dessas
agências de garotas de programa. Nunca tinha pedido, não era do meu feitio,
mas decidi testar. Eu liguei e um cara me atendeu perguntando que tipo eu
queria. Aí eu disse: ‘amigo, me manda uma mignon, não gosto de mulher
grande’.”
“Fechado, às 18:00 horas ela chega aí.”
Na hora combinada, toca a campainha. Quem aparece? Uma anã. O cara
entendeu que mignon era anã.
“Mas e aí, Boechat?”, perguntei.
“E aí, nada, Barão. A moça entrou, conversamos, tomamos um drinque,
paguei e ela foi embora. Nunca mais pedi garota de programa na vida.”
(E.B.)
O ASSALTO NO VIVA-VOZ
Boechat não perdia a oportunidade de contar uma boa história e não perdoava
nem a mãe ou a esposa. Mesmo de longe.
Na África do Sul, onde fazia a cobertura da Copa do Mundo de 2010, cou
sabendo que dona Mercedes e a Doce Veruska tinham sido assaltadas durante
um passeio em São Paulo. Boechat, ao lado do grande jornalista esportivo
Mauro Beting, decidiu narrar e gravar a história, por sinal, maravilhosa.
Do outro lado da linha, Veruska contava os detalhes e Boechat repetia:
“Quatro caras entraram na Casa do Churro no Tatuapé, onde a minha mãe
obrigou minha mulher a ir porque ela leu em algum lugar que eram churros
ótimos.”
Ao fundo, Mauro Beting gargalhava, claro, junto com Boechat:
“Chegaram lá, um lugar aberto, sem porta, um frio do cão, em uma esquina
erma, um breu! Comeram os churros. Minha mãe descobriu que o dono da
casa de churros era catalão. E cou conversando. Contou para ele que viu o
anúncio do lugar na revista do avião. Era uma nota de gastronomia.”
As gargalhadas só aumentavam:
“De repente, entraram quatro caras. Um foi direto na Veruska e mandou:
‘Me dá a bolsa, me dá a bolsa. Quero dinheiro, dinheiro, dinheiro’. E Veruska
deu a bolsa.”
Enquanto contava, Boechat caía na risada:
“O cara tentou levar a bolsa, e minha mãe, Mercedes, começou a xingar em
espanhol. Aí, a Veruska mandou a babá sair com as meninas e entrar no carro.
Enquanto isso, a minha mãe corria para bater nos bandidos.”
Cada vez cava mais engraçado:
“Quando os caras tentavam entrar no carro de outro cliente, minha mãe tirou
os sapatos, foi atrás deles e começou a dar sapatadas, gritando com os bandidos
e com todo mundo que não reagia com o palavrão em espanhol: ‘Hijos de una
puta!’. Depois, elas entraram no carro e saíram dali.”
Dona Mercedes conseguiu recuperar a bolsa de Veruska. Do outro lado da
linha, Veruska dizia que não foi nada engraçado. Mas ainda tinha o desfecho:
“Como levaram o celular da minha mulher, elas caram sem GPS para voltar.
A minha mãe fez questão de passar em um shopping antes. Para comprar um
celular? Não, sapatos novos porque os dela foram embora junto com os
bandidos.”
Depois, a própria dona Mercedes admitiu que se excedeu.
BASQUETE: A BOLA DE PAPEL
Boechat era cheio de rituais para tudo. Para entrar no ar, para arrumar a
bagunça, para ler jornais e até para brincadeiras que gostava de fazer com a
redação.
Uma deles começava quando ele ia ao banheiro – dizia que a próstata não
ajudava. Saía do estúdio, abria a porta da redação, entrava à direita e logo
estava no sanitário masculino da Band. Todos já sabiam o que esperar. Boechat
lavava as mãos e, com os papéis que as enxugava, fazia uma bola. Era uma bola
de tamanho razoável. Quando ele voltava, a redação parava – por quê?
