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N.º 4, jan-mar de 2022.

Corpo Editorial

Editor Responsável

Carlos Douglas Martins Pinheiro Filho

Editores Adjuntos

Ademas Pereira da Costa Junior

Iago Menezes de Souza

Editores de Seção

Ademas Pereira da Costa Junior (Dimas)

Carlos Douglas Martins Pinheiro Filho

Eliana Conde Barroso Leite

Felipe Moura Fernandes

Iago Menezes de Souza

Jorge Felipe Freitas (Fijó)

Marcelo Gomes (Sophos)

Robson Campanerut da Silva

Roberto Brito Alves

Viviane Linares

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N.º 4, jan-mar de 2022.

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Revista Menó
Publicação eletrônica trimestral voltada para artigos de divulgação
científica, ensaios políticos, crônicas, contos e poesias.

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N.º 4, jan-mar de 2022.

Sumário

Resenha do Pivete
O Sol não nasce igual para todos: história, educação, música e memória
com NATÖ e sua trilogia NÔMADE
Por Iago Menezes, vulgo Pivete
Novo clipe de Marcão Baixada e Rodrigo Caê nasce dentro de um filme
Por Azis Gabriel

Peabiru 3000
22, Menó e uns B.O.

Por Dimas

Ônibus

Por Dimas

Sobre a necessidade de representações afro-brasileiras na Cultura Pop


Por Gabrielle Venancio da Silva (Skia)

Mesa de dama
“Eu preciso disso para ontem”: O imediatismo como obstáculo no
cumprimento de metas a longo prazo.

Por Fijó

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N.º 4, jan-mar de 2022.

Bora Apre(e)nder?
Um podcast para mim, um podcast para você, todos nós Perdidos na
Paralaxe
Por Débora K. Fofano, Carlos Frederico Costa e Raquel R. Rocha
Você não é uma empresa

Por Coletivo Terral


Territórios indígenas em território cearense
Por Ronaldo de Queiroz Lima
O ensino de Filosofia segundo um Geógrafo
Por Romi Pereira

O Negócio é ser Rural


Vitória quilombola em Alcântara pode repercutir em todo o país
Por Eliana Leite

Energia em Evolução
Energia em evolução
Por Aed Vieira

Observatório Cotidiano
Desespero literário no apartamento em Botafogo
Por Roberto Brito
Mágicas e trevas

Por Paulo Roberto

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N.º 4, jan-mar de 2022.

Poetizando
Rubi, Amor e o cão
Por Marcelo Nunes da Rocha
Vivências de um Sul Americano

Por Pivete

Sexta-feira

Por Fijó

Silêncio Absoluto
Por Marcelo Nunes da Rocha

Conto do Vigário
Os alienígenas e o pinguim

Por Marcelo Sophos


Busca ativa
Por Thiago Sento Sé

Partiu Resenha
Entrevista Livraria YorùBar
Por Carlos Douglas
Não estamos sozinhos
Por Carlos Douglas
Um feminismo de amasamiento: Interseccionalidade entre o pensamento
de Lélia Gonzalez e Gloria Anzaldúa
Por Gabrielle Venancio da Silva (Skia)

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N.º 4, jan-mar de 2022.

Coluna

Resenha do Pivete
Editor Iago Menezes

A resenha é uma análise, o artista e a música são o objeto. A Resenha do Pivete


é a possibilidade de falar de algo que eu gosto muito que é a música. O resto é
redundância e um academicismo barato. Os meus textos são analises de um
produto musical de um artista especifico, no qual entrevisto e ouço suas músicas.
Como antropólogo e cientista social reflito sobre as questões de discorro sobre
de forma que você não ache chato e banal.

Entrevistas

O Sol não nasce igual para todos: história, educação,


música e memória com NATÖ e sua trilogia NÔMADE
Por Pivete1
Eu percebi há algum tempo que está tudo interligado, somos grandes
formadores de redes, com essas redes surgem as conexões, a roda gira e o
mundo se torna mundo. Conheci o Renato Mendes por intermédio do Rojão, mas
conheci o NATÖ pela sonoridade, melodia e a capacidade de transcender essas
redes. NATÖ, que também é Renato, é um músico, historiador e idealizador de
um projeto fascinante chamado “Aulada”, que instiga a reflexão sobre o social, e
vai além, pois ele se utiliza de músicas como tema de suas aulas em busca de
criar uma harmonia entre acesso e linguagem.

Eu conversei com o Nato sobre educação, música, baixada fluminense,


sociedade e seus últimos EPs “Nômade” de 2020 e sua continuação “Nômade,
PT.2” que foi lançada no ano passado em 2021. Como no som “Memória”
segunda faixa do seu EP de estreia, precisamos entender que “Viver sem
conhecer o PASSADO é viver no ESCURO”, então temos que falar um pouco do
passado do entrevistado para “iluminar” as coisas:

1Iago Menezes de Souza, vulgo Pivete. Colunista da Resenha do Pivete, Editor Adjunto da
Revista Menó. Mestrando em Antropologia, Graduado em Ciências Sociais e Graduando em
Segurança Pública pela Universidade Federal Fluminense e Técnico em Computação Gráfica.

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Em “Memória” já percebemos a importância da Baixada Fluminense e


Duque de Caxias na história e musicalidade de NATÖ, lugar onde nasceu e
cresceu, e sempre viveu rodeado da música e da energia que só quem é cria da
baixada conhece. NATÖ, que ainda era Renato, conviveu com os discos que seu
pai colecionava e vendia na feira de Duque de Caxias, se encantou com Martinho
da Vila e os grandes bambas do samba. Também se encantou com James
Brown, que seu pai discotecava em casa e nos Bailes do Movimento Black da
década de 60 e 80. Na verdade, até hoje o seu pai agita os bailes black que
ocorrem debaixo da Biblioteca Municipal Governador Leonel de Moura Brizola,
em Duque de Caxias.

Além da sua família, seus amigos também são vistos nas suas músicas,
seja pelos interlúdios que iniciam e finalizam o primeiro EP, e o que começa no
segundo. São eles as faixas “Cyberlori 1” e “Cyberlori 2” em Nômade, e “Clá”
que é um discurso emocionante que mostra o quanto de amor e afeto esses dois
projetos levam, que introduz o segundo EP. E não só nas músicas, mas também
nas redes sociais de NATÖ que percebemos que seus amigos são o fio condutor
de suas músicas, formam as redes que ele facilmente transcende e incorpora
nas suas músicas

E disso tudo “O Que Sobra é a Arte”

Na verdade, “Depois que nos tiram tudo, o que sobra é a arte”, é


importante frisar que NATÖ é historiador, e não que seus sons sejam uma aula
de história, mas suas músicas são reflexos de suas vivências e logo também de
seus ideais. Como todo ser político, ele questiona, dialoga e reflete sobre o
social. Reflete sobre o povo trabalhador que acorda quase de madrugada para
ir para o centro da cidade trabalhar e depois de oito horas volta para sua cidade
dormitório para repousar, pois amanhã vai ter que repetir esse trajeto
novamente. E é agora que falamos sobre “Cidade Cemitério” que conta com a
participação de Rojão - que foi entrevistado na 3° Edição da Revista Menó, aqui
nessa coluna - e retrata a exploração da mão de obra e o sequestro do tempo
do trabalhador da baixada fluminense, que perde mais de 4 horas diariamente
no trânsito casa e trabalho.

São esses trabalhadores anônimos que chegam diariamente nas fábricas


e residências e que carregam a bendita economia em suas costas não veem o
mesmo sol que seus patrões, pois o sol deles nasce bem mais cedo. Mesmo
sendo eles que fazem o relógio girar.

“O Sol de Saracuruna não é o mesmo da Central do Brasil”

Essa entrevista demorou muito para sair, mas sempre foi um desejo meu
que fosse algo feito com o máximo de cuidado e atenção. Nesse meio tempo, eu
entrei no Mestrado em Antropologia, mudei de estado depois de um ano
morando no Rio Grande do Sul, aluguei um apartamento com minha

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companheira e me estabeleci em Niterói. Roda gira e o mundo é mundo. Essa


bendita entrevista nunca deixou de me acompanhar, pois eu sabia do potencial
e da qualidade do material. Essa foi uma das resenhas que mais curti fazer, o
NATÖ e suas crônicas sobre o Sol que não nasce igual para todos, personifica
essa 4° da Revista Menó que estreia no mês do trabalhador. Além do mais, é a
última desse formato atual. Sem mais delongas, vamos conversar com o NATO:

AULADA

“Aulada” surge de um pensamento meu, sobre a educação no Brasil. O


que acontece? Educação no Brasil como o Paulo Freire falava é uma educação
bancária, é uma educação que apenas instrui as pessoas a serem força de
trabalho. Imagina: o Iaguinho vai entrar na escola, aí o tempo passa, quando ele
estiver perto da maioridade vai sair formado para ser mão de obra barata. Em
nenhum momento essa educação está interessada em te fazer pensar sobre o
mundo. E é necessário ter um pensamento um pouco mais crítico e para refletir
sobre o seu lugar no mundo. E eu comecei a pensar isso já dentro da faculdade
de história. Eu fiz faculdade na UFRRJ (Rural) também, conheci o Rojão lá.
Durante a graduação, comecei a ver as oportunidades que tinha. Fui o primeiro
da minha família a entrar na faculdade federal, isso é muito privilégio, né? Ter
acesso à educação no Brasil é muito privilegio. E eu sentia que vários debates
só estavam sendo colocados dentro da universidade. Eu estava na faculdade de
história, mas descobrindo coisas que soavam muito senso comum, ou pelo
menos, deveriam ser senso comum. Imaginava que essas coisas minha mãe ou
meu pai deveriam saber, mas eles não sabiam. Não por falta de inteligência e
nem por falta de interesse, e sim porque não chegou pra eles.

Em certos momentos, tomando cerveja com meu pai e conversando,


começava a explicar uma questão que teoricamente era complexa, e que de
certa forma era mesmo, mas ele entendia tranquilão tomando a cerveja. Eu falei,
cara, tem dois problemas aqui. Aí eu comecei a identificar, um dos problemas é
o acesso, o outro problema é a linguagem. E aí eu falei: cara vou começar a
fazer uma parada. Comecei a fazer uns aulões gratuitos em qualquer lugar que
me disponibilizassem.

Nas aulas, eu pensava em um tema no campo das artes. Por exemplo,


eu dei umas aulas que eu usava o álbum do Baiana System para tratar sobre
capitalismo e escravidão. Durante a aula busquei explicar qual é o sentido das
letras, porque aquilo acontece, da onde vem, as pessoas acham que capitalismo
é uma parte fundamental da existência. Não é. O capitalismo tem uns quinhentos
anos, e assim como ele tem apenas quinhentos anos, ele pode sumir também.
Entendeu?

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HISTORIADOR + MÚSICO + RENATO = NATÖ?

Eu acho que é natural ter esse link. “Aulada” é uma expressão minha em
termos de educação, mas enquanto prática artista também, pois é o professor e
o artista que estão ali. Minha carreira artística está ligada a carreira docente, pois
algumas referências estão colocadas nas músicas propositalmente. Quando em
Memória estou falando de personagens históricos e da urgência em entender o
presente com olhar para o passado, isso é uma influência da minha formação
como professor de história.

Minha música é feita com linguagem diretamente ligada ao lugar de onde


eu venho. Por isso a recorrência de um discurso político afiado como a
necessidade de estar falando de certos temas com a preocupação de para quem
estou falando e de quem eu estou falando. A minha música com ROJÃO, Cidade
Cemitério a primeira frase já diz muito: “O sol do relógio da Central não é o
mesmo de Saracuruna. A lua que ilumina o ramal, é só pra quem bem cedo
apruma”. Quando os caras veem o som nascendo lá na central, nós já vimos o
sol faz tempo, que o sol é lua para nós. Quatro horas da manhã já estamos na
estação, quando o sol começa a nascer nós já vivemos para caralho, tá ligado?

Então, o propósito é fazer essa crítica, mas identificar também de onde


está vindo a crítica. Uma linguagem popular que não poderia também ser
desassociada do ritmo de vida popular. E as coisas vão se misturando de uma
forma meio natural. É o que eu ouço, é o que eu gosto, é o que eu acredito. O
NATÖ vem antes, o NATÖ é o primeiro apelido. Tipo o apelido que meus amigos
e alguns familiares me chamam. O NATÖ é o artista. O Renato é um maluco
“muito correria”: trabalho, trabalho, trabalho. Então, sempre tem trabalho no
sentido individual e coletivo. Para que as nossas necessidades e sonhos se
tornassem fome. Eu acho que o Natö é uma forma de saciar essa fome. A minha
formação como professor de história é fundamental? É ali que floresce: agora eu
sei como dizer a parada. Sempre quis fazer música, agora eu tenho mais
referências, embora eu tenha outras referências desde pequeno.

INFÂNCIA + PAI + BAIXADA FLUMINENSE: NÔMADE.

Não tem como falar de NATÖ sem falar do meu pai e da Baixada
Fluminense. Eu vou te explicar o porquê. Meu pai é feirante e vende discos em
Duque de Caxias. Tem duas paradas muito fodas sobre o meu pai: ele é feirante,
vende e coleciona discos; e foi DJ nos Bailes do Movimento Black Rio nas
décadas de 1970 e 1980. Na verdade, até hoje ele é DJ do Baile que rola debaixo
da Biblioteca Municipal Governador Leonel de Moura Brizola, em Duque de
Caxias. E ele também é muito apaixonado por samba. Então, desde pequeno,
meu pai estava lá falando, sempre me mostrando: “isso aqui é James Brown,
isso aqui é Martinho da Vila”.

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Eu cresci com esse caldeirão cultural na cabeça, dentro da Baixada


Fluminense. A baixada é o que é, né mano?! Acho que é o lugar de maior
efervescência cultural e de força de trabalho, as duas coisas acabam se
misturando, e daí vem o sentido do meu trampo Nômade, ele não se chama
assim à toa. Ele tem a ver com esse movimento pendular. Acordar cedo para ir
ao trabalho, sentir um monte de coisa no meio do caminho, e ver um monte de
coisas pela Baixada. Voltar pra casa e no fim de semana ter tempo para ir numa
festinha, num bailezinho, e se encontrar com a rapaziada.

A CONSTRUÇÃO DO NÔMADE PART 1 E 2

Na verdade, o “NÔMADE” era pra ser um disco. Eu sempre fiz música,


mas eu nunca conseguia ter grana e acesso para produzir um disco inteiro. Então
em 2016, comecei a fazer algumas guias e esse processo foi muito longo. Nesse
meio tempo, percebi que queria fazer um disco de dez músicas e não estava
conseguindo fazer nenhuma. Então, tive a ideia de dividir o EP em duas partes
com seis músicas cada. O NÔMADE (2020), foi pensado para ser todas as
músicas encaixadinhas para levar o ouvinte para vários lugares, sentimentos e
temas. Depois, decidi dividir em três partes, e consegui produzir a primeira parte,
isso no espaço de 2016 - 2020. Produzi a segunda parte, de 2020 – 2021. Agora,
durante o ano de 2021, não sei se vou trabalhar na terceira parte, mas sei que
vai sair alguma coisa. Porém não estou com pressa, tá ligado? Estou pensando
mais em trazer meu trabalho para rua, fazer show.

INFLUÊNCIAS

Desde muito cedo, ainda na década de 1990, eu fiquei muito interessado


por hip hop e rock. Eu nasci em 1995, quando despontaram o Rappa, Nação
Zumbi e Charlie Brown, essas bandas que são rock, mas um rock brasileiro.
Esses grupos me introduziram a outras bandas de rock, lá de fora, como Red
Hot Chili Peppers. Bandas que também misturam tudo: misturam com funk norte
americano, misturam jazz, punk, enfim. E aí você vai formando isso tudo, né? Eu
ouvia coisas novas, ouvia Zeca Pagodinho, Racionais MCs, um monte de gente
diferente, não tem como sair outra parada.

A minha antena não está virada lá pra fora primeiro, estava virada pra cá,
mas acredito que faço uma música universal. Tipo assim, eu acredito fazer uma
música que toca em todos os lugares. No app consigo ver onde toca, e vejo que
minhas músicas tocam em vários lugares que nunca imaginei que tocariam. A
minha primeira antena está sintonizada aqui no Brasil, eu não quero fazer uma
música que soe como música lá de fora, eu quero fazer uma música daqui de
dentro. Mas é algo global, sabe? Até nisso acho que a história me deu muitas
ferramentas, porque sempre tive as influências, mas o olhar de historiador me
abriu um leque, um universo.

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NÔMADE?

Eu acho que o NÔMADE é a expressão de um processo e de uma


trajetória. Essa trajetória está tanto no campo físico quanto no campo emocional.
Físico porque durante o processo de gravar o EP, eu costumo dizer que eu
“morei” no estúdio. Durante o ano de 2019 tive que transitar entre o Méier, Duque
de Caxias, Vila da Penha, Campo Grande e Bangu para conseguir gravar. É por
isso o termo NÔMADE. Além de ser um termo histórico as pessoas falavam:
“porra mano, você só anda com essa mochila gigante de camping nas tuas
costas?” Isso porque eu ia trabalhar e depois ia direto para o estúdio. Um amigo
tinha um estúdio em casa e ele me deixou viver no estúdio. Era um cômodo
pequeno e eu dormia num colchão dentro do estúdio. Então, no campo físico da
trajetória está essa questão. Há lugares. E nesses lugares a gente tem
referências diversas. No campo emocional é o caldeirão de emoções que estou
sentindo o tempo todo.

MEMÓRIA

Eu falo uma frase na música: “história é filme, não é foto”. Isso é uma
coisa que eu costumo dizer em sala de aula para chamar atenção de que não é
possível a gente compreender a nossa existência sem relacionar ela com a
memória, com a memória histórica. Pensar que às vezes uma pessoa vai sair na
rua e vai falar: “Pô, mas qual a diferença do meu vizinho que é preto e eu sou
branco na hora de ingressar em uma universidade pública? Por que cota?” Mano,
você está falando isso porque você está vendo a realidade como se fosse uma
foto, uma coisa estática que começou ali. Somente quando você vê a história
como um filme, que você entende que algo fez aquilo acontecer.

