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O “drama barroco” carioca nas enchentes históricas: tragédia e humor nas

páginas das Revistas (Rio de Janeiro, 1905-1928)

Andréa Casa Nova Maia


Programa de Pós-Graduação em História Social – Instituto de História
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ

Prepared for delivery at the 2013 Congress of the Latin American Studies
Association, Washington, DC May 29-Jun 1, 2013
O “drama barroco” carioca nas enchentes históricas: tragédia e humor nas
páginas das Revistas (Rio de Janeiro, 1905-1928)

Abstract
Urban flooding is a crucial issue in the twenty-first century, as the recent Hurricane
Sandy shows. Rio de Janeiro, one of the world's mega-cities, suffers from periodic
disastrous floods since it was founded. Such floods became more frequent during the
20th century. They highlight the fragility of public administration and urban reforms
in Rio de Janeiro, as well as social conflicts and ecological impacts due to rapid
urbanization. In this paper we study the relationships between city, environment and
memory, by analyzing images that survived over time. The pictures are evidence of
the multiple and diverse representations of the floods as they appear in photographs
and caricatures from newspapers and magazines of carioca's ordinary life from the
early 20th century. These images tell the story of the carioca’s urban landscape
through the lens of their photographers and artists. At the same time, they suggest that
the floods were constantly recreated in the imagination of the artists who portrayed
the memories of citizens and journalists in a modern citymarked by catastrophic
events.

Keywords: Floods; Urban Landscapes; Rio de Janeiro; History and illustrated


magazines.
1. Introdução

“A remodelação do Rio de Janeiro do Bota - abaixo de


Pereira Passos, por ação das “picaretas regeneradoras”, que
celebravam “a vitória da higiene, do bom gosto e da arte”,
como disse Bilac, em 1904, em crônica da sofisticada revista
Kosmos, alterou não só o perfil e a ecologia urbanas, mas
ainda o conjunto das experiências de seus habitantes. Lugar e
metáfora, a cidade interessa, por conseguinte, enquanto
espaço físico e mito cultural. Cidade e modernidade se
pressupõem, na medida em que é o cenário das
transformações, exibidas de maneira ostensiva e às vezes
brutal. Assim, a cidade é pensada como condensação
simbólica e material de mudança”.
Renato Cordeiro Gomes

Pensar a paisagem urbana do Rio de Janeiro no início do século XX através do


olhar de fotógrafos e de seus chargistas, do ponto de vista da História, requer
problematizar a noção de representação e cultura visual. No mundo da representação a
fotografia - promessa de perenidade - ou as imagens caricatas presentes nas Revistas
Ilustradas da recém-proclamada República, são agora a imagem da cidade no espelho.
Espelho que guarda memória. Mas quais memórias? Por um lado, a memória oficial,
dos fotógrafos que, identificados com o projeto republicano, estão encarregados de
“documentar” a reforma urbana. O fotógrafo constrói, junto com o prefeito, a nova
cidade, os novos bulevares, a “Paris Tropical”. Enfim, constrói, através das imagens
fotográficas, uma memória da cidade que se quer propagandear: a cidade civilizada, a
cidade capital da República brasileira. Assim, é importante pensar a imagem
fotográfica a partir de seus componentes culturais, estéticos e ideológicos que
constituem sua elaboração e recepção, bem como a visão de mundo do fotografo que
produz essas imagens, seu ethos, sua própria experiência autoral e profissional
enquanto produtor de imagens.
Por outro lado, as charges, produzidas pelos artistas que trabalhavam para as
Revistas Ilustradas, também constroem uma memória da cidade, que é a da realidade
tragicômica de um Rio de Janeiro que se pretende moderno, mas que é assolado pelo
desastre praticamente anual da enchente urbana. Numa perspectiva critica ao governo,
os desenhos ironizam e revelam uma outra metrópole e uma modernidade repleta de
paradoxos, onde a ordem e o progresso convivem com o caos, a desordem e o que há
de mais atrasado em termos de problemas de infra-estrutura, como tratamento de
esgoto, saneamento básico, transporte, iluminação pública, dentre outros.

