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Rio de Janeiro
Março/2012
Bruxas e demônios no Arcebispado de Braga:
Uma análise da Visitação Inquisitorial de 1565.
_______________________________
Presidente, Profª. Drª. Jacqueline Hermann
_______________________________
Profª. Drª. Beatriz Catão Cruz Santos (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
_______________________________
Profª. Drª. Daniela Buono Calainho (Universidade Estadual do Rio de Janeiro)
Rio de Janeiro
Março/2012
1
Ficha catalográfica
2
RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo analisar os rituais de feitiçaria descritos nas
denúncias e processos decorrentes da Visitação Inquisitorial de 1565 ao Arcebispado de
Braga. Esta Visitação teve um alto número de denúncias de feitiçaria em comparação
com visitações a outras dioceses portuguesas, uma vez que este delito foi pouco
valorizado pelo Santo Ofício luso, que sempre teve como alvo principal os suspeitos de
judaizar. Assim, analisamos também esta especificidade da Visitação a Braga,
associando-a à ação pastoral diferenciada desenvolvida pelo Arcebispo D. Frei
Bartolomeu dos Mártires.
3
ABSTRACT
4
Agradecimentos
deste trabalho, mas também pela disponibilidade e pela amizade que sempre ofereceu.
aceitado o convite para a banca examinadora e por todas as reflexões que contribuíram
Arcebispado de Braga.
Sou extremamente grata à minha família, especialmente minha mãe Neide e meu
parte de suas vidas comigo, como aqueles que estes dois anos de mestrado me
5
“...talvez a única prova verdadeira da existência do diabo seja a intensidade com
que todos, naquele momento, desejam sabê-lo em ação.”
Umberto Eco
6
Sumário
7
Referências bibliográficas...............................................................................122
Anexos ..............................................................................................................136
8
Lista de siglas e abreviaturas
9
Introdução
10
Na tentativa de justificar a especificidade do caso de Braga, analisamos no
primeiro capítulo a história do estabelecimento do Santo Ofício em Portugal,
evidenciando a perseguição ao elemento cristão-novo como razão primordial para a
criação do Tribunal no reino luso e a pequena relevância que a feitiçaria teve para o
Santo Ofício português. Procurou-se discutir também o caráter de foro misto do delito,
passível de punição pelas justiças inquisitorial, episcopal e civil.
Abordamos, ainda no primeiro capítulo, as relações entre a Inquisição e o poder
episcopal nas primeiras décadas de funcionamento do Tribunal. Evidenciando o caráter
algumas vezes conflituoso destas relações, principalmente naquele momento inicial em
que o equilíbrio entre as jurisdições não havia ainda se conformado, acreditamos que a
postura do Arcebispo de Braga, de afirmação da autoridade episcopal, possa se tornar
compreensível.
Assim, no segundo capítulo, demos destaque à figura do Arcebispo D. Fr.
Bartolomeu dos Mártires. Tentamos demonstrar como suas concepções acerca do novo
modelo do bispo pastor de almas e a preocupação com a salvação de suas ovelhas
implicaram a afirmação de sua autoridade sobre a grei, bem como uma ação autônoma
em matérias de heresia, cujos principais instrumentos eram as visitas pastorais e os
sermões. Dessa forma, tentamos indicar como o governo de Bartolomeu dos Mártires
sobre a Arquidiocese de Braga pode ter contribuído para a particularidade da Visitação
Inquisitorial de 1565.
No terceiro capítulo, passamos à análise dos rituais de feitiçaria descritos nas
denúncias e nos processos que resultaram da Visitação. Privilegiamos, para tal, uma
análise de caráter histórico-antropológica, na tentativa de compreender os significados
simbólicos de cada elemento presente nos rituais.
Para a análise das denúncias e processos inquisitoriais, consideramos
imprescindíveis determinados cuidados relativos à natureza da documentação, que o
historiador Carlo Ginzburg expôs em seu artigo O Inquisidor como antropólogo.
Tentamos, com base nas reflexões de Ginzburg, ter sempre em vista o caráter dialógico
das fontes, compostas por vozes contraditórias, mas não realidades contraditórias. Por
mais que houvesse diferença entre os lugares sociais das partes, ambas viviam em uma
mesma realidade, uma mesma cultura, uma “unidade subjacente”.1
1
GINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo: uma analogia e as suas implicações. In:
CASTELNUOVO, Enrico; GINZBURG, Carlo; PONI, Carlo. A Micro-historia e outros ensaios. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, pp. 203-214, 1991.
11
Não pretendemos refutar, com este trabalho, a hipótese já consagrada sobre a
pouca atenção dada à feitiçaria pelo Santo Ofício português. Tentamos apenas indicar
como no caso específico aqui analisado estes pressupostos podem ser relativizados,
considerando-se a existência de uma tensão entre a jurisdição episcopal e a jurisdição
inquisitorial na a luta pela uniformização da fé.
12
Capítulo 1:
O Tribunal do Santo Ofício e a perseguição à feitiçaria em Portugal
2
Em fins do século XIV, verificou-se uma escalada do medo da presença demoníaca entre os homens,
quando a Europa se viu assolada pela Peste Negra (1348), a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), o avanço
turco (derrotas de Nicópis e Kossovo em 1369 e 1389 respectivamente) e o Grande Cisma (1378-1417).
Acreditava-se que tais infortúnios eram sinais de que se aproximava o Juízo Final e, por isso, o demônio
investia com toda força sobre os homens. O nascimento da Reforma e a cisão da Igreja podem ser
considerados como um segundo momento de potencialização dos temores escatológicos, ao mesmo tempo
em que foi também fruto destes medos. Cf: DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. 1300-
1800. Uma Cidade Sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 205-232.
3
SOUZA, Laura de Mello e. A Feitiçaria na Europa Moderna. São Paulo: Editora Ática, 1995.
13
juízes”.4 Entre 1320 e 1420 foram abertos 12 processos de feitiçaria pela Inquisição na
Europa, já entre 1421 e 1486 este número subiu para 34 processos. A estes números
podem ser somados ainda os processos dos tribunais leigos: 24 para o primeiro período
e 120 para o segundo.5
A perseguição à feitiçaria atingiu seu ápice entre 1560 e 1630. Antes, estava
centrada nas regiões dos Alpes e dos Pirineus; posteriormente, atingiu com força
máxima a Suíça, o sul da Alemanha, a Lorena, Luxembrugo, a Escócia e os Países
Baixos. Em fins do século XVI, a perseguição chegou à Dinamarca e à Transilvânia e
após 1660, à Suécia e à Polônia.
Segundo Jean Delumeau, a caça às bruxas foi uma constante tanto na Europa
católica quanto na reformada; no entanto, se geograficamente as guerras religiosas
coincidiram com os maiores focos da repressão à feitiçaria, cronologicamente ocorreu o
inverso, as maiores ondas persecutórias ocorreram em períodos de paz.6
4
DELUMEAU, Jean. op. cit., p. 352.
5
Ibid.. pp. 353-353; Para maiores informações sobre os tratados demonológicos, cf: MANDROU, Robert.
Magistrados e feiticeiros na França do século XVII: uma análise de psicologia histórica. São Paulo:
Perspectiva, 1979, pp. 106-126.
6
DELUMEAU, Jean. op. cit., pp. 360-361.
14
perseguições, acabaram por acirrar as disputas entre a comunidade cristã e a
comunidade conversa.
O casamento de Fernando de Aragão e Isabel de Castela, em 1469, constituiu o
primeiro passo da tentativa de unificação dos reinos hispânicos. Assim, em 1478, foi
criada a Inquisição, com a finalidade de expurgar a heresia dos conversos que,
acreditava-se, professavam o judaísmo em segredo, e uniformizar a fé no Reino. No
entanto, é inegável que a criação do Tribunal do Santo Ofício serviu também a outros
interesses que iam além da luta pela ortodoxia. A Inquisição representou um passo
muito importante para a ambição de unificação política dos reinos de Espanha. Muitos
foram os historiadores que ressaltaram o papel da Inquisição como única instituição
centralizada do que hoje chamamos de Espanha. Bartolomé Bennassar identificou a
Inquisição como um elemento essencial do ainda incipiente aparelho do Estado. Mesmo
que o Tribunal do Santo Ofício não tenha assegurado a unidade espiritual, sua presença
territorial pelos aglomerados de reinos sob a tutela de Castela teria possibilitado a
conformidade política, abafando as dissidências:
A coincidência exata entre o Estado e uma ideologia única, que seja abertamente
proclamada, encarnada por um partido, ou sutilmente destilada pelo mass media, que
seja de natureza religiosa, "científica" ou econômica, tal é o velho sonho, sempre
7
ameaçador, de Leviatã.
7
“La coincidence exacte entre l´Etat et ume idéologie unique, qu´elle soit proclamée ouvertement,
incarnée par um parti, ou distillée subtilement par lês mass media, qu´elle soit de nature religieuse,
“scientifique” ou économique, tel est le vieux revê, toujours menaçant, de Léviathan..” (tradução livre)
Cf: BENNASSAR, Bartolomé. L´Inquisition espagnole. XVe. – XIXe. siècle. [s/n]: Hachette, 1979, p.
394.
15
D. João II (1481-1494) optou por uma política de estímulo à conversão ao
catolicismo, oferecendo inúmeros privilégios aos que aceitassem a fé de Cristo, o que
apenas contribuiu para o acirramento das tensões. No entanto, após a obtenção do
direito, pelos Reis Católicos, de intervir em outras regiões para perseguir os judeus
fugitivos, D. João II, na tentativa de limitar a influência espanhola, nomeou alguns
clérigos para a realização de inquéritos sobre a conduta religiosa dos conversos.8
Durante o reinado de D. Manuel (1495-1521), sobreveio uma conjuntura política
diferenciada. A possibilidade de unir as Coroas de Portugal e Castela, sob liderança
lusa, impulsionou o contrato matrimonial entre o monarca português e D. Isabel, filha
dos Reis Católicos, que exigia como condição a expulsão dos judeus também de
Portugal.9 Obrigado a atender às pressões de Castela, em 24 de dezembro de 1496, D.
Manuel decretou a expulsão dos mouros e judeus do Reino; aqueles que desejassem
ficar deveriam se converter ao catolicismo. No entanto, devido à importância social,
cultural e econômica que tinha a comunidade judaica, D. Manuel não desejava que os
hebreus deixassem o Reino. Com o intuito de forçar a permanência e consequentemente
a conversão do maior número possível de judeus, a Coroa impôs medidas para dificultar
a saída do Reino.10
Segundo Hermann e Vainfas, o debate acerca das causas da proibição do
judaísmo em Portugal é vastíssimo. De qualquer forma, é possível afirmar que apesar
das oscilações da política portuguesa com relação aos judeus e da importância que a
comunidade teve para a expansão territorial do reino, o problema legado pelo Reino
vizinho acabou por se tornar insustentável:
8
MARCOCCI, Giuseppe. I custodi dell`ortodossia. Inquisizione e chiesa nel Portogallo del Cinquecento.
Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2004, p. 32
9
Cabe lembrar que D. Manuel casou-se novamente em 1500 com a Infanta Maria de Castela, também
filha dos Reis Católicos, e posteriormente, em 1518, com D. Leonor, irmã de Carlos V. A política
matrimonial de D. Manuel foi emblemática de seu projeto de unificação das Coroas Ibéricas.
10
VAINFAS, Ronaldo; HERMANN, Jacqueline. Judeus conversos na Ibéria no século XV: sefardismo,
heresia, messianismo. In: GRINBERG, Keila. (org.). Os judeus no Brasil: Inquisição, imigração e
identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005, pp. 15-41.
11
Ibid., pp. 34-35
16
Lisboa (1504 e 1506) e em Évora (1505), foi determinada a igualdade de direitos e
deveres entre cristãos-novos e cristãos-velhos, além da concessão de liberdade para que
os conversos saíssem do Reino. Alguns dias depois, a lei que determinava a ausência de
inquéritos sobre delitos conta a fé, de 1497, foi revalidada, na tentativa de fazer com que
os cristãos-novos permanecessem em Portugal. Esta disposição foi novamente
reforçada, por um prazo de dezesseis anos, em abril de 1512. No entanto, data de agosto
de 1515, após novos conflitos entre cristãos-velhos e cristãos-novos, o primeiro pedido
para o estabelecimento da Inquisição em Portugal. Menos de um mês depois, D. Manuel
requisitou um inquérito às autoridades locais sobre a presença em Portugal de conversos
fugidos dos Reinos vizinhos, o que indica uma possível pressão por parte da Coroa de
Castela.12 Em 1522, logo no início de seu reinado, D. João III prolongou os efeitos do
decreto de 1497 até 1533 e em 1524 reafirmou a possibilidade de saída dos cristãos-
novos do Reino, assim como de seus respectivos bens. No entanto, a política de
agregação e transigência sofreria, a partir de então, uma mudança radical.
Em 1524, D. João solicitou a realização de um inquérito a respeito dos
comportamentos suspeitos dos cristãos-novos.13 Em 1531, o monarca havia dado
instruções a Brás Neto, embaixador português em Roma, para que impetrasse de
Clemente VII, papa desde 1523, uma bula para a criação da Inquisição em Portugal, nos
moldes da Inquisição de Castela.
Para que seja possível compreender a mudança de posição de D. João III, que até
1522 optou por garantir que os cristãos-novos não fossem investigados em matérias de
fé, é necessário questionar não somente a relação da Coroa portuguesa para com a nova
comunidade, mas também as relações entre as Coroas ibéricas. A disputa entre D.
Manuel e os Reis Católicos foi, como já dito acima, fundamental para que o primeiro se
decidisse pela expulsão dos judeus de seu território, condição para que D. Manuel
pudesse desposar D. Isabel e alimentar seu projeto de união das Coroas. No entanto, os
primeiros anos do reinado de D. João III, marcados pelo abandono de algumas praças
portuguesas no Norte da África, foram questionados em comparação com o período de
glória do reinado de seu pai, D. Manuel, enquanto Carlos V, Rei de Espanha desde 1517
e Imperador do Sacro Império Romano-Germânico a partir de 1519, fortalecia-se no
cenário europeu. O Santo Ofício passava a ser almejado por D. João III como
12
MEA, Elvira. A Inquisição de Coimbra no século XVI: a instituição, os homens e a sociedade. Porto:
Fundação Engenheiro Antônio de Almeida, 1997, p. 43; MARCOCCI, Giuseppe. op. cit., p. 38.
13
Ibid., pp. 42-43.
17
instrumento que assegurava ao monarca plenos poderes tanto para a uniformização da fé
no Reino, o que ainda poderia lhe conferir prestígio junto ao Papa, quanto para fazer
frente ao Imperador.
As principais requisições de D. João eram amplos poderes para o monarca
nomear e dispensar os inquisidores e demais funcionários da instituição, o segredo do
processo, o confisco dos bens e a supremacia sobre os prelados nas matérias de
heresia.14 Pouco tempo depois, a 17 de dezembro de 1531 foi expedida a bula papal
estabelecendo o Tribunal do Santo Ofício em Portugal, em que Fr. Diogo da Silva era
confirmado como Inquisidor-Geral. No entanto, a bula papal refreava as pretensões de
D. João III, como teria aconselhado o exemplo espanhol. Apesar do nome de Fr. Diogo
da Silva ter sido indicado pelo Rei, o Papa tinha o poder de suspendê-lo ou substituí-lo.
Além disso, a supremacia dos inquisidores sobre os prelados requisitada pelo monarca
português não foi atendida pelo Papa.
A 14 de junho de 1532, ainda antes que a bula de criação da Inquisição fosse
publicada em Portugal, D. João III promulgou uma lei impedindo a saída dos cristãos-
novos do Reino. Tendo em vista esta situação, os cristãos-novos decidiram enviar a
Roma Duarte da Paz, um representante da comunidade para agir junto ao Papa em sua
defesa.15 A esta dificuldade somar-se-ia ainda a recusa de Fr. Diogo da Silva a assumir
o cargo de Inquisidor Geral, sem que, até o momento, tenha ficado clara a razão dessa
negativa depois de tanto empenho do rei.16 Pouco tempo depois, a 17 de outubro de
1532, Clemente VII expediu um breve suspendendo temporariamente os efeitos da bula
de dezembro de 1531.17
O Papa ordenou, a 7 de abril de 1533, um perdão geral aos cristãos-novos, que
abrangia todas as causas de heresia. Às tentativas de negociação de D. João III
14
HERCULANO, Alexandre. História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal. [s/l]:
Europa-América, v. 1, pp. 124-125; SARAIVA, Antônio José. A Inquisição portuguesa. Lisboa: Europa-
América, 1956, pp. 32-33.
15
Segundo Herculano, a notícia dos progressos de Duarte da Paz, enviada por Antonio Pucci, o Cardeal
Santiquatro, para o bispo de Sinigaglia, núncio romano em Portugal, não teria chegado a D. João III
devido à ação dos cristãos-novos junto ao núncio, que, por interesse, protegeu a causa dos conversos em
Portugal por muito tempo. Cf: HERCULANO, Alexandre, op. cit., v. 1, pp. 143-149.
16
Somente Alexandre Herculano, Fortunato de Almeida e Elvira Mea comentaram a recusa de Fr. Diogo
da Silva. No entanto, nenhum deles ofereceu qualquer hipótese para solucionar esta questão. Cf:
ALMEIDA, Fortunato de. História da Igreja em Portugal. Porto: Portucalense, 1967-1971, v.2, pp. 386-
387; HERCULANO, Alexandre. op. cit., v. 1, p. 46; MEA, Elvira op cit., p. 46.
17
Segundo Alexandre Herculano e Saraiva, a suspensão teria ocorrido após as alegações de Duarte da Paz
a respeito da violência utilizada para conversão obrigatória dos judeus em Portugal. No entanto, a
violência era uma marca da Inquisição espanhola e esta nunca chegou a ser suspensa. Cf: HERCULANO,
Alexandre. op. cit., v. 1, p. 146; SARAIVA, Antônio José. op. cit. pp.33-34.
18
sobreveio a morte de Clemente VII, a 25 de setembro de 1534. Com a eleição do Papa
Paulo III as negociações foram retomadas.
Apesar da insistência do Papa para que D. João III respeitasse o perdão-geral de
7 de abril e revogasse a lei que impedia a saída dos cristãos-novos do Reino, a resposta
do monarca foi, no entanto, sua renovação por mais três anos. D. João III insistia em
questionar as propostas romanas para que a Inquisição funcionasse com determinadas
restrições e exigia ainda a retirada do Núncio romano de seus territórios, o que acabou
por dificultar ainda mais as negociações. Algum tempo depois, a 12 de outubro do
mesmo ano, o Papa revalidou e ampliou o perdão geral de 1533.18
Para dar fim à resistência do Papa, a solução encontrada por D. João III foi pedir
ajuda justamente ao cunhado19 Carlos V, cujos pedidos Paulo III se via constrangido a
aceitar devido ao grande projeto do Imperador de guerra contra os turcos. É difícil
compreender porque Carlos V teria optado por colaborar com D. João III, uma vez que
a rivalidade entre os dois era latente. No entanto, sabe-se que este fator foi fundamental
para o estabelecimento do Santo Ofício em Portugal. A 23 de maio de 1536, Paulo III
restabeleceu a Inquisição portuguesa pela Bula Cum ad nihil magis, nomeando como
Inquisidores os bispos de Ceuta (Frei Diogo da Silva), Coimbra e Lamego, facultando
ainda a El-Rei a escolha de um Inquisidor-Geral. A jurisdição dos bispos em matérias
de heresia foi mantida; a bula ressalvava ainda os casos em que os prelados devessem
por direito intervir, mesmo que houvessem se abstido anteriormente. Durante os dez
primeiros anos de funcionamento do Tribunal, os bens dos condenados deveriam passar
a seus respectivos herdeiros, e durante os três primeiros anos o Tribunal devia seguir as
normas dos processos civis comuns. O Tribunal deveria ainda respeitar as bulas de
perdão promulgadas pelo Papa, julgando apenas os delitos cometidos após 12 de
outubro de 1535. Dentre os delitos designados pela bula estavam as práticas judaicas
dos cristãos-novos, o luteranismo, o criptoislamismo, a feitiçaria e qualquer outra
prática que presumisse heresia.20 A 5 de outubro, Fr. Diogo da Silva aceitou o cargo de
18
As dificuldades impostas tanto por Clemente VII quanto por Paulo III para o estabelecimento do Santo
Ofício em Portugal podem ser questionadas, uma vez que interessava a Roma coibir a difusão de qualquer
tipo de heresia. A hipótese de Herculano, relativa às riquezas oferecidas pelos cristãos-novos à Curia,
parece insuficiente, sendo necessário considerar, como já indicamos, as relações entre as Coroas de
Portugal e Castela e a influência que cada monarca exercia junto aos Papas.
19
Em 1525 D. João III casou-se com D. Catarina, irmã de Carlos V.
20
O Santo Ofício português conquistou posteriormente a jurisdição sobre outros delitos como a sodomia
(1553) e a solicitação (1559 – sendo, a partir de 1608 de jurisdição privativa da Inquisição). Cf: PAIVA,
José Pedro. Baluartes da fé e da disciplina: o enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-
1750). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, pp. 17-18..
19
Inquisidor Geral. A 22 do mesmo mês foi publicada em Évora, onde residia a corte, a
Bula que instituía o Santo Ofício em Portugal.
A 3 de julho de 1539 Fr. Diogo da Silva renunciou ao cargo, alegando idade
avançada e problemas de saúde. Assim, D. Henrique, irmão do rei, que não possuía
ainda a idade exigida pelo direito canônico para exercício da função (quarenta anos), foi
indicado para o cargo vacante.21
Devido a insatisfações de ambas as partes, após o definitivo estabelecimento do
Tribunal em 1536, as discussões entre o Papa e a Coroa continuaram. O Papa suspendeu
o Tribunal a 22 de novembro de 1544.22 O acordo entre a Coroa e Roma deu-se quase
três anos depois, após muitas tentativas de negociação. Assim, a 16 de julho de 1547, a
Inquisição portuguesa foi restabelecida. A bula Meditatio Cordis nomeava como
Inquisidor-Geral D. Henrique, feito Cardeal pouco tempo antes, e consentia na
aplicação das formas tradicionais de processo inquisitorial.23 A jurisdição dos bispos
permanecia preservada. Juntamente com a bula, o Papa enviava também um Breve
acerca da permissão para que os cristãos-novos saíssem livremente do Reino por um
ano, com o que D. João III não concordou, e ofereceu em troca o compromisso de
abolir, por dez anos, o confisco de bens e de não entregar os condenados ao braço
secular no primeiro ano.24
É interessante ressaltar como, para além de terem analisado as relações e
disputas entre a Coroa portuguesa e a Cúria romana que resultaram no estabelecimento
da Inquisição em Portugal, os estudiosos do tema que analisaram a criação do Tribunal
trataram o papel da Inquisição como instituição de maneiras muito diversas.
Alexandre Herculano, em sua História da Origem e estabelecimento da
Inquisição em Portugal, escrita na década de 1850, tentou reconstituir os longuíssimos
21
Segundo Antônio José Saraiva, a escolha de D. Henrique foi estratégica, pois permitia que o Tribunal
ficasse protegido por um membro da Família Real contra as constantes intervenções papais. Já segundo
Alexandre Herculano, a nomeação tinha como objetivo a substituição de um Inquisidor pouco enérgico
por outro de pulso mais forte, idéia com a qual Fortunato de Almeida pareceu concordar, a despeito das
várias críticas à obra de Herculano. Cf: SARAIVA, Antônio. op. cit., p. 40; HERCULANO, Alexandre.
op. cit., v. 2, pp. 108-109, ALMEIDA, Fortunato de. op. cit., p. 410.
22
O principal ponto de discórdia parece ter sido a escolha de D. Henrique para o cargo de Inquisidor
Geral. É possível ainda que tenha ocorrido algum tipo de pressão por parte de Castela, uma vez que o fato
do irmão do Rei ocupar tal cargo poderia representar o fortalecimento de Portugal. Os conflitos
culminaram com a proibição da entrada de um novo Núncio romano no Reino para investigar os rumores
a respeito da superlotação dos cárceres e da violência usada nas investigações. Cf: HERCULANO,
Alexandre. op. cit, v. 3.
23
Tanto Herculano quanto Fortunato de Almeida e Saraiva consentiram neste ponto. No entanto, segundo
Marcocci, apenas em 1560, após a morte de Paulo IV, D. Henrique teria obtido de Roma a autorização
para instituir o segredo do processo através do breve Dudum cum foelicis recordationis. Cf: MARCOCCI,
Giuseppe. op. cit.., p. 95.
24
SARAIVA, Antônio. op. cit., pp. 41-42.
20
jogos diplomáticos entre Portugal e Roma em que teriam reinado a corrupção, a traição,
a cobiça e o fanatismo religioso, em clara filiação às tendências historiográficas do
momento. A valorização das grandes personagens e a crítica ao fervor religioso – que
marcou Herculano por sua recusa a acreditar no Milagre de Ourique e tomá-lo como
elemento fundamental para a história do Reino – são evidentes nesta obra. Herculano
ressaltou como pontos fundamentais para a criação do Tribunal do Santo Ofício em
Portugal o fanatismo religioso, tanto por parte do Rei quanto do povo, e a venalidade da
Cúria Romana. A questão do fanatismo foi apontada como motivo para o desejo de se
estabelecer a Inquisição em Portugal desde a primeira tentativa, que remontaria a D.
Manuel, idéia refutada por Fortunato de Almeida, que lembrou as medidas tolerantes
deste monarca e o fato de não mais em seu reinado ter havido outra tentativa para a
criação do Tribunal em Portugal.25
Fortunato de Almeida criticou a obra de Herculano a cada página do capítulo
dedicado à Inquisição em sua monumental História da Igreja em Portugal, escrita
durante as primeiras décadas do século XX. Segundo Almeida, Herculano seria
tendencioso ao afirmar a corrupção da Cúria Romana e o fanatismo religioso que havia
se abatido sobre Portugal, e em especial sobre D. João III, o que foi habilmente
questionado por Almeida. Este justificou o estabelecimento da Inquisição em Portugal e
o sucesso da longuíssima empreitada de D. João III pela tentativa de fortalecimento do
poder real, pela obstinação do monarca e, principalmente, pelo interesse nas riquezas
dos cristãos-novos, explicitado pelo rigor com que o monarca se impôs à saída dos
conversos e de seus bens.26
João Lúcio de Azevedo, em Historia dos christãos novos portugueses27, de
1921, apontou o sentimento popular de ódio contra os hebreus como justificativa para a
criação da Inquisição portuguesa. Seria necessário eliminar aquele “corpo estranho”
para garantir a “homogeneidade da fibra nacional”. Percebe-se nesta obra ainda a
influência de uma historiografia tradicional, que tinha como foco a questão do
nacionalismo, tão cara ao século XIX.
Já segundo Antônio José Saraiva, em A Inquisição portuguesa, de 1956, a
Inquisição teria sido um instrumento político que, como uma instituição de foro misto,
reforçava o poder real, assimilando-o ao poder eclesiástico. O Santo Ofício defendia a
25
ALMEIDA, Fortunato de. op. cit., p. 382.
26
Ibid. pp. 422-423.
27
AZEVEDO, João Lúcio de. Historia dos christãos novos portugueses. Porto: Livraria Clássica, 1921.
21
estrutura senhorial da sociedade portuguesa através da perseguição aos cristãos-novos,
força propulsora da nascente burguesia nacional, e perseguia as “novas ideologias” que
ameaçavam aquela estrutura, como o protestantismo, o humanismo e o Renascimento
científico. A captação das riquezas dos cristãos-novos teria sido de grande importância,
como já havia ressaltado Fortunato de Almeida, pois, segundo Saraiva, criava novas
fontes de renda para o alto clero que, em sua maioria, provinha dos filhos segundos da
nobreza.28 A posição de Saraiva estava claramente de acordo com uma historiografia
marxista, que compreendia a nobreza como a classe que tentava a todo custo impedir a
ascensão da burguesia e do capitalismo. Estas idéias refletiam também, em grande parte,
as opções políticas do autor, que durante muito tempo militou contra o regime
Salazarista, criticando o autoritarismo e a centralização do Estado. O estabelecimento da
Inquisição portuguesa teria possibilitado o domínio do Estado por uma minoria
proveniente da classe senhorial:
a sociedade tradicional iniciava uma luta duradoura contra o processo que iria
destruí-la; e já na nova burguesia mercantil unificada pela assimilação
forçada dos antigos judeus se desenhavam os contornos da futura classe
dirigente. (...) a Inquisição portuguesa é pedida sem que acontecimentos
imediatos e suficientemente volumosos o façam prever, e quando já o
momento crítico da assimilação estava longe no tempo. Não era o passado
que pressionava o Rei, mas a presciência do futuro. É difícil não ver no acto
de D. João III uma determinação arbitrária, uma decisão, uma escolha
política, muito mais do que uma fatalidade.29
28
SARAIVA, Antônio. op. cit., p. 42; Idem. Inquisição e cristãos- novos. Lisboa: Estampa, 1985, pp. 39-
47.
29
Idem. A Inquisição portuguesa., p. 47.
30
NOVINSKY, Anita. Inquisição. Inventários de bens confiscados a cristãos novos. Fontes para a
história de Portugal e do Brasil. [s/l]: Casa da Moeda, 1978; Idem. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense,
1982.
22
sistema inquisitorial, um grupo social e não um grupo religioso. As velas que
o cristão novo, eventualmente, podia acender no sábado, eram bem menos
incomodas que suas idéias. Quem alimentou realmente o Tribunal da
Inquisição não foram os blasfemos, feiticeiros, bígamos e sodomitas, por
mais que os houvesse no reino e nas colônias, mas a burguesia cristã-nova.31
A Inquisição teria sido, para Novinsky, um dos grandes motivos do atraso sócio-
econômico de Portugal, uma vez que a falta de segurança e estabilidade fez com que
milhares de cristãos-novos deixassem o Reino, esvaziando seu poderio financeiro e
comercial. Com uma clara influência das teorias de Weber, a autora afirmou que o
êxodo dos cristãos-novos para o norte europeu teria contribuído para que essa região se
tornasse o núcleo de desenvolvimento do capitalismo comercial.32
A historiografia mais recente sobre a instalação do Tribunal do Santo Ofício em
Portugal tem como alguns de seus representantes os já aqui citados Francisco
Bethencourt33, José Pedro Paiva34 e Giuseppe Marcocci35, que afirmaram a
complexidade desta instituição, para o qual contribuíram questões não somente políticas
e sociais, mas também religiosas, ponto que durante muito tempo foi negligenciado pela
historiografia sobre o tema.
31
Idem. Inquisição. Inventários de bens confiscados a cristãos novos. Fontes para a história de Portugal
e do Brasil, p. 20.
32
Idem. A Inquisição, p. 37.
33
BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália - séculos XV-XIX.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
34
PAIVA, José Pedro. op. cit.
35
MARCOCCI, Giuseppe. op. cit.
