Você está na página 1de 293

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

INCÊNDIOS DA ALMA:
A beata Maria de Araújo e a
experiência mística no Brasil do
Oitocentos

Edianne dos Santos Nobre

Rio de Janeiro
2014
Edianne dos Santos Nobre

INCÊNDIOS DA ALMA:
A beata Maria de Araújo e a experiência mística no
Brasil do Oitocentos

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em


História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,
Instituto de História, como parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de Doutor em História Social.

Orientadora: Profa. Dra. Jacqueline Hermann

Rio de Janeiro
2014

2
Incêndios da Alma: a beata Maria de Araújo e a experiência mística no
Brasil do Oitocentos

Edianne dos Santos Nobre

Orientadora: Profa. Dra. Jacqueline Hermann

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social da


Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Instituto de História, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em História Social.

Banca Examinadora:

_________________________________________________
Profa. Dra. Jacqueline Hermann (Orientadora)
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

_________________________________________________
Profa. Dra. Célia Maia Borges (Avaliadora externa)
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

__________________________________________________
Profa. Dra. Leila Mezan Algranti (Avaliadora externa)
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

___________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Régis Lopes Ramos (Avaliador externo)
Universidade Federal do Ceará (UFC)

__________________________________________________
Prof. Dr. Wiliam de Sousa Martins (Avaliador interno)
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Rio de Janeiro
Março de 2014

3
Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Nobre, Edianne S..


Incêndios da alma: a beata Maria de Araújo e a experiência mística no
Brasil do Oitocentos. / Edianne dos Santos Nobre. – 2014.

xv p. f. 292 : il.; 31 cm.

Tese (Doutorado) – UFRJ/ Instituto de História/ Programa de Pós-graduação


em História Social, Rio de Janeiro, 2014.
Orientadora: Profa. Dra. Jacqueline Hermann
Referências bibliográficas: f.261-271.

1. Maria de Araújo. 2. Padre Cícero. 3. Igreja católica 4. Mística


feminina. 5. Século XIX. I. Hermann, Jacqueline. II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Programa de Pós-Graduação em História Social. III. Título.

CDU 291.35(813.1)

4
A minha avó Ana Guerra, que partiu cedo demais.

A meu pai Edmilson Nobre, que está sempre comigo.

5
AGRADECIMENTOS

Foi em 2004 que comecei a contar a história de uma beata e de um padre que viveram
no Vale do Cariri no final do século XIX, e ainda não encontrei a fórmula. Mas esse exercício
de contar, travado ao longo dos últimos dez anos, foi um grande aprendizado. A história
mudou. Eu mudei muito. Confesso mesmo que houve momentos em que desejei desistir de
contá-la e nesses momentos de crise ela me reencontrava e recomeçávamos juntas. A
narradora e a história: uma transformando a outra, uma aprendendo com a outra, uma
ensinando a outra a não desistir.
Há dez anos me dedico ao tema desta tese: da graduação, passando pelo mestrado e
chegando ao doutorado. Posso dizer que esse é o trabalho de uma vida. E, talvez seja já com
nostalgia que falo sobre a dor e a delícia de escrever essa história. Em meio a vários
obstáculos e percalços do caminho, não posso negar os bons frutos que ela me rendeu. A
experiência de vida, de escrita, os caminhos que percorri, os lugares aonde ela me levou e,
claro, as pessoas que conheci nesses anos e que, direta ou indiretamente, foram importantes na
minha trajetória.
No meio acadêmico, costuma-se chamar carinhosamente a tese de filha. Uma filha que
passamos quatro anos gestando, cuidando, alimentando até que ela finalmente fique pronta
para encontrar o mundo lá fora. Nesse percurso fui ajudada por muitas pessoas que
contribuíram para o crescimento e o fortalecimento desse trabalho. Minha filha não é,
portanto, somente minha, mas também de todos aqueles que com sugestões, críticas e leituras
insistentes contribuíram na tessitura de suas tramas e enredos. Para não me alongar demais
nesses agradecimentos que poderiam durar páginas e páginas, pois tantas foram as pessoas
que me ajudaram, me restrinjo a nomear as pessoas que estiveram mais presentes nos últimos
quatro anos.

À minha família, especialmente, meu pai Edmilson que sempre respeitou minhas
escolhas e que foi meu pilar de sustentação, emocional e financeiro, desde o dia em que decidi
seguir essa carreira.

6
À professora Jacqueline Hermann, minha querida orientadora, que me ensinou lições
importantes: todos os problemas podem ser resolvidos; é preciso ter calma pra enfrentar as
dificuldades que se impõem; não podemos controlar tudo e é preciso agradecer mais. Lições
valiosas como um diamante puro que nunca se romperá.

Ao professor Pedro Vilas Boas Tavares da Universidade do Porto, amável interlocutor


em terras portuguesas, que com seus trabalhos e leituras prévias dos meus textos têm
contribuído enormemente para minha formação.

Aos professores: Marina Caffiero, Claudio Canonici e Roberto Benedetti que me


receberam na Università degli Studi di Roma La Sapienza, leram meu trabalho, me deram
valiosas sugestões e fizeram a minha experiência na Itália mais fácil e tranquila.

Aos professores: Beatriz Catão (UFRJ), Célia Borges (UFJF), Francisco Gomes
(UFRJ), Manoel Salgado (in memoriam), Ralph Della Cava (Columbia NY), Régis Lopes
Ramos (UFC), Virgínia Buarque (UFOP) e William Martins (UFRJ) que ao longo desse
percurso fizeram observações valiosas ao meu trabalho e que me acompanharam, agradeço a
paciência, o carinho e a atenção dispensadas.

Aos diretores dos arquivos: padre Francisco Roserlândio de Sousa, diretor do Arquivo
Histórico Diocesano Padre Antônio Gomes de Araújo (Crato, Ceará), pela incansável ajuda
durante os anos de pesquisa e coleta de fontes. E ao senhor Dr. Daniel Ponziani pelo
acolhimento no Archivo della Congregazioni per la Dottrina della Fede (Vaticano, Itália) e
pela paciência em procurar e separar uma documentação valiosa que mudou os rumos do meu
trabalho.

Aos colegas e professores do Programa de Pós-Graduação em História Social da


UFRJ.

And last but not least:

7
A Jucieldo Alexandre, meu irmão de coração, pela leitura das primeiras versões desse
trabalho e pelo apoio emocional em minhas horas de impaciência, mas também pelos sonhos
compartilhados e pela presença constante, mesmo nas horas mais difíceis.

Aos amigos presentes, ainda que a vida, muitas vezes, impusesse distâncias físicas:
Adrianna Setemy, Aline Carrijo, Aline Monteiro, Kleiton Moraes, Raquel Campos, Regiane
Gouveia, Suellen Mayara e Weder Ferreira, meus queridos anfitriões no Rio de Janeiro, pelas
andanças no Rio boêmio, pelo açúcar e o afeto, a música, a poesia e pela troca de experiências
e conhecimento.

A Regina Maues Machado e Luigi Ghermandi, que me ensinaram o italiano e me


ajudaram com as traduções do material da Capes no início do meu estágio sanduíche.

Aos amigos que compartilharam comigo la dolce vita na Itália: Angela Lauria, Barry
Rutledge, Bruno Pomara, Gioia Sgarra, Giulia Troncoso, Maria Paola de Marchis, Marta
Bizzoni, Violeta Rustarazo e Yllan de Mattos com o desejo que a vida se encarregue de
promover um belo reencontro.

Aos amigos do Cariri e do Seridó, com quem fortaleci laços e que estiveram muito
presentes nos últimos meses de escrita da tese: Brennon Bernardo, Danne Alves, Egberto
Melo, Helder Macedo, Jane Semeão, Joaquim dos Santos, Marcos Antônio Alves, Pryscylla
Cordeiro, Ravena Monte, Roberto Viana, Rosenilson Santos e Sônia Meneses.

E, finalmente, à CAPES pela bolsa de pesquisa concedida durante o Doutorado e pela


Bolsa Sanduíche (PDSE) na Università degli Studi “La Sapienza”. O suporte financeiro foi
fundamental para o desenvolvimento e concretização deste trabalho que me proporcionou
uma experiência inesquecível que sem dúvida, se faz presente nesse trabalho e que eu levarei
pela vida.

A todos, sou muito grata.

8
INCÊNDIOS DA ALMA:
A beata Maria de Araújo e a experiência mística no Brasil do
Oitocentos

RESUMO

Esta tese busca reconstruir a trajetória da beata Maria de Araújo no Brasil em fins do século
XIX, a fim de compreender o seu campo de atuação, bem como os conflitos e as relações
travadas entre ela, seu diretor espiritual, a Diocese cearense e a Santa Sé. Em primeiro de
março de 1889, durante uma vigília na qual Maria de Araújo passara toda a madrugada em
oração, a hóstia sangrou na sua boca durante uma comunhão ministrada pelo padre Cícero
Romão Batista. O sangramento da hóstia foi subitamente considerado como um “milagre”
pelos sacerdotes do povoado e a questão se complicou quando em 24 de abril de 1891, o
médico Dr. Marcos Rodrigues Madeira publicou no jornal “O Cearense” um atestado da
sobrenaturalidade dos fenômenos. Não demorou a se estabelecer um culto em torno do
“Sangue Precioso” que jorrava das hóstias consumidas por Maria de Araújo. O enorme fluxo
de peregrinos chamou a atenção do bispo Dom Joaquim José Vieira que instaurou um
Processo Episcopal a fim de investigar o sangramento da hóstia. Dividido em dois inquéritos,
executados entre 1891 e 1892, o Processo foi enviado para a Santa Sé em 1893. Terminou
com a condenação de Maria de Araújo como embusteira e com a suspensão a divinis do padre
Cícero em 1894. Nesta pesquisa, partimos da hipótese que o fenômeno ocorrido em 1889
marca o início de um processo de construção da experiência mística de Maria de Araújo que
foi interrompida pela Igreja, e, por sua vez, assinala o apagamento da beata da história do
“milagre de Juazeiro” e um posterior deslocamento da crença para a figura do padre Cícero
Romão Batista.

Palavras-chave: Maria de Araújo, Padre Cicero, Igreja Católica, Mística feminina, Século
XIX.

9
INCENDI DELL’ANIMA:
La “beata” Maria de Araújo e l’esperienza mistica nel Brasile
dell’Ottocento

RIASSUNTO

Questa tesi si propone di ricostruire il percorso della “Beata” Maria de Araújo in Brasile
alla fine del secolo XIX secolo. Allo stesso modo, si ragiona sui conflitti e le relazioni che si
stabiliscono tra lei, i sacerdoti che l’hanno sostenuta, la Diocesi e la Santa Sede. La mattina
del primo marzo 1889, nel corso di una veglia, nella quale Maria aveva transcorso la notte in
preghiera, l’ostia perse sangue nella sua bocca quando il reverendo Cícero Romão Batista le
somministrò la comunione. Il sanguinamento dell’ostia fu subito considerato un “miracolo”
dai sacerdoti del villaggio e la questione si fece più complessa quando il 24 aprile 1891, il
medico Dott. Marcos Rodrigues Madeira pubblicò sul giornale “O Cearense” una
certificazione della soprannaturalità dei fenomeni. Ben presto si istituì il culto al “Sangue
Precioso” e l’enorme flusso di pellegrini attrasse l’attenzione del vescovo Joaquim José Vieira
che iniziò un processo per investigare l’emorragia nell’ostia di Maria de Araujo. Il Processo
Episcopale, diviso in due inquisizioni inaugurati tra 1891 e 1892, è stato inviato dalla Santa
Sede. Il processo si concluse con la condanna di Maria de Araújo come bugiarda e con la
sospensione a divinis del reverendo Cícero nel 1894. In questa ricerca, si parte dall’ipotesi che
il fenomeno accaduto nel 1889 ha avviato un processo di costruzione dall’esperienza mistica
di Maria de Araújo, interrotto dalla Chiesa, che segna la sparizione storiografica dalla “beata”
e una conseguente transferenza della devozione al prete Cícero Romão Batista.

Parole chiavi: Maria de Araújo, Prete Cícero, Chiesa cattolica, Mistica femminile, Secolo
XIX.

10
SUMÁRIO

SIGLAS E ABREVIATURAS.................................................................................................... 12
LISTA DE ILUSTRAÇÕES....................................................................................................... 13
LISTA DE ANEXOS............................................................................................................... 14

INTRODUÇÃO: Maria ex machina: a construção de uma personagem................................ 16

CAPÍTULO 1: A SEMENTE DA DISCÓRDIA: O SANGRAMENTO DA HÓSTIA.............................. 30


1.1 O fenômeno em seu contexto: religião e política no Vale dos Cariris........................ 31
1.2. O “milagre” e as reações da Igreja.............................................................................. 47
1.3. Maria de Araújo mise en scène................................................................................... 53
1.4. Um servo obediente: o padre Cícero Romão Batista.................................................. 59

CAPÍTULO 2: COMO SE CONSTRÓI UM PROCESSO EPISCOPAL.............................................. 69


2.1. A primeira Comissão Episcopal: a ilustração a serviço do milagre........................... 70
2.2. José Marrocos e Monsenhor Monteiro: os advogados da “Santa Causa”................... 83
2.3. As outras Marias: damas de honra do Senhor............................................................. 94

CAPÍTULO 3: SEGREDOS DA ALMA QUE O CORPO REVELA................................................... 118


3.1. Brincar com o menino Deus, carregar a cruz do Amado............................................ 119
3.2. Santidade ou soberba? ............................................................................................... 137
3.3. O corpo analisado: o milagre à luz da ciência............................................................ 143
3.4. As armadilhas da fé: o encerramento do primeiro inquérito...................................... 157

CAPÍTULO 4: O SEGUNDO INQUÉRITO E O DECRETO DA SANTA SÉ..................................... 166


4.1. A segunda Comissão Episcopal: a autoridade a serviço da verdade.......................... 167
4.2. A condenação orquestrada: a Carta Pastoral de 1893................................................. 181
4.3. “Prodígios vãos e supersticiosos”: a voz da Santa Sé e a Carta Pastoral de 192
1894...................................................................................................................................

CAPÍTULO 5: AS FABRICANTES DE MILAGRES E O REORDENAMENTO DA CRENÇA............... 207


5.1. “Escreviam o que queriam”: a palavra das beatas...................................................... 209
5.2. “Se eu negar o que disse antes”: o juramento dos padres e a negação da
ciência................................................................................................................................ 220
5.3. O “Lobo do Juazeiro” e a viagem do padre Cícero..................................................... 227
5.4. As fabricantes de milagres: o Relatório final da Santa Sé....................................... 242

Epílogo: A aniquilação de si: “Fazei isto em minha memória” (Lc 22,19)....................... 250

Referências......................................................................................................................... 258
Fontes..................................................................................................................... 258
Bibliografia............................................................................................................ 262

Anexos............................................................................................................................... 273

11
SIGLAS E ABREVIATURAS

ACDF – Archivio della Congregazione per la Dottrina della Fede

APEC – Arquivo Público do Estado do Ceará

ASV – Archivio Segreto Vaticano

SHBMP – Setor Hemerográfico da Biblioteca Pública Menezes Pimentel

SHBN – Setor Hemerográfico da Biblioteca Nacional

CPR – Centro de Psicologia da Religião

CRA – Pasta pertencente ao Fundo CRATO

DHDPG – Departamento Histórico Diocesano Padre Gomes

SAL – Arquivo dos Salesianos

12
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Padre Cícero em Juazeiro. Sem data, Arquivo MIS, Fortaleza, Ceará........... 66

Figura 2: Dom Joaquim José Vieira. Sem data, Arquivo MIS, Fortaleza, Ceará.......... 66

Figura 3: Padre Francisco Ferreira Antero. Arquivo: DHDPG...................................... 80

Figura 4: Padre Clicério da Costa Lobo. Arquivo: DHDPG.......................................... 80

Figura 5: Monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro. Arquivo DHDPG...................... 92

Figura 6: José Marrocos. Arquivo: DHDPG.................................................................. 92

Figura 7: Família do Dr. Juvêncio com Padre Cícero, em destaque, supostamente, a


beata Maria da Soledade. Sem data, Arquivo MIS, Fortaleza, Ceará............................. 116

Figura 8: “Padre Cícero e outros”, em destaque, supostamente as beatas Maria das


Dores (à esquerda com véu) e Maria da Soledade. 1909, Arquivo Donata, DHDPG..... 116

Figura 9: Figura 9: Fotografia da Medalha com a imagem de Maria de Araújo. Rerum 179
Variarum, 1898, n° 128, Parte I. Arquivo Pessoal.

Figura 10: O Pe. Alexandrino de Alencar e sua irmã Mathilde. Arquivo: 179
DHDPG........

Figura 11: Congregação para Doutrina da Fé – Mesa de Cardeais que avaliaram o


caso de Juazeiro. Arquivo: http://www.araldicavaticana.com ........................................ 204

13
LISTA DE ANEXOS

N° 1. Carta do bispo do Maranhão anexada ao Processo Canônico do Bispo Dom


Joaquim José Vieira. Archivo dei Vescovi Regolari, Archivo Secreto Vaticano,
Roma, Itália................................................................................................................. 273

N° 2. Circular Reservada enviada pelo Internúncio Apostólico em 13.01.1890 aos


Bispos do Brasil.......................................................................................................... 274

N° 3. Carta de Dom Joaquim José Vieira ao Internúncio Apostólico Monsenhor


Spolverini em 07.02.1890........................................................................................... 275

N° 4. Apresentação do Processo em Italiano pelo Pe. Francisco Ferreira Antero. in


Rerum Variarum, 1898, n° 128, Parte I. Processo sulla trasformazione della S.
Particola in carne e sangue nella bocca della religiosa Maria de Araújo.
Relazione del p. Ludovico Hickey – Qualif. [Qualificatore] Relne. e Voto del p.
Llevaneras – Consre. [Conselheiro]. Doc. 04............................................................. 277

N° 5. Rerum Variarum, 1898, n° 128, Parte II. Processo sulla trasformazione della
S. Particola in carne e sangue nella bocca della religiosa Maria de Araújo.
Relazione del p. Ludovico Hickey – Qualif. [Qualificatore] Relne. e Voto del p.
Llevaneras – Consre. [Conselheiro] Doc.16............................................................... 279

N° 6. Decreta Universa. S. Suprema Coñgregationis S. O. Decretos de 1892,


1894, 1897 e 1898. ACDF.......................................................................................... 292

14
Eu sou uma pessoa que nasci dentro mato, me criei dentro do mato,
não tive educação nenhuma, só do meu pai e da minha mãe, de rezar
e adorar o Nosso Senhor. É só o que o eu sei... Ainda hoje eu tenho
confiança em Deus do céu... Tive um grande pai que era, igualmente
ao Nosso Senhor, o meu Padrinho Ciço, que era o padrinho da
família toda.

[Minha avó Ana Guerra que partiu em 2011, mas vive nessas páginas,
sendo ela mesma, uma devota, uma mulher beata.]

Começo por avisar: não assumo qualquer responsabilidade pela


exatidão dos fatos, não ponho a mão no fogo, só um louco o faria.
Não apenas por serem decorridos mais de dez anos, mas, sobretudo
porque verdade cada um possui a sua, razão também, e no caso em
apreço não enxergo perspectiva de meio-termo, de acordo entre as
partes. Enredo incoerente, confuso episódio, pleno de contradições e
absurdos, conseguiu atravessar a distância a mediar entre a
esquecida cidadezinha fronteiriça e a capital indo ressoar na
imprensa metropolitana.

[Jorge Amado, Tieta do Agreste, p. 02]

15
“Maria ex machina”1:
a construção de uma personagem

a manhã do dia primeiro de março de 1889, quando o padre Cícero Romão Batista

N ministrou a comunhão a uma beata chamada Maria Magdalena do Espírito Santo de


Araújo, a hóstia consagrada verteu sangue. Esta narrativa inaugura o que eu chamo
de “história oficial” de Juazeiro.2 O fenômeno provocou naquela época inúmeras discussões
entre padres, bispos, médicos e jornalistas que se preocupavam com sua origem do fenômeno.
Embuste, atuação divina ou obra do diabo? O sangramento da hóstia, que logo passaria a ser
considerado como um milagre pela população local foi objeto de uma investigação
empreendida pela Diocese cearense através de um processo episcopal (dividido em dois
inquéritos) executado entre 1891 e 1893.
Entre outras peças, esse processo contém os depoimentos de Maria de Araújo e de
outras oito beatas que narram a experimentação de êxtases, visões, sonhos, revelações
proféticas e viagens feitas a espaços do além – Céu, Inferno e Purgatório. Eram elas: Ângela
Merícia do Nascimento (28 anos, assina o nome), Antonia Maria da Conceição (30 anos,
analfabeta), Anna Leopoldina Aguiar de Melo (19 anos, assina o nome), Jahel Wanderley
Cabral (31 anos, alfabetizada), Maria das Dores da Conceição de Jesus (15 anos, analfabeta),
Maria Joanna de Jesus (33 anos, analfabeta), Maria Leopoldina Ferreira da Soledade (29 anos,
alfabetizada) e Rachel Sisnando de Lima (40 anos, assina o nome).3
Esses relatos me inquietam desde 2004, quando enveredei pelo tema e “descobri” a
história de Maria de Araújo. Principalmente, porque logo notei a ausência deles na
historiografia sobre Juazeiro e o padre Cícero, através da qual pouco se sabe quem é Maria e
nada se pode conhecer sobre as outras mulheres. Além disso, esses relatos de fenômenos

1 Da expressão original: Deus ex machina, do grego, um Deus surgido da máquina, é uma expressão utilizada
para indicar uma solução inesperada, improvável e mirabolante que termina uma história.
2
Situado no sul do Ceará na região conhecida como Cariri cearense, o povoado de Juazeiro foi elevado à
categoria de cidade em 22 de junho de 1911, tendo seu nome alterado para Juazeiro do Norte em 14 de junho
de 1946 para se distinguir da cidade de Juazeiro na Bahia que era mais antiga. Usaremos sempre a grafia
Juazeiro, ressaltando que as citações retiradas das fontes documentais também tiveram sua grafia atualizada.
Entretanto, os títulos de livros ou teses nos quais os autores optaram por utilizar a grafia “Joaseiro” foram
respeitados.
3
Esses dados foram informados no inquérito de 1891.
16
extraordinários aparecem em um momento no qual a Igreja tentava justamente sufocar esse
tipo de manifestação religiosa, considerada exacerbada e supersticiosa.
É o processo de produção desses relatos que investigamos. Antecipadamente,
ressaltamos que essa proposta implica trazer Maria de Araújo e as mulheres para o primeiro
plano de análise, embora isso não signifique que desconsideraremos a relação dessas mulheres
com os outros personagens dessa história. De fato, é a vida de Maria que guiará nossa
narrativa, embora não tenhamos uma pretensão biográfica, no sentido estrito do termo.
No mestrado4 busquei dar visibilidade a essas mulheres quando analisei como os
depoimentos dados por elas nos inquéritos episcopais “construíram” Juazeiro como um
espaço sagrado, e como essa representação conformou diversas práticas de devoção local.
Refletindo sobre esses depoimentos, dei-me conta de que eles pertenciam a uma longa
trajetória de relatos místicos de beatas que remete ao século XII. Analisando-os, perguntei-
me: por que esses relatos similares aos das grandes místicas católicas como Teresa D’Ávila e
Catarina de Siena reaparecem com tanta força no final do século XIX?
Mantendo as devidas proporções de tempo e espaço, os relatos são muito similares. O
agravante deste caso é que os relatos de Maria e das outras beatas foram produzidos a partir
dos inquéritos episcopais abertos para investigar o sangramento da hóstia na boca de Maria de
Araújo, fato considerado por alguns contemporâneos como uma “transubstanciação
eucarística”. Partindo dessas questões, comecei a delinear uma problemática que analisasse
não somente a produção dos relatos a partir dos inquéritos, mas busquei também pensar como
se dá o processo de construção de santidade de Maria e, em que medida, os sacerdotes da
primeira Comissão legitimam esse percurso, posteriormente negado a partir da condenação
dos fenômenos pela Santa Sé em 1894.
Neste sentido, é importante explorar alguns perfis da beata que aparecem na literatura
sobre o tema. Basicamente, há duas visões sobre ela: na primeira ela é uma embusteira; na
segunda, aparece como santa, vítima e mártir injustiçada. A primeira visão é a mais comum e
aparece na obra de memorialistas como o padre Gomes de Araújo cuja tese é de que Maria de
Araújo produzia artificialmente o sangue que brotava em suas comunhões, e para isso contava
com o auxílio do jornalista José Marrocos e do padre Cícero Romão. O padre Gomes de

4
Fiz o mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte sob orientação do Prof. Durval Muniz de
Albuquerque Junior. Na dissertação procurei estudar como se construiu a ideia de Juazeiro como um espaço
sagrado. O trabalho foi publicado com o título: O teatro de Deus: as beatas do Padre Cícero e o espaço
sagrado de Juazeiro. Fortaleza, IMEPH, 2011.
17
Araújo afirmava que “a solerte Maria de Araújo usou processos químicos no embuste do
suposto ensanguentamento sobrenatural da partícula-burla [...] conduzida esta, ocultamente e
manobrada por trás do manto e dos lábios cerrados” (Araújo, 1956: 18).
Essa condenação de Maria de Araújo na historiografia foi ratificada posteriormente
pelo primeiro trabalho feito por um historiador sobre Juazeiro, o livro Milagre em Juazeiro
(1976), do norte-americano Ralph Della Cava. Para o autor, o “milagre de Joaseiro”
interessava para mostrar como um fenômeno religioso pode provocar uma mudança extrema
no ritmo do desenvolvimento de um povoado como Juazeiro, e como o sacerdote local, o
padre Cícero, sendo responsabilizado e culpabilizado pelos eventos que ali ocorreram foi
capaz de redirecionar suas ações para o campo político.
Della Cava argumenta que após o primeiro fenômeno ocorrido com Maria de Araújo,
“várias dessas beatas descontentes de viver na obscuridade da Casa de Caridade do Crato
começaram a imitar publicamente Maria de Araújo. […] Reivindicando participação naqueles
‘poderes sobrenaturais’, as novas beatas tornaram-se oráculos populares de Juazeiro” (Della
Cava, 1976: 79). Assim, preocupado com as questões de seu tempo, o autor se tornou uma
referência na historiografia do Juazeiro e muitas questões discutidas por ele, principalmente
no que diz respeito à trajetória política do padre Cícero, cristalizaram-se na produção
historiográfica que seguiu a sua obra.
Somente nas produções mais recentes – a partir de 1999 – e devido à introdução de
novos temas e abordagens teórico-metodológicas como os estudos culturais relacionados à
religiosidade, aliadas, no caso, às questões de gênero é que as beatas ganharam um espaço ao
lado do estudo sobre as romarias e práticas devocionais.
No artigo O Sangue da terra: tramas do sagrado no espaço do Juazeiro (2001), o
historiador Francisco Régis Lopes Ramos trata da construção de Juazeiro como espaço
sagrado e chega a citar a atuação de algumas beatas no Juazeiro, tomando seus relatos como
exemplos de práticas devocionais ligadas a um modo muito específico de professar o
catolicismo, mas os relatos aparecem como imagens ilustrativas da vivência religiosa do
Juazeiro. No decorrer do texto, o autor volta ao objeto de sua tese: a construção do espaço de
Juazeiro a partir das vivências e ressignificações empreendidas pelos devotos do padre Cícero.
De fato, o único trabalho acadêmico que se pretende exclusivo sobre Maria de Araújo
é o da psicóloga Maria do Carmo Pagan Forti. Publicada em 1999, sua dissertação de
mestrado, intitulada Maria de Araújo: a beata do milagre, na qual, a partir da análise do

18
Processo Episcopal, alega ter “esclarecido o fenômeno” (p. 127). Com o objetivo de “resgatar
a imagem da beata” (p. 124), Forti aventou que:

Maria de Araújo tinha pleno conhecimento da dimensão e do significado de


seus atos, que não julgava seus, mas intervenções diretas de Jesus Cristo.
Acreditava sim que, por seu intermédio, um milagre acontecia no Nordeste
brasileiro (1999: 109. Grifos nossos).

A causa do fenômeno seria uma “manifestação psicopatológica”, ou seja, a hóstia, os


estigmas e os crucifixos de metal sangravam porque Maria de Araújo pretendia “instituir uma
nova realidade” (p. 110-111). O anacronismo se torna, então, o maior dos problemas na tese
de Forti, quando consideramos que o discurso quase feminista atribuído à beata não condiz
nem com o tempo nem com o lugar social onde ela estava inserida. Forti se concentra na
busca de sentidos psíquicos para explicar a experiência da beata, impossíveis de aferir pela
pesquisa histórica. Ela também explorou um pouco da biografia de Maria de Araújo, mas
ainda uma biografia que gira em torno do padre Cícero, tecida a partir da relação com ele e se
funde com a própria vida do padre.
Se me inquietava a imagem da Maria de Araújo passiva, incomodava-me também a
imagem da beata “feminista”, pois esta contrastava demasiadamente com o contexto no qual
ela viveu. Neste sentido, buscamos descontruir essa imagem de Maria que oscila entre a
vitimização e a condenação. Neste sentido, compreendemos que ela é uma mulher do seu
tempo, interpretou os papéis que podia naquele espaço de experiência, mesmo considerando
que, após os milagres, sua história teve desdobramentos inesperados e inimaginados. A
história tem sempre mais acaso do que costumamos ver ou considerar.

19
Trajetórias da experiência mística ou a definição de um problema

No primeiro dia da semana, Maria Madalena vai ao sepulcro, de madrugada,


quando ainda estava escuro e vê que a pedra fora retirada do sepulcro. Corre,
então, e vai a Simão Pedro e a outro discípulo, que Jesus amava, e lhes diz:
“Retiraram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde o colocaram”.
João 20, 1-2.

Uma das referências comuns em todas as fontes consultadas nesta pesquisa diz
respeito ao nome de Maria de Araújo. Ela é sempre referida como “beata”, muitas vezes com
“B” maiúsculo, como se indicasse um título. O termo é, praticamente, incorporado ao seu
nome, e indica, naquele contexto, não só uma condição religiosa, mas também social e
cultural que não é exclusiva desta personagem, mas revela muito da tessitura daquela
sociedade e do laicato nos novecentos.
Frei Manuel da Esperança esclarece que, em Portugal, o termo beata era usado para
designar as “mulheres seculares, que sendo mais reformadas na vida e no seu hábito, parecem
religiosas”. 5 Já Sebastián de Cobarrubias, considerava “beata”:

[…] mujer en habito religioso que fuera de la comunidade, en su casa


particular, professa el celibato y vive com recogimiento, ocupando-se en
oración y en obras de caridad. El nombre parece en sí arrogante, pero está
muy recibido, no embargante que en rigo, nemo in hac vita dici potest beatus
(A ninguém nesta vida se pode chamar de beato)” (apud García, 2006: 30).

No Dizionario storico dell’ Inquisizione, o verbete Beata é considerado a partir de dois


contextos específicos, o português e o espanhol., apesar de não ser uma peculiaridade do
mundo ibérico, as beatas ganham destaque nos processos inquisitoriais, principalmente
aqueles ligados às acusações de falsa santidade vindas principalmente de mulheres das classes
baixas:
É de se notar, no entanto, que a acusação de hipocrisia, verdadeira
ou falsa, fundada ou infundada que fosse, sempre tinha tido, na
história, um certo peso sobre os percursos individuais no que diz
respeito à santidade, de modo especial os que lhe buscavam eram os
sujeitos de baixa extração social e não oportunamente inseridos em
esferas bem definidas, com um estrato próprio ou uma pertencentes à
uma específica família religiosa.6

5
Frei Manuel da Esperança, História Seráfica da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco na Província de
Portugal, Primeira Parte, Lisboa, 1656, p. 560. Grifos nossos.
6
Tradução minha: “É da notare, inoltre, che l’accusa di ipocrisia, vera o falsa, fondata o infodata che fosse,
20
Os primeiros beatérios, confrarias e ordens terciárias que passariam a abrigar mulheres
– principalmente aquelas de origem mais humilde que não tinham condições de entrar para
um convento –, foram criados já no século XII e tiveram um papel fundamental no controle
dos leigos em geral (2006: 11). Neste sentido, é importante lembrar que o século XIX foi
marcado pela tentativa da Igreja de consolidar um modelo de catolicismo que ficou conhecido
como romanizado ou ultramontano. Uma doutrina que confrontasse as principais ameaças
representadas pelas teorias racionalistas que ganharam força com as revoluções liberais do
século anterior. O catolicismo romanizado estruturou-se em torno de princípios, tais como “a
rejeição à ciência, à filosofia e às artes modernas, a condenação do capitalismo e da ordem
burguesa, a aversão aos princípios liberais e democráticos, e, sobretudo ao fantasma
destruidor do socialismo” (Gaeta, 1997: 183-202).
Naquele momento, a Igreja possuía uma “acentuada autoconsciência” de sua
santidade, colocada sempre em oposição a um “mundo mau”, representado então pelos
“inimigos da fé”. Segundo Hugo Fragoso é esse confronto entre a “maldade do mundo” e a
“santidade da Igreja” que é transposta de uma “ordem ideal” para o “domínio do real” (in
Beozzo, 2008: 144). O projeto ultramontano vem, então, com a função de remodelar o clero
com ênfase na autoridade institucional e hierárquica da Igreja, controlar a doutrina e
principalmente as manifestações fervorosas do laicato. Mas essas investidas de controle por
parte do clero não eram novas. André Vauchez (2005), ao estudar as relações entre clérigos e
leigos, demonstra que desde os primeiros séculos da cristandade as disputas e conflitos eram
frequentes no seio da Igreja, no entanto, a ideia até então era que “todos os batizados são a
Igreja […] sem, portanto que se estabelecesse entre eles uma separação ou um lugar de
subordinação”.7
A Reforma Gregoriana no século XI tentou trazer uma nova percepção sobre os
direitos dos leigos, ou melhor, uma nova jurisdição dos clérigos sobre a comunidade laica. A
partir daquele momento, os sacerdotes reivindicavam não só a liberdade em relação aos
poderes laicos, mas também o direito de julgá-los (Vauchez, 2005: 58). A partir do século XII

aveva sempre avuto, nella storia, um certo peso sui percorsi individuali verso la santitá, in special modo ad
intraprenderli erano stati soggeti di bassa estrazione sociale e non opportunamente inseriti in sfere ben
definite, con un proprio strato o una specifica famiglia religiosa d’appartenenza”. Tavares, Pedro Vilas Boas.
“Beatas: Portogallo” (Verbete) in Prosperi, Adriano. Op. Cit., p.158 .
7
Tradução minha: “tous les baptisés sont l’Eglise […] sans pour autant que s’établisse entre eux une separatión
ou un lien de subordination” (Vauchez, 2005: 56).
21
algumas práticas religiosas que refletiam uma religião mais experienciada do que
institucionalizada se propagaram, o que Vauchez chama de “l’inventivité des laïcs”, a
inventividade dos leigos.
Antonio Rubial García (2006) segue a mesma linha de pensamento de Vauchez e nota
que ainda no século XII apareceram os primeiros modelos de santidade que inspiraram os
leigos à prática de uma vida mais piedosa, como São Francisco de Assis (1181/1182-1226) e
São Bernardo de Claraval (1090-1153). García afirma ainda que naquele momento a criação
de confrarias, ordens terciárias, beatérios, hospitais e outras instituições para os pobres
tiveram um papel fundamental no processo de controle dos leigos (2006: 11).
No campo feminino, o movimento beguinal que floresceu nos Países Baixos e no norte
da França e Alemanha a partir do século XIII, ganhou destaque justamente por ser um
movimento urbano de mulheres que decidiam viver uma vida de piedade sem fazer votos
solenes com a Igreja. Mas à medida que o movimento foi crescendo, também foi chamando a
atenção da Igreja que procurou incorporá-las às ordens religiosas já estabelecidas.8
Ainda nos séculos XV e XVI as experiências místicas de mulheres como Catarina de
Siena (1347-1380) e Teresa de Jesus (1515-1582) inspiraram gerações de beatas e religiosas
leigas que buscavam transcender em sua relação com o divino. Entretanto, também nesse
período, a Inquisição (criada ao longo do século XIII) se tornará mais rígida e passará a
combater com mais rigor esse tipo de experiência transcendente. A partir desse momento,
essas experiências ficaram mais restritas aos conventos e monastérios. O maior controle era
efetivamente sobre as mulheres e homens leigos. São esses, inclusive, que figuram na maioria
dos estudos nos quais os processos inquisitoriais são as principais fontes (Cf. Tavares, 1996;
Bethencourt, 2000).
Foi somente no século XIX, durante o Concílio Vaticano I (1869-1870), que a
desigualdade entre leigos e clérigos foi institucionalizada, reafirmando o estatuto de
subordinação dos primeiros: “ninguém pode ignorar que a Igreja é uma sociedade desigual na
qual Deus destinou uns a comandar, outros a obedecer. Esses são os leigos; aqueles são os

8
Os grupos de beguinas (beghards, derivado de to beg, mendigar, implorar etc.) eram compostos por mulheres
da cidade, frequentemente abastadas. Havia também um ramo masculino no grupo, os beguinos. A pressão
institucional teve como primeiro efeito a formação de casas de beguinas durante o século XIV e a submissão
dessas mulheres à hierarquia eclesiástica. O movimento foi extinto devido às ações implementadas pela
Contra-Reforma. (Cf. Richards, 1993:72-74). Segundo Adelina Sarrión, as beguinas “se dedicaban a la
oración, al trabajo manual, imprescindible para mantenerse, y a las obras de caridad; solían vivir en
comunidad y respetaban el celibato” (2003: 40).
22
clérigos”.9 O projeto de reforma da Igreja proposto no Concílio Vaticano I teve como
principal bandeira a luta contra a autonomia dos poderes civis, situação que se complicou
devido aos constantes embates entre a Igreja e o Estado.10
Aqui lidamos com um paradoxo que não pode ser ignorado: se, naquele contexto, a
Igreja tentava firmar uma separação entre clero e leigos, por outro lado, foi também no final
do século XIX que a atuação do público feminino ganhou importância, com o estímulo à
fundação de congregações e confrarias femininas, em um processo que Rosado Nunes chama
de feminização do catolicismo:

A necessidade de um público dócil às novas normas torna as mulheres, um


alvo privilegiado de ação da Igreja. A partir de então, esta desenvolve
projetos específicos, dirigidos à população feminina católica, com o intuito
de incorporá-la ao seu projeto reformador. […] Pode-se assim dizer que a
“clericalização” do catolicismo brasileiro foi, ao mesmo tempo e
necessariamente, o processo de sua “feminização” (1997:490).

Temos aqui vários elementos que confluem em um mesmo contexto histórico: a


institucionalização (e limitação) da atuação dos leigos na Igreja; a agregação e demarcação
dos papéis concernentes ao público feminino; o combate ao catolicismo devocional e
penitencial e consequente reforço de uma prática à romana. Ora, no Brasil todos esses
elementos conviviam com uma prática católica, de herança colonial, que enfatizava os
aspectos penitenciais ligados à mística dos séculos XVII e XVIII, o culto ao Jesus crucificado
e práticas de mortificação.
É nesse contexto que Maria de Araújo vivia e apesar de não saber ler ou escrever,
podemos conjeturar que obteve certa educação religiosa que lhe foi transmitida oralmente,
através da direção espiritual do padre Cícero e de outros sacerdotes como o monsenhor
Monteiro. Mas se Maria não sabia usar um lápis, foi com seu sangue que escreveu a história
do milagre.
Deste modo, uma questão conceitual presente no nosso trabalho precisa ser
esclarecida. Se, como afirma Michel de Certeau (1982)11, a mística se dispersa já em fins do

9
Tradução minha: “personne ne peut ignorer que l’Eglise est une société inégale dans laquelle Dieu a destiné les
uns à comander, les autres à obeir. Ceux-ci sont les laïcs; ceux-là sont les clercs” (Supremi Pastoris, Vaticano
I apud Vauchez, 2006: 56).
10
Segundo Hoornaert, a romanização significaria ainda uma europeização do catolicismo praticado no Brasil:
“Penetram nada menos que 39 congregações masculinas de origem européia, assim como 109 femininas.
Liquidam-se as irmandades leigas em benefício de associações religiosas controladas pelo clero” (1998: 40).
11
Diz Certeau que o trabalho do historiador é como “um exercice d’absence définit à la fois l’opération par
23
século XVII porque insistimos em falar de experiência e relatos místicos no final do século
XIX?

A mística do século XVI e XVII prolifera ao redor de uma perda, é uma


figura histórica. Ela torna legível uma ausência que multiplica as figuras do
desejo. [...] a ‘derrota dos místicos’ coincide com o século das Luzes. A
ambição de uma radicalidade cristã se desenha sobre um fundo de
decadência ou de ‘corrupção’, no interior de um universo que se desfaz e que
é necessário reparar. Ela repete na experiência biográfica todo o vocabulário
da Reforma eclesial: a divisão, as feridas, a enfermidade, a mentira, a
desolação, etc. Os corpos individuais narram a história das instituições do
sentido. 12

Ao adjetivo “místico” é agregado um conjunto de práticas, – “modos de fazer”


(êxtases, práticas de piedade) e “modos de dizer” (visões, relatos) –, reguladas em torno de
apropriações e interiorizações espirituais que modificam não só os procedimentos
religiosos, mas também a própria linguagem: “Ela mesma se faz texto. Ela circunscreve a
elaboração de uma ‘ciência’ particular que produz seus discursos, especifica seus
procedimentos, articula itinerários ou ‘experiências’ próprias e trata de isolar seu objeto”.13
O adjetivo se transforma em substantivo: “a mística”, por sua vez, se torna uma ciência que
tem como objetivo a busca do corpo de Deus:

De fato, o cristianismo se instituiu sobre a perda de um corpo – perda do


corpo de Jesus, duplicada pela perda do “corpo” de Israel, de uma “nação” e
de sua genealogia. Desaparição fundadora, em efeito, pois torna específica a
experiência cristã em relação com a segurança que tem o povo judeu
ancorado em sua realidade biológica e social: para tanto em um corpo
presente, diferente e localizado, separado dos demais pela eleição, ferido
pela história e gravado pelas Escrituras. [...] Sua autoridade circunscreve e
permite a formação de uma disciplina, pois lhe proporciona um referente
linguístico assim como teórico. Aí está sem dúvidas o essencial. Por sua

laquelle il produit son texte et celle qui a construit le leur” (1982, 21). Agradeço ainda a Profa. Virgínia
Buarque, da Universidade Federal de Ouro Preto por aproximar-me da leitura da obra, referente à mística,
deste historiador.
12
Tradução minha : “La mystique des XVIe. Et XVIIe. Siècles prolifère autour d’une perte. Élle en est une
figure historique. Élle rend lisible une absence qui multiplie les productions du désir. [...] la ‘déroute des
mystiques’ coïncidant avec le moment où se lè le siècle des Lumières. L’ambition d’une radicalitè chrétienne
se dessine sur un fond de décadence ou de ‘corruption’ à l’intérieur d’un univers qui se défait et qu’il fault
réparer. Elle répète dans l’expérience biographique tout le vocabulaire de la Réforme ecclésiale : la division,
les plaies, la maladie, le mensonge, la désolationm, etc. Les corps individuels racontent l’histoire des
institution du sens” (Certeau, 1982 : 25).
13
Tradução minha : “Il fait lui-même texte. Il circonscrit l’èlaboration d’une ‘science’ particulière qui produit ses
discours, spécifie ses procédures, articule ses itinéraires ou ‘experiénces’ propres, et tente d’isoler son
objet” (Certeau, 1982 : 104).
24
coerência e originalidade léxicas – objeto debatido, comentado e adaptado
sem fim –, esta ‘língua’ artificial apresenta o modelo de uma ciência nova.
Essa língua é, ao mesmo tempo, a condição e a utopia desta ciência. 14

Além de uma transformação léxica, a mística enquanto “ciência particular” foi


eliminada pelo próprio objeto que a criou: a procura de um corpo, a procura por Deus, esse
outro que se refugia nos mais escondidos recantos da alma, tarefa impossível de ser cumprida
dentro da Igreja institucional. Mais do que uma “categoria teológica”, a alegoria da palavra
“mística” diz respeito a um “procedimento didático ou poético, a uma ‘maneira de falar’, a
um ‘estilo’.”15 A proliferação de experiências privadas, muitas vezes sem a intermediação ou a
orientação de um clérigo, acende um sinal de alerta para a Igreja que, a partir de fins do
século XVIII, não só condena, mas converte em “místico” tudo o que se separa da instituição,
conferindo um sentido negativo à experiência mística.16
No entanto, as práticas e os discursos da mística perduraram e foram objeto de
apropriações e ressignificações ao longo do tempo, mantendo seu objeto primordial: a busca
do corpo. Mas que corpo é esse? A grande obsessão do discurso místico é a obsessão com o
corpo perdido de Cristo, o corpo que ascende aos céus no terceiro dia após a crucificação. O
corpo que não apodrece, que não sucumbe à morte.
Certeau o imagina a partir de três polos que se relacionam e dialogam entre si: um
estabelecido pelos acontecimentos: as dores e gozos que instauram uma temporalidade; um
simbólico: os discursos, relatos ou signos que organizam sentidos ou verdade; um social: uma
rede de comunicações (1982:108-109). A “fórmula”, no entanto, varia de intensidade e ordem,
dependendo dos níveis e da força da experiência.

14
Tradução minha, grifos no original : “En effet le christianisme s’est institué sur la perte d’un corps – perte du
corps de Jésus, doublée par la pérte du ‘corps’ d’Israël, d’une ‘nation’ et de sa généalogie. Disparition
fondatrice en effet. Elle spécifie, l’experiènce chrétienne par rapport à l’assurance qui tient le peuple juif
ancrè dans sa realité biologique et sociale, donc è un corps présent, distinct et localisé, séparé d’entre les
autres par l’éléction, blessé par l’histoire et gravé par les Écritures [...] Son authorité circonscrite et permet la
formation d’une discipline. Elle lui fournit un référent linguistique autant que théorique. Là est sand doute
l’essentiel. Pas sa cohérence et son originalité lexicales – objet débattu, commenté et adpaté sans fin – , cette
‘langue’ artificielle présente le modèle d’une science nouvelle. Elle en est à la fois la condition et
l’utopie.” (Certeau, 1982: 110; 143).
15
Tradução minha: “Plutôt qu’à une intelligence théologique des Desseins divins inscrits dans les événements,
elle renvoie à une procédé didactique ou poétique, à une ‘manière de parler’. À un ‘style’” (Certeau, 1982 :
131).
16
Principalmente a partir do século XIII, após o IV Concílio Lateranense (1215), a Igreja passa a se utilizar de
estratégias de controle da experiência religiosa privada. Os clérigos começam a usar a língua vulgar, prolifera
uma literatura religiosa de prédicas e sermões que enfatizam a importância dos sacerdotes na vida religiosa e
o valor da confissão enquanto sacramento e condição para se receber a eucaristia, o “corpo sacramental de
Cristo” é reforçado (Certeau, 1982: 115-117).
25
Conjeturamos que no caso de Maria de Araújo, essa experiência mística enfatiza a
memória sobre a Paixão de Cristo através dos êxtases, estigmas e do próprio sangramento da
hóstia. Essa experiência nos deixa ver a genealogia de uma tradição espiritual que se utiliza de
elementos também usados pela ortodoxia, mas que dispensa a intermediação eclesiástica. O
relato místico é antes de tudo poesia, feito de dramas e sofrimentos e que busca levar ao
êxtase, expressão máxima do amor de Deus. A mística se configura como uma afronta à
autoridade ministerial, principalmente àquela dos séculos XVIII e XIX que prezava mais e
mais pela sobriedade dos cultos.
Neste ponto, compreender a noção de crença é fundamental, pois o ato de crer atuará
como produtor de novos espaços de relação com o sagrado. Segundo Certeau, a crença
organiza práticas: “[…] entendo por ‘crença’ não o objeto do crer (um dogma, um programa,
etc.), mas o investimento das pessoas em uma proposição, o ato de enunciá-la considerando-a
verdadeira” (1994: 278). A construção de uma crença é, assim, resultado das “vitórias do
‘fraco’ sobre o mais ‘forte’, pequenos sucessos, artes de dar golpes, astúcias de ‘caçadores’,
mobilidades da mão-de-obra, simulações polimorfas, achados que provocam euforia, tanto
poéticos quanto bélicos” (Idem: 47).17
Escolhemos analisar os relatos de Maria de Araújo e das outras beatas à luz do
conceitos da mística e da crença porque entendemos que o discurso místico é vinculado a
certos modos de fazer e dizer que visavam a busca e o encontro com o outro: com Deus e com
o sobrenatural. Referimos-nos às práticas e representações que perduraram dentro de uma
lógica espiritual e religiosa típica daquele grupo de pessoas que buscava o contato com Deus
fora do espaço controlado pela Igreja institucional, isto é, o da própria vida interior.
Os depoimentos de Maria de Araújo no Processo Episcopal, especificamente no
primeiro inquérito de 1891, continham ainda uma série de referências comuns às biografias de
santos, nas quais, estava enunciada a predisposição para uma vida religiosa, passando por
pelas provações (doenças, tentações, etc.), virtudes e experiências místicas (seguindo a ordem
básica dos relatos: visões, dom de oração, colóquios, espírito de penitência, fatos
extraordinários, êxtases e estigmas).
Esse modelo também é comum aos relatos de tipo hagiográfico (hagiografia, do
grego, hagiographon, “escrita santa”) que se referem por tradição, aos escritos tidos como
inspirados e oficialmente legitimados pela ortodoxia católica. É justamente através do contato

17
Cf. também Certeau, Michel. La debilidade de crer. Buenos Aires; Katz, 2006.
26
de um jovem cônego, Jacque de Vitry (1160/70-1240), com um grupo de beguinas de Liège
que o relato hagiográfico foi transformado “na sua estrutura, temas, topoi, vocabulário e,
sobretudo no motivo que o leva a consignar por escrito os gestos, os sentimentos e o saber das
chamadas mulieres religiosae” (Pereira, 2007: 02. Grifo no original).
Ao tempo de “glorificação” – os milagres públicos – segue-se o “tempo de provações”
marcado pelos combates solitários, as lutas contra os demônios e as tentações. Tomando de
empréstimo a análise de Michel de Certeau sobre os textos hagiográficos, temos que: “a
hagiografia postula que tudo é dado na origem, como uma ‘vocação’, com uma ‘eleição’ [...]
O santo é aquele que não perde nada do que recebeu” (1982: 272).
A política ultramontana que ganhava força; a separação entre Igreja e Estado; a queda
do Imperador e a Proclamação da República; a cessação dos direitos do Padroado; a
laicização do casamento e dos cemitérios; a ciência que se imiscui na vida privada; as novas
descobertas científicas; uma medicina dos humores substituída por uma medicina
anatomoclínica18: todos esses fatores, aqui resumidamente enumerados, confluem naquele
contexto de final de século, e foram se compondo, desdobrando-se de modo não programado,
ganhando novas nuances que podem apontar indícios capazes de elucidar, ou ao menos
sugerir hipóteses para os acontecimentos da madrugada de seis de março de 1889.
Nesta pesquisa, partimos da hipótese que a ocorrência dos fenômenos em 1889 iniciou
um processo de construção da experiência mística de Maria de Araújo. Esta, por sua vez,
ganha força com o apoio dos sacerdotes da primeira Comissão que, de certa forma, legitimam
o percurso da beata. Esta trajetória, no entanto, é interrompida pela Igreja ao considerar os
fenômenos enquanto embustes, demarcando aí um processo de apagamento da figura de
Maria de Araújo e um posterior deslocamento da crença para a figura do padre Cícero Romão
Batista.
***

A tese foi organizada de modo a abordar as questões que considero importantes para
entendermos a trajetória de Maria de Araújo, dentro do contexto maior dos eventos de 1889 e
da configuração político-religiosa do final do século XIX no Brasil. Neste sentido, ela não
será destaque de todos os capítulos, mas certamente é o eixo de conexão entre eles.

18
A medicina dos humores ou medicina galênica, como era conhecida, atribuía os sintomas representava o corpo
como composto por quatro humores: o sangue, a bílis a fleuma e a atrabílis, ou bílis negra. Já a medicina
moderna ou anatomoclínica passou a observar as relações entre os sintomas do doente (Faure, 2008: 17).
27
Inicio o trabalho com uma apresentação do acontecimento que inaugurou a questão
situando-o no seu contexto, a intenção é que o leitor se aproxime desse cenário e de suas
repercussões imediatas e locais. Em A semente da discórdia: o sangramento da hóstia, a
pergunta chave é: que cenário permitiu que esses fenômenos tomassem a dimensão que
tomaram? Para tanto, utilizei jornais, Relatórios de Presidente de Província e um vasto
epistolário pertencente ao Arquivo da Cúria do Crato e ao Arquivo Secreto Vaticano. No
segundo capítulo, Como se constrói um Processo Episcopal, apresentamos nossa principal
fonte documental: o Processo Episcopal de 1891/1892 e analisamos sua construção a partir
dos personagens e das tensões e conflitos gerados. Aqui, começa a se formar também uma
imagem da beata originada nos depoimentos das outras mulheres e sacerdotes que depuseram
no primeiro inquérito em 1891.
No capítulo Segredos da alma que o corpo revela, conheceremos um pouco da vida
de Maria de Araújo, tomando como fonte seus próprios relatos. Aventamos que sua biografia
corresponde à imitação de um modelo hagiográfico clássico que reconstrói sua trajetória
como uma vida de santidade. Busquei analisar os principais discursos forjados sobre ela ao
longo da questão, desde a sua relação com o padre Cícero até as opiniões médicas construídas
sobre o seu corpo e seu comportamento. Analisei ainda uma vasta correspondência epistolar
trocada entre sacerdotes, bispos, médicos e a Santa Sé procurando identificar como eles
“viam” e analisavam Maria de Araújo.
No quarto capítulo, Prodígios vãos e supersticiosos, acompanhamos o desenrolar do
segundo inquérito e com o envio da documentação para Roma, podemos vislumbrar a reação
da Santa Sé. Em As fabricantes de milagres, ganha destaque as retratações de alguns dos
personagens envolvidos, bem como, a renitência de outros em aceitar a Decisão exarada pela
Santa Sé em 1894 que se consolida no Relatório da Congregação para a Doutrina da Fé em
1898. Concluímos com um olhar sobre o destino de alguns personagens mais importantes,
pensando o lugar de Maria de Araújo no início do século XX.
É importante ressaltar que eu atualizei a grafia de todos os documentos transcritos
neste trabalho, bem como traduzi livremente os textos em língua estrangeira. As imagens
também têm função meramente ilustrativa.
Uma última observação: o título do trabalho foi inspirado no relato de Monsenhor
Monteiro sobre Maria de Araújo, quando ele diz: “Oh! Ninguém sabe como esta alma, nestes
momentos se apura no amor de Deus! [...] Não se imagina que enlanguecimento de amor, que

28
fogo celeste nestes Divinos instantes inundou o coração escolhido desta Virgem!”.19
Considero que esse padre, juntamente com José Marrocos, foram os grandes narradores da
aventura mística de Maria de Araújo, poetas por vocação, souberam traduzir a experiência da
beata em palavras quando ela mesma não podia: um incêndio na alma.

19
Relatório de Monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro sobre os fatos de Juazeiro em 18.10.1891 in “Cópia
autêntica do processo instruído sobre os fatos do Juazeiro”, p.74. Arquivo do Departamento Histórico
Diocesano Padre Gomes, Crato-CE. Doravante citaremos como “Cópia autêntica...”. Neste trabalho usamos
as referências do documento manuscrito, no entanto, em 2012, o Departamento Histórico Diocesano em
conjunto com a Editora Senac Ceará publicou o Processo na íntegra em volume organizado pelo professor
Renato Casimiro. Ver: Casimiro, Renato. Padre Cícero Romão Baptista e os fatos do Joaseiro: a questão
religiosa. Fortaleza: SENAC, 2012.
29
CAPÍTULO 1

A semente da discórdia: o sangramento da hóstia

aquela noite Maria de Araújo não dormiu, passara toda a madrugada em vigília com

N as suas companheiras rezando novenas ao Sagrado Coração de Jesus na capela do


pequeno povoado de Juazeiro. Por volta das cinco da manhã, o padre Cícero Romão
Batista decidiu ministrar a comunhão às incansáveis mulheres que o acompanharam na
penitência daquela noite, dispensando-as de acompanhar a missa matinal. Ao receber a
comunhão, Maria sentiu um calafrio e um arrebatamento tomou-lhe a alma. Ela caiu em
êxtase. Quando voltou a si, notou que um líquido espesso escorria da sua boca. Era sangue.
Ela olhou para seu diretor espiritual e mostrou a transformação que acabara de ocorrer. O
sangue brotava da hóstia consagrada em tão grande quantidade que caía no chão. Aquela era a
primeira sexta-feira da quaresma de 1889. 20

20
Relato construído a partir dos depoimentos de Maria de Araújo e do padre Cícero Romão em 17.07.1891 in
“Cópia autêntica...”, pp. 04-08.
30
1.1. O fenômeno em seu contexto: religião e política no Vale do Cariri

Mas o depoimento que venho perpetuar nestas linhas, nada tem de singular.
É apenas mais uma voz que no coro geral de todas as vozes e no concerto
comum de todas as harmonias vem afirmar que sabe e que viu mesmo na
Igreja do Juazeiro a hóstia sacramental da comunhão de Maria de Araújo
transformar-se em sangue tão natural como o produto vivo de um corpo
vivente. 21

Maria de Araújo tinha 27 anos, morava com sua família: mãe e oito irmãos, quatro
mulheres e quatro homens e vivia de pequenas costuras, com as quais também ajudava no
sustento da casa. A partir de março de 1889, ela começou a ser visitada por crentes e curiosos,
atraídos principalmente, pela notoriedade dos fenômenos. Ainda naquele ano, mudou-se para
a casa do padre Cícero, onde já vivia a beata Joanna Tertulina (1864-1944), conhecida como
beata Mocinha22, secretária e governanta do padre.
Como as outras mulheres presentes na Capela naquela sexta-feira, Maria de Araújo era
zeladora do Apostolado da Oração, uma associação leiga que nasceu na França em 1844,
aprovada pelo Papa Pio IX em 1849, também conhecida como Associação do Sagrado
Coração de Jesus. As leigas que participavam dessa associação eram chamadas de beatas,
ainda que não saibamos se essa era uma denominação comum a todas as mulheres do
Apostolado ou se era um caso peculiar de Juazeiro.
A princípio, o acontecimento permaneceu em segredo, mas foi ganhando
popularidade, pois, passou a se repetir todas as quartas e sextas-feiras daquele mês de
quaresma, inclusive na presença de outros padres. O sangue que brotava da hóstia assim que
ela entrava em contato com a boca de Maria de Araújo era enxugado com alguns panos,
guardados pelo padre Cícero em uma urna de vidro depositada no sacrário da pequena igreja.
Aos poucos, os panos manchados de sangue tornaram-se objeto de culto, atraindo romeiros de
todas as partes do Brasil.

21
Depoimento de José Joaquim Telles de Marrocos em 12.10.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 68. Todas as
fontes documentais apresentadas neste trabalho tiveram sua grafia atualizada. As imagens e mapas têm
função meramente ilustrativa.
22
A beata Mocinha nasceu em 27 de janeiro de 1864, na freguesia do Riacho do Sangue – atual Jaguaretama,
norte do Ceará –, sendo filha de Francisco Antônio de Oliveira e Maria Teotônia de Oliveira. Ficou órfã em
1879 e foi morar na povoação de Juazeiro com uma senhora chamada D. Naninha. Em 1885, ela recebeu o
manto de beata na mesma solenidade que conferiu o manto às beatas Maria de Araújo, Maria das Dores,
Jahel Cabral e Maria da Soledade. Não sabemos quando ela foi morar na casa do padre Cícero, mas é certo
que em 1889 já estava lá. (Cf. Alencar; Meneses, s/d)
31
Surgiram vários conflitos de ordem hierárquica entre a Diocese e os crentes nos
“milagres”. Apesar de ser uma diocese jovem, questões de quebra ou conflito com a
hierarquia não eram inéditas na história do Episcopado cearense. Até meados do século XIX,
o Ceará pertencia à jurisdição eclesiástica da Diocese pernambucana, e, nos Relatórios dos
Presidentes de Província abundavam as reclamações sobre a “decadência do culto” e sobre
“um Clero ignorante, de costumes derrancados, de uma moral corrupta, envolvido em
questões, e interesses do século e descuidoso da sua celeste missão”,23 como lemos no
relatório de 1841. Ainda há queixas sobre o estado dos templos em todos os relatórios entre
1836 e 1860:

Edifícios arruinados, sem asseio, imundos, paramentos dilacerados, ou antes,


indecentes andrajos; alfaias que o mais pobre não quereria ter em casa, como
podem excitar o respeito, acatamento, o terror, que devem dominar os
espíritos em presença dos tremendos mistérios da Religião? 24

Outra questão que incomodava o Presidente da Província era o envolvimento dos


padres na política, principalmente porque havia ali uma divisão em termos de afinidades
partidárias que foram se definindo já ao longo da primeira metade do século XIX: de um lado,
o Partido Liberal (chimangos) que tinha mais força e prestígio no Vale do Cariri e, de outro, o
Partido Conservador (saquaremas) com maior representação na Capital.
A antecipação da maioridade de D. Pedro II e sua elevação ao trono em 1840
fortaleceram esse movimento de centralização e promoveram a atuação dos conservadores.
No Ceará, os efeitos foram logo sentidos, uma vez que “entre o fim da década de 1830 e
início dos anos 1840, os chimangos perderam os principais postos políticos da província do
Ceará [...]. No ano de 1840, chegou ao fim a presidência do Senador Alencar, que liderou o
Partido Liberal no Ceará até sua morte, em 1860” (Alexandre, 2009: 90). Os anos que seguem
a essas mudanças estruturais na política nacional colocam a capital Fortaleza em oposição às
cidades do sul da província:

[...] a organização judicial centralizada em Fortaleza, o estabelecimento da


Guarda Nacional nos distritos do interior da província, a constituição de um
sistema de ensino secundário público em Fortaleza, e, principalmente, a
superação econômica do porto de Aracati, o grande entreposto entre o Recife
e o sertão, pelo porto de Fortaleza. Reforçando essa centralização, a

23
Relatório do Presidente de Província José Joaquim Coelho de 10.09.1841, “Culto Público”, p. 07.
24
Relatório do Presidente de Província Vicente Pires da Mota de 01.07.1855, “Culto Público”, p. 10.
32
construção das ferrovias, que direcionaram os fluxos da economia colonial
dos postos do sertão para o porto de Fortaleza, também foi um elemento
importante na segunda metade do século XIX (Oliveira, 2009: 19).

Uma consequência dessas querelas políticas e econômicas é o vínculo que a região do


Cariri construiu com a província do Pernambuco e a rivalidade estabelecida com a própria
capital da província, Fortaleza. A disputa era tão acirrada que os filhos dos fazendeiros e
donos de engenho iam estudar geralmente no Seminário de Olinda, no qual, a formação
clerical era associada a um espírito liberal e nacionalista fugindo do ranço conservador da
capital (Cortez, 2000: 38).
Alguns episódios ocorridos ainda no início do século XIX mostram como no Cariri a
política girava em torno dos ideais republicanos. Conta-se que já em 1817, alguns padres –
entre eles, o vigário Miguel Carlos de Saldanha e o padre José Martiniano de Alencar –
proclamaram a República no Crato, inspirados pelo movimento republicano ocorrido naquele
mesmo ano no Pernambuco, a chamada Revolução pernambucana. O historiador caririense
Irineu Pinheiro narra o episódio: “Neste dia subiu ao púlpito da matriz do Crato, revestido de
batina e roquete, o diácono José Martiniano de Alencar, emissário do governo revolucionário
de Pernambuco, e proclamou nossa Independência e República” (Pinheiro, 1963:57). O
movimento, apesar de fracassado, rendeu ao padre José Martiniano projeção política que o
levou à presidência da província entre outubro de 1834 e novembro de 1837 e depois a
assumir um cargo de senador vitalício do Império.
Uma série de pequenos incidentes marcou esse período, como o de 5 de agosto de
1821, quando durante a realização de um Te Deum em ação de graças ao regime
constitucional na Matriz do Crato, um grupo de moradores da Serra de São Pedro (antigo
distrito do Crato, atual Caririaçu) invadiu a Igreja atacando os presentes, pois ouviram dizer
que a imagem de Nossa Senhora da Penha, orago da Igreja, seria substituída pela de uma
prostituta chamada Úrsula. Figueiredo Filho, historiador local afirma:

Em São Pedro, corria que a imagem seria retirada da Matriz, tudo isso talvez
envenenado pelas comemorações que iriam se realizar no templo em
regozijo pela Constituição, que não cheirava bem ao rurícola, fiel à Igreja e
ao Rei (2010 [1964]: 07).

O episódio que ficou conhecido como a Invasão dos Cerca-Igrejas, foi logo aplacado
pelas forças locais. Outro conflito importante e de maior relevância nacional foi a

33
Confederação do Equador em 1824, no qual participaram os principais representantes das
famílias abastadas do Crato.
Essas reações contra a política centralizadora do governo de Dom Pedro I provocaram
na década seguinte outro conflito político de caráter emancipacionista, em 1831, opondo as
vilas de Crato e Jardim (separadas por apenas 55 km). Se no Crato o movimento era em prol
da autonomia provincial, em Jardim o movimento político reivindicava a restauração de D.
Pedro I. O conflito se estendeu até 1834, terminando com a prisão e fuzilamento do líder das
tropas jardinenses, coronel Joaquim Pinto Madeira no dia 28 de novembro de 1834 (Pinheiro,
1863: 119).25
Acompanhando a publicação do jornal O Araripe26, primeiro jornal publicado na
região do Cariri, que se declarava abertamente como um defensor das ideias liberais, é
possível intuir um pouco das tensões e conflitos latentes na sociedade cearense de meados do
século XIX. Inicialmente formados a partir de núcleos familiares, de relações de
apadrinhamento e de tomadas de partido em determinadas ocasiões, o cenário político e a
definição estrutural da política no Cariri não fugiu à regra de uma tendência centralizadora
que dirigia o governo brasileiro na época.
As notícias nos jornais destacam uma ativa vida política na região, sendo o espaço da
igreja utilizado para as reuniões de partido e para as eleições provinciais. Em 1856, no
entanto, um ofício do visitador da Província, cônego Antônio Pinto de Mendonça proibiu os
encontros nas igrejas, visto que em muitas vezes, os acirramentos decorrentes das discussões
políticas terminavam em mortes.27 A participação maciça da elite caririense masculina na

25
Aproveito para agradecer as valiosas observações feitas pelo historiador Jucieldo Alexandre, no manuscrito
deste trabalho, sobre a questão política que se delineava naquele momento.
26
Ligado ao Partido Liberal, O Araripe atribuía-se a missão de “sustentar as ideias livres, proteger a causa da
justiça, e propugnar pela fiel observância da Lei, e interesse locais”. Dirigido por João Brígido, figura
importante no desenvolvimento do jornalismo local, O Araripe foi o primeiro jornal cratense e circulou entre
07 de julho de 1855 e 13 de agosto de 1864. O jornal pode ser encontrado no Arquivo Hemerográfico da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Loc. PR-SOR 00843 [1-3]. Outros jornais foram contemporâneos ao
O Araripe: o jornal Gazeta do Cariri criado em 1860 e A Voz da Religião no Cariri de 1868; Outros de
circulação pequena e que usavam uma veia literária mais cômica: A voz do cratense (1859), Cratense (1859),
A caipora (1860), Glossa (1860), A cânfora (1862), Omnibus (1862), O tamborim (1863), A lira (1863),
União (1868).
27
Em oito de setembro de 1856, uma eleição na matriz do Crato para juiz de paz e membros da câmara terminou
no assassinato de um eleitor do partido liberal, José Gonçalves Landim, por dois soldados da força local e
pelo delegado que era do partido conservador (Pinheiro, 1963:142).
34
política, fez com que a igreja no final do século XIX se configurasse como um espaço
singularmente feminino, no qual os homens só apareciam nas épocas de eleições. 28
Neste sentido, a criação de um bispado próprio em 1860, e a nomeação de D. Luís
Antônio dos Santos (1817-1891) para ocupar o cargo de bispo foi, segundo o jornal O
Cearense29, providencial no sentido de impor ordem a esse “desregramento moral e social”
que atingia o Ceará e a própria Igreja brasileira “que se acha ameaçada, senão de um cisma ao
menos de graves e desagradáveis complicações do governo por causa do célebre projeto dos
casamentos mistos”.30 Não obstante, Dom Luís ficou conhecido pelo bom senso com o qual
administrava:

[…] as lutas mais ranhidas [sic] travadas entre o Estado e o Clero [...] Ao
passo que mantinha ilesos os direitos da Igreja, que julgava imprescritíveis,
não procurava perturbar as boas relações existentes entre a sociedade civil e
religiosa. 31

Abundam na historiografia os relatos sobre um Clero desmoralizado e negligenciado


nas Dioceses brasileiras no século XIX. A situação era tão difícil de controlar que mesmo as
Dioceses antigas, cujos padres haviam se formado em sua maioria na Europa, como a Diocese
de São Paulo, por exemplo, caíram no descrédito. Uma carta do Secretário de Estado do
Vaticano, o Cardeal Mariano Rampolla (1843-1913) para o Internúncio brasileiro Girolamo
Maria Gotti (1834-1916) critica o clero brasileiro e pede mais rigor da representação
eclesiástica no país:

Faço-lhe saber então, ter sido enviado à Santa Sé uma nova reclamação à
Diocese de São Paulo, na qual existe um quadro verdadeiramente desolador
28
Exemplo interessante são as descrições que o botânico Freire Alemão faz em seu Diário de Viagem. Ele
passou pela região nos anos entre 1859 e 1860 quando estava a frente Comissão Científica de Exploração das
Províncias do Norte que tinha como objetivo coletar dados sobre a fauna e flora brasileira. No Diário
encontramos mais de dez relatos que observam que a quantidade de mulheres nos cultos superava, e muito, a
presença masculina: “O corpo da igreja tinha grande quantidade de mulheres [...] os homens que ainda eram
poucos, estavam em roda, encostados nas pilastras”; em outro momento ele diz: “Havia uma boa porção de
mulheres, pela maior parte brancas, poucos cabras e negros; muito poucos homens” (Alemão, 2007: 87; 207);
e, mesmo nas celebrações festivas, a presença de homens era quase nula: “Estava a igreja cheia de mulheres,
que contamos e achamos ser 1.050 para mais, e com os homens, gente das tribunas e o coro devia perfazer
1500 para mais” (Alemão, 2007b: 38; Grifos nossos). Ver para mais detalhes biográficos: Morais, Rita de
Cássia Jesus. Nos verdes campos da ciência: a trajetória acadêmica do médico e botânico brasileiro
Francisco Freire-Allemão (1797-1874). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2005.
29
O Cearense foi criado por Thomas Pompeo de Souza Brasil, era “destinado a sustentar as ideias do partido
liberal” e circulou entre 1846 e 1891.
30
Jornal O Cearense, 18.02.1859, n° 1201, Ano XIII, p. 01.
31
Jornal A Constituição, 30.07.1882, n° 62, Anno XX, p. 01.
35
das condições da religião católica [...] Se diz que o povo viva na mais crassa
ignorância em questão de religião, não praticam os deveres, não recebem os
sacramentos. O Clero ignorante e indolente negligencia suas obrigações
especialmente a instrução catequética, a predicação e a observância da
disciplina eclesiástica. 32

A situação de São Paulo pode facilmente ser estendida a todo o território brasileiro, e,
a vinda de Dom Luís para o Ceará foi significativa para o projeto de contenção desse
desregramento. D. Luís era natural de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro; formou-se em
Direito Canônico no Colégio Pio Latino-americano de Roma, e foi discípulo de D. Antônio
Ferreira Viçoso (1787-1875) conhecido por sua ação reformadora enquanto bispo de Mariana,
Minas Gerais. Foi indicado para o Bispado do Ceará em 31 de janeiro de 1859 por Decreto
Imperial, confirmado pelo papa Pio IX em 28 de setembro de 1860, e em 16 de junho de
1861, tomou posse da Diocese em um ato solene realizado na catedral de Fortaleza,
qualificado pelo jornal O Cearense como “aparatoso”. O mesmo jornal reiterava que o novo
bispo encontraria a “sua igreja carecedora de séria proteção. O mal estado das matrizes e
outras necessidades do culto devem merecer-lhe a solicitude do seu paternal cuidado”.33
O próprio Dom Luís ratificou em suas cartas a situação do Clero que “neste Bispado é
como em todo o Império, esquecido de suas obrigações; Por isso os Bispos devem por toda a
sua esperança na criação de novo [clero] educado convenientemente”.34 Em outra carta o
bispo avisa ao Internúncio Apostólico que prefere seguir o calendário de festas de Mariana,
“mais conforme à [folhinha] Romana” que aquele usado no Pernambuco mais atrasado. Na
mesma carta, justifica o atraso do envio das indicações das novas paróquias “porque [...] não
me posso deliberar a por Paróquias a concursos enquanto não tiver um Clero, em que possa
escolher com segurança de consciência”.35
A reforma “à romana” mencionada pelo diocesano é o que na historiografia brasileira
ficou conhecida como “romanização” ou “política ultramontana”, e tinha como objetivo
remodelar o clero dando ênfase à autoridade institucional e hierárquica da Igreja, como forma

32
Tradução nossa: “Le significo poi essere aggiunto alla Santa Sede um nuovo reclamo dalla Diocese di S.
Paolo, nel quale si fa um quadro veramente desolante della condizioni della religione cattolica [...]. Si disse in
esso che il popolo vive nella più crassa ignoranza in fato di religione non ne pratica i doveri, non ne riceve i
sacramenti. Il Clero ignorante e neghittoso trascura i suoi obblighi specialmente l’istruzione catechistica la
predicazione e la osservanza della ecclesiastica disciplina.” Carta de D. Mariano Rampolla ao Internúncio
brasileiro Girolamo Maria Gotti de 25.07.1889. ASV, Fasc. 325, Doc. 56, n° 82375.
33
Jornal O Cearense, 20.08.1861, n° 1468, Ano XV, p. 01.
34
Carta de D. Luís Antônio ao Internúncio Apostólico em 28.02.1862. ASV, B. 32, Fasc. 142, Doc. 3, p. 04.
35
Carta de D. Luís Antônio ao Internúncio Apostólico em ?.07.1862. ASV, B. 32, Fasc. 142, Doc. 5, p. 06.
36
de controlar a doutrina e principalmente as manifestações fervorosas do laicato.36 Em um
ofício dirigido ao Presidente de Província em 16 de janeiro de 1862, Dom Luís apresentou seu
primeiro projeto para a Diocese: a construção de um Seminário para formação de um novo
corpo eclesiástico, segundo ele, mais urgente e importante que a reforma das matrizes37, pois
uma das causas do “mau clero” era justamente a falta de formação:

Os estudantes desta Diocese que podem pagar, mando-os para o Seminário


da Bahia, que é o único dos vizinhos, que me merece conceito devido a
reforma feita pelo falecido Sr. Arcebispo. Os do Maranhão e do Pernambuco
ainda se acham dirigidos pelo velho sistema, que tão maus resultados tem
dado, como prova o atual Clero.38

O requerimento de construção de um Seminário no Ceará foi apoiado pela imprensa


local e pelos políticos mais influentes da província.39 Em 8 de agosto de 1862, o deputado
Figueira de Mello reforçou a sua criação argumentando sobre a “carência de clérigos para
ministrarem os sacramentos e exercer os ofícios religiosos”, carência aumentada naquele
momento por causa da epidemia de cólera que grassou no estado deixando inúmeras
vítimas.40
Dom Luís ainda empreendeu uma severa perseguição às comunidades leigas e aos seus
dirigentes ou pais espirituais. Desautorizando as missões na província, D. Luís reforçava a
importância das Visitas Pastorais, pois, segundo explicava em um ofício dirigido em 19 de
julho de 1869 ao pároco do Crato, Manuel Joaquim Aires do Nascimento (1804-1883):
“alguns resultados [de Missões] tem aparecido não pouco inconvenientes, com detrimento da

36
Ítalo Santirocchi propõe uma revisão do conceito de “romanização”, preferindo o uso do conceito
“ultramontanismo”, que no século XIX “se caracterizou por uma série de atitudes da Igreja Católica, num
movimento de reação a algumas correntes teológicas e eclesiásticas, ao regalismo dos estados católicos, às
novas tendências políticas desenvolvidas após a Revolução Francesa e à secularização da sociedade
moderna” (2010, 24). Sobre aos efeitos dessa política no Ceará ver: Reis, Edilberto Cavalcante. Pro
Animarum Salute: a diocese do Ceará como “Vitrine” da romanização no Brasil – 1853 - 1912. (Dissertação
de Mestrado). Rio de Janeiro: UFRJ / IFCS, 2000.
37
Ofício de D. Luís Antônio ao Presidente de Província em 16.01.1862, APEC, Fundo “Seminário de Fortaleza”,
n° 251-270. D. Luís empreendeu várias destas Visitas, registradas, em sua maioria, nos jornais da Província,
como por exemplo: Visita nas freguesias de S. Mateus e Assaré (Jornal A Constituição de 12.09.1865); Visita
ao norte da província (Jornal A Constituição de 20.09.1871); Visita ao sul da Diocese (Jornal A Constituição
de 19.06.1872); Visita ao Crato (Jornal A Constituição de 11.08.1875).
38
Carta de D. Luís Antônio ao Internúncio Apostólico em 28.02.1862. ASV, B. 32, Fasc. 142, Doc. 3, p. 04.
39
Ver entre outros: Jornal Gazeta Official de 24.09.1862, p. 04.
40
Jornal Gazeta Oficial de 24.09.1862. Sobre a epidemia de cólera no Ceará ver: Alexandre, Jucieldo F. Quando
o “anjo do extermínio se aproxima de nós”: representações sobre o cólera no semanário cratense “O
Araripe” (1855-1864). Dissertação de Mestrado. João Pessoa, PB: UFPB, 2010.
37
disciplina eclesiástica e daquela paz e harmonia que deve reinar entre o próprio Pastor e o
rebanho”. 41
Segundo a tradição tridentina os bispos reformadores não deveriam estimular viagens
missionárias, mas investir nas “Visitas Pastorais com crisma e sacramentalização em geral”
(Hoonaert, 2006: 53). Estas, por sua vez, funcionavam como um instrumento fundamental de
controle, provocando, sobretudo, um sentimento de medo nos padres e sacerdotes que seriam
visitados, pois, estariam sob o olhar direto de seu superior.
Francisco Bethencourt afirma que a Visita Pastoral era um recurso que funcionava
como “elemento desestabilizador da acomodação recíproca entre o cura e as ‘ovelhas’ sob sua
guarda” (2004: 249). Além disso, era um eficaz recurso de disciplina social e como tal
investiam extensivamente nas regiões rurais – o espaço que estava mais frequentemente
distante do controle –, pelas próprias questões geográficas e no caso do Cariri no século XIX,
também pela dificuldade de comunicação.
Segundo Michel de Certeau, as Visitas Pastorais teriam como função inerente a
vigilância e o controle, uma espécie de “polícia das práticas”: “A observância e a purificação
do culto é a preocupação essencial dos responsáveis, mobilizados, aliás, em duas frentes: a
luta contra as concorrências exteriores, e a eliminação das ‘indecências’ no interior” (2007:
192). As “indecências” às quais se refere Certeau seriam justamente as práticas ligadas às
tradições populares: a intimidade com os santos, as festividades ruidosas etc.. Trata-se ainda
de um espetáculo, no sentido que é uma ação teatralizada, uma estratégia para impor respeito
e medo (Idem, 193-194).
José Pedro Paiva acrescenta que, pelo menos em território português, por muito tempo
as Visitas funcionaram com uma ação complementar à da Inquisição. Não só com a função de
“rastrear as heresias” e os “comportamentos morais desviados”, os relatórios fornecem dados
importantes sobre os “ritmos da repressão”, isto é, a quantidade e o lugar social das pessoas
sentenciadas ou perseguidas em uma dada época (1989: 91-98).
Estimulando as Visitas controladas e o cuidado na pregação para o povo, o bispado de
D. Luís se destacou também pela oposição que fez à atividade dos missionários. São
relevantes os abaixo-assinados que a Santa Sé recebia em favor de evangelistas proibidos de
missionar, como por exemplo, o que a população de Limoeiro, interior do Ceará, enviou em

41
Ofício do bispo D. Luís Antônio dos Santos de 19.07.1869 registrado no Livro de Tombo da Matriz do Crato,
p. 51 apud Pinheiro, 1950:160.
38
solidariedade ao Frei Estevão Maria da Hungria que teria sido impedido pelo bispo Dom Luís
de continuar seu trabalho na província:

[...] a infausta notícia da retirada do Reverendo Frei Estevão [...] espalhando-


se por toda esta Vila e seus subúrbios, trouxe a tristeza e o choro a milhares
de pessoas que lhe são tão dedicadas, quanto o são fiéis a sua doutrina e
prescrição. [...] estando todos certos que nenhum inconveniente trará à Santa
Causa da Religião, antes pelo contrário, sua conservação nesta localidade é
tanto necessária.42

Outro missionário que incomodou o prelado de Dom Luís foi o padre José Antônio de
Maria Ibiapina (1806-1883)43 que missionou pelo Cariri por volta de 1864 e ali encontrou um
território profícuo para suas atividades. Dez anos antes ele havia largado o posto de juiz de
direito em Sobral, cidade onde vivia com a família, rejeitando o matrimônio em favor da
peregrinação missionária pelos interiores do que hoje chamamos de Nordeste.
Gilberto Carvalho destaca que Ibiapina havia mostrado desde o início de sua carreira
como deputado uma tendência a lutar contra as injustiças, angariando vários inimigos e
enfrentando continuamente importantes chefes políticos. Quando esteve no Rio de Janeiro
iniciou uma campanha oposicionista ao governo: “Ficou conhecido na Assembleia pelo seu
temperamento impetuoso e seus violentos ataques ao Governo” (1983: 107). O abandono da
carreira pública teria a ver, seguindo a linha de pensamento dos biógrafos de Ibiapina, com
uma constante insatisfação diante das injustiças sociais e com uma extrema necessidade de
solidão e introspecção.44
Ibiapina seguiu para o Recife onde morou com uma irmã durante três anos na Rua
Santa Rita, desenvolvendo estudos teológicos e cultivando sua vida espiritual. Assíduo

42
Abaixo assinado do Paço da Câmara do Limoeiro de 14.09.1873. ASV, B. 48, Fasc. 226, Doc. 14. ASV.
43
José Antônio Pereira Ibiapina nasceu em 05 de agosto de 1806, em Sobral e era o terceiro filho de Francisco
Miguel Pereira e Maria Thereza de Jesus. O nome Ibiapina foi acrescentado depois pelo pai, em homenagem
ao povoado de Ibiapina na serra da Ibiapaba, norte do Ceará, que os acolheu quando saíram de Sobral.
Ibiapina enveredou pelo meio jurídico, estudando Direito em Olinda chegando a ser deputado-geral na
legislatura de 1834 a 1837 no Ceará. Decidindo naquele último ano tentar a carreira de advogado fora do
Ceará, ele residiu em Areia na Paraíba e depois em Recife, onde exerceu o cargo de juiz de paz entre 1838 e
1850, abandonando neste último ano a vida política e iniciando-se no sacerdócio. Ver: Nobre, Edianne S.
“Padre Ibiapina: itinerâncias missionárias no Cariri cearense (século XIX)”. In: Anais do V Simpósio
Internacional de História, culturas e identidades, 2011, Goiânia, Goiás: Universidade Federal de Goiás, 2011.
v. 01. p. 01-16.
44
Outra versão mais profana da conversão de Ibiapina é narrada por Gilberto Vilar de Carvalho (1983). Ele
conta que em 1834 Ibiapina chegou a marcar casamento com a sobrinha do padre José Martiniano de
Alencar, àquele tempo senador da Província do Ceará. Depois de uma temporada no Rio de Janeiro, voltou
ao Ceará descobrindo que a noiva havia fugido com um de seus primos. Será que essa decepção amorosa
teve alguma influência na sua decisão de “largar o mundo”? Coincidência ou não, foi logo depois de voltar
da Corte que Ibiapina largou seu cargo público e se entregou à vida espiritual.
39
frequentador do Convento da Penha, dirigido pelos oratorianos, decidiu-se por assumir seu
desejo de tornar-se padre e em 1853 o bispo de Pernambuco na época, Dom João Perdigão,
permitiu que ele pulasse algumas etapas da ordenação.45
É importante notar que esse Convento tinha uma orientação oratoriana, na qual se
enfatizava “aspectos práticos ‘úteis’, realistas, baseados mais na caridade concreta do que em
profecias messiânicas” (Hoornaert, 2006: 18-55). Não obstante, seu diretor espiritual era um
padre franciscano, o que promoveu uma mescla importante na sua formação e se manifestou
justamente no aspecto pragmático de suas ações caritativas.
Neste sentido, as pregações e missões46 do padre Ibiapina parecem ser uma adaptação
ou releitura das Santas Missões dos padres capuchinhos, estas por sua vez adaptadas de um
modelo existente na Itália que funcionava ainda nos moldes sugeridos em Trento:

Em sua estrutura básica, a santa missão durava de oito a dez dias [a de


Ibiapina era feita em nove dias]. Na noite de chegada pregava-se o ‘sermão
forte’, que devia ‘demonstrar a gravidade do pecado, a essência da ofensa a
Deus e suas consequências no plano social, a visão exata dos castigos
eternos’, e em seguida havia confissões que se prolongavam durante a noite,
enquanto o povo entoava benditos. [...] O ponto alto da missão era a
procissão de penitência, em que missionários e fiéis perfaziam longos
trajetos em meio a pregações (centradas nas ideias de castigo, inferno e
apocalipse) e muitas confissões (Pompa, 2004:86).

