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Biblioteca de Educação

Carlos R. Brandão .."J.,, j

EU não conheço a resposta


se Quer mesmo que lhe diga. ...l..•...
. ., J f

É difícil defender
só com palavras a vida.
(João Cabral de Meio Neto· "Morte e Vida Severina")

É difícillutar com a palavra, mas ela está solta e na


luta. poetas de todo mundo sabem otsso. Educa-
dores também.
Neste livro, o Educador é visto como um sujeito não
da Escola, mas da História. um profissional Queusa
a palavra como instrumento de trabalho, arma de
uma prática coletiva.
canos Rodrigues Brandão, nos textos envolventes e
poéttcos de LUTARCOMA PALAVRA~convida-nos a
pensar a Educação para além do metodo, do siste-
ma, da escola. Torná-Ia viva e presente: ofício, poe-
ma, exercício de crítica e busca de carnínnos,
"'I

Capa: Oáudio Mesquita (Lauro)

o grande bem é a pl·Ópria vida.


© CoPyright by Cados R. Brandão
l.aedição: outubro 1982 Bertold Brecht

(conforme estava escrito em um muro em Campinas)

Direitos adquiridos para a língua portuguesa por


EDIÇÕES GRAAL LTDA.
Rua Hennenegildo de Barros, 31-A _ Glória
20.240 - Rio de Janeiro _ RJ

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Este livro é para os companheiros do Movimento de


B8171 Brandão, Carlos Rodrigues. Educação de Base e para a memória da história
Lutar com a palavra: escritos sobre o trabalho do edu- que vivemos juntos.
cador / Caríos Rodrigues Brandão. - Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1982.

(Biblioteca de educação; v. n. 2)
Bibliografia.

1. Educação - Aspectos políticos 2. Edut-ação popular


I. Título n. Série.

82-0415 CDD - 371.102


CDU - 37.014.53
NOTAS

1. Joaquim de Fiori foi um monge cisterciense, durante muitos anos abade


em Cerezzo, na Calábria. Ele difundiu a seu tempo, após demorados
estudos de Teologia, idéias que vieram a ser condenadas pela Igreja.
Quase à beira da heresia e precisando retratar-se de suas teorias sobre
o cristianismo, faleceu em 1200. Negava a unidade real da Santíssima
Trindade'. Suas idéias são basicamente as seguintes. A história do mun-
do divide-se em 3 grandes eras: A do Pai ou da Lei, originada na Cria-
ção e terminada com a vinda de Cristo; A era do Filho ou do Evan-
gelho, próxima, a seu tempo, de chegar ao seu final; A era do Espírito
Santo ou do Evangelho Eterno. A partir de 1260 seria implantada a
Era do Espírito Santo, preparada pelos homens desde antes. Cairia so-
bre a Terra um período definitivo de paz, caridade e concórdia entre
homens espirituais e capazes de fazerem uma nova leitura do Evan-
gelho. Não haveria mais nem a Igreja e nem o papado. Deus reina-
ria aqui, entre os homens e com eles. (Brandão, 1978, 143).
ANTÔNIO CÍCERO DE SOUZA *:'

BIBLIOGRAFIA
Brandão, Carlos Rodrigues
O Divino, O Santo e a Senhora
FUNARTE, Rio 1978

Lanternari, Vittório
As Religiões dos Oprimidos Mas então eu pergunto pro senhor: é a mesma coisa?
Perspectiva, S. Paulo, 1975 Ciço, num pedaço do que falou
Monteiro, Douglas Teixeira
Os Erantes do Novo Século
Duas Cidades, São Paulo, 1974