Ao relacionarmos a fotografia e a problemática do real vemos que esta é o


resultado de escolhas, feitas por sujeitos situados historicamente. Ela é um recorte
espacial e temporal. Ela recorta, seleciona e, ao fazê-lo, tem uma intenção, pois é
representação e, como tal, constrói-se culturalmente, carregando-se de significação
ideológica. Ela não é um analogon da realidade: “entre a imagem e a realidade que
representa, existe uma série de mediações que fazem com que, ao contrário do que se
pensa habitualmente, a imagem não seja restituição, mas reconstrução — sempre uma
alteração voluntária ou involuntária da realidade, que é preciso aprender a sentir e
ver” (LEITE, 1998, p.40)

A fotografia cria uma memória ou pretende criar, não recupera algo do


passado. É instauração do novo. Na sua bidimensionalidade, carrega sentidos que se
processam no tempo. Não é o passado, é uma representação que tem potencial de
permanência no tempo. É “uma elaboração do vivido.” (MAUAD, 1996, 76).

Tamanho mar de possibilidades esconde a realidade da pesquisa histórica:


“Os historiadores, escreveu Aristóteles (Poética, 51b), falam do que foi (do
verdadeiro), os poetas, daquilo que poderia ter sido (do possível). Mas, naturalmente, o
verdadeiro é um ponto de chegada, não um ponto de partida. Os historiadores (e, de outra
maneira, também os poetas) têm como ofício alguma coisa que é parte da vida de todos:
destrinchar o entrelaçamento de verdadeiro, falso e fictício que é a trama do nosso estar no
mundo” (GINZBURG, 2007, p.14).

Deste modo, o propósito do paper é apresentar a cidade do Rio de Janeiro sob o


olhar de fotógrafos que trabalhavam para as Revistas Ilustradas cariocas, bem como
apresentar o olhar dos artistas que desenhavam a cidade, os chargistas das mesmas
revistas, narrando as mudanças ocorridas na cidade na época em que foi captada pelas
lentes dos fotógrafos e pelo traço dos chargistas. Aqui nos concentraremos em revelar
imagens de uma outra história que não a do sucesso dessas transformações na paisagem da
cidade e sim, um dos principais problemas que ocorreram simultaneamente às reformas
urbanas: as enchentes que deixavam a cidade submersa e caótica, contrariando a busca
pelo progresso e a civilização tão almejados pelos brasileiros naquele momento histórico.