É esse tipo de prática missionária que inspiraria o próprio padre Cícero, como veremos
mais adiante. Um evento que colaborou ainda mais para a fama de Ibiapina foi noticiado em
13 de dezembro de 1868 no jornal A voz da religião.47 O jornal fala sobre a ocorrência de

45
Segundo Ernando Carvalho, a troca do nome só aconteceu a partir de 08 de dezembro de 1855, no aniversário
de proclamação do dogma da Imaculada Conceição de Maria, de quem Ibiapina era devoto (2008: 34, Nt.
31): “No dia 26 do mesmo mês, já era ordenado sacerdote. Passou a assinar seu nome Padre José Maria
Ibiapina, trocando o sobrenome Pereira pelo de Maria em homenagem à Mãe de Jesus, que ia ser culto e
inspiração do seu apostolado. Tinha 47 anos incompletos. Logo após a ordenação sacerdotal Ibiapina desfez-
se completamente do pouco que ainda lhe restava, em bens, inclusive de um resto de livros” (Carvalho,
1983:111).Ver também: Pinheiro, 1963: 52-53; Della Cava, 1976: 33-35. Paz, 2005: 45-46.
46
As missões de Ibiapina se organizavam durante um período de oito dias, dos quais seriam quatro dias de
pregação intensa, quando o padre “empenhava-se em combater os ‘vícios’ que corrompiam a moral dos
sertanejos e em esclarecer os fiéis sobre as virtudes da caridade, bem como sobre os benefícios do amor de
Deus” (Ribeiro: 2003: 13). Após a pregação, que deveria também estimular a prática caritativa, o padre
recebia esmolas públicas por dois dias. No sétimo dia, ele promovia um encontro onde todos aqueles que
tivessem conflitos, brigas, querelas, etc., deveriam se reconciliar. Por fim, o oitavo e último dia servia para
confissão geral, procissão e um ritual de flagelação pública, onde havia também queima de violas e “pontas
de vestidos” (vestidos femininos curtos).
47
O jornal se destacou por ser o primeiro jornal caririense religioso que dedicava suas páginas à vida social e
religiosa da região e, segundo Marrocos, abria “uma página para a história de nossa terra, que nos dê a
conhecer o estado em que nos achamos pelo lado religioso e moral”. Editado semanalmente aos domingos,
possuía cerca de quatro laudas onde eram distribuídos geralmente: um editorial assinado por José Marrocos,
40
“milagres” em uma fonte de água mineral existente no lugar chamado Caldas, na cidade de
Barbalha:

Luzia Pesinho, parda, casada, moradora da vila da Barbalha, paralítica das


pernas a 3 anos pede que a levem à presença do Revdo. Missionário. No dia
20 de Junho de 1868 vê realizado o seu desejo e achando-se ao encontro do
Missionário Cearense, JOSÉ ANTONIO DE MARIA IBIAPINA [sic] que
lhe passava na porta, roga-lhe com a mais viva instancia que lhe ensinasse o
remédio do seu mal. – Eu não sou medico do corpo, lhe diz Venerando Padre
Mestre; o meu ministério é curar as almas. – Ah! Meu Santo Padre, ensine-
me, lhe retorquiu Luzia, sim, ensine-me o que quiser; eu tenho fé de ficar
boa. – Pois bem, mulher, vá tomar 3 banhos na fonte do Caldas ao sair do
sol. Luzia creu, foi ao lugar indicado no meio de uma carga e acompanhada
de seu marido que também sofria de uma hérnia. Ambos foram ao banho e
voltarão bons. 48

Continuamente em todas as edições do jornal – que era semanal – até novembro de


1869, houve divulgação de milagres realizados pelas águas curativas do Caldas que haviam
sido abençoadas pelo padre Ibiapina. No lugar próximo ao da fonte, o padre Ibiapina ergueu a
Capela do Bom Jesus dos Aflitos e provavelmente a ocorrência desses “milagres” tenha
chamado ainda mais a atenção da Diocese sobre a figura do padre Ibiapina.49
Como falamos anteriormente, em julho de 1869, o bispo Dom Luís proibiu qualquer
tipo de Missão no interior substituindo-as pelas Visitas Pastorais, com exceção unicamente de
Missões especialmente recomendadas pelo diocesano. A ordem dirigida ao pároco do Crato,
embora não citasse o nome de Ibiapina se referia claramente a ele e aos fenômenos que
estavam em pauta naquele momento. Iniciou-se aí uma tentativa de controle por parte do
diocesano sobre as ações de Ibiapina e podemos conjeturar que o clima de cordialidade que
permitiu ao padre missionar pelos interiores cearenses havia sido substituído por uma
animosidade que beirava a intolerância.
Outra ação que se destacou na obra ibiapiniana foi a criação de Casas de Caridade.
Mais do que simples recolhimentos, essas Casas serviam ainda como escolas e orfanatos,

notícias relacionadas à Igreja Católica no Brasil e no mundo, uma coluna que narrava a vida e obra do padre
Ibiapina e uma coluna intitulada “Folhetim” que narrava as vidas piedosas de beatas das Casas de Caridade.
Jornal “A voz da Religião no Cariri”, Domingo, 05.12.1868, nº 1, Ano I.
48
Jornal A voz da Religião no Cariri de 13.12.1868, p. 03. Grifos no original.
49
Essas práticas missionárias e predicativas eram muito comuns em todo o Brasil. Durante a primeira metade do
século XIX, por exemplo, o frei Giovanni Maria Agostini peregrinou pelo sul do Brasil, tendo em sua
trajetória, inclusive, episódios ligados à curas milagrosas. Ver: Karsburg, Alexandre de Oliveira. O Eremita
do Novo Mundo: a trajetória de um peregrino italiano na América do século XIX (1838-1869). Tese de
Doutorado. Rio de Janeiro, UFRJ: 2012.
41
tendo ainda uma roda de expostos a fim de desestimular o infanticídio e o aborto. A
instituição foi inspirada no modelo das Irmãs de Caridade de São Vicente de Paula que surgiu
na França, assim, apesar de ser uma instituição leiga, as mulheres que assumiam cargos na
Casa de Caridade se submetiam a uma rotina e ao regulamento inspirado no modelo vicentino
já dominante na Diocese. 50
É importante considerar também que a Igreja e o Estado estavam em conflito direto
desde o governo do Marques de Pombal (1750-1777), o que provocou o fechamento dos
noviciados de ordens religiosas em 1855. As Casas de Caridades se mantinham então como
uma alternativa às mulheres que queriam seguir uma vida religiosa, ou mesmo àquelas que
não tinham condições de manterem-se sozinhas. Não obstante, três anos depois, em 1872, o
padre Ibiapina foi expulso do Ceará e proibido de voltar a missionar na região do Cariri,
sendo obrigado ainda a entregar a direção das Casas à Diocese. O jornal A voz da religião
parou de ser editado e não houve mais menções à fonte miraculosa do Caldas.
A expulsão do padre Ibiapina do Ceará marcou também o fim de sua trajetória como
missionário. Em uma declaração de 16 de setembro de 1872, o padre Ibiapina se despede da
população local:

Fiz entrega das Casas de Caridade do Cariri Novo ao Exmo. e Revmo. Sr.
Bispo por segurar-lhes um venturoso futuro, porque debaixo de tão valiosa
proteção de um Pai tão habilitado pelas circunstâncias favoráveis que o
cercam, não posso deixar de animar a todos os beatos e Irmãs de caridade
para que auxiliem a permanência das Casas e a propriedade delas. […] Não
tendo mais a posição moral que me autorizava a pedir esmolas, os que eram
meus esmoleiros, não poderão mais em meu nome, porém para a Caridade;
esperem as Casas pela deliberação do Sr. Bispo, que não se esquecerá de
providenciar quanto antes para que as Casas não se fechem. […] Adeus, bom
povo do Cariri Novo […]. 51

Em meados de 1873, o bispo D. Luís nomeou alguns padres recém-formados no


Seminário da Prainha de Fortaleza, para assumir a direção das Casas de Caridade e de

50
Geralmente, as Casas tinham ainda uma enfermaria para doentes internos e externos, uma escola onde eram
ensinadas as primeiras letras, cisternas para armazenar a água das chuvas, dormitórios, cozinhas, lavanderias
e um espaço para produção de pequenas manufaturas que supriam uma parte das necessidades financeiras da
Casa. Mas a maior fonte de recursos para construção e manutenção das Casas provinha do auxílio da
população: as terras e os materiais de construção eram doados por pessoas mais abastadas enquanto os mais
pobres ajudavam com a mão-de-obra. Ibiapina, Padre José M. Regulamento interno para as Casas de
Caridade. Manuscrito. Transc. Edianne S. Nobre. Departamento Histórico Diocesano Padre Antônio Gomes,
Cúria Diocesana do Crato, Ceará, p. 09.
51
“Declaração que faz o Padre Ibiapina aos Irmãos, Beatos e Irmãs das Santas Casas de Caridade do Cariri
Novo” em Gravatá, 16.09.1869 apud Pinheiro, 1950: 161-162.
42
paróquias no interior do estado, entre eles os padres Fernandes Távora (1851-1916) e
Francisco Rodrigues Monteiro. Começaria aí uma nova fase das Casas de Caridade que
ficaram sob o controle das irmãs vicentinas. Pouco a pouco as Casas foram perdendo o foco
do seu objetivo principal. Após sua partida, o padre Ibiapina se fixou na Casa de Caridade
Santa Fé (Arara, PB) onde faleceu em 19 de fevereiro de 1883.
Ainda em 1883, Dom Luís Antônio dos Santos deixou a Diocese cearense, para
assumir o mais importante cargo na hierarquia religiosa brasileira naquele momento, o de
Arcebispo da Bahia. O Ceará já possuía então dois seminários, o Seminário Episcopal da
Prainha em Fortaleza e o Seminário São José na cidade do Crato, ambos dirigido pelos padres
franceses da Congregação da Missão.
Em seu lugar, a diocese recebeu o paulista de Itapetininga, Joaquim José Vieira,
formado no Seminário Episcopal da Diocese de São Paulo (1860). Descrito como
“empreendedor, caritativo, afável, dedicado, prudente e conciliador” o padre Vieirinha, como
era conhecido, foi indicado pelo Imperador Dom Pedro II para a Sé Episcopal de Fortaleza em
1883 e chegou ao Ceará em 1884 com 48 anos de idade e 24 anos após sua ordenação no
Seminário de São Paulo dos Capuchinhos.52
Cuidando em seguir os passos do seu antecessor, Dom Joaquim realizou o primeiro
Sínodo cearense em 1888, cujo objetivo principal era tratar “da reforma dos costumes, da
extirpação de abusos por ventura introduzidos, e, finalmente, dos meios mais conducentes a
fiel observância dos mandamentos divinos e eclesiásticos”, incorporando assim as decisões do
Concílio Vaticano I (1869-1870).53
Esse Sínodo expressava ainda as principais preocupações da Igreja Católica, naquele
momento, em particular, da Diocese cearense, no sentido de conter algumas “manifestações
exacerbadas” da religião, expressas principalmente na forma como os ritos eram conduzidos
pelo laicato em geral.54 Outros objetivos eram: regulamentar as matérias concernentes à
administração dos sacramentos e o culto em geral e impor um melhor comportamento aos

52
O processo canônico de indicação do padre Joaquim José Vieira encontra-se no Arquivo dos Bispos Regulares
(Archivo dei Vescovi Regolari) no Arquivo Secreto Vaticano, B. 55, Fasc. 262, Doc. 10-27. Ver anexo n°1.
53
O documento produzido nesse Sínodo contém discussões que versam sobre a doutrina católica, os deveres e
direitos dos eclesiásticos, a conduta individual e o papel social dos padres, e até da estrutura física das igrejas
e paróquias da região. Com a realização deste Sínodo, o bispo D. Joaquim pretendeu reformular o código de
conduta dos sacerdotes e também atualizar o culto, pois, até então, o código que regia a conduta eclesiástica
eram as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, publicadas em 1707. Ver: Constituições Sinodais
de 1888, p. XVIII.
54
Constituições Sinodais de 1888. Arquivo da Cúria Diocesana – DHDPG.
43
padres da região, famosos por constituírem família e não respeitar o celibato. No ano seguinte,
os objetivos e preocupações expressas no texto que conclui o Sínodo ficaram mais evidentes.

***

O ano de 1889, por sua vez, marcou uma importante mudança política: a Proclamação
da República no Brasil, um sistema de governo que segundo José Murilo de Carvalho (1987:
11), “se propunha, exatamente, trazer o povo para o proscênio da atividade política”, mas que
acabou por alargar ainda mais a separação entre o povo e uma elite intelectual e política. A
instituição de um novo regime político instaurou uma significativa mudança nas relações
entre a sociedade e a religião, culminando com a definitiva separação entre o Estado e a
Igreja.
Certa elite intelectual recebeu com vivas e comemorações essa separação que
assinalou uma importante vitória para o novo regime, cuja primeira medida foi retirar da
Constituição o Artigo 5° que fazia da Igreja Católica Apostólica Romana a única religião do
Império.55 A Igreja liderada naquele momento pelo Papa Leão XIII acedeu à separação como
uma estratégia política, uma vez que era impossível e perigoso ser contra a instalação do novo
regime que se faria de qualquer forma, com ou sem o apoio religioso.
A grande preocupação era como a Igreja iria se adaptar à nova ordem, como os
episcopados deveriam agir, principalmente, depois da publicação do Decreto A-119 de 07 de
janeiro de 1890, no qual o novo regime se desobrigava, pelo fim do Padroado56, a manter o
culto católico, colocando sob ameaça questões caras à Igreja como “o casamento civil, a
possibilidade de espoliação dos bens eclesiásticos e a possibilidade de que o novo regime
levasse a frente uma política de descristianização” (Reis, s/d: 07).

55
Art. 5º. A Religião Católica Apostólica Romana continuará sendo a religião do Império. Todas as outras
religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma
exterior de templo (Nogueira apud Reis, s/data: p. 01).
56
O padroado régio originou-se ainda na Idade Média, no qual se estabelecia uma relação de trocas entre o
Estado monárquico e a Igreja. Esta última assegurava ao Estado a legitimação da dominação através da
indicação de um individuo que atuasse nesse sentido, enquanto o Estado assegurava a presença da Igreja nas
colônias e sustentava os sacerdotes mediante o pagamento de um salário (Cf. Gomes, 1997: 33). No Brasil do
século XIX, a concepção de padroado estava mais ligada à ideia de um “poder adquirido” por parte do
Império em relação à Igreja: “A partir do Segundo Reinado, o governo passou a adotar uma perspectiva
regalista, ou seja, pretendia a completa subserviência da Igreja ao Estado” (Souza, 2007: 162). Essa relação
veio de Portugal, muito antes da independência, sendo reproduzida no Brasil. É contra essa perspectiva
regalista que a Igreja reage, fortalecendo seu vínculo com a Sé Romana e dando inicio a uma Reforma da
Igreja que ficará conhecida no Brasil como “Romanização”.
44
Ao que consta, iniciou-se nesse período uma intensa comunicação entre os bispos e
cardeais brasileiros e romanos sobre a separação entre a Igreja e o Estado, a fim de esclarecer
quais as opiniões pessoais sobre a separação e quais estratégias de ação seriam efetivadas
naquele momento.57 O Clero brasileiro dividia-se em opiniões sobre os efeitos que a separação
poderia causar.
O cônego Eduardo Duarte e Silva (1852-1924), por exemplo, apesar de ter sido
Capelão Imperial em 1880, considerou que a República trazia uma “bela oportunidade para a
Santa Sé vir em auxílio do Brasil”, uma vez que, “sendo abolido de uma vez para sempre o
maldito padroado”, “tendo o novo decreto reconhecido a personalidade jurídica das Ordens
Religiosas e, tendo dado liberdade de possuir e administrar os bens”, seria o caso de a Santa
Sé obrigar as ordens a transferir os bens para os Episcopados, a fim de que nada caísse nas
mãos do Governos caso uma Ordem viesse a acabar”.58
Já o novo bispo cearense Dom Joaquim José Vieira opinava diferente. Ele entendia
que o Decreto trazia sérias dificuldades à Igreja no Brasil, uma vez que seria preciso criar
urgentemente uma estratégia de subvenção de recursos para sustentação do culto católico. No
entanto, para o bispo, o mais grave era o ponto que tratava da liberdade e igualdade de cultos:

[...] o decreto abre porta franca para o positivismo, espiritismo e quejandas


doutrinas [...] a igualdade de cultos é por si mesma injuriosa à Religião

57
Encontrei no Fundo da Nunciatura Apostólica (ASV) em Roma, três pastas com cartas entre o Internúncio no
Brasil, Mons. Spolverini, o Secretário de Estado, Cardeal Rampolla e bispos brasileiros sobre a separação. Na
época um ofício circulou entre o Episcopado, no qual os bispos deveriam responder em caráter de urgências a
algumas questões como: “Qual a impressão geral de V. Ex. sobre este decreto em relação ao estado e futuro
da Egreja no Brazil e aquilo que podia-se temer mais? [...] Que vantagens e consequências advirão à Igreja
pela abolição do Padroado e suas prerrogativas a respeito de nomeações aos Bispados e aos Benefícios e
honras eclesiásticas?”. Circular Reservada enviada pelo Internúncio Apostólico em 13.01.1890 aos Bispos do
Brasil. Nunciatura Apostólica, ASV, B. 68, Fasc. 330, Doc. 17, p. 43. Ver anexo n° 03.
58
Tradução minha: “Prescindendo dal gran male che é in si, mi sembra che ciò nonostante possa recarsi qualche
vantaggio alla Chiesa del Brasile, essendo stato abolito una volta per sempre quel maledeto patronato. Povero
Doria! Come in un momento Deodoro ha buttato giù per terra il famoso jus in sacra! L’impresione fatta dal
decreto non é stata cattiva nel clero, il quale solamente deplora non potere contare con un Vescovo che si
metta su per estimolare i fideli e fare risorgere la Chiesa fino ad oggi schiatata ad abbollita dal potere
secolare. Ah! Monsignore che bella opportunitá per la S.Sede quanto prima venire in aiuto del Brasile,
giacché si i fogli comminciano a dire che ci hanno lasciato troppa libertá e che il Governo ha fatto male in
prescindere del diritto di fase [??] nomine, sono capace di tornare addietro e riformare il decreto. Mi permetta
la libertá di suggerire a V.Exca. una idea: avendo il decreto reconosciuto la personalitá giuridica degli Ordini
Religiosi ed avendo data la la libertá di possedere ed amministrare i beni, non sarebbe ottima cosa se la
S.Sede obbligasse a tutti gli Ordini a fare un atto di donazione con tutte le formalitá alle risperrive mense
[p.09] episcopali, riservandosi peró l’amministrazione e l’uso frutto finché viva l’ultimo dei Religiosi? Con
questo proveddimento non c’é pericolo che estinti gli ordini vadano i beni a cader in mano al Governo.”
Carta do Cônego Duarte e Silva para o Internúncio Apostólico Monsenhor Spolverini em 09.01.1890. ASV,
B. 68, Fasc. 329, Doc. 5, p. 08.
45
Católica, porque coloca a verdade e o erro no mesmo nível. [...] Em resumo:
a Separação da Egreja do Estado é um mal imenso para a Igreja Católica no
Brasil, e influirá perniciosamente nos futuros costumes da Nação. Seria
muito para desejar se houvesse perfeita harmonia entre o poder espiritual e o
temporal auxiliando-se mutuamente no desempenho de suas respetivas
missões. Infelizmente, parece-me pouco provável a conservação dessa
harmonia sem quebra da dignidade da Igreja. Se assim o é, exortamos de
dois males o menor: venha a Igreja livre no Estado livre.59

Formado no espírito ultramontano, evidentemente, era difícil para Dom Joaquim


aceitar a total liberdade de cultos. No interior da Diocese, ainda se praticava um catolicismo
muito similar àquele colonial, forjado através de representações consideradas supersticiosas, e
que estimulavam práticas banidas da ortodoxia, como a flagelação, e a adoração direta a Deus
dispensando intermediários.
Nesse contexto de mudança política e religiosa, aconteceu o sangramento da hóstia na
boca de Maria de Araújo, em março de 1889, alguns meses antes da Proclamação da
República. Entre os sacerdotes que apoiavam Maria, o destaque é evidentemente dado ao
padre Cícero Romão Batista, diretor espiritual da beata desde sua infância. Nos próximos
capítulos veremos, como a atuação deste sacerdote, explica, de certo modo, porque os
fenômenos puderam obter tanta notoriedade e, ao mesmo tempo, porque eles não poderiam
ser considerados como milagrosos.

59
Carta de D. Joaquim José Vieira a Monsenhor Spolverini em 07.02.1890. ASV, B. 68, Fasc. 330, Doc. 25, pp.
67-69. Ver anexo n°3.
46
1.2. O “milagre” e as reações da Igreja

Eram passados já três anos que acontecia o prodígio, mas o confessor da dita
religiosa, Pe. Cícero Romão Baptista, sacerdote de costumes irrepreensíveis,
muito bem instruído, zeloso e sumamente dedicado à nossa Santa Religião,
mas sendo incapaz de querer enganar a quem quer que fosse (como diria o
mesmo Exmo. Sr. Bispo diocesano D. Joaquim José Vieira na sua sentença
com relação a estes fatos) tinha sempre procurado mantê-lo oculto. Mas
Deus que com esse prodígio queria provocar a fé já quase extinta desse povo
na Sua presença real no sacramento da Eucaristia, arranjou tudo de modo
que contra o querer do Sacerdote e da Religiosa o fato fosse publicado.60

Não sabemos ao certo quantas pessoas estavam presente na Capela no momento em


que a hóstia sangrou na boca de Maria de Araújo. O padre Cícero nos conta que o fato
surpreendeu não só aos presentes, mas a própria beata parecia atordoada com o ocorrido.61 O
fenômeno continuou acontecendo todas as quartas e sextas na capela de Nossa Senhora das
Dores a partir daquele dia e o padre Cícero conseguiu ocultá-lo com certo sucesso por alguns
meses.
No entanto, todo esforço não foi suficiente para esconder o fenômeno dos outros
padres da região. Em sete de julho daquele mesmo ano – não coincidentemente no mesmo dia
em que se celebrava a festa do Preciosíssimo Sangue62 –, o reitor do Seminário do Crato,
monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro (1847-1912)63, liderou uma pequena procissão com

60
Tradução minha: “Erano già trascorsi tre anni che si operava questo prodigio, ma il confessore di detta
religiosa, D. Cicero Romão Baptista sacerdoti di costumi irrreprensibili, molto bene istruito, zelante e
sommamente dedicato alla santa nostra religione, però incapace di volere ingannare chicchesia (come ebbe a
dire lo stesso Eccmo. Sig. Vescovo diocesano D. Gioachino Giuseppe Vieira nella sua sentenza intorno a
questo fatto) aveva sempre procurato di ternelo occulto. Ma Dio che con questo prodigio voleva arrivare la
fede già quasi estinta di questo popolo intorno alla sua presenza reale nel Sacramento della Eucaristia,
dispose tutto in modo che contro il volere del Sacerdote e della Religiosa il fattto si pubblicasse.” .
Apresentação do Processo em Italiano pelo Pe. Francisco Ferreira Antero in Rerum Variarum, Doc. 04,
ACDF. Grifo no original. Ver anexo n° 04.
61
Exposição circunstanciada do Pe. Cícero R. Batista em 17.07.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 03.
62
A festa dedicada ao Preciosíssimo Sangue de Jesus Cristo está ligada a uma relíquia conservada na igreja de
São Nicola no Cárcere em Roma. Segundo a tradição, a relíquia era um pedaço do manto do centurião que
traspassou Cristo com a lança para verificar se ele estava morto. Em 1708 os príncipes Savelli de Roma, que
se consideravam descendentes do Centurião, doaram à igreja de São Nicola em Cárcere a relíquia, fazendo
celebrar todos os anos, no primeiro domingo de julho a festa do Preciosíssimo Sangue. Em 1808, no
primeiro centenário da doação, o Cônego Francisco Albertini fundou uma Pia Associação em honra do
Preciosíssimo Sangue. Em 1849 o papa Pio IX estendeu a festa à toda a Igreja com o Decreto “Redempti
sumus”. Fonte: http://www.asc.pcn.net/i/ftpasc/pdf/lug08_por.pdf Ver mais na Encíclica Indi a Primis de João
XXIII: http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii
63
Monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro era natural da cidade do Crato e se formou sacerdote na mesma
época do padre Cícero. Em 1888 retornou ao Crato, depois de ter passado uma temporada como capelão na
47
cerca de três mil pessoas em direção à capela de Nossa Senhora das Dores em Juazeiro, a fim
de prestar culto ao sangue que brotava nas hóstias consumidas por Maria de Araújo e que
eram colhidos em paninhos e sanguíneos.64 Essa procissão ficou conhecida como a primeira
romaria a Juazeiro e deu extrema publicidade ao fenômeno do sangramento da hóstia.
Toda esta notoriedade que o culto ao Sangue Precioso (como era chamado o sangue
que vertia das hóstias de Maria de Araújo) ganhou, considerando-se principalmente que
estava sendo corroborado pelos padres da região, chamou a atenção do bispo cearense. É
possível perceber um tom de surpresa e indignação na carta enviada ao padre Cícero em
novembro de 1889, na qual Dom Joaquim pede esclarecimentos sobre o “boato que aqui corre
65
com relação à beata Maria de Araújo”. Na mesma carta, o bispo relembra que em 1886, o
padre lhe havia comunicado “certas maravilhas praticadas por esta devota” e o adverte sobre
as orientações que havia dado no sentido de evitar ilusões. 66
A principal queixa de Dom Joaquim dizia respeito ao fato de não ter sido comunicado
imediatamente sobre a nova ocorrência de fenômenos e, principalmente, por haver sabido
deles através dos jornais. Além disso, padres de outras cidades começaram a escrever
comunicando a saída das pessoas em romaria ao povoado de Juazeiro. Contrariando parte da
historiografia sobre o tema é possível aventar, através da análise das cartas trocadas entre o
bispo e o padre, que eles tinham uma forte relação de afetividade e respeito construída ao
longo dos anos, desde a chegada do bispo paulista à Diocese cearense, relação que
discutiremos mais adiante.
Outro fator agravante para o bispo foi a atitude precipitada de monsenhor Francisco
Monteiro em organizar uma romaria, fato que “abalou o Ceará e excitou a curiosidade
pública” levando a notícia aos quatro ventos.67 Esse desconhecimento sobre o caso foi
decisivo para que o bispo se posicionasse desde o início contra os fenômenos:

cidade de Iguatu e assumiu a direção do Seminário São José que estava fechado desde a seca de 1877-78.
Segundo Della Cava, monsenhor Monteiro “angariou para si a reputação de orador veemente, profetizando a
punição iminente da humanidade por Deus […] foi também conhecido por seus brados e vociferações
durante o sermão, o que provocava lágrimas de arrependimento em seus paroquianos” (1976: 44).
64
Segundo Laura de Melo e Souza: “O sanguinho ou sanguíneo (como se diz hoje) era um pedaço de pano fino,
do formato de um guardanapo, utilizado pelos sacerdotes para limpar o cálice após a consagração do vinho
em sangue de Cristo. Encerrada a missa, era geralmente guardado na sacristia” (1994: 214).
65
Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Cícero R. Batista em 04.11.1889 in “Documentário”, p. 28.
66
Aqui Dom Joaquim se refere a alguns episódios da vida devota de Maria de Araújo, especificamente, visões e
êxtases, sobre os quais falaremos mais no próximo capítulo. Idem.
67
DHDPG/CRB 04,26: Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Cícero R. Batista em 07.03.1890.
48
Como Bispo desta Diocese não posso ser estranho a esse movimento, e por
isso interpelo a V.Revma. sobre o fato, pela seguinte forma: primeiramente
estabelecerei a seguinte preliminar: Sou amigo e admirador de V.Revma.,
confio na sua sinceridade e na sua ilustração, e por isso o julgo incapaz de
qualquer embuste. Mas, padre Cícero, como se explica isto: V.Revma. é a
única pessoa que pode atestar o fato portentoso da conversão da partícula
em sangue, e a sua palavra de sacerdote respeitável e respeitado que produz
todo este movimento de romarias, etc. etc. Entretanto, a mim que sou bispo
da Diocese, nada se diz!!! Como é que pretende estabelecer uma nova ordem
de coisas religiosas, sem audiência do Diocesano! Como se dá audiência a
um fato ainda não completamente averiguado?!! 68

Nessa carta temos alguns indícios que podem ajudar a compreender a contrariedade do
bispo com relação aos fenômenos de Juazeiro. Além do mal-estar criado pela falta de
comunicação entre os padres e a Diocese, devemos considerar ainda o próprio contexto social
e religioso daquele final de século no Brasil. Ao perguntar, “como se pretende estabelecer
uma nova ordem de coisas religiosas sem a audiência do diocesano?”, Dom Joaquim destaca
algumas questões importantes e nos chama atenção para as relações estabelecidas entre clero e
leigos.
Na região do Cariri, a atuação dos leigos em atividades religiosas ou mesmo a
liberdade de usos do espaço da Igreja não era novidade e, muitas vezes, as relações entre
clérigos e leigos não eram pacíficas. Não obstante todo o esforço da Igreja para retomar o
controle absoluto sobre os ritos e cultos católicos, destituindo os leigos dessas funções, é
possível afirmar que no final do século XIX, beatas e beatos representavam a maior evidência
de participação leiga na religião, não só no Cariri cearense, mas também em outros lugares do
Brasil. Os leigos circulavam com certa facilidade entre os âmbitos público e privado, ora na
atuação cotidiana em Associações de piedade, ora na administração de Recolhimentos (Cf.
Algranti, 1993).
Em março de 1889, o medo da fome e da seca devido à escassez de chuvas fez com
que a população de Juazeiro saísse às ruas em procissão, recitando novenas e ladainhas ao
Bom Jesus, enquanto na Capela de Nossa Senhora das Dores era realizado um louvor de
reparação ao Sagrado Coração de Jesus (Della Cava, 1976: 56). Foi justamente nessa
cerimônia que a hóstia sangrou pela primeira vez na boca de Maria de Araújo.
Os paninhos manchados do sangue que escorria da hóstia e da boca da beata, a
princípio ficaram sob a guarda do padre Cícero, mas logo foram expostos à visitação pública

68
Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Cícero R. Batista em 04.11.1889 in “Documentário”, p. 28. Grifos nossos.
49
e, além disso, o sangramento foi proclamado como milagre sem o conhecimento e sem a
autorização do bispo diocesano. Foi essa atitude de omissão e de quebra de hierarquia por
parte do padre Cícero e dos sacerdotes da região que consolidou em Dom Joaquim a certeza
do embuste.
Para o bispo, o culto não poderia ser estimulado sem que houvesse antes uma
investigação apropriada que confirmasse, segundo a doutrina da Igreja se os “fatos
extraordinários” eram mesmo divinos e passíveis de culto. Dom Joaquim parecia ter a
dimensão das consequências que um evento como esse podia acarretar, ao contrário do padre
Cícero, que permanecia seduzido pela ideia do milagre.
Em carta, provavelmente datada de setembro de 1889, Dom Joaquim adverte o padre
Cícero: “Atenda-me bem e não me desobedeça mais: os fatos extraordinários do Juazeiro
exigem máxima prudência, grande circunspecção, de modo que não se anuncie doutrina nova,
não se dê culto novo sem permissão da Igreja” (Pinheiro, 1963: 466). Em outra carta, de
novembro de 1889, o bispo solicitou ao padre Cícero que fizesse uma exposição minuciosa
“de todas as circunstâncias que precederam, que acompanharam e subseguiram o fato”.69 Não
temos a carta enviada pelo padre Cícero ao bispo diocesano, mas em 17 de janeiro de 1890, o
bispo alega, que a partir da narração do padre e também do relato obtido do monsenhor
Monteiro, não era possível “depreender a veracidade do fato portentoso, isto é, de se ter
convertido em sangue a sagrada partícula”. 70
O argumento de Dom Joaquim partia da premissa de que deitar sangue pela boca no
momento da comunhão não era suficiente para atestar a conversão da hóstia, pois, o sangue
poderia provir de um ferimento já existente ou mesmo ter sido forjado. Para o bispo, “um
milagre é coisa muito séria” e nenhum fato poderia ser apresentado como miraculoso “sem
que esteja revestido de provas tais que não seja lícito a um homem sensato e razoável da sua
veracidade”. 71
Dom Joaquim queria deixar claro que, se um fato ocorria fora das vistas do diocesano,
sem sua avaliação, e principalmente, um fato acontecido com uma mulher leiga, não poderia
ser qualificado de milagre sem uma investigação mais apurada. Diante disso, o bispo exarou
uma série de medidas a serem tomadas a partir daquele momento, com o intuito de reunir um
conjunto de provas razoáveis para serem apresentadas:

69
Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Cícero R. Batista em 04.11.1889 in “Documentário”, p. 28.
70
Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Cícero R. Batista em 17.01.1890 in “Documentário”, p. 29.
71
Idem.
50
Importa muito, V.Revma. [refere-se ao padre Cícero], na hipótese de se
darem novas maravilhas, procurem cercá-las de testemunhas que possam
depor sob juramento o que viram e ouviram, de modo que se possa formar
um processo regular, diversamente não passará o negócio de uma crendice
particular [...] Se Deus quiser operar qualquer maravilha em favor do Ceará,
Ele o fará de modo que não deixará dúvida alguma. 72

A questão se agravou consideravelmente quando, em 24 de abril de 1891, foi


publicado no jornal O Cearense um atestado médico do Dr. Marcos Rodrigues Madeira,
descrevendo minuciosamente o episódio da transformação da hóstia e dando parecer médico a
respeito do que havia presenciado. Transcrevemos abaixo parte do referido atestado, que
apesar de ser um pouco longo é uma peça fundamental para nossa análise:

Atesto que sendo chamado para observar a beata Maria de Araújo, poucos
minutos depois de ter comungado no dia 26 do corrente [março de 1891] [...]
examinando nesta ocasião a língua da referida beata, verifiquei com meus
olhos, que a partícula estava quase toda transformada em uma pasta
sanguínea, menos na parte central, na qual se divulgava ainda uma pequena
parte em sua cor quase natural. [...] Esse sangue assim descrito tomava a
forma de um coração humano e acima deste coração assim descrito
observava-se uma úlcera na parte média e anterior da língua, cujas bordas
eram salientes e se elevavam bastante na língua. [...] Minutos depois, quando
tornei a aproximar-me para proceder a novo exame na língua da referida
beata já não encontrei nada do que antes havia observado com muita
atenção. O sangue tinha desaparecido completamente e bem assim a úlcera
ou chaga como chamaram as outras pessoas que comigo foram testemunhas
do fato, não ficando absolutamente na língua o menor vestígio dos
fenômenos que acabava de operar-se. [...] Continuando ainda o meu exame
não descobri a menor ferida, úlcera ou ferimento de natureza alguma na
língua, gengivas, laringe e enfim em toda a cavidade bucal, sendo de notar-
se que a língua estava completamente limpa e sem ter mesmo a menor
rachadura. Outro fato digno de menção é que este sangue completamente
rubro não sofreu a menor alteração na sua cor durante todo o tempo que foi
observado na língua, pelo espaço de duas horas mais ou menos, apesar da
ação do ar atmosférico, que com ele estava em contato. Quanto a mim trata-
se de um fato sobrenatural para o qual não me foi possível encontrar
explicação cientifica. 73

A publicação deste documento foi decisiva para que o bispo tomasse providências
mais severas com relação ao evento que “movimentava” o interior da sua diocese. Para Dom
Joaquim, já era grave os padres da sua Diocese acreditarem piamente nos fenômenos
ocorridos com uma mulher da qual não se sabia ao certo a procedência e, além disso, agissem

72
Idem.
73
Jornal O Cearense de 24 de abril de 1891, p. 2.
51
em total descaso com sua autoridade não só omitindo os fatos, como também prestando culto
e organizando romarias sem autorização.
Ora, isso tudo se complicou deveras quando em seu atestado o Dr. Marcos Madeira
afirmou não ter encontrado explicação para o caso que qualificava como “um fato
sobrenatural”. As publicações deste tipo se tornaram frequentes nos periódicos, como
veremos a seguir, e foi provavelmente ali que Dom Joaquim começou a perder o controle
sobre os sacerdotes e sobre o caso.

52
1.3. Maria de Araújo mise en scène

Pela segunda vez celebrou-se na povoação do Juazeiro, a festividade da


Semana Santa, e na ordem do costume foi enorme o concurso popular;
ficando toda a Igreja tão cheia, que os fiéis assistiram em pé aos atos
religiosos por não se poderem ajoelhar! [...] Toda a festa correu mui pacífica
e regularmente, embora a multidão quase inumerável do povo de todas as
freguesias do Cariri e dos sertões limítrofes.74

As notícias sobre a repercussão do milagre foram publicadas não somente em jornais


estaduais e locais, mas também na imprensa nacional. É difícil calcular o alcance que a notícia
teve, mas é certo que a veiculação dos acontecimentos na imprensa foi uma das grandes
responsáveis pela popularidade de Juazeiro já desde o final do século XIX.
Encontramos na documentação que analisamos cerca de 30 notícias e relatos sobre os
fenômenos de Juazeiro em periódicos nacionais, inclusive, já em agosto de 1889, o Diário do
Comércio (Rio de Janeiro) noticiava o acontecimento fazendo referência a uma carta datada
de 8 de julho recebida pelo editor do referido jornal, o que demonstra a repercussão imediata
dos acontecimentos:

Na capela de Nossa Senhora das Dores, ereta na povoação do Juazeiro, teve


lugar um verdadeiro milagre, presenciado por inúmeras pessoas entre as
quais um cavalheiro merecedor de toda a fé, o qual, em carta a outro,
morador nesta cidade, dele dá noticia nos seguintes termos: ‘Quando o padre
Cícero dava comunhão à virtuosa beata Maria de Araújo, transformou-se a
sagrada forma em sangue que caiu na toalha e na murça da beata, fato que
se foi dando todas as sextas-feiras e depois diariamente’.75

O pequeno artigo não é assinado, mas foi provavelmente escrito por José Marrocos,
autor da maioria dos artigos que encontramos. Entre os que utilizamos neste trabalho, cinco
destes são anônimos, dois deles foi assinado por certo “Peregrino do Rio de Janeiro”76, apenas
um deles foi assinado pelo Monsenhor Monteiro77 e outro por José de Arimatéia,78 que
acreditamos ser um pseudônimo do próprio José Marrocos.

74
Jornal O Estado do Ceará, Fortaleza, 30.04.1891. Ano I, n° 203.
75
Diario do Commercio, Segunda-feira, 19.06.1889, Rio de Janeiro, Anno II, n° 257. SH/BN.
76
Nos jornais: Rio Grande do Norte (Natal, RN, 12.03.1893) e Gazeta de Mogy Mirim (São Paulo,
09.04.1893). ACDF.
77
Jornal Estrella d’Aparecida, São Paulo, abril de 1891.
78
Jornal A Província de Recife, PE em 07.03.1909.
53
Como era de se esperar, os jornais apresentavam tanto posturas críticas, como a favor
dos milagres e das peregrinações. Destacamos aqui o diário O Estado do Ceará79, que a priori
ensaia uma linha de defesa do padre Cícero. O referido jornal não só acompanhava o avanço
das peregrinações, como também fazia a cobertura das festividades religiosas locais, como
podemos ver na citação que abre esse tópico. Especialmente durante o ano de 1891, o jornal
acompanha os passos do padre Cícero, noticiando, por exemplo, suas viagens pelo interior da
província:

A notícia inesperada de achar-se o virtuoso Padre Cícero no dia 10,


descansando em Santo Antônio 2 léguas ao sul daqui, foi como uma centelha
atirada no meio de materiais combustíveis, e que por si mesma, encarrega-se
de atear o mais formidável incêndio. Divulga-se às 11 horas do dia a
almejada notícia da aproximação do Enviado do Senhor e desde então, a
população aceleradamente percorre as ruas com a mais plena manifestação
de regozijo íntimo que a dominou. 80

No entanto, apenas um mês depois da publicação do artigo acima, o mesmo jornal


publicou uma carta do Sr. Júlio César da Fonseca Filho81 que defendia a tese de que Maria de
Araújo era apenas uma histérica. O editorial explica:

Os fenômenos que se dão com a beata Maria que no Juazeiro do Crato tem
induzido a população à crença de manifestações miraculosas, não passam de
sintomas patológicos perfeitamente explicados na carta que sobre o assunto
nos dirigiu o nosso ilustrado amigo, o Sr. Júlio César da Fonseca com que
havíamos conversado a respeito.82
No referido artigo, o autor, intelectual respeitado na província, arvora-se de
“conhecimento científico” para rotular a beata como histérica. Apresentando-se como um
católico ortodoxo, “de cuja doutrina dogmática não me afasto num ponto sequer”, Júlio César
afirma que o fenômeno ocorrido com Maria de Araújo não era simulação ou embuste, mas
uma doença comum às mulheres, o histerismo, sobre o qual falamos no capítulo anterior. O
escritor lembra que suas conclusões foram tiradas a partir de uma análise superficial do caso,
uma vez que não teria ido ao Juazeiro para investigar melhor, assim, afirma:

79
Órgão liberal de Fortaleza, funcionou entre 1890 e 1899.
80
Jornal O Estado do Ceará, Fortaleza, 30.04.1891. Ano I, n° 213.
81
Júlio César da Fonseca Filho nasceu em 10.10.1850 em Aracati e faleceu em 18.04.1931. Foi jornalista e
bacharel em Direito, tendo publicado artigos e resenhas em vários jornais do Ceará e foi membro do Instituto
Histórico do Ceará. Ver: Weyne, Regina. Júlio César: um republicano e abolicionista no Ceará .Fortaleza:
Edição da autora, 2001.
82
Jornal O Estado do Ceará, Fortaleza, 25.05.1891. Ano I, n° 233.
54
Se Maria de Araújo não é puramente uma histérica-tipo [sic] no seu gênero,
como suponho com bons fundamentos, é sem dúvida uma neurastênica de
temperamento hemofílico. [...] Portanto, Maria de Araújo não é uma mística
nem tão pouco uma mistificadora. É uma devota, uma doente. [...] Creio no
milagre, tal como ensina a Igreja, Mestra Infalível da Verdade; o que porém,
se está passando no Juazeiro, é apenas um acontecimento naturalíssimo.83

Em outras palavras, Maria de Araújo, apesar de devota, seria apenas vítima de uma
doença com a qual não sabia lidar. Com a publicação do artigo de Júlio César, o editorial do
jornal O Estado do Ceará mudou de opinião e nos números seguintes qualquer manifestação
de apoio aos milagres, a Maria de Araújo ou ao padre Cícero, passou a ser publicada com a
ressalva “A pedido”.
Em dois de julho, dois meses depois, foi publicada anonimamente uma resposta ao
artigo de maio. Em forma de poesia, o autor defende os milagres e critica as conclusões de
Júlio César:
Um certo rapagão
Bem alto, espigado,
Que de nada entende,
Mas é arrojado...

Veio agora no jornal,


Com ares de sabichão
Supondo ter resolvido
Uma importante questão.

[...]
Será ou não milagre
O caso do Juazeiro?
Responde, não tardes não,
Meu toleirão, meu sendeiro.

[...]
Eis-te, pois, atolado
Na lama, meu berimbau
Não tenha medo de nós
Não te daremos de pau

Se não entendes da causa,


Mete a viola no saco,
Depois pode acontecer
Que te reduzam a caco!
(Crato, Junho, 1891)84

83
Idem.
84
Jornal O Estado do Ceará, Fortaleza, 02.07.1891. Ano I, n° 263.
55
Escrito em tom humorístico, a pequena trova indicava também um sentimento que se
espalhava entre os crentes do Juazeiro: a defesa dos milagres a todo custo. Tal defesa partia da
desqualificação do “inimigo” – inexperiente, metido a sabido –, e carregava implícita uma
ameaça: “Depois pode acontecer/Que te reduzam a caco”.
Menos irônico e mais devoto, outro artigo publicado, também a pedido, na semana
seguinte trazia em três colunas, o testemunho do Dr. Pedro da Costa Nogueira, advogado da
Intendência Municipal de Milagres, cidade próxima ao Juazeiro, que com toda sua família foi
ao povoado, exclusivamente para “beijar e adorar o sangue do Filho de Deus”. O advogado
critica os “incrédulos que falam de magnetismo, à que atribuem os miraculosos e portentosos
fatos do Juazeiro” e ensaia uma breve defesa da beata:

Maria de Araújo (beata predestinada) é uma moça sem família conhecida,


mal parecida, analfabeta, mas muitas vezes feliz e de costumes puríssimos.
Não é mais possível duvidar da autenticidade deste fato prodigioso do
Juazeiro, pois a ele estão ligados os protestos do céu, e as convicções da
natureza. 85

É interessante como o autor prepara uma imagem depreciativa da beata para logo em
seguida, justificar o milagre. Para ele, independentemente dos padrões de beleza e desejos
humanos, era a vontade divina que prevalecia. Alguns números depois, especificamente, nos
dias 10 e 11 de agosto de 1891, o mesmo Estado do Ceará publicou um atestado do Dr.
Idelfonso Lima. A última publicação deste jornal sobre os milagres de Juazeiro naquele ano
de 1891 foi outro pequeno poema, em tom mais sério, que louvava o milagre e os poderes de
Jesus Cristo:

Vinde ver filhos de Adão


Neste solo brasileiro,
Jesus remindo o pecado
No templo do Juazeiro.

[...]

Vinde bem testemunhar


Vinde ó povo querido
Não sejas empedernido
Não queiras mais hesitar
Não procures olvidar
Nosso Divino Cordeiro

85
Escrito em 25.05.1891, publicado no Jornal O Estado do Ceará, Fortaleza, 02.07.1891. Ano I, n° 263.
56
Vendo o Sangue Verdadeiro
De Jesus Sacramentado
E ficareis sem pecado
No templo do Juazeiro.86

Sendo o referido periódico um órgão leigo e liberal, é surpreendente o apoio às


matérias que faziam apologia aos fenômenos que ocorriam no interior da província.
Outro jornal, O Libertador, contemporâneo d’O Estado do Ceará, foi fundado pela
Sociedade Libertadora Cearense87, apresentava-se como republicano e abolicionista e possuía
uma ampla tiragem para a época, dois mil exemplares diários. O periódico mostrava uma
visão diferente. Nos artigos sobre o Juazeiro há uma ênfase sobre o fanatismo dos crentes e
romeiros:

O padre Cícero Romão que sempre teve vocação pra idiota converteu o
Juazeiro em feudo do fanatismo, onde impávida campeia a impostura de
coroa e sotaina. [...] procurando indispor o povo ignorante, que acredita em
seus embustes, contra os republicanos que ele apresenta como pedreiros
livres e inimigos do altar. [...] Para bem firmar o fanatismo no espírito do
povo, toca a inventar milagres. Industriou uma de suas beatas a declarar-se
santa. [...] Os milagres multiplicam-se. Além da bem aventurada Maria,
aparece outra que sua sangue por todos os poros, para todo mundo ver.88

O autor ainda sugere que o caso deveria ser investigado pela polícia, uma vez que se
configurava em afronta ao novo regime. Essa é, no entanto, a única fonte que faz menção a
um possível caráter monárquico ou antirrepublicano da crença que se estabelecia em Juazeiro
naquele momento. O artigo é também um dos mais violentos, além de atacar e responsabilizar
diretamente o padre Cícero, acusando-o de “inventar milagres”.
Esses aspectos enfatizados na imprensa colocam em cena algumas questões relativas
ao problema da crença no milagre. É notável a resistência aos fenômenos por parte de uma
elite letrada, liberal e republicana, predominando o apoio dos intelectuais vinculados ao
Partido Católico. A maior crítica, tomando como referência os jornais já citados, diz respeito
à exploração dos romeiros com a venda de lembrancinhas e promessas de indulgências em
caso de conversão.

86
Jornal O Estado do Ceará, Fortaleza, 20.10.1891. Ano II, n° 349.
87
Sociedade pró-abolicionismo que funcionava desde 1878. Sobre a Abolição no Ceará ver: Estrada, Osório
Duque. Abolição. Brasília: Edições do Senado Federal, 2005.
88
Jornal O Libertador de 20.08.1890, Ano X, n°189. Grifos no original.
57
Há também uma repugnância generalizada à imagem de Maria de Araújo, como uma
figura que foge ao modelo de santidade convencional. A referência, especificamente, ao seu
físico “mal parecido” como citado por uma fonte, indica a importância da aparência física
naquele contexto, principalmente, pelo fato de Maria de Araújo ser negra, embora não
existam indicações que ela tenha sido ou fosse filha de escravos.
A imprensa continuou acompanhando o caso, principalmente, através das disputas
travadas entre defensores e detratores da beata e dos fenômenos. Além disso, o silêncio do
padre Cícero sobre o assunto, ainda mais quando se levava em consideração que o evento
aconteceu em sua presença, já havia irritado sobremaneira o diocesano.
Por que ele não comunicou imediatamente ao bispo o que estava acontecendo
enquanto o fenômeno ainda era desconhecido da população? É possível que ele pensasse que
o fenômeno iria cessar por si, mas um evento assim não era algo “natural” que pudesse ser
simplesmente desconsiderado. Os motivos pelos quais ele escondeu, ou quis esconder, a
ocorrência dos fenômenos, além de não comunicá-los ao bispo, nunca ficaram muito claros.
Para tentar entender um pouco mais sobre essas relações, vamos nos deter um pouco na
trajetória do padre Cícero.

58
1.4. Um servo obediente: o padre Cícero Romão Batista

Cícero Romão Batista nasceu em 24 de março de 1844 na cidade do Crato, filho de


Joaquina Vicência Romana e Joaquim Romão Batista, ambos cratenses, tinha duas irmãs
Maria Angélica Romana e Angélica Vicência Romana. Seu pai faleceu em 1862, vitimado
pela epidemia de cólera que assolou a região em meados do século XIX. Sua mãe, analfabeta
e pobre, recorreu ao Coronel Antônio Luís Alves Pequeno Junior, padrinho de crisma de
Cícero, para que ele auxiliasse na educação de seu filho, já que era o único homem dos três
filhos de D. Joaquina, e, portanto, o responsável pela casa e por sua família.
Através de sua amizade com o bispo D. Luís Antônio, o padrinho de Cícero, o
Coronel Antônio Luís lhe conseguiu uma vaga como pensionista para que ele estudasse no
Seminário de Fortaleza. Essas relações entre o padrinho e o bispo seriam valiosas para Cícero
quando, algum tempo mais tarde, o Reitor do Seminário, o padre francês Pedro Augusto
Chevalier (1831-1901), se opôs à ordenação dele.
O padre Chevalier alegava que Cícero era “um moço teimoso e dado às visões do
outro mundo” (Macedo, 1964: 47), sendo ainda “demasiadamente místico, cabeçudo e por
vezes audacioso em matéria doutrinária, para que pudesse dar um bom padre” (Della Cava,
1976: 43), e que, além disso, “não se confessava uma vez por semana como de praxe, e que
tinha ideias próprias” (Forti, 1999: 63). Dom Luís Antônio advogou a seu favor e isso foi
decisivo para sua ordenação em 1871.
Essa resistência do padre Chevalier com relação ao padre Cícero poderia ser
explicada pela evidente diferença entre as formas de pensar e viver a religião por estes dois
homens. O fato de o padre Cícero ser “demasiadamente místico” ou ter “ideias próprias” traía
as principais metas da reforma empreendida pela Igreja Católica naquele momento e que
visava o controle sobre essas práticas tidas como supersticiosas e, talvez quando Chevalier
diga “místico” esteja se referindo exatamente a isso: à aproximação que o padre Cícero tinha
de práticas mais voltadas a um catolicismo penitencial que esteve presente tanto na ação
evangelizadora dos capuchinhos entre fins do século XVIII e meados do XIX, quanto nas
missões ibiapinianas, parte do espaço de experiência do padre Cícero. 89

89
Espaço de experiência e horizonte de expectativa são conceitos formulados por Reinhart Koselleck a partir da
hermenêutica gadameriana. O espaço de experiência compreende as experiências vividas pelos sujeitos
59
Não obstante à resistência do Reitor, Cícero conseguiu – após a intermediação de seu
padrinho com o bispo – sua ordenação, e recebeu sua primeira provisão para pregar e celebrar
missa das mãos do bispo D. Luís em 29 de dezembro de 1870.90 Cícero retornou ao Crato em
janeiro de 1871 e durante todo o ano além de celebrar ocasionalmente missas na igreja da
cidade do Crato, lecionou também na escola para moços do seu primo e amigo José
Marrocos91 (Cf. Oliveira, 2001: 355).
Em abril de 1872 ele decidiu fixar-se no povoado do Juazeiro que estava sem
capelão. No ano anterior, havia celebrado a missa de Natal, a pedido da população local, e
começou ali uma atividade pastoral justamente a partir da moralização dos costumes: “fez
com que os homens parassem de beber e obrigou as prostitutas a confessarem seus pecados,
fazendo penitência pública” (Della Cava, 1976: 42). O estilo era ibiapiniano, mas atendia
também ao projeto moralizador da Igreja do século XIX.
Decidindo então se estabelecer no Juazeiro, o padre Cícero solicitou ao bispo D. Luís
autorização para permanecer como capelão da pequena Capela de Nossa Senhora das Dores,
recebendo em 26 de setembro de 1872 a provisão necessária para celebrar missas, administrar
sacramentos e absolvições. Em 1874, com o aumento da população no povoado e contando
também com os habitantes das imediações que se utilizavam do serviço religioso em Juazeiro,
o padre Cícero resolveu erguer uma Igreja no lugar de uma Capela92 ali existente que datava
de 1827: “Sem nenhum recurso empreendi levantar uma Igreja […] num povoadinho tão
pobre que eu nem mesmo sei como se fez […] com a proteção de N. Senhora das Dores, a
quem é dedicada, será acabada”.93
Também naquele ano, o bispo Dom Luís resolveu criar na cidade do Crato um
seminário “para facilitar a instrução aos jovens que não podem frequentar as aulas em lugares
mais remotos e mais dispendiosos” e encarregou o padre Cícero de “agenciar em todo este

históricos O conceito de horizonte de expectativa denota por sua vez, uma relação entre o futuro e o presente.
É a maneira de significar, por assim dizer, no presente aquilo ainda não experimentado, aquilo que pode ser
previsto: “O par de conceitos ‘experiência e expectativa’ [...] não propõe uma alternativa, não se pode ter um
sem o outro: não há expectativa sem experiência, não há experiência sem expectativa” (2006: 307;310).
90
Ofício de D. Luís Antônio dos Santos ao Pe. Cícero R. Batista de Fortaleza, 29.12.1870 autorizando-o a pregar
por um ano in “Documentário”, p.05.
91
José Joaquim Telles de Marrocos nasceu em 26.11.1842 e faleceu em 14.08.1910. Atuou na região do Cariri
como jornalista, professor de letras, francês e latim e foi um dos líderes da campanha abolicionista local.
92
Canonicamente, as denominações “Igreja” e “Capela” tem sentido hierárquico. A Capela, geralmente possui
somente um altar e não tem sacerdote fixo, recebendo os padres itinerantes enviados pela paróquia local. A
Igreja, por sua vez, comporta uma paróquia com um Vigário ou Pároco responsável pela sua administração.
93
Carta do Pe. Cícero R. Batista a D. Luís Antônio de 27.04.1874, catalogada sob inscrição SAL: 03.01, apud
Beozzo, 2004: 35.
60
Bispado e fora dele, esmolas para a obra de dito Seminário”94, o que talvez revelasse a
capacidade agregadora e o caráter carismático do padre Cícero. Tanto as obras do Seminário
quanto as da Igreja do povoado de Juazeiro foram completadas antes de 1877, quando a
região foi atingida por uma grande seca descrita pelo padre Cícero em um quadro de aflição e
desespero: “os cães saciam-se de carne humana, nos caminhos, nos campos. Por toda a parte é
um cemitério”.95
Aliada à dificuldade de enviar padres ao interior, a seca de 1877/1878 havia provocado
também a evasão dos padres lazaristas que dirigiam o Seminário São José na cidade do Crato.
Através dos relatórios enviados pelo bispo D. Luís aos Presidentes de Província, ao longo do
seu prelado, é possível saber que a situação da Diocese era muito precária. Em 1881, por
exemplo, existiam 65 freguesias e cerca de 61 padres em exercício, sendo que 4 destas
freguesias estavam vagas:

[...] O estado de pobreza, ou antes, verdadeira miséria, a que ficaram


reduzidas estas 4 freguesias e o grande desfalque que sofreram em suas
respectivas populações impossibilitaram os párocos que estão na região, de
poderem continuar a paroquiá-las, e sem que elas se reabilitem
proporcionando-lhes os indispensáveis meios de subsistência, não poderei de
novo provê-las. [...].96

Em julho de 1882, Dom Luís foi convocado para assumir o cargo de Arcebispo
Signatário no Arcebispado da Bahia, deixando a Diocese vacante. 97 Em 1884, o bispo Dom
Joaquim assumiu o posto e buscou seguir de perto os passos de seu antecessor no processo de
reforma do clero cearense. Até esse momento, o padre Cícero era somente mais um dentre
tantos padres e a freguesia do Crato era como outra qualquer.
É importante considerar ainda que, inicialmente, o padre Cícero não tinha intenção de
permanecer no Crato. Seu objetivo era tornar-se professor de teologia no Seminário Maior da
Prainha, em Fortaleza. Por quais razões ele teria mudado de ideia? Que força maior o fez
permanecer no Cariri?

94
Carta de D. Luís Antônio ao Pe. Cícero R. Batista de 05.1874. “Documentário”, p. 08.
95
Carta do Pe. Cícero R. Batista ao D. Luís Antônio de 20.02.1878, catalogada sob inscrição CRA: 03.05, apud
Beozzo, 2004: 35.
96
Carta de D. Luís Antônio ao Presidente de Província Pedro Leão Veloso de 04.06.1881, APEC.
97
Nesse período de espera pelo novo bispo, a Diocese ficou sob a administração do Vigário Capitular
Monsenhor Hipólito Gomes Brasil, conforme é possível ver na documentação episcopal que encontramos no
Arquivo Público do Estado do Ceará.
61
Segundo um relato popularizado anos após sua morte, ele teria permanecido no
Juazeiro após ter sonhado com a cena representada no quadro Última Ceia de Leonardo Da
Vinci, na qual Jesus, cercado pelos doze apóstolos, denunciava a traição de Judas. Em um
determinado momento no sonho, Jesus olhava diretamente para Cícero e lhe pedia para ficar
no povoado de Juazeiro e cuidar dos pobres e desvalidos da região:

Conta a tradição que, depois de um dia cansativo, atendendo os fieis no


confessionário e nos outros misteres presbiterais, dirigiu-se a escola do
professor Simeão para uma soneca, reclinando-se sobre a mesa que ali havia.
Sonhou então que lhe aparecia Jesus, acompanhado dos doze apóstolos,
como no painel famoso da Santa Ceia de Leonardo Da Vinci. O Cristo
deixava entrever também o seu coração […] o Mestre recrimina a ingratidão
dos homens e reafirma sua disposição de dar mais uma chance de salvação à
humanidade pecadora. O quadro se completa com o surgimento de um grupo
de flagelados, maltrapilhos e esfomeados. O Coração de Jesus volta-se então
para o padre Cícero e diz: ‘E tu, Cícero, cuida deles!’ (Barbosa, 2007: 17;
Grifos nossos).98

O sonho adquire, com o tempo, um caráter profético que causa um impacto religioso e
político no pequeno povoado de Juazeiro. A permanência do padre Cícero revela-se como
condição para que os “fenômenos extraordinários” manifestados por Maria de Araújo ganhem
importância, no que diz respeito, tanto à visibilidade que os acontecimentos obtiveram nos
âmbitos nacional e internacional, quanto na instauração de uma nova crença junto à população
do povoado. 99

98
Não sabemos quando esse sonho foi contado pela primeira vez. O padre Cícero teria feito referência a esse
sonho no seu primeiro testamento, escrito em 1924, porém a narrativa foi omitida no segundo testamento
datado de 1934. Cf.: “Anexos” in Lourenço Filho, Manoel B. Juazeiro do Padre Cícero. Brasília, Inep/MEC,
2002. Existem ainda outros relatos de sonhos atribuídos ao padre Cícero por memorialistas. Segundo Amália
Xavier de Oliveira, ele também “Vira, em um sonho, um enorme urso branco, com manchas pretas, tendo nas
mãos o Globo Terrestre. O urso era feroz e retalhava com suas grandes unhas o Globo causando horríveis
sofrimentos e ruínas a todas as Nações” (2001: 60); Em outro sonho, o padre teria visto: “[…] sair do seio da
Terra um grande animal, semelhante a um urso, o qual foi recebido festivamente por diversos moleques,
‘molambudos’, nus, que batiam calorosas palmas. Perguntando a razão de tanta festa, responderam: ‘Estamos
alegres, porque este é o chefe de todas as concupiscências, que agora se soltou e chama-se ‘garra das garras’”
(Idem). Cf. Nobre, Edianne. 2011. Mas não somente o padre Cícero teve a graça dos sonhos e das revelações
proféticas, mais adiante veremos como algumas das beatas, incluindo a própria Maria de Araújo narraram e
interpretaram suas experiências visionárias e oníricas.
99
Há uma vasta bibliografia sobre revelações místicas e sagradas em sonhos. Luís Filipe Silvério Lima em O
império dos sonhos. (São Paulo: Alameda, 2010) analisa as percepções sobre as narrativas oníricas mais
recorrentes e busca entender como estas participaram da sedimentação do Sebastianismo e do Messianismo
Brigantino no Portugal no século XVI. Na Europa, mais precisamente na Espanha, a historiadora María
Jordán Arroyo em Sonhar a história: risco, criatividade e religião nas profecias de Lucrecia de León (Bauru
(SP): Edusc, 2011) busca entender o caso de Lucrécia de León cujos sonhos com Filipe II da Espanha,
causaram furor na sociedade espanhola e acabaram com sua condenação pelo Santo Ofício.
62
Assim, permanecer no Juazeiro foi, para o padre Cícero, um ato de obediência ao
próprio Jesus Cristo. Também por obediência, ele aceitou dirigir à contra gosto a freguesia de
São Pedro (atual Caririaçu), distante mais de 20 km de sua casa no Crato, como mostra uma
carta do bispo datada de 22 de dezembro de 1877, na qual Dom Joaquim o desobrigou de
morar na paróquia de São Pedro: “Sei o quanto ama esse Juazeiro; mas a incumbência que lhe
faço não lhe obriga a ir residir em São Pedro: é somente para ir dar aporte espiritual àquele
100
povo, quando lhe for possível”. Nesta carta, o bispo o autoriza inclusive a “bisar”, isto é,
celebrar missa em São Pedro e no Juazeiro no mesmo dia (domingos e dias santos), privilégio
dado a poucos padres.
Tivemos acesso a um conjunto de cartas trocadas entre o padre Cícero e Dom
Joaquim, através da quais, é possível perceber também o estabelecimento de uma relação de
afetividade e respeito. Entre os anos de 1883 e 1889, todas as faculdades especiais e licenças
requeridas pelo padre Cícero foram acatadas pelo bispo.101 Além disso, o bispo se mostrava
sempre complacente e preocupado com o padre Cícero: “Se quiser mais alguma coisa,
escreva-me e eu dar-lhe-ei tudo quanto puder obrando prudentemente”, diz em uma das
cartas.102
Em julho de 1888, quando o padre Cícero ficou doente e deixou temporariamente os
serviços da freguesia, o bispo escreveu para o Tenente Coronel Secundo Chaves pedindo para
que atendesse o padre em todas suas necessidades “mandando-me em seguida a conta das
despesas feitas, para que eu pague com prontidão. Não é necessário que o Pe. Cícero saiba
disto, ou antes não convêm que lhe chegue ao conhecimento, porque ele talvez recusará; fique
pois entre nós”.103

100
Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Cícero R. Batista de 22.12.1877 in “Documentário”, p. 18.
101
As “faculdades” eram autorizações especiais concedidas esporadicamente a alguns padres, como por
exemplo, a permissão para celebrar casamentos dispensando as formalidades legais ou os “banhos” comuns,
solicitada em 20 de agosto de 1884 pelo padre Cícero. Ver ainda cartas do “Documentário”: 20.08.1884:
“Faculdade de revalidar casamentos nulos por afinidade ilícita no 1° e 2° grau de parentesco e
consanguinidade” e “Faculdade de benzer ornamentos e fazer qualquer benção em que não intervier o uso
de óleo santos”; 11.08.1886: Permissão “para dispensar os banhos da Matriz, como quaisquer impedimentos
de consanguinidade, de rapto, de dependência de outro bispado” na realização de casamentos; 29.08.1886:
“Faculdade de confessar pessoas de um e outro sexo, absolver os pecados, ainda mesmo os reservados
sinodais; A de comutar votos não reservados; A de habilitar ad pretendum; A de aplicar indulgencia plenária
in articulo mortis; “Faculdade de conservar o Santíssimo Sacramento na Capela de N.S. das Dores”, entre
outras.
102
Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Cícero R. Batista em 29.11.1886 in “Documentário”, p. 14.
103
Carta de D. Joaquim Vieira ao Ten. Cel. Secundo em 12.07.1888 in “Documentário”, p. 20.
63
Em outra ocasião, o bispo já tinha ressaltado que aprovaria tudo “quanto o senhor fizer
porque confio muito no seu zelo e prudência”.104 Esses episódios nos servem para tentar
entender a relação entre o bispo e o padre. Não havia, portanto, nenhuma hostilidade ou
desavença. Pelo contrário, D. Joaquim se mostrava muito solícito em atender ao padre Cícero,
o que agravava o peso do silêncio com relação aos eventos ocorridos na Capela do Juazeiro.
Após os eventos de 1889, a questão da obediência foi justamente o ponto de conflito
entre os dois. Em uma carta indignada que enviou a padre Cícero, logo após a publicação do
atestado do Dr. Madeira, Dom Joaquim queixou-se de ainda “estar às escuras no tocante às
circunstâncias deste fato”. A recusa do bispo em dar crédito aos fenômenos tinha a ver
também com a ideia de que com a propagação dos fenômenos se quisesse estabelecer uma
“nova ordem de coisas religiosas”. 105
Em 21 de maio de 1891, o padre Cícero foi convocado a comparecer à sede da
Diocese em Fortaleza para dar esclarecimentos e submeter os acontecimentos à sua avaliação.
Em resposta, o padre Cícero disse que em decorrência do agravamento de uma enfermidade
(não relatada), não poderia deslocar-se de Juazeiro até a capital Fortaleza e pedia uma solução
alternativa, alegando que:

[...] assentei, portanto mandar-lhe este positivo comunicando esta


impossibilidade tão contraria à minha vontade e pedir perdão desta minha
falta que só por amor e infelicidade sou levado a cair. Pelo amor de Deus, V.
Exa. Revma., não considere como uma desobediência pelo que estou pronto
para obedecer a toda ordem de Deus com a sua graça, ainda que custe tudo e
quero ir. 106

A ambiguidade da resposta nos faz pensar que o padre Cícero realmente não tinha a
intenção de desobedecer ao bispo, tampouco era conveniente um confronto pessoal, assim,
tentava convencer o bispo da sua impossibilidade de ir à Fortaleza. O pedido foi negado e o
padre teve que viajar para Fortaleza, aonde permaneceu por cerca de cinco dias.
Em 17 de julho de 1891 ele foi interrogado sobre os “fenômenos extraordinários” que
aconteciam com Maria de Araújo e respondeu às dezesseis perguntas que incluíam até
detalhes íntimos da vida da beata de quem era diretor espiritual107 desde sua infância.108 Ao

104
Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Cícero R. Batista em 21.12.1887 in Pinheiro, 1953: 448.
105
Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Cícero R. Batista em 04.11.1889 in “Documentário”, p. 28.
106
Carta do Pe. Cícero R. Batista a D. Joaquim Vieira em 17.06.1891 in Silva, s/d, p. 11.
107
O diretor espiritual tem como responsabilidade orientar a dirigida na vida piedosa. O termo “direção
espiritual” surge no século XVI em substituição ao termo “cura de almas”, assim como o termo “diretor
64
fim deste interrogatório, o padre foi instado a fazer uma exposição de todos os fatos
importantes que precederam e sucederam os acontecimentos de 1889.109
Feita em apenas um dia, a narrativa de Cícero pretendeu fazer um resumo da vida
espiritual de Maria de Araújo ao longo de oito tópicos: disposições e provações; visões; dom
de oração; colóquios, espírito de penitência; fatos extraordinários; êxtases; estigmas e,
crucificações.110 O padre Cícero contou como conheceu Maria de Araújo quando ela tinha
somente oito anos: “Notando eu então, as melhores disposições daquela menina para a vida
interior, aconselhei-a a se consagrar a Nosso Senhor, o que ela executou do modo o mais
íntimo e perfeito”. 111
Ele fez ainda, um resumo sobre as condições nas quais se dava cada um dos
fenômenos relatados e, em sua descrição, fez questão de apontar para a própria
responsabilidade na direção espiritual, uma vez que sua dirigida não podia decidir nem fazer
nada sem a sua autorização.
Ao enfatizar a sujeição e a obediência de Maria de Araújo às ordens e ao
direcionamento de seu confessor, o padre Cícero ressaltava o seu poder sobre a beata e
validava os fenômenos que acabara de narrar ao diocesano. Sua preocupação era, mais do que
mostrar a beata como uma santa, justificar o seu próprio procedimento diante da forma como
os eventos se desenrolaram e saíram do seu controle:

Direi nesse sentido que, como os diversos fatos de transfusão


[transformação?] da hóstia consagrada em sangue operados desde mil
oitocentos e oitenta e nove até hoje, não tinham sido testemunhados senão
por mim, julguei de necessidade que outras pessoas, tanto eclesiásticas como
leigas, que fossem dignas de fé, as testemunhassem. Efetivamente assim
aconteceu e guardo o registro de mais de mil pessoas que foram testemunhas
presenciais. 112

Interessa-nos aqui o fato de o padre Cícero, como diretor espiritual de Maria de


Araújo, querer demonstrar controle total sobre as ações de sua dirigida e mesmo, se
responsabilizar por elas. Ele assumia então o encargo pela divulgação dos fenômenos

espiritual” substitui “pai espiritual”, embora estes ainda tenham sido utilizados por muito tempo no Brasil até
o fim do século XIX. Ver o verbete “Direzione Spirituale” in Prosperi, Adriano (org.). Dizionario storico
dell’Inquisizione, Pisa: Edizioni della Normale, 2010, p. 484.
108
“Auto de perguntas feito ao Pe. Cícero R. Batista” de 17.07.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 01.
109
“Exposição circunstanciada do Pe. Cícero R. Batista” de 18.07.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 03.
110
Mais adiante detalharemos cada um desses tópicos.
111
Idem.
112
Idem, p. 05.
65
extraordinários, ressaltando ainda que “aquela devota em vez de gloriar-se com a publicidade
desses fatos, muito ao contrário experimentou com isso o maior tormento”.113
Em 19 de julho de 1891, depois de receber e ler a exposição do padre Cícero, Dom
Joaquim publicou um documento que ficou conhecido como Decisão Interlocutória114, no
qual exarava algumas ordens e declarava que instituiria uma Comissão para investigar o caso.
Neste documento, exigia que Maria de Araújo se recolhesse na Casa de Caridade do Crato por
seis meses a partir daquela data.
Em cartas anteriores, o bispo já tinha mandado que a beata fosse morar na Casa de
Caridade do Crato, chegando até a afirmar que: “Se a beata vier a morrer porque me obedece,
dará mais uma prova de suas virtudes, a Santa Obediência”, no entanto, deixava claro que a
responsabilidade era do padre Cícero: “Dou-lhe 50 dias, a contar da data de recepção desta,
para V. Revma. dispor o espírito dessa moça a ir para o Crato [...] Em todo o caso é
grandemente inconveniente que Maria de Araújo more em sua companhia, pois assim nunca
se poderá verificar coisa alguma”.115
O bispo já ordenara que a beata fosse auxiliada por outro diretor espiritual, numa
tentativa de suspender a influência do padre Cícero sobre ela. Além disso, proibiu o culto aos
panos ensanguentados e mandou que o padre Cícero se retratasse no púlpito sobre sua
afirmação de que o sangue das hóstias e dos panos era o sangue de Cristo:

Proibimos expressamente qualquer culto aos panos ensanguentados [...].


Ordenamos ainda ao mesmo Reverendo Cícero se desdiga no púlpito da
proposição que avançou afirmando que o sangue aparecido nas Sagradas
partículas era Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, pois que não o é nem
pode ser, segundo os ensinamentos da Teologia Católica. Outrossim, sendo
necessário remover todos os obstáculos que possam impedir o
descobrimento da verdade, em assunto tão delicado e interessante, e tendo
em consideração o facto de ter sido o Reverendo Cícero Romão Baptista o
único diretor e quase o único confessor de Maria de Araújo, acrescendo a
isto a circunstância de viver esta em casa do dito Reverendo onde é por ele
sustentada, para que se não diga que tais circunstâncias atuam no ânimo de
Maria de Araújo, produzindo os fenômenos extraordinários, cuja natureza se
trata de averiguar, ordenamos mais que, dentro de oito dias
impreterivelmente, depois da chegada ao Juazeiro do Sacerdote nosso
Comissionado, deverá Maria de Araújo recolher-se à Casa de Caridade do
Crato, onde permanecerá por seis meses, a contar do dia da entrada naquela

113
Idem, p. 05.
114
Oficialmente o documento chama-se: Determinações do bispo diocesano e foi anexado na abertura do
primeiro inquérito. Utilizamos a versão do Processo, pois não encontramos a edição do jornal no qual as
determinações foram originalmente publicadas.
115
DHDPG/CRB 04,26: Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Cícero R. Batista em 07.03.1890. Grifos nossos.
66
casa; então tomará outro confessor e diretor e observará o mais que for
prescrito pelo sacerdote nosso enviado; findo o prazo acima marcado é nosso
desejo que continue Maria de Araújo a residir na dita Casa de Caridade. 116

Dentre essas determinações preliminares, a única que não foi respeitada foi a ordem
direta dada ao padre Cícero de retratar sua afirmação sobre o sangue que manava das hóstias,
cuja pior consequência foi a suspensão de suas ordens sacerdotais em agosto de 1892:

O padre [Cícero] apenas recebeu a portaria de suspensão, ajoelhou-se, beijou


o chão depois de haver dito as seguintes palavras: ‘Eu ofereço tudo a Nosso
Senhor’. Levantou-se em seguida, ficou só por uma meia hora porque eu
tinha ido batizar três crianças. Quando voltei, encontrei-o um pouco agitado.
Mostrou os considerandos [sic] e disse que não eram verdadeiros. Dois dias
depois exigiu do povo que não falassem de V. Ex.a que era Príncipe da
Igreja e Superior de todos. 117

A atitude aparentemente contraditória do padre ao receber a portaria com a suspensão


de suas ordens mostra um pouco da confusão emocional do padre, que ora aceita
pacientemente as provações, ora revolta-se com o bispo. Mais tarde, ele ratificaria sua
submissão à Diocese, mas não negaria o milagre: “sem detrimento de minha consciência eu
não podia negar a verdade e sinceridade do que fui testemunha”.118 Com a Decisão
Interlocutória e com a Portaria de suspensão do padre Cícero, Dom Joaquim dava o veredicto
de um caso que se arrastou na justiça religiosa até 1894.

116
“Determinações do bispo diocesano” (Decisão Interlocutória) em 19.07.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 05-
06.
117
DHDPG/CRA 04,11: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira de 31.08.1892.
118
DHDPG/CRA 14,125: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira de 27.03.1893.
67
Figura 1: Padre Cícero em Juazeiro
Sem data, Arquivo do Museu da Imagem e do Som, Fortaleza, Ceará

Figura 2: Dom Joaquim José Vieira


Sem data, Arquivo do Museu da Imagem e do Som, Fortaleza, Ceará
68
CAPÍTULO 2

Como se constrói um Processo Episcopal

publicação da Decisão Interlocutória em julho de 1891 provocou um grande alarido

A na região. Os crentes e defensores do “Sangue Precioso” acreditavam que o


“milagre” era incontestável e atacavam como podiam o bispo diocesano. Por outro
lado, a cautela de Dom Joaquim e a ênfase que ele deu à necessidade de uma investigação
prévia dos fatos antes de comunicar Roma, só serviram para alimentar ainda mais a crença
nos fenômenos e para que ele perdesse o controle total sobre parte de seu rebanho.
Neste capítulo, apresentaremos os principais personagens desta trama, tomando como
fonte principal o primeiro inquérito do Processo Episcopal sobre os fatos de Juazeiro,
instruído entre setembro e outubro de 1891. Seguindo a ordem cronológica do inquérito,
analisamos o que disseram os sacerdotes, civis e beatas, ouvidos ao longo de, mais ou menos,
sessenta dias.

69
2.1. A primeira Comissão Episcopal: a Ilustração a serviço do milagre

[…] com todo cuidado e vigilância devemos procurar o aumento e a


conservação de nossa Santa Fé Católica, somos também obrigados a
trabalhar por impedir e até mesmo extinguir tudo quanto ofender possa a sua
pureza e Santidade, temos resolvido, em cumprimento de nosso ofício
pastoral e em observância do que a respeito dispõe o S. Concílio Tridentino
yhuna sessão vinte cinco - Invocatione Sanctorum – fazer examinar, como
convém, os referidos factos. 119

O padre Cícero e o jornalista José Marrocos120 elaboraram uma Apelação, a fim de


contestar a Decisão Interlocutória e solicitar o envio do caso à Santa Sé. Esse documento,
datado de 14 de agosto de 1891, foi assinado pelo padre Cícero e nele foi anexado um abaixo-
assinado que apoiava o pedido e contava com assinaturas de homens e mulheres da região. No
texto, Cícero assume a responsabilidade pela Apelação, apresentando de imediato uma mea
culpa por questionar a decisão do bispo:

[...] tudo me seria mais fácil do que levar esse peso enorme de não cumprir a
decisão de V. Revma. e sustentar a minha crença, de tantos sacerdotes e de
milhares de pessoas que de todas as partes tem vindo a esse lugar: - mas,
Senhor Bispo, é a minha consciência que reclama que eu continue a estar
convencido que Deus quer que eu assim proceda crendo, como creio
firmemente que o que aqui se tem dado, é uma grande manifestação que
Nosso Senhor por esforço de seu coração e de sua misericórdia quer fazer
para a salvação dos homens em uma época de tanta descrença. A vista de
tudo isto, Exmo. e Rmo. Sr., e depois de muito consultar a Deus e a
Santíssima Virgem e ao Sagrado Coração tomei a resolução de sem a menor
intenção ainda de leve de ofender a V. E. Revma., e sim forçado por minha
consciência e com todo o respeito e acatamento apelar da sentença de V. E.
Revma. para a Santa Sé, usando do direito que nos concede a Santa Igreja,
protestando desde já obedecer de todo o meu coração como a Deus mesmo a
qualquer decisão. E desejando que este negócio tenha um resultado tal, que
eu sem desobedecer, e de nenhum modo incorra no desagrado de V. E.
Revma. (o que me seria profundamente sensível) digo a V. E. Revma., que a
Apelação está feita; mas eu a submeto a V. E. Revma., rogando que, se
achar conveniente, como um meio mais pronto para a decisão deste negocio
fazê-la seguir, ou então suspender a decisão que V. E. Revma. deu, e
consultar a Santa Sé, ficando-me também o direito de fazer consultas a este
respeito.121

119
“Portaria do bispo instaurando o processo” em 19.07.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 06.
120
José Marrocos aparecia aqui como um “braço direito” do padre Cícero e, se destacou como um dos grandes
defensores da causa do Juazeiro. Mais adiante, conheceremos um pouco mais deste personagem.
121
SAL, Pasta 33. Carta/Apelação do Pe. Cícero R. Batista a D. Joaquim Vieira em 14.08.1891.
70
Podemos imaginar a indignação do bispo ao receber essa carta que questionava
abertamente, ainda que com mesuras, sua autoridade. O padre Cícero, no entanto, parecia
esperar que o bispo cedesse na sua Decisão e não só isso, mas que também lhe concedesse
permissão para advogar pela Causa diante da Santa Sé! Essa atitude do padre significava uma
afronta à hierarquia sem precedentes.
Dom Joaquim não só ignorou o pedido de apelação à Santa Sé como logo em seguida
enviou ao Juazeiro a Comissão que devia investigar as condições nas quais se dava aquele
fenômeno. O primeiro inquérito do Processo instruído sobre os fatos do Juazeiro foi
instaurado em 21 de julho de 1891, através de uma portaria na qual Dom Joaquim alegava
que:

E por que ora não nos seja possível ir pessoalmente instruir o oportuno e
necessário processo, reconhecendo na pessoa do Reverendo Clicério da
Costa Lobo os requisitos necessários para o tal inquérito proceder, havemos
por bem comissioná-lo, como pela presente nossa Portaria o fazemos, a
exercer essa missão, para o que lhe delegamos todos os poderes necessários.
Em o [sic] dito processo de averiguação servirá como secretário, o muito
Reverendo Doutor Francisco Ferreira Antero, ou na falta deste, outro
qualquer sacerdote que ao nosso Comissionado bem pareça eleger; sendo o
dito processo, tanto que seja concluído, a nós transmitido para os seus
devidos efeitos.122

Para essa missão, Dom Joaquim escolheu dois padres muito conceituados da Igreja: o
padre Clicério da Costa Lobo (1839-1916), assumiu a função de Delegado da Comissão e o
padre Francisco Ferreira Antero (1855-1929), a função de Secretário/Escrivão. O primeiro era
Doutor em Teologia, e morava no Rio de Janeiro quando foi convidado a assumir o cargo de
secretário particular do bispo D. Luís Antônio dos Santos no Ceará em 1880. Assumiu
também ali uma cátedra no Seminário Maior da Diocese e foi secretário do Sínodo Diocesano
realizado em 1888.
Ao chegar a Juazeiro para iniciar o Processo instaurado pelo bispo Dom Joaquim, o
padre Clicério contava com 52 anos. Nesse momento, já havia recusado a indicação para dois
importantes cargos eclesiásticos: o de Bispo Coadjutor do Ceará e o Coadjutor do
Arcebispado da Bahia, para o qual fora indicado alguns anos antes pelo próprio D. Joaquim,
que o qualificava como filho legítimo da Igreja, “de exemplar conduta, regular ilustração e
muito dedicado à Santa Religião” (Abreu, 1943: 185).

122
“Portaria do bispo instaurando o Processo” em 21.07.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 06.
71
O padre Francisco Ferreira Antero, mais jovem, com apenas 36 anos, era natural da
cidade de Icó (sertão central do Ceará), ordenou-se em 1878 no Colégio Pio-Americano de
Roma e dada a sua grande erudição, também havia sido cotado para uma vaga de Bispo
Coadjutor no Ceará. Ele assumiu o papel de Secretário da Comissão Episcopal. Como
podemos ver, ambos os sacerdotes eram bem conceituados e considerados aptos para
desenvolver tão relevante missão.
A Comissão chegou a Juazeiro em 8 de setembro de 1890 e no dia seguinte o padre
Antero abriu com o Termo de juramento o primeiro inquérito que investigaria os fenômenos
ocorridos com Maria de Araújo. É muito importante ressaltar que nesse momento a Comissão
pretendia investigar especificamente o sangramento da hóstia que desde 1889 se deu
regularmente nas quartas e sextas-feiras, quase sem interrupção, mesmo quando a beata ficou
recolhida na Casa de Caridade.
Uma grande preocupação de Dom Joaquim era o culto dado aos panos
ensanguentados. No entanto, curiosamente, por ordem diocesana de maio de 1891 os panos
foram guardados dentro do Sacrário, peça mais importante no culto ao Santíssimo
Sacramento: “[...] Se acontecer de novo que a sagrada partícula se trasmude em sangue [...]
guarde a dita partícula em uma âmbula ou em um cálix sagrado, feche-a, lacre-a e guarde-a no
sacrário para que a todo tempo conste”.123 Ora, se o sangue não era o sangue de Cristo, porque
guardá-lo justamente na peça que o representa? Essa, no entanto, era apenas uma das
contradições que se apresentavam naquele momento e que discutiremos mais adiante.
Outra questão é que a própria atitude do bispo parece contraditória, pois se por um
lado ele afirma que era errado considerar o sangue aparecido nas partículas como “Sangue de
Nosso Senhor Jesus Cristo, pois que não o é nem pode ser, segundo os ensinamentos da
Teologia Católica”124 e assim, excluía a possibilidade de milagre, por outro lado, ele se mostra
muito condescendente e tolerante com o padre Cícero:

Eu não proíbo, não posso proibir e nem quero que V.Revma. e outras
pessoas deixem de narrar o que hão visto, e acho que o devem fazer, mas o
que manda o Concílio de Trento é que não se qualifiquem de milagre, no
púlpito [...] antes que a Santa Sé examine os fatos. Examine com prudência
os fatos, mas não os qualifique já. O padre Clicério vai colecionar os

123
Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Cícero R. Batista em 21.05.1891 in “Documentário”, p. 31-32.
124
“Portaria do bispo instaurando o Processo” em 19.07.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 05-06.
72
depoimentos e fazer outras diligências atinentes ao caso; depois de tudo feito
subirá o processo à Santa Sé, esperemos, pois com maior paciência.125

Se o bispo não admitia a possibilidade do milagre por que ele estimulava o padre
Cícero a “narrar o que tinham visto”? Outra incoerência é que, apesar de considerar que os
fatos deveriam ser examinados pela Santa Sé, o bispo resiste ao máximo em enviar o Processo
para Roma, o que só vai acontecer em 1893, isto é, dois anos depois da realização do primeiro
inquérito.
Esse momento é marcado, pois, por muitas dúvidas e contradições, e cabia ao padre
Clicério, pessoa que segundo o bispo, possuía todos os “requisitos necessários”126 para
investigar os fatos. A questão é que o bispo esperava que a Comissão devolvesse o inquérito à
Diocese com um relatório final que confirmasse a opinião já exarada na Decisão
Interlocutória: que o sangue aparecido nas sagradas partículas “não o é e nem pode ser” o
Sangue de Jesus Cristo. Aventamos que mesmo determinando a investigação do caso, Dom
Joaquim já tinha uma opinião prévia, isto é, de que os fenômenos não podiam ser
considerados como milagres. No entanto, ele não tinha poderes suficientes para condenar o
caso de imediato, e precisou seguir o caminho hierárquico e institucional.
O primeiro inquérito instruído sobre os fatos do Juazeiro é uma peça documental
completa, no sentido de que possui uma linha narrativa muito clara do começo ao fim.
Elaborado ao longo de 80 dias, entre 9 de setembro e 28 de novembro de 1891, dos quais dez
foram destinados a ouvir as 23 testemunhas chamadas a depor. Além disso, grande parte do
tempo foi dedicada às observações da transformação da hóstia e de outros fenômenos que
ocorriam com Maria de Araújo, sobre os quais a Comissão nada sabia até chegar ao Juazeiro.
127

No corpo documental deste inquérito encontramos cinco termos de verificação128 da


transformação da hóstia; quatro termos de verificação das caixas contendo panos

125
Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Cícero R. Batista em 23.08.1891 in “Documentário”. DHDPG. Grifos
nossos.
126
Idem, p. 06.
127
Tanto Maria de Araújo quanto as outras mulheres fazem referência a outros fenômenos: viagens ao
Purgatório, Céu e Inferno, aparecimento de hóstias ensanguentadas, estigmas de crucificação, sangramento
de crucifixos de metal maciço, relatos de visões, profecias, êxtases e comunhões espirituais. Aprofundaremos
essa discussão ao longo da tese.
128
Os termos de verificação são descrições da observação dos fenômenos com a assinatura das testemunhas
presentes no momento. Serão analisados no próximo capítulo.
73
ensanguentados; dois termos de verificação dos fenômenos de crucificação129 de Maria de
Araújo; um termo de graças alcançadas; três atestados médicos e testemunhos de oito padres
da região, onze beatas (sendo dois de Maria de Araújo e dois da beata Jahel Cabral) e três
outras testemunhas. Em anexo encontramos ainda outros três depoimentos escritos de próprio
punho de Monsenhor Monteiro, padre Quintino Rodrigues e José Marrocos e uma carta do
mesmo monsenhor.
Maria de Araújo foi interrogada em 10 de setembro e no dia 11 se apresentou
espontaneamente para fazer um adendo ao seu depoimento.130 Também foram chamadas as
beatas ligadas ao padre Cícero e ao Apostolado da Oração, que provavelmente estavam na
Capela de Nossa Senhora das Dores no dia do primeiro sangramento, embora não tenhamos
certeza sobre isso. As beatas convocadas foram: Jahel Cabral (1860-?), Maria da Soledade
(1862-?), Maria das Dores (1876-?), Joana Tertulina (1864-1944), Antônia Maria da
Conceição (1861), Maria Joana (1858-?), Anna Leopoldina (1872-?), Ângela Merícia (1863-
?) e Rachel Sisnando (1852-?).
Dos oito sacerdotes inquiridos, apenas dois viviam no Crato: o padre Quintino
Rodrigues (1863-1928) e monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro (1847-1912), reitor do
Seminário Episcopal do Crato. Os outros seis eram de paróquias vizinhas: os padres Félix
Aurélio Arnaud (1815-1901) e Nazário David de Souza Rolim (1846-?) de Missão Velha; o
padre Joaquim Sother de Alencar (1858-1914) de Barbalha; o vigário Manoel Rodrigues
(1839-?) e o vigário Manoel Furtado de Figueiredo, ambos da cidade de Milagres (1853-?); o
vigário Manoel Antônio Martins de Jesus (1832-?) de Salgueiro (Diocese de Pernambuco). 131
Os três cidadãos, José Pereira da Silva Magalhães, Miguel Gonçalves Dantas de
Quental e Joaquim Gonçalves Dantas de Quental, possivelmente foram escolhidos por serem
de outras cidades e por terem ido à Juazeiro a fim de presenciar o sangramento da hóstia ou
para fazer algum voto ao Sangue Precioso. Também não descartamos a ideia de as
testemunhas terem se oferecido para prestar depoimento, no entanto, seus testemunhos não

129
As crucificações ou crucifixões como eram chamadas pelos peritos consistiam na representação dos
ferimentos de Cristo na cruz, isto é, eram estigmas que apareciam na cabeça, mãos e pés de Maria de Araújo
ao mesmo tempo. Neste sentido, a crucificação se refere à recepção dos estigmas, mas nem toda
manifestação de estigmas pode ser chamado de crucificação.
130
O depoimento de Maria de Araújo será objeto do próximo capítulo.
131
A pequena distância entre essas paróquias facilitava o contato constante entre esses padres que circulavam
pelos mesmos lugares e tinham como ponto de confluência o Seminário São José na cidade do Crato, que era
também a mais populosa da região. As cidades de Salgueiro e Cajazeiras, apesar de estarem em outros
estados são limítrofes à região do Cariri aonde se localiza o povoado de Juazeiro.
74
apresentam dados novos, embora sirvam para ressaltar o “bom conceito” de Maria de Araújo
frente à comunidade leiga.
Pelos autos do inquérito é possível saber que os padres da Comissão organizavam
grupos de três pessoas por dia e as perguntas eram feitas de modo que as testemunhas
respondessem “sim” ou “não”. De forma geral, as questões eram iguais para todos, com
pequenas variações. Uma das mais recorrentes era, por exemplo: “Consta-lhe que a Beata
goza do melhor conceito perante o público de modo que todos a julgam incapaz de qualquer
impostura nesse particular?”, feita com o objetivo de perscrutar o comportamento público de
Maria de Araújo, se era “bem vista” pela comunidade, se havia algo que poderia “manchar”
seu nome ou fizesse duvidar sobre das graças que ela dizia receber. Outras perguntas eram
mais gerais:

- Conhece a Beata Maria de Araújo, sabe de quem é filha e de onde é natural?


- Sabe de si mesmo ou consta-lhe alguma coisa com relação à transformação da hóstia em
sangue em ocasião que a Beata comunga?
- Consta-lhe que a Beata tinha tido muitas vezes comunhões miraculosas?
- Sabe ou ouviu dizer a alguém que a Beata tem, muitas vezes, tido êxtases e estigmas
miraculosos?
- Consta-lhe que a mesma Beata em raptos extáticos tem ido tanto ao Céu como ao Inferno e
ao Purgatório, prendendo no Inferno demônios e libertando do Purgatório algumas almas?
- Apesar dos fatos ocorridos com a Beata sabe ou consta-lhe gozar ela de saúde regular?
- Que conceito faz ou consta-lhe que geralmente se faz quanto ao espírito que reina nesta
povoação?
- Consta-lhe que se tinham operado algumas maravilhas desde que se tem dado os diversos
fatos aludidos?

Aqui é preciso enfatizar que o objeto da investigação era o sangramento da hóstia.


Neste sentido, a questão colocada pela Comissão era se o sangue que brotava da hóstia podia
ser o sangue de Cristo. Observo ainda que em nenhum momento Maria de Araújo foi alvo das
romarias, pois ainda que ela tenha sido considerada como “santa” ou “visionária” por algumas
pessoas, as romarias eram feitas em honra do Sangue Precioso.