36
BETHENCOURT, Francisco. op. cit., pp. 338-344; Idem. O imaginário da magia: feiticeiras,
adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004; PAIVA,
José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas. Lisboa: Editorial Notícias, 2002.
23
Nesse quadro, em que se conjugam problemas políticos, religiosos, sociais,
culturais e econômicos, a feitiçaria não podia deixar de figurar como um
delito menor. A Inquisição, apesar de sua reconhecida autonomia como
tribunal da fé com interesses próprios, não deixa de ser um tribunal régio,
atacando preferencialmente, em seu foro específico, os problemas que mais
afetam a estratégia de implantação do Estado absolutista nascente.37
24
partir de meados desse século, o assunto foi tratado prioritariamente a partir de um tipo
diferente de literatura: os manuais de párocos e tratados de teologia moral, dirigidos
especificamente ao clero local.38
Os poderes das feiticeiras não deixavam então de ser atribuídos a um pacto com
o demônio; no entanto, não encontramos na literatura portuguesa o radicalismo de
Kramer e Sprenger39 ou de Johannes Nider.40 Até mesmo as obras mais utilizadas pelos
inquisidores portugueses – devido à pequena produção lusa sobre o tema - poderiam ser
consideradas moderadas com relação à crença nos poderes demoníacos, como por
exemplo Directorium Inquisitionum, de Eymerich (1376); Relecciones Teológicas, de
Francisco de Vitória (1557), Manual de confessores e penitentes que clara e brevemente
contem a universal decisam de quase todas as duvidas quem em as confissões soem
ocorrer dos pecados, absolvições, restituições, censuras e irregularidades, de Martin
Azpilcueta Navarro (1560) e De religione, de Francisco Suarez (1630) .41
Apesar da relativa ausência de textos portugueses sobre o tema, é possível
perceber através da legislação – secular e episcopal – que versava sobre a feitiçaria, dos
tratados de teologia moral, dos manuais de confessores e catecismos que o estereótipo
do pacto demoníaco era bem conhecido e que acreditava-se que todas as operações
mágicas deveriam ser creditadas ao pacto com o demônio.
Acreditava-se que o pacto poderia ser realizado de duas maneiras: o pacto
expresso ou o pacto tácito. O primeiro consistia em um acordo escrito, de palavras
formais ou sinais apropriados através do qual o feiticeiro obtinha poderes e
conhecimento do demônio e, em troca, obrigava-se à vontade demoníaca, prestando-lhe
culto e ofertas, na maioria das vezes sangue ou um membro do corpo (e por isso
acreditava-se que o pacto deixava sinais no corpo dos feiticeiros, muitas vezes
procurados pelos inquisidores como prova). Já o pacto tácito, ou implícito, ocorria
quando o feiticeiro produzia efeitos considerados maravilhosos ou fora da ordem da
natureza e do conhecimento humano.42
38
Tal mudança pode indicar como, a partir desse momento, a melhor preparação do clero e o ensino de
um mínimo de doutrina aos fiéis ganhou importância, o que aponta ainda a precocidade do trabalho
pastoral realizado por D. Fr. Bartolomeu dos Mártires Cf: PAIVA, José Pedro. op. cit, p. 19.
39
KRAMER, Heinrich. SPRENGER. James. Malleus Maleficarum, 1484. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 2009. A partir desta nota, faremos referência à obra da seguinte forma: Malleus Maleficarum.
40
NIDER, Johannes. Formicarium seu dialogues ad vitam christianam exemplae formicae iniciativus.
Augsburg: 1475.
41
PAIVA, José Pedro. op. cit., pp. 15-80.
42
Cf: BETHENCOURT, Francisco. op. cit., 185-193. MANDROU, Robert. op. cit., pp. 64-73; PAIVA,
José Pedro. op. cit., p. 39.
25
Em contrapartida, o vôo noturno, a metamorfose animal e os ajuntamentos
(como era designado o sabá em Portugal) raramente apareciam na literatura portuguesa,
em que o pacto era frequentemente mencionado. Apesar de serem conhecidos, estes
elementos eram tratados de maneira muito modesta. Apenas dois textos, do século
XVIII, apresentaram descrições de ajuntamentos; todas as outras referências ao sabá
constituíam questionamentos a alguns dos elementos que compunham o estereótipo,
especialmente o transporte das bruxas e a metamorfose animal. Afirmava-se que o
demônio não teria poderes suficientes para realizar tais proezas; admitia-se, quando
muito, que estes efeitos poderiam ser criados a partir de uma ilusão.43
O estereótipo do sabá raramente era referido também nas denúncias e processos
do Santo Ofício português.44 Francisco Bethencourt afirmou ter encontrado poucas
referências a respeito e apenas duas descrições detalhadas de assembléias noturnas, em
extensa pesquisa nos arquivos dos Tribunais de Évora, Coimbra e Lisboa referentes ao
século XVI.45 José Pedro Paiva, em seu estudo sobre a bruxaria nos séculos XVII e
XVIII (1600-1774) alertou para a existência de casos em que denúncias e confissões
mirabolantes a respeito de ajuntamentos, com todos os elementos do estereótipo, foram
consideradas inverossímeis.46
As instâncias responsáveis pela perseguição ao delito de feitiçaria eram, em
Portugal, as justiças secular, inquisitorial e episcopal, o que caracterizava a feitiçaria
como um delito de foro misto. Isto quer dizer que os casos deveriam ser julgados pelo
tribunal que primeiro procedesse,47 respeitadas todas as decisões contidas nas bulas
relativas à Inquisição, que afirmavam, como já foi dito acima, que os bispos teriam
direito de intervir nos processos e que, a partir de 1561, o Inquisidor-Geral tinha direito
de avocar a si todas as causas de heresia.48 Assim, a perseguição à feitiçaria em Portugal
não pode ser compreendida sem que seja levada em conta a dinâmica das relações entre
as instâncias que detinham o poder de julgar este delito, que analisaremos à frente.
43
Ibid., pp. 41-42.
44
Segundo Keith Thomas, os estereótipos do pacto demoníaco e do sabá estavam também praticamente
ausentes das denúncias de bruxaria na Inglaterra. As referências eram esporádicas e na maior parte das
vezes não incluíam elementos essenciais ao modelo, como a cópula com os demônios, as metamorfoses e
o vôo noturno. A bruxaria era relacionada não tanto a um pacto feito pela suposta bruxa com o demônio,
mas sim aos malefícios que elas poderiam causar. Cf: THOMAS, Keith. Religião e o declínio da magia.
Crenças populares na Inglaterra: Séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, pp. 362-
363.
45
BETHENCOURT, Francisco. op. cit., p. 193.
46
PAIVA, José Pedro. op. cit., p. 44.
47
Ibid., p. 191.
48
Em 1546 e em 1560 D. Henrique determinou que a Inquisição procedesse contra feiticeiros mesmo nos
casos em que não estivesse presumida a heresia. Cf: Ibid. pp. 191-193.
26
As normas a respeito da perseguição à feitiçaria pela justiça secular estavam
explicitadas através das Ordenações Régias. Em 1385, D. João I promulgou uma carta
através da qual proibia, sob pena de degredo, diversas práticas como ligamentos,49
chamar diabos, encantamentos, adivinhações e lançar sortes. Em 1446 passaram a vigir
as Ordenações Afonsinas, em que se estabelecia relação direta entre as práticas mágicas
e a intervenção do demônio, o que nenhuma das Ordenações posteriores havia
mencionado. Estabelecia-se a pena de morte para aqueles que matassem ou
provocassem qualquer tipo de dano à saúde ou aos bens de outrem. Para delitos como
encontrar objetos ou tesouros perdidos, foram estabelecidas penas menores.
As Ordenações Manuelinas, que passaram a vigorar em 1512, apresentaram uma
descrição mais pormenorizada do assunto. Para as práticas de maior gravidade, como
utilizar objetos sagrados, invocar espíritos diabólicos ou inclinar vontades através de
feitiços previa-se a pena de morte. A adivinhação e a posse de objetos considerados
como ligados ao mundo dos mortos seriam punidas com o degredo e a marcação da face
com ferro em brasa, além de penas pecuniárias. Para as práticas de cura e as
superstições previa-se penas de degredo ou pecuniárias. Por fim, a prática de benzer
animais sem licença real ou episcopal seria punida da mesma forma que as anteriores.
Todas as penas levariam em consideração a condição social dos condenados. Uma vez
que as Ordenações posteriores não apresentaram novidades relevantes a este respeito,
pode-se considerar as Ordenações Manuelinas como a definitiva legislação régia sobre o
assunto.50
A legislação inquisitorial a respeito do delito de feitiçaria estava estipulada nos
Regimentos. Os Regimentos de 1552 e 1613 não apresentaram disposições específicas a
respeito deste delito; apenas o Regimento de 1640 tratou do assunto. Ao contrário da
legislação régia, não havia neste documento uma descrição detalhada das práticas
condenadas; o documento mencionava apenas que era considerado heresia utilizar em
feitiçarias, sortilégios e adivinhações objetos sagrados, invocar espíritos diabólicos,
adorar o diabo ou batizar imagens. A pena máxima, de entrega ao braço secular, só
deveria ser aplicada em casos de réus que se recusavam a assumir suas culpas, havendo
provas consideradas suficientes para incriminá-los, ou de reincidentes. As demais penas
eram o degredo, a prisão, as galés, o uso de hábito penitencial, ou açoites. O Regimento
49
Tornar alguém frígido ou estéril por efeito de malefício.
50
Ibid., pp. 192-193.
27
advertia que os danos causados pelos supostos feiticeiros deveriam ser levados em conta
para a rigidez das penas.
O Regimento seguinte, de 1774, último do Santo Ofício português, enquadrava-
se nos parâmetros da reforma da Inquisição decretada pelo Marques de Pombal. A
feitiçaria passava a ser considerada fantasiosa e aqueles que declarassem praticá-la
deveriam ser considerados impostores e ignorantes, e não mais agentes do demônio no
mundo terreno. Ainda assim, prevaleceram as penas de degredo, açoites, prisão e
galés.51
A legislação episcopal a respeito da feitiçaria é ainda mais antiga que a
legislação régia. O Sínodo Bracarense de 1281 já proibia o uso da feitiçaria. No
entanto, até o século XVI, as disposições não especificavam as práticas que poderiam
ser assim consideradas. A partir deste momento, as Constituições Sinodais dos
Arcebispados passavam a apresentar capítulos dedicados à feitiçaria, referindo
principalmente as práticas divinatórias. Com relação às penas aplicáveis, destacava-se a
excomunhão, dentre outras penas espirituais. Dentre as Constituições que abordaram o
problema de maneira mais específica, na esteira das Ordenações Manuelinas, podemos
citar as de Évora (1534), Braga (1538) e Coimbra (1548). A partir de 1620 o conteúdo
das Constituições teria sofrido grandes modificações, como uma descrição mais densa
das práticas condenáveis e o aumento das penas aplicáveis (tanto aos mágicos quanto a
sua clientela), com a inclusão da pena de degredo e a incorporação das medidas
expressas na Bula Coeli et terrae, de 1586, de Sisto V, a qual afirmava que competia à
Inquisição a perseguição ao delito em questão mesmo quando não houvesse suspeita de
heresia.52 Percebe-se que, mesmo considerando-se tais mudanças, a justiça episcopal era
a mais branda dentre todas as instâncias de perseguição ao delito de feitiçaria.
As Constituições Sinodais do Arcebispado de Braga de 1538 proibiam o furto da
pedra de ara, a invocação de espíritos diabólicos ou qualquer outro tipo de feitiçaria sob
pena de excomunhão maior. Proibia-se também a prática de benzer animais sem licença
do Arcebispo, do vigário ou de algum visitador, sob pena de contribuir com quinhentos
reais para obra da Sé. Por fim, era prevista também uma multa de igual valor para
aqueles que procurassem feiticeiros.53
51
Ibid., pp. 193-195.
52
Ibid., pp. 194-195.
53
Constituições do Arcebispado de Braga. Lisboa: Germam Galharde, 1538, Título XXVIII, f. LXXII.
28
Cabe lembrar que a justiça episcopal era aquela com maior abrangência
territorial para a perseguição aos agentes da feitiçaria. O controle era realizado, pela
instância episcopal, através de devassas e das visitas pastorais. As visitas eram
realizadas pelo próprio bispo ou homens requisitados por ele para esta finalidade ou por
membros do Cabido da Sé, que deveriam percorrer todas as freguesias de sua diocese
para averiguar o estado das igrejas, do clero e do rebanho. Durante o século XV e parte
do XVI, o foco das visitas pastorais era o estado material das igrejas e dos bens móveis
sob os cuidados do clero local. A partir de meados do XVI, principalmente após as
determinações do Concílio de Trento, que analisaremos à frente, o foco se deslocou para
o comportamento moral e o conhecimento do clero a respeito da doutrina e para as
práticas religiosas dos fiéis. Segundo Paiva, durante as visitas pastorais, os fiéis eram
interrogados a respeito de delitos menores e públicos, o contrário do que ocorria em
uma visitação inquisitorial, que privilegiava os delitos heréticos. Assim, os dois tipos de
devassa podem ser considerados complementares, instituindo um controle mais efetivo
sobre a população.54 Já segundo Marcocci, as testemunhas55 eram interrogadas
primeiramente a respeito de delitos heréticos, além dos pecados públicos relativos a
delitos religiosos, morais e sociais. Os acusados aos visitadores estavam sujeitos a três
situações: a primeira, a de serem obrigados a fazer um “termo de fama cessanda”,
através do qual se comprometiam a acabar com seus comportamentos suspeitos; a
segunda, relativa a um “termo de admoestação”, pelo qual ficavam obrigados ao
pagamento de uma multa e a não mais repetir seus comportamentos, além de penas
espirituais; e a terceira, que consistia em um processo judicial no tribunal episcopal.56
No entanto, devido ao absenteísmo do alto clero e à parca formação do baixo clero, as
ações para o controle e a cura de almas foram insuficientes e fragmentárias, situação
que só seria solucionada no século seguinte, como veremos adiante.
Uma das únicas medidas de exceção com relação ao crime de feitiçaria em
Portugal ocorreu em 1559, quando D. Catarina, então Regente, requisitou aos
magistrados civis que realizassem uma investigação a respeito de delitos de feitiçaria no
Reino. Gomes Soares, desembargador e ouvidor do Duque de Aveiro, havia prendido e
54
Idem. Inquisição e visitas pastorais: dois mecanismos complementares de controle social?. Revista de
História das Idéias. Coimbra. Instituto de História e Teoria das Idéias da Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, v. 11, pp. 85-102, 1989.
55
A escolha das testemunhas não era sempre casual, e por vezes eram chamados a testemunhar indivíduos
citados nas denúncias recebidas pelo clero diocesano ou em processos (episcopais ou civis) em curso. Cf.:
MARCOCCI, Giuseppe. op. cit. pp. 176-178.
56
PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas, p. 206.
29
processado cinco mulheres por feitiçaria, as quais foram levadas para Lisboa e
queimadas no Rossio. Após este episódio, a Rainha ordenou a devassa. Foram presas 27
mulheres e um homem; uma delas foi queimada no Rossio, enquanto os outros
receberam pena de açoites e degredo.57 É importante lembrar que, a despeito deste
episódio, segundo Francisco Bethencourt, a própria Rainha tinha a seu serviço
feiticeiras, videntes e curandeiras.58 A atitude ambígua de D. Catarina pode ser muito
interessante para a questão proposta neste trabalho, se considerarmos, em primeiro
lugar, a particularidade do ocorrido, e em segundo lugar, a proximidade entre a Rainha e
o Arcebispo de Braga D. Fr. Bartolomeu dos Mártires, responsável pela Visitação a
Braga, como veremos adiante.
Não questionamos a conclusão já consensual de que a feitiçaria nunca foi um
delito privilegiado em Portugal. No entanto, o caso bracarense nos permite discutir e
perceber nuances desse processo. Não se pretende contrapor outra tese, a da relevância
da bruxaria no reino luso, a partir de um estudo de caso, mas acreditamos que este possa
relativizar a abrangência da análise que se conhece até hoje.
30
sobre todo o norte e parte do centro do Reino, além das colônias) e Évora (com
jurisdição sobre o sul e a Diocese da Guarda). Em 1560 foi criado o Tribunal de Goa,
com jurisdição sobre a África oriental e a Ásia, e em 156561 foi restabelecido o Tribunal
de Coimbra, com jurisdição sobre todo o norte e boa parte do centro do Reino. Com tal
reformulação, o Tribunal de Lisboa passava a ter controle sobre as Dioceses da Guarda,
Lisboa, Leiria e os territórios atlânticos, enquanto o Tribunal de Évora manteve a
jurisdição sobre as Dioceses de Évora e Algarve – configuração esta que se manteve
quase intacta até a supressão da Inquisição portuguesa.62
A partir da bula Meditatio cordis, de 1547, D. Henrique procurou fortalecer o
Tribunal da Inquisição. Em 1553 obteve de Julio III um Breve através do qual era
nomeado legado a latere, ou seja, representante do Papa em Portugal,63 o que eliminava
a necessidade da presença do Núncio romano no Reino.64 Em 1555, através da bula Ex
commissi nobis, o Santo Ofício passaria a receber pensões anuais provenientes das
rendas episcopais do Reino, requisição feita por D. João III no ano anterior. Estas
medidas garantiam maior autonomia administrativa e econômica para a Inquisição lusa,
inclusive frente à própria Coroa.65 Finalmente, através do breve Cum audiamos, de 14
de abril de 1561, D. Henrique obteve De Pio IV autorização de reclamar para si todas as
causas de heresia dos ordinários.66 Percebe-se a adoção de uma postura mais flexível
por parte da Cúria Romana a partir do início da década de sessenta devido ao
crescimento da ameaça protestante na Europa. Apesar da postura forte do Cardeal
Infante, a Regente D. Catarina67 agiu, muitas vezes, de forma moderada com relação à
61
Segundo Mendonça e Moreira, o Tribunal de Coimbra foi restaurado apenas a 22 de março de 1566.
Cf: Ibid.., p. 119.
62
Ibid., pp. 122-123; BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições., p. 53.
63
Este era o mais alto título de legacia. Paulo IV, no início de seu pontificado, retirou a legacia, restituída
por Pio IV, em caráter perpétuo, em 1559. Cf: POLONIA, Amélia. D. Henrique: o Cardeal–Rei. Lisboa:
Círculo de Leitores, 2005, p. 84.
64
Esta concessão foi parcialmente suspensa por Paulo IV em fins da década de cinqüenta, mas pouco
depois foi restituída. Cf: MARCOCCI, Giuseppe. op. cit., p. 96.
65
Ibid., p. 93.
66
ALMEIDA, Fortunato de. op. cit., p. 421; MARCOCCI, Giuseppe. op. cit., p. 98
67
Após a morte de D. João III em 1557, sua viúva D. Catarina assumiu a regência durante a minoridade
de D. Sebastião, herdeiro do trono. D. Catarina, por ser irmã de Carlos V e, consequentemente, vista
como agente de Castela, enfrentou inúmeras dificuldades em uma corte dividida entre seus partidários e
os de D. Henrique, único irmão vivo do falecido D. João III. Em 1560, D. Catarina, em uma provável
tentativa de enfraquecer o cunhado, anunciou que desejava renunciar em seu favor e enviou uma carta-
circular a importantes membros da nobreza e do alto clero comunicando sua decisão. Frente às respostas
negativas, ela acabou permanecendo no cargo. Em 1562, entretanto, D. Catarina renunciou
definitivamente em nome de D. Henrique e continuou responsável pela tutoria do neto. Cf: BUESCU,
Ana Isabel. Catarina de Áustria (1507-1578) Infanta de Tordesilhas, Rainha de Portugal. Lisboa: Esfera
dos Livros, 2007, pp. 313-348; HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado: a construção do
31
comunidade cristã-nova, o que provocou ocasionais protestos por parte do Inquisidor-
Geral. Em 1558, D. Catarina prolongou por mais dez anos a proibição do confisco de
bens.68 No entanto, após a descoberta de focos de luteranismo em Valladolid e Sevilha,
a Rainha passou a demonstrar uma postura mais rígida com relação ao combate às
heresias.
Em dezembro de 1562, D. Henrique tornou-se Regente do Reino, após a
renúncia de D. Catarina, e sagrou-se, ao mesmo tempo, chefe da Igreja e chefe do
Estado. O acúmulo de poderes tornou ainda mais tênue o limite entre os negócios da
Inquisição e os negócios Reais e permitiu o fortalecimento do Tribunal do Santo Ofício.
Segundo Giuseppe Marcocci, alguns bispos se opuseram à concentração de poderes na
pessoa do Cardeal D. Henrique; dentre os quais destacaram-se Gaspar do Casal, Bispo
de Leiria, Julián de Alva, Bispo de Miranda, Rodrigo Gomes Pinheiro, Bispo do Porto e
Fr. Bartolomeu dos Mártires, Arcebispo de Braga.69
À medida que a Inquisição se estabelecia e se expandia no reino luso, tornou-se
cada vez mais necessário determinar os procedimentos utilizados, criar uma legislação
que consolidasse as estratégias e meios de atuação da instituição.
Antes que o primeiro regimento inquisitorial70 fosse elaborado em 1552, várias
determinações específicas foram estipuladas. Como exemplos destas primeiras
instruções podemos citar o estabelecimento do primeiro rol de livros proibidos e a
correspondência intensa entre o Inquisidor Geral Cardeal D. Henrique e os inquisidores,
em que tratavam da maneira de conduzir determinadas causas, e as instruções, quando
da criação dos Tribunais de Coimbra, Porto, Lamego e Tomar, a respeito de suas
estruturas, das visitas de distrito, da apresentação dos Inquisidores e das formas de
proceder.71 É necessário observar que as comunicações anteriores a 1547 refletiam as
sebastianismo em Portugal (séculos XVI e XVII). São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 78-81;
POLÓNIA, Amélia. op. cit., pp. 139-156.
68
Esta medida foi suspensa em 1563 pelo Cardeal D. Henrique após ter assumido a regência do Reino no
ano anterior.
69
Cf: MARCOCCI, Giuseppe. op. cit., pp. 100-101. É importante ressaltar que José Pedro Paiva
apresentou opinião completamente distinta a respeito da preocupação de Fr. Bartolomeu dos Mártires
com relação à passagem da regência de D. Catarina para D. Henrique. O Arcebispo, segundo Paiva,
estaria preocupado com as consequências que o excesso de funções teria sobre a saúde do Cardeal. Cf:
PAIVA, José Pedro. Baluartes da fé e da disciplina, p. 373.
70
A historiadora Elvira Mea analisou estas instruções como um primeiro regimento da Inquisição,
embora reconhecesse que seria mais preciso considerá-las um manual, devido a seu caráter sumário. Cf:
MEA, Elvira. op. cit. pp. 70-73; Idem. O Santo Ofício português - da legislação à prática. In: RAMOS,
Luís de Oliveira; RIBEIRO, Jorge Martins; POLÔNIA, Amélia. Estudos em homenagem a João
Francisco Marques. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2001, v. 2, pp. 163-174.
71
ASSUNÇÃO, Paulo. FRANCO, José Eduardo. op. cit. pp. 34-36. BETHENCOURT, Francisco. op.
cit., p. 44.
32
limitações impostas pelo Papa à atividade da Inquisição. Apenas após a bula Meditatio
Cordis de 1547 os documentos referentes ao funcionamento do Tribunal passaram a
refletir o caráter secreto do processo.
O Regimento do Santo Ofício de 155272 foi redigido pelo Inquisidor-Geral
Cardeal D. Henrique, com assessoria do Padre Leão Henriques, da Companhia de Jesus
e teve o parecer de D. Fr. Baltasar Limpo, Arcebispo de Braga, D. Rui Gomes Pinheiro,
Bispo de Angra e Governador da Casa Cível, D. João de Melo, Bispo do Algarve, Pedro
Álvares de Paredes e João Alvarez da Silveira, Inquisidores de Évora, dentre outros.
Dentre as questões tratadas no Regimento, podem ser destacadas o segredo do processo,
a formulação das contraditas, além das disposições a respeito da estrutura e organização
dos tribunais, das visitações, da maneira de proceder com os processados, dos autos-de-
fé e das competências de cada funcionário do Santo Ofício.73
Com relação ao procedimento inquisitorial, consta que os inquisidores deveriam
interrogar o preso o mais breve possível e admoestá-lo a confessar seus pecados e feitos
contra a fé católica, sem que o prisioneiro soubesse as culpas pelas quais foi
denunciado, o nome de seus denunciantes e das testemunhas de seus procedimentos. O
réu deveria ser questionado também a respeito de sua genealogia e de seus
conhecimentos sobre a doutrina.74 Somente em um segundo momento o processado
seria interrogado por suas culpas, “primeiro in genere e depois in specie.”75 O réu que
permanecesse na negativa teria direito de indicar seu procurador e, lido o traslado de
acusação, testemunhas para sua defesa, sujeitas à ratificação de duas pessoas religiosas e
honestas. Após ouvir suas culpas, excluídos os nomes das testemunhas do Santo Ofício,
o processado que permanecesse afirmando sua inocência teria direito às contraditas,
através das quais poderia afirmar os motivos pelos quais aqueles que supostamente o
teriam denunciado testemunharam contra ele.76 O documento versava ainda sobre a
possibilidade de uso do tormento. Após estas últimas inquirições, o processo
72
Os Regimentos do Santo Ofício português foram recentemente publicados por José Eduardo Franco e
Paulo Assunção. Para o Regimento de 1552, cf: ASSUNÇÃO, Paulo. FRANCO, José Eduardo. op. cit.,
pp. 108-135.
73
Em 1564, foram acrescentados 23 capítulos ao Regimento de 1552, com algumas adições e
esclarecimentos. Trataremos aqui apenas do Regimento de 1552, vigente à época da Visitação ao
Arcebispado de Braga. Doravante este documento será tratado por Regimento. Para mais informações a
respeito dos Regimentos posteriores, cf: BETHENCOURT, Francisco. op. cit. pp. 44-51.; ASSUNÇÃO,
Paulo; FRANCO, José Eduardo. op. cit., passim.
74
É importante salientar que não havia Regimento para os processos realizados antes de 1552 e, portanto,
estes não apresentavam inquéritos sobre a genealogia ou sobre os conhecimentos de doutrina do réu.
75
Regimento, Capítulo 26, p. 113.
76
Regimento, Capítulo 42, p. 117.
33
encaminhava-se para sua fase final, na qual se determinava a sentença do réu e seu
termo de abjuração. A este respeito, atentou-se para a obrigatoriedade do voto colegial,
através do qual o despacho do bispo responsável pelo réu em julgamento era requerido.
Caso houvesse discordância entre inquisidores e ordinários com relação à sentença, o
caso deveria ser enviado ao Inquisidor-Geral ou ao Conselho.77
O Regimento diferenciava as culpas secretas, ou que tivessem apenas uma
testemunha, daquelas conhecidas por mais de uma pessoa, facultando ao Inquisidor
absolver as primeiras secretamente na Mesa do Santo Ofício, sem excluir a imposição
de penas espirituais. O documento estipulou as penas para os condenados por veemente
suspeita na fé, para os quais a abjuração deveria ser pública, e para os condenados por
leve suspeita, que poderiam abjurar publicamente ou na audiência do Santo Ofício,78
além de marcar também a distinção entre os hereges penitentes e os impenitentes, sendo
apenas os primeiros passíveis de reconciliação.
Com relação às visitações, o Regimento estipulava que o Inquisidor deveria
apresentar seus poderes ao prelado e às autoridades seculares locais e mandar notificar o
dia e a igreja em que se faria o sermão da fé, encorajando os culpados de heresia a
pedirem perdão por seus erros, para que fossem reintegrados à Igreja, e a todos que
tivessem conhecimento das culpas de outrem a denunciar. Ao sermão deveria se seguir a
publicação do Monitório Geral e do rol de livros proibidos.79
Giuseppe Marcocci advertiu para o conteúdo do Capítulo VI do Regimento, a
respeito do Édito de Fé, em que se expressou o desejo de submissão da autoridade dos
bispos à dos inquisidores:
E que o que assim souberem tocando à Santa Inquisição não o digam nem
descubram a alguma pessoa, de qualquer qualidade que seja, salvo a seus
confessores, sendo tais pessoas que lhes possam bem aconselhar o que são
nisso obrigados a fazer e os confessores lhe mandaram que o venham logo
80
denunciar aos inquisidores.
77
Regimento, Capítulos 47, 49, p. 119.
78
Regimento, Capítulos 53-54, p. 120.
79
Regimento, Capítulo 6, p. 110.
80
Regimento, Capítulo 6, p. 110.
34
o indivíduo seria reconciliado e faria abjuração em uma igreja, sem mais penas públicas.
Para o caso dos indivíduos infamados de heresia, caso não houvesse testemunhas, o
procedimento seria o mesmo descrito acima. No entanto, caso estas existissem, o
infamado não estaria livre de outras penas públicas. A todos os reconciliados –
perdoados e acolhidos no seio da Igreja - os inquisidores poderiam impor penas
espirituais.81
Aqueles que confessassem seus erros fora do Tempo de Graça e não tivessem
testemunhas de suas práticas heréticas poderiam também abjurar na Mesa do Santo
Ofício. Para os casos em que houvesse testemunhas, previa-se a abjuração em público, e
estas seriam interrogadas. Se a confissão não parecesse verdadeira, se procederia à
prisão do suspeito para averiguar seus erros.
Segundo o Regimento, deveria haver em cada tribunal dois inquisidores, um
promotor, dois notários, um meirinho, um alcaide, um solicitador e um porteiro.
Os inquisidores, que deveriam proceder às causas, eram nomeados pelos
Inquisidores-Gerais, e provinham principalmente da nobreza e dos grupos ligados à
administração pública. Segundo Bethencourt, a grande maioria havia estudado Direito
Canônico na Universidade de Coimbra.82
Apesar de não terem sido diretamente mencionados no Regimento, os deputados
tinham o direito de voto nas causas. O deputado gozava de um estatuto privilegiado,
uma vez que, juntamente com os promotores, estava imediatamente abaixo dos
inquisidores. Esta função poderia também ser considerada como intermediária, já que os
inquisidores recém-nomeados deviam primeiramente ocupar este cargo.83
O Promotor era aquele responsável pela acusação do réu. Cabia a ele também
emitir mandatos de captura. O promotor tinha posse de uma das chaves da câmara do
secreto, onde eram guardados todos os documentos do Tribunal, assim como os dois
notários, para que esta não pudesse ser aberta por apenas um funcionário e,
consequentemente, para que nenhum documento pudesse sair dela.84
Cabia aos notários, que deveriam ser clérigos de bons costumes, o
processamento dos casos e de quaisquer outras disposições que devessem ser registradas
e, por isso, deviam sempre acompanhar os inquisidores. Como já dito acima, cada um
deles possuía uma chave da casa do secreto e um deles deveria receber e organizar o
81
Regimento, Capítulo 9, pp. 110-111.
82
BETHENCOURT, Francisco. op. cit., p. 129
83
Ibid., pp. 77-78.
84
Regimento, Capítulos 72-79, pp. 123-124.
