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RESUMO
1
Seu Valmor é comerciante e proprietário da Confeitaria Blumenau, localizada na Rua São Francisco. O
intuito do grupo PET-Direito, ao entrevistar comerciantes da rua, foi captar qual a percepção que estes
têm acerca dos processos de revitalização que ocorrem no centro da cidade de Curitiba. A entrevista foi
realizada no dia 26/04/2013
2
FREITAG, Bárbara. A revitalização dos centros históricos das cidades brasileiras. In: Caderno CRH,
Salvador, n. 38, p. 115-126, jan./jun. 2003.
O próprio processo de revitalização urbana carrega em si estudos, pesquisa,
resgate ou ampliação da qualidade de vida de certas regiões, modificando e interferindo
na própria infraestrutura do local. Além disso, é preciso admitir que tal processo foi
responsável, em muitos centros históricos, a exemplo do Pelourinho3 baiano, por
impedir que bairros inteiros, ainda que tornados mercadorias para o turismo, deixassem
de existir - em nome de uma renovação que poria muita coisa abaixo e substituiria a
paisagem por uma coleção de enormes prédios, conformando o espaço e ditando por
quais frinchas poderia a luz passar.
Ademais, se há algo, sem sombra de dúvidas, benéfico proporcionado pela
noção de revitalização é a ressignificação da função do antigo e do novo, função do
diálogo com o passado4 presente e futuro, que ganha consciência de si. Promove, ainda,
a percepção da transformação, dos pontos negativos do que se prolonga e do que se vai,
prospectos e reflexão sobre a interação com o espaço.
Representa, assim, para muitos, tanto uma esperança saudosista5 quanto uma
esperança voltada para o futuro. Primeiro porque há uma insatisfação com o momento
do agora; insatisfação que se repete diante das mudanças contingentes e também das
artificiais. Segundo porque demonstra que há uma importância sendo dedicada a alguma
coisa. Esperança no futuro essa a de seu Valmor, agarrada à possibilidade de que algo
venha a ser o que um dia já foi, mesmo não sendo.
Afora isso, há que se mencionar os aspetos objetivos: melhorias na iluminação,
nas calçadas, na segurança, o embelezamento, a restauração e, em certa medida, uma
preservação física do patrimônio histórico - casarões, prédios antigos, estruturas
arquitetônicas que, não fosse esse olhar enquanto intervenção, estariam, como tantas
outras construções, a figurar entre o pó.
3
FREITAG, Bárbara. Obra citada, p. 9.
4
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. 10 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996, p.
224.
5
“O impulso nostálgico é um importante agente do ajuste à crise, é o seu emoliente social, reforçando a
identidade (...) quando a confiança se enfraquece ou é ameaçada”. In: ROSSI, A. Architecture and the
city. Cambridge, Massachesetts apud HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as
origens da mudança cultural. 15. ed. São Paulo: Loyola, 2006. p. 85
embora o mesmo destaque a fragilidade de sua organização, fato hoje contestado pela
recente historiografia que demonstra toda a complexa rede de vilas e cidades e, mais
que isso, uma intensa atividade urbanizadora (planejada).
Todas as organizações e instituições tinham sede na cidade que, apesar do
patriarcalismo da sociedade corporativa, encontrava, fundamentalmente no judiciário
um setor mais profissional e mais próximo de uma hierarquia burocrática moderna em
um mundo em que o favoritismo, nepotismo e venda de cargos era comum. Assim,
A cidade ibérica, com seus direitos e privilégios tradicionais, suas funções político-simbólicas e
seu amplo domínio sobre os recursos sociais e econômicos dos habitantes da região, era um
teatro de ações de toda a sociedade, e não apenas metade de uma dicotomia urbano-rural como
pode ter acontecido com mais freqüência no norte da Europa 6
Ou, como destaca Edmundo Zenha ao tratar do primeiro município a ser criado
no Brasil, a Vila de São Vicente em 1532,
[...] o município surgiu unicamente por disposição do Estado que, nos primeiros casos, no bojo
das naus, mandava tudo para o deserto americano: a população da vila, os animais domésticos, as
mudas de espécies cultiváveis e a organização municipal encadernada no livro I das Ordenações 7
Foi assim desde a sua origem, combatendo e derrotando as tentativas para ordená-la de outra
forma, algumas significativas. (…) Os vícios e as virtudes dessa cidade apontam a paternidade
ibérica e, particularmente, a portuguesa. O típico aglomerado medieval lusitano foi transplantado
para a banda oriental americana da linha de Tordesilhas.8
6
SCHWARTZ, Stuart B. & LOCHART, James. A América Latina na época colonial, p. 22.
7
ZENHA, Edmundo. O município no Brasil, 1532-1700. p. 23.
8
MARX, Murilo. Cidade brasileira. São Paulo: Edusp, 1980. p. 23-24.
A marca da cidade para o autor é a irregularidade. Ao longo do serpenteado das
construções se destacavam os edifícios públicos: Igrejas e prédio da Câmara e da
Cadeia, com importantes papéis na construção de uma cultura político-jurídica e mesmo
de uma vida urbana. No caso especificamente curitibano, o núcleo central era somente
religioso, pois faltava à vila um edifício para a Câmara.
Nessa cidade irregular a questão da divisão das terras era central e reforça a
existência de variadas soluções para a questão fundiária, destacada por Raquel Glezer:
9
GLEZER, Raquel. Chão de terra; e outros ensaios sobre São Paulo. p. 58.
10
Ver: NEGRÃO, Francisco. Boletim do Arquivo da Câmara de Curitiba. Curitiba: Imprensa Paranaense,
1927.
11
BOXER, Charles. Império marítimo colonial português. Lisboa: Edições 70, 1983.