Turner, Victor
O Processo Ritual
Vozes, Rio, 1974

* Texto completo da entrevista feito com ele na estrada entre


Andradas e Caldas, em Minas Gerais, e que foi publicada em
parte, como Prefácio e Posfácio de: A Questão política da
158 , I
Educação Popular.
Quando saiu publicada pela primeira vez, esta segunda
entrevista com Antônio Cícero de Souza foi resumida.
Retirei dela alguns momentos não muito relacionados com
o assunto do livro de que sua fala foi o prefácio. Retirei
também as minhas falas. Nesta versão completa transcrevo
todas as falas de um e outro e mais algumas observações
feitas no momento, ou depois. Escrevo em itálico as mi-
nhas intervenções e coloco as pequenas notas de escla-
recimento entre parênteses.
Então a gente estava falando daquela outra vez sobre Folia
de Reis, Folia de Santos Reis Daí você me explicou tudo, do mes-
mo jeito como depois eu vi lá em Caldas, como lhe falei. Mas hoje
eu queria aprender uma outra coisa. Eu queria saber como é que
as pessoas viram folião. Como é, por exemplo, que tem um que
é o "mestre" e é quem sabe mais. Como é que tem os outros que
ouvem ele e vão aprendendo. Quer dizer, como as pessoas vão sa-
bendo o que não sabiam. Ciço, como é que o povo aqui aprende?
Bom, eu penso que há de ser conforme o senhor viu aconte-
cendo lá. Como é que foi? Um canta, o outro olha, aprende.
Um canta, o outro escuta, os outros companheiros dele, lá, estão
escutando. Aquilo vai, vai no sentido de um, do outro. Um ouve,
repete. O senhor não viu que o sistema é assim? Não viu que o
mestre chega e começa um cantorio. Ele canta uma parte da toa-
da. Como é que os outros fazem? Como é?
Bem, eu vi que quando o mestre acaba de cantar os outros vão
e repetem a mesma coisa. Daí ele passa pro resto dos versos.
Cantam mais dois.
E vai, e vai, e é desse jeito que vai. Então... aí, então, canta
um que é o mestre. .. sabe, o que sabe. Canta. Os outros repe-
tem. Não é? Repete no toque da viola, violão, tudo. Repete no
jeito de cantar. Mas já é outro tom. Já é outro. Não é mesmo?
Principalmente aqueles que vai ficando pro fim e só ajunta aquele
grito fino no fim, bonito. Um grito fino, esticado. "Tipe", cha-
mam. Chamam "tipe", "tripe", "tiple" eu nem sei.' ..
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. I
Lá em Goiás, de onde eu vim, chama "requinta". Requinta". classes, não é? Cobra, pQr exemplo... Cobra. Deus que nos
livre (cospe no chão). Par~ce que ela já nasce com a maldade dela
"Requinta"? "Requinta" ...
aprendida. Agora, outros. Outras qualidades de criação? É dife-
"Requinta". Pois por São Paulo falam é "tipe", Tem até rente. É. É diferente. Ptlssarinho. Conhece? Conhece. Já viu
gente que diz: "tipe e contra-tipe", filhote no ninho, ali, no ntnho dele? Então, aquilo leva tempo.
Nasce miúdo, mais do que ê depois. Nasce ali, não sabe nada. É
Pois então, tem muitos nomes, não é mesmo? Esses o senhor
só abrindo o bico, esperando comida que a mãe trás. Aprende
não pensa que é fácil não. Tudo tem o seu difícil. Quem fica de
muito, até aprende a voar que é a coisa que é mais do passarinho
fora, olha, pensa: "esse é o fácil, é só um grito fino no fim". Não
depois que ele cresceu. Pois aprende. Tem qualidade de pássaro
é não. Tem o tom, tem o tom dele, o jeito de entoar aquilo. Eu
que a mãe vai, o pai, forç/i ele sair do ninho, andar pelo galho.
mesmo nunca cantei de "tipe" quando eu fui moço.
Força ele dar os primeiro voínhos. Tudo é aprendido. Outras
Agora, Ciço, voltando ali, então o que você tá dizendo é que criações, eu não sei... boi, porco, cachorro. Cachorro aprende.
