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BATALHAFAM, José Carlos Silva.

Dona Micaela Iná Vieira de Souza – narrativa da visibilidade


negra na Penha de França dos séculos XIX e XX. A partir de breve pesquisa histórica, este
trabalho objetiva construir uma narrativa que contribua para a visibilidade de uma personagem
negra que viveu no bairro da Penha de França até meados do século XX e que, hoje, se constitui
exemplo de representatividade negra e cidadã para os moradores do bairro da Penha e, quiçá, de
São Paulo. 2020 – 04 páginas.

RESUMO
A partir de breve pesquisa documental (livros, jornais e sítios eletrônicos), o
presente trabalho tem como tema Dona Micaela Iná Vieira de Souza – uma narrativa da
visibilidade negra na Penha de França dos séculos XIX e XX. A proposta inicial é construir
uma narrativa que contribua para melhor ofertar visibilidade sobre a vida cotidiana de uma
personagem negra que viveu no bairro da Penha de França até meados do século XX e
que, hoje, se constitui como exemplo de representatividade negra e cidadã para os
moradores do bairro da Penha e, quiçá de São Paulo.
As buscas iniciais se concentraram em responder, principalmente, quem foi
Micaela Iná Vieira de Souza, onde viveu, o que fez, quando morreu e, assim, propiciar
melhor entendimento dos porquês de ter sido homenageada no passado e no presente.
As diversas narrativas construídas até o momento, apontam-na como mulher
negra, parteira e que viveu no bairro da Penha, na cidade de São Paulo, onde contribuiu
para o desenvolvimento local, seja realizando partos ou ‘acudindo’ outros necessitados da
localidade. E é isso que este trabalho busca elucidar.
A relevância do estudo do tema constitui-se a partir da observância de que, no
Brasil, as minorias étnicas e econômicas (negros, índios, mestiços) são, invariavelmente,
retratadas superficialmente e de modo genérico, impossibilitando a compreensão
abrangente de suas vidas, vivências e complexidades.
Outro aspecto relevante, sem dúvida, são as instituições das Leis: 10.639/03 e
11.645/08 que nos propõem o rompimento do monólogo historiográfico euro-centrado que,
há séculos, têm produzido narrativas que apenas reproduzem valores civilizatórios que
desconsideram o negro e o índio; bem como seus territórios e valores culturais.
A metodologia para realização deste trabalho foi, como se disse acima:
levantamento bibliográfico e pesquisa documental; objetivando construir uma narrativa
que melhor dê visibilidade à uma personagem que tem importância local (bairro da Penha)
e, quiçá, para São Paulo.

Palavras-chave: 1. Micaela 2. Negra 3. Parteira 4. Penha de França.


DONA MICAELA INÁ VIEIRA DE SOUZA – NARRATIVA DA VISIBILIDADE
NEGRA NA PENHA DE FRANÇA DOS SÉCULOS XIX E XX.

BATALHAFAM, José Carlos Silva1

O PARTO NO BRASIL ATÉ O SECULO XX

No Brasil, desde o início da colonização portuguesa em 1530 (e mesmo antes


dela), até os primeiros anos do século XIX, a Arte Obstétrica foi praticada quase que
exclusivamente por mulheres. Durante este período, às praticantes dessa arte, dava-se o
nome de “aparadeiras, comadres ou mesmo de parteiras-leigas” (BRENES, 1991); eram
mulheres que, por vocação, necessidade e conhecimento, detinham a técnica e a ciência
de realizar partos e, em cujas atividades, por vezes, se incluíam os cuidados do pré e pós-
parto.2
Até então, salvo raras exceções, as parteiras-leigas eram as únicas que
possuíam o saber anatômico e fisiológico dos corpos das mulheres durante a gravidez e
o parto. Porém, com a chegada da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 e, com a
introdução da obstetrícia nos cursos de medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, essa
história começou a mudar. No entanto, a prática da obstetrícia, aí incluindo o parto
enquanto ato médico, só se estabeleceria em meados do século XX. Até então, em todo
território brasileiro, o predomínio na parturição foi das parteiras-leigas.

Em São Paulo, no bairro da Penha, desde 1885 Micaela Iná Vieira de Sousa foi
a pessoa que, com esmero e prontidão, se dedicou em atender as mulheres parturientes.
Foi a “aparadora das vidas” que ali nasciam; a “comadre acolhedora” da vizinhança
penhense.
Tendo nascido a 14 de março de 1840 em Jacareí, no Vale do rio Paraíba,
muito provavelmente, foi ali que aprendeu e iniciou sua vida de parteira; pois, em 1885 já
se encontrava morando no bairro da Penha, onde tornou-se conhecida pela caridade dos
partos que realizava. Viveu no bairro da Penha por 46 anos, até 1º de julho de 1931,
quando faleceu aos 90 anos de idade. (DOSP; 1954; p.47)

1
Professor de História, memorialista e escritor; graduado em História pela Uniesp – Santa Izildinha. Autor, dentre
outros, do livro: Vila Nhocuné – Memórias da Tapera da Finada Ignês & outras memórias – RG Editores- São Paulo-
2011.
2
Como “partos”, aqui se entende aquela forma de nascimento de bebês em que não há intervenção de instrumental
tecnológico ou cirúrgico, como nos partos por cesarianas; nascimentos realizados nos domicílios e de forma natural.
Segundo o memorialista Hedemir Linguitte, Micaela Vieira residiu em humilde
casa de taipas na, hoje, conhecida avenida Penha de França: “Tia Micaela Vieira [como era
conhecida], residia, então junto ao grupo escolar 8 de setembro3, em casa feita de taipas, muito
humilde, onde hoje se ergue o edifício ‘Santa Amália’.” (LINGUITTE;1970; p.196)
Apesar de ter vindo para a Penha num período em que a escravidão de negros
ainda estava institucionalizada (1885), seguramente, Micaela era uma preta livre; pois,
aos 45 anos de idade e com, ao menos dois filhos (João e Benedita Vieira), sua mobilidade
enquanto parteira, era espantosa. Fato é que, deixou extensa descendência na Penha;
sendo que sua filha Benedita, seguiu seus passos (também foi parteira) e seu filho João
Vieira (João da Micaela) tornou-se conhecido na Penha como exímio tocador de violão
nas serestas penhenses dos anos 30/40. (TRIBUFU; 2018)