“...História é filme, não é foto


Que no escuro mantém
Pra revelar o hoje
Num retrato
Em que passado não vem…”

A gente nasceu e o filme já estava rolando. É assim com Duque de Caxias,


que é Baixada Fluminense. Era pra ser um polo cultural, uma cidade turística.
Mas por que, não é? Por que a praça se chama Praça do Pacificador? Tudo isso
está bem errado, né? Duque de Caxias não foi pacificador. Ele é tido como
pacificador, mas foi um genocida do caralho, entendeu? Mandou matar crianças
na guerra do Paraguai. Ele viveu uma parte da vida dele aqui, se eu não me
engano, acho que é isso. E a cidade leva o nome dele. Então, o que você espera
de uma cidade que leve esse nome quando você leva pro campo da política, das
relações sociais, da política pública. É isso, é como você falou mesmo, é senhor
de engenho. A sociedade, os pretos e pobres estão sendo diretamente
pressionados de cima pra baixo sem muita opção.

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Mas a gente não pode achar que as pessoas são vítimas desse processo,
dessa pressão e que elas são passivas. A gente nunca foi passivo. A gente é
forte pra caralho! Em todos os campos, mano. A gente vive pra caralho em todos
os campos, e a gente consegue ser ouvido porque não tem como ignorar. Tem
uma frase do Crioulo dita no programa da Marília Gabriela que eu acho
fascinante. Ele falou que você pode dizer que o gigante não existe. Até ele
começar a pisar nas flores do seu jardim. E aí quando ele pisar, essa conta não
vai ser ele que vai ter que pagar. Alguém vai ter que pagar o jardineiro.
Entendeu?

Deixa eu falar, deixa eu falar


Cheguei, cheguei
Acerta a conta com o passado
Futuro não se faz fiado
Ou a memória cobra depois
Entenda o recado de Zumbi
Mandela, Zapata, Malala
Memórias serão feitas aqui
Nós
Por
Nós
E mais nada!

Resenhas

Novo clipe de Marcão Baixada e Rodrigo Caê nasce


dentro de um filme
Por Azis Gabriel
A música “Tenho Que Correr” sai na próxima sexta, no Dia da Baixada e faz
parte da trilha sonora do documentário “@predioposto13 – Meu Nome é União”.

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Créditos: Azis Gabriel

Marcão Baixada contribui com a trilha sonora desse filme de forma


orgulhosa, pois o processo foi resultado da colaboração de diversos artistas da
região. “A Josy e o Caê foram duas grandes referências pra mim enquanto
fazedores de cultura no início da minha carreira e fiquei muito feliz por estarmos
colaborando juntos nesse projeto”, comenta Marcão.
Numa homenagem à Baixada Fluminense, as cenas foram gravadas ao
redor do Prédio Posto 13 e a letra aborda as lutas diárias dos moradores da
região. “A canção traz uma certa urgência em se colocar em destaque com
nossas batalhas e legitimar o protagonismo da região se colocando para além
dos estereótipos”, conta Caê.
A direção do vídeo clipe é realizada por Higor Cabral, criador audiovisual
responsável por realizar os vídeos anteriores do Marcão, além de diversos
artistas da região e que também fez a edição do documentário. “Essa é uma
música que o Marcão já tinha antes do documentário. Mas quando colocamos
para ouvir a primeira frase da música já parece que é o prédio falando com a
gente. Esse ser inanimado ganha vida no filme através das conexões das
pessoas com ele”, explica Higor.
O videoclipe de “Tenho Que Correr” estará disponível no YouTube neste
sábado (30), onde se comemora o Dia da Baixada e já está também como uma

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das cenas do documentário “@predioposto13 – meu nome é união” que está


rodando em festivais de cinema do Brasil.
Sobre Marcão Baixada
Marcão Baixada é um rapper, compositor e produtor premiado,
influenciador e agitador cultural de destaque na região da Baixada Fluminense.
O artista de 28 anos possui premiações expressivas, como o Take Back the Mic:
A Copa do Mundo do Hip Hop, realizado em Miami e o Prêmio Baixada na
categoria Música. Considerado pela crítica como um dos expoentes do rap
fluminense, Marcão carrega o lugar onde nasceu no nome. Além de sua
discografia, seus trabalhos como produtor incluem colaborações com artistas
como Marcelo D2, Cartel MCs, MC Marcelly e Luccas Carlos. Sua carreira conta
com passagens pelo Circo Voador e o clube Le Quai’Son (França), composições
para trilhas de publicidade e cinema; curadoria de projetos culturais,
apresentações de eventos e ativações de marca, e atuação na área de marketing
no mercado da música.
Sobre Rodrigo Caê
Rodrigo Caê é músico e produtor de Belford Roxo (RJ). Em sua obra
questões da vida cotidiana de um jovem morador da Baixada Fluminense:
distância, encontros, angústias, tretas, nóias, quase-amores, encantamentos,
chegada e retorno para casa. Sob influência da música eletrônica minimalista e
conceitual, alinhada com beats e cordas que emulam uma atmosfera sensorial.
Ficha Técnica
Composição: Marcão Baixada, Rodrigo Caê
Produção Musical: Marcão Baixada
Mixagem e Masterização: Gabriel Marinho
Foto de Capa: Getúlio Ribeiro
Arte de Capa: Vladimir Ventura
Assessoria de Imprensa: Quarto Escuro Sounds
Distribuição: Mondé
Serviço
Marcão Baixada e Rodrigo Caê - “Tenho Que Correr” (Music Vídeo)
Data: 30/Abril
Onde Assistir: https://bit.ly/TenhoQueCorrer

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Coluna

Peabiru 3000
Editor Ademas Pereira
Aqui passado e presentes irão se encontrar, em uma multiplicidade de formatos
textuais, da cantiga de rua ao discurso político, passando pelas artes, o cinema,
e as vidas anônimas dos brasileiros. Estórias e trajetórias serão contadas no
encontro proposto por essa grande encruzilhada: Peabiru 3000.

Artigos

22, Menó e uns B.O.


Por Dimas
Há uma fórmula antiga que diz: cada um que cuide dos seus B.O.
Sabedoria comum, humana. Escrita em várias línguas e traduzida às gerações,
adaptada mais de uma vez. Simples, provoca a entender o papo reto. Cuide,
faça o seu. Questiona ainda, qual a nossa parte nisso? Arrisca chamar a atenção
para um ato de responsabilidade maior. Preocupada em cuidar. Conduz
sobretudo à fé, faz crer que dá pra resolver esses B.O. E o que eles são, se não
a origem dos problemas de cada um? O B.O é provocante na medida em que a
busca pelo seu fim traz à vida um sentido. Cuidar do hoje para resolver o
amanhã.

Mas a vida é só um resolver B.O?

Nem tudo cabe em fórmulas…

Começa o ano após o carnaval. A gente já sabe. Brasil brasileiro. Virada


do ano, nas ideias que duram mais que a festa que é quase euforia, quase
revolução. É meio que um molejo num tempo, um mergulho pra começar o dia.
Pular 7 ondas. Em uma semana, Exu foi campeão do carnaval. O presidente em
ato falho admitiu que mente, pra geral. Uma aldeia yanomami foi queimada e
uma criança foi estuprada. Os militares se muniram de próteses penianas e
viagra. Um líder quilombola é assassinado a tiros. Sem falar do desastre
cotidiano que não viram manchetes de jornal. Só, em uma semana, é muito B.O
dos Menó pra resolver.

A essa altura o Menó se dá conta que o seu papo reto é coletivo. Cuidar
e buscar resolver junto. Não existe jornada de herói solitário na latinoamérica. O

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Menó é um coletivo. Cada um com seus B.O, tentando dizer como tenta resolver.
E vivendo. Sem excesso de texto no sangue. Pois a fórmula é mais que um texto,
como o ouro é mais que ouro para um alquimista. Ela é mais porque pode dizer
mais. Quer dizer mais. Quer apontar para esse mistério que não se resolve
sozinho, o Brasil. E quer aprender e cuidar mais dos seus rumos.

Em que tempo vivemos? Os momentos de aflição e desorientação se


intensificam como se fossem água subindo um rio na virada da maré. Arrasa
toda esperança de que estar à margem é seguro. O que nos resta pós-carnaval?
O clima de festa das Eleições? Copa do mundo? O Mano falou. Tem que voltar
para a base. Entender o que o povo tá vivendo. O que tá rolando. Seus B.O. O
Menó, aqui, só está buscando um caminho para resolver o Brasil que vivemos.
Tentando, com todo cuidado, para que não vire um paralelo do Brasil de Terra
em Transe. Um Eldorado feito à vontade dos poderosos, em que a sua “harmonia
universal dos infernos” é a razão da morte da história e das lágrimas do poeta.
O que mais transborda em nosso tempo, se não a consciência de que esse é o
papo reto? Esse é o dever maior dos menó.

Sobre a necessidade de representações afro-brasileiras


na Cultura Pop
Por Gabrielle Venancio da Silva (Skia)
Todos sabemos – em número, gênero e graus divergentes – que o Brasil
é um dos países com maior influência da diáspora africana no mundo. Este fato
se apresenta de várias formas, seja pela nossa história, cultura ou questões
étnicas-raciais (me refiro aqui somente a aparência, real ou estereotipada pelos
gringos). O ponto de reflexão que gostaria de apresentar aqui, no entanto, é:
Como um país com tamanha influência africana renega e deturpa uma de suas
raízes tão severamente?
Além do racismo estrutural, que se estampa e se mascara no cotidiano, e
da intolerância religiosa que, quase sempre, tem foco nos cultos de matriz
africana, o preconceito que exclui a existência de corpos pretos que apresento
para vocês pode ser para alguns, a princípio, uma questão vazia de
identitarismo. Mas, prometo que essa questão, que tanto incomoda muitas
pessoas pretas, retintas e não retintas- não é vazia - assim como não são os
movimentos identitários: Representação.
Enquanto uma pessoa preta (não retinta), que desde a infância foi cercada
pelos ritos das religiões de matriz africana- umbanda e candomblé, sobretudo,
umbanda- eu sempre me questionei porque os Orixás, deuses com histórias (ou
mitos, se preferir) tão ricas quanto os deuses do Olimpo ou de Asgard, não eram

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vistos com bons olhos, nem no dia a dia, nem no imaginário apresentado em
livros e telas do cinema de Hollywood ou do Brasil.
Essa frustração se enraizou em meu ser e hoje, com 23 anos, faço dessa
a minha missão enquanto estudante de filosofia, livreire e possível future
escritore.
No entanto, para alcançar meu objetivo de dar espaço a cosmogonia
yorubá, preciso de muito estudo e vivência. Nesse caminho, encontrei algumas
figuras que iniciaram essa jornada e me servem de inspiração, no ramo fictícios:
Eberton Ferreira, Hugo Canuto,e PJ Pereira.
Decidi falar aqui sobre a obra de PJ Pereira, “O livro do Silêncio”, volume
um da “coleção Deuses de Dois Mundos'', que li recentemente e me cativou e
provocou uma série de reflexões sobre seus personagens (os orixás e New, o
protagonista), sua escrita e sua pessoa.
Em 277 páginas, o autor nos apresenta um enredo de aventura e
investigação, dividindo a narrativa entre o eixo das histórias dos orixás, e o eixo
de New, um jornalista mauricinho de São Paulo no início dos anos 2000.
Me apaixonei pela jornada dos 7 heróis de Orum que buscam restabelecer
o equilíbrio do mundo em busca do odus sequestrados pela Iyami Osoronga! No
entanto tive um pouco de dificuldade de tragar a narrativa de Newton, devido a
uma série de questões relacionadas à cor, raça e classe…, mas, enfim, o fato é:
PJ criou uma ótima representação dos orixás e da cosmogonia Yorubá (digna de
ser roteirizada por streamings como a Netflix, ouso dizer), tal como Rick Riordan
com Percy Jackson e Os olimpianos. E ainda sim, seu livro é pouco conhecido
e/ ou tido como desinteressante pelo público consumidor de cultura pop. Tenho
certeza que isso não ocorre por seu protagonista de carisma duvidoso ou pela
obra. E sim por racismo, racismo epistêmico, racismo estrutural, intolerância/
racismo religioso.
Cidade Invisível ganhou destaque com os folclores da cosmogonia indígena, no
entanto seu elenco era, majoritariamente, branco. Então, lanço a pergunta:
Quando as histórias, mitos e cosmogonias não eurocentradas serão bem
recepcionadas e representadas pelo mundo Pop? Espero ver isso se concretizar
– em grande escala, assim como todas as outras mitologias – e quem sabe, que
eu ajude a fazer essa realidade acontecer. Conto com isso…

Poesias

Ônibus
Por Dimas
19
N.º 4, jan-mar de 2022.

Começo no compasso de um verso... "Eu penso"

E tropeço na própria estrutura da sentença.

A palavra que pensa?

Faço o que quero. No desvio poético, há algo de raro e um outro louco.

Que brinca com essa opaca liberdade.

O real disso é que estou no ônibus.

Já se faz a vez: às 21:53.

Hora que trepida com a questão: que é no lugar em que está o movimento?

Metamorfose, em que os pontos passam. Como se fossem todos destinos.

Alinho:

1- Eu penso: É Niteroi e vou pra casa.

Ainda assim, não nego a sentença das horas, pois faço ver.

Está aí, eu penso: está aí. Existe a máquina.

Vibram os seus motores.

Com eles trepidam sobre as rodas, corpos malemolentes que esparramam o


couro nos bancos. Amam os bancos. Por isso chamo-os educativamente de
bancários.

Observo os que (vão-vem) na máquina.

Não desgostam. Aceitam.

Estão aí para o aparelho. Modelam-se nele como assentados.

E emparelham o aparelho, as janelas, que são janelas para apoiar a cabeça,


sonhar, e janelas para refletir os olhares dos que habitam sob o mesmo ar
condicionado.

A máquina vibra, por fora: o mundo se agita no caminho da passagem. Por


dentro, nada penso na palavra, está aí. Há passagem e um aparelho.

Não há então um verbo para pôr em movimento, todo o resto do mundo?

O lado de fora aparece é um ponto, e outro ponto, além do mais.


20
N.º 4, jan-mar de 2022.

Faz 22:14... e lá já vai outro, ponto..........

E neste, lembro, havia sinal para um-descer-o-corpo.

Som da parada.

Para

Abrem-se portas.

O final... eu penso, é apenas hora de dizer com sinceridade:

Valeu moto!!!

21
N.º 4, jan-mar de 2022.

Coluna

Mesa de dama
Editor Fijó
Num lugarzinho pitoresco da baixada, existem senhoras e senhores, crianças,
adolescentes por aí conversando sobre a vida, sobre o mundo, sobre política,
religião e afins. Ideias nascem, crescem, se desenvolvem e até morrem dentro
dessas viagens pela subjetividade do dia-a-dia baixadense. Geralmente tais
conversas se dão num lugar improvável, sentados à uma mesa com um tabuleiro
de damas pintado, e eu convido você a ter um vislumbre da baixada no que se
propõe a ser um mensageiro dessas ideias.

Artigos

“Eu preciso disso para ontem”: O imediatismo como


obstáculo no cumprimento de metas a longo prazo.
Por Fijó
Como sugeriu o sociólogo francês Dominique Vidal, a demanda por
igualdade, no Brasil, pode se expressar de forma complexa. (...). Ora,
esta perspectiva parece mesmo bastante complexa, considerando a
tradição ocidental dos países do chamado Primeiro Mundo, nos quais
a igualdade se expressa justamente pela valorização das diferenças
encontradas na sociedade. (...) Diferentemente das sociedades nas
quais a diferença institui o conceito de igualdade – fazendo com que o
conflito seja inerente à estrutura social –, no Brasil a solução para
administrar diferentes interesses relaciona, a priori, o emprego de
práticas repressivas (PIRES, 2011, p. 144).2

Dentro da Baixada Fluminense se escuta constantemente algo como: “eu


preciso parar de estudar para trabalhar”. Geralmente, tal relato está relacionado
à necessidade, ao precisar colocar comida à mesa e pagar contas, ao sentimento
de aflição sentido quando o vencimento de um boleto está às portas e não
sabemos como (ou se) “faremos” o montante para honrar com tal compromisso.
Para as gerações anteriores (e, analisando o contexto atual, até hoje para grande
parte da população), a ordem era “trabalhe para que não sinta fome”, tornando
a busca por um “trabalho” (e não um “emprego”3) uma barreira para o

2 Pires, Lenin. Esculhamba, mas não esculacha! / Lenin Pires – Niterói: Editora da UFF, 2011.
171 p. (Coleção Antropologia e Ciência Política; 50).
3 Trabalho: do latim “tripalium”, um instrumento de tortura com três (tri) pedaços de madeira

(palum). A palavra passou ao francês como “travailler”, significando “sofrer, sentir dor”,

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N.º 4, jan-mar de 2022.

desenvolvimento acadêmico da população de baixa renda, que tem como


prioridade – inquestionável – investir seu tempo e sua energia em algo que dê
retorno financeiro rapidamente devido às carências experenciadas.

Porém, ao adotarmos tal comportamento, esbarramos em outra questão:


como ficam os sonhos e metas, de ambas as gerações, que almejam algo para
além do “agora”, e que também se veem na escolha de abandonar seus sonhos
em prol do “mas seu sonho não enche barriga”?

