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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo


Mestrado em Urbanismo

V SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO


“Cidades: temporalidades em confronto”
Uma perspectiva comparada da história da cidade, do projeto urbanístico e da forma urbana.

SESSÃO TEMÁTICA 5:
HISTÓRIA E CULTURA URBANA
CIDADES: PLANOS E INTERVENÇÕES
COORDENADORA: DENISE PINHEIRO MACHADO (PROURB-UFRJ)

Imagens destoantes: a moderna capital de Minas

Anny Jackeline Torres Silveira


Introdução
O exame dos textos referentes à capital de Minas nesses seus cem anos de existência
apontam para a permanência de uma determinada imagem que tem buscado defini-la
desde sua construção: a imagem do moderno.
Desde o momento em que se discutia a mudança da capital da província, até seu
planejamento e construção em fins do século XIX, a noção do que seria moderno vinha
revestida de um sentido positivo. Era necessário criar uma cidade que fosse mais
consoante aos novos tempos que se abriam à nação republicana. Talvez se pudesse
mesmo dizer, uma cidade que funcionasse, ela mesma, como mais um elemento
contribuinte na constituição dessa mesma nação.
Dessa forma, moderno havia de ser o seu plano – ruas, equipamentos, infra-estrutura -
seguindo os preceitos da ciência urbana então em construção, fundada nas noções de
racionalidade, da salubridade e da organização. Modernos os usos que se fariam dos
espaços assim criados, um comportamento que revelasse adesão a um novo modo de ver
e fruir o espaço. Esses seriam desejos que mobilizariam não apenas os planejadores que
projetavam a cidade no papel, mas também, aqueles a quem cabia projetar a cidade na
cabeça dos homens, dos seus novos habitantes.
Essa preocupação estaria presente ainda em momentos posteriores, quando se fazia
necessário correções de rota, quando aquilo que havia sido planejado era como que
reescrito, redimensionado pela ocupação da cidade. Novos planos e intervenções nos
anos posteriores também se valeriam do “slogan” da cidade moderna.
O mesmo tema daria o tom quando a cidade começou a ser retomada, entre as décadas
de setenta e oitenta, através do exame crítico de alguns estudiosos. Porém, o destaque
dispensado ao moderno aqui, viria revestido de uma outra significação.
Esta retomada se fixará de modo mais detido nas perdas que o adjetivo “moderno“
poderia representar para os habitantes de um centro urbano, no significado, por assim
dizer, negativo que trariam os “influxos” do progresso de finais do século XIX e início do
XX: exclusão, subordinação, disciplinarização.
Na senda dos estudiosos que focalizavam o urbano a partir das idéias de poder, norma,
disciplina, ordem, privação, estes trabalhos revelavam a outra face do ser moderno para
os moradores da capital de Minas.
Seria possível, então, identificar a princípio dois discursos distintos e um tanto destoantes
sobre a cidade, fundados sobre o mesmo termo/elemento: a imagem do moderno. Um
primeiro, em que se destacaria uma avaliação acima classificada como positiva, no
sentido daquilo que o moderno significaria de ganho para a população; o outro, no qual se
privilegiaria o que o moderno traz de negativo.
A proposta dessa comunicação é apontar que essa distorção de sentidos, ou essa
ambivalência com a qual a percepção do termo se reveste, devem ser pensadas como
aspectos presentes desde os primeiros anos da nova cidade, inscritas no próprio projeto
da capital, no próprio sentido da palavra moderno.
Isto é, cada um desses elementos são faces de um mesmo processo, componentes da
idéia de moderno que se dissemina na passagem do século entre os homens da Belo
Horizonte, e que nos chegam até hoje. Deste modo, a prevalência de um deles em
determinado período não significa de modo algum a ausência ou a não percepção do
outro. Ela se deve muito mais às escolhas, à supremacia que determinados discursos e
imagens lograriam em certos momentos, à sua capacidade de se sobrepor, de se fazer
mais evidente, como que encobrindo as demais.

