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IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL · ACADEMIA DE ESCOLAS

DE ARQUITECTUR A E URBANISMO DE LÍNGUA PORTUGUESA · AEAULP

V. A Cidade Construída
e a Cidade Sonhada
Do sonho à realidade, no passado como no presente
– a procura duma identidade nas cidades
dos séculos XX e XXI em Angola .......................................................................... 240
M A R I A M A N UEL A DA FON T E

Dois projetos modernos para o Rio de Janeiro:


operações sobre a cidade existente segundo os sonhos
de Oscar Niemeyer e Sergio Bernardes ........................................................... 253
I VO R ENATO GIROTO

Habitar Popular e Políticas Públicas:


convergências, limitações e possibilidades ................................................. 265
J ULI A NA DEM A RT INI

Imagens da Pedro II – O Olhar da Arte .......................................................... 276

ROSIL A N MOTA G A R R IDO

Lisboa e memória, arquitectadas na narrativa de um livro:


“A Colina de Cristal”. ...................................................................................................... 289
MIGUEL BA P T IS TA-BA S TOS

SOLEDA DE PA I VA DE SOUS A

Moradias em Porto Alegre, anos 1920:


anotações sobre transformações na arquitetura ................................... 304
R AQUEL RODR IGUES LIM A

R ENATO GILBERTO G A M A MENEGOT TO

O abismo entre a cidade projetada e a cidade construída:


O PAC Manguinhos ............................................................................................................ 315
A NDR É LUIZ C A RVA LHO C A R DOSO

ÉR IC A LV ES G A LLO

O cinema na construção do imaginário da primeira geração


brasiliense: Brasília vivida na paisagem ordinária
de Brasiliários. ..................................................................................................................... 329
ROGÉR IO R EZENDE

LIZ DA COS TA S A NDOVA L

O classicismo imperial no contexto provinciano


da Parahyba do Norte ..................................................................................................... 342
JESSIC A SOA R ES DE A R AÚJO R A BELLO

I VA N C AVA LC A N T I F ILHO
O cinema na construção do imaginário
da primeira geração brasiliense:
Brasília vivida na paisagem ordinária
de Brasiliários.
ROGÉR IO R EZENDE
UNIP Brasilia

LIZ DA COSTA SA NDOVA L


Universidade de Brasilia

Resumo
Este artigo discute a representação de Brasília enquanto cidade sonhada,
construída e vivenciada, através da análise do filme Brasiliários (1986),
baseado nos relatos e impressões escritos por Clarice Lispector em 1962,
na ocasião de sua primeira visita à cidade.
A nova capital, planejada para ocupar o centro do Brasil foi inaugu-
rada em 1960 e fascinou jornalistas, fotógrafos, cineastas e poetas. As
fotografias e documentos oficiais mostravam uma cidade monumental,
ascética e vazia. Embora tenha sido saudada como um grande feito, a
ampla divulgação destas imagens estéreis contribuiu para a construção
de uma argumentação negativa da crítica internacional.
Brasiliários explora perspectivas de uma cidade que resiste e se impõe
à sua arquitetura fria e impessoal e que traz consigo suas contradições.
A construção da imagem da cidade feita pelos diretores brasilienses, a
partir da sua narrativa ordinária e angustiante, revela uma Brasília coti-
diana em contraponto às narrativas oficiais.

