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Anpuh Rio de Janeiro

Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – APERJ


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A cidade possível: uma análise dos projetos de transformação do espaço


do Rio de Janeiro (1899-1906)

Nívea Silva Vieira/UFRJ

E a cidade se apresenta centro das ambições

Pra mendigos, ou ricos e outras armações

Coletivos, automóveis, motos e metrôs,

Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs....

Chico Science – A cidade

Chico Science, ao abordar em sua música os problemas urbanos desencadeados pelo


crescimento das cidades, trata a urbe como centro das atenções para distintos setores da sociedade e nos
convida a refletir sobre este espaço que se tornou o centro da vida social, econômica e política do país.
Buscando a compreensão da reconstrução da cidade, através do vetor político da negociação entre o
Conselho Municipal, Prefeito, Senado Federal e seus moradores, nosso trabalho se ocupa dos projetos
referentes à questão das moradias populares da região urbana do Rio de Janeiro, com o propósito de
ouvir as pressões daqueles que usualmente são identificados como meros espectadores da reforma: seus
habitastes.
O Rio de Janeiro, cantado de verso e prosa, tradicional fonte de cronistas, memoralistas e
historiadores eruditos, caiu nas graças de diversas disciplinas preocupados em reescrever uma história
social da cidade. 1
Alguns importantes trabalhos escritos na década de 80 do século XX trouxeram a tona uma
cidade marcada pela intervenção do Estado em seu contorno e por uma exclusão das camadas
populares dos projetos de reformas urbanas. Estas obras assinalaram um momento importante de nossa
história recente respondendo ao momento de efervescência política e luta contra o autoritarismo do
Estado.
Jaime Benchimol, em seu livro: Pereira Passos: Um Haussman tropical, de 1982, procurou se
ater à reconstrução da cidade do Rio de Janeiro analisando aspectos sociais e materiais desde a “cidade
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escravista” até os anos após a Reforma Passos, dedicando um capítulo a este período: “Os deserdados
da urbe renovada”. Observando a cidade sob a luz da história econômica, Benchimol destacou os males
para a classe trabalhadora, acarretado pelas “obras de melhoramento” destinadas a modernização da
capital e ao atendimento da necessidade das classes abastadas.
Ao discutir o problema habitacional, o autor abordou a área central do Rio de Janeiro como
epicentro da crise de moradias, notada pela elevada concentração demográfica, intensificada tanta pela
abolição do trabalho escravo quanto pela proclamação da República.
Lia de Aquino Carvalho em Habitações populares, lançado em 1986, também sublinhou a
consolidação das obras da cidade como um projeto exclusivo para burguesia. Para Carvalho “A
valorização do espaço urbano, decorrente da concentração e acumulação de capital, incidira
2
diretamente sobre as habitações populares agravando sua problemática.” Segundo a autora a nova
política de urbanização para a cidade refletia as relações sociais estabelecidas com a nova ordem