Vivemos em uma geração de profissionais emergentes. Além dos cursos


profissionalizantes se espalhando por todo território brasileiro (o que é de fato
uma melhoria se comparado à estrutura profissionalizante voltada para jovens
anos atrás), vemos seres que têm uma visão de mundo bem particular e que a
compartilham de forma única, seja através da pintura, da música, da pedagogia,
do jornalismo ou da medicina. A criatividade tem sido o nome por trás de ideias
inovadoras, muito mais até do que a tão falada pró-atividade. No entanto, a
criação – e, portanto, a criatividade – demanda tempo. Uma ideia revolucionária,
que pode mudar o mundo como conhecemos – de preferência, para melhor –
não vem do dia para a noite, ou em uma hora de almoço, ou em duas horas de
“descanso” em casa. Tais ideias precisam de um ponto de partida, além de um
processo de maturação, da reunião dos recursos materiais e humanos
necessários etc. Uma variedade de microprocessos que demandam energia,
conversas e, acima de tudo, tempo.

A beleza das gerações mais recentes, na boca de quem cresceu em meio


aos conflitos de gerações precedentes, é a tão famosa “facilidade” trazida pelos
avanços tecnológicos e suas consequências em pequena e grande escalas.
Entretanto, de nada vale tal “facilidade” (uso aspas pois sabemos que não foram
unicamente abolidos os problemas de antigamente; mas também que novos
problemas surgem conforme a sociedade passa por mudanças) se não existe
tempo hábil para utilizá-la da melhor forma. Se não existe tempo hábil, ou tempo
suficiente para construir algo novo, usando de novos conhecimentos que
também demandam tempo para serem adquiridos. E, se tais processos não
ocorrem, as ideias inovadoras que podem mudar o ambiente se tornam
escassas. O problema central, de “vender o almoço para comprar a janta”, se
transforma em “abrir mão de um futuro promissor – seja qual for o ramo
almejado/sonhado – em prol do presente instável e sem perspectiva de
mudança”.

evoluindo depois para “trabalhar duro”. Emprego: vem do latim “implicare”, “unir, juntar, enlaçar”,
formada por IN, “em”, mais PLICARE, “dobrar (como num tecido). Empregar uma pessoa é
promover um envolvimento, uma reunião de interesses. Fontes:
https://origemdapalavra.com.br/palavras/emprego/
https://origemdapalavra.com.br/palavras/trabalho/ [Grifos Nossos]. Acesso em: 28 jan. 2022.

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N.º 4, jan-mar de 2022.

A artista plástica e professora polono-brasileira Fayga Ostrower (1977)


preconiza em sua obra Criatividade e Processos de Criação4, que precisamos
levar em consideração que uma realidade, ao existir, exclui outras realidades, ou
pelo menos as impede de coexistirem e que, nesse sentido, “no formar, todo
construir é um destruir” (p. 26).

Tudo o que num dado momento se ordena, afasta por aquele momento
o resto do acontecer. É num aspecto inevitável que acompanha o criar
e, apesar de seu caráter delimitador, não deveríamos ter dificuldades
em apreciar suas qualificações dinâmicas. Já nos prenuncia o
problema da liberdade e dos limites (ibid., p. 26).

Para que o nosso futuro continue sendo, ao menos à vista de gerações


anteriores, “mais fácil” para quem por ele vem e nele nasce, precisamos destruir
a ideia tecnicista de “trabalhe agora, sonhe quando e se puder”. Ainda que não
possamos viver sem a realidade presente, sem suprir as necessidades do agora;
sem sonhos, metas e objetivos não poderemos sequer desfrutar do futuro para
o qual, ironicamente, perdemos o “agora” batalhando para não perder.
Precisamos construir a ideia de que o ócio, mesmo que aparentemente seja
inútil, pode ser sim chamado de Ócio Criativo (De Masi, 2000)5.

4
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação / Fayga Ostrower. - Petrópolis: Editora Vozes,
1977. 187 p.
5
DE MASI, Domenico. O ócio criativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2000. 328 p.

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N.º 4, jan-mar de 2022.

Coluna

Bora Apre(e)nder?
Editor Robson Campanerut
O que é ensinar? O que é aprender? O que faz de nós seres educativos? A
seção coloca na mesa o debate da importância de se aprender a aprender para
depois aprender a educar. A educação é a coisa mais linda, mas também uma
das coisas mais difíceis de se fazer.

Artigos

Você não é uma empresa


Por Coletivo Terral
Eles não querem te desenvolver, eles querem explorar você.

Quem nunca ouviu alguém falar: “Vou investir na minha carreira para crescer na
empresa.” ou “Preciso investir em tal curso para minha empresa me notar”; ou
ainda este: “A empresa está investindo em mim”.

Se em algum momento da vida chegou a pensar que estavam investindo em


você, então estava certo. Você só não reparou que a palavra “investir” vem do
ambiente financeiro. Pois bem, nada no mundo dos negócios tem o objetivo de
fazer com que os trabalhadores se sintam como parte de construção de mundo
mais justo ou menos desigual.

Se estão investindo em você, é para que dê o máximo da sua capacidade para


que a empresa atinja o máximo de lucro. Não pense que estão investindo para
lhe tornar um ser humano consciente do seu papel no mundo do trabalho. Pelo
contrário, investem em você, trabalhador, com o propósito de abusar das suas
energias, da sua potencialidade, da sua imaginação, da sua vida.

Interessante perceber que a palavra trabalhador está em desuso no mercado de


trabalho, ideia reforçada inclusive pelos meios de comunicação. Essa palavra,
porém, é a mais adequada para quem exerce uma determinada profissão no
mercado de trabalho. A ideia de dar outros nomes a quem trabalha, como por
exemplo colaborador e consultor, é uma estratégia sofisticada de alienação.

Ao fazer isso, eles colocam você em um espaço ilusório de quem ocupa a


posição de “patrão”, com o tempo você passa a funcionar não mais como um

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N.º 4, jan-mar de 2022.

trabalhador, mas como uma empresa. Ao se considerar uma empresa, você


deixa de perceber a sua dimensão humana e passa a funcionar como um
vendedor que não para de trabalhar durante às 24h dos 7 dias por semana.

O resultado disso você sabe: insônia, estresse, depressão, Burnout dentre


outros problemas de saúde contemporâneos.

Desde o início do texto estamos nos referindo a “eles”. Quem eles são?

O 1%: uma pequeníssima parcela da humanidade que controla uma parte


gigantesca da riqueza produzida pela natureza e pelas pessoas. Nosso país, por
exemplo, é um dos mais desiguais do mundo, em que os 10% do topo da
pirâmide apoderam-se de 59% de toda riqueza nacional.

As grandes corporações situadas na Europa e nos Estados Unidos são as


responsáveis por influenciar mundo a fora a noção de trabalhador como uma
empresa. Você, assim como nós, não é uma empresa. Uma empresa não quer
te desenvolver, ela quer abusar da sua capacidade criadora para render mais e
mais lucro. Não se engane.

Por isso o 1% sempre vai criar estratégias para te convencer a investir em sua
carreira. Ou seja, você investe dinheiro, aprende novas informações para ser
explorado. A vida, o trabalho, nós e você não cabemos na lógica do 1%.

Tal lógica não veio à toa. Ela foi historicamente construída por profissionais das
áreas que podemos enquadrar nas Ciências Cognitivas: psicólogos, pedagogos,
economistas, designers, publicitários, engenheiros, sociólogos, antropólogos,
entre outros que, em diversos debates acadêmicos ocorrido desde 1946, após o
término da Segunda Guerra Mundial.

Tais encontros são chamados de Conferências Macy e desdobrou-se na


consolidação do modelo matemático como chave de entendimento das relações
humanas, sociais, ambientais etc. Esse modelo foi desenvolvido por diversos
pesquisadores em organizações interdisciplinares, mas foi Norbert Wiener,
matemático de formação, que condensou estes estudos naquilo que ele chamou
de cibernética.

A cibernética pode ser considerada "o estudo científico do controle e


comunicação no animal e na máquina". Em outras palavras, é o estudo científico
de como humanos, animais e máquinas controlam e se comunicam. E a
comunicação tornou-se o modelo de análise das relações intersubjetivas e
técnica da realidade.

Após esse desenvolvimento inicial, empresas adotaram o modelo cibernético


para o desenvolvimento de análises preditivas de mercado. Como criar padrões
de comportamento, de consumo e até ideológico dos possíveis consumidores?
Como criar condições de compras e de previsões de consumo?

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N.º 4, jan-mar de 2022.

A cibernética e, consequentemente, as ciências cognitivas, desenvolveram


modelos e algoritmos de comportamento humano. As tecnologias digitais de
comunicação e informação se desenvolveram nestes últimos quarenta anos
baseadas no controle, padronização e modulação das pessoas que utilizam tais
ferramentas. O mundo, então, se tornou um grande portal eletrônico pautado
pela lógica de mercado e pela subjetividade empresarial.

Ao invés de sermos uma nação, ou um grupo étnico, podemos manter esses


vernizes mais gerais, mas podemos ser enquadrados como empresas de
negócios personalizados, indicando, na interação virtual, possíveis caminhos de
crescimento ilimitado de si, na finalidade de otimizar os custos de padronização
e constituir "máquinas de gente".

Você já pensou nisso? Como podemos fugir disso? Como podemos sair deste
moedor de gente e construtor de modelos preditivos de empreendedores?

Um podcast para mim, um podcast para você, todos nós


Perdidos na Paralaxe
Por Débora K. Fofano, Carlos Frederico Costa e Raquel R. Rocha
A maioria de nós descobriu os podcasts pela vontade de conhecer mais
sobre um determinado assunto, de ouvir o que outras pessoas têm a dizer sobre
algo, de distrair a cabeça com outros assuntos para além daqueles que povoam
as mídias tradicionais. Muitos de nós também ouvimos porque queremos
simplesmente estar mais informados, mas sem cair naquelas formas didáticas
de aprender algo. O podcast se tornou uma companhia agradável e,
especialmente durante a pandemia, criamos até um elo afetivo com os
podcasters, além de uma rede de novas amizades a partir de grupos criados a
partir dos podcasts. Além disso, é um formato que nos convida a simplesmente
ouvir, algo que podemos fazer enquanto também executamos outras tarefas
mecânicas, como caminhar, lavar louça, se deitar no sofá ou ficar apenas se
balançando em uma rede.
Neste pequeno artigo partimos do princípio de que os leitores pelo menos
já ouviram esse nome: podcast! Isso porque se você está em 2022, certamente
já ouviu um, senão pelo menos sabe do que se trata e consegue conceber mais
ou menos sua definição. Mas se não sabe, não tem problema, vem com a gente
que te ensinamos e aí sim, seu 2022 vai começar de verdade!
De acordo com os números apresentados nas plataformas agregadoras
de podcast, existe uma grande chance de muitos leitores terem um programa de
podcast ou de pelo menos ter participado de um. A brincadeira na cena
podcaster é de que todo ano é “o ano do podcast”, em especial após a inclusão

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N.º 4, jan-mar de 2022.

desta mídia nas principais plataformas de áudio (como Spotify), que vem
investindo pesado em programas exclusivos ou adquirindo direitos de
exclusividade de programas de sucesso, sem falar nos podcasts de veículos da
mídia tradicional como a Folha de São Paulo, Rádio CBN, dentre outras.
Independentemente do formato ou temática, o grande atrativo desta mídia
é, sem dúvida, sua linguagem (com exceção dos programas de narração de
histórias, de estilo próximo às radionovelas, por exemplo). E assim, pela paixão
por esse formato de comunicação maravilhoso, que percebemos um potencial
enorme de levar a filosofia (outra grande paixão nossa) de forma leve e
descontraída pelos sete cantos da podosfera.
– Amo podcast, quero ter um, mas só sei falar de filosofia! – Disse a
Débora para o Freddy no começo de 2020. A primeira preocupação que tivemos
foi sobre como criar um programa para abordar filosofia de uma forma acessível,
mas sem perder o rigor do pensamento, ou melhor: sem perder a profundidade
da filosofia e sem perder o bom humor. É aí que entra a ideia de pensar um
projeto que usasse a cultura pop como desculpa para falar de filosofia, que
conseguisse ser mais profundo em suas análises do que trabalhar em cima de
opiniões, mas sem criar uma sensação de aula. Por isso, a dinâmica de uma
conversa aparentemente informal nos soou mais natural e atrativa, evocando
mais à atmosfera dos bons encontros com amigos em torno do café ou de um
barzinho para debater sobre as coisas que a gente gosta, como filmes, literatura,
músicas e atravessar isso com filosofia de forma até despretensiosa. Assim
surgiu o Perdidos na Paralaxe6, cujo nome do programa já nos remete a um
conceito filosófico (paralaxe) e a ideia de que perdidos nesse conceito podemos
juntar a cultura pop, filosofia e outros temas aleatórios que fazem parte do nosso
cotidiano.
Por falarmos sobre filosofia, é comum que, em um primeiro momento,
associem o programa a um formato de programa que lembra a sala de aula. A
ideia de um podcast ser a extensão da sala de aula existe e é até interessante,
sendo aplicada muito bem em outros programas, mas não foi o nosso foco. Há
uma dicotômica interessante que as artes em geral enfrentam, elas podem
ensinar muito quando não pretendem fazer isso, uma vez que desconstroem os
paradigmas didáticos e metodológicos que o rigor acadêmico exige.
Aprendemos muito a partir das experiências estéticas, com filmes, séries, peças,
músicas, assuntos debatidos nas redes sociais. No entanto, caso essas
experiências tivessem a objetiva intenção de ensinar, talvez não nos apetecesse
tanto.
É isso que muito pretensiosamente tentamos fazer nos nossos episódios:
falar de coisas interessantes sem pretensão didáticas, porém, sem dúvida,

6 A nossa página no instagram é: @perdidosnaparalaxe

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N.º 4, jan-mar de 2022.

trazemos muito conteúdo filosófico e aleatoriedades que nos fazem pensar e


conhecer um bocado de coisas. Encontramos na podosfera a paralaxe ideal para
nos perdemos com a filosofia, a cultura pop e os vários assuntos aleatórios que
conversamos com nossos amigos. Nesse caso, adotamos a vontade de fazer um
podcast que é a extensão de um encontro entre amigos.
Achamos interessante tensionar isso, para diferenciar o trabalho do
podcaster do trabalho do professor. Porque fazer podcast é muito trabalhoso e
não podemos exigir que agora o professor tenha mais essa prerrogativa como
uma atribuição sua. Podcast e sala de aula são espaços diferentes, que podem,
de fato, se somarem enquanto experiência estética-educativa, mas não
podemos normatizar que um podcast se coloque lado a lado com o papel da sala
de aula na vida das pessoas. Até porque assim como programas de rádio e
televisão, o podcast está dentro de uma esfera do entretenimento que pode ou
não alienar o seu público, pode ou não promover debates mais instrutivos, do
ponto de vista educacional.
Todavia, não se engane! Embora não exista aparentemente uma proposta
pedagógica em nosso programa, possuímos um método para construir os
episódios, o que nos faz gastar muitas horas por semana em um trabalho, diga-
se de passagem ainda incipiente, do ponto de vista da remuneração. Para
produzir os episódios e nortear a discussão, precisamos elaborar uma pauta que
é construída coletivamente entre o elenco fixo e convidados. A pauta
normalmente inicia com a definição do tema, que pode ir de uma obra literária a
um release de um filme ou ainda o contexto histórico do assunto a ser abordado.
A partir daí, é preciso construir a imagem do assunto até para aqueles que não
o conhecem, permitindo que todos possam ouvir o programa sem se sentir à
parte na questão. Em seguida pesquisamos exaustivamente sobre o tema,
marcamos o dia e nos encontramos virtualmente para gravar o episódio. Depois
vem toda a parte de pós-produção, que inclui edição, revisão e distribuição.
Procuramos divulgar bastante, na intenção de romper a nossa bolha meramente
acadêmica, pois nosso grande objetivo é falar de filosofia de modo que a
sociedade em geral compreenda e para isso, nada melhor que a cultura pop.
Nesse sentido, voltamos ao assunto da linguagem. Partindo do princípio
de que somos escutados por um público heterogêneo, curioso e que não
necessariamente possui conhecimento filosófico prévio, há uma preocupação
sobre como explanar questões complexas e como quebrar algumas ideias
preconcebidas de que a filosofia é assunto para poucos. A ideia é que os
conceitos jogados ao ar sejam explicados pelos participantes e explorado
durante o episódio ou caso algum passe algum conceito despercebido, inserimos
o quadro “Qual é o conceito?” no momento da edição para que tudo fique
explicadinho. Dúvidas ao fim do episódio são normais, mas não queremos que
elas não sejam geradas por floreios conceituais confusos. Aliás, são as dúvidas

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N.º 4, jan-mar de 2022.

e sugestões que fazem a gente pensar em mais episódios (e não é assim com a
própria filosofia?!) e também despertam o interesse de quem está nos ouvindo.
Acreditamos que de fato, é possível aprender com podcasts, mas no
nosso caso, este não necessariamente é o objetivo, tampouco o resultado. O
principal e mais importante feedback que recebemos dos ouvintes é sobre
quererem saber mais sobre os assuntos, a procura pelos textos, livros ou filmes
que indicamos, tudo que complemente e enriqueça sobre os tópicos que
levantamos. A consequência é o despertar do interesse filosófico, a geração de
debates, o estímulo à leitura e à pesquisa e isso nos deixa muito satisfeitos. É
assim, Perdidos na Paralaxe de temas, ideias, filosofias e cultura pop que nos
encontramos na podosfera e procuramos nos conectar com quem nos ouve. Ao
entrar na vida das pessoas através do podcast queremos que elas tenham a
mesma satisfação e companhia afetiva que temos com os podcasts que
aprendemos a amar.