12
Sobre o conceito ver: HESPANHA, António Manuel. Caleidoscópio do Antigo Regime. São Paulo:
Almedina, 2013.
Matriz que seria demolida ainda no século XVIII. O edifício da Câmara e da Cadeia é
do mesmo século.
Nesse período a então Rua do Fogo era uma das vias de acesso à pequena vila,
limitada geograficamente por banhados, em particular os dois que delimitavam o centro
da nova povoação (hoje Praça Santos Andrade e Praça Osório). O modelo de cidade
colonial, precário e numa região extremamente pobre, só foi alterado no século XIX e
em sua segunda metade.
Após o enriquecimento proporcionado pela erva mate, a cidade cresceu e se
modernizou, em um modelo conservador que mudou o eixo urbano do religioso
(composto pela Matriz e pelas Igrejas do Rosário e de São Francisco – estas duas no
alto da Rua São Francisco) para o mercantil (que englobava a Rua XV, Marechal, Praça
Tiradentes e Riachuelo).13
A modernização conservadora da virada do século XIX para o XX remodelou o
centro e pôs abaixo as edificações coloniais, substituídas pelos casarões ecléticos da
burguesia ervateira e dos comerciantes. A Rua São Francisco ganhou um intenso
comércio, que, apesar de sua centralidade, curiosamente ficou à margem das renovações
que aconteceram no século XX - seja a realizada por Cândido de Abreu, prefeito ainda
nos anos 20 do século passado, o plano Agache (1942) ou mesmo as alterações neo-
paranistas de Rafael Greca, a partir da década de 1970.
Por conta dessa negligência, a rua se transformou em um local de moradias
populares, no início da segunda metade do século XX, tornando-se famosa, sobretudo,
pela aglomeração de prostitutas e pela balbúrdia que se estendia para as ruas adjacentes:
Rua do Fogo - assim ficou conhecida a Rua São Francisco durante quase três décadas.
Justificada em seu apelido, em 1853 a pequena rua curiosamente figurava entre as
principais vias curitibanas. Apartada dos projetos urbanísticos e sem receber qualquer
atenção da municipalidade, no início do século XX a rua carecia de calçamento, o que
impossibilitava o tráfego nos dias de chuva devido à lamaceira e aos buracos que se
formavam. Nesta mesma época, contudo, outras áreas eram alvos de constantes
melhorias, como a rua XV de Novembro, que foi pavimentada e recebeu iluminação
elétrica, e a Praça Tiradentes, que ganhou calçamento.
Foram várias as denominações da rua. Deixou de ser do Fogo, tendo sido
também Rua do Hospício e Rua do Terço. Em 1868 recebeu o nome de Rua Riachuelo,
13
Ver: PEREIRA, Luís Fernando Lopes. O espetáculo dos maquinismos modernos. São Paulo: Blucher,
2009.
e em 1871, por deliberação da Câmara, tornou-se Rua São Francisco. Em 1918, em
virtude da lei 505, recebeu o nome de Claudino dos Santos, uma homenagem ao
prefeito de Curitiba de 1916. A reportagem “A Rua do Fogo”, publicada no jornal
Gazeta do Povo em 19 de março de 189814, associa as mudanças de nome à tentativa de
“moralizar” o local, que com suas brigas e discussões poluía a área respeitável lotada
de moradias dos arredores.
Com a pressão da câmara e a influência dos políticos, passou aquela rua, oficialmente, a chamar-
se Rua de São Francisco, em homenagem ao das Chagas, visto que a Ordem Terceira instalada
no Largo propunha certo respeito. Ficou portanto a rua pertencendo ao Santo que procedeu a
uma reforma geral no sentido da moralidade, o que era exigido pelos ínclitos cidadãos de
Curitiba. Não conseguiu saneá-la de todo, a despeito does esforços dirigidos. Mas manteve-se ali
politicamente circunspecto, antevendo êxito administrativo em face da aproximação do
progresso.15
14
Informações obtidas em materiais coletados na pasta temática da Casa da Memória de Curitiba.
15
HOERNER JR, 1989 (completar referência).
16
Materiais obtidos na pasta temática da Casa da Memória de Curitiba.
imigrantes voltavam às suas colônias, não sem antes se abastecerem de secos e
molhados, ferragens e outros utensílios.
Até pouco tempo atrás, quem parasse próximo ao número 171 podia encontrar
uma antiga argola, presa ao meio fio, como uma sobrevivente “da época em que se
amarravam cavalos na calçada”, contam antigos moradores. Com o início do processo
de revitalização da rua, muita atenção foi dada a argolinha e à expectativa quanto ao seu
destino: removida durante as obras, ao que tudo indica, encontra-se guardada em um
cofre do Ipuc.