cada um vai olhando quem sabe e vai aprendendo? 13 assim? Aprende com eles, aprende ~om nós, com o homem. Não é assim?
Então. Criança aprende talb.bém, só que mais. Tá em casa, uma
Quem aprende é de menino, De criança? Pois é, de muito filha olhando uma mãe. Tã aprendendo. Um filho na roça, olha
cedo. O senhor vai e fala com um folião daqui, de Caldas, de o pai, vê como ele; faz. Faz o mesmo jeito, aprende.
Poços, de qualquer lugar. Tem poucos que não começou de me-
nino, assim, ó (mostra com a mão perto do joelho). Assim, de E; isso mesmo. Agora, Ciço, eu queria saber se você acha
pequeno. Vai, um tem vocação, tem um pai que é mestre de Folia. que aí tem um tipo de uma educação. Como a gente Ouve falando.
Ou que nem é, mas que sai nela, acostumado. Então o menino Tem?
chega, tem sete anos, tem oito. Pede: "pai, eu posso ir na Folia?". Tem. .. eu penso que tem.
O pai fala: "bom, se você quer ir, quer ajudar, então pode". Tem
pai que não deixa, que não gosta. Antigamente Folia andava muito. Então, como é que a gente pode pensar essas coisas. Por
pras brenhas, pra esses fundos daí, sertão. Muito pai deixa. Muito exemplo, pra você o que que é educação?
pai tem gosto que o filho siga a inclinação dele. Fala: "se você tem Agora complicou, profeSsor (ri, cospe no chão, trabalha o fumo
inclinação, vai". O menino vai, acompanha. Vai outro ano, de um cigarro de palha). Então? Agora, o senhor chega e per-
outro ano. Daqui há pouco tá sabendo. Ouvindo, ouvindo, ouvin- gunta: "Ciço, o que é educação?" Tá certo. Tá bom. O que eu
do. Vai ouvindo, vendo, presta atenção aqui, ali. Vai aprendendo. penso, eu digo. Então, veja, o senhor fala: "Educação"; daí eu
Um dia apanha uma viola. O pai ensina, às vezes não. Mas tem falo: "educação". A palavra é a mesma, não é? A pronúncia
muito pai que ensina. "Põe dedo aqui, menino, assim, agora toca eu quero dizer. É uma só; "Educação". Mas eu pergunto pro
aqui, assim". Com o tempo o menino vai sabendo. E mesmo que senhor: "é a mesma coisa"? "É do mesmo que a gente fala quando
ninguém não ensine, ele aprende o ensino dele mesmo. De ver os diz essa palavra?" Aí eu digo: "Não". Eu digo pro senhor desse
mais velhos, de fazer igual, errando, pelejando. jeito: "não, não é". Eu pellso que não.
Eu penso que pode ser assim mesmo. Tanto, Ciço, que lá em É, Cícero, eu acho que Jiocêpode ter razão aí nisso aí ...
Goiás, na terra da minha mulher, no sistema de Folia do Divino,
você conhece? Conheço, quer dizer, dos antigos de antes, tinha por Educação ... quando o ~nhor chega e diz "educação", vem do
aqui, Tinha muito. Pois então, lá nessa terra que eu falei a Folia seu mundo, o mesmo... Ulll outro. Quando eu sou quem fala,
do Divino sai com quatro cantando só. Vai dois adultos e vai dois vem dum outro lugar, de Ulll outro mundo. Vem dum fundo de
meninos. Um adulto põe primeira (canta na primeira voz). Outro oco que é o lugar da vida dUm.pobre, como tem gente que diz (ri,
responde na segunda. Um menino "requinta" na primeira, o outro ri de novo). Comparação. No seu, essa palavra vem junto com
na segunda. Sem um menino pra dar o grito não cantam. E é desde o que? Com escola, não Vem? Com aquele professor fino, .de
pequeno. roupa boa, estudado; livro novo, bom, caderno, caneta, tudo muito
separado, cada coisa no seu jeito, como deve ser. Um estudo que
Pois então. Então. Tá vendo? Eu penso que é desse jeito cresce e que vai muito longe de um saberzinho só de alfabeto ...
aí. Como é que bicho aprende? Como é que é? Tem diversas uma conta aqui, outra ali. bo seu mundo vem um estudo de es-

