Você está na página 1de 55

ISSN 2764-5649

Sumário

Peabiru 3000
Novos rumos no Tempo 2
Ademas Pereira
Serviço de Preto 5
Dimas

Observatório Cotidiano
Centro 14
Roberto Brito da Silva
Você chegou ao seu destino (?) 17
Reginaldo Gonçalves

Nó em Pingo D´água
Agora é que são elas 19
Vivi Linhares & Luiza Siqueira

O negócio é ser rural


A Resistente Rede de Pescadores Artesanais e Extrativistas Costeiros 23
Eliana Leite

Bora Apre(e)nder?
Convergências tecnodiversas do desvelamento para a transformação cosmopolítica 27
Coletivo Terral
As Fake News e seus riscos para o sistema democrático 30
Pedro Safo Rodrigues da Silva
Podcasts como instrumento educacional no contexto pandêmico 34
Carlos Alberto Muniz

Partiu Resenha
Entrevista Livraria Alecrim 39
Carlos Douglas Martins
Resenha “O homem do castelo alto” 41
Carlos Douglas Martins

Poetizando
Quem é ele 43
F. Moura
Manifesto 45
Carlos DOuglas Martins
Nada 46
Claudia Nascimento

13
peabiru
3000
Peabiru 3000

Brasil, Espaço Urbano em Formação e Resistências

A consolidação da urbanização brasileira ocorreu em meados da década de 1970,


contemporânea à formação das primeiras metrópoles e expansão das cidades médias. O censo
do IBGE, divulgado no início daquela década, demonstrava em números o acréscimo
significativo da massa populacional que dava nova forma e função a esses centros urbanos.
No horizonte das iniciativas e projetos de futuro para um Brasil moderno, a urbanização era
um passo necessário. Rumo estabelecido em promessa política com a alcunha de nacional
desenvolvimentismo, rumo este que, em paralelo a industrialização, se fazia enquanto um
sinônimo da realização do progresso. Neste processo, trabalhadores pobres, de diferentes
origens, se concentravam nas franjas dos grandes centros urbanos industrializados, como Rio
de Janeiro e São Paulo. Motivados por promessas de um futuro melhor, alguns deles
sucediam verdadeiras peregrinações, vindos de diferentes estados do nordeste, com o objetivo
de se fixar nas áreas em que a diversificação e dinamização da economia oferecia, ao menos
em tese, melhores condições de sobrevivência. Cenário este já retratado em 1933 por Tarsila
do Amaral, em seu quadro “Operários”.
A questão urbana no Brasil permanece presente. Urbano sem dúvidas, ele se tornou.
Mas a custo de que? De quantos? 50 anos depois, a cidade, emergente, é o lugar comum,
cotidiano, em que vemos e vivemos a desigualdade. Nas encostas dos morros, estampado nos
jornais, a cor e o sangue da desigualdade. Brasil dos nossos dias. Que um dia sonhou ser um
país de todos, mas esqueceu, ou escolheu esquecer, o seu passado, suas origens. O processo
de urbanização, a formação das cidades, acompanhou os ímpetos da modernidade. Esta, por
sua vez, foi a esperança infantil de se alcançar intencionalmente um novo lugar no tempo.
Abandonar suas raízes agrárias. Distanciar-se do latifúndio, da lavoura arcaica. O futuro,
viria às pressas. Então na espera do progresso, foi estampado na bandeira. Projeto de um
novo Brasil. Mas como? A custo de que? De quantos?
Indústria e cidades são simbiontes. Para crescer, uma precisa da outra. E estas das
gentes que vivem e produzem. A custa das vidas, de muitas delas, a cidade entrelaça o
trabalho à produção racionalizada, moderna. Ela faz surgir o progresso, enquanto anseios
humanos. Demasiadamente humana, é como esta surge. E não apenas por uma única razão.
Se falamos em pares, fica mais fácil a compreensão. A desigualdade tem sua origem na

2
ganância. A ganância, no dinheiro. O dinheiro que é poder. Com ele, se compra e se vende.
Se compra o trabalho, que se vende, e o futuro. Se rende, é só para alguns, poucos. E talvez
esses nem conheçam a cidade que deve ser vista. No Brasil, a industrialização foi financiada
com dinheiro dos cafeicultores. Herdeiros da riqueza gerada com a escravidão. Os herdeiros
da escravidão, descendentes, nem a terra tiveram direito. Ficaram nas encostas.
O Brasil é um país continental. Mas a terra sempre foi o seu problema. Terra onde
estão fincadas suas raízes. Raízes que persistem em se aprofundar. Desta terra, com tantas
riquezas, se extraiu ouro branco, amarelo e o negro. E para isso se fez transbordar o sangue
das gentes. Por terra, se fez guerra, por terra se conquistou. A nobreza se fez por terra, e
através da guerra no passado nos governou. Herdamos da colonização uma sociedade
hierarquizada. Sociedade que considerava o trabalho manual um defeito mecânico. A raiz da
desigualdade, era, portanto, a mesma da riqueza. O trabalho. Proveito de uns. Direito
herdado. Pensão vitalícia. Exploração feita através da terra, da propriedade, e da segregação.
Esta indústria arcaica, a lavoura, deu forma às primeiras vilas, aos primeiros núcleos de
poder, que dariam origem às cidades. Historicamente, foi através da cidade que se governou o
interior, se conquistou as gentes e se fez a colonização, por generais de milícias.
Tempos se passaram, aproximadamente quatro séculos, até que abolida a propriedade
sobre corpos negros, os escravizados, enraizados nessa terra, livres, ficaram a ver navios. Não
mais em negreiros em que se fez o tráfico para o cativeiro. O novo cativeiro, era o social. O
poder não se rendia, a terra herdada não se dividia. A República foi proclamada. Reação
provável à abolição. Sem um plano de reforma da estrutura fundiária, muitos deles
permaneceram nas fazendas, trabalhando para seus antigos senhores. Outros se amontoavam
nas encostas, formando as periferias. Criminalizados por seus hábitos, suas culturas, ficaram
em zonas de exclusão, onde a segregação e o preconceito eram sintetizados pela cor da pele.
Lembram-se dos sonhos de modernidade e progresso? Já estavam se realizando. Com
eles o Brasil se tornaria uma nova sociedade. Era a esperança que vinha a navio, importando
o branqueamento. Imigrantes europeus ocupavam as cidades, que rapidamente cresceram e se
encheram dos mais diferentes tipos de gente. No fundo, permanecia o poder das oligarquias,
dos grandes proprietários de terra, industriais. A hierarquia do campo moldava a cidade, e o
processo de urbanização. A mestiçagem, vista como positiva, essência do povo brasileiro,,
era glorificada como a evidência de que vivíamos em uma democracia. As ruas das cidades
aos poucos adquiriam bem aos poucos um tom popular. Ocupavam as ruas os movimentos de
massa. Suas festas. O carnaval. A cidade se enchia de cor. A rua, o espaço urbano
movimentado, dava novos sentidos ao Brasil. Tempos se passaram, até que esses sinais

3
pudessem se inverter. Aparentemente abandonando o seu passado rural, mas ainda arraigado
a ele, surgiam as estradas de rodagem, o automóvel e o confinamento urbano. O sonho da
capital. Neste novo solo, mais concreto, a raiz das desigualdades estava encoberta.

Eis aqui este novo lugar no tempo. Feito no improviso. O Brasil delirou, enquanto os
campos se esvaziavam e as cidades se enchiam, em se tornar uma potência. E foi, sendo,
tornando-se foi através da exclusão social e da segregação. Formas de se manter os princípios
e os valores de uma sociedade hierarquizada. Dos inumeráveis golpes militares que sofreu, o
último, até então, que durou 21 anos, foi reação ao mesmo tempo reação às propostas de
reforma agrária e ímpeto modernizante. Uma nova raiz para um novo tipo de sociedade, uma
nova forma de exclusão social. A crise urbana foi a própria urbanização sem planejamento,
desigual, propositalmente. Periferias e conjuntos habitacionais para os mais pobres, beiras de
praia e condomínios de luxo para classe média. Jardins para a elite. Foi este o progresso
atingido pelo golpe. Pela força da desigualdade histórica. Pelo amor ao poder e à força.
Em meio a Ditadura Militar, milhares de brasileiros passavam fome, não tinham casa.
Eram torturados, física e psicologicamente. Tolhidos de seus direitos políticos fundamentais
atuavam na resistência indireta. Outros partiram para a luta armada. Os artistas se engajaram
na luta democrática. Narraram as ruas, levaram às ruas a voz que precisava ser ouvida. Nem
todos eram conhecidos. Muitos permaneceram anônimos, como a cidade faz acontecer
quando se está junto à multidão. Alguns deles usavam os muros da cidade para expressar sua
revolta. Outros a música, o teatro, o cinema. “Gota D'água”, peça de teatro de Chico Buarque
e Paulo Pontes, narra a história de Joana, mãe pobre abandonada num conjunto habitacional,
de uma cidade que a faz anônima. Mãe, que retira forças de sua dor, para anunciar o fim, a
gota que falta, a maré que se retrai e impulsiona a ressaca. E em único ato reverte o curso da
história. Se juntaram ao coro democrático os movimentos sociais, as massas de trabalhadores
industriais e os grevistas. Com eles as ruas se juntaram nas manifestações das diretas. Com
eles nas ruas a democracia venceu.
Herdamos esse passado. Herdamos essa democracia. Hoje, fazemos as cidades, e
damos novos sentidos a ela. E mesmo que alguns façam apologia aos crimes históricos dos
militares, nas ruas o movimento de oposição se articula. Mostrando que as cidades podem ser
reinventadas. E elas impulsionam a transformação. O meio urbano reflete a vida humana
como um prisma. No dia 24 de Junho de 2021, manifestantes incendiaram a estátua de Borba
Gato, bandeirante conhecido como um dos símbolos da fundação de São Paulo.

4
Hoje as ruas mostram a recusa do povo em relação a este passado, mandando um sinal
para o futuro. Prova de que a cidade como a história é cheia de encruzilhadas que oferecem
caminhos possíveis para serem trilhados. Os passados são presentes. E a luta é dura. Hoje
vemos o regresso conservador se manifestar na política institucional e no cotidiano. As
opiniões dos tiozões de padaria se tornaram argumentos políticos viáveis. Enquanto uns
defendem o progresso predatório a qualquer custo. No passar da boiada. Os mesmos que
defendem a eliminação das comunidades indígenas e dos seus territórios. A PL. 490 é mais
uma expressão desse passado arcaico insolúvel. Grilagem em terras indígenas, as queimadas
na Amazônia e no Pantanal, acompanham um movimento de segregação nas cidades, com os
novos planos urbanísticos sendo votados pelas prefeituras a fim de favorecer a especulação
imobiliária. Estamos diante de um impasse. Enquanto rangem no fundo da sala as ameaças de
golpe por parte de Bolsonaro e seus Generais Aliados, o passado se faz presente. Deseja
romper o tecido do tempo. E nós, sabendo que o presente é autor do passado e do futuro,
devemos agir. É preciso imaginação para se compreender o tempo e mais ainda para criá-lo.
Disseram certa vez que a catástrofe dá início ou põe fim a um tempo. Pergunto se hoje
vivemos um princípio de futuro ou se já rompemos com o passado. De qualquer forma, o que
existe é um novo desafio, um novo mundo, um “novo normal”, novas possibilidades, outros
caminhos, cidades ainda mais anônimas. Sem rumo. A história do terceiro milênio é um
pesadelo ao qual estou tentando acordar. Para onde?
Ademas Pereira da Costa Jr

Serviço de Preto

O primeiro dia de serviço é um reconhecimento de terreno. O que fazer e como fazer


dependem do espaço, disposição material, e um pouco de movimento. Organizei tudo num
plano. De uma ponta a outra, entre portões e telhas, 40 metros de muro compacto. Cimento
envergado para fazer divisas. O dono T. M. me disse que tinha tentado, e se cagado todo.
Surpreso que o branco da cal respingou colorindo. Um homem naquela idade, bem nutrido, e
com o cérebro em perfeito estado deveria supor que isso acontece. Mas a vida tem dessas.
Logo ele se colocou a negociar valores, dias, serviços.
T. M - Como vai ser a diária?

Dimas - Para caiar? 100. Coisa rápida.

TM - Mas temos que ver isso aí. Tem que ser bom pra mim o valor. Eu tô pagando.