Uma exaltação do moderno


As últimas décadas do século XIX marcaram importantes transformações na vida do país.
A sociedade se veria confrontada com mudanças que colocaram desafios e questões à
organização social e da produção, à política e aos valores culturais. Vivia-se o desejo,
visto mesmo como necessidade, de se dar uma aparência mais moderna a
comportamentos, práticas, lugares, e que se aproximasse mais da realidade que se
acreditava existente nas grandes nações européias.
Em Minas, entre outras transformações, destaca-se nesse período a decisão pela
transferência da capital da província. Assunto discutido desde meados do século, só com
a instauração do regime republicano a mudança seria efetivada. Já aqui é possível
identificar a força com que a idéia de moderno se inscreve na criação e na história da
nova cidade: moderno igual a novo (república) em oposição a antigo (império).
Constituição de uma nação/cidadão (Belo Horizonte) em oposição à colônia/súdito (Ouro
Preto) 1.
Entre os vários argumentos para a mudança da capital levantados durante os debates da
Constituinte Estadual de 1891, parece ter certo peso a imagem de uma Ouro Preto com
sua estrutura urbana arcaica, acanhada e provinciana, incapaz de representar o novo
período que se iniciava para a vida do estado e do país.
Buscando dar uma imagem progressista e civilizada à nova nação, muitos consideravam
a importância que a vida urbana e, por conseguinte, a cidade adquiriam na consecução
dessa tarefa:
”... certo de que a civilização não pode emanar senão da grande cidade, ... de uma capital
que tenha todos os elementos necessários para a vida oficial, assim como para a vida de
seus habitantes”2.
A antiga cidade colonial era descrita como totalmente incapaz de assumir tal
responsabilidade: crise, empobrecimento, inadequação geográfica ...
“Poderia descrever a sua decadência, mas que necessidade tenho eu de apresentar-vos
esse quadro, quando o original aí está a vossa vista, quando aí se vos apresentam ruínas
de ruas inteiras ...quando enfim se vos apontasse os inconvenientes que oferece a sua
localidade” 3.
A nova capital deveria funcionar como ...
“... um centro de atividade intelectual, industrial e financeiro, e ponto de apoio para a
integridade de Minas Gerais, seu desenvolvimento e prosperidade, pois que de tal
condição carece a infeliz e atual capital [Ouro Preto]...”4
Acatada a decisão constitucional, era criada em 1894 a Comissão Construtora. Começava
a surgir no papel uma moderna capital: ruas arborizadas, saneadas e iluminadas; grandes
avenidas; cruzamentos regulares, um centro comercial ordenado, limpo, racionalmente
planejado; praças amplas, parques e teatro para o desenvolvimento de uma vida culta e
civilizada. Prédios novos, com profusão e riqueza de detalhes; casas A,B, C, para tipos
diferentes de funcionários, conforme necessidades. Cada espaço correspondendo a
atividades definidas - bairro dos funcionários, região comercial, áreas de lazer - com
significados e usos bem marcados e que se queria incorporados pelos habitantes da
cidade. É o que revelam os decretos e as descrições apresentadas pelo engenheiro
responsável pelo projeto:
“... [seu planejamento] deverá obedecer às mais severas indicações e exigências
modernas da higiene, conforto, elegância e embelezamento”5.
“... a uma das avenidas dei largura de 50 metros para constituí-la em centro obrigado da
cidade”6.
“As avenidas terão passeios laterais ... ficando o centro todo para trânsito livre de carros e
tram-ways”7.
As posturas urbanas de então, também buscavam criar hábitos e disciplinar o uso do
espaço, revelando, assim, algumas das práticas que se imaginava definir uma cidade
moderna:
“... graças à energia de nossa gente e ao trabalho tenaz da administração a cidade tem a
vida trepidante das grandes metrópoles. Na primeira quinzena do mês passado , tivemos
quatro exposições de pintura, dez conferências científicas e literárias, bailes nos grandes
clubes, além de outras festas sociais” 10.
“Foi a vitória do progresso contra a rotina; da razão contra o preconceito, da inteligência
contra a obsecação .... fazer surgir do nada uma cidade moderna, grande e bela,
observando os preceitos da ciência e todas as regras da arte .... é um acontecimento
assombroso”11
Os elementos e aspectos acima mencionados funcionam como símbolos daquilo que se
considerava uma cidade moderna: uma exaltação do comportamento ordenado, educado,
regulado pelas conquistas do progresso e da inovação tecnológica.
Essa mesma imagem será enriquecida e reforçada nesse período pelos cronistas da vida
urbana, que enchem jornais e revistas com os preceitos do “viver moderno”. No
imaginário por eles reafirmado e reconstruído, a cidade moderna era identificada com a
oportunidade de de vivenciar e usufruir, de forma diferente e positiva, o espaço e o
contato entre os homens.
Refinamento, elegância, requinte, burburinho, civilidade, eram alguns dos aspectos que
conformavam a idéia do que seria esse “viver moderno”. Um estilo de vida que se
aproximasse do que era percebido como sendo as experiências cotidianas dos habitantes
dos grandes centros do país e do exterior.
As crônicas dos periódicos da capital reforçariam a importância dessas imagens
emblemáticas, ao mesmo tempo que revestiria outras tantas com esse mesmo sentido. O
cosmopolitismo da nova cidade era traduzido pela moda, os esportes, os acontecimentos
culturais; os novos comportamentos e hábitos, a freqüência ao cinema, ao teatro, as
tardes elegantes, aos bares movimentados; bondes e iluminação elétricos.
Entre os diversos espaços da nova capital, a rua da Bahia surgiria em algumas páginas
como o centro do cosmopolitismo e civilização mineiros, síntese de todos esses
emblemas caracterizadores do mundo moderno – ela seria considerada, quase que por
unanimidade, a rua do Ouvidor belorizontina: “... a Rua da Bahia era naquele trecho o
lado feérico dos habitantes, a fantasia, a inquietação.”12
A imagem do moderno inscrita nesses discursos está marcada por um sentido positivo,
onde o moderno é pensado como uma aquisição, como inclusão. A capital e sua
população só tiveram a ganhar com esses novos equipamentos e hábitos. Era como se
agora tivessem inscrito seu nome nesse mundo do qual tanto ansiavam participar.
Esta seria, portanto, uma representação na qual se buscava assinalar os elementos
capazes de valorizar – positivamente - o espaço e o viver modernos. Porém, apesar de
ser talvez mais freqüente e/ou mais reforçada, essa não seria a única representação
sobre a capital mineira neste período.