- eixo histórico/arquitetônico/turístico;
- eixo gastronômico;
- eixo de serviços/especializados; e
- eixo conceitual17
17
SEBRAE. Paço Municipal em Curitiba. Disponível em:
<http://app.pr.sebrae.com.br/portalsetor/Conteudo.do?conteudo=1202&nivel=550&portal=20om>
Por outro lado, no sentido propriamente objetivo, podemos resumir a
revitalização da rua a uma reforma das calçadas e da iluminação, em parte restauradas
para manutenção de aspectos originais e do incentivo à pintura das fachadas dos
edifícios comerciais. Somou-se a isso, a proibição de carros estacionados em trechos da
rua. É o que ressaltam testemunhos:
A reforma da São Francisco começou em maio deste ano e contempla iluminação pública com
postes e arandelas fixadas nas fachadas, preservando as características da região. Parte da
calçada histórica, feita de grandes blocos de basalto negro, será preservada, assim como
aconteceu na Riachuelo, via pública vizinha à São Francisco, que também passou por
revitalização. 18
Da mesma forma que já foi revitalizada a Rua Riachuelo, agora a São Francisco receberá
alargamento das calçadas de 2 metros para 3,5 metros, privilegiando o comércio local. Também
no centro, a Rua Carlos de Carvalho terá um visual mais limpo, com parte dos cabos transferidos
para o subsolo e uma redução naqueles que continuarão aéreos. Calçadas mais largas estão
previstas no local para permitir que comerciantes do ramo de gastronomia coloquem sobre elas
mesas e cadeiras.19
Nos últimos anos, foram realizados trabalhos semelhantes na Rua Riachuelo e na Rua São
Francisco, onde, além da pintura das fachadas e do atendimento aos empresários, o Ippuc
promoveu a melhoria das calçadas, meio fio, iluminação, tubulação para dados de telefonia, TV
e conectividade, instalação de câmeras de segurança e orientações aos comerciantes para a
despoluição visual do lugar.20
Ainda que pesem as observações acerca das motivações e das medidas que
incidem sobre os bons imóveis históricos, como qualquer obra que se torna objeto de
publicidade, os discursos a seu respeito trazem pretensões muito mais complexas. As
revitalizações em geral, e a revitalização da Rua São Francisco especificamente, trazem
em seus anúncios, como justificativa cultural, o resgate da memória da cidade, a
valorização de seus centros históricos e o “embelezamento” do espaço.
18
REVISTA PEQUENAS EMPRASAS & GRANDES NEGÓCIOS, Curitiba, 20 dez.2012.
Revitalização de rua em Curitiba incentiva comércio local. Disponível em:
http://revistapegn.globo.com/Revista/Common/0,,EMI327216-17180,00.html.
19
PARANÁ ONLINE, Curitiba, 21 jun. 2012. Ruas comerciais de Curitiba ganharão Revitalização.
Disponível em: http://www.parana-
online.com.br/editoria/cidades/news/616693/?noticia=RUAS+COMERCIAIS+DE+CURITIBA+GANH
ARAO+REVITALIZACAO.
20
PREFEITURA DE CURITIBA, 20 dez. 2012. Luciano Ducci resgata a memória de Curitiba com a
renovação da São Francisco. Disponível em: http://www.curitiba.pr.gov.br/noticias/luciano-ducci-
resgata-a-memoria-de-curitiba-com-a-renovacao-da-sao-francisco/28206.
Segundo o então Prefeito de Curitiba, em matéria intitulada Luciano Ducci
resgata a memória de Curitiba com a renovação da São Francisco, da comunicação da
Prefeitura:
As obras na rua São Francisco são a continuidade do programa Novo Centro, que desde 2005
vem transformando a região central/histórica da cidade com o restauro de antigos prédios como o
Paço Municipal, Catedral Basílica de Curitiba, Praça Tiradentes e a vizinha da São Francisco, a
rua Riachuelo. Nesse período a Prefeitura também melhorou a iluminação das ruas, instalou
câmeras de monitoramento entre outras medidas.21
Estamos buscando uma forma de criar mais atrativos para o Centro‟, comenta o arquiteto. De
acordo com ele, as calçadas foram melhoradas e os paralelepípedos foram preservados. Além
disso, uma nova pintura foi feita e a iluminação foi reforçada. Dois trechos da rua contarão com
tapumes conceituais, que resgatam a história do local e têm o propósito de oferecer mais
segurança, já que um deles isolará um terreno baldio. 22
21
PREFEITURA DE CURITIBA, 20 dez. 2012. Luciano Ducci resgata a memória de Curitiba com a
renovação da São Francisco. Disponível em: http://www.curitiba.pr.gov.br/noticias/luciano-ducci-
resgata-a-memoria-de-curitiba-com-a-renovacao-da-sao-francisco/28206.
22
GAZETA DO POVO, Curitiba, 20 dez. 2012. Rua São Francisco ganha nova cara após 4 meses.
Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1329453&tit=Rua-
Sao-Francisco-ganha-nova-cara-apos-4-meses.
23
REVISTA PEQUENAS EMPRASAS & GRANDES NEGÓCIOS, Curitiba, 20 dez.2012.
Revitalização de rua em Curitiba incentiva comércio local. Disponível em:
http://revistapegn.globo.com/Revista/Common/0,,EMI327216-17180,00.html
Trata-se de uma reforma estética - fachada nova e higienização do espaço.
Oficialmente, no entanto, se trabalha com a ideia de um projeto que valoriza o passado
da cidade e preserva sua memória, sendo, ao mesmo tempo, capaz de fortalecer a
segurança pública e o desenvolvimento local. O elemento fundamental que faz com que
as medidas objetivas tornem parcialmente eficaz a pretensão do projeto é o marketing.
A recuperação destes centros para a ampliação de espaços públicos qualificados
é correlata a projetos turísticos que trabalham com a nova divina trindade do mercado
de cidades: a cultura, entretenimento e gastronomia. As características históricas de
antigos centros são assim apropriadas (parcialmente) para a construção de uma imagem
da cidade que contribua para a alavancagem econômica, como estratégia de marketing
para atrair investidores e turistas. Por um lado, a reforma faz da região um local não
apenas frequentável, mas consumível. Por outro, a revitalização tomada em seu sentido
de obra do poder público serve bem às check lists de fim de mandatos.
A questão, entretanto, que mais nos importa é que, para além da consecução de
interesses econômicos, o projeto é extremamente eficiente quanto à sua percepção
social. Os espaços revitalizados (higienizados ou elitizados) operam de fato uma
ressignificação do espaço por meio de um upgrade cultural, que encontra ressonância na
opinião pública local, a qual sente sua identidade pátrio-citadina reafirmada.