2. As imagens do Rio de Janeiro do início do Século XX ou a Paris Tropical

Em 1906, as chuvas de verão inundaram o Rio de Janeiro – mais uma vez. A


inundação naquele ano tinha, contudo, um sabor mais amargo. A capital da República
vivia as reformas urbanas de Pereira Passos (1904-1906). Inspirado pelas reformas
parisienses de 1870, o Bota-abaixo, como ficou conhecida a reforma, arrasou morros,
retificou e canalizou rios, aterrou grandes extensões da Baia de Guanabara e seus
manguezais, abriu avenidas, entre outras medidas que transformariam para sempre a
paisagem carioca. Ainda assim as chuvas mergulharam a cidade no pesadelo das
enchentes, como nos anos precedentes.
Jornais e revistas publicavam cartas indignadas de moradores que viam as
tentativas de transformação do Rio em uma cidade ordenada e civilizada irem
literalmente por água abaixo. De que adiantavam os novos boulevares, diziam os
jornais, se quando chegavam as chuvas a população ficava a nado? Na nova Praça da
Bandeira, antigo Largo do Matadouro, até o coreto recém-inaugurado era uma ilha. O
transporte, a luz elétrica e outros sinais de modernização ficavam comprometidos
pelas chuvas. Nas páginas das revistas ilustradas, chargistas ironizavam a impotência
do Estado e pediam “bondes submarinos” ou “aéreos”, únicos meios de locomoção
possíveis nos dias de enchente (figura 1 e 2).
O Rio de Janeiro se via num “boulevard sem saída.” A Reforma Passos, de
alto custo social e financeiro, deveria colocar a capital entre as grandes cidades do
mundo, e tirar de Buenos Aires o cobiçado titulo de “Paris da América do Sul”. No
entanto, não obstante os progressos quanto à febre amarela, ao embelezamento do
centro da cidade, à destruição das “cabeças de porco” (os cortiços que abrigavam a
população pobre), de dezembro a março as chuvas de verão continuavam a alagar
praças e ruas.
As chuvas estão presentes na história do Rio de Janeiro desde antes de sua
fundação. Antes que a cidade existisse, o francês Jean de Léry no século XVI se
divertia com o barulho de micos pretos nas árvores durante “o tempo das chuvas”.
Poucos anos depois, na jovem cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, os novos
cariocas, cercados por mangues, morros e mar, a duras penas abriam picadas e
drenavam pântanos que lhes permitissem, por um lado, criar uma comunidade no alto
do Morro do Castelo e, por outro, manter um acesso seguro ao porto, sua ligação com
a metrópole. As chuvas torrenciais, seguidas de fortes ressacas, cobriam as picadas e
transformavam a Rua Direita (futura Rua Primeiro de Março) em um rio caudaloso,
causando pânico e perdas. Chuva e neblina permitiram que o corsário Duguay Trouin
chegasse às portas da cidade em 1711, quase sem ser notado. Quarenta anos depois,
três dias de chuva forte e ininterrupta levaram a cidade à beira de total colapso. A
população buscou abrigo nas igrejas, rogando aos céus pelo fim do flagelo. Em 1811,
uma semana de tormentas causou desabamentos no Morro do Castelo, com perda de
casas e vidas, a ponto do príncipe regente D. João exigir um inquérito sobre a
enchente. Se o Rio de Janeiro queria ser uma cidade moderna, havia que se livrar do
flagelo das enchentes. Uma cidade moderna tinha que dominar a natureza – e não ser
por ela dominada.
Terminadas, porém, as reformas, as enchentes ainda eram parte da paisagem
do Rio de Janeiro. A capital da República era, incontestavelmente, uma cidade
moderna – mas não de dezembro a março. Entre 1906 e 1910, o Rio de Janeiro