5
Dimas - Tem que ser bom para os dois. Sem pagar, sem serviço. Eu estou trabalhando.

Pensei que eram dois dias, pra fazer pegar bem no muro. Gosto de saborear as coisas.
Fazer a cor surgir. Acho que a visão do feito é tão boa para quem faz do que para quem
contrata. Há um alcance, uma conquista. Um tempo vivo. E por isso, dei garantia do trabalho.
De uma ponta a outra, pequenos problemas para acertar. E entre muitas conversas, ouvia ele
dizer sobre coisas que estavam fora do prumo. Acertos além do normal, coisas já diferentes a
serem feitas. Mais do que o serviço seria. Não deixei faltar.
Vi aquilo tudo como um grande laboratório. Tudo era observável. Tudo era
entendível. Tudo era diferente e ao mesmo tempo semelhante. Era um vizinho. Conhecia ele
por fora, e agora estava dentro. Observava detalhes em coisas que antes eram borrões de
memória. Sua casa, ascética. Parecia feita à uma espécie de ficção de cimento. Dois andares,
planejada. Entrada para um jardim, duas passagens para o fundo. Chão de porcelana. Sem
muitos efeitos vivos. Um silêncio. Cachorros presos. Tudo parecia estar em sentido. Posto às
ordens do Tenente. À casa ele se referia como um “filé de badejo”. Ouvi essa expressão em
sua conversa com o homem da imobiliária, que tinha chegado a sua casa pouco depois de
mim, enquanto acertava alguns dos buracos na base do muro. Coisa comum.
Na rotina valorizei o bem da coisa. Trabalhei com cuidado. Cuidei para que o
combinado fosse cumprido. Enquanto ele se gabava para o homem da imobiliária, massei nas
partes. Vi uniforme e preparei outros movimentos. Ele percebia de longe os meus. Talvez já
pensando de longe em me colocar para fazer outros serviços. Não entendia que tudo aquilo
era parte de uma mesma coisa. Preparação de um antes para o depois. E logo me lançou a
outros serviços. Vamos ver… vamos ver… de cá pra lá, surgiram telhas, frisos de porta,
portões. Em um deles ele misturou gasolina com verniz. Tudo borrado, mal feito de quem não
sabia. Ele com toda a postura de autor, não justificava, insistia. Vi tantas coisas, que de um
dia para o outro tive que parar e caiar o muro.
No final do dia nenhum acerto. Só pagava na hora do almoço do dia seguinte. Parecia
ter o costume. Não quis saber de fazer diferente. De manhã, em cada dia, era uma cena
comum. A tinta acrílica que ele trouxe do fundo de casa não aderiu à madeira do portão. O
esmalte branco com que ele estava pintado fez escorrer destoando o branco do fundo do
branco novo. Sua insatisfação se fez presente sem rodeios. E ele, com a camisa do
grupamento de infantaria paraquedista, vibrava em um tom de advertência. Como se algo
fosse me acontecer já que não ficava no seu agrado.

6
T. M - Isso aqui, olha. Não pode. Eu que tô pagando, não posso te ensinar a fazer. Isso aqui tá
uma merda, concorda comigo?
Dimas - Isso acontece. É normal. Trabalhar com tinta tem dessas coisas. Vai pingar, mesmo
com jornal no chão. Acontece. Mas é fácil diluir e limpar. Quanto às manchas, como eu te
falei, a tinta que você me deu não serve.
T. M - Mas temos que usar o que tem. Não é isso? Eu quero vender a casa, não quero gastar
dinheiro. Temos que inovar. É assim que se diz no quartel. Então é isso que você tem que
fazer.
Dimas - Eu estou sendo sincero e honesto com você. Assim não vai ficar bom. Demanda mais
tempo. Precisa lixar, usar outro tipo de tinta. Assim você só tem aparência.
T. M. - Vai fazer e depois a gente vê. E faz um rodapé cinza também. Nessa medida da
primeira madeira do portão. Para esconder os buracos. Vai ter visita na quinta feira e no fim
de semana. É bom que você esteja aí. Eles vão te ver trabalhando.
Dimas - Vou continuar o serviço. Quando terminar te chamo para você ver.
T. M. - Entendeu o que eu falei garotinho?
Dimas - Entendi.
Senti uma gastura com aquele ambiente. Mas colocava meus fones no ouvido e
ignorava a presença dele. Tentava me comunicar com os cachorros, me aproximando,
assobiando de longe, e em pouco tempo se acostumaram comigo. Latiam de longe.
Abanavam o rabo. Quando conseguiram fugir, se aproximaram. Levei o trabalho com rigor.
Enquanto o dia passava, olhava as nuvens no céu, sem grandes expectativas. O que elas
traziam com o vento, suas formas na pintura, imaginava seus movimentos. Voltei a estar
diante do muro, pronto para executar os finalmentes, o combinado de início. 40 metros
adiante, cal diluído. Tudo pronto. Fiz tudo de que ia começar. A cal é um pó de base. Serve
para proteger da umidade e evita o aparecimento de fungos. Diluído reflete o seu branco seco.
Um composto químico, calcário esfarelado. Normal que na aplicação respingue em um canto
ou outro. Coisa simples de resolver. Atento, carregava no bolso um pano para secar os
excessos. Na paz, concentrei os movimentos com a respiração. Via os detalhes. Os rios que se
cruzavam verticalmente. Carregando os primeiros traços de cor. Escorria, marcando seu
percurso. Evitava os fins prolongados. Uma mão sobre a outra, até que tudo ficasse igual. De
começo, molhado, depois caiado. Assim foi, do contorno do jardim, até chegar ao corredor.
No corredor, antes de começar, vi as fissuras. Antecipei o movimento, e segui o rumo.
Descasquei toda a área. Encontrei as bolhas. Lixei tudo até ficar homogêneo. Emassei. Tudo
conforme o necessário. Sem maiores problemas. Enquanto esperava secar, olhei para as

7
telhas que cobriam o muro. E dei uma lixada para começar a pintura. Ali do alto da escada
percebi o vento que vinha do leste. Era chuva forte. Fragatas bem lá no alto. Fugindo do
litoral ou jogando suas asas para o interior. Avisei que com chuva que chegava não tinha
como continuar. O risco era grande e não serviria. Poderia sujar o chão, ou estragar o que já
se tinha feito. Expliquei para que entendesse. Sabia do que falava. Não por mim, mas pelos
mestres pescadores da praia de Itaipu que me ensinaram. T. M. claro que duvidou.
T. M. - Faz isso que a gente vê depois. O que importa agora é continuar. Quero isso tudo
pronto até quinta. Como eu disse, quero vender a casa. O que importa agora é que fique
diferente do que está. Depois, quem comprar que dê um jeito. Se pintar vai ficar bom né?
Dimas - Depende do que você considera bom. Não vai ficar da melhor forma. Vai mudar de
aparência. Eu lixei, a tinta vai pegar. Mas com chuva pode estragar tudo. Se quiser posso
começar a cal no murinho dos fundos. Como é a primeira mão não vai ser problema.
T. M. - É, faz isso. Adianta isso pra mim. Com esse vento pode secar mais rápido também.
Você não acha? Antes de chover o vento secar? O que importa agora é isso feito, direitinho.
Não quero ficar falando. Tendo que te ensinar o seu serviço. É com capricho? Tem que ser no
capricho. É como fazemos na caserna.
Dimas - Beleza. Vou adiantar aqui. Depois te chamo.
T.M - Me lembra de te mostrar as janelas que eu passei verniz. Vou acertar com você pra
fazer pra mim também.
Ali da sacada, de onde ele estava, eu já via os borrões. Borrões escuros, que
denunciaram o desperdício. Enquanto gritava para os cachorros, quis fazer um assunto.
Contar uma história. O ouvi de costas enquanto continuei a caiar o murinho dos fundos.
Observava os cantos, delimita os campos de agir, preenchia lacunas. O movimento não se
encerrava, sem que a cal fosse revirada no fundo do balde. Movimento contínuo, 10 metros
na distância para a esquerda. Enquanto ele contava:
T.M. - Um dia eu estava na frente de casa. Na sacada também. Avistei mais ou menos nessa
distância, em que está eu e você, uma pessoa agachada. Assim mesmo. Isso perto do meu
muro. Balançando o mato. Ficou ali uns 30 minutos. Comecei a desconfiar. Tô eu aqui,
avisando para sair. A pessoa não responde. Passou 1 hora. Já tinha bebido os meus aqui.
Peguei minha pistola e mandei o primeiro. A pessoa apareceu, me olhou e saiu correndo pro
final da rua. Depois fui saber quem era.
Dimas - Quem era?
T. M. - Era uma moça que mora ali na curva. Filha daquele rapaz que morreu. Aquela que
carrega um monte de lixo pra dentro de casa. Acho que é maluca.

8
Dimas - Sei quem é. Família antiga aqui. Ela é esquizofrênica.
T. M - Dou graças a Deus que não acertei. Imagina o remorso que eu ia ficar. Ainda bem que
eu errei. Se eu mato ela nunca ia me perdoar. Mas, depois me lembra de falar com você onde
eu quero passar verniz.
Ouvi lá de dentro que tinha outra pessoa na casa. Uma mulher. Apareceu já passando.
Desapareceu por entre os cômodos. Não sei se fingindo se esconder, ou evitando de encontrar
ele diretamente. Ele a chamou, escutei ele dizer.
T. M.- Olha o vidro da janela. Aquilo está limpo?
A mulher respondeu se esquivando, já antecipando aos finalmentes. Largou a
vassoura com pano molhado que passava pela casa num canto. Catou um pano, borrifou um
líquido sobre ele. E tratou de ilustrar toda a vidraçaria.
Foi nesse ínterim que ele saiu de casa e foi até mim para acertar o serviço. Já era o fim
do dia, 17 horas. De minha parte, considerava finalizado o dia. Tudo nos conformes. Material
guardado. Acertaria os detalhes para o fim, no dia seguinte. Ele veio caminhando pelo
corredor. Braços para trás. Inspecionando meus fazeres. Tinha percebido o bom andamento.
Parede lisa e caiada. Muro caiado. Os fundos da casa também. Pegou no dinheiro e me olhou.
Perguntou (na dúvida?) quanto era minha diária. Tentando acertar para uma meia no dia
seguinte. Apontando já para outros pontos na parede, onde queria uma pintura de tinta
normal. Numa delas, ele se queixava da mancha de óleo queimado na parede. De sua autoria.
Dimas - Minha diária aqui é 100. Para caiar. Qualquer outro serviço vamos ter que negociar
os termos. Dependendo do que você quer podemos fazer em meia diária.
Com um sorriso no canto da boca ele começou a falar
T. M. - Mas aí você chega às 8 horas? Sai que horas?
Dimas - Meia diária, significa meia diária. Metade do valor é a metade do dia.
T. M - Você acha que dá para fazer? Preciso disso pronto. Amanhã vão visitar a casa. Se
precisar de você por mais tempo, dependendo do serviço, como vai ser?
Dimas - Não depende do serviço. Dependo do tempo para fazer as coisas bem feitas, de
acordo como elas devem ser feitas. E para isso eu cobro o equivalente. É o preço.
T. M. - Tá bom, vamos ver garotinho. Vamos ver isso aí. Olha só, vi aqui a base do murinho,
está com uma mancha verde.
Ele pegou uma enxada no canto e começou a raspar sobre a superfície do muro.
Esperando resolver o problema. Em vão, não conseguia. E eu já me permitia rir dessas
investidas. Percebi o quão ridículo ele se prestava com aquele personagem.

9
T. M - Viu, é por isso que eu fico puto. Essas sobras aqui. Esse esverdeado. Não pode. Eu tô
te pagando pra resolver isso pra mim. Preciso pegar uma enxada pra te mostrar como faz. Tá
vendo? Concorda comigo?
Dimas - Eu passei a escova de aço. O esverdeado ainda vai aparecer durante um tempo. A cal
vai puxar. Isso demora um tempo. Amanhã você vai conseguir ver.
T. M. - Tá certo. Vamos ver amanhã. Você chega às 8 horas, não é?
Dimas- 8 horas estarei no seu portão.
T. M - Toma seu dinheiro. Acho que esse vento vai secar essa cal que você passou antes da
chuva chegar. Não acha? Não tem problema se chover também. Tem que mudar a aparência
para amanhã. Com você pintando e o material espalhado, a pessoa que vai vir amanhã ver a
casa não vai reparar tanto assim. Pode ir, até amanhã.
Dimas - Até amanhã.
No caminho pra casa, fui caminhando. Refletindo sobre muita coisa. Passados
recentes. Tempos de faculdade, coisas que aprendi. Tudo fazia mais sentido agora. As coisas
não tinham acaso, ou eram fruto de um mal entendido. Como tudo aconteceu em ordem, não
me lancei fora do tempo. Me pus a analisar naquela noite as atitudes do Tenente. Via antes de
tudo uma necessidade de afirmação da autoridade, um poder da força. Uma dignidade
travestida pela coerção, pelo enfraquecimento do outro. Fazia mais sentido ainda, quando me
lembrei de algo que ele deixou escapar sobre o seu passado. Vinha do Sul. Era herdeiro de
terras, de um grande fazendeiro, que tinha seu mando exercido sobre uma pequena cidade
próxima a Caxias do Sul. Gabou-se satisfeito deste trisavô. Feliz pelas conquistas de sua vida.
De quem nunca trabalhou para si, antes que os outros se vissem obrigados a fazer.
Me afastei dessas ideias, enquanto caia a noite. Decidi correr. Fiz um longo percurso.
Com força, mantive o ritmo por um longo período. A respiração no prumo. Afastando as
ideias de limite. Me impulsionei intensamente. Subia ladeiras como se fossem descidas. Dava
saltos entre as calçadas. As ruas se cruzavam sob os meus pés. Os transeuntes não me viam.
Eu era o silêncio da noite. A chuva caiu como de esperado. E não me incomodei com ela.
Tirei a blusa e deixei correr pela pele como uma benção. O vento frio me aqueceu, e levou
todos os meus medos embora. Avistei de longe um ponto alto. Mirei nele com o espírito.
Aumentei o ritmo. Evolui. A mente firmou o corpo, e o corpo já se guiava. Sem fraquezas.
Na manhã do dia seguinte ainda senti essa força presente em mim. Cada passo era
firme. A postura reta. O olhar, penetrante. Renovador. Determinado. Preparei o meu café
como de costume. Um copo de limão com água. Bananas, granola e mel. Minutos depois uma
sensação de desconforto. Suspeitas de que o dia estava torto. Coloquei meu macacão e fui.