Trata-se de uma eficácia parcial, ou seja, não há verdadeiramente uma
recuperação das memórias ou a valorização da história local, mas sim a fabricação de
uma imagem que preenche o local da memória e da história na forma de um pastiche.24
O problema reside nesta operação de substituição, pois ela empobrece a realidade e
consolida falsos consensos sobre os aspectos urbanos e históricos a serem valorizados
dentro de um quadro de disputa pela memória social.
A política de revitalização da Rua São Francisco pode ser anunciada, sobre certo
aspecto, como uma política de preservação do patrimônio coletivo. A ideia de
patrimônio, como obra, prática, ou meio-ambiente destacado a partir de sua importância
para conformação da identidade de um grupo social; traz em si a indissociabilidade
entre a cultura e sua construção social. Este pressuposto exige que a identificação dos
bens ou práticas que compõem o patrimônio histórico e cultural atente para a construção
da memória social da comunidade, na qual o patrimônio se encontra e pela qual, muitas
vezes, é preservado.
24
“uma colagem fragmentária (...) da realidade, estilhaços de experiência enriquecidos por referências
históricas”. In: HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna. p. 83
No caso da São Francisco, observamos, ao contrário de tal pressuposto, a
apropriação do fator histórico de forma instrumental. Não há, de fato, política de
recuperação da história e da memória social que torne inteligível o valor do patrimônio,
o porquê deste ser considerado como tal. A revitalização passa a ser, assim, adequada
para conformação de novos espaços da cidade voltados para um novo público e novos
consumidores. Tudo se dá por meio de uma operação em que o sentido histórico do
espaço é reduzido à justificativa panfletária de ações público-privadas voltadas para a
qualificação e valorização de regiões centrais da cidade.
Magnabosco [arquiteto do projeto] explica que a prospecção resgata a cor original dos imóveis,
mas o estudo que está sendo feito estabelece as cores para cada unidade não apenas com base na
prospecção. "A gente leva em consideração as prospecções para a definição das cores para cada
imóvel porque este é o retrato de uma época, são as cores de uma época", diz o arquiteto do
IPPUC ao explicar que o estudo procurou buscar a originalidade das cores. "Mas a prospecção é
apenas norteadora, é uma referência", completa. O trabalho feito até agora indicou cores como o
cinza, tons de amarelo, verde, uva, entre outras [...] As mudanças nas fachadas favorecem o
movimento já iniciado pelos lojistas nas melhorias de seus próprios negócios, seja na estrutura da
25
MENEZES, José N.C. A patrimonialização da vida: vivências, memória social e interpretação do
patrimônio cultural. In: BRUSADIN, Leandro Benedinii; COSTA, Evaristo Batista; PIRES, Maria do
Carmo (ORG.). Valor patrimonial e turismo: limiar entre história, território e poder. p. 26.
loja, no atendimento, como também na gestão de seus negócios", explica a consultora do
26
Sebrae/PR e gestora do projeto, Walderes Bello.
A política cultural é, de fato, o álibi com o qual se fabrica o espelho que reflete o próprio poder
[...]. Completados por imagens-síntese da historia de cada grupo étnico, reinterpretados sob o
prisma oficial, aos turistas e cidadãos é oferecida uma visão simplificada, uma experiência
depurada, que substitui as indisciplinadas complexidades da cidade pela celebração da ordem
existente.29
26
AGENCIA SEBRAE DE NOTÍCIAS, 16 mar. 2010. Rua comercial de Curitiba ganha novas cores.
Disponível em <http://www.agenciasebrae.com.br/noticia.kmf?canal=0&cod=9666302&indice=0>.
27
BAND NEWS FM, Curitiba, 15 mai. 2013. Fachadas do centro histórico da capital serão revitalizadas
– entrevista com Mauro Magnabosco. Disponível em
<http://bandnewsfmcuritiba.com/2013/05/15/fachadas-do-centro-historico-da-capital-vao-ser-
revitalizadas/>
28
“O flanêur encontra-se ainda no limiar tanto da grande cidade quanto da classe burguesa. Nenhuma
delas ainda o subjulgou”. BENJAMIN, Walter. Paris, a capital do século XIX. Exposé de 1935. p. 47.
29
SÁNCHEZ, Fernanda. A Reinvenção das Cidades para um Mercado Mundial. p. 536.
do passado, remetendo-nos a um tempo histórico sobre o qual a única característica que
captamos é seu caráter pretérito. O patrimônio, nesta configuração, se esgota em objetos
antigos que, por sua oficialização como patrimônio, devemos preservar. Trata-se de uma
tautologia.
Ainda, de acordo com a urbanista e professora Otília Arantes, podemos concluir
que a identidade que se busca afirmar é indiferente em relação ao conteúdo sobre o qual
se assenta. “Assim, numa situação como essa, nada se expõe além da própria
exposição”30 Contudo, se padecemos de uma história superficial e sem conteúdo, a nova
imagem da rua traz elementos afirmativos e atribuidores de certo sentido. Define-se a
personalidade da Rua São Francisco, que segundo uma tradição forjada com a reforma,
sempre teve vocação gastronômica. Conforme cobertura da Revista digital Bem
Público:
O prefeito de Curitiba, Luciano Ducci, que descerrou a faixa da „nova‟ Rua São Francisco,
destacou a importância das parcerias. “O centro de Curitiba foi o centro que mais cresceu no
Brasil, nos últimos anos. Com a revitalização, está mais agradável e seguro trazendo público para
o local e isso só aconteceu devido à parceria firmada entre poder público e entidades, como o
Sebrae/PR, Sistema Fecomércio, e iniciativa privada (...).Durante o processo de reforma da São
Francisco, que, de acordo com a proposta de revitalização, tem potencial para se transformar em
um eixo gastronômico, o Sebrae/PR, em parceria com a Rede Empresarial do Centro Histórico,
trabalhou com cada uma das empresas da região por meio de consultorias que orientaram desde a
gestão financeira até o atendimento aos clientes e manipulação de alimentos.31
30
ARANTES, Otília; MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos. A Cidade do Pensamento Único.