sucumbiu ao menos a duas enchentes de grande porte, em que o transporte da cidade
ficou impossível.
As soluções sugeridas eram fundamentalmente técnicas. Parecia que não se
alcançara ainda o grau de modernidade “suficiente” para acabar com as enchentes.
Havia que se fazer mais aterros, mais drenagens, urbanizar mais áreas, canalizar mais
rios. Mas o que acontece quando os rios estão contidos em canais de concreto e há
pouco contato com a terra? Quando o chão em que cai a chuva é asfaltado e a
vegetação natural substituída por casas e construções? Quando as encostas perdem
sua cobertura verde e a terra fica exposta à erosão das chuvas? A capacidade de
absorção diminui; a água se acumula em canais e valas, tomando ruas e casas. As
ondas altas das marés não mais se dissipam nos mangues e pântanos, mas se chocam
com barreiras de concreto e avenidas à beira-mar – e a crescente população urbana
tem pouca flexibilidade para conviver com as conseqüentes inundações. A chuva, por
intensa que seja, é parte da natureza; já a enchente é um problema histórico e social, e
a modernidade urbana acentuava seu impacto. A modernização do Rio de Janeiro
criou, além de tudo, espaços desiguais em termos de vulnerabilidade às águas, nos
quais certos grupos da população (mais pobres, menos assistidos pelo Estado)
estavam também mais vulneráveis que outros às enchentes. As novas enchentes nas
avenidas não resultavam de uma modernidade incompleta, mas surgiam como um
produto colateral deste turbilhão de mudanças que insistia em ignorar as dinâmicas da
natureza local. Nem Paris estava livre deste preço. Em janeiro de 1910, após uma
longa temporada de alta pluviosidade, o rio Sena alagou a capital francesa, com água
jorrando de galerias pluviais e túneis subterrâneos (Figura 3). O Rio de Janeiro, nas
suas enchentes, se tornava então de fato a Paris da América do Sul.
Estudar estes momentos de crise, onde os habitantes sofriam com os
alagamentos, a destruição de moradias e ruas, dentre outros desdobramentos, nos
levará a sublinhar na narrativa dos periódicos os elementos mais significativos do
processo de urbanização no período. Trata-se de uma tentativa de identificar, através
das imagens e representações das enchentes presentes nas revistas ilustradas e demais
periódicos, as idéias, técnicas, desafios e expectativas que circulavam entre os
gestores do espaço urbano e a população, cujos discursos eram mediados pela
imprensa. Assim, ao eleger a cidade do Rio de Janeiro de importantíssimo valor
simbólico para o Brasil naquele momento (Belle Époque, “Paris tropical”, lugar do
progresso e da civilização dentro do projeto republicano), esta se revele estudo de
caso relevante para lançar as bases de uma história social e ambiental da urbanização
brasileira no século XX através da cultura visual que aparece nas revistas ilustradas.
Podemos pensar a imprensa ilustrada da Primeira República como um “espaço
social que agencia as versões de acontecimentos e processos”(MAUAD, 2008).
Portanto, trata-se de um locus privilegiado para a compreensão da memória das
enchentes no Rio de Janeiro e da relação desses eventos com o poder público e a
população. Nas páginas d’O Malho, da Fon-Fon, Para Todos, Careta e tantas outras
revistas, podemos encontrar imagens que muito nos dizem sobre as práticas culturais,
políticas e sociais dos homens e mulheres que vivenciaram a passagem do século XIX
para o XX e suas primeiras décadas, como veremos a seguir.