Palavras-Chave
Brasília, cidade modernista, cinema, literatura, representação

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Introdução
Brasília foi considerada uma das maiores concretizações dos princípios
do urbanismo proposto pela Carta de Atenas (1933), como a setorização
funcional, a liberação do solo publico para o pedestre e a separação dos
tráfegos de veículos, evitando cruzamentos. Inaugurada em 1960, sua
forma urbana baseada nesses princípios, recebeu criticas e estranha-
mento, da mesma maneira que atraiu a atenção como materialização de
um ideário de renovação.
Os olhos estavam voltados para a nova capital do Brasil nas primeiras
décadas de existência: jornalistas, fotógrafos, cineastas, poetas foram
encantados pelo fascínio da cidade modernista. As imagens oficiais,
produzidas para divulgação de Brasília, exploravam a iconografia e
expressão plástica da arquitetura de formas livres dos monumentos pro-
jetados por Oscar Niemeyer. Imagens aéreas buscavam reforçar os prin-
cípios do urbanismo modernista como os grandes espaços livres entre
os edifícios, as pistas de circulação de automóveis em velocidade ou
mesmo eixos perspectivos que enfatizavam o caráter monumental dos
seus edifícios mais representativos.
Nestas imagens os edifícios elevavam-se diante de um grande vazio,
livres tanto de figuras humanas como de arborização, enfatizando a
ideia de uma cidade artificial, construída em meio ao nada. No entanto,
a ausência de pessoas junto aos edifícios pode ser justificada, tanto pela
intencionalidade dos fotógrafos oficiais, como pela baixa densidade
populacional nos primeiros anos da capital. Embora Brasília tenha sido
saudada como um grande feito, a ampla divulgação destas imagens esté-
reis pelo mundo contribuiu para a construção de uma argumentação
negativa da crítica internacional.
Em 1970, a escritora Clarice Lispector publicou o texto “Nos primei-
ros começos de Brasília”1, com algumas das suas inquietações sobre a
cidade, em razão de sua visita em 1962 2 . Clarice inicia sua crônica nar-
rando a artificialidade de Brasília: “tão artificial como deveria ter sido o

1
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 Junho 1970/ In (Alberto Xavier, Julio Katinsky, 2012, p. 179)
2
No livro “Para não esquecer”, o mesmo texto tem o nome de “Brasília” e Clarice comenta ao
final: “estive em Brasília em 1962. Escrevi sobre ela o que foi agora mesmo lido. E agora voltei
doze anos depois por dois dias. E escrevi também. Aí vai tudo o que eu vomitei” (1999, p. 44),
referindo-se a crônica com o titulo “Brasília: esplendor”.

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mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar
um homem especialmente para aquele mundo”. O homem criado para
esta cidade ela chamou de brasiliário.

Fig. 01 | Congresso Nacional, cerca de 1960. Marcel Gautherot. Fonte: Instituto


Moreira Sales

Anos mais tarde, o antropólogo estadunidense James Holston reafirmou


em seu livro “A cidade modernista: uma crítica a Brasília e sua utopia”,
de 1989, que Brasília representou uma jornada de separação, onde a
cidade inventada havia desconsiderado aspectos históricos e sociais do
Brasil. Para Clarice, a modernidade que a cidade representa não encon-
tra uma relação entre o lugar e seus habitantes, “Brasília ainda não tem
o homem de Brasília”.
Baseado na crônica de Clarice, em 1986 Zuleica Porto e Sérgio Bazi
produziram o filme Brasiliários, dando voz a uma representação da
autora enquanto ela vagueia pela cidade. Contudo, a Brasília represen-