Ele entrava pela porta de vidro, olhava para ver se todos estavam atentos e
mirava na lata de lixo que cava atrás do estúdio. Adorava fazer aquilo,
sobretudo quando chamava a atenção das pessoas. Nunca se sabia onde a bola
cairia de verdade. A média de acerto, para quem acompanhava, era de 10%,
mas ele nunca admitia.
Uma vez, faltando menos de um minuto para o jornal entrar no ar, ele e eu
decidimos fazer uma aposta. Quem acertasse... não ganhava nada!
Fizemos as bolas, miramos e... nada! Esse era um dos nossos divertimentos.
(P.F.)
PERDEU? EU TAMBÉM
Se juntassem Mauro Beting e Ricardo Boechat, alguém voltaria para casa sem
alguma coisa. Perder ou esquecer para os dois era uma espécie de hobby. Na
Copa do Mundo de 2010, na estreia do Brasil contra a Coreia do Norte, os
dois eram os únicos entre os mais de cem pro ssionais da Band sem luvas, em
meio ao frio de Johannesburgo, na África do Sul. Mauro chegou a sentar nas
mãos para aquecê-las, mas a boca tremendo não o ajudava a entrar no ar.
Durante a cobertura do Mundial isso virou brincadeira. Os dois passaram a
competir para ver quem era mais esquecido. O lho do grande jornalista
Joelmir Beting, parceiro do Boechat por muito tempo no Jornal da Band,
achou que venceria essa competição:
“Chupa, Boechat! Perdi ontem à noite aquele cartão de crédito pré-pago de
viagem. Foi bem no caixa eletrônico.”
Boechat perguntou:
“Que horas? Ontem à noite? Chupa, você! Eu perdi ontem de manhã.”
JANTAR ENTRE INIMIGOS:
PETRALHAS X COXINHAS
Não importava o assunto, Boechat recebia críticas de todos os lados com seu
comentário de abertura, todos os dias, às 7:30 horas na BandNews FM. O
curioso é que um único comentário gerava opiniões completamente opostas.
Se falasse da Dilma, era porque falou da Dilma e era chamado por muitos de
defensor da petista e, por outros tantos, de antipetista. Se fosse do Aécio, era
porque citou algo do Aécio e, de novo, era criticado por defender e era
criticado por atacar o político, a partir do mesmo comentário. O mais curioso é
que, independentemente do teor, tanto os de direita como os de esquerda se
irritavam.
Boechat se divertia com isso e pedia, quase que diariamente, para que eu e
Carla Bigatto lêssemos as mensagens para ele, e muitas iam para o ar.
Na época do impeachment ou das ações da Lava Jato, por exemplo, era
chamado de coxinha ou petralha depois de um comentário. A interpretação
dependia do ouvinte. Ele se questionava: “Eu z a mesma abertura, e os caras,
dos dois lados, me detonam?”.
Um dia Boechat se irritou e pediu o telefone de dois ouvintes. Um de cada
lado. Era uma moça do Rio de Janeiro e um cara de São Paulo. Boechat ligou
para os dois e marcou um jantar – e pagou – para os dois carem discutindo se
ele era petralha ou se era coxinha.
Nem mesmo Boechat sabe qual foi o veredicto porque não participou do
encontro. Mas, com certeza, o debate deve ter sido inesquecível.
(E.B.)
“O QUE É INSTAGRAM?”
O mundo girava e Boechat girava com ele, muitas vezes no sentido contrário.
Era avesso às redes sociais até que a Band deu o ultimato: “Boechat, você
precisa ter um per l no Facebook”. Ele não queria. Achava que o celular já era
demais.
Ele não sabia sequer como entrar na página da rede social de Mark
Zuckerberg. Instagram, nem pensar! “O que é Instagram?”, perguntava.
A saída foi terceirizar. Doce Veruska foi a escolhida para publicar os textos, as
fotos e os vídeos do marido. Ele até tentava, mas só na hora da “galhofa”.
Foi assim quando apareceu tomando vacina de sutiã, por exemplo. O vídeo
foi um pedido da Veruska para estimular que outras pessoas se imunizassem
contra a gripe. Mas era só para fazer o vídeo, e não a “graça”.