Um exame crítico da cidade moderna: o discurso do planejamento


Se durante grande parte dos primeiros anos a idéia de progresso, de cosmopolitismo
seria predominante enquanto sentido atribuído ao conceito de “moderno”, nos últimos
anos tem prevalecido a discussão do sentido negativo que também estaria presente entre
os significados possíveis da palavra. A negação, a perda, a submissão, o controle, a
proscrição foram os novos termos que dirigiram as análises e debates em torno da nova e
moderna capital.
Assim, enquanto na passagem do século XX a cidade planejada era algo saudado por
muitos como uma “ousadia de espíritos empreendedores”, a possibilidade de
racionalização das atividades, da circulação de homens, ares e mercadorias, uma
garantia de correção, de controle e de bem-estar para a população13, a partir da década
de setenta Belo Horizonte seria tomada por muitos como expressão de um ato de poder,
especialmente naquilo que esse poder representa de arbitrário, excludente e elitista.
Como já foi ressaltado, a percepção desse componente negativo não é exclusividade das
novas abordagens características desse período. Uma certa ambigüidade percebida entre
alguns de seus cronistas (examinada mais adiante), se mostra como aspecto revelador de
que considerações menos engajadas a respeito do sentido adquirido pelo moderno já
estavam presentes desde os primórdios da capital. O que parece ser importante observar
neste caso, é a predominância que pode ser evidenciada de um determinado tipo de
análise, de associação entre o termo moderno e as suas significações nos textos e
trabalhos produzidos em épocas distintas.
As interpretações desse período a respeito do espaço urbano de um modo geral, e no
caso particular de Belo Horizonte, têm abordado a questão da cidade moderna – e
especialmente da cidade planejada - como lugar no qual a ocupação, as atividades e o
usufruto do espaço estão dados de antemão. Um espaço onde a vida dos homens não se
define ao acaso, pelo desejo de tomar um caminho diferente, de fazer a seu gosto, a seu
modo. Ao contrário, a cidade planejada seria aquela que define – nos traços que o seu
próprio plano descreve e nas intenções que nele se inscrevem – que caminhos se deve
percorrer, e a melhor forma de fazê-lo.
Pensada como um discurso idealista, a noção de planejamento poderia, muitas vezes,
deixar supor uma cidade que seria democraticamente partilhada, na qual a distribuição de
serviços e equipamentos abarcaria de modo igualitário todos os habitantes. Para uma
abordagem crítica, uma questão fundamental seria pensar quem seriam esses “iguais”
para os quais o espaço público estaria sendo pensado e preservado.
As análises a respeito da cidade moderna, apontam para o fato de que, o discurso que
planeja também recorta e seleciona em meio à população, aqueles aos quais será
destinado esse espaço, ou então, constrõem o homem/tipo ideal para ocupá-lo. Dito de
outra forma, o espaço planejado costuma sempre ser reservado a uma determinada
camada da população. Deste modo, os “iguais” seriam compostos pelos indivíduos que
participam da mesma camada social daqueles a quem coube organizar e decidir o destino
da própria cidade, e, talvez, àqueles a quem eles se dispusessem estender esse direito.
Seguindo tal abordagem, passa-se da inclusão pela extensão dos benefícios, para a
exclusão na definição daqueles que participam de seu usufruto.
Nesta perspectiva, o moderno se torna negativo à medida que impõe formas e modos de
ocupar o espaço, à medida em que acaba por suprimir outras possibilidades, outras
variantes que não se encaixam no ideal de cidade construído. Na seqüência, outra
negação da cidade moderna diria, então, respeito ao tipo de cidadão que ela idealiza e
busca conformar.
Algumas considerações que costumam ser levantadas em diversos dos trabalhos que têm
abordado a criação e construção da nova capital mineira não diferem muito desse tipo de
análise. No caso de Belo Horizonte, estes estudos apontam para o fato de que o plano
elaborado pela Comissão Construtora deixa claro a opção por uma cidade elitizada e
excludente.
Tomando por referência Foucault, estes trabalhos vão ressaltar o fato de que os discursos
técnicos que sustentam e justificam as determinações impostas pelo planejamento,
gerenciamento e controle dos usos e práticas urbanos, a classificação dos espaços e a
delimitação do lugar de cada um em sua estrutura, são formas de expressão e de
exercício de poder, e de um poder negativo, porque impõe limites, inibe, coíbe. Conforme
imagem sugerida por um dos estudiosos da capital de Minas, o plano – pré-escrita da
cidade – ao mesmo tempo que prescreve, também proscreve usos, apropriações e
indivíduos14. Alguns desses trabalhos produzidos mais recentemente, vão se dedicar ao
exame dos conflitos gerados por esse tipo de espaço planejado e esse discurso que
reveste o moderno de um significado excludente.