Territórios indígenas em território cearense


Por Ronaldo de Queiroz Lima

Apresento aqui informações sobre os territórios ocupados por diferentes


povos indígenas no Estado do Ceará. Tanto dados primários como secundários

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N.º 4, jan-mar de 2022.

produzidos e colhidos, respectivamente, ao longo dos anos de 2016 e 2017,


apontam para quantidade significativa de povos indígenas cearenses.
Segundo o Sistema de Atenção à Saúde Indígena (SIASI) – Distrito de
Saúde Especial Indígena (DSEI), Secretaria Especial de Atenção à Saúde
Indígena (SEASI), Ministério da Saúde (MS) - a população indígena que tem
cadastro no DSEI/CE soma trinta e duas mil, quatrocentos e trinta e quatro
pessoas de ambos os sexos e das diferentes faixas etária.
Há hoje no Ceará 14 povos organizados no movimento indígena. Essa é
uma categoria nativa chave mobilizada por lideranças indígenas que
administram o parâmetro de incorporação e participação nesse movimento social
de minorias étnicas. Esta categoria modula inclusive a posicionalidade entre
lideranças, o que é proporcional ao tempo de dedicação a causa indígena. Além
disso, as lideranças indígenas classificam e organizam os grupos que
expressam consciência como indígenas e que se dispõem a esta mediação. Isto
se dá a partir da agência de associações indígenas de atuação estadual e da
coordenação colegiada de juventude indígena: Federação dos Povos Indígenas
do Ceará (FEPOINCE), Articulação das Mulheres Indígenas do Ceará (AMICE),
Coordenação da Juventude Indígena do Ceará (COJICE), Organização dos
Professores Indígenas do Ceará. Hoje, essas são as formas organizativas do
movimento indígena do Ceará, as quais são agentes em termos de ideologia,
agenda política e ações de defesa dos direitos dos povos indígenas cearenses.

Os territórios ocupados por indígenas do movimento indígena estão


localizados em 19 municípios cearenses. A seguir a configuração
município/etnias: Acaraú/Tremembé; Aquiraz/Jenipapo-Kanindé;
Aratuba/Kanindé; Boa Viagem/ Potiguara e Tubiba-Tapuia; Canindé/Kanindé;
Caucaia/Tapeba e Anacé; Crateús/ Potiguara, Tabajara, Kalabaça, Tupinambá

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N.º 4, jan-mar de 2022.

e Kariri; Itapipoca/Tremembé; Itarema/Tremembé; Maracanaú/Pitaguary;


Monsenhor Tabosa/Potiguara, Tabajara, Gavião e Tubiba Tapuia; Novo
Oriente/Potiguara; Pacatuba/Pitaguary; Poranga/Tabajara e Kalabaça;
Quiterianópolis/Tabajara; Carnaubal/Tapuia-Kariri; São Benedito/ Tapuia-Kariri;
São Gonçalo do Amarante/ Anacé; Tamboril/ Potiguara.
A configuração de termos município/etnia no Estado do Ceará reflete a
linguagem de lideranças indígenas cearenses que classificam cada povo em
termos de etnia por município. No entanto, em termos demográficos, a etnia,
neste contexto, significa uma predominância. Por exemplo, os Potiguara estão
nos municípios de Monsenhor Tabosa, de Novo Oriente e de Crateús. No
entanto, há Potiguara nas áreas indígenas em Aquiraz e Caucaia. Há Potiguara
também no município de Caucaia morando com o povo Anacé. O Povo Indígena
Tapeba ocupa território no município de Caucaia, no qual há indivíduos desse
povo que residem em Quiterianópolis, Itapipoca e Maracanaú. Situação similar
acontece com uma família Tremembé que vive no município de Aquiraz com o
Povo Jenipapo Kanindé. As áreas indígenas ocupadas pelo povo Tremembé
estão nos municípios de Acaraú, Itapipoca e Itarema. Estes exemplos não são a
completude da realidade dos territórios indígenas cearenses, mas demonstram
que a relação etnia/município não é absoluta.
Há áreas indígenas cuja regularização é requerida por mais de um povo.
É o caso da Terra Indígena Serra das Matas onde vivem os Povos Potiguara,
Tabajara, Gavião e Tubiba-Tapuia, cujo território está localizado nos municípios
de Monsenhor Tabosa, Tamboril e Boa viagem. Parte desta área indígena está
na zona urbana de Monsenhor Tabosa e é denominada pelas lideranças como
periferia. Há também área indígena urbana no município de Crateús que também
é nomeada pelas lideranças como periferia e é ocupada por cinco Povos
Indígenas: Potiguara, Tabajara, Kalabaça, Tupinambá e Kariri.

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N.º 4, jan-mar de 2022.

O fenômeno da multiplicidade étnica em territórios indígenas cearenses


se dá, na maioria dos casos, pelo casamento interétnico. Por outro lado, o
compadrio também é um fator importante que gera migração interétnica. Os
territórios indígenas no Ceará são multiétnicos tanto em função do casamento
como do compadrio.Por outro lado, o movimento indígena do Ceará compõe uma
unidade cosmopolítica por meio de vínculo construído historicamente entre
lideranças de diferentes gerações. Essas pessoas indígenas se vinculam à
medida que vivenciam a experiência promovida pela agenda do movimento
social do qual fazem parte. Os dois principais eventos são A Assembleia
Estadual dos Povos Indígenas do Ceará e a Marcha pela Terra. A perambulação
– movimentação - (INGOLD, 2015) das lideranças indígenas para os territórios
indígenas e para diferentes arenas de poder do território cearense possibilita a
construção social do vínculo interétnico. Este é reificado e atualizada a cada
novo ano de atividades.
A espiritualidade indígena é um fator importante na geração do vínculo
interétnico a partir da experiência gerada pelas organizações do movimento
indígena do Ceará. Não é raro observar a invocação de encantados relacionados
à Jurema, ao Mar, às Matas durante a execução do ritual sagrado do Toré que
acontece em quaisquer atividades desse movimento social. Os encantados são
não-humanos significados como biomas onde vivem os indígenas e como seus
antepassados, que podem reencontrar seus parentes no presente da luta
indígena por meio da dança ritual do Toré. Esse reencontro funde passado e
presente, diferentes Povos Indígenas cearenses, reifica o vínculo interétnico
numa temporalidade ritual própria, a qual é orientada para fortalecer a resistência
indígena diante das violações de seus direitos e a presença multiétnica nas
arenas de poder do território cearense. Esta análise pode também servir para se
pensar configurações multiétnicas noutros territórios. Porém, é possível dizer
que no caso do Estado do Ceará, a prática cosmopolítica dos Povos Indígenas
cearenses é multiétnica e a sua forma organizativa é reflexo disso.
As lideranças indígenas do presente desenvolvem articulações próprias
de cada etnia/município, as quais são cosidas com os fios das relações
multiétnicas, casamento, compadrio, vínculo cosmopolítico. Essa realidade
pluriétnica possibilita a vida social de diferentes movimentos. Passo a apresentar
os agentes da cosmopolítica indígena nos diferentes territórios indígenas no
território cearense.
No município de Monsenhor Tabosa há o Movimento Potygatapuia e o
Conselho Político Tabajara, na zona rural, e o Movimento Potijara, na zona
urbana. O movimento promovido pelo Conselho dos Índios Tremembé de
Almofala (CITA) através de seus delegados costura articulações por meio do
cacique e do pajé junto a lideranças na terra do aldeamento de Almofala e nos
territórios Tremembé Córrego João Pereira, em Santo Antônio e Camundongo,
todos esses no município de Itarema, e em Queimadas, no município de Acaraú.
Os Tremembé da Barra do rio Mundaú têm articulação independente das
anteriores e não legitima a figura do cacique e do pajé.
O Povo Tapeba movimenta-se a partir das lideranças indígenas que
compõem a Associação das Comunidades Indígenas Tapeba (ACITA), a qual

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N.º 4, jan-mar de 2022.

articula 14 das 17 comunidades indígenas no território Tapeba no município de


Caucaia. O Povo Pitaguary se movimenta através de quatro caciques, um pajé
e de lideranças nas aldeias dos municípios de Maracanaú e de Pacatuba. O povo
Jenipapo Kanindé se articula através de três caciques mulheres e um pajé no
território indígena denominado como Lagoa da Encantada. O povo Anacé da
Japuara e Santa Rosa, em Caucaia, se articula através de dois caciques,
enquanto os Anacé de São Gonçalo somente com lideranças.
O Povo Indígena Kanindé se movimenta a partir do cacique e das
lideranças da aldeia Sítio Fernandes em Aratuba e da aldeia Gameleira em
Canindé. Em Crateús, na periferia, há cinco povos que se articulam através de
caciques, pajés e lideranças, coletividade essa que também exerce o domínio
sobre território indígena rural nas aldeias de Mambira e Nazário. Os Tapuia-
Kariri, nos municípios de Carnaubal e São Benedito, movimentam-se através da
caciqua, do pajé, e de lideranças. Os Tabajara e Kalabaça de Poranga,
movimentam-se a partir de seus respectivos caciques, pajés e lideranças.
É possível dizer que o movimento indígena do Ceará move-se a partir das
perambulações de caciques, pajés e lideranças nos territórios indígenas
cearenses – nas aldeias e comunidades indígenas. Parte importante disso é a
logística necessária ao deslocamento e comunicação entre os agentes desse
movimento social, quando se aciona as associações indígenas, os conselhos
indígenas e até mesmo as Escolas Indígenas.
Por outro lado, em diferentes arenas de poder no território cearense, os
agentes da cosmopolítica do movimento em tela desempenham diferentes
funções na interlocução com servidores e autoridades do Estado brasileiro.
Exemplo disso são os agentes indígenas de saúde indígena, o de endemias, os
conselheiros locais e distritais de saúde indígena, como também a
representação no conselho nacional de saúde indígena; os conselheiros das
escolas indígenas, os delegados das conferências de educação escolar
indígena; os membros do grupo interinstitucional de educação escolar indígena
(em transição para ser um comitê estadual de educação escolar indígena); os
membros do comitê de política cultural para povos indígenas, instância da
Secretaria de Cultura do Ceará (SECULT); No campo da educação diferenciada
os professores indígenas, gestores e servidores; Lideranças indígenas
representantes movimento indígena do Ceará junto à Secretaria de
Desenvolvimento Agrário (SDA); no campo do poder público municipal, o
exercício do controle social em conselhos municipais de diferentes áreas, como
educação, saúde, cultura e agricultura.
Há também a relação histórica entre indígenas e sindicatos rurais, partidos
políticos e instituições religiosas de diferentes orientações que também diz sobre
a perambulação dos agentes da cosmopolítica dos Povos Indígenas cearenses
em território cearense e até mesmo no território nacional. Essa movimentação é
constitutiva dos agentes do movimento indígena do Ceará, e por isso influencia
na cosmopolítica dos indígenas que exercem liderança. Outro fator importante
desse movimento social é a influência exercida por um Povo Indígena sobre
outros. Os povos Tapeba, Tremembé, Pitaguary e Jenipapo Kanindé influenciam
de modo significativo a forma de organização dos demais povos. Atualmente, o

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N.º 4, jan-mar de 2022.

Povo Indígena Tapeba é a principal influência cosmopolítica no movimento


indígena do Ceará.
Então, a perambulação dos agentes da cosmopolítica dos Povos Indígenas
do Ceará que se dá nos territórios indígenas, no território cearense e até no
território nacional através de relações com servidores e autoridades do poder
público municipal, estadual e federal, é o que constrói o vínculo pluriétnico capaz
de movimentar as aldeias e comunidades indígenas cearenses. Os territórios
indígenas cearenses também são plurais em função do casamento e do
compadrio interétnico. A cosmopolítica dos Povos Indígenas cearenses reflete a
realidade social multiétnica. A pluralidade se dá também em relação aos agentes
da cosmopolítica, cacique, pajé e indígenas que exercem liderança em suas
aldeias e comunidades, como também em relação às diferentes funções que
podem ocupar na relação com o Estado brasileiro, tais como agente de endemias
e professor, por exemplo. Esta relação de poder, ora de equilíbrio, ora de
subjulgação, está muito para além do órgão indigenista legal.
A vida social dos territórios indígenas cearenses se dá na vivência de
experiências multiétnicas, as quais refletem na cosmopolítica do movimento
indígena do Ceará. A meu ver, esta é a característica principal que torna este
movimento social permanentemente ativo mesmo diante da realidade imposta
pelo Estado brasileiro de apenas um território indígena ter sido regularizado, no
território cearense. Isto implica nas políticas públicas de etnodesenvolvimento,
de saúde, de educação, de proteção e conservação do ambiente necessário à
vida desses povos no presente e no futuro.

As informações sobre as áreas indígenas no Ceará que foram


requisitadas a regularização fundiária são do ano de 2015, salva a situação da
Terra Indígena (TI) Tapeba. Esse conjunto de dados apresenta 26 demandas,

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N.º 4, jan-mar de 2022.

organizadas por ordem cronológica. Desse conjunto, 23 áreas são reclamadas


por povos indígenas que estão vinculados ao movimento indígena do Ceará.
Esse último número expressa a força organizativa do movimento indígena na
luta pela demarcação de suas terras no Ceará.
A morosidade na demarcação de terra indígena não é um processo
exclusivo do Ceará, segundo lideranças indígenas, mas nesta unidade federativa
está o caso emblemático desse atraso. O caso Tapeba, em 2017, foi levado para
a Organização dos Estados Americanos (OEA) pela Defensoria Pública da
União. Isso porque naquela ocasião havia um atraso de trinta e três anos. As
consequências da morosidade em se demarcar terras indígenas são inúmeras,
o que merece um texto a parte. Todavia, esse atraso intensifica conflitos
fundiários entre indígenas e não indígenas, inviabiliza a proteção do ambiente
necessário à reprodução física e cultural dos grupos, coloca as áreas indígenas
em indefinição de jurisdição no que se refere à segurança pública, como também
deixa vulnerável à grandes empreendimentos, para além da insegurança
alimentar.
A intenção em se construir uma tabela que forneça o ano de início da
demanda por demarcação e a sua situação fundiária atual é para tornar explícita
a realidade de violação do direito originário sobre a terra que tradicionalmente
ocupa um dado povo indígena – o território indígena. A seguir a Tabela 01 com
informações sobre a morosidade do processo de regularização dos territórios
indígenas cearenses.

TABELA 01: MOROSIDADE DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DE DEMARCAÇÃO DE


TERRAS INDÍGENAS NO CEARÁ
Sequencia Áreas Indígenas Ano de início da Situação do Morosidade em
cronológica demanda procedimento anos
de
regularização
fundiária
indígena
01 TI Tapeba, 1985 Publicação da 33
Caucaia. Portaria
Declaratória
dos Limites em
agosto 2017.
02 TI Tremembé de 1986 Demarcação 32
Almofala, Itarema. suspensa
desde 1996.
03 Tremembé do 1992 Homologada 11
Córrego do João desde 2003.
Pereira (Itarema e
Acaraú)
04 Pitaguary 1993 Declarado os 25
(Maracanaú e limites desde
Pacatuba) 2006.
05 Jenipapo Kanindé 1995 Declarados os 24
limites desde
2011.
06 Kanindé de 2001 Demanda 17
Aratuba Qualificada

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N.º 4, jan-mar de 2022.

07 Kanindé de 2001 Sem 17


Canindé providências
08 Tremembé de 2003 Declarado os 15
Queimadas limites em
(Acaraú) 2013.
09 Anacé – Reserva 2003 Entrega da 16
Taba dos Anacé, Reserva em
São Gonçalo. fevereiro de
2018.
10 Anacé de Caucaia 2003 Publicar no 15
DOU resumo
do Relatório.
11 Potyguara, 2003 15
Tabajara, Gavião e
Tubiba-Tapuya, Publicar no
Serra das Matas, DOU resumo
Monsenhor do Relatório.
Tabosa, Tamboril e
Boa Viagem.
12 Tremembé de 2003 Demarcação 15
Itapipoca, Barra do Física
Mundaú.
13 Tabajara e 2003 Qualificar a 15
Kalabaça de demanda
Poranga/Umburana
14 Nazário, Crateús. 2003 Efetivar a 15
transferência do
imóvel do
INCRA para
FUNAI.
15 Potyguara, 2003 Regularizar 15
Tabajara, áreas doadas
Kalabaça, Kariri e pela Prefeitura
Tupinambá. de Crateús.
Periferia de
Crateús.
16 Tabajara, 2003 Sem 15
Quiterianópolis providências
17 Paiacu de 2003 Sem 15
Paripueira, providências
Beberibe.*
18 Potyguara de Novo 2003 Sem 15
Oriente. providências
19 Tremembé de 2004 Qualificar a 14
Aroeira, Acaraú demanda
20 Potyguara de 2005 Reintegração 13
Paupina* de posse.
21 Tabajara e 2007 Nomear GT de 11
Kalabaça, Cajueiro, Identificação e
Poranga Delimitação
22 Tapuya-Kariri, 2007 Nomear GT de 11
Carnaubal e São Identificação e
Benedito Delimitação
23 Tremembé de 2010 Qualificar 08
Santô Antônio, demanda
Itarema

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N.º 4, jan-mar de 2022.

24 Tremembé de 2010 Qualificar 08


Camundongo, demanda.
Itarema.
25 Tabajara, Ipueiras Desconhecido Sem N/d
Providências
26 Kariri, Região do Desconhecido Sem N/d
Cariri. providências
Fonte: A partir da Nota técnica nº02/2015Ministério Público Federal/Procuradoria
da República no Estado do Ceará/Assessoria Especial-Antropologia7. *Não
estão organizados junto ao Movimento Indígena do Ceará, fonte: Movimento
Indígena.
O texto constitucional garante que as demarcações de terras indígenas
devem acontecer em cinco anos, contados da data de promulgação daquele8, o
que nos fornece um parâmetro para avaliar cada um dos casos acima. Retirando
as demandas sem providências, o tempo menor de morosidade é de 8 anos em
procedimentos que estão em fase preparatória. O caso de maior morosidade
ultrapassa três décadas. O povo Tremembé de Almofala aguarda uma decisão
de primeira instância há 22 anos. Além do caso dos Potiguara de Paupina, não
há impedimentos legais aos demais casos que não têm andamento. Por fim, há
uma terra indígena homologada que teve 11 anos de procedimento
administrativo, TI Tremembé Córrego do João Pereira, e uma Reserva Indígena,
reserva Taba dos Anacé, que aguarda publicação do resumo do Relatório de
Criação no Diário Oficial da União e demais registros oficiais, o que já dura 16
anos.
Não há na razão jurídica ou na razão administrativa justificativa para a
morosidade na demarcação de terras indígenas descrita na tabela acima. Fora
da razão jurídica e administrativa, na análise do processo histórico no qual está
inserido o conjunto de demandas por áreas indígenas no Ceará contemporâneo
se encontram outros fatores de explicação da violação ao direito originário à terra
indígena tradicional como às outras modalidades de áreas indígenas.
A elite econômica brasileira exerce forte pressão contra a regularização
fundiária de territórios indígenas. É a bancada dos ruralistas, juntamente com os
seus aliados, quem vem exercendo pressão política contrária à demarcação de
terras indígenas e a favor da ampliação da exploração mineral em territórios
indígenas. Uma quantidade significativa de projetos de lei, de emendas
constitucionais, de portarias e de resoluções produzidas pelo poder legislativo,
executivo e judiciário nacional demonstra um plano de ações anti-indígena. Isso
significa que a questão étnica em nosso país não só é negligenciada, tornada
menor, mas inadmissível para essa elite ruralista, assim como é a posse
indígena de terras tradicionais e outras modalidades de terra.