As ideias, muitas vezes, eram do próprio Boechat, mas no dia a dia a tarefa de
executá-las cava nas mãos da Veruska. Era ela quem publicava os vídeos do
Jornal da Band ou algum texto que ele escrevia, como o da depressão.
Ele sempre reclamava, mas, no fundo, adorava saber que estava
compartilhando parte da vida pessoal e do sucesso com outras pessoas, como
fazia no rádio e na TV.
Morreu com quase 1,5 milhão de seguidores no Facebook. A última
postagem é uma foto da mão da Doce Veruska com as duas alianças – dela e
dele – no dedo.
“E no meio de tanta dor, recebi o melhor presente que eu poderia receber, já
sem esperanças de conseguir. Meu coração é só amor. Te amo para sempre,
Ricardo Boechat. Da sua Doce Veruska.”
Até a publicação deste livro, essa postagem tinha mais de 3.500 comentários.
ALMOÇO SAGRADO:
A HORA DA FAMÍLIA
Além da mulher e das lhas, sempre tinha mais alguém esperando Boechat
chegar do trabalho. Depois do Jornal da Band, o horário era marcado. Lá estava
Nina, uma spitz alemã, pequena e clara, no topo da escada, na entrada da casa,
sabendo que logo, logo ele estaria com ela.
A relação entre os dois era de amor incondicional mesmo. Nina, segundo
Veruska, foi adotada depois de sofrer maus-tratos dos antigos donos e pertencia
às lhas Catarina e Valentina. Sendo assim, Boechat era o avô. E tinha um
cuidado absurdo com ela. Se não tivesse horário no pet shop, por exemplo, era
ele quem dava banho nela na pia ou no tanque – e a secava também.
A cadelinha era educada a ponto de Boechat levá-la ao trabalho, quando
tinha viagem programada ao Rio de Janeiro. Depois da apresentação do Jornal
da Band, ele e Nina pegariam a ponte aérea para encontrar a família que viajara
mais cedo. Nina cava atrás dele, solta, na bolsa de viagem.
Depois da tragédia, uma foto da Nina foi postada no Instagram da Veruska e
teve mais de 150 mil curtidas. E ela ainda não se acostumou com a ausência
dele: “Toda noite ela ca no alto da escada esperando ele voltar da Band”, disse
Veruska.
OS QUILOS A MAIS EM SÃO PAULO
São Paulo oferecia a Boechat algo que não se encontra em todas as cidades do
Brasil: uma gastronomia diversi cada, premiada e cheia de bons pratos. O
efeito disso na vida dele foram uns quilos a mais. Quando chegou à capital,
com seus 1,68 metro de altura, pesava setenta quilos.
Ele adorava sair com Veruska e comia tarde, sem se preocupar com calorias, o
que não favorecia muito e o impedia até de fazer a digestão antes de dormir.
Apesar de o jantar estar pronto em casa, muitas vezes ele chegava pilhado
depois do Jornal da Band e inventava de conhecer um novo lugar.
Não só a comida, mas os vinhos também sempre o atraíam. Um dos
restaurantes preferidos do casal era o japonês Kosushi, no Itaim Bibi, na zona
Oeste.
A combinação dos jantares com a falta de exercícios, claro, não poderia ser
outra: os quilos a mais, dos quais, virava e mexia, ele sempre se queixava.
Apesar de reclamar do ganho de peso – morreu com 77 quilos –, Boechat
nunca chegou a car obeso. Apenas comparava sua gura, agora freguesa da
gastronomia paulistana, com a silhueta do magrelo peladeiro das praias
cariocas.
O PRIMEIRO E ÚLTIMO LIVRO
Dizem que toda pessoa, antes de morrer, precisa ter lhos, plantar uma árvore e
escrever um livro. Boechat teve seis lhos, ajudou o meio ambiente como
poucos e, sim, é autor de um livro publicado na década de 1990. Copacabana
Palace: um hotel e sua história recuperou a memória do famoso hotel onde ele
chegou a trabalhar, como assessor de imprensa.