Um exame crítico da cidade moderna: o discurso dos cronistas urbanos.


É interessante perceber que os documentos relativos à Comissão Construtora e à
administração da cidade foram materiais que fundamentaram tanto as imagens positivas
quanto as negativas que se construíram a respeito da nova capital. Outros testemunhos
que também serviram para embasar essa ambigüidade em relação ao modo como Belo
Horizonte foi percebida são os textos de seus cronistas, material bastante explorado pelos
críticos da cidade moderna.
Através das crônicas é possível observar distintas opiniões sobre como uma cidade foi
pensada e sentida pelos homens que nela viveram. “Narrativas do cotidiano”, elas
revelam, na “tradução” de seus autores, um pouco de cada aspecto da vida urbana: os
acontecimentos, práticas, opiniões... assuntos comezinhos, particulares, ou discussões
sobre grandes questões da vida pública da cidade sempre foram explorados por esses
observadores do mundo urbano.
Tratando a crônica como documento para o historiador, Margarida de Souza Neves vai
sublinhar a necessidade de se tomá-la enquanto um “discurso polifacético, ... encadeado
pela lógica particular das subjetividades” de cada autor15, portando, construção. Porém,
esse caráter de registro ficcional não impede o recurso do pesquisador à essas mesmas
crônicas.
O cronista seleciona, filtra, imprime sentidos que estão imersos e ao mesmo tempo se
constituem em fundamentos de certo imaginário do qual seus contemporâneos
participam. Crônicas são, portanto, imagem, representação, expressão daquilo que a
autora chamaria “tempo social”. Antes de significar falso, essa ficção, produto de cronistas
e literatos, é criação. Assim como outros documentos, também a crônica é um
monumento de seu tempo, e dos tempos posteriores16
No caso da nova capital de Minas, os cronistas deram forma a imagens, desejos e
sensações daquilo que eles, mas também o seu tempo, perceberam como sendo “o
moderno”. Como mencionado anteriormente, pode-se apontar em suas crônicas uma
certa semelhança quanto a alguns dos elementos constituintes dessa imagem: progresso,
civilização, movimento; bares, bondes e cinemas ... Mas é possível detectar também uma
certa variação na percepção de como esses signos seriam capazes de imprimir essa
ansiada modernidade à cidade.
É interessante observar, no entanto, que essas crônicas seriam fundamento não apenas
para se identificar as imagens que relacionavam o moderno com um sentido negativo,
como já mencionado no caso do discurso dos planejadores da nova capital. Elas também
o seriam para as imagens que contestavam essa modernidade atribuída à cidade.
Para alguns autores a presença de alguns signos definidores do moderno já era
considerada como indicador do quanto a capital mineira havia honrado os propósitos de
seus criadores. No entanto, outros iriam negar ou, então, relativizar essa associação com
o moderno pela pura e simples presença destes elementos no espaço da cidade,
afirmando a necessidade destes possuírem certas qualidades, ou uma determinada
intensidade, ou, ainda, apontando a ausência de outros aspectos/emblemas vistos
também enquanto componentes definidores do moderno.
Da mesma forma como é possível recuperar vários cronistas que exaltavam a vida e o
espaço da nova capital, também não é difícil encontrar os que a considerariam
provinciana e acanhada, sem qualquer atrativo que pudesse aproximá-la dos grandes
centros cosmopolitas. Opondo-se às imagens de êxito, havia crônicas nas quais a
pasmaceira era reinante. Cidade burocrática, modorrenta, rastaqüera. Drummond diria ser
ela,
“... a menos interessante das cidades mineiras, menos interessante que qualquer
estaçãozinha de estrada de ferro perdida no mato, onde o trem não passa”17.
No capítulo dos acontecimentos sociais que ocupavam a cidade, Drummond comentava o
tédio e a melancolia característicos dos “autênticos” bailes belorizontinos18. Em outro
momento, referindo-se ao corte das árvores que cobriam a avenida central da cidade, o
autor escreveria uma crônica, afirmando que, antes, essa lhe parecia mais misteriosa,
uma mistura animada de elementos variados - “bazares, ‘flirts’, vitrinas, bares, casas
bancárias” e homens, múltiplos, diferentes – um sonho confuso no qual, confessa, havia
“um pouco ou muito de literatura”. Agora, porém,
“Podaram-se as árvores e verificou-se que a Avenida não tinha mistério nenhum. Era uma
rua como as outras, com os mesmos sobradinhos e as mesmas casinhas térreas das
outras, apenas com um espaço maior entre uma e outra fileira de casinhas e sobradinhos.
E mesmo essa particularidade não é sua, é de todas as avenidas de Belo Horizonte. E aí
temos uma Gioconda sem mistério, ou sem sorriso, o que é a mesma coisa.
... O sorriso desencantado da avenida Afonso Pena era, não sei bem se as suas árvores