75
É certo que a conduta da beata foi investigada pela Comissão, mas isto porque seria
incoerente que o sangue de Cristo se manifestasse na comunhão de alguém considerado
“impuro” ou indigno. Outro aspecto importante é que até o início das inquirições só Maria de
Araújo alegava manifestar os “fenômenos extraordinários”, nenhuma outra beata reivindicava
qualquer tipo de manifestação, o que só veio a ocorrer ao longo da execução do primeiro
inquérito.
Do grupo dos três cidadãos132, o primeiro a depor, no dia 15 de setembro, foi o
agricultor José Pereira da Silva Magalhães, “de cinquenta anos, casado, natural da Freguesia
de Vila Bela, bispado de Pernambuco, e residente na Freguesia de Jardim deste bispado do
Ceará”.133 Respondendo as perguntas da Comissão, disse que conhecia Maria de Araújo,
embora não soubesse de quem era filha. Sobre o sangramento da hóstia, disse que “ele próprio
viu muitos panos manchados em sangue, e contendo partículas que apresentavam forma de
carne”134, no entanto, não sabia informar nada novo acerca das comunhões miraculosas e dos
estigmas por ter “ouvido da boca” de outras pessoas.
Toda informação parece ser mediada por um terceiro que invariavelmente havia sabido
dos fenômenos através do padre Cícero ou de outro sacerdote, o que contradiz uma das
afirmações de Cícero sobre o sigilo que ele teria guardado dos acontecimentos. Aqui é
importante ressaltar que a Comissão já tinha conhecimento sobre os outros fenômenos
manifestados pela beata, porque tiveram acesso ao depoimento que Cícero prestou ao bispo
em julho daquele ano.
As duas últimas testemunhas do rol dos cidadãos foram pai e filho: Miguel Gonçalves
Dantas de Quental, “agricultor, de quarenta e três anos, casado, natural da freguesia de
Milagres e ali residente” e Joaquim Gonçalves Dantas de Quental, “natural da freguesia de
Milagres, deste bispado e ali residente, solteiro, idade de dezenove anos, estudante”. Ambos
confirmaram que tudo sabiam era “de ouvir dizer” por outras pessoas e sacerdotes da região.
O mais velho, Miguel Gonçalves, afirmou que ouviu dizer que Maria de Araújo havia
previsto a seca de 1877 e 1878, uma das mais violentas registradas naquela região na segunda
metade do século XIX.135 Esta é a única referência existente sobre essa “predição” e nem

132
Dividimos os depoentes em categorias: cidadãos, sacerdotes e beatas. Respeitando as categorias, seguiremos a
ordem de aparecimento dos personagens no Inquérito.
133
Depoimento de José Pereira da Silva Magalhães de 15.09.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 21-22.
134
Idem.
135
Depoimento de Miguel Gonçalves Dantas de Quintal e Joaquim Gonçalves Dantas de Quintal em 17.09.1891
in “Cópia autêntica...”, pp. 27-29.
76
mesmo Maria de Araújo ou o padre Cícero fazem alusão a isso. Deste modo, é muito provável
que a partir da popularidade do sangramento da hóstia, algumas histórias tenham começado a
ser criadas para aumentar a credibilidade da beata. O seu filho, Joaquim Gonçalves, afirmou
que conhecia a beata pessoalmente, mas somente ratificou o depoimento do pai, não
acrescentando nenhuma informação nova.
Os depoimentos mais ricos em detalhes são os dos padres que viviam ou visitavam
com frequência a cidade do Crato. Eles foram ouvidos entre 17 e 27 de setembro, mas não há
qualquer referência aos critérios utilizados pelo padre Clicério Lobo para definir a ordem de
audição ou mesmo a escolha dos padres. Por exemplo, monsenhor Francisco Rodrigues
Monteiro, que tinha mais proximidade com Maria de Araújo, foi o último a depor perante a
Comissão, no dia 27 de setembro. Seu depoimento é um dos mais relevantes, pois ele
mantinha relações estreitas com Maria de Araújo, tendo lhe acompanhado durante algumas
meditações sobre a Paixão de Cristo.
É possível que ele tenha se acercado mais da beata quando esta passou a morar na
Casa de Caridade do Crato, (após a ordem de Dom Joaquim expressa na Decisão
Interlocutória), uma vez que era ele quem celebrava missas na Capela da referida Casa.136 Em
seu depoimento, monsenhor Monteiro ressalta que conhecia a beata desde menina e, portanto,
podia “atestar” que ela possuía uma trajetória de “santidade”, no sentido de manter uma vida
de piedade, brincando com o menino Jesus de “levantar altares” e ouvindo seus conselhos.137
Os outros padres tinham poucas informações ou pareciam querer evitar um
comprometimento e encontramos depoimentos mais evasivos como o do vigário Manoel
Rodrigues de Lima, de 54 anos, pároco da freguesia de Milagres. Inquirido em 17 de
setembro, afirmou ter conhecimento das visões, revelações, comunicações e viagens
espirituais, mas só havia testemunhado pessoalmente uma das inúmeras transformações da
hóstia, durante a qual afirma que ouviu claramente o padre Cícero dizer: “Vejam, e examinem
bem; é este o verdadeiro sangue de Jesus Cristo”.138
No dia 19 do mesmo mês, foi a vez do padre Manoel Antônio Martins de Jesus, de 59
anos, que era vigário da cidade de Salgueiro, no Pernambuco, mas natural de Missão Velha
(cidade vizinha ao Crato), e possivelmente ainda teria família naquela região, o que

136
Em suas cartas ao bispo Dom Joaquim, ainda em 1890, ele fez alusão a diversos momentos, nos quais
chamava Maria de Araújo para meditar com ele sobre a Paixão de Cristo na Casa de Caridade.
137
Depoimento do monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro de 27.09.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 43. Mais
adiante retomaremos o depoimento deste sacerdote.
138
Depoimento de Manoel Rodrigues de Lima em 17.09.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 27.
77
justificaria sua presença em Juazeiro. Ele afirmou que conhecia a beata e tinha “razão
particular para nela reconhecer o dom de discernimento, em caso que lhe afeta muito
diretamente”.139
Depois do padre Cícero, esse padre foi o primeiro a falar sobre o dom de
discernimento140 atribuído a Maria de Araújo que se refere à capacidade de enxergar espíritos
e, além disso, de descobrir o significado das revelações e profecias. No entanto, o padre não
entrou em detalhes sobre o caso citado e encerrou seu depoimento com a narração da primeira
comunhão sanguinolenta da beata, a qual não teve oportunidade de testemunhar, mas que lhe
foi contada.
O padre Felix Aurélio Arnaud, o mais idoso da região, com 76 anos, provavelmente
conhecia Maria de Araújo desde criança, contudo seu depoimento foi curto e direto. Ele depôs
no dia 22 de setembro e respondeu que tudo o que sabia sobre os fenômenos manifestados por
Maria de Araújo era por ouvir dizer, sendo o padre Cícero quem geralmente lhe atualizava
sobre os eventos.141
O padre Nazário Rolim, de 45 anos, era natural de Cajazeiras, mas já vivia há muito
tempo em Missão Velha. Ele seguiu o mesmo padrão narrativo do padre Félix Arnaud: não
afirmou nada concretamente, mas disse ter testemunhado uma das crucificações de Maria de
Araújo e sabia “que ela desde menina é dada a piedade”. Confirmou ainda que a entrada de
pessoas no povoado aumentava diária e gradativamente, “as quais vem impelidas por esses
fatos, a tratar de receberem ali os sacramentos da penitência e da eucaristia”.142 Os
depoimentos destes padres são interessantes, pois seja pela descrença nos fenômenos ou pelo
receio de se comprometer, mais tarde, eles se posicionaram a favor de Dom Joaquim.
No dia 25 de setembro foi a vez do padre Joaquim Sother de Alencar (1858-1914),
professor do Seminário do Crato e Capelão da Casa de Caridade da mesma cidade. Conhecia
Maria de Araújo desde 1886 e “foi testemunha ocular da transformação das hóstias em
sangue”, mas afirmou que tudo o mais que sabia tinha sido lhe informado pelo diretor

139
Depoimento de Manuel Antônio M. de Jesus em 19.09.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 33.
140
O dom de discernimento aparece no Novo Testamento principalmente em 1Jo 4.1, Mt 24.5 e 1Tm 4.1: “Trata-
se de uma dotação especial dada pelo Espírito, para o portador do dom discernir e julgar corretamente
profecias e distinguir se uma mensagem provém do Espírito santo ou não”.
141
Depoimento de Feliz Aurélio Arnaud em 22.09.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 34.
142
Depoimento de Nazário David de Sousa Rolim em 24.09.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 38.
78
143
espiritual da beata, o padre Cícero. Este padre, no entanto, foi um dos maiores aliados do
bispo Dom Joaquim e mais tarde, foi um dos poucos a ter a confiança do bispo.
O padre Quintino Rodrigues (1863-1928), professor do Seminário São José, tinha 28
anos quando foi chamado pela Comissão em 26 de setembro.144 Em seu depoimento disse
saber da ocorrência dos fenômenos, atestou o bom caráter de Maria de Araújo, mas sempre
usou frases iniciadas por “segundo consta”, “alguém lhe comunicou”, etc. Assumindo
somente uma vez ter testemunhado o sangramento de um crucifixo nas mãos da beata quando
ela meditava sobre a Paixão de Cristo e de outra vez ter presenciado a transformação da
hóstia, mas não deu muitos detalhes.145
Ao contrário de alguns padres que declaravam uma crença explícita nos fenômenos, o
padre Quintino tomou muito cuidado nas suas declarações: não condenou a beata, mas
tampouco considerou o que via como manifestação de milagre. De fato, seu depoimento é o
único que não se refere a Maria de Araújo como uma mulher piedosa, e destaca, inclusive, a
possibilidade de ela não ser tão humilde e modesta como os outros depoentes afirmavam:

Maria de Araújo apresenta um exterior modesto, mas alguma vez pareceu-


me descobrir contradição em suas palavras, e ostentação, em algumas ações
suas. Disse-me ela uma vez que assistira sobrenaturalmente a uma leitura
espiritual feita por uma pessoa na distancia de três léguas, e perguntando-lhe
eu se dava relação do lugar e da posição em que se achava aquela pessoa,
disse que sim, mas instando para que me desse, disse-me afinal, com sorriso,
que mentira, que apenas tinha conhecimento da leitura.146

O questionamento sobre o comportamento de Maria de Araújo chama atenção para o


modelo comportamental que se estava construindo sobre ela. Ora, a primeira pergunta da
Comissão era, geralmente, se o depoente conhecia Maria de Araújo e se sabia ser ela era dada
a uma vida de piedade, a qual, todos responderam afirmativamente. Ao relevar esse aspecto
contraditório da beata, o padre Quintino nos leva a questionar sobre, e em que medida, houve
interesse dos padres inquisidores, Clicério e Antero, em ver naqueles fenômenos um milagre e
naquela mulher, uma santa.

143
Depoimento de Joaquim Sother de Alencar em 26.09.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 41.
144
Após o primeiro inquérito esse padre ganhará mais destaque, pois foi um dos primeiros a retratar-se,
declarando total apoio ao bispo Dom Joaquim e estabeleceu com ele uma aliança que mais tarde, em 1911,
lhe rendeu o bispado do Crato.
145
Depoimento de Quintino Rodrigues de Oliveira e Silva em 25.09.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 40.
146
Idem, p. 66.
79
É interessante, pois, que Dom Joaquim tenha escrito ao padre Quintino, um mês
depois desse primeiro depoimento, pedindo que ele esclarecesse algumas questões acerca de
Maria de Araújo e dos fenômenos extraordinários. O bispo pediu detalhes sobre o
sangramento do crucifixo que o padre Quintino teria presenciado e perguntou também se a
beata já havia sangrado antes por ocasião de alguma enfermidade; se ele mesmo ou outro
sacerdote havia ministrado a comunhão à beata exigindo que ela permanecesse com a boca
aberta; se tinha encontrado em Maria de Araújo “alguma contradição, falta de sinceridade,
impostura ou ostentação”.147
Na carta-resposta, mais longa que o seu primeiro depoimento, o padre Quintino,
apesar de detalhar melhor tudo o que havia presenciado, manteve o tom evasivo, não
afirmando claramente se acreditava ou não que os fenômenos podiam ser considerados
milagres:

Achando-me em uma pequena sala contigua à Sacristia e com serventia para


ela, foi ter comigo Maria de Araújo, às 3 horas da tarde mais ou menos [não diz
o dia], pedindo para fazer-lhe uma leitura sobre a Paixão de Nosso Senhor
Jesus Cristo [...] Alguns minutos depois de começada a leitura Maria de Araújo
chamou minha atenção, para o sangue que, no seu dizer manava do crucifixo, e
de fato vi que havia sangue no côncavo das mãos da imagem, na cabeça, a cinta
e nas extremidades inferiores, entre a cruz e os pés da imagem, notando ser o
sangue da cabeça, mãos, etc., mais rubro que dos pés e não ter a consistência
ordinária do sangue, enquanto o dos pés tinha a cor um pouco escura, e parecia
conter algum liquido que se assemelhava a saliva. [...] É o que sei dizer a este
respeito.148

Aventamos que existe certa precaução, principalmente por parte dos sacerdotes, com o
que era dito. Quando analisamos os depoimentos dessas testemunhas – civis e sacerdotes -,
percebemos que, à exceção de uns poucos, os depoentes ressaltam o que “se ouviu dizer”,
eximindo-se assim da responsabilidade do testemunho ocular.
Por último, o monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro dá o seu relato cuja força da
crença é facilmente detectada. Ele não se exime de manifestar sua admiração por Maria de
Araújo e aos fenômenos manifestados em sua presença:

147
Resposta do padre Quintino em 31.10.1891 ao ofício enviado pelo bispo Dom Joaquim José Vieira em
26.10.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 65. O padre incluiu as perguntas na carta de resposta, por isso elas
estão em primeira pessoa.
148
Idem, p. 65
80
Sabe se a Beata tem tido êxtases, estigmas, chagas, impressões dos
instrumentos da Paixão no corpo, chamas de amor e exsudações sanguíneas,
tudo com caráter divino? Ao que respondeu que ele testemunha tem
presenciado, muitas vezes a Beata em estado de êxtases, a verter-lhe sangue
da fronte, das mãos, dos pés e do lado, e isso pela impressão dos
instrumentos da Paixão, e bem assim sentindo em seu corpo chamas de amor
divino, que a consumia toda, do que tudo nota-se um caráter divino; dando-
se todos esses factos em sua presença e em ocasião que por mandado de
Deus ele testemunha se entretinha com a Beata acerca da Paixão de Nosso
Senhor.149

Na declaração, o monsenhor mantém o mesmo tom apaixonado que transparece nas


cartas que ele enviou durante todo o ano de 1891 ao bispo, intercedendo por Maria de Araújo
e tentando convencer o bispo a ir ao Juazeiro para testemunhar o sangramento da hóstia e os
outros fenômenos. Arriscamos afirmar que juntamente com o padre Cícero e José Marrocos,
ele formou o trio de advogados da chamada “causa do Juazeiro”, como ficará conhecida a
questão em Roma.
O conteúdo dos depoimentos se repetia e as testemunhas tendiam a esquivança, parece
que à exceção do monsenhor Monteiro e de José Marrocos, ninguém quis realmente arriscar
manifestar um juízo de valor sobre o que achavam ter visto ou o que ouviram. É possível que
essa relutância fosse um efeito das considerações feitas sobre o bispo na sua Decisão
interlocutória, uma vez que nenhuma delas arriscou dizer que os fenômenos podem ser
milagrosos.
Outro elemento interessante, é que apesar dos fenômenos como estigmas, êxtases e
sangramentos terem sido notados desde 1886, segundo o padre Cícero e monsenhor Monteiro,
esses “prodígios” de Maria de Araújo só foram dados a conhecer ao público, após o
sangramento da hóstia em março de 1889. No entanto, dois personagens acompanhavam de
perto o avançar do caso. Com personalidades totalmente distintas, mas ambos dotados do dom
da escrita Monteiro e Marrocos atestam suas crenças com segurança e paixão.

149
Depoimento do monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro de 27.09.1891 in “Cópia autêntica..”, p. 43.
81
Figura 3: Padre Francisco Ferreira Antero
Arquivo: DHDPG

Figura 4: Padre Clicério da Costa Lobo


Arquivo: DHDPG
82
2.2. José Marrocos e Monsenhor Monteiro: os advogados da “Santa
Causa”

“Oh! Ninguém sabe como esta alma, nestes momentos se apura no amor de
Deus! [...] Não se imagina que enlanguecimento de amor, que fogo celeste
nestes Divinos instantes inundou o coração escolhido desta Virgem!”. 150

Escrito em 12 de outubro de 1891, o depoimento de José Joaquim Telles de Marrocos


foi um dos mais longos do primeiro inquérito.151 Marrocos tinha 49 anos, natural do Crato, era
filho do padre João Marrocos e primo de segundo grau do padre Cícero.152 Apesar de sua
ascendência pouco lisonjeira para a época em que viveu, José Marrocos conseguiu se destacar
na região do Cariri e no Ceará por sua atuação em diversas frentes.
Foi um ativista pela causa das vítimas da epidemia de cólera, doença que vitimou,
entre centenas de pessoas, o seu pai e o do padre Cícero em 1862. A morte do pai foi, aliás, o
acontecimento mais marcante na vida de Marrocos, na época com 20 anos de idade. O fato fez
com que ele estabelecesse uma intensa correspondência entre o interior, o Governo da
província e a Diocese recém-criada, no sentido de construir um cemitério especial para os
coléricos.
Por volta de 1865, Marrocos foi estudar no Seminário Episcopal da Prainha, em
Fortaleza, do qual teria sido expulso em 1868 pelo reitor da época, o francês Pierre Auguste
Chevalier (1831-1901). Muito se especulou sobre a verdadeira razão da saída de Marrocos. O
150
Relatório de Monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro sobre os fatos de Juazeiro em 18.10.1891 in “Cópia
autêntica...”.
151
Assim como foi feito com Monsenhor Monteiro, Marrocos não foi diretamente interrogado, mas apresentou
um depoimento escrito.
152
Marrocos nasceu em 26 de novembro de 1842 na cidade do Crato, filho de uma relação ilícita entre o padre
João Marrocos e a mulata Maria da Conceição do Amor-divino e foi batizado na matriz de Nossa Senhora da
Penha no Crato em 20 de dezembro do mesmo ano, “tendo sido seus padrinhos o doutor Manuel Marrocos
Teles e de D. Ana Francisca de Oliveira” “Livro de registro de Batismo da Paróquia do Crato, 1841-1842, fls.
87). No seu processo de Ordenação do Seminário da Prainha temos a mais detalhada genealogia de
Marrocos: “O Segundo anista [sic] do curso teológico do Seminário Episcopal desta Cidade da Fortaleza,
José Joaquim Telles Marrocos, natural da Freguesia de N. Sra. da Penha do Crato neste Bispado, filho natural
de João Marrocos Telles, e Maria da Conceição do Amor-divino, neto paterno de José Joaquim Telles e
Barbara Maria de Jesus, ambos naturais da Freguesia de N. Sra. da Penha do Crato e neto materno de
Romualdo Soares Barbosa e Helena Maria da Conceição, ambos naturais da mesma Freguesia [...]” (Processo
de Habilitação Canônica de José Marrocos em 14.03.1866, p. 35. Arquivo da Cúria, DHDPG). Em realidade,
a mãe de José Marrocos é referenciada na historiografia como uma “cabra”, conceito pejorativo que indica
quem é oriundo de um cruzamento entre um mulato e um negro (Araújo, 1956: 53). Descobrimos ainda que a
avó paterna de Marrocos era ela mesma filha de um padre jesuíta português chamado Alexandre Leite de
Oliveira com uma mulata chamada Teresa de tal (Araújo, 1956: 03). Essa digressão genealógica se faz
necessária devido à escassez de dados sobre a filiação de José Marrocos na historiografia.

83
historiador Irineu Pinheiro, que foi seu aluno, conjeturava sobre a possível falta de vocação do
professor (1963: 129). Já o padre Antônio Gomes aventava a possibilidade de José Marrocos
ter tido um confronto doutrinal, pois “sustentava pontos de vista teológicos considerados
errôneos” (Araújo, 1956: 48). No entanto, a hipótese mais aceita é a de que sua candidatura ao
sacerdócio foi vetada justamente por sua dupla ascendência levítica: Marrocos era filho e
bisneto de padres (Sobreira, 1956: 61).153
O que décadas antes, provavelmente, não seria um problema (visto a enorme
quantidade de padres de ascendência levítica que ocupavam, inclusive, cargos políticos
importantes), no final do século XIX, quando a Igreja Católica se achava em meio a uma
grande reforma doutrinal, era um grave impedimento. Essa frustação marcou profundamente a
vida de José Marrocos que manteve, contudo, os hábitos rigorosos da vida religiosa: “era um
homem religioso e caritativo; conservava sempre acesa uma lâmpada ao lado de seu santuário
doméstico e, ao que dizia, rezava diariamente o Breviário, como os padres” (Sobreira, 1956:
30).
Voltando ao Crato, Marrocos se dedicou ao jornalismo e ao ensino de línguas como o
francês, o italiano e o latim.154 Criou uma escola para moços e em 1868 fundou junto com o
padre José Ibiapina, sobre o qual falamos no primeiro capítulo, o primeiro jornal cratense de
cunho religioso, chamado A voz da Religião no Cariri, que funcionou até 1870 e que tinha
como função principal divulgar as obras sociais do missionário. A partir de então, Marrocos
cultivou uma série de relações com figuras importantes do corpo eclesiástico, não só da
Província cearense, mas também em outras províncias.
A partir de 1878, sua paixão foi direcionada para as atividades da campanha
abolicionista promovida pela Sociedade Libertadora Cearense entre 1878 e 1880, durante a
qual ficou conhecido por roubar e libertar escravos clandestinamente, além de brandir sua
“pena esmagadora contra os escravocratas” em diversos jornais do país e, no jornal O

153
Analisando o Caderno de Atas do Conselho do Seminário da Prainha, encontramos um apontamento feito pelo
próprio Chevalier em maio de 1865, no qual ele deixa claro que José Marrocos nem poderia ter sido aceito no
Seminário por ser “ilegítimo”. O documento se encontra no Arquivo do Centro de Psicologia da Religião,
sem catalogação oficial.
154
Além disso, Marrocos colaborou com outros jornais como: O Libertador (Fortaleza), Cidade do Rio (Rio de
Janeiro), Jornal do Cariri (Barbalha) e mais tarde em 1909 fundou o primeiro jornal de Juazeiro intitulado
“O Rebate” que tinha como objetivo retorquir as críticas feitas pelo jornal Correio do Cariri – editado no
Crato – ao Padre Cícero Romão Batista e às peregrinações.
84
Libertador, principal veículo de divulgação do movimento abolicionista no Ceará (Vieira,
1958: 92).155
Uma das últimas causas de Marrocos, e, provavelmente, aquela que lhe deu mais
visibilidade foi a da defesa dos chamados “milagres de Juazeiro”. A veemente crença (quase
cega, sem questionamento) manifestada nos “fenômenos extraordinários” e na beata Maria de
Araújo, pode ser explicada por sua ascendência familiar e trajetória religiosa, e,
principalmente, por sua ligação ao padre Ibiapina.156
Marrocos era identificado como um homem extremamente religioso, quase um
“beato” e sua escrita indicia uma personalidade forte e obsessiva. Ele perseverava em suas
causas, até as mais funestas consequências, bradando contra escravocratas, imperadores ou
bispos. É como se ele buscasse ali, a solução para o “trauma” de ter sido expulso do
Seminário. Por isso, arrisco dizer que José Marrocos era, antes de tudo, um devoto de suas
próprias causas:

Quem estudar a fundo o drama religioso juazeirense, que comoveu as


populações católicas de nossa pátria, de Norte ao Sul do Brasil, haverá de
concluir, em minha opinião, ter sido o professor José Marrocos um de seus
personagens centrais, seu maior defensor não só na imprensa, mas também
perante a Santa Sé [...] (Pinheiro, 1963: 131).

Além do dom da escrita, Marrocos possuía uma audácia que, em alguns momentos,
supera a do padre Cícero. Desde 1889, José Marrocos tomara para si a missão de divulgar os
fenômenos do Juazeiro, e mais, de buscar ele mesmo provas que atestassem ser o Sangue
Precioso o “verdadeiro sangue” de Jesus Cristo. Em agosto de 1891, portanto, antes da
chegada da primeira Comissão Episcopal, ele começou a escrever para padres e bispos de
todo país narrando e pedindo opinião sobre a ocorrência dos fenômenos e, principalmente,
sobre o sangramento da hóstia, a fim de construir um documento de defesa dos pretensos
milagres.157

155
Em fins daquela década, Marrocos foi processado junto a outros amigos pelo Coronel Paiva, membro do
Partido Liberal na época, que os acusava de “seduzir e roubar escravos”. O processo acabou por ser
arquivado pela falta de provas contra os acusados (Vieira, 1958: 87).
156
Como vimos no capítulo anterior, ele foi um dos grandes divulgadores do “milagre” das águas curativas do
Caldas que tinham sido abençoadas pelo missionário em 1868.
157
Posteriormente, esse documento foi publicado no Jornal A Província de Recife, em 3 de setembro de 1893,
com o título: “Os milagres de Juazeiro. Sua Divina realidade. Uma Reclamação ao reverendo Bispo
diocesano”. O original possui 71 páginas escritas de próprio punho por José Marrocos e está arquivado no
Departamento Histórico da Cúria Diocesana do Crato (CRB: 04, 139), mas possui um erro: a pessoa que
85
Entre alguns de seus correspondentes estavam D. Antônio Cândido de Alvarenga
(1836-1903), bispo do Maranhão; D. Joaquim Arcoverde (1850-1930), bispo do Pernambuco;
D. Jerônimo Tomé da Silva (1849-1924), bispo do Pará; e o padre João Chanavat (1840-
1899), reitor do Seminário dos Lazaristas em Mariana; ou seja, alguns dos mais influentes e
poderosos eclesiásticos daquele momento, todos ordenados sob o espírito reformador
ultramontano que chegou ao Brasil com os lazaristas. 158 Não temos muitas informações sobre
as estratégias traçadas por Marrocos para chegar a esses bispos, mas sabemos que ele era
levado a sério, na medida em que suas cartas eram respondidas, ainda que viessem com
ressalvas e críticas ao seu comportamento em relação ao bispo cearense.
Na carta (como mesmo texto, mudando somente o destinatário) enviada a diversos
sacerdotes e bispos, Marrocos se apresentava como “jornalista católico”, explicava (a partir de
seu ponto de vista, é claro) o que acontecia no Juazeiro e solicitava resposta a três questões:

1ª. Segundo o Concílio Tridentino (Sessão 13, cap. 3), logo depois da
consagração fica existindo debaixo das espécies sacramentais o Corpo, o
Sangue e a Alma de Jesus Cristo e existe mesmo até a sua própria Divindade
por causa daquela sua admirável união hipostática com o Corpo e a Alma?
2ª Se Jesus Cristo mesmo existe Deus e Homem nesse Sacramento, assim
(conforme ensina São Thomaz) ele pode para confirmar a fé católica sobre
sua presença real no mesmo Sacramento tornar visível aos olhos humanos o
seu Corpo, o seu sangue, reproduzindo a si mesmo, como na ultima ceia?
3ª Se nesse sacramento, como no mistério da Encarnação do Verbo Divino,
com que se acha intimamente ligado; tudo é sobrenatural e miraculoso – o
Sangue, em que se tem visto tantas vezes transformar-se na Igreja do
Juazeiro (Ceará) a hóstia consagrada, conservando-se parte da espécie, é e
pode ser o Sangue de Jesus Cristo, como já se viu em Bolsena no pontificado
de Urbano IV, em Paris em 1290 e ainda em outras partes?159

Como percebemos, as perguntas não eram diretamente sobre os fatos de Juazeiro, mas
especificamente, sobre um fenômeno: a transubstanciação eucarística. O intuito de Marrocos

arquivou, anotou que a data do documento era 5 de agosto de 1891. No entanto, Marrocos faz alusão no texto
à suspensão do padre Cícero “há mais de um ano”, tendo o padre sido suspenso em agosto de 1892. Acredito
que a carta-reclamação tenha sido finalizada em agosto de 1893 e então, publicada em setembro.
158
Entre 1891 e 1892, ano da realização do primeiro inquérito, temos conhecimento sobre seis consultas a bispos
de todo o Brasil, sobre o fenômeno eucarístico, com o intuito de obter respostas favoráveis ao evento de
Juazeiro. Do que temos em nosso acervo documental: a) Respostas a Marrocos: Dom Antônio, 28.08.1891,
Maranhão; Comissário Episcopal (?), 12.10.1891; padre João Chanavat, 20.10.1891, Mariana – MG; Dom
Jerônimo, 20.10.1891, Pará; Dom Tomaz, 25.11.1891, Guarda; Dom Joaquim Arcoverde, 27.11.1891,
Pernambuco; Cônego José Marcolino Bittencourt, 20.10.1891, Porto Alegre – RS; Monsenhor Vicente
Ferreira, 16.01.1892, Porto Alegre – RS. Ver entre outras: Carta de José J. T. de Marrocos para D. Antonio
Cândido Alvarenga em 28.081891. Pasta 33, Arquivo dos Salesianos.
159
DHDPG/ SAL: Pasta33. Carta de José Marrocos a D. Antônio, bispo do Maranhão em 28.08.1891.
86
era se armar de argumentos contra a Decisão Interlocutória do bispo, irrevogável em afirmar
que o sangue das hóstias consumidas por Maria de Araújo não era nem podia ser o sangue de
Cristo.
Foi com esse espírito que Marrocos se dirigiu à Comissão Episcopal e apresentou seu
depoimento escrito. Neste sentido, somos surpreendidos tanto pela sua ousadia quanto pela
inércia dos membros da Comissão que em nenhum momento, questionaram a validade do
depoimento ou fizeram perguntas, aceitando passivamente o relato que foi, posteriormente,
anexado no primeiro inquérito.
Como é de se esperar, o texto defende a hipótese do milagre: “este fato maravilhoso,
extraordinário, sobrenatural, divino”, e continua, a prova do milagre seria o fato de os
fenômenos não cessarem de ocorrer desde 1889, atraindo “a curiosidade do homem vulgar e a
investigação do homem curioso, a objeção do cético e o exame da ciência”.160 É importante
lembrar que após o primeiro sangramento em março de 1889, a hóstia continuou a sangrar
todas as quartas e sextas-feiras e não só pelas mãos do padre Cícero, mas também com outros
sacerdotes e depois com os padres da Comissão, fato que já contraria uma historiografia
centrada na personagem e ações do padre Cícero.
Continuando sua narração, Marrocos falou sobre a relação que possuía com Cícero,
seu “amigo mais próximo, os laços de sangue, as relações desde a infância, o coleguismo dos
bancos escolares, estreitado pela vizinhança de nossas moradias, a perda de nossos pais”,161 e
enfatiza como o sacerdote tentou esconder os fenômenos que aconteciam com Maria de
Araújo, mas que acabaram saindo do controle: “o segredo […] tornava-se uma revelação que
repercutia ao longe, e de longe trazia romeiros que chegavam ao Juazeiro perguntando aonde
estava o Precioso Sangue que tinham vindo adorar”.162
Essa referência ao esforço do padre Cícero em manter os fenômenos em segredo, é
relevante, pois uma das reclamações da Diocese dizia respeito à popularidade dos fenômenos
e ao estímulo dado às peregrinações. Para Marrocos é como se as romarias fossem algo
“natural” dado ao “extraordinário” dos acontecimentos: “[…] não obstante o padre Cícero ter
guardado toda a reserva sobre tão mirífico acontecimento, contudo foi ele de alguma sorte

160
Depoimento de José Marrocos em 12.10.1891 in “Cópia autêntica…”, p. 67.
161
Idem.
162
Idem.
87
sempre divulgado pelas pessoas comparecentes à mesa de comunhão e que dela foram
testemunhas presenciais”.163
Marrocos ainda informa que os fenômenos foram divulgados no Diário do Comércio
da Corte, em 19 de agosto de 1889 e, logo em seguida, no Diário de Pernambuco em 29 do
mesmo mês. Ora, mesmo com toda a dificuldade da comunicação à distância da época, é de
surpreender que a população do Rio de Janeiro e de Pernambuco tenham sido informados
sobre os fenômenos em agosto, enquanto o bispo do Ceará ainda em novembro alegava não
saber do caso.
Para Marrocos, foi a publicidade dada aos eventos que “estabeleceu o culto” e, neste
sentido, devemos atentar para uma questão importante: sem publicidade não haveria culto,
não se instalaria nenhuma crença. Essa também era a hipótese de Dom Joaquim. Mas
Marrocos parece não entender o sentido da hierarquia, e acusa o bispo, no mesmo
depoimento, de arbitrariedade, quando da proibição de culto ao Sangue Precioso. O curioso
na narrativa de Marrocos é a tentativa de diminuir a autoridade do bispo, a partir de uma
suposta “autonomia” do milagre. Para ele, se era o próprio Cristo que se manifestava no
Juazeiro com seu sangue, não haveria sentido em esperar reconhecimento da Diocese ou
mesmo da Santa Sé, pois o “reconhecimento solene de sua existência [do milagre] teve por si
um poder superior e invencível”. O depoimento de Marrocos expressava uma completa
afronta à hierarquia!
Segundo Marrocos, outra “prova” de que os fenômenos eram milagres, eram as graças
alcançadas pelos devotos mediante as promessas feitas ao Sangue e as práticas de devoção,
que segundo ele, “partiam” do próprio povo:

Mas a alma cristã do espectador nunca pode ver esse sangue sem sentir-se
penetrada de respeito e comovida até a efusão das lágrimas! Jamais ninguém
passou por diante dele, que não genuflectasse [sic], que não beijasse o chão,
que não orasse e muitos tiravam o calçado, como Moisés no lugar santo.164

Algumas décadas antes, entre 1868 e 1870, Marrocos teria feito o mesmo esforço para
validar os milagres das águas curativas do padre Ibiapina, como vimos no capítulo anterior.
Neste sentido, conjeturamos que havia para ele, uma “consciência” de que se o povo crê e
essa crença é validada pelas “graças alcançadas”, não havia motivos para duvidar. Por outro

163
Idem, p. 68.
164
Idem, p. 69.
88
lado, o processo de significação que Marrocos pretende dar aos eventos de 1889 confronta os
caminhos eclesiásticos pelos quais qualquer fenômeno que se pretende “milagre” deve passar.
Aviva-se aí, como ressalta Michel de Certeau, “uma diferença (tida como intolerável) entre a
consciência religiosa dos cristãos e as representações ideológicas ou institucionais da sua fé”
(2007: 134. Grifos no original). A noção de crença proposta por Certeau, na qual, são
consideradas as relações de enunciação e investimento feitas pelas pessoas em determinado
objeto ou sujeito, nos ajuda a pensar o relato de Marrocos e sua “cegueira” com relação às
normas da Igreja, apesar de ele se declarar um fiel católico.
Essa desagregação entre o sentimento de crença e a doutrina oficial ganha contornos
muito evidentes no caso de Juazeiro, na medida em que a experiência do milagre confronta a
instituição. Confronto esse que se estabelece não só com os leigos, mas também com os
próprios sacerdotes. Esse mesmo discurso baseou o depoimento de Monsenhor Monteiro,
também escrito de próprio punho, entregue em 18 de outubro de 1891. Nele, o sacerdote se
apresentou como um dos grandes defensores da beata e argumentou que tinha uma licença
especial dada por Deus para se comunicar à distância com ela.

***

Francisco Rodrigues Monteiro nasceu em 1847, era natural da cidade do Crato e se


formou sacerdote na mesma época do padre Cícero, mas ficou durante algum tempo como
capelão na cidade de Iguatu, próxima ao Crato, voltando à sua cidade natal em 1888 para
assumir a direção do Seminário São José. Segundo Della Cava, ele “angariou para si a
reputação de orador veemente, profetizando sobre a punição iminente da humanidade por
Deus […] foi também conhecido por seus brados e vociferações durante o sermão, o que
provocava lágrimas de arrependimento em seus paroquianos” (1976: 44).
Se o padre Cícero guardara segredo com relação ao sangramento da hóstia, monsenhor
Monteiro por sua vez, fizera questão de propalar o milagre. Foi sua, a iniciativa de promover a
primeira “romaria” o Sangue Precioso, levando cerca de três mil fieis a pé, da matriz do Crato
por, mais ou menos, 15 quilômetros, até a Capela de Nossa Senhora das Dores no Juazeiro,
em julho de 1889.
Ainda em 1890, portanto, um ano antes da Comissão chegar ao Juazeiro, esse
sacerdote já escrevia cartas a Dom Joaquim detalhando suas “reuniões” com Maria de Araújo,

89
em uma delas, na qual o padre Cícero não se achava presente, Monteiro descreve a
experiência que a beata teve quando ouviu falar sobre a Paixão de Cristo:

Me achava no Juazeiro, Sábado, véspera da Dominga da Paixão. Eram duas


horas e meia da tarde, rezava o meu Breviário na Capela do S. S. Sacramento
quando a Beata Maria de Araújo entrava para fazer oração (estava neste dia
o Pe. Cícero na Barbalha) tinha sede e pedi à Beata, para dar-me um pouco
de água, antes de entregar-lhe o vaso, com que ela me trousa [sic] a água, eu,
por piedade, e pôde ser, também, que por um pouco de curiosidade, comecei
a falar-lhe sobre os sofrimentos de Nosso Senhor Jesus Cristo, eu estava
assentado perto da audencia [sic] de lado da Epístola, ela conserva-se em pé,
de repente ela sofre um grande abalo e começa à gemer, ela é de pouca
estatura, o seu rosto ficava de baixo das minhas vistas, encaro-a, também,
abalado e vejo na testa uma cinta ensanguentada, e o sangue a correr pelo
rosto com tanta abundância que lhe molhou a murça, à este choque sucedeu
um êxtase, e logo com uma humildade profunda de confundir trata de retirar-
se; opus-me, dizendo, que Deus me havia feito testemunha daquele caso e
para a glória dele me explicasse o que aquilo era; responde o, que Nosso
Senhor ensanguentado, cercado de espinhos, tirou a coroa sagrada e a
colocou em sua cabeça, dizendo: - Aprende a amar-me. […] Ah! Senhor.
Bispo, que dores amorosas! Ela gemia e amava!165

Nesse relato, temos alguns elementos: a assumida curiosidade do sacerdote que o


levou a provocar uma reação da beata e aí obtém dela uma resposta, isto é, a partir da menção
aos sofrimentos de Cristo, Maria entrava em êxtase. Além disso, parte do sacerdote, que se diz
“abalado”, a ideia da “vontade divina” de fazê-lo testemunha do fenômeno. A beata, por outro
lado, segundo o relato, tenta esquivar-se e não quer contar a experiência, seja por recato, seja
pela falta de uma linguagem que exprima o que ela quer dizer.
A erótica do relato também é muito forte, primeiro, Cristo que tira sua coroa e coloca
na cabeça de Maria, em um ato de transferência do sofrimento e, também, como uma lição:
“Aprende a amar-me” e logo em seguida, a descrição das “dores amorosas”, durante as quais,
a beata “gemia e amava”. O que lemos no relato acima, não reflete o olhar de um sacerdote
formado nos moldes romanos, tampouco o olhar de um inquisidor. O que temos aqui é olhar
de um devoto.
Quando o monsenhor apresentou seu depoimento, a Comissão já se encontrava no
Juazeiro há pelo menos quarenta dias e aceitaram o testemunho escrito sem mais ressalvas ou
questionamentos. Monsenhor Monteiro era um dos poucos sacerdotes que possuía um contato
mais íntimo com Maria de Araújo, pois a conhecia desde criança, tendo, inclusive, participado

165
CPR/CRA 01,06: Carta de Monsenhor Francisco R. Monteiro a D. Joaquim J. Vieira em 20.04.1890.
90
de sua direção espiritual por um tempo. Sua narrativa é mais direcionada à uma defesa das
qualidades da beata, enquanto que a de José Marrocos focalizava o direito ao culto do Sangue
Precioso:

A beata é pobre e de baixa condição! O Juazeiro é um insignificante povoado!


Serão estes os obstáculos às manifestações divinas? […] Todo mundo sabe que
o príncipe do Céu, Filho Unigênito de Deus Padre nasceu de uma humilde
Virgem de Nazaré, e era filho adotivo de um velho Carpinteiro. [...] Donde
falou a Virgem de Lourdes, não foi do côncavo de um rochedo deserto a uma
humilde Pastorinha? Meu Deus, quem eram os apóstolos? Pobres e grosseiros
pescadores dos mares da Galiléia. Eram a escória do mundo! O Grande Batista
pregou a penitência no deserto nas margens do Jordão e não nas grandes
cidades.166

Para monsenhor Monteiro, se o próprio Cristo havia tido uma vida simples, nascendo e
vivendo pobre, porque ele não poderia escolher um lugar pobre para retornar ao mundo? Neste
sentido, o sacerdote tenta justificar a peregrinação ao Juazeiro, e neste sentido, sua própria
atitude, a partir da busca legítima pela salvação, base da doutrina católica. Nessa lógica, se há
peregrinação é porque há milagre:

Tomado por espírito de fé e entusiasmo religioso mostrei ao povo, ávido pela


vista dos panos ensanguentados, estes depósitos sagrados, mas sempre
respeitando o juízo infalível da Santa Igreja e as disposições da Autoridade
Diocesana. É muito natural obrar-se assim! Quem pôde impedir ao povo
perseguido de prestar veneração, cuidado e zelo pelas santas relíquias […] é
uma espontânea veneração do espírito cristão e ideia religiosa. Muitos fatos
extraordinários bem estudados, sempre os mesmos, livres de ilusão, produzem
o que no Juazeiro se tem produzido. Um arrastamento de vontade que força
humana não pode impedir!167

É válido dizer que, com esses últimos depoimentos, sem intervenção da Comissão
Episcopal, o primeiro inquérito se tornava inevitavelmente um documento de defesa dos
pretensos milagres e, por consequência, de Maria de Araújo, considerada o instrumento
escolhido por Deus para se manifestar novamente.
No mesmo texto, à semelhança do depoimento do padre Cícero, o monsenhor narra
detalhadamente os fenômenos que testemunhou, ressaltando: “Falarei primeiro do sangue e
depois do espírito da beata, para que não seja tida como embusteira. Prova irrefragável de ser
o sangue das comunhões da Maria de Araújo, o sangue dos crucifixos […] o mesmo sangue

166
Depoimento de Monsenhor Francisco R. Monteiro sobre os fatos do Juazeiro in “Cópia autêntica...”, p. 71.
167
Idem.
91
de Nosso Senhor Jesus Cristo”.168 Como vemos, o vocabulário usado pelo sacerdote, é
tendencioso e não só busca demonstrar a “santidade” da beata, como “provar” que o sangue
derramado das hóstias era o sangue de Cristo.
Se for válido questionar por que a Comissão escolhida pelo bispo, tida como ilustrada
e capaz de dirigir um processo investigativo, recebeu esses depoimentos tão passivamente,
mais curioso ainda é observar como eles guiaram os interrogatórios com as mulheres que
testemunharam no processo. É necessário agora, conhecê-las um pouco mais. Apesar de não
possuirmos muitas informações acerca da vida pessoal das mulheres interrogadas, os
testemunhos não deixam de ser interessantes, pois reivindicam uma autoridade que não existe
nos depoimentos dos sacerdotes, por exemplo, a autoridade de ser um instrumento divino.

168
Idem. Grifos nossos.
92
Figura 5: Monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro
Arquivo DHDPG

Figura 06: José Marrocos


Arquivo: DHDPG

93
2.3 As outras Marias: damas de honra do Senhor

[...] aquelas que na busca incessante pela perfeição cristã, enveredavam pelo
misticismo, despertando a devoção de outras mulheres. Eram as místicas e
visionárias que em suas visões de Cristo e diálogos com os santos
confirmavam os dogmas e os ensinamentos da Igreja (Algranti, 1993: 307).

Se Maria de Araújo é vista como a esposa consagrada de Cristo, as outras nove


mulheres que depuseram no primeiro inquérito podiam ser consideradas as damas de honra
daquela união. Quase desconhecidas da historiografia dedicada ao padre Cícero e ao Juazeiro,
e raramente nomeadas, essas mulheres só ficaram conhecidas pelos depoimentos que
prestaram no Processo Episcopal. Citadas vez ou outra na correspondência trocada entre o
bispo Dom Joaquim e o padre Alexandrino, chega um momento, precisamente após suas
retratações, que elas somem sem deixar rastros, ao contrário de Maria de Araújo que podemos
acompanhar até o dia de sua morte.
A rigor, os relatos dessas mulheres seguem o mesmo padrão de Maria de Araújo, e as
visões e revelações narradas em seus depoimentos, reforçam a necessidade de levar o
processo diretamente ao Papa. Todas elas justificaram a ocorrência dos fenômenos pela tópica
da Segunda Vinda de Cristo e da crise na Igreja Católica, aludindo à Paixão de Cristo como
motivadora das visões e revelações, como veremos logo adiante.
No entanto, mais do que informantes elas reivindicaram uma participação mais ativa
nos acontecimentos de 1889. Depois de Maria de Araújo, a segunda a depor no primeiro
inquérito foi Jahel Wanderlei Cabral, em 15 de setembro de 1891.169 Natural de Juazeiro, era
solteira e tinha 31 anos em 1891, sabia ler e escrever, ao contrário da maioria analfabeta ou
que só assinava o nome, e sua família era uma das mais importantes da região. Infelizmente, a
exemplo das outras beatas, pouco sabemos sobre sua trajetória ou como chegou ao
Apostolado da Oração, ou onde conheceu o padre Cícero e Maria de Araújo.
Utilizando o mesmo roteiro de perguntas, a Comissão direcionou as perguntas para a
vida e para os fenômenos ocorridos com Maria de Araújo. Através de seu depoimento,
tomamos conhecimento que Jahel Cabral já conhecia a beata há pelo menos 14 anos e
participava juntamente com ela das reuniões do Apostolado que tinha sua sede no povoado de
Juazeiro.

169
Os depoimentos de Maria de Araújo serão explorados no próximo capítulo.
94
Quando perguntada se sabia ou tinha ouvido falar sobre as visões de Maria de Araújo,
Jahel surpreendentemente respondeu que não só sabia sobre essas visões, como “ela própria
viu muitas vezes Nosso Senhor a derramar sangue, o que se deu cerca de dois anos antes das
atuais manifestações”.170 É provável que essa afirmação tenha causado estranheza na
Comissão, uma vez que pelo menos na documentação anterior ao Processo (basicamente as
cartas trocadas entre o bispo e os padres do Cariri) ainda não se tinha ouvido falar de
fenômenos manifestados por outras mulheres.
Ela disse ainda que várias vezes testemunhou a transformação das hóstias em sangue,
carne e coração humano, mas que isto já lhe tinha sido revelado antecipadamente em espírito.
Disse que, da primeira vez, Deus lhe ordenou que fosse “em espírito” fazer uma comunhão
em Roma, “para o fim de fazer confirmar com sua autoridade [do Papa] os milagres de
Juazeiro”. Em Roma, o Santo Padre (na época Leão XIII) lhe teria perguntado de onde era,
qual seu nome e o objetivo de sua visita, ao que ela respondeu que “vinha da parte de Deus,
anunciar-lhe que Deus mesmo queria, que, por sua autoridade, confirmasse os milagres
operados no Juazeiro”.171
A narrativa de Jahel se diferenciou em alguns pontos em relação à de Maria de Araújo.
Primeiro, pelo detalhamento das viagens espirituais a Roma, o que é relevante, dado que ela
era, possivelmente, a mais culta do grupo e, provavelmente lera algo sobre a capital italiana
(nesse momento muitos jornais já circulavam na região). Segundo, por sua “intimidade” com
Deus (ela raramente cita Jesus Cristo), ela diz, por exemplo, que quando foi chamada a
comparecer diante da Comissão, sentiu-se aflita e ansiosa por não se julgar preparada e:

[…] viu o Padre Eterno [Deus Pai] que pondo-lhe [sic] a mão direita sobre o
ombro esquerdo dela lhe ordenou que fosse perante o Padre confessor, para
receber a benção e em seguida recebesse, digo, obedecesse à citação para
maior honra e glória dele, pois para isso se achava encarregada da parte
dele.172

Ela dá a entender que justamente por isso era a única autorizada a “registrar em livro
essas revelações”, o que não sabemos se chegou a fazer. No entanto, ressaltou em seu
depoimento que era “por Ele obrigada debaixo de juramento não somente a escrevê-las, senão

170
Depoimento de Jahel Wanderlei Cabral de 15.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 22.
171
Idem.
172
Idem.
95
ainda comunicá-las ao confessor”.173 Prometendo fazer um memorial de suas experiências, em
5 de outubro, menos de um mês depois, Jahel procurou a Comissão a fim de fazer um
aditamento174 ao seu primeiro depoimento “equivalentemente ao memorial que se obrigara a
dar, relativamente a algumas revelações que há tido acerca dos fatos dados, e por se dar nesta
povoação”.175 Veremos que a experiência de Jahel também é distinta das outras mulheres,
porque ela foi uma das poucas na qual o sangue aparece somente nas visões176, não tendo ela
mesma, nenhum tipo de sangramento corporal:

Eu muitas vezes, vi distintamente Nosso Senhor a derramar sangue de seu


coração e de suas mãos, dizendo, hei de derramar muitas vezes sangue, para
chamar assim o povo a mim, como muitas vezes vi Nosso Senhor no Purgatório
a derramar ali sangue de seu coração e de suas mãos, dizendo então que tantas
outras vezes havia de derramar aqui no Juazeiro o seu mesmo sangue, para o
fim de confirmar o povo na fé dos mistérios do amor de seu coração. 177

É importante destacar aqui o uso das expressões: “Vi distintamente”, “Eis que vi”, “Eu
vi”, presentes no relato de Jahel e no relato das beatas que a seguiram, as quais funcionavam
de modo a ressaltar sua autoridade, pois as expressões sugerem que elas não estavam
sonhando nem em estado de vigília (sono leve), mas orando, meditando ou em êxtases e
viram, deste modo, ninguém teria autoridade para contradizê-las.
As visões são as percepções sobrenaturais de pessoas ou objetos, invisíveis aos
olhos.178 Segundo Leila Algranti, as visões místicas são, nesse caso, o principal canal de
comunicação da beata com a divindade e esse tipo de prática “parece estar atrelada à condição
de beata ou beato” (1993: 91). Assim, como lembra Jean Franco: “Ese acceso directo a lo
sobrenatural concedía a la monja mística la misma autoridad irrefutable de que goza el
periodista que investiga y siempre puede decir: ‘yo lo presencié’” (1993: 36). Jean-Claude
Schmitt também alerta que não podemos julgar a “veracidade” da visão ou do sonho179, apesar

173
Idem.
174
A Comissão não fez perguntas durante o aditamento, o texto foi narrado de forma direta, sem interrupções,
como um monólogo.
175
Aditamento de Jahel Wanderley Cabral de 05.10.1891 in “Cópia autêntica”, p. 51.
176
As outras beatas, a exemplo de Maria de Araújo apresentaram outros “fenômenos de sangue”, isto é, estigmas,
crucifixos sanguinolentos, etc..
177
Aditamento de Jahel Wanderley Cabral de 05.10.1891 in “Cópia autêntica”, p. 51.
178
Verbete Visões. In Borrielo, 2003.
179
Os sonhos reveladores – que remetem também ao dom de profecia – foram divididos por Macróbio em seu
comentário ao Sonho de Cipião em cinco tipos: [...] o sonho propriamente dito (somnium), a visão (visio), o
oráculo (oraculum), o devaneio (insomnium) e o espectro (visum, em grego phantasma). Os dois últimos tem
origem no espírito daquele que dorme, mas os três outros vêm do exterior, ajudam a adivinhar o futuro ou
96
de não sabemos como “realmente” a experiência se deu, também está em jogo a narrativa e os
recursos linguísticos e semânticos utilizados pelos narradores (2007:335).
A definição mais comum é aquela dada por Santo Agostinho, com destaque para os
três gêneros de visões: as visões “corporais” que depende dos sentidos do corpo, as visões
“espirituais” que advém da imaginação e as visões “intelectuais” que surgem do raciocínio, da
razão pura (Schmitt, 1999: 38). A visão corporal (visio corporalis) é o próprio sentido da
visão e a visão intelectual (visio intelectualis) é a mais alta na hierarquia porque “provém da
razão do homem (mens, ratio) e visa a contemplação direta de Deus” (Idem, 39). Entre essas
duas, a visão espiritual (visio spiritualis) se sobressai porque é através dela que:

[…] o ‘espírito’ do homem (não os sentidos de seu corpo e tampouco a mens, a


parte superior da alma) percebe ‘imagens’ ou ‘semelhanças’ de corpos (e não
os próprios corpos). A função da alma que entra em jogo aqui é a imaginatio,
poder intermediário e mediador entre sensus e mens, que recebe e elabora as
imagens […] (Idem).

Ainda a partir de Santo Agostinho, quanto mais clara a visão, mais verdadeira seria a
revelação, isto é, “quanto menos enigmática, mais certa era a origem divina” (Lima, 2005;
76). No caso das beatas, elas veem, durante a oração ou a meditação. Entram em êxtases e
podem ver Jesus, Maria, anjos e santos, além disso, podem ter revelações que se assemelham
ou são uma espécie de dom da profecia. Segundo Algranti, mulheres que levavam uma vida
devotada à Igreja e ainda apresentavam históricos de reprodução de fenômenos sobrenaturais,
se identificavam de imediato com a vocação piedosa e, ao mesmo tempo, com suas visões e
êxtases quase sempre acompanhados de dores intensas tendiam a ratificar os dogmas da Igreja
Católica.
Assim, seguindo o modelo arquetípico de visionária apresentado por Algranti, no qual,
a visionária é “aquela que percebe, ou imagina perceber, por meio de comunicações
sobrenaturais, coisas ocultas aos homens […]” (1999: 309), inferimos que nada impedia essas
mulheres de manifestar fenômenos extraordinários ou de se comunicar com Jesus Cristo,
Maria e outros santos, porque a vida destes era também tomada como exemplo a ser seguido:

podem sugerir conselhos de conduta. Segundo Delumeau, “O sonho de Cipião que reunia contribuições
pitagóricas, platônicas e estóicas, influenciou profundamente a literatura cristã relativa às visões, e isso tanto
mais que Cícero, no De divinatione [A arte de adivinhar], distinguiu diferentes categorias de sonhos – os
claros, os obscuros e os premonitórios – e explicou as viagens ao além por uma faculdade particular dos
agonizantes” (Delumeau, 2003: 69-70). A revelação é ainda, segundo Certeau, o postulado que manifesta o
conhecimento místico na linguagem, a convicção de que “deve haver um falar de Deus” (Certeau, 1982:
159). Ver também: Lima, Luís Felipe S. Op. Cit., p. 28.
97
Por meio de visões oníricas ou imaginárias, as mulheres não só transmitiam
os ensinamentos da Igreja, como serviam muitas vezes como porta-vozes da
vontade divina. Em suas visões entravam numa comunhão com Deus [...] a a
mística visitava os céus, o inferno e o paraíso. Avistava-se com as almas no
purgatório e ajudava-as através de suas próprias penitencias a atingirem a
salvação (1993: 307).

Tomando as devidas proporções que separam essas mulheres das beatas e santas da
Idade Média, podemos inferir que essas “visões” foram imagens criadas a partir de
elaborações que envolvem o contexto religioso e social onde elas viviam, as instruções morais
e religiosas que receberam e claro, sua necessidade de imitar os santos.
Em seu aditamento, Jahel narrou duas magníficas visões que remetem a um dos
arquétipos mais conhecidos das visões relacionadas à Paixão de Cristo: o lagar místico. Sendo
uma das imagens perpetuadas tanto na literatura cristã como na arte religiosa desde o século
XIII, a imagem desse tanque que abrigava o sangue que escorria das chagas de Jesus tinha
como objetivo atrair a atenção dos fieis para os sofrimentos de Cristo: “Assim como o cacho
de uvas era esmagado no lagar, Cristo estava sujeito às opressões da cruz e aos sofrimentos da
paixão. Chegou-se até mesmo a representar a imagem surpreendente do Pai ativando ele
mesma a prensa do lagar que fazia jorrar o sangue do corpo de Cristo” (Gélis in Corbin, 2008:
40).
A primeira visão narrada por Jahel Cabral datava de meados do mês de julho de 1890
quando orava na Capela de Juazeiro às oito horas da manhã:

[...] eis que vi o mundo a sofrer uma grande tempestade, depois da qual tive de
ver pássaros de todas as qualidades e de todas as cores, bebendo sangue contido
em uma grande caixa; então um deles olhou para mim, e com o bico tinto de
sangue me disse: estes pássaros são almas de toda qualidade, as quais virão de
todas as partes e lugares a beber sua salvação no sangue de Nosso Senhor
derramado aqui neste lugar. Esta visão foi seguida de outras.180

É provável que essa seja uma alusão direta ao Juazeiro como a “grande caixa” na qual
as pessoas iam buscar a salvação. A metáfora também pode ser uma referência à caixa de
vidro que guardava os panos manchados com o sangue que brotava das hóstias sanguinolentas
de Maria de Araújo. A imagem dos pássaros possivelmente alude aos peregrinos que

180
Idem, Grifo nosso.
98
chegavam todos os dias ao Juazeiro, vindos de “todas as partes e lugares” em busca da
remissão dos pecados, de graças ou da salvação.181
Mais adiante, no mesmo aditamento ela diz: “Desde a vez primeira que apareceu aqui
sangue nas hóstias consagradas me foi revelado divinamente que aqui (na Capela do S. S.)
182
seria como outra piscina, onde muitos se lavariam assim na alma, como no corpo”. Em
outro momento, o coração de Jesus Cristo é representado como um “rio que regava toda a
terra”, um rio que, segundo Jahel, a Diocese cearense queria secar com a luta para destruir o
culto ao Sangue Precioso e as peregrinações.
Por exemplo, ela narra que no dia 29 de julho de 1891, ouvindo do padre Cícero que o
bispo não acreditava que o sangue derramado ali era de Jesus Cristo, mas que seria um sangue
“trazido pelos anjos” teve uma visão na qual o próprio Deus conversava com o padre Cícero:

[...] olha para mim homem, e reanima tua fé, lembra-te do que tantas vezes te
hei dito [sic] que este sangue é o sangue do coração de Jesus; então eu disse,
mas o Bispo quer que ele diga que não é o sangue de Jesus Cristo, mas um
sangue trazido pelos anjos. Ele disse então, quem é maior eu ou o mundo
todo? E nesta ocasião eu havia, digo, eu via que ele fechava tudo em sua
mão, até mesmo o Papa era ele quem governava. 183

Em seguida, vemos surgir em seu relato um Deus indignado, alertando que se o


derramamento do seu sangue serve para salvação, também serviria para punição: “o sangue
que derramei e [que] hei de derramar servirá de castigo para os que não acreditarem na minha
onipotência”.184 Nos relatos de Jahel temos um Deus enfurecido, que critica e contra-
argumenta as declarações do bispo:

Santo Thomaz não disse que aquele sangue derramado das hóstias, era
sangue trazido pelos anjos, se assim fosse, como teria ele feito, em tantos
livros, tantos atos de desagravo ao Coração de Jesus no S. S. Sacramento? Se
é assim – um sangue trazido pelos anjos – então que se acabe com todas as
obras de Santo Thomaz. Pergunte ao Bispo se quando eu instituí o S. S.
Sacramento, não era Homem-Deus? Maior humilhação foi a que eu me
sujeitei, instituindo o S. S. Sacramento, do que a de encarnar eu no ventre de
uma Virgem, fazendo-me menino, e passando por todos os passos de minha
vida humana até a morte de cruz. Semelhantemente maior é a humilhação de

181
Arquetipicamente, os pássaros fazem referência ao trânsito entre o céu e a terra, seriam mensageiros divinos e
representariam os anjos, seres que “brilham como o Sol, têm o nome de Deus inscrito no peito e trazem a
palma, símbolo da vitória contra o mal, e a cruz, símbolo maior para o cristão” (Campos, 2004: 107).
182
Idem, p. 53.
183
Idem.
184
Depoimento de Jahel Wanderley Cabral de 15.09.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 22.
99
estar eu presente na eucaristia até a consumação dos tempos, do que a de
derramar nela o meu sangue. 185

Neste sentido, o aditamento feito por Jahel é muito mais rico que seu primeiro
depoimento. Abundam os diálogos com o “Padre Eterno”, este sempre argumentativo e
reclamante do seu direito de voltar a terra e derramar seu sangue pela segunda vez,
ressaltando que o principal motivo da descrença no milagre eucarístico seria a falta de fé dos
seus próprios ministros: “Não é de admirar que não entendam o mistério de derramar-se
sangue das hóstias consagradas, sangue que é meu, porque a fé já está se acabando. Quando
eu vim ao mundo não foram os Pontífices e Sacerdotes que deram a sentença de morte?!” 186
Aqui, a crítica era direcionada diretamente ao bispo Dom Joaquim que, como
representante da Igreja, recusava-se a autorizar o culto e a enviar o processo para Roma. É
difícil acreditar que esse texto foi tomado literalmente da fala de Jahel. Sabemos que ela sabia
ler e escrever, mas não sabemos a que tipo de literatura ela teve acesso, capaz de permitir a
citação de São Tomás de Aquino e mesmo sobre qualquer questão doutrinal que envolvia a
origem do sangue.
O aditamento de Jahel foi feito em 5 de outubro, como dissemos anteriormente.
Considerando que os padres da Comissão estavam no povoado há menos de um mês, é
possível questionar: Já estariam eles seduzidos pela crença no milagre a ponto de intervir ou
influenciar no texto de Jahel? Uma vez que o relato dela indica conhecimento de questões
doutrinais caras à Igreja, podemos questionar também: em que medida, há um “ajuste” da fala
da beata de modo a tornar mais palpável sua relação direta com Deus e com a religião?
Jahel se manifesta sobre minúcias do caso, referindo-se sempre aos fenômenos como
algo que ocorria independente da presença de Maria de Araújo, que, inclusive nem é citada no
aditamento. Sobre a ordem dada pelo bispo, de destruir e queimar os panos manchados de
sangue, Cristo lembra, em uma das visões de Jahel, que: “[...] os Judeus queriam tirar-me
daquela cidade alegando que não queriam outro rei, mas agora que estou no S. S. Sacramento,
só para fazer o bem, tentam os homens para tirar-me do mundo até queimando-me”.187
Outro diferencial das visões de Jahel é a presença de personagens inéditos, como
Verônica “com o pano de que se tinha servido para limpar o rosto de Nosso Senhor”. Um
dado curioso é que a história de Verônica (Bernike, em grego: “imagem verdadeira”) vem da

185
Idem, p. 52.
186
Idem, p. 53.
187
Idem.
100
tradição oral, posteriormente incorporada ao livro apócrifo “Atos de Pilatos”. Parte da
tradição afirma que Verônica era a mesma mulher que havia sido curada de um sangramento
que durava doze anos (Lc 8, 40-48). As visões com Maria também abundavam no relato da
beata que, certa vez,

[…] vi Nossa Senhora toda vestida de verde dizendo então: remetam ao


Papa o processo que se há de fazer, o que respondendo eu que só seria
remetido ao Papa se o Bispo mandasse, como me disse o padre [Cícero], ela
replicou: remetam para o Papa”.188

Essa visão possui elementos muito interessantes como a própria cor do vestido de
Maria: o verde, que em algumas pinturas religiosas serve para indicar a esperança da salvação
promovida pelo Messias (Delumeau, 2003: 158). Além disso, a aparição da Virgem nas
profecias pedindo que fosse feita uma cópia do Processo para ser levado à Santa Sé
garantindo a resolução dos problemas que houvessem, ratifica a atuação de Maria como
intermediadora entre o fiel e Jesus/Deus.
Não por acaso, os oitocentos foi o grande século das aparições marianas (Salette,
1846; Lourdes, 1858; Pontmain, 1871, entre outras) e da consolidação da presença de Maria
nas orações e nos lares católicos. Ainda sobre a citação acima, é notável que apareça pela
primeira vez, um dado que se tornará recorrente: a ideia de que o Papa seria a favor dos
milagres, pois ele mesmo não aprovara outros tantos?
As determinações exaradas na Decisão Interlocutória, de julho de 1891, também se
foram criticadas, ainda que de forma indireta, nos relatos de Jahel. Na visão, o próprio Deus
(Eterno Padre) a tomou pelas mãos e a levou em espírito até a casa do Bispo em Fortaleza em
setembro de 1891:

[...] quando ali chegamos, chamou ele pelo Bispo e ele [o bispo] não respondeu,
o que se deu depois, digo, então eu indiquei que melhor seria subirmos, e o
Eterno Padre disse em resposta: não, vamos ser os pequenos para depois
sermos os grandes. Chamou pela segunda vez o Bispo, e vindo então algumas
pessoas, da casa para saber do que queria, disse o Eterno Padre que queria falar
com o Bispo mesmo, ao que ficando eles como que indiferentes, chamou
terceira vez o Eterno Padre pelo Bispo, que não acudiu ao chamado, quando
então disse o Eterno Padre – está vendo? Já é a terceira vez que o chamo,
vamos embora, e nesse ínterim traçou uma cruz sobre a porta. 189

188
Aditamento ao depoimento de Jahel W. Cabral de 05.10.1891 in “Cópia autêntica”, p. 52. Grifo nosso.
189
Aditamento ao auto de perguntas da beata Jahel W. Cabral de 05.10.1891 in “Cópia autêntica”, p. 52.
101
O texto de Jahel critica o orgulho e a intolerância de D. Joaquim, que segundo ela,
teria se recusado em atender à vontade de Deus, manifestada no próprio desejo do povo de
Juazeiro de ter os fenômenos aprovados. Há ainda a insinuação de que o bispo não estaria
conectado espiritualmente com a divindade como elas estavam e os funcionários do bispo, da
mesma forma não conseguem intuir que aquele que se apresenta à sua frente é o próprio Deus.
Que pensaram os padres da Comissão ao ouvir um relato assim? Infelizmente a
documentação é escassa nesse sentido, pois não temos a opinião do Delegado e do Secretário,
uma vez que o texto é uma narrativa livre e não obedece ao esquema tradicional do inquérito,
de perguntas e respostas.
Para o bispo, seguramente um relato como esse era uma afronta sem precedentes, pois
ratificava a dispensa de uma intermediação entre elas e Deus. O relato denota ainda a livre
confrontação ao bispo, por sua condição, autoridade máxima da Igreja na Província e que,
portanto, deveria ser obedecido e não desrespeitado. Mas o que sentiram os padres da
Comissão, tidos como “ilustrados” pela Diocese e que deveriam manter uma posição de
desconfiança diante desse tipo de narrativa que confrontava a autoridade diocesana?
O único documento que nos chegou às mãos e dá uma ideia dos sentimentos da
Comissão, especificamente, do Delegado desta, é uma carta enviada ao bispo em 13 de
setembro de 1891, isto é, antes mesmo do aditamento de Jahel. Nesta carta, o padre Clicério
Lobo fala que até então, testemunhara juntamente com “o Rdo. Secretário e mais pessoas
fidedignas [os fatos] aqui dados, de um caráter de sobrenaturalidade divina […] Há de certo
muita coisa singularmente extraordinária”.190 O Delegado não afirma acreditar piamente que
as manifestações sejam mesmo divinas, mas não descarta a possibilidade, e é nesse espaço
que a crença começa a se formar.
A segunda beata a depor foi Maria Leopoldina Ferreira da Soledade, em 17 de
setembro de 1891, e, assim como Jahel, também teve visões importantes detalhadas com
erudição e riqueza poética, incluindo citações em latim e conhecimento de dados relevantes
sobre a Igreja de Roma. Ela tinha 29 anos, também sabia ler e escrever e vinha de uma família
de posses do Crato. O fato de haverem mulheres que pertenciam às esferas mais altas da

190
DHDPG/CRB 04, 49: Carta do Pe. Clicério da Costa Lobo a D. Joaquim Vieira de 13.09.1891. Esses mini
relatórios em forma de carta deveriam ser constantes, porém não encontramos nos arquivos outra
correspondência do período de execução do primeiro inquérito.
102
sociedade caririense, denota um horizonte de possibilidades no qual a “experiência mística”
atinge a todos ou onde todos se sentem partícipes desta e demonstra como esse “horizonte”
era acionado por mulheres pobres e abastadas, analfabetas e alfabetizadas.
Os padres da Comissão seguem o roteiro usual de perguntas sobre Maria de Araújo e
os fenômenos de 1889, até que em dado momento perguntam diretamente à testemunha se ela
também tinha visões e revelações. Notamos que há uma mudança sutil por parte da própria
Comissão que após o depoimento de Jahel, atenta para as experiências particulares de cada
mulher e não somente às de Maria de Araújo. Outro elemento diz respeito, a uma espécie de
“concorrência” que se instaura entre essas mulheres. Eram todas íntimas de Deus, todas eram
instrumentos Dele! Já no depoimento de Jahel percebemos que ela não deseja falar sobre
Maria de Araújo, mas sim da sua própria experiência e, aos poucos se vai constituindo esse
grupo de mulheres que afirmavam terem sido escolhidas por Deus.
Perguntada sobre suas experiências, Maria Leopoldina respondeu que no ano anterior,
em dezembro de 1890, quando fazia uma penitência em favor das almas do Purgatório, “lhe
foi revelado achar-se ali o Corpo, o Sangue, a alma e a divindade de Nosso Senhor Jesus
Cristo” que se oferecia “como vítima de expiação ao Eterno Padre pela salvação do mundo” e
que não se tentasse compreender o que ali ocorria, pois era “um mistério de amor, além da
razão humana”.191
Enquanto nas revelações de Jahel o mote principal era o da caixa cheia de sangue, nas
de Maria da Soledade predominavam as representações angélicas e de almas do Purgatório.
As representações sobre o sangue dão lugar às imagens de fogo e às citações em latim:

Eu sou Jesus, uma vítima pura, a santa vítima, uma vítima sem mancha:
vivificada no coração e sangue dos pecadores. Veja, não faças isso... sou
servo teu e de teus irmãos que guardas o testemunho de Jesus. O testemunho
de sangue de Deus é o espírito de profecia. Eu sou a videira verdadeira, a
vítima santa, vítima pura, vítima sem mancha. É santo e beato aquele que
tomar parte na segunda redenção. 192

Esse trecho parece uma adaptação de Apocalipse 19,10: “Caí então a seus pés para
adorá-lo, mas ele me disse: ‘Não! Não o faças! Sou servo como tu e como teus irmãos que

191
Depoimento de Maria Leopoldina F. da Soledade em 15.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 23.
192
Tradução nossa: “Ego sum Jesus, hostia pura, hostia sancta, hostia immaculata: vivificavi sanguinem cordis
ad peccatores. Vide ne feceris... Conservus tuus sum et fratrum tuorum habentium testemonium Jesu. Deum
ador [sic] testemonium sanguinis mei et espiritus prophetiae. Ego sum vitis vera, hostia sancta, hostia pura,
hostia immaculata. Beatus et Sanctus qui habet partem in redemptione secunda” in Depoimento de Maria
Leopoldina F. da Soledade em 15.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 23.
103
têm o testemunho de Jesus. É a Deus que deves adorar!’. Com efeito, o espírito da profecia é
o testemunho de Jesus”.193 Ressaltando a qualidade profética das revelações e visões, a
citação em latim vem dar força às narrativas. Além disso, outro recurso narrativo importante
da citação que encontramos também em outros depoimentos é o de fazer Jesus Cristo falar em
primeira pessoa. Quando a afirmação é muito forte ou questiona de algum modo a autoridade
da Diocese, as mulheres colocam Cristo como protagonista, recurso expressivo que, de certo
modo, retira delas a responsabilidade total sobre o que foi dito.
Neste sentido, é interessante notar que exatamente o mesmo texto já tinha aparecido
no aditamento do padre Cícero em 14 de setembro, ou seja, um dia antes de Maria da
Soledade comparecer diante da Comissão.194 No seu relato, Cícero diz à Comissão que teve a
revelação após a celebração de uma missa em honra ao Sagrado Coração de Jesus:

Consultando eu a Nosso Senhor diante de uma hóstia consagrada, sobre a


espécie do sangue aparecido nas hóstias que se davam em comunhão a Beata
[Maria de Araújo], obtive a seguinte resposta no dia quatro de Agosto do
corrente ano, digo, deste ano: Ego sum Jesus, hostia Sancta, hostia pura,
hostia immaculata: vivificavi sanguinem cordis ad peccatores; palavras estas
que eu ouvi bem distintamente. No dia seguinte, cinco de agosto do mesmo
ano, dia de Nossa Senhora das Neves depois de eu ter celebrado a missa em
honra ao Sagrado Coração de Jesus como havia prometido e instando eu para
que Nosso Senhor se dignasse cumprir a promessa feita, isto é, de me revelar
aquele mistério, começou ele a dizer as seguintes palavras, que eu ia
escrevendo uma por uma e até corrigindo alguma quando acontecia errar, ei-
las: Vide me feceris... Conservus tuus sum et frutuum tuorum habentium
testimonium Jesu. Deum adora testimonium sanguinis mei et spiritum
prophetiae. Ego sum vitis vera, hostia sancta, hostia pura, hostia
immaculata, jurando ele próprio e mandando-me que assim o jurasse por ele
mesmo como Criador, como amigo, como esposo, como Redentor.195

Ora, Maria da Soledade afirmou que sua alma foi “testemunha de como a mesma
revelação e ao mesmo tempo era feita ao padre Cícero, o que se deu logo depois da
Comunhão”.196 O que podemos depreender dessa relação? Primeiro, o fato do padre e da
beata terem a revelação “ao mesmo tempo”, mas em lugares distintos, indica a intimidade que
eles tinham. Em segundo lugar, o tom arrogante que “exige de Deus o cumprimento de uma
promessa feita” permanece nos relatos do padre e é reproduzido nos das mulheres. Terceiro,

193
Todas as referências bíblicas foram retiradas da Bíblia de Jerusalém, São Paulo: Editora Paulus, 2002.
194
Exposição circunstanciada do Pe. Cícero R. Batista em 17.07.1891 in “Cópia autêntica”, p. 18.
195
Aditamento feito ao depoimento do padre Cícero em 14.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 18.
196
Depoimento de Maria Leopoldina F. da Soledade em 15.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 24.
104
indicia que o relato do sacerdote foi usado para legitimar o depoimento da beata. Maria da
Soledade era dirigida por este sacerdote desde 1889, pelo menos, e como as outras beatas,
reforçou no seu depoimento a importância do seu confessor e é muito provável que ela tenha
ouvido dele a citação em latim e a tenha memorizado.
Entretanto, não há dúvidas que o relato de Maria da Soledade é um dos mais eruditos,
mas temos uma grande dificuldade no que diz respeito à sua formação. Não há documentação
sobre essas mulheres e, ao que parece, não houve interesse da Comissão em conhecê-las mais
a fundo, assim, não é possível saber se elas estudaram em escolas ou tiveram educação
doméstica, nem a que tipo de literatura religiosa elas tiveram acesso.
Outro exemplo que ilustra a riqueza do relato de Maria da Soledade é a alusão às
várias passagens bíblicas, como no episódio em que lhe apareceram vários anjos em adoração
ao Sacramento na Capela de N. S. das Dores:

Respondeu que no dia 25 de março, tendo-lhe ordenado o confessor, depois


de uma benção a ela dada em honra da S. S. Virgem, que ela testemunha
adorasse a Nosso Senhor ali presente no Sacramento da Eucaristia,
especialmente manifestado naquelas hóstias transformadas em sangue, logo
depois de sua comunhão, teve ela de ver na Capela do S. S. Sacramento
diversos anjos e dentre eles três que se nomearam por seus próprios nomes,
sendo um – Testes fidelis – outro – Reverentia – outro finalmente –
Maravilha. 197

Dar nome aos anjos, ou melhor, obter deles uma identificação aparece aqui como outro
recurso para dar credibilidade a narrativa, pois, denota um conhecimento das leituras
sagradas. Um dos anjos citados, Testes fidelis, que significa Testemunha Fiel, é citado nos
versículos 37 do Salmo 89 na Bíblia: “Para sempre será sua linhagem, seu trono como um sol
à minha frente; como a lua que dura sem cessar, testemunha fiel no firmamento”.
Conjeturamos que a menção de Testes fidelis adquire um sentido profético ao
proclamar a presença constante dos anjos em adoração ao “Sangue Precioso” de Cristo.
Reverentia, do latim, Reverência, aparece na Bíblia não como um anjo, mas como uma
qualidade a ser exigida do fiel: “de atitude de reverência, fluem com naturalidade os atos de
obediência” (2 Co 7.1). E Maravilha deve se referir possivelmente aos diversos fatos
extraordinários realizados por intervenção divina (Mt 21.15).
O relato mais ousado de Maria da Soledade a transformou em uma espécie de guia de
almas. Em missão recebida de Jesus Cristo como penitência sacramental, ela teria que
197
Idem, p. 23.
105
acompanhar o sufrágio de três eclesiásticos: dois bispos e um cardeal que iriam encontrá-la na
Capela de Nossa Senhora das Dores para adorar ao Sangue Precioso e assim conseguirem sair
do Purgatório:

No dia 23 de dezembro de 1890, por ocasião de confessar-me, foi-me


imposta como penitência sacramental dar-me toda a Deus para em honra do
preciosíssimo sangue de Jesus, das dores de sua Mãe S. S. e maior gloria da
Trindade S. S., tomar sobre mim as penas de três almas que fossem de papas
e assim libertá-las do Purgatório. Sucedeu, porém, que Nosso Senhor não
aceitou essa oblação em relação aos papas e substituiu aplicando-a as almas
de um Cardeal e dois bispos. [...] – Episcopus Joachinus et Episcopus Petrus
– o primeiro que foi antecessor do Arcebispo da Bahia D. Luiz, o segundo,
que foi bispo do Rio de Janeiro. Desde esse dia até o dia seis de janeiro do
ano seguinte, estas três almas vinham todos os dias a assistir a missa,
colocando-se os dois bispos de um e outro lado e o Cardeal no meio; todos
possuídos do maior acatamento [...]. 198

Identificamos os bispos como Dom Joaquim Gonçalves de Azevedo (1814-1879), que


era maranhense e foi o sétimo bispo de Goiás (1866), sendo assistido na época pelo então
bispo do Ceará, D. Luís Antônio dos Santos. Em 1876 foi nomeado Arcebispo de São
Salvador da Bahia e Primaz do Brasil e faleceu em seis de novembro de 1879.
O segundo bispo seria, claramente, o ex-bispo do Rio de Janeiro, Pedro Maria de
Lacerda. Nascido em 31 de outubro de 1830, sagrado bispo em Mariana por Dom Antônio
Ferreira Viçoso, famoso pela disseminação do ultramontanismo no Brasil e conhecido pela
chamada “Questão religiosa” que envolveu a prisão de dois bispos D. Antônio de Macedo
Costa e D. Vital Maria de Oliveira por ordem do imperador D. Pedro II.199 Ele faleceu em 12
de novembro de 1890 e sua morte foi muito divulgada nos jornais da época, tendo sido
provavelmente comentada pelos sacerdotes no povoado de Juazeiro, embora não encontremos
nos documentos analisados nenhuma outra referência aos bispos e ao cardeal.
As almas iam todos os dias assistirem a missa, “colocando-se os dois bispos de um e
outro lado e o Cardeal no meio; todos possuídos do maior acatamento”, até que no dia 26 de

198
Idem, p. 23-25.
199
A questão se iniciou por Dom Vital e, posteriormente, Dom Macedo suspenderem os participantes maçons do
quadro de membros de diversas irmandades e ordens terceiras. Estas irmandades, por sua vez, apelaram ao
Imperador, ele próprio pertencente à maçonaria, que acolheu o recurso afirmando que “[...] sendo de
exclusiva competência do poder civil a constituição orgânica das ordens terceiras e irmandades do Brasil, os
bispos com seu procedimento tinham usurpado a jurisdição do poder temporal” (Fragoso in Beozzo: 2008:
186-187). Os bispos não aceitaram a decisão e empreenderam um recurso ao Supremo Tribunal de Justiça
que não aceitou a petição e expediu mandado de prisão, condenando-os a quatro anos de prisão com trabalhos
forçados.
106
dezembro sucedeu que ao tocar o Sanctus, o Cardeal, “inflamado com as chamas de amor que,
saindo do Sacrário envolviam o Sacerdote oficiante e se transmitiam ao mesmo Cardeal,
sentiu-se incitado a subir ao altar, onde prostrado com a face em terra, em adoração ao sangue
de Jesus que então caía sobre ele, como chuva, exclamou: ‘– oh, amor!’ conservando-se nessa
posição até o fim da missa”.200 Continuaram o processo de sufrágio pelos dias que se
seguiram e no dia 28, no momento de consagração da hóstia, o rosto do Cardeal desfez-se em
chamas e ele exclamou:

Oh! levita do Santuário, tenro arbusto sacerdotal, vaso de eleição, chamado a


serdes sentinela em Israel, vós doce esperança de nossos gozos e
resplendores eternos, chegai-vos a este vulcão de amor, (e isto dizendo,
apontava para um retábulo do Sagrado Coração de Jesus e o tabernáculo e a
caixa de vidro contendo as partículas transformadas em sangue;) atirai-vos
às ardentes chamas, acendei-vos em seu abrasado ardor para serdes luz e
calor no meio das nossas trevas; terminando com dizer duas vezes ‘– luce
mea, ardens, ardens’.201

A presença do fogo na narrativa de Maria da Soledade está diretamente relacionada ao


ato de purgar: “desfazendo-se em chamas”, “vulcão de amor”, “ardentes chamas”, “abrasado
ardor”; justamente porque não existe purgação sem o fogo purgatório, pois, “o fogo porá à prova
a obra de cada um” (1Co 3.13). Jean-Claude Schmitt – em sua pesquisa sobre as aparições de
fantasmas no medievo – aprofunda tal discussão sobre o imaginário do morrer ao afirmar que a
existência dos mortos está diretamente ligada ao que os vivos imaginam para si: “Diferentemente
segundo sua cultura, suas crenças, sua época, os homens atribuem aos mortos uma vida no além,
descrevem os lugares de sua morada e assim representam o que esperam para si próprios” (1999:
15).
Mapeando a crença no espaço intermediário do Purgatório, Jacques Le Goff também
apontou para esta ligação entre o imaginário dos vivos e a morte, ao afirmar que os “mortos não
existem senão pelos e para os vivos” (Le Goff, 1993: 251). Em outras palavras: as práticas e
crenças ligadas à morte e aos mortos são produtos socioculturais dos vivos e refletem as
expectativas destes em relação a uma nova vida, tida como imortal, tendo início após o término
da vida presente ou vida terrena.
Michel Vovelle assinala que o termo purgatorium, receberá caução do papa Inocêncio

200
Depoimento de Maria Leopoldina F. da Soledade em 15.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 24.
201
Idem.
107
III, entre 1170 e 1200, “no momento em que uma nova necessidade de justiça na sociedade laica
favorece a eclosão do conceito de julgamento individual, em que a leitura binária da ordem do
mundo vê-se substituída, como no universo feudal, por um esquema ternário, que tolera uma
categoria intermediária” (2010: 27).202
A duração das penas no Purgatório, segundo Jacques Le Goff, está “submetida a um
procedimento judicial complexo”. O período de purgação de uma alma depende da misericórdia
de Deus, “simbolizado pelo zelo dos anjos ao arrancar as almas aos demônios”, dos méritos
pessoais exibidos em vida pelo falecido, e dos “sufrágios da Igreja suscitados pelos parentes e
amigos do defunto” (1995: 253). A crença nesse espaço intermédio acabou por instituir novos
laços de solidariedade entre os vivos e seus mortos, na medida em que os primeiros podiam
contribuir com sufrágios para mitigar as penas dos últimos. 203
O fogo purgatório ganha, então, um sentido de purificação, ele rejuvenesce e
imortaliza e como informa Le Goff: “o Purgatório antes de ser considerado um lugar foi
primeiro concebido como um fogo [...] A teologia católica moderna distingue um fogo do
Inferno, primitivo, um fogo do Purgatório, expiatório e purificador e um fogo de julgamento,
probatório” (1993: 22; 62).
O fogo também pode ser associado, como explica Redondi, à própria hóstia
consagrada: “como para significar que a luz tinha uma função simbólica essencial numa
teologia centrada verticalmente sobre seu núcleo eucarístico. A disposição axial da Trindade,
em relação à hóstia culmina assim na luz do fogo” (1991: 229). Assim, o fogo que emana do
corpo do Cardeal e que abraça a hóstia no Sacrário tem essa dupla função de purificação e
purgação, simbolizando ainda o poder maior da hóstia consagrada como centro de toda a
cosmologia cristã.

202
Não por acaso, esse século marcou a institucionalização do Purgatório, um espaço intermediário entre o Céu
(para onde vão as almas inteiramente boas) e o Inferno (lócus das almas inteiramente más). O Purgatório
surgiu enquanto um terceiro espaço da geografia do além, em que as pessoas situadas no limite entre as
inteiramente boas e as inteiramente más podiam remir seus pecados veniais, para assim atingir o ingresso no
Paraíso Celeste. Nas palavras de Cláudia Rodrigues, a “inserção do Purgatório neste esquema se fez como o
local de destino daqueles indivíduos que, na iminência da morte, possuíam pecados veniais e não teriam
cumprindo a penitência devida” (2008: 262).
203
Por outro lado, a Igreja adquiriu mais poder com a instituição do Purgatório, visto que estendeu para além da
morte sua influência sobre os fiéis, além de adquirir benesses financeiras consideráveis com essa renovada
liturgia da morte. Nas palavras de Le Goff, a Igreja Católica administra “ou controla as preces, as esmolas, as
missas, as oferendas de todos os gêneros feitas pelos vivos a favor dos seus mortos, e de tudo tira benefícios.
Graças ao Purgatório, desenvolve o sistema das indulgências, fonte de grandes lucros de poder e de dinheiro,
antes de se tornar uma arma perigosa que se voltará contra si mesma” (1995: 295).
108
As almas continuaram a aparecer continuamente, até que no dia 5 de janeiro o cardeal
revelou sua identidade, dizendo três vezes: “Ego sum Cardinalis Pecci” (Eu sou o Cardeal
Pecci). O cardeal a que se referia Maria da Soledade é provavelmente o Cardeal Giuseppe
Pecci (1807-1890), ex-prefeito da Congregação para Estudos do Vaticano, que havia falecido
em oito de fevereiro de 1890. Este cardeal era também irmão do papa da época, Gioacchino
Pecci, conhecido como Leão XIII.204
Mais tarde, em junho de 1892, o padre Alexandrino afirmaria que a visão fora
“fabricada” no intuito de “dispor bem o Santo Padre em favor de Juazeiro”, pois corria na
região a notícia de que “Leão XIII teve notícia disto, chorou e ficou bem disposto em favor da
causa”.205 O que ratifica que o caráter de sigilo dos depoimentos não foi respeitado nem pelas
testemunhas, nem pelos membros da Comissão. Finalmente, no dia 6 de janeiro, também
durante a missa e depois da benção do S.S. Sacramento:

[....] o Cardeal, como que fora de si, somente possuído de Deus, erguendo as
mãos exclamou: Oh! Caríssimo e dedicado irmão, que amor, que ternura e
que reconhecimento não devo eu ter para convosco, quando considero que
fostes o instrumento pelo qual quebraram-se cadeias que me detinham nesse
cárcere, depois de minha morte; por meio e intermédio de vós é tempo hoje
de eu consumar todos os meus trabalhos, subindo da terra ao Céu para
habitar, reinar e glorificar aquele que é o princípio e o fim de todas as
cousas; vou por tanto entrar no gozo do meu Senhor; e assim, como tomastes
parte no meu doloroso e delatado exílio, tomai hoje parte nesta enchente de
alegria de que a minha alma está penetrada, e que é o fim de tantas dores,
lágrimas e gemidos. Eu me vou para o seio de Deus... para acabar de
consumar as minhas vitórias sobre o mundo, o inferno e o pecado, pela
minha entrada gloriosa e triunfante em seu reino; [...] – e isto dizendo, voou
para o céu, acompanhado de seu Anjo Custódio e de todos os santos que
foram seus protetores e advogados neste mundo.206

As almas dos bispos continuaram a ser sufragadas por mais alguns dias, até que, no dia
18 de janeiro, foi a vez de Dom Joaquim Gonçalves “subir triunfante aos céus”, seguido por
Dom Pedro de Lacerda, no dia 2 de fevereiro seguinte. A mensagem implícita no relato de
Maria da Soledade manifestava assim uma inquietação comum a todos os crentes do “Sangue
Precioso”: Ora, se a Capela de Juazeiro serviu de purgatório às almas que em vida

204
Consultamos o site do Vaticano que contém a lista dos papas e cardeais da Igreja Católica, ordenada por
século. Disponível em http://www.vatican.va , além da Biblioteca Electrónica Cristiana, BEC.
205
DHDPG/ CRA 04,07: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim J. Vieira de 28.06.1892.
206
Depoimento de Maria Leopoldina F. da Soledade em 15.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 25.
109
pertenceram a mais alta hierarquia da Igreja, porque o bispo continuava negando a sacralidade
dos fenômenos que ali se manifestavam?
Provavelmente, a narrativa foi construída a partir de informações fornecidas pelos
próprios sacerdotes, incluindo aí o padre Cícero que tinha acesso aos jornais da Capital que
circulavam na época. E, paradoxalmente, o respeito à hierarquia presente na narrativa não
existia com relação à própria Diocese! Tudo nesses inquéritos transgrede as premissas de um
Processo Episcopal convencional. Inferimos que a extrema condescendência do bispo ajudou
a propagar, dar visibilidade e estimular a credibilidade do caso. Tudo que a Igreja não queria
nem precisava. Para isso, certamente, contou a tibieza e insegurança do bispo.
Segundo ela, depois disso, o próprio Cristo dava instruções de como deveria ser
organizado o culto ao “Sangue Precioso”: “Nosso Senhor fez-me ver que assim como os
Padres Franciscanos eram os guardas do Santo Sepulcro assim também haviam eles de ser os
guardas do sangue derramado das hóstias consagradas aqui nesta Povoação do Juazeiro”.207
Tanto Maria de Araújo quanto Jahel Wanderley já haviam sugerido em seus depoimentos a
fundação de uma ordem “que se encarregasse do culto perpétuo da S. S. Trindade, bem como
que fosse sempre aqui bendito e louvado seu precioso sangue”;208 com um núcleo masculino
formado pelos franciscanos e outro núcleo feminina segundo a regra de Santa Teresa.209
A escolha de padres Franciscanos não surpreende, pois essa ordem medicante é
colocada em oposição à ordem dos padres lazaristas franceses que naquele momento dirigia a
Diocese cearense. É importante lembrar que a própria evangelização da região foi feita pelos
padres Capuchinhos italianos,210 cuja prédica era fortemente marcada por elementos da
Paixão de Cristo, na qual a memória dos pecados e da condenação eterna é enfatizada
continuamente através de práticas que estimulam as penitências, a flagelação e o padecimento
do corpo em uma contínua imitatio Christi. A predileção por Santa Teresa também não é de
admirar, uma vez que esta santa é uma das representantes mais conhecidas de um ideal
contemplativo que mesclava a austeridade conventual à experiência mística e o íntimo contato
com Deus.

207
Relatório final do padre Clicério C. Lobo de 22.12.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 62.
208
Aditamento ao auto de perguntas feitas à Maria de Araújo de 11.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 16.
209
Aditamento de Jahel Wanderley Cabral de 05.10.1891 in “Cópia autêntica”, p. 54.
210
A ordem dos Capuchinhos surgiu na Itália em 1525, como um terceiro ramo da Ordem dos Franciscanos.
Segundo Lígia Bellini, a doutrina dos capuchos age especialmente no sentido da “restauração da pobreza,
humildade, penitência e elevação mística, características do começo do franciscanismo, desde os primeiros
anos do século XVI” (2006: 95).
110
A terceira beata a depor foi Maria das Dores do Coração de Jesus, em 18 de setembro.
Ela só tinha 15 anos, era natural de Missão Velha, trabalhava como costureira, vivia com sua
família e era analfabeta. Seu depoimento é curto e repete os motes já vistos nos depoimentos
anteriores. Ao ser perguntada se já tinha tido alguma revelação com relação ao sangue
aparecido nas hóstias, ela respondeu que:

[...] por três vezes lhe foi revelado por Jesus Cristo mesmo, ser aquele
sangue o próprio sangue dele, dizendo que assim jurava e mandando que do
mesmo modo o jurasse ela neste comissariado, encarregando a ela
testemunha que dissesse, de sua parte ao Reverendo Comissário que
celebrasse uma missa em honra do preciosíssimo sangue, afim de que não
fosse o sangue dele aqui derramado e por alguém profanado.211

As respostas de Maria das Dores, no entanto, parecem muito inseguras e só mudam de


tom quando os padres da Comissão lhe fornecem na pergunta alguns elementos que parecem
sugerir uma resposta. Em certa altura, o delegado da Comissão pergunta: “Viu algumas vezes
anjos e mesmo a S.S. Virgem em adoração àquele sangue derramado das hóstias, e exposto no
altar e recluso na caixa de vidro, contendo as partículas transformadas?” Ela respondeu, sem
apresentar muitos detalhes, que havia visto Nossa Senhora e tinha visões com anjos em
adoração ao Sangue Precioso. 212 O método de inquirição utilizado pela Comissão denotava o
despreparo dos padres, uma vez que no procedimento usual em inquirições, o inquisidor
perguntava sempre a mesma coisa, várias vezes, para que os interrogados confirmassem ou
não.
A única visão que se destacou no relato de Maria das Dores é a do sangramento de
uma âmbula em uma comunhão de Maria de Araújo. Contou ela que por um momento viu a
âmbula jorrar abundante sangue que chegou a “transbordar e derramar-se por todo o altar,
aparecendo então Nosso Senhor todo ensanguentado, o qual nessa mesma ocasião deu a
comunhão à beata Maria de Araújo sob a espécie de pão tirando para esse fim uma partícula
da mesma âmbula”.213 E sobre o sangue que se derramava da âmbula disse:

[...] por três vezes lhe foi revelado por Jesus Cristo mesmo, ser aquele
sangue o próprio sangue dele, dizendo que assim jurava e mandando que do
mesmo modo o jurasse ela neste comissariado, encarregando a ela

211
Depoimento de Maria das Dores do Coração de Jesus de 18.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 29.
212
Idem.
213
Idem.
111
testemunha que dissesse, de sua parte ao Reverendo Comissário que
celebrasse uma missa em honra do preciosíssimo sangue, afim de que não
fosse o sangue dele, aqui derramado, por alguém profanado, além da
recomendação a ela testemunha feita de rezar uma via sacra nesta mesma
intenção.214

Os elementos textuais são organizados de modo a condizer com um discurso religioso


e a linguagem é familiar a qualquer cristão, neste sentido, as escolhas dos elementos que
compõem a narrativa buscam construir um texto verossímil e significativo tanto para elas
quanto para os inquisidores.215
A ênfase no número três está presente em várias visões de Maria das Dores e é outro
leitmotiv do Novo Testamento, e parece indicar que o próprio depoimento é organizado de
forma a seguir um estilo narrativo similar. Assim, três vezes Maria de Araújo teve de ir a
Roma conversar com o Papa;216 três anjos se nomearam perante Maria da Soledade e esta
mesma beata tomou sobre si a incumbência de sufragar três almas;217 três vezes Anna
Leopoldina teve de ir ao Céu;218 e no dia três de setembro de 1891, a Virgem Maria apareceu e
“com ar de tristeza” disse a Maria de Araújo: “Todos esses fatos aqui ocorridos são graças
reservadas para os últimos tempos”.219 Também por três vezes, Deus chamou ao bispo na
visão da beata Jahel.220 O número três representa ainda o Deus trinitário cristão (Pai, o Filho e
o Espírito Santo) simbolizando a perfeição divina, “exprimindo a síntese, a ordem espiritual
em Deus, no cosmos e no homem” (Bethencourt, 2004: 136).
Também no dia 18 de setembro, depôs a beata Joana Tertulina, mais conhecida como
beata Mocinha nasceu em 27 de janeiro de 1864, na freguesia do Riacho do Sangue – atual
Jaguaretama, norte do Ceará –, sendo filha de Francisco Antônio de Oliveira e Maria Teotônia
de Oliveira. 221 Ficou órfã em 1879 e foi morar na povoação de Juazeiro com uma senhora
chamada D. Naninha, “uma professora que instalou em Juazeiro uma escola para ensinar

214
Idem, p. 30.
215
Aqui levamos em consideração a análise de Natalie Zemon Davis em Histórias de Perdão, na qual a autora
ressalta que as escolhas formativas de linguagem, detalhe e ordem dos pedidos de remissão no século XVI,
visam apresentar um relato que pareça verdadeiro, real, significativo e/ou explicativo tanto para o autor
quanto para o leitor (2001: 17).
216
Aditamento ao auto de perguntas feitas à Maria de Araújo em 11.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 14.
217
Depoimento de à Maria Leopoldina F. da Soledade em 17.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 23-25.
218
Depoimento de à Anna Leopoldina Aguiar Melo em 28.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 46.
219
Aditamento ao auto de perguntas feitas à Maria de Araújo em 11.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 16.
220
Aditamento ao auto de perguntas da beata Jahel W. Cabral em 05.10.1891 in “Cópia autêntica”, p. 52.
221
É relevante notar que temos mais informações sobre essa beata, pois ela foi secretária e governanta da casa do
padre Cícero. Ver: Alencar, Generosa; Menezes, Fátima. Beata Mocinha: governanta e tesoureira da casa do
padre Cícero. Juazeiro do Norte: HB Editora, s/d.
112
crianças do sexo feminino” (Alencar; Meneses: s/d: 17). Em 1885, ela recebeu o manto de
beata na mesma solenidade que conferiu o manto às beatas Maria de Araújo, Maria das Dores,
Jahel Cabral e Maria da Soledade. Logo em seguida foi morar na casa do padre Cícero e com
a morte da mãe deste se tornou a governanta da casa do padre.
Ela não reivindica para si a participação nos fenômenos e diz que nunca recebeu
nenhuma graça particular. O interessante é que seu depoimento ratifica o do padre Cícero e
diz que apesar de nunca ter tido nenhuma visão, ela sabia que os fenômenos manifestados em
Maria de Araújo eram verdadeiros, pois “conversando-se justamente, neste sentido [se os
fenômenos eram milagres], sucedeu ouvir uma criança de sete meses dizer por duas vezes, de
modo bem distinto, – é – [...].222
Antônia Maria da Conceição, a quinta beata a depor, tinha trinta anos e era uma das
poucas que vivia recolhida na Casa de Caridade do Crato, analfabeta, de família desconhecida
e, provavelmente, pobre. Enquanto respondia às perguntas da Comissão sobre o caráter do
sangue que jorrava das hóstias consumidas por Maria de Araújo, ela entrou em êxtases e fez
aparecer em suas mãos quatro hóstias:

[...] apresentou entre os dedos polegar e índice da mão direita quatro


partículas dizendo que Nosso Senhor mandava entregar aquelas quatro
partículas a seu confessor para que ele comungasse juntamente com os
padres da comissão e a própria testemunha; e isso como prova da verdade do
fato de que acima se tratava; isto é, que a carne e o sangue derramado tanto
das hóstias, como dos crucifixos, e bem assim o coração humano em que se
transformaram as hóstias, algumas vezes, eram verdadeiramente a carne, o
sangue e o coração de Jesus mesmo, e ainda para que com a propagação de
todos esses factos fosse ele mais louvado e glorificado. 223

Nesse trecho, além da narração ser claramente do Secretário da Comissão, quer dizer,
ele não estava transcrevendo o depoimento, mas contando o que assistia, contamos com dois
fatores inusitados. O primeiro, o fato de Antônia ter manifestado um “fenômeno ao vivo” e
que se tratasse do aparecimento de hóstias para serem consumidas pelos padres da Comissão e
por ela mesma, sugerindo uma transferência de poderes, na medida em que passaria a ser a
ministrante da comunhão, tomando assim o lugar do eclesiástico.