10
Bati na porta do Tenente às 8 horas. Como combinado. Ele a abriu. Não olhou em meus
olhos. E fez com o braço para que eu entrasse.
T. M. - Bom dia!
Dimas - Bom dia! Vamos ver o serviço de hoje?
T. M - Sim, vamos lá atrás.
Dimas - Viu se a chuva chegou antes ou depois da cal secar?
T. M. - Vamos ver agora. Olha perto do murinho. Ontem eu tive que ficar limpando isso tudo
aqui. Respingou em tudo. Ficou uma merda. Vai ter que fazer outra vez. E a parede também
que eu te pedi. Respingou em tudo.
Dimas - Eu falei a você sobre a chuva, que iria escorrer.
Já me respondeu sem disfarçar, revirou o corpo apontando para as partes do muro já
elevando o tom de voz.
T. M. - Isso é serviço de preto!
Olhei para o relógio e pensei: “8:10”.
Dimas - Vamos parar por aqui. Acabou o serviço agora. Isso que você falou eu não posso
admitir. Vou finalizar o que já tinha combinado. Pela minha palavra. Mas não aceito receber
seu dinheiro. Não trabalho para um racista.
T. M. - Que? Como assim? O que eu quis dizer não foi isso. Tá tudo sujo, era isso. E eu não
falei serviço de preto. Falei serviço preto. É diferente. E se você olhar, tá respingado nas
folhas. Tá ou não tá? Eu fiquei limpando, passando a vassoura. Não pode assim, porra! Olha
você, concorda comigo?
Dimas - Não! Eu te avisei sobre a chuva. Que iria acontecer. Depois eu resolveria. Agora,
como eu disse, não posso admitir mais nada. Acabou o serviço. Fiz um juramento e não
quebro a minha palavra. Sou um professor de História. Sei onde você quer chegar.
T. M. – E daí? Minha irmã também é professora. Você quer ver hierarquia mesmo? Olha lá,
olha para as plantas. Está tudo branco. Serviço preto.
Dimas - Isso nem tem lógica. Você me ofendeu. E ofende amigos meus. Não tem conversa.
Minha palavra não tem preço. E você não vai me comprar, nem me convencer do contrário.
Farei o combinado de antes, pela minha palavra. Depois vou embora.
Vi que ele não se sentia nada bem com as palavras que escolhia. Minha reação foi
espantosa para ele. Devia estar acostumado a ter esse tipo de atitude. A não ser repreendido.
A ter essa suposta força, uma autoridade torpe, que esperava minha cumplicidade. Jamais
deixei baixar minha cabeça. Nem com seu pedido de desculpas que veio no desespero, um
último recurso. Um pequeno passo. Mas nada que me fizesse voltar atrás.

11
Dimas - Posso até aceitar seu pedido, mas será apenas para que essa discussão acabe. Não
vou esconder o que eu sinto. O que eu senti com as suas palavras. Isso não posso fazer. Não é
da minha índole. Está feito. Eu sou preto. E não temo as suas palavras. Elas não me atingem.
Se você soubesse fazer, teria feito. Mas depende de alguém que faça isso pra você. E eu não
estou nada disposto a trabalhar para um racista.
Depois disso ele apareceu ainda mais ridículo. Cheio de palavras, me chamando de
amigo, forçando relações. Me oferecendo coisas. Andando ao meu lado enquanto terminava o
prometido. Ele elogiou o meu trabalho no portão. Fingindo contato, querendo apaziguar,
estabelecer uma trégua. Me firmei, recusava. Pedi distância para terminar. Já estava ridículo.
Ele veio lá de dentro. Altivo, com um pote de ovos de codorna nas mãos, me ofereceu com os
olhos de lado. Um deles no garfo. Pedindo clemência. Ali era a hora, a minha vez. Não pedi
licença, fui embora. Deixei tudo onde estava. Olhei para ele nos olhos. Firme. E percebi que
ele já não acompanhava o meu ritmo. O que dei foi a resposta, ao mesmo tempo que retirava
o chão dos seus pés. Saboreei sua queda, sem nenhuma pressa de vê-lo se esborrachar.
Dimas - Tudo muito fácil pra você. Suas palavras, suas posturas. Desde quando eu cheguei
tenho percebido. Não há respeito. Quer se sentir forte sobre os outros. E você espera que
aconteça comigo. Você quer me cobrar o silêncio. Abaixar minha cabeça. Curvar o meu
corpo. Ter minha força nas suas mãos, fazer dela o que quiser. Mas não me conhece. Não faz
ideia de quem eu sou. E do que me move. É contra isso que eu luto. Pessoas como você eu
vejo a fraqueza de longe. Há tempos. A mesma fraqueza de antes. Depende da cor para se
valer. Mas meus valores são outros. Meus ancestrais são minha força. E nela você não pode
tocar. Aqui você não me alcança. É pequeno. E o que diz é vazio como a sua alma.
Vou embora. Não quero o seu dinheiro. Racista!
Deixei o Tenente falando sozinho nos fundos da casa à venda. Saí pela porta da
frente. Cabeça levantada, olhos fixos no horizonte. Aos poucos recuperava alguns sentidos.
Percebi o som dos fones atingindo meu ouvido. Tocava Exu do Blues. Enquanto caminhava
pela rua, volta pra casa, a voz de fundo dizia:

“O que é ser um Bluesman?


É ser o inverso do que os outros pensam
É ser contra a corrente
Ser a própria força, a sua própria raiz
É saber que nunca fomos uma reprodução automática

12
Da imagem submissa que foi criada por eles
Foda-se a imagem que vocês criaram
Não sou legível, não sou entendível

Sou meu próprio Deus, meu próprio santo

Meu próprio poeta…

Se você não se enquadra ao que esperam

Você é um Bluesman”

Dimas

13
observatório
cotidiano
Observatório Cotidiano

Centro

Era de tarde, lá pelas dezesseis horas deu um quase final de fevereiro. Mormaço,
calor, segunda-feira. Estava para o centro da cidade assim como o centro da cidade estava
para mim. Um dia típico no Rio de Janeiro, que talvez somente os cariocas sabem o que é. Às
dezesseis horas é quase o término do expediente da grande parte dos trabalhadores. Iniciava-
se um burburinho de final de expediente, um aumento considerável do ruído citadino. O
centro do Rio é um lugar de ninguém e, parece-me, que ninguém é deste lugar, exceto os
“moradores de rua”. Pois é por conta de “um desses” que me coloco a escrever.

Após um dia de trabalho- aqui falo particularmente do meu próprio dia de trabalho-,
fui ao centro do Rio comprar alguns livros. Atravessava a famigerada “poça”, o ritual de
passagem de muitos trabalhadores e trabalhadoras que enfrentam o mais pesado e traiçoeiro
cotidiano violento e simbólico. “As barcas”, assim são popularmente conhecidas, estava
vazia; um contraponto de sentido, pois quem a toma como transporte no sentido oposto, a
essa hora, pega a “hora do rush”. Aquela hora em que os corpos incongruentemente se tocam,
os fluidos se afloram, as pessoas se entreolham com suas olheiras após um dia estafante de
trabalho, duro em sua acepção mais furtiva. Ao sair da plataforma, fui pego por um sol
penetrante, daqueles que sentimos cada raio em nossa pele; minhas pupilas, além de doerem,
dilataram-se. Comprimiram-se e refestelam-se. Pus logo meus óculos escuros.

O sol no final do verão parece tão mais quente quanto aquele do início de dezembro.
Sentia minha têmpora latejar. Atravessei a famosa e consagrada Praça XV e ao atravessá-la,
ou melhor, enquanto atravessava, observava uma deterioração natural, no entanto com sua
beleza comum para um centro de cidade. Pessoas aqui transitam num vai-e-vem frenético,
paralítico, inebriante. Parecia um mar onde os peixes conscientemente assumem um sentido
biológico em seus movimentos.

Apenas no meio da praça é que se percebia um sentido diferente na direção que se


tomava; alguns rapazes andavam em seus skates, pareciam que aquela prática tornava aquele
meandro ao mesmo tempo perigoso e jovem, dava uma tônica completamente fora do eixo
para aquele centro da cidade. Passava ao redor daquela redoma jovem e rebelde, ouvindo o
som metálico das rodas dos skates batendo e ralando no chão. Algumas vozes e expressões

14
cacofonias do próprio dialeto do skate davam aquela tônica própria daquele instante. Não
parei para observar a arte do surfe de concreto, mas percebi o quão desafiador aquilo
representava. Não somente um desafio para aquele meandro, e também não somente para a
física, mas para todas uma estética citadina; esta prática representava uma ruptura. Aquele
som dava a sinfônica do momento e lugar. Eu passava à direita da Praça XV, bem próximo ao
Paço Imperial e de um monumento histórico. Observava as coisas monumentais escritas nas
paredes sujas, nos canteiros de obra e nos homens de terno e percebia que tudo compunha-se
numa linguagem mais abrangente e somava-se ao sentido do som dos skates, da sujeira
proposital, da estética das paredes sujas: toda uma representação da sujeira que tinha um
significado seu.

Aquele centro particular dentro de outros centros, dentro de uma redoma ainda maior
que denominam como centro da cidade. Num relance, tomei consciência de que mesmo
aquela paisagem sendo familiar, pois não era a primeira vez que ali passava, meio que de
repente, tomei consciência de minha consciência. A frase é de um efeito confuso, pois esta
era a exata sensação de quem é tomado por sua própria consciência no meio de uma
metrópole no meio da hora do vai-e-vem. Esta é a exata sensação: uma confusão sonora, um
jazz ritmado e misterioso. Um lugar estranho que, aos poucos familiarizou-se em mim. Até
aquele instante, a cidade era apenas um lugar de trânsito, coisas, pessoas e coisas, pessoas-
coisa, um fervor perigos, mas lentamente o caos acostuma-se em nós

Depois de minha tomada de consciência, ou da consciência que me tomara, ainda


mais distante, do meu lado direito, avistei o Arco do Teles: sujo, perdido, invisível ao mais
atento olhar àquela hora de uma tarde de segunda-feira. Ando mais um pouco e uma genuína
cobra de metal passa diante de mim: silenciosa, preste a dar o bote. Paro diante de seu
movimento e por sua cor prateada e suas janelas, vejo o reflexo de um homem de trinta anos:
era eu naquele lugar. Foi um efêmero instante onde diante do caos citadino eu via
inteiramente minha imagem projetada. Via que o caos era a grande sinfonia do momento e do
lugar. Como mais uma de minhas tomadas de consciência, mais um pensamento se fez em
minha cabeça: “será que é assim o tempo todo, ou a cidade dorme?”. A gigantesca cobra
prateada passou e esvaziou em mim esses pensamentos. Segui meu destino.Dei alguns passos
e me vi novamente dentro de uma outra cidade, mas sabia que era a mesma- entre aspas.
Alguns passos e tudo mudou. A arquitetura era outra, as pessoas também pareciam ser outras,
vindas de outros lugares, mas nelas havia algo de comum.

15
Me desvinculei de meus pensamentos e tomei o rumo do meu pensamento original:
livraria, siga em frente. Ao atravessar a Rua 1º de Março, entrei na Rua do Ouvir, o centro da
cidade concentrado. Rua estreita, cheia de paralelepípedos e meio-fio, feitos sob medida para
os carros e as motos que ali circulam. Nesse meio tempo, o tempo passou e não percebi.
Andando em um rumo certo, no meio daquilo tudo, um homem grita. Agora ao descrever tal
cena, que não consigo descrevê-la de forma tão detalhada, pois tal acontecimento se deu em
minha dianteira, não consigo recordar aquilo que ali ouvi, mas foi um grito estrondoso. Todos
que ali estavam olharam para os quatro cantos que os rodeavam para saber de onde vinha
aquele grito. Eu mesmo fui um deles. Parei e comecei a olhar todos os possíveis lugares dos
quais o grito poderia vir. O tal homem invisível novamente gritou e cada vez que ele gritava
parecia ainda mais alto. Na medida que eu caminhava, aquele som me fazia perder o sentido
de andar. Eu andava e ouvia novamente aquele berro. Agora, relembrando, foram quatro ou
cinco berros bem altos, mas a exatidão dos fatos de nada vale aqui. O que vale nesta
descrição é o efeito que isso em mim causou. Aqueles berros me fizeram parar. Parar em um
lugar de fluxo intenso é como nadar contra a corrente.