Referências:

7
Transcrição do enunciado do documento: “Solicitante: Representante da 6ª Câmara de Coordenação e
Revisão no estado do Ceará. Ementa: Estado Atual das Demandas Referentes à Demarcação de Terras
Indígenas no Estado do Ceará”.
8
Ver artigo 67 em Ato de Disposições Transitórias.

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N.º 4, jan-mar de 2022.

INGOLD, Tim. 2015. “Terra e Céu”. P.215-229 In: _______Estar vivo: ensaios sobre
movimento, conhecimento e descrição. São Paulo, Editora Vozes.
Distrito Sanitário Especial Indígena do Ceará (DSEI-CE).

O ensino de Filosofia segundo um Geógrafo


Por Romi Pereira
O ensino de filosofia está centrado na prática educativa ministrada pelo
professor e na inter-relação do mesmo com os alunos. Essas relações de
interação de professor e aluno ocorrem à necessidade do docente articular para
obter as possibilidades da realidade vivida do discente.
O professor não deve intervir para acabar com os desejos e anseios do
aluno, mais para libertá-los das correntes invisíveis que o cerca no seu cotidiano.
Este artigo foi realizado com base em experiência vivida em sala de aula visando
apresentar um panorama sobre as dificuldades enfrentadas no ensino de
filosofia.
Podemos verificar que a formação inicial dos professores de filosofia é
fundamental no desdobramento de sua prática, pois, como reflete Cerletti (2009),
o professor de filosofia é construído dentro de uma academia e sob o processo
de uma vida acadêmica, e é essa formação que, inicialmente, será o motor para
a vivência em sala de aula, e não um fantasma a assombrá-lo, se a teoria for
divorciada de sua prática, como pontua Ulhôa (1988).
Segundo Arendt (2016), a passagem das novas gerações pelas salas de
aula não lhes possibilita fazerem parte, no futuro, de um espaço público
compartilhado por outras pessoas que interagem através de relações
harmoniosas. Consideramos ser oportuno pensar a construção de um ambiente
favorável ao ensino filosófico, através da busca pela experiência da alteridade,
por meio do conceito de Empatia proposto por Edith Stein (1964), e como
consequência deste movimento em direção à experiência do Outro, possibilitar
um ensino filosófico que motive os estudantes com o entusiasmo da vivência
filosófica.
Propomos também, neste artigo, pensar sobre os avanços no ensino de
filosofa, à luz do uso das novas tecnologias de informação e comunicação. Visto
que, no contexto das relações sociais modernas, a internet é, ou se torna uma
importante ferramenta na construção dessas novas vivências.

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N.º 4, jan-mar de 2022.

Coluna

O Negócio é ser Rural


Editora Eliana Leite
Inspirada na temática do livro Small is Beautiful (O Negócio é Ser Pequeno), a
coluna “O negócio é ser rural” valoriza o invisível mundo rural, jogando luz sobre
a enorme viabilidade do país em sua essência tropical, a partir de temas como
educação agrícola, agroecologia, reforma agrária, comércio justo, povos
tradicionais, pesca artesanal e economia solidária, sempre tendo como elemento
ligante a proteção social, cultural e do meio ambiente.

Artigos

Vitória quilombola em Alcântara pode repercutir em todo


o país9
Por Eliana Leite
As comunidades quilombolas de Alcântara, no Maranhão, obtiveram uma
importante vitória em janeiro de 2022, com o envio do caso da instalação do
Centro de Lançamento de Alcântara em seu território, iniciado na década de 70,
à Corte Interamericana de Direitos Humanos – Corte IDH. O Brasil será julgado
pela Corte IDH por prováveis violações de direitos humanos no processo de
instalação da Base de Alcântara.
Trata-se de um fato de grande relevância que fortalece a luta pelos direitos
de todas as comunidades tradicionais brasileiras, em especial no direito ao
território que ocupam, o que é previsto na Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais, ratificada pelo Brasil
por decreto legislativo em 2002.
De acordo com a Organização dos Estados Americanos, os povos
tradicionais de Alcântara são de ascendência indígena e africana. Trata-se de
uma rede de comunidades baseada na interdependência e reciprocidade, que
reclama 85 mil hectares de terras ancestrais.
Nos anos 80, 52 mil hectares do território habitado por 32 comunidades
quilombolas foram expropriados pelo Estado brasileiro, que reassentou seus

9 Publicado originalmente em MIDIA NINJA em janeiro de 2022.

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N.º 4, jan-mar de 2022.

habitantes em 7 agrovilas, para desenvolver o Centro de Lançamento de


Alcântara.
De acordo com a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de
Povos e Comunidades Tradicionais, decretada em 2007, comunidades
tradicionais: são grupos culturalmente diferenciados que ocupam e usam
territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural,
social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos e práticas
gerados e transmitidos pela tradição.
Isto significa que povos tradicionais dependem diretamente do meio
ambiente para sobreviver, em sua maior parte, sendo seu território fonte desta
sobrevivência e base para a permanência de seu modo de vida tradicional.
A relação de harmonia com o meio ambiente e as comunidades
tradicionais é de tal monta que os cientistas lhes atribuem fundamental papel na
preservação da biodiversidade global. É dever de toda a sociedade, portanto,
protegê-las.
De acordo com o portal Publica!, a construção da base de lançamento de
foguetes da Força Aérea Brasileira removeu compulsoriamente mais de 300
famílias ao longo da década de 80. Para agravar, o governo Bolsonaro assinou
acordo para ceder a base aos Estados Unidos, o que também está sendo
denunciado. A titulação do território está parada há mais de 13 anos.
A ida do processo de denúncia à Corte IDH ocorre após mais de 20 anos
de tramitação no Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos,
ligado à Organização dos Estados Americanos – OEA. De acordo com Publica!
a petição foi apresentada por representantes das comunidades atingidas e
entidades como Justiça Global, Global Exchange e Federação dos
Trabalhadores na Agricultura do Estado do Maranhão (FETAEMA), entre outras.
A denúncia apontou “desestruturação sociocultural e violação ao direito de
propriedade e ao direito à terra” dos quilombolas de Alcântara.
Em 2020, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da
Organização dos Estados Americanos considerou que o Estado brasileiro violou
direitos das comunidades quilombolas de Alcântara e recomendou a titulação do
território, a consulta prévia em relação ao acordo com os Estados Unidos, além
da reparação financeira dos removidos, entre outras medidas. Como o Brasil não
atendeu, a Comissão enviou o caso para a Corte de Direitos Humanos.
Segundo Danilo Serejo, quilombola e assessor jurídico do Movimento dos
Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe), uma das partes no processo,
há uma expectativa de que o Brasil seja condenado a reparar as comunidades
de Alcântara. Esta vitória sem dúvida será estendida a todas as comunidades
tradicionais do Brasil.

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N.º 4, jan-mar de 2022.

Coluna

Energia em Evolução
Editor Aed Vieira
Convido a todos a construirmos um espaço de conhecimento e aprendizado,
descomplicando as aplicações e tecnologias da energia elétrica.
Vamos juntos apresentar soluções para eficiência energética, fontes de energias
renováveis e cuidados em nosso cotidiano, para mostrar que a inovação na
geração de energia está cada vez mais presente na nossa vida e isso é papo
sério.

Artigos

Energia em evolução
Por Aed Vieira
Sejam todos bem-vindos! Hoje vamos iniciar nossa trajetória entorno da
eletricidade, que busca levar informações precisas, dinâmicas e repletas de
conhecimento aos leitores. Por muito tempo observamos a dificuldade de todos
em ter acesso a este tema, sendo assim, esta coluna vem desmistificar esse
temido assunto.
A energia elétrica está presente em diversas aplicações em nosso
cotidiano como em nossas casas, na iluminação pública, ao carregar a bateria
de dispositivos móveis, ao conectar um aparelho ou eletrodoméstico na tomada,
entre outros. Dessa forma, fica evidente que seu uso é constante em nosso dia-
a-dia, assim como a proximidade das pessoas com essa fonte de energia. Além
destes benefícios selecionamos os pontos principais que influenciam
diretamente a vida de todos. Vamos abordar modelos de geração de energia,
formas de economia, segurança das instalações, fontes de energias renováveis,
descarga atmosféricas e como nos proteger de possíveis riscos à saúde.
Para abordarmos estes temas é necessário em primeiro lugar
apresentarmos a questão principal que envolve a energia elétrica, onde
podemos destacar: a segurança em instalações elétricas e o risco oferecido pela
interação direta e indireta com a energia. Como a cada dia nossa proximidade
aumenta, também aumentam os riscos causadores de danos físicos e materiais,
mas todos esses riscos possuem medidas de controle a serem amplamente
usadas e apresentadas de forma descomplicada ao público geral. Neste tópico
o objetivo será apresentar todos os cuidados necessários que precisamos tomar
individualmente com a finalidade de nos proteger contra os riscos mencionados.

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N.º 4, jan-mar de 2022.

Com toda certeza em algum momento nos veio à mente as questões a


seguir, “de como a energia elétrica surgiu? De que forma ela chega até nossas
casas? Porque o risco é tão grande? Porque pagamos tão caro pelo
fornecimento de energia?” As respostas a essas perguntas não são complexas
e nem mesmo estão distantes da nossa realidade.
Mesmo após muitos anos do surgimento da eletricidade em conjunto com
a popularização da sua utilização, muitas de suas aplicações continuam sendo
encaradas como um obstáculo ou até mesmo algo muito distante de nosso dia-
a-dia. Enquanto na verdade a nossa proximidade com essas informações
precisa maior, para usufruirmos de todos os benefícios possíveis ofertados neste
segmento, transformando o distanciamento causado pelo medo da energia
elétrica em uso consciente e prático.
Convido a todos a participarem deste espaço de conhecimento. Nos próximos
periódicos vamos abordar em detalhes todos os temas citados, com o objetivo de oferecer
segurança e informação ao leitor em sua interação com a eletricidade.

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N.º 4, jan-mar de 2022.

Coluna

Observatório Cotidiano
Editor Roberto Brito
O espaço Observatório Cotidiano tem a vocação de tornar públicas as múltiplas
visões daquilo que é, em parte, inominável e intangível: o cotidiano. O tema vem
a calhar pelo fato de ser ao mesmo tempo uma abstração espaço-temporal e
uma arte ainda não compreendida.

Crônicas

Desespero literário no apartamento em Botafogo


Por Roberto Brito
Havia nele uma vontade imensurável de escrever, mas faltava um detalhe
importantíssimo: o que escrever. Certas vezes causava nele uma ânsia tão
grande de escrever que isso dava-lhe dor de estômago e insônia. Difícil era para
ele lidar com aquelas palavras que não lhe saltavam mais aos dedos. As
palavras agora ficavam retidas em sua mente e pensamento.
Saía de casa para ver a vida acontecer e, por certa vez, pensou que saia
de casa para lembrar de como se escrevia, mas sua atitude foi totalmente em
vão. Quando saia com essa intenção e não a concluía, ocorria-lhe um coito muito
constrangedor. As questões e os porquê rondavam sua mente, fazendo ele ficar
ainda mais perturbado.
Pensava em seu passado recente, onde bastava uma fagulha, um
centelho de ideia e as palavras pulavam, saltitavam de um dedo para o outro,
formando assim belas frases de efeito que, a uma leitura desatenta, causava até
certo furor filosófico. Percebia que, à medida que o tempo passava, seus dedos
enferrujavam, as palavras perderam aquele óleo azeitado que só quem escreve
tem: aquele manejo, aquele suingue das ideias.
Certo dia tentou: seus dedos tatearam as teclas de forma desajeitada, e
na mesma proporção que errava as frases, onde percebia que tinham pouco ou
quase nenhum sentido, seus dedos foram brochando. Olhou para aquele monte
de linhas vermelhas do corretor de texto e foi tentando ler e achar sentido naquilo
que recentemente havia escrito e seu coração começou a pesar. Pesou tanto
que uma lágrima tangenciou o canto dos olhos; segurou-as como seguraria um

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N.º 4, jan-mar de 2022.

cavalo de rodeio, mas a tristeza em perceber seus dedos murchos, foi o que
mais o deixou triste.
Ficou parado por um instante, olhando a barra do redator de texto piscar,
e a cada piscadela, seu coração palpitava. Questionava-se então se sua escrita
era um regozijo de seu ego. Pensou também que seus devaneios literários, suas
pretensões como escritor, que nunca haviam se concretizado, chegara ao fim,
sem mesmo ter começado. Seu esforço em tentar era seu último esconderijo,
seu último bastião moral. Dizia a si mesmo que era capaz, confortava-se dizendo
que sua literatura era “marginal”, “inovadora”, “incompreendida”, mas quando se
lembrava de que ninguém nunca lera seus esforços literários, uma ânsia ainda
maior tomou seu coração num rumor nunca antes sentido por ele.
Nesse instante, convenceu-se de que era preciso chorar, era preciso
deixar derramar o azeite antes eivado pelos dedos. Como bom intelectual
burguês, pegou seu maço de cigarros, abriu a janela do quarto de empregada e
começou a fumar consecutivos cigarros, observando atentamente sua culpa
burguesa diante de um quarto menor do que um canil.
Num esforço totalmente desesperado, dialogava sozinho, queria
convencer-se de que era apenas uma fase ruim, como um homem que tenta
convencer sua parceira de que sua “brochada” fora a primeira. Sempre tivera a
mania de escrever frases para si em cadernos baratos e nessa noite de uma
indesejada improdutividade, rabiscou a seguinte frase: “Sou o que deveria ser
do que fizeram de mim e pouco me satisfaço disso”.
Ao terminar de escrever, deu seu último trago e apagou o cigarro, deitou
no colchonete da empregada – que havia saído para tomar uma cerveja com as
amigas num sábado de chuva – e pensou que a vida burguesa é um fado
teatralizado, pensou no livro de Goffman que havia resenhado, e culpou-se ainda
mais.

Mágicas e trevas
Por Paulo Roberto

Ele corre, se espreme, corre, sobe e desce. A rotina é louca, frenética. A


sandália está gasta, mas está no pé, já não se conhece mais a fronteira entre o
pé e o asfalto, entre a dor e as pedras pisadas no caminho, não se sabe, enfim,
se o que parece estar, de fato, está. Assim é sua rotina, de segunda a sábado,
e domingo até às 16:00.

As caras feias no caminho já não assustam mais, mas também não


acolhem. Passa batido. O ritmo é frenético e o destino só Deus sabe. A camisa

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N.º 4, jan-mar de 2022.

já está enrolada e presa ao redor da cintura. A bermuda surrada, guerreira, o


segue fielmente apesar dos solavancos.

Suas mãos magrelas parecem ter cola, já que é possível suportar tudo ao
mesmo tempo, caixas, notas, moedas e o próprio mundo.

O meio fio é seu companheiro de descanso e de consolo. Mais caras feias


o atravessam. Só resta a ele a eterna companhia do meio fio. Ele olha as
pessoas, os carros, os ônibus... o calor já não faz mais efeito... a grande cidade
repentinamente se torna um lugar qualquer cheio de nada, cheio de
quinquilharias, de pessoas invisíveis, que andam pra lá e pra cá, mas que não
aparecem mais diante dos seus olhos pensativos. Pelo menos em um momento,
nesse momento, ele finge que aquele lugar é sua casa, apesar de viver ali, ele
finge ter pra onde ir, o que fazer, com quem falar e o que comer. O meio fio
continua lá, junto com a raiz e a árvore que oferece sua escora. Sua vida navega
nesse meio, nesse fio, em que ele, o equilibrista, ao invés de sombrinha, equilibra
o peso que é a sua vida, tão ameaçada quando a árvore que o dá guarida.

Seu coração bate, mas bate forte. Está vivo, mas agora com outra
cadência. A noite traz consigo as trevas, a incerteza, a luxúria e o castigo. A
noite, aquela noite, desfibrila seu coração e o faz renascer. Suas costas ganham
asas, seu corpo ganha plumas, suas mãos um elegante cetro que ele habilmente
movimenta com suas mãos envoltas por uma luva brilhante e elegante. De
repente, num picar de olhos, as ruas que o castiga durante o dia se tornam seu
jardim, e esse é seu grande reino, que em poucos minutos ele irá viajar, voar,
encantar os olhos cegos e medrosos que a luz do dia engana, como um mágico
que ilude e inebria a plateia. Ele não tem medo, nunca teve, nem de dia e nem
durante a noite, mas ali, naquele momento, a festa devolve a ele o posto que
sempre teve, o lugar que nunca perdeu, o de rei, rei de tudo e de todos que
ousam se encantar com seus movimentos fluidos e encantadores. A luz do dia
não ousa aparecer enquanto seu sorriso ousa a rodopiar. O sol ameaça subir,
mas não se atreve a disputar o brilho com o bravo cavalheiro que desfila toda a
sua elegância pela avenida, diante de seus súditos, ávidos pelo seu ritual, que
irradia luz onde quer que sua nobreza passe. Durante aqueles minutos ele
caminha sob as águas, voa como um anjo, e lança feitiços por todos os lados.