222
Depoimento de Joana Tertulina de Jesus em 18.09.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 30.
223
Depoimento de Antônia Maria da Conceição em 28.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 45. Grifo nosso.
113
O segundo elemento importante é que, no depoimento de Antônia, o texto diz que
aquilo acontecia “como prova da verdade do fato de que acima se tratava; isto é que a carne e
o sangue [...] eram verdadeiramente a carne, o sangue e o coração de Jesus”. A forma como a
frase foi formulada deixa margem de questionamento sobre se ele, o Secretário da Comissão,
estava expressando sua opinião, movido, talvez, pelo impacto daquela manifestação ou se
estava transcrevendo algo dito pela beata. De qualquer modo, nossa hipótese é que antes do
fim do processo a Comissão já estava convencida da veracidade dos “milagres”.
Conjeturamos que a “fala” das mulheres gira em torno (e isto, percebemos melhor nos
depoimentos de Antônia Maria e de Maria das Dores) daquilo que elas consideravam que os
padres queriam ouvir, exaltando assim uma experiência considerada como “santa” ou
“piedosa”, mas que denotava também uma “concorrência” velada entre as mulheres. A própria
Comissão acabava por estimular relatos desse tipo, uma vez, que as perguntas passam, na
medida em que o processo avança, a serem mais dirigidas, como quando o Delegado
Episcopal pergunta: “Haverá algumas promessas para todos quantos se interessarem por essa
causa?” Ao que a beata respondeu afirmativamente, reforçando que para os que não
acreditassem estavam reservados rigorosos castigos. 224
A depoente do dia 28 de setembro, Anna Leopoldina de Aguiar e Melo, pertencia
também a uma família muito importante do Crato. Tinha 19 anos, sabia ler e escrever. Como
as outras, ela também recebeu revelações sobre a qualidade do sangue que manava das hóstias
e diz que “em espírito” viu Maria de Araújo no Purgatório libertando algumas “almas que
chegava mesmo a conhecer”, embora seja ambíguo sobre quem conhece as almas, se ela
própria, se Maria de Araújo ou se ambas. Anna Leopoldina ressaltou ainda, ter ido ela mesma
ao Céu e ao Purgatório, para comungar das mãos do próprio Jesus Cristo em sufrágio das
almas do Purgatório:

Três vezes teve de ir também ao Céu, a mandado de seu confessor [não


nomeado], e ali Nosso Senhor mesmo lhe deu a comunhão sob a espécie de
sangue contido num cálice de ouro dizendo-lhe então: ‘bebei, que este é o
sangue do meu coração’; e isso, como uma prova de como o sangue derramado
das hóstias era o verdadeiro sangue dele. 225

Além disso, ela comunicou à Comissão que em uma comunhão feita na Capela de
Juazeiro, “sucedeu que a hóstia se transformou em uma posta de carne, fato esse que por
224
Idem.
225
Depoimento de Anna Leopoldina Aguiar Melo em 28.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 47-48.
114
acanhamento ela não revelou ao seu confessor, procurando a muito custo consumir a partícula
assim em carne transformada como conseguiu”. 226 Outros personagens também aparecem nos
relatos de Anna Leopoldina: seu anjo da guarda, São José, São Luiz Gonzaga, Santo Afonso e
São Francisco das Chagas. Curiosamente, à exceção de São José, o pai adotivo de Jesus, todos
os outros santos citados são italianos, e possuem um elemento hagiográfico em comum, o de
haverem largado uma vida de riquezas para seguir Cristo. Seria uma referência
autobiográfica? Não era ela mesma uma mulher de família rica que agora largava tudo a fim
de seguir uma vida de piedade?
Já na narrativa de Ângela Merícia do Nascimento, inquirida em 28 de setembro, se
sobressai o fato de ela ser a única que afirmou expressamente ter estado presente na Capela de
Nossa Senhora das Dores no dia do primeiro sangramento da hóstia na boca de Maria de
Araújo. Ela disse ainda, para surpresa da Comissão, que esse acontecimento lhe teria sido
comunicado mesmo antes de acontecer, no dia anterior ao sangramento.
Ângela era recolhida na Casa de Caridade do Crato, portanto, era provavelmente de
família pobre, analfabeta e tinha 29 anos em 1891. Ela conta ainda que, às vezes, estando ela
impossibilitada de ir ao Juazeiro, pedia a Jesus Cristo que a levasse em espírito ao Juazeiro,
tendo sido por esta forma que “beijou e adorou aquele sangue precioso”.227 Em outros
momentos, conversava com Cristo e este lhe dizia que “aquele pequeno lugar era por ele
havido em tanto apreço que ele ali estava como num outro Céu, a derramar abundantes
graças”. 228
A beata também costumava ver durante as celebrações as “hóstias consagradas
moverem-se e dar como que salto na boca dos que comungavam e até saírem da boca e
pousarem nas mãos daquelas mesmas pessoas”.229 A imagem das hóstias voando para a boca
de pessoas não é nova, as beatas espanholas Madalena da Cruz e Maria da Visitação
costumavam receber a comunhão assim já no século XVII (Mott, 1993: 143).
A última depoente foi a beata Raquel Sisnando de Lima, a única casada e uma das
mais velhas, com 40 anos de idade, analfabeta, de família pobre, disse que também havia tido
revelações e viajado em espírito para adorar o sangue.230 Ela afirmou ter inicialmente

226
Idem.
227
Depoimento de Ângela Merícia do Nascimento em 28.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 50.
228
Idem.
229
Idem.
230
Depoimento de Raquel Sisnando em 28.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 50.
115
duvidado das comunhões sanguinolentas e pedindo a Cristo que lhe revelasse se o sangue da
comunhão de Maria de Araújo era o Seu verdadeiro sangue, sofreu um rapto extático e:

[...] enlevada no amor de Deus, sentiu-se inspirada e como que ouviu em


resposta as seguintes palavras: que aquele sangue da comunhão da Beata era
a realidade daquelas palavras que outrora dirigia ele aos povos de seu tempo,
nestes termos: quem comer de minha carne e beber do meu sangue terá a
vida eterna, o que com propriedade se aplicaria a geração ventura já
alumiada pela luz de seu Evangelho, acrescentando que com a transformação
das hóstias em sangue ele revelava sem véu o mistério antes anunciado. 231

Os relatos de visões das beatas de Juazeiro possuem a função clara de produzir


conversão, seja através das mostras da ira divina, quando Cristo reclama que seu próprio povo
não acredita nele e promete um futuro impiedoso no além, seja através de promessas de
graças e de salvação para os que acreditarem no milagre. Elas contam “histórias verdadeiras”
porque na mentalidade da época são “dadas como verdadeiras” (Schmitt, 1999: 89; 95).
São poucas as informações que temos sobre essas mulheres, mas é interessante notar
que mesmo tendo respondido a perguntas semelhantes, seus depoimentos diferem, na medida
em que, elas passam a narrar suas próprias experiências pessoais. O grupo, portanto, não é
nada homogêneo. São mulheres de idades e classe sociais diferentes, frequentando, no
entanto, o mesmo ambiente religioso, tendo suas atividades divididas entre a Casa de
Caridade no Crato e o Apostolado da Oração em Juazeiro.
Nem todas eram dirigidas pelo padre Cícero, mas é certo que todas estavam sob
influência de uma dinâmica religiosa muito própria daquele lugar, onde os padres, mesmo
aqueles formados no espírito romanizador acreditavam e até incentivavam práticas votivas
devocionais que já não eram vistas com bons olhos pela Igreja. É importante lembrar que em
fins do século XIX, a ortodoxia vai se tornando cada vez mais “romana” e menos tolerante
com as crenças e práticas devocionais de um catolicismo de herança colonial, ainda muito
forte no Brasil. É nesse contexto que devemos pensar esses relatos e, principalmente, a
história de Maria de Araújo sobre a sua relação íntima com Deus.

231
Idem, p. 51.
116
Figura 7: Família do Dr. Juvêncio com Padre Cícero, em destaque, supostamente, a beata Maria da
Soledade
sem data, Arquivo do Museu da Imagem e do Som, Fortaleza, Ceará

Figura 8: “Padre Cícero e outros”, em destaque, supostamente as beatas Maria das Dores (à esquerda
com véu) e Maria da Soledade. 1909, Arquivo Donata, DHDPG

117
CAPÍTULO 3

Segredos da alma que o corpo revela

N
este capítulo analisamos os fenômenos extraordinários acontecidos com Maria de
Araújo, a partir dos seus depoimentos no primeiro inquérito, intercalando-os com os
depoimentos do padre Cícero e de monsenhor Monteiro, mas temos que lidar com
um problema: apesar de Maria ter sido o foco, ao menos por um tempo, no que diz respeito
aos fenômenos de 1889, pouco se escreveu sobre ela após 1894.
Nesse sentido, nossas fontes são muito escassas, não só com relação à sua vida, mas
como vimos no capítulo anterior, pouco sabemos sobre as outras beatas. Detalhes importantes
como o cotidiano dessas mulheres, foram completamente ignorados pela Comissão e todos os
erros foram cometidos na condução do processo que se deu em um momento difícil
para Igreja, política e espiritualmente. Tudo o que era absolutamente inaceitável aos olhos da
Igreja foi aceito pela Comissão, que paradoxalmente não investigou mais a fundo a vida das
mulheres envolvidas.
Não obstante a carência de fontes, no que diz respeito à vida íntima de Maria, partimos
da hipótese de que ela manifesta com o seu corpo as insatisfações de sua alma, uma alma que
busca e acredita na perfeição divina. A Comissão Episcopal, por sua vez, passa a delinear sua
linha de interpretação dos fenômenos e 1891 termina com o inquérito sendo enviado à
Diocese e com Maria reclusa em uma Casa de Caridade.

118
3.1. Brincar com o menino Deus, carregar a cruz do Amado

[...] bem mestiça, de cabelos quase carapinhos, que usava cortados baixinho,
de estatura média, um pouco delgada, tinha cabeça pequena, um pouco
arredondada, olhos meiões [sic] quase negros e suaves na expressão, lábios
um pouco grossos, nariz pequeno, faces um pouco salientes, queixo pequeno
e pescoço bem proporcionado. Vestia hábito de beata, preto, conservando a
cabeça coberta, e tinha aspecto fisionômico e geral de pessoa simples, dócil
e boa (Dinis, 2011 [1935], 42).

Talvez essa descrição, feita pelo memorialista Manoel Dinis, seja uma das mais
detalhadas de Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo, uma vez que a única foto que
existe dela é de origem duvidosa e as descrições existentes, em sua maioria, dizem mais da
sua personalidade e comportamento do que propriamente de sua aparência. O padre Francisco
Ferreira Antero, sendo inquirido pelo Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé,
descrevia Maria de Araújo como uma “jovem de trinta anos, dada à vida devota desde
menina”232 e diz em outro momento: “[Ela] é de família pobre e camponesa. Vive em casa
com a mãe que a mantém [...] Veste um vestido preto com véu branco e preto ad modum
foeminne pietat addictae”.233 Outro memorialista, o padre Azarias Sobreira, descreve um
pouco da sua personalidade: “Não despertava a atenção, a não ser pela simplicidade de
maneiras, boa educação doméstica, fácil inteligência das coisas, apesar de ser analfabeta”
(2011 [1969]: 309).
Nos textos dos memorialistas predomina uma dupla imagem de Maria: a primeira que
ressalta os aspectos psicológicos como sua personalidade dócil e sua vocação para a vida
devota, e uma segunda que enfatiza algumas facetas menos lisonjeiras, como por exemplo, o
fato de ela ser “feia, pobre, analfabeta”. A questão é que ambas as imagens são usadas na
construção de um discurso de vitimização que busca, ora na feiura e pobreza, ora na excessiva
indulgência um motivo para a exclusão de Maria de Araújo da história do Juazeiro. Aliás, esse
argumento não é original, ou seja, não parte dos memorialistas, mas já aparece nas fontes da
época.

232
Tradução minha: “Giovane di trent’anni, data ala vita devota fin dalla fanciulezza”. Apresentação do Processo
em Italiano pelo Pe. Francisco Ferreira Antero in Rerum Variarum 1898/128, Vol. I, Doc. 04. ACDF. Ver
anexo n°4.
233
Tradução minha: “É di famiglia povera e campagnola. Vive in casa colla própria madre che la mantiene [ [...]
Veste un abito nero con velo bianco e nero ad modum foeminne pietat addictae”. Rerum Variarum 1898/128,
Vol. I, Doc. 05. ACDF.
119
No entanto, nossa maior fonte sobre a vida de Maria é, sem dúvidas, o primeiro
inquérito, no qual ela responde questões relativas à sua vida e às suas práticas votivas. As
perguntas possuem respostas implícitas, e, invariavelmente, a beata responde somente “Sim”,
contudo elas ainda conseguem informar muito sobre essa personagem:

Dá-se a vida de piedade e desde quando? […] Tem tido visões maravilhosas
e quais? […] Quais efeitos produziam em seu espirito aquelas visões? […]
Tem uso de meditar e qual o objeto especial de suas meditações? […] Tem
tido colóquios com Nosso Senhor Jesus Cristo e sobre que versão eles? […]:
Por ocasião de comungar tem a sagrada hóstia se convertido em sangue e em
carne? […] Tem a hóstia consagrada por ocasião de sua comunhão tomado
também a forma de coração humano? […] O sangue que aparece na boca por
ocasião da comunhão é em grande quantidade? […] Tem certeza que este
sangue não é seu próprio sangue e sente isto? […] Tem tido êxtases e nesse
estado contempla a alguns mistérios e quais sejam estes? […] Nesse estado
tem tido revelações especiais a cerca dos fatos ocorridos desde mil
oitocentos e oitenta e nove até a presente data nesta povoação do Juazeiro?
[…] O que pensa da espécie da carne e do sangue que aparecem na história
consagrada, será a verdadeira carne e o verdadeiro sangue de Jesus Cristo?
Teve noticia da decisão [interlocutória] do Senhor Bispo de Diocesano nesse
particular, isto é, a cerca da espécie da carne e do sangue aparecido nas
hóstias consagradas, e que impressão lhe causou tal decisão?234

Em nove de setembro de 1891, Maria de Araújo disse à Comissão que tinha “29 anos
começados”, embora haja na historiografia uma pequena contradição quanto à exatidão dessa
informação.235 O padre Cícero, por exemplo, diz que Maria de Araújo nasceu em 1863 ou
1864 e alguns autores reproduzem essa informação (Cf. Forti, 1999:37; Dinis, [1935] 2011:
41). No entanto, para corroborar com a informação dada pela beata, utilizamos como
referência os dados fornecidos pelo historiador Irineu Pinheiro, de que ela haveria nascido
“em 24 de maio de 1862, às quatro horas da tarde na então povoação de Juazeiro do Norte,
sendo filha de Antônio da Silva Araújo e de Ana Josefa do Sacramento, ambos de Juazeiro, e
batizada em agosto do mesmo ano pelo vigário Manuel Joaquim Aires do Nascimento” (1963:
148). 236

234
Auto de perguntas à beata Maria de Araújo em 09.09.1891 in “Cópia autêntica...”.
235
No primeiro inquérito há dois depoimentos de Maria de Araújo, o primeiro de nove de setembro, ao qual ela
foi convocada pela Comissão a depor, e o segundo, de onze do mesmo mês, quando ela retornou à presença
dos sacerdotes e pediu para fazer um aditamento ao seu depoimento, argumentando ter “esquecido” de
mencionar alguns acontecimentos. Auto de perguntas à beata Maria de Araújo em 09.09.1891 in “Cópia
autêntica...”, p. 09.
236
O registro de batismo de Maria de Araújo jamais foi encontrado. O autor extraiu esses dados do manuscrito
de José Joaquim de Maria Lobo nos arquivos pessoais do padre Cícero Romão Batista. Ver também:
Exposição circunstanciada do Pe. Cícero R. Batista de 17.07.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 03. É
120
Quinta filha de uma família de oito irmãos, seu pai faleceu quando a beata era criança
e sua mãe, Anna Josefa, era bastante idosa na época dos milagres. Ela não frequentou a escola
e até 1889, ano do primeiro sangramento da hóstia, morou com sua família e fazia serviços de
lavagem e costura de roupas junto com as irmãs. Em 1891, quando a primeira Comissão
Episcopal chegou ao Juazeiro ela já estava morando na casa do padre Cícero (havia se
mudado ainda em 1889), e era alvo constante dos curiosos que lhe visitavam em busca de ver
a transformação da hóstia ou suas estigmatizações.
Perguntada pela Comissão, Maria de Araújo contou que suas visões começaram aos
seis ou sete anos de idade, informação ratificada pelo padre Cícero. Nessas visões, Jesus
aparecia como um companheiro de brincadeiras, nas quais a maior diversão era levantar
altares para simular o sacrifício da missa: “[...] brincava com o menino Deus, sem que, porém
o conhecesse então; entretanto aquele divino menino que só agora lhe tem sido revelado
quem fosse, lhe ensinava os mistérios de Deus; e a preparava para os sacramentos da
penitência e eucaristia”.237
Percebemos que a pergunta tinha um caráter genérico, isto é, ela poderia partir de
qualquer ponto da sua vida, no entanto, escolheu começar por sua infância. Neste ponto,
conjeturamos que Maria foi instruída pelos sacerdotes – o padre Cícero ou mesmo monsenhor
Monteiro –, a contar sua história a partir de suas experiências de menina e essa escolha
narrativa poderia perfeitamente, ter sido inspirada nos modelos das vidas de santos, os quais
ela certamente teria acesso. Perguntada, por exemplo, sobre os boatos que corriam a seu
respeito, notadamente, o de ela ser analfabeta e, portanto, não ser digna de credibilidade, ela
respondeu que a despeito de sua falta de instrução, as conversas e “visões maravilhosas” com
o menino Jesus lhe proporcionavam: “uma inteligência melhor preparada para os
conhecimentos dos mistérios divinos e sua vontade mais disposta ao amor de Deus e a todos
os gêneros de sacrifícios para atingi-lo”. 238
Outro elemento importante: ela ressaltou na resposta, que só naquele momento, em
que respondia ao inquérito, soube por inspiração divina que aquele menino era Jesus Cristo.
Aos oito anos, continua ela, foi alertada pelo mesmo Cristo menino sobre um sacerdote que
“havia de se encarregar de sua direção espiritual e de tantas outras almas; sacerdote esse que

interessante perceber que Maria pouco aparece na historiografia, mas alguns memorialistas das décadas de
1920 e 1930 se preocuparam em situá-la na história.
237
Auto de perguntas à beata Maria de Araújo em 09.09.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 10.
238
Idem, p. 07.
121
somente se interessaria pela salvação das almas e nada mais”.239 Não tardou muito a conhecer
o padre Cícero Romão Batista, um homem de estatura baixa e olhos azuis muito claros, que
recém chegara de Seminário de Fortaleza e iria cuidar da Capela do pequeno povoado de
Juazeiro. Sob a direção daquele padre, fez aos dez anos sua primeira consagração para a vida
interior, “considerando-se desde aquela data como uma verdadeira esposa de Jesus Cristo”.240
Desde então, por influência do padre, passou a cultivar uma devoção muito profunda
pela Paixão de Cristo. Era o crucificado, símbolo de dor e redenção, que lhe atraía. Esse
trecho revela também uma conformação dos papéis destinados à beata e ao padre. Aventamos
que ao enfatizar a chegada do seu diretor espiritual como algo que já lhe teria sido
comunicado previamente, Maria de Araújo demarcava a importância do padre na sua
trajetória, além de repetir um leitmotiv comum às vidas das visionárias.
As visões lhe acompanharam por toda sua infância, mas foi na adolescência que Maria
de Araújo começou a se questionar sobre elas. Provações e tentações diabólicas passaram a
povoar sua vida, a ponto de em dado momento ela não saber mais distinguir entre uma visão
divina e um chiste diabólico. 241 E segundo o padre Cícero, aos dezoito anos, portanto, ainda
em 1880, ela “foi vítima das mais graves tentações e perturbações de espírito, as quais todas
convergiam para distraí-la da oração e inspirar-lhe receio das práticas de piedade, além de
serem contrárias à Santa Virtude da castidade”.242
Ela começou a por em dúvida sua própria vocação para a vida religiosa e as provações
foram piorando conforme avançava na idade. Conta-nos, por exemplo, que mais de uma vez
apareceu-lhe Jesus Cristo e ela não pôde “reconhecê-lo” (pois, com medo não deu
credibilidade ao que via), isso porque muitas vezes tinha sido “espancada pelos demônios que
se disfarçavam, ora na pessoa de Jesus Cristo, ora na Santíssima Virgem, ora em anjos e na do
próprio confessor [o padre Cícero], das quais tentações e ilusões muitas, todas no sentido de
distraí-la da vida interior”. 243
Segundo seu confessor, ela se empenhava com tanto “fervor e tal generosidade na
prática de todas as virtudes, que seu desejo, sua continua oração era condenar-se mais antes

239
Idem.
240
Exposição circunstanciada do Pe. Cícero R. Batista em 18.07.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 03
241
Segundo Garrigou a tentação acontece quando “a criatura sente desejos contrários ao ensinamento de Cristo,
que podem ir desde os maus pensamentos até a deleitação consentida em planejar atos pecaminosos” in Le
trois âges de la vie interienne. Paris: Edition du Cerf, 1938, pp. 806-811 apud Mott, 1993: 130.
242
Exposição circunstanciada do Pe. Cícero R. Batista em 18.07.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 03
243
Auto de perguntas a Maria de Araújo em 09.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 09.
122
do que violar a virtude da castidade, consentindo naquelas tentações”.244 A castidade e a
manutenção da virgindade eram os símbolos maiores da pureza do corpo e da alma em
oposição à vaidade. Frei Manuel de Santo Atanásio (O.F.M.), por exemplo, considerava que
“o estado de virgindade era superior ao da mulher casada” o que dava um peso muito grande à
vida religiosa como escolha ideal (Cf. Algranti, 1983: 37).
Preservar o corpo dos desejos mundanos era para o místico a maior prova de devoção.
Há, pois, toda uma literatura mística voltada para o aprimoramento das práticas que repeliam
o desejo carnal: jejuns, cilícios, disciplinas eram os instrumentos utilizados para esse fim. É o
“ódio santo de si mesmo” a qual se refere frei Luís de Granada (1504-1589):

[...] a mesma ordem para mudar de vida e subir do pecado à graça, porque
quando Nosso Senhor quer levantar uma alma a coisas maiores, primeiro a
dispõe com gemidos, desejos, temores, dores, aflições de espírito e trabalhos
de corpo (1873: 106).

Sobre isso, o padre Cícero lembra que ela se queixava em suas orações das dúvidas
que lhe afligiam até ter outra visão na qual o Senhor lhe ordenava a não prestar atenção à
visão alguma, qualquer que fosse, sem que recitasse a oração: “Louvada seja a Sagrada Morte
e Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo” o que teria amenizado a interferência do diabo em
suas visões.245
Seguindo o modelo de outras visionárias, também na vida de Maria de Araújo a linha
que separava o divino do diabólico se tornava cada vez mais tênue e os sofrimentos e
conflitos íntimos lhe perturbavam o espírito e a impediam de discernir o conteúdo e a origem
de suas visões. Esse não reconhecimento é também uma luta contra a ilusão, pois, sem dar-se
conta, o místico pode “produzir” suas visões através de artefatos mentais. Esse temor da
ilusão transforma-os em “desconfiados e críticos ante tudo o que passa por ‘presença’”
(Certeau, 2004:15).
O contato com a divindade passou, então, a ser intermediado pela oração e,
principalmente, por algumas orações jaculatórias246 que teriam sido ensinadas pelo próprio
Cristo e que versavam especialmente sobre a Paixão. Diz o padre Cícero que quanto mais
intimamente ela se comunicava com Jesus, “mais graves tentações e perturbações sofria da

244
Exposição circunstanciada do Pe. Cícero R. Batista em 19.07.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 03.
245
Exposição circunstanciada do Pe. Cícero R. Batista em 18.07.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 04.
246
Segundo Frei Joseph Maria de Jesus, as jaculatórias são “umas respiraçoens amorozas, com que a alma
suspira, e se inflama no amor de Deos” (1773: 248).
123
parte do inimigo, o que era compensado por maiores consolações”.247 Por outro lado, a
alegação de que o Diabo (e não a própria mente) produziu as falsas visões, aparece de forma
recorrente nas biografias espirituais das candidatas ao caminho da perfeição, e indica um
recurso eficiente para valorizar a própria experiência, daí também a busca por uma solução
que lhes dê segurança, realizada através da oração.
O padre Joseph Maria de Jesus no seu Espelho das perfeitas religiosas, já alertava que
se podia chegar à perfeição através de três caminhos: o da vida purgativa, “que é a dos
principiantes na virtude, que se exercitam em mortificações, e penitências por remédio aos
seus pecados”; o da via iluminativa, “que é a dos que já vão aproveitando na virtude, [...] não
busca nem deseja as mortificações ou ocasião delas, com tudo quando vem, as abraça com
amor, e caridade”; e a terceira, a via unitiva: “[...] esta é a dos perfeitos, que já estão unidos
com Deus por amor, conhece-se estar nela a alma, quando não só deseja as ocasiões de
padecer por amor de Deus, mas as busca, e deseja ser desprezado, e abatido de todos,
alegrando-se com os desprezos e vilipêndios” (1773: 231).
O valor de santidade das visões de Maria de Araújo está presente ainda nas invocações
que ela faz da Paixão de Cristo,248 e nas orações que, segundo ela, eram ensinadas pelo
próprio Cristo. De fato, desde o início do XIX e cada vez mais, passa-se a dar valor
extremado ao dom de oração que evoca a relação íntima entre o devoto e Deus, não obstante,
a “noção de mística designa a união íntima da alma a Deus [...] [que] pode estar contida nos
limites da oração, quer dizer, de uma meditação fortemente tingida de afetividade” (Albert,
1995:04). 249
A oração, essa “árvore de gestos”, como define Certeau, é a linguagem utilizada por
Maria para tentar chegar a seu Esposo e também é o instrumento de transmissão dos motivos
e desejos de Cristo ao escolher reproduzir naquele lugar e naquela mulher o seu sofrimento
em prol da salvação dos pecadores: “Si la oración aspira a encontrar Dios, la cita se ubica
siempre en el território del hombre, en el cruzamento de su cuerpo y su alma” (Certeau, 2006:

247
Exposição circunstanciada do Pe. Cícero R. Batista em 18.07.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 04.
248
Segundo Gélis: “O Cristo da Paixão, oferecendo-se como vítima pela salvação da humanidade, tem um lugar
essencial na vida religiosa do século XVI ao século XVIII [...] Ela constitui [diz Gaspar Loarte em 1578] [...]
uma ‘recapitulação de toda a vida de Jesus e é ‘uma fórmula abreviada que encerra toda a sabedoria da Igreja.
Doravante, a espiritualidade e o pensamento vão ser profundamente marcados pela paixão, cujas diferentes
sequencias conferem ao corpo de Cristo uma presença permanente, obsedante, tanto no espaço público, como
no espaço privado” (Gélis in Corbin, 2008:26).
249
Tradução minha: “la notion de mystique désigne l'union intime de l'âme à Dieu [...] Cette expérience toute
subjective peut être contenue dans les limites de l'oraison, c'est-à-dire d'une méditation fortement teintée
d'affectivité”.
124
34). Também a santa de Ávila comparava uma alma sem oração a um corpo entrevado e
paralítico (1970:483). Dada essa fraqueza inerente, para uma mulher vencer essas tentações
era imprescindível uma maior força de vontade e maior ascetismo do que seria necessário, por
exemplo, a um homem: “La única solución posible para acallar tan vívidas tentaciones era
propinar al cuerpo brutales disciplinas para obligarlo a que se sometiera a los dictámenes del
alma” (García, 1999: 174-175).
Conjeturamos que tudo o que Maria de Araújo aprendeu sobre religião vem de seu
convívio com os sacerdotes, especialmente, com monsenhor Monteiro e Cícero. As visões que
ocorriam desde menina, como ela insistia em salientar, parecem informar um conhecimento
de tópicas importantes da vivência religiosa feminina, como, por exemplo, o tema da Paixão
de Cristo.
Essa devoção começou a ser difundida no século XVI e atravessou os séculos
sustentando-se nos sofrimentos e nas humilhações sofridas por Jesus. Segundo Jacques Gélis,
o culto foi favorecido pelo desenvolvimento da imprensa que fez circular as imagens
aterradoras das torturas e humilhações sofridas por Cristo, incitando ao ascetismo por meio da
penitência e de práticas flagelantes (2005: 29). 250
Popularizam-se ainda as leituras piedosas como a Imitação de Cristo, de Thomaz de
Kempi, muito difunda nos oitocentos. No Cariri destacamos a circulação da Missão
Abreviada251 do padre português Manuel José Gonçalves do Couto (1819-1897), literatura que
provavelmente chegou às beatas através dos próprios sacerdotes; além do Novo Testamento,

250
No Brasil o culto à Paixão de Cristo foi associado à influência do chamado catolicismo penitencial trazido
pela Igreja portuguesa. Concentrado nos aspectos do sofrimento de Cristo, chamados Passos ou Mistério, o
culto foi reforçado pela ação das confrarias e irmandades, principalmente nas festas feitas durante a Semana
Santa. Um estudo interessante sobre o desenvolvimento desse culto no Brasil colônia, especificamente, na
cidade de Goiás, é o da professora Ana Guiomar Souza, intitulado Paixões em cena, onde a autora empreende
uma etnografia musical das celebrações da Semana Santa vilaboense. Ver: Souza, Ana Guiomar Rêgo.
Paixões em cena: a Semana Santa na cidade de Goiás (Século XIX). Brasília-DF: Universidade de Brasília,
2007. Tese de doutoramento. Disponível em www.tdbd.ceb.unb.br . Acessado em 15.12.2008. Sobre a festa
de Corpus Christi, especificamente, ver: Santos, Beatriz Catão Cruz. O corpo de Deus na América. São
Paulo: Annablume, 2005.
251
Este livro, de mais de mil páginas, é provavelmente o último de uma série de publicações européias engajada em
uma “literatura da espiritualidade do terror”. A obra atingiu grande popularidade no Brasil oitocentista,
especialmente no interior do país, sendo, inclusive, utilizada amplamente por Antônio Conselheiro em sua missão
no arraial de Canudos. Ainda nos dias de hoje, a Missão Abreviada permanece sendo lida em determinados
lugares, como no Cariri cearense, entre algumas irmandades religiosas do catolicismo popular, como os
penitentes conhecidos como Penitentes Peregrinos Públicos ou Aves de Jesus, do Juazeiro do Norte. Tais
penitentes continuam a publicar, por conta própria, fac-símiles dessa obra, em volumes de bolso, para utilizar em
suas pregações durante as romarias que ocorrem na cidade.
125
especialmente os evangelhos, que eram objeto dos encontros de meditação entre Monsenhor
Monteiro e Maria de Araújo.252
É importante notar que o católico do século XIX continuava cercado por essas
imagens mesmo a despeito do crescente rigor da disciplina dentro da Igreja. As aparições de
La Salette253 em 1846, por exemplo, reforçam a imagem do corpo doloroso de Cristo, pois
Maria carrega na visão os instrumentos da crucificação de Cristo: os pregos, a coroa, a lança,
etc. (Corbin, 2008: 60).
Em meados de 1880, o próprio Jesus teria lhe proposto a celebração de um consórcio
espiritual, um compromisso mais íntimo que a colocava definitivamente no rol das escolhidas
do Senhor. Perguntada se “Jesus Cristo celebrou um consórcio espiritual com sua alma e de
modo sensível?”, Maria de Araújo afirmou que o casamento espiritual teria sido celebrado
diante do Santíssimo Sacramento na Capela de Nossa Senhora das Dores:

[Perguntada se] Jesus Cristo celebrou um consórcio espiritual com sua alma
e de modo sensível? Ao que respondeu que sim, tendo-se celebrado o
consórcio espiritual com Jesus Cristo na Capela do S.S. Sacramento, em
presença de Maria S.S., de S. José, de coros de anjos e de virgens; tendo a
isso precedido diversos preparativos, quais outros desposórios [sic]
espirituais; então Jesus lhe introduziu no dedo o anel nupcial, deu-lhe a mão
chamando-lhe esposa e confirmando-a como tal, exigindo que a Ele se
consagrasse de um modo mais íntimo ainda e anunciando-lhe que daí em
diante teria mais que sofrer por seu amor.254

A descrição do casamento espiritual de Maria de Araújo com Cristo é repleta de


elementos místicos: a música era cantada por anjos e virgens e os padrinhos eram Maria e São
José, e por fim, a consagração íntima. O casamento espiritual simbolizava para ela um
compromisso que era mais importante do que a vinculação com alguma ordem religiosa.
O uso dessa metáfora também é relevante para entendermos o nível do compromisso
que Maria de Araújo acreditava ter estabelecido com Jesus Cristo, pois na literatura mística, o
casamento espiritual traduz uma “suprema recompensa desta ascensão da alma”, prêmio que

252
Ver cartas: CPR 01,05 (25.01.1890); 01,06 (20.04.1890), entre outras, todas do Monsenhor Francisco
Rodrigues Monteiro ao bispo Dom Joaquim José Vieira.
253
Em 19 de setembro de 1846, Nossa Senhora teria aparecido às duas crianças, Maximin Giraud, de 11 anos e
Mélanie Calvat de 15 anos, nas montanhas do vilarejo de La Salette, Isére, nos Alpes franceses. Nas
aparições, Maria aparece chorando e alerta para a necessidade de conversão. Os fenômenos de La Salette
foram investigados pela Igreja que considerou as aparições como “verdadeiras”, orientando as contrução de
um templo em honra à Virgem em 1852. No mesmo ano é criada a Congregação Missionários de Nossa
Senhora da Salette (salentinos). Ver: Leonardi, Paula. Além dos espelhos: memórias, imagens e trabalhos de
duas Congregações francesas no Brasil. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2008.
254
Auto de perguntas a Maria de Araújo em 09.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 09.
126
só algumas visionárias recebiam (Gélis in Corbin, 2008: 65). O texto do Cântico dos
Cânticos, por exemplo, oferece uma narração simbólica, na qual as núpcias são o eixo central
da narrativa e que pode ser interpretada como a união entre a alma e Deus (Cf. Bizzicari,
1966).
O casamento denotava, além disso, uma relação de partilha. Segundo Cícero, como
esposa de Cristo, Maria de Araújo se comprometia a compartir de “modo mais íntimo”255 os
sofrimentos de seu Amado. Essa metáfora está ligada à consciência de uma corporeidade, na
qual a união espiritual era sentida em todo o corpo. Como lembra Rubíal García, o casamento
místico remetia ao erotismo do amor cortês, “con sus juegos y alegorías, se entremezclaba con
el símbolo del matrimonio entre el alma y Cristo, salido de las interpretaciones cristianas del
Cantar de los Cantares” (2006: 180). Maria de Araújo como boa esposa deveria carregar a
cruz do seu Amado e sentir a dor que acompanhava a graça de ser uma escolhida: “era el
camino más corto de la salvación y la más clara manifestación del amor pues convertía al
propio cuerpo en un espacio que lo identificaba (es decir lo volvía idéntico) al de la víctima
del Calvario” (Idem: 174).
José Angel Valente também corrobora a tese da união mística como categoria erótica
na qual se opera a unificação dos contrários: humano-divino, esposa-amado, exterior-interior,
corpo-alma, feminino-masculino: “Eros y religión pertenecen al substrato originario de lo
sacro. No se trata, pues, de que el eros pueda significar lo sagrado, sino de que el eros es,
sobre todo en determinados contextos, lo sagrado” (1993: 52). A união íntima de Maria de
Araújo com seu Esposo é marcada assim pela condição do gozo através da dor, do
compartilhamento do sofrimento, do castigo corporal (que também é erótico) para exaltação
do espírito.
Algum tempo depois da realização do matrimônio espiritual, Maria de Araújo
começou a sofrer com as crucificações e estigmatizações. O padre Cícero contou que a
primeira estigmatização pública ocorreu em 1885 quando ela tinha 21 anos. Durante uma
celebração em homenagem às almas do purgatório ela teria sentido que alguém lhe dera um
abraço, do que resultou a impressão no seu peito de uma cruz que sangrava continuamente.

Assistia Maria de Araújo ao Mês das Almas, e isso na oitava de todos os


Santos de 1883 a 1884, quando sentiu ela que alguém lhe dera um amplexo,
ficando impressa no peito uma cruz a deitar sangue, do que fui eu mesmo

255
Exposição circunstanciada do Pe. Cícero R. Batista em 18.07.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 04.
127
testemunha. Era a consagração dela à vida de penitência. Nessa vida de
união com os sofrimentos de Nosso Senhor, a bem das almas ficou ela até
hoje. Oferece-se ela como vítima de expiação pelas almas do purgatório e
pelos pecadores em geral.256

O amplexo de sangue foi considerado, por ela e pelo padre Cícero, como o símbolo de
sua consagração à penitência e como uma confirmação da devoção à Paixão de Cristo. A
solidariedade para com o sofrimento do Senhor fez com que a beata acreditasse ajudar Cristo
a carregar a cruz que simbolicamente foi impressa em seu próprio corpo. As penitências vão
aparecer no seu depoimento como uma benção que a livraria das tentações demoníacas e a
manteria no caminho da salvação. Ordenadas frequentemente pelo padre Cícero, ou segundo
Maria, pelo próprio Jesus Cristo, as penitências eram feitas quase que exclusivamente na
Capela de Nossa Senhora das Dores. 257
Com o passar do tempo, os estigmas se tornaram mais frequentes e eles apareciam na
testa: “a sair como de uma coroa de espinhos, nas mãos, como cravos, no lado uma chaga [a
lança] que só na Quaresma258 do corrente ano chegou a cicatrizar, jorrando desses estigmas
copioso sangue”.259 Maria dizia ainda ter certeza que as chagas em seu corpo eram um
símbolo que Deus usava para comunicar-lhe seu amor. 260 Gélis ressalta que “a estigmatização
ilustra a convergência de duas vias da imitatio Christi: a contemplação das chagas e o
martírio. [...] os estigmas são menos um sinal para olhos do que a sede localizada de um
sofrimento vivido intensamente por todo o corpo” (2008:65). Outra testemunha, o padre
Manoel Antônio Martins de Jesus, citado anteriormente, afirmou que os estigmas eram
divinos, pois as chagas não se curavam com remédio algum.261
A crucificação, representação evidente da imitação de Cristo e da devoção à Paixão
traduzia a humanidade de Jesus em um momento paradoxal: quando a fragilidade corporal se
contrapunha à fortaleza espiritual: “É, a partir daí, o sofrimento do crucificado que condensa o
sacrifício do Deus-homem e a redenção da humanidade. A imitação de Cristo se faz, então,
pela compaixão e identificação com os Seu sofrimento na cruz”.262 Maria de Araújo se filia aí,

256
Idem.
257
Auto de perguntas a Maria de Araújo em 09.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 09.
258
Período de quarenta dias, compreendido entre quarta-feira de Cinzas e domingo de Páscoa.
259
Idem.
260
Idem.
261
Depoimento do padre Manuel Antônio Martins de Jesus em 19.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 32.
262
Tradução minha: “C’est desormais la souffrance du crucifié qui condense l’acte sacrificiel du Dieu-homme et
la rédemption de l’humanité. L’imitation du Christ se fait alors par compassion et identificatión à ses
128
a uma grande tradição de visionárias e beatas que atuaram em Portugal e no Brasil desde o
século XVI.
Conforme ia passando o tempo, as penitências também teriam se tornado mais duras:
jejuns, meditações por horas a fio, as quais a levavam madrugada adentro, recitando as
estações da Paixão de Cristo. Outro tipo de penitência que aparece tanto no depoimento de
Maria de Araújo como no do padre Cícero eram as idas ao Purgatório e Inferno para participar
dos sofrimentos das almas condenadas:

Nessas ocasiões entrava ela [Maria de Araújo] efetivamente na participação


dos sofrimentos das almas do Purgatório que lhe afetavam assim a alma
como ao corpo. [...] teve ela também de ir ao Inferno de ordem do confessor
que a mandava em companhia de Jesus, Maria e José, e dos anjos de sua
guarda e do próprio Confessor, a prender ali os demônios para maior bem da
Santa Igreja e Salvação das almas dando-se realmente a prisão dos demônios
por intermédio de um anjo com prévio mandado dela em nome de Deus;
sucedendo em tais ocasiões banhar-se em copioso sangue, sempre em estado
de êxtases. 263

Segundo Maria de Araújo, as viagens espirituais ao Purgatório tinham como principal


objetivo “santificar as almas” e liberá-las do fogo purgatório. Respondendo ao Delegado da
Comissão à pergunta: “Tem-lhe Deus Nosso Senhor permitido ir muitas vezes em espírito ao
purgatório libertar algumas almas?”, ela afirmou que as viagens ao Purgatório se davam a fim
de que ela “entrasse na participação dos sofrimentos das almas para assim aliviá-las e que
concorresse com ele para libertá-las”, como era de “divina vontade”, ressaltando ainda que já
havia libertado muitas almas, inclusive “algumas das quais foram dela conhecidas”.264 O fato
de afirmar conhecer algumas das almas que estavam no Purgatório é significativo, pois pode
ser um recurso para dar verossimilhança à narrativa, criando um efeito de “verdade”, a fim de
convencer os padres da Comissão.265
Os perigos da ida ao Purgatório também são lembrados pela beata no depoimento,
onde ela contou que Jesus lhe ensinou uma jaculatória a fim de que pudesse se certificar se as

souffrances sur la croix” (Bouquet, 2007 : 07).


263
Aditamento ao Relatório do Pe. Cícero R. Batista em 14.09.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 19.
264
Auto de perguntas feitas à Maria de Araújo de 11.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 09.
265
Os relatos de almas que aparecem após a morte para pedirem sufrágios são muito comuns na tradição
religiosa católica, considerando-se a publicação recorrente em jornais da época de historietas que narravam o
aparecimento de almas a amigos ou pessoas da família. Tomamos como exemplo, o jornal A voz da religião
no Cariri, dedicado exclusivamente aos assuntos religiosos, que publicou a história de um pai que aparece ao
filho com o corpo ardendo em chamas pedindo 50 missas como forma de aliviá-lo dos sofrimentos que
padecia no Purgatório: “Se não poderes cinquenta, ao menos vinte e cinco para adoçar tão cruéis
padecimentos”. Jornal A voz da religião no Cariri de 03.12.1869, Ano 2, n° 40, p. 04.
129
aparições de santos e anjos eram divinas ou “ilusões e malícias do inimigo”. A jaculatória
dizia: “Louvada seja a Paixão e Morte de Jesus Cristo e as dores da Imaculada sempre Virgem
Maria” e deveria ser recitada tanto no Purgatório – onde as penas das almas seriam aliviadas –
, quanto no Inferno, pois “aumentava os horrores do mesmo, provocando os demônios às
blasfêmias, ao passo que os anjos e os santos no céu lhe correspondiam dizendo: Para sempre
seja louvado”.266 Com essa afirmação, Maria de Araújo desafiava toda e qualquer hierarquia.
Se ela podia obter orações e jaculatórias do próprio Jesus Cristo de que valiam as orações já
existentes no culto oficial?
Todos esses eventos foram narrados em 1891 e dizem respeito a uma trajetória de
Maria de Araújo que vinha se desenrolando desde 1885 até o sangramento da hóstia em 1889.
Assim, o itinerário espiritual da beata vai se conformando em torno de eventos que lembram a
repetição da Paixão de Cristo, usada inclusive nos depoimentos como justificativa para os
fenômenos que se deram no intervalo entre o casamento espiritual em 1880 e o sangramento
da hóstia em 1889: os êxtases, as comunhões miraculosas nas quais a beata dizia receber a
hóstia das mãos do próprio Jesus e os sangramentos em crucifixos de bronze.
A entrega espiritual definitiva de Maria de Araújo foi marcada, segundo o padre
Cícero, pelo sangramento da hóstia em seis de março de 1889. No Processo, a primeira
descrição do que aconteceu naquele dia foi feita pelo próprio padre Cícero. Em seu primeiro
depoimento, de 17 de julho de 1891, o padre relatou o que observou naquela noite, destacando
que era a primeira vez que a via em êxtases, de onde podemos deduzir que antes do
sangramento da hóstia, as visões e estigmatizações não eram acompanhadas do fenômeno
extático dessa manifestação:

Passara Maria de Araújo com outras senhoras em vigília, adorando em


espirito de reparação ao S. S. Sacramento. Eram já cinco horas da manhã e
atendendo eu ao Sacrifício que tinham feito aquelas pessoas passando toda
noite em adoração a N. Senhor, julguei conveniente dar-lhes a comunhão; o
que efetivamente se deu. Pela primeira vez a vi então tomada de um rapto
extático, resultando segundo ela afirmara a transformação da Sagrada
Hóstia em sangue, tanto que além do que ela sorveu, parte caiu na toalha e
parte caiu mesmo no chão; do que tudo foram testemunhas seis a oito
pessoas que com ela tinham comungado. Durante o tempo quaresmal
daquele ano e principalmente as quartas e sextas feiras de cada semana,
observaram-se aqueles fenômenos; o que deu-se também uma vez, no sábado

266
Aditamento ao auto de perguntas feitas à Maria de Araújo de 11.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 15.
130
da Paixão no mencionado ano, depois do que passaram a ser diários até a
Ascensão do Senhor.267

Maria de Araújo confirma o que disse o padre Cícero:

[Pergunta] Por ocasião de comungar tem a sagrada hóstia se convertido em


sangue e em carne? Respondeu que sim, convertendo-se a princípio em
sangue, pela primeira vez, na primeira Sexta-feira de março de mil
oitocentos e oitenta e nove, interrompendo-se porem e continuando neste
corrente ano até a presente data, salvo a interrupção de poucos dias deste
mesmo ano; não tenho porem certeza de se ter convertido em carne como
outros testemunharão e isso em consequência da perturbação em que então
se achava.

A Eucaristia é um dos mais importantes símbolos do Catolicismo, representa um corpo


que foi oferecido em sacrifício para salvar a humanidade, “por ela, ele recebe o corpo, o
sangue, a alma do Cristo [...] a perfeição cristã, a possibilidade de aproximar-se, todos os dias,
do filho de Deus” (Febvre, 2009: 278-279). A comunhão eucarística é, assim, um dos pontos
altos da Missa, é a espera/anúncio do retorno de Cristo: “[...] podemos falar de banquete
sacrificial, já que esse gesto de comer/beber é sinal de inserção total e totalizante da
comunidade na atitude de Jesus para ser nele sacrifício agradável ao Pai. Essa vitalidade
assume, contudo, clara orientação escatológica. [...] se insere no horizonte do acontecimento
messiânico”.268
Toda a questão de Juazeiro foi sustentada sobre a dúvida se o sangue que jorrava das
hóstias consumidas por Maria de Araújo era ou não o sangue de Cristo. Se não fosse, só
restariam duas alternativas: ou era um embuste criado pela beata (sozinha ou com auxílio de
alguém), ou era uma ilusão diabólica e a beata estava sob a influência do demônio. Porém, se
fosse comprovado que o sangue não era de Maria de Araújo e que procedia de uma exsudação
sobrenatural, o fenômeno podia ser considerado o que o dogma teológico aprovado no
Concílio Lateranense de 1215 chamava de transubstanciação eucarística. É esse mesmo
Concílio que torna obrigatórias a comunhão e a confissão anuais, contribuindo para o
desenvolvimento de um forte culto eucarístico:

O dogma defendido e popularizado da presença real na celebração


eucarística permite ao fiel estabelecer uma comunicação pessoal com o
Cristo que é diretamente acessível aos sentidos [...] Essa proximidade física

267
Exposição circunstanciada do Pe. Cícero R. Batista em 19.07.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 04.
268
Donghi, A. “Eucaristia” in Borriello, L., Op. Cit., 389.
131
da presença real tem como primeiro efeito a criação de uma dependência
pela hóstia e pela comunhão.269

O termo transubstanciação designava uma mudança sensível, de cor, odor e sabor na


hóstia consagrada, que representava o corpo de Cristo: “os sentidos percebem as aparências
eucarísticas: cores, odores, sabores. Mas, como em boa dialética elas são inseparáveis de suas
substâncias, o pão e o vinho continuam a existir mesmo depois da consagração” (Redondi,
1991:234).
O mais famoso milagre envolvendo o Santíssimo Sacramento e que inspirou o dogma
da transubstanciação eucarística foi o do padre Pedro de Praga, no verão de 1263 na pequena
cidade de Bolsena, na região italiana do Lazio, quando a hóstia sangrou no exato momento em
que um padre ousou duvidar da presença de Cristo na eucaristia. Há outros menos famosos,
como o de Santa Juliana Falconieri (1270-1341), também italiana de Florença. A tradição
hagiográfica conta que em seu leito de morte e já impossibilitada de receber a comunhão, ela
pediu a um sacerdote que aproximasse a hóstia de seu peito e esta ficou grudada ao seu corpo,
logo desaparecendo, como se entrasse em seu coração (Mott, 1993: 142).
Beber o sangue de Cristo, comer a sua carne são atos naturais para um cristão comum
que já é, por excelência, um teófago, dado que Jesus Cristo subsiste na eucaristia através do
pão e do vinho:
Quiso además que se recibiese este Sacramento como un manjar espiritual de
las almas, con el que se alimenten y conforten los que viven por la vida del
mismo Jesucristo, que dijo: Quien me come, vivirá por mí; y como un
antídoto con que nos libremos de las culpas veniales, y nos preservemos de
las mortales.270

A teofagia – literalmente “comer Deus” –, como um ato de salvação remete às práticas


de alimentação do medievo quando “a gula era vista como a principal forma de luxúria, o
jejum como a renúncia mais dolorosa, e o comer como a forma mais básica e literal do
encontro com Deus”271, não por acaso o jejum se torna uma das principais formas de

269
Tradução minha: “Le dogme défendu et popularisé de la présence réelle dans la célébration eucharistique
permet au fidèle d’établir une communication personelle avec le Christ qui est directment accessible aux
sens. [...] Cette immédiateté physique de la présence réelle a pour premier effet d’engendrer une dépendance
à l’hostie et à la communion.” (Boquet, 2007: 04).
270
Documentos do Concílio de Trento, Sessão XII, Cap. II “Del modo con que se instituyó este Santísimo
Sacramento”. Ver também: Sessão XIII, Cap. III “De la excelencia del santísimo sacramento de la Eucaristía,
respecto de los demás Sacramentos”. Disponível em Biblioteca Electrónica Cristiana -
http://multimedios.org/docs/d000436/.
271
Tradução minha: “Medieval people often saw gluttony as the major form of lust, fasting as the most painful
132
disciplina e uma das mais louváveis formas de caridade é alimentar o outro. Esse “comer o
outro” aproxima o corpo ordinário do homem ao corpo místico de Cristo. A eucaristia
simboliza a presença real de Cristo na hóstia durante o sacrifício da missa e é para os cristãos
“o viático indispensável à garantia de não sucumbir ao mal, a certeza de salvar-se. Assim, o
corpo do Redentor está no centro de um complexo no qual se conjugam o alimentar, o
sacramental e o escatológico” (Gélis, 2008: 43).
Não obstante, é nas metáforas sensuais do comer, beber, receber que a mística se
comunica com seu Amado. É na Eucaristia, símbolo do alimento celestial e da corporeidade
de Cristo que a beata manifesta sua sexualidade (Cf. García, 1999, 178). É essa persistência
de um amante ausente que acaricia e fere: “‘Habla cada vez menos, se va trazando en
mensajes ilegibles sobre um cuerpo transformado en emblema o en memorial grabado por los
dolores del amor” (Certeau, 2004:15-16). Assim, não é possível uma experiência espiritual
sem o corpo: “la aventura espiritual es uma aventura de lo corpo reo” (Cesareo, 1994: 194).
As visões, êxtases e outros fenômenos não são mais que ratificadores do paradigma
fundamental da tradição católica: a imagem do corpo sofredor (perdido) de Cristo.
Há nas experiências de Maria de Araújo uma obsessão pelo corporal, e,
principalmente, pelo corpo que sangra, como diz Mario Cesareo: “el emplazamiento de la
propia corporalidad como única garantía de efectividad terrena” (1999: 452). O sangue
aparece no corpo de Maria de Araújo ferido pelas cinco chagas, nos crucifixos, nas visões e,
finalmente, nas hóstias ministradas na comunhão. A visão mística em relação ao sangue é
dupla, ele origina, segundo Gélis, ora uma atitude de repulsa: “O sangue, esta coisa horrível
em si mesma”, segundo Santa Gertrudes; ora de valorização: “Como seria bela minha veste
branca, se ela fosse tingida de sangue”, dizia Catarina de Siena (2008:61).
Catarina de Siena, uma das grandes figuras da tradição mística medieval europeia,
começava todas suas cartas aludindo ao sangue de Cristo: “Eu Catarina, serva e escrava dos
servos de Jesus Cristo escrevo a vocês no Seu Precioso sangue”, e desejava que todas as
pessoas, assim como ela, pudessem ser “banhado no sangue do dessangrado cordeiro [...]
afogados no sangue doce do Filho de Deus”.272

renunciation, and eating as the most basic and literal way of encountering God” (Bynum, 1987: 02).
272
Tradução minha: “Io Catarina, serva e schiava dei servi di Gesù Cristo scrivo a voi nel Prezioso sangue suo”;
“[....] bagnato nel sangue del svenato Agnello [...] affogato nel sangue del dolce Figliuolo di Dio” (apud
Bizzicari, 1966: 52).
133
O sangue, elemento místico representado pelo vinho da eucaristia, brota do corpo de
Maria, como um lembrete constante da missão que a elas foi designada. Ela também afirmou
que o sangue não era o seu próprio, tanto “que não experimenta enfraquecimento algum, nem
alteração de qualquer espécie em sua saúde”.273 No entanto, o que surpreende é que ela não
saiba dar mais detalhes sobre o que acontece com a hóstia depois do sangramento, ao mesmo
tempo em que desenvolve uma narrativa organizada e erudita. No seu aditamento, de 11 de
setembro de 1891, a beata nos conta que em uma madrugada:

[...] cerca de duas horas da manhã do dia vinte e dois de agosto de mil
oitocentos e oitenta e nove, é que Nosso Senhor Jesus Cristo pela segunda
vez lhe ministrou a Comunhão por suas próprias mãos, sob a espécie própria
de sangue em um cálice de ouro que lhe deu a beber, derramando parte dele
sobre sua cabeça que chegou a ensopar o véu e a murça que ela trazia,
ficando ela então em estado de êxtases do qual despertando e sentindo-se
aflita por não saber o que fizesse do sangue que caíra sobre si. 274

Beber o sangue de Cristo transformou-se aqui quase em uma punição, e através do


depoimento podemos vislumbrar que ela ficou assustada e com o sangue que lhe caiu sobre o
corpo. Os excessos ressaltados na visão, como o sangue derramado exageradamente de forma
a deixar-lhe ensopada, remetem ao mesmo exagero e exacerbação presente no culto a Paixão,
no qual os suplícios deixaram o corpo de Cristo em carne viva.
A experiência mística é traduzida em elementos como a dor, o sangue e o ardor
corporal (Eros). Se para o místico o corpo é a conformação entre o espírito e a carne, a dor
física não pode ser temida ou negada. O místico não pode temer seu corpo, não pode temer o
sofrimento, pois este é um elemento fundamental da ascese mística, que marca a semelhança
do corpo do místico ao próprio corpo de Cristo: “El místico no sufre el terror del cuerpo, no
teme al cuerpo; no puede, en rigor, temerlo. [...] Precisamente, el temor del cuerpo sería,
según señala san Juan de la Cruz a considerar la noche pasiva del sentido, uno de los factores
causantes de lo que él llama lujuria espiritual (Valente, 1991:40, Grifo no original)”.
Ter medo do próprio corpo seria, pois, sinal de fraqueza, de desgoverno dos sentidos e
das paixões, de luxúria, algo que não era permitido ao místico: “No amor não há lugar para o
temor: o perfeito amor expulsa o temor, pois o temor supõe o castigo, e o que teme não é
perfeito no amor” (1Jo 4. 18). Neste sentido, as tentações e perturbações demoníacas fazem

273
Auto de perguntas feitas à Maria de Araújo de 11.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 09.
274
Aditamento ao auto de perguntas feitas à Maria de Araújo de 11.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 14.
134
parte das provações pelas quais passam aqueles que devotavam sua vida a Jesus Cristo. Se a
alma pertencia a Deus, o corpo físico era o alvo predileto do Diabo, pois até o próprio Cristo
fora tentado insistentemente (Mt 4.1).275 O corpo manifestava os sentimentos paradoxais
inerentes à experiência mística, pois o mesmo Deus que provocava a dor também trazia o
alento:
Não eram passados muitos dias, depois que tive a felicidade de ver Maria de
Araújo, extática, toda arrebatada em Deus; a face virada para o Céu, olhos
docemente cerrados, lábios entreabertos; não respirava, as mãos postas e um
pouco erguidas, o rosto animado, que bem deixava trair o segredo de seu
coração! Ela estava inundada de delícias, da pureza de amor Divino!.276

O que constitui a experiência mística é, portanto, essa catarse que se confirma a partir
da união definitiva com a divindade e se conforma como uma experiência de extrema
comunhão com o sagrado e é, antes de tudo, uma experiência interior, através da qual o corpo
se entrega aos arroubos eróticos da alma:

En la sustancia última del alma (scintilla, apex, interior, intimo) donde la


unión se opera, se opera la unificación de contrarios: humano-divino,
esposa-amado, exterior-interior, cuerpo-alma, femenino-masculino. […] Hay
fruición, goce, delectación en la experiencia extrema del místico, a la que su
entera naturaleza es arrastrada. Hay Eros, no puede no haberlo: eros de la
genitalidad asumida y excedida. […] (Valente, 1991: 44; 47).

No seu depoimento, o padre Cícero ressaltou que nos colóquios277 entretidos entre a
beata e Jesus, as juras de amor são tais que “com muita propriedade se poderia comparar com
o dos Cânticos dos Cânticos”, o que nos faz pensar sobre essa erotização advinda da própria
experiência mística.278 O êxtase279, como auge da experiência mística, confirma que a missão

275
A tentação acontecia “quando a criatura sente desejos contrários aos ensinamentos de Cristo, que podem ir
desde os maus pensamentos, até a deleitação consentida em planejar atos pecaminosos” (Cf. Garrigou apud
Mott, 1993: 130).
276
CPR/ CRA 01.05: Carta de Mons. Francisco R. Monteiro a D. Joaquim Vieira em 25.01.1890.
277
No vocabulário espiritual o colóquio designa, ao mesmo tempo, a oração e a comunicação. Orar é “falar” e
“rezar” (Cf. Certeau, 1982: 190).
278
Exposição circunstanciada do Pe. Cícero R. Batista em 19.07.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 04.
279
O êxtase costuma ser acompanhado de outros fenômenos como revelações, visões, estigmas, raptos, e viagens
espirituais, mas não obrigatoriamente. José Ángel Valente diz que: “Para San Juan de la Cruz el elemento
constitutivo de la vida mística es el éxtasis, la experiencia de la noche […] Pero el proceso extático puede o
suele ir acompañado, sobre todo en algunas de sus fases, de epifenómenos o fenómenos concurrentes, de lo
que la teología cristiana ha llamado gracias gratis dadas: visiones, revelaciones, raptos, quemaduras,
estigmas, lágrimas de sangre, bilocación, inedia, levitación, etc.. Esos fenómenos pueden no existir, no son
constitutivos de la experiencia mística, tiene con respecto a ésta carácter secundario y tienden, cuando se
producen (sean de naturaleza real o simbólica), a desaparecer en los estados superiores del éxtasis. […] No
otra cosa es el éxtasis que una salida, un salirse o sobresalirse del alma: ‘una salida fuera de si mismo’, en
135
do místico é a “imitação de Jesus Cristo” e, segundo Maria de Araújo, toda dor infligida
naquele momento era compensada por uma “grande consolação da alma”.280 O êxtase é a
linguagem do corpo para comunicar a interação com o outro (Deus, o sobrenatural), e aparece
como narrativa que tem a dor e o prazer como marcas de enunciação (Cf. Hartog, 1999).
Se todo narrador imiscui em sua narrativa elementos pertencentes aos seus códigos
culturais e, assumindo que Maria de Araújo teve contato, ainda que “traduzido”, com a
literatura de prédicas, com as vidas de santos e com a própria Vulgata, aventamos que sua
narrativa – a corporal e a oral –, fala de uma experiência mística que a coloca no centro da
enunciação. Ela arvora-se do direito de ser uma “escolhida de Deus”: é ela quem manifesta o
êxtase, quem comunga intimamente dos favores e graças espirituais promovidos por Deus, ela
é acariciada por seus toques e converte isso em linguagem. 281
É nesse contexto que Maria de Araújo vivia e apesar de não saber ler ou escrever,
podemos conjeturar que obteve certa educação religiosa que lhe foi transmitida oralmente,
através da direção espiritual do padre Cícero e de outros sacerdotes como o monsenhor
Monteiro. Ainda em 1890, portanto, um ano antes da Comissão chegar ao Juazeiro, esse
sacerdote já escrevia cartas a Dom Joaquim detalhando suas “reuniões” com Maria de Araújo,
em uma delas, na qual o padre Cícero não se achava presente, Monteiro descreve a
experiência da beata ao ouvir falar sobre a Paixão de Cristo:

Me achava no Juazeiro, Sábado, véspera da Dominga da Paixão. Eram duas


horas e meia da tarde, rezava o meu Breviário na Capela do S. S. Sacramento
quando a Beata Maria de Araújo entrava para fazer oração (estava neste dia
o Pe. Cícero na Barbalha) tinha sede e pedi à Beata, para dar-me um pouco
de água, antes de entregar-lhe o vaso, com que ela me trousa [sic] a água, eu,
por piedade, e pôde ser, também, que por um pouco de curiosidade, comecei
a falar-lhe sobre os sofrimentos de Nosso Senhor Jesus Cristo, eu estava
assentado perto da audencia [sic] de lado da Epístola, ela conserva-se em pé,
de repente ela sofre um grande abalo e começa à gemer, ela é de pouca
estatura, o seu rosto ficava de baixo das minhas vistas, encaro-a, também,
abalado e vejo na testa uma cinta ensanguentada, e o sangue a correr pelo
rosto com tanta abundância que lhe molhou a murça, à este choque sucedeu
um êxtase, e logo com uma humildade profunda de confundir trata de retirar-
se; opus-me, dizendo, que Deus me havia feito testemunha daquele caso e
para a glória dele me explicasse o que aquilo era; responde o, que Nosso

palabras de Tomás de Aquino” (1991: 99). No Espelho de perfeytas religiosas do frei Joseph de Jesus Maria,
a definição de êxtase é breve: “É quando a alma se vai pouco a pouco alienando, e saindo dos seus sentidos”
(1773:251).
280
Auto de perguntas a Maria de Araújo em 09.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 08.
281
Paráfrase de Certeau: “Le corps devient l’orgue de toutes ces ‘faveurs’ et ‘graces’ spirituelles; il est oué par
ces touches ; il en devient le langage” (1982 : 271).
136
Senhor ensanguentado, cercado de espinhos, tirou a coroa sagrada e a
colocou em sua cabeça, dizendo: - Aprende a amar-me. […] Ah! Senhor.
Bispo, que dores amorosas! Ela gemia e amava!282

Nesse relato, temos alguns elementos: a assumida curiosidade do sacerdote que o


levou a provocar uma reação da beata e aí obtém dela uma resposta, isto é, a partir da menção
aos sofrimentos de Cristo, Maria entra em êxtase. Além disso, parte do sacerdote, que se diz
“abalado”, a ideia da “vontade divina” de fazê-lo testemunha do fenômeno. A beata, por outro
lado, segundo o relato, tenta esquivar-se e não quer contar a experiência, seja por recato, seja
pela falta de uma linguagem que exprima o que ela quer dizer.
A erótica do relato também é muito forte, primeiro, Cristo que tira sua coroa e coloca
na cabeça de Maria, em um ato de transferência do sofrimento e, também, como uma lição:
“Aprende a amar-me” e logo em seguida, a descrição das “dores amorosas”, durante as quais,
a beata “gemia e amava”. O que lemos no relato acima, não reflete o olhar de um sacerdote
formado nos moldes romanos, tampouco o olhar de um inquisidor. O que temos aqui é olhar
de um devoto. E é esse olhar do inquisidor, do descrente e da dúvida que não aparece em
nenhum momento durante a arguição de Maria de Araújo.

3.2. Santidade ou soberba?

[...] sucedeu que benzendo ela mesma um pouco de vinho que lhe fora
ministrado por ocasião de se sentir muito enfraquecida, converteu-se o dito
vinho em sangue o qual ela só bebeu por obediência ao seu confessor;
reproduzindo-se fato semelhante ao tomar ela pouco de leite e algum chá que
lhe era dado como medicina tudo isto declarava Nosso Senhor ser como uma
preparação para maiores graças de futuro. 283

Ao tomar a liberdade de benzer o seu próprio vinho, Maria de Araújo invade um


território que fere a hierarquia: ela se autoriza a executar uma função permitida somente aos
clérigos. O mais surpreendente é que a Comissão aceita esse tipo de narrativa, ao invés de
questionar e duvidar. Por isso, pensamos que a narrativa de Maria, tão erudita e, por vezes,

282
CPR/CRA 01,06: Carta de Monsenhor Francisco R. Monteiro a D. Joaquim J. Vieira em 20.04.1890.
283
Auto de perguntas a Maria de Araújo em 09.09.1891 in “Cópia autêntica”, p. 14.
137
soberba, só pôde funcionar por ter sido “aceita” pela Comissão, seduzida pela possibilidade
do milagre.
Ora, se por um lado, conjeturamos que Maria se reconhece atuante neste território da
mística, por outro lado, é incrível que suas declarações tenham sido tão facilmente aceitas
pela Comissão, que pelo contexto da época deveria, antes de tudo, duvidar da veracidade
daquelas narrativas. Essa fácil aceitação denuncia, talvez, um problema de má formação
desses sacerdotes, tão propensos a acreditar em um milagre que se “esqueceram” de agir
como inquisidores.
Casos até mais simples que o de Maria, já tinham sido severamente punidos pela
Igreja católica, cujos inquisidores de finais do século XVII, por exemplo, já consideravam
essas narrativas como delírios “totalmente alheios ao universo característico da santidade; em
seus pronunciamentos e opiniões [os inquisidores] ressaltam a ausência de humildade e
excesso de soberba das rés” (Souza, 1993:109).
Quem acabou assumindo esse papel de “advogado do diabo”, função que deveria ter
sido exercida pelo Delegado da Comissão, foi o bispo Dom Joaquim Arcoverde (1850-1930),
amigo de D. Joaquim. 284 Ao que parece, o bispo cearense escrevia regularmente ao colega
narrando o andamento do inquérito, pois pelas cartas de Arcoverde notamos que ele estava
muito bem informado de tudo o que acontecia em Juazeiro.
Em carta de 25 de outubro de 1891, portanto com a Comissão ainda em Juazeiro, o
bispo pernambucano cogita a hipótese dos sacerdotes da primeira Comissão terem sido
“mistificados” pelas artimanhas de Maria de Araújo, e mais, que o padre Cícero era o
responsável pelo comportamento da beata, sendo seu “hipnotizador ou um magnetizador” e
Maria de Araújo uma “médium que age sob influxo do Padre ou sob sua sugestão com
intervenção do demônio para produzir as ilusões e maravilhas que sabemos”.285
A correspondência trocada entre esses dois bispos é riquíssima, pois eles discutiram
acerca dos efeitos e consequências da popularidade dos fenômenos ocorridos em Juazeiro. D.
Arcoverde irá inclusive criticar a postura do bispo, considerada passiva diante dos eventos
que deveriam ser cortados pela raiz. Para Dom Arcoverde se tratariam de artimanhas
diabólicas:

284
Dom Arcoverde era somente seis anos mais velho que Dom Joaquim, mas já tinha passado pelo bispado de
Goiás, sendo depois enviado para Recife aonde foi diretor do Colégio Pernambucano e, antes disso, já havia
sido indicado para o cargo de bispo auxiliar na Bahia, cargo que recusou.
285
CPR/CRA: 05,02. Carta de D. Joaquim Arcoverde a D. Joaquim Vieira de 25.10.1891.
138
Não há nada ali de sério, Senhor Bispo [Dom Joaquim], a tal crucifixão da
Araújo, a transudação de sangue, e tudo o mais que ela apresenta não passa
de um derivativo diabólico [...] o caso não é de consulta; é um escândalo que
convém remover ou destruir, e nada mais. Desde que o ridículo tem parte
nos fenômenos do Juazeiro, não precisamos de outro critério para afirmar
com certeza que eles não são de origem divina, que não são miraculosos, por
mais surpreendentes e maravilhosos que sejam. 286

Como não possuímos as cartas de D. Joaquim, só podemos conjeturar sobre a opinião


dele a partir das cartas de D. Arcoverde. É possível saber, pois, que o bispo cearense não
gostara do tom de repreensão do seu colega e, muito menos, da sugestão de serem os
fenômenos de Juazeiro de natureza diabólica:

É bem certo o que pondera V. Excia.: ‘quem vê as coisas de longe


contempla-as in abstrato, sem conhecer as circunstâncias peculiares que as
rodeiam, forma um juízo demasiadamente severo’, [...] parecia-me ver que
foi fraca a ação episcopal ao começo dos factos, mas a carta de V. Exa. veio-
me esclarecer completamente sobre isso [...].287

A explicação mais plausível para Dom Arcoverde era que o Diabo se utilizava das
mulheres, facilmente ludibriadas, para provocar um cisma dentro da Igreja. No entendimento
dele, a representação contínua dos fenômenos denotava a influência diabólica, uma vez que
Deus não necessitava utilizar de artifícios ou “coisa originalíssima” como aquela para manter
os fiéis. Além do mais, o bispo de Pernambuco discordava de Dom Joaquim em um dos
principais pontos da questão. Para ele não se tratava nem de milagre, nem de embuste:

Mas qual a origem dos tais fenômenos? V. Exa. responde que não procedem
do demônio, e implicitamente determinava origem, isto é, que são mero
embuste da Araújo! Aqui discordamos. Porque se considerarmos o complexo
dos fenômenos encontramos caracteres tais que não os podemos explicar
pelos agentes puramente naturais. Quer dizer que Maria de Araújo seria
incapaz de produzi-los por si só sem intervenção de uma causa preternatural
[estranha, sobrenatural]. Nem se diga que um Anjo poderia ser o agente.
Neste caso era Deus operando ministerio angelorum, era sempre Deus o
autor mental de tais fenômenos, o que não podemos admitir pelo ridículo das
exibições do Juazeiro.288

286
CPR/CRA: 05,03. Carta de D. Joaquim Arcoverde a D. Joaquim Vieira de 27.11.1891.
287
DHDPG/CRA: 03,05. Carta de D. Joaquim Arcoverde a D. Joaquim Vieira de 13.01.1892.
288
DHDPG/CRB 03,14: Carta de D. Joaquim Arcoverde a D. Joaquim Vieira de 28.04.1892. Grifo no original.
139
Arcoverde chama atenção para a tibieza de D. Joaquim: quanto mais demorava em
intervir, mais expunha sua fraqueza. Por que ele não acabou logo com a história, dando um
“veredito” duro e direto como faria o bispo pernambucano? É possível pensar que ele chegou
a considerar a veracidade dos fenômenos? Se ele tinha tanta certeza de que os fenômenos
eram embustes, por que investigou tanto, deixando o caso crescer e fugir do seu controle?
Dom Arcoverde dizia ainda que tinha visto um artigo no jornal de Portugal, A Palavra
do Porto, no qual o autor se mostrava muito favorável ao bispo cearense, mas também muito
judicioso, pois afirmava que D. Joaquim havia dito que “esses fatos não eram de Deus nem do
demônio”. Para D. Arcoverde, essa era uma proposição arriscada, pois não se poderia dizer ter
sido “ilusões” as “celebérrimas e estupendas comunhões dos Padres da memorável
Comissão”!289 O caráter diabólico era reforçado, assim, pela irresistível sedução de que foram
vítimas os padres da Comissão que aceitavam comungar das mãos das mulheres e beber vinho
abençoado por Maria de Araújo.
Não obstante, a associação da mulher ao diabólico não era inédita. Jean Delumeau
lembra que no começo da Idade Moderna a mulher foi identificada como um “poderoso
agente de Satã” (2009:462). No século XVII, por exemplo, frei Manuel do Santo Atanásio,
em um parecer da Mesa da Inquisição de Coimbra sobre os possíveis fenômenos
extraordinários da beata Maria da Cruz, dizia que “bastava ser mulher para ser mais
vulnerável às trapaças do demônio. […] Como o demônio conhecesse estas ‘qualidades
inatas’ do sexo feminino, era-lhe fácil ludibriá-las com astúcias e artimanhas” (Borges, 2005:
05).
Os autores do Malleus Malleficarum, por sua vez, diziam que “as mulheres são, por
natureza, mais impressionáveis e mais propensas a receberem a influência do espírito
descorporificado”, e explicando o motivo, ressaltaram:

[…] convém observar que houve uma falha na formação da primeira mulher,
por ter sido criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do
peito, cuja curvatura é, por assim dizer, contrária à retidão do homem. E
como, em virtude dessa falha, a mulher é um animal imperfeito […]
(Kramer; Sprenger, 2005: 115-116).

No Brasil colonial, o padre Antônio Vieira reforçava em seus sermões o quanto uma
mulher poderia ser perniciosa, enganadora, “a porta por onde entra o Diabo no homem” (apud

289
Idem.
140
Marques, 1993: 133). Neste sentido, não é de se admirar que o argumento de Dom Arcoverde
fizesse uma ligação direta entre a figura da mulher e do diabo.
Se através do corpo, Maria de Araújo construiu em torno de si uma imagem de
santidade, foi também através dele que se tornou em objeto de condenação. Arcoverde
ressalta em suas cartas, o aspecto grotesco dos exames realizados na beata pelos sacerdotes da
Comissão:
Houve santo, é verdade (S. Estenislau e outros) que alguma rara vez, e sem o
pedirem receberam a comunhão por ministério angélico ou divino; nunca,
porém, se leu andarem eles mostrando vaidosamente ao devoto público a
língua com a sagrada forma; isto é por demais grotesco, e bem revela a
origem espúria de tais milagres do Juazeiro. Santa nenhuma permitiu nunca
que mão de homem lhe chegasse ao rosto a pretexto de examinar
milagres!290

Essa era a postura crítica que se esperava da Comissão e da Diocese. Para Arcoverde,
a falta de humildade e a necessidade de se mostrar como uma favorecida das graças de Deus,
indicavam soberba, pouca seriedade das mulheres e o caráter “espúrio” dos pretensos milagres
que chegaram a gerar certa concorrência entre as mulheres que disputavam entre si as
atenções da Comissão. Alguns sacerdotes consultados por José Marrocos, ao longo do
processo, ratificavam as hipóteses aventadas por Arcoverde.
O padre João Chanavat (1840-1899), lazarista da Diocese de Mariana, em Minas
Gerais, afirmou “que todos os fenômenos extraordinários que se dão com esta mulher
pertencem à mística diabólica, e que Maria de Araújo ciente ou inconscientemente é
instrumento de operações diabólicas”. 291 No entanto, não se atreve a questionar a condução
de Dom Joaquim no caso. Outro padre, João Maria Mansero, que se correspondia com D.
Joaquim, afirmou que a leitura do relatório da Comissão, bem como as informações prestadas
pelo próprio Dom Joaquim só reforçaram “ainda mais a realidade da obra diabólica nos
acontecimentos do Juazeiro” e, completa:

A fascinação em que se achou envolvida a mesma comissão desde o


princípio do processo, até receber hóstia da mão da Beata julgando-as
consagradas, e recebe-las em comunhão não estando em jejum, aceitando
como preceito de Deus, superior no preceito da Igreja, as palavras de uma
mulher de cujos êxtases ilusórios devia-se ao menos duvidar, é o argumento

290
CPR/CRA 05,13: Carta de D. Joaquim Arcoverde a D. Joaquim J. Vieira em 24.10.1891.
291
CPR/CRA 02:33: Carta do Pe. João Chanavat a D. Joaquim Vieira em 30.11.1891.
141
mais palpável da ausência de qualquer casualidade divina, e por isso mesmo
da presença do espírito das trevas. 292

Um elemento intrigante nessa história é a facilidade com a que as pessoas tinham


acesso aos documentos do primeiro inquérito que a priori deveriam ser secretos. Faltava um
método mais rígido durante as arguições, as quais qualquer pessoa podia assistir. Assim, não é
de surpreender que os detalhes das transformações das hóstias e das narrativas das
testemunhas tenham se propagado rapidamente, contrariando quaisquer métodos de inquirição
da Igreja.
Se para Dom Joaquim não era conveniente que o fenômeno fosse milagre, tampouco o
era se fosse negócio do demônio, por isso a insistência na tese do embuste que acabou
prevalecendo. Entretanto, ainda durante a realização do inquérito, aventou-se outra
possibilidade: a de Maria ser epilética ou histérica.293 Não sabemos exatamente de onde partiu
essa suposição, mas ela foi considerada pela Comissão Episcopal, na medida em que eles
convocam uma equipe de peritos médicos para assistir aos interrogatórios e uma série de
experiências a serem feitas nas hóstias consagradas que sangravam na boca de Maria de
Araújo. A participação da equipe de peritos médicos foi fundamental para entendermos os
conceitos que estavam em voga naquele momento. Levamos em consideração também que
Dom Joaquim posteriormente incorporou a hipótese da doença, presente nas suas cartas após
o fechamento do primeiro inquérito.

292
CRB/DHDPG 03, 08: Carta do Pe. J. M. Mansero a D. Joaquim em 07.02.1892.
293
Essa tese foi posteriormente incorporada pelo próprio Dom Joaquim, como veremos mais adiante, na análise
das Cartas Pastorais deste bispo.
142
3.3 O corpo analisado: o “milagre” à luz da ciência

Perguntado mais, qual o motivo porque chamou o Médico Doutor Marcos


Rodrigues Madeira, na Quinta-feira Santa, dia vinte e seis de março do
corrente ano [1891], para examinar Maria de Araújo depois de haver esta
comungado. Respondeu que tendo-se dado, por várias vezes, durante o
tempo quaresmal deste ano, o fato da Sagrada partícula ter passado por
algumas transformações, quando se conservava ainda na língua da devota,
quis que um médico testemunhasse a reprodução de um tal fato que naquele
dia acabava de operar-se, afim de que o fato que tinham sido testemunhas
alguns sacerdotes e muitas outras pessoas de toda a condição fosse então
testemunhado por pessoa perita, como um médico e desta arte houvesse uma
prova mais robusta em favor da verdade do fato.294

[...] e sendo todos aí trataram os peritos de proceder ao exame na pessoa da


Beata que continuava no mesmo estado já descrito, verificando que em sua
fronte, mãos e pés não se divisava lesão ou talho algum, dando assim a
entender que tal fenômeno não se explicava como causa natural.295

Depois da romaria organizada pelo Monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro para


adoração ao Sangue Precioso que jorrava das hóstias de Maria de Araújo em julho de 1889,
outro acontecimento foi decisivo para provocar a ira de D. Joaquim contra os fenômenos e
contra a beata: a publicação de um atestado médico do Dr. Marcos Rodrigues Madeira, citado
acima, que não só descartava a hipótese da histeria como afirmava que os fenômenos tratavam
de “um fato sobrenatural para o qual não me foi possível encontrar explicação cientifica”.296
A primeira Comissão Episcopal anexou ao inquérito de 1891 uma série de termos de
verificação, pequenas atas que relatavam as experiências de observação do sangramento da
hóstia e dos estigmas de Maria de Araújo feitas pelos sacerdotes em conjunto com os
médicos. Esses termos são interessantes, justamente porque essas experiências buscavam
testar o possível caráter sobrenatural dos fenômenos e incluíam a interpretação da ciência para
um fenômeno, inicialmente, de caráter religioso e sobrenatural.
Os termos de verificação eram absolutamente descritivos, sem qualquer tipo de análise
ou parecer da Comissão. As experiências eram feitas em conjunto com a equipe de peritos,
dos quais resultaram os termos redigidos pelo secretário, o padre Antero e os atestados
individuais dos peritos. Foram feitos três tipos exames: 1) observação da transformação da

294
Exposição circunstanciada do Pe. Cícero R. Batista em 17.07.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 02.
295
Termo de verificação da segunda crucificação da beata Maria de Araújo em 14.09.1891, “Cópia autêntica...”,
p. 36.
296
Jornal O Cearense de 24 de abril de 1891, p. 2-3.
143
hóstia na boca da beata; 2) observação das crucificações e estigmas no corpo de Maria de
Araújo e, 3) exame de panos manchados de sangue ou que continham pedaços de carne ou de
partículas sagradas que não tinham se transformado totalmente.
A primeira verificação de transformação da hóstia foi feita em 10 de setembro de
1891 e a partícula foi ministrada quatro vezes a Maria de Araújo:

[...] mandou o Reverendo Comissário [Padre Clicério Lobo] já acima


nomeado que o Padre Cícero Romão Batista administrasse a comunhão à
Beata Maria de Araújo o que foi feito; dentro de dois minutos caiu a dita
Beata em estado de êxtases [...] até que só quando o Reverendo Comissário
mandou terminante e internamente em obediência a Jesus Cristo e a Santa
Igreja, que ela se despertasse e se ajoelhasse, realizou-se a completa
revogação do estado extático em que ela antes se achava. Desta vez, por
mais que se mandasse a Beata abrir a boca e estender a língua sobre os
lábios, não bem podia ela fazê-lo, notando-se certa contração que a isto
obstava; e quando instava-se ainda a abrir ela a boca e estender a língua para
assim se poder observar a transformação que por ventura se operasse, dava
ela sinal tanto por gestos, como de viva voz, que o não podia fazer em
consequência de estar a sagrada forma em movimento na sua boca.297

Impossibilitada de observar o sangramento porque a beata não conseguia abrir a boca


depois de consumir a hóstia, no mesmo dia, a Comissão decidiu esperar para ver se durante a
celebração da missa o fenômeno voltaria a ocorrer, sendo que desta segunda vez o próprio
padre Clicério ministrou a hóstia à beata. Ao receber a partícula das mãos do Delegado da
Comissão, Maria de Araújo entrou novamente em estado de êxtase e desta vez, o sangramento
da hóstia pôde ser observado pela Comissão:

[...] e em virtude da mesma obediência é que ela abria bem a boca e estendia
a língua sobre os lábios de modo que podia-se bem observar a sagrada hóstia
em via de transformação. Pouco a pouco se ia transformando a hóstia
consagrada divisando-se ao principio alguns glóbulos de sangue que foram
crescendo de ponto até que, mandando o Reverendo Padre Cícero que ela
deitasse a sagrada partícula numa salva guarnecida com um sanguíneo
distinguindo-se então melhor a transformação em parte, da mesma partícula
em sangue que foi pouco a pouco tomando mais cor. 298

Depois dessa segunda observação, a hóstia foi ministrada ainda uma terceira vez,
observando no máximo, um espaço de uma hora entre cada comunhão. Logo em seguida, era
extraída da boca da beata antes que fosse engolida junto com o sangue, a fim de que a

297
“Termo de verificação da primeira transformação da hóstia em 10.09.1891” in “Cópia autêntica...”, p. 10-11.
298
Idem.
144
Comissão e as testemunhas pudessem observar melhor a conversão que se dava cada vez mais
rapidamente, resultando também em um sangue mais claro e límpido.
Finalmente, pela quarta vez, a hóstia foi ministrada para que Maria de Araújo pudesse
comungar e notou-se que “em todas essas três vezes, tanto depois da extração das partículas,
como depois de ter ela verdadeiramente comungado, a boca e a língua conservavam-se
perfeitamente limpas, sem nenhum resquício de sangue”.299 Esta primeira ata de verificação,
com as quatro comunhões de Maria de Araújo, foi assinada pela Comissão, pelos padres
Cícero e José Jacome Pontes Rangel (s/d), da freguesia de Missão Nova e pelo vigário da
cidade do Icó, Manuel Francisco da Frota (1837-1927), além de outras vinte pessoas.
O procedimento era totalmente arbitrário e contrário às recomendações do bispo,
primeiro porque abusava do sacramento eucarístico, fazendo a beata comungar seguidamente,
e ainda, porque a Comissão que deveria trabalhar em segredo deixava qualquer pessoa
testemunhar as reuniões e interrogatórios.
No dia seguinte, 11 de setembro, mais uma vez, a Comissão reuniu diversos
observadores em torno da beata na expectativa da repetição das transformações do dia anterior
Nesta segunda verificação, a hóstia sangrou em três das quatro vezes que entrou em contato
com a língua de Maria de Araújo, “sendo ainda para notar-se que a língua da beata, apenas
deitava ela a hóstia sobre a salva, conservava-se, como todos atentamente testemunharam,
perfeitamente limpa convencendo-se assim todos de que aquele sangue não era o próprio
sangue da beata”.300
Na terceira verificação, em 12 de setembro, a beata comungou mais três vezes para
que a Comissão pudesse atestar não só a transformação da hóstia, mas também para que fosse
ratificado não haver ferimentos em sua boca que provocassem o sangramento.301 Em 24 de
setembro daquele ano foi feita a quarta verificação, desta vez com a participação de dois
médicos, os doutores Ignácio Dias e Marcos Madeira que passaram a acompanhar a Comissão
a partir de 14 de setembro, portanto, somente depois das três primeiras verificações.
Já em suas primeiras cartas ao bispo Dom Joaquim, o padre Clicério menciona a
participação dos médicos, ressaltando que partiu dele a iniciativa de convidá-los a fazer um
“memorial” sobre o que eles haviam presenciado.302 Provavelmente foi o padre Cícero quem

299
Idem.
300
“Termo de verificação da 2ª. transformação da hóstia” em 11.09.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 12.
301
“Termo de verificação da 3ª. transformação da hóstia” em 12.09.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 16.
302
DHDPG/CRB 04,49: Carta do Pe. Clicério da Costa Lobo a D. Joaquim Vieira em 13.09.1891.
145
sugeriu que os médicos fossem chamados, a fim de descartar a possibilidade do sangramento
ser causado por alguma enfermidade que porventura Maria de Araújo tivesse. É curiosa essa
liberdade de Clicério para convocar pessoas sem o bispo saber; estranhos ao serviço da Igreja
e participando da investigação, o que indica que o caso ia cada vez mais fugindo do controle
da Igreja e do bispo.
Convocados pelos padres Clicério e Antero, os dois primeiros médicos a integrarem a
Comissão foram os Doutores Marcos Madeira e Ignácio Dias, próximos ao padre Cícero e,
provavelmente os únicos médicos da região naquele momento. Assinaram um atestado em
conjunto descrevendo como o líquido que brotava da hóstia quando ela entrava em contato
com a língua de Maria de Araújo tinha cor, textura e cheiro de sangue verdadeiro.
Os peritos constataram ainda que, imediatamente depois de a partícula sanguinolenta
ser extraída da boca da beata, não era possível identificar mais nenhum vestígio de sangue. A
língua ficava “completamente limpa e sã, mesmo na pequena parte que pouco antes ocupava a
mesma partícula”, indicando que o sangue brotava da hóstia mesma e não da boca de Maria
de Araújo.303 Para ratificar essa hipótese, os médicos fizeram uma série de exames físicos na
beata, detendo-se principalmente nos pulmões, a fim de descartar a possibilidade de
tuberculose que poderia provocar os sangramentos através dos escarros. É daí que surgem as
principais descrições sobre a saúde de Maria de Araújo.
Uma das perguntas feitas às testemunhas do 1o inquérito era se Maria de Araújo tinha
“compleição forte ou fraca?”, justamente para analisar através de um histórico da saúde se ela
era forte o suficiente para aguentar tantos sangramentos seguidos. O padre Cícero respondeu
que a beata tinha “compleição fraca e é doentia tendo ainda em menor idade uma enfermidade
qualificada espasmo, ficando sujeita, desde então, a sofrer por vezes de ataques nervosos que
a prostravam até o ponto de perder os sentidos”, no entanto, ele se contradiz mais adiante:
“Perguntado mais se lhe constava sofrer alguma outra enfermidade a dita senhora. Respondeu
que ela sofre algumas ligeiras perturbações de estomago, conservando apesar disso, bastante
força tanto que pode, sem sacrifício maior ir do Juazeiro à cidade do Crato”.304
O padre Quintino Rodrigues, professor do Seminário São José no Crato, ressaltava que
Maria de Araújo era “de compleição franzina e até 1889 (segundo o que ouvi dizer) sofria uns

303
“Atestados e Relatórios Médicos dos Doutores Ignácio de Souza Dias e Marcos Rodrigues Madeira” em
26.09.1891 in “Anexos: Cópia autêntica...”, p. 57.
304
Exposição circunstanciada do Pe. Cícero R. Batista em 17.07.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 02.
146
ataques que qualificam de epiléticos, os quais a deitavam por terra e tiravam-lhe o uso dos
sentidos, não sei por quanto tempo”.305
Uma observação recorrente é que Maria sofria de incômodos do estômago. Esse mal é
citado nos depoimentos dos padres Cícero, Francisco Monteiro e Quintino Rodrigues. De
modo geral, as testemunhas afirmam que Maria de Araújo tinha um antigo histórico de
doenças que a deixavam fraca, e, portanto, seria impossível que ela derramasse tal quantidade
de sangue sem o risco de agravar mais ainda o seu estado. Para os médicos, se o sangue não
era de Jesus Cristo, como dizia o bispo, também não poderia ser da beata.
Eles se dedicaram, então, a fazer um exame completo, até onde fosse possível, do
corpo da beata e não detectaram nenhum tipo de tumor ou lesão no tórax, garganta ou boca,
como afirmam no atestado assinado pelo Dr. Marcos Madeira e Dr. Ignácio Dias:

Não podemos atribuir este sangue a uma lesão de laringe ou de pulmão por
isto que estes fatos se reproduzem há três anos e ela não tem sofrido na sua
constituição e temperamento, além de que não tem ela a menor tosse, febres
e pelo exame que fizemos, não encontramos indícios de uma lesão interna,
que pudesse ser a origem de tais hemorragias. 306

Não satisfeitos, os médicos, fizeram com que a beata gargarejasse uma solução de
percloreto de ferro307, substância com propriedades coagulantes e vasoconstritoras, capaz de
provocar um aumento da pressão sanguínea ao mesmo tempo em que impediria qualquer tipo
de sangramento:
[...] feito o gargarejo diversas vezes com poção de perclorureto de ferro, não
devia se reproduzir [o sangramento], e quando isso se desse o sangue seria
de uma cor negra o que não se deu, ao contrário, fez o sangue aparecido
mais rubro do que os outros anteriormente observados. 308

O sangue rubro e límpido brotava diretamente da pele da beata, mas não deixava
vestígios, marcas de ferimentos ou lesões, o que para os médicos descartaria a possibilidade
de histerismo, uma vez que “Maria de Araújo não tem convulsões de natureza alguma, não

305
Depoimento de Quintino Rodrigues de Oliveira e Silva em 25.09.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 40
306
“Atestados e Relatórios Médicos dos Doutores Ignácio de Souza Dias e Marcos Rodrigues Madeira” em
26.09.1891 in “Anexos: Cópia autêntica...”, p. 57- 58.
307
Segundo Chernoviz: “O perclorureto ou percloreto de ferro tem: “Composição roxa-avermelhada [...] [e]
emprega-se sobretudo externamente para atalhar hemorragias” (1890: 1152]. O percloreto de ferro é uma
substância altamente corrosiva que ataca metais ferrosos e inibe hemorragias. Hoje, seu uso é proibido na
indústria farmacêutica, mas ainda é usado na indústria mecânica.
308
“Atestados e Relatórios Médicos dos Doutores Ignácio de Souza Dias e Marcos Rodrigues Madeira” em
26.09.1891 in “Anexos: Cópia autêntica...”, p. 58.
147
tem alteração ou mudança de caráter em seu trato, e tem muito regular o fluxo catamenial
[menstruação], não tem outras perturbações nervosas que possam fazer crer ser ela uma
histérica”. 309
As observações sobre o fluxo menstrual de Maria de Araújo eram importantes por
haver na tradição mística relatos sobre estigmatizadas que paravam de menstruar, como se
todo o fluxo de sangue fosse movido para os estigmas causando a cessão das regras (Gélis in
Corbin, 2008: 70). Os dados obviamente eram obtidos através da própria Maria de Araújo,
visto que as convenções da época impediam que um médico examinasse inteiramente o corpo
de uma paciente.
Além disso, eles foram desconstruindo, ainda que não intencionalmente, o quadro de
possíveis doenças que Maria pudesse ter. Entre elas, havia a suspeita de que ela sofresse de
ataques nervosos ou epilépticos. O próprio padre Cícero já havia afirmado que a beata
costumava, desde menina, apresentar:

[…] ataques nervosos que a prostravam até o ponto de perder os sentidos.