Este ato repentino me fez enxergar a cidade que me rodeava, como um astrônomo
observa as galáxias e, ao observá-las, vê a si mesmo. Naquele instante eu me vi naquele
lugar, me vi transgressor, me vi humano, porque parei. Como num carro que anda, parece-me
que a gente só vê as coisas quando algo irrompe; enquanto aceleramos, vemos a passagem, os
borrões das coisas passando, vemos a estrada, mas não apreendemos nada. Naquele momento
percebi que a cidade possui um pulso próprio. Pude ver que ali pessoas são pessoas, que o
vendedor de cuscuz é uma pessoa, que o vendedor de balas é uma pessoa, que a moça
cansada na lanchonete é uma pessoa, que eu era uma pessoa ali. Percebi também que as
paredes de mármore dos prédios são tão bem limpas e lustrosas que conseguimos nos ver
nela. Desta vez me vi parado em um reflexo estático e percebi o quão contraditório era aquela
imagem no meio de uma cidade, onde todos são ninguéns e que as pessoas só se percebem
nos espelhos dos banheiros dos escritórios, juntamente quando elas param; mesmo que elas se
percebam diante dos reflexos do monitores, ainda assim não é uma percepção genuína.
Naquele momento, a coisa pelo qual me levou aquele lugar já havia se desvanecido. Minha
vontade era de ficar ali, parado naquela sociedade em miniatura, observando o ir e vir
daqueles personagens de um jogo mental criado por quem, ao mesmo tempo que observa,
alinha uma possibilidade ou outra para o fato que é ocular.

Roberto Brito

16
Você chegou ao seu destino (?)

O ponteiro da velocidade marcava 165 Km/h. O som não estava ligado. O dia era de
sol, não estava quente e nem frio, era apenas um claríssimo dia de sol. Dentro do carro só se
ouvia o barulho do motor. O destino era certo, apesar de a vontade não ser assim tão precisa.
O carro andava, mas, e se por um instante, só por um instante, ele desse um puxão para o lado
para ver o que poderia acontecer, afinal de contas, quem poderia se importar com isso? Ele
tinha família, pessoas próximas, mas quem sentiria isso mais que ele?
Assim, o carro seguia sua direção, implacável, ao mesmo tempo em que a incerteza
também o guiava. Talvez fosse assim a vida. Quem poderia se importar? Seria normal alguém
pensar coisas como aquelas? Talvez... Quem pode imaginar o que se passa na cabeça de
alguém. Não seria suicídio, apesar de ter uma enorme chance de as pessoas sofrerem, mas
quem poderia sofrer mais que ele?
O homem seguia, controlando e se sentindo controlado. Controlado pelo quê?
Controlando o quê? De nada adiantava pensar naquelas coisas aquela altura da vida. Mas,
com tudo aquilo, o que mais ele poderia querer? Tanta gente querendo tanta coisa, quem seria
ele para desejar algo? Qualquer coisa... O que poderia custar? Ao universo, ao presidente...
sei lá, a qualquer um que tivesse mais do que ele…
Uma curva, o que poderia acontecer se ele passasse reto? A curva passou. O carro
ainda está na pista, afinal de contas, talvez ele não fosse um piloto tão mau assim... quem
poderia saber? Só entrando na cabeça das pessoas para ter certeza, e isso, pelo menos algum
tempo atrás, era impossível, menos nos casos de cirurgia ou necrópsia, aí era diferente, mas
no resto... impossível! Hoje, as pessoas não podem ter tanta certeza, olhem os anúncios... Às
vezes só de falar já aparecem! Às vezes a gente só pensa... Será que apenas ele pensava? Não
dava para saber!
Pedágio... Alguém deve sofrer mais que ele! Trabalhando ali... Vai saber, mas deve sofrer no
final das contas, não pela vontade dele, mas pelo sofrimento mesmo! Pelo menos ele tinha
dinheiro pra pagar, ainda que sobrasse pouco depois, pelo menos a moça do guiche não
saberia, a menos que ela fosse bem sagaz ou uma cartomante... Mas, quem teria tempo para
jogar cartas aquela altura do campeonato? A vida, talvez...
Voltamos à estrada. Do zero. Recomeçar! Coitado do homem, o carro dele estragou,

17
não esse, mas aquele outro! Ele é qualquer um, não conhecemos, mas coitado, não é fácil
ficar com o carro estragado! E se o dele estragasse também? Deus o livre! Mas e se
acontecesse? Já pensou? Deus o livre! Coitado do homem! Ficar na mão nunca é fácil!
Talvez não precise do carro, vai saber... Mas à pé também é complicado! Os homens das
cavernas não precisavam de carros, nem sabiam o que era... Hoje o tempo é outro! Não
comemos carne crua também! Já inventaram o fogo! Graças aos homens das cavernas! Só
quem come carne crua hoje em dia é japonês e quem já tem farinha em casa. De resto? Mais
ninguém!
Estamos quase lá! Nenhum acidente. Ninguém vai chorar... Não hoje, algum dia!
Talvez... Tem gente que é forte e não chora. Tem gente que é forte e também chora. Não dá
para saber o que está na cabeça de ninguém. Só a internet lê pensamentos!
O destino está chegando, mas poderia ser mais longe! Que ideia tola, quem poderia querer ir
para mais longe com o ponto final tão perto? Quem pode imaginar o que cada um precisa...?
Vai saber…
Seu destino era o que era, e estava perto. Ele já conhecia, mas, vai que,
repentinamente, algo apareça e mude tudo? E se ele passasse direto? Já pensou nisso? O que
teria de absurdo nisso? Não dá pra saber, são apenas suposições! Tudo no mundo das ideias!
A vibração do volante, o barulho do motor, o clarão da paisagem, a imensidão da rodovia e
até os buracos da pista, aquilo era real! O resto? Talvez um novelo que se enrolasse mais e
mais, desordenadamente, à medida que a roda rodava. O carro tem marcha ré! Amanhã,
talvez, ele fosse de ônibus, ou à pé... Ou de bicicleta! Daqui a pouco ele morre mesmo…
Motor desligado, porta aberta, sorriso no rosto, ele chegará ao seu destino ou estava
apenas recalculando a rota? Vai saber...
Reginaldo Gonçalves.

você chegou ao seu destino?

18
nó em
pingo
d´água
Nó em pingo d`àgua

Agora é que são elas

Que a pandemia do novo Coronavírus afetou todos os habitantes do Planeta Terra é


inegável. Sentimos na pele, cada um de sua maneira, os efeitos causados pela necessidade de
distanciamento social; perda de entes ou amigos queridos; fechamento de empresas;
fechamento de fronteiras; paralisação de atividades que antes não conseguiríamos sequer
imaginar; falta de dinheiro; desemprego; desespero; fome... Os impactos sociais, econômicos,
políticos, culturais e psicológicos são inúmeros.

Se por um lado, podemos afirmar que os impactos da pandemia foram (e ainda são!)
sentidos por todos os quase 8 bilhões de pessoas do mundo, não temos como negar que esses
efeitos não são iguais para todos.

Somente a título de curiosidade, os bilionários ficaram 565 bilhões de dólares mais


ricos durante a pandemia, lucrando em média 42 bilhões de dólares por semana. (Dados da
Bussiness Insider, 2020).

Já quando analisamos outros números, também na casa dos bilhões - mas tristes
bilhões - é possível identificar que a atual crise sanitária interrompeu a educação de 1,5
bilhão de estudantes (crianças e adolescentes) em todo o mundo. (Unesco, 2020).

Poderíamos fazer um recorte das diversas desigualdades que foram ainda mais
acentuadas com a pandemia, mas brasileiras que somos, esse artigo, pensado e escrito por
duas mulheres, propõe, por isso mesmo, uma reflexão sobre o impacto da pandemia na vida
de mulheres. Mulheres empreendedoras, mulheres autônomas, mulheres donas de casa,
mulheres desempregadas, mulheres mães, mulheres trabalhadoras, mulheres do Brasil…

Ainda estamos aqui, em pleno ano de 2021, aprendendo a transformar as velhas em


novas formas do viver, como já dizia nosso querido Gil ao cantar a música “Tempo Rei”,
pedindo ao Tempo para ensinar aquilo que ainda não sabia.

E por falar em velhas formas do viver, é importante lembrar que as mulheres durante
muitos anos, décadas e séculos foram vistas como objeto, como um ser que nasceu somente
para servir e ficaram sob o domínio dos homens. Os espaços públicos relativos ao comércio,

19
às empresas, à política e às ciências foram dominados quase que exclusivamente por eles até
o século passado.
Foi uma luta árdua, com muitos empecilhos e revoluções para chegarmos até aqui.
Tivemos que lutar pelo trabalho; pela não exploração; por salário; por métodos
contraceptivos; pelo acesso à educação; pelo direito ao voto; por liberdades civis; contra a
violência. A nossa existência é uma história de lutas e reivindicações. As nossas vitórias,
“Maria Maria”, só vieram com muita força, raça e gana sempre. Já dizia Milton, “quem traz
na pele essa marca possui a estranha mania de ter fé na vida”.
No entanto, ainda temos um caminho tortuoso e muitíssimo longo para percorrer pela
frente até conseguirmos viver em um país onde a igualdade de gênero seja realidade. Há de se
admitir que as mulheres ainda precisam ocupar e desempenhar uma infinidade de papéis
sociais, sejam eles: dona de casa, mãe, filha, irmã, trabalhadora, autônoma, cuidadora...
Funções essas que se colocássemos na ponta do lápis, já deveria haver diploma, pós-
graduação e até aposentadoria antes dos 40 anos, por ter um plano de carreira tão
determinado desde quando chegamos ao mundo.
O trabalho não remunerado da mulher, principalmente o realizado no âmbito familiar,
não é contabilizado por nosso sistema estatístico e não possui valorização social. Mas
diferente do Brasil, a Argentina acaba de reconhecer o cuidado materno como trabalho, o que
garantirá a cerca de 155 mil mulheres, que precisaram sair do mercado de trabalho para se
dedicarem ao cuidado dos filhos, o direito à aposentadoria. Já aqui, o que acontece é uma
enorme dificuldade em separar a vida familiar da vida laboral ou vida pública da vida
privada, mesmo em se tratando da participação no mercado de trabalho.

Isso é tão sério que poucas mulheres sabem de fato que trabalham mais horas
semanais que os homens. Segundo dados de 2015 do PNAD analisados pela pesquisadora
Ana Luiza Neves de Holanda do IPEA, as mulheres dedicam mais de 18 horas por semana
nos afazeres domésticos. Ou seja, além do seu trabalho remunerado, a mulher ainda exerce
atividade não remunerada diariamente, pois a figura feminina ainda é muito associada às
tarefas domésticas.

Somado a isso, um estudo feito pelo IBGE, publicado em matéria da Agência Brasil,
mostra que as mulheres ganham menos do que os homens em quase todas as ocupações, ou
seja, em média, ganham 20,5% a menos que os homens no país. Essa desigualdade salarial
chega a ser ainda mais forte na Região Sudeste.

20
E nessa pandemia, como será que ficaram essas relações de horas trabalhadas e
afazeres domésticos? O trabalho e a renda são esferas críticas para examinar as disparidades
de gênero durante a pandemia. Setores altamente ocupados por mulheres foram os mais
afetados economicamente durante a pandemia, sendo elas a maioria entre os desempregados,
particularmente as mulheres negras (Rede de Pesquisa Solidária, 2020). Além disso, muitas
mulheres abriram mão de seu trabalho para cuidar dos filhos em casa devido ao fechamento
das escolas.
Uma pesquisa realizada pelo Núcleo Mulheres e Territórios do Laboratório
Arq.Futuro de Cidades do Insper sobre as consequências da Covid-19, na qual eu tive a
oportunidade de ser uma das entrevistadoras de mulheres na Maré, trouxe dados necessários
para entender o cenário da pandemia para as mulheres que residem em favelas. Segundo a
Revista Piauí que retratou alguns desses dados, ao olhar para o mercado de trabalho nos
últimos três anos, a participação das mulheres caiu de 53,3 % em 2019 para 45,8% de 2020.
De acordo com o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), ao olhar só para
os empregos formais, 81% das vagas foram excluídas de janeiro a setembro do ano passado e
a maioria ocupadas por pessoas do sexo feminino.
Trazemos esses dados para ilustrar o que estamos falando para ver se em números
conseguimos materializar o quanto precisamos lutar diariamente para equiparar esses papéis
sociais. E não para por aí, porque uma coisa que a gente vem aprendendo com esse vírus é
que o tempo é muito precioso e que precisamos valorizar cada segundo, inclusive, valorizar
cada pessoa e se possível dizer o quanto ela é importante na sua vida. Porque com tantas
mortes, dores, incertezas, estamos todos convencidos que nada é para sempre. E a única
condição para estarmos vivos é que vamos morrer. Por esse motivo, cada tempo que passa
conta e muito.
Nessa era tão digital, que até o dinheiro impresso já chegou ao ponto de ser raro de
ver, cada vez mais vemos nosso tempo se converter em números, em likes, em tempo de uso
nas redes sociais... Nunca tivemos tanta preocupação com o tempo ou ansiedade para vivê-lo
ao ponto de acelerar vídeos no Youtube e absorver o máximo de informação possível. Isso
tudo para dizer que é importante a valorização do tempo de qualquer ser humano, mas
principalmente das mulheres, que em sua infinita maioria, têm uma jornada dupla de trabalho.
E esse trabalho não remunerado das mulheres custa muito caro, pois além de não
serem reconhecidas e valorizadas como deveriam, com respeito, equidade de gênero e