3. As fotografias e as charges das enchentes nas páginas das Revistas Ilustradas: a


tragédia e o cômico nas imagens que sobrevivem

“O humor não é resignado, mas rebelde”, dizia Freud sobre a relação entre
tragédia e humor. O humor é um dos processos que a mente humana cria para se
desviar do sofrimento. O humor propicia prazer, é liberador e até mesmo enobrecedor.
É das funções psíquicas mais elevadas e reconhecidas pelos pensadores e intelectuais.
Freud considerava o humor uma contribuição do superego ao cômico, um superego
complacente para com o Eu, como um pai para seu filho. O que o humor transmite
significa: “Olhem! Aqui está o mundo, que parece tão perigoso! Não passa de um
jogo de crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria!”. (FREUD,
1980, p. 190-191). É o humor enquanto afirmação do desejo diante da adversidade e
da morte. Humor lúcido e trágico, ao mesmo tempo triunfal, alegre, ou seja, o humor
freudiano, em sua associação íntima com a morte, é tragicômico.

Há um caráter trágico nas enchentes históricas. Uma tragédia moderna que


pouco carrega da tragédia clássica, como no drama barroco (BENJAMIN, 1988). A
tragédia e o humor se misturam no traço dos ilustradores das páginas das revistas
ilustradas do Rio de Janeiro, entre 1905 e 1928. Ao discutirmos as formas de
representação das enchentes históricas ocorridas no Rio de Janeiro da Belle Époque,
temos que, inspirados por Walter Benjamin, procurar tecer a relação entre esta
produção imagética, o ethos artístico de seus criadores e a política de urbanização da
capital da República recém-proclamada no Brasil. Em que medida a história das
inundações na cidade através destas imagens trazem uma concepção de História como
acúmulo de catástrofes onde o drama cotidiano de seus cidadãos é retratado
comicamente?
Um drama vivido quase que anualmente que, de tão comum, vira comédia no
traço dos cartunistas. Se as fotografias nos revelam o estado de calamidade pública, a
tragédia (Figuras 4,5,6,7,8,9,10,11,12,13,14,15,16 e 17) por outro lado, as charges e
caricaturas apresentam o drama através de alegorias fortemente carregadas de um
caráter tragicômico.
Na pequena série de fotografias, documentos retirados das páginas das
Revistas, vemos o fato: a catástrofe. O anjo da história nos mostra escombros
(Trümmer). (BENJAMIN, 1985). Mas temos que ver além do desastre natural, pois a
destruição não é simplesmente ruína provenientes de um declínio perante a natureza.
É uma catástrofe cultural, da ideologia do progresso, do positivismo grafado na
bandeira nacional e pedra de toque das reformas urbanas na capital da recém-
proclamada República. Ruínas antes mesmo de terminada a tempestade do progresso,
denotando um projeto de modernidade não concluído. Catástrofe de um mundo
construído sobre a ideologia do progresso que ao mesmo tempo, e paradoxalmente,
parece ajudar este mesmo progresso. Até porque nas imagens vemos os escombros de
cortiços (moradias populares), quiosques e outros objetos arquitetônicos que a própria
modernidade trataria de destruir se as chuvas e inundações não os tivessem destruído.
As fotografias, essas belas “imagens técnicas”, produzidas pelos fotógrafos e seus
“aparelhos”, também percorrem a vida e morte da cidade, os pontos mais críticos e os
mais atingidos. Os textos que acompanham as imagens brincam ainda com a
catástrofe: ruas são transformadas em rios caudalosos, praças viram lagoas, bairros da
cidade são ironicamente comparados à cidade de Veneza. Todavia é importante notar
que há uma predominância de imagens que denunciam a destruição dos antigos
símbolos da cidade para que, apos o dilúvio, uma nova cidade possa surgir. Ao
mesmo tempo que o novo Canal do Mangue transbordado aponta para a falta de
saneamento, que o palácio do governo também esteja submerso, o olhar do fotógrafo
prioriza, na série coletada, a experiência da pobreza. Aqui, os mais atingidos e que
são os temas mais escolhidos pelos fotógrafos, são os pobres. Embora nas charges as
diferenças de classe sejam minimizadas em detrimento à critica contumaz contra a
administração pública seja do governo nacional, estadual ou local. Tanto imagem
quanto texto da charge mostram com humor a critica aos administradores. O bonde
“submarino” aparece para mostrar a insatisfação quanto às questões de urbanização.
Nos “quadros do progresso”, em dias de enchente o jeito é o fio elétrico virar meio de
transporte. Outras charges mostram com humor a situação das ruínas e aqui a
inundação atinge também aos ricos.
Na maioria das vezes, no caso das charges, como podemos ver nestas imagens
de Rodrigues Alves, o presidente da República na época, ou do Ministro da Viação,
Lauro Muller, os governantes, ao invés de “salvarem” a cidade e cuidarem para que
eventos terríveis não aconteçam, restabelecendo a ordem diante do “estado de
exceção”, são apresentados como os principais responsáveis pelo caos urbano e até
como vítimas. As elites e os pobres são representados como vítimas. A inundação não
escolhe classe: tanto o Zé Povo quanto a elite sofre com as chuvas, pois falta luz, as
vias ficam intransitáveis para quase todos os meios de transporte... (figuras 18.19, 20
e 21).
O que percebemos é que um ethos artístico moderno, de forte crítica social,
acompanha o humor. É o humor enquanto afirmação do desejo diante da adversidade
e da morte. Humor lúcido e trágico, ao mesmo tempo divertido, sagaz que, em sua
associação com a morte _ tendo em vista que a maioria das enchentes causava vítimas
fatais _ é tragicômico, como já nos ensinava Sigmund Freud. Sentimentos como o de
impotência diante das chuvas, de medo diante da morte, de terror, ainda que sob o
manto da ironia em sua relação com a subjetividade dos artistas, estão presentes nas
páginas das revistas ilustradas aqui pesquisadas até 1928.

Figura 1 - Revista O Malho, n° 128. Coleção Plínio Doyle pertencente ao Acervo


da Casa de Rui Barbosa,1905. Charge ironizando a impossibilidade de transitar
na cidade em dias de enchente. Em plena reforma urbana, no meio do Bota-abaixo,
como ficou conhecida a remodelação da cidade do Rio de Janeiro, a charge ironiza
que já que a engenharia parecia ser a principal preocupação da administração pública,
durante as chuvas, como o transporte urbano não funcionava, era preciso que se
inventasse o bond-submarino.

Figura 2. Revista O Malho, n° 388. Coleção Plínio Doyle pertencente ao Acervo da


Casa de Rui Barbosa.1910. Charge mostra a única forma de transporte durante as
cheias.