35
dinheiro para as despesas do Tribunal. Além de tais obrigações, os notários eram
expressamente proibidos de comunicar qualquer coisa aos presos.85
O meirinho acompanhava os inquisidores em suas funções e executava tarefas
fora do tribunal, como realizar prisões e expedir documentos. Havia ainda os chamados
homens do meirinho, que tinham como tarefa auxiliá-lo em suas funções, e não
poderiam ser seus parentes ou criados, nem ter sangue de mouro ou judeu.86
O alcaide era responsável pelos cárceres; poderia aconselhar os presos apenas a
falarem a verdade aos inquisidores e pedirem perdão por seus erros. O Regimento era
muito claro com relação à proibição de qualquer tipo de familiaridade entre o alcaide ou
os guardas e os presos. Cabia a ele também distribuir equitativamente as esmolas, além
da praticamente impossível tarefa de zelar pela incomunicabilidade entre os presos. O
alcaide deveria ser homem casado e de “muito boa consciência”.87
Cabia aos solicitadores investigar as testemunhas, tanto as do Santo Ofício
quanto as indicadas pelos réus, e requerer a execução das penas impostas aos
condenados. O Regimento os proibia expressamente de aceitar qualquer coisa das
testemunhas.88
O porteiro era responsável pela entrada e saída de pessoas na Casa do Despacho
da Inquisição. Além disso, deveria mantê-la limpa e tinha o dever de dar conta de tudo
que estivesse na Casa, desde objetos e móveis até a documentação que lá se
encontrava.89
Os procuradores, que deviam ser cristãos-velhos, “pessoas de confiança, letras e
consciência”, cuidavam da defesa do réu. O Regimento advertia que de modo algum o
procurador deveria ser escolhido pelos inquisidores e que percebendo o procurador que
o réu “não tem justiça”, deveria comunicar aos inquisidores e desistir da causa.90
A Inquisição era dotada ainda de uma rede de pára-funcionários, da qual faziam
parte os familiares91, os censores e os visitadores de naus, dentre outros. Muitas destas
funções, no entanto, foram criadas após décadas de funcionamento do Tribunal. O
aparelho inquisitorial se expandia ao adequar-se às necessidades que eventualmente
surgiam.
85
Regimento, Capítulo 80-94, pp. 124-126.
86
Regimento, Capítulo 95-98, pp. 126-127.
87
Regimento, Capítulo 99-118, pp. 127-129.
88
Regimento, Capítulos 119-126, pp. 120-130.
89
Regimento, Capítulos 127-129, p. 130.
90
Regimento, Capítulo 130-131, pp. 130-131.
91
Sobre os familiares do Santo Ofício, cf: CALAINHO, Daniela. Agentes da Fé: Familiares da
Inquisição Portuguesa no Brasil Colonial. Bauru: EDUSC, 2006.
36
O Conselho Geral da Inquisição, espécie de Tribunal de última instância que
tinha como função controlar os tribunais de distrito, teve seu poder reconhecido através
de um Regimento específico elaborado em 1570, com a finalidade de regular este órgão,
que já funcionava, na prática, desde o estabelecimento do Santo Ofício. A nomeação de
seus membros, que, em sua maioria, já exerciam algum cargo dentro do Tribunal, era
feita pelo Inquisidor-Geral após uma consulta ao Rei. Os Inquisidores-Gerais podiam
delegar funções aos membros do Conselho, como fizeram em diversas ocasiões os dois
primeiros que ocuparam este cargo.92
Segundo Elvira Mea, a remuneração para os cargos desempenhados pelos
funcionários do Santo Ofício não seria muito satisfatória para os altos cargos se
comparada à remuneração recebida por altos funcionários de outras instituições, como a
Universidade de Coimbra, ao contrário do que havia afirmado Antônio Baião. No
entanto, ser funcionário do Santo Ofício significava ser dotado de uma série de
privilégios, mercês e isenções ficais que faziam com que o título fosse intensamente
desejado.93
É preciso lembrar, todavia, que as normas estabelecidas pelos Regimentos não
necessariamente eram cumpridas; a Inquisição possuía uma dinâmica de funcionamento
própria que, muitas vezes, era caracterizada por desrespeito às normas e abuso de poder,
como revelaram as visitas de inspeção aos Tribunais.94
92
BETHENCOURT, Francisco. op. cit., p. 77.
93
MEA, Elvira. A Inquisição de Coimbra no século XVI., pp. 154-168
94
Para maiores informações sobre as visitas de inspeção aos Tribunais, cf.: BETHENCOURT , Francisco.
op. cit, pp. 188-197.; MEA, Elvira. op. cit., pp. 169-172.
37
que tratavam dos procedimentos episcopais em crimes de heresia, foram citadas pelo
autor como exemplo de que Roma não desejava privar os prelados de sua autoridade,
em clara oposição ao que afirmara Herculano.95
Ao contrário do que desejava D. João III, a perseguição aos hereges deveria ser
partilhada entre inquisidores e bispos, como constava em legislação medieval96 e foi
confirmado nas bulas papais sobre a Inquisição portuguesa. Muitos bispos prosseguiam,
então, com os inquéritos em matérias de heresia. O direito dos prelados de julgar tais
delitos encontrava-se nas próprias Constituições Diocesanas posteriores a 1536 e nos
manuais e editais das visitas pastorais até o século XVIII.97 No entanto, segundo José
Pedro Paiva, com a consolidação da autoridade inquisitorial, os bispos teriam, na
prática, deixado de julgar matérias de heresia em seus auditórios, apesar de ter se
mantido o direito para que o fizessem. A partir de 1560, a Inquisição teria conquistado
uma tal hegemonia, sob a administração de D. Henrique, que os prelados passaram a
encaminhar os suspeitos de heresia para o Santo Ofício, selando a relação de
conformidade e parceria que teria unido bispos e inquisidores desde o início do
funcionamento do Tribunal.98
Após a criação do Tribunal da Fé em Portugal, o poder episcopal havia
diminuído drasticamente e por diversas vezes o Santo Ofício tentou ultrapassar áreas
que eram privativas dos prelados, como a confissão e a vigilância sobre a atividade dos
pregadores. Todavia, ainda de acordo com Paiva, devido a uma conformidade
ideológica, que se devia em parte ao fato de que os inquisidores eram recrutados dentre
os bispos,99 e ao medo da desagregação da cristandade, conformou-se uma espécie de
divisão de tarefas entre bispos e inquisidores: enquanto aos primeiros cabia garantir a
instrução dos fiéis, através da catequese e da atividade pastoral, aos inquisidores cabia
95
ALMEIDA, Fortunato de. op. cit., p. 421.
96
A bula Ad extirpanda, de Inocêncio IV (1252) confirmou que os delitos de heresia eram de jurisdição
comum a bispos e inquisidores. Clemente V regulou estas relações através da constituição Multorum
querela (1311-1313), que confirmava o direito de inquisidores e prelados investirem contra casos de
heresia e instituiu a obrigação de uma atuação conjunta caso alguma das instâncias desejasse agravar a
situação dos suspeitos ou submetê-los a tortura e na fase de sentenciar os réus (o que constituía o
chamado voto colegial). Estas disposições foram integradas nas Clementinas, ordenadas por João XXII
em 1317, estabelecendo definitivamente o caráter misto da jurisdição sobre as matérias heréticas. Cf:
PAIVA, José Pedro. op. cit., p. 34.
97
Ibid., pp. 38-39.
98
Ibid., pp. 41-42.
99
Na tentativa de melhor regular as relações entre os bispos e o Santo Ofício, D. Henrique ofereceu a
alguns prelados o cargo de Inquisidor nos Tribunais inquisitoriais e colocou à frente de algumas dioceses
em que havia grandes comunidades de cristãos-novos bispos que já haviam trabalhado no Tribunal, na
tentativa de evitar conflitos de jurisdição. Ao contrário de Paiva, Francisco Bethencourt afirmou que os
inquisidores portugueses provinham, em sua maioria, do curso de Direito Canônico da Universidade de
Coimbra. Cf: PAIVA, José Pedro. op. cit., p. 56; BETHENCOURT, Francisco. op. cit., 2000, p. 129.
38
reprimir os erros e dissidências, através de punições severíssimas e públicas. Até que
esta conformidade se estabelecesse, houve conflitos pontuais, que diziam respeito à
jurisdição de alguns casos de foro misto, à precedência em rituais e cerimônias públicas,
ao pagamento de pensões à Inquisição e a alguns prelados que atuaram de maneira
alternativa, em defesa da autoridade episcopal, e/ou defenderam que a luta da ortodoxia
deveria se dar de maneira mais branda – no entanto, a autoridade e a existência do
Tribunal nunca teriam sido questionadas.100 Segundo José Pedro Paiva, D. Fr.
Bartolomeu dos Mártires pode ser incluído neste último grupo de bispos que adotaram
vias alternativas.101
Giuseppe Marcocci, em estudo que versa sobre as relações entre bispos e
inquisidores a respeito da luta pela ortodoxia, enfatizou o caráter conflituoso destas
relações até fins do século XVI, uma vez que as autoridades eclesiásticas locais, mesmo
que não confrontassem a Inquisição de maneira direta, por vezes optaram por agir de
maneira autônoma, em defesa de seus poderes, e se utilizaram de métodos alternativos
àqueles do Santo Ofício, complexificando o equilíbrio das forças em disputa pela
hegemonia sobre a fé e o controle das consciências:
100
PAIVA, José Pedro. op. cit., passim.
101
Ibid, pp. 367-368.
102
In linea generale, l´azione autonoma dei vescovi in materia di eresia non dipendeva sempre da
resistenze e opposizioni di principio nei confronti della giurisdizione del Sant´Uffizio, ma affondava
spesso le proprie radici nel terreno dei complessi equilibri di potere esistenti. Da un lato le relazioni fra
l´Inquisizione e le altre autorità ecclesiastiche erano investite e influenzate dalla grande politica, dai suoi
schieramenti, dagli scontri che attraversavano la vita di corte a cui partecipavano attivamente gli
esponenti dell´alto clero. Dall´altro erano talora spinte di carattere locale che inducevano i vescovi ad
agire nel rispetto dei rapporti vigenti nello specifico contesto geografico in cui operavano. In ogni caso, la
loro condotta era legittimata dal ruolo di custodi dell´ortodossia che da secoli i vescovi rivestivano nella
tradizione della Chiesa. (tradução livre) Cf: MARCOCCI, Giuseppe. op. cit., p. 161.
39
cristãos-novos capturados em uma visita pastoral. Os membros do Cabido mostravam-
se indignados pelo fato de que a Arquidiocese mais antiga e importante do Reino
devesse entregar os suspeitos ao bispo do Porto, diocese subordinada à Arquidiocese
Primaz.103
O período em que D. Henrique ocupou o cargo de Inquisidor-Geral (1539-1579)
caracterizou-se pelo fortalecimento e pela expansão dos poderes do Santo Ofício. O
Cardeal-Infante procurou articular os diversos setores da Igreja portuguesa em prol da
luta pela ortodoxia de maneira que todos estivessem a serviço do Santo Ofício. Era
fundamental que os prelados cooperassem com o trabalho inquisitorial, uma vez que as
redes episcopais chegavam a localidades a que o modelo inquisitorial de tribunais
imóveis dificilmente teria acesso. O controle das consciências a um nível muito mais
pormenorizado que apenas as autoridades locais poderiam alcançar, através do
sacramento da confissão, da presença do corpo eclesiástico hierarquicamente distribuído
pelo território e das visitas pastorais, modelo imposto pelo Concílio de Trento, era então
instrumento almejado pela Inquisição.104
A partir do Breve Cum audiamus, de Pio IV, de 14 de abril de 1561, o
Inquisidor-Geral D. Henrique passava a ter a possibilidade de avocar a si todas as
causas de heresia pendentes do poder episcopal quando considerasse necessário.105
Segundo Marcocci, o Breve constituía uma ofensiva à jurisdição dos bispos em matérias
de heresia; já segundo Paiva, a atitude de D. Henrique deve ser compreendida dentro de
um contexto de instabilidade política no Reino, como já referimos acima, e de reforço
dos poderes episcopais, que emergiam como ponto central dos ideais de reforma da
Igreja propostos em Trento na forma de um modelo que associava a figura do bispo a
um pastor. D. Henrique tencionava fortalecer a autoridade da Inquisição como única
instituição com competência para julgar causas de heresia e garantir o poder de coibir
obstruções à atividade do Santo Ofício por qualquer bispo. O Breve admitia também
que esta competência poderia ser delegada a qualquer juiz designado pelo Inquisidor-
Geral, o que ocorreu alguns meses depois, em setembro do mesmo ano, quando D.
Henrique delegou esta autoridade ao bispo do Algarve D. João de Melo e Castro, aos
deputados do Conselho Geral e inquisidores.106
103
Ibid., p. 73; PAIVA, José Pedro. op. cit., p. 51.
104
MARCOCCI, Giuseppe. op. cit., pp. 173-174.
105
ALMEIDA, Fortunato de. op. cit., p. 421; MARCOCCI, Giuseppe. op. cit., p. 98; PAIVA, José Pedro.
op. cit. p. 56.
106
Ibid., p. 386.
40
Alguns prelados demonstraram insatisfação com relação às repercussões do
Breve papal através dos Apontamentos compilados após a reunião das cortes de 1562
em que D. Catarina passava a regência do Reino para D. Henrique. Segundo José Pedro
Paiva, não foi a autoridade a ele conferida o objeto das reclamações dos prelados, mas
sim a transferência desta competência a outros que, por razões de idade, origem social
ou dignidade religiosa, não estariam aptos a exercer tal autoridade. Os bispos
mostravam o descontentamento de terem que submeter as visitas episcopais à
supervisão dos inquisidores e sugeriam que o Conselho Geral do Santo Ofício não fosse
formado apenas por inquisidores, mas também por bispos experientes e que este fosse
inspecionado por prelados, o que segundo Paiva, expressava o desejo dos bispos de
tomar parte na definição dos rumos do Tribunal. O documento não propunha uma
alternativa à atividade inquisitorial, mas ressaltava o dever episcopal de promover a
integração das comunidades cristã-nova e cristã-velha através da atividade pastoral e
catequética.107 No entanto, segundo Marcocci, os bispos pregavam o pleno respeito a
sua autoridade e o emprego de métodos alternativos para os casos menores, e
recusavam-se a aceitar a concentração de poderes do Santo Ofício. Os prelados
defenderam nos Apontamentos que a repressão inquisitorial não poderia sanar a questão
das práticas criptojudaicas dos cristãos-novos; era necessário doutriná-los e inseri-los no
seio da cristandade:
podia mandar ver V.A. se seria bem aos que nam fossem tam principaes e
homens que por sua honra se nam devem de constranger a isto, manda-llos
nos bispados doutrinar aos velhos e aos moços e aver pregadores e lições
principalmente para elles e com mais continoação das que se fazem, em que
polla môr parte os que pregão tem pouca lembrança de acodir a isto, sendo
parte para elles tam necessaria.108
nam use do dito breve e nos restitua nesta parte nossas jurisdições e queira
sempre que com credito nosso se faça seu serviço e que seja servido que nos
oponhamos a isso não nos fazendo mercê desta emmenda, como vee que
somos tam obrigados.109
107
Ibid., p. 390-391.
108
BGUC, Apontamentos dos Prelados deste Reino nas Cortes que se fizeram em Dezembro de 1562 na
menoridade del Rey D. Sebastiam, , Ms. 3187, ff. 50v-51. Apud: MARCOCCI, Giuseppe. op. cit., p. 170.
109
BGUC, Apontamentos dos Prelados deste Reino nas Cortes que se fizeram em Dezembro de 1562 na
menoridade del Rey D. Sebastiam, , Ms. 3187, ff. 48-48v. Apud: PAIVA, José Pedro. op. cit., p. 392.
41
Apesar de não apresentar qualquer afronta direta à atividade inquisitorial ou à
autoridade de D. Henrique, como ressaltou Paiva, o documento pode ser compreendido
também como uma tentativa de defender a jurisdição episcopal frente à Inquisição,
como afirmou Marcocci. Afinal, a própria concentração de poderes na figura de D.
Henrique, como Inquisidor-Geral e Regente do Reino, deve ser levada em consideração
como fator que coibiria qualquer reclamação mais enfática com relação à expansão do
Santo Ofício.
A luta de D. Henrique para reforçar o poder do Tribunal do Santo Ofício
português foi também marcada pela delicada questão da absolvição de heresias ocultas
(manifestas a no máximo duas pessoas) no foro da consciência – o que significava que
os delitos eram absolvidos secretamente - prerrogativa reservada ao Papa e aos bispos,
que poderiam delegar esta competência. D. Fr. Bartolomeu dos Mártires foi um dos
maiores defensores em Portugal desta via alternativa, principalmente no que diz respeito
aos delitos cometidos por cristãos-novos, como será tratado à frente.110
Baseando-se no Evangelho de São Mateus, alguns bispos adotavam o princípio
da correção fraterna e tentavam corrigir os hereges ocultos em segredo ao invés de
enviá-los ao Santo Ofício ou de julgá-los nos tribunais episcopais, evitando, assim, os
castigos mais severos, a exposição pública e até mesmo a cessão de poder aos
inquisidores. Segue abaixo a passagem do Evangelho que fundamentava o principio da
correção fraterna:
Se teu irmão tiver pecado contra ti, vai e repreende-o entre ti e ele somente;
se te ouvir, terás ganho teu irmão. Se não te escutar, toma contigo uma ou
duas pessoas, a fim de que toda a questão se resolva pela decisão de duas ou
três testemunhas. Se recusa ouvi-los, dize-o à Igreja. E se recusar ouvir
também a Igreja, seja ele para ti como um pagão e um publicano. 111
Assim, os bispos que adotavam este princípio ordenavam a seus clérigos que
primeiramente admoestassem secretamente aqueles que tivessem praticado heresia
oculta; caso não tivessem sucesso, que reiterassem a advertência na presença de
testemunhas e, somente então, se o herege não se corrigisse, que fosse entregue ao
prelado.
Segundo Marcocci, a correção fraterna constituía uma alternativa ao poder do
Santo Ofício.112 Este princípio, defendido por alguns bispos como uma alternativa à
110
PAIVA, José Pedro. op. cit., pp. 112-113.
111
Evangelho de São Mateus, 18 [15-17].
112
MARCOCCI, Giuseppe. op. cit. passim.
42
exposição e aos métodos mais severos utilizados pelo Santo Ofício, foi apontado por
José Pedro Paiva como ideologia comum a alguns prelados que defendiam vias
alternativas à ação inquisitorial, sem, no entanto, constituírem qualquer objeção ao
funcionamento e existência do Tribunal e sem deixarem de cooperar com ele em
diversos níveis.113
A Inquisição tentou ao máximo reduzir o direito episcopal de absolver delitos
nos foros da penitência e da consciência para garantir que o maior número possível de
casos de delitos externos chegasse aos ouvidos dos inquisidores. Como já foi
mencionado acima, esta questão foi intensamente debatida no Concílio de Trento. Os
bispos ibéricos, liderados por D. Fr. Bartolomeu dos Mártires, Arcebispo de Braga e D.
Pedro Guerrero, Arcebispo de Granada, defenderam o poder episcopal frente às
investidas dos embaixadores de Portugal, Fernão Martins de Mascarenhas, e de
Espanha, que requisitavam que os bispos fossem proibidos de absolver delitos ocultos
no foro da consciência. Dessa forma, os prelados tinham ainda poder de intervir em
matérias de heresia; ainda assim, o texto definitivo colocava os bispos em uma posição
inferior aos inquisidores, uma vez que não poderiam mais delegar este privilégio:
No entanto, após aparente vitória dos prelados, em 1568, através da Bula da Ceia, o
Papa Pio V revogou as decisões do Concílio e determinou que os casos de heresia
estavam reservados apenas a si mesmo.115
Durante as primeiras décadas após o estabelecimento da Inquisição em Portugal,
o combate às heresias constituiu, em alguns casos, ponto de discórdia e disputa entre
bispos e inquisidores. A tentativa, por parte de alguns prelados, de afirmar sua
113
PAIVA, José Pedro. op. cit. passim.
114
Sessão XXIV, Capítulo VI; O Sacrosanto, e Ecumenico, Concílio de Trento em Latim, E Portuguez.
Lisboa: Officina de Francisco Luiz Ameno, 1781, v. 2, pp. 281-283. Tratou desta matéria também o
Capítulo VII da sessão XIV.
115
O Regimento do Santo Ofício português de 1613 garantia aos inquisidores o direito de absolver
heresias ocultas sem que fosse necessária a presença do bispo, o que contrariava o princípio do voto
colegial instituído em legislação medieval. Cf: MARCOCCI, Giuseppe. op. cit, pp. 170-172; PAIVA,
José Pedro. op. cit., pp. 117-121.
43
autoridade sobre os fiéis e seu poder de controle sobre as consciências, expressa através
do movimento de valorização da figura do bispo, tornou a luta pela uniformização da fé
muito mais complexa. Acreditamos que o caso do Arcebispado de Braga, à frente do
qual estava então D Fr. Bartolomeu dos Mártires, grande defensor da figura do bispo
como pastor de almas e do princípio da correção fraterna, prelado cioso de sua
autoridade sobre o rebanho, seja um dos grandes exemplos de como a disputa pela
autoridade entre bispos e o Santo Ofício pôde alterar a dinâmica inquisitorial.
44
Capítulo 2:
O Arcebispo D. Frei Bartolomeu dos Mártires e a Visitação
Inquisitorial de 1565
116
Granada, Luís de. Vida de Don Fray Brtolomé de los Mártires, Arzobispo de Braga (In: Obras de Fr.
Luis de Granada [Ed. Justo Cuervo], t. XIV, 323-366). Madrid, 1906. Apud: ROLO, Raul. Formação e
vida intelectual de D. Frei Bartolomeu dos Mártires. Porto: Movimento Bartolomeano, 1977, p. 55.
117
Desde os Estatutos Manuelinos de 1503, os estudos de gramática deixaram de ser encargo da
Universidade – permaneceram tutelados por ela, mas o soldo dos mestres passou a ser responsabilidade
dos pais dos alunos – e passaram a ser oferecidos obrigatoriamente nos bairros das escolas. Cf: ROLO,
Raul. Formação e vida intelectual de D. Frei Bartolomeu dos Mártires. Porto: Movimento Bartolomeano,
1977, pp. 54-56.
118
SOUSA, LUIS de. Vida de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires. Lisboa: Sá da Costa, 1946, vol. 1, p.
18-21. Doravante indicada por Vida.
45
teria participado do Capítulo Provincial de Guimarães para defender conclusões de
Lógica.119
É provável que Bartolomeu tenha terminado o curso de Teologia em 1537.
Concluídos os estudos, permaneceu no mesmo colégio como docente. O Capítulo
Provincial de 1538 decidiu que o Colégio seria transferido para o Convento da Batalha e
Fr. Bartolomeu foi obrigado a migrar juntamente com a instituição, iniciando sua
atividade docente a 17 de abril do mesmo ano.120
A 8 de fevereiro de 1545, El-Rei D. João III intercedeu a favor de Fr.
Bartolomeu, tornando os cursos ministrados pelo dominicano em Lisboa e na Batalha
equivalentes ao da Universidade de Coimbra, requisito para que fosse possível
concorrer ao título de Mestre121:
Eu el Rey faço saber a vos padre fr. Diogo de Murça, reitor da minha
universidade de Coimbra, que eu hei por bem e me praz que os cursos que fr.
Bartolomeu dos Mártires, frade da Ordem de S. Domingos, provar que tem
cursado no colégio da dita Ordem em Lisboa e no mosteiro da Batalha lhe
sejam levados em conta pera o grau de bacharel como se os fizera em essa
universidade. E que fazendo aí os autos que se requerem pera o dito grau, se
lhe dê o grau de bacharel como se cursara em ela os ditos cursos. 122
Foi provavelmente nesta fase de seu magistério que Fr. Bartolomeu dos Mártires
teve contato com o movimento de renovação escolástica capitaneado pela Universidade
de Salamanca. A chegada de Fr. Martinho de Ledesma em 1540 e a nomeação de Fr.
Bernardo da Cruz para Reitor no ano seguinte deram novos rumos à Universidade de
Coimbra, inserindo ali as tendências salmantinas. Fr. Bartolomeu teve acesso às
apostilas das aulas de Francisco de Vitória através de Ledesma, como consta em suas
anotações: “Em algumas matérias morais da Secundam Secundae, quando a li na ordem,
algumas cousas tirei e me aproveitei de huns cadernos de Frei Francisco de Vitória que
me emprestou hum seu discípulo, e pus aqui o que melhor me parecia.”123 O contato de
Bartolomeu dos Mártires com as idéias desenvolvidas em Salamanca foi fundamental
119
Ibid., p. 27. No entanto, segundo Raul Rolo, a documentação a respeito da história da Ordem dos
Pregadores não nos permite supor que se tenha realizado um Capítulo Provincial em 1532. Cf: ROLO,
Raul. op. cit. pp. 156-159.
120
Vida, p. 30.
121
Esta é a primeira referência a respeito de qualquer relação entre Fr. Bartolomeu dos Mártires e o
mundo cortesão. No entanto, para que tenha recebido tamanha mercê, é possível afirmar que o
dominicano já tinha então importantes ligações na corte.
122
BRANDÃO, Mário. Documentos de D. João III, vol. 2, pp. 225-226. Apud: ROLO, Raul. op. cit., p.
190.
123
MÁRTIRES, Bartolomeu dos. op. cit., v. 4, p. 1299 (questão 154). Apud: ROLO, Raul de Almeida.
Actas do I Encontro sobre História Dominicana. Porto: Arquivo Histórico Dominicano Português, 1979,
vol II, pp. 197-217, p. 203.
46
para o aprofundamento de suas reflexões acerca da atividade episcopal, que já então
constituía uma de suas preocupações, uma vez que Vitória e seus discípulos foram
alguns dos que impulsionaram o arquétipo do bispo pastor de almas.124
A 28 de março de 1551 Fr. Bartolomeu dos Mártires partiu para o Convento de
São Estevão de Salamanca, onde foi celebrado o Capítulo Geral da Ordem, para realizar
os exames para a obtenção do grau de Mestre. Estiveram presentes no Capítulo Geral
também Bartolomé de Carranza, naquele momento Provincial de Espanha, Francisco
Romeu Castiglione, Mestre Geral, e Domingos de Soto.125 Foi provavelmente em
Salamanca que Bartolomeu dos Mártires teve contato com as Relectiones de Melchor
Cano recém-saídas do prelo: De sacramentis in genere e De poenitentia. Cano era o
sucessor de Vitória na cátedra de Prima de Teologia em Salamanca desde 1546, quando
da morte do mestre, e estava então no Concílio de Trento como teólogo imperial. O
contato com Carranza, Soto e com a obra de Cano foi também muito importante para o
ideal de bispo que Fr. Bartolomeu elaborava, já que, assim como Vitória, estes autores
contribuíram de maneira inegável para a consolidação de um novo modelo episcopal,
como será analisado à frente.
A 25 de agosto de 1551 retomou suas lições no Convento da Batalha. 126 Em
1552, Bartolomeu dos Mártires foi escolhido como preceptor de D. Antônio, filho
bastardo do Infante D. Luís, futuro Prior do Crato. O Cardeal D. Henrique, tio de D.
Antônio, havia fundado em 1550, um colégio de sacerdotes recolhidos em Évora, para
onde enviou D. Antônio para que estudasse Teologia, na esperança de fazer dele um
clérigo. Sua primeira atividade em Évora data de 7 de dezembro de 1552 127, conforme
indicou em seus manuscritos. Se é possível afirmar que em 1545 Fr. Bartolomeu já
tinha importantes contatos no mundo cortesão, sua escolha para tutor de D. Antônio
pelo Cardeal D. Henrique e pelo Infante D. Luís reforça esta idéia. Em Évora, Fr.
Bartolomeu teve contato com Luís de Granada e com os jesuítas chamados por D.
124
Os pensamentos de Fr. Bartolomeu sobre esta questão estão dispersos pelos apontamentos que
preparava para suas aulas, substancialmente baseados na obra de São Tomás de Aquino, cujas idéias
constituíam o cerne da renovação filosófico-teológica do século XVI. Tais anotações foram
constantemente retomadas e acrescidas de novas informações pelo dominicano durante seus anos de
magistério. Fr. Raul Rolo (OP) compilou os manuscritos em uma coleção denominada Theologica
Scripta. Cf: ROLO, Raul (org.). Theologica Scripta. Braga, 1977.
125
Vida, p. 31; ROLO, Raul. Formação e vida intelectual de D. Frei Bartolomeu dos Mártires., pp. 192-
193.
126
Vida, p. 31.
127
ROLO, Raul. op. cit.pp. 196-200.
47
Henrique para o Colégio do Espírito Santo, relações que seriam decisivas para sua
futura nomeação e atividade como Arcebispo.
De acordo com Raul Rolo, Bartolomeu dos Mártires acompanhou D. Antônio
quando este partiu para Lisboa em 1555, lá permanecendo até, pelo menos, agosto de
1557. Segundo Raul Rolo, é possível que tenha exercido o magistério no Convento
dominicano de Lisboa128. Neste tempo, Fr. Bartolomeu foi também confessor de D.
João de Sande, que veio a falecer em janeiro de 1556.
Em fins de 1557, por influência de Granada, Dos Mártires foi eleito Prior do
Convento de Benfica, onde permaneceu até que, em 1559, foi nomeado para ocupar o
Arcebispado de Braga após a morte de D. Fr. Baltasar Limpo. De acordo com a
biografia de Dos Mártires escrita pelo próprio Luís de Granada, o primeiro teria caído
nas graças da Rainha D. Catarina devido às recomendações feitas por ele: “En este
tiempo um Padre [Granada] que confesaba sua Alteza [D. Catarina], y tênia muy
familiar conocimiento deste padre [Bartolomeu], le dio información de sus letras, virtud
y religión [...]”129 Em um apontamento de Fr. Bartolomeu em uma folha de guarda do
Breviário consta que Granada lhe teria dito que havia recebido da Rainha a incumbência
de fazê-lo aceitar o Arcebispado de Braga. Aparentemente, após tentar convencê-lo sem
sucesso, teria utilizado a excomunhão maior como uma forma de ameaça. 130 Os motivos
pelos quais o dominicano recusaria a mitra bracarense não são claros, mas é possível
afirmar, pelo conteúdo de algumas das cartas trocadas com D. Catarina, que o pálio
episcopal era encarado por ele como um trabalho extremamente árduo, que pouco
possibilitava momentos de estudo e contemplação; talvez Fr. Bartolomeu estivesse se
preparando para assumir uma Cadeira na Universidade, como sua trajetória intelectual
parece indicar. No entanto, foi constrangido por seu Provincial a aceitar a mitra
bracarense. Assim, em 27 de janeiro de 1559 o Papa Paulo IV nomeou oficialmente Fr.
Bartolomeu dos Mártires para a o Arcebispado de Braga.