HOMENAGEM À PARTEIRA
Em 1954, anos antes de se tornar prefeito de Guarulhos, o vereador por São
Paulo, Fioravante Iervolino, atendendo reclamos populares no sentido de homenagear a
popular parteira da Penha, apresentou um projeto de lei propondo que a praça sem nome
entre as ruas padre João e dr. João Ribeiro, recebesse o nome de Dona Micaela Iná Vieira
de Sousa. No anteprojeto para denominação da referida praça, o vereador justificou a
medida, declarando que Dona Micaela “foi uma verdadeira benfeitora da gente pobre daquele
bairro, nada cobrando, prestando auxilio a todos, a qualquer hora do dia ou da noite. Parteira-
prática, jamais deixou de atender a quem a procurasse.” (DOSP; 1954; p.47) Dada a
importância da homenageada e da atividade que ali realizara, naquele mesmo ano, o
projeto foi aprovado.

CONFIRMAÇAO DA HOMENAGEM
Apesar de aprovada a nomeação da praça em 1954, muito provavelmente, sua
implantação plena só ocorreria dois anos depois; senão, vejamos: “O prefeito Wladimir [de
Toledo] Piza sancionou, ontem, às seguintes leis: (...); denominando D. Micaela Vieira a atual
praça sem nome sita no cruzamento das ruas P. João e Dr. João Ribeiro, na Penha.” (Diário da
Noite (SP); 18/12/1956; p.8)

A PARTEIRA QUE TAMBÉM FOI DOCEIRA


Ao escrever artigo sobre o bairro da Penha para o Banco de Dados Folha,
Elaine Muniz Pires, apesar de não citar fonte, aponta “Dona Micaela [como uma] – famosa

3
Primeiro grupo escolar do bairro da Penha; inaugurado em 1913; em 1976 passou a denominar-se EEPG Santos
Dumont; tombado pelo patrimônio histórico em 2014. (DOSP – Diário Oficial do Estado de São Paulo; 29/01/1976 e
ipatrimonio.org/são-paulo-g-e-santos-dumont/#!/map)
negra vendedora de doces [no bairro da Penha] na virada do século.” (ALMANAQUE; s/ data)
Tese que pode ser verdadeira; no entanto, na historiografia, há consenso de que Micaela
tenha sido, somente parteira; porém, nada impede que, naquele contexto social e histórico
tenha sido, também, doceira objetivando aumentar a renda familiar; sobretudo; quando
sabemos que nas concorridas festas de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Nossa
Senhora da Penha, inúmeras pretas doceiras e cozinheiras armavam quitandas para
atender os romeiros e demais participantes dos festejos.

VISIBILIDADE NEGRA NA PENHA


Ao confirmar a homenagem à Dona Micaela em 1956, denominando um espaço
público com seu nome, a prefeitura de São Paulo não apenas reconheceu sua importância
e mérito pela atividade que exercera naquele bairro; instituiu ali, um monumento simbólico
que perpetua sua memória e é; sobretudo, esta memória que os participantes do “Cordão
da Dona Micaela” reverenciam durante o carnaval.
Em fevereiro de 2018, com apoio da Secretaria Municipal de Cultura, Dona
Micaela Vieira foi novamente homenageada. Naquela data, pessoas ligadas ao
Movimento Cultural Penha e à Comunidade do Rosário dos Homens Pretos da Penha,
criaram um cordão carnavalesco denominando-o: “Cordão da Dona Micaela”. Mais uma
justa homenagem para alguém que, com simplicidade e de forma quase anônima,
contribuiu para o desenvolvimento do bairro.
Portanto, Dona Micaela Iná Vieira de Sousa, mulher negra, simples e parteira,
de fato viveu na região e, ainda hoje, se faz amada pela população da Penha tanto por
sua atuação como parteira, quanto por sua representatividade. Sem dúvida, a manutenção
da praça naquele local e a instituição do cordão carnavalesco são símbolos vivos de sua
memória e representações felizes de sua visibilidade.

Fontes de pesquisa:

- BRENES, Anayansy Correia. História da parturição no Brasil, século XIX. Cadernos de Saúde
Pública, vol.7, nº 2, Rio de Janeiro, abril/junho; 1991.
- DOSP – Diário Oficial do Estado de São Paulo (SP); 09/06/1954; p.47.
- Diário da Noite (SP); 18/12/1956; p.8.
- LINGUITTE, Hedemir. Penha de Ontem e Penha de Hoje. Inédito, São Paulo (SP) Vol. II, 1970,
p.196. Acervo do Movimento Cultural Penha.
- http://tribufu-mcp.blogspot.com/2018/02/dona-micaela-vieira.html
acesso em 30/01/2020
- www.radarmunicipal.com.br/proposiçoes/projetos-de-lei-255-1954
acesso em 30/01/2020.
- www.almanaque.folha.uol.com.br/bairros_penha.htm
acesso em 30/01/2020

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