econômica, uma vez que as classes dominantes possuíam controle da polícia e das administrações
locais.
Oswaldo Porto Rocha, seguindo a mesma linha, insistiu na hipótese de que a organização do
espaço seria um mecanismo de controle socioeconômico empregado pela burguesia. 3 Do mesmo modo
que Carvalho apontou para ausência do Estado em relação à “obras de melhoramento”, onde as
companhias de carris foram responsabilizadas pela drenagem dos pântanos, alargamentos de ruas,
melhoramentos de túneis, entre outras obras que deveriam ser realizados pelo poder público.
Partilhando do mesmo aporte teórico, essas análises apontam para uma cirurgia da cidade
conduzida pelo Estado dominado exclusivamente pelos interesses econômicos.
Na década de 90 a cidade do Rio de janeiro foi revisitada, com trabalhos voltados para ação de
novos atores: seus moradores. Deslocando o foco das atenções para os citadinos essa abordagem deu a
estes sujeitos novas posições, refletindo sobre a existência de uma população vivendo a parte do mundo
oficial, agindo em circuitos restritos da cidade.
Sidney Chalhoub, em seu livro: Cidade Febril: epidemias na corte imperial propôs a visão de
uma cidade ameaçada pelas epidemias e pelo rígido controle dos higienistas e do poder público que
incidiram diretamente sobre as moradias populares. Na visão do autor: “A intervenção dos higienistas
nas políticas públicas parecia obedecer ao mal confessado objetivo de tornar o ambiente urbano
salubre para um determinado setor da população.” 4
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Chalhoub ressaltou a resistência da população aos novos hábitos, através da conservação das
tradições populares. Descrevendo a “(In) tolerância carioca e o (Dês) governo das multidões”, o autor
indicou a existência de uma outra cidade vivendo aquém das transformações implementadas pelo
Império.
José Murilo de Carvalho no livro: Os Bestializados e a República que não foi, analisou as
relações políticas dos primeiros anos do regime republicano defendendo a idéia de um vasto mundo de
participação popular, só que fora do mundo da política oficial. Para Carvalho:
A cidade não era uma comunidade no sentido político, não havia sentimento de pertencer a uma
entidade coletiva. A participação que existia era antes de natureza religiosa e social e era fragmentada.
Podia se encontrar nas grandes festas populares, com as da Penha e da Gloria, no entrudo, concretizava
–se em pequenas comunidades étnicas, locais ou mesmo habitacionais, um pouco mais tarde apareceria
nas associações operarias anarquistas.5
O autor entende que a Capital da República assumiu o papel de cartão postal do país e o
governo municipal esteve limitado apenas a ações administrativas.
Reconhecendo a importância destas e outras produções acadêmicas que elevou o conhecimento
da cidade para além dos seus aspectos materiais, achamos que é chegada à hora de avançar para analise
de uma cidade construída de forma plural, disputada cotidianamente dentro dos espaços oficialmente
constituídos. Consideramos que o modelo de cidade dual, fragmentada entre ricos e pobres, não é capaz
de dar conta da complexidade dessa sistematização do espaço urbano que ultrapassou as linhas da
cidade desejada pela “boa Sociedade”.