Enquanto a “mente brilhante” dos engenheiros ainda não haviam criado o Bond-
submarino, o chargista Leônidas, sugeria o transporte “aéreo”, um dos únicos
meios de transporte possíveis face ao caos urbano e a dificuldade de locomoção
advinda das enchentes no Rio de Janeiro.
Figura 3 – Disponível em http://www.paris-museums.org/blog/tag/1910-great-flood-
of-paris. A grande inundação de Paris de 1910. Champs-Elisée. Paris, grande modelo
de urbanização, que o Rio de Janeiro de Pereira Passos, o prefeito do Bota-abaixo
tentava imitar, também foi vítima de uma grande enchente em 1910, trazendo um dos
paradoxos da modernidade.

Figura 4 - Revista O Malho, n° 179. Coleção Plínio Doyle pertencente ao Acervo


da Casa de Rui Barbosa. 1906. Reportagem sobre os desmoronamentos
ocorridos por contas da seqüencia de dias chuvosos. A reportagem comenta
ainda as reformas e “melhoramentos” na cidade mas critica a permanência de
alguns casebres no centro, como os que desabaram cujos escombros vê-se na
foto.
Figura 5 - Revista O Malho, n° 179. Coleção Plínio Doyle pertencente ao Acervo
da Casa de Rui Barbosa, 1906. Moradias populares do centro são destruídas pela
força das chuvas. Mesmo com a precariedade das estruturas, alguns moradores
ainda transitam nos arredores das casas tentando escorar o que restava.

Figura 6. Careta, n° 148. Acervo da Biblioteca Nacional. 1911.Retrato da situação


das ruas do centro da cidade do Rio de Janeiro após chuvas fortes. Tradicional
centro de comércio da cidade, a Rua dos Inválidos é compara a um rio.
Figura 7. Careta, n° 148. Acervo da Biblioteca Nacional. 1911. Fotografia de
movimentada área do centro que, por conta da inundação, encontra-se deserta.
Apesar de pouco perceptíveis há pessoas ilhadas ao lado esquerdo da fotografia

Figura 8. Careta, n° 148. Acervo da Biblioteca Nacional. 1911. Aspecto da região


entre a Zona Norte (Tijuca) e Centro da cidade, tradicional ponto de alagamento.

Figura 9. Careta, n° 148. Acervo da Biblioteca Nacional. 1911. Rio de Janeiro e


suas ruas são, nesta fotografia, comparados à Veneza e seus canais.

Figura 10. Careta, n° 148. Acervo da Biblioteca Nacional. 1911. Retrato da


inundação das ruas da cidade.
Figura 11. Careta, n° 148. Acervo da Biblioteca Nacional.1911.Fotografia do Rio
Joana, no Centro/Cidade Nova, completamente cheio.

Figura 12. Careta, n° 148. Acervo da Biblioteca Nacional. 1911.Fotos dos


estragos causados pela chuva em morros do Rio de Janeiro.
Figura 13. Careta, n° 148. Acervo da Biblioteca Nacional.1911.Casas humildes
soterradas devido a desmoronamentos e pela intensidade da chuva.

Figura 14. Careta, n° 148. Acervo da Biblioteca Nacional. 1911. Escombros de


construções derrubadas pela força das águas.

Figura 15. Careta, n° 1028. Acervo da Biblioteca Nacional. 1928. Dois pontos
tradicionais de cheia na cidade: o Catete e a Praça da Bandeira, mostrando o
Palácio de Catete e o antigo coreto ilhados.
Figura 16. Careta, n° 1028. Acervo da Biblioteca Nacional. 1928. Em ambas as
fotos a população se arrisca, a pé ou de barco, a transitar pela cidade inundada. A
primeira foto é na Zona Sul e a segunda no Centro, o que demonstra ser a
enchente um problema que não se restringe a apenas uma zona da cidade.