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tada na tela não é a mesma exaustivamente explorada pela imprensa
oficial e pela critica, nem mesmo aquela que Clarice reconheceu. Torna-
-se clara, portanto, a intenção dos diretores em retratar a Brasília viven-
ciada por eles, jovens crescidos na cidade e que propõem um novo olhar
sobre ela. Embora o vazio seja representado em Brasiliários, os diretores
lançam indícios de uma outra Brasília, percorrendo uma paisagem ordi-
nária onde a narrativa fundadora da cidade, a sua representação hege-
mônica, moderna e legitimadora vai aos poucos se desfazendo. A cidade
que inicialmente era mostrada do alto, ou em perspectivas que enqua-
dravam monumentos, começa a mostrar a multiplicidade de lugares. Os
monumentos, volumes construídos, a geometria das grandes estruturas,
já não interessam aos artistas, fotógrafos e cineastas?
A análise das crônicas de Clarice e do filme Brasiliários em contra-
ponto as criticas oficiais podem demonstrar como essa cidade planejada
pode ser lida e configurada a partir das diversas narrativas que compõe o
seu imaginário. Em seu artigo intitulado “Arquitetura e Narratividade”, o
filósofo Paul Ricoeur (1998) faz uma analogia entre a construção textual e
a construção do espaço: “uma obra de arquitetura é como uma mensagem
polifônica, oferecida à leitura, ao mesmo tempo, global e analítica”.
Para o autor, da mesma forma em que a narrativa textual se constrói
em uma temporalidade, o espaço arquitetônico, se concretiza ao longo
do tempo. Ricoeur propôs um “embaralhamento” entre a configuração
arquitetônica e a configuração da narrativa temporal, ou seja, cruzar o
espaço e tempo com o construir e o narrar - “a arquitetura está para o
espaço como a narrativa está para o tempo, a saber, como operação con-
figurante”. Assim como o tempo narrado apresenta-se como um misto
entre o tempo cronológico e o tempo psíquico, o espaço construído seria
um misto entre o espaço geométrico e o das memórias vividas.
Revela-se, portanto, em Brasiliários a busca por uma identidade brasi-
liense a partir da uma narrativa ordinária e angustiante, que traz à tona uma
Brasília extra oficial, que só é percebida no cotidiano dos seus habitantes. A
partir da analise das criticas que Brasília recebeu e que foram incorporadas ao
seu imaginário, contrastam-se, numa representação também critica, ima-
gens de uma cidade vivida e que custa a revelar as suas entranhas.

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A crítica oficial: vazio e monotonia
Tanto o projeto como a inauguração de Brasília na década de 1960 estão
inseridos em um contexto de revisão dos princípios modernistas expres-
sos na Carta de Atenas. Neste sentido a crítica a cidade planejada pode
ser dividida em duas categorias, sendo: I: Brasília como uma transposi-
ção literal da Carta de Atenas; II: Brasília como uma versão revisitada do
movimento moderno, relativizando as influências modernistas no pro-
jeto de Lucio Costa. Da primeira vertente, pode-se inserir o posiciona-
mento da crítica não especificamente a Brasília, mas ao urbanismo
modernista como um todo. Jane Jacobs em “Morte e vida nas grandes
cidades americanas” de 1961, pode ser considerado um marco teórico
neste sentido. Para Jacobs, o urbanismo racionalista defendido pelos
Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM) geraram
cidades monótonas e sem vida, tanto pela redefinição do traçado urbano
como pela setorização monofuncional e abstração formal, que minavam
a vitalidade das cidades. O sucesso desta publicação, exerceu grande
influência nas críticas ao movimento moderno, como pode ser perce-
bida no texto de James Holston.
Para o autor a concepção da capital, ao adotar o ideário da Cidade
Funcionalista, criou uma “jornada de separação” entre Brasília e o res-
tante do país, anulando experiências da vida urbana tradicional das
cidades brasileiras. Holston atribui a redefinição urbana modernista à
desorientação do habitante, à monotonia, abstração formal e à impesso-
alidade da arquitetura modernista que, ao invés de criar espaços propí-
cios ao convívio social, gerou um esvaziamento da esfera pública.
Contudo, a partir da década 1980, com a consolidação da cidade, as
críticas a Brasília se voltam para outras questões que não apenas aos seus
aspectos formais, mas à cidade cotidiana, vivenciada por seus habitantes.
Frederico de Holanda em “Além do maniqueísmo” (HOLANDA,
2012), fez importantes apontamentos sobre o vício de alguns críticos em
analisar questões formais desconsiderando aspectos como a apropria-
ção social dos espaços ordinários na cidade. Holanda ressalta que os
amplos espaços livres que configuram a esfera pública de Brasília,
embora pudessem ser mais explorados, apresentam uma vitalidade
urbana semelhante aos espaços de outras cidades. Com base na sua