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companheiro meu na roça - na cidade mesmo - não teve nem
cola que muda gente em doutor. f: fato? Penso que é, mas eu isso. A gente vê velho aí pra esses fundos que não sabe separar
penso de. longe (ri de novo). Porque eu nunca vi isso por aqui. um A dum B. Gente que pega dum lápis e desenha o nome dele
Eu penso que a educação foi uma coisa boa pra mim, Ciço. lá naquela dificuldade, naquele sofrimento. Mão que foi feita pro
Mas lá onde eu estudei a gente aprendia a achar que educação é cabo da enxada acha a caneta muito pesada. E quem não teve
uma coisa que devia de, ter da mesma maneira pra todo mundo. prazo dum estudozinho regular quando era menino, de velho é que
Estudo, saber, uma vida que melhora; tudo isso. não aprende mais. Aprende? Pra quê? Porque eu vou dizer uma
coisa pro senhor: pra quem é como esse povo da roça, o estudo
Então, quando o senhor vem e fala a pronúncia "educação", na de escola é de pouca valia. Porque o estudo é pouco e não serve
sua educação tem disso. Quando o senhor fala a palavra conforme pra fazer da gente um melhor. Serve só pra gente seguir sendo
eu sei pronunciar também, ela vem misturada no pensamento com como era, com um pouquinho de leitura.
isso tudo; recursos que no seu mundo tem. Uma coisa assim como
aquilo que a gente conversava outro dia, lembra? (refere-se a uma Tanta coisa mudou. Tanta coisa. Veja o sistema da vida da
primeira entrevista, sobre religião popular) Dos evangelhos (tira o gente aqui, nessas roças. O senhor não deve de conhecer, é da
chapéu da cabeça): "Semente que caiu na boa terra e deu fruto cidade, conforme disse aquele dia. Terra era mais fácil, tinha mais.
bom". Quer dizer aquilo, que valeu, que teve valia ali. Que não Família tinha terra; sua ou de um outro. Mas tinha onde plantar,
foi como semente que caiu na pedra e não deu nada. Que não foi onde viver. Pobreza tinha, mas era tudo muito diferente. Mais
como aquelas que caíram no caminho e veio passarinho e comeu lavoura, mais fartura: milho, feijão, arroz, mandioca, gado, disso
tudo. Conforme a gente conversava noutro dia. tudo que agora tem ainda, mas menos. Ou então mais do que antes
tinha, mas pra mais gente também, não é mesmo. Mais dividido.
(O cigarro de palha ficou pronto, ele acende e faz sair a fumaça do Eu tenho lembrança daquele tempo. Era moço, tinha fé na vida.
prazer do primeiro trago). Foi naquele tempo que eu falei daquela vez, que eu era Folião de
Quando eu falo, o pensamento vem dum outro mundo. Um Santos Reis também. Tinha tempo pra isso, e tinha inclinação.
Cadê o que tinha?
que pode até ser vizinho do seu, vizinho assim, de confrontante, mas
não é o mesmo. A escolhinha cai-não-cai ali num canto de roça, Então, Ciço, o senhor respondeu muita coisa. Eu aprendi mui-
a professorinha dali mesmo, os recursos, tudo como é o resto da to. Mas vamos voltar naquilo. Aquela idéia de "educação" que é
regra de pobre. Estudo? Um ano, dois, nem três. Comigo não uma palavra só quando eu falo e você, mas que é duas coisas: uma
foi nem três. Então eu digo: "educação" e penso: "enxada"; o pra mim e outra pro senhor. Como é, Ciço?
que foi pra mim.
O senhor faz pergunta com um jeito de quem já sabe a resposta
Então, você. pensa que se tivesse podido estudar muitos anos (ri, tira uma fumaça do cigarro) Mas eu explico assim. A educa-
isso teria mudado a sua vida, Cícero? ção que chega pro senhor é a sua, da sua gente. f: pros usos do
Porque é asim desse jeito que eu queria explicar pro senhor. seu mundo. Agora, a minha educação é a sua. Ela tem o saber
Tem uma educação que vira o destino de um homem, não vira? de sua gente e ela serve pra que mundo? Não é assim mesmo?
Ele entra ali com um destino e sai com outro. Quem fez? Estudo, A professora da escola dos seus meninos pode até ser uma vizinha
foi estudo regular: um saber completo. Ele entra dum tamanho e sua, uma parente, até uma irmã, não pode? . Agora, e a dos meus
sai do outro. Parece que essa educação, que foi a sua, tem uma meninos? Porque, nessas escolinhas de roça, de beira de caminho,
força que tá nela e não tá. Como é que um menino como eu foi conforme é a deles (aponta um rumo que deve ser o da escola, na
mudar num doutor? num professor? Num sujeito de muita valia. estrada, além), mesmo quando a professorinha é uma gente daqui,
o saber dela, o saberzinho dos meninos não é. Os livros, eu digo.
Agora, se eu quero lembrar da minha: "enxada". Se eu quero As idéias que tem ali. Menino aqui aprende na ilusão dos país;
lembrar: "trabalho". E eu hoje só dou conta de um lembrarzinho: aquela ilusão de mudar com estudo, um dia. Mas acaba saindo
a escolinha, um ano, dois, um caderninho, um livro. Cartilha? Eu como eu, como tantos, com umas continhas, uma leitura. Isso nin-
não sei, eu não lembro. Aquilo de um bê-a-bá, de um alfabetozi- guém não vai dizer que não é bom, vai? Mas pra nós é uma coisa
nho. Deu pra aprender? Não deu. Deu pra saber escrever um que ajuda e não desenvolve.
nome, pra ler uma letrinha, outra. Foi só, o senhor sabe? Muito