Sempre que questionado, era enfático: “O único e último! Nunca mais quero
escrever um livro. Exige muito tempo, muita dedicação e esse não é o meu
estilo”.
A obra traz os bastidores do Copa, inaugurado em 1923, ao abrigar
celebridades e autoridades. Lá estão hóspedes ilustres como Carmen Miranda,
Ava Gardner, Lady Di, Janis Joplin e Madonna. Nesse livro ele lembra ainda o
episódio em que o ex-presidente Washington Luiz foi baleado pela amante, a
marquesa italiana Elvira Maurich, durante uma discussão em um dos quartos.
São, ao todo, 184 páginas em que Boechat repassou, à época, os 75 anos do
hotel, com ilustrações do fotógrafo Sérgio Pagano, trazendo detalhes, como o
brilho dos botões colocados nos uniformes dos funcionários.
O próprio Boechat se casou com a Doce Veruska no Copacabana Palace. Os
dois namoraram um ano e meio antes. Nas redes sociais, ela recordou:
“Tínhamos combinado de convidar trinta pessoas cada um. Eu convidei trinta
(até hoje tenho parentes que não falam comigo por não terem sido chamados),
ele convidou 120”. A grana, segundo ela, era curta, mas por causa da relação
antiga que ele tinha com o Copa, deram a eles um megadesconto.
Boechat até poderia escrever um novo livro e chegou a admitir que seria
diferente: “Eu escreveria cção. Ficção que utilizasse elementos da realidade”.
ALMOFADINHA, SENÃO DÓI
Pudor não era o forte de Boechat. Ele não se privava de contar qualquer
história escalafobética ou constrangedora aos ouvintes da BandNews FM. Isso
incluía intimidades, segredos e até problemas de saúde. Ele sempre dizia: “Eu
não sou no ar diferente do que sou na vida”.
Foi assim no caso da hemorroida. Como tinha se ausentado da rádio,
Boechat não queria dar brecha para interpretações erradas, como “ele foi
demitido” ou “ele foi afastado”. Os boatos já circulavam.
Em 2014, ele foi obrigado a dar uma pausa de uns dois dias para uma
cirurgia. E, na volta, foi direto ao falar nos microfones da BandNews FM:
“Olha, minha gente, eu quei afastado porque fui fazer uma cirurgia de
hemorroida”.
A reação, tanto dos ouvintes quanto de quem estava no estúdio, foi apenas
rir. Mas Boechat via de outra forma e enfatizou: “Era como se o cu não tivesse
relevância. Por que a hemorroida tem que ser tratada na clandestinidade?”.
A cura se deu em seguida, com Boechat carregando de um lado para outro a
almofadinha que aliviava a dor na hora de sentar no período pós-cirúrgico.
NUNCA É TARDE PARA SE REINVENTAR
Assim como na TV, na BandNews FM, Boechat também tinha uma cadeira de
estimação. Era velha, com o couro todo desgastado e alguns pequenos buracos.
Só passava por reforma, contrariando-o, quando ele saía de férias.
Diferentemente da redação do Jornal da Band, na rádio todo mundo
respeitava o lugar dele, mas não deixava de usá-lo para apresentar os demais
jornais do estúdio. O importante era que estivesse no mesmo lugar às 7:30 da
manhã. Boechat, na BandNews FM, não tinha uma baia na redação, apenas o
seu lugar no estúdio.
Logo após a tragédia, não fazia mais sentido que a cadeira casse por ali.
Depois de uma conversa com a diretora Sheila Magalhães, anunciei ao vivo a
aposentadoria da cadeira, no dia seguinte à queda do helicóptero.