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vivência como morador de Brasília desde 1972, o autor relata que a urba-
nidade3 existente em espaços como o comércio local, a feira semanal da
torre de TV, o uso das faixas arborizadas das superquadras para cami-
nhadas e mais recentemente o fechamento do Eixo Rodoviário para ati-
vidades de lazer, revelam uma outra visão da cidade.
Para Holanda, os amplos espaços livres apresentam um grande
potencial que poderia ser mais explorado, no sentido de possibilitar uma
maior diversidade social. Entretanto, ressalta que as questões formais,
projetuais e construtivas não são as únicas definidoras do espaço, e
aponta que as diferentes formas de apropriação subvertem as definições
do projeto revelando novas formas de urbanidade que extrapolam o
determinismo da cidade planejada.

Brasiliários: a angustia do habitante de Brasília


Empossado em janeiro de 1956, o então presidente Juscelino Kubits-
check, foi responsável por tornar concreta uma aspiração esboçada e já
definida em suas linhas gerais há muitos anos. Em “Arquitetura Con-
temporânea no Brasil”, Yves Bruand descreve o empreendimento e o
mérito de Juscelino por ter “conseguido dotá-lo de um caráter excepcio-
nal, apto a canalizar o entusiasmo geral e, ter contribuído ativamente
para a transformação desse entusiasmo numa das mais interessantes
manifestações do urbanismo de nossa época” (Bruand, 2008).
Brasília demonstrou uma grande capacidade de criação - através da
caracterização da arquitetura moderna, pela interpretação do programa
como principal elemento estimulador da forma, de possibilidades na con-
figuração do espaço habitável, sem deixar de incorporar alguns valores da
arquitetura brasileira tradicional, foi inspirada num ideal democrático
preconizado pela teoria modernista e preocupada com o bem-estar dos
habitantes, somada à comunhão entre a arquitetura e o urbanismo.
Em linhas gerais, esta é a principal linha narrativa do nascimento da
cidade, que vai sendo configurada e acrescida de outras narrativas e sen-

3
Para Holanda, o termo Urbanidade refere-se à cidade enquanto realidade física mas
também à qualidade das relações que nela acontecem. A urbanidade diz respeito
às dimensões adequadas dos espaços públicos à intensa presença de pessoas nestes
lugares. (Holanda 2012, 390)

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tidos, a partir do momento em que começa a ser vivenciada, criando
uma rede de possibilidades dentro da dialética do “habitar e construir”.
Brasília quando inaugurada não estava pronta, configurava-se um
imenso canteiro de obras, o teatro estava inacabado, o palácio das Rela-
ções Exteriores ainda não existia e a Catedral Metropolitana contava
apenas com a estrutura de concreto e aço. Aos poucos, esta realidade em
construção transforma-se em fato cotidiano.

Fig. 02 | Vista da Catedral Metropolitana,1960. Peter Scheier. Fonte: Instituto


Moreira Sales

Na primeira crônica de Clarice Lispector, sua descrição refere-se a esta


experiência de cidade inacabada, fazendo uma analogia com as ruinas,
pela sensação de mistério e solidão. As fotos da inauguração da capital
mostram esse cenário, onde as cartolas e fraques misturam-se a enormes
chapéus de palha ou couro entre salões de festas e ruas de terra e pó.

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A criação não é uma compreensão, é um novo mistério. – Quando
morri, um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no
mundo. Havia um taxi parado. Sem Chofer. Ai que medo. – Lúcio
Costa e Oscar Niemeyer, dois homens solitários. – Olho Brasília como
olho Roma: Brasília começou com uma simplificação final de ruínas.
A hera ainda não cresceu. (Lispector, 1999, 41)

Para Clarice, a arquitetura da cidade de sólidos geométricos que emer-


gem no meio do planalto central, fruto da imaginação de Lucio Costa e
Oscar Niemeyer, foram idealizadas para se perpetuar no tempo como
ruinas de uma civilização extinta, análoga às ruinas de Roma, pronta
para ser tomada por heras, sendo ao mesmo tempo passado e futuro.