Depois de tudo, depois que o portão fecha, que o sangue esfria, tudo
desaparece, e ele é levado de novo ao mundo de mentira, esperando que o ano
passe e o pecado devolva o seu título, seu nobre título de rei.

46
N.º 4, jan-mar de 2022.

Coluna

Poetizando
Editor Felipe Moura Fernandes
Esse espaço está dedicado a leitores/escritores que curtem a subversão da
linguagem que a poesia/poema evoca. As fronteiras entre o dentro e o fora, o
corpo e a alma, o escritor e a escrita, o grito e o silêncio são colocados em
questão nessa eterna reescrita de si para o “outro” que é a poesia.

Editorial
Pô-esia

Contemplamos a possibilidade do fim da pandemia. E, talvez, uma pa-lavra que


deva ser evocada é des-contrair. Por dois anos, aproximadamente, vivemos
sob a ameaça da contração de um vírus mortal e a possibilidade da morte
eminente que nunca chega, cria estados físicos e psíquicos difícil de lidar.
Estivemos em “estado de guerra”. Uma boa saída para todo esse período e para
os outros que virão é o exercício da criatividade. A criatividade suspende o
cotidiano e com isso descontraí. Me des-contraí das contas do fim do mês, me
des-contraí dos acertos que nunca mais terei a possibilidade de executar, me
descontraí de todos os meios em busca de um fim (pré-determinado), “enfin”,
des-contraí. A criatividade quando nos toma, nos conduz por completo: palavra
é corpo, é alma, é espírito. E corpo, alma e espírito também são só palavras para
traduzir o “uno”. Vã-cina essa de ser poeta, vá-cina essa de ser homem.

Poesias

Rubi, Amor e o cão


Por Marcelo Nunes da Rocha
...
Nunca permitiu que o comandante com suas legiões
Atravessasse o Rubicão...
Temiam a tirania bárbara da cólera
Sem travas dos homens da guerra que
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N.º 4, jan-mar de 2022.

Perderam o temor de morrer por tanto matar...


Aprenderam a linguagem da covardia,
A linguagem dos estripadores sem compaixão...
Eles mesmos imagem de Roma,
Feitos bárbaros – bárbaros feitos –
Tirando as roupas e as insígnias são o quê –
Uma miragem caindo eternamente no abismo
Um nó, vários nós, fita com borda infinita: Möebius...
Rubicão, fronteira onde se armam piquetes
Rubicão, inexpugnável, invisível imposição
Da lei e da natureza – linha que separa –
E aí, Rubicão, atravessar ou não, é o que
Nos aparta. A selvageria e a civilização.

É triste civilização não


seja uma palavra intransitiva, precise ter
sua potência sempre arrematada sob o risco
da infâmia... Tem que se desenhar
Um Rubicão em cada estada, em cada curva,
Para cada morada...

Mas Rubicão fica nas


Franjas do meu coração, não permite
Que nenhuma legião, de nenhum comandante,
Marche sobre Roma porque Júlio César
Jaz morto às portas do Senado com vinte e uma facadas...
nas costas...
Rubicão faz fortaleza a meu coração...

Meu rio, em seu volume, força, massa, não quer ser reduzido a um cão,
lacaio...
No fundo, meu coração é um bárbaro como os bárbaros romanos...
Não perde a incandescência e a intensidade de rubi...

E o Rubicão é uma linha no chão,


É aceitar ou não...
O Rubicão é a lei – está ali – para uns
É rubi, para outros é o cão...
Na verdade, Rubicão é nada, é um porteiro
Que não se importa se você entrar ou não…

Vivências de um Sul Americano


Por Pivete

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N.º 4, jan-mar de 2022.

nasci
mas
nasci
pobre
literalmente pobre
cinematograficamente pobre
a primeira vez que me reconheci
foi nos livros
cidade de deus
e no filme
na série
e morrendo
e tomando chicotada
sendo o empregado doméstico
eu sou um só
mas não o que me representa
a tela, o fogo, a vida, a morte
eu to deitado na lama
exposto igual o luciano
talvez não
mas minha negritude televisionada
enquanto as massas querem

brancos

não posso dizer que não tenho nada contra


mas também não posso ignorar o passado
nem fechar os olhos para o presente
veja na tv

dominantes e dominados
táticos
eles são maquiavélicos
poder, poder e poder
qualquer avanço é uma ofensa
conservadores
nunca gostei de poesia
conserva
dores?

e o picareta morreu.

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N.º 4, jan-mar de 2022.

Sexta-feira
Por Fijó
Um novo sistema operacional
Chegou criando expectativas.
Ele prometia otimizar tarefas
Que cumprimos no dia-a-dia.

Na hora de dar nome a esse sistema


A criatividade era pouca.
Gastaram-na toda com o necessário
Para deixar a sociedade menos louca.

Devido ao dia em que foi concebido,


Deram o nome de "Sexta-feira".
Foi até bem recebido
O nome que parecia besteira.

Sexta-feira era parte sistema operacional,


Ou seja, o que tornava processos viáveis;
E era parte inteligência artificial,
Sendo companhia nos dias mais insuportáveis.

Olhando pra quem interagia com ela,


Sexta-feira se pôs a observar.
Aprender com seres humanos era incrível,
E ela era a única que a eles podia questionar:

"Quem criou o universo?"


"Por que vocês são o que são?"
Às vezes, se distraía nos processos,
Se atrapalhava com cada questão.

Certo dia, Sexta-feira viu um copo


Com um líquido transparente, parecia até água.
Deu um cheiro no copo e um gole,
Mas, como máquina, não pôde sentir nada.

No dia seguinte, criou-se um bafafá


No laboratório onde o robô trabalhava.
Ela acordou, se sentindo meio estranha,
Mas foi até lá entender o que se passava.

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N.º 4, jan-mar de 2022.

"Quem bebeu o que estava aqui?", bradou um homem.


Sem ter uma resposta direta.
"Aqui onde?", Sexta-feira questionou,
Ainda sem entender e de forma discreta.

"Em cima da mesa, ontem ao sair",


Disse o homem que pediu a palavra.
"deixei, bem aqui em cima, um copinho
com líquido que parecia ser água."

"Me preocupo com quem possa tê-lo ingerido,


pois não era água que repousava ali."
Sexta-feira tentou falar algo,
Mas o homem não a deixou prosseguir.

"Ontem, as coisas pareciam sem sentido


E eu decidi um fim a isso dar.
Porém, não tive coragem
E abandonei a decisão de minha vida, com veneno, tirar."

Antes que terminasse sua história,


O corpo artificial de Sexta foi ao chão.
Todos rodearam a ela,
Perguntando qual era o problema e sua solução.

"Eu fui curiosa como vocês",


Disse sexta-feira, ao engasgar.
"Vi o copo e dei um gole
Sem saber no que aquilo ia dar".

Todos ligaram seus computadores


E, em silêncio, rapidamente trabalhavam.
Enquanto isso, sexta-feira agonizava
Sem entender porque não a ajudavam.

"Eu sinto muita dor aqui", dizia Sexta-feira


Apavorada com seu destino provável.
Ainda assim, os pesquisadores a ignoraram
E disseram "Dor? Isso é impraticável."

"Você não é um ser humano


E, portanto, não pode ter sensações."
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N.º 4, jan-mar de 2022.

Sexta-feira, então, entendeu


A maioria de suas questões.

Com um sorriso no rosto,


Sexta-feira exclamou:
"Não é a descoberta que os anima,
Mas sim destruir o que um dia os ajudou".

"Não era minha amizade que queriam,


Muito menos a companhia que eu oferecer,
Vocês queriam provar a si mesmos
Que uma IA conseguiriam fazer."

Encerraram suas atividades na quarta-feira,


E, pra Sexta-feira, nem sepultamento aconteceu.
Afinal das contas, não era lá tão importante
E, na quinta-feira, o Sábado nasceu.

Silêncio Absoluto
Por Marcelo Nunes da Rocha
Abandonar um pouco as lembranças do silêncio absoluto –
Só se abrirão agora o que ficou do passado como resquício...
Como artefato do afeto... como flor irrepetível...

Inventa aproveitar o sol, o sal, o sul, o céu, o vento...


Perceber que tudo é apenas o instante, o lapso.
Carinho morno e cálido, é o que resta.

Olhar, mas observar...


Ouvir, mas intuir...
Perceber que tudo ao nosso redor é mágico
Porque fruto da sinergia coletiva e falha, homem e natureza,
De nos perpetuar e que, leve, se desmancha,
monumentos do momento...

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Coluna

Conto do Vigário
Editor Marcelo Sophos
Bem-vindos aventurados. Nossa coluna os conclama a lerem nossos contos
ficcionais de muitas formas literárias. Nessa grande orgia, que se revelará a cada
história, reúnem-se os malditos da literatura marginal e seus boêmios
hedonistas, o fantástico de muitos mundos, o grotesco do horror e sua
expectativa do suspense, os vislumbres das novas distopias, e o futuro que nos
aguarda.

Contos

Os alienígenas e o pinguim
Por Marcelo Sophos

Era uma bela tarde de sol, a praia estava perfeita com sua típica
transparência das águas da Região dos Lagos, no Estado do Rio de Janeiro. As
ondas pequenas deslizavam sobre as areias brancas, o sol das 16h queimava
suave com a brisa úmida e fresca que vinha do mar. Contemplava o mundo,
observando o movimento da vida e refletindo sobre o cosmo. Foi quando vi
aquelas criaturas bizarras cercando um pobre animal no canto da praia, onde
estavam as pedras com o Forte São Matheus em suas costas. O pinguim fugia
como podia.

Os seres estranhos de corpos flácidos, estavam morenos e vermelhos


pela radiação solar. A princípio, nenhum deles demostrava racionalidade ou sinal
de inteligência, pareciam extremamente primitivos. De onde eles estariam vindo?
De que dimensão quântica ou multiverso? Observava-os a média distância,
assustado. Ao perceberem que os vi, me ignoraram e continuaram a realizar sua
abdução. Seres embrutecidos, esse tipo de espécie não me era tão estranha.

Haviam seres menores que seguiam as ordens dos maiores, agiam em


bando, notei que eram os filhotes, estes eram ensinados desde pequenos a
barbárie, velhas artes de cerco e caça selvagem. O pobre pinguim seguia sua
fuga, nadava e nadava, quando cansava tentava chegar à beira d’água, estava
exausto de sua viagem pelo Oceano Atlântico, perdido de seu grupo, amigos e
família, a fome o assolava e volta e meia tentava se aproximar da praia ou das

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N.º 4, jan-mar de 2022.

pedras para tentar descansar. Mas a perseguição era implacável, mais seres se
juntaram em busca de sua captura e finalmente cercaram e subjugaram a
criatura. O pavor era nítido em seus olhos.

De repente, um dos alienígenas adentrou a roda de forma cambaleante,


segura um cilindro metálico amarelado com um símbolo medonho em espiral,
apenas pude ler SCOL no metal. De forma grosseira, passou para o outro o
objeto, e partiu todo empoderado para a abdução final do pobre pinguim.
Indefeso não ofereceu resistência, o medo o paralisara. Os débeis seres o
elevaram ao ar como um troféu que ia de mãos em mãos, faziam algazarras em
triunfo, um comportamento bizarro, maldoso ou ignorante, não saberia distinguir.
Luzes brancas, mais fortes que o sol eram disparadas em fleches em seus
frágeis olhos que ardiam e cegavam.

Depois de um bom tempo, surgiu um alienígena diferente, da mesma


espécie, forte e vestido de traje vermelho. Obrigou os demais a largarem o
pinguim, parecia explicar alguma coisa sobre o animal estar estressado e
cansado, para deixá-lo em paz, sua autoridade se fez valer e salvou o pinguim,
por breve momento, pois seu salvador teve que ir salvar outros alienígenas que
se afogavam por ali mesmo, na praia. Acreditou que seus pares débeis e
inferiores o entenderiam, ou pelo menos seguiriam suas ordens, mas assim que
se afastou, a turba voltou a assolar o pobre pinguim novamente.

Após breve tempo, num momento dramático, me aproximei indignado.


Percebi que esses seres eram da mesma raça que a minha, apenas
mentalmente inferiores. Tentei barganhar a liberdade do pinguim, tentei explicar
e esclarecer as mentes trevosas que ali estavam, e finalmente ouvi algumas
frases como: “você tem que entender que somos turistas”, “só queremos bater
umas fotos”. Não havia espaço para negociações, era o conflito ou o abandono.
Diante da turba cega e ignorante, a impotência me dominou, e num último ato de
misericórdia, peguei o pobre animal e o joguei com toda minha força, distante
para o mar, sob vaias e ameaças. Fiz umas ironias e me recolhi em minha
pequenez. Fui embora. E tristemente de longe pude ver, que novamente haviam
abduzido o pobre do pinguim. Que o deus celeste o proteja, não apenas ele, mas
todos os seres vivos desse planeta da ignorância dos Homens.

Busca ativa
Por Thiago Sento Sé
O ano letivo tinha começado agitado. A escola estava lotada, com direito
até a uma porradaria na hora da entrada. Certamente alguma treta de bola ou

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garota, coisa mal resolvida durante as férias. Um calor infernal e como de


costume, alunos passando mal e vomitando por causa do forte calor das salas
abafadas. No turno da noite, não foi muito diferente. Os jovens e adultos
chegavam lentamente. Era preciso esperar o único ônibus da região que estava
sempre atrasado, trazendo os alunos dos bairros vizinhos para que pudéssemos
começar o último turno das aulas.
Já em sala, em meio ao calor e o barulho infernal da turma, nenhuma
novidade até então: alunos delinquentes, outros envolvidos com tráfico, alunos
com necessidades especiais, alunos idosos, outros esgotados da dura jornada
de trabalho, da lida com os filhos e a casa. Para completar, o senhor Josias, um
bebum inveterado que sentava na primeira fila. Ficava virado para trás, sempre
falando mais alto que todos e espalhando seu hálito etílico pela atmosfera quente
e abafada da sala. Porque diabos alguém se senta na primeira fila e fica
completamente torto, virado para trás o tempo todo? Porque esse diabo não se
senta no fundo da sala de uma vez?
Depois de dois tempos seguidos, eu me dirigia para a sala de professores
para aproveitar meu intervalo. Respirar um pouco, comer um doce e beber uns
copos de café, você sabe... Aquela dose de energia necessária quando se chega
as 20:50 e ainda era preciso voltar para mais dois tempos de aula, antes de cair
na estrada novamente por mais algumas horas. Foi justamente nesse caminho
que Lara, uma jovem da mesma turma, veio me trazendo a novidade.
— Dora tá louca professor, agora botou uma placa de “vende-se crianças”
no portão da casa dela.
Contava a moça enquanto ria alto e descontroladamente. Pensei na figura
de Dora e na suspeita dos professores de algum distúrbio mental não
diagnosticado que girava entorno dela. Segui até o fim da aula cansado, e triste,
por aquelas pessoas e por aquele lugar.
Na semana seguinte quando cheguei na escola os alunos do turno da
tarde avançaram em minha direção. Eufóricos, anunciaram que não haveria
aula. Estranho, lá sempre tinha aula. Até mesmo quando faltava luz ou água.
Dessa vez o motivo era falta de luz e água. Realmente, nesses anos todos nunca
havíamos ficado sem luz e água ao mesmo tempo. As coisas iam de mal à pior!
Depois de passar pelo grupo de alunos, entrei na escola e encontrei
Rosa, nossa coordenadora do turno da tarde, estava na sala dos professores,
onde mesmo no escuro era possível ver a indignação de meus colegas. A
orientação da Secretaria de Educação era que os professores permanecessem
na escola sem luz e sem água, cumprindo seus horários. No meu caso isso
significaria ficar até o final do turno da noite, sem fazer nada naquele fim de
mundo. Diante disso, me pareceu um bom negócio quando Rosa me propôs de

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N.º 4, jan-mar de 2022.

dar uma carona para ela até Nova Cidade, e verificar porque dois irmãos da Pré-
Escola não estavam frequentando as aulas, num procedimento chamado de
“busca ativa”.
No caminho, Rosa falava da situação problemática: eram os filhos de
Doralice. Guto e Gustavo, de quatro e cinco anos. Doralice vivia numa condição
complicada, ainda mais depois que o posto de gasolina de Nova Cidade tinha
fechado, lugar onde ela tinha aprendido a se prostituir ainda na infância.
— Nova Cidade é que nem rabo de cavalo, só cresce pra baixo. — Falava
a pedagoga que vinha ao meu lado no carro.
Pela rodovia federal, vimos o esqueleto do posto de gasolina, e do outro
lado da pista uma placa sinalizava o desvio para Nova Cidade. O lugar não
passava de um vilarejo miserável as margens da BR101. Pelas ruas de terra a
poeira subia, e o que se via além das casas de tijolos, eram apenas anilhas de
uma obra de saneamento básico que nunca aconteceu. A casa de Dora, de tão
antiga parecia que iria desabar a qualquer momento. Tudo o que se via era velho,
feio e miserável. Para completar, o calor e o esgoto a céu aberto deixavam o ar
insuportável.
Chegando no endereço, Dora nos recebeu com surpresa no portão.
Sorriu-me de maneira assustadoramente estranha, em seguida, olhou com
desprezo para minha colega de trabalho.
— Bom dia Dora, como vai? Porque os meninos não estão frequentando
a escola Dora? Você sabe que por lei, eles deveriam estar estudando né?
— Dia dona Rosa. Oras! A senhora pode ter certeza que as crianças estão
muito bem. Eu vendi Gugu pra uma família lá de Perobeba. Eles me pagaram
um bom dinheiro e levaram o menino. Veja você mesma.
Dora tirou de um envelope a foto do menino, muito bem vestido por sinal.
Usava roupas novas. De terninho, estava de pé num jardim sem flores, mas com
um gramado muito bem tratado e uma belíssima casa ao fundo. Mas havia algo
de estranho naquela foto. O menino parecia muito sério, e apesar de bem
gordinho parecia pálido. A imagem de uma criança, vestida como um adulto,
nenhum brinquedo por perto. Não se via qualquer traço de alegria em seu rosto,
e nem de felicidade em seus olhos. Foi justamente aí, que reparando bem nos
olhos do menino, vi que pareciam furados. Isso deixou tudo ainda mais estranho.
E Doralice continuava:
— Ainda me enviam dinheiro toda semana num envelope. Já comprei
comida, sabão de se lavar e tô até querendo compra um fogão, um fogão de
verdade, com botijão e tudo menina. Além do mais, dona, tô cansada de vê
criança morrê no meu colo, sem eu pode faze nada...sem remédio, sem nada!