Cidade do Rio de Janeiro: palco de negociações políticas

A cidade do Rio de Janeiro foi privilegiada nesse estudo, tanto pela sua posição de destaque no
cenário nacional, quanto pelo grau de complexidade das suas relações políticas, sociais e econômicas.
Sendo a maior cidade do país, com uma população em torno de 500 mil habitantes, ocupando o centro
administrativo da nação, a cidade precisava responder aos imperativos de ser capital, vitrine do país e
ser um espaço de representação de seus habitantes. 6
O recorte temporal desta pesquisa nos permite entender o momento da criação do Conselho
Municipal, em 1892 e sua atuação ao longo de 14 anos, demonstrando a sua presença nos debates do
cotidiano da cidade e contrariando a teoria da nacionalização da política carioca. De acordo com esta
idéia, por sediar a capital do país e não gozar de autonomia administrativa os políticos da cidade do Rio
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de Janeiro teriam sido absorvidos pelo debate político nacional não sendo capaz de resolver os
problemas locais. Embora reconheçamos que o executivo sempre atuou de forma a neutralizar as
reivindicações da política local, partilhamos da tese defendida por Surama Conde de Sá Pinto que
sublinha as estratégias acionadas pela elite política da capital para superar as amarras desse campo
político desigual. 7
Outro ponto importante a ser observado diz respeito ao primeiro grande planejamento urbano
conduzido pelo Presidente da República Rodrigues Alves (1902-!906) e pelo Prefeito Pereira Passos
imortalizado pelas grandes obras de urbanização da Capital.
Para Ângela Moulins Simões e Marly Silva da Mota, nesse acelerado processo de urbanização
em um rítimo muito mais intenso que o da industrialização, o poder público foi chamado a intervir na
estrutura urbana submetendo a ordem liberal, individualista, às necessidades de reprodução da cidade.
Para as autoras a legitimidade da intervenção estatal foi colocada em xeque e somente pode evoluir no
que diz respeito ao planejamento urbano porque esse foi defendido como uma necessidade não da nova
ordem social e econômica mas sim como decorrência das doenças que eram facilmente disseminadas
nos espaços densamente povoados8.
A idéia de modernidade, estampada nas primeiras páginas do jornal, estava na pauta dos debates
das elites políticas, intelectuais e econômicas que discutiam um projeto civilizatório para o corpo social
do país antes mesmo do advento da República.
É importante deixar em relevo que no período que antecedeu a chegada da Corte portuguesa ao
Brasil, o desejo de modernidade com a integração no país no progresso internacional não dizia respeito
ao desenvolvimento da cidade, mas aos melhoramentos implementados na agricultura9. De acordo com
Robert Morse Pechman, a identificação do país com o meio rural pouco a pouco foi se desgastando a
partir do desenvolvimento dos centros urbanos e, sobretudo com a chegada da Família Real instalada
no Rio de Janeiro.
Todavia, devemos fazer a ressalvam de que todas as tentativas de elevar o país ao rol das nações
civilizadas a partir da elaboração de um corpo de leis que garantissem o enquadramento da população
num projeto urbano, não se deu de forma unilateral, uma vez que o funcionamento do corpo social não
pode ser determinado exclusivamente por engenho e interesse da classe dominante..
Nessa perspectiva endossamos a teoria defendida por Thompson acerca da legitimidade das
regras escritas pelo poder oficial. De acordo com o autor a lei não pode ser manifestadamente parcial e
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injusta na medida em que não poderá mascarar e nem legitimar a hegemonia de classe alguma, sendo
assim é necessário que pareça justa mantendo lógica e critérios próprios de igualdade10. Para que os
membros da comunidade reconheçam o código normatizador, os condutores do processo não podem
impor as regras pela simples coerção, caso fizessem, destituiriam os códigos legais de qualquer valor, e
estes não teriam qualquer significado para os demais membros da sociedade. A possibilidade de
utilização destes mecanismos devem ser entendidas e válidas para todos os agentes envolvidos.
Desta forma, entendemos que a reforma da cidade, embora tenha agravado alguns dos
problemas das classes populares e de alguns proprietários e comerciantes da região urbana do Rio de
Janeiro, não pode ser vista como uma imposição do Estado em nome das classes abastadas. Os embates
que marcam todos os processos de transformação não podem ser ignorados, com o risco de se perder a
complexidade das ações dos atores, que podem ser traduzidas de diferentes modos.
Outro elemento chave para compreensão deste trabalho diz respeito a analise do campo político.
Segundo Pierre Bourdier, o político não pode ser considerado como uma instância reflexa de injunção
econômica, na medida em que tem uma consistência própria e dispõe de certa autonomia em relação
aos outros componentes da realidade social. Sendo assim o campo político deve ser entendido como um
campo de lutas e concorrências, no qual os compromissos e as alianças não se apresentam de forma
estática. 11

Conselho Municipal: local privilegiado das negociações entre os citadinos e o poder