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Sei, Ciço, eu acho que eu compreendo. costumes. Mas uma educação de estudo, fora os dois menorzinhos,
eles tão também, que eles tão na escola".
Então, "educação". É por isso que eu digo que a sua é a sua
e a minha é a sua. Só que a sua lhe fez. E a minha? ... Que Então, quer dizer que é assim: tem uma educação - que eu
a gente aprende mesmo, pros usos da roça, é na roça. É ali mes- nem sei mesmo como é o nome que ela tem - que existe dentro
mo: um filho com um pai, uma filha com a mãe, com uma avó. do mundo da roça, entre nós. Agora, tem uma - essa que se cha-
Os meninos vendo os pais trabalhando. ma mesmo "educação" - que tem na escola. Essa que eu digo
que é sua. É a educação que eu digo: "de estudo", de escola, pro-
lnda ontem o senhor me perguntava da Folia de Santos Reis fessora, professorinha, coisa e tal. Daqui, mas de lá. A gente
que a gente vimos em Caldas: "Ciço, como é que um menino manda os meninos pra escola. Quem é que não manda? Só mes-
aprende o cantaria? As respostas?" (dos versos cantados pelo mes- mo um sujeito muito atrasado. Um que muda daqui pra lá a toda
tre) . Pois o senhor mesmo viu o costume. Eu precisei lhe ensi- hora. Um outro que mora aí, pros fundos de um sertão, longe de
nar? Meninos tão ali. Vai vendo um, outro, acompanha o pai, um tudo. A gente manda. Todo mundo aqui manda menino pro estu-
tio. Olha, aprende. Tem inclinação prum cantaria? Prum ins- do. É longe (aponta a direção da escola isolada onde as crianças
trumento? Canta. Tá aprendendo. Pega, toca, tá aprendendo. do lugarejo estudam), o senhor viu, mas manda. Podiam tá na
Toca uma caixa (tambor da Folia de Santos Reis), tá aprendendo roça com o pai, mas tão na escola. Mas quem é pobre e vive nessa
caixa. Faz um tipe (tipo de voz dos cantores da Folia), tá apren- descrença de trabalhar dum tanto, a gente crê e descrê.
dendo cantar. Vai assim, no ato, no seguir do acontecido.
Menino desses pode crescer aí sem um estudozinho que seja,
Agora, nisso tudo tem uma educação, não tem? Pode não ter da escola? Não pode. Eu digo pro senhor, não pode. O meu
um estudo. Um tipo dum estudo pode ser que não tenha. Mas saberzinho que já é pouco, veio de aprender com os antigos, mais
se ele não sabia e ficou sabendo é porque no acontecido tinha uma do que na escola. Veio a poder de assunto, mais do que de estudo
lição escondida. Não é uma escola; não tem um professor, assim, regular. Finado meu pai já dizia assim. Mas pra esses meninos,
na frente, com o nome "professor". Não tem '" Você vai jun- quem sabe o que espera? Vai ter vida na roça pra eles todo o
tando, vai juntando e no fim dá o saber do roceiro, que é um tudo tempo? Tá parecendo que não. E, me diga, quem é quem na ci-
que a gente precisa pra viver a vida conforme Deus é servido. dade sem um saberzinho de estudo? Se bem que a gente fica pen-
Um tipo dum saber tem que ter aí mesmo, Ciço. Quem vai sando: "o que é que a escola ensina, meu Deus?" Sabe? Tem
dizer que não. Mas isso aí você, por exemplo, você chamaria de vez que eu penso que pros pobres a escola ensina o mundo como
uma educação? ele não é.