ou se a miserável arquitetura que essas árvores escondiam” 19.
Assim, ao mesmo tempo que iam dando contornos à noção do ser e do viver modernos,
e, por que não dizer, do próprio moderno, os cronistas iam inscrevendo em seus textos o
modo como percebiam a realização desse moderno no cotidiano da cidade.
Nascem daí outras imagens da capital mineira, nas quais os elementos/emblemas que
caracterizariam a cidade moderna pareciam dados mas, era como se não funcionassem,
como se estivessem totalmente descompassados. É interessante nesse sentido
contrastar essa impressão do poeta com a imagem criada a partir da descrição feita pelo
engenheiro responsável pela planta da cidade.
Essas interpretações e representações seriam fruto de um discurso construído a base de
modelos e da oposição. Se o ser moderno estava identificado com um modelo/imagem
definido, tudo o que aí não se enquadrasse, na mesma e exata medida, era provinciano.
Este aspecto é explorado por um trabalho que busca examinar a construção da idéia do
“ser moderno” para a geração dos literatos mineiros da década de vinte. Não era a
simples presença de elementos, de práticas ou de experiências assim considerados que
iriam definir a capital como uma cidade moderna. Conforme aponta a autora, esses
cronistas não se satisfaziam com qualquer tipo de comportamento ou acontecimento que
se auto-intitulasse culto ou civilizado, mas, apenas com certos modelos que deviam ser
seguidos:
“Não querem um footing qualquer pelas ruas da cidade. ... Não basta existirem as salas
de exibição, ou se inaugurarem cada vez mais cinemas. Tem que ser da forma como
imaginam” 20.
A mesma análise pode ser feita a partir de uma enquete realizada pelo Correio Mineiro,
nos primeiros anos da década de trinta, na qual se perguntava a diversas personalidades
da capital “o que falta a Belo Horizonte para ser uma grande cidade?”. Alguns dos
entrevistados fariam uma avaliação bastante próxima da mencionada acima: os
equipamentos – cafés, cinemas, teatros, grandes avenidas – existiam, mas nunca como o
sonho ou o modelo do moderno fazia parecer deveram ser21.
E se há ambigüidade de imagens, há ainda cronistas ambíguos, como o próprio
Drummond, que desejam, ao mesmo tempo que lamentam, as aquisições/perdas desse
viver moderno. Aqui, ao invés do contentamento pela realização de um desejo, revela-se
um certo desencanto com aquilo que foi sendo suprimido pelo modo de ser moderno, de
viver, de fruir essa cidade e as relações que ela propiciava. Transparece em muitas de
suas crônicas um sentimento saudosista, pelos costumes e hábitos pedidos, pelas
práticas que vão sendo esquecidas e suplantadas, expulsas da vida da cidade pelas
conquistas desse “novo tempo”:
“Habitantes da Cachoeirinha protestam contra as serenatas que o amor infeliz realiza ali
todas as noites. A Cachoeirinha moderniza-se. Antigamente, eram os bairros
aristocráticos que se queixavam dessa praga noturna, resíduo de velhos costumes
sertanejos atuando na alma nova da cidade. Hoje são os bairros remotos, onde o traço
urbano se confunde com a linha rural, que já não suportam os ais do amor não retribuído,
os suspiros da ausência, os queixumes da ingratidão. O amor, banido do perímetro
urbano, é repudiado, agora, no próprio subúrbio humilde, em que moram os operários, os
pequenos empregados, os guardas-civis - a última gente que ainda amava no mundo, em
suma.
...Evidentemente o homem normal, bem comido, bem vestido, bem penteado e bem
amado, não faz serenatas. Mas os tímidos, os traídos, os ciumentos, os dolorosos, esses
não encontram o sono na cama inimiga ... vão para a rua, vão para o luar ...
A polícia tangeo-os das ruas do centro, as ruas do arrabalde não os querem, não há lugar
para eles na cidade. Será o amor, hoje em dia, uma doença ruim?”22
Em outras crônicas do mesmo período, é possível rastrear outros costumes e
experiências que eram associadas a um viver provinciano - a partir de certos modelos
definidores do moderno defendidos por alguns literatos - que causariam profundo pesar
ao cronista à medida em que íam desaparecendo do mundo urbano:
“As posturas municipais, sacrificando o pitoresco em benefício da segurança pública,
proibiram o judas, como proibiram os balões coloridos da noite de São João. Belo
Horizonte hoje é uma capital como as outras, com as suas noites de junho e os seus
sábados de aleluia desprovidos dessa matéria-prima de poesia, demasiado explosiva
talvez, mas por isso mesmo mais humana, porque há sempre uma porção de dinamite
esperando estourar, dentro de nossa pobre alma urbana e civilizada.”23
Os sentimentos de perda, exclusão, disciplina e ordem ressurgiam nessas falas
imprimindo aquele acento negativo ao sentido tomado pela noção e pela experiência do
moderno. E foi com esse mesmo acento que seriam retomados e explorados pelos
estudos realizados sobre a capital mineira.