Esse estado mórbido começou desde menina e continuou com maior ou
menor intermitência até o ano de mil oitocentos e oitenta e nove, quando
começaram a se manifestar nela alguns factos extraordinários havidos por
muitos como maravilhosos. - Perguntado se Maria de Araújo alimenta-se
regularmente. Respondeu que ela alimenta-se muito parcamente.310

Naquele contexto a doença chamada de espasmo era usada para designar muitas
coisas: ataques nervosos, ataques epilépticos, convulsões etc.. Em meados do século XIX, o
médico Pedro Luiz Napoleão Chernoviz311 publicou no Brasil o seu Dicionário de Medicina
Popular, de onde destacamos algumas definições úteis para entendermos a questão da doença
naquele contexto:

309
Idem.
310
Depoimento do Pe. Cícero R. Batista em 17.07.1891 in “Cópia autêntica”, p. 02.
311
Nascido na Polônia com o nome de Piotr Czerniewicz, nasceu em 11 de setembro de 1812 e faleceu em 31 de
agosto de 1882. Em 1830 pediu asilo político na França depois de envolver-se em um levante contra o
domínio russo, em seu país. Em meados do século veio para o Brasil e estabeleceu-se como médico e editor.
O seu Dicionário logo caiu nas graças da pequena comunidade médica brasileira e foi considerado uma das
mais importntes publicações na área. Obviamente, não há certeza que os médicos que integravam a Comissão
Episcopal utilizaram esse dicionário, mas ele serve de referência para uma noção sobre os conceitos em voga
na época. Ver: Guimarães, Maria Regina Cotrim. Chernoviz e os manuais de medicina popular no Império.
História, Ciências, Saúde-Manguinhos. V. 12, n. 2, p. 501-14, mai-ago, 2005.
148
- ATAQUE DE NERVOS: Com este nome se designa uma moléstia nervosa, produzida
ordinariamente por um susto, um pezar profundo ou alguma outra paixão violenta, e
caracterizada por movimentos gerais do corpo, ou por uma suspensão incompleta das
faculdades intellectuaes. Dá sobretudo nas mulheres (Chernoviz, 1890 [1846]: 240);

- CONVULSÕES: Entende-se, geralmente, por convulsões, todo estremecimento ou contracção


violenta, alternativa e involuntária dos músculos, que habitualmente não se contrahem senão
sob influência da vontade. As convulsões não são mais que um symptoma ou indicio de uma
moléstia; dependem sempre da irritação de alguma parte do systema nervoso (Idem, 693-694).

- ESCARRO DE SANGUE: É designada em medicina, pelo nome de hemoptyse; [...] as mulheres


são mais sujeitas à ella que os homens, e a razão d’esta maior disposição das pessoas do sexo
feminino às hemoptyses é a frequência das desordens de menstruação de que padecem. [...] É
às vezes, difícil reconhecer a procedência do sangue que tinge alguns escarros; pois que ele
pode vir da boca, a garganta e do nariz, mas este sangue nunca é vermelho, escumoso, nem
intimamente misturado com mucosidades (Idem, 1009-1010).

- EPILEPSIA: Moléstia nervosa que se manifesta por ataques, mais ou menos aproximados,
com movimentos convulsivos, perda dos sentidos e escuma na boca. [...] As crianças e as
mulheres são mais frequentemente affectadas de epilepsia. [...] O susto é sua causa mais
frequente, e sobretudo durante a época da menstruação. A cólera, o pezar, e as emocções
moraes muito fortes, tem influencia em seu apparecimento (Idem, 992).

- ESPASMO: Contracção involuntárias dos músculos, principalmente dos que não obedecem à
vontade, taes são do estomago, dos intestinos, da urethra, etc. Precede frequentemente a
convulsão, mas também pode existir sem ela. Além d’isto, o sentido da palavra espasmo é
mui vago (Idem, 1128).

Como vemos, essas enfermidades têm sintomas muito próximos, quase todos
atribuídos a anomalias nervosas e com maior ocorrência em mulheres. Todos eles foram
citados em algum momento, pelo bispo ou por outros sacerdotes, como uma possível causa
dos “ataques” e “pseudo-êxtases” de Maria de Araújo.

149
Apesar das dificuldades encontradas nos exames, os doutores Marcos Madeira e
Ignácio Dias eliminaram do quadro clínico de Maria de Araújo os sintomas relacionados à
histeria:

[...] se estas hemorragias parciais fossem ligadas ao histerismo, não


deixariam elas vestígios de sua passagem? Se fossem ligadas ao histerismo
não se reproduziriam em seguida aos meios hemostáticos por nós
empregados, como água fria e poção de perclorureto de ferro na água fria?
Se se tratasse ainda de um histerismo em grau exagerado a ponto de poder
produzir todas essas desordens teriam ela inevitavelmente além de outros
sintomas, que não apresentou, a insensibilidade da faringe. Entretanto ficou
bem provado e verificado pelo exame que procedemos que ela acusa muita
sensibilidade para a faringe. Pelo que temos observado e exposto excluímos
também a ideia de histerismo. 312

Na segunda metade do século XIX, as discussões sobre a histeria feminina estavam no


auge e preocupavam tanto a Comissão Episcopal como os médicos, uma vez que uma das
principais acusações contra Maria de Araújo partia da hipótese de que ela era epiléptica ou
histérica. É interessante notar que uma das perguntas principais que o padre Clicério fazia às
testemunhas era sobre a saúde de Maria de Araújo e, após o primeiro inquérito, o bispo Dom
Joaquim incorpora esse argumento.
Os doutores Marcos Madeira e Ignácio Rodrigues encerraram o atestado afirmando
que diante da impossibilidade de se encontrar “uma explicação científica satisfatória somos
levados a crer que os fatos que se tem reproduzido na beata Maria de Araújo são
sobrenaturais”. 313
A presença dos médicos junto à Comissão eclesiástica foi importante porque conferiu
relevância aos eventos, uma vez que usando um discurso científico atestaram os fenômenos
ocorridos com Maria de Araújo como sobrenaturais, mesmo que para a Diocese tenha sido
uma interferência muito inconveniente.
O que surpreende, entretanto, é a falta de debate entre a Comissão Episcopal e os
peritos médicos. A Comissão atuava ao lado dos médicos, ministrando a comunhão e
despertando Maria de Araújo dos êxtases nos quais ela mergulhava quando recebia a hóstia
consagrada, por outro lado, não era permitido aos peritos tocar nas partículas, a não ser depois
das transformações, o que denunciava a tênue fronteira que se estabelecia entre a religião e a

312
“Atestados e Relatórios Médicos dos Doutores Ignácio de Souza Dias e Marcos Rodrigues Madeira” em
26.09.1891 in “Anexos: Cópia autêntica...”, p. 58.
313
Idem.
150
ciência. No entanto, nem o padre Clicério em seu Relatório final, nem os médicos em seus
atestados, deixam entrever qualquer tipo de discussão ou análise entre os dois grupos.
Outro perito é incorporado à Comissão em 24 de setembro, o farmacêutico Joaquim
Secundo Chaves, que já havia publicado um atestado sobre a sua primeira observação do
sangramento da hóstia314 e em 24 de setembro se juntou à equipe de peritos para observar a
segunda crucificação da beata narrada acima. Seu atestado, datado de 7 de outubro de 1891,
apresentava desde o início uma tendência a acreditar que a transformação da hóstia na boca de
Maria de Araújo era um fato sobrenatural:

Foi assim, que na Casa de Caridade do Crato, no dia 24 de Setembro último,


perante um numerosíssimo concurso de gente de toda posição, idade e
condição, vi mais uma vez a transformação da sagrada forma em sangue por
ocasião da comunhão da mesma Maria de Araújo, e meia hora depois
presenciei também a sua crucificação e estigmatização tal e qual se lê na
vida de Anna Catharina de Emmerich. Nessa ocasião achavam-se também
presentes comigo os doutores em medicina Ignácio de Sousa Dias e Marcos
Rodrigues Madeira que examinaram com toda a atenção o estado dela antes
da comunhão, no ato e depois, sem encontrarem um indicio ou vestígio de
hipnotismo, de histerismo ou de qualquer outra causa que pudesse produzir o
maravilhoso efeito, que todos presenciamos.315

Do mesmo modo, as chagas ou estigmas que Maria de Araújo costumava


manifestar não deixavam nenhum tipo de marca ou talho na pele, quando cessavam de
sangrar. Ao comparar a crucificação de Maria de Araújo com a de Anna Catharina de
Emmerich (1774-1824), uma freira agostiniana alemã que no inicio do século XIX ficou
famosa por suas estigmatizações, o farmacêutico deixa subtendido a crença de que estas
manifestações são sobrenaturais e divinas, além disso, afirmava ele, diante das condições
em que se davam os fenômenos “esse fato sobrenatural não era devido (como alguém
escreveu em um jornal do Ceará) à sugestão hipnótica do Reverendo Padre Cícero Romão
[...], pois que reproduziu-se diversas vezes, ministrando-lhe a comunhão outros sacerdotes

314
“Joaquim Secundo Chaves, T. Coronel reformado do Batalhão n° 13 da G.N. de reserva, e pharmaceutico
estabelecido nesta cidade do Crato, por nomeação legal && [...] Confesso que fiquei maravilhado porque
notei desde a base, até a parte media da língua, tudo limpo de sangue, somente o vi no logar aonde estava a
sagrada forma. [...]Nessa ocasião achava-se presente grande número de cidadãos notáveis de diferentes
logares, inclusive o Vigario da freguesia do Triumpho. O que attesto é verdade, e jurarei si preciso for.”
Folheto “Os Milagres do Joaseiro” Crato, Typografia da Vanguarda, 1891. 36 páginas, anexo. Rerum
Variarum 1898/128. Vol. II, Doc. 31. ACDF. Grifos no original.
315
“Memorial do farmacêutico Joaquim Secundo Chaves” em 07.10.1891 in “Anexos: Cópia autêntica...”, p. 59.
151
de vários lugares e de diferentes Dioceses”.316
Outro médico, Dr. Idelfonso Correia317 também passou a integrar o grupo de peritos
em setembro daquele ano, mas não pudemos identificar ao certo quando ele começou a
observar os fenômenos, nem por quem foi chamado. A frouxidão da Comissão diante dos
observadores fica mais patente conforme avançamos na leitura do inquérito, onde parece que
qualquer pessoa podia se apresentar, observar e opinar livremente sobre os fenômenos.
Em seu atestado, de 13 de outubro de 1891, o Dr. Idelfonso explorou o tema da
histeria, citando as teorias de Jean-Martin Charcot (1825-1893) e Henri Legrand du Saulle
(1830-1886).318 Predominavam duas interpretações sobre essa patologia: a primeira tese
defendia que a origem estaria nos órgãos reprodutores femininos; a segunda endossava a ideia
de que a histeria teria origem em disfunções do sistema nervoso, ou seja, sua causa era
neurológica (Nunes, 2010: 374).
A noção de histeria (do francês, hystérie com origem no termo grego hystericos,
matriz ou útero) surgiu no século IV, com Hipócrates, o qual afirmava que a histeria era uma
doença exclusivamente feminina derivada da ausência de relações sexuais. Essa noção
atravessa toda a Antiguidade e durante a Idade Média foi identificada com a possessão
diabólica e com a bruxaria.
Em 1850, Paul Briquet (1766-1881) em seu Traité clinique et thérapeutique de
l’hystérie, definia a histeria como “uma neurose do encéfalo cujos fenômenos aparentes
consistem principalmente na perturbação dos atos vitais que servem à manifestação das
sensações afetivas e das paixões” (Fulgêncio, 2002: 32).
Já em meados do século XIX, Charcot buscava mostrar que a doença não tinha relação
com desejos sexuais frustrados ou com alterações uterinas como alegavam as teorias antigas

316
Idem, p. 58.
317
Natural de Lavras da Mangabeira, nasceu em 7 de julho de 1860 e faleceu em 28 de fevereiro de 1911.
Estudou medicina na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, formando-se em 1855 e atuou na política
cearense em dois pleitos, como Deputado Provincial no biênio de 1886 a 1887 e como Deputado Estadual
entre 1892 a 1893. É considerado uma das grandes personalidades cearenses do século XIX. Ver: Studart,
Guilherme. Diccionario Bio-bibliographico Cearense. Fortaleza, Impresso pela Typo-lithographia A Vapor,
1910.
318
O primeiro foi aluno de Sigmund Freud e é considerado o fundador da moderna neurologia. Suas maiores
contribuições para o conhecimento das doenças do cérebro foram a descoberta do aneurisma cerebral e das
causas da hemorragia cerebral. O segundo, Du Saulle, se destacou pelos estudos sobre a agorafobia, o “medo
dos espaços”. Ambos deram grandes contribuições à história da psiquiatria e psicopatologia. Ver: Pereira,
Mario Eduardo Costa. (1999). C‟est toujours la même chose: Charcot e a descrição do grande ataque
histérico. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, II (3), pp.159-165; Rodrigues, Thais
Guimarães; Pereira, Mário Eduardo Costa. Legrand du Saulle: da agorafobia ao medo dos espaços. Rev.
latinoam. psicopatol. fundam., Jun 2011, vol.14, no.2, p.309-317.
152
sobre os comportamentos femininos tidos como anômalos. A partir de seus estudos a histeria
passou a ser vista como uma psicopatologia que consistia em uma alteração física relacionada
à falta de sensibilidade (anestesia e analgesia) ou à extrema sensibilidade (alfagesia e
hiperestesia) em partes do corpo, em outras palavras, a doença teria fundo nervoso e não
sexual. Sua sintomatologia provocava reações diversas que variavam desde o completo
alheamento e paralisia a convulsões, contrações, tiques e dores agudas para as quais não se
encontrava uma causa orgânica (Fulgêncio, 2002: 33).
O Dicionário de Chernoviz, também de acordo com as tendências da época, definia
histeria como “uma moléstia de todo o systema nervoso”, no entanto, afirmava em seguida:

A hysteria é uma afecção hereditária, seja directamente, seja por


transformação. Ella acommette muito mais as mulheres do que os homens
[...] ella pode então por contágio nervoso grassar de um modo epidêmico, em
um convento, em uma casa de educação como outrora as epidemias de
demoníacos da Idade Média que devem ser consideradas como epidemias de
pura hysteria (Chernoviz, 1890 [1846]: 187]

Dr. Idelfonso também se manifestou sobre a possibilidade de uma sugestão hipnótica


estimulada pelo padre Cícero. No entanto, sua narrativa mais pretendeu mostrar a
incapacidade da beata entender uma sugestão hipnótica do que propriamente defender o
aspecto sobrenatural dos eventos:

Sabe-se hoje, por numerosas experiências, que pode-se produzir, por


sugestão, além de outros fenômenos que não veem ao caso, hemorragias
locais nos histéricos hipnotizados. A convicção produzida então pela
sugestão é o único taumaturgo em ação. Mas para que a sugestão produza
aqui esse grande taumaturgo é indispensável, como primeira condição que
seja feita em termos claros de sorte que a hipnotizada compreenda, porque é
evidente que se ela não entender o que se lhe diz também nada acreditara, e,
pois nenhum efeito se obterá. Ora, se assim é, como explicar que a beata,
mulher ignorante e sem aprendizagem, pudesse compreender que comungar
na chaga direita de Nosso Senhor Jesus Cristo equivalia a esta sugestão: eu
te ordeno de sangrares, neste momento, pelos lábios? [...] Como uma mulher
ignorante e sem aprendizagem de ofício, podia elevar-se deste modo acima
das condições da natureza? [...] Mas, como a beata podia prever, a menos
que não tivesse a faculdade de ler no meu espirito, que [eu] ia exigir o
aparecimento de hóstia? 319

319
O Dr. Idelfonso foi um pouco mais longe que os outros peritos e fez em seu atestado uma comparação entre
os limites de sua crença na ciência e seus deveres como bom cristão: “Só assim creio respeitar a lógica e o
bom senso na procura das causas dos fatos e não ofender a fé e a moral, embora passe por espírito fraco por
não estarem essas minhas ideias muito ao sabor da época e não abraçar as belas teorias materialistas de
153
Partindo do pressuposto de que a beata não teria capacidade de aprender ou entender
sinais previamente combinados com o padre Cícero, capazes de alertá-la sobre a necessidade
de prover o embuste, o Dr. Ildefonso alegou, de modo simplista até, que só por modo
sobrenatural o referido sangramento podia se dar. E em tom que procura evitar o
comprometimento, diz:

Em conclusão, penso que os fatos narrados não podendo todos ser


explicados pelo histerismo isolado, porque trata-se de uma mulher, cujo
estado de crise observado não podia confundir-se com ataque histérico, e
cujo estado permanente de ordem mental e orgânica, já pelas informações de
pessoas de fé, já pela falta de paralisias orgânicas e funcionais, autoriza a
crer que não estamos em presença de histerismo confirmado; nem tão pouco
pelo hipnotismo isolado ou combinado, pela ausência de causas suficientes;
e nesse finalmente por outro agente natural, penso, repito, que ou negamos
os fatos ou admitimos um agente inteligente e oculto que represente de
causa.320

No entanto, apesar de assumir não encontrar uma explicação científica para os


fenômenos, mas “um agente inteligente e oculto”, o Dr. Idelfonso não diz expressamente ser o
sangramento ou as crucificações objeto de uma ação divina, portanto, ele não assume a
ocorrência de um “milagre” e conclui: “Não hesitarei na qualidade de católico de acreditar,
não digo igualmente de afirmar, que tal fato é de origem divina, até que a autoridade
instituída por Deus decida doutrinalmente o contrário”. 321
O Dr. Idelfonso segue, assim, na contramão da maioria dos observadores da equipe de
médicos, que concluíam que por ser sobrenatural o fenômeno era divino, independentemente
da opinião do bispo. O Dr. Marcos Madeira interpreta em tom sarcástico a decisão do colega,
em uma clara defesa do milagre:

Admirei-me grandemente do procedimento destes dois colegas e


principalmente do Dr. Ildefonso que por aqui andou muito beatinho,
recebendo bentinhos, confessando-se e batendo nos peitos a toda hora na
Igreja do Juazeiro. [...] No fim de alguns dias de estada do Ildefonso no

Dubois Raymond, e as belas lições de Charcot e Legrand du Saulle, meus mestres respeitáveis em medicina,
mas não em filosofia e religião. A questão é, pois, mais seria do que a primeira vista se supõe porque importa
a nós católicos saber se estamos em presença de fenômenos, explicáveis pelo hipnotismo e pelo histerismo,
ou se as fronteiras dessas nevroses foram transpostas para darem lugar ao sobrenatural [...]”. Cópia autêntica
dos escritos do Dr. Idelfonso Correia de Lima em 13.10.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 61-62.
320
Idem, p. 63.
321
Idem, grifos nossos.
154
Juazeiro, sabendo eu aqui, que todos os dias ali se dava o fato da
transformação da partícula em sangue, dirigi-me para lá e procurei o Dr.
Ildefonso com quem tive uma conferência particular sobre o assunto e achei-
o completamente crédulo. Perguntei-lhe se já tinha atestado o fato,
respondeu-me do seguinte modo: “Não atestei e nem pretendo atestar este
fato, porque já você atestou-o, e também porque si eu fizer o mesmo os
incrédulos me acabam pelos jornais, como o Júlio Cezar está fazendo agora
com você” e contou-me então já ter lido um artigo do Júlio Cezar contra
mim no Jornal do Ceará “O Libertador” ao que eu lhe respondi, que eu não
temia a crítica desde que estivesse com a minha consciência tranquila; então
disse-me que só daria atestado se observasse algum fato diferente e
extraordinário que não se pudesse atribuir ao histerismo, pois estava
começando a sua carreira e não queria desmoralizar-se.322

Mas é possível conjeturar também que da parte de alguns dos envolvidos havia certo
receio de assumir os eventos como divinos pelo mesmo motivo que o Dr. Idelfonso dá em seu
atestado: como bom cristão há que se esperar a deliberação da Igreja sobre todo e qualquer
novo culto. Talvez por isso, uns poucos como os padres Joaquim Sother, Félix Arnaud e
Quintino Rodrigues e o próprio Dr. Idelfonso tenham mostrado cuidado ao afirmar a
sobrenaturalidade dos fatos. Cabe perguntar por que o padre Cícero e outros sacerdotes
ousaram desafiar essa premissa e tomar os fenômenos como divinos sem o aval da Igreja,
representada no Ceará pela autoridade maior do diocesano.
O terceiro item relacionado no inquérito dizia respeito aos termos de verificação das
caixas que continham os panos manchados de sangue, não há registro de exames feitos
diretamente neles e a descrição foi meramente quantitativa: “[Nas caixas] contendo diversos
panos ensanguentados, e foi verificado, perante diversas testemunhas de fé, acharem-se as
partículas, [...] transformadas perfeitamente em sangue, o qual, em muitas delas, apresenta a
forma de carne”.323 Foram encontrados ainda 124 sanguíneos324, 14 panos (pedaços de toalha,
em sua maioria), 13 corporais325, 5 lenços (um deles pertencente à própria beata e outros de
sacerdotes), 2 palas326, 2 murças327, 1 véu e 1 amito328. Todos ensanguentados e alguns

322
Carta de Dr. Marcos Rodrigues Madeira ao Pe. Francisco Ferreira Antero e, 14.11.1892. Rerum Variarum
1898/128. Vol. II, Doc. 24. ACDF. Grifos no original.
323
DHDPG/CRB 04,49: Carta do Pe. Clicério da Costa Lobo ao bispo Dom Joaquim José Vieira em 13.09.1891.
324
Pano branco, geralmente de linho, usado para fazer a purificação do cálice e das âmbulas.
325
Pano branco de linho, que serve de apoio à patena com a hóstia grande, o cálice com o vinho e as âmbulas
com as hóstias pequenas.
326
Pedaço de cartolina coberto com tecido em forma de quadrado e é utilizado para cobrir o cálice de vinho
durante a consagração da hóstia
327
É um pano preto usado pelas beatas para cobrir o pescoço e o colo. É posto embaixo do véu
328
É um tecido branco em forma de retângulo, com fitas em todas as pontas e uma cruz no meio. É atado ao
pescoço do sacerdote no momento da consagração da hóstia.
155
apresentando pedaços de partículas convertidas em carne.
Após todos esses exames e avaliações, o Delegado da Comissão, padre Clicério Lobo,
exara um parecer parcial e o envia à Fortaleza, para apreciação do bispo. É difícil avaliar se
esse relatório mostra despreparo ou demasiada ingenuidade. Mesmo considerando que o
objetivo da investigação era o sangramento da hóstia, na medida em que os depoimentos
foram avançando e outros tipos de “fenômenos extraordinários” apareceram, inclusive com
outras mulheres, por que a Comissão permaneceu inerte e não levou à análise mais a fundo,
questionando inclusive sobre o cotidiano e a vida pregressa daquelas mulheres? Outra questão
que se impõe é por que o bispo se recusou terminantemente a vir ao Juazeiro conhecer de
perto a beata e verificar os acontecimentos?
Os primeiros anos da República trouxeram um frontal questionamento do poder da
Igreja. Ainda em 1891 foi promulgada a nova Constituição, que limitava imensamente os
poderes políticos e civis da Igreja e havia ainda a pressão de Roma por uma reforma do Clero
brasileiro. No cerne de toda essa questão, está Maria de Araújo. Exposta à observação pública
e análises constantes, ela foi submetida a diversos juízos em um momento no qual a própria
Igreja se encontrava vulnerável.
A posição do bispo também é instável. É possível notar que, com o tempo, ele
incorpora o discurso da histeria como provável motivo da “epidemia” de fenômenos
extraordinários que acontecia no Juazeiro, reforçando a base “científica” e não a herética. É
importante ressaltar ainda que somente Maria de Araújo foi submetida a esses exames e
observações, inconclusivos em sua maioria posto que não resolvem a principal questão: a
origem do sangue. De quem era o sangue? Como ele foi produzido? Afinal, o fenômeno era
natural ou não? Para Maria de Araújo, e para a maioria dos sacerdotes que a acompanhavam,
aquele era o sangue de Cristo. Segundo a Decisão Interlocutória de Dom Joaquim não era,
nem podia ser.
Como veremos adiante, o Relatório final do padre Clicério não consegue convencer o
bispo, ao contrário, gera um desconforto imenso na comunidade católica daquele lugar. Maria
de Araújo é obrigada a internar-se na Casa de Caridade de Barbalha, distante cerca de 13km
de Juazeiro e um novo inquérito é solicitado.

156
3.4. As armadilhas da fé: o encerramento do primeiro inquérito

A última peça do primeiro inquérito é o relatório do Delegado Episcopal, o padre


Clicério Lobo, de 28 de novembro de 1891, no qual ele nos contou que algumas das beatas o
procuraram novamente e pediram para rever os depoimentos, pois alguns dados teriam sido
“esquecidos” ou haviam “escapado” de seus depoimentos. Segundo ele, a beata Maria da
Soledade pediu que fosse reforçado o pedido ao Santo Papa pela vinda de padres
Franciscanos, estes instituiriam o culto à Santíssima Trindade e ao Sangue Precioso no
Juazeiro.329 Ângela Merícia, por sua vez, contou ter sido levada outras vezes em espírito à
Capela do Juazeiro para adorar ali o Precioso Sangue:

Da primeira vez, Nosso Senhor disse-me que assim fazia diante de seus
servos para maior prova do que então dizia; da segunda vez disse-me que
ainda isso permitia, por muito grande ser o desejo que ele tinha de se fazer
conhecer, amar e adorar pelos homens. Dizei, portanto aos meus servos que
façam quanto estiver ao seu alcance, para que meu precioso sangue seja
conhecido, amado e adorado; que ao seu tempo lhes darei a recompensa
conforme a medida e os desejos de seus corações, pois os escolhi, como os
primeiros, para esta grande empresa, por que altos destinos tenho a seu
respeito. 330

Maria das Dores disse ter sido o próprio Cristo quem pediu para fazer o aditamento
dizendo: “Vê, filha, disse Nosso Senhor, como sofro por amor dos homens. Este sangue que,
como estas vendo, goteja do meu coração, é o mesmo que aparece aqui nas hóstias
consagradas. Diga isso ao Comissário do Bispo”.331 São esses relatos que levaram o Delegado
Episcopal a concluir que as beatas interrogadas eram mulheres incapazes de cometer um
embuste.
Neste sentido, a incoerência de Clicério é flagrante: primeiro diz que se abstém “de
qualquer apreciação sobre o merecimento do dito processo, por me parecer ser isso da
competência de outros” e depois passa a citar “depoimentos extras” de algumas beatas.332 Ele
ainda incluiu o relato do recebimento miraculoso de duas hóstias ensanguentadas que teriam
sido enviadas pelo próprio Jesus para que a Comissão comungasse:

329
Relatório do padre Clicério da Costa Lobo em 28.11.1891 in “Cópia autêntica”, p. 64.
330
Idem.
331
Idem.
332
Idem.
157
[...] achava-se a Beata Maria de Araújo na sacristia da Capela daquela Casa
[Casa de Caridade do Crato], fazendo a renovação de seus votos particulares,
sob a direção de Monsenhor Monteiro. [...] Era uma hora da tarde. Ali
chegando, vimos a Beata sentada numa cadeira de espaldar, em estado de
êxtase, como verificamos bem, e Monsenhor Monteiro genuflexo, tendo
entre os dedos de sua mão direita duas hóstias ensanguentadas, ali aparecidas
de surpresa e miraculosamente entre os dedos da mão da Beata, donde o
Monsenhor Monteiro as tomara. Maria de Araújo é então despertada por
Monsenhor Monteiro e mandando-se lhe dizer o que naquele estado de
êxtase lhe tinha sido revelado, ela disse assim: “Nosso Senhor mandou estas
partículas ensanguentadas para que os padres da Comissão vissem e
comungassem”. [...] Nessas circunstancias houve razão bem grave para que
tomássemos tais partículas por miraculosas-divinas, e as recebêssemos em
comunhão. 333

O comportamento do padre Clicério é absolutamente contraditório e confuso. Primeiro


diz que não pode emitir um parecer sobre a causa; em seguida, apresenta diversos trechos de
depoimentos de várias beatas, inclusive o relato de uma manifestação de Maria de Araújo,
como vimos acima, na qual ele comunga a hóstia dada pela beata sem fazer nenhum
questionamento sobre a origem das partículas, e logo em seguida, qualifica-as de
“miraculosas-divinas”!
Aqui o Delegado manifesta um juízo de valor que vai contraria a prerrogativa comum
aos inquisidores que é a da desconfiança. Depois de incluir os últimos relatos colhidos,
finalmente, o padre Clicério diz:

Em abono da verdade sou obrigado a declarar aqui, querendo cumprir o


juramento que prestei de ser fiel à missão que me foi confiada que todo
aquele que bem estudar o espirito de Maria de Araújo, como também o de
Antônia Maria da Conceição, como procurámos fazê-lo, já ouvindo a seus
diretores espirituais, já as pessoas que as conhecem bem de perto, excluirá
toda a ideia de artimanha e de embuste nessas comunhões e partículas
miraculosas-ensanguentadas. São elas, as ditas Beatas como tantas outras,
almas levadas á vida unitiva, a vida de contemplação, o que bem pouco se
conhece e pratica entre nós. 334

Não é de surpreender que este relatório tenha irritado sobremaneira o bispo Dom
Joaquim. Em carta datada de 22 de novembro de 1891, portanto, pouco tempo após a entrega
do Relatório do primeiro inquérito à Diocese, o bispo cearense afirma ao Capelão da Casa de
Caridade do Crato, padre Joaquim Sother:

333
Idem, p. 63.
334
Relatório do Pe. Clicério da Costa Lobo de 28.11.1891 in “Cópia autêntica...”, p. 65.
158
O Pe. Clicério da Costa Lobo é um sacerdote ilustrado e virtuoso, a quem
demos plena liberdade de ação em tão delicado assunto, deixando tudo
confiado ao seu critério, na convicção que procederia sempre com acerto.
Releva-nos, entretanto, observar que a única recomendação que verbalmente
lhe fizemos, foi que sem ajuntamento de povo e somente em presença de
algumas pessoas criteriosas como sacerdotes, médicos, farmacêuticos, e
outras escolhidas, administrasse ou fizesse administrar a sagrada Comunhão
à Maria de Araújo […].335

A grande surpresa aqui é: o padre Clicério era considerado um padre “ilustrado e


virtuoso”, mas se deixou “enganar”. É contraditório que um padre ilustrado e experiente não
conhecesse as regras básicas de execução de um inquérito e, principalmente, que tivesse se
deixado seduzir por um grupo de mulheres! Na mesma carta, o bispo proíbe que sejam feitos
mais exames em quaisquer partículas ou panos ensanguentados.
Alegando que os padres foram desobedientes às recomendações de como proceder aos
exames, Dom Joaquim recusou o primeiro inquérito e afirmou que não só eles, mas também o
padre Cícero e os outros sacerdotes foram enganados pelos artifícios de Maria de Araújo e das
outras beatas, imitadoras da primeira.
Na mesma carta, o bispo destacou que a orientação mais importante dada à Comissão
foi deliberadamente desobedecida, pois a observação da transformação da hóstia deveria ter
sido feita “sem ajuntamento de povo e somente em presença de algumas pessoas criteriosas
como sacerdotes, médicos, farmacêuticos, e outras escolhidas”. 336 É incrível, no entanto, que
o bispo apoie a presença dos médicos, mesmo quando foi o atestado de um deles que
complicou a situação ao afirmar que os fenômenos eram sobrenaturais e não poderiam ser
explicados pela ciência.
Outra determinação importante do bispo era que, durante o procedimento, a beata
deveria permanecer com a boca aberta a fim de que se observasse melhor o fenômeno. No
entanto, em todos os termos de verificação do sangramento da hóstia consta que a beata
permanecia com a boca fechada por cerca de quinze minutos, o que segundo o bispo favorecia
a possibilidade de fraude. Dom Joaquim recriminou severamente o comportamento dos padres
da Comissão, principalmente, o padre Clicério “a quem demos plena liberdade de ação em tão
delicado assunto, deixando tudo confiado ao seu critério, na convicção de que procederia
sempre com acerto”. 337

335
Documentário/DHDPG: Carta de D. Joaquim J. Vieira ao Pe. Joaquim Sother em 22.11.1891.
336
Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Joaquim Sother em 22.11.1891 in “Documentário”, p. 37.
337
Idem.
159
No entanto, o que percebemos é que o bispo não consegue lidar com a situação de
tensão que se estabeleceu entre ele e seus sacerdotes, como por exemplo, neste episódio
envolvendo o monsenhor Monteiro:

Ora, tendo V. Revma. e os dois sacerdotes lentes deste Seminário do Crato


se manifestado em franca oposição aos ensinamentos do Diocesano, que
outros não são senão os da teologia católica, quebraram, desta arte aquela
indispensável harmonia e mostraram falta de confiança na Autoridade
Episcopal. Rotos os laços de confiança, de respeito, de obediência e de
lealdade que deveriam ligar o Reitor e os lentes do seminário ao seu Bispo,
claro está que não pode mais existir solidariedade entre Este e aqueles na
direção deste estabelecimento. Temos portanto resolvido o seguinte: pode
V.Revma. continuar a dirigir, sob sua única responsabilidade, esse
estabelecimento, o qual deixará de ter então o caráter de Seminário e tomará
o nome com que V. Revma quiser designá-lo.338

A proposta do bispo de abandonar o Seminário, deixando-o exclusivamente sob a


direção do reitor denota a constante mostra de desobediência do clero. Os sacerdotes parecem
não temê-lo ou respeitá-lo como autoridade. Constantemente acusado de ser intransigente
devido a publicação da Decisão Interlocutória e à rejeição ao primeiro inquérito, Dom
Joaquim lembrava o quanto havia sido condescendente com relação à atuação arbitrária dos
sacerdotes que ele mesmo enviara. Mas sua paciência chegara ao fim e avisa: “[...] proibimos
expressamente a V.Revma. e a todos os outros sacerdotes à nossa jurisdição sujeitos, qualquer
tentativa de exames nas sagradas partículas [...] Basta de profanações!”.339 Esse clima de
desobediência dentro da Diocese, provavelmente consequência do momento de incertezas que
própria Igreja vivia, nos faz ver a imagem de um bispo atônito, traído, desobedecido,
desrespeitado.
Os padres da Comissão não foram suspensos imediatamente, mas receberam ordens
expressas de sair do Juazeiro e o bispo decidiu enviar uma nova Comissão que se encarregaria
de executar novo inquérito. Ao mesmo tempo, o ex-secretário episcopal, padre Antero verteu
o primeiro inquérito para o italiano e começou a preparar uma viagem para Roma, sem
autorização diocesana, com o objetivo de apresentar esse inquérito ao Papa.
Além disso, Antero chega ao ponto de “exigir” que o bispo fosse ao Juazeiro
acompanhar o caso de perto. Em uma carta enviada a D. Joaquim em 11 de janeiro de 1892,

338
Carta de D. Joaquim J. Vieira a Mons. Francisco R. Monteiro em 12.1891. Documentário, p. 39.
339
Idem.
160
ele afirma ter certeza do milagre, explicando haver feito experiências “científicas” juntamente
com a comissão de médicos:

[...] o sangue aparecido [...] não é de Maria de Araújo, porque além de


acurado exame que fiz, não só como enviado de V. Exc. em uma questão tão
séria, como também para meu conhecimento particular, afim de não cair em
um erro tão grave, e mesmo porque seria a base de toda questão, V.Exc.
poderá fazer uma experiência: deitando uma partícula em um liquido
colorado e espesso, como o sangue humano, verá que em dois ou três
minutos esta partícula não se transformará naquele liquido, ficará
umedecida, desfeita um pouco ad summum, nunca porém a ponto de não
distinguir-se e separar-se do dito liquido, experiência que já fiz. Ora, muitas
vezes observei que em poucos momentos a partícula [comungada por Maria
de Araújo] se transformara completamente a ponto de não distinguir-se nada
de partícula e apresentar um pouco de carne, como também em poucos
momentos aumentar de volume consideravelmente, como tive de notar e
admirar; por conseguinte se admitimos que o sangue seja de Maria de Araújo
devemos admitir um outro milagre sui generis, atribuir ao sangue de Maria
de Araújo, a propriedade de converter instantaneamente uma substância em
outra. 340

Antero era doutor em Teologia e havia estudado em Roma, assim, não era possível que
ele não soubesse como funcionava a hierarquia eclesiástica, ainda assim se dirigiu diretamente
ao bispo sem o conhecimento do seu colega, o padre Clicério. Além disso, dava “ordens” ao
bispo, dizendo que ele devia fazer!
A desobediência contínua dos sacerdotes envolvidos e, principalmente a ousadia do
padre Antero de planejar a viagem a Roma por conta própria contrastam com a tolerância do
bispo Dom Joaquim. Suas ordens surtiram pouco ou nenhum efeito sobre a população que
continuava seguindo em romaria ao Juazeiro. O padre Cícero ainda não tinha se retratado e,
muito menos ido ao púlpito desdizer que o sangue das hóstias era o sangue de Cristo, como
lhe havia sido ordenado mesmo antes da Comissão chegar e Maria de Araújo voltou para a
casa de sua família quando a Comissão foi embora de Juazeiro, em novembro de 1891.
Como se não fosse o bastante, após a conclusão do primeiro inquérito, Dom
Arcoverde escreveu ao colega diocesano e fez questão de ressaltar que Dom Joaquim havia
deixado a questão de Juazeiro tomar mais vulto que o necessário, dando demasiada autoridade
aos padres da Comissão, o que os teria deixado à mercê do “maravilhoso diabólico” que
reinava no Juazeiro:

340
DHDPG/CRB 03, 04: Carta do padre Francisco F. Antero a D. Joaquim J. Vieira em 11.01.1892.
161
Enfim no regaço da amizade, pois que me autoriza V. Exa. Revma., devo
dizer-lhe com sinceridade que V. Exa. Revma. tem deixado a causa tomar
corpo mais do que devia. Suas ordens não têm sido respeitadas pelo padre
Cícero, o que é gravíssimo no caso vertente.341

Um dado interessante é que a partir da triagem das cartas, tanto as que foram recebidas
pelo bispo, como as que foram recebidas pelo padre Cícero, podemos perceber que entre os
sacerdotes a questão se dividia também em nível social, ou seja, os sacerdotes com cargos
baixos e que moravam em cidades pequenas, em sua maioria, manifestavam crença nos
fenômenos. Os sacerdotes melhor colocados, ou mesmo do alto clero, apoiavam
incondicionalmente o bispo cearense. Dom Arcoverde, por sua vez, insiste nas críticas ao
bispo cearense:

Eis aqui o ponto central da questão: daqui não se deve desviar, V. Exa. assim
colocada a questão, qual deve ser o procedimento do Bispo? [...] deve com
sua autoridade proibir que ao redor do fato se acumulem circunstâncias
comprometedoras da santidade e reverência devidas aos dogmas da religião
ou mesmo aos seus ritos e também fazer evitar comoções na fé e
simplicidade do povo. […] V. Exa. tem grande culpa, tem sido demasiado
condescendente. Devia ter suspendido o padre Cícero desde o momento que
lhe desobedeceu, devia ter suspendido padre Monteiro quando propalou no
púlpito as inconveniências que sabemos pelo menos, suspenso de pregar até
segunda ordem, devia ter mandado recolher na Capital a Maria de Araújo
sob pena de excomunhão. Assim teria evitado todos os escândalos que se
têm dado, e a celeuma horrorosa que se vai levantando. Em todo o caso é
preciso fazer alguma coisa. É meu parecer que V. Exa. mande queimar tudo
o que existe a respeito dos fatos do Juazeiro, panos, sanguinhos, tudo, tudo,
sob pena de suspensão aos padres que retiverem consigo algum pano ou
qualquer cousa com sinal de sangue, e suspensão ipso facto incurrenda; e
obrigação ao padre Cícero e Monteiro de arrecadarem esses panos se por
ventura existam nas mãos de outras pessoas. Ou então mande sob as mesmas
penas que se fechem em um baú de lata e se remetam a V. Exa. que os fará
queimar à sua presença. Proibição de se falar nisto do púlpito ou ao povo em
circunstância, sob as mesmas penas aos padres. Reclusão na Capital, de
Maria de Araújo na Casa de Caridade dirigida pelas Irmãs de São Vicente de
Paula. E finalmente mandar o processo para Roma para ser julgado pela
Congregação da S. Inquisição. Mas convém que no processo se relatem as
causas como se têm dado, não deixando de ser enviado o atestado do Dr.
Idelfonso Correia Lima. Tudo, tudo deve ser escrupulosamente referido, para
que tenha a Congregação os dados necessários para julgar os fatos do
Juazeiro. Ora tornando V. Exa. conhecida sua intenção de submeter à Santa
Sé, esse processo, tem justo fundamento para punir os que continuarem a
recalcitrar e porfiar em afirmações incabidas e infundadas.342

341
CPR/CRA 05,03: Carta de D. Joaquim Arcoverde a D. Joaquim Vieira em 27.11.1891.
342
CPR/CRA 05,04: Carta de D. Joaquim Arcoverde a D. Joaquim Vieira de 12.12.1891.
162
Dom Joaquim decidiu seguir os conselhos de Dom Arcoverde e exarou uma nova
ordem de recolhimento dos panos manchados de sangue, visto que a primeira não havia sido
cumprida, bem como ratificou as proibições ao padre Cícero de celebrar missas no Juazeiro.
Mandou ainda que Maria de Araújo se recolhesse na Casa de Caridade de Barbalha, dirigida
pelo padre Manoel Cândido dos Santos (1854-1932), um de seus aliados:

É proibido neste Bispado ouvirem-se confissões de mulheres à noite e fora


do confessionário salvo os casos previstos pela teologia [refere-se à extrema
unções e mulheres em estado de parto laborioso]; [...] Proibimos também e
de modo terminante qualquer reunião de mulheres à noite nessa Capela do
Juazeiro [...] [e] por Decreto de Urbano VIII de 13 de março de 1625 é
proibido imprimirem-se livros que referem milagres, revelações, etc., sem
prévio exame e aprovação do ordinário.343

Ao mesmo tempo em que essas ordens foram determinadas, a Diocese foi informada
de que o padre Clicério, ex-delegado da Comissão, desde novembro de 1891 tinha se
estabelecido, por conta própria, no povoado de Aracati, município de União, aonde já havia
trabalhado (atual Jaguaruana, cerca de 450km distante do Juazeiro). Ali, passou a dirigir um
grupo de mulheres que no início de 1892 também começaram a “manifestar” visões e
revelações divinas:

Com efeito, o coitado do padre Clicério, exaltado pelos embustes das beatas
do Juazeiro, e ferido em seu amor próprio, porque não aprovamos seu
parecer, dele, sobre os tais fatos, retirou-se para as Praias, fazendo de quando
em quando suas peregrinações ao Aracati [...] dando tristes espetáculos nos
lugares por onde passava.344

As beatas “milagreiras” do Aracati eram cinco: Maria Caminha (idade ignorada),


Raimunda Guilhermina de Jesus (26 anos), Maria de Jesus do Nascimento (50 anos), Maria da
Soledade de Jesus (23 anos) e Maria de Jesus da Natividade Rebouças (17 anos), e tais como
as de Juazeiro diziam receber revelações maravilhosas e uma delas chegou a apresentar uma
hóstia sanguinolenta. Não há dúvida que essas mulheres foram “inspiradas” pelas histórias das
beatas do Cariri e o padre Clicério o responsável direto por isso.
Elas fizeram ainda uma predição, ratificada e apoiada pelo padre Clicério. A profecia
dizia: “Se essa Capital [Fortaleza] em dentro 15 dias se não converter à crença dos mistérios

343
Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Cícero R. Batista de 02.01.1892 in “Documentário”, p. 40.
344
Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Alexandrino de Alencar de 08.08.1892 in “Documentário”, p. 46.
163
do S. Coração de Jesus, como constando do processo que se instruiu a respeito [...] ser-lhe-á
infligido dentro daquele prazo fatal, o mais severo castigo”.345 O povoado de Aracati também
seria destruído “não ficando pedra sobre pedra”.346
Ao ser divulgada, a “profecia” provocou uma migração em massa do povoado e um
surto geral na cidade, foram relatados vários casos de abortos, o comércio ficou fechado, “os
gêneros alimentícios escassearam [...] era um horror. Cada um tratava de salvar-se do
cataclismo”. O bispo D. Joaquim ordenou ao vigário do povoado que pusesse um fim na
história desacreditando publicamente o padre Clicério e as mulheres envolvidas. Mas a ordem
não teve muito efeito e os ânimos só foram acalmados quando chegado o dia marcado para a
profecia (não é dito nem nas cartas, nem nos jornais qual era a data exata) nada aconteceu no
povoado.
Em artigo de autoria desconhecida, publicado em 22 de agosto de 1892, no Jornal O
Paiz do Rio de Janeiro, o padre Clicério foi responsabilizado pelo tumulto e por dar crédito às
beatas que contaram sob juramento ao padre Agostinho José Santiago de Lima, pároco de
União, como procediam para fabricar o milagre de aparição das hóstias miraculosas.
Tomemos, como exemplo, o relato de uma delas, Maria de Jesus da Natividade Rebouças, “de
dezessete anos de idade, solteira, moradora no lugar do Córrego do Machado, desta freguesia
[de União]”:
Perguntada quais os factos que se deram nesta freguesia nos dias de julho e
começo de agosto do ano próximo passado quando aqui se achava o
Reverendíssimo Padre Clicério da Costa Lobo, relativamente à aparição de
partículas, êxtases, revelações, etc.? Respondeu quanto às partículas o
seguinte: Que a primeira vez comungou pela manhã, foi a casa, almoçou e
voltando a Igreja foi outra vez para a mesa de comunhão e aí recebeu nova
partícula que imediatamente tirou-a da boca e foi levá-la ao Pe. Clicério que
a este tempo se achava no confessionário dizendo-lhe este que devia fazer
uma tal entrega reservadamente para o público não observar, e em seguida
lhe perguntou para quem era aquela partícula, respondendo ela que Nosso
Senhor a mandara para ele comungar pela conversão dos pecadores.347

A única relação entre essas mulheres e as de Juazeiro é o fato de elas terem tido
contato com o padre Clicério. Seus depoimentos denotam a clara influência do ex-delegado da
Comissão Episcopal e denuncia a desobediência do padre ao divulgar os detalhes expostos
(que até então, deviam ser confidenciais) nos depoimentos do primeiro inquérito. Os

345
DHDPG/CRB 03,29. Carta do Pe. Clicério da Costa Lobo ao Vigário Geral de Fortaleza em 29.06.1892.
346
“Cataclisma Gorado” in Jornal O Paiz (Rio de Janeiro) de 22.08.1892, n° 3765, p. 01.
347
Depoimento de Maria de Jesus da N. Rebouças em 09.11.1893 in “Cópia Autentica”, p. 90.
164
depoimentos denunciam também o valor dado à eventual “santidade” atribuída a Maria de
Araújo e o impacto dos fenômenos de Juazeiro na população.
Segundo Dom Joaquim, estes ‘novos milagres’ constituíam uma imitação do que
ocorria em Juazeiro e só viria a ratificar a sua opinião, uma vez que o culpado seria o próprio
padre Clicério com seus sermões:

[...] o Rdo. Pe. Clicério da Costa Lobo, tão alucinado ficou, que, voltando a
residir na União, freguesia deste Bispado, levou o excesso de sua
credulidade até ao ponto de receber em um só dia 6 vezes partículas das
mãos de uma pobre moça ignorante, que, arrependida de tantos embustes e
sacrilégios que cometeu, referiu-se do seguinte modo: a moça (Maria de
Jesus, de 15 anos de idade nesse tempo) recebia a Sagrada Comunhão, tirava
disfarçadamente a Sagrada Partícula da boca e dizia que Nosso Senhor
mandava-a para o mencionado Sacerdote! Este recebia a S. Partícula voltava
para o altar, comungava e dava de novo a Comunhão à moça, que tirava de
novo a S. Partícula da boca e dava ao dito Sacerdote, isto até se completarem
6 vezes em um só dia, sem contar o que se repetiu em outras.348

Esse episódio lhe custou a suspensão de suas ordens. Enquanto isso, o bispo, em
grande parte responsável pelo crescimento e divulgação da beata e do grupo pela falta de
pulso na condução do processo, continuou firme na decisão de não enviar à Santa Sé o
primeiro inquérito executado em 1891 e acabou por instaurar um novo inquérito. Mas ao
contrário da primeira comissão formada por padres ilustrados e de competência reconhecida
em nível nacional e internacional, desta vez Dom Joaquim escolheu como Delegado um padre
desconhecido do interior da Diocese.
Como veremos adiante, o padre Antônio Alexandrino de Alencar (1843-1903) foi
nomeado também como pároco da cidade do Crato e junto com o pároco da cidade de
Barbalha, Manoel Cândido, assumiu a missão de refazer o inquérito e buscar a “verdade” tão
sonhada pelo bispo: a de que os fenômenos eram falsos e a beata, uma embusteira.

348
Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo Gotti em 16.11.1893. B. 76, Fasc. 369, Doc. 4, ASV.
165
CAPÍTULO 4

O segundo inquérito e o Decreto da Santa Sé

O
olhar do inquisidor, do descrente e da dúvida não aparece em nenhum momento
durante a arguição de Maria de Araújo. Vale questionar se o processo foi organizado
até aí de modo a legitimar o percurso de “santidade” de Maria de Araújo e a
consequente veracidade dos milagres.
Já no segundo inquérito, temos uma tentativa de provar o embuste dos fenômenos,
tentativa frustrada, uma vez que nenhuma das beatas se retratou até 1893. Pressionado pelos
“crentes” do Sangue Precioso e por parte do clero, como o bispo D. Arcoverde, por exemplo,
em maio de 1893, Dom Joaquim decidiu enviar o Processo para Roma e deixar à Santa Sé, a
responsabilidade pela condenação definitiva dos “pretensos milagres”. Em 1894, a
Congregação para a Doutrina da fé, exara sua decisão incontestável e o bispo Dom Joaquim
anuncia sua vitória em uma Carta Pastoral. Mas não seria ainda o fim da História.

166
4.1. A segunda Comissão Episcopal: a autoridade a serviço da “verdade”

Já disse e repito V. Exa. conte sempre comigo, não só porque é um dever de


obediência, mas também por que cada dia me convenço de que não há nada
sério, nem de maravilhoso nos fatos do Juazeiro onde tenho estado muitas
vezes com olho atento e desprevenido.349

O padre Alexandrino chegou à cidade do Crato em 11 de fevereiro de 1892, “depois de


dez dias de viagem penosíssima por campos inteiramente ressequidos sob um sol abrasador. A
natureza parecia trajar rigoroso e pesado luto”.350 Filho de Alexandre da Silva Pereira e de
Alexandrina Benigna de Alencar, nasceu em Assaré em 25 de Novembro de 1844 e formou-se
sacerdote no Seminário de Fortaleza em 1867. Era já um homem de meia idade, tinha 48
anos, sem grandes conquistas e aquela oportunidade surgia como uma chance de fazer um
serviço importante para a Diocese e angariar a simpatia do bispo Dom Joaquim. O tom
poético perduraria nas suas cartas, mesmo em suas últimas correspondências, quando ele já se
mostrava muito doente, cansado e implorava para ser transferido da paróquia cratense (entre
1898-1900).
Natural de Assaré, pequena cidade próxima ao Crato, o padre Alexandrino se formou
sacerdote em 1874 e trabalhou nas cidades de Araripe e Quixadá. A nomeação como pároco
da matriz da Sé no Crato foi recebida claramente como uma promoção, pois a cidade era
maior, com mais fiéis o que significaria também aumento dos rendimentos. No entanto, ele
encontrou um ambiente marcado pelas tensões existentes entre os crentes do “Sangue
Precioso” e os aliados do bispo.
O episódio de sua chegada foi cercado de constrangimento, uma vez que para nomeá-
lo pároco da Igreja de Nossa Senhora da Penha, a Matriz cratense, o bispo teve de demitir o
pároco local, padre Fernandes Távora (1851-1916), forte aliado do padre Cícero. Apesar do
inconveniente, o padre Alexandrino se mostrou otimista e animado: “Os incômodos da
viagem foram largamente compensados pela estrondosa recepção que me fizeram os
habitantes desta cidade, sendo para vistar [sic] que mais de duzentos foram ao meu encontro,
mostrando a mais viva satisfação”. 351

349
DHDPG/CRA 04,09: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira de 09.08.1892.
350
DHDPG/CRA 04, 03. Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 15.02.1892.
351
Idem.
167
Sua missão ali era conseguir a retratação das beatas e das outras testemunhas que
depuseram a favor da veracidade dos milagres e recolher novos depoimentos que atestassem o
embuste. Ele também devia assegurar-se de que as ordens do diocesano fossem finalmente
cumpridas, com especial atenção para que não se cultuasse mais os panos ensanguentados. O
padre Alexandrino deveria ainda refazer todo o trabalho de exame das transformações da
hóstia na boca Maria de Araújo. A tarefa se mostrou árdua para um padre simples e sem
grande erudição, entretanto, o padre Alexandrino deixou como testemunho da sua obediência
ao diocesano um conjunto de mais de trezentas cartas.
Prudentemente, Alexandrino não procurou o padre Cícero imediatamente à sua
chegada e apesar de ter sido visitado por este, não comunicou logo sua missão “porque os
meus paroquianos, imputando que eu trouxesse alguma cousa de extraordinário para o padre
Cícero, espreitavam todos os meus passos, e em suma habilidade procuravam arrancar de mim
uma declaração qualquer que pudesse orientá-los”.352
No dia 28 do mesmo mês, o padre Alexandrino foi ao Juazeiro para reunir-se com o
padre Cícero, aonde lhe entregou o ofício com as determinações do bispo: não celebrar a
Semana Santa em Juazeiro e entregar-lhe os panos manchados de sangue. O padre Cícero leu
três vezes o documento e, por certo, já esperava algo assim:

Tendo refletido um pouco, declarou formalmente que não me faria entrega


dos panos. Pedi-lhe por tudo quanto era sagrado que tal não fizesse, mas
ficou ou tornou-se surdo ao meu pedido. Disse que só não entregava os
panos porque V. Excia. queimá-los-ia; e como tinha convicção de que ali
estava o sangue de Cristo, não podia admitir que ele fosse profanado.353

A questão dos panos manchados foi um problema que sempre perturbou o bom
andamento do trabalho do padre Alexandrino. Depois da saída da primeira comissão da
cidade, uma caixa com diversos panos ensanguentados ficou sob a guarda do padre Cícero. O
padre Alexandrino deu alguns dias de prazo, pediu que até o dia 3 de março (quatro dias a
partir dali) o padre Cícero entregasse ou enviasse a caixa com os panos e atribuiu a falta de
bom senso do padre à influência das beatas: “O que tem feito o padre Cícero perder a cabeça é
a credulidade infantil nas beatas. Elas dizem que veem e falam com Cristo e ele crê em
tudo”.354

352
DHDPG/CRA 04, 03. Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim J. Vieira em 29.02.1892.
353
Idem.
354
Idem.
168
Oito dias depois dessa discussão, o padre Cícero rendeu-se e entregou uma caixa com
alguns panos, o que para o padre Alexandrino significou uma trégua que colaboraria para
arrefecer o “entusiasmo do povo desta freguesia pelos fatos ocorridos no Juazeiro”.355 Mais
do que uma trégua o padre Cícero tinha claras as suas obrigações como sacerdote, e, uma
delas era obedecer ao Prelado Diocesano, embora não abrisse mão da sua crença, algo que fez
questão de ressaltar em todas as suas cartas:

Recebi dois ofícios de V.Exa. Revma. [...] não respondi, não foi por
nenhuma falta de respeito e atenção; mas por julgar [se] não seria melhor
obedecer e calar-me [...] Como, porém V.Exa. Revma. exige de mim a
resposta, começo pedindo humildemente perdão do meu modo de pensar, e
respondo que não tenho a dizer senão que estou cumprindo tudo fielmente,
como me foi prescrito, e que entreguei a caixa exigida com todo o conteúdo
ao Revdo. Sr. Pe. Sother que a conduziu a Matriz do Crato. 356

A entrega foi acompanhada do pedido de que os panos não fossem inutilizados e,


talvez para tentar cultivar uma proximidade com o padre Cícero, o padre Alexandrino ousou
pedir ao bispo que ao menos por algum tempo os panos fossem mantidos intactos, porque o
357
padre Cícero caiu em grande abatimento depois que os entregou. Enquanto aguardava a
resposta do bispo, o padre Alexandrino guardou a caixa com os panos dentro do Sacrário que
estava na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Penha no Crato e comunicou ao bispo que eram
tão numerosos que não cabiam ali: “Estão, pois, guardados nele fora da caixa”. 358
Segundo informação do próprio Alexandrino, o bispo recusou o pedido e ordenou que
os panos fossem destruídos. Dias depois (21 de março), o padre Alexandrino respondeu que a
caixa ainda não tinha sido “enterrada por falta de oportunidade o que farei logo que
desapareça o perigo de ser observado pelos curiosos”.359 Na carta que se seguiu ele pediu
desculpas pela ousadia, dizendo: “só me empenhei pela conservação dos panos [...] por
insistência dele, pelo que se V.Exa. estranhou o meu pedido, digne-se V.Exa. de por sua
bondade desculpar-me”. 360
Mas a vitória foi só momentânea, pois enquanto o padre Alexandrino buscava uma
oportunidade para destruir os panos, estes sumiram misteriosamente do Sacrário. O roubo foi

355
DHDPG/CRA 14, 96. Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 06.03.1892.
356
Carta do Pe. Cícero R. Batista a D. Joaquim Vieira em 22.04.1892 in Silva, 1977: 12.
357
DHDPG/CRA 14,100. Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 10.03.1892.
358
DHDPG/CRA 14,112. Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 12.03.1892.
359
Idem.
360
Idem.
169
referido pela primeira vez no dia 22 de abril de 1892, em carta que infelizmente se perdeu, ou
foi destruída, do arquivo do bispo Dom Joaquim (sabemos dela através da carta de 2 de maio).
Supunha-se que o roubo teria acontecido na noite anterior:

Cumpre-me afirmar a V.Exa. que todas as precauções foram tomadas no


intuito de evitar o conhecimento do lugar em que os panos se achavam. Mas
a retirada do caixão que se achava na Capela do Juazeiro, embora fosse feita
à meia noite e colocada na Capela desta Matriz, muito antes do dia
amanhecer, despertou a atenção dos fanáticos que naturalmente se puseram a
fazer pesquisas a fim de conhecer o lugar em que se achavam. [...] A chave
nunca saiu de meu poder. Verifiquei ter havido o emprego de chave falsa,
por que encontrei vestígio de cera em torno do buraco da fechadura no
sacrário. 361

As suspeitas recaíram sobre o jornalista José Marrocos, que chegou a ser referido pelo
bispo como o “principal instrumento do qual se serviu satanás para lançar o ridículo sobre
nossa religião”.362 José Marrocos havia se manifestado abertamente contra a execução do
segundo inquérito, pois estava convencido de que a causa já estava provada e só era
necessário que a documentação fosse mandada a Roma para ser chancelada pelo Papa, uma
atitude clara de desrespeito ao bispo. Segundo o padre Alexandrino, era de opinião geral que
somente José Marrocos poderia ter executado o plano de roubo dos panos:

Quando se fez a segunda ou terceira experiência nas comunhões [de Maria


de Araújo], sabendo que não deram resultado algum, calculou talvez que
seriam destruídos os panos, e então tratou de roubá-los eis o que geralmente
se pensa. Se este homem que é um verdadeiro gênio do mal aqui não
estivesse desde o começo da questão do Juazeiro, as coisas teriam tomado
outro caminho. 363

José Marrocos ainda seria citado outras vezes na correspondência do padre


Alexandrino, principalmente por divulgar nos jornais a ocorrência dos fenômenos, mas nunca
ficou provado que ele foi o autor do roubo.364 Para o padre Alexandrino, outro suspeito em
potencial do roubo dos panos era o padre Francisco Ferreira Antero, ex-secretário da primeira

361
DHDPG/CRA 04,04. Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim J. Vieira em 02.05.1892.
362
Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Alexandrino de Alencar de 08.08.1892 in “Documentário”, DHDPG..
363
DHDPG/CRA 04,07: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira de 28.06.1892.
364
Muitos anos mais tarde, em 1910, quando Marrocos faleceu, foram encontrados alguns panos ensanguentados
em sua biblioteca e desconfiou-se que a teoria de Alexandrino era correta. É importante, entretanto, levarmos
em conta também, a quantidade de panos que foram manchados pelos sangramentos nas hóstias consumidas
por Maria de Araújo, bem como por suas crucificações e estigmas, podemos aventar que existia uma imensa
quantidade, inclusive espalhados entre a população.
170
Comissão. Por um boato, o padre Alexandrino soube que ele estivera em Juazeiro para
arrecadar fundos para sua viagem a Roma e também pegar os panos manchados de sangue:

[...] aqui e na Barbalha se dizia que o Pe. Antero viera ao Cariri, isto é, ao
Juazeiro, buscar os panos [...] Agora tive conhecimento de que não era falso
este boato, como V.Exa. verá do documento que junto remeto escrito pelo
Pe. Mel Candido e assignado por mim e mais pessoas, a saber condutor de
um grande fardo com destino ao Pe. Antero. Ainda não pude saber quem os
tirou do sacrário, mas para mim é liquido ter havido conivência do Pe.
Antero no roubo dos panos, e se acharem estar no poder dele. 365

O segundo inquérito é um documento muito incoerente em relação à organização das


peças anexadas e tem como data final o mês de janeiro de 1893, isto é, quase dois anos depois
da execução do primeiro inquérito. Esse documento é composto de três relatos de
experiências feitas com Maria de Araújo em 20, 21 e 22 de abril de 1892, seguidos de dois
depoimentos de testemunhas que só foram feitos em agosto daquele ano, depois seguem
alguns anexos: uma carta do Dr. Ignácio de Souza Dias, duas cartas do Dr. Marcos Rodrigues
Madeira (ambos os médicos que atestaram a sobrenaturalidade dos fenômenos no primeiro
inquérito), duas cartas do padre Félix Arnaud (uma ao reitor do Seminário no Maranhão e
outra ao bispo Dom Joaquim), uma carta do Dr. Ildefonso Gurgel Nogueira.
Além disso, no material foi incluído um interrogatório feito no Aracati pelo padre José
de Santiago Lima, com as mulheres envolvidas nos supostos fenômenos que envolviam o
padre Clicério e que narramos no final do capítulo anterior. Essa peça documental que não diz
respeito às beatas de Juazeiro foi incluída no segundo inquérito, possivelmente porque quase
dois anos se passaram desde a chegada do padre Alexandrino à região e ele não tinha
conseguido nenhuma retratação, nem das mulheres, nem dos sacerdotes envolvidos.
Apesar de desordenado, esse material traz documentos muito interessantes, e dentre
estes os relatos das experiências feitas com Maria de Araújo ganham destaque. A primeira
experiência foi feita em 20 de abril de 1892 e o método era semelhante ao da primeira
Comissão. O padre ministrava a hóstia à Maria de Araújo e esperava que a transformação
ocorresse, mas desta vez as recomendações foram seguidas à risca e a beata era obrigada a
permanecer com a boca aberta durante todo o procedimento.
Na primeira verificação, Maria de Araújo “conservou a boca aberta por dezesseis
minutos, não tendo neste intervalo havido sinal de sangue, nem também mudança alguma na

365
DHDPG/CRA 04,05. Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 09.05.1892.
171
sagrada forma”, e mesmo depois de ter ficado por cerca de dois minutos com a boca fechada
não foi detectada nenhum tipo de transformação na hóstia: “não apareceu nenhum ainda
vestígio algum de sangue e ainda a sagrada partícula em perfeito estado”. 366
No final do relatório, o padre Alexandrino, ressaltou ter empregado “todo o cuidado e
vigilância [...] no intento de evitar qualquer artificio ou dolo”, uma preocupação que pode
parecer exagerada, mas que tem a ver com a própria relação de obediência estabelecida entre
ele e o bispo, e que a priori deveria ter existido também entre os padres da primeira
Comissão.
A ideia inicial era fazer experiência com “partículas marcadas”, isto é, partículas que
não fossem consagradas porque, caso se desse o sangramento, estaria provado o embuste, uma
vez que haveria se dado em uma hóstia ordinária e não no corpo de Cristo. No entanto, o
padre Alexandrino nunca conseguiu levar a cabo essa experiência, pois eram as beatas da
Casa de Caridade quem preparavam as hóstias e seria “preciso avisá-las de não porem
partículas na lata que costuma conter as hóstias, e não haveria assim a reserva e segredo
necessários para o bom êxito da experiência”.367 No segundo dia de experiência, novamente
não houve sangramento:

[…] a beata permaneceu com a boca aberta durante 20 minutos, não tendo
havido nesse intervalo sinal algum de sangue, nem alteração nenhuma na
sagrada forma que umedeceu no lado esquerdo dela em um milímetro de
largura por dois centímetros de extensão mais ou menos”.368

No terceiro dia, o tempo diminuiu para quinze minutos e não havendo nenhuma
alteração na hóstia pediram para que ela a consumisse, e ao fazê-lo encontrou dificuldade
“sentindo vontade de vomitar pediu água que lhe foi recusado”.369 O uso de violência nessas
experiências foi registrado pelo próprio padre Alexandrino em suas cartas e ainda que fosse
autorizada pelo diocesano (não existe evidência disso), a notoriedade dessas práticas reverteu-
se em muitas inimizades para o padre. Além do fato de o sacerdote obrigar Maria de Araújo a
passar vários minutos com a boca aberta, são claras também as ameaças constantes de
proibição de uso do sacramento, de expulsão da Casa de Caridade (para as que moravam ali) e
a ameaça de excomunhão.

366 “
Auto da Primeira Experiência”, Segundo Inquérito in “Cópia autêntica...”, p. 79.
367
DHDPG/CRA 04,11. Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim J. Vieira em 31.08.1892.
368
Auto da Segunda Experiência, Segundo Inquérito in “Cópia autêntica...”, p. 79.
369
Auto da Terceira Experiência, Segundo Inquérito in “Cópia autêntica...”, p. 80.
172
O relato mais grave é o da aplicação de “doze bolos de palmatória” nas mãos de Maria
de Araújo, pois esta teria afirmado que a transformação das hóstias durante as experiências
feitas pelo padre Alexandrino não teria ocorrido porque os padres da Comissão estavam em
pecado:
Sabedor do fato, fui à Casa de Caridade e lá ouvi da própria beata a injuriosa
insinuação. Naquele instante, movido por justificada indignação muni-me de
uma palmatória e apliquei doze bolos na solerte embusteira e mandei-a de
volta ao Juazeiro (apud Meneses, 1998: 32-33).

No entanto, mesmo a hóstia não sangrando durante as experiências feitas por


Alexandrino, os “fenômenos extraordinários” continuaram acontecendo, ainda depois que ela
saiu da Casa de Caridade em 1892. Maria de Araújo voltou a ter êxtases e manifestar estigmas
em sua cabeça, mãos, pés e lado esquerdo, “jorrando de todos esses lugares sangue em
abundancia”, narrou o próprio Alexandrino a D. Joaquim.370 Aos poucos, percebemos que o
padre Alexandrino começou a manifestar uma opinião mais firme sobre os fenômenos de
Maria de Araújo, talvez para agradar o bispo, talvez porque o tempo passava e ele não
conseguia fazer com que as mulheres se retratassem:

Consistem os tais milagres na exsudação sanguínea de crucifixos de metal


maciço e na saída misteriosa ou miraculosa de hóstias do interior do mesmo
crucifixo, fatos que se dão à noite e nunca de dia que eu saiba. Desde o dia
de minha chegada a esta Freguesia ainda não vi um só fato que me
maravilhasse. Fui ao Juazeiro, e tudo o que vi, me pareceu uma farsa
imoralmente urdida e pessimamente executada. 371

É interessante notar que através da correspondência trocada entre o padre Alexandrino


e o bispo Dom Joaquim é possível saber mais sobre o seu trabalho do que propriamente pelo
segundo inquérito, uma vez que este é desordenado e não tem um fio condutor claro. Não há
um método em suas ações, tudo parece ser feito arbitrariamente, sem um planejamento. A
ação do padre Alexandrino no Crato se resumiu a buscar depoimentos que comprovassem a
farsa dos fenômenos, mas a maioria deles não aparece no inquérito, embora sejam
mencionados nas cartas.
Por exemplo, ainda em maio de 1892, o padre Alexandrino contou que ouviu o
depoimento do beato Francelino, uma figura popular que recolhia esmolas para a Casa de

370
DHDPG/CRA 04,08. Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 14.07.1892.
371
DHDPG/CRA 04,09. Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 09.08.1892.
173
Caridade do Crato, ao que parece, suspeito de ter colaborado com o roubo dos panos.372 O
beato negou aquela informação e se recusou a fazer o juramento sobre os Santos Evangelhos,
conforme a norma da época: “quem assistiu ao depoimento do beato, ficou acreditando que
ele foi insinuado. Este infeliz chegou a afirmar que não reconhecia a V. Excia. como
373
superior”. Esse episódio denuncia ainda, um pouco do espírito de resistência que se
formava contra o bispo: a população simplesmente não o reconhecia como uma autoridade da
Igreja. A hostilidade que se instaurou naquele momento, contra o bispo e seus aliados, é
justificada pela crença do povo nos milagres, na santidade de Maria de Araújo e, por
conseguinte, no padre Cícero, visto como uma figura carismática que consegue manter a
população ao seu lado.
Entre as peças que ele anexou ao inquérito enviado ao bispo no final de 1892, constam
apenas os depoimentos de duas pessoas: do juiz Dr. João Batista Siqueira e o coronel Juvenal
de Alcântara Pedrosa, figuras políticas importantes da região. Um detalhe importante é que os
depoimentos não foram tomados, mas escritos pelos próprios depoentes:

Estes ilustres cavaleiros com quanto confessassem ter sido eu fiel na


exposição dos fatos que me revelaram, quiseram contudo redigir cada um o
seu depoimento, sendo que não altera a substancia das revelações que
mandei apesar de haver diferença na forma. [...] O Dr. Siqueira e Cel.
Juvenal não só assinaram, mas até juraram nos Santos Evangelhos ser
verdade tudo o que afirmaram em seus depoimentos. Louvado seja Deus.
Convém notar que ambos se prestaram com muito gosto e me autorizaram a
dizer a V. Excia. que, em relação aos fatos do Juazeiro, estão dispostos à
prestar a V. Excia. os serviços que V. Excia. julgar convenientes. 374

O interesse dessas duas testemunhas em depor pode ser explicado pelas inimizades
entre eles e o padre Cícero, que mesmo antes dos fenômenos de 1889 tinha respaldo e força
política na região. Em 1892, o Dr. João Batista Siqueira, casado, de 48 anos, era um antigo
correspondente do bispo Dom Joaquim e entregou seu depoimento em nove de agosto daquele
ano.
Desde o início fez questão de demonstrar a sua descrença nos eventos e seu total apoio
ao bispo. Disse acreditar que os fenômenos não se tratavam “de milagre, mas de um fato
375
natural explicado pela ciência que se dava em uma mulher doente e histérica”. Segundo

372
DHDPG/CRA 04,06. Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 15.05.1892.
373
Idem.
374
DHDPG/CRA 04,08. Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira de 14.07.1892. Grifos nossos.
375
Depoimento do Dr. João Batista de Siqueira de 09.08.1892 in “Cópia autêntica” (2° inquérito), p. 82.
174
ele, o próprio Dr. Marcos Madeira já afirmara que no Juazeiro “havia uma verdadeira
epidemia de mulheres histéricas”.376
O depoimento do coronel Juvenal, “natural desta freguesia do Crato, casado,
comerciante e proprietário, morador nesta cidade, quarenta e nove anos de idade”.377 Escrito
em 10 de agosto, corroborava o testemunho do colega e foi além: afirmou que por sempre
externar a sua incredulidade com relação ao fenômeno foi convidado pelo Dr. Marcos
Rodrigues Madeira para examinar a beata:

Para esse exame que tanto desejava pelo qual tanto interesse mostrava ter o
referido doutor partiram desta cidade na madrugada da primeira 6ª feira de
maio do ano passado [1891], chegando a Juazeiro mais ou menos pelas
quatro horas da manhã. [...] Examinada a Beata pelo Doutor Madeira, e
consultando este a ele testemunha se estava satisfeito, e tendo esta
respondido negativamente, foi-lhe dada a faculdade de examiná-la também.
Passando a fazê-lo pedindo que tivesse a bondade de escarrar, o que ela fez
mas de um modo pouco natural, pelo que ele testemunha exigiu que o
fizesse, procurando expelir o catarro do pulmão, como se faz naturalmente, o
que cumprido atirou ela sobre os tijolos do ladrilho sangue vivo [...] Ato
continuo pediu-lhe que abrisse a boca e verificou haver, sobre a língua um
traço do mesmo sangue. Então mandou que ela limpasse os lábios também
ensanguentados, e fez sentir aos dois companheiros testemunhas que o fato
da hóstia ensanguentada estava explicado naturalmente, ao que respondeu-
lhe o Pe. Cícero que aquilo se havia dado pela primeira vez. 378

O episódio que teria se dado em maio de 1891, portanto, antes da chegada da primeira
Comissão ao Juazeiro denota um sério problema ético das pessoas envolvidas: o padre Cícero
que como diretor espiritual da beata não deveria permitir o abuso de exames e,
principalmente, não deveria estimular esse tipo de procedimento uma vez que já havia sido
proibido por Dom Joaquim; o próprio médico Dr. Madeira que se arroga o poder de levar
pessoas (que não são médicos) para examinar a beata; e a própria Maria de Araújo que se
deixa expor.
Para a testemunha esse episódio encerraria toda e qualquer dúvida que ele poderia ter
sobre a veracidade dos fenômenos, uma vez que o escarro de sangue demonstrava, segundo
ele, que o sangue era proveniente de uma enfermidade da beata. Esse foi o último documento
anexado no segundo inquérito, posteriormente enviado a Dom Joaquim. Alexandrino não
escreveu nenhum relatório no processo, mas suas cartas nos dão indícios sobre a situação no

376
Idem.
377
Depoimento do Cel. Juvenal de Alcântara Pedrosa em 10.08.1892 in “Cópia autêntica” (2° inquérito), p. 82.
378
Idem.
175
final de 1892 e revelam sua opinião sobre cada um dos personagens que compunha essa teia
de relações em torno do milagre e de Maria de Araújo.

* * *

O cenário era tenso no final de 1892. O padre Alexandrino não havia conseguido
cumprir quase nada do solicitado pelo bispo: nenhuma retratação, nem dos sacerdotes, nem
das beatas; a caixa com os panos ensanguentados tinha sumido e o ladrão nunca foi
encontrado; Maria de Araújo não se submetia à ordem de reclusão na Casa de Caridade e as
peregrinações continuavam ao Juazeiro, sempre com o aval do padre Cícero. Dentre esses
motivos, especialmente, a desobediência de Maria e as peregrinações alimentadas pelos
comerciantes, tiravam o sono do padre Alexandrino.
Segundo ele, os novos inimigos da Diocese seriam os comerciantes que se
estabeleciam no povoado. Chamados de “juazeiristas” pelo padre, essas “aves de rapina”,
exploravam a “turba ignara” e sustentavam as romarias com os boatos que inventavam contra
ele e com a venda de falsas relíquias ligadas à Maria de Araújo e aos milagres. 379
Um desses comerciantes, chamado Antonio Renno, negociante italiano que atuava
principalmente em Fortaleza, chegou a encomendar quinze mil medalhas com a efígie da
beata Maria de Araújo e do padre Cícero. Dentre as inúmeras medalhas comercializadas em
Juazeiro, o padre Alexandrino conseguiu remeter apenas cento e sete para o bispo Dom
Joaquim.380
A representação de Maria de Araújo na medalha sugere o estabelecimento de uma
santidade característica que só pode ser atribuída a pessoas consagradas pela Igreja Católica,
intermediadora oficial entre leigos e clero. As medalhas foram cunhadas em metal prateado e
tinham na frente a imagem de uma Madona com raios saindo das mãos (representação de
Nossa Senhora das Graças) e a inscrição em caixa alta “MARIA DE ARAÚJO”; atrás a
imagem de um sacerdote em hábito franciscano com a inscrição em caixa alta “PADRE
CÍCERO”.381

379
DHDPG/CRA 04,27: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira de 1895, sem referência ao dia
e mês.
380
DHDPG/CRA 08,10: Carta do padre Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira de 16.02.1895.
381
Um exemplar dessa medalha está anexada no processo “Sulla pretesa trasformazione dela S. Particola in
carne e sangue nella bocca della religiosa Maria de Araújo” no Arquivo da Congregação para a Doutrina
da Fé – ACDF, Roma, Itália.
176
A crença do povo no poder da medalha, chamada de milagrosa, não passava, pois,
pelo controle da Igreja, ela permeava outro lado da religiosidade que dispensava a
intermediação oficial e se comunicava diretamente com a divindade. Os objetos de devoção
ou relíquias são muito representativos disso. Por exemplo, uma das práticas que se destacou
no momento foi a de “tirar as medidas”382 do Precioso Sangue:

Nunca houve romeiro que voltasse a terra de sua pátria ou de sua residência
sem levar, como relíquia de raro valor, uma fita ou um cadarço que tivesse
tocado na caixa de vidro que contém as toalhas, corporais, sanguinhos que
receberam esse sangue da hóstia sacramental! E que milagres não se contam
dessas fitas e desses cadarços que o povo chama de ‘medidas do Precioso
Sangue’?!383

Muitos do que vinham em romaria acabavam por ficar e começavam a explorar como
podiam da popularidade dos “milagres”. Havia “os fogueteiros, os que vendiam santos,
rosários, orações, medalhas, cadarços e retratos do padre Cícero e de Maria de Araújo”
(Menezes, 1985: 62). A produção de relíquias e a propagação dos “fenômenos
extraordinários” vão, paulatinamente, convertendo Maria de Araújo em uma santa popular: “o
povo que a cercava, tendo-a por santa, a contemplava cheio de admiração”.384
Toda a popularidade de Maria de Araújo incomodava o bispo que ordenou, mais de
uma vez, que ela se recolhesse em uma das Casas de Caridade da região, preferencialmente na
Casa de Barbalha, dirigida por pessoas de sua confiança. A reclusão forçada de Maria de
Araújo tinha para o bispo uma forte razão. Apesar da beata nunca ter sido objeto de culto,
estava claro para a Diocese que, enquanto ela estivesse “livre”, chamaria demasiada atenção
não só pelos fenômenos de sangramento da hóstia, mas também pelas histórias que se
começaram a contar sobre ela.
A Diocese, através do padre Alexandrino, tentou de todas as formas afastar a beata do
convívio com sua família e com o público em geral. É para se notar a inúmera quantidade de
vezes que o pároco do Crato tentou levá-la sob sua guarda, tendo ela fugido ao menor
descuido do padre. Talvez a resposta para a atitude desobediente e atrevida de Maria seja,
justamente, a falta do reconhecimento da autoridade diocesana. Se a beata acreditava na sua

382
Esses “cadarços” como ficaram conhecidos eram feitos com fitas comuns. As pessoas mediam a caixa de
vidro onde estavam os panos manchados de sangue e levavam para suas casas como recordação da visita ao
Juazeiro. O memorialista Paulo Elpídio Menezes narra em suas memórias que se acreditava que os cadarços
“tinham o poder de curar as doenças da alma e do corpo” (1985: 63).
383
Idem, p. 69.
384
CRA 04,20: Carta do padre Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira de 20.11.1893 In “Anais”, p. 243.
177
experiência, isto é, acreditava que era uma escolhida de Deus e que o sacrifício e a
perseguição eram parte de sua missão, fazia sentido que buscasse armas para se afirmar, ainda
mais tendo como suporte o apoio de um padre carismático e articulado como Cícero.
A principal escusa utilizada por Maria de Araújo era sua própria doença (os ataques
nervosos e males do estômago), que funcionava como uma rota de escape, uma tática para
fugir às investidas do bispo que a cercava e a vigiava cada vez mais de perto. Entre 1890 e
1892, mais ou menos, foram enviadas algumas cartas ao bispo, assinadas pela mãe da beata,
Ana Josefa do Sacramento, pedindo compreensão e ratificando a necessidade de Maria
permanecer no Juazeiro ao lado da família:

Quem escreve a V. Excia. , é uma pobre velha, uma mãe desventurada e


afligida pela dolorosa necessidade que V. Excia. lhe impôs de separar-se de
sua filha – a pobre Maria de Araújo! [...] por Nossa Senhora das Dores,
mesma, que lhe deu o Bispado e única que pode conservar V. Excia. na paz e
na felicidade de sua Diocese, não me separe, Senhor, de milha filhinha. Ela
aí vive a morrer a cada hora, e depois da ordem de V. Excia., sua saúde que
já era uma ruína, agora ameaça converter-se em morte.385

A apelação da mãe de Maria de Araújo era um recurso interessante, mas teve seu
objetivo baldado. Ao invés de provocar piedade e estimular a benevolência do bispo, causou
tamanha indignação que após receber a carta ele escreve diretamente ao padre Cícero. O texto
escrito de próprio punho e repleto de exclamações faz notar pela letra rápida, que foi escrito
de um só fôlego impulsionado pela surpresa “por que o prazo de 40 dias por mim assinalado
para o cumprimento da minha ordem já se esgotou há muitos dias, e minhas determinações
não foram obedecidas!”.386
Para o bispo o caso “tomou uma nova face” com a desobediência não só de Maria de
Araújo, mas do próprio padre “diretor espiritual” da beata. Nessa carta o bispo esclarece ao
padre Cícero que a intenção da sua insistência na internação da beata era:

385
DHDPG/CRB 04,30. Carta de Ana Josefa do Sacramento a D. Joaquim Vieira em 20.05.1890. Pela letra
sabemos que a carta foi escrita e assinada por José Marrocos, uma vez que a mãe de Maria de Araújo não
sabia nem firmar o próprio nome. Uma carta anterior, datada de 11.05.1890, havia sido enviada com o
mesmo pedido cuja letra se assemelha a do padre Cícero, embora não possamos afirmar com segurança (Ver:
DHDPG/CRB 04,29).
386
DHDPG/CRB 04,31 Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Cícero R. Batista em 04.06.1890. Vale notar que por
ter uma péssima caligrafia, o bispo sempre ditava as cartas a um secretário que as copiava com uma letra
mais legível.
178
[...] experimentar o espírito de humildade e obediência de Maria de Araújo:
dizia eu de mim para comigo: - Se Maria de Araújo for realmente uma santa
como se pretende, será pronta a obedecer à legítima autoridade, e seu
confessor influirá sobre seu espírito para o fiel cumprimento da
determinação diocesana... Era a prova real das suas virtudes: infelizmente
nada disto aconteceu, V. Rma. resistiu de algum modo, e Maria de Araújo
desobedeceu-me!!387

Para Dom Joaquim, a desobediência de ambos significava não haver


“sobrenaturalidade nos fatos acontecidos com Maria de Araújo”. Além disso, ressaltava ele,
“a carta de maio foi escrita por Padre ou pelo menos por pessoa entendida dos negócios
eclesiásticos”. Pela similaridade das letras, deduzimos que a carta foi escrita e assinada por
José Marrocos, uma vez que a mãe de Maria de Araújo não sabia nem firmar o próprio nome.
Aliás, nas três cartas “assinadas” pela mãe de Maria de Araújo constam três assinaturas
diferentes, comprovando que, ainda que fosse por sua iniciativa, era o padre Cícero e as
pessoas mais próximas a ele que faziam a função de escrivão.
Em fins de 1892, outra carta em nome da mãe de Maria de Araújo é enviada ao bispo.
Na carta, o remetente alega que D. Josefa já havia recebido a extrema-unção e não podia mais
ficar longe se sua filha: “e assim não posso separar-me mais da minha filha Maria de Araújo,
porque é quem vela ao travesseiro de sua mãe agonizante e precisa cuidar dos irmãozinhos
ainda pequenos que não tem mais pai”,388 ela morreria em janeiro de 1893. Naquele ano
ainda, a saúde de Maria de Araújo piorou tanto que surgiu um boato sobre sua morte na
cidade do Crato: “Talvez tenha morrido a Maria de Araújo por cuja confissão in articulo
mortis partiu há pouco o padre Sother em direção ao Juazeiro”.389 O boato foi desmentido
algum tempo depois.
No início de 1893, provavelmente em março, o padre Alexandrino juntou tudo o que
dizia respeito a sua atividade durante 1892 na cidade do Crato e enviou ao bispo. Os embates
entre ele e a população que acreditava e defendia os milagres se agravaram ainda mais com a
publicação da primeira Carta Pastoral de Dom Joaquim sobre os fenômenos de Juazeiro em
1893, como veremos a seguir.

387
Idem.
388
DHDPG/CRB 03,66. Carta de Ana Josefa do Sacramento a D. Joaquim Vieira em 27.10.1892.
389
DHDPG/CRA 14,114: Carta de Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 22.06.1893.
179
Figura 9: Fotografia da Medalha com a imagem de Maria de Araújo.
Rerum Variarum, 1898, n° 128, Parte I. Arquivo Pessoal.

Figura 10: O padre Antônio Alexandrino de Alencar e sua irmã Mathilde.