Quem que vai chamar isso aí de uma educação? Um tipo dum Eu mesmo tô de plano de sair daqui e ir pra cidade. Tê aqui
ensino esparramado, coisa de sertão. Mas tem, não tem? Não sei. não faz muito. Vim de longe. Penso de ir pra Poços, pra São
Paulo. Vida aqui tá difícil. Tenho vontade de pegar a família
Podia ser que tivesse mais, por exemplo, na hora que um mais velho
e ir pra cidade. Mas a cidade pede estudo, não é mesmo?
chama um menino, um filho. Chama num canto. Fala, dá um
conselho. Fala sério um assunto: assim, assim. Aí pode. Ele é Ciço, Cícero, tem gente que fala de uma outra educação. Fala
um pai, um padrinho, um mais velho. Na hora ele representa como "Educação Popular". Pode ser um ensino de escola, com professor,
de um professor, até como um padre. Tem-rum saber que é falado mas ele pode ser diferente. Por exemplo: pode ser pra ajudar quem
alí naquela hora. Não tem um estudo, mas tem um saber. O me- já é adulto e não estudou de criança. Quem não aprendeu ler e
nino baixa a cabeça, daí ele escuta; aprendeu, às vezes não esquece escrever e de repente quer aprender. A gente pensa que podia reu-
nir um pessoal e fazer uma educação que fosse pro povo mesmo.
mais nunca
Que pudesse ser dele. Sabe? Que ele não iõsse só estudar, receber
Sei . .. tá certo. tudo pronto. Que ali fosse um lugar dele pensar a vida dele, a sua
Então vem um e pergunta assim. "O Ciço, ó Antônio Ciço, situação. Que as pessoas estudando as coisas da escola fossem dis-
cutindo, pensando a vida delas. Que, quem sabe? pudesse dizer
seus meninos tão recebendo educação?" Que seja um padre, que
verdade, não esconder nada. "Educação Popular", é como se tem
seja o senhor. Eu respondo: "homem, uma eles tão. Em casa
dito em alguns lugares onde o pessoal tem tentado fazer uma edu-
eles tão, que a gente nunca deixa de educar um filho conforme os
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cação de um outro jeito. Será que dá pra acreditar numa educação Agora, o senhor chega e diz que até podia ser diferente, não
que tenha um saber do mundo como ele é? Saindo de discutir, de é assim? Que não é só pra ensinar aquele ensininho apressado,
aprender todo mundo, uns com os outros: professor, lavrador, to- pra ver se o velho aprende o que o menino não aprendeu. Então
dos. (Longa pausa). que podia ser um tipo duma educação até fora da escola, sala. Que
fosse assim dum jeito misturado com o-de-todo-dia da vida da gen-
Agora o senhor chega e diz: "Ciço, e uma educação dum outro te daqui. Que podia ser um modo desse de juntar saber com saber
jeito? Um saber pro povo do mundo como ele é?" Essa eu queria e clarear os assuntos que a gente sente, mas não sabe. Isso? Con-
ver explicado. O senhor fala: "eu tô falando duma educação pro forme a gente falava no outro dia, sobre o saber que o povo tem,
povo mesmo; um tipo duma educação dele, assim, assim". Essa não é?
eu queria saber como é. Tem? Aí o senhor diz que isso bem po-
Quer dizer, eu entendo assim: fazer dum jeito que ajuda o
dia ser feito. Tudo junto, gente daqui, de lá, professor, peão, tudo.
peão pensar como anda a vida por aqui, porque é assim, assim.
Daí eu pergunto: "Pode? Pode ser dum jeito assim? Pra que?