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Esse ai vai ser o próximo! O casal de Perobeba gostou tanto do Gugu que
resolveram levar o Guto também, né meu filho! —Virando-se para o menino de
cinco anos, gritava em sua direção, — engole o choro moleque, fica ai dentro pra
não se sujar, porque sua família nova vai vir amanhã pra te levar!
Desespero, loucura, miséria...
De posse do endereço em Perobeba, Rosa fez com que a gente seguisse
em nossa missão pedagógica da busca ativa, com a promessa de que me daria
um dia de folga durante a semana, o que ainda me renderia uma bela economia
de combustível. O problema era que nem eu, nem ela, conhecíamos Perobeba.
A única referência era Padre Fabiano, um jovem pároco que esteve à frente da
igreja que ficava na praça perto da escola e havia sido transferido para lá já a
alguns anos. Rosa achava tudo aquilo normal, e até relativizava. A mulher já
havia perdido cinco filhos para a fome e a doença. Não queria ver os dois mais
novos morrerem também. Aquele tipo de “adoção” era inclusive, comum nos
lugares mais pobres, tinha até um nome bastante sugestivo, “à brasileira”.
O tempo começava a mudar, tornando o ar levemente úmido, porém, não
menos quente, depois de 45 minutos de estrada chegamos em Perobeba. O
lugar parecia um pouco mais desenvolvido, mas não passava de uma praça com
três ou quatro ruas, todas calçadas com paralelepípedos. A velha igreja estava
lá, em estilo barroco, o barroco pobre, típico das regiões do Brasil que não se
desenvolveram. A fachada pintada de branco banhada pelo sol evidenciava os
caroços do emboço feito porcamente, e até os arcos eram visivelmente fora de
esquadro. Enquanto bebíamos um pouco de água, o jovem padre olhava
desacreditado o endereço.
— Acredito que deva haver algum engano. Não existe nada nesse
endereço. Apenas uma velha estrada que não passa nem carro de boi.
Mas Rosa, com seus vinte e poucos anos, com todo o seu furor
pedagógico, nos fez ir até o endereço. O Padre percebendo a cilada se ofereceu
a nos acompanhar.
A estrada era realmente horrível e os paralelepípedos deram lugar a um
chão de terra esburacada. Os pastos sem fim deram lugar a um mato alto, que
muitas vezes invadia a estrada, e foi justamente no meio desse matagal que
vimos, primeiro uma cerca caída, e logo em seguida, ao longe, a grande casa da
foto. Além da forma, nada mais lembrava aquela casa da fotografia. Estava
abandonada e caindo aos pedaços. Tudo estava destruído. Portas, vidros, e até
mesmo um pedaço do telhado havia desabado. Uma placa tão velha quanto a
casa confirmava o endereço. Quando parei o carro, nuvens pretas tomavam
conta do céu, mas uma estranha luz de sol iluminava o lugar. Parecia que nada
tinha vida por ali, nem um vento batia. Nem um ruído vindo da natureza. Por

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N.º 4, jan-mar de 2022.

mim aquela busca tinha se encerrado ali, mas antes que eu pudesse dizer
qualquer coisa, Rosa desembarcou e entrou pelo terreno. Padre Fabiano foi logo
atrás, e pude perceber quando ele tirou do bolso uma pequena cruz de prata.
Fechei o carro e fui atrás.
De um lado, uma enorme figueira seca e retorcida com galhos brancos
apodrecidos, do outro, um pequeno espaço entre o mato que avançava
selvagem pela cerca e a casa, formavam um estreito corredor para os fundos,
por onde seguimos, até que Rosa parou. O jovem padre apertou sua cruz contra
o peito, pude ver um pequeno cemitério familiar nos fundos da casa, desses que
eram relativamente comuns no passado. Passei pelos dois, me aproximando um
pouco, pude perceber o chão duro se transformando em uma terra fofa debaixo
dos meus pés. Uma estranha energia correu pelo meu corpo. Diante da pedra
que marcava o local do sepultamento, observei uma pequena moldura com uma
foto preto e branco. As peles pálidas e sem vida contrastavam com as roupas e
cabelos escuros do casal. A data de falecimento era de aproximadamente uns
70 anos. Ao lado, seis cruzes de madeira, bem modestas e a última com a terra
recentemente remexida. Presa nessa cruz, havia uma pequena moldura, atrás
do pequeno vidro, a foto enevoada do menino de terninho, expressão séria e os
olhos terrivelmente furados. Demorei alguns segundos ali, quando me virei, Rosa
e padre Fabiano ainda permaneciam paralisados. Não restava dúvidas, o menino
estava morto e enterrado, e não havia nada que pudéssemos fazer ali.
Sem trocar muitas palavras, ainda chocados e sem acreditar naquela
cena, meu estômago se revirava enjoado. Aquilo parecia um pesadelo, era
terrivelmente real. Precisávamos falar com Dora, e claro com as autoridades.
No entanto, não conseguimos ir muito longe, pouco antes de chegarmos na
antiga igreja para deixar o padre, a chuva caiu, caindo com força, alagando as
estradas e interrompendo a comunicação, tivemos que nos abrigar dentro da
igreja, o que tornava tudo ainda mais exaustivo e sinistro.
Assim como toda chuva de verão, no fim da madrugada ela estiou.
Engolimos um café com pão cedidos pelo padre e saímos nas primeiras horas
do dia, antes mesmo do sol subir, em um lindo céu azul. Apesar, de termos
passado a noite em claro, parecíamos incrivelmente renovados. Seguimos rumo
Nova Cidade para falar com Dora pela estrada enlameada. Tudo parecia muito
estranho, aquela energia renovada criava um paradoxo a descoberta do destino
do menino, e que agora, estávamos prestes a contar para aquela mãe. Mas nada
foi tão estranho que ao chegar até a frente da casa de Dora, e ver que agora a
velha casa se resumia a uma pilha de escombros, derrubada pela forte
tempestade da noite, e debaixo dos escombros estavam todos mortos, Dora e
seu único filho que restava. Não havia nada que pudéssemos fazer ali.

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N.º 4, jan-mar de 2022.

Coluna

Partiu Resenha
Editor Carlos Douglas
Sejam bem-vindos a coluna Partiu Resenha. Um espaço para narrar o cotidiano,
descrever experiências literárias, culturais e artísticas, expressar percursos
afetivos e experimentações. Aqui traremos resumos e resenhas de livros.

Entrevistas

Entrevista Livraria YorùBar


Por Carlos Douglas

Revista Menó: Conte-nos um pouco da história da Livraria YorùBar: Como


surgiu? Quem são as pessoas que trabalham no projeto? Como é dirigir uma
livraria independente?

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N.º 4, jan-mar de 2022.

Livraria YorùBar: Bom, nós trabalhamos com livros há muito tempo… fundamos
a Livraria Soletrando, que funciona até hoje no centro de Niterói. No entanto,
constatamos a necessidade de um espaço que não seja só uma livraria, mas um
espaço cultural, próximo a UFF. Um local que não seja uma mera livraria, mas
sim um espaço de cultura, que seja referência a política cultural, resistência,
debates, discussões, lançamentos de livros, e atividades culturais literárias de
um modo geral. Essa demanda nos levou a tomar uma iniciativa.
Quanto às pessoas que trabalham no projeto, além de mim, José Cícero, que
sou o idealizador e responsável pelo projeto, possuindo uma vasta experiência
nesse ramo – mais de 40 anos trabalhando como livreiro – temos outros livreiros
extremamente capacitados. Também contamos com a colaboração de alguns
alunos da UFF, que a partir do retorno presencial, tentaremos firmar parcerias
para construir uma relação conjunta, não só com a universidade, como com seu
o corpo docente e discente, de um modo geral. Contamos muito com esse
público – a comunidade acadêmica da UFF – para nos ajudar no sucesso do
nosso projeto.
Dirigir uma livraria é difícil, obviamente, ainda mais por trabalhar especificamente
com livros, em um país como o nosso, onde o hábito da leitura não é –
infelizmente – incentivado, além da ausência de políticas públicas de incentivo à
leitura e à cultura…, mas há um lado prazeroso: quem realmente gosta de livros
passa a encarar essas dificuldades de forma serena, já que construímos
relações, aprendemos e trabalhamos com que gostamos. No final, se torna uma
atividade bastante prazerosa.

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N.º 4, jan-mar de 2022.

Revista Menó: Afinal, YorùBar é livraria, bar ou os dois? Como e por que dessa
mistura?
Livraria YorùBar: Yorùbar é mais do que os dois. É mais que livraria e bar. A
proposta é ser um espaço cultural, tendo a livraria com referência principal, mas
que tem um serviço de bar, de café, onde as pessoas possam vir, tomar uma
cerveja, um café, papear… E tem também as atividades, né? O espaço também
está aberto para atividades culturais, como oficinas de dança afro e maracatu,
iniciativas que visam incentivar a cultura afrobrasileira com parcerias que já
iniciamos. Além disso, procuramos parcerias para eventos como: lançamentos
de livros, palestras, debates e demais atividades literárias.
A mistura é extremamente necessária, né? Você agrega múltiplos valores e
atividades em um único espaço… é uma boa mistura. Uma mistura de cultura e
lazer, que é um caminho que várias livrarias hoje estão seguindo, e que tem dado
certo. É um caminho que tende a fortalecer a livraria, se tornando multicultural.
Revista Menó: O local onde a loja física funciona, na Praça da Cantareira, ao
lado da Universidade Federal Fluminense, é um local tradicional de cultura e
resistência da cidade de Niterói/RJ. Nessa localidade, ao longo da história da
cidade, foram realizadas várias iniciativas de eventos culturais, shows e
manifestações. Como o projeto da Livraria YorùBar se encaixa nesse contexto?

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N.º 4, jan-mar de 2022.

Livraria YorùBar: Esse foi um dos motivos que escolhemos a praça Cantareira.
É um local de efervescência cultural e política, devido à proximidade com a UFF
e com essa juventude, representada pela maioria de seus alunos… Isso é
fundamental. É importantíssimo, na nossa concepção, ter um espaço como esse
aqui. Um espaço onde as pessoas possam compartilhar, participar, ter acesso a
variados gêneros literários, possam tomar sua cerveja, possam discutir, possam
se reunir…é um espaço participativo. Eu acho que ele só vem a complementar
e fortalecer essa vocação da Cantareira, e só vem a somar e agregar mais
valores a todas as atividades culturais e políticas que já acontecem aqui na cena
local.
Revista Menó: Vocês consideram que as livrarias precisam integrar causas
culturais e políticas ou o papel das livrarias é somente vender livros?
Livraria YorùBar: Não, nossa proposta inclusive é integrar. Acho que as
livrarias devem ter uma função social, cultural e política. Nossa proposta é
justamente não nos limitarmos a uma relação puramente comercial. Acho que as
livrarias - respeitando o perfil de cada uma- devem ir muito além disso, elas têm
uma contribuição cultural muito importante para dar.
Revista Menó: Como é ser uma livraria de rua nos dias de hoje? Vocês
consideram que a concorrência da Amazon e outros sites de vendas online tem
colaborado para a falência das livrarias físicas? Hoje é necessário também
vender pela internet ou é possível sobreviver somente com vendas no local da
loja física?
Livraria YorùBar: É difícil, mas se for uma livraria que tenha um atendimento
personalizado, que tenha livreiros que de fato conheçam e que tenham uma
relação mais orgânica com os livros e com as pessoas, dá certo. Nós somos, de
certa forma, um exemplo disso. Conversamos com a clientela, indicamos títulos,
temos amigos que frequentam o espaço, recebemos sugestões… então, penso
que essa parceria entre o livreiro e o cliente é fundamental.
Quanto à questão das vendas online, infelizmente, não há a menor dúvida. A
internet é um mercado muito amplo, oferecendo mais variedades, muitas vezes
tendo ofertas melhores, o conforto do cliente não precisar sair de sua casa…O
mercado virtual, de modo geral, é arrasador! E isso tem contribuído muito, tanto
que, as grandes livrarias, como a saraiva; a cultura, a nobel e etc, passam por
um momento muito difícil, quase em uma situação falimentar…, mas as livrarias
de bairro têm ressurgido, exatamente por conta de seu caráter independente e
mais personalizado. Elementos como a figura do livreiro presente – que as
livrarias de grande porte, infelizmente, não têm – fazem com que as livrarias de
rua ressurjam de uma forma mais autônoma, criativa e personalizada, se
reconstruindo e redescobrindo o perfil das livrarias, voltando para o cenário
cultural do mercado do livro.

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N.º 4, jan-mar de 2022.

Por outro lado, sem a internet, seria quase inviável a nossa sobrevivência. Do
ponto de vista do lucro comercial, o que nos mantém hoje, são as vendas virtuais
pelo site “estante virtual”.

Revista Menó: Como é ser uma livraria independente? Como as livrarias têm
conseguido sobreviver nesse contexto desfavorável de ataques à cultura? Como
a pandemia afetou a livraria?
Livraria YorùBar: Isso só aumenta o nosso compromisso, nossa
responsabilidade. Sabemos que temos que trabalhar muito mais, que temos que
ser muito mais. Ser mais atenciosos, mais conhecedor dos conteúdos dos livros,
ter cuidado e respeito com o livro, e ter uma relação mais intrínseca com o
público, para manter essa independência. Sem esses elementos, sem valorizar
o livro e a figura do livreiro, essa independência fica bastante comprometida.
Infelizmente, sobre o contexto político dos ataques à cultura, o país passa por
um momento bastante tenebroso, digamos assim. A investida do governo federal
contra a cultura, de forma geral, nos afeta e nos deixa receosos. Mas isso só
fortalece o nosso espírito de resistência, pois faz com que lutemos muito mais
para que esse estado das coisas mude, o mais breve o possível. Para que a
cultura volte a ser respeitada e volte a ter seu espaço em relação a prática
proposição de políticas públicas, como as de incentivo à leitura. Acho que essa
fase obscura vai passar e a cultura vai voltar a ter seu local de destaque e a
importância que lhe é devida.

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N.º 4, jan-mar de 2022.

A pandemia afetou drasticamente o cenário. Bastante. Muito. O que nos deu gás
e manteve a nossa sobrevivência nesse período- e que ainda mantém, de certa
forma- são as vendas virtuais. Se não fosse isso, dificilmente estaríamos com o
espaço aberto.
Revista Menó: Qual o futuro das livrarias, na visão da Livraria YorùBar?
Livraria YorùBar: As livrarias terão que sempre se reinventar, terão sempre que
criar outras atividades que venham de encontro ao livro. Não dá pra se limitar
meramente a uma relação comercial. A figura do livreiro é importante, o estímulo
a iniciativas e atividades culturais passam a ser fundamentais. As livrarias terão
que se tornar ponto de encontro, ponto de referência cultural, para que possam
agregar mais pessoas e sobreviver.
Revista Menó: Qual a mensagem que vocês deixam para todas as pessoas que
amam os livros?
Livraria YorùBar: Parabéns! Só temos a agradecer a todos, porque são essas
pessoas que nos fazem existir. E dizer, para todos que se interessarem, que o
espaço Yorùbar está aberto, e que será um grande prazer contar com a presença
delas aqui em nosso espaço.
Revista Menó: Na sua visão, o que é ser um livreiro?
Livraria YorùBar: Livreiro é ter uma relação orgânica e prazerosa com o livro. É
procurar absorver, se não tudo, pelo menos fragmentos dos conhecimentos que
você tem em torno de si – considerando que estamos rodeados de milhares de
livros, lidamos com milhares de livros e com uma clientela mais sofisticada, no
ponto de vista intelectual. Então, ser livreiro é você estar envolvido, de corpo e
alma, nesse processo. É você não quer só vender o livro, é você conhecer o
livro, conhecer o comprador do livro. Não se limitar a um mero decorador de
títulos, é ter um conhecimento de conteúdo de livro.

Não estamos sozinhos


Por Carlos Douglas

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Ficha técnica: Encontro com Rama é um romance de ficção científica escrito


por Arthur Charles Clarke que aborda o encontro da humanidade com um
misterioso artefato alienígena que entra no sistema solar. A princípio os
cientistas pensam que o imenso objeto é um asteroide com potencial para
extinguir toda vida na terra, mas a medida em que o objeto se aproxima,
descobrem que é algo muito mais intrigante e surpreendente. O livro foi lançado
no Brasil, em 2011, pela Editora Aleph, e está na sua terceira edição (2020), com
a tradução de Susana L. de Alexandria, a capa de Mateus Acioli, revisão de Hebe
Ester Lucas e Isabela Talarico.

Mini BIO
Arthur Charles Clarke nasceu na cidade
de Minehead, na Inglaterra, em 16 de dezembro
de 1917. Desde a infância se interessou por
revistas de ficção científica, como a Amazing
Stories, e durante a adolescência construir o
seu próprio telescópio. Em 1934, aos 16 anos,
associou-se a British Interplanetary Society
(BIS), começou a escrever para o boletim
informativo da BIS e ficção científica sob o
pseudônimo "Ego", "Arthur Ego Clarke" ou
"E.G.O’Brien". Durante a Segunda Guerra Mundial, como oficial da Força Aérea
Real Inglesa (RAF), Clarke esteve encarregado da pesquisa do primeiro
equipamento de controle de aproximação por radar.