Arquivo: DHDPG

180
4.2. A condenação orquestrada: a Carta Pastoral de 1893

Com o material em mãos, Dom Joaquim escreveu e publicou a sua primeira Carta
Pastoral390 sobre os fenômenos de Juazeiro.391 Publicada no jornal A verdade, um jornal
católico cearense, provavelmente para fazer frente às inúmeras publicações feitas contra ele
na imprensa ao longo dos anos, entre 1889 e 1893, a carta traz a versão do bispo:

Um sacerdote desta Diocese, piedoso e zeloso, mas original e excêntrico em


suas ideias, dando uma vez a Sagrada comunhão a uma mulher devota,
sucedeu esta lançar sangue, etc.; o Padre impressionou-se, mas calou-se;
como porém se reproduziu o fato na 5ª. Feira Santa de 26 de março de 1891,
um médico que se achava no lugar, levianamente atestou que era
sobrenatural o tal fato. [...] Entre os muitos erros que ensinava, [o padre
Cícero] sustentara que o tal sangue, corruptível e corrupto, era o verdadeiro
Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, etc.392

A argumentação do bispo se baseia na hipótese de que os sacerdotes tinham sido


enganados pelas mulheres. A Carta Pastoral de 1893 possui, apesar disso, um tom
conciliador e trata de fazer uma exposição dos fatos conforme seu juízo acerca dos dois
inquéritos efetuados em Juazeiro, ambos encerrados, conformando um só processo traduzido
para o italiano e enviado à Santa Sé em maio deste ano.
Dom Joaquim faz duas ressalvas importantes logo no início do seu texto. A primeira
era que para ele os fatos já estavam esclarecidos, isto é, o sangue da hóstia não era o sangue
de Cristo e somente devido “a certa insistência por parte de dois sacerdotes desta Diocese”,
uma referência ao padre Cícero e possivelmente ao padre Antero, o caso seria levado à Santa

390
A Carta Pastoral é o instrumento pelo qual um bispo se comunica com seus fiéis e faz parte da tradição
apostólica, remontando à atuação dos Apóstolos de Cristo que transmitiam seus ensinamentos através de
cartas. Além disso, está relacionada a outra prática episcopal que no século XIX foi bastante difundida no
território brasileiro com vistas a reformar o clero: a Visita Pastoral. Ambas as práticas objetivavam “anunciar
e testemunhar o Evangelho” (Reis, 2011: 01), ao mesmo tempo em que cumpriam uma função de controle e
policiamento sobre a vida dos padres e dos leigos que, segundo Francisco Bethencourt funcionava como “um
elemento desestabilizador da acomodação recíproca entre o cura e as ovelhas sob a sua guarda” (2004: 249),
uma vez que, alertados da possível visita episcopal, os padres reordenavam o funcionamento de suas
paróquias com medo de serem punidos.
391
Carta Pastoral de D. Joaquim Vieira publicada em 14 e 21.05.1893 no Jornal “A Verdade”, Ano II, n° 41. A
Carta também foi publicada em um folheto independente pela Typographia Economica impresso em tamanho
¼ com 30 páginas que encontramos no Archivo della Congregazione per la Dottrina della Fede (ACDF),
Roma, Itália. Também há uma versão no jornal A verdade de 14 e 21 de maio, mas esta versão exclui as 11
primeiras páginas do original, no qual o bispo fala sobre os males que atingem o mundo como o: positivismo,
o comunismo etc. No jornal foi publicado só o trecho sobre os fenômenos de Juazeiro.
392
Carta de D. Joaquim Vieira para D. Girolamo M. Gotti em 30.04.1893. ASV.
181
Sé. O bispo queria deixar claro que somente porque os fenômenos foram divulgados na
imprensa “contra as prescrições da Santa Igreja [...] faremos uma sucinta apreciação deles,
antes de confirmamos o juízo que a tal respeito já emitimos”.393
Em segundo lugar, o bispo assinala que apesar da desobediência e da quebra de
hierarquia que o caso de Juazeiro postulava, não era o caráter ou as ações do padre Cícero que
estavam em jogo, pois ele havia sido enganado por Maria de Araújo:

Declaramos que o Revdo. Padre Cícero conquanto iluso e refratário à


disciplina da Santa Egreja, todavia é incapaz de qualquer embuste; outro
tanto não podemos de dizer o mesmo de Maria de Araújo que já foi
apanhada em flagrante falta de sinceridade numa ocasião em que ostentava
ser favorecida de certa graça divina. 394

Estabelecendo então esses pontos de partida, e tomando como base os capítulos I, III e
IV da sessão XIII do Concílio Tridentino395, Dom Joaquim estrutura seu argumento a partir de
três premissas: 1) Cristo está presente na Eucaristia após a consagração do pão e do vinho,
mas somente de modo espiritual; 2) Depois da consagração do pão e do vinho que representa
a morte e ressurreição de Cristo, o Corpo e o Sangue se tornam inseparáveis, isto é, Cristo só
retornaria de modo completo em Corpo, Sangue e Alma; e 3) As espécies sacramentais podem
sofrer alterações, mas a substância do Corpo de N.S. não é sujeito à mudança. Quaisquer
alterações ou corrupção das espécies sacramentais indicariam justamente a ausência de Jesus
Cristo na hóstia.
Neste sentido, o sangue que jorrou em outros casos de hóstias miraculosas como
Bolsena, por exemplo, seria “uma espécie miraculosamente formada”396, ou seja, uma
representação, e não o Sangue real de Cristo. D. Joaquim rechaçava, portanto, a premissa de
que o sangue das hóstias era o “verdadeiro sangue de Cristo”, como os crentes dos fenômenos
acreditavam e propalavam. O Bispo repelia ainda a afirmação das beatas de que o sangue era

393
Jornal A verdade, 14 de maio de 1893, Ano III, n° 41, p. 01.
394
Aqui o bispo se refere provavelmente ao depoimento dado pelo padre Quintino Rodrigues, citado no
segundo capítulo, onde Maria afirmou que mentira sobre uma viagem espiritual. In “Cópia autêntica...”,
p.67.
395
Documentos do Concílio de Trento, Sessão XIII: “Decreto sobre el santísimo sacramento de la Eucaristía:
[...] el mismo sacrosanto Concilio […] prohibe a todos los fieles cristianos, que en adelante se atrevan a
creer, enseñar o predicar respecto de la santísima Eucaristía de otro modo que el que se explica y define
en el presente decreto”. Seguem os Capítulos usados por Dom Joaquim na Carta Pastoral: Cap. 1 - De la
presencia real de Jesucristo nuestro Señor en el santísimo sacramento de la Eucaristía; Cap. 3 - De la
excelencia del santísimo sacramento de la Eucaristía, respecto de los demás Sacramentos; e Cap. 4 - De
la Transubstanciación.
396
Jornal A verdade, 14 de maio de 1893, Ano III, n° 41, p. 01.
182
derramado para anunciar uma “nova redenção”, premissa que segundo o bispo era “contrária à
fé que professamos”, pois conforme a segunda proposição, Cristo “ressuscitou já dos mortos
para nunca mais morrer”397, o que torna a segunda redenção impossível.
A Pastoral escrita com uma narrativa simples e direta tencionava chamar a atenção
dos fiéis para o erro teológico de se considerar o sangramento das hóstias de Maria de Araújo
como um fenômeno de transubstanciação.398 O fenômeno que ocorria no Juazeiro,
argumentava Dom Joaquim, não era nem podia ser o sangue de Cristo: “porquanto o tal
sangue aparecido na boca de Araújo causava enjoo de estômago ao próprio Padre Cícero,
conforme expressões que o mesmo Sacerdote empregou na carta que conservamos”.399
É aqui que o bispo articula as duas teorias: à tese inicial do embuste é incorporada a da
enfermidade, ou ainda, para o bispo o caráter doentio favoreceu a construção da farsa:

[...] ela tem compleição fraca e é doentia; tendo ainda em menor idade, uma
enfermidade qualificada de espasmo [...] Por onde se vê que a beata desde
menina sofria de ataques nervosos (epiléticos) [...] os ataques não cessaram,
apenas mudaram de qualificação: em vez de espasmódicos, foram
denominados maravilhosos! 400

Como uma pessoa doente, seria normal, segundo o bispo, que lançasse sangue com
facilidade e ficasse “a pobre moça pensando que fazia milagres”. Deste modo, encerrou o
bispo: “o fenômeno de aparecimento de sangue nas Sagradas Partículas recebidas em
401
comunhões por Maria de Araújo é mero efeito de causas puramente naturais”. Por que o
bispo teria mudado de ideia?
É possível pensar que a tese da enfermidade talvez fosse até mais defensável, seria
mais fácil provar uma doença, sustentada inclusive em alguns testemunhos e em atestados
médicos do que um embuste, que exigiria uma explicação mais detalhada. Se fosse um
embuste, teria que se explicar como ele foi produzido, que artificio tão perfeito poderia fazer
com que a hóstia sangrasse e mais, sem deixar vestígio de sangue na boca da beata.

397
Idem.
398
Do latim: “trans”: além e “substantia”: “substância”, indica a mudança do pão e do vinho no corpo e
sangue de Jesus Cristo.
399
Jornal A verdade, 14 de maio de 1893, Ano III, n° 41, p. 01. Esta carta nos é desconhecida e no Processo
Episcopal só há referência aos males de estômago de que sofria a própria Maria de Araújo, mas o intuito do
bispo, com essa afirmação, é demonstrar que o sangue de Cristo jamais causaria repulsa a quem quer fosse, e
se a causava é porque não era o sangue verdadeiro de Jesus.
400
Carta Pastoral de D. Joaquim Vieira, datada de 05.06.1893 publicada em 14 e 21.05.1893 no Jornal “A
Verdade”, Ano II, n° 41.
401
Idem.
183
O bispo também se referiu ao equívoco das comunhões feitas por Maria de Araújo:
“recebendo a comunhão, fechava a boca por algum tempo, de ordinário fazia certos
movimentos com o corpo, depois [...] apresentava, é verdade, a Sagrada partícula
ensanguentada”, mas somente depois de ter a boca fechada “por muitos minutos”, tempo
suficiente para provocar o sangramento pela boca: “Eis o fato em resumo: - uma mulher
reconhecidamente doentia, recebendo a comunhão, inquietou-se, agitou-se, fez contrações...
afinal lançou uma porção de sangue com parte da Partícula nas mãos do Pe. Cícero...”.402
Essa observação sobre a posição de Maria de Araújo no momento do sangramento da
hóstia já havia sido feita antes por Dom Joaquim ao padre Clicério da Costa Lobo. Segundo o
bispo, o fenômeno só poderia ser bem avaliado se a beata permanecesse com a boca aberta
durante a verificação. Ele se utiliza principalmente do atestado do Dr. Idelfonso Correia Lima,
que como vimos no capítulo anterior, foi o único a ter alguma dúvida, afirmando que só
creditaria os fenômenos como milagres quando a Igreja o fizesse.
O bispo alude ao fato de que, em primeira instância, o Dr. Idelfonso não pretendia
deixar atestado, mudando de ideia após ter sido chamado pelo padre Cícero “às nove horas da
noite, quando o órgão da vista não pode ver com perfeita distinção certas coisas” para ver uma
transformação dada em uma das hóstias consumidas pela beata. Assim, segundo o bispo, a
“maravilha” se deu pelas circunstâncias suspeitas nas quais os atestados foram emitidos.
Aventamos que houve um esforço do bispo para “salvar” os sacerdotes envolvidos na
questão, entre eles o padre Cícero, pois, admitindo a hipótese do embuste, D. Joaquim teria de
lidar com outra questão delicada: a possível cumplicidade dos padres na fabricação do
fenômeno, o que acabava por desqualificar mais ainda o já tão mal falado clero cearense, o
qual o bispo Dom Joaquim lutava por reabilitar.
O bispo usa os depoimentos contidos no processo para fundamentar seu texto,
afirmando ainda que “a pobre beata, doentia como é, lança sangue com extraordinária
facilidade [...]”.403 O principal depoimento citado é do padre Cícero, uma estratégia para
destruir a possibilidade do milagre, a partir do testemunho da pessoa mais interessada em
prová-lo:

[...] ia o Padre Cícero dar pela terceira vez a comunhão à beata quando esta,
em tom suplicante, disse: - não posso mais, quero essa mesma, referindo-se
à Segunda partícula. Ora, isso prova exuberantemente que a pobre moça,
402
Idem.
403
Jornal A verdade, 14 de maio de 1893, Ano III, n° 41, p. 01.
184
pensando que fazia milagres, sacrificava-se, empregando esforços para fazer
vir sangue à boca. [...] Em vista, pois, do exposto e de muitos documentos
que deixamos de mencionar, declaramos de novo que o fenômeno do
aparecimento de sangue, nas Sagradas Partículas recebidas em comunhão,
por Maria de Araújo é mero efeito de causas puramente naturais. Os outros
fatos, nomeadamente o de aparecimento de Crucifixos ensanguentados nas
mãos de algumas mulheres chamadas beatas, são artifícios dessas pobres
criaturas de imaginação enferma, que talvez não tenham sido inteiramente
responsáveis pelos disparates que hão praticado”. 404

Outra questão dizia respeito à acusação de demasiada credulidade do clero cearense,


aventada pelos bispos de outras dioceses, uma vez que o projeto de reforma da Igreja, e já
desde a realização do Sínodo Diocesano em 1888, do qual falamos antes, a Diocese investia
na educação dos seus sacerdotes, alertando-os justamente contra os perigos do fanatismo e do
culto exacerbado.405
O bispo temia que a “ideia” do milagre estivesse sendo fomentada pela própria
Comissão designada por ele para investigar o fenômeno. Não obstante, em parte de sua
correspondência, ele apresentará os sacerdotes envolvidos como “ilusos” e “mistificados”
pelas beatas. Além disso, as inúmeras falhas cometidas no processo, desde o excesso de
observadores no local, o pouco interesse pela vida pregressa dos depoentes, a falta de
questionamento mais profundo, “o desejo de verdade” próprio ao inquisidor (Cf. Ginzburg,
1990:12).
Na segunda parte da Pastoral, publicada na semana seguinte, em 21 de maio de 1893,
o bispo pretendia mostrar como o milagre é uma manifestação aceita pela Igreja, mas desde
que ele ocorresse no contexto propício:
Os milagres são possíveis, e os tem havido e os há e muitos desafiam a
ciência e resistem-lhe ao escalpelo [...] Negar-se a possibilidade dos milagres
seria impiedade; [...] mas, aceitar-se também como milagre qualquer fato
aparentemente prodigioso, seria nímia credulidade que a Igreja nunca
aprovou.406

O bispo ressalta a importância da obediência às normas e critérios elegidos pela Igreja


para a qualificação um fato como milagroso ou fenômeno digno de culto, a fim de proteger a

404
Idem. Grifos no original.
405
Não podemos esquecer-nos do esforço de D. Luís Antônio dos Santos em acabar com as missões
desautorizadas no Ceará. Ainda em 1889, o jornal Estado do Ceará publicava um artigo sobre certo padre,
Agostinho Affonso Ferreira, acusado de “a troco de reza e disciplina conseguiu fanatizar muita gente,
principalmente inocentes mulheres”. Jornal Estado do Ceará de 15.09.1889, Fortaleza-Ceará. Setor
Hemerográfico da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ.
406
Jornal A verdade, 21 de maio de 1893, Ano III, n° 42, p. 01. Grifos nossos.
185
religião da superstição e fanatismo “em ordem a prevenir tudo o que possa iludir a boa fé dos
fieis e provocar um culto errôneo”.407 D. Joaquim cita o Decreto da Sagrada Congregação dos
Ritos, de 12 de maio de 1877, com relação às aparições marianas de Lourdes e Salette, as
quais foram aprovadas como piedosas, mas não foram aceitas como dogma ou milagre.
Do ponto de vista teológico, realmente era um equívoco chamar os eventos de
milagres, pois qualquer fenômeno só pode ser chamado assim depois de longa averiguação e
aprovação na Congregação para a Doutrina da Fé: “Não se admite novos milagres, nem novas
relíquias, a menos que sejam reconhecidas e aprovadas pelo Bispo” (“Nulla admittenda esse
nova miracula, nec nova reliquiae recipiendas, nisi eodem recognoscente et approbante
Episcopo, etc.”).
O texto da Congregação até admite que se fale ou publique “qualquer fato
extraordinário acompanhado de certos sinais indicativos – de sobrenaturalidade”, mas o
ressalta o cuidado necessário para não considerar como milagre qualquer fenômeno: “a
Imprensa, principalmente a religiosa, deve ser muito discreta [...] e declarando que a
Autoridade competente ainda não se pronunciou sobre ele”. 408
Além disso, mesmo na tradição religiosa que envolve místicos e santos tocados pela
graça divina há certa preocupação quando os fenômenos parecem ser “excessivos”. A própria
Santa Teresa d’Ávila e, antes, seu guia Juan de la Cruz, já alertavam para os cuidados que
esses bem-aventurados deviam ter ao alardear ditos prodígios: “No es condición de Dios –
disse secamente Juan de la Cruz - que se hagan milagros [...] Pierden, pues, mucho acerca de
la fe los que aman gozarse en estas obras sobrenaturales” (apud Valente, 1991: 57).
O tema da obediência retorna ao texto para ratificar a autoridade do bispo de instruir o
primeiro inquérito sem uma consulta prévia a Roma, mas ao mesmo tempo, adjudica à Santa
Sé o poder de estabelecer um novo culto. Ou seja, ele teria o livre arbítrio de analisar
previamente um fenômeno como o ocorrido em Juazeiro, mas a decisão final seria sempre de
Roma. Além disso, segundo ele, só o bispo, amparado pelo poder que lhe dá a Santa Igreja
seria:

[...] a autoridade competente, salvo sempre os direitos do Supremo Chefe da


Igreja, para instruir processo, examinar e julgar os casos de novos milagres
sucedidos em sua Diocese, devendo ouvir Teólogos e varões pios [...]
Grande imprudência, pois, senão falta de bom senso, cometeria qualquer

407
Idem.
408
Idem.
186
particular, mesmo Sacerdote, que pretendesse à sorrelfa ir a Roma tratar de
reconhecimento ou aprovação de novos milagres, insciente Episcopo [...].409

O bispo se refere claramente ao padre Antero que havia viajado para Roma em julho
de 1892, com a escusa de visitar um sobrinho que vivia ali, mas cujo escopo da viagem foi o
de tentar advogar em favor dos fenômenos de Juazeiro.410 Suspeitava-se, inclusive, que o
padre Antero houvesse levado em sua viagem à Cidade Eterna o baú contento os panos
411
manchados de sangue, roubados da Matriz do Crato em 1892. Além da evidente
desobediência, pesava para o bispo o fato de que a população de Juazeiro apoiava a
empreitada. Várias cartas do padre Alexandrino relatam as coletas de “esmolas” para a
referida viagem do sacerdote.
Em 10 de julho, Antero se apresentou à Santa Sé, como o “encarregado de fazer
chegar ao conhecimento da Santa Sé os fatos maravilhosos acontecidos na Diocese de
Fortaleza [sic]”,412 e foi solicitado a fazer uma carta explicando o motivo de sua ida. Na carta
faz uma longa defesa de Maria afirmando sua humildade, que vê-la ou falar com ela é sempre
muito difícil, uma vez que ela não gostava da exposição pública e sofria muito por isso.413
Falou ainda sobre o sangramento da hóstia e as peregrinações advindas do culto, pois
seria “verdadeira a revelação feita [por Maria de Araújo] ao Confessor, ser a vontade de Deus
que tudo venha à ciência da Santa Sé”.414 Por fim, acusa o bispo de perseguição, cuja
“oposição é evidente para todos, e que naquela região reina há muito tempo, um
indiferentismo deplorável em matéria de religião”.415

409
Idem.
410
Uma carta do padre Clicério nos faz suspeitar que em um primeiro momento, o padre Cícero teria
solicitado ao próprio Clicério que levasse a causa à Roma, mas este respondeu indicando o seu colega e
ex-companheiro na Comissão Episcopal: “Era, com efeito, a ocasião mais própria para fazer uma
viagem à Europa; mas meu amigo, além de me falecerem completamente os meios para isso, agora
aproxima-se o inverno [...] Então, lhe fazia ver que o Pe. Antero, não só por conhecer melhor do que eu,
as coisas de Roma; mas, por outro motivo, é quem devia advogar ali a causa do Juazeiro, além de que
havia ele sido escolhido procurador e finalmente – que tendo eu funcionado [sic] como Comissário
parecia que não podia servir como procurador da Causa”. Carta do Pe. Clicério da Costa Lobo ao Pe.
Cícero R. Batista em 06.10.1892 in “Documentário”, p. 28.
411
CRA/DHDPG: 04, 05. Carta do padre Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 09.05.1892.
412
Tradução minha: “Incaricato di far giungere a conoscimento dela Santa Sede i fatti meravigliosi avvenuti
nella Diocesi di Fortaleza [...]”. Rerum Variarum, Doc. 4, ACDF.
413
Tradução minha: “Pur tuttavia quanlunque la religiosa si tenga sempre nascosta e sia difficilissimo il verderla
e parlarle (perchè essa non vuol saperne di tali pubblicità e ha sofferto e soffre moltissimo per queste [...].
Rerum Variarum, Doc. 4, ACDF.
414
Tradução minha: “[...] Quindi è vera la rivelazione fatta al Conf.e. essere volontà de Dio che tutto venga a
notizia della S. Sede”. Relato do padre Francisco Ferrera Antero de 10.07.1892, Rerum Variarum, Doc. 03,
ACDF.
415
Tradução nossa: “[...] qualunque l’opposizione di Mons. Vescovo sia a tutti palese, e in quella contrada regni
187
O sacerdote não deixa clara sua opinião sobre o bispo, entretanto, sua afirmação
parece indicar uma acusação ao bispo: ele não acreditaria no milagre porque reina na região
uma ignorância sobre os assuntos religiosos. Diante disso, o padre Antero foi admoestado e
aconselhado a voltar para casa e esperar uma posição da Santa Sé que deveria antes, consultar
o bispo, deixando claro que havia uma hierarquia a ser respeitada!
Em 24 de outubro, soube-se do retorno dele e de que o intento de audiência com o
Papa havia sido frustrado, havendo o padre falado somente com alguns Cardeais da
Congregação416, entre eles apenas um foi nomeado na carta: o Cardeal Mariano Rampolla del
Tíndaro (1843-1913), Secretário de Estado do Pontificado de Leão XIII, que segundo Antero
teria se mostrado a favor da causa do Juazeiro: “Mandaram fazer a tradução para o italiano e
disseram ao Pe. Dr. Antero que podia voltar certo que tomariam todo interesse pela resolução
da questão”.417 O boato, obviamente, era pura especulação, e a ida a Roma, em clara atitude
de desobediência e transgressão custaria ao padre Antero a perda das ordens sacerdotais e
total descrédito frente à comunidade clerical.
Voltaremos a esse caso mais adiante. Fizemos essa pequena digressão só para mostrar
o esforço do bispo para controlar as ações dos seus sacerdotes e dos fieis através da Pastoral,
contrastando assim, com as ações mais efetivas dos sacerdotes dissidentes que publicavam
notas em jornais e faziam festas, novenas e encontros nos quais o Sangue Precioso era objeto
de culto e devoção. O problema aqui é que o bispo pensava haver demarcado sua autoridade,
quando o processo demonstra que ele foi contestado todo o tempo, inclusive com a clara
rebeldia e mesmo desobediência de seus enviados.
A Carta Pastoral de 1893 terminava com a transcrição de parte da Bula Sanctissimus
de Urbano VIII, publicada em 13 de março de 1625, no que diz respeito às publicações e
divulgações de milagres e revelações sem autorização da Igreja, bem como suas respectivas
punições:
Como se vê, os contraventores deste Decreto incorrem em gravíssimas penas
[...] Sigam os Sacerdotes as regras traçadas pela Igreja – que nunca errarão.
[...] A Santidade não consiste em fantasias, e tampouco em fazer prodígios,
mas na união da alma com Deus pela fé e pela conformidade dos atos
humanos com a lei Divina.418

da lungo tempo un indifferentismo deplorevole in cose di religione”. Rerum Variarum, Doc. 4, ACDF.
416
CRA/DHDPG: 14,117. Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 24.10.1892.
417
CRA/DHDPG: 14,103. Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 14.12.1892.
418
Jornal A verdade, 21 de maio de 1893, Ano III, n° 42, p. 01. Grifos nossos.
188
Depois de publicadas, as Pastorais foram enviadas para as paróquias da Diocese e
deveriam ser lidas pelo pároco responsável durante a missa dominical. A Pastoral de 1893 foi
lida duas vezes pelo padre Alexandrino na Matriz de Crato: a primeira leitura no dia 11 de
maio, dia de celebração da Ascensão de Cristo e a segunda no dia 21, dia de Pentecostes:

A leitura produziu ótimo efeito. Os que não são beatos aplaudiram a


publicação da Pastoral; e aqueles que o são, calaram-se e nada disseram. Só
um sacerdote disse o seguinte: o que o Bispo disse de Maria de Araújo é uma
calúnia; desejava não ser obrigado a declarar isto, porque este mesmo
sacerdote me ofendeu. Foi Monsenhor Monteiro que em minha presença
proferiu aquelas palavras. 419

Se até monsenhor Monteiro, sempre submisso e obediente, ousara dizer que a Pastoral
representava uma calúnia contra Maria de Araújo, o que dizer daqueles que já nutriam certa
antipatia por ele? Ainda segundo o padre Alexandrino, diante do que era expresso na Carta,
José Marrocos e o padre Cícero estariam preparando um “escrito para contestar a Pastoral”.
De fato, em 7 de outubro daquele mesmo ano saia no Jornal O Paiz, (Rio de Janeiro,
07.10.1893), um longo artigo que tomava metade das páginas 3 e 4 do referido periódico. O
artigo, intitulado “Os milagres do Juazeiro – Sua divina realidade – uma reclamação ao
venerando bispo diocesano”, estava na “Seção livre” do jornal, na qual geralmente se faziam
publicações pagas ou a pedido e foi assinado por José Marrocos com a data de 5 de agosto de
1893.420
O principal argumento de Marrocos era que D. Joaquim, arbitrariamente, “decidia” o
futuro da chamada “causa do Juazeiro” ao afirmar que o sangue das hóstias “não era e não
podia ser o sangue de Cristo”. No artigo, Marrocos afirma indignado:

“Não é nem pode ser” [...] [essa afirmação] mais do que imperiosa –
prepotente; mais do que geral – universal; mais do que disciplinar –
dogmática; porque: 1° Si fosse verificado no Juazeiro pela própria comissão
Episcopal o grande milagre da visibilidade da transubstanciação – já estava
decidido que não era nem podia ser de Nosso Senhor Jesus Cristo a carne e o
sangue de seu corpo eucarístico. 2° Se o mesmo milagre se desse na igreja de
Bolsena, em qualquer bispado do mundo, em Roma mesmo – já estava
decidido que o sangue e a carne do corpo eucarístico não era, nem podia ser
de Nosso Senhor Jesus Cristo.421

419
CRA/DHDPG: 4,16. Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 22.05.1893.
420
Imaginamos que essa seja a data da redação final da carta, levando em consideração que foi publicada
somente dois meses depois, possivelmente devido ao atraso dos correios no transporte da carta entre o
Ceará e o Rio de Janeiro.
421
Jornal O Paiz, 07.10.1893, Ano IX, n° 4170, p. 03. BN. Uma cópia desse jornal encontra-se anexada ao
189
Para Dom Joaquim a “reclamação” de José Marrocos era só um dos muitos “escritos
desrespeitosos e insultantes a mim dirigidos”, publicado na imprensa “com o fim manifesto de
me ultrajar, por ter proibido a continuação das profanações e sacrilégios que se praticaram na
Capela do Juazeiro”.422 Conquanto a narrativa do diocesano seja de acusação, a defesa feita
por José Marrocos vitimiza Maria de Araújo e o padre Cícero e transforma D. Joaquim no
grande vilão:

E são dolorosos todos os pontos e todos os motivos que fundamentam, meu


Venerando Pontífice, a indispensável reclamação de seus diocesanos; mas
nenhum confrange mais o coração católico! Nem exora mais vossa missão
de pastor de almas do que Jesus expulso do seu templo e sofrendo no
Sacramento do seu amor que nunca sofreu no sacrifício de sua vida. [...]
Ainda mais – este Padre Cícero suspenso há um ano, [...] como a pobre
Maria de Araújo arrancada ao travesseiro de sua mãe agonizante, como todas
as mulheres do Juazeiro repelidas do confessionário, [...] com o próprio
rebanho de 12 mil almas privadas do seu pastor.423

Fazendo referência à proibição exarada pelo bispo sobre a adoração ao S.S.


Sacramento na Capela do Juazeiro, “Jesus expulso do seu templo”, e do sangramento da
hóstia como uma representação do sofrimento de Cristo, José Marrocos critica algumas das
medidas do bispo antes da decisão final da Santa Sé, mas por equívoco ou deliberadamente
distorce algumas delas. Em um telegrama enviado ao Internúncio Apostólico reclama que as
mulheres do Juazeiro estavam proibidas de irem ao confessionário, quando na realidade a
proibição de confessar mulheres foi dirigida especificamente ao Monsenhor Francisco
Rodrigues Monteiro.
Institucionalmente, Marrocos não tinha nenhum poder, a não ser na divulgação dos
fenômenos, portanto, não há uma razão expressa para que D. Joaquim se preocupasse com a
atividade difamatória deste, mas o fato é que os brados de Marrocos incomodavam o bispo
que detestava ter seu nome envolvido naquela questão e se sentia na obrigação de responder
aos ataques. Além disso, os sacerdotes que deveriam ter ficado ao lado do bispo e tinham
certo trânsito na alta hierarquia, como os padres Antero e Clicério, só o confrontavam. O
primeiro viajou para Roma sem autorização. O segundo quis fundar uma nova comunidade de

Processo do Santo Ofício (ACDF) e pode ter sido enviada por José Marrocos ou pelo padre Clicério da
Costa Lobo, que neste momento vivia no Rio de Janeiro ao Internúncio Apostólico que, por sua vez
anexou ao processo enviado a Roma.
422
Carta de D. Joaquim José Vieira ao D. Girolamo Maria Gotti em 8 de junho de 1895. ASV.
423
Jornal A Província de Recife, 03.09.1893, n° 1999
190
beatas, na cidade do Aracati, como vimos anteriormente. Quando as mulheres começaram a
assumir que estavam fingindo (aliás, depois não se sabe o que aconteceu com elas), ele
mudou-se para o Rio de Janeiro e lá se autonomeou “Procurador da Santa Causa do Juazeiro”,
obviamente sem conhecimento ou autorização de D. Joaquim.
No meio disso tudo, dois polos estão bem definidos: havia aqueles que eram a favor
dos milagres e aqueles que os negavam. Assumir um dos lados significaria, por consequência
estar contra ou a favor da Diocese. É nesse clima de hostilidade que Dom Joaquim, finalmente
decidiu enviar o Processo para Roma. Em sua correspondência com o Internúncio Apostólico
no Brasil, D. Girolamo Gotti, o bispo preparara o terreno para o envio do processo. Prevendo
que teria o absoluto apoio da alta cúpula da Igreja, D. Joaquim orquestra a condenação de
Maria e dos fenômenos ensaiada em sua Carta Pastoral.

191
4.3. “Prodígios vãos e supersticiosos”: a voz da Santa Sé e a Carta de
1894

Em maio de 1893 a documentação foi enviada para a Santa Sé, mais especificamente
para o Cardeal Rafaelle Monaco la Valleta (1827-1896) do Supremo Tribunal da
Penitenciária Apostólica, que naquele momento era o órgão responsável por examinar tudo o
que se referia às doutrinas da Igreja Católica em conjunto com a Congregação para a
Doutrina da Fé. A documentação compreendia o primeiro inquérito conduzido pelos padres
Clicério da Costa Lobo e Francisco Ferreira Antero em 1891, mais os documentos enviados
pelo padre Alexandrino e a Carta Pastoral de 1893:

Em Maio de mil oito e noventa e três, achando-se nesta Capital, de passagem


para Pernambuco, o Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor Dom
Jeronymo Thomé da Silva, então ilustrado Bispo do Pará, e hoje Arcebispo
da Bahia e Chefe da Província Eclesiástica do Norte do Brasil, pedimos-lhes
nos dispensasse a especial benevolência de levar consigo e encaminhar para
a Santa Sé Apostólica o processo do Joaseiro, que lhe entregamos e, seu
original, tal e qual nos foi apresentada ela Comissão que o instruiu,
acrescentado que apenas de mais alguns poucos documentos, e acompanhada
da Nossa precitada Carta Pastoral de vinte e cinco de Março de mil
oitocentos e noventa e três, que já então constituíra parte importante do
mesmo processo, por conter o seu julgamento. O Excelentíssimo e
Reverendíssimo Senhor Don Jeronymo bondosamente aceitou a
incumbência, e no dia vinte e um do mesmo mês fez seguir para Roma
aquele instrumento, com destino ao Eminentíssimo Cardeal Monaco,
sapientíssimo Prefeito da Sagrada Congregação do Santo Ofício. O processo
chegou ao seu destino em Junho seguinte.424

Um ano depois do envio do Processo, foi exarado um parecer assinado pela mesa de
cardeais da Congregação:

Que os pretensos milagres e outras coisas sobrenaturais que se predicam de


Maria de Araújo são prodígios vãos e supersticiosos, e implicam gravíssima
e detestável irreverência e ímpio abuso à Santíssima Eucaristia, por isso o
juízo apostólico os reprova e todos devem reprová-los, e como reprovados e
condenados devem ser tidos. 425

424
Carta Pastoral de 1894 D. Joaquim Vieira in Macedo, 1961:134.
425
Tradução minha: “Minuta di lettera approvata dagli Emi. in feria IV de Aprile 1894. [...] Praetensa miracula
aliaque supernaturalia quae de Maria de Araújo praedicatur vana esse et superstitiosa ostenta, ac gravissimam
detestabilenque irreverentiam et impium abusum SSmãe. Eucharistiae continere ideoque indicio apostolico
reprobari, et ab omnibus reprobandu esse et pro reprobatis et condemnatis habenda.” Feria IV, Die 4 Aprilis
1894, Decreta Universa, ACDF. Ver anexo n° 6.
192
É de se notar que há um hiato na historiografia no que concerne ao período de tempo
entre a ida do processo para Roma e o Decreto da Santa Sé em 1894, isto é, sabemos que o
processo foi enviado e também a decisão da Igreja, mas não como o caso foi analisado ou
visto pela Congregação. Essa lacuna se refere também à documentação do Arquivo da
Congregação para a Doutrina da Fé, inacessível até o momento. Encontramos neste arquivo,
duas pastas referentes ao caso de Juazeiro, catalogadas sob a inscrição Rerum Variarum
1898/128 vol.I et II – Sulla trasformazione della S. Particola in carne e sangue nella boca
della religiosa Maria de Araújo (Diversas matérias 1898/128 vol. I e II – Sobre a
transformação da Santa Partícula em carne e sangue na boca da religiosa Maria de
Araújo).426
O Relatório conservado no Arquivo da Congregação para a Doutrina da Fé diz
respeito ao processo e está dividido em dois volumes, o primeiro com documentos numerados
de 1 a 12 e o segundo com numeração de 16 a 56. Os documentos não obedecem a uma
ordem cronológica e nem alfabética, mas parecem ter sido numerados de acordo com a ordem
de recebimento do material. É intrigante, neste sentido, a falta dos documentos com
numeração entre 13 e 15, e conjeturamos que essas peças faltantes são justamente os
relatórios anteriores ao Decreto e, possivelmente, os documentos produzidos em 1894.427 No
próximo capítulo, analisaremos o Relatório da Congregação produzido em 1898, mas agora
queremos chamar a atenção para algumas questões que dizem respeito à reação popular sobre
a decisão da Santa Sé.
O Decreto foi enviado para o Internúncio Apostólico no Brasil, Frei Girolamo M.
Gotti em 15 de maio de 1894, responsável por informar o bispo cearense sobre o resultado
final e em 25 de julho do mesmo ano, Dom Joaquim a publicou juntamente com uma Carta
Pastoral. Era a terceira vez que Dom Joaquim se pronunciava oficialmente sobre os
fenômenos.428 Na época, muitos o acusaram de forjar uma condenação dos fenômenos e
esconder a verdadeira resolução da Santa Sé. No entanto, a partir da leitura do documento

426
Ver anexo n°5.
427
O Arquivo da Congregação para a Doutrina da Fé, no Vaticano, possui uma sala especial só para os Livros de
Decretos, que são as atas dos encontros da Mesa de Cardeais. Checamos os livros até 1920 e até essa data não
há mais menção às palavras-chaves que usamos, a saber: Maria de Araújo, Juazeiro, Diocese do Ceará e,
padre Cícero Romão Batista.
428
A primeira vez foi com a Decisão Interlocutória de 1891, depois com a Carta Pastoral de 1893.
193
elaborado pela Mesa de Cardeais da Congregação para a Doutrina da Fé, percebemos que
Dom Joaquim amenizou, e muito, o peso das condenações na sua Carta Pastoral.
É significativo também que o único nome citado no documento seja o de Maria de
Araújo, o que chama atenção para a organização da Carta Pastoral, que é diferente do
Decreto. A partir da correspondência trocada entre o D. Joaquim e D. Girolamo, podemos
acompanhar parte do processo de feitura desta Carta, uma vez que ela foi instruída pelo
referido Internúncio. Se anteriormente o bispo tentava ainda argumentar sobre uma possível
origem do sangue que brotava das hóstias, nessa Carta ele se mostra áspero e seguro:

Pouco mais de três anos há que umas certas novidades, revestidas de


circunstâncias particulares, causaram imensa e profunda sensação no ânimo
do Público desta e das outras Dioceses do Brasil, e mesmo de algumas de
além-mar. Foi que na Capela do Juazeiro, povoado pertencente à freguesia
do Crato, desta Diocese, deram-se com Maria de Araújo, moça
reconhecidamente doentia, alguns fatos, que foram classificados na ordem
sobrenatural por dois médicos que firmaram documentos públicos
asseverativos de tal proposição.429

O bispo reafirmou os abusos cometidos pela população e pelos sacerdotes envolvidos


e exigiu a retratação destes sob pena de excomunhão para quem não o fizesse, argumentando
ainda que todos tiveram “plena liberdade e até abuso dela” para escrever, publicar e mesmo
defender a causa em Roma, diz, certamente referindo-se ao padre Antero. Sobre o padre
Cícero, o bispo reiterou que “outrora de bons costumes”, o padre agora estava extraviado da
Igreja, acusando-o de estimular o comércio feito em torno dos fenômenos.
O padre Clicério, como os outros, também estava suspenso foi lembrado como um
sacerdote de “costumes puros, de um passado sem mancha”, mas que se deixou ludibriar e
“enveredou por tortuosos caminhos”. Por fim, afirmou triunfante: “não há mais lugar para
evasivas; não há mais apelação; já não é lícito em consciência a um católico, sacerdote ou
leigo, duvidar sequer de leve. Roma locuta est, causa finita est”.430 Em carta ao Internúncio
comemorava:

Tudo está terminantemente definido, o Clero e o povo desta e das Dioceses


vizinhas aceitaram com alegria e satisfação a Decisão do Santo Ofício; a
teimosia do Pe. Cícero e de alguns poucos habitantes do povoado de Juazeiro

429
Idem.
430
“Roma decidiu, a causa está encerrada” (Idem, p. 137).
194
cessará logo, assim o espero; e esta deplorável história cairá em completo
esquecimento.431

A importância dada à beata tinha uma função disciplinadora, principalmente pela


escolha dos trechos que seriam publicados na imprensa religiosa. Uma parte do Decreto que
envolvia os sacerdotes mais diretamente foi entregue pessoalmente a cada um deles e com
recomendação de reserva, e dizia respeito ao relacionamento destes padres com as beatas
envolvidas na querela:

Proibimos, sob pena suspensionis ipso facto incurrenda, aos Rvdos. Pes.
Cicero Romão Baptista, Monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro, Dr.
Francisco Ferreira Antero, Manoel Rodrigues Lima, João Carlos Augusto e
Vicente Sother d’Alencar comunicarem-se por palavra ou por escrito ou por
interposta pessoa, com as seguintes mulheres: Maria Magdalena do Espirito
Santo de Araújo, Jahel Wanderley Cabral, Maria Leopoldina Ferreira da
Soledade, Maria das Dores do Coração de Jesus, Joanna Tertulina de Jesus,
Joaquina Timotheo de Jesus, Antonia Maria da Conceição, Maria Joanna de
Jesus, Anna Leopoldina d’Aguiar e Rachel Sisnando Lima, que depuseram
432
no processo do Juazeiro.

Os sacerdotes acima também ficavam proibidos de celebrar “o Santo Sacrifício da


Missa e presidirem a qualquer ato religioso na Capela principal do Juazeiro e em outras
Capelas ou Oratórios, que porventura existam na circunscrição do distrito do mesmo
Juazeiro”, e uma prescrição direcionada especificamente ao padre Cícero, mandava que ele
restituísse “tudo quanto recebeu em nome dos pretensos milagres do Juazeiro”.433
Um pouco mais breve que a carta anterior, a Pastoral de 1894, visava encerrar
definitivamente a questão. Dom Joaquim acreditava que o documento da Santa Sé calaria, de
uma vez por todas, as reivindicações feitas pelos sacerdotes, e no texto ele enfatizava
inclusive a tolerância com respeito “as qualidades intelectuais e morais dos ardentes
propugnadores de tais novidades”.434
O bispo observou ainda que o Processo fora enviado à Santa Sé “em seu original
(cópia em italiano) tal e qual nos foi apresentado pela Comissão”.435 Essa preocupação de D.

431
Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo M. Gotti em 04.05.1895. Busta 76, Fasc. 369, Doc. 32, Nunziatura
Apostólica, ASV.
432
Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo Maria Gotti em 13.09.1894. B. 76, Fasc. 369, Doc. 24, ASV.
433
Idem.
434
Carta Pastoral de 1894.
435
Idem.
195
Joaquim é relevante, pois por muito tempo suspeitou-se que ele havia selecionado os
documentos enviados, escolhendo obviamente os que favorecessem a sua opinião. Não
obstante, no Arquivo da Congregação para a Doutrina da Fé, pudemos verificar que foram
incluídas todas as peças do processo em português: a tradução feita para o italiano pelo
próprio Pe. Dr. Francisco Ferreira Antero, secretário da primeira Comissão; os atestados
médicos e testemunhos favoráveis à hipótese do milagre.
Essa dúvida foi responsável pela fama de vilão do bispo, forjada na historiografia
sobre o Juazeiro, principalmente na produção de autores que “defendiam” o padre Cícero.436
Esse juízo de valor partiu dos próprios personagens envolvidos na questão, como o
monsenhor Monteiro e José Marrocos, que invariavelmente se apresentam como vítimas de
perseguição e desconsideram toda uma rede de relações de poder e hierarquia sob a qual a
Igreja funciona.
Em carta dirigida ao Internúncio em 4 de julho de 1894, o bispo comunica a recepção
do Ofício com a sentença da Congregação, e a partir dela elabora uma proposta de publicação:

Pelo que toca a Carta que devo escrever para publicar a sentença do Santo
Ofício, pretendo fazê-la de modo seguinte: serei breve, porque na minha
Pastoral de 25 de Março de 1893 já expus de modo claro a Doutrina da Santa
Egreja sobre o assumpto; farei, apenas uma sucinta exposição das
circunstâncias do processo até à sua remessa para a Santa Sé, etc.; em
seguida publicarei integralmente em latim e em português a Decisão da S.
Congregação, com a assinatura de V. Excia. Revma., na mesma ordem em
que V.Excia. mandou m’a d’uma necessidade, Exmo. e Revdmo. Sr. Haver
toda a clareza possível n’este negócio, porque não só os Padres contumazes,
mas também outros e até mesmo alguns Senrs. Bispos esperam ansiosamente
a Decisão da Santa Sé sobre este caso.

N’estas condições, farei, si V.Excia. Revma. não mandar o contrário, o


seguinte: depois de publicar a sentença integralmente até as palavras Ut
autem hujus modi excessibus finis imponatur et gravivna simul
praecaveantur mala quae ude posseunt, direi:
1° [omitido]
2° Transcreverei o texto inteiro;
3° Idem
4° [omitido]
5° Transcreverei todo o texto;

436
Neste grupo temos Mistérios do Joaseiro, do memorialista Manuel Pereira Diniz (1935), O Padre e a Beata:
vida do Padre Cícero do escritor Nertan Macedo (1969), O Joaseiro do Padre Cícero (1938) e Efemérides do
Cariri (1963) do historiador Irineu Pinheiro, Falta um defensor para o Padre Cícero (1983) do padre
Antônio Feitosa, Padre Cícero: do milagre à farsa do julgamento da pesquisadora Fátima Menezes (1998) e
O Padre Cícero que eu conheci (2001) da professora/memorialista Amália Xavier Oliveira.
196
6° Idem, declarando em seguida que omitimos a transcrição dos 1° e 4°
decretos por conterem disposições particulares, que não é de mister serem
conhecidas do publico.

Excmo. e Revmo Sr. julgo ser de necessidade proceder assim, porque


diversamente, os Sacerdotes contumazes poderão sofismar, dizendo que
ocultei alguma coisa por ser favorável à tal superstição, atualmente
sustentada por má fé; além d’isto, os Decretos da S. Congregação são
ligados entre si de tal modo que o segundo supõe o 1°, e o 5° supõe o 4°.437

As partes omitidas diziam respeito às condenações específicas para os sacerdotes,


enquanto as partes transcritas falavam das beatas, das peregrinações e das relíquias (cadarços,
panos e medalhas). Em seu texto final, e, em acordo com o Internúncio, ficou decidido que na
Pastoral se preservaria o nome dos sacerdotes, citando apenas o de Maria de Araújo.
Era óbvio para o bispo que mesmo aqueles que desrespeitaram a sua autoridade não
teriam coragem de enfrentar ou discutir com a Santa Sé: “A palavra da Santa Sé tem alto valor
entre os católicos, e mesmo entre os acatólicos; por isso considero terminada a questão”.438
Com a publicação da Pastoral com o Decreto da Santa Sé, D. Joaquim esperava acabar com
439
as peregrinações ao Juazeiro e, principalmente, “reduzir os sacerdotes a bons caminhos”.
No entanto, o problema que se acreditava resolvido foi agravado depois da publicação da
Pastoral. A questão dizia respeito à redação do texto.
Escrita em tom completamente diferente da primeira, a Pastoral celebra, para o bispo,
a vitória dos dogmas e autoridade da Igreja. Dom Joaquim se mostrava seguro de si e certo da
vitória contra os “fanáticos” do Juazeiro, declara:

A última palavra foi solenemente proferida: não há mais lugar para evasivas;
não há mais apelação; já não é lícito em consciência a um católico, sacerdote
ou leigo, duvidar nem sequer de leve. [...] Sim, o Grande Pontífice, Chefe
Supremo da Igreja Católica, infalível em matéria de fé e costumes, dirimiu
as dúvidas; o imortal Leão XIII, pelo órgão da S. Congregação do Santo
Ofício, que nada decide sem Sua audiência, falou sobre o caso do
Juazeiro.440

O texto final da Pastoral referente ao Decreto foi assim publicado:

437
Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo Maria Gotti em 04.07.1894. B. 76, Fasc. 369, Doc. 19. ASV.
Grifos no original.
438
Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo Maria Gotti em 30.09.1894. B. 76, Fasc. 369, Doc. 23, ASV.
439
Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo Maria Gotti em 03.08.1894. B. 76, Fasc. 369, Doc. s/n. ASV.
440
Carta Pastoral de 1894 in Macedo: 1961, 137.
197
Decisão e decreto da Sagrada Inquisição Romana Universal sobre os fatos
que sucederam no Juazeiro, Diocese de Fortaleza. Na Congregação de
quarta-feira, 4 de abril de 1894, tendo discutido os fatos que aconteceram em
Juazeiro, da Diocese de Fortaleza, os Eminentíssimos e Reverendíssimos
Padres Cardeais da Santa Igreja Romana, Inquisidores Gerais, pronunciaram,
responderam e determinaram, como segue: Que os pretensos milagres e
quejandas coisas sobrenaturais que se divulgam de Maria de Araújo são
prodígios vãos e supersticiosos, e implicam gravíssima e detestável
irreverência e ímpio abuso à Santíssima Eucaristia; por isso o juízo
Apostólico os reprova e todos devem reprová-los, e como reprovados e
condenados cumpre serem havidos. Para que se imponha um fim a estes
excessos e ao mesmo tempo se previnam mais graves males que daí se
possam seguir:

1º Seja interdito pelos Ordinários de Fortaleza e de todo o Brasil, o
concurso de peregrinos ou acesso de curiosos em visita a ela e às outras
mulheres culpadas na mesma causa.

2º – Quaisquer escritos, livros ou opúsculos editados ou que, por acaso


venham a sê-lo (o que não aconteça) em defesa daquelas pessoas e daqueles
fatos sejam tidos por condenados e proibidos, e, na medida do possível,
sejam recolhidos e queimados.

3º – Tanto a estes sacerdotes, como a outros, sacerdotes ou leigos, proíbe-se


que, por palavras ou por escrito, tratem dos pretensos supracitados milagres.

4º – Os panos manchados de sangue e as hóstias de que se tratou, e todas as


outras cousas guardadas como se fossem relíquias, sejam pelo mesmo
Ordinário recolhidas e queimadas. [Assinado] R. Cardeal Monaco. 441

Eram proibidas visitas a Maria de Araújo ou às mulheres “como ela culpáveis nos
embuste de Juazeiro; era urgente que todos os escritos e medalhas fossem recolhidos e
queimados; os panos ensanguentados (que tinham sido roubados da Matriz do Crato)
deveriam ser devolvidos sob pena de excomunhão para aqueles que os mantivessem, e com
isso, ele acreditava no fim das romarias e que os sacerdotes “desviados” voltariam “à bons
caminhos”.442
O que Dom Joaquim definitivamente não esperava é que a última parte da sua
Pastoral, isto é, as ordens exaradas para cumprimento do Decreto fossem tomadas pelas
pessoas envolvidas como uma arbitrariedade, isto é, para os crentes era mais uma vez o bispo
que estaria influenciando ou intervindo diretamente na questão e não a Santa Sé!
Encarregado de fazer a leitura da Pastoral no Cariri, o padre Alexandrino, em carta
escrita ao bispo em 20 de setembro de 1894, isto é, 10 dias antes da carta dirigida ao
441
Carta Pastoral de D. Joaquim Vieira de 1894 in Macedo, 1961: 137-138.
442
Carta de D. Joaquim Vieira ao D. Girolamo Maria Gotti em 03.08.1894. B. 76, Fasc. 369, Doc. s/n. ASV.
198
Internúncio, narra “as tristes ocorrências que ultimamente se deram no Juazeiro”.443 A
Pastoral foi lida na então Capela de Nossa Senhora das Dores em Juazeiro, no dia 16 daquele
mês, às nove e meia da manhã, o que indica que houve uma convocação expressa para leitura
da Carta em horário diferente do normal das missas.
O padre Alexandrino conta que recebeu diversas ameaças, “se eu tivesse a audácia de
ler a referida Pastoral”, mas mesmo assim a Capela estava cheia de gente disposta a ouvir as
determinações vindas de Roma. O pároco fez a leitura da Pastoral de 1893 e, em seguida, a
de 1894, tendo recebido vaias e gritos da plateia de fieis: “algumas mulheres gritaram: é
mentira, é mentira; e alguns homens e mulheres em não pequena quantidade retiraram-se para
não ouvir a leitura e o sermão”.444
Assim, para a surpresa do bispo, a Pastoral foi recebida com repúdio pelos crentes que
continuavam entendendo que a posição era dele e não resultado de ordem superior, a indicar
as limitações de entendimento dos populares sobre a hierarquia da Igreja: acreditavam ser
perseguidos pelo bispo e provavelmente não entendiam a estrutura da instituição.
Entretanto, em carta de 30 de setembro de 1894, o bispo fala ao Internúncio sobre a
recepção da Pastoral na Diocese: “[...] as Decisões e Decretos do Santo Ofício produziram
maravilhoso efeito no ânimo do Clero e do povo católico esclarecido”.445 Aqui o bispo
destaca a recepção do “povo católico esclarecido”, isto é, as elites e a população que já o
apoiava. É necessário ressaltar como o discurso de Dom Joaquim mudou ao falar com o
Internúncio, pois lidava com um conflito envolvendo a hierarquia.
Ele não queria falar sobre a reação negativa da população geral, obviamente em sua
maioria, de classe mais pobre, pois não desejava demonstrar fraqueza ou falta de pulso, uma
vez que era sua obrigação fazer com que o Decreto fosse cumprido, então ele diz: “sendo,
entretanto de notar-se que há ainda certa obstinação como adiante exporei”.446 O bispo se
refere aqui, especialmente, a um boato espalhado no povoado de que um Papa falso teria feito
os Decretos.447
Ainda naquele mês de setembro, os padres Revdo. Cícero Romão Batista, Monsenhor
Francisco Rodrigues Monteiro e Dr. Francisco Ferreira Antero, “principais figuras da triste

443
DHDPG/CRA: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 20.09.1894.
444
Idem
445
Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo Maria Gotti em 30.09.1894. B. 76, Fasc. 369, Doc. 23, ASV.
446
Idem.
447
Idem.
199
comédia”448, foram chamados à Fortaleza para ouvir a parte do Decreto respeitante a eles, que
deixava a cargo do bispo diocesano o disciplinamento dos padres envolvidos. Os dois
primeiros chegaram no dia 7 de setembro e o último somente no dia 10. Depois de ouvirem as
determinações da Santa Sé, foram obrigados a fazer um retiro espiritual. Ao fim de três dias,
somente o monsenhor Monteiro se retratou. O padre Cícero, por sua vez, ousou confrontar
mais uma vez o bispo, dizendo que a decisão da Santa Sé não tinha caráter de infalibilidade!
Após a saída dos padres, em 13 de setembro de 1894, o bispo fez circular um ofício
com novas determinações, dirigido especificamente aos padres Cícero, Francisco Ferreira
Antero, João Carlos Augusto, Manoel Rodrigues Lima, Vicente Sother d’Alencar e
monsenhor Monteiro:

1ª. Proibimos, sob poena suspensiones ipso facto incurrenda, […] [de]
comunicarem-se, por palavra ou por escrito ou por interposta pessoa com as
seguintes mulheres: Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo, Jahel
Wanderley Cabral, Maria Leopoldina Ferreira da Soledade, Maria das Dores
do Coração de Jesus, Joaquina Timotheo de Jesus, Antonia Maria da
Conceição, Maria Joanna de Jesus, Anna Leopoldina de Aguiar e Rachel
Sisnando Lima, que depuseram no processo do Juazeiro.

2ª. Aos mesmos sacerdotes e debaixo da mesma pena supra mencionada


prohibimos expressamente celebrarem o Santo Sacrifício da Missa e
precidirem a qualquer acto religioso na Capella principal do Joaseiro e em
outras Capellas ou Oratórios, que porventura existam na circunscripção do
districto do mesmo Joaseiro. Estas prescripções terão vigor em quanto não
mandamos o contrário.

3ª. Mandamos ao Rdo. Cicero Romão Baptista restituir tudo quanto recebeu
em nome dos pretensos milagres do Joazeiro, reprovados e condemnados
pela Congregação do Santo Officio. Si não puder restituir as pessoas que
fizeram taes donativos, destribua-os aos pobres e as obras pias. Dada e
passada nesta Cidade da Fortaleza e Camara Episcopal sob Nosso Signal e
Sellos de Nossas Armas aos 13 de Setembro de 1894.449

O Internúncio exigiu de Dom Joaquim notícias periódicas sobre o andamento das


retratações e, entre agosto de 1894 e março de 1897, encontramos doze relatórios enviados à
D. Girolamo, com notícias sobre os padres Cícero, Clicério, Antero e monsenhor Monteiro,
principais envolvidos na questão e também sobre as peregrinações.

448
Idem.
449
CPR/CRA 03, 20: Carta de D. Joaquim Vieira ao padre Cícero Romão em 13.09.1894. Grifo no original.
Uma observação: a citada Joaquina Timotheo de Jesus era uma beata dirigida pelo monsenhor Francisco
Rodrigues Monteiro, por vezes citada também erroneamente como uma das mulheres que dizia
manifestar os fenômenos. No primeiro inquérito ela somente confirma os fenômenos com Maria de
Araújo e, por conseguinte dizia acreditar que eles eram divinos.
200
Ao contrário do que previa o bispo, as romarias ao Juazeiro não cessaram depois da
publicação da Pastoral. O padre Alexandrino relatou a D. Joaquim que alguns peregrinos
chegaram a afirmar:

[…] o povo santo do Juazeiro […] não reconhece poder algum, senão o do
padre Cícero, o novo Papa e ainda, “o povo do Juazeiro em sua quase
totalidade, não aceita a Decisão da Santa Sé [...] não crê em Papa, Bispo, em
qualquer autoridade Eclesiástica. O padre Cícero para eles é tudo, e depois
do padre Cícero, a Maria de Araújo. Quando fui a casa dela – o povo que a
cercava, tendo-a por santa, a contemplava cheio de admiração. 450

Neste momento, já podemos perceber um deslocamento da crença dos devotos para


Cícero, apesar de Maria de Araújo ainda ser procurada. Fica muito claro que não só o bispo,
mas também o padre Alexandrino tinham consciência de que a população não respeitava e
não entendia a lógica da hierarquia eclesiástica.
O padre Cícero, por sua vez, recebeu com surpresa a Decisão da Santa Sé. Convencido
de que o bispo não havia enviado o primeiro inquérito que, segundo ele, demonstrava a
veracidade dos milagres, e principalmente convencido de que o bispo fizera todo o esforço
possível para condenar os fenômenos, começou a alimentar a ideia de ir pessoalmente a Roma
interceder em favor da “santa causa”.
Em carta, infelizmente sem identificação do remetente e sem data, mas que deve ter
sido escrita após o Decreto, o padre relata um pouco de suas impressões sobre a posição do
bispo. Alega que as beatas foram ameaçadas de excomunhão e obrigadas a perjurar e afirmar
“uma confissão de coisas tão imundas e extravagantes que ficaram horrorizadas. E porque
duas se indignaram mais por umas perguntas ofensivas ao pudor e à modéstia o padre
[Alexandrino] ficou zangado e saiu dizendo que elas haviam se comportado mal”.451 Declara
ainda serem falsas as notícias de romarias feitas à Maria de Araújo e que o verdadeiro objeto
de devoção dos romeiros seriam “os fatos que despertaram a fé e piedade do povo”, isto é, o
sangramento da hóstia.
Perseguição. Esse mote estará presente de forma cada vez mais eloquente nas cartas do
padre Cícero: “Pois ali [no Juazeiro] nada mais resta senão recitação do rosário fora da Igreja,
na praça pública, pedindo-se a Mãe da Misericórdia […] que ninguém se perverta no meio da

450
DHDPG/CRA 04,20: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira de 20.11.1894. Grifo no
original.
451
Carta do Pe. Cícero R. Batista, s/data, s/destinatário in Silva, 1982: 72.
201
perseguição, que exclui milheiros de almas de todos os recursos da salvação”,452 diz,
criticando a decisão da Diocese de só prestar os sacramentos a quem negasse acreditar nos
fenômenos de Juazeiro.
O sentimento de perseguição aumentou quando Dom Joaquim deixou claro que ele
não reaveria as ordens sacerdotais se não fizesse uma retratação oficial. Em dezembro de
1894, isto é, seis meses após a publicação do Decreto, Cícero já havia sido convocado três
vezes pela Diocese a elaborar uma carta de retratação e obediência, mas, segundo o bispo,
sempre o fazia com “equívocos” e “tergiversações”, isto é, ele jurava obediência à Igreja, mas
não negava o caráter divino dos fenômenos:

Recebi um novo ofício que V. Exa. Revma. me dirigiu em 28 de novembro


pp. [próximo passado: 28 de novembro de 1894] não se conformando com a
declaração que por escrito fiz da minha obediência à Divisão e Decreto da
Suprema Congregação da Santa Inquisição Romana e ordenando-me que
fizesse outra no prazo de três dias conforme a minuta que enviou-me
prescrevendo-me omitindo a frase, onde dizia que sem detrimento de minha
consciência, eu não podia negar a verdade e a sinceridade do que fui
testemunha […] eu falando assim, não quero de forma alguma sustentar
nem defender os fatos ocorridos no Juazeiro, quando já declarei e torno a
declarar que uma vez que a Sagrada Congregação do Santo Ofício os
condenou e reprovou, eu os condeno e reprovo obedecendo sem restrição
[…] como filho submisso e obediente da Santa Igreja.453

O padre Cícero dizia ser “filho submisso e obediente da Santa Igreja”, mas não
conseguia dizer expressamente que os fenômenos eram falsos, pois “não podia negar a
verdade e a sinceridade do que fui testemunha”. O padre, provavelmente, já sabia que a
Diocese não daria suporte a esse tipo de crença, pois escondeu por muito tempo o que
acontecia, embora fosse próximo ao bispo e, em tese, bom católico.
Nossa hipótese parte do princípio de que a Comissão foi seduzida pelas narrativas dos
fenômenos extraordinários e, principalmente, pelo sangramento da hóstia com Maria de
Araújo, mas é necessário refletir sobre alguns elementos: a ação da primeira Comissão foi
desde o início muito desorganizada, nem Clicério nem Antero respeitaram os limites ou as
determinações do bispo; este, por sua vez, foi muito condescendente, não interferiu quando
convocaram médicos, farmacêuticos; foi admoestado, com razão, pelo bispo Arcoverde.

452
Carta do Pe. Cícero R. Batista ao D. Girolamo Gotti de 16.11.1895 in Silva, 1982: 19.
453
Carta do Pe. Cícero R. Batista a D. Joaquim Vieira em 16.12.1894 in SILVA, 1982: 16. Grifo nosso.
202
O bispo culpava o padre Cícero, “homem original e principal protagonista da
deplorável comédia” e principal fomentador das peregrinações, pois “alimenta nesta pobre
gente uma certa dúvida sobre a Decisão do Santo Ofício”.454 Mais tarde, na sua última Carta
Pastoral, o bispo irá dizer em tom de mágoa que uma só palavra do padre Cícero teria sido o
bastante para cessarem as romarias ao povoado de Juazeiro.455
Sobre Maria de Araújo, as recomendações da Congregação eram para que após a
publicação do Decreto ela fosse convencida a ir para uma Casa religiosa e tomasse como
confessor outro padre “naturalmente entre os aprovados e não suspensos”.456 Sobre isso, o
Internúncio faz uma ressalva importante, flagrante do momento histórico vivido naquele
momento:

Recomendei ao mesmo Monsenhor Bispo [Dom Joaquim] que se abstivesse


de publicar pelos jornais as disposições textuais que ordenava de fechar em
uma Casa religiosa a Maria de Araújo. Parece-me necessária essa reserva:
porque, sendo decretada aqui na Constituição da República a separação da
Igreja e do Estado, não sendo reconhecidas as sentenças dos tribunais
eclesiásticos, e muito menos a competência desses em atos de coação
pessoal externa, há fundamento a temer que a Autoridade eclesiástica viesse
a se encontrar em grave dificuldade ou indisposição se a jovem Maria de
Araújo, ou a sua família, ou outros mal-intencionados viessem reclamar
contra a dita medida nos tribunais civis. Exortai, portanto o Bispo a proceder
cautelosamente e por vias persuasivas.457

Maria de Araújo foi salva pelo novo regime político que se estabelecera e era, de certa
forma, condenado nas suas visões e revelações.458 Entretanto, a reclusão forçada de Maria de
Araújo tinha para o bispo uma forte razão. Apesar da beata nunca ter sido objeto de culto,
estava claro para a Diocese que enquanto ela estivesse “livre”, chamaria demasiada atenção

454
Idem.
455
Carta Pastoral de D. Joaquim Vieira de 1898 in Macedo, 1969: 149.
456
Tradução minha: “naturalmente tra gli approvatti e non sospesi” in Rerum Variarum 1898, n° 128, Doc. 16,
Parte II, p. 23.
457
Tradução minha: “Raccomandai allo stesso Monsignor Vescovo che si astenesse di publicare per la stampa la
testuale disposizione che ordinava di chiudere in una Casa religiosa la Maria de Araujo. Mi parve necessaria
questa riserva: perchè, essendo qui decretata nella Costituzione della Repubblica la separazione della Chiesa
dallo Stato, non essendo riconosciute le sentenze dei tribunali ecclesiastici, e molto meno la competenza di
essi in atti di coazione personale esterna, si aveva con fondamento a temere che l’Autorità ecclesiastica
venisse a trovarsi in gravi difficoltà o molestie se la giovane Maria de Araújo, o la sua famiglia, o altri
malintenzionati avessero reclamato contro la detta misura presso i tribunali civili. Esortai pertanto il Vescovo
a procedere cautamente e per vie persuasive” in Rerum Variarum 1898, n° 128, Doc. 16, Parte II, p. 21.
458
Apesar de não serem completamente apologéticas à Monarquia, as visões narradas pela beata remetiam a
elementos do Império, como o anjo custódio, além de condenarem o casamento civil e as “novas filosofias”
em voga naquele momento.
203
não só pelos fenômenos de sangramento da hóstia (estes diminuíram e cessaram finalmente
em 1894), mas também pelas histórias que começaram a contar sobre ela, mostrando como o
caso saíra totalmente do controle, dele e dos sacerdotes que a acompanhavam.
O aspecto institucional, no entanto, diferencia esse caso de outros similares, nos quais
as mulheres foram julgadas e condenadas como embusteiras pela Igreja desde o século XVI: a
falta de método dos sacerdotes da Comissão, a desobediência do próprio clero, a fraqueza do
bispo e a ousadia dessas mulheres e, principalmente, de Maria de Araújo que mesmo
ameaçada não se retratou. Toda a condução do caso é muito estranha, sem sigilo, direção ou
autoridade, aspecto agravado pela gravidade e repercussão do caso, ainda mais porque não
encontramos indícios de que o bispo foi admoestado pela Santa Sé.459
Mas a questão não só não havia se resolvido, como a partir daí acirravam mais e mais
os debates teológicos sobre o fenômeno do sangramento. No meio dessa querela, estava Maria
de Araújo, a devota/instrumento dos milagres, de cuja voz só escutamos o eco. Nas outras
mulheres, pouco se falava. Nesse momento, o único que parece lembrar-se delas é o padre
Alexandrino, preocupado com as retratações, as quais devia prestar conta ao bispo.
A publicação do Decreto de 1894 mudou os rumos da devoção ao Sangue Precioso no
Juazeiro e forçou o bispo cearense a se empenhar para obter a retratação das pessoas
envolvidas na questão religiosa de Juazeiro. O trabalho seria descomunal: reunir beatas,
sacerdotes, leigos, enfim, todos aqueles que testemunharam no Processo, publicaram artigos
na imprensa ou de alguma forma estimularam as peregrinações ao Juazeiro deviam desdizer o
milagre, soterrando assim qualquer “movimento estranho” que pretendesse desunir os fieis e a
Diocese. Mesmo a ameaça das punições previstas pelo Decreto: perda do hábito e dos
sacramentos; para Maria de Araújo, reclusão em uma casa religiosa; para algumas mulheres
que moravam na Casa de Caridade, a ameaça de expulsão pairava como uma sombra
amedrontadora; e, por fim, perda definitiva das ordens para os sacerdotes, não foi o suficiente
para acelerar o processo de retratações e novos conflitos se anunciavam.

459
Nas cartas trocadas entre ele e o Internúncio (as que tivemos acesso, ao menos), as orientações são feitos
sempre em relação ao caso, mas não há uma reclamação direta ao bispo.
204
Figura 11: Congregação para Doutrina da Fé –
Mesa de Cardeais que avaliaram o caso de Juazeiro460

Cardeal Rampolla del Tindaro Cardeal Monaco La Valetta

Cardeal Lucido Maria Parrocchi Cardeal Seraphino Vannutelli

460
As imagens foram retiradas do site: http://www.araldicavaticana.com
205
Cardeal Gaetano Aloisi Masella Cardeal Teodolfo Mertel

Cardeal Isidoro Verga Cardeal Camillo Mazzella


206
CAPÍTULO 5

As fabricantes de milagres e o reordenamento da


crença

D
esde 1893, D. Girolamo Gotti recebia cartas, pedidos e abaixo-assinados vindos do
Juazeiro solicitando revisão do caso e a devolução das ordens sacerdotais dos padres
envolvidos, entre outros pedidos.461 Logo após os episódios ocorridos no Aracati, o

e
próprio padre Clicério da Costa Lobo, ex-comissário episcopal, mudou-se temporariamente
para o Rio de Janeiro aonde se apresentou ao Internúncio Apostólico como “Procurador da
Causa do Precioso Sangue”.462
Encontramos um conjunto de abaixo-assinados encaminhados pelo padre Clicério no
Arquivo da Nunciatura Apostólica em Roma, e entre eles, há inclusive declarações assinadas
pela beata Maria da Soledade, afirmando que a hóstia sangrara também na sua comunhão,
bem como do padre Vicente Sother atestando que a mesma beata era “incapaz de qualquer
fraude ou simulação”.463 Além disso, há petições de romeiros, redigidas por José Marrocos,

461
Nas pastas dos Salesianos (sob n° 33, 35, 37, 38, 39 e 43) que estão arquivadas no Departamento Histórico
Diocesano constam cerca de vinte petições das Câmaras Municipais de Crato, Brejo Santo, Porteiras,
Barbalha, Santana do Cariri e Fortaleza solicitando desde permissão para o padre Cícero celebrar missa até a
reabilitação completas das ordens. Transcrevemos parte desse arquivo durante a nossa pesquisa.
462
Como dissemos anteriormente, essa foi uma iniciativa própria, sem o conhecimento ou autorização do bispo.
Ver: Abaixo-assinado solicitando a celebração da Semana Santa na Capela do Juazeiro de 17.06.1893,
assinado pelo Pe. Clicério, com a observação em italiano Non considerata (B. 76, F. 369, Doc. 56, ASV)
463
Abaixo-assinados (vários) entre 1893/1895. B. 76, F. 369, Doc. 26.
207
embora tenham sido assinadas pelo padre Clicério, acusando o bispo de proibir a confissão de
peregrinos e beatas no Juazeiro, “proibida ali a celebração dos atos da Semana Santa”.464
O conflito entre os fieis foi severamente agravado por essas queixas feitas diretamente
ao Internúncio, sem intermediação da Diocese. Provavelmente admoestado pelo Internúncio,
Dom Joaquim tenta se defender: “Sei que alguém tem procurado ocupar o precioso tempo de
V. Exa. Rma. com a história dos falsos milagres de Juazeiro [...] parece incrível que
sacerdotes, aliás, de bons costumes e regularmente instruídos praticassem tantos desatinos [...]
Tais são as fraquezas do espírito humano, quando desviado do ensino da Santa Igreja”.465
Urgia então, conseguir as retratações dos principais envolvidos. O responsável por essa
missão era o padre Alexandrino de Alencar, nomeado também pároco da cidade do Crato.
Neste capítulo analisaremos um conjunto epistolar de quase trezentas cartas, no qual
temos um retrato bastante claro do quão difícil era a tarefa, uma vez que a crença no milagre
parecia entranhada profundamente na mentalidade do povo. Autodeclarado “mártir da
obediência”,466 o padre Alexandrino, como era de esperar, inicialmente concentrou seu
esforço para conseguir a retratação das beatas envolvidas, protagonistas, segundo ele, de uma
“farsa imoralmente urdida e pessimamente executada”.467

464
Idem.
465
Carta de D. Joaquim Vieira ao Internúncio Apostólico em 16.11.1893. B. 73, F. 356, doc. 4, ASV.
466
DHDPG/CRA 04,04: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 02.05.1892.
467
DHDPG/CRA 04,09: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 09.08.1892.
208
5.1. “Escreviam o que queriam”: a retratação das beatas

[...] esta história do Juazeiro não tem importância alguma, e já teria caído em
completo olvido, se não fora o capricho de alguns sacerdotes que se
comprometeram imprudentemente, e agora não tem coragem bastante para
confessarem a mistificação de que foram vítimas.468

Em 20 de agosto de 1894, D. Joaquim enviou ao padre Alexandrino um documento


que apresentava o seguinte cabeçalho: Instruções que devem ser fielmente observadas no
tocante às pessoas envolvidas nos fatos do Juazeiro. Essa carta dava instruções diretas ao
pároco do Crato sobre como proceder a fim de obter as retratações das mulheres:

Chegam àquela casa [refere-se à Casa de Caridade do Crato] sem prévio


aviso [...] fará vir a sua presença a mesma superiora, a quem recomendará
toda ressalva e segredo e lhe ordenará que chame em uma sala na mesma
capela as beatas Antônia Maria da Conceição e Maria Joana de Jesus [beatas
que moravam na Casa de Caridade], que depuseram no processo; presentes
as ditas beatas, o Revdo. Capelão e Superiora da Casa, diz-lhes o seguinte:
‘– Em obediência às ordens do Sr. Bispo Diocesano declaro-lhes que, tendo
a Santa Sé Apostólica condenado os embustes do Juazeiro como detestável e
ímpio abuso da divina Eucaristia, e tendo as senhoras deposto no processo
muitas falsidades, todas por exaltação da fantasia, chegando a senhora
Antônia a apresentar partículas aos Padre da Comissão, [ilegível] dizendo
com Nosso Senhor falar [...] manda-lhe dizer o Senhor Bispo que se as
Senhoras confessarem tudo à mim e ao Revdo. Capelão e a Senhora
Superiora ficarão privadas e continuarão a residir nesta casa, ficando tudo
em reserva; se, porém, negarem-se a confessar suas faltas, serão expulsas’
[...].469

Nesta carta o bispo ainda dava instruções referentes ao procedimento com Maria de
Araújo, que novamente deveria ser intimada a internar-se na Casa de Caridade “devendo
empregar todos os meios suasórios [...] Se, a despeito de tudo, continuar a resistência por
parte de Araújo ou de sua família dela, deverá intimá-la a deixar o hábito religioso de que usa,
ficando a mesma, além disso, privada dos Sacramentos”. Lembremos que essa carta é de
agosto de 1894, o que significa que há pelo menos três anos o bispo insistia no recolhimento
de Maria de Araújo e considerava a resistência dela à retratação uma má influência para as
outras beatas:

468
Carta de D. Joaquim Vieira para D. Girolamo M. Gotti em 17.02.1894. B. 76, Fasc. 369, Doc. 13, ASV.
469
CPR/CRA: 04.01: Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Alexandrino de Alencar em 20.08.1894.
209
Maria de Araújo, a célebre embusteira, no dia 28 de Março último, contra
minha ordem expressa, retirou-se da Casa religiosa da Barbalha, onde se
achava recolhida; só demorou-se ali seis meses, durante os quais não quis
confessar-se. O Revdo. Pároco da Barbalha, a cuja vigilância estava ela
confiada fez-lhe ver que não podia retirar-se contra minha ordem; ela,
porém, a nada atendeu e lá se foi para o Juazeiro.470

A beata recebia pessoas em sua casa471 que observavam curiosas os estigmas e


crucificações: “[...] fui à casa da referida beata, e lá chegando, encontrei a casa repleta de
mulheres talvez umas duzentas e o terreiro e imediações ocupados por uma massa compacta
de uns quinhentos e tantos homens”,472 conta o padre Alexandrino:

[...] intimei pessoalmente em uma casa contígua à Capela, Maria de Araújo à


recolher-se a Casa de Caridade de Barbalha. Disse que estava pronta à ir,
animei-a à obedecer e ela continuou dizendo que ia consultar a família. Dei-
lhe um prazo de quatro dias para refletir e este prazo expirou no Domingo
(16 do corrente em que li a Pastoral) Neste mesmo dia apareceram-me os
dois irmãos mais velhos e disseram-me que Maria de Araújo estava
prostrada e nestas condições não podia seguir para a Barbalha.473

Assim, uma das “provas” de que Maria de Araújo não era e não podia ser santa era sua
personalidade arrogante e desobediente, marcada pela falta de humildade, contrariando alguns
dos principais pré-requisitos de santidade. Além disso, o padre Alexandrino deveria controlar
também a população que acreditava piamente nos milagres.
A desobediência às Decisões da Santa Sé, portanto, não partia somente dos sacerdotes
e beatas envolvidos no processo episcopal. O povo também se recusava a obedecer, mesmo
correndo o risco de morrer sem a absolvição dos pecados. Até antes de setembro de 1894, o
padre Cícero – mesmo com ordens suspensas – podia ainda celebrar missa fora dos limites de
Juazeiro (faculdade que foi retirada definitivamente em janeiro de 1895). Assim, para atender
à necessidade da população, ele costumava celebrar na capela do Sítio Saquinho, um lugar
distante dois quilômetros e meio da cidade do Crato, como narra Paulo Elpídio de Meneses,
memorialista cratense e contemporâneo aos eventos:

470
Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo M. Gotti em 04.05.1895. Busta 76, Fasc. 369, Doc. 32, ASV.
471
Desde a execução do primeiro inquérito que Maria havia se mudado para a casa da mãe e alternava as estadias
lá e nas Casas de Caridade de Barbalha e Crato.
472
DHDPG/CRA 04,24: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira de 20.09.1894.
473
DHDPG/CRA 04,24: Carta de Pe. Alexandrino de Alencar para D. Joaquim José Vieira em 20.09.1894.
210
Em um desses dias, reservado ao descanso, fui a Juazeiro. Passando pelo
Saquinho encontrei o padre [Cícero] à frente de uma considerável procissão.
Mas, sem santo. Em Juazeiro, encontrei um sacerdote dizendo missa por
ordem do Bispo. A vila, no entanto, dava a impressão de que se encontrava
sem viva alma. O enviado à Santa Sé celebrou ouvindo as moscas voarem,
no espaçoso templo de Nossa Senhora das Dores […] (Menezes, 1985: 65).

Ir assistir à missa do padre Cícero e deixar o “sacerdote do bispo” sem público, se se


configurava naquele momento como uma tática de resistência às ordens do Diocesano, isto é,
os crentes continuavam ratificando a fé nos “milagres”, mas sem deixar as obrigações cristãs;
mas também era um claro ato de desobediência, ainda mais no momento delicado em que a
Igreja estava.
Na mesma carta citada acima, de 20 de setembro de 1894, o padre Alexandrino
escreveu ao bispo contando como fora sua primeira aproximação com as beatas depoentes no
primeiro inquérito, que alegavam manifestar algum tipo de fenômeno igual ou similar aos de
Maria de Araújo:

Ontem fui à Casa de Caridade com o Padre Joaquim Sother avisado uma
hora antes em nossa casa e lá chegando, chamei a parte a Superiora para ver
o motivo de nossa viagem ali. Entramos em sua sala secreta para onde
mandei chamar Antônia Maria da Conceição e Maria Joana. Logo que
chegaram, fiz o que V.Exa. determinou. A Maria Joana, depois de alguma
hesitação, declarou ser falso o que dissera no depoimento exarado no
processo e a outra sustentou o que dissera no processo, notadamente ter de
Deus recebido as partículas. Contestei-a, dizendo ser isto impossível, e
animei-a a dizer a verdade. Tudo foi baldado; nada se conseguiu. Dei a
mesma beata o prazo de três dias fazendo-lhe ver as penas que lhe seriam
impostas, se não falasse a verdade. 474

As únicas beatas que se retrataram facilmente foram Maria Joana e Anna Leopoldina,
a primeira, provavelmente, por medo de ser expulsa da Casa de Caridade como preconizavam
as ameaças do padre Alexandrino. A segunda era de uma família abastada da cidade do Crato,
e estava de casamento marcado “depois de correrem boatos infamantes dela beata com o
referido primo […] há dias impetraram dispensa de parentesco, e licença de hora, lugar e
dispensa de banhos a fim de não haver escândalos. A beata impetrou também dispensa do
voto de castidade”.475

474
DHDPG/CRA 04,24: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 20.09.1894.
475
DHDPG/CRA 08,02: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 30.06.1894.
211
Nessa carta, o padre Alexandrino chama atenção para uma importante questão naquele
contexto: ele questiona o comportamento dos sacerdotes que “extorquiam votos de moças de
tenra idade e inexperientes […] a maior parte das beatas daqui estão ligadas por ritos e outros
votos de igual natureza”.476 A crítica era válida.
A interferência dos padres e diretores espirituais na vida de suas dirigidas foi um dos
grandes problemas da tradição espiritual, principalmente, porque muitas vezes os padres
sujeitavam as dirigidas às práticas de mortificação e penitência para as quais elas não estavam
preparadas, surgindo daí os diversos casos de desvios e de “falsa santidade” que lotam os
arquivos da Inquisição (Cf. Tavares, 1996). Infelizmente, pouco sabemos sobre a direção
espiritual da maioria destas mulheres, ao que consta, Cícero e monsenhor Monteiro eram os
confessores da maioria delas.
Notável é a retratação de Anna Leopoldina que, ao ser perguntada sobre os fenômenos
que dizia manifestar, especialmente visões com santos e viagens espirituais ao céu e ao
purgatório, respondeu “perante duas testemunhas nunca ter dito o que estava no processo. Não
me lembro que isto se desse, me disse ela. Escreviam o que queriam.”477 Colocar a culpa na
primeira Comissão Episcopal funcionava como uma tática para se livrar da responsabilidade,
no caso de Anna Leopoldina, motivada por dois fatores: o de pertencer a uma família
tradicional do Crato, gerando aí um conflito social com a Diocese do Ceará, e o fato de estar
de casamento marcado. A afirmação de Anna nos faz pensar ainda sobre os limites entre o que
foi narrado pelas mulheres e o que foi transcrito pelos padres. Em que medida, o escrivão
interferira – incrementando os detalhes –, nos relatos das mulheres?
O documento expedido por Dom Joaquim fazia ressalva ainda a uma diferenciação na
aplicação de penas e penitências às beatas envolvidas. Jahel Cabral, Maria das Dores e
Joaquina Timóteo deviam ser intimadas a depor o hábito religioso, mesmo que viessem a se
retratar, e caso resolvessem “confessarem suas faltas” deviam cumprir algumas penitências
“como a privação da comunhão por algum tempo”. Para Rachel Sisnando e Anna Leopoldina,
que eram comprometidas (Rachel era casada e Anna estava noiva), as penas foram mais
brandas. Caso confessassem os embustes deveriam ser repreendidas e os sacramentos seriam

476
Idem.
477
DHDPG/CRA 04,24: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 20.09.1894.
212
limitados por um tempo, mas “de modo que não cause qualquer perturbação na vida
conjugal”.478
A beata Antônia Maria da Conceição foi uma das mais relutantes e contraditórias.
Tendo sido procurada várias vezes pelo padre Alexandrino, ela mantinha o que dissera em seu
primeiro depoimento, “notadamente ter de Deus recebido as partículas”.479 Talvez assustada
com as ameaças feitas pelo pároco do Crato, dois dias depois do primeiro encontro com o
padre Alexandrino, em 22 de setembro, Antônia confessa que:

[...] são falsas todas as declarações constantes de um depoimento dela no


processo do Juazeiro, e que, por conseguinte nunca teve revelações de
espécie alguma, nunca tendo visto ou ouvido nada que se referisse ao
Juazeiro; que Jesus Cristo, Maria Santíssima e S. José nunca lhe apareceram,
que os êxtases, que se diz lhe ter sobrevindo na ocasião de seu depoimento
foi todo fingido, que as partículas na mesma ocasião apresentadas foram por
elas levadas para o fim de passá-las como miraculosas, que tudo o mais que
afirmou em seu depoimento no processo não passa de grosseiro embuste do
qual está sinceramente arrependida.480

No entanto, por alguma razão que não fica muito clara, a beata retornou dias depois da
sua retratação à presença do padre Alexandrino:

[...] a qual depois de haver confessado os embustes que praticou, como V.


Exa. terá visto no documento remetido em dias do mês passado – veio à casa
de minha residência, no dia 4 do corrente à tarde [4 de outubro], declarou-me
que não falou a verdade na retratação passada naquele mesmo documento.
Disse-lhe eu: ‘– A senhora falou a verdade, agora quer negá-la’. A
retratação já deve estar em poder do Senhor Bispo; por tanto é impensado
conversar mais sobre estas coisas. Se continuar a sustentar suas velhacadas e
embustes, será expulsa da Casa de Caridade e privada de todos os
sacramentos.481

As ameaças continuam no sentido de manter a confissão. Aqui entra em jogo também


a própria pressão sofrida pelo padre Alexandrino, cobrado constantemente pelo bispo Dom
Joaquim, por sua vez, cobrado pelo Internúncio. Nesse sentido, a trajetória dessa relação de

478
CPR/CRA: 04.01: Carta de D. Joaquim Vieira ao Pe. Alexandrino de Alencar em 20.08.1894.
479
DHDPG/CRA 04,24: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 20.09.1894.
480
Carta anexa ao segundo inquérito, datada de 22.09.1894 in “Cópia autêntica...”, p. 71. Versão transcrita por
Salatiel Barbosa.
481
DHDPG/CRA 04,26: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 20.10.1894. Grifo nosso.
213
poder era vertical e hierárquica, atuando a partir de dispositivos de controle, fixando-lhes
limites e prazos.482
Dez dias depois, em 14 de outubro, ele voltou a procurá-la na Casa de Caridade,
encontrando-a doente. Perguntada novamente se afirmava serem verdade os embustes que
testemunhara no processo, ela confirmou, sendo então expulsa em definitivo da Casa de
Caridade e privada do uso do hábito religioso e dos sacramentos:

Perguntei a ela na presença da Superiora, se ainda sustentava o que havia


deposto no processo [leia-se, primeiro inquérito]? Respondeu que sim.
Disse-lhe então: ‘– Tu não mereces fé, és uma perjura, indigna de estar nessa
casa, onde sempre te comportaste mal, desobedecendo à Superiora e vivendo
na ociosidade. Por atenção a Monsenhor Monteiro que foi sempre benfeitor
desta casa [e que havia sido o confessor dela], não foste a mais tempo
expulsa. Deponha o hábito religioso, e saia imediatamente desta casa, e fique
sabendo que está privada dos sacramentos’.483

O padre Alexandrino atribuiu o comportamento instável de Antônia Maria à influência


das outras beatas. Segundo ele, dias antes de Antônia voltar atrás no seu depoimento, outras
quatro beatas sustentaram obstinadamente a sobrenaturalidade dos fatos ocorridos ali.484 Ele
se refere às beatas Maria da Soledade, Maria das Dores, Jahel Cabral e Joana Tertulina.
Em fins de abril de 1895, já expulsa da Casa de Caridade e proibida de usar o manto
de beata, Antônia procurou o padre Alexandrino, conforme ele narra em carta de 21 de maio
do mesmo ano, a fim de que o mesmo padre a confessasse:

Procurou-me e pediu em todo empenho que eu a confessasse ao que respondi


que só o faria se ela descobrisse todos os embustes que pôs em ação. Disse
ela que descobriria tudo, e faria o que eu determinasse. Efetivamente, muitos
dias depois desta entrevista, veio a casa de minha residência onde, perante
mim, o Pe. Miguel e os três signatários do documento – fez sem
constrangimento algum as revelações nele exaradas depois de juramentada.
Exmo. Sr., Antônia desta vez falou a verdade que já uma vez teve a
infelicidade de negar, perjurando. Ela está convertida sinceramente [...].
Depois de declarar a Antônia que a confissão dela devia ser geral, impus-lhe
a ela diversas penitências, ordenei que fizesse um diligente exame de uns dez
dias e já comecei a confessá-la, o que soube religiosamente cumprir.
Notando nela excelentes disposições resolvi-me marcar a comunhão dela
para o dia da Ascensão. Agora veio-me a mente perguntar a V. Exa. o
seguinte: se Antônia quiser depois de algum tempo andar de manto e mesmo
482
Sobre os conceitos de disciplina, dispositivos de poder e controle ver Foucault, 1987: 143: “O poder
disciplinar é, com efeito, um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior
‘adestrar’, ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor”.
483
Idem.
484
Idem.
214
ir para a Casa de Caridade eu devo permitir? Eu serei dora [sic] [de agora]
em diante o Diretor dela, isto a pedido que me fez [...]. 485

Outras beatas também dificultaram o trabalho do padre Alexandrino. A principal tática


usada por elas era eventualmente dar alguma desculpa para não comparecer às “conferências”
por ele convocadas: “a esquivança delas para comigo, porque sabem que eu não dou crédito
às revelações, êxtases e outras peloticas e escamotagens [sic] que fazem”.486 Um exemplo dos
subterfúgios utilizados por elas eram os bilhetes enviados de última hora, explicando que não
podiam ir “em virtude dos muitos ataques espasmódicos que constantemente sofro como V.
487
Revma. sabe” , assim a doença aparecia novamente como recurso de fuga às investidas do
pároco do Crato.
A beata Joana Tertulina, por sua vez, alegou também uma perseguição infundada por
parte de Alexandrino que lhe havia intimado a tirar o hábito de beata: “Não sei por que o Sr.
Bispo me castiga com as outras; eu não tive graças particulares como elas afirmam. No meu
depoimento tudo quando disse foi baseado no que me disseram outros entre os quais alguns
sacerdotes”.488 Não é necessário dizer que ela jamais retirou o hábito ou retratou-se, sempre
apoiada pelo padre Cícero. Além disso, essa fala de Joana deixa clara a influência dos
sacerdotes nos depoimentos do primeiro inquérito, mostrando como eles conversaram sobre
os fenômenos antes da chegada Comissão, o que interferiu no que foi dito e, por sua vez,
transcrito.
Com tanta resistência, frequentemente o padre Alexandrino teve que explicar ao bispo
seu insucesso, atribuindo-o ao grande trabalho na freguesia, uma vez que poucos padres ali
estavam autorizados a confessar e ministrar sacramentos. Obviamente, ele também culpava a
rebeldia das beatas e sacerdotes que, segundo ele, atrapalhavam o andamento do trabalho. O
bispo, por sua vez, exigia que o pároco do Crato fosse mais enérgico com as beatas, ora,
quanto mais aquela resistência iria durar?! O padre Alexandrino se defende:

485
DHDPG/CRA 08,16: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 21.05.1895. Ela também
foi proibida de se comunicar com o José Marrocos e o padre Cícero. Mais tarde, José Marrocos irá dizer que
o Pe. Alexandrino para conseguir a retratação ameaçou a beata com o inferno. Ver: DHDPG/CRA 08,17:
Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 27.05.1895.
486
DHDPG/CRA 14,111: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 20.09.1892.
487
DHDPG/CRB 02,10: Bilhete de Maria Leopoldina da Soledade ao Pe. Alexandrino de Alencar em
02.09.1894.
488
DHDPG/CRA 04,28: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira de 16.05(?).1895). A beata
Mocinha sempre afirmou sua fidelidade ao padre Cícero e aos milagres de Juazeiro e jamais negou essa
proposição até a sua morte em 20 de abril de 1944, ocasionada por um câncer de fígado (Cf. Alencar;
Meneses: s/d: 17).
215
Sr. Bispo, eu tenho sido prudente quando se trata do negócio do Juazeiro,
mas nunca condescendi com as beatas e muito menos com as milagrosas.
Estas nunca se confessam comigo e as outras que vão ao meu confessionário
reconciliar-se com Deus tem sido muitas vezes ameaçadas de não serem
absolvidas se comungarem mais do que eu permito.489

Em outra carta, ele conta ao bispo que pelo menos uma vitória já estava certa,
conseguira que a beata Jahel Cabral aceitasse fazer a retratação: “A Jahel está separada da
comunhão do Pe. Cícero e das santas do Juazeiro. Estas últimas, nem sequer, consentem que
ela as acompanhe do Juazeiro para esta cidade”.490 Em carta a D. Girolamo Gotti, de 4 de
fevereiro de 1895, Dom Joaquim lamenta não haver conseguido ainda a retratação de Maria
de Araújo. Segundo ele, “até o presente, esta abominável mulher tem ocultado os embustes e
sacrilégios que cometeu: não procura confessar-se e nem poderá ser absolvida enquanto não
revelar extra confessionem os horrores que praticou”.491
Para o padre Alexandrino a peculiaridade entre as beatas do Cariri é que “em vez de
serem dirigidas querem ter a ousadia de dirigir os confessores, o que deu lugar ao meu mano
padre Francisco dizer que não gostava de dirigir e confessar as mulheres do Cariri, e
particularmente desta cidade, porque [elas] queriam saber mais que os padres”.492 Suas
maiores queixas eram com relação ao comportamento de Maria de Araújo, Marias das Dores,
Maria da Soledade e Joana Tertulina, segundo o padre Alexandrino, “as queridas do Pe.
Cícero”.493 Em outra carta, ele completava, dizendo que felizmente no Cariri, o hábito de se
tornar beata caíra em desuso:

O beatismo atual não é o mesmo de outrora, e nem nossa religião está mais
tão desvirtuada como já foi, graças a Deus. Grande número de beatas tem
deixado os mantos e voltado para o século. Algumas delas estão de
casamento quito. Já ninguém fala mais em tomar o manto.494

Outra preocupação do padre Alexandrino era no tocante à direção espiritual das beatas.
Segundo ele, embora Cícero e seus aliados não tivessem autorização para dirigir ou confessar

489
DHDPG/CRA 14, 94: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 03.08.1893. Grifo nosso.
490
DHDPG/CRA 14,125: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 27.03.1894. Grifo no
original.
491
CPR/CRA: 07,01. Carta de D. Joaquim Vieira ao Internúncio Apostólico, Frei Jerônimo em 04.02.1895.
492
DHDPG/CRA 08,27: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 14.05.1896.
493
DHDPG/CRA 04,28: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 16.05(?).1895.
494
DHDPG/CRA 08,27: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 14.05.1896.
216
mulheres, as beatas continuavam a não recorrer aos ‘sacerdotes do bispo’ e, continuava a
reunião de mulheres na igreja do Juazeiro, a despeito da proibição. O comportamento rebelde
das mulheres seria, segundo ele, não só apoiado, mas também estimulado pelo padre Cícero.
Uma das evidências que temos da importância da direção e intervenção dos sacerdotes
sobre as mulheres está em uma carta enviada a D. Girolamo Gotti, e assinada pelas beatas
Maria de Araújo, Maria da Soledade, Jahel Cabral, Maria das Dores e Joana Tertulina. Nessa
carta, escrita provavelmente entre o fim de 1894 e início de 1895, elas reclamam por “abrigo
espiritual, de que fomos privadas com todo o povo do Juazeiro”,495 e além de reafirmarem o
que disseram no primeiro inquérito, elas comparavam seus sofrimentos ao do próprio Cristo e
solicitavam que o Internúncio intercedesse por elas junto ao Papa:

E assim suplicamos a V. E. Rma. que senão pode atender aos gritos de nossa
aflição e de nossa angustia, transmita nossos gemidos aos pés do Vigário de
Jesus Cristo, para que Ele saiba que do seu rebanho foram roubadas dose mil
almas, em cujo número ninguém foi tão perseguido como nós; porque assim
como vimos, assim juramos e assim sustentamos a verdade da transformação
das hóstias sacramentais em Sangue. E porque sem condenação de nossa
consciência e de nossa alma não podemos depois dizer o contrário em novo
interrogatório clandestino, onde só havia o que perguntava e a que respondia
– fomos proibidas de todos os sacramentos, até de nos confessarmos na hora
da morte. [...] Só V. E. Rma. Sr. Internúncio Apostólico, pode tomar conta
disto e dar as providencias necessárias, porque a confissão e absolvição que
tem por base um crime é também um grande crime contra Deus e contra sua
Egreja. Assim, pois não podemos deixar de pedir a V. E. Rma. que deponha
aos pés de S. Santidade e do Tribunal do Santo Ofício as petições juntas que
falam da aflição de nossa e da consternação de doze mil almas arrancadas e
despedaçadas para fora da Fé e da Igreja Católica.496

Segundo as mulheres, doze mil almas, correspondentes à população de Juazeiro,


estariam privadas dos sacramentos. É interessante notar que a linguagem utilizada na carta é
muito elaborada e quando cotejamos com alguns dos escritos de José Marrocos, percebemos a
semelhança na caligrafia e no estilo:

Meu venerando pontífice, que quadro sombrio, pavoroso e desolador vai ver
o olho paternal de V. Ex. Revma!...- [...] uma pobre virgem arrancada ao
travesseiro de sua mãe agonizante – o tribunal da penitencia dificultado e
proibido mesmo no Juazeiro às esposas do Senhor – um povo inteiro
enxotado e corrido para fora da fé e da Igreja católica. – o seu capelão

495
Carta das beatas Maria de Araújo, Maria da Soledade, Jahel Cabral, Maria das Dores e Joana Tertulina ao
Internúncio Apostólico D. Girolamo Gotti, sem data, B. 73, F. 335, Doc. 27, ASV.
496
Idem.
217
despojado do sacerdócio de Jesus Cristo e amordaçado para não dizer a
palavra de salvação, que Deus lhe confiou para a alma do povo que vem
procurá-lo de todas as partes – os próprios moribundos sem socorros
espirituais e atirados ao perigo e à desgraça de uma morte eterna – o
Sacrário, o Viático extinguido na meio de uma população de doze mil almas
– e Jesus mesmo expulsado do seu templo e sofrendo no Sacramento do seu
amor o que não sofreu no próprio sacrifício de sua vida.497

Neste sentido, é muito provável que elas não foram autoras da carta, mas ousaram
assiná-la, mesmo passando por cima da hierarquia e desconsiderando completamente o bispo.
É preciso lembrar que os padres envolvidos no processo estavam proibidos de confessar e dar
a comunhão, e, enquanto isso, os sacerdotes autorizados pelo bispo elaboraram uma estratégia
para reprimir os crentes. Antes da confissão o fiel deveria responder se reprovava e condenava
os fatos de Juazeiro:

Formulamos a interrogação por aquela forma porque os penitentes


sofismavam, quando perguntava se ainda acreditavam nos fatos do Juazeiro,
as respostas ordinariamente eram esta: “Creio em Deus” simplesmente ou
então “Creio em Deus e na Santa Igreja”. Semelhantes respostas não me
satisfaziam, por que dizem pelo Juazeiro e outros pontos da Freguesia uns
que a Decisão dada pela Congregação não é da Igreja e outros que ela é
produção de V. Exa.498

O memorialista Paulo Elpídio de Menezes499 narra um episódio que ilustra essa


rebeldia da população diante de tal restrição:

[da casa do padre Alexandrino] vinha saindo de dentro uma mulher em


adiantado estado de gravidez. Impressionou-me os gritos da mulher. Ela
dava murro com a mão direita, na palma da mão esquerda, e gritava ainda
mais alto que o Vigário: ‘‒ Acredito, acredito, acredito! Se quiser me
confessar, me confesse, se não quiser, não me confesse!’ (Menezes, 1985:
66).