Essa foi a primeira transmissão do programa sem Boechat. A cadeira estava
no mesmo lugar, com uma camisa do PGN, o Partido da Genitália Nacional,
criado pelo amigo José Simão, presidente da legenda imaginária. Boechat era
seu vice. Estavam no estúdio comigo Luiz Megale, Rodolfo Schneider, Rodrigo
Orengo, Laura Ferreira e Tatiana Vasconcellos, que trabalhavam ou
trabalharam com ele ao longo dos últimos anos na rádio:
“Eu só quero dizer que essa cadeira aqui, bem aqui na minha frente, onde ele
se sentou por 13 anos, vai ser aposentada. Ninguém nunca mais vai se sentar
nessa cadeira. Ela será eternamente do Boechat. Então, assim como qualquer
time de futebol que pendura camisas, a gente vai pendurar essa cadeira. É dele
para sempre.”
Claro que a cadeira não caria no estúdio para sempre, mas seria para sempre
do Boechat. E a ideia era que se tornasse uma espécie de homenagem ao Careca
de todas as manhãs, como era chamado por nós.
A peça, velha e desgastada, foi entregue ao artista plástico Alê Jordão, o
mesmo que transformou o primeiro Twingo do Boechat em várias peças de
arte. Três meses depois da morte dele, a nova cadeira do Boechat foi
apresentada no aniversário de 14 anos da rádio, que contou com a presença da
Doce Veruska, das lhas Valentina e Catarina e de sua mãe, dona Mercedes.
A cadeira foi toda decorada com luzes de neon na cor laranja e, atrás, leva
uma espécie de leme, uma alusão à frase tão famosa do Boechat: “Toca o
barco”.
(E.B.)
AS ESCAPADAS NO CELULAR
Foram tantas vezes que não caberiam nem em cem páginas. Fato é que Boechat
não conseguia se desligar da notícia, dos ouvintes e do celular, cujo número ele
mesmo dava diariamente no ar. Ele sabia que, a cada mensagem, a cada ligação,
haveria uma história diferente e, muitas vezes, um furo ou um pedido de ajuda.
Fora do trabalho, nos ns de semana ou nas férias, a Doce Veruska, pensando
no bem-estar de todos, proibia o uso do telefone, mas não adiantava!
Boechat se escondia no banheiro ou em qualquer outro canto, longe dos
olhos da família, para espiar e encaminhar mensagens para as redações de São
Paulo e do Rio de Janeiro.
As mensagens de texto – Boechat nunca usou o WhatsApp – eram lidas e
encaminhadas em questão de segundos, até porque era o tempo que ele tinha.
Eu mesmo, como fazia com ele a coluna da IstoÉ, recebia algum SMS quando
menos esperava.
No ar, ele admitia as escapadas, mesmo correndo o risco de tomar uma
bronca da Veruska. Se não fosse descoberto, a conta do celular o entregaria,
especialmente quando viajavam para os Estados Unidos e a Europa.
(P.F.)
DUAS VIATURAS, QUASE CEM PROCESSOS E UMA
DERROTA
Foi o pior dia na história da BandNews FM. Não era para ser assim. Ninguém
estava preparado. Ele estava no auge e nós também.
No dia da tragédia, 11 de fevereiro de 2019, Boechat tinha chegado mais
cedo ao Grupo Bandeirantes, às 6:00 horas. Foi de táxi (o Twingo havia cado
no pátio na sexta-feira) e seguiu direto para o camarim. Por volta das sete da
manhã, como de costume, se dirigiu até a rádio e cumpriu seu ritual, mas não
por completo. Como o Ricardo Valota (nosso jornalista noturno) folgava na
madrugada de domingo para segunda, o café daquele dia era o da máquina
mesmo.
Sentamos, ele e eu, no pátio da Band, discutimos o que tinha de mais
importante e, como eu precisava resolver outras coisas, o deixei ali até que
voltasse para a redação.
No ar, no último comentário de abertura, lembrou duas tragédias,
Brumadinho e CT do Flamengo, além de tantas outras sem solução ou
punições. Citou um levantamento feito pelo jornal O Globo sobre os dez
últimos grandes casos sem nenhuma sentença da Justiça. Isso sempre o
incomodava – e muito!