Desmanchando conceitos. p. 62.
31
REVISTA BEM PÚBLICO, Curitiba, 24 dez. 2012. Revitalização no centro de Curitiba promove
desenvolvimento. Disponível em
<http://www.bempublico.com.br/materias/materiaVer.php?materiaID=6086#sthash.zZt97v91.dpuf>
Acesso em 19 de jun. 2013.
Os processos de Revitalização incidem sobre uma pequena parte da cidade, mas
seus efeitos são generalizantes. Toma-se a parte pelo todo e as pontuais partes
reformadas se apresentam como representantes da totalidade da cidade modelar e
moderna. A categoria de “imagem-síntese” apresentada por Fernanda Sanchez esclarece
o alcance dos projetos de gentrificação32:
32
A palavra tem origem no termo inglês gentry (classes abastadas) e expressa o movimento de retorno
das camadas afluentes ao centro requalificado das cidades. Neste sentido ver: ARANTES, Otília;
MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos. A Cidade do Pensamento Único. Desmanchando conceitos. 3.
ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. p. 30-32.
33
SÁNCHEZ, Fernanda. A Reinvenção das Cidades para um Mercado Mundial. p. 209.
4. ENCAMINHAMENTOS PANORÂMICOS
34
OLIVEIRA, Dennison de. Curitiba e o mito da cidade modelo. Curitiba, Editora da UFPR, 2000. p. 37.
movimento de revezamento das elites administrativas da iniciativa privada em seus
postos e na direção das agências públicas.35
Algumas práticas de reestruturação das cidades são eleitas como adequadas,
como as mais certeiras, baseadas num conhecimento pretensamente técnico, difundido
por periódicos e publicações de especialistas na área de urbanismo. Conhecimento este
que visa à adequação das cidades à economia do capitalismo globalizado. Esse modelo é
também cristalizado através da entrega de prêmios internacionais referentes à gestão
urbana, de modo a conferir um status de reconhecimento internacional. Assim, um
padrão homogêneo de cidade é criado, baseado em cidades totalmente diferentes - como
Curitiba e Barcelona, casos emblemáticos estudados por Fernanda Sánchez.36 – que
modificaram sua lógica urbana a partir do conhecimento técnico (baseado na autoridade
desses especialistas, cujo legitimidade é conferida pelas agências de renome
internacional da qual fazem parte: Banco Mundial, ONU, entre outras) a fim de se
inserir em uma lógica competitiva e, consequentemente, atrair mais investimentos.
Há, portanto, uma contínua transformação da cidade em mercadoria.37 Seus
espaços são mercantilizados e os cidadãos são valorizados na exata medida em que
possam consumi-lo. Surge uma perspectiva de compra e venda no espaço mundial, pois
as cidades passam a ser geridas como mercadorias que estão à venda em um mercado
internacional e globalizado. Vence quem tiver a infraestrutura mais adequada aos
interesses dos grandes empresários:
Nos anos recentes, em particular, parece haver um consenso geral emergindo em todo o mundo
capitalista avançado: os benefícios positivos são obtidos pelas cidades que adotam uma postura
empreendedora em relação ao desenvolvimento econômico. Digno de nota é que esse consenso,
aparentemente, difunde-se nas fronteiras nacionais e mesmo nos partidos políticos e nas
ideologias.38
35
OLIVEIRA, Dennison de. Obra citada, p. 39.
36
SANCHÉZ, Fernanda. Obra citada.
37
ARANTES, Otília; MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos. A Cidade do Pensamento Único. Desmanchando
conceitos. p. 78.
38
HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. 8ª ed. São Paulo: Annablume, 2006. p. 165.
Neste movimento, não são apenas fragmentos do espaço urbano que entram nos fluxos
mercantis, incorporados de acordo com interesses locacionais específicos e respectivas
estratégias de acumulação de empreendedores imobiliários, agentes empresariais multinacionais
ou empresários do turismo. São as cidades que passam a ser “vendidas” dentro das políticas do
Estado que, no atual estágio do regime de acumulação capitalista, procura cumprir com uma
agenda estratégica de transformações exigidas para a inserção econômica das cidades nos fluxos
globais. Neste contexto, não basta renovar as cidades, é preciso vendê-las e, ao fazê-lo, vende-se
a imagem da cidade renovada.39
39
HARVEY, David. Obra citada, p. 50.
40
ARANTES, Otília; MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos. A Cidade do Pensamento Único. Desmanchando
conceitos.
de mundo que justifica e permite a realização das necessidades impostas pelo estágio atual da
produção, aquele que se refere à construção do mercado mundial e do espaço mundial. “Sob a
égide da globalização, transformada em paradigma de entendimento do mundo moderno,
constrói-se um discurso que a justifica e que está na base de sua sustentação.41
Dessa forma, percebe-se uma clara apropriação privada das imagens urbanas produzidas a partir
da esfera pública. Nessa apropriação, o espaço é incorporado como “valor agregado” ao produto
ou serviço. Claro está que se trata de uma valorização subjetiva, porém, tecnicamente agregada
41
SÁNCHEZ, Fernanda. Obra citada, p. 149.
42
SÁNCHEZ, Fernanda. Obra citada, p. 269.