Fig. 03 | still do filme Brasiliários

Teria sido Brasília um produto de uma civilização antiga? Para Clarice,


os primeiros brasiliários seriam uma civilização de pessoas louras,
esguias, se vestiam de ouro branco e faiscavam ao sol, e que, por serem
cegos explicaria a amplitude dos vazios, “é por isso que em Brasília não
há onde esbarrar”.

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Estes brasiliários, vivendo numa sociedade desenvolvida e perfeita,
não teriam motivos pelos quais lutar ou mesmo se reproduzir, e acaba-
ram sendo extintos. Nas ruinas desta civilização perdida, surge uma
nova população, de homens e mulheres morenos e baixos, de olhos
esquivos e inquietos, que tomaram a cidade e nela permaneceram. Cer-
tos de que aquele não era seu lugar, se apropriaram a sua forma, e desen-
volveram um olhar contemplativo para as ruinas desta antiga civilização
No filme Brasiliários a cidade representada na tela é a cidade habi-
tada, vivida pelos diretores, jovens que reivindicam sua identidade.
Grandes estruturas de concreto tomadas pela vegetação, dando indícios
do seu envelhecimento. Os edifícios representados não são os monu-
mentos de Niemeyer, mas os edifícios comerciais, os blocos residenciais,
as vias de abastecimento, os fundos. As janelas estão acesas, há lixo no
chão. Mas de fato, a única pessoa que aparece no filme é Clarice, que
contempla e caminha.

Fig. 04 | Still do filme Brasiliários

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É mostrada uma Brasília não oficial, pelos cantos, pelos territórios aban-
donados, impessoais, aqueles que o habitante comum, o homem ordiná-
rio é capaz de perceber em seu cotidiano, mas que não passa por eles
sem ter algum impacto ou incômodo. São imagens de Brasília espontâ-
nea e cotidiana onde os brasiliários não aparecem, mas os indícios da
sua existência são apresentados.
Ao contrario da suspeita da escritora Clarice - de que a assepsia da
cidade não havia considerado os submundos - nas primeiras cenas do
filme, sua personagem perambula pelas galerias do Setor de Diversões
Sul (Conic), lugar historicamente associado a vida boêmia na cidade. Se
a vida boêmia e os submundos existem, porquê estes não apareciam nas
imagens de Brasília?

Fig. 05 | still do filme Brasiliários

Os diretores exploram imagens de uma cidade que resiste e se impõe à


sua arquitetura considerada fria e impessoal. A diretora Zuleica Porto
afirmou em uma entrevista4:

4
Entrevista transcrita no livro “ O Sonho Candango: Memória Afetiva dos Anos 80”.
(RIBONDI, PEREIRA, & SCHETTINO, 2012)

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O filme é a cidade, sem pretensão. É resultado da cidade, da experiên-
cia brasiliense. Não poderia ter feito isso em nenhum outro lugar. Não
só por mostrar Brasília. Mas também por causa da forma de envolvi-
mento das pessoas da equipe, que tinham um pensamento parecido...
e o filme queria, na verdade traduzir a experiência desta cidade, que é
a minha experiência também. (Porto, 2012 apud Ribondi, 2012)

As sequencias exploram imagens cotidianas da cidade, os habitantes são


mostrados dentro de carros ou mesmo por meio de luzes acessas nos
edifícios comerciais ou pela ocupação das varandas com plantas e tol-
dos. É uma cidade que vive fora do eixo monumental, de acordo com
Jacques Cheuiche, fotógrafo de Brasiliários:
O filme tem delicadeza, uma homenagem a Brasília, um voo rasante na
cidade. É um voo que não vê de cima, vê aqui de baixo mesmo. Foi isso
que ficou de mim desta experiência: um voo baixo, bem em cima da
terra. Brasiliários lambe Brasília (Cheiuiche, 2012 apud Ribondi, 2012).