Não sabemos o que aconteceu com a mulher, mas provavelmente, ela permaneceu sem
o sacramento. Como dissemos, o bispo deveria apresentar relatórios periódicos ao Internúncio
sobre o avanço das retratações. Apesar da obstinação que algumas mulheres demonstravam,

497
Artigo de José Marrocos, “Os milagres de Joazeiro – Sua divina realidade – Uma reclamação ao reverendo
Bispo Diocesano” publicado no jornal A Província de Recife nº199, de 3 de setembro de 1893.
498
DHDPG/CRA 04,26: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 20.10.1894.
499
Paulo Elpídio nasceu em 26 de fevereiro de 1879 na cidade do Crato, jornalista e escritor, foi contemporâneo
dos eventos de 1889.
218
em janeiro de 1895, quase um ano após a publicação dos Decretos da Santa Sé, cinco beatas –
Antônia Maria, Jahel Cabral, Maria Joana, Anna Leopoldina e Rachel Sisnando – haviam
confessado os “seus erros e desvios”,500 e a partir daí os sacerdotes mais resistentes também
começaram a ceder.

500
CPR/CRA: 07,01. Carta de D. Joaquim Vieira ao Internúncio Apostólico, Frei Jerônimo em 04.02.1895.
219
5.2. “Se eu negar o que disse antes”: o juramento dos padres e a negação
da ciência

Antes de 1896, praticamente todos os padres que diziam acreditar nos pretensos
milagres haviam se retratado, com exceção dos padres Cícero, que nunca se retratou, e
Francisco Antero, que só se retratou em junho de 1897. O número de padres era um pouco
maior, provavelmente porque sobre eles recaía a ameaça de suspensão das ordens, o que
significava a desvinculação com a Igreja e consequentemente a perda do ofício.
Um episódio similar narrado demonstra o caos que se estabeleceu no povoado.
Monsenhor Monteiro foi um dos primeiros sacerdotes a se retratar, já na primeira convocação
do bispo, após a publicação do Decreto, no entanto, ele continuava a ser vigiado pelo padre
Alexandrino, principalmente, por ter sido ele um dos sacerdotes mais próximos às beatas.
Ainda em novembro de 1894, o monsenhor declarara ao pároco do Crato não crer “em mais
nada e que Juazeiro para ele é como se nunca existisse”.501
Em julho de 1895, indo esse padre confessar uma moribunda, não consegue porque
“ela doente conserva a crença nos fatos de Juazeiro, não quer de forma alguma reprová-los e
condená-los como ordena a Sagrada Congregação por cujo órgão falou a Santa Sé”.502 O
Monsenhor deixara a enferma sem confissão sob o risco de morrer sem absolvição, mas
“poucos dias depois, é chamado o padre Cícero para confessar tal doente, dirige-se a casa
dela, absolve-a, exprobrando depois o procedimento de monsenhor Monteiro e outros colegas
que, em idênticas circunstâncias, procedem como ele”.503 A tradição popular conta que
Monsenhor Monteiro teria morrido cego, por um dia ter afirmado que preferiria cegar a negar
os milagres que vira.
O padre Clicério já estava suspenso desde 1892, e vivera neste tempo entre o Rio e
Janeiro e a Paraíba, mostrou-se arrependido e no início de 1895 apresentou sua carta de
retratação:
O Revdo. Clicério da Costa Lobo, que se achava na Diocese da Paraíba,
espontaneamente apresentou-se-me no dia 22 de janeiro último; recolheu-se
ao seminário, onde fez retiro espiritual por três dias, no fim dos quais
ofereceu-me a retratação, que V. Exa. Revma. verá no [ilegível] incluso.

501
CRA 08,06: Carta do padre Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira de 21.11.1894 In “Anais”, p. 252.
502
DHDPG/CRA 08,18: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 11.07.1895.
503
Idem.
220
Este Sacerdote está hoje inteiramente convencido de que foi mistificado por
certas pessoas interessadas na comédia.504

As retratações seguiam o mesmo modelo narrativo, com a apresentação da culpa,


justificada pela boa-fé e a declaração de submissão aos decretos. A título de ilustração,
tomemos o depoimento do padre Manoel Rodrigues de Lima, em 05 de dezembro de 1894:

Atraído, como milhares de pessoas, ao Juazeiro, pela fama dos fatos


extraordinários, que ali se davam, com o nome de milagres, eu sou um dos
muitos que acreditaram na sobrenaturalidade dos mesmos [...] Mas desde
que me veio às mãos a Pastoral do Exmo. e Remo. Sr. Bispo Diocesano
publicando a Decisão e dando execução aos Decretos da Sagrada Inquisição
Romana Universal [...] eu como filho submisso e obediente da Santa Igreja
[...] não devo, não posso mais sustentar a mesma crença, pelo contrário,
venho à imprensa declarar, apesar de já o ter feito há pouco perante o mesmo
Exmo. Sr. Bispo Diocesano que aceito e obedeço inteiramente, sem restrição
alguma, aos mencionados Decretos. [...] Finalmente, peço perdão à Deus e
aos fiéis, do erro que cometi, se bem que procedi sempre em boa fé, e do mal
que por ventura, tenha feito à religião, sustentando tais fatos supersticiosos
como verdadeiros milagres.505

Já o padre Antero não se mostrava disposto a fazer nenhuma retratação, o que


implicava formal e deliberada desobediência à Igreja. Ele foi suspenso das ordens sacerdotais
em 22 de fevereiro de 1895, acusado entre vários motivos de ir à Roma sem autorização do
diocesano “levando consigo uma cópia abusivamente extraída do então ainda não terminado
processo”, no qual prestou depoimento e fez a defesa dos milagres. Além disso, pesava sobre
o sacerdote a acusação de pregar contra o bispo, figurando em: “papel saliente neste triste
negócio, nega-se a dar público testemunho das desobediências à Santa Sé; e isto por mal
entendido amor próprio, que espero será vencido”.506
Em 1896 ele pediu carta de ex-confirmação, isto é, uma carta de transferência para
outra Diocese que o retirava da jurisdição de Dom Joaquim. O bispo aceitou o pedido, mas o
padre Alexandrino viu nisso uma cilada: “por essa forma, ficou isento do castigo que merece

504
CPR/CRA: 07,01. Carta de D. Joaquim Vieira ao Internúncio Apostólico em 04.02.1895.
505
DHDPG/CRB 02,34: Declaração do Pe. Manoel Rodrigues Lima de 05.12.1894. Outros padres que se
retrataram: Pe. Laurindo Duettes (Jornal Era Nova de 27.09.1894); Pe. Cícero Joaquim de Siqueira Torres
(Jornal A Verdade de 28.10.1894); Pe. Manuel Antônio Martins (Jornal A Verdade de 11.11.1894); Pe. João
Carlos Augusto em 04.12.1894 (DHDPG/CRB 02,33); Pe. Jacinto Ramos (Jornal A Verdade de 13.01.1895);
Mons. Francisco Rodrigues Monteiro (Jornal A Verdade de 04.02.1895); Pe. Clicério da Costa Lobo (Jornal A
Verdade de 02.02.1895).
506
Idem.
221
pela sua rebeldia”.507 Somente no ano seguinte, em 1897, o padre Antero entregou uma
“declaração escrita dizendo que prestava obediência inteira e sem equívoco ao Decreto de 4
de abril de 1894, que reprovou e condenou os pretensos milagres”. 508

* * *

Dom Joaquim, entretanto, não se satisfez com as retratações das beatas e dos
sacerdotes: exigia a retratação dos médicos e peritos que divulgaram atestados, nos quais
diziam que os fenômenos eram sobrenaturais. Se os fenômenos ocorridos com Maria de
Araújo podiam servir de justificativa para que ela tenha sido considerada mística ou
visionária, os mesmos fenômenos serviram para desqualificá-la e essa desqualificação se deu
justamente a partir do seu corpo, um discurso típico de uma lógica institucional que reduz
toda experiência inassimilável ao desvio e à patologia.
Pressionado pelo diocesano a fazer um novo atestado sobre os fenômenos de Juazeiro,
em fins de 1892, o Dr. Marcos Madeira sabia dos efeitos causados pelos seus atestados
anteriores e dá a entender que havia mudado de opinião, mas se nega a dar um atestado por
escrito:

[...] se estudos ulteriores me confirmam na opinião já enunciada, ou se já


modificaram meu modo de pensar a tal respeito e muitas outras
circunstâncias que alega V.Exa., tudo isso, como já disse, excede os limites
de um atestado, e não pode deixar de ser objeto de longas explicações
pessoais, feitas a V.Exa., depois do que seria por mim feito um minucioso
relatório, segundo as bases estabelecidas por V. Exa., o qual relatório viria
dar o critério da verdade de que tanto na imensa universalidade das cousas,
como nos fatos especiais do Joaseiro é uma só.509

O bispo argumentou que foram os atestados médicos publicados em 1891 a razão do


alarde desnecessário para o caso e que, sendo assim, ele era um dos grandes responsáveis e
devia como bom cristão zelar pelo “bem da verdade e da nossa Santa Religião”. A questão
principal que o bispo apresentava era se o médico ia ou não manter a opinião original dos
atestados de 1891: “Pode V. S. afirmar com absoluta certeza que o tal sangue se originou das

507
DHDPG/CRA 08,27: Carta do padre Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 16.05.1896.
508
Carta Pastoral de D. Joaquim Vieira de 1897 in Macedo, 1969: 143.
509
Primeira carta de Dr. Marcos Rodrigues Madeira em 13.12.1892 in “Cópia autêntica”, p. 84.
222
Sagradas Partículas e não de qualquer corpo estranho?”.510 Uma pergunta que o Dr. Madeira
recusava-se terminantemente a responder.
Dom Joaquim deixa ao encargo dele decidir se responde ou não à pergunta chave da
questão que de religiosa se torna médica, mas supomos que ele via nessas retratações (mesmo
que os fenômenos já estivessem condenados) uma espécie de desforra. Na sua segunda carta,
já em resposta a Dom Joaquim, o Dr. Madeira reitera ao bispo diocesano que só daria
qualquer esclarecimento caso o bispo financiasse sua viagem à capital e que:

[...] muito sinto não poder prestar-vos as informações e esclarecimentos pelo


modo que quereis. Se sois bispo e como tal tendes necessidade de prestar as
informações a Santa Sé, eu também sou médico (ainda que muito obscuro) e
como tal tenho muita responsabilidade e minha reputação a zelar em um
negócio de tanta monta e para satisfazer-vos torna-se imprescindível a minha
ida a Capital. 511

O médico pediu ainda uma quantia de 2:000$000 (dois contos de réis) para poder ir até
a capital. Dom Joaquim responde que mesmo se a Diocese dispusesse dos recursos solicitados
pelo médico para custear a viagem à Fortaleza, esta não seria possível, visto que o único
interessado em se retratar seria o próprio Dr. Madeira, uma vez que “temos juízo
perfeitamente formado e já manifestado a respeito do fato”, diz o bispo em carta de janeiro de
1893.512
Aqui o bispo expressa uma contradição, pois foi ele quem convocou o médico a se
retratar. Também não fica muito claro, porque D. Joaquim preocupou-se tanto com a
retratação dos médicos, uma vez que Roma já havia condenado os fenômenos. Pela lógica,
não havia mais nada a ser provado. Já para Dr. Madeira, havia o medo de represálias que a
publicação de um novo atestado, negando o primeiro, podia causar. No final de 1897, o Dr.
Marcos estava completamente isolado e decidiu partir para o Amazonas, a fim de recomeçar
em outro lugar, longe das questões religiosas que o atormentaram no Cariri.
Já o Dr. Ignácio de Souza Dias, que assinou o atestado em conjunto com o Dr. Marcos
Madeira no primeiro inquérito, escreveu uma carta em outubro de 1892, retratando-se
formalmente e alegando que seu primeiro atestado, no qual defendia a sobrenaturalidade dos
fatos fora elaborado “sem os dados necessários e somente pela especialidade das

510
Carta de D. Joaquim Vieira ao Dr. Marcos Rodrigues Madeira em 03.01.1893 in “Documentário”, p. 52-53.
511
Segunda carta de Dr. Marcos Rodrigues Madeira em 21.01.1893 in “Cópia autêntica”, p. 84.
512
Carta de D. Joaquim Vieira ao Dr. Marcos Rodrigues Madeira em 03.01.1893 in “Documentário”, p. 52-53.
223
circunstâncias em que me encontrei”. O médico afirmou não ter tido condições de avaliar por
“todos os meios de exames” como se davam as transformações e elencou os motivos pelo qual
havia sido forçado a assinar o atestado junto com o Dr. Marcos Madeira:

1º. O exame teve lugar na capela e em um quarto da Casa de Caridade do


Crato, onde além da falta de luz eu e meu colega Dr. Marcos Rodrigues
Madeira nos achávamos cercados de uma multidão de pessoas de todas as
classes, cujos interesses em que os mesmos fatos fossem declarados milagres
as levava a introduzir no ato a maior desordem e confusão. 2º. Tratando-se
de examinar um fenômeno que ocorria em uma partícula depois de
consagrada nos foi negada pelos padres presentes a permissão de tocá-la,
prová-la e submetê-la aos processos de exames, sucedendo o mesmo com o
exame procedido por ocasião do êxtase de Maria de Araújo em cujo corpo
não foi permitido proceder às devidas investigações. [...] Tendo fortes
razões de recear desacatos de um povo cujo fanatismo transluzia em todas as
suas ações e palavras procurei informar-me melhor do meu colega Dr.
Marcos Madeira [...] Este infide medici e amici me garantiu que eu podia
sem escrúpulo afirmar o que se contém nos documentos de que nos
ocupamos resolvendo-me assim assiná-los.513

O Dr. Ignácio eximiu-se da responsabilidade, atribuindo-a a seu referido colega e


culpando a pressão exercida pelos crentes nas declarações feitas em seu primeiro atestado. O
relato de Dr. Ignácio, apesar de voltar atrás na primeira declaração, chama atenção por
denunciar que os exames eram feitos sem muito cuidado, em lugares escuros e com
demasiados espectadores que queriam que o fenômeno fosse confirmado como milagre. Esses
dados nos fornecem informações sobre a rede de relações que se desenvolveu naquele
momento, e que dizia respeito não só à crença da população, mas aos interesses do grupo de
sacerdotes que a cercavam.
Por outro lado, uma carta do Dr. Marcos Madeira ao padre Francisco Ferreira Antero,
indica um pouco das estratégias criadas pela Diocese para obter as retratações:

O meu colega Dr. Ignácio Dias, que comigo examinou a beata Maria de
Araújo, quando aqui esteve a comissão do Snr. Bispo, da qual era V. Rvma.
o secretário, narrou-me que indo ao Ceará [Fortaleza] mandou a sua
bagagem para um hotel e que logo que se divulgou a sua estada na capital,
mandou o Sr. Bispo buscar para o seu palácio a bagagem do Sr. Ignácio Dias
(com quem não tinha a menor intimidade) e colocou-o em um bom aposento,
com ele conferenciou a respeito dos negócios do Juazeiro por mais de 3
horas no intuito de obter do meu colega uma retratação do que este havia
comigo atestado, e de fato a custa de convenções e agrados extraordinários

513
Carta do Dr. Ignácio de Souza Dias de 16.10.1892 in “Cópia autêntica”, p. 85.
224
caiu o meu pobre colega na fraqueza de contra atestar o que havia feito
antes, sendo por mim interpelado o Dr. Ignácio que é meu amigo de infância,
sobre o ato feio, que ele havia cometido, respondeu-me com aquela singeleza
que lhe é particular o seguinte: “Não pude resistir as instâncias do Bispo que
mandou-me buscar no hotel para o seu palácio e aí faziam beber cerveja,
café, cognac do X’ [sic] e eu para me ver livre do Bispo disse o que ele
queria, mesmo porque também dizia ele, o Dr. Ildefonso já havia feito o
mesmo. e o bispo dizia que com isso nós fazíamos um bem a Igreja, nisto
como os fatos de Juazeiro viriam prejudicar a nossa Igreja S.S”. Terminou
dizendo-me: “Você não avalia os apertos em que eu me vi, o Snr. Bispo
parece que não queria mais que eu bebesse água e sim cerveja e passeios no
seu jardim. 514

Esse assédio por parte do bispo, talvez possa ser explicado pela necessidade que ele
sentia de ridicularizar os fenômenos e aqueles que deram suporte à causa. Ao mesmo tempo, é
como se D. Joaquim estivesse completamente cego à rebeldia dos padres:

Excmo. e Revmo. Sr. esta história do Juazeiro é uma vergonha para certos
sacerdotes desta e de outras Dioceses vizinhas, que se deixaram tristemente
mistificar por algumas miseráveis mulheres embusteiras. Para não expô-los
ao ridículo tenho procurado ocultar certos disparates e misérias, o que tem
custado muitas injustiças e dissabores, que suporto com resignação, e até
mesmo com satisfação, porque resguardo d’est’arte [sic] a honra do meu
Clero, que, em grande parte, inclinava-se a aceitar como coisa séria um
acervo de disparates e embustes.515

É necessário enfatizar que foram os próprios sacerdotes que reforçaram a “heresia”.


Em outras palavras, foi em Maria de Araújo que o “milagre” se manifestou, os fenômenos
obtiveram força e dimensão suficientes para se propagar, mas o suporte dos padres foi
fundamental. Quando o bispo decidiu agir, o caso já estava fora do controle, favorecendo a
expansão do acontecimento e suas consequências impensáveis.
Percebemos, portanto, um conjunto de erros de procedimentos da Igreja, na pessoa do
bispo, iniciado pela desobediência de Cícero e mantido pela soberba dos outros sacerdotes.
Quanto às mulheres, especialmente, no que diz respeito à Maria de Araújo, conjeturamos que
elas realmente acreditavam nos fenômenos e buscavam esse ideal de perfeição da vida devota,
mas certamente perderam o domínio de suas ações e de sua própria fala.

514
Carta de Dr. Marcos Rodrigues Madeira ao Pe. Francisco Ferreira Antero e, 14.11.1892. Rerum Variarum
1898/128. Vol. II, Doc. 24. ACDF. Grifos no original.
515
Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo M. Gotti em 30.09.1894. Busta 76, Fasc. 369, Doc. 23, Nunziatura
Apostólica, ASV.
225
Para o bispo somente a ambição por dinheiro e poder poderia explicar tamanho
desacato por parte do sacerdote e de seus aliados, mesmo assim, ele não perdia a esperança de
que “a teimosia do padre Cícero e de alguns poucos habitantes do povoado cessará logo,
assim o espero; e esta deplorável história cairá em completo esquecimento”.516 Dom Joaquim,
porém, não contava com a continuação das peregrinações e com o aparecimento de novos
“inimigos”, agora defensores do padre Cícero e de Juazeiro.

516
Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo M. Gotti em 04.05.1896. Busta 76, Fasc. 369, Doc. 32, Nunziatura
Apostólica, ASV.
226
5.3. O “Lobo do Juazeiro” e a viagem do padre Cícero

Invariavelmente, a “turba ignara” que vinha em peregrinação se fixava no local e


passava a viver do comércio que girava em torno das romarias. Fabricantes de vela e chapéus,
santeiros, vendedores de fogos de artificio. A população do município cratense, que
compreendia a cidade do Crato e as povoações de Juazeiro e de São Pedro (atual Caririaçu), já
possuía em 1890 cerca de 21.440 habitantes; em 1900 esse número já era de 33 mil, dos quais
14 mil no perímetro da cidade, um crescimento de mais de 50% da população em uma década
(Cortez, 2000: 49).
Esse estouro demográfico aumentou consideravelmente a partir de 1890, isto é, um
ano depois dos fenômenos de Juazeiro, e modificou também a organização do povoado.
Juazeiro passou a concentrar as atividades urbanas enquanto o Crato permanecia rural. O
crescimento demográfico de Juazeiro produziu consequentemente, um crescimento
econômico e um motivo a mais de frustração do pároco do Crato, que não conseguia impor
suas ordens nem fazer valer o Decreto da Santa Sé proibindo as peregrinações, cada vez
maiores ao Juazeiro.517
Um dos peregrinos que veio ao Juazeiro, em meados de 1896, motivado pela crença no
milagre e, quiçá, seduzido também com a possibilidade de prosperar nos negócios, foi o
tenente-coronel da Guarda Nacional José Joaquim de Maria Lobo (1849-1918), natural de
Lavras da Mangabeira. Com grande poder de liderança, José Lobo mal chegou ao Cariri e já
conquistou posto nas principais irmandades do lugar.
Segundo Della Cava, a Irmandade da Legião teria sido fundada em 7 de julho de 1895
pelo próprio José Lobo, e, juntamente com outras irmandades já existentes, como o
Apostolado da Oração, a Confraria de São Vicente de Paulo, Confraria de Nossa Senhora das
Dores, Confraria do Santíssimo Sacramento e Confraria do Precioso Sangue conformariam o
grupo de resistência ao bispo diocesano em favor do Padre Cícero (1976: 106).518

517
Em 1909, Juazeiro contava com uma população urbana de mais de 15 mil almas enquanto o Crato permanecia
estável com cerca de 10 mil habitantes.
518
O Apostolado do Sagrado Coração de Jesus e a Confraria de São Vicente eram as mais antigas em Juazeiro,
tendo sido instaladas antes de 1889. As irmandades eram instituições dirigidas por leigos que, segundo
Anderson de Oliveira, supriam muitas vezes o papel evangelizador do clero e atendendo às demandas sociais
de responsabilidade do Estado. No primeiro capítulo falamos sobre o Apostolado, do qual as beatas faziam
parte. A Confraria de São Vicente, por sua vez, foi funda na França em 1833 e era representante dos lazaristas
no Ceará. Sobre irmandades no Brasil: Ver: Oliveira, Anderson José Machado de. Devoção e Caridade:
227
A irmandade da Legião da Cruz519 surge nesse momento como verdadeira advogada
da causa. Seus líderes diziam que o Bispo e seus padres eram enviados de Satanás e
sustentavam a República. Em oposição à Diocese, estaria a verdadeira Igreja de Cristo, fiel às
práticas tradicionais da Cristandade e tinham na figura do Monarca seu legítimo
representante. Era significativo que José Lobo fosse, segundo informações de memorialistas,
líder do Partido Monarquista na Vila de São Vicente Férrer. A atuação de Lobo e da
Irmandade da Legião remete novamente à velha oposição entre República e Monarquia,
ortodoxia e heterodoxia, e indica também o conflito latente entre leigos e clero,
principalmente na forma de entender e responder às mudanças políticas daquele momento.
De fato as Irmandades se configuravam como importantes instrumentos de apoio à
causa do Sangue Precioso que, com o cessar dos fenômenos e a reclusão de Maria de Araújo,
inevitavelmente, começaram a se organizar em torno do padre Cícero. José Lobo também era
acusado de arregimentar romeiros e organizar peregrinações520 para o Juazeiro e, valendo-se
da ingenuidade daqueles, vendia santinhos com imagens do padre Cícero e da beata Maria de
Araújo, medalhas e cadarços do Precioso Sangue521. O jornal A união, denunciava o aspecto
explorador das romarias de Juazeiro e a produção de falsas relíquias, como:

irmandades religiosas no Rio de Janeiro Imperial (1840-1889). Dissertação de Mestrado. Universidade


Federal Fluminense, 1995.
519
Não há registro de atuação dessa Irmandade em nenhum outro lugar da província ou do país, parece que ela se
originou em Juazeiro e tinha como fim recolher os donativos para o Óbolo de São Pedro, um sistema de
doações da Igreja, na qual o fiel oferece ajuda diretamente ao Papa. Ver:
http://www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state/obolo_spietro
520
Para Ralph Della Cava as peregrinações feitas ao Juazeiro podem ser divididas em dois momentos: a) as que
ocorreram no “auge dos milagres”, que eram iniciadas, segundo ele, pelos padres dissidentes que acreditavam
nos milagres e contavam inclusive com a participação de todas as “classes da sociedade”, havendo entre os
peregrinos “fazendeiros ricos, chefes políticos e funcionários públicos”; e b) as que ocorreram após 1894,
quando proibidas pela Diocese passaram a ser “espontâneas”, vindo pessoas de lugares mais distantes que
pertenciam a uma classe mais baixa da sociedade, como “trabalhadores rurais, vaqueiros e rendeiros
desprovidos de terra” (1976: 138). Parece-nos, no entanto, que o fluxo de romeiros “espontâneos” começou
imediatamente após os milagres de março de 1889 que ocorreram na Igreja de Nossa Senhora das Dores,
tomando como base não só a lista das graças alcançadas na qual assinam pessoas de vários lugares, mas
também as correspondências entre o bispo Dom Joaquim e o padre Cícero e entre o mesmo bispo e o padre
Alexandrino de Alencar. Ver também: Nobre, 2011.
521
Esses “cadarços” eram feitos com fitas comuns coloridas que seriam, em tese, a medida da caixa de vidro
onde estavam os panos manchados de sangue. Ainda hoje há o costume de comprar pequenas fitas nas feiras
da cidade para usar e dar como presente aos que não puderam empreender a viagem ao Juazeiro. Foram
popularizados na época, e inclusive em outros estados, como na Bahia onde são produzidas as fitas do Senhor
do Bonfim. Paulo Elpídio narra em suas memórias que se acreditava que os cadarços “tinham o poder de
curar as doenças da alma e do corpo” (1985: 63). Segundo a tradição popular, deve ser amarrado com três
nós, cada nó um desejo, o crente deve esperar que ele se rompa sozinho. Os desejos se realizariam quando o
cadarço se rompesse.
228
[...] um pedaço de papel almaço tendo pintado numa das faces um cruzeiro e
na outra uns pequenos quadros, à guisa de planta da igreja. Abaixo do
cruzeiro lê-se a seguinte quadra [...] ‘Jesus amantíssimo/ que na cruz
morreste/ salva minha alma/por quem padecestes’ [...] Pois bem, esse
papelucho, crivado de heresias e de erros, sem nenhuma significação, nem
importância, é vendido largamente a 2$000 réis! No Juazeiro quem não traz
a tal relíquia ao pescoço, cuidadosamente encaixilhada num relicário ou
embolsada num pedaço de pano, é considerado herege e como tal é exposto
às iras do populacho fanatizado.522

Além disso, a vontade de levar alguma relíquia sagrada do Juazeiro era tão grande que,
conta Dom Joaquim em carta ao Internúncio, “mediram a altura da beata Maria de Araújo,
cortaram fitas e cordões do comprimento da altura, que vendiam depois fazendo pagarem
[preço] salgado [...]”.523
Deste modo, a irmandade da Legião conseguia arrecadar em pouco tempo o que a
paróquia do Crato demorava quase um ano para recolher. Muitos do que vinham em romaria
acabavam por ficar e começavam a explorar como podiam a popularidade dos “milagres”. Um
dado interessante sobre as imagens que circulavam naquele momento, diz respeito ao santinho
de Maria de Araújo, como vemos abaixo:

522
A União, 28.03.1897, Parahyba, Ano V, n° 1045.
523
Tradução livre: “presero la misura della statura di Maria de Araujo, tagliarono fittuccie e cordoncini della
lunghezza di detta statura, che vendevano poi facendoli pagare salati”. Rerum Variarum, Doc. 16, ACDF.

229
A figura de uma típica beata com o hábito tradicional preto e a murça branca,
carregando dois símbolos importantes da Igreja, o crucifixo e o rosário, com a face séria, mas
tranquila, não olhando diretamente para o fotógrafo, a indicar timidez e recato. Entretanto, e
por incrível que pareça, essa beata retratada não é Maria de Araújo, mas uma mulher
desconhecida! O fato de que esta imagem sirva para representá-la denota uma visão
homogênea sobre o que era ser beata, já compartilhada no imaginário da época.
Do mesmo modo como na medalha analisada no capítulo anterior, não importa que o
retrato não seja dela, importa a presença dos símbolos de devoção familiares ao fiel. A venda
de santinhos e medalhas com a figura de Maria de Araújo e, um pouco mais tarde, com a
imagem do padre Cícero, fez parte, certamente, de uma estratégia, ainda que espontânea, de
popularização dos pretensos milagres e de atração de peregrinos para o lugar tudo isso à
revelia das condenações.
Para a Diocese não passava de torpe exploração da fé alheia: “Começada a superstição
em Juazeiro pelo orgulho, está sendo sustentada e alimentada pela especulação”.524 Dom
Joaquim se queixava ao Internúncio que as peregrinações eram estimuladas pela rebeldia do
padre Cícero, que não só as permitia como as incentivava:

O movimento de rebeldia que ainda existe no ânimo de alguns fanáticos, -


movimento de rebeldia à Santa Egreja, - é insinuado pelo Padre Cícero que
não quer conformar-se com a condenação dos pretensos milagres, e nem
retirar-se do Juazeiro, onde está embaraçando e perturbando a boa ordem do
serviço religioso. Algumas pessoas criteriosas e bem intencionadas já se
lembraram de procurar um capelão para o Juazeiro, mas o Padre Cícero põe
embaraços procurando a todo custo manter a falsa crença no que é
poderosamente auxiliado pelo Dr. José de Marrocos e mais alguns perversos
que especulam com a credulidade do povo ignorante para satisfazerem uma
depravada ganância.525

Localizado estrategicamente na fronteira entre os estados de Pernambuco, Paraíba e


Piauí, o povoado de Juazeiro servia de entreposto comercial, lugar de descanso para os
viajantes e mascates que trabalhavam na região. A partir dos fenômenos, essa condição de
lugar de passagem começou a mudar. Atraídos pelos milagres, mas também pela possibilidade
de melhorar de vida, muitos comerciantes se estabeleceram no povoado que recebia cada vez
mais visitantes.

524
DHDPG/CRA 08,31: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira de 08.07.1896.
525
Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo M. Gotti em 26.07.1895. Busta 76, Fasc. 369, Doc. 29, Nunziatura
Apostólica, ASV.
230
É significativo que em 1896, Juazeiro já possuísse mais de dois mil fogos, com cerca
de dezesseis mil habitantes, sendo dois terços da população de adventícios, segundo informa o
padre Alexandrino, que lamentava as “centenas de pessoas que cotidianamente entram no
Juazeiro sendo quase todos da última camada da sociedade”.526 O dinheiro se tornou uma
forte arma política da nobre causa do Juazeiro. A grande capacidade de organização da
Irmandade da Legião e o poder de arregimentação de José Lobo se tornaram, naquela
conjuntura, um problema a mais para a Diocese. Poderíamos mesmo dizer que José Lobo foi
capaz de perceber o que, até então, nem o padre Cícero nem José Marrocos tinham
conseguido: a vitória não poderia ser conseguida somente com palavras.
Em menos de um ano de permanência no Juazeiro, José Lobo conseguira arrecadar
dinheiro para ir ao Rio de Janeiro interceder junto ao Internúncio Apostólico pelo Juazeiro, e
conseguiu reunir o dinheiro suficiente para duas viagens a Roma. Além disso, a Legião da
Cruz era responsável por recolher o Óbolo de São Pedro, gerindo o dinheiro recebido de fieis
e peregrinos. É certo, contudo, que no Juazeiro as campanhas de recolhimento do Óbolo
tinham como bandeira uma campanha para revogação da portaria que retirou as ordens
sacerdotais do padre Cícero, mas quase não falavam sobre Maria de Araújo e as outras beatas.
Além do dinheiro do Óbolo, entre 1894 e 1898 foram feitas ainda várias doações ao
Colégio Pio-Latino Americano e à Santa Sé, com o fim de mandar rezar missas para a
população desamparada do Juazeiro. Os valores eram altos. Em uma dessas remessas, por
exemplo, de 21 de agosto de 1894, de uma só vez foram enviados 14:684.000 (quatorze
contos, seiscentos e oitenta e quatro mil réis).527
Os irmãos da Legião, representados por José Lobo, também investiram contra o
pároco do Crato, padre Alexandrino. A principal reclamação era referente à falta de padres
que ministrassem os sacramentos básicos e, para dificultar ainda mais, os poucos que
trabalhavam na região não podiam confessar ou comungar os crentes nos milagres. Em 9 de
julho de 1895, um telegrama enviado por José Marrocos pedia ajuda ao Internúncio alegando
a falta de assistência espiritual no Juazeiro:

526
DHDPG/CRA 08,34: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira de 31.01.1897.
527
DHDPG/SAL 37. Bilhete do Pe. Cícero R. Batista de 24.08.1894. Della Cava faz um pequeno cálculo através
do qual demonstra o poder de arrecadação da Legião. Ele verificou que em 1898, Dom Joaquim organizou
uma coleta em toda a Diocese para a realização de uma homenagem ao Papa Leão XIII e angariou cerca de
onze contos de réis. No mesmo ano, a Legião, que correspondia a 2% da Diocese recolheu sozinha quase 7
contos (1976: 108).
231
Salve-nos pelo amor de Deus que todo Juazeiro continua reduzido a desgraça
de não ter um só sacramento um só benefício da religião vive se morre se
descristianizado e quando se faz alguma confissão in articulo mortis tem por
base o duplo crime de perjurar dos fatos do Juazeiro e desobedecer decreto
Santa Inquisição que mandou sacerdote e leigos não tratarem mais deles de
forma nenhuma.528

Somadas a essas queixas frequentes, várias vezes o padre Alexandrino foi acusado de
intransigência, por se recusar a confessar mesmo em articulo mortis (causa de morte). Os
boatos alcançavam a imprensa e visavam manchar a imagem da Diocese e dos padres aliados
a ela. Em um desses episódios, o padre Alexandrino explicava que muitas vezes deixava de ir
confessar no Juazeiro por receber ameaças dos “apaniguados do padre Cícero”529 ou
juazeiristas530, termos que usava para se referir a José Marrocos, José Lobo e os crentes nos
milagres:

Sendo chamado para confessar in articulo mortis a Antônio Rodrigues um


dia ou dois depois que fui atacado no Juazeiro, disse ao portador que
chamasse um dos Padres do Seminário; recusando-se estes, ordenei que
trouxessem o doente para esta cidade ou para outro lugar fora da Povoação,
por que alguns paroquianos entre os quais a Cap. Leandro Bezerra de
Menezes vieram de propósito a minha casa aconselhar-me a que não fosse
naqueles dias ao Juazeiro por consideração alguma. Não trouxeram o
enfermo e nem chamaram o Pe. Manoel Candido como aconselhei e por isso
não confessou-se. Era confrade de S. Vicente e costumava confessar-se
quase todos os meses. Fora deste caso, não houve um convite que não fosse
satisfeito pelo Pe. Miguel ou o Pe. Sother. O Sr. José Joaquim Pereira Lobo
devia dizer que quase todos os doentes não chamaram os Padres desta
Cidade, por que não deixaram a crença nas bugigangas do Juazeiro.531

Os afiliados da Irmandade recusavam-se a aceitar a autoridade dos padres contrários


aos milagres, o que para D. Joaquim configurava quase um cisma: uma “Igreja dentro da
Igreja”. Eles eram acusados pelo bispo de querer independência da Igreja, elaborando novas
orações, prédicas e ritos de batismo e casamento tais como: “Recebo a vós fulana de tal por
minha legítima mulher, em nome da Santa Legião da Cruz e do Reverendo Padre Cícero”, ou
“Eu te batizo em nome de Nossa Senhora do Juazeiro, de Maria de Araújo e de meu padrinho
Padre Cícero”.532

528
Telegrama de José Marrocos ao Internúncio Apostólico em 09.07.1895. B. 73, F. 356, doc. 10, ASV.
529
DHDPG/CRA 08,16: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 21.05.1895.
530
DHDPG/CRA 04,27: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 1895, sem referência ao
dia e mês.
531
Idem.
532
Carta Pastoral de 1898 in Macedo, 1964: 147.
232
No fim, o milagre acabou por deixar os crentes sem assistência religiosa, uma vez que
eles deviam negá-lo. Uma das estratégias dos que acreditavam nos milagres era procurar os
serviços espirituais em cidades vizinhas, cujos padres responsáveis não seguiam as
prescrições da Paróquia do Crato:

Pe. Vicente Pinto Teixeira, Vigário de Aurora [distante 51km], tem


confessado e continua a confessar indistintamente a penitentes que acreditam
nos fatos do Juazeiro, e este procedimento tem feito afluir grande número de
pessoas daquele povoado em cujo número só não se contam os rebeldes que
depuseram no processo. Consta que o padre Cícero manda os seus sequazes
se confessarem lá [...] Alguns noivos de Juazeiro vieram pedir licença para
se casarem na Aurora. Concedi licença a alguns que me afirmaram ter de se
mudarem para lá. Depois conhecendo que não queriam casar-se aqui por
causa da confissão na qual eram obrigados a se declararem descrentes dos
fatos de Juazeiro, neguei-lhes as licenças que pediram. 533

É importante ressaltar que muitos padres que haviam se retratado perante a Diocese
continuavam proibidos de confessar mulheres da região, isto porque as mulheres seriam mais
suscetíveis ao fanatismo e à superstição, maiores propagadoras dos “falsos milagres”. O padre
Alexandrino reclamou em várias cartas dirigidas ao bispo sobre o comportamento de alguns
sacerdotes, como o padre João Carlos, por exemplo, amigo do padre Cícero, que “[vem] a
servir de obstáculo às medidas tomadas por mim, padre Manuel Cândido [pároco de
Barbalha] e os padres do Seminário […] [de] não confessar ninguém sem primeiro interrogar
se reprova ou condena os fatos do Juazeiro”.534
Outros casos de indisciplina demonstravam como a autoridade diocesana estava sendo
ridicularizada pelo próprio clero: “[...] ouvi dizer que o padre José Alves, que V. Exa. conhece
muito bem, tendo sido suspenso declarou: ‘– Estou suspenso! Pois já sei o que devo fazer’.
Apostatou e casou-se com uma viúva rica na freguesia de que é Vigário”. 535 Obviamente, não
podiam faltar relatos sobre os abusos cometidos pelo próprio padre Cícero, presentes em
quase todas as cartas do padre Alexandrino para o bispo Dom Joaquim:

Exmo. Senhor, o Padre Cícero continua, como dantes, em sua teimosia dele.
Todas as noites, às 7 horas, reúne-se uma massa quase inumerável de povo
em uma das ruas principais e da frente de uma casa faz uma prática que
chama consagração, dando-se o máximo inconveniente da promiscuidade de

533
DHDPG/CRA 08,21: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 11.12.1895.
534
DHDPG/CRA 04,26: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 20.10.1894.
535
DHDPG/CRA 14,95: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 05.12.1894.
233
pessoas de ambos os sexos no meio das trevas, que circundam a turba
magna que enche ruas e travessas. Sou informado de que fatos gravíssimos
tem se dado por ocasião da reunião quotidianamente convocada pelo santo
Padre Cícero. 536

A “reunião cotidiana”, à qual o padre Alexandrino se refere, era uma prática feita,
obviamente, sem autorização do diocesano, pelo padre Cícero. Os romeiros começaram a
chamar essas reuniões de consagração, uma invenção completamente desvinculada de
qualquer prática ortodoxa, assemelhando-se muito mais às pregações ibiapinianas, tratando de
incutir o medo e o pavor sobre o purgatório e o inferno, alimentando ainda mais as
“superstições” combatidas pela Igreja. A prática, no entanto, perdurou quase até a morte do
padre Cícero em 1934 e as proibições da Igreja de Roma não foram suficientes para conter as
peregrinações à nova Jerusalém dos sertões.
Neste ponto, o padre chama atenção para outros problemas que preocupavam a
Paróquia. A grande quantidade de pessoas que chegavam ao Juazeiro todos os dias, movidos
pela fé nos milagres, mas também interessados em fugir da seca e outras mazelas que
atingiam o sertão, provocou um crescimento da violência na região:

Continuam as romarias de modo espantoso, contam-se por centenas as


pessoas que quotidianamente entram no Juazeiro sendo quase todas da
ultima camada da sociedade. Além das misérias morais que ali existem em
grande copia, tais como a prostituição, defloramento de virgens, está
sofrendo aquele povo uma fome horrorosa que unida a influenza e outras
doenças, faz hebdomadariamente termo médio oitenta vítimas. Os
comerciantes e capitalistas desta cidade [do Crato] continuam a viver
aterrados receando um saque da população faminta do Juazeiro.537

Em 1897, José Lobo foi a Roma – como representante da Irmandade de São Vicente
(acreditamos que ele não se apresentou com a Legião porque esta não era uma Irmandade
oficial) –, com o objetivo de pedir a revogação dos Decretos. Quando voltou de lá afirmou,
segundo o padre Alexandrino, ter conferenciado três vezes com o Santo Padre. Verdade ou
não, sabemos, no entanto, que as tentativas foram em vão. Em junho de 1897, a Santa Sé
rejeitou a apelação de José Lobo e solicitou que o padre Cícero se retirasse do Juazeiro no
prazo de dez dias após o recebimento da carta, sob pena de excomunhão, conforme carta do
Cardeal Lucido Maria Parocchi, de 19 de fevereiro de 1897:

536
DHDPG/CRA 08,34: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 03.02.1897.
537
Idem.
234
O sacerdote Cícero Romão Batista [...] dentro de 10 dias do conhecimento
do presente mandato, deixe o lugar de Juazeiro e vizinhança, sob pena de
excomunhão latae sententiae do mesmo modo reservada ao Pontífice
Romano, e se de novo quiser recorrer para a Santa Sé, contra as penas a ele
impostas pelo Ordinário, obedeça primeiramente aos decretos de quarta-
feira, 4 de abril de 1894 e da presente quarta-feira 10 de fevereiro de 1897, e
depois o mais breve possível venha a Roma. 538

Padre Cícero foi obrigado a deixar o Juazeiro e a região do Cariri, mudando-se


temporariamente para a cidade de Salgueiro, Pernambuco. Em telegrama ao Padre Fernandes,
seu amigo que estava em Roma, explica sua saída repentina da cidade: “Obedecendo
Congregação saí 30 léguas. Peça por mim ir Juazeiro preparar peregrinação a Roma”.539
Ainda nesse cenário e com mais um inimigo para lidar, Dom Joaquim preparou mais uma
Carta Pastoral, que foi publicada em julho daquele ano:

Pela terceira vez, que esperamos ser a última viemos, amáveis irmãos e
amáveis Diocesanos, dirigir-vos, de modo solene, a palavra escrita para
falar-vos ainda da triste história do Juazeiro, a qual para honra da civilização
Católica desta Diocese deveria desde muito tempo estar sepultada em
completo olvido. [...] Como se verá, não voltaremos mais a falar dos fatos
denominados Milagres de Juazeiro, e dos documentos que lhes diziam
respeito porque tudo isto está a mais examinado, explicado tendo já sido
julgado de modo mais claro pelo poder competente.540

A grande vitória nesse momento, talvez a única, uma vez que não foi possível acabar
com as romarias, foi a saída de cena das beatas. Em sua Carta Pastoral de 1897, o bispo D.
Joaquim ressalta: “Maria de Araújo e as outras mulheres invencioneiras já estão bem
conhecidas, havendo parte delas confessado e deplorado seu embuste e parte caído em
completo desprezo, de modo que hoje em dia, não vogam mais as suas astúcias”.541 O
elemento inesperado, no entanto, foi que, paulatinamente, o padre Cícero foi ganhando status
de santo:

Presentemente já ninguém liga importâncias às mulheres embusteiras, que


não fazem mais milagres e já caíram no ridículo; todo o fanatismo agora se

538
Carta Pastoral de D. Joaquim Vieira de 1897 in Macedo, 1969: 145.
539
CRB/DHDPG: 32,25. Telegrama do Pe. Cícero ao Pe. Fernandes de 31.07.1897.
540
Carta Pastoral de D. Joaquim Vieira de 1897 in Macedo, 1969: 140.
541
Idem.
235
concentra na pessoa do padre Cícero, que os ignorantes apelidam por Padre
Santo. 542

A única menção feita à Maria de Araújo foi para recordar que ela e “as outras
mulheres invencioneiras já estão bem conhecidas, havendo parte delas confessado e deplorado
seu embuste e parte caído em completo desprezo, de modo que hoje não vogam mais suas
astúcias”.543 O bispo nota também que uma devoção à imagem do padre Cícero começa
lentamente a substituir o culto ao Sangue Precioso e as medalhas que antes tinham uma
representação com o nome de Maria de Araújo foram trocadas por outras com a imagem do
padre e da Mãe das Dores no verso:

Tem chegado a ponto de estando a imagem do Senhor do Bonfim, no corpo


da Igreja a sair para uma procissão, indo o povo beijar a imagem, veio um
sujeito com o retrato do padre Cícero e pô-lo ao lado da mesma, o qual
também era beijado, e tendo mandado retirá-lo pelo sacristão, o romeiro não
queria atender. Foi preciso ameaçá-lo de dar parte à Autoridade. Foi então
que resolveu guardar o tal retrato numa bolsa. Consta-me, com certeza, que
uma mulher, festejando em sua casa o mês mariano, pôs no altar em que se
achava a imagem de Nossa Senhora, o retrato do padre Cícero. Agora
mesmo se acham nesta vila duas beatas do Juazeiro, espalhando que um
doutor indo à Roma trouxe uma porção de relíquias para o padre Cícero e
esta lhes deu para distribuir com o povo – assim se deturpa a divina religião
de Nosso Senhor Jesus Cristo!

Esse processo de reordenamento da devoção só será consolidado muito tempo depois,


com a morte do padre Cícero, todavia é importante pensar como essa construção tecerá uma
memória que recorda os “milagres” do padre, mas que esquece a beata e o Sangue Precioso,
como veremos mais adiante.

* * *

Enquanto isso, o padre Cícero se estabeleceu em Salgueiro, interior do Pernambuco,


em agosto de 1897. Não demoraram a surgir comentários a respeito das “verdadeiras
intenções” da ida do padre cearense àquela região, situada estrategicamente na fronteira com

542
Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo Maria Gotti, sem data, provavelmente 1897. B. 79, Fasc. 384, Doc.
68, ASV. Grifos no original.
543
Carta Pastoral de D. Joaquim Vieira de 1897 in Macedo, 1969: 140.
236
os estados de Alagoas e Bahia, onde Antônio Conselheiro544 havia se fixado, fundando a
comunidade de Canudos. Não casualmente, começam a aparecer na imprensa as primeiras
notícias que qualificavam Juazeiro como um espaço de fanatismo similar ao de Canudos.
Não é coincidência que no jornal A União de 28 de março de 1897, matérias sobre
Canudos e Juazeiro tenham sido publicadas uma ao lado da outra, na capa do semanário, a
primeira narrando episódios da Guerra no sertão baiano e exaltando a coragem das mulheres:
“As mulheres lutam também com uma bravura incrível, tendo sido no combate de três, mortos
dois oficiais por essas feras, que, dizem, tem uma beleza extraordinária”. Enquanto isso, sobre
Juazeiro o periódico enfatiza o caráter histérico de Maria de Araújo, acusando o padre Cícero
de explorar os romeiros: “Juazeiro está convertido em uma escola de perversão moral e
religiosa”. 545
A distinção na abordagem feita pelo jornal sobre os dois casos reforça nossa tese de
que os casos de Juazeiro e Canudos pouco têm em comum e não podem ser analisados sob a
mesma ótica, como faz a historiografia sobre movimentos religiosos, principalmente, aquela
da década de 1970 que compara os movimentos de Canudos e Contestado com o de
Juazeiro.546
Em agosto de 1897, um telegrama enviado ao Prefeito e Conselho Municipal de
Salgueiro por um homem chamado Joaquim Correia defendia que “o Padre Cícero não auxilia
Antonio Conselheiro nem promoverá agitação hostil Governo”.547 Todavia, o telegrama não
conseguiu evitar a expulsão do padre da província de Pernambuco em outubro de 1897,

544
Nascido Antônio Vicente Mendes Maciel em 13 de março de 1830, na cidade Quixeramobim, Antônio
Conselheiro pertencia a uma família tradicional da região, letrado, casou-se em 1857 e exerceu diversas
profissões entre elas a de negociante, professor e caixeiro-viajante. Tendo sofrido um choque com a fuga de
sua mulher com um militar, Antônio largou tudo o que tinha e começou uma vida nômade pelos sertões.
Acusado de matar a mulher e a sogra, foi preso em 1877, mas foi logo solto por falta de provas, prosseguiu
na sua caminhada sem rumo. Nesse meio tempo, fazia pregações, organizava mutirões para construção de
igrejas e cemitérios, em uma ação social, muito próxima a do padre Ibiapina que atuava na mesma época, e
em 1893 chegou a Belo Monte, uma fazenda abandonada no interior da Bahia (Cf. Cunha, 1973).
545
A União, 28.03.1897, Órgão do Partido Republicano do Estado da Parahyba, Parahyba, Brasil, Ano V, n°
1045.
546
Essa ideia, inclusive, originou toda uma discussão historiográfica que equipara equivocadamente, a nosso ver,
os casos de Juazeiro, Canudos e Contestado, reproduzida principalmente nos trabalhos de Rodolfo Teófilo
(1926), Lourenço Filho (1968), Maria Isaura Pereira de Queiroz (1976) e Douglas Monteiro (1977), para citar
alguns exemplos. Em um trabalho publicado em 2012, defendo a ideia que Juazeiro não pode ser
compreendido a partir das categorias de messianismo e milenarismo, nem comprado aos movimentos de
Canudos e Contestado. Ver: Nobre, Edianne S. “Os caminhos da historiografia sobre os fenômenos de
Juazeiro do Padre Cícero” in Buarque, V. A. C. (org.). História da historiografia religiosa. Ouro Preto:
Edufop/PPGHIS, 2012.
547
DHDPG/CRB 32,28. Telegrama de Joaquim Correia em 17.08.1897 para o Prefeito e Conselho Municipal de
Recife.
237
ordenada pelo bispo daquela Diocese, Dom Manuel.548 O próprio bispo cearense, em uma de
suas cartas ao Internúncio, afirmou que Cícero “é um segundo Antônio Conselheiro, que tem
o dom de fanatizar as classes ignorantes”,549 o discurso de Dom Joaquim denuncia ainda um
preconceito latente sobre o norte do país: “Aqui no norte, há efetivamente pronunciada
tendência para a superstição”.550
A especulação que se fez em torno dessa viagem gerou uma série de suspeitas por
parte do pároco do Crato e, a despeito da lentidão dos correios, as cartas do padre
Alexandrino indicam como a rede de informações e boatos funcionava naquele momento:

Antes de vir do Salgueiro para esta cidade, foi intimado [o padre Cícero]
pelo Governador de Pernambuco a deixar o Salgueiro, visto estar ali grande
quantidade de povo à disposição dele para seguir a Canudos para outros fins
inconfessáveis. Acalmou-se o Governador quando recebeu um telegrama do
Juiz de Direito afirmando não haver perigo para a ordem pública [ilegível]
do padre Cícero, embora houvesse ali grande número de povo vindo de
diversos Estados de qual poderia [ilegível] se quisesse fazer revolução. D.
Manuel, Bispo de Pernambuco, exigiu do Pe. João Carlos [pároco de
Salgueiro, na época] a retirada do Pe. Cícero, visto ser um sacerdote rebelde
e desobediente.551

Alheios a essa teia de intrigas, para a Legião da Cruz, leia-se José Lobo e os crentes no
Sangue Precioso, e mesmo para o Padre Cícero, importava mais conseguir que a Santa Sé
revogasse o Decreto de 1894, dado que se os fenômenos fossem considerados como
milagrosos, qualquer condenação aos sacerdotes seria consequentemente anulada. Somente a
partir de 1897, provavelmente por causa do insucesso quanto à anulação da decisão da Santa
Sé, é que o padre Cícero e seus amigos começam a luta para reaver suas ordens sacerdotais
perdidas em 1892. Sobre Maria de Araújo: nenhuma palavra.
Diante da impossibilidade de permanecer em Pernambuco, o padre Cícero retornou ao
Juazeiro, desobedecendo a ordem do bispo, a fim de preparar a mais importante viagem de
sua vida. O padre iria pessoalmente a Roma, sujeitar-se aos Decretos de 1894 e pedir ao Papa
Leão XIII pelo restabelecimento de suas ordens sacerdotais.
Os preparativos duraram cerca de oito meses e em março de 1898, nove anos após o
primeiro sangramento da hóstia, ele começou sua viagem para Roma, embarcando pelo porto
548
DHDPG/CRA 14,105: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 15.10.1897.
549
Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo Maria Gotti, s/data, provavelmente 1897. B. 76, Fasc. 369, Doc.
68, ASV.
550
Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo Maria Gotti em 24.10.1897. B. 79, Fasc. 384, Doc. 73, ASV.
551
Idem.
238
de Recife ao invés de sair de Fortaleza, uma estratégia para escapar do controle do bispo
552
diocesano. Na bagagem, o padre Cícero ainda levou com ele vários “atestados” que
afirmavam sua boa conduta e alguns abaixo-assinados que solicitavam a reabilitação de suas
ordens.
Um mês antes, o cardeal Lucido Maria Parocchi, já citado anteriormente, havia
enviado a Dom Joaquim um ofício da Congregação sobre os fatos de Juazeiro: tanto o padre
Cícero quanto José Lobo seriam absolvidos de suas faltas caso se abstivessem de falar ou
escrever qualquer coisa sobre o Juazeiro. Sendo que o padre Cícero continuava proibido de
“pregar a palavra de Deus, a ouvir confissões e à direção das almas sem especial licença do
Santo Ofício”.553 No ofício, nada havia sobre Maria de Araújo ou sobre as beatas.
O padre Cícero ficou hospedado no Albergo dell’Orso554 no centro de Roma, e lá
contava com a ajuda do monsenhor Antônio Fernandes da Silva Távora (ex-pároco do Crato
que morava na Itália naquele momento), como intermediador entre ele e os cardeais do Santo
Ofício, uma vez que ele não falava italiano. Em 23 de abril, ele apresentou-se oficialmente ao
Cardeal Lucido Parocchi:

Há dias que cheguei nesta Cidade e por motivo de doença, agora é que pude
vir à presença de Vossa Eminência. Sou o padre Cícero Romão Batista do
Juazeiro, Ceará, Brasil, suspenso desde 1892, e afinal até de confessar-me e
comungar, desterrado para longe de uma mãe e irmã, ambas em um leito de
morte e pobres, de quem eu sou o único arrimo. [...] E como a Santa
Congregação do Santo Ofício ordenou-me que, se eu quisesse reclamar
destas penalidades viesse em quanto antes a Roma, aqui vim obedecer, e
pronto para o que Vossa Eminência determinar, e suplicando somente não
sacrificar a consciência, o que nem V. Eminência nem a Santa Igreja o
consentirá, aqui estou sem reserva.555

O objetivo da visita era claramente reclamar a revogação da suspensão das suas ordens
sacerdotais, no entanto, o padre Cícero continuava tergiversando e jurando obediência desde
que não fosse necessário “sacrificar a consciência”, isto é, negar a veracidade dos fenômenos
extraordinários manifestados por Maria de Araújo e o caráter milagroso do Sangue Precioso.

552
Segundo o padre Alexandrino, Cícero teria dito claramente que não sairia pelo porto de Fortaleza para evitar
um encontro com o bispo. Ver: DHDPG/CRA 14,16: Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim
Vieira em 24.01.1898.
553
Carta Pastoral de D. Joaquim Vieira de 26.12.1898 in Macedo, 1969: 151.
554
O Albergo dell’Orso, atual “Antica Dimora dell’Orso” é localizado na esquina da Via Monte Brianzo com Via
dell’Orso, vizinho à Igreja de Santo Antônio dos Portugueses no centro histórico de Roma.
555
90. Carta em 23.04.1898. Apud Silva, 1982:
239
O padre desejava ficar o menor tempo possível na cidade, pois os recursos de que dispunha
para a viagem eram pequenos apesar do valor angariado pela Legião da Cruz.
Duas testemunhas foram arroladas pelo Cardeal Parocchi no julgamento do pedido do
padre Cícero: João Batista de Oliveira, acompanhante do padre Cícero na viagem, e o Tenente
Coronel Joaquim Lobo que viajou para Roma a fim de dar assistência ao padre. Não encontrei
nenhum documento que detalhasse a reunião entre o padre Cícero e o Cardeal Parocchi, mas
tudo indica que o padre foi obrigado a esperar mais do que desejava. Tenho chegado a Roma
em fins de abril, ainda no início de julho, ele reclamava já não ter mais condições financeiras
e solicitou um empréstimo de 750$000 réis aos irmãos Mendo e Sebastião Sampaio, do
Juazeiro, para continuar na cidade.
Em 28 de agosto de 1898, desta vez hospedado no convento da Igreja de São Carlos,
na via Corso della Republica, ele implorou aos Cardeais o adiantamento da decisão para que
pudesse voltar ao Brasil. Ao que parece, suas preces foram atendidas, uma vez que em
setembro de 1898, o padre escreveu a Dom Joaquim para comunicar que prestou um ato de
submissão ao Decreto do Tribunal do Santo Ofício sobre os fatos ocorridos com Maria de
Araújo e que a Congregação tinha lhe devolvido o uso de suas ordens sacerdotais:

Fui absolvido das censuras que eu pudesse ter incorrido, e me foi dada
faculdade de celebrar o Santo Sacrifício da Missa e de voltar para casa.
Como o mesmo Santo Tribunal comunicará a V. Ex.a. Revma. […] Quando
eu voltar, vou render a minha obediência a V. Ex.a. Revma., espero que me
receberá como filho humilde e submisso.556

De volta ao Cariri, Cícero se desesperava, pois a suposta carta que o autorizava a


pregar e prestar os sacramentos não chegava. O bispo alegou que nunca recebeu o documento
da Santa Sé que devolvia as ordens do padre Cícero. No povoado, espalhou-se a notícia de
que o Santo Ofício devolvera as ordens ao padre Cícero, mas que o bispo as havia tomado.
Provavelmente foi José Lobo o responsável pela disseminação do boato.557
Ainda em 1898, o bispo publicou sua última Carta Pastoral, começando com um
apelo sobre a necessidade de “lançar espesso véu sobre a execrável e enfadonha farsa do
Juazeiro, e não mais nos ocupar dos deploráveis desvios religiosos e morais que ali se têm
dado, mas impelido pela necessidade imperiosa de salvaguardar e pureza da doutrina

556
Carta do padre Cícero Romão a D. Joaquim Vieira de 01.09.1898 in Silva, 1982:28.
557
DHDPG/ CRA 04,38: Carta do padre Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira em 14.12.1898.
240
católica”.558 José Lobo foi convocado a prestar esclarecimentos em uma reunião particular em
Fortaleza, na qual o bispo proibiu o funcionamento da irmandade da Legião da Cruz:

[...] fundada nesta Diocese, sem audiência nem consentimento seu; sendo
que esta associação irregular tem dado ocasião a grosseiras superstições e à
perturbações da harmonia dos fiéis da Diocese e paróquias com os seus
[mutilado], pelo que Sua Excia. Rma. declarou ao Sr. Lobo, fundador desta
associação que a proíbe expressa e terminantemente nesta Diocese.559

Com a Irmandade suspensa e o padre Cícero fora do Juazeiro, o bispo começou a


planejar uma atividade missionária no povoado e cogitou chamar os padres franciscanos que
já estavam cotados para estabelecer uma casa de ensino na cidade de Canindé desde 1897.560
Logo após a visita do padre Cícero a Roma, a Congregação publicou uma revisão do caso, em
um Relatório com cerca de 40 páginas. Era a última comunicação oficial sobre os
acontecimentos de 1889 e, provavelmente, a última vez que Maria de Araújo e as outras
beatas foram citadas oficialmente.

558
Carta Pastoral de 1898 in Macedo, 1964: 145.
559
DHDPG/CRB 06,11: Ata da reunião com José Joaquim Lobo de 15.11.1898.
560
Carta de D. Joaquim Vieira a Monsenhor Guidi em 24.10.1897. B. 79, Fasc. 384, Doc. 73, ASV.
241
5.4. As fabricantes de milagres: o Relatório final da Santa Sé

O Relatório final sobre o processo, datado de 17 de agosto de 1898, sobre “a pretensa


transformação da Santa Partícula em carne e sangue na boca da religiosa Maria de Araújo” foi
relatado pelo padre Ludovico Hickey561 e impresso em 31 páginas.562 Dividido em 4 tópicos:
Mulheres; Leigos; Sacerdotes e Conclusão, o relatório traz uma revisão do caso e inclui peças
documentais produzidas após 1894, isto é, após a publicação do Decreto.
Produzido pela mesa composta pelos cardeais Lucido Maria Parocchi (1833-1903),
Gaetano Aloisi Masella (1826-1902), Giuseppe Maria Graniello (1834-1896), Teodolfo
Mertel (1806-1899), Isidoro Verga (1832-1899), Camillo Mazzella (1833-1900) e Seraphino
Vannutelli (1834-1915). Ao todo eles se reuniram seis vezes entre 1892 e 1898 para analisar
os documentos referentes aos fenômenos de Juazeiro. 563
O Relatório que foi publicado pela imprensa do Vaticano ratifica o Decreto de 1894 e
Maria de Araújo como “pseudomística, fabricante de milagres e inventora de
imposturas”.564 Consideramos esse Decreto como a última manifestação da Santa Sé sobre
os fenômenos de Juazeiro. De fato, não há mais nenhuma menção sobre o caso de
Juazeiro, pelo menos até 1920, pelo que pudemos constatar nos livros de Decretos da
Congregação.
Ora, mesmo considerando que esse documento ratifica a Feria IV, é importante
notar que a produção e publicação de um novo documento quatro anos depois têm a ver
com as apelações e recursos interpostos por parte dos sacerdotes atingidos pelo Decreto,
coincidindo, inclusive com a visita do padre Cícero a Roma naquele ano. É ainda nesse
documento que notamos como paulatinamente a “santidade” da beata será substituída pela
deste sacerdote.565 O texto da Congregação é resumido, mas chama a atenção para três

561
Não conseguimos informações sobre esse sacerdote.
562
É possível que ele tenha sido publicado novamente quatro anos depois, porque foram empreendidos recursos
contra a Decisão.
563
Não houve reunião em 1893 e 1895.
564
Feria IV, Die 4 Aprilis 1894, Decreta Universa, ACDF. Ver anexo n° 6.
565
Essa substituição do protagonista é diretamente proporcional à invenção de Juazeiro como um espaço
sagrado. Não travaremos essa discussão sobre o espaço sagrado aqui, pois, ela já foi objeto de nossa
dissertação de mestrado. O conceito de espaço como um lugar construído através das práticas de seus
usuários, dos sujeitos que nele caminham (Certeau, 1994: 201). Assim, o espaço é também construído, a
partir das experiências, vivências e relações que se estabelecem entre os sujeitos. Já, o sagrado, se refere ao
plano do desconhecido, do contato com a divindade, o plano do a-histórico, do sobrenatural, onde os eventos
não obedecem a uma trajetória cronológica dos acontecimentos, da temporalidade e da espacialidade
242
questões relativas à Maria de Araújo: a) a elevada quantidade de comunhões feitas
diariamente, que contrariava a liturgia católica, questão que dizia respeito também às
outras mulheres. b) o fato de ter sido representada em uma medalha como se fosse Nossa
Senhora; e, c) a relutância dela em se internar em uma casa religiosa.
Os principais documentos utilizados pela Congregação para formar o último juízo
sobre o caso foram, além do Processo Episcopal (principalmente o segundo inquérito e o
interrogatório com as beatas do Aracati), as cartas enviadas por Dom Joaquim ao
Internúncio Apostólico D. Girolamo Gotti, o que indica que foram privilegiadas
informações que depunham contra Maria de Araújo e as beatas.
O Relatório apresenta as considerações e acusações que pesavam sobre algumas
das beatas e sacerdotes envolvidos e, posteriormente, executa um juízo. Pela ordem de
exposição do caso, Maria de Araújo é a primeira a ser citada. Como uma verdadeira,
“fabricante de milagres e inventora de imposturas”, suas “aberrações pseudomísticas”566
começam pelo fato do abuso das comunhões. Segundo uma matemática simples, feita a
partir das informações fornecidas por Dom Joaquim, eram no mínimo cinco comunhões
diárias.
Outra acusação dizia respeito à falta de humildade e arrogância da beata, que se
deixara retratar em uma medalha dita “milagrosa”:

Essa jovem foi esculpida sobre a medalha com uma aureola em torno da
cabeça e com raios saindo das mãos, como se costuma representar a
Santíssima Virgem [...] Na outra parte da medalha se lê o escrito = Padre
Cícero =. É esse o sacerdote que se diz diretor de Maria de Araújo,
presidente e regulador dos principais fatos, chamados prodigiosos, e
obstinado sustentador dos pretensos milagres.567

Soberba, insolência, orgulho. A esses adjetivos, somava-se ainda uma acusação


importante feita por Dom Joaquim, na qual, alegava que “aquela jovem é dada a bebidas

histórica. Essa percepção de sagrado só é possível para o homem religioso, pois, para este, o espaço não é
homogêneo, ele apresenta roturas, se mostra qualitativamente diferente em determinados pontos, isto é, o
homem religioso se permite crer no desconhecido (Cf. Nobre, 2011: 29).
566
Tradução livre: “Maria de Araújo seu pseudo-sancta illa muliercula, miraculorum fabricatrix et imposturarum
inventrix [...] aberrationibus pseudo-mysticis”. Rerum Variarum, Doc. 16, ACDF.
567
Tradução minha: “Questa giovane é scolpita sulla medaglia con aureola intorno alla testa e con raggi alla
mani, come si suole rappresentare la Ssma. Vergine nella medaglia [...]. Nell’altra parte della medaglia si
legge la scritta = Padre Cicero =. É questi quel [sic] sacerdote che fa parlare di se come direttore dalla Maria
de Araujo, presidente e regolatore dei principale fatti cosi detti prodigiosi, ed ostinato sostenitore dei pretesi
miracoli” in Carta de Frei Girolamo Gotti ao Monsenhor Francesco Segna (asessor do Santo Ofício) em
02.09.1893. Rerum Variarum, Doc. 33, ACDF.
243
alcóolicas, e não obstante esse vício, quer se passar por santa”.568 Em outra carta afirma: “seu
temperamento é fraco, ela é doentia”.569 Não sabemos de onde o bispo retirou essa
informação, mas o fato de ele citar possíveis vícios de Maria e reforçar que era fraca e doente
mostra sua mudança de opinião ou ao menos a incorporação desta tese àquela do embuste.
Essa indecisão do bispo, presente nas tentativas de culpabilizar Maria a todo o custo, denota
certo desespero diante da perda do controle sobre o clero diocesano.
A segunda mulher citada no Relatório foi a beata Maria de Jesus da Natividade
Rebouças, acusada de receber em um dia pelo menos seis comunhões: “uma pelos
habitantes de Aracati, uma pelos de Limoeiro, e as últimas…! Ela não se lembrava mais
qual a intenção”.570 Aqui é necessário chamar a atenção para o fato de que esta beata não
era de Juazeiro, mas do antigo grupo de beatas que seguia o padre Clicério no Aracati,
como vimos no terceiro capítulo. O “movimento” do Aracati foi rapidamente liquidado
pela Diocese e todas as mulheres envolvidas se retrataram. Talvez o fato de que esta beata
representava um caso no qual o bispo obteve total sucesso, explique ela ter sido citada no
Relatório. Outra acusação que pesava sobre Maria da Natividade era a formulação de um
tipo de profecia escatológica:

O acontecimento de uma nova redenção foi revelado, e de Juazeiro sairiam


novos apóstolos, como se fosse um tipo de Jerusalém: seria por isso que essa
‘localidade’ levaria o nome de ‘Nova Jerusalém’. O padre Cícero seria como
um novo João Batista entre os homens; e Nosso Senhor lhe concederia
graças tão extraordinárias, como Ele nunca havia concedido a nenhum outro
homem. A Igreja Brasileira passaria por uma terrível perseguição, na qual
haveriam muitos padres mártires, e mesmo agora, se sabia nominalmente
que o Padre Cícero seria um deles. A causa da perseguição seria o
casamento civil. A Santa Virgem, também pedira por revelação que fizessem
uma cópia do processo para poder resolver todas as dificuldades que por
acaso aparecessem contra o processo, e certamente, seriam numerosas.
Apareceria um novo Moisés; eu não me lembro mais das palavras do Padre
Clicério que me permitem conjeturar que esse Moisés seria o próprio Padre
Clicério; E igualmente, que Sua Alteza morreria de morte súbita.571

568
Tradução minha: “Quella Giovane è data a bevande alcooliche, e non ostante questo vizio, vuol passare per
sancta”. Rerum Variarum 1898/128, Vol. II, Doc. 16. ACDF. Ver apêndice n° 5.
569
Tradução minha: “[...] son tempérament est faible, elle est maladive”. Relatório feito à Sua Eminência O
Cardeal Monaco La Valeta em 20.04.1893. Rerum Variarum 1898/128, Vol. II, Doc. 22. ACDF.
570
Tradução minha: “[…] une pour les habitants de Aracaty, une pour ceux du Limoeiro, el le dernière…! Elle ne
se rapelait plus à quelle intention”. Rerum Variarum, Doc. 16, ACDF.
571
Tradução minha: “L’avènement d’une nouvelle rédemption était révélé, et de Joaseiro sortiraient de nouveaux
apôtres, comme il en était sorti de Jérusalem : c’est pour cela que cette “localitè” allait prendre le nom de
“Nova Jerusalém”. Le Prêtre Cícero serait comme un noveau Jean-Baptiste parmi les hommes; et Notre
Seigneur lui avait accordè des grâces tout à fait extraordinaires, comme il n’en avair jamais accordè à aucun
autre homme. L’Eglise Brèsilienne passerait par une terrible pérsecution, dans laquelle il y aurait beaucoup
de prêtres martyrs, et même déjá, on savait nominalement que le Prêtre Cicero serait l’un d’eux. La cause de
244
Consideramos que o texto acima foi completamente “traduzido” pelo escrivão, pois
dificilmente, mesmo as mulheres alfabetizadas, se expressariam com essa clareza e erudição.
O lugar principal, o espaço sagrado por excelência, permanece sendo o Juazeiro, mas ao
contrário dos depoimentos do primeiro inquérito, no qual as mulheres e os fenômenos que
elas diziam manifestar são o centro da questão, os textos atribuídos às mulheres de Aracati
privilegiam a atuação dos sacerdotes.
Além disso, o texto parece indicar aspectos messiânicos e apocalípticos, mas os relatos
das beatas de Juazeiro não seguiam essa linha.572 As críticas ao casamento civil573 aparecem
como a síntese de todas as mudanças políticas e de laicização de fins do século XIX que
“oprimiam” a Igreja católica como Jesus fora oprimido em seu tempo.
A intervenção do Estado foi vista por muitos como forma de acabar com a Igreja e
embora a posição política desta, tenha sido de aceitação do novo regime no Brasil, é evidente que
a população não conseguiu assimilar a situação tão rapidamente.574 É como se os fenômenos
fossem uma resposta à situação penosa pela qual a religião passava. A laicização de práticas
como o casamento e os enterramentos (feitos agora em cemitérios distantes das Igrejas),
provocou um choque na sociedade do fim do século XIX. A possibilidade do milagre aparece

cette persécution serait le Mariage Civil. La Sainte Veirge avait aussi demandé par révélation que l’on fit une
copie du procès pour pouvoir trancher tout difficultè qui par hasard apparaitrait contre le procès, et
certaneiment, elles seraient nombreuses. Il apparaitrait un nouveau Moïse ; je ne me rapelle plus quelles sont
les paroles du Prêtre Glycerio qui m’ont permis de conjecturer que ce Moïse serait le même Prêtre Glycerio ;
Et egalement, que Votre Grandeur mourrait de mort subite”. Rerum Variarum 1898/128. Vol. II, Doc. 16.
ACDF.
572
No capítulo passado, vimos como as beatas do Aracati também criaram uma profecia, narrada no jornal, que
marcava a data para o “fim do mundo”.
573
O casamento civil configurava para a Igreja um “concubinato legal”, isto é, uma relação ilícita pelas leis
divinas, mas amparada pelo poder civil. Em setembro de 1889, uma circular enviada pelo bispo D. Joaquim
às paróquias da Diocese cearense expressava o desagrado do Papa Leão XIII com a laicização do casamento:
“Querendo Sua Santidade facilitar todos os meios de santificação e salvação das almas, e tendo em
consideração o desgraçado estado a que se reduzem alguns infelizes que se deixam ficar em concubinato
legal, pela união ilegítima sancionada pela lei do casamento civil, sem intervenção da Santa Igreja, e mesmo
de outros que vivem em simples concubinato, expondo-se a morrer no triste estado de pecado [...] [seguem as
prescrições]” Carta Circular de D. Joaquim Vieira ao Pe. Cícero Romão em 04.09.1889 in “Documentário”,
p. 28. Ressalte-se que a carta original foi emitida pela Secretaria da Sagrada Congregação do Santo Ofício
em 29.02.1888.
574
Um exemplo disso foi a opinião dos sacerdotes envolvidos na questão, como a do padre Francisco Antero, que
escreveu a certo Monsenhor Saluci, relacionando a ocorrência dos fenômenos de Juazeiro à situação do Estado
brasileiro: “Ah! Se V. Ex.a tivesse conhecimento do estado do nosso infeliz Brasil em quanto a religião; como
trabalham os sequazes de Satanás para arrancar dos corações daquele abandonado povo toda a ideia de religião;
como fazem progresso agora o positivismo e o materialismo procurando destruir os dogmas, mistérios e tudo o
que há de mais santo em nossa religião; exclamaria como eu e muitos outros maravilhados pelas vitórias que vai
tendo nossa santa religião nesses lugares sobre inimigos tão perigosos quanto audazes, originadas por este
milagre da transformação de hóstias consagradas em carne e sangue no povoado de Juazeiro: Ó Providência
admirável de nosso bom Deus […] para nos salvar em tempos calamitosos […]”. Carta de padre Antero a Mons.
Saluci de 05.08.1892, apud Della Cava, 1976: 69.
245
aqui como uma “recusa ao estatuto da ordem” estabelecida, para usar uma expressão de Michel
de Certeau ao explicar a influência do missionário Frei Damião no interior nordestino em
meados do século XX (1994:76). Essa argumentação, no entanto, não podia funcionar com a
Santa Sé, uma vez que naquele contexto a Igreja considerava as manifestações desse tipo como
afronta ao poder institucional, afronta esta que o bispo do Ceará não conseguiu conter.
Voltando aos elementos presentes na narrativa acima, percebemos que novamente
Maria, mãe de Jesus, aparece como uma intermediária, reforçando a necessidade do envio da
documentação a Roma. O Papa aparece aí como uma pessoa acessível, que escuta os pedidos
dos fiéis, ao contrário do bispo cearense colocado na posição de algoz.
Essa visão decorre também, podemos aventar, de um completo desconhecimento, por
parte das mulheres, do funcionamento da hierarquia eclesiástica. Obviamente, essa mesma
justificativa não pode servir para o padre Antero, por exemplo. Doutor em teologia, ele ousou
afirmar que se “Roma não autenticasse os milagres de Juazeiro, ela se defrontaria com a tarefa
de invalidar ‘milagres idênticos (que já tinham sido) aprovados pela Igreja’ e nos quais os
povos da França, de Portugal e da Itália vinham de longa data, acreditando”.575 Outro padre,
Pedro Augusto Chevalier, reitor no Seminário de Fortaleza, mais consciente da hierarquia e
do quadro geral no qual a Igreja se encontrava naquele momento, teria dito que Deus não saía
da França para fazer milagres no Brasil!
Seguindo o Relatório, a terceira beata citada foi Antônia Maria da Conceição, acusada
de “confirmação de falso milagre” e de “juramento em falso”, o texto do Relatório recorda
que ela declarou abertamente:

[...] que não teve nenhuma revelação, de qualquer tipo que seja; que ela
jamais foi honrada com aparições divinas, nem daquelas com a Santíssima
Virgem; que ela jamais foi a Roma em espírito, nem ao céu, nem ao Inferno,
nem ao Purgatório. [...] Ela disse que os eventos em Maria de Araújo, não
lhe tinham causado nenhuma surpresa, porque era sua convicção de que este
devota tinha forjado esta história dos supostos milagres com habilidade e
malícia, desde o início. E, finalmente, que todo o seu depoimento no
processo sobre os fatos de Juazeiro era um tecido de mentiras.576

575
Carta de padre Antero a Mons. Saluci de 05.08.1892, apud Della Cava, 1976: 69.
576
Tradução minha: “Elle déclara ouvertement que jamais elle n’avait eu aucune révélation, de quelquer sorte
que ce soit ; que jamais elle n’a été honorée d’apparitions divines, ni de celles de la T.S.. Vierge ; que jamais
elle n’est allée à Rome en esprit, ni au Ciel, ni aux Enfers, ni au Purgatoire. [...] Elle dit que les faits survenus
à Marie de Araújo, ne lui avaient causé aucune surprise, parceque c’était sa persuasion que cette dévote avait
echaffaudè cette histoire des miracles supposés avec habiletè et malice, à son but. Et finalement, que toute sa
déposition dans le procès sur les faits de Joaseiro, était un tissu de mensonges”. Rerum Variarum 1898/128.
Vol. II, Doc. 16. ACDF.
246
Outras mulheres são citadas en passant: Maria da Soledade, condenada como
embusteira por dentre outros abusos, dar uma medalha de São José ensanguentada e dá-la a
beijar pelo povo; Anna Leopoldina de Aguiar e Mello, embusteira por alegar que uma hóstia
ensanguentada lhe foi dada por Cristo em uma de suas viagens ao Purgatório; Jahel
Wanderley Cabral, embusteira, por aparecer com um coração feito de hóstias e dizer que este
lhe havia sido dado por Deus, quando estava no Purgatório. Joana Tertulina de Jesus e Maria
das Dores do Coração de Jesus, condenadas por extrema pertinácia e por interporem recurso
falso ao Sumo Pontífice.577
O caso de Maria de Araújo foi comparado no Relatório a outro, ocorrido na mesma
época na França, em Loigny, diocese de Chartres, no qual uma beata chamada Matilde
Marchat, chamada também Maria Genoveva, alegava ter visões com Jesus Cristo e chegou a
fundar uma nova Ordem. O bispo de Chartres, querendo acabar com a “seita”, condenou
como falsas as aparições e revelações, mas Matilde e os sacerdotes que a apoiavam
recorreram diretamente à Santa Sé, passando pela autoridade da Diocese. O caso foi noticiado
pelo jornal madrileño “El nuevo regimen” em 27 de junho de 1891, dois anos após o primeiro
sangramento ocorrido com Maria de Araújo, e analisava a mesmas hipóteses lançadas para
578
avaliar os fenômenos de Juazeiro: seria embuste ou histeria. Mesmo depois de condenada
como embusteira pela Santa Sé,579 Matilde continuou alegando receber revelações divinas e
os sacerdotes ligados a ela continuaram estimulando peregrinações ao lugar.
Esse mesmo caso foi citado pelo padre Alexandrino em uma de suas cartas ao bispo D.
Joaquim ainda em 1896:

Causou-me espécie [sic] o fato ocorrido em Chartres. Nunca supus que, em


pais civilizado como é a França se dessem fatos desta ordem acompanhado
de circunstâncias agravantes, tais como a resistência a Autoridade Diocesana
e ao Santo Ofício. O espírito de revolta está minando a sociedade em suas
bases.580

É interessante perceber a relação entre os dois casos e o porquê da comparação neste


documento. Os dois foram marcados pela pertinácia e desobediência à autoridade diocesana e

577
Rerum Variarum 1898/128. Vol. II, Doc. 16. ACDF.
578
Jornal El nuevo regimén de 27.06.1891 Ano I, n° 24, Madrid. Arquivo: hemerotecadigital.bne.es
579
Feria IV de 15 de abril de 1896 in Quaderno La Civiltà católica , Roma, 1896. Ano 47, Série XVI, Volume VI,
Quaderno 1099, p. 485.
580
DHDPG/CRA 08,31. Carta do Pe. Alexandrino de Alencar a D. Joaquim J. Vieira em 08.07.1896.
247
à Santa Sé; ambos suscitados por uma mulher leiga e sustentados por sacerdotes que, em tese,
eram esclarecidos. O espanto do padre Alexandrino também é justificado: como é possível
que tais fatos se dessem em um país “civilizado” e, ao mesmo tempo, em um pequeno e
ignorante povoado no interior do Ceará?
Esse talvez seja um enigma impossível de decifrar, mas podemos inferir que estes
diversos elementos em comum apontam para a profundidade das práticas religiosas populares
e, talvez, possa significar uma tática de resistência ao hostil clima de mudanças daquele
momento.
O Relatório continua aludindo ao caráter obstinado do padre Cícero e na insistência
em continuar com as “sacrílegas falsidades” das quais tomara parte, tornando-se assim “o
principal protagonista desta triste história de Juazeiro, pela crença e pela importância que deu
aos artifícios de Maria de Araújo e de algumas outras mulheres enganadoras”.581
Na sua conclusão, o texto do Relatório apresenta um resumo: ressalta que Maria de
Araújo e as outras mulheres perderam crédito e já não faziam mais “milagres” e Cícero era o
único defensor do Juazeiro, pois os outros sacerdotes tinham já se retratado, figurando como
“o único objeto da devoção dos fanáticos que lhe consideram como um santo”.582 Cita José
Lobo como um homem “que fala muito de devoção, mas que é ignorante, teimoso e bastante
impertinente” e José Marrocos aparece como o ladrão da caixa de panos que desaparecera em
1892 e jamais fora encontrada: “homem astucioso, que procura continuamente a perturbar a
paz e a harmonia religiosa na Diocese”.583 O texto ainda insiste no esforço do bispo para
conseguir as retratações, a despeito da atitude de diversos renitentes que ainda perseveravam
no erro, ao que parece o bispo não foi punido em nenhum momento por ter permitido o
alastramento do culto.

581
Tradução livre: “[...] principal protagoniste de cette triste histoire de Joaseiro, par la croyance et l’importance
qu’il donnait aux artifices de Marie de Araujo et de quelques autres femmes aussi fourbes”. Rerum Variarum
1898/128. Vol. II, Doc. 16. ACDF.
582
Tradução livre: “Acta et gesta Marie de Araujo, et aliarum muliercularum publice nota et habita esse
tamquam meras et sacrilegas fictiones ; ideoque mulieres illae ont perdu tout crédit, et il y a longtemps déjà
qu’elles ne font plus de miracles “[...] Solum sacerdotem Cicero superstitiosae fictionis de Ioaseiro
defensorem, et paucorum illusorum devotionis obiectum hodie existere; ideoque merito concludere
Episcopum 16 Aug. 1896: ACTUELLEMENT LE PRÊTRE CICERO EST SEUL OBJET DE LA
DÉVOTIONS DES FANATIQUES [sic] qui le considerènt comme um saint. Quod si aliquos laicos
complices habet, id turpis lucri cupiditati adscribendum est.” Rerum Variarum 1898/128. Vol. II, Doc. 16.
ACDF.
583
Tradução livre: “il Sig. José Joaquim de Maria Lobo, abitante in Joaseiro, socio d’una conferenza di S.
Vicenzo de’Paoli, uomo che parla molto di divozione, ma ignorante, testardo ed abbastanza impertinente.”
[...] “uomo astuto e terribile homme astucieux, qui cherche continuellement à troubler la paix et l’harmonie
religieuse dans le Diocése”. Rerum Variarum 1898/128. Vol. II, Doc. 16. ACDF.
248
Este documento provavelmente é a última manifestação da Santa Sé sobre os
fenômenos de Juazeiro que tiveram Maria de Araújo como protagonista. Como o próprio
texto já sugere, cada vez mais o padre Cícero ganhava destaque na questão, tendo as mulheres
sumido, paulatinamente, da documentação e da memória do povo.
Dom Joaquim tampouco se manifestaria mais sobre o assunto, seu grande desejo era
que o padre Cícero saísse do Juazeiro, diminuindo assim sua influência sobre a população, o
que também nunca aconteceu. Dom Joaquim continuou na Diocese cearense por mais
quatorze anos, quando pediu renúncia do bispado em março de 1912. Voltando para sua
cidade natal em 1914, ele só viveria mais 3 anos, vindo a falecer em 8 de julho de 1917. Em
sua biografia, uma linha ganha destaque: “Lutou contra os abusos em Juazeiro do Norte, ao
tempo do padre Cícero Romão Batista”.584
O padre Alexandrino, por sua vez, não aguentou tanto tempo, perseguido pelos
defensores do padre e da beata, pediu dispensa de ir ao Juazeiro e em dezembro de 1899
escreveu ao bispo afirmando que não podia mais continuar no paroquiato da freguesia: “[…]
vejo-me forçado a retirar-me desta freguesia, ou demitido ou com licença de seis meses ou um
ano”.585 De janeiro a abril de 1900, insistiu com o bispo sobre a necessidade de se afastar da
freguesia do Crato e em abril daquele ano, finalmente, conseguiu que o padre Vicente Sother
o substituísse na freguesia.586 Ele não voltaria mais. Assumiu a paróquia de Picos, no Piauí
onde faleceu em 04 de fevereiro de 1903.
No final do século a beata e o padre ainda não haviam se retratado e jamais o fariam.
Junto a eles, alguns poucos personagens relutavam a obedecer ao bispo como José Marrocos,
José Lobo e a beata Mocinha, governanta de Cícero. Talvez por isso saibamos mais deles do
que daqueles que cederam à Decisão da Santa Sé, estes últimos sumiram nos porões da
História.