21
equiparação salarial; nós vivemos no Brasil, um dos países que mais comete violência
doméstica no mundo.
No ano de 2020, auge da Pandemia, o feminicídio aumentou 22% e as chamadas ao
180 (Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência) aumentaram 27%. Os
registros de estupros e lesão corporal dolosa decorrente de violência doméstica caíram em
2020, o que não significa uma queda real destas ocorrências, mas uma maior dificuldade em
realizar denúncias durante a pandemia (Banco Mundial, 2020).
É sempre importante lembrar que ligar para o 180 pode salvar vidas, mas também é
importante lembrar que a violência não necessariamente começa na agressão física. Também
existe a violência psicológica, patrimonial, moral e sexual. Perceber e repreender essas
atitudes é dever e responsabilidade de todos! Então se você não se posiciona sobre machismo
na roda de amigos; se você já viu situações de violência e ficou quieto; se você protege o
amigo que tem inúmeros relatos de agressão na conta; se você questiona o comportamento da
vítima em casos de agressão; se você prefere ignorar o machismo estrutural porque está numa
posição extremamente confortável... Você também é conivente com os dados demonstrados
acima.
É claro que não podemos generalizar e sabemos que estamos rompendo com alguns
hábitos machistas que sobrecarregam as mulheres. Mas vocês, homens, precisam se envolver
nesse processo de mudança, pois não é uma responsabilidade só nossa sair desse lugar ou
simplesmente estranhar que a relação não está justa. Qualquer forma de desigualdade afeta a
sociedade. Desigualdades sociais, raciais e de gênero afetam profundamente as relações
sociais.
É preciso reconhecer o valor da mulher em nossa sociedade. Precisamos todos, sem
exceção, lutar por um país onde haja respeito e igualdade, onde os salários não sejam
diferentes em decorrência do gênero, onde as mulheres possam se sentir seguras ao andar nas
ruas e não tenham medo de serem violentadas, agredidas e mortas dentro de suas próprias
casas, e colocar um freio nessas relações abusivas e desproporcionais. Se cada homem se
colocar no papel de aliado da causa feminista, conseguiremos “transformar as velhas formas
de viver”, como Gil sugere conversando com o Tempo. Somente assim é possível ter-se uma
sociedade amplamente democrática.
Vivi Linhares & Luiza Siqueira

22
o negócio
é ser rural
O negócio é ser rural

A Resistente Rede de Pescadores Artesanais e Extrativistas Costeiros

Uma resistente rede de pescadores artesanais e outros extrativistas costeiros e


marinhos se articula de forma autônoma em 17 estados brasileiros desde 2007, visando
garantir seu modo de vida tradicional e ecologicamente equilibrado. O governo federal
lançou recentemente um programa denominado “Adote um Parque”, que traz muita
preocupação ao prever a privatização de unidades de conservação de uso coletivo.

O cenário era de tirar o fôlego. Uma praia deserta, um bucólico rancho de pesca
artesanal. Nele, os companheiros iam depositando as muitas tainhas recolhidas após o grande
cerco. Uma das mulheres se encarregava de preparar o almoço, após ter ajudado na puxada da
rede. E que almoço! Arroz, feijão, mandioca e peixe frito, comida mais que acolhedora feita
num trepidante fogão a lenha. Um dia de alegria e celebração pela fartura do tradicional e
centenário cerco à tainha, numa praia ao sul de Santa Catarina, em maio de 2019.

Elemento da cultura tradicional em Santa Catarina, o cerco à tainha o ocorre nos


meses de maio a julho, quando são impostas restrições às atividades no mar que possam
perturbar a aproximação dos cardumes. A pesca artesanal da tainha é protegida como
patrimônio cultural, histórico e artístico do estado.

O isolamento do pequeno rancho de pesca é apenas aparente, A comunidade da


pequena Ibiraquera no município de Imbituba (SC) se articula a uma vasta rede nacional de
pescadores artesanais e outros extrativistas costeiros e marinhos, a Comissão Nacional de
Fortalecimento das Reservas Extrativistas, Povos e Comunidades Tradicionais Extrativistas
Costeiros e Marinhos – a Confrem Brasil.

O sonho de Chico Mendes é o território protegido para a comunidade que dele


sobrevive, a Reserva Extrativista (Resex). Este sonho começou na floresta amazônica e
alcançou o extrativismo costeiro e marinho. Em 1985, no I Encontro Nacional dos
Seringueiros, surge a primeira ideia de se criar uma Resex, pois o desmatamento, as grandes
pastagens e a especulação imobiliária na Amazônia ameaçavam o modo de vida tradicional
destes extrativistas.

23
Prevista em lei federal, a Resex é uma unidade de conservação que visa proteger ao
mesmo tempo os territórios e os povos tradicionais que deles sobrevivem a partir dos seus
recursos naturais.

O notável geógrafo Carlos Walter Porto Gonçalves muito bem expressou: a riqueza
dos povos tradicionais é ao mesmo tempo sua própria tragédia. Povos do mar vivem em
lugares belíssimos no litoral brasileiro, enfrentando a cobiça imobiliária, a gentrificação, a
pesca industrial predatória, a extração de petróleo e gás, a carcinocultura de grande escala,
grandes portos e outros empreendimentos de forte impacto socioambiental.

Porém, a comunidade científica global já os reconheceu como os grandes


responsáveis pela conservação da biodiversidade do planeta, sendo o seu conhecimento sobre
o manejo dos recursos naturais considerado hoje como uma superciência. Além do mais, são
produtores de alimentos, garantindo a sua própria segurança alimentar e a da sociedade.

Este superconhecimento dos povos tradicionais é estratégico para a humanidade, pois


permitiu a sobrevivência destas comunidades por séculos, construída numa base altamente
inteligente, sutil e não predatória, que precisa ser resgatada, estudada e preservada.

Durante a Rio 92 (II Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e
Desenvolvimento), as nações unidas reconheceram a importância dos povos tradicionais na
preservação da biodiversidade global e determinou a sua proteção através da Convenção da
Diversidade Biológica. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
também já havia elencado os direitos dos povos originários em 1989, entre os quais estão o
direito de controle do território, acesso ao recurso tradicional e direito de determinar o uso, a
proteção e a compensação para suas tradições e conhecimento.

A Constituição Federal e o Decreto Federal 6.040/07, que define a política nacional


de povos tradicionais, bem como as leis estaduais e municipais, constituem a malha jurídica
atual de proteção, que deve seguir sendo aperfeiçoada, estando na pauta uma proposta de lei
federal garantindo a permanência das comunidades nos territórios tradicionalmente ocupados
por elas.

De acordo com a coordenação nacional da Confrem Brasil, “as comunidades


pesqueiras e extrativistas costeiros e marinhos estão localizadas em 17 estados do litoral
brasileiro, e prestam relevantes serviços ecossistêmicos e de segurança alimentar à sociedade,
representando um modo de vida histórico, com seus laços de pertencimento socioambientais e

24
dinâmicas culturais que transformaram espaços aquáticos e terrestres em seus maretórios. E
são destes maretórios que surge a Confrem, criada em 2007.

Esta rede de grande amplitude territorial, autônoma e emancipada “visou desenvolver


estratégias coletivas buscando o fortalecimento e reconhecimento destas comunidades e
assim melhor lutar para garantir seus meios de vida e produção sustentável, uma vez que são
também destes maretórios que surgem constantes conflitos e ameaças aos direitos dos
pescadores, aliado ao desmonte da gestão ambiental e a pressão de políticas para
recategorização de unidades de conservação para destinar essas áreas para grandes
empreendimentos”.

A rede atua “tendo como base estas organizações locais, que levam suas pautas aos
debates nacionais, apoiando e capacitando-as para intervenção nas políticas sociais e luta pela
sustentabilidade e visibilidade, destacando suas formas de vida e relação com o uso
sustentável dos recursos”.

São 72 organizações de base, num total de 32 Reservas Extrativistas, sendo que 28


são no nível federal, 01 no nível estadual e 03 no nível municipal, 04 em Áreas de Proteção
Ambiental (APAs) e 06 em outros maretórios.

Além de sua atuação na base, a Confrem Brasil está articulada a outros movimentos,
como o Movimento das Catadoras de Mangaba do Estado de Sergipe, a Coordenação
Nacional das Comunidades Tradicionais Caiçaras, Rede de Mulheres das Comunidades
Pesqueiras do Sul da Bahia, Rede de Mulheres dos Manguezais Amazônicos (Maranhão,
Piauí, Pará e Amapá), Rede de Mulheres da APA Costa dos Corais, Rede de Mulheres da
Resex do Delta do Parnaíba e Articulações de Jovens Protagonistas da Pesca Artesanal. Além
de uma coordenação nacional e estaduais, a Confrem Brasil atua em secretarias temáticas
(Mulheres, Juventude, Direitos Humanos, Cultura, Produção e Meio Ambiente,
Monitoramento, Formação e Capacitação) e assessorias.

Os representantes locais participam dos conselhos gestores das APAs e Resexs, além
de desenvolverem projetos com a academia, Organizações Não Governamentais e Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Entretanto, são muitas as
dificuldades para manter viva uma rede de tal dimensão e importância para os maretórios.

A rede é também uma das coordenadoras do “Grupo Observatório dos Impactos do


Coronavírus nas Comunidades Pesqueiras”, em articulação com o Movimento de Pescadores

25
e Pescadoras Artesanais do Brasil (MPP), Articulação Nacional das Pescadoras (ANP),
Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) e Coordenação Nacional das Comunidades
Tradicionais Caiçaras. Desde março de 2020, a iniciativa envolve pescadores e pescadoras
artesanais, profissionais da área da saúde, pesquisadores e ativistas de quase todas as regiões
do Brasil, para monitoramento do avanço da pandemia da Covid-19 nas comunidades.

O lançamento do polêmico programa do governo federal “Adote um Parque” (Decreto


Federal 10.623 de 23 de fevereiro de 2021) é também uma outra grande preocupação. Sem
realizar consulta prévia, livre e informada conforme dispõe a Convenção 169 da OIT do qual
o Brasil é signatário, e sem observar o que está disposto na Lei do Sistema Nacional das
Unidades de Conservação – SNUC e no Decreto Federal 6040/07, o programa viola direitos
das populações tradicionais residentes em seus territórios e maretórios.

Segundo o decreto, o Estado permite a iniciativa privada a “adoção” dos territórios


das comunidades tradicionais sem qualquer consulta a estas e sem a sua participação. Em
março de 2021 a lista de unidades de conservação a serem incluídas na primeira etapa do
programa foi publicada através da Portaria n° 73 do Ministério do Meio Ambiente - MMA.

Na prática o que está ocorrendo é a “privatização” de territórios de uso coletivo,


abrindo uma perigosa brecha para apropriação indevida pelos “adotantes”, uma vez que as
limitações ao uso poderão ser frágeis.

A entidade se posiciona: “é o estado brasileiro através do MMA, repassando a


iniciativa privada a adoção dos nossos territórios, sem nenhuma participação nossa. É
nosso lugar de vida, nossa casa, lugar de produção, de reprodução cultural, social e
religiosa, onde somos os principais responsáveis pela conservação e uso sustentável dos
recursos naturais”.

A fala de uma representante comunitária do Pará resume tudo: “a sociedade precisa


entender que o nosso tempo é diferente, o nosso tempo é o tempo maré”, destacando a
natureza diferenciada e invisível destas culturas centenárias, protagonistas da formação do
povo brasileiro, protetoras da biodiversidade e que precisam com urgência ser protegidas.

Eliana Leite

26
bora
apre(e)nder?
Bora apre(e)nder?