128
O Colégio do Convento de Lisboa havia sido transferido para o Convento da Batalha e, alguns anos
depois, fora promovido a Studium Generale, como já foi dito. No entanto, o Capítulo Geral de Salamanca
(1551) determinou que as províncias, além de Estudos Gerais, tivessem nos conventos principais cursos
de Bíblia e Teologia, que onde vivessem jovens se ensinasse ao menos a Filosofia e que nos conventos de
noviciado houvesse cursos de Gramática e Dialética para os já professos. Cf: ROLO, Raul. op. cit., p.
208.
129
GRANADA, Luís de. Vida de Don Fray Brtolomé de los Mártires, Arzobispo de Braga, c.2. In: Op.
Omnia [ed.Cuervo], XIV, 327. Apud: ROLO, op. cit., pp. 207.
130
Apontamento de frei Bartolomeu, na folha de guarda do Breviário, após a imposição, pelo Provincial
frei Luis de Granada, de aceitar o Arcebispado de Braga. In: Bracara Augusta. Braga: Correio do Minho,
1990, vol. XLII, nº. 93, p. 533-534.
48
A Arquidiocese de Braga, detentora do título de Primaz das Espanhas,131 era
provavelmente a maior e mais importante do Reino. José Marques definiu os limites da
Arquidiocese no século XV, que se estendia do Atlântico até a fronteira com Castela:
Pela costa atlântica, da foz do Ave até à do Lima, donde subia por este rio até
um pouco acima do Lindoso. Desde aqui até Barca de Alva, a extrema
arquidiocesana de Braga coincidia com a fronteira do Reino, recortada em
linha sinuosa, através das serranias do Geres e do Larouco, merecendo
referencia especial a espetacular penetração do território português de
Tourém pelo antigo Reino da Galiza. Prosseguindo rumo ao nascente, a
divisória entre os dois reinos, depois de passar o Tamega, orienta-se para a
serra de Mairos e, transpostos os rios Rabaçal e Tuela, chega à serra de
Montesinho, contorna Rio de Onor, donde segue pelo Rio Maçãs, afluente do
Sabor, logo abandonado para utilizar o Douro como vigorosa fronteira
natural, numa extensão de uns 122 quilômetros, desde as proximidades de
Paradela até Barca de Alva.132
A partir de 1474 estes limites sofreram algumas modificações. Neste ano, Braga
obteve jurisdição sobre o arcediagado de Olivença e, alguns anos depois, em 1512,
acordou com o Bispo de Ceuta a permuta deste domínio pela administração eclesiástica
de Valença, que abrangia a região de Entre-Minho-e-Lima. A 22 de maio de 1545 o
Papa Paulo III criou a Diocese de Miranda e a Arquidiocese Primaz perdeu as terras de
Bragança, Vinhais, Outeiro, Monforte de Rio Livre, Vimioso, Chaves e Montalegre.
Esta era a configuração da Arquidiocese no momento da Visitação Inquisitorial de
1565.133
Além da Primazia, o Arcebispo de Braga gozava ainda do privilégio de senhor
da cidade, acumulando os poderes espiritual e temporal. No governo da Arquidiocese,
Dos Mártires pôde exercer o ofício sobre o qual havia refletido durante os anos de
magistério, influenciado pelas idéias de Vitória, Carranza, Soto e Granada a respeito da
atividade episcopal. Como Arcebispo, Fr. Bartolomeu pôs em prática as idéias que
defendeu em seus escritos, colaborando para a consolidação de um novo modelo de
ação episcopal.
131
A primeira referência à diocese de Braga é relativa aos anos de 385-386, quando da nomeação do
primeiro bispo de Braga conhecido, D. Paterno. Cf: COSTA, Padre Avelino de Jesus da. O Bispo D.
Pedro e a Organização da Arquidiocese de Braga. Braga: Edição da Irmandade de S. Bento da Porta
Aberta, 1997, pp. 1-36. Para mais informações sobre o título de primazia, cf: MARQUES, José. O
Problema da Primazia Arquiepiscopal das Espanhas: Toledo ou Braga? Lisboa: [s/n], 1999.
132
MARQUES, José. A Arquidiocese de Braga no século XV. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1988, p. 241
133
Ibid., pp. 246-247.
49
2.2) O modelo do bispo pastor de almas
Até as primeiras décadas do século XVI, os bispos, em sua maior parte, eram
jovens, pouco instruídos, negligenciavam as obrigações de residência e pastoral,
acumulavam benefícios e dispensavam as rendas de suas igrejas em suas próprias casas.
Muitos habitavam o mundo da corte e dedicavam-se à caça, à guerra, à luxúria e a todo
tipo de atividade mundana e raramente cumpriam suas obrigações sacerdotais e de
governo da diocese.
O Cardeal Infante D. Henrique, que recebeu a mitra da Arquidiocese Primaz
antes de Bartolomeu dos Mártires, pode ser tomado como exemplo do modelo de bispo
pré-tridentino. Apesar de não completamente negligente com relação a seus deveres
pastorais, o governo que exerceu em Braga apresentou muitas das características do
modelo do bispo-cortesão. D. Henrique, Arcebispo de Braga de 1533 a 1540134, reuniu
um Concílio em 1538 e proveu o Arcebispado de novas Constituições, preocupou-se
com a formação do clero, reorganizando os estudos públicos de Braga e ampliando as
instituições do futuro Colégio de São Paulo onde nomeou como mestres Nicolau
Clenardo e João Vaseu135. No entanto, D. Henrique residiu por pouquíssimo tempo na
Arquidiocese (1537-1539) e delegou inúmeras funções que não podia cumprir devido a
suas obrigações na corte.136 O prelado acumulou este título com o de prior ou abade em
comenda dos mosteiros de São Jorge de Coimbra, São Cristóvão de Lafões, Paço de
Sousa, São Miguel de Bustelo, Santa Maria de Seiça, São Miguel de Refoios de Basto,
Salvador de Moreira, São Martinho de Caramos, Cedofeita, Pedroso, Santo André de
Ancede e Salvador de Travanca. Após sua nomeação para o Arcebispado de Évora,
renunciou a alguns dos priorados, mas manteve uma pensão sobre as rendas do
Arcebispado de Braga.137
134
Posteriormente D. Henrique assumiu também as Arquidioceses de Lisboa (1564-1575) e Évora (1540-
1564, 1575-1578).
135
Como ressaltou Amélia Polónia, D. Henrique escreveu e incentivou a publicação de obras
caracterizadas por uma espiritualidade marcada por uma piedade interiorizada e reflexiva e pela
afetividade e teve grande proximidade com a Companhia de Jesus e com Fr. Luis de Granada, autor de
diversas obras de espiritualidade como as anteriormente descritas. No entanto, como Inquisidor-Geral, a
partir de 1539, na tentativa de reforçar o poder do Tribunal, D. Henrique foi extremamente rígido e pouco
fidedigno a este tipo de espiritualidade presente nas obras que escreveu e impulsionou. Cf: POLÔNIA,
Amélia. D. Henrique: o Cardeal–Rei, pp. 59-60.
136
Ibid., pp. 53, 95-96.
137
POLÔNIA, Amélia. A Diocese de Évora em contextos pré e pós-tridentinos. A actuação pastoral do
Cardeal Infante D. Henrique. Eborensia: nº. 38, pp. 45-66, 2006; PAIVA, José Pedro. Os Bispos de
Portugal e do Império. 1495-1777. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, p. 121.
50
Este quadro de absenteísmo e negligência caracterizou o século anterior e
provocou muitas críticas no seio da própria Igreja. Jean Gerson afirmou no IV Concílio
de Reims (1408) a pregação e a cura de almas como obrigações dos bispos. Denys, o
Cartuxo (1402-1471), condenou a prática corrente de delegar a terceiros as tarefas
episcopais. Lorenzo Giustiniani, primeiro patriarca de Veneza (1451-1456) apresentou
um perfil espiritual ideal para o episcopado, cujos pontos fundamentais eram a pureza e
a contemplação. Antonio Pierozzi, bispo de Florença defendeu em sua Suma theologiae
moralis o cuidado no exame dos candidatos a ordens sacras e a importância das visitas
pastorais. Todos argumentaram que o momento vivido era de corrupção e decadência da
ação episcopal. Com base nos Evangelhos e na patrística, apresentaram alguns dos
fundamentos do modelo episcopal que viria a se consolidar após o Concílio de Trento.
A partir do século XVI, apareceram propostas mais sólidas de reforma, com uma
circulação razoável pela Europa. Dentre as mais importantes, podemos citar De officio
viri boni ac probi episcopi, de Gasparo Contarini (1517), Tractatus de triplici stau
viatoris, de Claude Seyssel (1518), Instruction de prelados o memorial breve de
algunas cosas que devem hazer para El descargo de suas conciencias y buena
governación de suas obispados y diocésis, de Juan Bernal Diaz de Luco (1530).138
Apesar de não terem publicado obras específicas sobre o assunto, os escritos de
Francisco de Vitória, Bartolomé de Carranza e Domingo de Soto tiveram também
grande importância para a formulação de uma nova concepção sobre o ministério
episcopal.139 Com base nos Evangelhos e nos Pais da Igreja, principalmente São Paulo e
Gregório, o Grande, recuperava-se a imagem do bispo como um pastor cujo dever era
conduzir o rebanho de fiéis sob sua responsabilidade à salvação.
Fr. Bartolomeu dos Mártires foi um dos grandes defensores deste arquétipo. O
dominicano defendeu na terceira fase do Concílio de Trento a necessidade de uma
mudança no comportamento dos bispos e o reconhecimento de sua máxima autoridade e
expôs suas concepções a respeito do múnus episcopal em uma obra que teve grande
circulação pela Europa Católica e acabou por se tornar uma das mais importantes sobre
o assunto. No entanto, a maior expressão de seu zelo pastoral e de suas ideias a respeito
das tarefas de um bispo foi o modo como governou sua Arquidiocese.
138
Ibid., pp. 111-128.
139
As idéias de Vitória sobre o múnus episcopal estão dispersas por seus comentários à Suma Teológica
de São Tomás de Aquino. Carranza, Arcebispo de Toledo, escreveu um tratado denominado Hierarchia
ecclesiastica in qua describuntur officia ministorum Eclesiae militantis (1552) que nunca chegou a ser
impresso, além de um Catecismo. Já Soto divulgou suas idéias na obra De justitia et jure (1553).
51
2.3) O governo de D. Fr. Bartolomeu dos Mártires sobre a Arquidiocese de
Braga e a visita pastoral como instrumento de uniformização da fé
D. Frei Bartolomeu dos Mártires pode ser considerado como um dos baluartes
deste novo modelo de bispo, não apenas por ter sido um dos maiores responsáveis pela
difusão dessas idéias por toda a Europa Católica através de seus escritos e de sua
atuação no Concílio de Trento, mas principalmente pela tentativa de aplicação desta
doutrina no governo do Arcebispado de Braga. A importância da presença do bispo no
território sob sua jurisdição e da visita pastoral como principal instrumento para cura de
almas foi encarada com máxima severidade e urgência pelo Arcebispo, ao contrário da
maior parte de seus contemporâneos.
D. Frei Baltasar Limpo, Arcebispo de Braga de 1550 a 1558, visitou
pessoalmente algumas freguesias, como S. Miguel do Castelo, S. Miguel de Creixomil,
Santa Eulália de Fermentões e Viana do Foz de Lima, além de ter visitado anualmente,
de 1552 a 1556 a Colegiada da Senhora da Oliveira, em Guimarães. As constantes
visitas à Colegiada de Guimarães podem ser atribuídas à contenda com o D. Prior local
a respeito da jurisdição desta. O D. Prior estava habituado ao ambiente de relativa
autonomia que vinha desde a época em que Braga era administrada em Lugo.140 A
situação só se resolveu definitivamente em 1553, reafirmando os poderes do
Arcebispo.141
Já para Fr. Bartolomeu dos Mártires, a prática da visita era considerada de suma
importância e foi utilizada pelo Arcebispo como forma de afirmar sua autoridade
perante o Cabido da Sé, com o qual teve inúmeros conflitos, e se fazer presente perante
a grei. Em seu Estímulo de Pastores, escrito durante sua passagem pelo Concílio de
Trento e editado em 1565, obra que será analisada à frente, Fr. Bartolomeu discorreu
sobre a importância da visita pessoal do bispo a toda sua diocese:
140
Após as invasões árabes, o Bispo de Braga passou a residir em Lugo. Assim, a Igreja de Lugo passou a
reivindicar direitos espirituais e temporais sobre o território bracarense. Esta situação só se modificou no
século XI, com a restauração da Diocese de Braga. (1070-1071). Cf: COSTA, Pde. Avelino de Jesus da.
op. cit., passim.
141
SOARES, Franquelim. Visitações de D. Frei Baltasar Limpo na Arquidiocese de Braga: visitações a
Colegiada de Nossa Senhora dos Guimarães. Braga: [s/n], 1983.
52
paróquias da sua diocese, é como o Sol quando sai a iluminar as terras,
realizando os três actos hierárquicos, que vêm a ser: purificar, iluminar,
aperfeiçoar. Cumpre-lhe exortar, pregar, admoestar, repreender, conferir o
sacramento do crisma, examinar como são administrados os sacramentos, ver
se o santo Sacrifício da missa se celebra com reverência e decência;
finalmente, deve procurar consolar a todos os que choram e se encontram na
indigência, prestando-lhes todo o socorro quer espiritual quer temporal. 142
142
Mártires, Bartolomeu dos. Estímulo de Pastores, 1565. Porto: Edição do Movimento Bartolomeano,
1981, p. 168.
143
ROLO, Raul. O Bispo e a sua Missão Pastoral Segundo D. Frei Bartolomeu dos Mártires. Porto:
Movimento Bartolomeano, 1964, pp. 124-144.
144
SOARES, Franquelim. A primeira visitação de D. Frei Bartolomeu dos Mártires e as origens de
Esposende. In: Actas do I Encontro sobre História Dominicana. Porto: Arquivo Histórico Dominicano
Português, vol II, 1979, pp. 221-250; Visitações e itinerários pastorais de D. Frei Bartolomeu dos
Mártires. Bracara Augusta. Braga: Correio do Minho, vol. XLII, nº. 93, 1990, pp. 171-213;
Criminalidade, Reforma Tridentina e mentalidades na segunda metade de Quinhentos (Visitações de
Monte Longo e Guimarães). In: Actas do III Encontro sobre História Dominicana. Porto: Arquivo
Histórico Dominicano Português, v. IV/1, 1991, pp. 211-266.
145
Cabe lembrar também que o Arcebispado não era visitado unicamente por Bartolomeu dos Mártires,
mas também por seus visitadores e pelo Cabido, como será tratado adiante.
53
estava em Povoa de Varzim, onde realizou cerimônias de crisma e matrimônio,
seguindo de lá para a vila de Viana do Foz de Lima, depois para a vila de Caminha
terminando o mês de janeiro em Vila Nova de Cerveira. Partiu então em direção a
Terra de Barcelos, visitando também Nogueira, que se situava a uma légua de Vila
Nova de Cerveira, e finalmente se dirigiu a Braga, chegando a seu Arcebispado no
início da Quaresma (28 de fevereiro).
O Arcebispo permaneceu na cidade até 10 de março, partindo no dia seguinte em
visita a Fermentões. Dia 12 visitou a colegiada de Nossa Senhora da Oliveira e dia 16 a
igreja de S. Paio; dia 30 estava novamente em Braga. Partiu dia 22 de abril ou pouco
depois para Trás-os-Montes, estava dia 11 de maio em Vila Real, dia 16 em S. Mamede,
dia 26 na vila de Castro Vicente, dia 7 de junho em Freixe de Espada à Cinta, dia 20 na
Vila da Torre de Moncorvo, dia 26 em Vila Pouca e dia 12 de julho em Carrazedo. É
provável que tenha passado pelo Convento franciscano de S. Frutuoso no caminho para
Braga, chegando à cidade antes do fim do mês.
Durante as primeiras visitas pastorais, o Arcebispo teria ficado impressionado
com a falta de instrução do clero e preocupado com o que era ensinado aos fiéis:
É provável que após 15 de Novembro tenha saído em visita a Vila Verde e Ponte
de Lima e a 10 de dezembro encontrava-se na Facha, confirmando a igreja de Santo
André do Godomar e a 20 de dezembro estava já em Braga. Há registro de uma visita
rápida a Fermentões dia 7 de fevereiro de 1561; três dias depois o Arcebispo já estava
146
A.D.B., Coleção cronológica, cx. 45, doc. s.n. Apud: SOARES, Franquelim. Visitações e itinerários
pastorais de D. Frei Bartolomeu dos Mártires., p. 192.
147
MARQUES, José. op. cit., p. 1064.
54
na cidade novamente, onde permaneceu até 24 de março, quando partiu para a terceira
fase do Concílio de Trento.
D. Frei Bartolomeu dos Mártires estava já em território bracarense em fevereiro
de 1564 e aproveitou o caminho de volta à cidade para visitar algumas freguesias,
chegando a seu destino a 25 de março. As semanas seguintes foram de intensa atividade
devido aos festejos de Ramos e da Páscoa.
Durante os últimos dias de abril e os primeiros de maio dedicou-se a visitar as
igrejas da cidade e voltou a percorrer a Arquidiocese em viagens de curto raio: visitou a
igreja de S. Pedro de Covelo, em Barroso, dia 7, de Santiago de Antas dia 14 dentre
outras que se encontravam no trajeto. Sabe-se que a 27 já estava em atividade na cidade,
permanecendo aí com certeza durante toda a primeira metade de junho.
Há registros de visitas a igrejas próximas do litoral no mês de julho, após o dia
4. A 14 de agosto o Arcebispo já estava em Braga onde permaneceu até provavelmente
8 de setembro. Viajou novamente pouco depois até o início de outubro. Até o final
deste mês, realizou pequenas viagens a freguesias próximas e recolheu-se no convento
de S. Frutuoso por alguns dias finalizando as tarefas visitacionais do ano.
O mês de novembro foi dedicado aos preparativos e reunião do Sínodo
Diocesano, de 11 a 14 de novembro. Pouco se sabe a respeito da atividade do Arcebispo
durante o mês de dezembro, mas é certo que durante o advento e a vigília do Natal o
Arcebispo pregou na Sé. Segundo o biógrafo Fr. Luis de Sousa, em 1565 Bartolomeu
dos Mártires completou a primeira volta pelo Arcebispado, tendo visitado todas as suas
freguesias.148
Até o momento em que obteve dispensa do cargo de Arcebispo, em 1582, Dos
Mártires percorreu toda sua Arquidiocese diversas vezes, entremeando as viagens
pastorais e as atividades na cidade de Braga. É importante ressaltar que sua atividade
em Braga era muito intensa, sempre crismando, confirmando igrejas, administrando
ordens e pregando.
O Arcebispo era reticente com relação à realização do trabalho pastoral por
visitadores nomeados: “São inumeráveis as vantagens que resultam da visita pessoal do
Bispo; e, entre outras, não é pequena a da sua própria presença, só por si mais útil e
eficaz na repressão dos vícios do que tudo o que os visitadores possam fazer.”149
Quando estava em Trento, pela impossibilidade de visitar a Arquidiocese pessoalmente,
148
Vida, pp. 144-145.
149
MÁRTIRES, Bartolomeu dos. Estímulo de Pastores, p. 141.
55
Frei Bartolomeu dos Mártires tinha a seu serviço dezoito visitadores, seis dos quais
escolhidos por ele e o restante pelo Cabido. Quando regressou do Concílio, em 1564, o
Arcebispo dividiu sua Arquidiocese em quatro regiões para que seus visitadores
auxiliassem o trabalho pastoral, a fim de que cada região fosse visitada anualmente.
A estratégia de governo de Fr. Bartolomeu dos Mártires, baseada na visita
pastoral, enfrentou dificuldades e conflitos. Em 1560 as rendas e o território da
Arquidiocese estavam divididos em cinco comarcas: Braga, quase toda sob jurisdição
do Cabido, Chaves, Torre de Moncorvo e Valença, divididas entre Cabido e Prelado, e
Vila Real, sob jurisdição do Arcebispo. Tal divisão, comum nas dioceses em que o
Cabido era dotado de muitos privilégios e importância histórica, fechava a cidade de
Braga à visitação pessoal do Arcebispo:
Em Braga, o Arcebispo posto ali como pastor, mestre e pai daquela gente,
não tinha entrada franca em grande parte do Arcebispado. O Cabido, as
Dignidades e os Cônegos tinham pouco a pouco invadido a jurisdição do
Prelado e repartido entre si, em corporação ou separadamente, os melhores
quinhões da Igreja Bracarense. A começar pela cidade não havia uma só
paróquia, nem capela, nem altar onde o Arcebispo pudesse intervir e
governar sem conculcar as regalias do Cabido.150
150
ROLO, Raul de Almeida. op. cit, p. 148.
56
O Sínodo Diocesano reunido em 1564 expressou os conflitos e as dificuldades
que Fr. Bartolomeu dos Mártires enfrentou para aplicar os decretos tridentinos no
Arcebispado, como veremos à frente. Além do problema relativo às visitas pastorais, a
proibição tridentina do acúmulo de benefícios gerou grande polêmica. Muitos foram os
clérigos que se negaram a obedecer aos decretos, alegando que estes não haviam ainda
sido confirmados pelo Papa.
Várias tentativas de concórdia, com prejuízos para ambos os lados, aconteceram
até 1573, quando, depois das queixas do Cabido ao Papa151 e a intervenção do Cardeal
D. Henrique, decidiu-se pela possibilidade do prelado visitar as áreas capitulares
periodicamente com uma comitiva do Cabido.152
151
A amizade entre Bartolomeu dos Mártires e Carlo Borromeo foi extremamente valiosa para que o Papa
não desse ouvidos às reclamações do Cabido, em favor do bracarense.
152
SOARES, Franquelim. op. cit., pp. 173-178.
153
Ibid., p. 179.
57
Ao fim da devassa, o Arcebispo reunia-se com seus visitadores para elaborar a
ata da visita. O documento geralmente apresentava as rendas da freguesia; a impressão a
respeito do clero (julgado como “com boa fama”, “com infâmia provada”, “infamado
com defeito de prova” ou “infamado com testemunhas com suspeição ao costume”) e a
lista dos condenados na devassa.154
Em carta escrita em 1560 para ser lida antes das visitas às igrejas, o Arcebispo
exortava a população a denunciar qualquer prática suspeita contra a fé católica e a posse
de livros proibidos. Os primeiros delitos a aparecerem com destaque são justamente o
pacto com o demônio e a feitiçaria, que deveriam ser denunciados sob pena de
excomunhão:
154
Ibid, p. 180.
155
ADB. Carta para se ler nas igrejas principais antes da visitação, contendo nove parágrafos de inquérito
sobre o estado social e religioso da paróquia. In: Bracara Augusta. Braga: Correio do Minho, vol. XLII,
nº. 93, 1990, pp. 556-558.
58
condições físicas das igrejas visitadas quanto ao comportamento do clero e da grei.156
As visitas de 1548, realizadas por Belchior da Silva, cônego da Sé de Braga, no período
do Arcebispo D. Manuel de Sousa, apontavam um número muito alto de igrejas
visitadas por dia, o que acabava por tornar irrealizável a função original da visita
pastoral, o cuidado com o rebanho e a erradicação de seus erros. De acordo com Soares,
“tudo isto vem a confirmar o aspecto de fiscalidade e interesse econômico nas visitas
ante-tridentinas: rapidez da cerimônia, exame muito sumário das necessidades
espirituais, capitulações mais prementes na igreja, desinteresse pelas ermidas e vias de
acesso ao templo, denúncia muito sumária das testemunhas e recolha cuidadosa dos
emolumentos visitacionais, como votos de Santiago, colheitas e outras taxas.”157
Outro dado relevante no livro de 1548 é o absenteísmo do clero. Em
contraposição ao absenteísmo e à velocidade das visitas, as atas declaravam todas as
igrejas como bem servidas espiritualmente; houve apenas duas observações negativas.
Testemunharam 212 pessoas nas 75 igrejas visitadas, chegando-se a uma média
de 2,8 por freguesia. Dentre os 31 delitos denunciados, não há nenhuma denúncia
qualificada como feitiçaria; apenas uma sobre benzer o olhado.
A análise do livro das visitas de 1571, período de D. Bartolomeu dos Mártires,
realizadas por Estevão Falcão, tesoureiro da Sé de Braga, aponta nítidas diferenças com
relação às visitas de 1548. A média de igrejas visitadas por dia sofreu uma queda
considerável - de 5 para 2,92, o que indica um tempo maior de permanência da comitiva
visitacional em cada igreja.158
A questão do absenteísmo do clero também apresentou mudanças: as igrejas
com abades ou vigários presentes passaram de 12% para 69,8%, enquanto as igrejas
com curas ou coadjutores caíram de 69,3% para 27,39%, sendo que em nenhuma igreja
se notou a ausência de algum representante do clero – fosse o abade ou o coadjutor.
Mas a diferença entre as visitas de 1548 e 1571 que mais nos interessa diz
respeito à devassa. Foram ouvidas 964 testemunhas em 73 freguesias – assim, a média
saltava de 2,8 para 13,2. É nesse ponto que reside a grande diferença das visitas
pastorais do Arcebispo Primaz: o momento da devassa era privilegiado. É interessante
156
SOARES, Franquelim Neiva. Criminalidade, Reforma Tridentina e mentalidades na segunda metade
de Quinhentos (Visitações de Monte Longo e Guimarães). In: Actas do III Encontro sobre História
Dominicana. Porto: Arquivo Histórico Dominicano Português, v. IV/1, 1991, pp. 211-266.
157
Ibid., pp. 214-215.
158
O número de igrejas visitadas por dia foi discutido no IV Concílio Provincial Bracarense, e foi
decidido não ultrapassar o número de três por dia. No entanto, na aprovação dos decretos, a Santa Sé
aceitou que fossem visitadas quantas o pudessem ser comodamente. Cf: CARDOSO, José. O IV Concílio
Provincial Bracarense e D. Frei Bartolomeu dos Mártires. Braga: APPACDM Distrital, 1994, pp. 76-84.
59
observar que nas visitas de 1548 apenas homens testemunharam. Já nas visitas de 1571
há depoimentos femininos – mesmo que representassem apenas 2,28% do total, a maior
abertura ao depoimento feminino pode ser considerada uma mudança significativa.159 A
feitiçaria, antes ausente, passava a figurar entre os delitos denunciados; foram 11
denúncias, representando 3,9% do total, relativas a emendar ou encantar o gado, praticar
benzeduras e fazer beberagens ou adivinhações. Nota-se, através dos dados
apresentados por Soares, como no período de D. Fr. Bartolomeu dos Mártires as
práticas de feitiçaria passaram a ser denunciadas com maior frequência, fator indicativo
do relevo que ganhou este delito no governo de Bartolomeu dos Mártires.
A respeito das visitas de 1586160, coordenadas pelo Doutor Gaspar Álvares,
Cônego na Sé de Braga, o número de igrejas visitadas por dia não apresentou grandes
alterações com relação às visitas de 1571 (média de 3,1), assim como a questão da
residência do clero. Nesse momento, a exigência tridentina da residência pessoal ia se
consolidando. A média de denúncias por freguesia nas devassas também não apresenta
grandes alterações: 12,97. No entanto, vale notar que não houve nenhuma denúncia
relativa à feitiçaria ou a práticas supersticiosas.
A importância que ganhou o delito de feitiçaria durante o período de Bartolomeu
dos Mártires pode ser observado também no trabalho mais importante de Soares, A
Arquidiocese de Braga no século XVII: sociedade e mentalidades pelas visitações
pastorais. Os dados apresentados pelo autor são relativos a um conjunto de visitas por
ele selecionado; no entanto, o autor não explicita os critérios que o levaram a escolher
estas visitas como exemplo. Além disso, não informa quantas denúncias cada um teria
recebido. No entanto, apesar destas lacunas, é possível perceber a relevância do delito
de feitiçaria nas visitas pastorais do período em análise.
Em 1562, em visita à Sé, Antônio Álvares declarou que o Cônego Francisco de
Castro teria acusado Maria Fernandes e sua filha Isabel de terem dado a ele feitiços, por
intermédio de uma mulher chamada Margarida com quem o cônego mantinha relações
suspeitas. Após o episódio, que teve ainda outras testemunhas além de Antônio Álvares,
159
Em seu trabalho de maior expressão, A Arquidiocese de Braga no século XVII: sociedade e
mentalidades pelas visitações pastorais (1550-1700), Soares indicou uma maior presença feminina nas
devassas visitacionais nos meios urbanos, como indicam os dados de uma visita à Sé de Braga - na qual
dentre 42 denunciantes, 11 eram mulheres - e de outra à cidade de Braga - onde testemunharam 117
mulheres e 382 homens – enquanto em Esporões e Palmeira, 90 pessoas (38 e 52, respectivamente) foram
ouvidas, todas do sexo masculino. Cf: SOARES, Franquelim. A Arquidiocese de Braga no século XVII:
sociedade e mentalidades pelas visitações pastorais (1550-1700). Braga, [s.n.], 1997, pp. 374-377.
160
Era Arcebispo então D. Afonso de Menezes, que assumiu o cargo em 1582, após a renúncia de Fr.
Bartolomeu dos Mártires.
60
o cônego ficou doente e dois meses depois faleceu, o que o denunciante acreditava ser
consequência dos feitiços de Maria e Isabel. Na mesma visita, Gregório Gomes afirmou
que dois anos antes teria encontrado bruxas à noite, sem oferecer maiores detalhes. Mas
o maior ciclo de denúncias nesta visita à Sé foi contra Maria Anes, por ter fama de
matar crianças durante a noite, caso que analisaremos abaixo. Em visita a Esporões,
realizada em 1563, uma mulher, cujo nome Soares não informa, foi denunciada como
benzedeira e Gonçalo Álvares foi acusado de benzer e curar. Em visita a Viana, na
freguesia de Meadela, Maria Afonso foi denunciada por benzer e realizar feitiçarias. O
Arcebispo Bartolomeu dos Mártires comunicou ao abade da freguesia que Maria
deveria estar dois domingos seguidos à porta principal da igreja com uma vela acesa na
mão durante a missa, além de se confessar mensalmente por espaço de um ano para que
fosse readmitida ao corpo da Igreja, sob pena de ser presa e processada. Em visita a
Bouro, realizada em 1581, Pêro Anes e uma mulher de alcunha A Manca foram
denunciados por feitiçaria. Novamente em Meadela, em 1582, uma mulher de alcunha
Roloa foi apontada nas denúncias como dotada de fama de benzedeira. Em visita a
Braga, em 1586 (quando era já Arcebispo João Afonso de Menezes), outras 7 pessoas
foram denunciadas por feitiçaria.161
O único destes casos a respeito do qual temos maiores informações é o relativo à
visita de 1562 à Sé, realizada pelo Arcediago de Vermoim e o Cônego Lourenço
Cerveira, iniciada em 1º. de dezembro de 1562, analisada por Soares em estudo
denominado A paróquia de Sant’Iago da Sé na visitação capitular de 1562 – A mulher
que matava crianças.162 Foram ouvidas 42 testemunhas chegando a um total de 86
denúncias – dentre estas, onze relativas a Maria Anes, mulher de Afonso Dias, apontado
como Rei da Mourisca, acusada por outras mulheres de “apertar” crianças durante a
noite antes que elas tivessem recebido o batismo, metamorfoseada em gato ou pato.