Algumas considerações
De olhos diversos surgiram imagens destoantes da cidade, que foram, algumas, se
enraizando, se realimentando no cotidiano e no imaginário da nova capital. Outras,
durante certo período, permaneceram como que adormecidas, submersas, esmaecidas
em meio à torrente dominante do ideal de cosmopolitismo e modernidade. Não que
tivessem deixado de ser produzidas, porém, não seriam objeto de uma recuperação e
reafirmação dentro de um discurso que sempre buscou fixar a qualidade de moderna - e o
sentido positivo com o qual essa se revestiria - dessa nova cidade e que, pode-se dizer,
dominaria o imaginário de boa parte de seus cidadãos durante anos.
Estas percepções distintas sobre a cidade seriam retomadas e evidenciadas a partir
destes estudos críticos. Foram seus autores que as exploraram de modo mais intenso,
dando voz àqueles que vivenciaram e sentiram esse novo viver moderno como perda e
exclusão.
A noção de que o moderno também traz perdas e negações não é apenas construção de
um determinado olhar historiográfico. O historiador seleciona entre seus materiais, frisa,
ressalta percepções e sentidos. Esses textos críticos vão privilegiar os testemunhos que
apontam para os problemas inscritos no moderno, vão dimensionar seu aspecto negativo.
Opera-se nessas abordagens um desvio de foco nas imagens que comumente se
perpetuava da capital, anteriormente exclusivamente dirigidas para o positivo - em
especial, pelo discurso oficial. Se o passado é um campo de possibilidades, como nos fala
Walter Benjamin, a tarefa do historiador é tentar recuperá-lo, explorá-lo nas suas
diferentes variantes. Mais que apenas descrever seus processos, é preciso buscar
entender e expor as tensões que o compõem.
Como se viu, o sentido negativo da palavra moderno já estava presente nos primeiros
textos sobre a cidade. Nesse sentido, ele não é apenas o produto de uma forma
determinada de abordagem, de uma leitura, de uma construção que seria invariavelmente
definida pelo próprio tempo daquele que examina o passado.
Assim, é interessante observar que a ambigüidade não parece ser fruto unicamente das
recuperações que se faz desse passado, ou dos discursos produzidos a respeito da
moderna capital mineira. A ambigüidade está nos próprios testemunhos, na própria
testemunha e, no limite, no próprio termo com o qual se buscou definir a cidade: o
moderno.