àquilo que se deseja colocar em circulação no mercado. Produto e cidade são vendidos juntos,
mutuamente referenciados e fortalecidos em suas estratégias promocionais. Alguns exemplos
dessa relação produto-cidade, para o caso de Curitiba são: um novo serviço de telecomunicações
que é lançado como “serviço de Primeiro Mundo” para a “Capital de Primeiro Mundo”, um
condomínio residencial de alto padrão, o “Alphaville”, promovido por meio de seus atributos
ecológicos – “venha viver num condomínio verde na Capital Ecológica”, um novo “shopping
cultural”, o “Estação Plaza”, é apresentado como equipamento essencial para a “Capital da
qualidade de vida”, também citada como a cidade onde se realizam os testes de mercado.43
- produção de espaços residenciais de alto padrão associada à oferta de bens e serviços de topo
de mercado, destinadas aos quadros executivos das empresas e aos segmentos sociais
emergentes, gestores da modernização. Esses espaços se expressam mediante a crescente
segregação/distinção espacial desses segmentos e mediante processos de “gentrificação” das
chamadas áreas de renovação urbana; que são a própria condensação dos novos valores
culturais junto à economia de mercado, repetição em série de modelos tidos como bem
sucedidos;
- criação de novas centralidades através de construção de rede hoteleira de luxo e espaços
seletivos de lazer e consumo, como shopping-centers, centros culturais e de lazer;
- renovação de áreas centrais, “revitalização de áreas degradadas”, recuperação de frentes
marítimas e áreas portuárias, investimento em espaços públicos tornados emblemas da
modernização (sem grifos no original).44
Assim sendo, não interessam ao mercado espaços degradados, que não gerem
acumulação e não incentivem o turismo e a circulação de bens e pessoas. Isto é, torna-se
necessária e incontornável uma constante renovação e reinvenção para que se incentive
o comércio. Os espaços que são degradados, por conseguinte, devem ser reapropriados
43
SÁNCHEZ, Fernanda. Obra citada, p. 205.
44
SÁNCHEZ, Fernanda. Obra citada, p. 61-62.
pelo mercado através de operações urbanas que lhes confira constantemente novo valor
econômico e simbólico, devem ser revitalizados.
[...] se os setores informais têm uma inserção política significativa no conjunto do sistema de
poder local, eles buscarão, no mínimo, exercer o poder de veto sobre determinadas iniciativas de
reforma urbana, ou no limite, até inviabilizar a institucionalização de qualquer processo de
planejamento urbano. Inversamente, a imposição de uma prática urbanística consistente e dotada
de significativos recursos de imposição de suas propostas desarticula, expulsa ou elimina a
economia informal da malha urbana, no todo ou em parte. Concluindo, pelo menos sob o atual
45
SÁNCHEZ, Fernanda. Obra citada, p. 62.
46
FREITAG (completar)
paradigma do planejamento urbano dominante, o urbanismo e a economia informal são
realidades antagônicas e destinadas à confrontação permanente e incansável.47
47
OLVEIRA, Dennison de. Obra citada, p. 112-113.
48
SÁNCHEZ, Fernanda. Obra citada, p. 334.
relevância de uma liderança forte cuja posição deve ser alienada de disputas
partidárias49, o que, novamente, é um elemento de garantia de que na transferência de
governos não haverá mudanças políticas bruscas e os investimentos privados serão
assegurados por uma forma de gestão da cidade, em última análise, feita pelos próprios
empresários.
São as camadas médias que, em geral, podem utilizar os novos espaços de
consumo da cidade. Há uma procura muito intensa por locais de espetáculo e de
prestação de bens de serviços. É como se a criação dos novos ambientes convergisse
com os interesses de consumo das classes médias, pois eles são feitos propriamente para
atingirem esse fim. É nessa mesma corrente que as cidades acabam se tornando sujeitos
dotados de uma racionalidade própria do setor empresarial e para seu desenvolvimento
contam com o sentimento dos cidadãos de pertencimento à cidade, construído de forma
vertical, levando-se em consideração o sentimento ufanista e a sensação de viver num
meio privilegiado. A partir disso, ficam claros os mecanismos de controle social pela
criação de uma imagem de consenso social.
A venda da cidade, como se pode imaginar, é feita para certa variedade de
consumidores, porém, essa variedade é limitada àqueles que possam pagar por ela. Há
uma forte conotação elitista na venda da cidade, pois ela é vendida ao capital
internacional e ela quer atrair visitantes e usuários que estejam à altura de seus produtos.
Não é suficiente, porém, transformar a cidade em mercadoria, é preciso ir além,
mantendo-a atraente ao capital para poder desenvolver toda a sua potencialidade
empresarial. Nesse sentido, fica evidente a necessidade de competição entre essas
cidades para a atração de maior quantidade de capital.
A cidade-empresa se apresenta como condição para que seu planejamento
estratégico empresarial seja transplantado para a esfera da administração pública.
Exemplo claro disso foi a transformação das cidades europeias em uma espécie de
multinacional europeia. Para que essas cidades possuam êxito, elas precisam
desenvolver um programa capaz de prevenir a improvisação, não se admite que elas não
sejam planejadas e se desenvolvam espontaneamente.50
As políticas urbanísticas escondem por trás de si mesmas, ainda, um intenso
conteúdo preconceituoso e racista, apesar de o multiculturalismo ser um valor exaltado
na promoção da imagem da cidade. Muitas vezes, o discurso oficial associa o sucesso
49
ARANTES, Otília; MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos. Obra citada, p. 96.