Maria Anes era objeto de apreensão coletiva naquela comunidade.
De acordo com a maior parte dos denunciantes, a prática de matar crianças teria
sido ensinada a Maria por Inês Vaz, que alguns apontaram como sua avó. Uma das
testemunhas, Isabel Anes, 90 anos, afirmou que:
161
Ibid., pp. 399-400.
162
SOARES, Franquelim. A paróquia de Sant’Iago da Sé na visitação capitular de 1562 – A mulher que
matava crianças. Bracara Augusta. Braga: Correio do Minho, vol. XL, 1988, pp. 205-263. Junto ao
artigo, Soares publicou a ata da visita. (Vesytação em Samtyago da See de Braga - ADB, Gaveta das
Concórdias e Visitas, nº. 27.)
61
“conheceo huma molher viúva que era avoo da molher de Afonso Diaz Rei
da Mourisca que se chama Maria Annes a qual molher tinha fama que
apertava as criamças e as matava e que se dizia que em tempo que aquy avya
judeus elles lhe peitavão a dyta avoo da molher de Afonso Diaz que lhe não
fose apertar as suas criamças e que a dyta molher viera adoecer a morte e se
dizia que não podia dar a alma até achar huma pesoa que fiquase por fiador
daquele fadario de apertar as criamças e que a dyta Maria Annes molher de
Afonso Diaz sua neta ficara por fiador e a avoo morrerra e se dysera sempre
163
que a dyta Maria Annes tinha aquele fadaryo.”
163
ADB, Gaveta das Concórdias e Visitas, nº. 27, f. 10v. Apud: SOARES, Franquelim. op. cit., p. 251-
252.
164
PROSPERI, Adriano. Dar a alma: história de um infanticídio. São Paulo: Companhia das Letras,
2010, pp. 164-250.
165
GINZBURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, pp.
43-92.
62
Um episódio ocorrido pouco antes da visita teria contribuído para aumentar a
fama de Maria Anes. Afirmaram algumas testemunhas que ela teria matado o filho
recém-nascido de Isabel Gonçalves por vingança. De acordo com Catarina Álvares, as
duas tiveram uma discussão a respeito do preço de um maço de ervas que Isabel
desejava comprar de Maria. Na ocasião, a acusada foi obrigada a vender as ervas por
um preço que considerava baixo demais, o que, de acordo com Catarina e com a própria
Isabel, teria gerado um sentimento de vingança. Poucos dias após o parto, o menino
teria sido encontrado sufocado, falecendo três dias depois. A maioria das testemunhas
afirmou ainda que tamanho era o medo que tinham de Maria que muitas a convidavam
para comadre ou pediam-lhe que beijasse seus filhos recém-nascidos, na crença de que
tal proximidade evitaria um ataque.166
A 16 de dezembro, após terem convocado Maria para a devassa, os visitadores
decidiram-se por sua prisão para que pudessem averiguar as denúncias. As perguntas
feitas a ela pelos visitadores tanto antes de sua prisão quanto no interrogatório do dia 17
foram, em sua maioria, a respeito de seus conhecimentos sobre a doutrina cristã e de
suas práticas religiosas, como a frequência com que se confessava e tomava o
sacramento, e se costumava jejuar ou dar esmolas. Com relação à sua má fama, Maria
foi questionada apenas sobre sua relação com Inês Vaz - ao que respondeu que era
muito grata a ela e que a mesma teria lhe ensinado todas as orações cristãs que sabia - e
se tinha o costume de sair à noite, ao que respondeu negativamente. Infelizmente não há
qualquer informação a respeito de como o caso foi resolvido ou da punição que Maria
pode ter recebido. Apesar das denúncias feitas em 1562, não há registro algum a seu
respeito na Visitação Inquisitorial de 1565.167
É certo que as visitas pastorais a respeito das quais temos maiores informações
representam uma pequena parcela do número de inspeções realizadas pelo Arcebispo ou
por seus visitadores; no entanto o delito de feitiçaria apareceu com destaque em todas
elas. Assim, acreditamos ser possível afirmar a existência de uma relação entre a
atividade diferenciada exercida por Bartolomeu dos Mártires no Arcebispado de Braga
e a importância dada ao o delito de feitiçaria na Visitação Inquisitorial de 1565.
166
ADB, Gaveta das Concórdias e Visitas, nº. 27, f. 12v. Apud: SOARES, Franquelim. op. cit., pp. 254-
255.
167
ADB, Gaveta das Concórdias e Visitas, nº. 27, ff. 16-18. Apud: SOARES, Franquelim. op. cit., pp.
260-261
63
2.4) Uma ação autônoma em matéria de heresias
Poderá ser que alguns dos curas não letrados me responderão: - Como
obrigais a dar mais doutrina a nossos fregueses que ensinar-lhes os
Mandamentos singelamente, pois não somos letrados?
Aos tais, clara e desenganadamente respondo: - Que a culpa de não
ensinarem seus fregueses, não procede de ignorância ou falta de letras, mas
da negligencia e preguiça de estudar, e da falta de virtude, e zelo da salvação
de almas que estão a seu carrego.169
168
MÁRTIRES, Bartolomeu. Catecismo ou Doutrina Cristã e Práticas Espirituais, 1564. Edição do
Movimento Bartolomeano, 1962.
169
Ibid., p. 5.
64
complexas. O objetivo era conscientizar a grei do pecado e erradicar as práticas contra a
fé, dentre as quais a feitiçaria ganhava destaque:
A obra se divide em dois livros. O primeiro traz uma exposição das principais
orações (Credo e Pater Noster), dos Dez Mandamentos, dos Pecados Capitais e dos
Sacramentos. Já o segundo contém práticas e sermões a serem lidos nos domingos e
dias de festa. Apenas aqueles que fossem doutos na Sagrada Escritura, Teologia ou
Cânones não seriam obrigados à leitura. Logo a obra se difundiu por todo o território
português.
Fr. Bartolomeu dos Mártires expressou diversas vezes ao longo da obra o temor
do assalto demoníaco que caracterizou o período tratado. Os comentários relativos às
tentações e artimanhas do demônio para afastar os homens de Deus e aos terrores do
Juízo Final dão um tom alarmante à obra, como na seguinte passagem:
A publicação desta obra marca a importância conferida por Fr. Bartolomeu dos
Mártires aos sermões. Como já foi aqui analisado, a pregação era apontada no modelo
do bispo pastor de almas como uma das mais importantes tarefas do prelado, essencial
para aproximar o rebanho dos preceitos básicos da doutrina cristã e erradicar os erros
contra a fé. Para Bartolomeu dos Mártires, um dos arautos deste modelo, o sermão era,
juntamente com a visita pastoral – como analisamos acima – instrumento fundamental
para a conscientização dos erros e a uniformização da fé.
Uma vez que o Catecismo foi escrito para ser lido pelos clérigos no lugar dos
sermões, é possível acreditar que a obra se aproxima, em forma e conteúdo, das
pregações do Arcebispo. Discussões de questões simples da doutrina, tratadas com
palavras de fácil compreensão para os fiéis, foram provavelmente a tônica dos sermões
de Bartolomeu dos Mártires.
170
Ibid., p. 69.
171
Ibid., p. 80.
65
A evidente insistência do Arcebispo sobre os terrores do Dia do Juízo e a certeza
da presença demoníaca entre os homens estava também presente em sua prática
parenética. Fr. Bartolomeu alertava seu rebanho e tentava mover seu auditório com
palavras e imagens172 atemorizantes sobre as armadilhas do Príncipe das Trevas e sobre
a luta que todos deveriam travar se desejassem ser salvos. Assim, é possível inferir o
quanto os sermões do Arcebispo – prática constante, tanto nos períodos em que
realizava visitas pastorais quanto quando estava na Sé – teriam colaborado para que se
difundisse entre a população do Arcebispado a crença na presença demoníaca e a
convicção de que determinadas práticas e comportamentos estariam associados a um
grande delito, a feitiçaria.
Como ressaltou Jean Delumeau, o sermão era um dos principais instrumentos de
difusão das angústias escatológicas na Europa;173 no entanto, como já foi tratado acima,
a elite intelectual portuguesa, em sua maioria, não foi tomada pelo medo do assalto
demoníaco. Fr. Bartolomeu parece ter sido um dos poucos atemorizados pelos poderes
satânicos. Além de ter expressado suas inseguranças no Catecismo, o Arcebispo
escreveu o único tratado português sobre feitiçaria e superstições do século XVI, como
já foi dito anteriormente. Ainda, em suas memórias sobre o IV Concílio Provincial
Bracarense, de 1566, o Arcebispo teria manifestado sua insatisfação com relação às
práticas supersticiosas e de feitiçaria: “Proveja se d´algum remédio bastante contra os
feiticeiros, adevinhos, sortilegos, benzedeiros, encantadores, etc. E contra quem mata
crianças no ventre das mays, coussa que muito nesta província se usa, proh dolor.”174
172
Nos referimos aqui a um uso instrumental das imagens, elaboradas a partir da audição, no sentido
utilizado por Beatriz Santos. Cf: SANTOS. Beatriz Catão. O pináculo do temp(l)o: o Sermão do padre
Antônio Vieira e o Maranhão do século XVII. Brasília: Universidade de Brasília, 1997, p. 86.
173
DELUMEAU, Jean. op. cit., pp. 216-218.
174
Memoriaes para o S. Concilio Bracarense Provincial que publicou o Reverendíssimo senhor Dom Frey
Bartolomeu dos Mártires (1566). In: Cartório Dominicano Português. Porto: 1972, Fascículo 2, p.13
Apud: MARQUES, José. op. cit., p. 1071.
66
conhecimento de outras pessoas, era necessário que o indivíduo tivesse má fama na
comunidade.175 Os métodos utilizados pelo Arcebispo divergiam claramente daqueles
utilizados pelo Santo Ofício.
O historiador Giuseppe Marcocci apresentou em alguns de seus trabalhos
indícios de que Bartolomeu dos Mártires teria governado sua Arquidiocese de maneira
hostil à ação do Santo Ofício. Após a Visitação Inquisitorial de 1565, Fr. Bartolomeu se
utilizou de seus poderes temporal176 e espiritual para evitar a presença do Santo Ofício
em seu Arcebispado, o que ocorreu apenas em 1570 (Visitação sobre a qual falaremos
adiante) e em outra ocasião, poucos anos depois, quando o licenciado Jerônimo de
Sousa, Inquisidor em Évora desde 1571, foi transferido para Vila Flor e iniciou uma
série de interrogatórios a respeito da comunidade cristã-nova. Esta foi uma das
pouquíssimas ocasiões em que o Arcebispo remeteu culpados ao Tribunal de Coimbra,
atitude muito contrária àquela que os Inquisidores esperavam dos clérigos locais, de
colaboração.177 Para Marcocci, a postura do bracarense era de oposição ao Santo Ofício,
ideia com a qual não concordou José Pedro Paiva, segundo o qual Fr. Bartolomeu
adotou uma via alternativa ao Santo Ofício em defesa da autonomia episcopal, mas sem
contestar a autoridade do Tribunal e colaborando com ele e com o Inquisidor Geral D.
Henrique em diversos momentos.178
O Arcebispo expressou suas concepções a respeito da importância da correção
fraterna em seu Estímulo de Pastores. Como analisaremos à frente, durante o Concílio
de Trento, Fr. Bartolomeu dos Mártires escreveu algumas de suas mais importantes
obras. Dentre elas, o Estímulo de Pastores, editado em 1565 a pedido de Fr. Luis de
Granada, na qual o Arcebispo discorreu sobre o ofício episcopal e a responsabilidade do
prelado para com a manutenção dos bons costumes cristãos e a salvação dos fiéis sob
175
Tal posição de Bartolomeu se situava de acordo com as idéias de Tommaso de Vio Caietano e foi
expressa em seus manuscritos. MÁRTIRES, Bartolomeu dos. Annotata in secundam secundae. In:
ROLO, Raul. Theologica Scripta. Braga: Movimento Bartolomeano, 1973-1977, v. 3, p. 287 (questão
33). Apud: MARCOCCI, Giuseppe. O arcebispo de Braga, D. Frei Bartolomeu dos Mártires (1552-1582).
Um caso de inquisição pastoral? Revista de História da Sociedade e da Cultura, nº. 9, p. 119-146, 2009,
p. 126.
176
O Arcebispo de Braga era também senhor temporal da cidade e dos seus coutos.
177
Além do artigo já acima citado, conferir também MARCOCCI, Giuseppe. I custodi dell`ortodossia.
Inquisizione e chiesa nel Portogallo del Cinquecento. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2004; Idem.
Il governo dell’ arcidiocesi di Braga al tempo di Bartolomeu dos Mártires (1559-1582). Riflessioni e
documenti sull´episcopato portoghese nell´etá del Concilio di Trento. Archivio Italiano per La Storia
della Pietá. vol. 15, pp. 81-150, 2003.
178
PAIVA, José Pedro. Baluartes da fé e da disciplina, pp. 371-373; .
67
sua jurisdição.179 Como já indicado acima, muitas foram as obras que trataram do
modelo de bispo ideal, enfatizando as obrigações do prelado para com sua grei a partir
do século XV. No entanto, a obra de Fr. Bartolomeu dos Mártires pode ser considerada
uma das mais importantes do gênero devido a sua grande circulação pela Europa
católica e pelo prestígio que alcançou junto a alguns bispos considerados, assim como
Bartolomeu dos Mártires, arautos do modelo bispo pastor, como Carlos Borromeo e Fr.
Luís de Granada.
Assim como o Catecismo, o Estímulo de Pastores foi dividido em duas partes.
Na primeira, Fr. Bartolomeu apresentou trechos selecionados das obras de São
Gregório, São Bernardo e Santo Agostinho a respeito do ofício episcopal. As passagens
comentadas apresentam o ofício do bispo como extremamente penoso e pleno do
exercício da abnegação e apontam seus autores como exemplos de força, persistência e
da recusa aos costumes e prazeres terrenos, apesar de todas as dificuldades inerentes à
tarefa. A bondade, a piedade e a compaixão estiveram fortemente presentes nos os
trechos selecionados como qualidades necessárias ao exercício episcopal,
principalmente no que diz respeito à aplicação da justiça e à punição.
A segunda parte, na qual foram também retomadas diversas passagens
selecionadas dos Pais da Igreja, trata de maneira mais objetiva das obrigações e dos
costumes do bispo ideal. Para tal, Fr. Bartolomeu se utilizou da metáfora do bispo como
pastor consolidada durante o Concílio de Trento, enfatizando a crítica ao
comportamento dos prelados coetâneos, a importância da pregação, considerada
atividade fundamental do bispo, a responsabilidade do bispo pela salvação de suas
ovelhas e pelos erros que elas tenham cometido e a importância da vida religiosa
interior, que se refletia na oração, na contemplação, na caridade e na humildade,
fazendo do prelado um exemplo.
Fr. Bartolomeu enfatizou em diversas passagens do Estímulo que as penas
aplicadas não deveriam ser por demais severas180, uma vez que, apesar de ter a
obrigação de ensinar, o bispo deve ter amor por seus fiéis e que uma punição
extremamente árdua poderia afastar ainda mais o indivíduo punido de seu bispo, além
179
Esta obra de D. Fr. Bartolomeu dos Mártires pode ser enquadrada no gênero literário dos espelhos, que
se caracterizava por oferecer modelos positivos de conduta e edificação. Cf: GRABES, Herbert. The
mutable glass: Mirror-imagery in titles and texts of the Middle Ages and the English Renaissance.
Cambridge/Nova York: Cambridge University Press, 2009.
180
O Arcebispo defendeu inclusive que caso o erro fosse cometido por ignorância ou fraqueza a
repreensão deveria ser branda. Cf: Mártires, Bartolomeu dos. Estímulo de Pastores, p. 289.
68
de advertir que o erro de uma ovelha representaria nada mais que um erro do próprio
pastor:
Aprendei que deveis ser mães, e não senhores, dos vossos súbditos; procurai
antes ser amados do que temidos. Se, no entanto, tiverdes de usar rigor, que
seja paternalmente e não despoticamente. Mostrai-vos mães, no carinho, e
pais na correção. Tornai-vos mansos, bani qualquer laivo de selvajaria,
acabai com os açoites, tomai atitudes maternais: que os vossos peitos estejam
túrgidos de leite e não de arrogância. Porque fazeis pesar o vosso jugo sobre
aqueles, cujo fardo deveis suportar? Porque é que os pequeninos, mordidos
pela serpente, fogem à vista do sacerdote, para quem deviam correr como
para o colo materno?181
Mais uma vez, torna-se claro como a posição de D. Fr. Bartolomeu dos Mártires
diferia do procedimento inquisitorial, em que normalmente aplicavam-se penas
infamantes e muito duras. Para o Arcebispo, apenas nos casos mais graves os hereges
deveriam ser expostos à comunidade e sofrer penas severas, o que parece ter sido o caso
do delito de feitiçaria, como veremos.
No entanto, não era apenas com relação aos métodos utilizados para a
uniformização da fé que o Arcebispo divergia da Inquisição, mas também com relação
aos delitos a serem perseguidos com mais afinco. Marcocci admitiu que uma análise a
respeito do governo da Arquidiocese de Braga por Bartolomeu dos Mártires deixa a
impressão de que ele não teria uma “oposição ideológica total” contra os cristãos-novos.
Fr. Bartolomeu sustentava, baseado em São Tomás de Aquino, que “se um convertido
não tinha ainda uma fé tão firme que soubesse distinguir a verdade dos erros, então não
podia ser culpado, em razão da sua ignorância invencível.”182 O historiador citou ainda
que o Arcebispo manteve amizade com o reitor do Colégio dos Jesuítas Cipriano
Suárez, que foi muito contestado por seus confrades por ter sangue impuro e nomeou, a
pedido do Conselho Geral do Santo Ofício, um cristão-novo para visitar naus em Viana
do Castelo.183 É necessário ainda destacar aqui que este episódio é emblemático de
como muitos cristãos-novos alcançaram importantes posições nas engrenagens
católicas, o que se tornava cada vez mais problemático à medida que o Santo Ofício
expandia sua autoridade.
Assim, acreditamos que a ação autônoma de D. Fr. Bartolomeu dos Mártires em
matéria de heresias tenha resultado no perfil diferenciado da Visitação Inquisitorial de
1565. A constante vigilância sobre o crime de feitiçaria contribuiu para o alto índice de
181
Ibid., pp. 182-183.
182
MÁRTIRES, Bartolomeu dos. Annotata in secundam secundae, v. 3, p. 268 (questão 33). Apud:
MARCOCCI, Giuseppe. O arcebispo de Braga, D. Frei Bartolomeu dos Mártires., p. 127.
183
MARCOCCI, Giuseppe. op. cit.., p. 140.
69
denúncias sobre este delito, enquanto as práticas judaicas, pouco valorizadas pelo
Arcebispo, tiveram uma menor representação na Visitação Inquisitorial.
184
PAIVA, José. Os Bispos de Portugal e do Império, p.132.
185
JEDIN, Hubert. A History of the Council of Trent, v. 2: The first sessions at Trent (1545-1547).
Londres: Thomas Nelson and Sons, 2010, pp. 317-318.
186
O grupo dos bispos que mais insistiu na discussão da reforma da Igreja e da obrigação da residência
foi chamado por seus colegas conciliares como hispânicos ou ultramontanos, devido ao fato de que eram,
em sua maioria, da Península Ibérica, aos quais somava-se um pequeno número de italianos, já que a
70
para o quadro de crise da Igreja, mas a principal causa da negligência, ainda segundo os
hispânicos, devia ser procurada nos próprios bispos, para os quais as dispensas papais
constituíam ótimos argumentos para justificar o absenteísmo. Assim, os partidários da
reforma passaram a acreditar que a solução para o problema seria conscientizar os
bispos não residentes do pecado gravíssimo que era abandonar suas dioceses. Para dar
fim aos abusos, era necessária uma nova concepção do ofício episcopal.
Tomás de Vio Caetano, em seus comentários à Suma Teológica de São Tomás
de Aquino (1517), foi o primeiro a defender a ideia de que a obrigação episcopal da
residência provinha diretamente de uma ordem divina e apenas os motivos mais graves
poderiam isentar os bispos de cumpri-la, como uma violenta perseguição à Igreja, o
cuidado dos interesses da cristandade, ou graves circunstâncias pessoais. 187 A solução
de afirmar que a obrigação de residir provinha da ordenação divina, como havia
sugerido Caetano, encontrou adeptos no Concílio desde a primeira fase, não apenas no
grupo dos ultramontanos, mas também dentre os Bispos mais fiéis aos legados papais.
Uma vez que o Concílio proclamasse a origem divina da obrigação da residência, as
licenças para o acúmulo de benefícios e as dispensas concedidas pelo Papa passariam a
não ter mais validade, já que ele deixava de ser o intermediário que conferia poder aos
bispos. Mas mais que invalidar os benefícios oferecidos por Roma, a intenção daqueles
que defendiam a proposta do ius divinum era culpabilizar os negligentes. Acreditava-se
que, assim, evitar-se-ia não que a Cúria concedesse dispensas, mas que os bispos as
requisitassem.
Esta discussão punha em questão o poder da Cúria e principalmente do próprio
Papa. A idéia de que a jurisdição episcopal provinha imediatamente de Deus limitaria a
jurisdição do papa sobre o clero e sobre a massa de fiéis e, por outro lado, reforçaria a
autoridade dos bispos, o que desagradava profundamente ao Pontífice. Esta questão
constituiu o ponto de discórdia em todas as discussões sobre a reforma da Igreja e
permaneceu inconclusa ao fim do Concílio. Somente a 3 de março de 1547, após a
promessa papal de pôr fim às dispensas e privilégios, os primeiros decretos de reforma
foram aprovados.188
maioria dos bispos da Península Itálica era favorável ao Papa. Hubert Jedin seguiu esta denominação em
sua monumental Geschichte des Konzils von Trient, que foi também utilizada neste trabalho. Cf: Ibid,
passim.
187
Ibid., p. 321.
188
A Bula Nostri non solum chegou às mãos dos legados em fins de janeiro e garantia que não se
concederiam mais dispensas para obtenção de jurisdição sobre mais de uma diocese. Já o Breve papal de
18 de fevereiro proibia o acúmulo de dioceses por Cardeais e afirmava que aqueles que governassem mais
71
No entanto, o problema da negligência episcopal persistia e constituiu a mais
problemática questão debatida na terceira fase, levando o Concílio quase à ruptura. D.
Fr. Bartolomeu dos Mártires foi uma das grandes figuras da terceira fase do Concílio;
sua participação foi marcada pela insistência na importância da reforma da Igreja, a ser
comandada pelos bispos, cujos pontos fundamentais eram a obrigação da residência e a
melhor preparação do baixo clero189.
O Arcebispo partiu de Braga a 24 de março de 1561 e chegou a Trento após
aproximadamente dois meses de viagem. Passaram-se meses na espera para dar início às
últimas sessões do Concílio. Bartolomeu dos Mártires dedicou esse tempo a preparar
suas intervenções e a escrever; foi nesse período que redigiu sua Suma Geral dos
Concílios, o Stimulus Pastorum, obra da qual se tratará adiante, e as duzentas e sessenta
e oito Petições, que tratavam do estado da Cúria e da necessidade urgente de uma
reforma.
As primeiras reuniões da última fase do Concílio, na qual a discussão sobre a
reforma da Igreja e a obrigação de residência voltou a aparecer com grande força,
ocorreram a 18 de janeiro e 26 de fevereiro de 1562. A primeira apenas marcou a
retomada dos trabalhos conciliares, a segunda definiu uma comissão para tratar da
elaboração de um rol de livros proibidos. Apenas a 11 de março foram apresentados
pontos a serem debatidos a respeito da reforma, que incluíam a questão da residência, da
ordenação e da distribuição de benefícios.
D. Frei Bartolomeu dos Mártires liderava, juntamente com D. Frei Pedro
Guerrero, Arcebispo de Granada, – com quem antes do início do Concílio teve grande
controvérsia a respeito da primazia das Espanhas - o chamado grupo dos ultramontanos,
composto pelo clero ibérico e alguns italianos (aos quais em 1563 se juntaram os
franceses). A primeira fala do bracarense no Concílio foi a 8 de abril. Fr. Bartolomeu
respondia as questões propostas em 11 de março pelo Cardeal Girolamo Seripando,
presidente do Concílio, e trazia à tona o problema da residência:
de uma diocese deveriam, dentro de seis meses, escolher apenas uma – no entanto, obrigava-os a residir
junto ao Papa, desvinculando-os da obrigação de residência. Cf: Ibid., pp. 357-369.
189
Participaram também do último período do Concílio Tridentino os portugueses Fernão Martins de
Mascarenhas, então reitor da Universidade de Coimbra, Diogo de Paiva de Andrade e Francisco Foreiro
com teólogos reais; Fernão Martins de Mascarenhas como representante oficial da Coroa, além de D. Frei
João Soares, Bispo de Coimbra e Frei Gaspar do Casal, Bispo de Leiria.
72
mercenário não reside, pelo contrário, foge, porque é mercenário e não se
preocupa com apascentar as ovelhas, mas apenas com apascentar o seu
ventre. Por isso, juntamente com esses Padres, e pelas entranhas
misericordiosas do nosso Deus, suplico e imploro que ocupemos o tempo que
o Senhor se dignou conceder-nos, na eliminação das enfermidades e dos
abusos maiores e mais perniciosos, de tal modo que (oxalá que não), se em
algum momento nos for retirada esta oportunidade, não fiquem por tratar nem
sejam postas de lado as questões mais graves, mas apenas as mais ligeiras,
tendo nós diante dos nossos olhos, com o clamor de todo orbe, que foram os
abusos eclesiásticos que deram ensejo aos males presentes, às heresias e aos
cismas, e são ainda hoje causa de eles se manterem. 190
A primeira coisa que penso é que se deve discutir segundo que direito devem
ser obrigados a residir todos os pastores de almas. Na verdade, visto que
tantos decretos pontifícios, tantas cominações pouco adiantaram a este caso,
não nos resta outra solução senão que, conhecida claramente a sua obrigação,
nos termos da qual são obrigados a apascentar e a curar por força do direito
natural e divino, despertem do seu sono mortal e da sua negligência. (...) É
evidente que pelo facto de não haver uma definição de um concílio que
obrigue os pastores a residir por força do direito natural e divino, muitos
pastores se iludem a si próprios, esperando poderem salvar-se sem residir,
confiando nas suas dispensas ou nos seus frívolos pretextos. 191
190
Resposta do Senhor Arcebispo de Braga às doze questões acima referidas, no dia 8 de Abril de 1562.
(AHDP, Collecta in Concilio Tridentino, cx. 44, IV.1, ff. 4-8v.) In: Bracara Augusta. Braga: Correio do
Minho, 1990, vol. XLII, nº. 93, p. 447.
191
Ibid., pp. 447-449.
192
Vida, v. 1, p.222.
73
Como já foi dito, esta discussão sobre o problema do ius divinum dividiu o
Concílio e preocupou o Papa, uma vez que constituía um questionamento à sua
autoridade e a seu poder de conceder dispensas e permitir o acúmulo de benefícios. Em
8 de maio Pio IV proibiu oficialmente a discussão sobre o problema da residência.193 A
6 de junho, quando do voto sobre o novo decreto da Eucaristia, Fr. Bartolomeu, após
emitir seu parecer, interrompeu o discurso para retomar a questão da residência e, mais
propriamente, da obrigação divina dos bispos residirem em suas dioceses, afirmando
que os prelados tinham direito de exigir a discussão desta matéria e que o Concílio, por
sua vez, tinha o direito e a autoridade de conceder um parecer a respeito. O conflito
entre os defensores da reforma e os legados papais que evitavam a todo custo a
polêmica do ius divinum era latente. Nas palavras de Fr. Bartolomeu, o assunto deveria
ser discutido “para demonstrarmos e provarmos claramente aos nossos adversários que
este concílio é livre e não escravo e que livremente procederá”.194
O conflito, já evidente em outubro, atingiu seu ápice em novembro, e foi
agravado pela tardia chegada dos bispos franceses, liderados pelo Cardeal de Lorena,
que vieram a engrossar o grupo dos ultramontanos. Neste ponto, é necessário salientar
que as acaloradas discussões de Trento não se limitavam a problemas teológicos, mas
envolviam também questões políticas, especialmente as tensões entre o bloco formado
pelo papado e clero italiano, dotado de inúmeros poderes e privilégios, e o clero
ultramontano, que buscava nas tradições conciliaristas a autoridade da reunião, na
tentativa de fazer valer suas posições.
Os infinitos debates só se encaminharam para uma solução com a chegada do
novo presidente Cardeal Morone, após o falecimento de Seripando e Gonzaga em
março. A obra diplomática de Morone, como ressaltou Hubert Jedin,195 foi decisiva para
que se chegasse a um acordo. O presidente conseguiu abafar as questões mais polêmicas
como o ius divinum, ao qual os decretos finais não fizeram referência. Instituíram-se
penas mais graves que aquelas dos decretos das sessões anteriores para os bispos não
residentes e maiores cuidados para a eleição dos prelados, bem como a adoção de
193
MARCOCCI, Giuseppe. Il governo dell’ arcidiocesi di Braga al tempo di Bartolomeu dos Mártires, p.
17.
194
Sequentia dixit Archiepiscopus Bracharensis in publica congregatione 6 lunii 1562 ut negotium
residentiae urgeret. (AHDP, Collecta in Concilio Tridentino, cx. 44, IV.1, ff. 19-20v.) In: Bracara
Augusta. Braga: Correio do Minho, 1990, vol. XLII, nº. 93, p. 475.
195
JEDIN, Hubert. Storia del Concilio di Trento, v. 4, t. 2: Il terzo periodo e la conclusione. Superamento
della crisi per opera di Morone, chiusura e conferma. Brescia: Morcelliana, 1981.
74
medidas que tinham como finalidade uma melhor formação do clero, como a criação de
seminários.
Ainda assim, as discussões e os decretos finais do Concílio consolidaram um
novo modelo episcopal que ressaltava a importância da figura do bispo e a dedicação
integral que ele deveria ter para com seu rebanho, como se afirmou no Capítulo
Primeiro da XXIIIª. Sessão:
196
O Sacrosanto, e Ecumenico, Concílio de Trento em Latim, E Portuguez. Lisboa: Officina de Francisco
Luiz Ameno, 1781, v. 2, p. 161.
197
Para maiores informações sobre este debate, cf: PAIVA, José Pedro, op. cit., pp. 128-133;
FORRESTAL, Alison. Fathers, pastors and kings. Visions of episcopacy in seveteenth-century France.
Manchester: Manchester University Press, 2004, p. 33; BERGIN, Joseph. The Counter-Reformation
Church and its Bishops. Past and Present. nº. 165, 1999, pp. 30-73.