público

As estratégias utilizadas pelos Intendentes do Conselho Municipal, vistos aqui como o principal
elo de comunicação entre os moradores da cidade e o poder oficial, são analisadas a partir de uma
dinâmica própria refletindo, sobretudo, o conflito e a negociação entre os sujeitos em torno da questão
das moradias populares. Nesse ínterim, seguindo a analise de Surama Pinto, o Senado acabou atuando
em alguns momentos como fiador do espaço de ação do Conselho Municipal e dos grupos políticos
locais, uma vez que funcionou como arbitro nas querelas entre o Executivo e o Legislativo Local,
cabendo-lhe na resolução das questões de litígio a palavra final. 12
Acreditando que a administração municipal era vista pelos contemporâneos como espaço
acessível de reivindicações e debates, trabalhamos sobre a afirmativa de que seus membros mostraram-
se presente na luta por melhorias nas condições de vida da população.
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Para provar esta afirmativa, utilizamos como fontes principais os Boletins da Intendência
Municipal, O Relatório da Diretoria de Obras e Viações Publica; os Anais do Conselho Municipal, com
a redação dos projetos de lei referentes à questão das moradias populares e os Anais do Senado Federal,
onde é possível observar a justificativa dos vetos dos prefeitos a projetos encaminhados pela
Intendência Municipal.
Nosso desafio encontra-se no mapeamento dos interesses em jogo nestas reformas e na
identificação do tipo de relação desses representantes com os habitantes da Capital e com as outras
esferas de poder. Pretendemos desta foram, superar a visão de que o Conselho Municipal era um
espaço de corrupção e de interesses pessoais e provar que os canais oficialmente constituídos eram
utilizados pela população como forma de reivindicação de seus problemas.
E assim, acreditamos numa cidade reconstruída de forma coletiva, reestruturada em seu
cotidiano por agentes do poder público e pelos atores anônimos em disputas e negociações políticas e
pontuais a cerca de soluções para os problemas das habitações populares.

Referencias Bibliográficas

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MAGALHÃES, Marcelo de Souza. Ecos da política: A capital Federal, 1892-1902. Niterói, PPGH-
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ROCHA, Oswaldo Porto. A era das demolições: A cidade do Rio de Janeiro: 1870-1920. 2ª edição.
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SEVICENKO, Nicolau. Literatura com missão. São Paulo brasiliense – 1999.

Notas
1
BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Hassmaann tropical: A renovação urbana da
cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: [S.n], 1992. vol 1. Coleção Biblioteca
Carioca,1992, p 9.
2
CARVALHO, Lia de Aquino. Contribuição aos estudos das ações populares: Rio de Janeiro 1886-
1906 2ª edição. Rio de Janeiro: Coleção Biblioteca Carioca, 1995.p.113
3
ROCHA, Oswaldo Porto. Era das demolições: cidade do Rio de Janeiro 1870-1920. Rio de Janeiro:
[S.n]. 1995. vol 11, Coleção Biblioteca Carioca. P 15
4
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: ed
Companhia das Letras. p 9
5
CARVALHO, José Murilo. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a Republica que não foi. São Paulo .
companhia das letras, 1987. p 38
6
MOTTA, Marly. Frente e verso da política carioca: o lacerdismo e o chaguismo. Estudo histórico.
Rio de Janeiro, vol 13. n 24,1999
7
PINTO, Surama Conde de Sá. Elites Políticas e jogo de poder na cidade do Rio de Janeiro (1909 -
1922). 2002 ---folhas. Tese de doutorado (em Historia social) Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro 2002.
8
SANTOS, Ângela Moulins Simões Penalva ; MOTTA, Marly Silva da. O “bota - abaixo” revisitado:
O executivo municipal e as reformas urbanas do Rio de Janeiro (1903-2002). In Revista do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, n10, p.11-34, maio-agosto de 2003. p 22.
9
PECHMAN, Roberto Morse. Cidades estritamente vigiadas: O detetive e o urbano. Rio de Janeiro:
Casa da Palavra 2002. p 333
10
THOMPSON, E.P. Senhores e caçadores: A origem da lei Negra. Trad. Denise Battman. 2ª edição.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p334
11
BOURDIER, Pierre. O Poder Simbólico. Trad . Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Editora Bretand
Brasil AS, 1989. p 164
12
Ap PINTO, Surama Conde de Sá. Elites Políticas e o Jogo de poder na cidade do Rio de Janeiro
(1909-1922). 2002....folhas. Tese de doutorado (em história social) Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro. 2002. p 150.

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