1
- Para uma discussão a respeito dessas associações ver: JULIÃO, Letícia. Belo Horizonte: intinerários
da cidade moderna (1891-1920). Belo Horizonte: UFMG, 1992.
2
- LIMA, Bernardino Augusto de. Pronunciamento ao Congresso Constituinte do Estado de Minas Gerais
de 1891, citado in JULIÃO, 1992.
3
- REGO, José Ricardo de Sá. Relatório apresentado à Assembléia Constituinte da Província de Minas
Gerais, 1851, citado in Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, Ano XXXIII, 1982.
4
- LIMA, Antônio Augusto de. Mensagem dirigida ao Congresso Constituinte Mineiro, citado in Revista do
Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, Ano XXXIII, 1982.
5
- Decreto n. 680, 17 dez 1893.
6
- Comissão Construtora, Ofício n.26, 23 de março de 1895
7
- Revista Geral dos Trabalhos, 1895.
10
- Revista Alterosa, Belo Horizonte, julho de 1940.
11
- A Capital. Belo Horizonte, 21 dez 1897.
12
CAMPOS, Paulo Mendes. Subir & descer a Rua da Bahia, in ANDRADE, Carlos Drummond. (org). Brasil,
terrra e alma: Minas Gerais. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1967, p59-61.
13
-Reflexo, no discurso sobre o urbano, do discurso positivo da ciência no século XIX.
14
A relação entre a “pré-escrita”, “prescrição” e “proscrição” que perpassam o espaço planejado da capital
mineira foi uma imagem trabalhada pelo Professor Michel Le Ven, em mesa redonda sobre Belo Hrizonte
realizada em abril de 1997 na PUC-MG. Sobre a capital de mineira ver: LE VEM, Michel Marie. Classes
sociais e poder político na formação espacial de Belo Horizonte (1893-1914).Belo Horizonte: UFMG,
1977.
15
- NEVES, Margarida de Souza. Uma escrita do tempo: memória, ordem e progresso nas crônicas
cariocas, in A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. CANDIDO, Antônio et
all. Campinas: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.
16
– Sobre ficcio e ficção ver: CANEVACCI, 1993, e SEGRE, C. Ficção, in: Einaudi. Lisboa: Imprensa
Oficial/Casa da Moeda, 1989. vol 17.
17
-ANDRADE, Carlos Drummond. Confissões de Minas. Rio de Janeiro, sd, p. 148.
18
- O baile sob o holofote, in: Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, Ano XXXV, 1984. Pp
47-48
19
- Avenida ao sol, in: Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, Ano XXXV, 1984. pp 52-53.
20
-ALVES DA SILVA, Regina Helena. A Cidade de Minas. Belo Horizonte: UFMG, 1991.
21
– Enquete realizada pelo jornal Correio Mineiro, durante o mês de junho do ano de 1933.
22
- O amor fugiu da cidade, in: Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, Ano XXXV, 1984.
pp.144-146.
23
- A música da cidade, in: Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, Ano XXXV, 1984.pp.
37-38.

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