No estúdio, Barão, ele e Carla Bigatto falavam de assuntos diversos e riam
como sempre. Ele contou que tinha um evento de uma indústria farmacêutica,
a Libbs, em Campinas, no interior de São Paulo, e perguntou:
“Barão, Campinas é longe?”
“Nada, uma hora, Boechat.”
Ele não fazia questão de ir de helicóptero, mas a Libbs, que o contratou,
marcou a participação dele no evento para logo depois de ele sair do ar. Os
horários eram quase incompatíveis. Mas não se importou, pois estava feliz por
ter passado um m de semana como poucos, ao lado de todos os lhos, o que
era muito raro.
Logo depois do jornal, fez o caminho até o heliponto da Band. Eu fumava
um cigarro e conversava com uma das produtoras do evento. Vi o helicóptero,
que seria pilotado por Ronaldo Quattrucci.
Na redação, tocamos o barco sabendo que no dia seguinte ele estaria
novamente ao nosso lado. Soube que ele encerrou o evento em Campinas com
uma piada sobre os carecas:
“Esse negócio de car careca não é nenhuma vantagem. ‘É dos carecas que
elas gostam mais.’ Isso é tudo mentira da grossa. Só os carecas dizem isso.
Comecei a perder cabelo, estou (quase) com 67 anos, por volta dos quarenta,
por aí.”
Mas ele não voltou para os microfones da BandNews FM. Às 12:20 horas
chegou uma notícia que nos preocupou: “Ouvintes da rádio BandNews FM
informam a queda de um helicóptero agora no Rodoanel, na região da via
Anhanguera, na Grande São Paulo. Ainda não há informações de feridos”.
O Corpo de Bombeiros, logo depois, falava em dois mortos: “O porta-voz do
Corpo de Bombeiros de São Paulo, Marcos Palumbo, con rma dois mortos na
queda de um helicóptero no Rodoanel, na região da via Anhanguera”.
Ao ver as primeiras imagens, comecei a chorar e fui direto falar com nossos
chefes. Pus o capitão Marcos Palumbo para conversar com a nossa diretora
Sheila Magalhães. Não queríamos acreditar. O mundo desabou!
Nana Matos, que trabalhava com Boechat na TV e organizava a agenda dele,
trouxe o dado que con rmava a tragédia. O pre xo era o mesmo do
helicóptero contratado pela empresa. Boechat e o piloto estavam mortos.
Nessa hora, Barão estava no ar no BandNews TV dando a notícia da queda
de um helicóptero, ainda sem saber quem estava a bordo. Felipe Felix, nosso
gerente de jornalismo, ligou três vezes para a che a do canal, mas nada de
tirarem Barão do ar. O próprio Felipe decidiu falar diretamente. Ele e Carla
Bigatto foram ao estúdio para dar a notícia. Barão caiu em prantos e desceu
correndo para a rádio. Não era possível. Por que daquele jeito? Por que tão
cedo?
Seguramos a informação o máximo que pudemos. A preocupação, naquele
momento, era avisar a família, incluindo Veruska, as duas meninas e dona
Mercedes. De todos os veículos da imprensa, somente a Veja – que causou sua
demissão da Globo em 2001 – não respeitou e deu a notícia antes do aviso pela
Band, por meio da coluna de Maurício Lima. Os outros esperaram.
Assim que veio a con rmação, Barão e Sheila tiveram a triste incumbência de
levar a pior notícia na história da BandNews FM aos nossos ouvintes. Pela
primeira vez a rádio saiu do ar. Era o início de um luto que nos atingia
diretamente na alma.
Coube à Sheila informar a tragédia:
“Lamentamos profundamente informar que o nosso âncora Ricardo Boechat
estava a bordo do helicóptero que caiu na rodovia Anhanguera, na região do
Rodoanel, em São Paulo. Boechat foi a Campinas hoje, apresentou o noticiário
da BandNews FM logo pela manhã e estava no interior para um evento de um
laboratório farmacêutico. Foi a bordo de um helicóptero, acompanhado de um
piloto, e retornava a São Paulo. Pegou o helicóptero às 11:50 horas e pousaria
aqui no Grupo Bandeirantes por volta das 12:15 horas, o que não aconteceu.