Figura 17. Careta, n° 1029. Acervo da Biblioteca Nacional. 1928. Canal do


Mangue, na atual Avenida Presidente Vargas, transbordando.
Figura18. Revista O Malho, n° 446. Coleção Plínio Doyle pertencente ao Acervo
da Casa de Rui Barbosa. 1911. Charge sobre a falta de ação do poder público para
dirimir as enchentes. Entre bondes submersos e barcos, tanto o prefeito Bento
Ribeiro quanto o personagem popular, Zé Povo encontram-se ilhados e sofrem
com as consequências das enchentes.
Figura 19. Revista O Malho, n° 180. Coleção Plínio Doyle pertencente ao Acervo
da Casa de Rui Barbosa. 1906. A enchente aqui é novamente metaforizada com
figuras da política da capital federal, como Lauro Muller e Rodrigues Alves,
postas na cena enquanto ratos levam embora o tesouro nacional e a arrecadação
alfandegária. Enquanto isso a seu redor a cidade desmorona tanto pelas chuvas
quanto pela situação politica e financeira.
Figura 20. Revista O Malho, n° 184. Coleção Plínio Doyle pertencente ao Acervo
da Casa de Rui Barbosa. 1906. Nero Rodrigues Alves inunda o Rio de Janeiro
numa alusão ao incêndio de Roma. Enquanto a população, rica ou pobre, tenta se
salvar como pode, o presidente parece orquestrar tudo do alto.

Figura 21. Revista O Malho, n° 335. Coleção Plínio Doyle pertencente ao Acervo
da Casa de Rui Barbosa. 1909. Zé Povo, personagem que representa a população
mais humilde, clama aos céus por ajuda e critica o prefeito pois este afirmara que
obras contra as enchentes são da esfera do Governo Federal. Enquanto as esferas
políticas transferem o problema, a Constituição afunda.

Considerações Finais
As imagens presentes nestas revistas ilustradas tinham como papel a crítica,
que se dava através de sátiras a sujeitos reais e também satirizavam os problemas da
cidade e de seus habitantes criando personagens fictícios ou utilizando representações
de políticos, governantes da época.
Durante o período da monarquia, a linguagem das charges tinha características
semelhantes a do início da República como o engajamento político, a pluralidade de
quadros e grande quantidade de textos. Porém, há alguns aspectos que podem ser
percebidos mais nas revistas publicadas na Primeira República, entre 1889 e 1930,
como a auto-afirmação da elite, através da criação de personagens não civilizados,
que representariam o povo; a questão do consumo, que é notável pela grande
quantidade de anúncios nesse período. Outro aspecto é o próprio conteúdo crítico, que
não era comum a todas as revistas, principalmente naquelas destinadas ao público
feminino, mas estava presente, como pode ser visto, por exemplo, nas imagens das
enchentes cariocas.
Um Rio de Janeiro que foi escolhido para ficar em meio a outros. Um Rio de

Janeiro que nos mostra mais uma vez que todo documento é também monumento e

que toda a fotografia é também documento-monumento (Le Goff, 1986). Assim como

a cidade se apresenta como um texto, as fotografias da cidade também são textos,

polissêmicos. Cabe ao leitor decifrá-la através de seus espelhos deformadores ou não.

Lembrando-se sempre que as “imagens são superfícies que pretendem representar

algo. Na maioria dos casos, algo que se encontra lá fora no espaço e no tempo. As

imagens são, portanto, resultado do esforço de se abstrair duas das quatro dimensões

de espaço-tempo, para que se conservem apenas as dimensões do plano. Devem sua

origem à capacidade de abstração específica que podemos chamar de imaginação. No

entanto, a imaginação tem dois aspectos: se um lado, permite reconstituir as duas

dimensões dos fenômenos, de outro permite reconstituir as duas dimensões em

símbolos planos e decodificar as mensagens assim codificadas. Imaginação é a

capacidade de fazer e decifrar imagens” (FLUSSER, 2002: 7).

Enfim, trata-se de um material documental riquíssimo para a construção da


história da cultura visual brasileira no início do século XX e, para além do caráter
informativo e documental, tais imagens fornecem pistas interessantes sobre a
representação do Estado, dos cidadãos e dos problemas sócio-ambientais decorrentes
das transformações urbanas inerentes aos processos de modernização das cidades
latino-americanas, bem como das dificuldades de superação de problemas como o da
própria inundação, sempre presente nas imagens da cidade quase de anualmente.
Bibliografia

BENJAMIN, Walter. “Teses sobre o conceito de história”. Obras escolhidas, vol. 1,


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BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1988.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. Ensaios para uma futura filosofia da
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FREUD, Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas.


Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1980. V.XXI,p.190-191.
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