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A MODERNIDADE COLONIAL: O BOTA-ABAIXO DE PORTO ALEGRE

Rafael Spumberg Seus1

Porto Alegre se apresentava como uma cidade “apertada” no início do século XX,
sufocando seus habitantes, apresentando carências em serviços de infraestrutura básica, como
transporte, saneamento, água encanada, iluminação, entre outros, dessa forma foram pensados
planos para o melhoramento urbano da cidade com o intuito de melhorar a vida urbana,
embelezando a cidade, mas também realizar uma “limpeza social”, retirando os mais pobres do
cetro com a luta contra os cortiços.
Nos primeiros anos dos governos municipais do Partido Republicano-Riograndense
(PRR)2 pouco foi feito para o melhoramento da capital, porém pensando na dinâmica de seu
projeto institucional e das recentes demandas do Pacto de Pedras Altas que deu fim à Revolução
de 1923, e abalou o controle do PRR sobre o Estado, o partido viu em Porto Alegre a
oportunidade perfeita para manter sua hegemonia. Assim a ascensão de Otávio Rocha (1924 –
1928) a municipalidade no lugar de Montaury de Aguiar Leitão (1897 - 1924) fez com que
houvesse um alinhamento entre o PRR, o Intendente e os interesses da burguesia comercial e
industrial da capital, segundo Monteiro (1995, p. 51 - 51):

O discurso deixa bastante claro o compromisso do PRR e da administração de


Otávio Rocha com os interesses da burguesia comercial e industrial de gerar
o desenvolvimento econômico de Porto Alegre mantendo a ordem no meio
político urbano. É visando aos interesses desta burguesia que Otávio Rocha
direciona a ação política no espaço urbano, no sentido de prover os meios para
o desenvolvimento capitalista de Porto Alegre. 3

A cidade começou a ser desenhada e redelimitada com as reformas de Rocha, obtendo


um contorno semelhante ao atual. Assim a cidade se tornou um lugar de mudança, não sendo
somente um lugar receptor das modernidades, mas também uma produtora de novas formas de
sociabilidades, permitindo que os agentes econômicos e políticos pudessem a reestruturar com
o encontro de seus interesses (UEDA, 2006, p. 141). Mesmo com o alinhamento entre as forças
políticas e econômicas, a intendência ao comando de Rocha demorou quase dois anos para
começas as reformas, criando cria a Comissão Especial para Obras Novas além de novas
Subcomissões da Viação Urbana, Saneamento, Embelezamento, Iluminação-Telefonia-Tração,
Abastecimento Público, Finanças e Legislação, além de realizar uma pesada reforma

1
Graduando do curso de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
2
O Partido Republicano Rio-grandense será referido pela sigla “PRR” a partir dessa nota.
3
O discurso citado foi feito por Otávio Rocha para as “classes conservadoras” em homenagem a sua eleição e
reproduzido no jornal “A Federação”.
administrativa e fiscal, criando e aumentos diversos impostos, gerando controvérsias na mídia,
como é visto em uma série de reportagens do jornal “Diário de Notícias” intituladas “O preço
do progresso...” que destaca a insatisfação popular com o aumento dos impostos e o diálogo
que a sociedade buscava com o intendente.
Toda a preparação do governo de Rocha resultou no Plano de Melhoramento e
Embelezamento em 1927, consistindo em uma versão reeditada e orçamentada do Plano de
Montaury feito em 1914 por João Moreira Maciel (MONTEIRO, 1995, p. 69). O Plano tinha
um enfoque viário, preocupado com o aumento constante do tráfego, mas também com a
circulação de pedestres no centro da cidade, logo ele visava o alargamento das ruas e das
calçadas, sendo que ambas sofriam pelas características com que a cidade colonial de constituiu,
com vias estreitas e calçamentos deficitários e irregulares, sobretudo não correspondiam as
necessidades do desenvolvimento industrial e comercial da cidade (MONTEIRO, 1995, p. 72).
Segundo Müller e Souza (1997, p. 85) o plano consistia no alargamento e criação de novas ruas,
visando a criação de novas ligações entre o centro e os bairros periféricos, abrindo avenidas
como a Júlio de Castilhos, Otávio Rocha e Borges de Medeiros, além de esboçar a Avenida
Farrapos. Ainda segundo Müller e Souza (1997, p. 85), o Plano de Melhoramento possuía uma
visão realista sobre as necessidades da cidade, servindo de base para obras futuras, já que o
mesmo ainda previa a retificação de parte do Arroio Dilúvio e um cais de saneamento na zona
da Ponta da Cadeia e na Praia de Belas, projetando uma ampla avenida para a região.
É interessante destacar que o Plano feito por Rocha também buscava embelezar a cidade,
dessa forma foi proposto o ajardinamento de diversas áreas, a criação de novas praças e a
plantação de árvores em inúmeras avenidas e ruas pela cidade. A iniciativa do aumento da área
verde é vista com “bons olhos” pela imprensa, o “Correio do Povo” afirma que o ajardinamento
do Parque Farroupilha está dentro das mais modernas regras do urbanismo, o mesmo jornal
avalia positivamente a praça Otávio Rocha, com um misto de homenagem ao falecido
intendente e de alegria por mais uma praça elegante disponível a população.
Essa “alegria” da imprensa pelos novos elementos que vinham transformando a cidade
fazia parte de uma estratégia de governo para poder transformar os referenciais urbanos da
cidade colonial. Segundo Pesavento (1999, p. 267), “foi com o novo regime que a imprensa em
geral desencadeou uma violenta campanha contra aqueles elementos de referência urbana que
se convertiam no símbolo rejeitado da cidade colonial: os cortiços.” Essa rejeição a cidade
colonial se aplica de forma mais efetiva quando as reformas são iniciadas, requalificando o
imaginário social da época. Segundo Monteiro (2006, p. 39):
As administrações de Otávio Rocha (1924-28), Alberto Bins (1928-37) e
Loureiro da Silva (1937-43) realizaram grandes reformas urbanas, alterando
profundamente o perfil paisagístico da cidade. A transformação acelerada dos
espaços urbanos causou a experiência de perda de referenciais para a
manutenção da memória coletiva. Porto Alegre deixou de ser uma cidade
provinciana e isolada no extremo Sul do Brasil, para tornar-se uma metrópole
moderna em contato com o centro do país e o exterior.