Depois de alguns minutos, conseguimos a con rmação do pre xo do
helicóptero que caiu e esse número batia. Era o helicóptero do Boechat. É com
profunda tristeza que informamos que o nosso âncora de todas as manhãs
estava a bordo do helicóptero que caiu há pouco na Anhanguera. Estão aqui no
estúdio eu, Barão e Carla Bigatto também, que todos os dias dividiam o
microfone com Ricardo Boechat.”
Barão mal conseguia falar:
“É uma notícia que nos pegou de surpresa. Hoje, Boechat, conversando
comigo e com Carla, perguntava se Campinas cava muito longe de São Paulo.
Ele está aqui faz muitos anos, mas ainda perde a noção de distância. Falamos
que era pertinho, uma hora. Nos últimos tempos, ele vinha fazendo muitos
eventos. Era o maior jornalista do país. Ele se deslocava de avião, de
helicóptero [...] e agora surge essa notícia da perda do nosso companheiro de
todos os dias. Que fez a BandNews ser o que é hoje. Uma rádio de referência
para todos nós e que colocou o ouvinte como o principal parceiro. E a gente dá
essa notícia tão triste que é a perda do nosso companheiro de todos os dias.
Mas Boechat já deixou a marca dele no jornalismo, nas nossas vidas e na vida
da BandNews. E a gente se pergunta: por que ele não pegou um carro daqui
até Campinas? [...] Mas ele tinha a lógica dele e jamais imaginou que seria
vítima de uma queda de helicóptero. Ele tem uma história no jornalismo linda
e nunca estudou jornalismo. E teve enorme sucesso por onde passou [...]. É
uma perda gigantesca. Um cara admirável. Quantas vezes ele não parou para
uma foto? Quantas vezes ele ajudou alguém? Ele tentava enxergar o lado que
ninguém via. E é isso.”
Carla também falou:
“A gente não consegue acreditar quando acontece. E a gente passou um
tempo se questionando: É verdade mesmo? Será que ele não entrou nesse
helicóptero? Será que ele não está em um carro? Será que não está chegando?”
Sheila decidiu tirar a rádio do ar por algum tempo:
“A gente pede a compreensão dos nossos ouvintes. É uma tragédia e muito
próxima da gente. Da nossa vida, da nossa vida pessoal, porque a gente se
envolveu com o trabalho da maneira mais profunda possível. Assim é a equipe
da BandNews FM. É a sensação de estar perdendo um familiar. Então, peço a
compreensão dos nossos ouvintes porque Boechat sempre falou que essa é uma
rádio feita por gente, para a gente. E nós, nesse momento, precisamos de um
tempo, um tempo para a gente. Por isso, momentaneamente, a programação da
BandNews FM estará fora do ar.”
Mesmo sendo muito difícil, era a hora de prestar todas as homenagens
possíveis àquele cara que nos ensinou muito – ou quase tudo. Mas, antes disso,
fomos até a casa dele levar uma palavra de conforto à Doce Veruska e às
pequenas Valentina e Catarina.
O dia foi longo, difícil e terminou com uma justa homenagem preparada
pelo Grupo Bandeirantes. O Jornal da Band foi encerrado apenas com os
aplausos de todos aqueles que trabalharam com Boechat, momento que cará
eternizado na memória.
(P.F.)
O VELÓRIO: AMIGOS, FÃS E CONFORTO
e-ISBN: 978-85-7888-747-6
2019
Todos os direitos reservados à Panda Books.
Um selo da Editora Original Ltda.
Rua Henrique Schaumann, 286, cj. 41
05413-010 – São Paulo – SP
Tel./Fax: (11) 3088-8444
edoriginal@pandabooks.com.br
www.pandabooks.com.br
Visite nosso Facebook, Instagram e Twitter.
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora Original Ltda. A violação
dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.