50
ARANTES, Otília; MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos. Obra citada, p. 85.
dos projetos urbanos de Curitiba aos cidadãos que respondem adequadamente a eles,
por condições sociais e culturais/étnicas, ou seja, é graças aos cidadãos que se torna
possível a realização do progresso da cidade. Nesse sentido: “Ao tecer sua crítica à
cidade-vitrine desvenda a mensagem subliminar do „modelo Curitiba‟: „assim deverá ser
o Brasil urbano, no dia em que se embranqueça e se civilize, no dia em que se torne rico
e ordeiro‟”51
Essa visão preconceituosa encontra raízes nas políticas urbanas implementadas
em Curitiba e especialmente na execução do plano diretor da cidade pelas elites
planejadoras e administradoras da época. Dennison de Oliveira, ao analisar a segunda
gestão Jaime Lerner, destaca a importância dada à política de reciclagem dos espaços
tradicionais da cidade, pela sua conversão em salas de espetáculos, centros comunitários
e outros espaços culturais.52 O objetivo, segundo o autor, era promover a integração do
homem à cidade, fazer com que os cidadãos tivessem orgulho da cidade onde moravam.
No entanto, haveria nesse processo uma faceta étnica:
Não é preciso muito esforço para se perceber que o essencial da política de patrimônio histórico
e de promoção de atividades culturais se remetia recorrentemente a uma parte específica da
memória e da cultura imigrante. Essa parte era aquela de origem europeia, notadamente daquela
onde se originou a elite dirigente do período (...). Cabe destacar que esse esforço de celebração
dos valores das etnias mencionadas continua rendendo lucros, haja vista a sua importância na
veiculação da imagem da cidade como “europeia”, de “primeiro mundo”, etc. 53
A ocupação urbana empreendida pelos migrantes europeus teria sido saudável, pois teria
propiciado, segundo o PPU, „um desenvolvimento relativamente contínuo, centrífugo e
homogêneo‟ (PMC, 1965, p. 81); e teria, ainda, limitado a „especulação terrenista‟, o
„parcelamento em lotes‟ e os loteamentos clandestinos, resultado de uma recente „migração de
nacionais‟. Uma ocupação urbana racional por uma população saudável teria feito de Curitiba,
até pouco tempo, uma cidade orgânica. O planejamento deveria pautar-se pela recuperação dessa
condição de equilíbrio propiciada pelos colonizadores portugueses e imigrantes estrangeiros. 54
51
SÁNCHEZ, Fernanda. Obra citada, p. 466.
52
OLIVEIRA, Dennison de. Obra citada, p. 47-59.
53
SÁNCHEZ, Fernanda. Obra citada, p. 56.
54
SOUZA, Nelson Rosário de. Planejamento urbano de Curitiba: saber técnico, classificação dos citadinos
e partilha da cidade.
Ademais, concretiza-se uma espécie de reserva do “sujo” para as periferias,
porque, explica Fernanda Sánchez:
Os espaços renovados são vendidos como espaços “seguros”, que vêm restabelecer a ordem, a
civilidade, como contra-face das áreas estigmatizadas como “decadentes”. [...] As periferias
amontoam o mal-estar. Territórios em crise, espaços anônimos, distanciados dos benefícios da
modernização, neles se encontram as populações que circulam pelas zonas de vulnerabilidade –
onde se associam a precariedade econômica, a precariedade das condições de urbanização, a
fragilidade relacional e o isolamento social, intensificadas pela flexibilização das relações de
trabalho e pela ruptura das formas anteriores de inserção social, restando-lhes, porém, a inserção
perversa no mundo do espetáculo.55
55
SÁNCHEZ, Fernanda. Obra citada, p. 470-471.
56
SÁNCHEZ, Fernanda. Obra citada, p. 495.
57
SÁNCHEZ, Fernanda. Obra citada, p. 535.
consolidando mais uma forma seletiva de dividir a cidade. Ocorre a privatização da vida
cotidiana, que é coordenada pelas pautas da agenda dos empresários e investidores. É o
poder deles que assume maior importância e que indica qual deve ser a atuação do
próprio poder Público, pois o novo paradigma é ter como horizonte o mercado.
A rua são Francisco enquadra-se em diversos aspectos dessa perspectiva de
resgate de valores e memórias hipotéticas, que, em verdade, não fazem parte de sua
história. As políticas de preservação e valorização da memória social devem levar em
conta os atores que conformam a própria história. Os imóveis revitalizados devem
agregar sentido histórico para o habitante local: o significado social do espaço urbano
deve ser captado a partir destes sujeitos. Os processos de revitalização anulam a política
da história, elemento sem o qual, não podemos falar em história das ruas e das cidades,
que como bem aponta Henri Lefebvre, são talvez os melhores exemplos de obras
humanas e como tal, tem seus sentidos construídos por mulheres, homens, moradores,
trabalhadores e uma série de identidades locais que não se enquadram na história
fabricada pelas imagens-sínteses da oficialidade vencedora.
“Tem noites que sonho passar por lugares que não existem mais. Do
lado do Colégio Santa Maria, onde hoje é um banco, em meados de
1960, havia uma gráfica. Ainda ouço as máquinas. Ruínas de sons,
ruínas de lembrança. Era ali que a gente se reunia para discutir os
filmes do momento. Não admito viver em uma cidade artificial” 58
Paulo Leminski
Muitos se faz cabível trazer à vez, assim como começamos este artigo, o
significado da palavra “revitalização”, mas, agora, em outros termos - tal como já
ponderou Carlos Vainer, muitas discussões partem de um esteio equivocado que é o de
considerar sem vida as áreas “revitalizáveis”. Por óbvio, temos aqui que defender a
evidente e inventiva vitalidade que possuem esses centros ou locais que, em diversos
casos, são ocupados por segmentos de baixa renda. Não se pode omitir a falácia do
discurso de um projeto de revitalização que pretende anunciar e dizer qual o tipo de
“vitalidade” adequado, negando àqueles que são, muita vezes, os verdadeiros
responsáveis pela preservação do centro e por sua utilização de fato, a possibilidade de
58
LEMINSKI, Paulo. Ensaios e Anseios Crípticos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011, p. 171.
permanecer no local “revitalizado” e recuperado, ainda que para outros grupos que o
possam consumir.