O jornal “Diário de Notícias” publicou uma série de reportagens focadas nas reformas
urbanas, exaltando as transformações que a cidade sofria, porém fazia duras críticas a
municipalidade quando havia edificações que não se comportavam de acordo com a nova
normativa, cobrando uma posição efetiva da intendência sobre esses “problemas”.
Ao mesmo tempo em que a imprensa tentava impor, junto ao governo, as novas ordens
sociais a polução ela impunha certo limite a municipalidade, delimitando a sua área de atuação.
Essa postura dos meios de comunicação se mostra dicotômico, pedindo intervenção pesada ao
Intendente e delimitando até “onde do privado” ele poderia intervir. No mesmo “Diário de
Notícias” é enaltecido o trabalho da iniciativa privada na transformação da fisionomia de Porto
Alegre, destacando as novas edificações de moradia, que embelezavam a cidade, como também
as construções de prédios de aluguéis feitos por “capitalistas”. Essas novas construções privadas
eram vistas pela imprensa como a contribuição da população para a renovação da cidade sendo
sempre incentivada como parte essencial para o progresso da capital.
A imprensa foi um instrumento legitimador das reformas urbanas usada pelo governo
para conter a insatisfação de alguns setores menos abastados da população, que não foram
contemplados nas mudanças impostas pelo governo, estas tanto no costume quanto nas
habitações. A reformas foram feitas para a elite burguesa, que poderia bancar a modernidade,
construindo novas moradias adequadas aos tempos modernos, afinal essa burguesia local já se
inspirava nas “modas europeias”, e buscava a implantação desses “costumes burgueses” desde
o tempo da cidade colonial. Segundo Ueda (2006, p. 147), com as novas reformas, a elite iria
se beneficiar com a valorização dos seus comércios, residências e indústrias, além servir como
referência como conceito de cidade moderna. As mudanças viárias e no transporte público
ajudaram na locomoção dos empregados de fábricas e comércios, facilitando o descolamento
na cidades, o próprio viaduto Otávio Rocha criou uma ligação direta entre o centro
administrativo e a zona sul, algo que Porto Alegre necessitava há tempos, além da construção
de uma linha de bondes pela Avenida Borges de Medeiros para o transporte em massa.
O projeto de mudança social, envolvendo hábitos, sociabilidade e a forma da capital se
deu de maneira tão intensa que houve uma revolta inerente a essas modificações verticais. A
cidade colonial pode ter sido extinta como uma programa político, mas as suas memórias ainda
perpassam gerações que transmitem nomes de ruas e praças, como se fosse um ato de protesto
as mudanças bruscas ou uma nostalgia do passado. Cabe salientar a afirmação de Pesavento
(1999, p. 266) que a Rua da Margem e a Rua da Olaria, assim como outras, permaneceram por
muito tempo como “palavras da cidade”, orientando moradores com as suas significações
precisas. Além de que “caberia lembrar que certos nomes persistem até os dias de hoje, numa
Porto Alegre que ainda chama a Rua dos Andradas de “Rua da Praia” e o Parque Farroupilha,
designado como tal em 1935, de “Redenção” (PESAVENTO, 1999, p. 266). A representação
física da cidade colonial pode ter morrido durante as reformas urbanas, porém a memória de
sua existência ainda permanece viva em certos aspectos do cotidiano dos porto-alegrenses.

REFERÊNCIAS
MONTEIRO, Charles. Porto Alegre: urbanização e modernidade – a construção social do
espaço urbano. Porto Alegre: ediPUCRS, 1995.
MONTEIRO, Charles. Porto Alegre e suas escritas - história e memórias da cidade. Porto
Alegre: ediPUCRS. 2006.
MÜLLER, Dóris Maria; SOUZA, Célia Ferraz de. Porto Alegre e sua evolução urbana. Porto
Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1997.
PESAVENTO, Sandra J. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano: Paris - Rio de
Janeiro - Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1999.
UEDA, Vanda. A construção, a destruição e a reconstrução do espaço urbano na cidade de
Porto Alegre do início do século XX. GEOUSP - Espaço e Tempo: São Paulo, n 19, pp 141 -
150, 2006. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/geousp/article/view/73995/77654.
Acesso em: 03 out. 2019.
Fontes
A cidade que se renova! Diário de Notícias. Porto Alegre, 25 out 1929.
A cidade que se renova! Diário de Notícias. Porto Alegre, 30 out 1929.
Coisas irritantes. Diário de Notícias. Porto Alegre, 03 maio 1929.
O preço do progresso. Diário de Notícias. Porto Alegre, 15 maio 1929.
O Campo da Redempção e o seu ajardinamento. Uma iniciativa louvável. Correio do Povo.
Porto Alegre, 28 set 1929.
Um novo logradouro público. Correio do Povo. Porto Alegre, 20 out 1929.

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