198
FORRESTAL, Alison. op. cit., p. 35.
199
O Sacrosanto, e Ecumenico, Concílio de Trento em Latim, E Portuguez., v. 2, pp. 409-413.
75
costumes dos prelados de então, mas a recomendação feita a todos os Bispos para que
meditassem sobre estas questões pode ser considerada indício de uma espiritualidade já
esboçada nas obras de prelados como Luis de Granada e Carranza.200
Ainda segundo Giuseppe Marcocci, os decretos, de caráter predominantemente
administrativo, refletiam ainda a obtenção pelos prelados de poderes concretos para a
organização da estrutura diocesana, o governo dos fiéis e a afirmação da autoridade
episcopal.201 No entanto, apesar das divergências aqui apresentadas a respeito da
importância que os decretos conciliares tiveram para a consolidação de um novo modelo
episcopal, parece consensual que o Concílio de Trento foi o grande divisor de águas
entre os bispos principescos e os bispos pastores de almas.
Como ressaltou Joseph Bergin, o impacto do novo modelo episcopal afirmado
no Concílio de Trento sobre o comportamento dos bispos ocorreu em diferentes
velocidades nas diferentes regiões da Europa católica. No entanto, é possível afirmar
que apenas a partir do século XVII estas mudanças teriam se consolidado, quadro para o
qual não se pode deixar de considerar todas as obras que tratavam do ofício episcopal,
além da atividade de bispos como Borromeo e Dos Mártires, tidas como exemplo.202
Durante sua participação no Concílio, Bartolomeu dos Mártires defendeu a
importância de uma reforma que desse fim ao absenteísmo e à negligência dos bispos,
além de medidas como um maior cuidado para a escolha dos prelados e uma melhor
formação do clero, como já vimos. No entanto, a questão que parece ter constituído sua
maior preocupação durante os debates tridentinos foi a problemática do ius divinum,
apontada pelos ultramontanos como de fundamental importância para conscientizar os
negligentes de suas obrigações. No entanto, a defesa do ius divinum era mais nada que a
tentativa de afirmar a autoridade máxima do pastor sobre sua igreja.
A importância que este problema tinha para Bartolomeu dos Mártires foi
claramente expressa pelo modo como o Arcebispo geriu sua Arquidiocese e
desenvolveu uma ação autônoma no combate às heresias, como analisamos acima.
200
É preciso indicar aqui que em 1559 Fr. Luis de Granada teve algumas de suas obras colocadas no
Índice de livros proibidos por seu caráter profundamente pietista. No mesmo ano, Carranza foi preso pela
Inquisição por suspeita de luteranismo. Seus escritos foram abertamente condenados por Melchor Cano.
Para mais informações sobre o caso, cf: DIAS, José Sebastião da Silva. Correntes de sentimento religioso
em Portugal. (séculos XVI a XVIII). Coimbra: Universidade de Coimbra, 1960, pp. 442-443; BORGES,
Célia Maria. As obras de Frei Luis de Granada e a espiritualidade de seu tempo: a leitura dos escritos
granadinos nos séculos XVI e XVII na Península Ibérica. Estudos Humanísticos. História. [s/l], nº. 8, pp.
135-149, 2009.
201
MARCOCCI, Giuseppe. op. cit., pp. 101-102.
202
BERGIN, Joseph. op. cit., pp. 66-73.
76
2.6) Aplicação dos decretos de Trento em Braga e a Visitação Inquisitorial
de 1565
Que elle, declarante, estiuera no Synodo que o sõr Arcebispo fez nesta
cydade e ouvyo a pratica que o dicto doctor Joam Affonso fez nelle
pobricamente, em quem, o que comprendeo della, foy querer o dicto doctor
Joam Affonso provar que esta Provyncia nam tinha necessidade de
reformação do Concylio, que se então leo e se mandaua por Sua Senhorya
que se aceytasse. E cuidando depois nysso, achou por esperyencia que fora
pernicioso, por que achou muitos homens, asy aly no Synodo como depois
em praticas, muito afeyçoados a suas rezões, em que elle, dicto doctor, deu a
entender que nam era necessaria reformação, por que logo aly ouve muitos
homens, de cuyjos nomes lhe nam alembra nem sabe quem sam, (...) que
disseram: Que o Concylio era muito boom, mas pera qua nam tinham
necessydade delle, por que nam eram herejes. E que isto falauam
particularmente acerqua do largar dos benefficios. 203
203
Liuro da visitação que se [a Inquisição] fez na Cydade de Braga e seu Arcebispado [1565]. Porto:
Arquivo Histórico Dominicano Português-Movimento Bartolomeano, 1974, p. 10. (grifo meu)
204
MARCOCCI, Giuseppe. op. cit., pp. 108-111.
77
inquisidor, e creendo Sua Allteza ser assi mandou por inquisidor a esta
cidade ao doctor Pero Alvarez de Paredes, que era o mais antigo e riguoroso
inquisidor deste regno (...)205
Apesar desta resistência à aplicação dos decretos de Trento não ter associação a
algum tipo de heresia, houve provavelmente grande incentivo por parte do Visitador
para que os acontecimentos do Sínodo Diocesano fossem denunciados, além da
interferência do próprio Bartolomeu dos Mártires, uma vez que muitos dos que se
apresentaram ao Visitador faziam parte do clero local, suscetíveis às pressões do
Arcebispo. Acreditamos, então, que o Santo Ofício tenha sido convocado apenas como
uma ameaça àqueles que tentassem dificultar os projetos do Arcebispo. Como vimos
anteriormente, a atividade desenvolvida por Bartolomeu dos Mártires constituía uma
espécie de via alternativa ao poder inquisitorial. Apesar de ter convocado os poderes do
Santo Ofício, o Arcebispo requisitou a Visitação Inquisitorial com a finalidade
específica de controlar a oposição do Cabido para que fosse possível aplicar os decretos
tridentinos sem maiores resistências. O braço inquisitorial foi, nesse caso, utilizado por
Fr. Bartolomeu como instrumento que viabilizaria a consolidação de sua autoridade na
Arquidiocese.
Assim, Pedro Álvares de Paredes partiu de Lisboa em direção a Braga tendo
como objetivo principal inquirir o clero local. O Inquisidor passou antes pelo Porto,
devido à breve distância entre as duas cidades. O édito de fé foi publicado naquela
cidade a 3 de dezembro de 1564 e Pedro Álvares de Paredes permaneceu ali até 10 de
janeiro do ano seguinte, de onde seguiu para Braga.
Muitos clérigos do Arcebispado foram denunciados à Visitação. Dentre eles,
cabe citar o Cônego da Sé de Braga João Afonso; Antônio Cerqueira, Abade de
Santiago de Travassos e Arcipreste de Viana, antigo criado do Arcebispo anterior, D.
Fr. Baltasar Limpo; Manuel Coelho, Cônego da Sé e visitador do Arcebispo; Antônio
Velho, Abade de São Miguel da Cunha e Capelão do Cardeal D. Henrique; Martim
Lopes Lobo, Chantre da Sé e Miguel da Fonseca, Mestre de capela da Sé. As denúncias
diziam respeito, em sua maioria, ao fato dos denunciados terem reclamado a perda de
seus benefícios acumulados – e alguns chegaram a afirmar que o pontífice estaria
defendendo interesses financeiros com a reforma da Igreja - ou terem pronunciado que
205
Protesto que fez o Cabido de Braga no Concilio Provincial Bracharense que celebrou o Arcebispo de
Braga D. Fr. Bartolomeu dos Mártires, de que lhe não prejudicasse nelle o voto do dito Arcebispo por
andar em feitos com o Cabido e lhe ser sospeito. (ADB, Gaveta de Concílios e Sínodos e Juntas
eclesiásticas, doc. 15, ff. 8v-9) In: MARCOCCI, Giuseppe. op. cit., pp. 148-149.
78
não era necessário aceitar os decretos do Concílio de Trento antes que o Papa os
confirmasse. O Cônego João Afonso, que parece ter sido o que mais tumulto causou
durante o Sínodo Provincial, foi processado pelo Tribunal de Coimbra.206
Dessa forma, concluímos que a figura de D. Fr. Bartolomeu dos Mártires teve
influência direta na Visitação Inquisitorial de 1565, não apenas por tê-la convocado,
mas também por ter, através de sua atividade pastoral, alterado a dinâmica das
denúncias feitas ao Visitador, fazendo com que o delito de feitiçaria, valorizado na
atividade do Arcebispo, tivesse maior expressão, enquanto o criptojudaísmo, objeto
principal da atividade do Santo Ofício, recebesse um número de denúncias muito abaixo
do padrão da Inquisição lusa.
206
ANTT, Inquisição de Coimbra, proc. 9774.
79
Capítulo 3:
A Visitação Inquisitorial: as feiticeiras e seus rituais
80
visitação a Vila do Conde, em atividade até o dia 1o. de maio. O diferente tempo de
permanência do Visitador em cada uma das localidades pode ser relacionado à
importância sócio-econômica de cada local. Viana e Vila do Conde eram cidades
portuárias de grande tráfego; no entanto, Braga tinha ainda um maior peso populacional
e grande importância religiosa, como já foi tratado no capítulo anterior.209 A Visitação
foi conduzida por Pedro Álvares Paredes, licenciado em Cânones, investido como
Inquisidor em Évora a 5 de setembro de 1541 e em Lisboa a 19 de agosto de 1552.210
Isabel Braga considerou também que a Visitação ao Arcebispado de Braga deve
ser analisada levando-se em conta as Visitações a Tomar (entre 1560 e 1561) e Porto
(1564). Esse conjunto de Visitações teria feito parte de um esforço para verificar a
aplicação dos decretos tridentinos em Portugal,211 o que deveria indicar uma relevância
ainda menor do delito de feitiçaria nas Visitações de Pedro Álvares de Paredes. No
entanto, a autora ignorou que a Visitação tenha sido requisitada pelo próprio Fr.
Bartolomeu dos Mártires.
Como já foi dito acima, a perseguição aos judaizantes constituía o foco principal
da ação inquisitorial em Portugal. Assim, o número de denúncias relativas a esse tipo de
delito era geralmente o mais expressivo, enquanto a feitiçaria aparecia em escala
reduzida dentre as denúncias e processos.
Com relação à Visitação ao Arcebispado de Braga, o número de denúncias de
feitiçaria e culto ao demônio, em comparação com os números de Visitações do Santo
Ofício a outras regiões portuguesas nesse mesmo período a respeito das quais temos
informações - Lamego e Viseu (1543), Entre Douro e Minho (1570) e Beira (1579) -,
indica a especificidade do caso bracarense.
Uma Visitação a Lamego e Viseu, realizada em 1543, apresentou um total de
319 denúncias, número consideravelmente maior que o da Visitação aqui analisada,
duas décadas depois. É preciso considerar ainda que se trata aqui do período inicial de
funcionamento do Santo Ofício português, no qual a perseguição ao elemento cristão-
209
BRAGA, Isabel. A Visita da Inquisição a Braga, Viana do Castelo e Vila do Conde em 1565. Revista
de La Inquisición. Madri: Editorial Complutense, nº. 3, pp. 29-67, 1994, p. 31.
210
MEA, Elvira. op. cit., pp. 107-108.
211
BRAGA, Isabel. op. cit., pp. 29-67.
81
novo, como já dissemos, era ainda mais acirrada. Deve-se atentar também para o fato de
que em 1543 o Concílio de Trento ainda não havia se iniciado e o quadro de combate às
heresias na Europa Católica ainda não havia se definido. Dentre os 319 registros não
houve nenhum relativo à feitiçaria. Aqui o delito mais expressivo foi o de judaizar, que
compôs 84% das denúncias. É importante considerar também que esta foi a primeira
Visitação inquisitorial à região.
82
fragmentos, o que impossibilita uma comparação profícua.212 Sabe-se que Ana Afonso,
moradora de Viana do Castelo, cristã-velha, 40 anos, viúva, foi processada pelo
Tribunal de Coimbra em 1570 por bruxaria; no entanto, o registro de suas culpas faz
parte do material do Livro da Visitação que se perdeu.213
A Visitação a Beira, em 1579, apresentou números também muito interessantes
para a comparação aqui realizada. Esta Visitação durou cerca de seis meses, passou
pelas principais regiões da Beira – ao norte de Portugal, e percorreu espaços tanto sob a
jurisdição do Tribunal de Coimbra quanto do Tribunal de Lisboa: Covilhã, Teixoso,
Belmonte, Guarda, Celorico da Beira, Trancoso, Castelo Rodrigo, Almeida, Castelo
Bom e Vila Maior.
Em um total de 668 denúncias, não houve nenhuma sobre feitiçaria, em
nenhuma das localidades visitadas. A esmagadora maioria dos delitos era relativa, mais
uma vez, aos judaizantes, seguida por outros delitos de expressão numérica muito
pequena, como se pode ver no quadro abaixo.
Formulações de 2 - - - 1 - - - 1 4 0,6%
conteúdo erótico-
sexual
Bigamia - - - - - - - - - - -
Superstição - - 1 - - - - - - 1 0,2%
Feitiçaria - - - - - - - - - - -
Contra o Santo 3 1 - 3 10 - - - - 17 2,5%
212
ROSÁRIO, Antonio do (OP) (org.). Visita da Inquisição a Entre-Douro-e-Minho, 1570. (Extractos).
Braga, 1978.
213
BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia, p. 366.
83
Ofício
Diversos 9 - - 10 7 1 3 3 3 36 5,4%
Motivos 4 2 2 5 5 4 5 - 2 29 4,3%
Extravagantes
Culpas Não definidas - - - - - - - - - - -
Sodomia - - - - - - - - - - -
TOTAL 111 18 37 206 110 48 72 32 34 668 100%
FONTE: MEA, Elvira. A Inquisição de Coimbra no século XVI: a instituição, os homens e a sociedade. Porto:
Fundação Engenheiro Antônio de Almeida, 1997, p. 238.
214
Considerando-se as diferentes dimensões geográficas e os diferentes níveis de concentração
populacional das regiões apontadas para efeito de comparação, as análises foram realizadas levando em
conta a quantidade de denúncias relativas a cada tipo de delito em relação ao total de denúncias de cada
Visitação.
215
A tabela foi baseada em dados retirados do Livro da Visitação. Cf. Liuro da visitação que se [a
Inquisição] fez na Cydade de Braga e seu Arcebispado [1565]. Porto: Arquivo Histórico Dominicano
Português-Movimento Bartolomeano, 1974. A partir desta nota, esta publicação será referida como Liuro
da Visitação.
84
É necessário destacar também que o número de denúncias contra os judaizantes
foi, no Arcebispado de Braga, também muito menor que nas outras regiões visitadas
citadas aqui; foram feitas 26 denúncias desse delito em um total de 156, o que totaliza
apenas 16,66%, contra mais de 70% nos outros casos. Este dado torna-se ainda mais
intrigante devido à onda de perseguições aos cristãos-novos que teve lugar no
Arcebispado em fins da década de 1550. O então Arcebispo de Braga D. Fr. Baltasar
Limpo (1550-1558) tinha profundos laços com o Santo Ofício e foi o responsável pelo
desencadeamento das perseguições. Muitos foram os que deixaram a cidade e se
instalaram na região de Trás-os-Montes na tentativa de escapar. Em 1558 foram
enviados ao Tribunal de Lisboa 23 cristãos-novos da cidade de Braga. Após terem
retornado de Lisboa, alguns dos processados eram ainda vistos com certa suspeita pela
comunidade cristã-velha. Assim, não é possível compreender um número tão diminuto
de denúncias aos cristãos-novos em Braga sem considerar a possível influência da ação
de D. Fr. Bartolomeu dos Mártires, que priorizava a perseguição a outros delitos
considerados menores pela Inquisição, como a feitiçaria, enquanto defendia a
absolvição secreta dos judaizantes.216
A historiadora Elvira Mea já havia apontado a rarefação de processos de
judaizantes na Arquidiocese de Braga, mesmo no período inicial de funcionamento do
Tribunal do Santo Ofício português, indicando ainda uma espécie de marginalização
geográfica dos poucos processados que, em sua maioria, viviam nas franjas do
Arcebispado, longe dos maiores núcleos populacionais. A autora apresentou como
hipóteses para essa questão a difusão das comunas judaicas do século XV em função da
expulsão, reconhecendo que a região apresentava uma dinâmica específica com relação
à realização de visitas pastorais e Sínodos Diocesanos no século XVI, principalmente
após a realização do Concílio de Trento.217
Segundo Ferro Tavares, as comunidades judaicas da região do Minho no início
do século XV eram diminutas:
216
MARCOCCI, Giuseppe. op. cit., p. 121; Idem. O arcebispo de Braga, D. Frei Bartolomeu dos
Mártires, p. 130.
217
MEA, Elvira. op. cit., pp. 213.
85
opção dos judeus foi de fixarem-se em terras de Nuno Álvares Pereira e dos
seus descendentes, em detrimento da cidade dos arcebispos.218
218
FERRO TAVARES, Maria. As judiarias de Portugal. Clube do Colecionador dos Correios, 2010, p.
164.
219
Ibid., p. 166.
220
Ibid., p. 170.
221
Não se sabe se lhes foi dada uma rua apartada, pois a expulsão dos judeus do Reino de Portugal
aconteceria em breve. Ibid., p. 169.
86
José Pedro Paiva, ao discutir as variações regionais da repressão às praticas de
feitiçaria pelo Santo Ofício português, apontou o Arcebispado de Braga (especialmente
as cidades de Braga, Viana do Foz de Lima e Vila do Conde) como uma das áreas de
maior concentração de denunciados e processados; no entanto, salientou que a
distribuição demográfica da população e a rede de implantação do Tribunal da
Inquisição deviam ser levados em consideração. Sobrepondo todas essas informações,
Paiva concluiu que, em uma abordagem macroanalítica, não se pode considerar que
alguma região do Reino tenha se destacado como foco de concentração de agentes de
práticas mágicas e, mesmo se houvesse algum local de destaque, isso não teve efeito na
ação persecutória do Tribunal.222
Ao tratar da especificidade do Arcebispado de Braga através da documentação
disponível a respeito da Visitação, procuramos analisar as denúncias de feitiçaria em
relação ao número total de denúncias, como já foi dito aqui anteriormente. Dessa forma,
o fator demográfico apontado por Paiva não constituiu um problema para a análise. No
entanto, para além da questão demográfica, a perseguição à feitiçaria no Arcebispado de
Braga foi impulsionada pela atividade pastoral desenvolvida pelo Arcebispo, como
analisado no capítulo anterior. Assim, acreditamos que uma abordagem de escala
reduzida possa revelar que, se não por parte da Inquisição, por parte do clero local a
perseguição aos praticantes da feitiçaria pode ter apresentado variações e o caso
bracarense pode ser um rico exemplo de como a repressão a esse tipo de delito foi
diferente nas diversas partes do reino e motivada pelos mais distintos fatores.
O perfil sociológico dos denunciados nas três regiões visitadas pode ser traçado
com base nas informações reunidas nas denúncias e confissões. Em vinte e uma
denúncias de feitiçaria e culto ao demônio, houve dezenove denunciantes e quatorze
denunciadas. Treze denúncias ocorreram em Braga, seis em Viana do Foz de Lima e
duas em Vila do Conde.
O traço que imediatamente impressiona é a quase onipresença do sexo feminino,
tanto entre denunciantes quanto entre denunciadas. Houve apenas um indivíduo do sexo
masculino dentre os denunciantes; de resto, só houve registros de mulheres. Aqui o
222
PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas, pp. 225-229.
87
estereótipo do gênero feminino como representante massivo do fenômeno da bruxaria
encontra alguma solidez.
Como ressaltou o historiador Jean Delumeau, o sexo feminino sempre foi
representado pela Igreja Católica como impuro, fraco e perverso:
Segundo Kramer e Sprenger, a mulher era um ser dotado de pouca fé, movido
por impulsos e instintos, mais propenso a duvidar e, consequentemente, a abjurar, ato
que constitui o princípio do pacto demoníaco e da bruxaria. As mulheres seriam mais
fracas que os homens na mente - intelecto e entendimento das questões do espírito - e
no corpo – a mulher seria mais carnal que o homem - e por isso se entregariam mais
facilmente a esse tipo de prática:
223
DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente (1300-1800). Uma Cidade Sitiada. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989, p. 314.
224
O Malleus Maleficarum, publicado em 1486 pelos Inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger, foi
o grande manual de demonologia utilizado pelos inquisidores de toda a Europa durante o período de
“caça às bruxas”. O tratado era incisivo quanto à necessidade da mediação demoníaca para a
concretização do malefício, discorrendo a respeito de questões como por que Deus permitia que aquilo
acontecesse, quais seriam exatamente os poderes satânicos no mundo terreno, como se dava a relação
entre as feiticeiras e o demônio e como era possível reconhecê-las e puni-las.
225
Malleus Maleficarum, p. 112.
88
fomentam e infligem vinganças várias, seja por bruxaria, seja por outros
meios. Pelo que não surpreende que tantas bruxas sejam desse sexo. 226
226
Malleus Maleficarum, p. 118.
227
DELUMEAU, Jean. op. cit., p. 320.
228
Isabel Braga contabilizou 98 denunciados nas três cidades por onde a Visitação passou, sendo os
cristãos-velhos 19%, os cristãos-novos 28% e a respeito dos 53% restantes não há maiores informações.
No entanto, Braga considerou que o número de cristãos-velhos era provavelmente maior que o aqui
indicado, pois a ascendência cristã-nova dificilmente deixaria de ser mencionada em uma denúncia e
acrescentou que as judiarias existentes na região não tiveram importância como as do sul ou de locais
fronteiriços. Cf: BRAGA, Isabel. op. cit., p. 40.
229
Michelet, com sua obra A feiticeira (1862), foi o pioneiro no que diz respeito a interpretar a feitiçaria
como uma recusa à Igreja e à sociedade, caracterizando as bruxas como mulheres excluídas do convívio
social. O antropólogo Marcel Mauss insistiu também sobre a condição anormal atribuída ao mago por sua
comunidade. Trevor-Roper pode ser aqui citado também como defensor da idéia de exclusão social da
bruxa, uma vez que considerou o movimento de caça às bruxas como definidor de um bode expiatório
para o povo. Cf: MICHELET, Jules. A feiticeira, 1862. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.; TREVOR-
ROPER, Hugh. A obsessão das bruxas nos séculos XVI e XVII. In: Religião, Reforma e Transformação
Social. Lisboa: Presença. 1972; MAUSS, Marcel. Sociologia a Antropologia. São Paulo: COSACNAIFY,
2003, p. 69.
230
Francisco Bethencourt, em seu estudo sobre a feitiçaria em Portugal no século XVI já aqui citado,
concluiu também que o estereótipo da bruxa velha, solteirona ou viúva, excluída da comunidade, não
correspondia inteiramente à realidade, à exceção da predominância do sexo feminino dentre as
processadas. Cf: BETHENCOURT, Francisco. op. cit., p 204.
89
vendedora de pão mostram que essas mulheres eram representantes de um estrato social
baixo.
Por fim, antes de passar à análise das denúncias e processos, cabe aqui uma
breve consideração a respeito do impacto de uma Visitação do Santo Ofício a uma
comunidade. Os éditos inquisitoriais incitavam à denúncia, como uma responsabilidade
para com a salvação do próximo e como demonstração de zelo pela causa de Deus. A
denúncia era uma obrigação moral e religiosa, decorrente de um sentimento de
culpabilização não só pelos próprios pecados, mas também pelos pecados alheios que,
caso não fossem denunciados, seriam assimilados por aqueles que deles tinham
conhecimento, de acordo com o discurso da Igreja. No entanto, muitas vezes essas
inspeções iniciavam ciclos de denúncias com finalidades muito específicas além da
procura pelo perdão e a salvação. A prática de denunciar para se ver livre de qualquer
tipo de complicação que pudesse acontecer no caso de ser também denunciado era
muito comum. A delação como tentativa de solução para tensões viciniais, pessoais, ou
de qualquer outra ordem era também recorrente. Segundo a historiadora Elvira Mea:
E na Visitação aqui analisada não foi diferente. Houve ciclos de denúncias que
se encaixavam perfeitamente neste quadro. Portanto, tivemos um cuidado especial ao
analisar este tipo de situação, considerando o teor, a cronologia das denúncias, a
gravidade que o Santo Ofício atribuía ao delito cometido e, na medida do possível, as
relações entre os denunciantes e denunciados de um mesmo caso.
Através das denúncias feitas à Visitação, e dos processos de feitiçaria que dela
resultaram, é possível analisar as práticas e crenças mágico-diabólicas no recorte
espaço-temporal em questão. No entanto, é necessário fazer aqui alguns esclarecimentos
gerais.
231
MEA, Elvira. op. cit., p. 210.
90
As práticas mágicas observavam uma lógica, transmitida por tradição, que
respeitava tempo e espaço apropriados, bem como o significado de cada elemento
presente nos rituais. Essas observâncias remetiam a uma lógica simbólica, que mesclava
tradições antiqüíssimas232 a práticas e conhecimentos novos em constantes interações e
reelaborações.
Os rituais de feitiçaria podem ser percebidos como expressões de contextos
diversos, da interação entre tempo curto e tempo longo. As crenças e imagens que
afloravam nesses rituais representavam o substrato de uma cultura arcaica, resquícios de
religiosidades pagãs imiscuídos a crenças católicas, constantemente reelaborados à luz
de diversos fatores como, por exemplo, as idéias criadas e divulgadas pelo movimento
repressor da Igreja (como o pacto demoníaco, idéia-chave para a compreensão da
perseguição à bruxaria) e os problemas cotidianos, que muitas vezes estimulavam a
busca por uma solução sobrenatural. Carlo Ginzburg, em História noturna233, procurou
demonstrar como, para a formulação do estereótipo do sabá, confluíram as idéias dos
inquisidores e juízes laicos a respeito do complô contra a cristandade e elementos
antiqüíssimos da cultura xamânica, fortemente presentes no cotidiano europeu. Como
ressaltou o historiador italiano, “história e morfologia não estão justapostas [...], mas
entrelaçadas: duas vozes que se alternam, discutem e por fim buscam um acordo.”234
James Frazer, no clássico O ramo de ouro, afirmou que a magia tem base em
princípios lógicos, leis que fundamentam suas crenças e rituais:
232
A respeito do debate sobre a permanência dos cultos pagãos na cristandade, cf: DELUMEAU, Jean.
op. cit., pp. 368-373.
233
GINZBURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
234
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras,
2007, p. 310.
235
FRAZER, James. O ramo de ouro. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1982, p. 34.
91
O antropólogo Marcel Mauss acrescentou aos dois princípios mágicos
apresentados por Frazer a lei do contraste, que consiste na crença de que “o contrário
agre sobre o contrário”. Mauss observou que todas as três leis poderiam ser
denominadas leis de simpatia, uma vez que todas, até mesmo a da contrariedade, são
fundamentadas na identidade e na simultaneidade.236
Os rituais descritos nas denúncias à Visitação ao Arcebispado de Braga
apresentaram exemplos riquíssimos do funcionamento dessa lógica. Inúmeros foram os
depoimentos em que se pode perceber a aplicação dos três princípios descritos acima.
Analisaremos, primeiramente, os casos das duas mulheres mais citadas – Inácia
Gomes e Ana Álvares (ou Ana do Frade) – através das denúncias e processos
inquisitoriais delas decorrentes. Em seguida passaremos aos casos de menor
repercussão.
E que ella, sendo assy ensinada pella dicta Susana de Guymarães, fyzera ho
acima dicto huma sso vez, querendo bem a huum homem e elle a nam querya
ver. Leuando huma candea acesa de sua casa, e se fora a Irmyda de Sam
Myguel, que está fora dos muros desta cydade, ha boca da noyte, e a leuou
236
MAUSS, Marcel. op. cit., p. 99-110.
92
asy acesa debayxo da mantylha. E emtrando na dicta irmyda, leuando a boca
cerrada, nam se omilhou pera Santo nhum nem pera Cruz, nem lhe rezou,
nem fez nhum acatamento, nem ha o mesmo Sam Myguel, soomente pos os
olhos no vulto do demonyo que estaua aos seus pees, e lhe pos a candea acesa
ao reves com o lume pera bayxo, e a offereceo ao demonyo asy acesa, e lhe
disse: Que lhe offerecia aquela candea e lha daua em offerta, pera que lhe
fosse buscar Joam da Fonsequa, cônego, que lhe deuya sua honrra, e lho
trouxesse a sua casa, pera falar com elle. E que lhe nam rezou cousa nhuma
nem lhe disse oração nhuma mays do que dicto tem.237
237
Liuro da visitação, p. 53.
238
CLARK, Stuart. Pensando com Demônios: a idéia de bruxaria no princípio da Europa moderna. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
93
através de uma espécie de “inversão sistemática”239. Segundo a lógica aqui apontada,
seria possível compreender que, se uma vela oferecida a Deus tem o lume para cima,
como é usual, uma vela oferecida ao demônio deveria ser entregue com o lume para
baixo. Da mesma forma, o ato de oferecer a vela de cabeça para baixo pode ser
compreendido considerando-se a lei da contrariedade apresentada por Marcel Mauss,
citada acima. Se uma vela com o lume para cima era oferecida a Deus, uma vela com o
lume para baixo, ao contrário, teria efeito sobre seu antagonista, o demônio.
Por fim, para compreender o ritual realizado por Inácia na Ermida de São
Miguel, é preciso considerar a proibição de fazer qualquer tipo de reverência aos
símbolos católicos e até mesmo de olhar para eles. O simples fato de olhar para a cruz
ou para São Miguel invalidaria o momento de adoração ao demônio e colocaria em risco
sua intervenção e a eficácia do ritual.
Inácia, a princípio, confessou ter realizado o ritual somente uma vez, da maneira
como Susana de Guimarães havia indicado; no entanto, admitiu também ter ensinado a
devoção a algumas vizinhas, citando especialmente Isabel Roiz, tecedeira, casada;
Margarida de Matos, tecedeira, solteira e Antônia Machada. Com relação ao que havia
dito a primeira denunciante, Inácia acrescentou que Antônia havia lhe prometido uma
peça para fazer a devoção em seu lugar, mas não disse se a recebeu e o fez “por aver
doo della”240.
Pedro Álvares de Paredes insistiu em perguntar a Inácia se ela havia se
humilhado ou posto de joelhos, talvez já na tentativa de configurar pacto demoníaco, ao
que ela respondeu negativamente. Já a segunda pergunta pode ser muito interessante
para refletir acerca da idéia de que a elite letrada portuguesa recebia com algum
ceticismo a crença na falta de limites dos poderes demoníacos: “Se, ao tempo que ella
leuaua a candea acesa de sua casa e ha offerecera ao diabo, pedindolhe o que tem dicto e
confessado, se tinha pera sy de certo que o demonyo, por sy sôo, podia fazer a
concederlhe o que lhe pedia?”.241 A questão colocada pode estar fundamentada na idéia
de que considerar que o demônio poderia realizar os pedidos de Inácia seria um erro.