Convergências Tecnodiversas: do desvelamento para a transformação


cosmopolítica

Dentro do contexto da Educação, da Ciência e Tecnologia e da produção de Discurso,


percebemos a prevalência, nestas áreas, de uma teleologia predominantemente monotécnica.
Este desencanto chegou em um bom momento. Estávamos iludidos frente aos encantos
tecnológicos que emergiram na pandemia de COVID-19, sobretudo aqueles relacionados às
"novas" metodologias ativas de ensino nas escolas.
No entanto, após a leitura de alguns teóricos contemporâneos, como Bruno Latour,
Yuk Hui, Grégoire Chamayou, por exemplo, aterramos e nos situamos dentro de um
complexo espaço sociotécnico e político modulado por disposições tecnopolíticas
organizadas pelo algoritmo. Tal percepção dentro desta Matrix ubíqua, naquilo que Merleau
Ponty desenvolve, chegamos à fenomenologia da percepção do contexto híbrido da realidade
atual.
Sabemos que ainda é pouco, pois, em devida analogia, nossa consciência é de um
“recém-nascido” que abriu os olhos para tentar entender o que se passa no limiar de um
complexo imunológico que nos dava segurança em troca de controle de nossas vidas. Sim,
percebemos que as tecnologias, pautadas na monotecnicidade atual, nos desabrigam e nos
desafiam. Estes dois últimos conceitos são aqueles que Heidegger demonstrava que a técnica
moderna já desenvolvia: o controle das energias naturais na objetificação do mundo e
consequentemente o desenvolvimento de uma teleologia utilitarista de maximização dos
recursos para um fim calculado. Dizendo no zeitgeist atual, estamos dentro de esteiras digitais
sendo alimentados por dados que desprendem nossa atenção em troca de envio de energias
(nossos dados pessoais, nossos olhares, nossa atenção) para retroalimentar este Leviatã
multifacetado que podemos chamar de complexos industriais-digitais de entreterimento e
informação ruidosa presente sobretudo redes sociais.
O pano de fundo destas matrizes controladoras, da constituição algorítmica de si, é
aquilo que Byung-chul Han, Grégoire Chamayou, Vladimir Safatle, Christian Dunker, dentre
outros, vão desvelar (aletheia) sobre o neoliberalismo. Mais que um sistema econômico, o
neoliberalismo pode ser considerado um sistema de ontologias marcadas pelo
desenvolvimento individual como fonte primeira e última de energia que alimenta as
engrenagens do mercado, da cultura, da intersubjetividade, e, em última instância, da nossa

27
própria existência. Ao invés de energia direta, a produção de dados passa pela autoprodução
de identidades imagéticas que dão o tom da vida e, como Guy Debord já nos alertava há mais
de cinquenta anos, são os compostos relacionais de nossa vida.
A espetacularização do mundo passa pela espetacularização de si. Os ritos cotidianos
se tornaram fonte de produção de imagens que vão desencadear uma rede de trocas mútuas de
informações, desdobrando-se em uma rede de produção infinitesimal de imagens
compartilhadas sobre nós mesmos, criando novas esferas de discurso e de políticas de
identificações, constituindo seleções e gostos que, sob a lógica do algoritmo, criam as rédeas
e os cabrestos da condução da humanidade na tecnosfera. Dito de outra forma, a aparência de
liberdade nos enclausura cada vez mais nos próprios dados em que autoproduzimos ao
falarmos de si constantemente. Nesta teia narcisista, criamos nossas gaiolas de ouro virtual,
ou melhor dizendo, nossas bolhas imunológicas de gostos, estéticas, preferências que, ao
invés de ampliarmos nossos horizontes, nos coloca cada vez mais em cavernas platônicas
muito bem organizadas.
Como falamos anteriormente, apenas abrimos os olhos. As teias que amarram e sugam
nossa energia vital, nossa pulsão criativa, nossa poiesis, ainda estão em nós. Estamos
tentando tirar fio a fio, mas sabemos de nossos limites enquanto seres situados neste contexto.
A arte, a educação, a vida ainda nos está presa dentro destes fios. Mas já perguntamos entre
nós, como sair? Como superar este complexo sociotécnico algorítmico? Ainda estamos com
respostas evasivas, talvez ainda bem ingênuas e superficiais. Mas já percebemos que é
necessária uma nova postura, um engajamento heurístico, abertura e construção de fissuras e
de disrupções tecnodiversas nas nossas atuais áreas de interesse. Por isso a ideia de escrever
tais proposições nesta forma de manifesto ensaístico. Ou de um ensaio manifestado.
Brincadeiras à parte, o debate tridimensional é apenas um primeiro passo de
organização de nossas reflexões. Não estamos sozinhos, mas dentro desta rede inicial,
precisamos nos conectar com nossos convergentes a fim de fortalecer a divergência frente ao
aceleracionismo e do sincronismo monotécnico, monocultural, monopolítico e
monoexistencial que a tecnologia contemporânea, no contexto neoliberal de uma
pseudoliberdade pautada na vigilância ascendente de Si, dente ao Outro, ao Diferente, nos
impõem de forma cada vez mais sedutora.
A incorporação da própria crítica passa por isso. O desenvolvimento das Teorias
Críticas nos mostra que conseguimos chegar a um nível de desvelamento bastante complexo.
Chegamos aos meandros da mente, da existência humana, do discurso, demonstrando
diversos e complexos mecanismos de constituição e de dominação das nossas

28
(inter)subjetividades. Isso também, de modo infeliz, se tornou um dado de aprimoramento do
próprio controle do corpo e da mente humana.
Diversas técnicas outrora criticadas e desveladas, na teleologia iluminista, se tornaram
bens, valores aplicáveis e replicáveis para a consolidação e para o refino da própria
dominação do ser humano. Para o Iluminismo, cujo universalismo é voluntarista, portanto
irrealizável, contraditoriamente irrealizável em uma perspectiva universal. Daí sua dimensão
contraditória: ser universal a partir do individual ou do voluntarismo individual. Muitas
críticas decoloniais mostram a face deste ser humano universal. Tal ser humano tem gênero -
masculino; tem classe social - burguesa; tem cor, raça, etnia - branco caucasiano; e tem
sexualidade - heteronormativo. O ponto de vista universal parte deste condicionamento
político-ontológico. Nós, seres periféricos dentro da divisão ontológica mundial, ou nos
adaptamos àquilo que nos é dito como incontível - como a corredeira de um rio, ou
tentaremos criar alternativas locais e diversificadas de existência, de conhecimento e de
saberes.
Tomando as epistemes dominantes, como subvertê-las? Mais que isso, como
construir, dentro das tecnologias, cosmovisões? Não tem como negar a técnica ocidental
hegemônica. Ela veio para ficar. Política e economicamente, ela está mais forte do que nunca.
As maiores empresas mundiais estão todas dentro do contexto monotecnológico. As disputas
políticas atuais são políticas de tecnologia. Mas, ainda temos a coletividade, a inventividade,
a diversidade e a apropriação crítica como “despertar”.
Não gostamos muito da palavra despertar pois ainda nos remete ao contexto
Iluminista e etnocêntrico de estarmos valorativamente acima e superior aos demais. Nem
queremos tal pretensão. Mas como pensadores do discurso, sabemos que a percepção nos
remete à reflexividade muito importante dentro do atual contexto. Parar para pensar num
mundo cada vez mais submerso em informações hiperproduzidas é um desafio cada vez mais
importante. E pensar sobre onde estamos e para onde vamos, no fluxo informacional das
redes digitais, já vale muito o esforço.
Dito isso, pensamos que, ao desenvolver uma percepção e uma reflexão (re)situada,
podemos criar uma práxis transformadora e disruptiva, trabalhando elementos do
desvelamento (a desconstrução e o desabrigar ainda é importante para o próprio aterramento
latouriano) com práticas e ações que podem criar as fissuras e desconstruções deste castelo
monotemático. A poiesis, ou seja, a arte de fazer de forma reflexiva e crítica, se pôr no lugar
ao invés da mera reprodução, é um caminho a ser percorrido. Precisamos pavimentar esses

29
caminhos. Hermes e Exus nos guiarão nesta cosmotécnica, baseando-nos na diversidade
ontológica, imagética e analítica de nós mesmos.
Dentro das esferas de interesse de discussão, como bem dizia o velho Paulo Freire,
ainda é fundamental o desenvolvimento aprofundado das competências técnicas e
disciplinares para a própria transformação enquanto ser-formador. Vamos, portanto, em
busca de destrinchar práxis (Marx e sua rede sociotécnica estavam corretos em sua
proposição de análise do contexto concreto para o desenvolvimento de uma teoria pautada na
ação e uma ação pautada na reflexão teórica) disruptivas e tecnodiversas. Como fazer? Ah,
isto saberemos no percurso, na ação-reflexão. Mas é a partir desta perspectiva que agora
pautamos o nosso engajamento daqui em diante.
Coletivo Terral

As “fake news" e seus riscos ao sistema democrático

A ciência, a informação e a tecnologia favoreceram a comunicação virtual, ofertando


instantaneidade e proximidade entre os interlocutores. A flexibilidade e a acessibilidade
corroboram com o acesso à informação e seu compartilhamento. Todavia, tal cenário, cuja
permissão para realização de compartilhamentos em massa, por meio de uma rede de
usuários, é contexto ideal para assassinar uma reputação, cometer crimes contra a honra,
causar dano ao patrimônio material do indivíduo, ser causador de homicídios, ou mesmo
moldar a opinião pública a favor de um grupo, e colocar em risco o sistema democrático.
Através das mentiras e inverdades, a democracia está ameaçada e suas instituições de
defesa são amiúde descredibilizadas por Fake News. Mentir acerca de um adversário político
em um processo eleitoral é atentar contra a democracia. Ora, o voto do eleitor é fruto das suas
opiniões e convicções construídas com a soma das informações que obteve. Se estas são
falsas e tiveram o objetivo de ludibriar, a participação política, o processo eleitoral, e, por
fim, a democracia estão em perigo.
Ora, se o objetivo é entender o fenômeno da disseminação de inverdades como sendo
o passo inicial para a resolução do próprio problema descrito, exige-se, pois, uma
metodologia que conduza a pesquisa de maneira exploratória. Assim, adiante será realizada a
conceituação do fenômeno, como também a delimitação dos fatores que levam a ocorrer.
Uma notícia falsa, geralmente, não é uma sequência de informações que resta
clarividente sua falsidade, pelo contrário: muitas das informações contidas em uma Fake

30
News são verdadeiras; a questão é que se misturam fatos e mentiras, com o nítido objetivo de
persuadir o leitor. A cibersociedade cria redes nos processos de comunicação que comportam
muitos usuários. Se um desses internautas receber uma informação inverídica e não conferir
sua veracidade (ou inveracidade) antes de compartilhar com seus contatos, há a possibilidade
de desencadear uma sequência elevada de compartilhamentos, cujas consequências serão
desinformação e reações populares, por vezes, perigosas.
Para elucidar o supracitado, traz-se à tona a notícia da BBC (British Broadcasting
Corporation) 14 de novembro de 2018, quando notícias falsas acarretaram atos de violência
contra um tio e seu sobrinho, em uma cidade mexicana. A narrativa noticiada pelo site em
voga é de que as vítimas foram linchadas e queimados por um grupo enfurecido. O
sentimento de ódio por parte da multidão deu-se pela disseminação de mentiras no
WhatsApp. Adentraram à delegacia onde ambos estavam, e cometeram os crimes. O grupo de
criminosos acreditou que as vítimas fossem “sequestradores de crianças” e “criminosos
envolvidos com tráfico de órgãos”, consoante a matéria; porém, estavam ali no
estabelecimento prisional por ato antijurídico distinto (violação do sossego público).
Ninguém verificou as informações antes de ir às vias de fato.
De mais a mais, Democracia e Fake News definitivamente não andam juntas, pois as
notícias falsas colocam em xeque o sistema democrático. É essencial pontuar que o novo
cenário do mundo globalizado e as possibilidades de aproximação das relações, de modo
instantâneo, é primordial para a divulgação de notícias. Todavia, nem todas são verdadeiras.
Nesse aspecto, ao passo que a razão é substituída por sentimentos extremos e, por
vezes irracionais, como o ódio, a verdade vai sendo substituída por mentiras.
Ao passo que alguns políticos e partidos, cuja responsabilidade de salvaguardar a
democracia lhes competem de modo concorrente, utilizam-se das informações deturpadas
para conquistarem seus objetivos - inclusive proferem inverdades, confundem os cidadãos e
incitam o ódio contra determinados grupos opositores. A construção de inimigos públicos
auxilia na construção da desinformação, na consequente polarização, e no crescimento
político dos que fazem parte da dualidade polarizada, configurando, pois, como
maniqueísmo. Assim, a manipulação das massas é viabilizada.
É sabido que a democracia, através de seus processos democráticos – vide o processo
eleitoral – sofre com a fragilização do descrédito e com a descrença da opinião pública, em
virtude da disseminação de Fake News.
Observa-se que a divisão da sociedade pelo maniqueísmo gera a conjuntura ideal para
a disseminação de notícias falsas, contra os inimigos públicos. Ademais, há uma crise de

31
legitimidade em diversos sistemas políticos, assim como no Brasil; isso faz com o que surjam
políticos antissistema, e, sabidamente com o decorrer da história, esses políticos representam
risco à democracia. Tais políticos se denominam “salvadores da pátria”, e, para fixar essa
ideia e as ideias acessórias, utilizam-se de Fake News, às quais colocam em xeque o sistema
democrático.
Nesse raciocínio, traz-se a notícia de que o Presidente da República Federativa do
Brasil, Jair Bolsonaro, disse que o Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro
Barroso, era “idiota”, e aponta que nas eleições anteriores houve fraudes. O presidente não
apresentou provas do que diz, e, dissemina esta (des)informação, visando manipular a opinião
pública. A motivação para isso fica clara, já que ele tem interesse no voto auditável. Além
disso, ameaçou as eleições de 2022 quando afirmou que talvez não fossem ocorrer, e, a todo
custo, desacredita o sistema eleitoral. De mais a mais, intensifica estas informações
inverídicas que tiram o crédito e o prestígio das instituições, objetivando, pois, retaliar as
pesquisas que apontam sua atual impopularidade.
Outro exemplo notório é o caso atual das urnas eletrônicas que, em uma live, o atual
signatário da Presidência da República apresentou alguns “indícios” de que a urna possa ser
violada e fraudada, utilizando alguns “especialistas” para demonstrar, em vídeo, possível
“fraudabildade”.
A questão é: E se o eleitorado construir sua opinião baseado em uma inverdade, a
democracia está em risco? À égide da obra “Como as democracias morrem”, sim. Steven
Levitsky e Daniel Ziblatt citam as crises políticas de legitimidade e representatividade e o
advento da falsa solução propagada pelos “outsiders” (os quais convencem o povo), aqueles
que são considerados antissistema.
Nesse sentido, a aliança de determinado grupo com os “outsiders”,
supervenientemente, tornar-se-á uma aliança fatídica. Para elucidar tal pensamento, Levitsky
e Ziblatt apresentam os exemplos de Mussolini, Hitler, Chávez e Fujimori, dentre outros.
Estes chegaram ao poder convencendo os políticos – estabelecidos – como “aliados úteis”, e
o povo como a “salvação”, e, quando lá estavam, o tomaram para si.
No Brasil, em 2018, ocorreram as eleições, e estas ficaram marcadas pelas Fake
News. Os políticos corroboram para uma polarização maniqueísta – “nós contra eles”; através
da análise da conjuntura desenhada, os eleitores – indivíduos que respondem a estímulos –
irão escolher um dos polos antagônicos, a partir da sua opinião. Indubitavelmente, os
elementos citados separadamente são tóxicos. Juntos, a toxicidade se potencializa e prejudica
as relações e fragilizam as instituições.