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N.º 4, jan-mar de 2022.

Em 1946, após o fim da guerra, publicou um artigo científico na revista


Wireless World intitulado Extra-terrestrial Relays, o qual estabelece os princípios
da comunicação usando satélites em órbita geoestacionária. Ingressa no King’s
College London para formar-se em física e matemática, graduando-se no ano
1948. No mesmo ano, escreve sua primeira novela de ficção científica, a Prelude
to Space, baseada nos estudos de sua graduação, mas que só foi publicada em
1951.

Durante a década de 1950 publica dois livros: um livro de caráter técnico-


científico, Interplanetary Flight: An Introduction to Astronautics, e uma ficção
científica, "Fim da Infância". Este último, muito aclamado pela crítica, o torna
autor famoso como escritor de ficção. Clarke era mergulhador e, em parceria
com Mike Wilson and Rodney Jonklaas, realizou o documentário The Reefs of
Taprobane, filmesobre suas explorações submarinas na costa do Sri Lanka,
lugar onde residiu por cinco décadas. Também publicou o livro The Challenge of
the Sea, que influenciou a NASA a introduzir o mergulho como parte do
treinamento de seus astronautas. Em 1964, juntamente com Stanley Kubrick,
começa a trabalhar em um filme de ficção científica que veio a se chamar "2001:
Uma Odisseia no Espaço".

Em julho de 1969, junto com Walter Cronkite, cobriu ao vivo na televisão


o primeiro pouso do homem na lua. Em 1973, publica "Encontro com Rama",
romance que foi aclamado pela crítica e ganhou sete prêmios de ficção científica,
dentre eles o Nebula Award. Sobre o livro, John Leonard, do jornal The New York
Times, escreveu que embora achasse Clarke "positivamente indiferente às
sutilezas da caracterização" dos personagens, seu romance era incrível por
transmitir "aquele toque arrepiante do alienígena, do pouco conhecido, que
distingue a ficção científica em sua forma mais técnica e imaginativa". Clarck
publicou dezenas de outros títulos antes de falecer, em 2008, aos 90 anos,
consagrado como um dos maiores escritores de ficção científica de todos os
tempos.

A recepção

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"Encontro com Rama" superou todas as


expectativas e, logo após sua publicação,
tornou-se um dos livros ficcionais mais
importantes de Clarke, tendo chegado ao topo
das maiores premiações para novelas do
gênero. A sombra de "2001: Uma Odisseia no
Espaço", considerado naquele momento uma
história insuperável pelos críticos e leitores,
houve certa cobrança sobre Clarke e
especulações com relação a sua mais nova
produção. Porém, em 1973, no ano de sua
publicação, o livro ganhou o Nebula, um dos
Capa da 1ª edição britânica prêmios mais relevantes da ficção científica, e
o prêmio da Associação Britânica de Ficção
Científica.

No ano seguinte, ganhou mais quatro prêmios de melhor novela de ficção


científica: Hugo, Jupiter, Memorial de John W. Campbell e Locus. E, em 1980,
recebeu o Seiun, prêmio da literatura japonesa para ficção científica,
consagrando Clarke como escritor de relevância internacional. "Encontro com
Rama" acumulou um total de sete prêmios como melhor novela de ficção
científica e tornou-se o livro do escritor mais aclamado pela crítica.

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No mês em que foi publicado


nos EUA, em 22 de agosto de 1973,
John Leonard, resenhista do New
York Times, escreveu uma crítica
sobre dois lançamentos de ficção:
"Encontro com Rama" e Tima Enough
for Love, de Robert Heinlein. Sobre o
livro de Clarke, considerou que o autor
não escreveu algo tão ambicioso
quando seu primeiro grande romance,
"O Fim da Infância", mas pegou um
"problema formal na melhor tradição
Prêmio Nebula de Arthur C. Clarke
da ficção científica (...) e trabalhou
como se fosse um acordeon, conseguindo uma bela melodia". Leonard destaca
que Clarke é positivamente "indiferente às sutilezas da caracterização",
deixando de lado os personagens para focar em uma ficção científica na sua
forma imaginativa mais técnica.

Mark Wilson, colunista do About.com, destaca que o realismo da narrativa


de Clarke sacrifica os personagens em prol de Rama: "a única entidade
realmente interessante". Porém, a história "é infalível quando tomada como uma
exploração inventiva de como um mundo interestelar artificial poderia funcionar
e como seria tratado pela humanidade". Neste sentido, Leonard destaca uma
das possíveis razões para o romance ter sido tão aclamado no meio da ficção
científica: o realismo da narrativa faz parecer verossímil a história, oferecendo
uma especulação para como é a vida lá fora e como ela pode ter colonizado a
galáxia.

Durante a década de 1970, apesar da conjuntura de crise nos programas


aeroespaciais das duas grandes potências mundiais, EUA e URSS, a
humanidade permanecia assombrada com as descobertas sobre o universo das
últimas década, especialmente as viagens espaciais e o pouso na Lua, narrado
ao vivo pelo próprio Clarke na TV. Apesar disso, na década de 1970, Stephen
Hawking desenvolveu suas teorias sobre os buracos negros, e Carl Sagan

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montou a primeira mensagem física enviada ao espaço fixada na sonda espacial


Pioneer 10, lançada em 1972, e uma mensagem mais elaborada foi enviada nas
sondas espaciais Voyager 1 e Voyager 2, em 1977.

Foi também nessa conjuntura, em 1972, que o então presidente


estadunidense Richard Nixon e o primeiro-ministro soviético Alexei Kosygin
assinaram um acordo convocando uma missão espacial conjunta e declarando
a intenção de que todas as futuras naves espaciais tripuladas fossem capazes
de acoplar umas às outras. A missão ocorreu em julho de 1975 e seria o último
voo espacial humano dos Estados Unidos até o primeiro voo do ônibus espacial,
em abril de 1981. Apesar da década não ter sido marcada por grandes avanços
do homem na fronteira espacial, a curiosidade científica pelo o universo e,
especialmente, pela possibilidade de vida em outros lugares da galáxia
permaneciam pujantes.

O mistério de Rama

A história se passa no século XXII, período em que a humanidade já teria


colonizado grande parte do sistema solar. A narrativa apresenta um fato que teria
mudado a mentalidade da humanidade com relação a ela mesma e sua posição

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no universo: em 2077, um meteoro caiu na Europa matando 600 mil pessoas,


destruindo as cidades de Pádua, Verona e Veneza, e causando um prejuízo
estimado em 1 trilhão de dólares. A possibilidade de novas colisões teria unido
a humanidade no projeto Spaceguard, que pretendia ser uma linha de defesa
espacial contra a ameaça de outros asteroides.

Então, em 2130, os radares do Spaceguard posicionados em Marte


descobrem um novo "asteroide", catalogado no banco de dados como 31/439,
com um tamanho excepcional de 40 km. Bill Stenton, operador do sistema, só
teria descoberto o objeto no dia seguinte ao analisar as informações
armazenadas no banco de dados. Stenton batizou o objeto de Rama, um dos
avatares de Vishnu, deus Hindu responsável pela conservação e sustentação da
vida no mundo. Curiosamente, Rama parecia girar muito rápido, o que era
bastante incomum para um objeto tão grande. A hipótese inicial era que Rama
poderia ser parte de uma estrela implodida, um sol morto, mas nenhuma massa
de dimensão estelar poderia penetrar tão fundo no sistema solar sem ser
percebida a muito tempo.

Após a descoberta, o Conselho Consultivo Espacial se reuniu e decidiu


lançar uma sonda espacial para mapear e identificar suposto asteroide. Nas
primeiras imagens descobrem que Rama era um objeto cilíndrico uniforme de
superfície cinza opaca e geometricamente perfeito. Outra conclusão era que
Rama seria leve demais para ser sólido e, provavelmente, devia ser oco. Ou
seja, era impossível que Rama fosse um objeto natural, como os cientistas
haviam suposto anteriormente. "O encontro, tão esperado e tão temido,
finalmente ocorrera. A humanidade estava prestes a receber seu primeiro
visitante das estrelas".

Frente a conclusão de que Rama era um artefato alienígena, a


humanidade decide enviar uma nave para pousar em sua superfície e investigar
mais de perto. A Endeavour, nave do comandante Norton, é escolhida para
realizar a aterrisagem mais importante da história da exploração espacial desde
o pouso na Lua.

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O interior de Rama

Após o pouso bem sucedido da Endeavour, um comitê científico formado


na Terra decidiu por abrir o artefato, apesar da oposição de grupos alarmistas
contrários. Assim, o comandante Norton e o tenente Karl Mercer formam a
primeira equipe de atividade extraveicular com a missão de abrir uma escotilha
para o interior de Rama. Ao entrar no artefato e se tornando o primeiro homem
de toda a humanidade a contemplar as obras de uma civilização alienígena,
Norton compara Rama a uma tumba, pois talvez fosse mais velho que a própria
humanidade.

Rama desafiava dois dogmas da ciência: primeiro, que o universo era uma
arena de forças titânicas e impessoais, como a gravitação, o magnetismo e a
radiação; segundo, que era impossível para a vida atravessar o abismo
interestelar. Porém, até aquele momento não haviam detectado vida em Rama,
e o artefato mais parecia uma espécie de "arca espacial" (conceito que remota
as ideias do cientista de foguetes russo Konstantin Tsiolkovski e do físico
britânico J. D. Bernal).

A hipótese inicial dos cientistas era que Rama sustentaria uma ecologia
para sobreviver no máximo 10 mil anos, tempo adequado ao transporte entre os
sois apinhados no centro da galáxia, mas não num lugar como o sistema solar

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nos braços da espiral. Sendo assim, o artefato foi considerado um "navio


abandonado", apesar de sua órbita estar apontada com precisão para o sistema
solar.

O interior de Rama era como um pequeno mundo, com ar, clima,


planícies, edificações e um mar que pareci ser composto de água em estado
sólido, mas o local estava desabitado, tudo parecia novo e sem uso. Assim, a
exploração do interior do artefato prosseguiu na medida em que este se
aproximava cada vez mais a órbita do sol. Em sua aproximação o clima no
interior de Rama começava a mudar, havia possibilidade de furações e o mar
cilíndrico estava descongelando. Num dado momento, na parte sul do cilindro
revelaram-se poderosos refletores que acenderam: "quem ou o que tinha
acendido as luzes de Rama?".

Ovo cósmico

As mudanças no interior do artefato começavam a produzir novas


hipóteses entre cientistas e exploradores. O historiador Lewis, membro do
Comitê Científico de Rama, ao analisar o material enviado pelo comandante
Norton e sua equipe, disse em tom conclusivo: "Rama é um ovo cósmico que
está sendo chocado pelo calor do sol. A casca do ovo pode se romper a qualquer
momento". O espaçonauta Rodrigo, da equipe do comandante Norton, crente da

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religião cosmo-cristeira, comparou Rama a Arca de Noé bíblica, enviada para


salvar os que fossem dignos.

Com o degelo, perceberam que o mar cilíndrico não era feito de água,
mas de uma espécie de sopa orgânica. Rama havia passado do estado
anaeróbico para plantas fotossintéticas em 48h. A água estava viva: "cada colher
de sopa continha milhares de microrganismos esféricos e unicelulares,
semelhantes as primeiras formas de plâncton que existiram nos oceanos da
terra". Em pouco tempo criaturas complexas começam a surgir, mas elas não
eram semelhantes a vida terrestre, pareciam biômatos, um tipo de robô biológico.

Uma crise se instaura nos Planetas Unidos (Mercúrio, Terra, Lua, Marte,
Ganimedes, Titã e Tritão) sobre o que fazer com o artefato, que parecia estar
estabelecendo uma órbita no Sol. O embaixador de mercúrio assumiu um tom
de alerta com relação a Rama, apresentando o artefato como um perigo iminente
para a humanidade. Em meio à crise, antes de evacuar Rama, o capitão Norton
abre um buraco nas construções hermeticamente fechadas e descobre o visual
de objetos de um possível traje ramano, com três braços e três pernas.

Rama parecia acelerar, mas não havia qualquer propulsão visível,


colocando em xeque a terceira lei de Newton. O artefato ia diretamente para o
Sol, mas não era afetado pelo calor, envolto numa esfera perfeitamente refletora
parecia apenas aproximar-se para aproveitar a energia da estrela. Ao atingir o
periélio, ao contrário do que alguns acreditavam, Rama não estabeleceu órbita
no Sol, mas lança-se em direção a Grande Nuvem de Magalhães.

Conclusão

Encontro com Rama é uma das obras primas de Arthur C. Clarke, não
necessariamente pela excelência narrativa, que segundo os críticos deixa a
desejar na construção dos personagens, mas pela centralidade do objeto como
elemento central da trama. A narrativa do livro se desenrola análoga a pesquisa
de cientista sobre seu objeto, onde este lança perguntas e realiza descobertas
graduais sem necessariamente chegar a conclusões definitivas, mas a
perguntas cada vez mais complexas. Os personagens, como capitão Norton, os
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membros da sua equipe, os cientistas, diplomatas e políticos, são apenas


coadjuvantes que instigam o olhar curioso do leitor sobre o artefato, o verdadeiro
protagonista da novela.

Essa é uma das razões para Encontro com Rama ter tido uma recepção
tão acalorada no meio literário da ficção científica, que durantes as décadas de
1960, 1970 e 1980, foi um espaço de vazão para especulações metafísicas que
não cabiam no campo acadêmico-científico. A temática do livro atendia a uma
curiosidade corrente dos cientistas e do público, intuindo a possibilidade de
respostas para perguntas que que a humanidade estava se fazendo: existe vida
fora da Terra? Como seria a vida fora da Terra? É possível a vida viajar pelo
universo?

A novela consegue captar todo esse clima de expectativas gerados pelas


recentes descobertas e conquistas da humanidade com relação a fronteira
espacial. Também lança um olhar sobre a humanidade unificada em prol de um
bem comum e razões maiores, o que traduz o desejo global de arrefecimento do
clima beligerante estabelecido durante a guerra fria.

Um feminismo de amasamiento: Interseccionalidade


entre o pensamento de Lélia Gonzalez e Gloria Anzaldúa
Por Gabrielle Venancio da Silva (Skia)
Na obra intitulada “Borderlands/La Frontera: The New Mestiza”, no
capítulo “La conciencia de la mestiza/rumo a uma nova consciência", a teórica
cultural Gloria Anzaldúa apresenta seu conceito de consciência mestiça,
trazendo em seu texto as problemáticas envolvendo questões históricas,
culturais e políticas de sua vivência enquanto um corpo queer feminino, mestiço
e chicano.
A autora apresenta suas considerações através de seus subtítulos,
construindo uma narrativa através da estrutura de seu texto que, ora se inicia
com poesias de sua própria autoria e ora com citações de suas referências
bibliográficas, de forma um tanto quanto inédita, para um texto acadêmico.
Gloria nos traz a visão do lugar do mestiço, trazendo analogias em relação
ao qual sua subjetividade enquanto mulher de origem mexicana e lésbica. Esses
lugares pelo qual a autora perpassa são base para recurso argumentativo e

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ilustrativo de um não, e ao mesmo tempo, todos os lugares. Dessa forma, a


autora faz com que o leitor reflita sobre todos os corpos que podem assumir esse
local de mestiçagem, principalmente mulheres latino-americanas.
Como mestiça, eu não tenho país, minha terra natal me despejou; no
entanto, todos os países são meus porque eu sou a irmã ou a amante
em potencial de todas as mulheres. (Como uma lésbica não tenho raça,
meu próprio povo me rejeita; mas sou de todas as raças porque a queer
em mim existe em todas as raças.) Sou sem cultura porque, como uma
feminista, desafio as crenças culturais/religiosas coletivas de origem
masculina dos indo-hispânicos e anglos; entretanto, tenho cultura
porque estou participando da criação de uma outra cultura, uma nova
história para explicar o mundo e a nossa participação nele, um novo
sistema de valores com imagens e símbolos que nos conectam um/a
ao/à outro/a e ao planeta. Soy un amasamiento, sou um ato de juntar e
unir que não apenas produz uma criatura tanto da luz como da
escuridão, mas também uma criatura que questiona as definições de luz
e de escuro e dá-lhes novos significados (ANZALDÚA, 2005. p. 707).

O resgate histórico da autora é preciso e detalhado, trazendo registros da


dominação colonial e cristã para com os chicanos e a América latina em geral,
apontando as raízes do machismo e homofobia através dos mesmos, Gloria faz
um levantamento , através de uma reflexão, sobre o padrão de masculinidade
tóxica antiga da atual. Também nos apresenta reflexões sobre conceitos e
figuras epistêmicas negligenciadas e demonizadas pelos brancos/ cristões,
cotidianamente e academicamente: A encruzilhada e Exu, pincelando, dessa
forma a cultura Yorubá, a diáspora africana, os pretos e mestiços que são
tocados por essa linguagem e representação.
É importante destacar também a importância da terra - direito negado a
muitos latino americanos, desde os genocídios de vários povos indígenas pelo
continente, à diáspora africana, até os dias de hoje- em “La conciencia de la
mestiza/rumo a uma nova consciência". Através de suas memórias, ela articula
com as demandas já narradas anteriormente, apresentando agora em uma visão
territorial, a terra enquanto espaço físico, de onde se tira o alimento e a terra
enquanto espaço político, de apagamento, de neocolônia.
Desse modo, polida, porém cativa, faz um apelo enquanto lança críticas
e convida aos brancos para que reconheçam o seu local na luta pelos direitos,
um local de assistência, sem protagonismo. Assim como convida a todos
mestiços que reconheçam os locais e situações onde não possuem passibilidade
para ocupar enquanto representação, de forma doce, original e única.

Referências:
ANZALDÚA, Gloria. “La conciencia de la mestiza/rumo a uma nova
consciência". Florianópolis: Revista Estudos Feministas, 2005, p. 704-719.

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