O que ocorre, em verdade, é a falta de investimento público de que padecem
certos locais por um determinado período de tempo, justamente por serem ocupados por
grupos mais pobres. Vale lembrar que a possibilidade de estar no centro, sobretudo em
Curitiba, é cada vez mais difícil aos setores da periferia invisível da cidade modelo.
Vainer refuta a afirmação de que as classes mais pobres não valorizam as áreas
históricas ou as áreas urbanas em que vivem.
A sobrevivência da riqueza patrimonial dessas regiões se deu graças aos grupos de baixa renda e
não a outros. É como expulsar os índios da floresta para preservá-las, sendo que, graças a eles,
ela ainda está preservada.59
(...) a urbanização produz diversos artefatos, formas construídas, espaços produzidos e sistemas
de recursos de qualidades específicas, todos organizados numa configuração espacial distintiva.
A ação social subsequente deve levar em consideração esses artefatos, pois muitos processos
sociais (como viajar diariamente para o trabalho) se tornam fisicamente canalizados por esses
artefatos. A urbanização também estabelece determinados arranjos institucionais, formas legais,
sistemas políticos e administrativos, hierarquias de poder, etc. Isso também concede qualidades
objetivadas à “cidade”, que talvez dominem as práticas cotidianas, restringindo cursos
posteriores de ação. Finalmente, a consciência dos moradores urbanos influencia-se pelo
ambiente da experiência, do qual nascem as percepções, as leituras simbólicas e as
aspirações. Em todos esses aspectos, há uma tensão permanente entre forma e processo,
entre objeto e sujeito, entre atividade e coisa. (sem grifos no original)60
Além desse embate, o título do trabalho aqui se justifica: não se quer uma cidade
museada ou engessada numa memória autorreferente – que, a partir do momento que estagna e
59
VAINER, Carlos. Prós e contras da revitalização de centros urbanos. Disponível em:
http://www.comciencia.br/reportagens/cidades/cid02.htm.
60
HARVEY, David. Obra citada, p. 168.
não dialoga com o tempo que a acompanha, deixa de ser memória e passa a ser fetiche - ou
mercadoria por excelência.
O impulso de preservar o passado é parte do impulso de preservar o eu. Sem saber onde
estivemos, é difícil saber para onde estamos indo. O passado é o fundamento da identidade
individual e coletiva; objetos do passado são a fonte da significação como símbolos culturais. A
continuidade entre passado e presente cria um sentido de sequencia para o caos aleatório, e como
a mudança é inevitável, um sistema estável de sentidos organizados nos permite ligar com a
inovação e a decadência.61
Viver num desses centros e não ter acesso às boas escolas e bibliotecas, mundo do trabalho e
convivência com outras pessoas, é como estar na beira da praia e não poder entrar no mar. Assim
se sentem muitos moradores – olham a rua e a praça, mas, assim que se aproximam, elas
desaparecem de sua vista, transformando-se em outra coisa (...) A resposta a esse dilema é
simples: garantir o que é próprio da urbe.62
O que é próprio da urbe é justamente a busca pelo que lhe é próprio, ou como
anunciava Leminski, a busca de uma categoria que está além de passado e presente: “só
buscar o sentido faz, realmente, sentido”.63 Assim como o poeta que passou por essas
ruas, não admitimos viver em uma cidade artificial. É preciso não só criar o novo, mas
61
ROSSI, A. Architecture and the city. Cambridge, Massachesetts apud HARVEY, David. Condição pós-
moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 15. ed. São Paulo: Loyola, 2006. p. 85.
62
Razão e sensibilidade na Saldanha Marinho - Rua do Centro Velho de Curitiba se torna laboratório de
revitalização urbana sem alarde ou eventos – Disponível em:
http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=1380135&tit=Razao-e-
sensibilidade-na-Saldanha-Marinho. Acesso em 19/06/2013.
63
LEMINSKI, Paulo. Obra citada, p. 13.
deglutir o passado, fundi-lo, fazê-lo presente na significação que se dá ao próprio
presente.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAND NEWS FM, Curitiba, 15 mai. 2013. Fachadas do centro histórico da capital
serão revitalizadas – entrevista com Mauro Magnabosco. Disponível em
<http://bandnewsfmcuritiba.com/2013/05/15/fachadas-do-centro-historico-da-capital-
vao-ser-revitalizadas/> Acesso em 19 de jun. 2013.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. 10ª impressão São Paulo,
Editora Brasiliense, 1996. p. 224
ESTADÃO, Curitiba, 29 mar. 2012. Curitiba faz 319 anos e se prepara para projeto de
revitalização. Disponível em <http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,curitiba-faz-
319-anos-e-se-prepara-para-projeto-de-revitalizacao,854979,0.htm> Acesso em 19 de
jun. 2013.
GAZETA DO POVO, Curitiba, 20 dez. 2012. Rua São Francisco ganha nova cara após
4 meses. Disponível em
<http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1329453&tit=Ru
a-Sao-Francisco-ganha-nova-cara-apos-4-meses> Acesso em 19 de jun. 2013.
GLEZER, Raquel. Chão de terra; e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo:
Alameda, 2008.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
2009.
WEHLING, Arno. Direito e justiça no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.