Dum jeito que o povo se une numa espécie de mutirão - senhor
Pra quem? Será que algum ia se preocupar com uma coisa assim?"
sabe como é? - pra um outro uso. Pra lutar pelo direito deles
Eu penso que sim. O senhor veja, Ciço, há lugares onde já - trabalhador.
teve. Onde tem agora. O sistema é diferente. Não quer dizer Digo, de um tipo de reunir, pensar juntos, defender o que é seu,
"popular" só porque é pra gente do povo estudar: lavradores, vo- pelo que devia ser. Exemplo, assim como a gente falava, de come-
lantes - como tem muitos lá em São Paulo, de onde eu venho - çar pelas coisas que o povo já sabe, já fez de seu: as idéias, os
operários. Se fala "popular" porque ela deve ser para ser uma esco- assuntos.
la, uma educação que as' pessoas do povo participam como sendo
delas: discutindo, resolvendo, vendo o que é melhor. Olha, pode Eu entendo pouco de tudo isso, não aprendi. Mas ponho fé
ser que seja difícil, mas se tem da outra, porque não pode ter de e vou lhe dizer mais, professor - como é que eu devo chamar o
uma assim? senhor? - eu penso que muita gente vinha ajudar, desde que a
gente tivesse como acreditar que era uma coisa que tivesse valia
Eu tô entendendo o seu pensamento. Se um tipo desse duma mesmo. Uma que a gente junto pudesse fazer e tirar todo o pro-
educação assim pudesse ter aqui, como a gente estamos conversando, veito. Pra toda gente saber de novo o que já sabe, mas pensa que
com adultos, com velhos, até mulheres, conforme foi dito, assim não. Parece que nisso tem um segredo que a escola não conhece
num acordo, num outro tipo de união, com o povo daí desse canto (ri, mineiramente).
sentindo deles, coisa deles, como uma coisa que é nossa também, Pois é assim que eu penso, Ciço. Assim que eu pergunto.
que então juntasse idéia de todos, professor, nós, num assunto assim,
assim, então o senhor havia de ver que o povo daqui tem mais de Como' o senhor mesmo disse o nome? "Educação Popular".
muita coisa do que a gente pensa. Quer dizer, dum jeito que pudesse juntar o saberzinho da gente, que
é pouco, mas não é, eu lhe garanto. E ensinar o nomes das coisas
Mas é que dessa maneira que o senhor fala é difícil de com- que é preciso pronunciar pra mudar os poderes. Então era bom.
preender. Não que é difícil. Veja, a gente até que imagina. Se Então era. O povo vinha, vinha mesmo e havia de aprender. E
eu contar prum cumpadre meu: "olha, podia ser assim, podia ser esse, quem sabe? é o saber que tá faltando pro povo saber?
dum jeito assim" ... ele imagina. Um outro, um vizinho, um
companheiro, sabe como é? Porque lá na cidade gente dá conta Num sítio na estrada entre Caldas e Andradas, entre
de uns estudos assim, de alfabeto pra gente graúda, pra velho até. tarde e o começo da noite de um dia de janeiro em 1980.
Se conta, mas parece que não funcionou. (Cícero começa a fazer
nas mãos um segundo cigarro de palha).
As vezes não funcionou, Ciço, porque não era uma educação
que as pessoas pudessem sentir como delas, como útil mesmo, ser-
vindo mesmo pra elas, os assuntos, a maneira de ser, por exemplo.
Mas eu quero dizer que podia ser diferente.

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