Infelizmente, a resposta foi evasiva e não nos permite avançar na questão. Inácia disse
que “ella fez aquillo, que tem confessado, com a grande dor que tinha, e se metera nos
239
Ibid., p. 111.
240
Liuro da visitação, p. 54.
241
Ibid., p. 54.
94
Infernos pera fazer vir ante sy ao dicto homem, que nomeado tem. E que ella he christãa
velha, e crê e tem o que cre e ensyna ha Santa Madre Igreja.”242
É provável que a notícia da denúncia a Inácia Gomes tenha se difundido
rapidamente, pois nos dias subseqüentes compareceram perante o Visitador Margarida
Luis (cristã-velha, solteira, tecedeira, 25 anos), Isabel Roiz (cristã-velha, casada,
tecedeira, 32 anos), Ana Roiz (cristã-velha, filha de Isabel Roiz, 14 anos), Ângela Brava
(cristã-velha, casada, 26 anos, morou durante algum tempo na casa de Inácia) e Marta
Luis (cristã-velha, solteira, 24 ou 25 anos, irmã de Margarida Luis). É interessante
observar que Susana de Guimarães, apontada por Inácia como aquela que havia
primeiramente ensinado a devoção, não tenha sido convocada durante a Visitação.
Pedro Álvares de Paredes não demonstrou interesse em saber se seria possível interrogá-
la e não perguntou nada a seu respeito.
Segundo Margarida Luis, Inácia teria acrescentado que, além da devoção,
pensava em fazer um fervedouro. Além disso, ela teria se recusado a contar suas culpas
ao Inquisidor e aconselhou Margarida a procurar um certo clérigo que absolvia por
dinheiro, já que seu confessor teria se recusado a absolvê-la e insistido para que ela
contasse o que sabia ao Visitador. A denunciante citou ainda outras mulheres que
sabiam do ritual realizado por Inácia: Ângela Brava e Felipa Álvares, a respeito da qual
não há maiores informações.
O depoimento de Isabel Roiz não ofereceu grandes novidades ao Inquisidor. Já
sua filha, Ana Roiz, declarou que Inácia teria dito que era necessário, para que a
devoção tivesse efeito, pronunciar “Desemxerdo a Deus e amo a vós”243 – sendo vós o
diabo – o que foi posteriormente endossado em outra denúncia. Tanto a mãe quanto a
filha alegaram ter visto Inácia sair de casa, por duas vezes, com uma vela na mão,
dizendo que ia a São Miguel fazer uma devoção. Consta no processo que Inácia teria
declarado que desemxerdar queria dizer deserdar.244 De acordo com Francisco
Bethencourt, esta palavra poderia caracterizar pacto com o demônio, já que significava
que Inácia não legava mais seu próprio corpo e sua alma a Deus, mas sim ao diabo.245
A situação de Inácia, que já era complicada àquela altura, ficou ainda mais
difícil após a denúncia de Ângela Brava – no entanto, essa denúncia tornaria complicada
também a situação da própria Ângela.
242
Ibid., p. 54.
243
Ibid., p. 57.
244
ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. 9294, f. 29.
245
BETHENCOURT, Francisco. op. cit, p. 192.
95
Ela ofereceu a Pedro Álvares de Paredes a informação que ele provavelmente
estava esperando para confirmar suas suspeitas sobre o pacto de Inácia Gomes com o
demônio. Ao descrever como realizara o ritual para Ângela, Inácia teria dito que:
246
Liuro da Visitação, p. 58.
247
A expressão mais próxima a “dormir na roupa” para a qual encontramos um significado foi “dormir
sobre o seguro”, que, segundo Moraes Silva, era sinônimo de “descançar, estar fiado”. Cf: MORAES
SILVA, Antonio de. Diccionario da língua portugueza. Lisboa: Typographia de Antonio José da Rocha,
1858, tomo I.
248
Liuro da Visitação, p. 59.
249
Ibid., p. 59.
96
sem olhar pera Santo nem Santa, nem pera o mesmo Anjo, soomente pos os
olhos na figura do demonyo e se pos de joelhos ante elle e disse a figura do
diabo: Dom Diabo, eu te offereço esta candea em offerta. E, pois, leyxo a
Nosso Sõr Jhesu Christo por ti, que tu me vas buscar Joam da Fonsequa,
cônego, e mo tragas a mynha casa pera falar com elle. Acendendolhe a
candea com o lume pera bayxo e estando em joelhos, bateo nos peytos e lhe
abayxou a cabeça em lugar de reuerencia. 250
dando Ella, declarante, conta a Anjala Braua, por estarem ambas das portas
adentro e serem muito amygas, como avya de fazer a dicta deuoção ao diabo,
que lhe ensinara huma molher, a dicta Anjala Braua lhe disse: Que, pera a
deuoção ser mais perfeyta, ha avya de fazer em joelhos, diante da figura do
diabo, batendo nos peytos e chamandolhe Dom Diabo e: Que pois, leyxaua a
Nosso Sõr Jhesu Christo por elle, que lhe fizese aquyllo que lhe pedia e como
defeito a dicta Anjala Braua foy em sua companhia huma vez.. (...) E a dicta
Anjala Braua estaua ahy presente e lhe ouvyo dizer as dictas palauras. E lhas
hia ensynando como as ella, declarante, avya de dizer ao demonyo. 251
ao tempo que ella fazia a dicta deuoção, ella tynha pera sy que o diabo podia
fazer aquylo que lhe pedia. E, por yso, lhe fazia a dicta deuoção. E, porem,
que, no coração e sentido, nunca foy apartarse de Nosso Sõ Jhesu Christo. E
lhe parecia que o demonyo nam entendia seu coração, mas que aceytara
aquellas palauras que lhe ella dizia, e a candea que lhe offerecia.253
250
Ibid., p. 60.
251
Ibid., p. 60.
252
Ibid., p. 60.
253
Ibid., p. 61.
97
implicasse o abandono do cristianismo. Magia e religião conviviam nas crenças e
práticas da religiosidade popular. Como demonstrou Laura de Melo e Souza, a magia
operava como solução para “segredos cotidianos, dúvidas, incertezas, raivas,
inconformismos que a religião oficial não dava conta em resolver.”254
Como resultado das denúncias, Inácia Gomes e Ângela Brava foram processadas
pelos Tribunais de Lisboa e Coimbra, respectivamente. Como já foi dito anteriormente,
acreditamos que a organização da Visitação tenha partido do Tribunal de Lisboa. Inácia
foi uma das únicas denunciadas processada pelo Tribunal de Lisboa em 1565. Suas
culpas foram enviadas a Lisboa quando o Visitador ainda estava em Braga, a 15 de
março de 1565, e ela foi entregue ao Tribunal a 26 do mesmo mês. No entanto, a partir
do restabelecimento do Tribunal de Coimbra, os processos relativos à Visitação ao
Arcebispado de Braga passaram à jurisdição deste último. Ângela Brava e Ana do
Frade, cujo caso analisaremos à frente, foram processadas pelo Tribunal de Coimbra
apenas em 1567. Acreditamos que esse relativo atraso se deveu à necessidade de
organização do Tribunal, após tantos anos fora de funcionamento.
É provável que o caso de Inácia tenha impressionado os Inquisidores lisboetas,
pois seu primeiro interrogatório no Santo Ofício ocorreu pouco depois de sua entrega ao
Tribunal, a 4 de abril de 1565. Inácia afirmava de maneira contundente que já havia dito
toda a verdade e sempre, até mesmo em suas confissões ao Visitador, alegava
arrependimento e pedia perdão e misericórdia, o que, ao fim do processo, acabaria por
amenizar sua pena. No entanto, Simão de Sá Pereira255, o Inquisidor lisboeta, insistia na
possibilidade de pacto com o demônio, perguntando a Inácia se:
ela fizera com ele pacto e concerto prometendolhe sua alma dando lhe
obediência ou algum membro de seu corpo e se prometeu obedecer lhe e de
se apar da Fe de Jesus Cristo nosso senhor para que lhe concedesse aquilo
que ela lhe pedia e se porventura o demonio nesse tempo aparecera alguma
ora ou lhe falara de dia ou de noite se tivera com ela alguma comunicação
(...) e se porventura lhe dissera também que não fizesse veneração a cruz nem
has imagens dos sanctos e que arrenegasse a fee e batismo que professara 256
98
que não havia estabelecido pacto algum com o demônio e que estava muitíssimo
arrependida, declarando ainda que seus erros foram influenciados “por aquelas
molheres”257 (referia-se a Susana de Guimarães e Ângela Brava), estratégia que acabou
sendo bem sucedida. Por fim, os Inquisidores concluíram que Inácia realizara tal prática
supersticiosa “por engano do demônio e mas conselho doutras molheres suas amigas” e
que “nnnqua na verdade por isso deixara em seu coração a nosso senhor Jesus cristo,
nem se apartara da sua santa fee.”258
Inácia foi condenada a abjurar de veemente suspeita da fé, confessar-se três
vezes ao ano, jejuar cinco sextas-feiras a pão e água e a cada uma delas rezar o Pater
Noster e a Ave Maria pelo tempo de um ano, além de permanecer presa pelo tempo que
parecesse adequado aos Inquisidores para que tivesse aulas de doutrina. Após ser solta
do cárcere, Inácia deveria ainda estar um domingo ou outro dia festivo diante do
cruzeiro da Sé de Braga com uma vela acesa na mão.259
Seis meses após a sentença, Inácia entrou com uma petição e suplicou que sua
pena fosse comutada. Os Inquisidores a liberaram do cárcere e permitiram que ela
cumprisse o restante de sua penitência em Braga.260
Ângela Brava foi entregue ao Tribunal de Coimbra a 11 de maio de 1567 e seu
primeiro interrogatório ocorreu poucos dias depois. A princípio, Ângela não atribuiu o
fato de estar sendo processada pelo Tribunal do Santo Ofício ao caso da devoção ao
demônio realizada por Inácia Gomes. Em sua confissão, Ângela relatou outras práticas
de feitiçaria, que não apareceram em momento algum nas denúncias feitas à Visitação:
Abera doze anos que ella angella braua fora ter com huma feiticeira [...] para
que lhe fizesse alguma cousa com que lhe um certo homem quisesse bem e
ha qual lhe imnsinou a fazer um fervedouro de pedras das incruzilhadas e de
vinagre e uma ataqua do mesmo homem e a cal lhe imnsinou mais que tirasse
sangue dos quatro dedos mendinhos das mãos e dos pés e o mesturasse com
sal de compas e que lho desse a comer ou a beber e havia de dizer ceertas
palavras as quaes ella angella braua aprendeu e imsinou depois a filha do
arcediago de carvoeiro261
99
consideradas lugar de passagem entre os dois mundos, encontro de caminhos. O
significado da ataca262 é extremamente rico, pois além de respeitar a lei do contato,
simbolizava o poder de abrir e fechar a braguilha para a mulher que realizava o feitiço.
O sangue era também elemento muito utilizado em feitiços de benquerença, já que, de
acordo com o princípio do contato, representava a pessoa que desejava ser o alvo de
desejo do enfeitiçado; já o sal, por resultar da evaporação da água do mar, pode ser aqui
compreendido como símbolo de transformação, de mudança de estado, mas também
como elemento que garantia a durabilidade do efeito desejado, devido a sua propriedade
natural de conservante.
No interrogatório seguinte, três meses depois, os inquisidores perguntaram
diretamente se “ensinara ella a alguma pessoa que disesse Dom diabo pois leyxo a Deus
por ty [...] estando de joelhos offerecendo huma candea ao demônio” 263. Ângela negou
que tivesse realizado tal prática ou ensinado estas palavras a alguém, mas disse que
Inácia Gomes, à época sua amiga, havia realizado uma devoção ao diabo na Ermida de
São Miguel e que a havia acompanhado uma vez à porta da Ermida, mas a deixara lá e
não a viu fazer a devoção.
Ângela declarou também que Inácia passou a considerá-la como inimiga, pois
sabia da denúncia feita à Visitação a Braga. Essa declaração foi de fundamental
importância para a conclusão do processo e também para a sorte de Ângela Brava, pois,
como constava no Manual dos Inquisidores de Eymerich, as denúncias feitas por
pessoas que tenham sido declaradas como inimigos capitais do processado, antes ainda
que este tenha sido interrogado a respeito, deveriam ser desconsideradas.264
Assim, os inquisidores concluíram que:
como consta pelos autos antes que a testemunha deu seu testemunho contra a
ré despois de a ré ter testemunhado contra ella perante o Inquisidor posto que
fica sua inimiga capital visto outrosi como o que confessa das feitiçarias não
pertence a este santo officio [...] mandão que este processo não va mais
avante e que a ré se vá em paz265
O caso de Ângela e Inácia pode ser tomado como exemplo muito claro dos
motivos pelos quais as pessoas optavam por prestar serviço à Inquisição e denunciar
qualquer prática suspeita da qual tivessem conhecimento, principalmente no caso de
estarem também envolvidos. Tanto Ângela quanto Inácia foram processadas devido às
262
“Atilho para atar a braguilha”. Cf: BETHENCOURT, Francisco. op. cit., p. 371.
263
ANTT, Inquisição de Coimbra, proc. 1055, f. 22.
264
EYMERICH. Nicholas. Manual dos inquisidores. 1376. Lisboa: Afrodite, 1972, p. 54.
265
ANTT, Inquisição de Coimbra, proc. 1055, f 25.
100
denúncias feitas à Visitação, mas o fato de Ângela ter procurado o Visitador para
denunciar Inácia antes que esta a acusasse de ter ensinado os detalhes que consolidaram
o ritual como heresia fez com que ela fosse solta sem maiores penas.
Ana Álvares, cristã-velha, viúva, foi também denunciada várias vezes à
Visitação de 1565. O curioso é que, ao contrário do caso analisado acima, não há
nenhum indício de ligação entre as várias pessoas que a denunciaram. Ana do Frade,
como era conhecida, foi inclusive denunciada nas três cidades visitadas.
Manuel da Costa, Cônego da Sé de Braga, 50 anos, declarou que encontrou Ana
do Frade a caminho do mosteiro de Beturinho das Donas e ela teria espontaneamente
dito a ele coisas que viriam a acontecer algum tempo depois:
Vindo elle, declarante, de Lixboa, pasando de camynho pera o mosteyro de
Beturynho das Donas, encontrou com a dicta Ana do Frade e, reprendendoa
do seu mao viuer, a dicta Ana do Frade disse a elle, declarante; Que, em
chegando a Braga, havya de ser preso. E o marydo da dona a que elle,
declarante, hia a falar ao dicto mosteyro avya de hir camynho da Índia e
nunca mays avya de vir a este Regno. Como defeyto elle, declarante, foy
preso em chegando a esta cydade e o marydo da dona a que elle, denunciante,
foy falar, que era pyloto da carreyra da Índia, foy camynho da Índia e lá
morreo e nam tornou mays a Portugal. De maneira que tudo que lhe disse a
dicta Ana do Frade, que he o acima dicto pasou asy e como lho ella disse,
pello que elle, declarante, há tem por grande feyticeyra e que falava com o
demônio.266
266
Liuro da Visitação, p. 22.
101
notícia, todas pelo delito de feitiçaria. Cabe lembrar que Dos Mártires defendeu em seus
escritos que o Bispo devia remediar os pecados como um pai, de forma branda, e que as
heresias ocultas poderiam ser absolvidas no foro da consciência; as penas mais severas e
a exposição pública só deveriam ser utilizadas como última alternativa nos casos mais
graves. É preciso lembrar ainda, como vimos no primeiro capítulo, que as Constituições
Sinodais do Arcebispado de 1538 não previam a prisão como pena para o delito de
feitiçaria – previam apenas penas pecuniárias ou a excomunhão maior. Assim, as
sentenças conferidas a estas mulheres indicam o quanto este delito era valorizado por
Fr. Bartolomeu. Além disso, é possível observar como a pastoral desenvolvida pelo
dominicano teve influência direta nas denúncias feitas à Visitação Inquisitorial, já que
as mulheres por ele sentenciadas consolidaram fama pública de feiticeiras, o que, por
sua vez, fazia com que aqueles que as tivessem procurado se sentissem ainda mais
constrangidos a denunciá-las ao Visitador.
Inês da Fonseca, casada, mais de 50 anos, suspeitava que sua filha, Guiomar de
Figueiredo, casada com Diogo Lopez, o Surdo, havia sido enfeitiçada. Assim, Inês a
levou à casa de Elena Gonçalves, cristã-velha, viúva, que tinha fama de feiticeira – de
acordo com a denunciante, Elena já havia inclusive sido presa por feitiçaria, mas
infelizmente não há maiores informações sobre isso na denúncia. O procedimento
realizado pela feiticeira teria sido o seguinte:
a dicta Elena Gonçalvez lhe pedio hum vintém, E ella lho deu. E, então,
abryo hum lyuro e ho meteu dentro. E, então, começou a ler pello liuro. E,
despois de ler pello dicto liuro, lhe disse: Que sua filha fora emfeytiçada e
que huns dos feytiços lhe derão a comer e outros lhe puserão no soar, que he
ha entrada da porta, e, como pasou logo lhos tiraram. E que em huma camysa
della lhos derão também, nomeandolhe as molheres que lhos fizeram, e que
eram duas cunhadas suas e huma criada da dicta sua filha, que se chama Inês
Gonçalluez, que he em Lixboa, nomeandolha a dicta feyticeyra por seu nome
e como se chamaua. E asi lhe nomeou os nomes da cunhada da dicta sua
filha, dizendolhe que huma se chamaua Clara de Azeuedo e Maria Lopes, as
quaes estão casadas com dous irmãos do dicto seu marido. E que tudo isto lhe
disse a dicta feyticeyra de sy mesmo, sem ella Inês da Fonsequa, lhe dizer
cousa nhuma destas, por ella declarante, o nam saber.267
267
Ibid., p. 23.
102
Era muito comum se misturar feitiços – tanto para causar o amor quanto o ódio e
a doença – a bebidas e comidas para que o indivíduo alvo as ingerisse, o que garantiria
sua consumação. Já a prática de colocar feitiços no soar da porta tinha um simbolismo
mais específico: ela representava lugar de passagem, de mudança de estado; no caso, do
estado são para o enfermo no momento em que a enfeitiçada passasse pela porta.
O uso de peças de roupas, tanto em malefícios quanto em feitiços de
benquerença e cura era extremamente comum, como se pode perceber através do corpus
documental analisado. Esse tipo de prática respeitava a lei do contato, uma vez que se
considerava que qualquer coisa que fosse feita à roupa tinha efeito sobre o indivíduo
que a havia usado.
Após ter obtido as informações de Elena Gonçalves, Inês procurou outra
feiticeira, Isabel Gonçalves, para tentar curar sua filha. Isabel pediu a Inês uma peça de
roupa de Guiomar para fabricar remédios. Mais uma vez a utilização de peças de roupas
apareceu nas denúncias; no entanto, com o sentido de produzir não a doença, mas a
cura. A declarante não informou se levou ou não as roupas da filha para Isabel, mas o
fato de ter procurado ainda outra feiticeira pode indicar que não. Inês acrescentou ainda
que Isabel Gonçalves estava, em 1565, presa por feitiçaria, como já indicamos acima.
A terceira feiticeira procurada foi justamente Ana do Frade, que pediu que Inês
levasse uma galinha preta viva para poder curar sua filha:
a dicta Ana do Frade, asy viua a galinha, presente ella, lhe quebrou as asas e
arrancou o pescoço. E então, estando a galynha ainda bolyndo, com huma
agulha infiada em huma lynha, metia pella galynha e tiraua, como que cozia
pella galynha. E acabado de fazer isto, lhe disse como sua filha era
imfeytiçada, dizendo quem lha emfeytiçara e quem ha feryra, conformando
em tudo com ha prymeyra feyticeyra, dizendolhe: Que lhe leuasse huma peça
do corpo da dicta sua filha e que ella lha desenfeytiçarya. 268
268
Ibid., p. 24.
269
BETHENCOURT, Francisco. op. cit., p. 154.
270
CALAINHO, Daniela Buono. Metrópole das Mandingas: religiosidade negra e Inquisição
portuguesa no Antigo Regime. Rio de Janeiro: Garamond, 2008, p. 82.
103
africanos na metrópole lusa271, as religiosidades negra e européia se influenciaram
mutuamente:
A declarante disse que não voltou à Ana do Frade por ter ficado assustada com o
que vira, e acrescentou que a feiticeira havia lhe pedido um ferrolho e uma fechadura
para desfazer os feitiços colocados na entrada da porta. A relação não poderia ser mais
clara; de acordo com a lei do contraste, para desfazer os feitiços colocados na porta,
Ana do Frade iria utilizar os elementos que têm justamente o poder de abri-la ou fechá-
la, invertendo o sentido do malefício para a cura.
A denúncia de Inês da Fonseca possibilita diversos questionamentos. Em
primeiro lugar, o motivo pelo qual ela teria procurado tantas feiticeiras para resolver o
problema de sua filha. É possível que o trabalho de cura das feiticeiras não tivesse
funcionado ou que, simplesmente, Inês não acreditasse nelas. A segunda questão diz
respeito ao mercado de feiticeiras disponíveis para consulta. A denunciante procurou
quatro mulheres que, ao que tudo indica, eram conhecidas pela comunidade como
feiticeiras, e algumas delas já haviam sido presas por esse tipo de delito. Por fim, a
terceira questão diz respeito ao fato de todas terem dito a mesma coisa à denunciante, o
que poderia indicar que havia contato entre as denunciadas ou até mesmo uma espécie
de rede de feiticeiras no Arcebispado.
Não satisfeita, Inês procurou ainda outra feiticeira, Leonor Gonçalves, que
repetiu o que as outras três já haviam dito após ter feito algumas medidas em uma
trança, repetindo o nome da enfeitiçada. Infelizmente não é claro na denúncia de que
material era feita a trança utilizada pela feiticeira. No entanto, o principal elemento da
prática divinatória era a repetição do nome da suposta enfeitiçada para que se pudesse
saber como curá-la. Como afirmou Marcel Mauss, “o encantamento oral completa,
especifica o rito manual, que ele pode suplantar.”273 A realização dos rituais respeitava
271
Segundo Calainho, a população aproximada de escravos na região de Entre-Douro-e-Minho era de
2.730 e se concentrava no litoral. Cf: Ibid.., p. 54, Anexo 1, tabela 2.
272
Ibid., p. 87.
273
MAUSS, Marcel. op. cit., 2003, p. 93
104
uma lógica simbólica da qual fazia parte também a força atribuída à palavra. Segundo
José Pedro Paiva:
274
PAIVA, José Pedro. op. cit., p. 135.
275
Liuro da Visitação, p.24
105
defeyto, ella declarante ho emterrou em hum buraco, no chão. E lhe deu
huma semente, dizendolhe: Que ha bebesse e que logo averya crianças. 276
Como já foi dito, o uso de corações animais era muito comum em malefícios,
principalmente os de frangos, cuja imagem era associada ao demônio. O ato de cortar o
coração simbolizava o fim dos efeitos do malefício e a cura. É preciso acrescentar ainda
que, segundo José Pedro Paiva “a faca, como muitos outros objetos cortantes, têm o
princípio de actuar sobre matéria passiva e de afastar influencias maléficas”.277 A
prática de enterrar os feitiços concluía o procedimento de findar seus efeitos mágicos
definitivamente. Além disso, deve-se considerar a crença no poder da terra como
geradora de frutos, símbolo de vida e de renascimento. Por fim, a ingestão da semente
como propiciadora de fertilidade é um claríssimo exemplo da lei da similaridade.
Através da ingestão da semente, que na terra fertilizada gera vida, acreditava-se ser
possível produzir efeito semelhante na mulher e torná-la também fértil.
Segundo Ana do Frade, era ainda necessário clamar pela intervenção dos santos
católicos – procedimento bem diferente dos outros realizados por ela, como será
apresentado à frente – e rogar para que eles desfizessem os feitiços. Percebe-se como
era tênue a fronteira entre a religião oficial católica e as práticas mágicas. Muitos foram
os estudiosos do tema que afirmaram que a recorrência à magia acontecia quando a
religião oficial não parecia suficiente para a resolução de questões cotidianas. No
entanto, o procedimento de Ana do Frade indica que a urgência com que se desejava
resolver o problema e a importância de se mobilizar todas as forças sobrenaturais à
disposição devem ser também levadas em conta para que seja possível compreender esta
fluidez entre a fé católica e as práticas heterodoxas. É importante também ressaltar a
distinção entre os procedimentos que envolviam os santos católicos e os que envolviam
as forças demoníacas; aos primeiros, era possível apenas clamar, sem qualquer garantia
de que o pedido seria atendido, enquanto acreditava-se que era possível coagir as forças
demoníacas a realizar o que se pedia.
Ainda em Viana do Foz de Lima, Maria Gonçalves, a Colaça, cristã-velha,
viúva, 60 anos, declarou que Ana do Frade havia sido chamada a sua casa para curar o
marido de sua filha que estava doente e, como acreditavam, enfeitiçado. O corpo
humano era concebido como um microcosmo vulnerável às influencias dos mundos
terreno e espiritual, e, por isso, sujeito às forças ocultas. Assim, a doença era
276
Ibid., p. 74.
277
PAIVA, José Pedro. op. cit., p. 134.
106
compreendida como conseqüência de uma agressão mágica, da influência de espíritos,
ou como castigo divino.278 No entanto, antes que a feiticeira viesse a sua casa, Maria
Anes, filha da Colaça, mandou à casa de Ana do Frade um homem para tentar desfazer
os feitiços, que voltou com o seguinte recado:
Que dizia ha dicta Ana do Frade: Que o dicto seu marydo era enfeytiçado. E
que fossem debayxo de huma escada de sua casa e aly os acharya. E a dicta
sua filha lhe disse: Que buscara no dicto lugar da escada e que achara, em
hum colorete de huma sua saya, os dictos feytiços. 279
Alguns dias depois Ana do Frade foi à casa da Colaça e contou que fora “com todos os
diabos, ha meya noyte” buscar os feitiços feitos a seu genro:
Que era um coração de hum gallo negro amarrado com lynhas. E que ella,
Ana do Frade, desfizera os feytiços E, defeyto, dahy por diante, o dicto seu
genro dizia: Que se nam achaua tam afadigado do coração como dantes, por
que, hate emtão, se queyxaua muito do coração. [...] Que mandaram hum
picado branco a dicta sua filha, em que vinha mysturado huma massaroqua
de huma molher morta. Que lhe mandaram o picado a ella pera querer mal a
seu marydo. E ella, nam sabendo que eram feytiços, o deu a comer ao dicto
seu marydo.280
A Colaça declarou que tudo havia se passado da exata maneira como Ana do
Frade disse. Mais uma vez apareceu nas denúncias o coração de galo negro, mostrado
por Ana do Frade aos supostos enfeitiçados como elemento que teria sido utilizado para
realizar o malefício. No caso, o coração estava amarrado com linhas, em clara
similaridade aos efeitos que teriam sido causados pelo feitiço. Objetos que tivessem tido
contato com defuntos ou até mesmo partes de seus corpos eram também muito
utilizados em malefícios, como ocorreu neste caso. De acordo com Francisco
Bethencourt, era muito forte a crença de que as almas dos finados permaneciam muito
ligadas ao mundo terreno e estavam, por isso, sujeitas à manipulação através da
magia.281
Segundo Jacques Le Goff, a crença na possibilidade (a até mesmo necessidade)
de ser solidário para com os mortos através de orações e sufrágios, que se enraizou entre
os séculos IV e XI, foi fundamental para o aparecimento da idéia de purgatório. A
consolidação de um terceiro lugar conectado ao mundo dos vivos possibilitou a difusão
de crenças a respeito da influência dos espíritos dos mortos no mundo terreno.282
278
BETHENCOURT, Francisco, op. cit, pp. 73-74.
279
Liuro da Visitação, p. 75
280
Ibid., p. 75.
281
BETHENCOURT, Francisco. op. cit., p. 148.
282
LE GOFF, Jacques. O nascimento do purgatório. Lisboa: Estampa, 1993, pp. 164-165.
107
Isabel de Barros, casada, 50 anos, procurou Ana do Frade para curar seu marido,
que estava “infeytiçado e fora de seu juízo”283. Para retirar os feitiços, Ana do Frade
pediu a Isabel um crastão284. A declarante sugeriu que fosse utilizado um crastão que ela
tinha “de dizimo de huma renda de huma Igreja”, ao que a feiticeira negou, pois “nam
avya de ser de cousa dizimada ha Deus se nam comprada por dinheyro.”285 Isabel
alegou ter ficado assustada e com a impressão de que o crastão era para ser oferecido ao
diabo, mas deu o dinheiro para que a feiticeira o comprasse. Alguns dias depois Ana do
Frade voltou com objetos que seriam os utilizados no feitiço contra seu marido,
afirmando:
Que os feytiços lhe fizera huma sua mulata catiua, que andaua com o dicto
seu marydo. A qual mulata estaua, neste tempo, vendida em a cydade de
Lixboa, ao amo do Marques de Villa Real, que se chama Pero Annes. E ella,
declarante, a mandou vender polla achar com o dicto seu marydo. E que era
verdade que a dicta mulata tynha os feytiços em huma arqua de castanho. E
que ella, Ana do Frade encantara a fechadura da dicta arqua, onde os feytiços
estauam, pera que a nam podesem fechar e lhos tirara. Os quaens mostrou
logo a ella, declarante, que eram: Duas mãos de toupeyra, a seu ver atados os
dedos polegares, e hum coração de galo, e hum panynho cru cuzeyto com
muitos pontos com lyços de tycydeyra.
Ana do Frade disse ter desfeito o malefício e aconselhou Isabel a jogar o suposto
feitiço em uma lagoa que nunca secasse. Deve-se considerar aqui o poder de purificação
que se atribuía à água. A declarante afirmou que após perceber que seu marido havia
melhorado rapidamente resolveu confirmar a história que Ana do Frade lhe contara e
escreveu à ama do Marquês de Vila Real. A resposta recebida por Isabel confirmava
283
Liuro da Visitação, p. 91.
284
De acordo com Félix Alves Pereira e Fernando Braga Barreiros, crastão significa carneiro. Cf:
BARREIROS, Fernando. Vocabulário barrosão. Revista Lusitana. Lisboa: Livraria Clássica, vol. XX, pp.
137-174, 1917.; PEREIRA, Félix. Glossário dialectológico dos Arcos de Valdevez. Revista Lusitana.
Lisboa: Livraria Clássica, vol. XX, pp. 239-256, 1917.
285
Liuro da Visitação, p. 91.
108
que a mulata possuía então uma arca que desaparecera pouco tempo antes, o que
suscitou muitas reclamações por parte da escrava.