32
Nesse contexto, não há debate – este é substituído pelas campanhas de ódios,
violência e assassinato de reputação, e algumas das armas principais são as notícias falsas. É
inegável que isso é prejudicial à democracia.
O ato de disseminar Fake News jamais terá embasamento constitucional; em outra
perspectiva, é imperioso afirmar que a liberdade de expressão não é direito absoluto; em
última análise, o direito a expressar-se não permite que cause dano ou seja ato ilícito. Logo,
deve-se estar a favor do pleito acerca da liberdade de expressão – uma das bases da
democracia – entretanto, é mister afirmar que o combate às Fake News não é o mesmo que
cercear a liberdade de expressão. A jurisprudência pátria tem firmado o entendimento de que
o direito constitucional à liberdade de expressão é incompatível com a disseminação de
notícias falsas.
Em outro viés, por serem informações inverídicas e, muitas vezes, terem o objetivo de
moldar a opinião pública para favorecer determinado grupo, ou mesmo de cometer crime
contra à honra, ou causar dano ao patrimônio moral do indivíduo, as notícias falsas são um
risco à democracia. Um dos seus maiores perigos é nas eleições, cujas mentiras para
favorecimento de alguns grupos políticos são tamanhas, e, isso põe em xeque o sistema
democrático.
A cada dia percebemos o crescimento do ciberespaço e a participação maior dos
indivíduos, sobretudo jovens, de forma coletiva, experienciando outras formas de
comunicação com suporte da internet e aparelhos tecnológicos. Assim, se abrem novos
espaços de comunicação com potenciais positivos nas várias dimensões da sociedade
(econômica, política, social, cultural, artística, etc.).
A sociedade técnica e informacional nos possibilita edificar uma engenharia dos laços
sociais, conforme proposta por Pierre Levy, e explorar as riquezas humanas por meio das
informações e ideias, uma vez que os indivíduos carregam sua bagagem pessoal para a
internet, tornando o aprendizado cooperativo e colaborativo.
Esse intercâmbio de conhecimento e compartilhamento de conteúdos “verdadeiros”,
contribui para sairmos das fortes relações de poder que conduzem à dominação, exploração,
opressão, que é um campo fértil para as fake news. Somos tributários da ideia de que quanto
maior o progresso das formas de comunicação, igualmente será o da democracia, permitindo
o combate às notícias falsas, ao autoritarismo e aos “regimes ditatoriais” muito presentes nas
atuais democracias mundiais
Pedro Safo Rodrigues da Silva

33
Podcasts como instrumento educacional no contexto pandêmico

Ao iniciar o ano de 2020, fui contratado para atuar como docente da escola
universitária Geraldo Reis, colégio de aplicação da Universidade Federal Fluminense (UFF),
como professor substituto para ministrar a disciplina de História. Fui surpreendido, assim
como todos, pela chegada da pandemia ao país e a decretação do estado de emergência. Essa
experiência de escola “normal” durou apenas 31 dias, o resto foi distopia, desorientação e
incerteza, até que... Novo normal.

No momento em que o Brasil começava a registrar os primeiros casos de Covid-19 e


a presença física na escola era não somente evitada, mas desaconselhável. Desta forma, foi
necessário organizar as atividades regulares da escola por meio de plataformas digitais no
formato de ensino remoto emergencial (ERE).

Passado o susto inicial e a desorientação que a pandemia havia causado em todas as


pessoas, provocando as primeiras mortes e desarticulando a economia, começamos como
comunidade escolar a nos organizar para pensar o que fazer - se é que aquele era o momento
de se fazer algo ou se fundamental não era esperar - e como o fazer. É preciso lembrar que,
primeiramente, em diversas redes de ensino nos mais variados estados, ainda reinava a
confusão, e mesmo os que começavam a se organizar para viabilizar algum tipo de retomada,
as condições materiais das unidades e redes (recursos) era precária face ao tamanho do
desafio. Posteriormente, cabe lembrar a primazia da direção da unidade ao ser propositiva
quanto à retomada das atividades e fomentar as discussões acerca das ações a serem
empreendidas e, principalmente, no colegiado, instância decisória máxima da unidade.

Uma das maiores preocupações, entre tantas, era a efetivação da inclusão dos
estudantes que são público alvo da educação especial. As ações pedagógicas na educação
presencial e regular de crianças neurotípicas por vezes já esbarram em obstáculos diversos,
quanto mais a desses estudantes por suas características e que necessitam de atendimento
especializado. Logo, todas as limitações do dia a dia foram amplificadas pelo distanciamento
forçado causado pelo estado de emergência decretado em função da pandemia. Ainda nos
primeiros instantes de recepção na unidade, fui informado que estaria em uma das turmas do
Ensino Fundamental 1 (F1) com um estudante, que daqui em diante chamarei de “B”, com
deficiência visual total, associada e em decorrência de seu quadro de síndrome de Dandy
Walker, ou seja, uma má formação de estruturas cerebrais que tornou a instrução do estudante
um desafio, porque já tendo nascido com a síndrome, possui déficit cognitivo, que lhe

34
dificulta o raciocínio e a memória, e limitações motoras, que lhe dificultam a escrita e a
mobilidade. E por outro lado, porque, ao ser submetido a um procedimento cirúrgico a fim de
sanar acúmulo de líquido intracraniano - que é uma característica deste quadro -, como
consequência do procedimento acometeu-lhe a perda gradativa de sua visão. Ou seja, para
além das dificuldades já postas à educação do pequeno, sua cegueira na segunda infância,
associada a todos os outros aspectos, tornou sua instrução na língua braille quase impossível.

Os desafios fazem parte da função docente e, apesar de tantas dificuldades, o


estudante não sofreu nenhum dano aos seus canais auditivos e portanto, sua capacidade
auditiva estava mantida. Estavam abertos os canais - desculpem o trocadilho - para viabilizar,
dentro de todos os limites já expostos, sua educação. Agora era o caso de saber como. Por
sorte, ao decidirmos (todo corpo docente) em consenso, ainda que não unânime, pelo retorno
das atividades de maneira remota, foi decidido também retomarmos as atividades de pesquisa
e extensão que são desenvolvidas na unidade, como os projetos de monitoria e pesquisa
júnior (PIBIC Jr.), com a cessão de bolsas aos estudantes envolvidos. Vimos aí uma
oportunidade de produzir material para utilização na educação deste sujeito, constituir uma
“audioteca” com acervo mínimo para atender este objetivo, envolver os estudantes com a
educação inclusiva e, por fim, tornar a inclusão uma prática efetiva da comunidade escolar, e
não apenas um atributo da direção imposto por força de lei.

O formato escolhido para desenvolvimento dos materiais tanto para o estudante, assim
como para os seus colegas que com ele viessem com ele interagir, foi o podcast.

Tal ferramenta se trata de uma mídia sonora, disponibilizada em formato digital que
se assemelha ao mesmo tempo às músicas digitais presentes nos programas tocadores de
celulares, nos tocadores dedicados de PCs e aos programas de rádio. Podemos tratar sobre
assuntos variados como clima, cultura, culinária, esportes e até música. No entanto, o podcast
se diferencia do rádio, digital ou não, pela sua assincronia, ou seja, não está sendo
apresentado no momento em que o ouvinte o acessa via plataformas. Podem ser
interrompidas e retomadas sua execução a qualquer momento e, em diversos casos, podem
ser baixados e armazenados pelos usuários.

Para tal empreitada, duas colegas, Gisele dos Santos Miranda, Thayane Azevedo
Pereira e eu nos articulamos e compusemos uma proposta de pesquisa, submetendo-a ao setor
de pesquisa da referida unidade, sendo aprovada com a concessão de quatro bolsas. Contudo,
nenhum de nós tinha larga experiência com essas mídias e apenas eu havia tido breves

35
experiências com áudio, por ter integrado uma banda de igreja e uma única produção de
conteúdo similar ao podcast produzido para uma disciplina de Divulgação Científica da
faculdade de História. Foi nesta oportunidade que comecei a editar áudio com software open
source (programas de código aberto) Audacity.

Ainda era pouco, e por isso fomos investigar como se faz podcasts. E depois, como
profissionais da educação, refletimos como eles se inserem no meio pedagógico.
Primeiramente, pensando esta estratégia com objetivo primeiro a viabilidade de seu emprego
junto ao nosso estudante alvo, consultamos um “manual” para produção e distribuição destas
mídias. Este material estava sendo distribuído gratuitamente em redes sociais, bastando para
tanto cadastrar um endereço de e-mail válido.

Ao pesquisarmos o assunto na internet, encontramos um relato de experiência em uma


escola em Manaus. Foi uma grata surpresa, pois estavam ali expostos técnicas e espaços que
teríamos disponível para o uso, se o contexto da pandemia não atrapalhasse mais. De toda
forma, o trabalho acima ainda trazia mais uma contribuição que era a referência a outro texto
sobre produção de podcasts à distância, uma das primeiras no Brasil. Porquanto, estávamos
munidos de certo material teórico/prático que ajudariam a nortear o trabalho. Era hora de
fazer podcasts. Nascia assim o projeto Luz dos Olhos. Começamos, após a aprovação do
projeto, lançando o edital, aplicando um questionário on-line e por fim realizando entrevistas
individualizadas também de maneira remota e síncrona, foi por meio dessas três etapas
inscrição, formulário digital e entrevista, que selecionamos os quatro estudantes que
obtiveram a maior média de notas. A proposta do projeto era de constituir uma verdadeira
oficina de produção de podcasts e, para tanto, estabelecemos 6 objetivos: 1) pesquisa de
assuntos, conteúdos e colegas dispostos a orientar os estudantes em dúvidas em suas
respectivas áreas. 2) produção de roteiros sob orientação docente. 3) gravação e conversão de
formatos de áudio. 4) edição. 5) compartilhamento dos materiais confeccionados. 6)
apresentar os resultados em evento específico dentro da agenda acadêmica da Universidade
Federal Fluminense. Tudo isso imaginando que em breve retornaríamos às atividades
presenciais. O projeto exigiu, para além da orientação aos bolsistas, a articulação remota de
todo o projeto, pois, apesar de haver a esperança da retomada das atividades presenciais, a
continuidade da pandemia e da política de afastamento social nos forçou a este
contingenciamento. Para nosso contentamento, obtivemos a ajuda de quatro voluntários que
se somaram às ações do projeto, sendo duas colegas da disciplina de Língua Portuguesa e
dois mediadores, sendo o AEE que acompanha nosso estudante. Esses voluntários foram

36
atraídos pela crença na viabilidade e importância do projeto para a inclusão dos estudantes
portadores de deficiência que necessitam de necessidades educacionais específicas. Atraídos
por esta mídia e pelo potencial de transmissão de conhecimento, vieram aprender a fazer
juntos. Contudo, com a permanência do estado de quarentena, todas as etapas se deram ainda
remotamente.

Era importante que, devido ao distanciamento, os estudantes tivessem alguns recursos


para realizar em suas casas as tarefas, bem como para que conseguissem participar das
reuniões. Começamos com as reuniões de trabalho utilizando o programa Meet, do Google,
em que todos fomos apresentados, lembrando que o “elemento estranho” à comunidade
escolar era eu, o recém-chegado. Apresentamos a proposta da “audioteca” e seu emprego
preferencialmente com “B”, o que todos acharam ótima iniciativa pois ele é muito querido
na escola. Depois disso, iniciamos nossa ação pedagógica com os estudantes, incentivando-os
a gravar áudios curtos sobre temas/matérias que mais gostavam, realizando uma breve
pesquisa prévia. A partir daí, apresentamos as ferramentas de gravação e edição de áudio,
tendo uma troca profícua, já que esta geração é muito alinhada às inovações tecnológicas e
apesar de, às vezes, não saber utilizar da melhor forma, é aprendendo e ensinando. Após essa
etapa demonstramos a importância de redigir roteiros para embasar o conteúdo e dotar-lhes
de maior confiança na hora de gravar. Os voluntários foram instados a também produzirem
suas gravações, no que resultou em verdadeiras surpresas como, por exemplo, o áudio da
mediadora de “B”, que teve um trecho extraído e transformado na vinheta do projeto e um
podcast da colega de Língua Portuguesa explicando o que são podcasts e que fez o maior
sucesso.