Fica clara a intenção afetiva com a cidade quando o som marca a pre-
sença como uma segunda voz, em resposta a fala de Clarice, mostrando
a distinção dos discursos, como numa conversa: ora a “voz” de Clarice
quando deambula pelos vazios da cidade, ora um som dissimulado que
causa estranhamento e coincide com os momentos mais poéticos e afe-
tuosos. Porque, segundo Guilherme Vaz, autor da trilha, “É a encarna-
ção da utopia de Brasília. O filme não é acadêmico, grave, dramático.
Porque a cidade não foi criada para isso”, indicando a sua preocupação
em dar sentido ao que a cidade representa para ele, habitante da cidade.
E completa: “Brasiliários é uma reflexão clara, lucida e doída da reali-
dade. O filme é belo, com grandes espaços, vento, poeira, poucas pala-
vras. Uma melancolia que acaba sendo a luta clássica da beleza que tenta
se impor diante do mundo” (Vaz, 2012 apud Ribondi, 2012).
Brasiliários é fruto de uma geração que cresceu num período de
repressão pela ditadura militar (1964-1985) fazendo um cinema compro-
missado com a realidade e o momento histórico que o país atravessava,
numa cidade onde a política é presença constante. A época em que Bra-
siliários foi produzido é marcada pelo crescimento acelerado principal-

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mente pelo surgimento de novas cidades-satélites, que começavam a
exercer forte pressão no Plano Piloto. A pureza do projeto e sua utopia
começam a ser contaminados pela pressão e reivindicação identitária da
sua periferia.

A guisa de conclusão
Através das diversas narrativas que constroem a representação de Brasí-
lia é possível perceber os diversos agentes que atuam na sua construção.
Assim como apontou Ricoeur, a construção das narrativas do espaço
construído é uma operação coletiva, que se dá ao longo do tempo. Rom-
pendo com os limites impostos pelas narrativas oficiais, as narrativas
ordinárias exploram uma cidade em seus espaços corriqueiros: os espa-
ços anônimos, cotidianos, sem limites precisos, obsoletos, os fundos.
Estas formas de representação, embora muitas vezes opostas, não se
excluem, mas se reconhecem e se complementam, possibilitando, a par-
tir delas, novas formas de apropriação da cidade. Neste sentido, tanto a
literatura como o cinema e a fotografia nos apresentam diferentes visões
da cidade, que enfatizam a experiência, o corpo e a alteridade na cidade,
e reafirmam a força da vida coletiva, uma complexidade de sentidos que
confronta qualquer pensamento hegemônico.
Percebe-se também uma cidade que não se exprime apenas pelos
espaços edificados, os monumentos e as imagens oficiais, mas pela apro-
priação destes espaços – sejam estas vivências dos seus habitantes, visi-
tantes, críticos ou do tempo. Reconstruindo a cada instante, como apon-
tou Ricoeur, novas narrativas que se configuram e reconfiguram,
revelando uma cidade que embora tenha uma data de nascimento, está
em contínua transformação.

Bibliografia
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Trad.) São Paulo: Perspectiva.
HOLANDA, F. d. (2012). Além do maniqueísmo. Em A. X. Katinsky, Brasília:
antologia crítica (pp. 387-394). São Paulo: Cosac & Naify.
HOLSTON, J. (1993). A cidade modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia (2
ed.). (M. Coelho, Trad.) São Paulo: Companhia das Letras.

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ria afetiva dos anos 80. Brasília: Gabinete C.
RICOEUR, P. (1998). Architecture e Narrativité. (R. Urbanisme, Ed.) Revue
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XAVIER, Alberto; KATINSKY, Julio. (2012). Brasília - Antologia Crítica. São Paulo.

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