Outra denúncia contra Ana do Frade foi feita por Maria Pires, casada, 55 anos,
que a teria procurado para saber notícias de seu marido, que havia partido para o
Maranhão havia 9 anos. Ana do Frade pediu a Maria meio vintém e o colocou em uma
bacia cheia de água. Ao entregar o meio vintém, Maria quis testar seus poderes e contou
a ela uma mentira: “Que o dicto seu marydo fora em huma nau com hum seu irmão,
della, e que nam sabya se era vivo, se morto!”286. A declarante confessou a Pedro
Álvares de Paredes que seu irmão não havia partido junto com seu marido e ela sabia
que ele estava vivo, apenas não sabia onde estava. Na manhã seguinte, a feiticeira deu a
resposta a Maria:
Que ella lhe mentira e que seu marydo era viuo e que a nao era desfeyta e que
tinha manceba e filhos. E ella, declarante, lhe disse: Que seria alguma negra!
E a dicta feyticeyra lhe tornou: Que era mays fermosa que ella – o que lhe
disse, tirando de hum cabaço hum papel o oulhandoo ao sol, por que então.
Dizendolhe mays: Que vinha ella já tarde pera ho ella fazer vir, por que
estava jaa muito inarnyçado na terra, que serya mao de vir. E, porem, que se
ella, delclarante, desse dinheyro pera hum cabrão grande, que marydasse bem
as cabras, que ella ho farya vir. E, porem, que ella avya de furtar o bode. E
que despois ho avya de pagar a seu dono do dinheyro que ella, denunciante,
desse. Por que aquelle cabram o querya ella pera o dar a trezentos e sesenta e
seys diabos. Pedindolhe mays farellos pera elles, por que ella avya de mandar
aquelles diabos onde ho dicto seu marydo estaua, a buscar os feytiços, que
huma molher lhe lá tinha feytos, pera que lhos trouxese.287
Dois meses depois, Ana do Frade procurou Maria com aquilo que seriam os
feitiços, trazidos do Peru, onde estaria seu marido, pelos diabos que comeram o cabrão
oferecido. Os feitiços consistiam em:
Ana pediu que Maria cortasse os feitiços em pedaços bem pequenos e disse que
depois os deixaria em um atoleiro, acrescentando ainda que seu marido estava rico e em
breve voltaria para buscá-la. Mais uma vez pode-se observar aqui como a denunciante
parecia querer afirmar a eficácia do ritual realizado por Ana do Frade e contou a Pedro
Álvares de Paredes que, depois de algum tempo, seu marido regressou.
286
Ibid., p. 92.
287
Ibid., p. 92.
288
Ibid, p. 93.
109
O método utilizado por Ana do Frade para saber o paradeiro do marido de Maria
foi a hidromancia, a adivinhação pela água. Já foi dito acima que a água era considerada
elemento purificador, mas também era utilizada em rituais de adivinhação, pois, devido
a sua transparência, acreditava-se que permitia ver o que estava oculto. Nota-se que para
que algo fosse revelado à feiticeira, foi necessário antes colocar na bacia d´água meio
vintém, como uma forma de compensação para se obter a resposta desejada.
O outro método de adivinhação utilizado pela feiticeira consistiu em olhar para
um papel em direção ao sol nascente, o que pode ser compreendido pelo poder que se
creditava a esse momento em que a luz solar vencia as trevas da noite. Além da
simbologia relativa à luz do dia, deve-se considerar a idéia de que os astros e suas
disposições tinham grande influência na vida humana, além de serem comumente
identificados como a morada de espíritos.289
Ao oferecer a possibilidade de trazer o homem de volta, Ana do Frade fez
aparecer a figura do bode, outro animal muito utilizado para feitiços maléficos devido à
sua identificação com o demônio. O animal era associado à luxúria e à depravação
sexual, características demoníacas por excelência. Esta relação fica ainda mais clara
quando se considera que Ana deixou explícito que Maria deveria furtar um bode “que
marydasse bem as cabras” para ser oferecido a trezentos e sessenta e seis diabos. O
número de diabos para os quais o animal seria oferecido também não era aleatório. O
número 3, o mais utilizado em rituais de feitiçaria, simbolizava a perfeição, a unidade
divina; já o número 6 simbolizava a ambivalência decorrente do caráter imperfeito das
criaturas no sexto dia da criação – ambivalência que poderia pender tanto para o bem
quanto para o mal.290 Daniela Calainho ressaltou, em seu trabalho acima citado, que a
oferenda de animais aos espíritos constituía também uma prática muito comum na
África.291 Assim, somando-se a oferenda do bode à constante presença de corações
animais nos rituais realizados por Ana do Frade, pode-se considerar a influência da
religiosidade africana em suas práticas.
O ato de furtar o bode pode ser considerado como parte formal do ritual, uma
vez que a declarante deveria pagar o prejuízo posteriormente. Através da oferta do bode,
a feiticeira tentava fazer com que os diabos,292 ainda muito suscetíveis às coisas terrenas
289
BETHENCOURT, Francisco. op. cit., p. 143.
290
Ibid., p. 136.
291
CALAINHO,Daniela. op. cit. p. 86.
292
Segundo José Pedro Paiva, as almas dos mortos foram progressivamente assimiladas, “num processo
que não é cronologicamente datável” a diabos ou demônios. Tal identificação teria sido primeiramente
110
e por isso manipuláveis, trouxessem os feitiços feitos ao marido da declarante. Os
feitiços que Ana do Frade apresentou a Maria consistiam em unhas e cabelos,
considerados elementos de grande poder mágico, pois acreditava-se que continuavam a
crescer depois da morte, pedaços de roupas, que muito provavelmente Maria acreditou
que fossem de seu marido, além de um coração animal, que poderia ser compreendido,
de acordo com a lei da similaridade, como elemento que simbolizava o coração do
homem que sua manceba desejava prender, o que pode ser conjugado ao fato de ter sido
costurado com fios dos mais resistentes: o coração estaria preso.
Mais uma vez foi citada nas denúncias a prática de cortar os objetos que
constituíam o feitiço para pôr fim a seus efeitos mágicos e depois entregá-los à natureza.
De certa forma, pode-se perceber que Ana do Frade seguia uma lógica, uma espécie de
padrão. Muitos foram os elementos e atos simbólicos que se repetiram nas diversas
denúncias, o que permitiu um melhor entendimento de suas práticas.
Ana do Frade foi presa a 24 de dezembro de 1566 pelo Tribunal de Coimbra e
seu primeiro interrogatório foi a 4 de janeiro de 1567. Ana Álvares declarou que era
viúva e tinha muitos filhos e netos e afirmou ao Inquisidor que tinha 120 anos. Cabe
lembrar que Pedro Álvares de Paredes foi responsável apenas pela Visitação ao
Arcebispado de Braga; o primeiro interrogatório de Ana do Frade foi realizado pelo
Inquisidor Manoel de Quadros293. A processada afirmou diversas vezes estar muito
velha e caduca, como uma tentativa de comutar sua pena – estratégia que, de certa
forma, teve êxito. Algumas das pessoas que a denunciaram em 1565 disseram acreditar
que ela tinha então 80 anos, idade que pode ser considerada muito avançada para uma
mulher do século XVI com parcos meios de sobrevivência. Infelizmente, não há mais
informações sobre sua verdadeira idade; pode-se apenas supor que ela aparentava ser
bastante idosa à época da Visitação. Ana disse que se confessava regularmente e ia à
missa todo domingo ou dia santo. Além disso, pronunciou as quatro principais orações
cristãs, mas afirmou que aquilo era tudo o que sabia da doutrina.
Ana do Frade confessou que dava a algumas mulheres que a procuravam em
busca de meios para arranjar casamento alguns pós para serem misturados ao vinho e
ensinava-lhes que em seguida deviam oferecer a bebida ao homem com quem
elaborada pela cultura erudita e pelos agentes do movimento de repressão às práticas de religiosidade
popular e posteriormente difundidas pela população. Cf: PAIVA, José Pedro. op. cit., pp. 140-141.
293
Licenciado em Cânones por Coimbra, foi nomeado Inquisidor em Évora a 25 de novembro de 1559 e
em Coimbra a 29 de setembro de 1565. Foi nomeado deputado do Conselho Geral a 14 de dezembro de
1570 e deputado na Mesa de Consciência e Ordens até 1583, quando passou a reformador da
Universidade de Coimbra. Cf: MEA, Elvira. op. cit., p. 108.
111
desejavam se casar, repetindo as seguintes palavras: “assim como tu bebes deste amie
assim morras por amor de mim e cases comigo”294, argumentando que o fazia para
receber em troca algo para comer ou vestir, e acrescentou ainda que “nunca chamou por
diabo nem ho conversou”295
Alguns dias depois, Ana do Frade pediu audiência e confessou ao Inquisidor
Manoel de Quadros ter realizado pacto com o demônio:
avera quinze anos pouco mais ou menos que guarda sua memória por que vai
já caduca por ella ser de muita idade que o demonyo lhe apareceu huma noite
a sua porta em figura de gato pardo e lhe disse que quando ho ouvessemister
ho chamasse por que elle verya logo e que queria ella que cada vez que ella
quisesse lhe oferecesse hum bode ou huma cabra o que lhe ella offereceu ao
dito tempo ha esta parte cinco vezes e chamava ho demônio quando ho avia
mister e o demonyo vinha e fazia o que lhe ella mandava como fez quando
foy buscar huns feitiços que estavam em Lixboa na arquada huma mulata que
fora de Isabel de barros de Viana e assim outras vezes quando lhe
[perguntava] por alguma cousa lhe dizia e avera quynze anos a esta parte
vinha o demonyo ter com ella cada semana huma vez denoyte as altas horas e
lhe fazia muitos afagos e tinha parte com ella por seu corpo fazendo como
hum homem faz a huma molher posto que quando dormia com ella ella não
tinha nysso gosto por elle ser fryo como neve mas fryo pello afagar para lhe
elle dizer o que ella delle quysesse e lhe perguntasse E declarou que quando
offerecia ao demônio os bodes lhes offerecia como aos santos e senhor a
quem estava emtregue para fazer tudo o que lhe mandasse [...] e se quer tirar
da servidão do demonyo.296
A maneira como Ana do Frade falou sobre suas conversas com o demônio e
sobre a cópula que com ele mantinha demonstra como pelo menos alguns elementos do
estereótipo inquisitorial do pacto demoníaco eram conhecidos. No entanto, a aparente
espontaneidade com que ela falou sobre o assunto no processo pode ser enganosa. Em
outro interrogatório, como veremos adiante, Ana declarou que foi pressionada pelo
alcaide a se confessar, o que era proibido pelo Regimento de 1552. Além disso, é
estranho que os inquisidores não tivessem proferido a sentença de Ana do Frade após
essa confissão.
A 28 de maio de 1567, Ana pediu nova audiência para negar o que havia dito na
confissão anterior. No entanto, quem ouviu sua confissão e a interrogou foi o Inquisidor
Luis Álvares de Oliveira297, e não mais Manoel de Quadros, responsável pelos dois
interrogatórios anteriores. Ana declarou que enganava as pessoas que vinham procurá-la
em busca de ajuda e ensinava-lhes procedimentos rituais para que alcançassem os
294
ANTT, Inquisição de Coimbra, proc. 926, f. 33.
295
Ibid., f. 33.
296
Ibid., ff. 35-36.
297
Licenciado em Cânones, foi desembargador da Relação Eclesiástica de Lisboa, tornou-se Inquisidor de
Coimbra a 18 de maio de 1567 e deputado em Lisboa a 28 de junho de 1568. Cf: MEA, Elvira. op. cit.,
1997, p. 108.
112
objetivos desejados e alegou que agia assim porque ganhava em troca alimentos e bens
materiais. Ela oferecia às mulheres que a procuravam em busca de um marido alguns
pós chamados por ela de amie que deviam ser oferecidos aos homens misturados à
comida ou à bebida, como já foi dito, e acrescentava que era necessário que elas
repetissem: “quem te cumesse amye o teu amor moura por amor de mim e não possas
com outrem casar nem me posa o teu amor deyxar”.298
Outra prática ensinada às mulheres que a procuravam para que conseguissem
casar com quem desejavam consistia em oferecer ao homem três ovos, os quais deviam
passar primeiro em seus corpos, e ao mesmo tempo repetir “ovo ho passo quy quem te
comer o meu amor lhe morra por amor de mym”.299 O ovo é ainda hoje considerado
símbolo do nascimento e da criação. Apesar de seu uso mais freqüente ser relacionado à
prática da hidromancia, é possível pensar sua aplicação em feitiços de benquerença
como símbolo da gestação de algum tipo de sentimento amoroso. Ana do Frade citou
ainda outra possibilidade de encantamento, sobre a qual, infelizmente, não há maiores
informações, somente que se deveria repetir, referindo-se mais uma vez ao homem com
que se desejava casar, “vemceu o dragão o dragão a serpente o lyam assym lhe vença a
vontade e ho coração”.
Luis Álvares de Oliveira perguntou a Ana como ela havia tirado os feitiços da
arca da mulata que fora cativa de Isabel de Barros e levou-os até ela. É possível que o
Inquisidor quisesse naquele momento alegar que Ana não poderia tê-lo feito sozinha e
então acusá-la de pacto demoníaco. Francisco de Vitória, uma das autoridades utilizadas
pelos inquisidores portugueses, em suas Relecciones Teológicas, se posicionou no
debate sobre a possibilidade dos demônios moverem os corpos. Com base em Santo
Agostinho, que afirmou no 3º. Livro de De Trinitate que os efeitos produzidos pelos
demônios têm origem em um movimento local, Vitória defendeu que o vôo noturno das
feiticeiras ao sabá, bem como outros prodígios do gênero, poderiam ser apenas ilusão
dos sentidos, mas poderiam também ser reais pois, em sua opinião, os demônios tinham
o poder de mover os corpos.300
298
ANTT, Inquisição de Coimbra, proc. 926, f. 38.
299
Ibid., ff. 38-39.
300
VITORIA, Francisco de. Relecciones Teológicas. Lyon: 1557. Madri: La Editorial Católica, 1960, pp.
1281-1284. Martin Azpilcueta Navarro, em seu Manual de confessores e penitentes que clara e
brevemente contem a universal decisam de quase todas as duvidas quem em as confissões soem ocorrer
dos pecados, absolvições, restituições, censuras e irregularidades, de 1560, afirmou ser contra o primeiro
mandamento crer que as bruxas pudessem ir corporalmente ao sabá e que mesmo que o demônio as
pudesse levar - o que segundo ele ocorria com pouca frequência - ele o faria apenas com os seus espíritos
mas não com o corpo, sendo necessária a permissão de Deus. Cf: PAIVA, José Pedro. op. cit., p. 42.
113
Mas deve-se também considerar que, devido a um certo ceticismo a respeito dos
poderes demoníacos no mundo terreno, idéia já apresentada acima, o Inquisidor não
acreditasse que os objetos apresentados por Ana a Isabel fossem feitiços e quisesse
condená-la como embusteira.
No entanto, Ana do Frade permaneceu afirmando que havia enganado Isabel de
Barros e declarou que pediu a uma criada dela alguns pedaços de roupa do enfermo,
colocando-os em quatro pequenos bizalhos301 e mostrou-os a Isabel como se fossem
feitiços feitos a seu marido pela mulata, que ela havia buscado em Lisboa.
Na tentativa de se livrar da sentença de pacto, ela declarou ainda:
Que ella não for a Lixboa nem o diabo lhe trouxe nenhuma cousa [...] que era
verdade que ella confessara que o demônio tivera parte com ella por medo do
alcayde E assym que lhe offerecia cousas como a senhor mas que tal não é
verdade e he mentira e que a verdade era que ella falara com o demonio por
muitas vezes e elle lhe vinha falar em huma emcruzilhada as quartas e sextas
fyras e ella lhe perguntava por algumas cousas que eram. furtadas e perdidas
e elle lhe dizia per onde hiam as ditas cousas e vindolhe assim as pessoas a
perguntar por ellas ela lhe dizia o que o diabo lhe tinha dito e ellas as hiam
buscar e as achavam e lhe davam por isso dinheyro e isso somente he verdade
por que ella não tinha o demonyo por senhor nem tyvera parte com ella e que
era verdade que estando ainda presa neste carcer o diabo viera pera lhe falar e
vinha em figura de moço [...] e meteu as pernas pellas grades da janela de
sua prysao com o trazeiro pêra diante e lhe dissera que não podia entrar por
302
que a cela era sagrada e isto foy aly perto da meya noyte alta
Ana tentara então negar que tinha o diabo como senhor e que mantinha cópula
com ele, mas, de acordo com seu depoimento, o diabo ainda lhe prestava informações e
continuava a procurá-la em sua cela, o que era compreendido pelos inquisidores como
possível somente através do estabelecimento de pacto demoníaco.
Com relação aos encontros de Ana com o diabo se realizarem às quartas e
sextas-feiras em uma encruzilhada, é preciso destacar que a sexta-feira, originalmente o
dia de Vênus, era considerada dia privilegiado para as práticas de feitiçaria devido a sua
relação com a deusa do amor, bem como à simbologia do sexto dia da criação. Já a
quarta-feira era valorizada devido à sua correspondência com Mercúrio, deus do
comércio e do contrato.303
Por fim, os Inquisidores acabaram por aceitar como verdadeira a primeira
confissão de pacto demoníaco, ressaltando que Ana teria dito que “quando oferecia ao
301
A palavra bizalho significa bolsa pequena. É possível estabelecer uma analogia entre os bizalhos
apresentados por Ana do Frade e as bolsas de mandinga analisadas por Daniela Calainho em seu trabalho
anteriormente citado – no entanto, o bizalho de Ana do Frade foi utilizado para um malefício, enquanto as
bolsas de mandinga eram usadas para proteção. Cf: CALAINHO, Daniela. op. cit., pp 171-188.
302
ANTT, Inquisição de Coimbra, proc. 926, ff. 40-41.
303
BETHENCOURT, Francisco. op. cit., pp. 135-136.
114
demônio os bodes lhos oferecia como a deus e senhor a que estava entregue para fazer
tudo que lhe mandasse e que tinha com elle comunicação”304. No entanto, consideraram
“suas confissões e reuogações avendo porem respeito a qualidade de sua pessoa e ser
quasi caduca por sua muita idade com outras considerações que se no caso ouverão e
muita sospeita que finalmente contra ella das duas confissões e autos resulta”305, e
condenaram Ana do Frade a abjurar de veemente suspeita na fé e a permanecer no
cárcere pelo tempo que considerassem necessário para que fosse doutrinada. Ana foi
solta a 15 de dezembro de 1567.
Voltando às denúncias feitas à Visitação, Isabel Vieira, cristã-velha, casada, 40
anos, procurou Isabel Gonçalves, já aqui citada, por se sentir mal e suspeitar que estava
enfeitiçada. Para averiguar o que havia de errado com Isabel, a feiticeira lhe pediu um
ourello306 e o mediu aos palmos, e, por fim, disse a ela que “tinha o coração e as trypas
atadas”307 e que estava ligada. De acordo com a lei do contato, o chinelo de Isabel
poderia fornecer informações sobre seu estado. A feiticeira disse ainda que:
ella tinha os feytiços que lhe fizerão, dentro de huns cabeçães com huma
colçodra e duas almofadas. E que lhe meteram dentro naquelles lugares,
pedaço de saya e da camysa sua e bocados de pão e carne e de portas de
Igreja. E que quando lhos fossem tirar, acharya que isto era asy. E que lhos
tirase huma sua tya, que era irmaa de sua may. E que ella os avya de tirar,
tendo prata ou ouro consigo, porque lhe nam empese[m] os feytiços . 308
304
ANTT, Inquisição de Coimbra, proc. 926, f. 45.
305
Ibid., ff. 45-46.
306
De acordo com Oscar de Pratt, ourelo significa chinelo; já segundo Serra Frazão, significa suspensório.
Tomamos aqui a posição de Oscar de Pratt por parecer mais verossímil. Cf: PRATT, Oscar de. Notas à
margem do Novo Dicionário. Revista Lusitana. Lisboa: Livraria Clássica, vol. XVIII, pp. 65-162, 1915.;
FRAZÃO, F. Santos. Calão minderico — Alguns termos do «calão» que usam os cardadores e
negociantes de Minde, concelho de Alcanena. Revista Lusitana. Lisboa: Livraria Clássica, vol. XXXVII,
pp. 101-143, 1939.
307
Liuro da Visitação, p. 24.
308
Ibid., p. 25.
309
MAUSS, Marcel. op. cit., p. 100.
115
Isabel Gonçalves foi denunciada também em Viana do Foz de Lima por
Margarida Anes, cristã-velha, viúva, 40 anos, que enviou à primeira, por intermédio de
um homem chamado Pero Roiz, uma peça de roupa de seu genro que havia partido para
as Antilhas para saber se ele estava vivo. Isabel mandou dizer a Margarida que seu
genro havia morrido no mar – informação que, posteriormente, foi confirmada por
Margarida. Infelizmente a denúncia não oferece mais detalhes.
A 9 de fevereiro, em Braga, ainda no tempo da Visitação, Pedro Álvares de
Paredes mandou chamar Maria Diaz, cristã-velha, solteira, tecedeira, 60 anos, e
perguntou a ela “Se sabya de alguma pessoa ou pessoas, quem tendo feyto concerto com
o demonyo, ou invuocassem e lhe fizessem sacrifícios, oferecendolhe candeas, sal e
310
outras cousas?” Infelizmente não sabemos a razão pela qual o Inquisidor convocou
Maria Diaz. Não há registro anterior de seu nome nas denúncias feitas à Visitação,
somente de uma das pessoas por ela denunciadas, Leonor Gonçalves (já aqui citada).
Talvez Pedro Álvares de Paredes tenha também analisado casos de visitas pastorais
anteriores como um ponto de partida para a atividade inquisitorial, o que, por sua vez,
endossa a idéia da existência de uma relação entre as visitas pastorais de D. Frei
Bartolomeu dos Mártires e as denúncias de feitiçaria à Visitação Inquisitorial de 1565.
Maria declarou que Leonor Gonçalves teria lhe ensinado uma devoção ao diabo:
Esta Lyanor Gonçaluez lhe ensynou, vyndo a sua casa, deytando no lar hum
pouco de sal, e o cobryo com cinza e borralha, e dizendo: Eu deytote aquy,
nam pera meu comer nem pera prestar, se nam pera o mor diabo que no
Inferno está, e pera Barzabul, e Barrabas e Cayfas, e Lúcifer e pera
Caldeyram. E disse outras palauras, que lhe nom lembrão. Dizendo mays:
Que lhes pedia e rogaua aos diabos que todos se ajuntasem e fossem em
busca do homem que lhe ella pedia e lho trouxesem aly. 311
Maria Diaz disse ainda que ensinara a prática a outras duas mulheres, o que
retoma a idéia apresentada acima de que havia comunicação entre as feiticeiras da
região: Elena Gonçalves, já aqui citada, e Isabel Gomes, sobre quem não há maiores
informações.
O primeiro ponto a ser aqui observado é o caráter doméstico do ritual. A
associação ao calor e fogo do inferno fazia do lar um dos pontos privilegiados para a
realização de ritos domésticos, principalmente aqueles que tinham como finalidade a
invocação das forças infernais.
310
Liuro da Visitação, p. 35.
311
Ibid., p. 35.
116
Segundo Francisco Bethencourt a invocação de demônios era geralmente
realizada no plural e utilizava os nomes citados na Bíblia, como Satã, Satanás, Lúcifer,
Belzebu, Barrabás ou Caifás,312 como no ritual descrito acima.
É importante observar que todas as denúncias feitas à Visitação ao Arcebispado
de Braga abordaram a feitiçaria como caracteristicamente ritualística, diferente, por
exemplo, das denúncias analisadas pelo historiador José Pedro Paiva em sua pesquisa
sobre a paróquia de S. Martinho do Bispo313, nas quais as acusadas de feitiçaria
apareciam como a própria fonte do mal e podiam causar a doença e a morte com apenas
um toque, uma ameaça ou um olhar. Já nas denúncias aqui analisadas, as feiticeiras
eram mediadoras entre o divino/sobrenatural e o mundo terreno, a quem se atribuíam
poderes como o domínio sobre vontades e sentimentos alheios, sobre o corpo humano, a
vidência e a comunicação com espíritos através da realização de rituais que observavam
princípios e valores simbólicos para atingir os objetivos desejados.314 As feiticeiras
eram procuradas para a resolução de problemas cotidianos para os quais a religião
oficial não oferecia a certeza de uma resolução imediata.
Além desta distinção a respeito do papel da feiticeira como mediadora, é preciso
acrescentar que a figura demoníaca apareceu na maior parte das denúncias, o que vai ao
encontro da idéia de que a atividade pastoral desenvolvida por Fr. Bartolomeu dos
Mártires teve um efeito demonizador sobre as práticas de religiosidade popular na
região.315 Como foi demonstrado aqui, algumas das mulheres citadas nas denúncias
haviam já sido presas pelo Arcebispo pelo delito de feitiçaria. Assim, não só o número
incomum de denúncias de feitiçaria, mas o caráter especifico dos procedimentos e
rituais analisados e as informações contidas nas denúncias e processos a respeito das
severas punições conferidas pelo Arcebispo às condenadas por feitiçaria podem ser
312
BETHENCOURT, Francisco. op. cit., p. 144.
313
PAIVA, José Pedro. op. cit., pp. 237-329.
314
A diferença apontada aqui pode ser melhor compreendida através da distinção elaborada por Evans-
Pritchard em seu estudo sobre os Azande. A bruxaria era, na sociedade zande, uma qualidade intrínseca,
orgânica; não havia ritos ou encantamentos, o mal era causado por um ato psíquico, ao contrário da
feitiçaria, que consistia exclusivamente na execução de ritos mágicos. Cf: EVANS-PRITCHARD, E.E.
Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
315
É possível estabelecer uma relação entre o processo de demonização ocorrido no Arcebispado de
Braga e aquele descrito por Carlo Ginzburg em Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos
séculos XVI e XVII. Os processados benandanti lutavam contra bruxos e feiticeiros em defesa das
colheitas como fizeram seus pais e avós séculos antes da ação inquisitorial da Época Moderna. Ginzburg
concluiu que essa prática gradativamente foi assimilada, pelos inquisidores, a um ritual de bruxaria, e os
acusados terminaram por assumir a relação herética estabelecida pela Inquisição e pelo discurso do poder
repressor. Cf: GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e
XVII. São Paulo: Companhia da Letras, 1988.
117
indicativos de que sua atividade pastoral estava voltada para a erradicação deste delito.
Assim, acredita-se que a feitiçaria constituía um dos objetos privilegiados da vigilância
pastoral levada a cabo no Arcebispado de Braga por Fr. Bartolomeu dos Mártires -
situação muito diferente da própria ação do Santo Ofício português - o que, por sua vez,
contribuiu para que estas práticas fossem compreendidas pela comunidade como grave
delito e logo denunciadas quando da chegada do braço inquisitorial à região.
Por fim, devemos ressaltar que o caso bracarense não contradiz a idéia defendida
por especialistas no tema, como Bethencourt e Paiva, de que a feitiçaria era um delito
pouco valorizado pela Inquisição portuguesa. No entanto, a análise da ação local de D.
Frei Bartolomeu dos Mártires permite pensar que, se o delito de feitiçaria não era
valorizado pelo Santo Ofício português, este não foi um ponto de vista comum a todas
as instâncias e membros da Igreja Católica em Portugal.
118
Considerações finais
119
Os delitos ocultos, principalmente aqueles cometidos por ignorância, como,
segundo o Arcebispo, era o caso dos cristãos-novos, deveriam ser absolvidos no foro da
consciência, sem que o indivíduo fosse publicamente exposto. A relação entre o bispo e
suas ovelhas deveria ter, segundo Fr. Bartolomeu, um caráter paternal, que aproximasse
as duas partes. Apenas nos casos mais graves e para os quais não se encontrasse
esperança o bispo deveria aplicar penas mais severas e expor o delinquente à
comunidade. Este era o caso dos que cometiam o delito de feitiçaria, como vimos
através dos exemplos de Ana do Frade, Maria Afonso, Branca Anes e Isabel Gonçalves,
presas e expostas à comunidade por este crime. O Arcebispo tinha objetivos e métodos
muito diferentes daqueles que caracterizavam a ação inquisitorial e contra eles se bateu
em diversos momentos, à exceção da ocasião em que a ação do Santo Ofício podia
ajudá-lo, como foi o caso da Visitação de 1565. O governo de Bartolomeu dos Mártires
sobre Braga foi, nas palavras de José Pedro Paiva, uma via alternativa aos poderes do
Santo Ofício, ou, como sugeriu Marcocci, expressão dos conflitos entre inquisidores e
bispos pelo controle das consciências. A luta pela afirmação da autoridade episcopal e a
ação diferenciada em matéria de heresias permitem questionar a amplitude da idéia de
convergência de interesses entre dois poderes que, justamente por terem como objetivo
comum a uniformização da fé, se viram em disputa pela autoridade sobre a massa de
fiéis. A absolvição no foro da consciência (que remete mais uma vez à afirmação da
autoridade episcopal) e a desvalorização dos erros dos judaizantes constituíram métodos
para minar o poder do Santo Ofício.
Como se pode perceber através de alguns de seus escritos, como o Catecismo de
1564, as memórias sobre o Concílio Provincial, de 1566, e o tratado que se perdeu,
dedicado à bruxaria e às superstições, a feitiçaria e o terror do assalto demoníaco sobre
o mundo terreno constituíram grandes preocupações para o Arcebispo. Estes temores
eram transmitidos aos fiéis através dos sermões e da devassa pastoral, a qual
apresentava as diversas práticas que poderiam ser associadas à feitiçaria, a gravidade do
delito e a consequente necessidade de denunciá-lo. A partir do momento em que o delito
de feitiçaria passou a aparecer de maneira mais incisiva nos sermões e interrogatórios,
foi consequentemente denunciado com mais frequência.
Os sermões e as visitas pastorais foram o principal instrumento utilizado pelo
Arcebispo para erradicar o pecado de seu rebanho, com relativo êxito como se procurou
demonstrar. O medo que os sermões incutia na população do Arcebispado e a ênfase
dada ao delito de feitiçaria durante as visitas episcopais encontrou expressão nas
120
devassas pastorais. Os dados das visitas sobre as quais temos informações indicam a
relevância que este delito ganhou no período de Bartolomeu dos Mártires.
Assim, tentamos aqui demonstrar como a atividade desenvolvida por
Bartolomeu dos Mártires criou uma dinâmica diferenciada no Arcebispado de Braga. A
insistência sobre o delito de feitiçaria e sobre a presença demoníaca entre os homens
fizeram com que estas práticas, certamente muito difundidas por todo o território
português, fossem denunciadas ali com maior frequência, situação diversa da maior
parte do Reino, que, sob a insistência do Santo Ofício sobre as práticas criptojudaicas,
perseguiu massivamente os cristãos-novos e suas práticas consideradas suspeitas.
Dessa forma, concluímos que este estudo de caso permite o enriquecimento dos
estudos sobre feitiçaria em Portugal, uma vez que, sem questionar a hipótese geral de
que o Santo Ofício não priorizou a perseguição a este delito, torna possível o
questionamento a respeito da abrangência deste pressuposto quando passavam a ser
colocados em jogo outros setores da Igreja Católica que, da mesma forma que o Santo
Ofício, tinham como objetivo o controle das consciências e comportamentos dos
indivíduos.
121
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