A parte de edição, cortes, supressão de ruídos, inserção de trilha sonora e vinhetas


ficaram a meu encargo. Apesar de os estagiários terem a capacidade para tal, provando suas
aptidões nas oficinas deste projeto, a referida etapa é muito demorada. Eles possuíam para
além das tarefas do projeto, as atividades da escola e os serviços domésticos que, como todos
sabemos, se multiplicaram com a pandemia. Na verdade, para ser bem sincero, eu adoro fazer
as edições.

Dois grandes problemas que enfrentamos foram: a distribuição dos podcasts para “B”
e para os demais estudantes; como também obter o envolvimento da família do pequeno nas
tarefas cotidianas da escola, bem como em ofertar os materiais desenvolvidos no projeto
como material alternativo e adicional para sua aprendizagem. Quanto à primeira dificuldade

37
ocasionada pelo prolongamento do estado de pandemia, foi pela falta do uso dos espaços
físicos escolares como a sala da rádio da escola, bem como a sala de recursos audiovisuais,
uma vez que, no planejamento inicial, prevíamos utilizá-los. Contudo, com o passar do
tempo, nosso problema físico se expressou no virtual, pois não havia naquele momento,
dentro da plataforma Quarentuni, uma seção que pudesse receber e armazenar os arquivos de
áudio, bem como conseguir disponibilizá-los para download para os estudantes. Mas, com o
incentivo do grupo de trabalho (GT) que geria a plataforma, decidimos utilizar a tecnologia
RSS de distribuição de arquivos, que é o método de distribuição padrão, e para isso fizemos
uma conta em um ecossistema digital de produção de conteúdo (SoundCloud) e
sincronizamos-no com o AVE Quarentuni em uma seção que foi criada posteriormente para a
finalidade de reproduzir podcasts. Quanto ao segundo problema, não obtivemos o mesmo
sucesso, pois a família resistia em aceitar a condição de “B”. Esse obstáculo se mostrou
intransponível, ainda mais devido ao afastamento físico entre a criança e a escola. Mas, de
qualquer forma, os materiais permanecem na internet e , estão disponíveis para “B” e quem
mais se interessar e quiser utilizá-los.

Das demais etapas a cumprir que nos propusemos no início do projeto, tinha a
apresentação dele e de seus respectivos na Semana Acadêmica da Universidade Federal
Fluminense, Instituição da qual a escola está ligada. A apresentação se realizou com relativa
tranquilidade, à exceção de dificuldades com as tecnologias de videoconferência e internet.
Atualmente, todos nós estamos sujeitos a isso.

Para finalizar, cabe destacar que, tendo cumprido esta última etapa, as bolsas
destinadas a essa iniciativa, permaneceram para serem utilizadas pela escola, porém, tiveram
tempo reduzido devido ao período sem aulas, mas foram pagas até dezembro após a
apresentação e enquanto duraram as atividades. Como frutos do projeto surgiram outras
produções: o perfil do projeto Luz dos Olhos na plataforma que hospeda os podcasts continua
ativo e disponível; tivemos uma publicação de breve relato da experiência para a revista da
Universidade (Revista Pibiquinho UFF-2020), destinada a estes projetos; um capítulo de livro
aprovado para publicação pelo Instituto Benjamin Constant (IBC) que ainda está no prelo; o
minidoc “Difícil falar dela”, inspirado na experiência de educação inclusiva, que teve a
minha sobrinha autista como protagonista; e por fim, o presente ensaio a que vocês acabaram
de ler.

Carlos Alberto dos Santos Muniz

38
#partiu
resenha
Partiu Resenha?

Entrevista Livraria Alecrim

Carlos Douglas Martins: Nos conte um pouco da história da Livraria Alecrim: quem são as
pessoas que trabalham no projeto? Como é dirigir uma livraria independente?

Livraria Alecrim: A Alecrim nasceu dentro de Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de


Janeiro, por uma família que se encontrou sem renda durante a pandemia. E isso não é uma
história de superação e nem gostamos de retratar assim, é apenas a realidade de muitas
famílias brasileiras que precisaram se virar diante ao desemprego em massa.

Carlos Douglas Martins: Nas redes sociais ficamos sabendo que a livraria é tocada por toda
a família. Como é trabalhar juntos? Qual o papel de cada uma?

Livraria Alecrim: Formada por Roberto, Andressa e Carol, a Livraria foi feita de uma
mistura de profissões. Beto, livreiro há mais de 10 anos, proporcionou o pontapé inicial de
compreendermos o mercado literário. Andressa, produtora cultural e habituada com a área de
gestão conseguiu estabelecer a parte burocrática e faz a curadoria dos livros (porque não
vendemos livros que não sejam coerentes com o que defendemos). Carol, educadora popular,
se aprofundou na comunicação e uniu com a pedagogia para tocar a parte de gerenciamento
de redes.

Carlos Douglas Martins: A livraria tem redes sociais atuantes, espacialmente no Instagram,
com mensagens críticas, enquetes, informações... Como é ser uma livraria independente?
Qual causa vocês defendem e porquê?

Livraria Alecrim: Por enquanto, nós existimos somente online. Nós entendemos que uma
livraria independente de esquerda existir em um país tocado por um fascista não é muito
seguro. Então aproveitamos o espaço online para unir e criar uma comunidade literária que
enxergue o livro como ferramenta de transformação do mundo. E para isso é preciso colocar
em pauta tudo o que faz o livro acontecer ou não. Os livros são historicamente queimados,
perseguidos, proibidos e agora taxados. Por que não falar disso? O mercado literário vem
sendo atacado durante anos, nossas livrarias estão sendo fechadas e cada vez menos pessoas
se declaram leitores. Isso não é um problema nosso também? Nosso objetivo é vender livros

39
porque é o que provém da nossa existência, mas que cada livro esteja acompanhado de
consciência política e social.

Fazer isso acontecer requer estudo e requer muita mão na massa. Cada postagem que
fazemos é estudada, pensada, planejada com muita atenção para que a mensagem seja
passada com a honestidade que está em falta na internet. Tudo é feito por nós três, desde a
montagem dos brindes até cada interação feita e isso toma muitas horas de trabalho e somos
sinceros com a comunidade quando os dias estão corridos.
A gente tem uma relação de muita parceria entre nós. Estamos sempre dividindo
nossas tarefas, pensando juntos em cada detalhe para que não percamos o propósito. E o
nosso propósito é ambicioso porque ir na contramão do capitalismo é muito difícil. É lutar
com milionários e entender que a Alecrim nem sequer existe nessa disputa, mas mesmo assim
seguir, se oito mil pessoas foram afetadas até agora já é uma conquista incrível pra nós.
Hoje, com 9 meses de existência, já contamos nossa história, já falamos muito mal do
governo, ainda lutamos juntos contra a taxação dos livros e contra a privatização dos
Correios, já debatemos sobre o mercado literário, sobre saúde mental... E claro, já falamos
muito sobre autores e livros! E isso tudo com muito afeto que nenhuma máquina ou
milionário vai proporcionar.

Carlos Douglas Martins: Qual a mensagem que vocês deixam para todas as pessoas que
amam os livros e o conhecimento?

Livraria Alecrim: Aos que amam o livro e o conhecimento, é preciso transformar esse amor
em prática. De nada vale idéias paradas em uma estante. Circulem seus livros, debata sobre
tudo o que gira em torno dele -para além de seus conteúdos-, faça ecoar o que impede a
maioria da população de ter acesso aos livros e ao conhecimento. Estaremos juntos nessa!

Carlos Douglas Martins

40
O Homem do Castelo alto

Ficha Técnica: O Homem do Castelo Alto é um romance de narrativa ficção escrito por
Philip K. Dick, um dos escritores norte-americanos mais roteirizados da ficção científica.
Seus romances e contos foram inspiração para diversos filmes e séries, como a série O
Homem do Castelo Alto, lançada em 2015 pela Amazon Prime. O livro é publicado pela
Editora Aleph e está na sua 4º edição, com tradução de Fábio Fernandes.
O romance se passa num mundo distópico onde o fascismo venceu a Segunda Guerra
Mundial e dividiu o mundo entre as potências do eixo. A história se passa nos EUA,
especificamente no Oeste, onde seria São Francisco, chamado de Estados do Pacífico, área
ocupada pelo Japão ao término da guerra. Os principais personagens da história se entrelaçam
numa trama onde as tramas de um mundo totalitário são apresentadas a partir do
etnocentrismo, do racismo, da repressão e da tensão constante para uma nova guerra.
Em um dos centros da narrativa estão o Sr. Childan, Sr. Tagomi e Frank Frink,
personagens enredados na trama onde o etnocentrismo nipônico dos nativos observa a
importância artística americana a partir da raridade histórica dos objetos. Os nipônicos, como
o sr. Tagomi, apresentam uma obsessão por colecionar objetos produzidos pela cultura
americana antes da ocupação, tirando-os do seu contexto de utilidade e transformando-os em
objetos de contemplação. Qualquer realização contemporânea vinda dos nativos não
interessam os nipônicos, pois é tomada como bárbara, inferior e sem aura. O I Ching, o livro
das mutações, é constantemente usado como oráculo para revelar os acontecimentos, sendo
descrito na prática social dos diferentes personagens do livro como uma incorporação da
cultura do dominador.
Outra crítica importante que traz a narrativa é abordada nas aventuras de Juliana Frink,
quando ela lê o livro O Gafanhoto Torna-se Pesado, onde o leitor começa a colocar em
dúvida a realidade, refletindo se essa não é apenas uma ilusão ou mesmo que a realidade de
uma sociedade totalitária pode ser mutável. O livro traz uma crítica contundente ao
nazifascismo, especialmente na voz de Juliana, uma mulher forte e decidida, que vislumbra
com desdém o mundo obtuso e hediondo criado pelos fascistas nos Estado Unidos. É a
personagem feminina que encarna a heroína que, de forma destemida, encara as proibições do
regime e encara com avidez sua derrubada, narrada pelo curioso livro proibido. Segundo
Juliana, os nazistas “não são idealistas (...); são cínicos dotados de uma profunda fé. É uma
espécie de deficiência cerebral, como uma lobotomia (...) o problema deles é o sexo (...) É

41
por isso que eles, as bichinhas da elite da SS, têm aquele sorrisinho afetado angelical, aquela
inocência loura de bebê: estão se guardando para a mamãe” (p. 55).
O romance traz uma visão crítica e contundente sobre o fascismo, extremamente
necessária para compreender os mecanismos sociais, políticos e psicológicos que os
sustentam, e apresenta reflexões extremamente necessárias para compreender o fascismo no
mundo atual.

Carlos Douglas Martins

42
poeti
zando
Poetizando

Quem é ele

Quem é ele
Que me estende a mão
Para atravessar as ruas

Quem é ele
Que me chama repetidamente
E monossilabicamente

Quem é ele
Que me tira da solidão do meu ensimesmamento
E me entrega cosquinhas

Quem é ele que me beija e chuta


De forma tão rápida
E incompreensível a vida adulta

Ele é o que me complementa


Sagitarianamente
Falando no meu silêncio

Ele é o que atravessou


A minha vida e o meu psiquismo
De forma animal

Ele é o que inaugurou


No homem
Uma nova forma de libído

Ele é amor, é beijo,


É embaraço, cabelo, meleca, cueca,
Chiclete, futebol, luta e cadarço

Enfim, nunca saberei quem somos...


Pior ainda, quem ele é...

Eu sou o que ele chama de Pai


Ele é o que eu chamo de Filho

Só sei que é ele o que chamam de menino...


Só sei que sou eu o que chamam de homem...

Não sei mais quem leva quem pra passear


Não sei mais quem está a educar

43
Pobres palavras
Decidi ignorá-las
O amor impera
F. Moura

44
Manifesto

Que o brilho de seu olhar


única luz no escuro profundo
aqueça, queime

Que sua energia interior


transborde por olhos,
boca, ânus e vagina.

Que seu corpo,


quando ardendo em chamas,
transpire desejo e esperança.

ma
Sem qualquer receio do sexo
como ato proibido,
desinibida.

Que seus sussurros,


falas e gritos,

nifes
sejam cantos aos ouvidos.

Que entoes teu canto,


com teu corpo em pranto,
transbordando.

to
Que cada detalhe
cada toque
se arrepie em cores vibrantes.

Cessa toda agonia do viver,


apaga, esquece...
restam alegria e prazer.

O cheiro de seu cabelo,


seu gosto e beijo.

O conflito é a fusão do encontro,


tensão, tesão, fricção, desejo.

O gozo...
O corpo é finalmente sublimado,
resta a paz dos espíritos.

Carlos Douglas

45
Nada

De mansinho
Carregou seu nome
Nas etapas de sua vida
Garimpou na tempestade
Não restaram dúvidas
Só decisões
Mistérios
Trouxeram sonhos inevitáveis
Se fantasiou de hipérboles
Sem sair de cena
Já sabe quem a comove
Escolhe o hoje
Com os pés na terra
Pausa-se
E depois
Mergulha
Cláudia Nascimento

46

Você também pode gostar