584
Ver site da Arquidiocese de Fortaleza: http://www.arquidiocesedefortaleza.org.br/arquidiocese/historia/bispos-
anteriores/2o-bispo-dom-joaquim-jose-vieira/ [acesso em 20.12.2013].
585
CRA 14,28: Carta do padre Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira de 26.12.1899 In “Anais”, p. 281.
586
CRA 04,44: Carta do padre Alexandrino de Alencar a D. Joaquim Vieira de 03.04.1900 In “Anais”, p. 282.
249
EPÍLOGO

A aniquilação de si:

“Fazei isto em minha memória” (Lc 22,19)

Oh! Ninguém sabe como esta alma, nestes momentos se apura no amor de
Deus! Disse a ela que aquele ato era também para alcançar de Deus uma
prova inabalável se o sangue de suas comunhões, dos crucifixos e das
comunhões misteriosas eram verdadeiramente e realmente o sangue de
Nosso Senhor Jesus Cristo. Não se imagina que enlanguecimento de amor,
que fogo celeste nestes Divinos instantes inundou o coração escolhido desta
Virgem!587

Em 14 de janeiro de 1914 faleceu Maria de Araújo. Ela vivia já há alguns anos em


uma pequena casa próxima à Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores, alheia ao turbilhão
que animava a já então efervescente cidade de Juazeiro. Ainda usava seu hábito negro, e,
segundo relatos, fora acometida de um câncer.588 Morreu em extrema pobreza, praticamente
sozinha.
Maria de Araújo era também Madalena do Espírito Santo. Adotar um nome de santo
por falta de sobrenome materno era um costume comum entre a população pobre do interior
brasileiro. Madalena recordava ainda a figura da “santa pecadora” cujo “aspecto dramático da
sua conversão servia aos princípios catequéticos da Igreja Católica [...] Por representar uma

587
Relatório de Monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro sobre os fatos de Juazeiro em 18.10.1891 in “Cópia
autêntica...”p. 74.
588
A causa da morte de Maria de Araújo é ainda um mistério, alguns informantes afirmam que ela faleceu devido
a um câncer de mama (Meneses, 1998:24), outros desconhecem a doença que a acometeu, principalmente
porque não havia diagnóstico preciso na época (Oliveira, 2001: 33).
250
situação de liminaridade, resgatada da condição de pecadora e transformada em escolhida de
Cristo” (Borges, 2008, 272).
No Processo Episcopal, principal fonte sobre a vida de Maria de Araújo, não
encontramos uma narrativa linear, mas uma série de depoimentos que, em conjunto, acabaram
por contar a sua história, ao menos, a história que pudemos conhecer dela. Os textos que
chamamos de relatos místicos são, portanto, frutos de um interrogatório, respostas a perguntas
prontas e de caráter muito sugestivo que buscavam obter a confissão de uma “verdade”.
A fim de criar uma sequência narrativa da vida de Maria de Araújo, utilizamos os
depoimentos prestados pela própria beata e por testemunhas que depuseram no primeiro
inquérito. Apesar de tratarmos aqui de um documento produzido durante uma investigação,
conjeturamos que, no final, o texto teceu, ainda que sem pretensão, uma trajetória biográfica
de Maria de Araújo. Vemos aí a necessidade de separar uma primeira escrita que veio do que
foi falado por ela e pelas testemunhas, de uma segunda escrita: a dos sacerdotes que
transcreveram essas falas.
Vale lembrar que o Processo Episcopal seguiu uma linha condutora parecida com a de
um processo criminal. Produzido a partir de uma investigação, tanto os depoimentos dados
por livre e espontânea vontade como os interrogatórios feitos eram registrados pelo escrivão
que, pode-se presumir, invariavelmente modificava o que foi dito ainda que não existisse
intenção ilícita nesse ato. O escrivão detinha o poder de converter seu corpo em palavra do
outro, imitando e encarnando o texto em uma liturgia da reprodução (Cf. Certeau, 1982: 164).
O caminho inverso também é possível, isto é, que as perguntas tenham condicionado a
construção do discurso e, possivelmente, a intenção dos interrogados, como sugere García
(2006: 14). As fórmulas, a escolha das palavras e a ordem dos pontos nos depoimentos são
características de uma escrita formal, não totalmente erudita, mas muito mais elaborada em
relação ao conhecimento narrativo de Maria de Araújo e das outras beatas.
É muito provável que o depoimento dela tenha sido modificado consideravelmente,
tanto no que diz respeito ao estilo, como no uso da retórica e de termos ligados à doutrina e
que dificilmente Maria reproduziria tal qual está registrado. Dada a grande semelhança
existente entre o seu depoimento e o do padre Cícero que, aliás, foi realizado muito tempo
antes, é válido questionar também em que medida ela foi “instruída” pelo seu diretor
espiritual sobre o que dizer aos padres da Comissão. Cogitamos ainda que, possivelmente,
houve uma espécie de sedução e convencimento recíprocos entre Maria de Araújo e os

251
sacerdotes envolvidos no primeiro inquérito. Assim, esses padres poderiam ser considerados
como artífices da “santidade” da beata, não no sentido de construção, mas de legitimação de
um “culto” que já existia quando da chegada da primeira Comissão.
Maria de Araújo é uma personagem singular por ter sido vista como alguém tocada
pela graça divina. Calculamos que sua história foi contada a partir da combinação de traços e
elementos similares a outros episódios hagiográficos. Neste sentido, foi o que a história dela
teve em comum com outras vidas de santas que deu sentido à narrativa produzida mesmo
antes da chegada da Comissão ao Juazeiro. Esses códigos e esquemas tradicionais das
biografias espirituais pretenderam mostrar uma história de santidade e tinham como objetivo
construir um modelo de comportamento feminino baseado na virtude e no recebimento da
graça divina. Talvez seja uma resposta fácil dizer que Maria de Araújo e os outros depoentes
buscaram nas matrizes hagiográficas os elementos de suas declarações.589
O sangramento da hóstia assinalou, para ela, o auge de uma trajetória marcada pelo
desejo de uma vida dedicada a Deus. Neste sentido, nos seus depoimentos há a incorporação
de elementos que pretendem dar verossimilhança a sua “fala”. A questão que levantamos diz
respeito a essa atração que Maria provocou nos sacerdotes, mesmo aqueles tidos como
ilustrados e formados no espírito ultramontano, isto é, treinados para desconfiar daquelas
práticas e manifestações.
A partir dos conceitos utilizados por Michel de Certeau, aferimos que o relato do
milagre foi construído através da combinação de três elementos: com Maria de Araújo temos
a presença de uma consciência mística que acredita na possibilidade de eleição divina através
da devoção e da experiência do corpo sofredor que conduz à santidade; com os sacerdotes
envolvidos e os padres da primeira Comissão visualizamos a instrumentalização de uma
linguagem que não só acredita na possibilidade do milagre, como o ratifica; e, por fim, com os
peregrinos, temos a crença no sobrenatural, típica de uma religiosidade mais íntima
fortemente arraigada nas tradições daquela população.
Neste sentido, distinguimos três tipos de relações que podem ser estabelecidas a partir
dos fenômenos que ocorreram de 1889: a) mística e Igreja Católica, onde Maria de Araújo foi
qualificada a partir do trinômio santa/embusteira/possessa; b) mística e medicina, a partir do

589
Sabemos através dos jornais da época da circulação de obras como a Imitação de Cristo de Tomás de Kempis
(1441), a Missão Abreviada do padre Manuel Couto (1859) e os Exercícios Espirituais de Santo Ignácio de
Loyola (1548). Além disso, já circulava na região desde 1859 o jornal A voz da Religião no Cariri que tinha
uma sessão dedicada à vida virtuosa das beatas das Casas de Caridade do padre Ibiapina.
252
qual o debate girou em torno da possibilidade de ela ser histérica/enferma e, por fim, c)
mística e política, no qual a “trajetória de santidade” de Maria foi apagada e substituída pela
do padre Cícero. Lembrando que a disputa pela santidade dela levou quase a um cisma, com a
resistência de padres e populares à decisão do bispo e de Roma. Em todas as relações há um
“transbordamento” de sentidos, no qual um espaço invade o outro. Em outras palavras, se os
fenômenos ocorridos com Maria de Araújo não podem ser entendidos fora da religião, eles
tampouco podem ser separados da ordem médica e política do final do século XIX.
Essas relações indicam ainda uma vida de devoção marcada pelos códigos da tradição
mística representativos da permanência de uma espiritualidade contemplativa e de um
exercício de poder forjados em um processo de aniquilação.590 Nossa hipótese é que o
percurso de Maria de Araújo (traçado também no inquérito) é fundamentado em uma
aniquilação de si: dos desejos, pois eles se conformam aos desejos do Senhor; do próprio
corpo, que vai aos poucos se deteriorando pelas doenças e enfermidades que aparecem,
interpretadas, por sua vez, como um sinal de eleição e, finalmente de sua memória. O que
temos aqui é um projeto de santidade pessoal que se apoia nas representações coletivas sobre
o valor da santidade.
Voltando ao ponto de partida, é importante que percebamos a atuação de Maria de
Araújo fora da condição maniqueísta de vítima ou vilã. Como lembra Mircea Eliade, “é
sempre numa situação histórica que o sagrado se manifesta. Até as experiências místicas mais
pessoais e mais transcendentes sofrem a influência do momento histórico (2002: 09).” É fato
que ela nunca se retratou do que disse em seus depoimentos, nem jamais negou a veracidade
do milagre, para o qual dizia ser o instrumento utilizado por Deus. Como tantas místicas,
Maria de Araújo permanece naquela tênue fronteira entre a emancipação espiritual e a
subserviência à ortodoxia.
Como lembra Virgínia Buarque, “segundo o ideal contemplativo, era justamente ao
perceber-se como um ser carente, que o ser humano se disporia a um incessante processo de
busca (relação) com o outro, sobretudo da alteridade divina” (2005:26). Esse processo tem

590
A ideia do “aniquilamento” na literatura mística presume uma espécie de conformação com o destino.
Aniquilamento, do grego, kénos, com o verbo kenóo destaca a privação de um conteúdo, de uma posse:
“Cristo se privou voluntariamente do seu modo de ser divino e preexistente, assumiu o modo de ser divino e
preexistente, assumiu o modo de ser humano e terreno e tornou-se humilde e obediente até a morte na cruz.
[...] Em Cristo, o aniquilamento conduz à cruz, para aquele que crê nele, não há itinerário diferente. [...]
Trata-se de esforço, isto é, de aniquilamento ativo, constituído principalmente por humildade autêntica e pela
abnegação de si, que é renúncia perfeita à vontade própria, seja como criatura, seja como criador”. Morandin,
C. Verbete “Aniquilamento” in Borrielo, Op. Cit., 60.
253
como resultado final uma completa aniquilação de si, o reconhecimento da própria fraqueza e
incompletude, uma percepção negativa da humanidade, conforme o pensamento agostiniano.
O mais surpreendente é que estes fenômenos e a própria atuação de Maria de Araújo foram
ignorados pela historiografia sobre o Juazeiro, a qual, afirmo no início deste trabalho, constrói
uma “história oficial” centrada no padre Cícero.
Além disso, não podemos esquecer-nos do grupo de beatas. É importante enfatizar que
relatos destas últimas, pouco falam sobre a vida de Maria de Araújo. Ao contrário, exaltam
suas próprias experiências e incluem em suas narrativas elementos por vezes, até mais
elaborados do que aqueles presentes no relato de Maria. Essas mulheres, no entanto,
desaparecem imediatamente após suas retratações. Ficamos sabendo através do padre
Alexandrino sobre o destino de uma ou outra, mas é como se suas vidas fossem apenas
rabiscos na areia da praia cujo mar com sua violência apagou sem hesitar. A especificidade
aqui é dada pelo contexto, pelo momento político da Igreja que não acolhia mais aquele tipo
de experiência e, claro, pela ação de Cícero, que ganha muito destaque e poder na região.
Acompanhamos como, paulatinamente, Maria vai sumindo da própria documentação
até o momento em que o próprio José Marrocos, que tanto lutou por ela ao recontar sua
história em 1909 nas páginas do jornal O Rebate, sequer a nomeia, referindo-se apenas como
“uma virgem”:

Sabe o público que o venerando sacerdote Padre Cícero ministrando a um


virgem na Capela deste povoado, o sacramento da Eucaristia observou,
visivelmente, que a hóstia consagrada se transformava em sangue; que
repetindo-se por vezes esse misterioso fato, fora examinado por profissionais
das ciências médicas, e por estes considerado sobrenatural e misterioso; e
que levado o sobredito fato ao conhecimento do prelado diocesano, o Senhor
Bispo D. Joaquim oficialmente pelo referido - Pe. Cícero, S. Ex. embora
incrédulo mandou proceder a um inquérito, que tendo sido nulamente
processado, fora julgado improcedente e nulo, por infrações do Direito
canônico, e sem mais sindicância alguma deu-se por terminada essa magna
questão, que chamou a atenção do público neste e n’outros Estados da
República.591

Neste artigo, publicado vinte anos após o sangramento da hóstia, é possível ver
claramente a inversão do sujeito principal da frase, agora o padre Cícero. Muda a ordem do
discurso e esse reordenamento da crença compõe uma operação de sentidos totalmente

591
Jornal O Rebate de 21.11.1909. Ano I, n°19, p.01. Arquivo do Memorial Padre Cícero. Grifo no original.
254
vinculada à ideia inicial do “aniquilamento de si” como sacrifício assumido por Maria de
Araújo.
Maria morreu em 27 de janeiro de 1914, foi enterrada com o hábito da Ordem Terceira
de São Francisco e sepultada dentro de uma Igreja, mesmo quando tal prática não era mais
permitida pela legislação, atribuindo um sentido muito importante à sua morte. Uma
contemporânea sua, Amália Xavier de Oliveira, narrou em seu livro de memórias detalhes do
sepultamento, enfatizando que ela foi acompanhada pelo seu diretor espiritual até o último
momento. É óbvio que o padre Cícero, mesmo proibido pela Igreja jamais deixaria sua
dirigida:

Logo que a beata acabou de morrer, o padre procurou meu pai e mandou que
ele encomendasse o caixão mortuário que deveria ser todo de cedro, com boa
fechadura e envernizado por dentro e por fora. Mandou ainda que, quanto
antes providenciasse a sepultura mandando cavar dentro da Capela do
Perpetuo Socorro, na parede ao lado direito de quem entra, perto da porta,
recomendando que fizesse sobre a escavação o travejamento no nível do piso
para receber o caixão, subindo depois um retângulo com paredes de dois
tijolos, um metro acima do piso, em forma de urna, semelhante a um altar,
deixando o caixão dentro (2001 [1963]: 34).

O ponto alto da aniquilação de Maria não é, no entanto, sua reclusão ou sua morte
praticamente anônima, mas o desfecho dramático: a violação do seu túmulo e a destruição dos
seus restos mortais dezesseis anos após sua morte. Em 22 de outubro de 1930, o monsenhor
José Alves de Lima, vigário da cidade, teria ordenado a destruição do túmulo sem autorização
legal e desapareceu com o corpo, sobrando no local apenas um pedaço de crânio com cabelos,
um pedaço do cordão de São Francisco e um escapulário, guardados pelo padre Cícero dentro
de um vidro cujo destino é ignorado até hoje.592 A destruição do túmulo consolidou o
esquecimento sobre ela.

592
A violação foi registrada em Cartório pelo padre Cícero: “Neste vidro devidamente lacrado se acha tudo que
encontrou-se nos despojos mortais da beata Maria de Araújo, quando em 22.10.1930 foi o seu túmulo aberto
clandestinamente por ordem do Revmo. Vigário desta cidade Monsenhor José Alves de Lima”. Arquivo do
Cartório Machado citado por Walker, Daniel. Quem autorizou a destruição do túmulo da beata Maria de
Araújo? in http://historiadejuazeiro.blogspot.com.br/ [acessado em 23.02.2014]. Apesar disso, não se pode
afirmar que o mesmo vigário tenha agido por iniciativa própria ou se estava seguindo ordens. Algumas
histórias que circulam é que foi o bispo do Crato, na época, D. Quintino, o mesmo que depôs no primeiro
inquérito quando ainda era padre que ordenou a destruição, pois o túmulo ainda era visitado por romeiros.
255
A memória de uma paixão

Mas a obra é, ao mesmo tempo, discurso: existe um narrador que relata a


história; há diante dele um leitor que a percebe. Neste nível, não são os
acontecimentos relatados que contam, mas a maneira pelo qual o narrador nos
fez conhecê-los. (Todorov in Barthes, 2008: 221)

Na introdução da Fábula mística, Michel de Certeau compara as diferenças e


semelhanças entre místicos e historiadores, visto que tanto a mística como a história se
ocupam das relações que a sociedade mantém com seus mortos, ou seja, com seu passado,
com as reparações, e com a busca constante de sentido para os acontecimentos. O historiador
“acalma os mortos” ao produzir uma razão, uma “explicação” para as coisas, seu tempo é
cronológico; ele se atém ao sujeito do saber e ao lugar de produção do texto. O místico, por
sua vez, aceita a incompreensão e o corte que estabelece a questão do sujeito, o tempo é para
ele algo que emerge e se transforma continuamente (Idem, 21-22).
Para mim a história é uma arte que se constrói a partir desses pequenos vestígios e
reminiscências e experiências e “não tem nenhuma pretensão à verdade, no sentido de
corresponder a uma realidade ontológica”, como diz Albuquerque Junior (2007:60). Eu como
aprendiz dessa arte, dedico-me já há dez anos (contando toda minha formação até hoje, isto é,
graduação, mestrado e doutorado) a estudar a tessitura dos eventos de Juazeiro. Os meus
mortos são os personagens imbricados nas teias da espiritualidade católica. Concordo com
Michel de Certeau quando ele diz que a própria historiografia “é uma maneira contemporânea
de praticar o luto. Se escreve partindo de uma ausência e não produz senão simulacros, por
muito científicos que se sejam. Ela coloca uma representação no lugar de uma separação”.593
Adentrar essa história foi descobrir um mundo novo, forjado com muitas dificuldades
ao longo do caminho, mas que me trouxe também muitas recompensas. Muitas questões que
abordo aqui foram pensadas ainda no mestrado e surgiram durante a escrita da dissertação. O
que mais me intrigava era o fato de existir toda uma historiografia (embasada sobre os
mesmos documentos que eu consultei à exceção do material dos Arquivos Vaticanos) sobre o
padre Cícero e o Juazeiro e pouco ter sido dito sobre Maria de Araújo, que aparecia como uma
personagem menor, coadjuvante.

593
Tradução minha: “L’historiographie est une manière contemporaine de pratiquer le deuil. Élle s’écrit à partir
d’une absence et elle ne produit que dese simulacres, si scientifiques soient-ils. Élle met une représentation à
la place d’une séparation” (Certeau, 1982 : 21).
256
Obviamente a pergunta ainda não tinha sido feita: quem era Maria de Araújo? Se na
década de 1970, quando os historiadores começavam a investigar a história deste grande
milagre – demográfico, econômico e político –, que é o Juazeiro, não havia lugar para
perguntar sobre Maria de Araújo. Na primeira década do século XXI a pergunta foi posta e
esta tese, por um feliz acaso, concluída justamente no ano do centenário de morte da beata, foi
uma tentativa de respondê-la. Estou certa de que, com o tempo, outras perguntas e respostas
virão e outras histórias serão contadas. Conseguiremos então devolver Maria ao seu lugar na
História?

257
REFERÊNCIAS

Fontes

1 – Fontes Manuscritas

a) Arquivo do Departamento Histórico Diocesano Padre Antônio Gomes de Araújo -


DHDPG. Crato, Ceará.

− Cópia autêntica do Processo Instruído sobre os fatos do Juazeiro (1891-1893).


− Caderno de José Joaquim Teles Marrocos (Cortes de Jornais, Cartas e Petições sobre
a questão do Juazeiro entre 1891 e 1896).
− Documentação epistolar dos Salesianos (1891-1892/1898).
− Documentação epistolar do Arquivo pessoal de Renato Casimiro (1870-1894):
CASIMIRO, Renato. Documentário do Joaseiro. Fortaleza, 1976.
− Regulamento Interno para as Casas de Caridade do padre José Antônio de Maria
Ibiapina.
− Processo de Habilitação Canônica de José Joaquim Teles Marrocos em 14.03.1866.

b) Centro de Psicologia da Religião. Fundo de Pesquisa CRATO. Juazeiro do Norte -


Ceará.

− Documentação epistolar de monsenhor Francisco Rodrigues Monteiro (1890);


− Documentação epistolar de José Joaquim Teles Marrocos (1891);
− Documentação epistolar de Dom Joaquim Arcoverde (1891);
− Documentação epistolar do padre Antonio Alexandrino de Alencar (1892);

c) Arquivo Público do Estado do Ceará – APEC. Fortaleza, Ceará - Ofícios expedidos


pelas diversas Freguesias Cearenses (1870-1916). Ala 19, Estante 411, Caixa 02. Fundo
Palácio Episcopal do Ceará – Bispado Cearense.

− Documentação epistolar dos bispos cearenses aos Presidentes de Província (1870-


1916);

d) Archivio della Congregazione per la Dottrina della Fede (ACDF/Sant’Uffizio), Città


del Vaticano, Italia.

− Rerum Variarum 1898/128. Vol. II


− Feria IV, Die 4 Aprilis 1894, Decreta Universa.

258
e) Archivio Segreto Vaticano, Città del Vaticano, Italia.

− Quaderno La Civiltà católica , Roma, 1896. Ano 47, Série XVI, Volume VI, Quaderno
1099.
− Processo canônico do padre Joaquim José Vieira no Arquivo Secreto Vaticano
(Archivo dei Vescovi Regolari), B. 55, Fasc. 262, Doc. 10-27.
− Abaixo assinado do Paço da Câmara do Limoeiro de 14.09.1873. ASV, B. 48, Fasc.
226, Doc. 14.
− Abaixo-assinado solicitando a celebração da Semana Santa na Capela do Juazeiro de
17.06.1893, assinado pelo Pe. Clicério. B. 76, F. 369, Doc. 56.
− Circular Reservada enviada pelo Internúncio Apostólico em 13.01.1890 aos Bispos do
Brasil. Nunciatura Apostólica, ASV, B. 68, Fasc. 330, Doc. 17, p. 43.
− Carta de D. Luís Antônio ao Internúncio Apostólico em 28.02.1862. ASV, B. 32, Fasc.
142, Doc. 3.
− Carta de D. Luís Antônio ao Internúncio Apostólico em ?.07.1862. ASV, B. 32, Fasc.
142, Doc. 5.
− Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo Maria Gotti em 03.08.1894. B. 76, Fasc.
369, Doc. s/n. ASV.
− Carta do Cônego Duarte e Silva para o Internúncio Apostólico Monsenhor Spolverini
em 09.01.1890. ASV, B. 68, Fasc. 329, Doc. 5, p. 08.
− Carta de D. Joaquim Vieira para D. Girolamo M. Gotti em 17.02.1894. ASV. . B. 76,
Fasc. 369, Doc. 13, ASV
− Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo Maria Gotti em 04.07.1894. B. 76, Fasc.
369, Doc. 19. ASV
− Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo Maria Gotti em 30.09.1894. B. 76, Fasc.
369, Doc. 23, ASV.
− Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo Maria Gotti em 13.09.1894. B. 76, Fasc.
369, Doc. 24, ASV
− Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo M. Gotti em 04.05.1895. Busta 76, Fasc.
369, Doc. 32, Nunziatura Apostólica, ASV.
− Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo Maria Gotti, s/data, provavelmente 1897.
B. 76, Fasc. 369, Doc. 68, ASV.
− Carta de D. Joaquim Vieira a D. Girolamo Maria Gotti em 24.10.1897. B. 79, Fasc.
384, Doc. 73, ASV.

2 – Fontes Impressas

a) Biblioteca do Arquivo do Departamento Histórico Diocesano Padre Antônio Gomes


de Araújo. Crato, CE.

− Anais do III Simpósio Internacional sobre o Padre Cícero. DUMOULIN, A;


GUIMARÃES, A. T.; FORTI, M.C.P. (Editoras), Juazeiro do Norte - CE: 2004.
− Constituições Sinodais da Diocese do Ceará (1888).
− Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia

259
− COUTO, padre Manuel Gonçalves. Missão Abreviada: para despertar os
descuidados, converter os pecadores e sustentar os frutos das Missões. 12ª edição.
Porto: Sebastião José Pereira Editor. 1868.
− GRANADA, frei Luís de. Guia de pecadores e exhortações à virtude. Rio de Janeiro:
Garnier, 1873.
− MARIA, Joseph de Jesus. Espelho de perfeitas religiosas, Porto: Officina de Manoel
Pedroso Coimbra, 1773.
− SILVA, Antenor de Andrade. Cartas do Padre Cícero. Salvador: Edições Salesianas,
1982.
− STUDART, Dr. Barão de. Climatologia, epidemias e endemias do Ceará. Ed. fac-
similar (1909). Fortaleza: Fundação Waldemar de Alcântara, 1997.

b) Setor Hemerográfico da Biblioteca Pública Governador Meneses Pimentel. Fortaleza,


CE.

− Jornal “A Verdade” (Ceará, 1891-1893)


− Jornal “Cearense” (Ceará, 1890-1891).

c) Setor Hemerográfico do Instituto de Pesquisa Sócio-culturais José Marrocos –


IPESC/URCA. Juazeiro do Norte, CE.

Jornal “A República” (Ceará, 1898).

d) Setor Hemerográfico do Memorial Padre Cícero. Juazeiro do Norte, CE.

Jornal “O Rebate” (Ceará, 1909-1910)

e) Setor Hemerográfico da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ.

− Jornal “A Voz da Religião no Cariri” (Ceará, 1868-1870).


− Jornal “O Araripe” (Ceará, 1855-1864)
− Jornal “Gazeta Official” (Ceará, 1862-1864)
− Jornal “A Constituição” (Ceará, 1863-1889;
− Jornal “O Libertador” (Ceará, 1893;
− Jornal “O Paiz” (Rio de Janeiro, 1893;

f) ACDF/Sant’Uffizio, Città del Vaticano, Italia;

− Jornal “Rio Grande do Norte” (Natal, 1893);


− Jornal “Mogy-Mirim” (São Paulo, 1893);
− Jornal Estrella d’Aparecida, (1891)

3 – Outras fontes

− Relatório do Presidente de Província José Joaquim Coelho de 10.09.1841


− Relatório do Presidente de Província Vicente Pires da Mota de 01.07.1855

260
4 – Obras de Referência
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

CHERNOVIZ, Pedro Luiz Napoleão. Diccionario de Medicina Popular. Rio de Janeiro:


Editores Eduardo & Henrique Laemmert, 1851.

Documentos do Concílio de Trento, Sessão XII, Cap. II “Del modo con que se instituyó este
Santísimo Sacramento”. Ver também: Sessão XIII, Cap. III “De la excelencia del santísimo
sacramento de la Eucaristía, respecto de los demás Sacramentos”. Disponível em Biblioteca
Electrónica Cristiana - http://multimedios.org/docs/d000436/.

Borrielo, L. Dicionário de Mística. São Paulos: Paulus, 2003.

KEMPIS, Thomas. A imitação de Cristo. 24ª edição. São Paulo: Ed. Ave-Maria. S/d.

PROSPERI, Adriano (org.). Dizionario storico dell’Inquisizione, Pisa: Edizioni della


Normale, 2010.

VARAZZE, Jacopo de. Legenda Aurea: vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras,
2003.

VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo:


Edusp, 2010.

STUDART, Guilherme. Diccionario Bio-bibliographico Cearense.Fortaleza,Impresso pela


Typo-lithographia A Vapor, 1910.

5 – Sites

− Arquidiocese de Fortaleza: http://www.arquidiocesedefortaleza.org.br/


− Araldica Vaticana: http://www.araldicavaticana.com
− Biblioteca Electrónica Cristiana - http://multimedios.org/docs/d000436/.
− Vaticano: http://www.vatican.va

261
Bibliografia

1. Artigos e Livros

ABREU, Laurinda. A difícil gestão do Purgatório: os Breves da Redução das missas


pérpetuas do Arquivo da Nunciatura de Lisboa (séculos XVIII e XIX). Penélope, nº 30/31,
2004, pp. 51-74. Disponível em http://www.penelope.ics.ul.pt/indices/penelope_30_31/30-
31_08_LAbreu.pdf. Acessado em 24.02.2009.

ABREU, Júlio. “Em torno da nomeação de um bispo coadjutor” In Revista do Instituto do


Ceará. Fortaleza, s.n., 1943.

ALBERT, Jean-Pierre, «Hagio-graphiques», Terrain, numero-24 - La fabrication des saints


(mars 1995), [En ligne], mis en ligne le 07 juin 2007. URL :
http://terrain.revues.org/index3115.html. Consulté le 26 juin 2009.

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. História: a arte de inventar o passado. São


Paulo: EDUSC, 2007

ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia. Rio de Janeiro: José
Olympio; Brasília: EdUnb, 1993.

ALENCAR, Generosa; MENESES, Fátima. Beata mocinha: governanta e tesoureira do


Padre Cícero. Juazeiro do Norte: HB Editora, s/d.

ANSELMO, Otacílio. Padre Cícero: mito e realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1968.

ARAÚJO, Antônio Gomes. “O Apostolado do Embuste”, Revista Itaytera, Ano II, n° 02.
Crato: Tipografia Imperial, 1956, pp. 03-62.

__________. “Padre Pedro Ribeiro da Silva: o fundador e primeiro capelão de Juazeiro do


Norte”. Revista Itaytera. Ano IV, n. 04, 1958 - Tipografia Imperial, Crato-Ce.

ARROYO, María Jordán Arroyo. Sonhar a história: risco, criatividade e religião nas
profecias de Lucrecia de León. Bauru: Edusc, 2011.

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de


François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília, EdUnb, 1999.

BARBOSA, Francisco Salatiel de Alencar. O Joaseiro Celeste: tempo e paisagem na devoção


ao Padre Cícero. São Paulo: Attar, 2007.

BARROS, Luitgarde. A terra da Mãe de Deus. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.

262
BELLINI L., SOUZA, Evergton Sales e SAMPAIO Gabriela dos Reis (orgs.). Formas de
crer: Ensaios de história religiosa do mundo luso-afro-brasileiro, séculos XIX-XXI. Salvador,
EdUfba, 2006.

BEOZZO, José Oscar. [et al.] História da Igreja no Brasil: Ensaio de interpretação a partir
do povo. Segunda Época – Século XIX. 4ª. Edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos curandeiros em


Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001.

BORGES, Célia Maia. Santa Teresa e a espiritualidade mística: a circulação de um ideário


religioso no Mundo Atlântico. Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico do Antigo
Regime: poderes e sociedade. Lisboa: Instituto Camões, 2005. Disponível em
http://cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/celia_maia_borges.pdf . Acessado
em 20.03.2009.

________. “Las hijas de Santa teresa de Ávila: espiritualidad mística entre mujeres de la
península ibérica y del Brasil colonial” in LOPEZ, R. L.; MARINAS, M.I.V. (orgs.).
Historias compartidas: religiosidad y reclusión femenina en España, Portugal y America.
Siglos XV-XIX. México: Universidad de León, 2007.

_______. “A conquista do Espaço público: o protagonismo feminino nos séculos XVII e


XVIII na esfera religiosa” in SARMENTO, Clara (org.). Condição feminina no Império
colonial português. Porto: FCT, 2008, pp. 265-273.

BRAGA, Antônio Mendes da Costa. Padre Cícero: sociologia de um padre, antropologia de


um santo. Bauru-SP: EDUSC, 2008.

BIZZICARI, Alvaro. Stile e personalità di S. Caterina di Siena. in Italica, Vol. 43, n° 1 (mar.
1996). pp. 43-56. Disponível em: http://jstor.org/stable/477020. Acessado em: 06/12/2011.

BOUQUET, Damien. Incorporation mystique et subjectivitè féminine d’après le livre


d’Angele de Foligno (+1309). Clio. Histoire, femmes et sociètès. [Em ligne], 26/2007, mis em
ligne le 01. pp.01-13. Janvier.2010. Disponível em: http://clio.revues.org/index6553.html.
Acessado em: 02/03/2013.

CAMPOS, Adalgisa Arantes. São Miguel, as Almas do Purgatório e as balanças: iconografia


e veneração na época moderna. Memorandum, 7, 2004. pp. 102-127. Disponível em
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/campos01.htm. Acessado em
20.02.2009.

CAMURÇA, Marcelo. Marretas, Molambudos e Rabelistas: a revolta de 14 no Juazeiro. São


Paulo: Maltese, 1994.

263
CARNEIRO, Henrique. A Igreja, a medicina e o amor - práticas moralistas da época
moderna em Portugal e no Brasil. São Paulo: Xamã, 2000.

CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi.
3ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

CARVALHO, Ernando L. T. A missão Ibiapina. Passo Fundo: Berthier, 2008.

CARVALHO, G. V. “O padre Ibiapina, um homem que viveu e morreu pelo seu povo”.
Revista Eclesiástica Brasileira, vol.43, fasc. 169, março de 1983.

CASIMIRO, Renato. Padre Cícero Romão Baptista e os fatos do Joaseiro: a questão


religiosa. Fortaleza: SENAC, 2012.

CÁTEDRA, Maria. L’invention d’un saint. Terrain, numero-24 – La fabrication des saints
(mars 1995), [En ligne], mis en ligne le 07 juin 2007. Disponível em:
http://terrain.revues.org/index3112.html. Acessado em 29.09.2008.

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano, Petrópolis: Vozes, 1994.

________. A escrita da História. 2° Ed.. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

__________. La fable mystique. Paris: Gallimard, 1982.

__________. La debilidad de creer. Buenos Aires, Katz, 2006.

CESAREO, Mario. Cruzados, mártires y beatos. Publicado por Purdue University Press,
1995. E-book. Disponível em http://books.google.com/books?id=eBNd0ohoYkIC&pg.
Acessado em 20.12.2008.

__________. “Menú y emplaziamentos de la corporalidad barroca”. In MORAÑA, M.


Relecturas del barroco de Indias. Hanover: Ediciones del Norte, 1994.

_________. Jerónimo Mendieta: Razón Barroca, delirio institucional. Revista


Iberoamericana, 1999. 172-3.

CHAON, Sérgio. Os convidados para a ceia do Senhor. São Paulo: EDUSP, 2000.

CORTEZ, Otonite. A contrução da “cidade da cultura”: Crato (1889-1960). (Dissertação de


mestrado) Rio de Janeiro, RJ: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000.

COUTO, Edilece Souza. “Devoções, festas e rito: algumas considerações”. Revista Brasileira
de História das Religiões. 2008, Ano I, n°1.

D’ÁVILA, Santa Teresa. Obras completas. 1970.

D’ÁVILA, Santa Teresa. Castelo interior ou moradas. Cotia: Editora Paulus, 1981.

264
DAVIS, Natalie Z. Histórias de Perdão e seus narradores na França do século XVI. São
Paulo: Cia. das Letras, 2001.

DE LA FLOR, Fernando R. La península metafísica: arte, literatura y pensamiento en la


España de la Contrarreforma. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1999.

DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Joaseiro. São Paulo: Paz e Terra, 1976.

_________. “Antigas controvérsias, novos paradigmas: lembranças de um pesquisador na


véspera do III Simpósio Internacional sobre o Padre Cícero” In Anais do III Simpósio
Internacional sobre o Padre Cícero. Juazeiro - CE, 2004, pp. 124-126.

DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade. Uma história do paraíso. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997.

________. Jean. O que sobrou do Paraíso? São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

________. O Pecado e o medo: a culpabilização no Ocidente (século 13-18). Vol. I. Bauru-


SP: EDUSC, 2003b.

________. História do medo no Ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Cia. das
Letras, 2009.

DIAS, Geraldo J.A. Coelho. A devoção do povo português a Nossa Senhora nos tempos
modernos. Revista da faculdade de Letras. Portugal: Universidade do Porto. Disponível em:
http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2061.pdf. Acesso em 12.10.2010.

DINIS, Manoel Pereira. Mistérios de Joaseiro. Joaseiro: Tipografia do Joaseiro, 1935.

ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

________. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FARIAS, Alberto. Pe. Cícero e a Invenção do Juazeiro. Brasília: edição do autor, 1994.

FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. São


Paulo: Cia. das Letras, 2009.

FEITOSA, Antonio. Falta um defensor para o Padre Cícero. São Paulo: Loyola, 1983.

FERNANDÉZ, Angela Munoz. Mujer y experiencia Religiosa en el Marco de la Santidad


Medieval. Madrid: Asociación Cultural Al-Mudayna, 1988.

FIGUEIREDO FILHO, José de. A História do Cariri. Vol.4. Crato: Faculdade de Filosofia,
1964.

FLECK, Eliane C.D. “Corpos piedosos em barrocas igrejas: um estudo das representações do
espaço reducional do Paraguai do século XVII”. Actas del Congreso Internacional del
265
Barroco iberoamericano. Sevilla, Espanha: Universidad Pablo de Olavide, 2002, pp. 996-
1011. Disponível em
http://www.upo.es/dopa/webdhuma/areas/letras/actas/3cibi/documentos/079.pdf. Acessado
em 23.03.2009.

FORTI, Maria do Carmo Pagan. Maria do Juazeiro: A Beata do Milagre. São Paulo:
Annablume, 1999.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,


1988.

________. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987.

FRANCO, Jean. Las Conspiradoras: La Representación de la mujer en México. México:


Terra Firme/Fondo de Cultura Econômica, 1993.

FULGÊNCIO, Leopoldo. A compreensão freudiana da histeria como uma reformulação


especulativa das psicopatologias Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., V, 4, 2002.

GAETA, Maria Aparecida Junqueira. “A cultura clerical e a folia popular: estudo sobre o
catolicismo brasileiro nos finais do século XIX e inicio do século XX”. Revista Brasileira de
História, 1997, vol. 17, n° 34. p. 183-202.

GAJANO, Sofia Boesch. Miracles et miracles. Terrain, numero-24 – La fabrication des saints
(mars 1995), [En ligne], mis en ligne le 08 juin 2007. Disponóvel em:
http://terrain.revues.org/index3119.html. Acessado em 29.09.2008.

GANDRA, Manoel J. “Em torno do anjo Custódio de Portugal e outras epifanias da


hierarquia celeste no monumento de Mafra”. Boletim Cultural, 2004. Disponível em
http://www.cesdies.net/arvore/ico_sim/anjocustodio.pdf . Acessado em 20.02.2009.

GARCÍA, Antonio Rubíal. Profetisas y solitarios. Espacios y mensajes de una religión


dirigida por ermitaños y beatas laicos en las ciudades de Nueva España. México:
Universidad Autónoma de México y Fondo de Cultura Económica, 2006.

GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil. São Paulo: EDUSP/Ed. Itatiaia, 1975.

GÉLIS, Jacques. “O Corpo, a Igreja e o Sagrado” In CORBIN, A.;COURTINE, JJ.;


VIGARELLO, G. História do Corpo. Petropólis, RJ: Vozes, 2008. pp. 19-130.

GIMENEZ, José Carlos. “Santificação: o religioso e o político no processo de canonização da


Rainha Santa Isabel de Portugal”. Revista Brasileira de História das Religiões. Ano I, n°1,
2008.

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido


pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras. 2006.

266
________. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e História. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.

________. História Noturna: decifrando o Sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

________. Nenhuma Ilha é uma Ilha, São Paulo, Companhia das Letras, 2004.

GOMES, Francisco José. “A igreja e o poder: representações e discursos” in RIBEIRO, Maria


Eurydice de Barros (org.) A vida na Idade Média. Brasília: Ed. UnB, 1997. pp. 33-60.

GONÇALVES, Margareth de Almeida. Império da Fé: andarilhas da alma na era barroca.


Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

GONÇALVES, Ana Lucia Mac Dowell. “Quem é o meu Senhor?” In Anais do III Simpósio
Internacional sobre o padre Cícero. DUMOULIN, A; et al, Juazeiro do Norte - CE: 2004, pp.
56-59.

GREENBLATT, Stephen. Possessões Maravilhosas. São Paulo: EDUSP, 1996.

GUIMARÃES, Maria Regina Cotrim. Chernoviz e os manuais de medicina popular no


Império. História, Ciências, Saúde-Manguinhos. V. 12, n. 2, p. 501-14, mai-ago, 2005.

HARTOG, François. “Fronteira e Alteridade”, “Generalizar” e “As histórias como


representação”. In ________. O Espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do
outro. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. pp. 111-141; 227-271; 313-367.

HERMANN, Jacqueline. “Religião e política no alvorecer da República: os movimentos de


Juazeiro, Canudos e Contestado” In FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de Almeida
Neves. O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo excludente – da Proclamação da
república à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

HOLANDA, Sérgio Buarque. Caminhos e Fronteiras. 3ª edição. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.

HOORNAERT, Eduardo. Os anjos de Canudos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

________. O mundo sombrio do padre Cícero in Anais do III Simpósio Internacional sobre o
padre Cícero. DUMOULIN, A; et al, Juazeiro do Norte - CE: 2004, pp. 32-45.

________. (org.) Crônicas das Casas de Caridade fundadas pelo Padre Ibiapina. Fortaleza-
Ce: Museu do Ceará/Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 2006.

KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. Malleus Maleficarum: O Martelo das Feiticeiras.


18ª. Ed. Rio de Janeiro: Record/ Rosa dos Tempos, 2005.

LEBRUN, François. “As reformas: devoções comunitárias e piedade pessoal” In ÁRIES,


Philippe; CHARTIER, Roger. (orgs.). História da vida privada: da renascença ao século das
Luzes. Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
267
LE GOFF, Jacques. La naissaince du Purgatoire. Paris: Gallimard, 1981.

LIMA, Luís Filipe Silvério. O império dos sonhos. São Paulo: Alameda, 2010.

LOPEZ, Rosalva Loreto. “La Didáctica de la salvación femenina. La dirección de espíritus y


la cultura de lo escrito” In Historias compartidas. Religiosidad y reclusión feminina en
España, Portugal y America. Siglos XV-XIX. Espanha: Universidad de Leon, 2007.

LOURENÇO FILHO, Manoel Bergstrom. Juazeiro do Padre Cícero. 4ª edição aumentada.


Brasília-DF: Inep/MEC, 2002.

MACEDO, Nertan. O Padre e a Beata: vida do Padre Cícero. Rio de Janeiro: O Cruzeiro,
1969.

MARTINS, Sílvia Helena Zanirato. “A representação da pobreza nos registro de repressão:


metodologia do trabalho com fontes criminais”. Revista de História Regional. 3(1): 87-116.
Verão 1998.

MARTINS, William de Souza. “Modelos e práticas de santidade feminina no Novo Orbe


Seráfico brasílico, do frade Antonio de Santa Maria Jaboatão”. Topoi. Rio de Janeiro, Revista
do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ. n° 22, vol. 12. Jan-jun. 2011.

MARQUES, Antônio Soares. A mulher nos sermões do padre Antônio Vieira. Mathésis, vol.
2, 1993, pp. 121-144. Disponível em: http://hdl.handle.net/10316.2/24026. Acessado em
13.08.2013.

MENESES, Fátima. Padre Cícero: do milagre à farsa do julgamento. Recife- PE: Bagaço,
1998.

MENEZES, Paulo Elpídio. O Crato do meu tempo. Fortaleza, Edições UFC, 1985

MICHELET, Jules. A feiticeira. São Paulo: Aquariana, 2003.

MONTEIRO, Douglas Teixeira. “Um confronto entre Juazeiro, Canudos e Contestado” In


FAUSTO, Boris (dir.). O Brasil Republicano. Sociedade e instituições (1889-1930). São
Paulo: Difel, (Coleção História Geral da Civilização Brasileira, tomo III).

MOTT, Luís. Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1993.

MUÑOZ, Ángela, Religiosidad femenina: expectativas y realidades (ss.VIII-XVIII). Madrid,


1991

NOBRE, Edianne. O Teatro de Deus: as beatas do Padre Cícero e o espaço sagrado de


Juazeiro. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011. Coleção do Centenário.

268
________. “Padre Ibiapina: itinerâncias missionárias no Cariri cearense (século XIX)”. In:
Anais do V Simpósio Internacional de História, culturas e identidades, 2011, Goiânia, Goiás:
Universidade Federal de Goiás, 2011. v. 01. p. 01-16.

________. “Sangue e pecado na terra santa: as beatas do Juazeiro sob uma perspectiva de
gênero (1880-1895)”. In MARQUES, Roberto. (org.). Os limites do gênero: estudos
transdisciplinares. Fortaleza: Expressão Gráfica/Ceres Editora, 2006. pp. 115-128.

NÓBREGA, Apolônio. “Dioceses e Bispos do Brasil”. Revista do Instituto Histórico e


Geográfico do Brasil, vol. 222, jan/mar, 1954. Rio de Janeiro.

NOGUEIRA, Carlos Roberto F.. Bruxaria e História: práticas mágicas no Ocidente cristão.
Bauru-SP: EDUSC, 2004.

NOGUEIRA, Octaviano. Constituições Brasileiras: 1824 – vol. 1. Brasília: Senado Federal/


Ministério da Ciência e Tecnologia/ Centro de Estudos Estratégicos, 2001.

NUNES, Sílvia Alexim. “Histeria e psiquiatria no Brasil da Primeira República” in História,


Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 17, supl. 2, dez. 2010, pp. 373-389.

ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero – 1935. Ed. fac-
similar. Fortaleza: Museu do Ceará, 2006.

OLIVEIRA, Amália Xavier. O Padre Cícero que eu conheci. Fortaleza: Premius, 2001.

PAIVA, José Pedro de Matos. Inquisição e Visitas Pastorais: dois mecanismos


complementares de controle social? In Revista História das Ideias, vol. 11, Coimbra,
Faculdade de Letras, 1989.

PAZ, Renata Marinho. As Beatas do Padre Cícero: Participação feminina leiga no


movimento sócio-religioso de Juazeiro do Norte. Juazeiro do Norte, Ed. IPESC/URCA, 1998.

________. Para onde sopra o vento: a Igreja Católica e as romarias de Juazeiro do Norte.
Fortaleza: Editora IMEPH, 2011. Coleção do Centenário.

________. “As Cartas Pastorais de Dom Joaquim José Vieira, bispo do Ceará, e a tessitura do
movimento sócio religioso de Juazeiro do Norte (1893 a 1898)”. Anais do Simpósio da ABHR,
Vol. 12 (2011).

PEREIRA, Ana Paula L. “O relato hagiográfico como fonte histórica”. Revista do Mestrado.
USS, 2007, vol.9, n.10, pp. 161-170.

________. “O método hagiográfico de Jacque de Vitry (+1240) e de Thomás de Cantimpré


(+1262)”. Anais do XII Encontro Regional de História. Rio de Janeiro, ANPUH-RJ: 2006. pp.
01-08.

PEREIRA, Mário Eduardo Costa. C’est toujours la même chose: Charcot e a descrição do
grande ataque histérico. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, II (3),
269
(1999). pp.159-165.

PINHEIRO, Irineu. O Cariri, seu descobrimento, povoamento e costumes. Fortaleza, 1950.

_________. Efemérides do Cariri. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1963.

POMPA, C. A religião como tradução. Missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial.


Bauru: EDUSC, 2003.

________. Leituras do ‘fanatismo religioso’ no sertão brasileiro. Revista Novos Estudos, n°


69, julho de 2004. Acessado em 10.11.2010:
http://www.cebrap.org.br/v1/upload/biblioteca_virtual/POMPA_Leituras%20do%20Fanatism
o%20religioso%20.pdf

________. Memórias do fim do mundo: o movimento de Pau de Colher. Revista de História


(USP), n. 82, São Paulo ago. 2009.

RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Verbo encantado: a construção do Padre Cícero no


imaginário dos devotos. Ijuí - RS: UNIJUÍ, 1998.

__________. O Sangue da Terra: tramas do sagrado no espaço do Juazeiro. Cadernos


CEOM. Chapecó: Argos, 2001.

REDONDI, Pietro. Galileu Herético. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1993.

RODRIGUES, Thais Guimarães; Pereira, Mário Eduardo Costa. Legrand du Saulle: da


agorafobia ao medo dos espaços. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., Jun 2011, vol.14, no.2,
p.309-317.

ROYANNAIS, Patrick. Michel de Certeau: l’anthropologie du croire et la theológie de la


faiblesse de croire. Recherches de science religieuse. Paris, 2003/4, Tome 91, pp.499-533.

SARRIÓN, Adelina. Beatas y endemoniadas: mujeres heterodoxas ante la Inquisicion siglos


XVI a XIX. Alianza Editorial: Madrid, 2003.

SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo: Companhia


das Letras, 1999.

SOBREIRA, Azarias. Em defesa de um abolicionista. Fortaleza: Editora A. Batista Fontenele,


1956.

SILVA, Severino (org.). A Igreja e o controle social nos sertões nordestinos. São Paulo:
Paulinas, 1987.

270
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz. 4ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.

________. Inferno Atlântico: demonologia e colonização. Séculos XVI-XVIII. São Paulo:


Cia. das Letras, 1993.

TAVARES, Pedro Vilas Boas. “Caminhos e invenções de santidade feminina em Portugal nos
séculos XVII e XVIII”. Lisboa: Via spiritus, 3 (1996), pp. 163-215.

________. Beatas, inquisidores e teólogos: reacção portuguesa a Miguel de Molinos. Porto,


CIUHE, 2005.

THOMPSON, E. P.. “Folclore, Antropologia e História Social” in As peculiaridades dos


Ingleses e outros artigos. São Paulo: Editora da UNICAMP, 2002.

VALENTE, José Angel. Variaciones sobre el pájaro y la red. Barcelona: Tusquets, 1991.

VAUCHEZ, André. Les laïcs au Moyen-Âge entre ecclésiologie et histoire, Études 2005/1,
Toe 402, pp. 55-67.

VIEIRA, Roberto Attila do Amaral. Um herói sem pedestal: Isaac Amaral, sua vida e sua
atuação na campanha abolicionista e na Proclamação da República, no Ceará. Fortaleza:
Imprensa Oficial do Ceará, 1958.

VOVELLE, Michel. As almas do purgatório.

2. Dissertações e Teses
ALEXANDRE, Jucieldo F. Quando o “anjo do extermínio se aproxima de nós”:
representações sobre o cólera no semanário cratense “O Araripe” (1855-1864). Dissertação
de Mestrado. João Pessoa, PB: UFPB, 2010.

CORTEZ, Antônia Otonite de Oliveira. A construção da “cidade da cultura”: Crato (1889-


1960). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000. Dissertação de
Mestrado, 210p. Cedida pela autora.

KARSBURG, Alexandre de Oliveira. O Eremita do Novo Mundo: a trajetória de um


peregrino italiano na América do século XIX (1838-1869). Rio de Janeiro, UFRJ: 2012. Tese
de Doutorado. Cedida pelo autor.

LEONARDI, Paula. Além dos espelhos: memórias, imagens e trabalhos de duas


Congregações francesas no Brasil. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2008.

271
MORAIS, Rita de Cássia Jesus. Nos verdes campos da ciência: a trajetória acadêmica do
médico e botânico brasileiro Francisco Freire-Allemão (1797-1874). Dissertação de
Mestrado. Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2005.

OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção e Caridade: irmandades religiosas no Rio
de Janeiro Imperial (1840-1889). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal Fluminense,
1995.

REIS, Edilberto Cavalcante. Pro Animarum Salute: a diocese do Ceará como “Vitrine” da
romanização no Brasil – 1853 - 1912. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ / IFCS,
2000.

RIBEIRO, Josiane M. C. Entre a penitência do corpo e o corpo em festa: uma análise das
missões do padre Ibiapina no Ceará (1860-1883). Dissertação de Mestrado. Fortaleza: UFC,
2003.

SANTIROCCHI, Ítalo. Os ultramontanos no Brasil e o regalismo no segundo império (1840-


1889). Tese de doutorado. Roma, Pontifícia Universidade Gregoriana, 2010. Cedida pelo
autor.

SOUZA, Ana Guiomar Rêgo. Paixões em cena: a Semana Santa na cidade de Goiás (Século
XIX). Tese de doutorado. Brasília-DF: Universidade de Brasília, 2007. Disponível em
www.tdbd.ceb.unb.br. Acessado em 15.12.2008.

272
ANEXOS594

N° 1. Carta do bispo do Maranhão anexada ao Processo Canônico do Bispo Dom Joaquim


José Vieira. Archivo dei Vescovi Regolari, Archivo Secreto Vaticano, Roma, Itália.

N° 2. Circular Reservada enviada pelo Internúncio Apostólico em 13.01.1890 aos Bispos do


Brasil.

N° 3. Carta de Dom Joaquim José Vieira ao Internúncio Apostólico Monsenhor Spolverini


em 07.02.1890.

N° 4. Apresentação do Processo em Italiano pelo Pe. Francisco Ferreira Antero. in Rerum


Variarum, 1898, n° 128, Parte I. Processo sulla trasformazione della S. Particola in carne e
sangue nella bocca della religiosa Maria de Araújo. Relazione del p. Ludovico Hickey –
Qualif. [Qualificatore] Relne. e Voto del p. Llevaneras – Consre. [Conselheiro]. Doc. 04.

N° 5. Rerum Variarum, 1898, n° 128, Parte II. Processo sulla trasformazione della S.
Particola in carne e sangue nella bocca della religiosa Maria de Araújo. Relazione del p.
Ludovico Hickey – Qualif. [Qualificatore] Relne. e Voto del p. Llevaneras – Consre.
[Conselheiro] Doc.16.

N° 6. Decreto de 1894. Congregação para a Doutrina da Fé. Decreta Universa. S. Suprema


Coñgregationis S. O. Decretos de 1892, 1894, 1897 e 1898. ACDF.

594
Todos os documentos anexados foram transcritos por mim durante o período da pesquisa nos Arquivos
Vaticanos, a saber, o Archivio Segreto Vaticano e o Archivio dela Congregazione per la Dottrina dell Fede,
durante setembro de 2012 e março de 2013 em Roma, Itália. Todos os direitos de uso reservados. Foi
respeitada a ortografia original.
273
N° 1. Carta do bispo do Maranhão anexada ao Processo Canônico do Bispo Dom Joaquim José
Vieira. Archivo dei Vescovi Regolari, Archivo Secreto Vaticano, Roma, Itália.

Ref.: Nunziatura Apostolica, ASV. Busta 55, Fasc. 262, Doc. 10, p. 27. N° 174

Bispado do Maranhão

Excmo. e Rvmo. Snr.

Pela carta oficial sob n° 669 de 5 do corrente mez pede V. Exca. Revma. que debaixo de
segredo Pontifício, em consciência e perante Deus eu informasse a V. Exca. Revma. sobre as
qualidades pessoaes do Revd. Conego Joaquim José Vieira, apresentado por S. M. o Imperador para a
Sé Episcopal de Fortaleza.
Satisfazendo com muito prazer o desejo de V. Excia. Revma. informo que conheço o Rd.
Conego Vieira desde o anno 1857 quando ambos começamos nosso curso de estudos no seminário
episcopal da Diocese de S. Paulo. No seminário o Revd. Conego Vieira distinguio-se sempre pela
pureza de seos costumes, por sua piedade e aplicação aos estudos, merecendo por isso uma particular
afeição do superior, dos professores e dos seminaristas em geral. Ordenado padre foi logo nomeado
pelo Bispo para reger uma das mais importantes parochias, onde entregou-se a obras de zelo que o
fizeram notável entre os bons parochos da Diocese.
Desde esse tempo até o presente tenho reconhecido no Revdo. Conego Vieira um sacerdote
fervoroso, ornado de virtudes de pura e sã doutrina, dedicado ao ministério sagrado e propugnador da
causa da Santa Egreja Catholica. Nunca constou-me que tenha dado maus exemplos nem público
escândalo sobre a fé, a doutrina e os costumes, e também não me conta que tenha impedimento algum
canônico para que possa ser ordenado Bispo, [p. 28] devendo-se esperar, como penso, que sua
promoção ao episcopado será de grande utilidade e muito proveitosa aos fieis da Diocese de Fortaleza.
Sendo assim creio que V. Excia. Revma. poderá com segurança recommendar ao Santo Padre
o nome do Revdo. Conego Vieira a fim de ser confirmada sua eleição. Taes são, Excmo. e Revmo.
Snr. As informações que em consciência e perante Deus posso dar a V.Excia. Revma. a quem nesta
occasião apresento meus sentimentos de consideração e respeito.

De V.Excia. Revma.
Maranhão 27 de Fevereiro de 1883
Excmo. e Revmo. Snr. D. Adriano
Feliz Encarregado de Negócios da Santa Sé no Brasil
Mto. Hume. e ob.mo. servo
+ Antonio, bispo do Maranhão.

274
N° 2. Circular Reservada enviada pelo Internúncio Apostólico em 13.01.1890 aos Bispos do
Brasil.

Ref.: Nunciatura Apostólica, ASV, B. 68, Fasc. 330, Doc. 17, p. 43.

CIRCULAR RESERVADA
S. Paulo, do Mosteiro de São Bento, 12 de Janeiro de 1890

Exmo. e Revmo. Snr.

Já é conhecido de V.Ex. o decreto do Governo provisório datado de 7 do corrente pelo qual se


proclama a separação da Egreja do Estado, a liberdade e a egualdade de cultos, etc.etc.
É para mim cousa urgentíssima conhecer o juízo de V.Ex. a respeito do referido decreto,
enunciado na resposta aos seguintes quesitos:
I° Qual é a impressão geral de V.Ex. sobre este decreto em relação ao estado passado e futuro da
Egreja no Brazil e aquillo que podia-se temer mais?
II° Se e quanto a liberdade e igualdade dos cultos prejudicará aos fieis em suas crenças e na prática de
seus deveres religiosos?
III° Que damnos e que vantagens derivão do artigo 3° do decreto não só as ordens religiosas, como
também as confrarias maçonisadas?
IV° Que vantagens e consequências advirão à Egreja pela abolição do Padroado e suas prerrogativas a
respeito das nomeações aos Bispados e aos benefícios e honras eclesiásticas?
V° Qual o valor e as consequências das disposições do artigo 5°?
VI° Se a Diocese de V. Ex. terá meios para suprir às dotações abolidas e se tal suppressão é
compensada com a liberdade concedida à Egreja pela abolição do padroado e das suas prerrogativas?
Rogo a V.Ex.Rvm. se digne responder quanto antes a estes quesitos que interessão à Egreja
toda do Brazil; e com os sentimentos da mais profunda veneração e estima antecipadamente agradeço
a V.Ex.

275
N° 3. Carta de Dom Joaquim José Vieira ao Internúncio Apostólico Monsenhor Spolverini em
07.02.1890.

Ref.: Nunziatura Apostolica, ASV, B. 68, Fasc. 330, Doc. 25, pp. 67-69.

Palácio Episcopal do Ceará


Em 7 de Fevereiro de 1890
Illmo. Exmo. Rmo. Snr.

Em satisfação ao pedido de V.Exa. Rvma. exarado na circular reservada de 12 de janeiro


próximo findo, passo a expor em resumo e de conformidade com os quesitos propostos por V. Exa.
Rma. o meu juiso a respeito do decreto que separou a Egreja do Estado, etc.
Pelo que diz respeito ao 1° quesito, respondo que causou-me má impressão o supracitado
decreto, não só porque converte em lei uma proposição condemnada pela Sancta Sé, como também
porque traz sérias difficuldades à Egreja catholica no Brasil, máxima nos primeiros tempos, até que se
criem novos recursos para a sustentação do culto. Demais disto, o decreto abre porta franca para o
positivismo, espiritismo e quejandas doutrinas, é que infelizmente propendem muitos pela má
educação que receberam nas faculdades scientificas com tolerância se não pela aprovação do Governo
decahido. Outro mal, por ventura o maior que resultará do tal decreto é a instabilidade das cousas
concernentes à Sancta Religião, ficando a Egreja sujeita aos caprichos dos governadores dos Estados.
Nesta Diocese, cuja quasi totalidade é catholico, está o Governo do Estado entregue a homens
indiferentes uns, hostis outros a Sancta Egreja; resultando disso ter já o inspector da instrucção publica
prohibido o ensino do catecismo nas escolas publicas. Em summa, não se podem calcular os males que
trará a Egreja a tal inovação inopinada. Poderia, si o futuro da Egreja no Brasil se nos [rasurado]
temeroso, é certo também que o seu passadoo não era dos mais lisonjeiros, maiormente desde a prisão
dos Sm.s. Bispos. D. Vital e D. Macedo Costa, que deu lugar a que desejassem muitos catholicos a
separação da Egreja do Estado. [p. 68]
Ao 2°: a igualdade de cultos é por si mesma injuriosa à Religião Catholica, porque coloca a
verdade e o erro no mesmo nível. E com certeza, este principio prejudicará a firmeza de crenças de
muitos, havendo como consequência o arrefecimento no cumprimento dos deveres religiosos. Além
disto, concorrerá muito para enfraquecer a autoridade ecclesiastica diminuindo-lhe o prsestigio
necessário para cohibir os abusos que porventura apareçam no correr dos tempos.
Ao 3° é meu parecer que, dada plena liberdade às ordens religosas, a Egreja ganhará algumas
cousas; sendo, porém, para temer-se que as confrarias maçonisadas, nos lugares em que
predominaram, possam formar um scisma ou ao menos intentar fazel-o para se subtrahirem à
autoridade ecclesiastica. O artigo terceiro presta-se a diversas interpretações, de modo que podem
derivar-se dele muitos abusos contra a Egreja, quando se o tenha de aplicar praticamente. Só o tempo
poderá dizer quaes as suas respectivas consequências.
Ao 4°: São muitas as vantagens que advirão à Egreja com a abolição do Padroado; e a meu
ver, é a única compensação que ella terá dos prejuízos causados com a supressão das subvenções ao
culto.
Ao 5°: este artigo que parece vantajoso dando às egrejas e confissões religiosas a
personalidade jurídica, etc., não o é inteiramente para a Egreja, porque traz os taes limites
concernentes a corporações de mão morta. Si o Estado deixar à Egreja plena liberdade de possuir e
administrar seus bens, sem clausulas vexatórias, certamente [p. 69] ella ganhará com as disposições do
artigo 5°. É preciso que a Egreja tenha a livre administração do patrimônios das matrizes, capelas,
confrarias, collegios, seminários, etc.; que possa adquirir bens de raiz e e de outra qualquer espécie,
como qualquer sociedade ou individuo particular, regulando-se tão somente pelas leis canônicas nas
permutas ou alienações dos ditos bens, salvo os direitos do Estado no que é comum a todos. O artigo
5° carece ainda de explanação; portanto não é satisfactorio.
Ao 6°: a diocese do Ceará, pobre como é, e sujeita à secas periódicas que reduzem grande
parte de seus habitantes a penúria, sendo obrigados a implorar soccorros do Governo central, soffrerá

276
imenso com a suppressão das dotações, embora exíguas, do Estado; sendo certo, que mesmo nestes
tempos em que o clero tem sido subvencionado, parte dele se tem visto na contigência de emigrar-se,
em busca de recursos para si e para pessoas de suas famílias empobrecidas em consequência das secas.
Mais que todos, porém, soffrerão o Bispo diocesano e o Seminário; privado de casa de residência
fornecida pelo Estado e da côngrua, ficará o Bispo redusido a tal extremidade, que não poderá
sustentar uma posição consentânea à hierarchia ecclesiastica, ao menos até que com o tempo a Divina
Providencia proveja às suas necessidades. O Seminário do Ceará sem o auxilio anual dos 9 contos, só
se poderá manter por uma especial protecção da graça divina; pois que, a pobresa dos pais dos alunos
não dá lugar a uma [p.70] receita proporcional às despesas indestinaveis d’aquelle estabelecimento.
Em resumo: a Separação da Egreja do Estado é um mal imenso para a Egreja Catholica no
Brasil, e influirá perniciosamente nos futuros costumes da Nação. Seria muito para desejar se houvesse
perfeita harmonia entre o poder espiritual e o temporal auxiliando-se mutuamente no desempenho de
suas respetivas missões. Infelismente, parece-me pouco provável a conservação dessa harmonia sem
quebra da dignidade da Egreja. Si assim o é, exhortamos de dous males o menor: venha a Egreja livre
no Estado livre.
Perderemos em número, mas ganharemos na qualidade dos crentes que serão mais coerentes e
mais fieis aos ensinamentos da Santa Egreja. Deus dará coragem e forças aos homens de boa vontade
para repararem os males que porventura advenham à Egreja, com a separação do Estado. É deplorável
a separação, mas parece não haver meio de impedi-la. Deus providebit. Tal é, Exmo. e Rmo. Snr., em
resumo o juízo que formo à cerca do decreto de 7 de janeiro. Aproveito a occasião para reiterar a V.
Exa. Rma. a minha imensa estima e profundo respeito.

De V. Exa. Rvma.

Humilde Servo e admirador,


+ Joaquim, Bispo Diocesano do Ceará

277
N° 4. Apresentação do Processo em Italiano pelo Pe. Francisco Ferreira Antero.

Ref.: Rerum Variarum, 1898, n° 128, Parte I. Processo sulla Sulla trasformazione della S.
Particola in carne e sangue nella bocca della religiosa Maria de Araújo. Relazione del p.
Ludovico Hickey – Qualif. [Qualificatore] Relne. e Voto del p. Llevaneras – Consre.
[Conselheiro]. Doc. 4. Archivio della Congregazione per la Dottrina Della Fede (Sant’Uffizio),
Vaticano, Roma, Itália.

[p. 01]
Eminenza Illma. E Revma.

Incaricato di far giungere a conoscimento dela Santa Sede i fatti meravigliosi avvenuti nella
Diocesi di Fortaleza dello Stato del Ceará nel Brasile, vengo a presentarme dinnanzi a questo sacro
tribunale la relazione sommaria perchè se ne possa fermare una qualche idea.
Da tre anni a questa parte nella popolazione di Joazeiro parrochia di Crato della Diocesi di
Fortaleza dello Stato del Ceará nel Brasile, avviene un fatto che tutti ritengono straordinario e divino
pei suoi effetti maravigliosi: un concorso ammirable di pellegrini di molti punti del Brasile; quotidiane
conversioni di miglaia di peccatori di ogni classe e condizione; miracoli senza numero di ciechi, pazzi,
paralitici, infermi di ogni ragioni ritornati sani alle occupazioni della vita. Notasi sopratutto una
trasformazione quasi generale in punto di pietà e di costumi nelle città e parrochie di quasi tutta la
Diocesi e in varie parti delle diocesi circonvicine, alle quali giunse la notizia di questi maraviglie. É
una consolazione vedere oggi i progressi della nostra santa religione in questi luoghi e lo sviluppo
delle pratiche di pietà che va crescendo ogni giorno, specialmente la divozione al [p.2] SS. Sacramento
dell’altare e al Sangue preziosissimo di N.S. Gesù Cristi.
Il fatto che ha datto origine a queste maraviglie è specialmente all’incremento religioso in
queste contrade è la trasformazione della sacra particola in sangue e carne sulla lingua della Religiosa
Maria de Araujo, giovane di trent’anni, data alla vita divota fin dalla fanciulezza, ogni volta che riceve
la santa Comunione. Erano già trascorsi tre anni che si operava questo prodigio, ma il confessore di
detta religiosa D. Cicero Romão Baptista sacerdoti di costumi irrreprensibili, molto bene istruito,
zelante e sommamente dedicato alla santa nostra religione, però incapace di volere ingannare
chicchesia (come ebbe a dire lo stesso Eccmo. Sig. Vescovo diocesano D. Gioachino Giuseppe Vieira
nella sua sentenza intorno a questo fatto) aveva sempre procurato di ternelo occulto595. Ma Dio che
con questo prodigio voleva arrivare la fede già quasi estinta di questo popolo intorno alla sua presenza
reale nel Sacramento della Eucaristia, dispose tutto in modo che contro il volere del Sacerdote e della
Religiosa il fattto si pubblicasse.
Fu allora che cominciò il concorso del popolo da ogni parte, molti per curiosità, altri per
arrivare la loro fede, altri per togliere i proprii dubii sulla reale presenza. Cominciarono allora le
conversioni, i miracoli, e il concorso straordinario di pellegrini chiamò l’attenzione di tutti e in ultimo
del Vescovo diocesano. Questi maravigliato, ma non credendo al miracolo emanó questa sentenza =
Ordiniamo al R.D. Cicero Romão Baptista [p. 03] che si disdica dal pulpito della proposizione che ha
proferito affermando che il sangue apparso nelle particole conservate era il sangue di N.S. Gesù
Cristo: perchè non lo è, nè può esserlo, secondo gli insegnamenti della teologia cattolica. Se nello
spazio di otto giorni non si sarà disdetto resterà sospeso = Intanto Mons. Vescovo cercava di spiegare
il fatto ora per mezzo dell’isterismo, ora per mezzo d’intervenzione diabolica. Si mostrò convinto che
non vi era intervenzione diabolica per gli effetti maravigliosi, specialmente pei miracoli e le
conversioni senza numero dei peccatori anche più ostinati, si convinse pure che nulla era stato
insegnato in contrario agli insegnamenti di nostra santa religione, poichè si era soltanto detto che
quella poteva essere una manifestazione divina per ravvivare nel popola la fede tanto illanguidita della
presenza reale di Gesù Cristo nel SS. Sacramento della Eucaristia; come in caso somigliante spiega S.
Agostino e principalmente il grande Sr. S. Tommaso, che tratta di questo caso (S.T. p. 3, q.76, a. VIII);

595
Sublinhado no texto original.
278
e si mostrò convinto eziandio non essere isterismo dalle disertazioni e attestati dei medici e periti, che
esaminarono la detta religiosa Maria de Araújo. Cominciò allora a credere che il sangue che appariva
nelle particole fosse il sangue della medesima religiosa communicante, benchè gli esami e gli attestati
dei medici convincano del contrario, e risolvette di nominare una commisione che esaminasse i fatti.
Scelse a questo fine il Sacerdote più dotto, pio e prudente che gode la sua piena fiducia, il R.D.
Clycerio da Costa Lobo e lo nominò Comissario [p. 04] dandogli un secretario. Il Rdo. Commissario,
benchè andasse, come egli stesso manifestò al suo secretario, molto prevenuto in contrario appena
diede principio al suo lavoro fu obbligato a deporre quello spirito di prevenzione, da cui era compreso.
Dopo tutti gli esami fatti alla presenza di due medici, di un farmacista e di un gran numero di
testemoni tanto in Joazeiro come nella città di Crato, secondo le istruzione date dall’Eccmo. Mons.
Vescovo, il Rdo. Commissario non meno maravigliato di tutti gli altri riconobbe il fatto come
sopranaturale e divino e con questo giudizio consegnò il processo al Vescovo diocesano con tutti i
documenti e attestati dei due medici che erano stati scelti alla verificazioni dei fatti, non che di un
terzo medico che era venuto di proposito ad esaminare per suo conto gli stessi fenomeni, tutti
confessando essere i fatti sopranaturali. Ma l’Eccmo. Mons. Vescovo per procedere con prudenza non
curò il parere del suo commissario benchè munito di tutti i documenti, fa mostra di persistere nella sua
opinione e procura con tutti i mezzi che questi fatti si mettano in dimenticanza. Pur tuttavia
quanlunque la religiosa si tenga sempre nascosta e sia difficilissimo il verderla e parlarle (perchè essa
non vuol saperne di tali pubblicità e ha sofferto e soffre moltissimo per queste, come attesta il suo
confessore che non ha trovato opposizione veruna al comando fattoli fi tenersi nascosta) qualunque
l’opposizione di Mons. Vescovo sia a tutti palese, e in quella contrada regni da lungo tempo un
indifferentismo [p. 05] deplorevole in cose di religione; tutto ciò non ostante, seguono i pellegrinaggi
con innumerevoli conversioni e prodigii e quindi è da creder verace la rivelazione fatta a questo pio
Sacerdote Cicero Romão Baptista essere volontà di Dio che tutto venga a conoscimento della Santa
Sede. È questa l’unica ragione che me muove a venire dinnanzi alla Emza. V. Rma. a farle conoscere
questi successi maravigliosi, l’ubbidienza alla voce di Dio.
Le bacio umilmente la S. Porpora e colla più alta considerazione ho l’onore di professarmi.
dell’Ema. Va. Illma. Umile servo
Francesco Ferreira Antero.

279
N° 5. Processo sulla Sulla trasformazione della S. Particola in carne e sangue nella bocca della
religiosa Maria de Araújo.

Ref.: Rerum Variarum, 1898, n° 128, Parte II. Processo sulla Sulla trasformazione della S.
Particola in carne e sangue nella bocca della religiosa Maria de Araújo. Relazione del p.
Ludovico Hickey – Qualif. [Qualificatore] Relne. e Voto del p. Llevaneras – Consre.
[Conselheiro] Doc. 16. Archivio della Congregazione per la Dottrina Della Fede (Sant’Uffizio),
Vaticano, Roma, Itália.

[p.01]

SUPREMA SACRA CONGREGATIO SANCTI OFFICII - FORTALEXIEN. SEU DE CEARÁ


De sacrilegis fictionibus «de Joaseiro»; de executione decreti Feriae IV, 4 April. 1894, quo
deliramenta illa damnata fuerunt; deque sacerdote Cicero Romão Baptista dictarum fictionum
primarium ac pertinaci fautore ac defensore.

RELATIO ET VOTUM CUM SUMMARIO P.I.C. A. LLEVANERAS O. M. CAP. CONS.


NOVEMBRIS 1896

[p. 03]
Eṁi ac Rṁi Patres

1. Anno 1894 actum est in hac Suprema Congregatione de causa Fortalexiensi in Brasili circa
praetensa miracula transformationis sacrae Particulae in sanguinem et carnem in ore pseudo piae
foeminae Mariae de Araujo aliaque supernaturalia quae de eadem praedicabantur; et praevia relatione
Rṁi P. Hickey Qualificatoris, feria IV die 4 Aorilis eiusdem anni, E.E. V.V Votum D.D. COnsultorum
quoad substantiam adprobantes, descreverunt: Scribatur R.P.D. Internuntio Apostolico Brasiliensi ut
sequitur: - Praetensa miracula aliaque supernaturalia quae de Maria de Araujo praedicantur vana
ese et superstitiosa ostenta, ac gravissimam detestabilemque irreverentiam et impium abusum
Sanctissimae Eucharistiae continere; ideoque iudicio Apostolico reprobari, et ab ómnibus reprobanda
ese et pro reprobatis el condemnatis habenda. Ut autem huiusmodi excessibus finis imponatur et
graviora simul praecaveantur mala quae inde oriri possent, collatis consiliis eiusdem R.P.D. Nuntii
(1) Apostolocici ac R.P.D. Episcopi Fortalexiensis, curandum quam cito ese ut cadem Maria de
Araujo imposita utique gravi et diuturna poenitentia, quandprimum in aliqua pia vel religiosa domo
includatur, ibique sub directione pii et prudentis Confessarii, qui di illius mulieris anteactis doceatur,
ad beneplacitum Ordinari permaneat. Insuper concursus peregrinorum, aut curiosorum visitationes et
acessus ad illam aliasque mulieres in eadem causa culpabiles ab Fortalexiensi aliisque Brasiliae
Ordinariis, quantum
(1) Id est Internuntii. [p.04]

Omnino fieri poterit interdicantur. Scripta quaelibet vel libri aut opuscula in defensionem illarum
personarum ac illorum factorum edita, vel forsan, quod absit, edenda pro damnatis et vetitis
habeantur, et quantum fieri potest colligantur el comburantur. – Sacerdotes omnes et singuli bene noti
R.P.D. Episcopo, qui adeo nefarie Sanctissiman Eucharistiam tractaverunt, tum eorumdem complices,
damnentur ad exercitia spiritualia ad tempus eidem Episcopo benevisum, et pro gravitate criminis
graviter ab eodem puniantur; interdicta illis quavis relatione etiam per epistolam cum praefata
muliere: interdicta quoque illis, quatenuns et quamdiu benevisum ipsi Episcopo videatur, qualibet
directione animarum. – Tam eisdem sacerdotibus, quam aliis sive sacerdotibus, sive laicis prohibeatur
quominus de praetensis supramemoratis miraculis voce vel scripto agant. – Panni sanguine perfusi,
ac hostiae de quibus actum est, omniaque alia ceu reliquae asservata ab eodem Ordinario auferantur
et comburantur. – Et eadem die sanctissimus resolutionem EE. VV. adprobavit.

280
2. Accepto praecedenti decreto, die 28 Maii 1894 R.P.D. Internuntius (hodie Eṁus Card. Gotti)
respondit: «Ricevetti il 18 corrente il riverito foglio del 15 Aprile prossimo passato, col quale
l’Eminenza Vostra Rṁa si compiacque di norificarmi il venerando giudizio pronunziato dalla Suprema
intorno ai fatti di Joaseiro, nonchè le sapienti e salutari ordinazioni, colle quali gli Eṁi e Rṁi Signori
Cardinali Generali Inquisitori provvidero sul caso. Mi faró un dovere d’adempiere puntualmente ciò
che si degnarono d’ingiungermi, ed a suo tempo darò conto di ciò che si sarà fatto e dell’esito
ottenuto». Quod fideliter et accuratissime peregit die 2 Octobris 1895.
3. Quo modo publicatio et executio decreti peracta sit, habetur in laudata relatione R.P.D.
Internuntii, quae ex integro legi potest in Summario n.I. Et, ut in similibus aberrationibus pseudo-
mysticis evenire solet, non-nulli ex deceptoribus et ex voluntarie deceptis nolueruntsese decreto S.
Officci subiicere, vel haud sincere mandatis S. Sedis paruerunt. De singulis agendum est.
[p. 05]
4. MULIERCULAE. – Maria de Araujo seu pseudo-sancta illa muliercula, miraculorum
fabricatrix et imposturarum inventrix (cuiús imago numismati impressa cum Immaculatae quae
religiose colitur sub titulo Medaglia miracolosa, valde propagata fuit) «si potè non senza tempo e
fatica, indurla finalmente ad entrare in una casa religiosa in Barbalha; ma non vi perseverò... Vi rimase
sei mesi, duranti i quali non si volle confessare». Et contra mandata accepta «usci e ritornò a
Joaseiro», ubi «continua nella sua pervicacia, sostenuta del noto protagonista Sac. Cicero».
(Summ.n.I) Quaenam autem sit spiritualis virtus istius mulieris, patet tum sacrilegis fictionibus de
Joaseiro tum ex hoc Episcopi testimonio: «Quella Giovane è data a bevande alcooliche, e non ostante
questo vizio, vuol passare per sancta». Unde hodie mulier Maria de Araujo talis a populus indicatur
qualis reapse fuit est, ut refert Ordinarius sub die 18 Augusti 1896.
5. Maria de Iesus da Natividade Rebouçat, aetat., 17 na., altera miraculorum inventrix, in parecia
des Russas die 9 nov. 1893 iuridice interrogata réspondit: «Pour ce que regarde les hosties, que la
première fois, elle communia dès les matin, se retira chez elle se présenta une seconde fois à la table
sainte, et y reçut une nouvelle hostie. La retirant immediatement de sa bouche, elle alla la porter au
prêtre Glycerio (1) alors au confes- [p.6] sional. Le prêtre Glycerio lui fit remarquer qu’elle devait
faire une telle remise secretement, de peur que le public ne le remarqua. Il lui demanda ensuite pour
qui ètait cette hostie ? El elle lui répondit que Notre Seigneur la lui envoyait, pour qu’il communia
pour la conversion des pécheurs. – Elle dit que le jour suivant elle communia ; aussitôt après retourna
à la sainte table, et y recevant une nouvelle hostie, elle la donna au prêtre Glycerio, afin qu’il
communia. – Elle ajouta qu’un autre jour elle rerçut deux hosties, s’etant aprochée deux fois de la
table saint ; elle en reçut une en communion, et donna l’autre au pêtrre Glycerio – Celui-ci montra
l’hostie au peuple, lui ordonnat de l’adorer, et lui disant que Dieu l’avait envoyéé pour la conversion
des pécheurs» .
____________
[p. 5]
(1) De isto sacerdote Glycerio, haec proprio Episcopo (de Ceará seu Fortalexiensi) scribit
sacerdotus Agostinho Iose de Santiago Lima: «Pour me conformer aux ordres de Votre Grandeur, je
dirais qu’entre les différentes choses que j’ai entendues du Prêtre Glycerio da Costa Lobo, au sujet des
faits de Joaseiro, j’ai présent à la memoire les détails suivants. «L’avènement d’une nouvelle
rédemption était révélé, et de Joaseiro sortiraient de nouveaux apôtres, comme il en était sorti de
Jérusalem : c’est pour cela que cette «localitè» allait prende le nom de «Nova [p.6] Jerusalém». Le
Prêtre Cícero serait comme un noveau Jean-Baptiste parmi les hommes ; et Notre Seigneur lui avait
accordè des grâces tout à fait extraordinaires, comme il n’en avair jamais accordè à aucun autre
homme.
«L’Eglise Brèsilienne passerait par une terrible pérsecution, dans laquelle il y aurait beaucoup de
prêtres martyrs, et même déjá, on savait nominalement que le Prêtre Cicero serait l’un d’eux. La cause
de cette persécution serait le Mariage Civil.
«La Sainte Veirge avait aussi demandé par révélation que l’on fit une copie du procès pour povoir
trancher tout difficultè qui par hasard apparaitrait contre le procès, et certaneiment, elles seraient
nombreuses.

281
«Il apparaitrait un nouveau Moïse ; je ne me rapelle plus quelles sont les paroles du Prêtre Glycerio
qui m’ont permis de conjecturer que ce Moïse serait le même Prêtre Glycerio ; «Et egalement, que
Votre Grandeur mourraitde mort subite»
___________
6. «Un autre jour encore, dit-elle, ayant reçu cinqu hosties, elle en consomma une, et remit les
autres au prêtre Glycerio pour qu’il les reçut en communion, offrant une de ces communion pour lui,
prêtre Glycerio, [p. 7] une pour les habitants de Aracaty, une pour ceux du Limbeiro, et la dérniere... !
Elle ne se rapelait plus à quelle intention. – Un autre jour, elle reçut six hosties, en consomma deux, et
remit autres au prêtre Glycerio pour qu’il en reçut trois en communion, à differentes intentions entre
autres à l’intention de Mgr. Evêque, et qu’il en donna un en communion au prêtre Agostinho qui fût
immediatement appelé. Mais celui-ci fit répondre au prêtre Glycerio de placer l’hostie dans la custode,
et de la garder dans le tabernacle. Sur la demande que lui en fût faite, elle répondit qu’elle avait
coutume de retirer les hosties de sa bouche, avec le main, les cachait dans un voîle. Une fois entre
autres, elle en plaça une sur la poitrine, et à dessein se laissa tomber. – Elle dit aussi qu’elle tomba à
plusieurs reprises, mais qu’elle voyait, qu’elle entendait tout ce qui se passait autour d’elle ; et que la
plupart du temps, elle le fesait délibérément ; mais que jamais elle n’eût de révélations, malgré les
declarations qu’elle fesait alors d’en avoir. – Elle répondit en outre que qualchefois au moment de
l’élevation de l’Hostie, il lui semblait voir differentes lumières, mais aujourd’hui elle pensait que
c’etait une erreur de sa vue.»
7. Antonia Maria da Conceição, aetat. 34 na., pluries de praetensis miraculis: 1° Miracula falso
confirmans; 2° Miracula omnino excludens; 3° Miraculo denuo cum falso iuramento confirmans. 4°
Die 16 Maii 1895, ad Deum reversa, veritatem iudicialiter fassa est in civitate Crato: «Ne pouvant
resister plus longtemps aux remords de sa conscience, elle se presenta spontanément, afin de déclarer
la verité, et ainsi se réconsilier avec l’Église, et rentrer dans le chemin, d’où malhereusement elle
s’etait écartée». Hinc praevio iuramento, «Elle déclara ouvertement que jamais elle n’avait eu aucune
révélation, de quelquer sorte que ce soit ; que jamais elle n’a été honorée d’apparitions divines, ni de
celles de la T.S.. Vierge ; que jamais elle n’est allée à Rome en esprit, ni au Ciel, ni aux Enfers, ni au
Purgatoire. – Elle déclara que les hosties qu’elle présenta aux prêtres de la Commission, [p.8] elle les
avait prises dans une boite d’hosties de la maison de Charité de cette ville ; Elle les avait gardées dans
ses poches, et feignant nsuite une sorte d’extase, elle les retira de ses poches, et les fit passer pour
miraculeuses, et d’origine surnaturelle. – Elle dit que les faits survenus à Marie de Araújo, ne lui
avaient causé aucune surprise, parceque c’était sa persuasion que cette dévote avait echaffaudè cette
histoire des miracles supposés avec habiletè et malice, à son but. Et finalement, que toute sa déposition
dans le procès sur les faits de Joaseiro, était un tissu de mensonges.
8. Iterum die 17 Iulii 1895, rite interrogata, praevio iuramento confirmavit proprias sacrilegas
fictiones ab anno 1887, quo tempore «elle commença à imiter à Maria de Araujo en tout exceptè dans
la manifestation des stigmates et des communion d’hosties couvertes de sang.» Narrat quomodo
proprium confessarium Praelatum Franciscum Rodriguez Monteiro decipiebat, et fatetur, quod ab
anno 1887 ad novissimum usque tempus, quo ad meliorem frugem revocata generalem confessionem
peregit, «sa vie avait des remords, mais elle ne se corrigeait pas, jusqu’à ce que touchèe por la grâce de
Dieu, etc.» De modo quo episcopalem Commissionem decepit, haec habet : «Mgr. Franscisco
Rodriguez Monteiro la supplia instanment, ele Antonia, de demander à Dieu une grâce importante
pour les jour suivant, afin wu’à la vue de cette faveur, les prêtres de la Commission fussent convaincus
de la veritè des faits de Joaseiro ; et pour répondre à cette demande, elle joua la comedie de la
présentation des hosties que de propos délibéré elle avait approtéés pour tromper les prêtres ainsi que
le peuple réunis dans le maison de Charitè de cette ville ».
9. De aliis mulierculis, die 10 sept.1894, praevio iuramento, plura deposuit Raymunda Dias de
Iesus, aetat.. 19 annorum, videlicit. «Elle afirma que la Dévote Maria das Dores, en as présence porta
um Crucifix à as bouche, le mouilla de as salive et y fixa [p.9] à la patie supérieure une hostie. Or tout
en allant trouver le Prêtre Cicero Romão Baptista cette hostie tomba ; elle la prit de nouveau en se
cachant avec son manteau, la fixa une seconde fois, et la montra au dit Prêtre. – Elle affirma que cette
même dévote, une autre fois, ayant dans un plateau un objet à peu prés de la forme d’un coeur, le fixa

282
à d’une hostie, et la porta au prêtre mentionné. – Elle se montra avec une autre hostie dans laquelle on
voyait cinq coeurs, ayant à leur centre une croix rouge avec des lettres de même couleur ; et se faissant
passer aussitôt aprés pour une personne en extase, elle prononça des paroles qu’elle disait être latines.
–Elle affirma qu’elle se fit une coupure à un doigt, d’où coula un peu de sang sur un plateau dans
lequel il y avait un peu d’eau, et elle versa encuite cette eau sur un Crucifix ; l’ayant laissé sécher, elle
le montra au prêtre ci dessus nommé. – Elle prit en communion l’hostie mentionnée en second lieu,
disant qu’elle le faisat par ordre de Dieu. – Elle affirma de plus que la même dévote lui montra trois
linges imbibés de sang, au dire de la dévote, qui était sorti du côté droit du Sauveur. – Dans une de ces
circonstances, emerveillés de ces choses, elle s’évanouit, ét se réveillant ensuite elle vit au côté droit
de la dévote un flacon rempli de sang. – Allant à un certain endroit en la compaigne de cette dévote,
celle-ci emporta deux hosties, disant ensuite qu’elles lui avaient été donnés par Dieu, une pour elle, et
l’autre pour le prêtre Cicero qui lui commanda de s’en communier, - Elle révela que Maria da
Soledade lui montra, dans les consistoire de la chapelle de Joaseiro, une médaille de St. Josephe
ensanglantée, sur un linge également ensanglanté, et qu’elle la donna à baiser au peuple. – Elle révéla
que Herniria X.... mariéé à Joã X... [Hermínia, mulher de João Canário ??] versa du vin et de l’eau
dans un plateau, dans lequel elle répandit un peu de sang ; ce sang venant à se cpoaguler, elle tira une
hostie consacré qu’elle avait dans la bouche et versa dessus un peu de ce sang. – Interrogée si cette
femme avait ensuite reçu en communion cette hostie, elle ne sût répondre. – Elle révéla que la dévote
Anna Leopoldina d’Aguiar Mello, [p. 10] lui montra une hostie qui lui avait été donné par Dieu afin
qu’elle sortit du purgatoire où elle était. – La dévote Joel Wanderley Cabral lui apparut dans une
circonstance, avec un coeur entre les mains, lui disant qu’il lui avait été donné par Dieu, quand elle
était dans le purgatoire d’où elle sortir par l’intermediaire d’un Ange ».
10. Igitur ex mulierculis, quae impostura de Joaseiro praecipuas partes habuerunt, plures proprias
culpas iudicialiter fassae sunt ; aliae ut Maria de Araujo eiusque in sacrílega fictione sociae a) Maria
Leopoldina Ferreiro [sic] da Solidade, b)Jahel Wanderley cabral, c) Ioanna Tertulina de Iesu, d) et
Maria das Dores do Coração de Jesus pertinaces existunt, et in quodam recursu ad Summum
Pontificem sacrilega mendacia iterari non timent ; omnium denique muliercularum fraudes saltem in
substantialibus publice notae existunt ; ideoque, merito scribit Episcopus Fortalexiensis (18 Aug.
1896) : « Maria de Araujo et les autres femmes qui figurent dans le procès de Joaseiro ont perdu tout
crédit, et il y a longtemps déjà qu’elles ne font plus de miracles ».
11. NONNULLI LAICI pertinaces manserunt, et tales fuerunt « alcuni uomini ignoranti, e sopra
tutto interessati, feriti al vivo per la cessazione del denaro, che affluiva in gran copia a Joaseiro per
mezzo dei pelegrinaggi». De qua re alia habentur in Sum.n.I.pag.28 etc.
12. SACERDOTES DECEPTI sub primordiis plenam obedientiam decreto S.Officci plus minusve
denegarunt (vid. N. 14), sed postea humili subiectione paruentunt (imo. Depuis lors, scribit Episcopus
Fortalexiensi, 18 Aug. 1896, jusqu’à ce jour ils se sont conduits avec rectitude, convaicus même qu’ils
étaient dans l’ilusion), duobus exceptis, videlicet Francisco Ferreira Antero et Cicero Romão Baptista
(vid. Summ. N. I. Pag. 26, 26 etc.)
13. SACERDOS ANTERO insufficienter se subiecit, et hac de causa suspesus fuit ad divinis. Ipse
Antero « va dicendo, scribebat R.P.D. Internuntius, che si sottomette alla decisione di Roma, non
consente però a fare una ritrattazione pubblica, perchè a ciò non [p.11] se stima obbligato (Summ.
Num. I, pag. 26). Et quater a suo Episcopues invitatus ad hanc publicam subiectionem, noluit obedire:
«anzi, scribebat Ordinarius, dominato da eccessivo orgoglio, pubblicò per la stampa uno scritto
menzognero, calunnioso ed irreverente verso il suo diocesano. Non posso prevedere come finirà
questa aberrazione; spero però che Dio farà venire a recipiscenza questo sacerdote fuorviato». Haud
conconstat ex novissimis documentis an sacerdos iste ad plenam recipiscentiam venerit. Caeterum,
cum hodie Episcopus, solum Sacerdotem Cicero Romão periculosum iudicet, concludendum est
Sacerdotem Antero vel aequivalenter decreto S. Offici subiectum pubblice haberi (va dicendo che si
sottomette ala decisione di Roma(1), vel haud amplius fictionum de Joaseiro fautorem existere. Et hac
forsan de causa, Episcopus nullam resolutionem postulat contra praefatum Antero.
(1) In relatione 10 Aug. 1896, idem Episcopus escribit: «Le prêtre Antero ayante donné une
déclaration équivoque, j’exigeais qu’il la fit franche et entière ; il s’y refusa, alléguant qu’il n’y était

283
point obligé ». Si haec declaratio facta Episcopo aequivoca fuit, declaratio familiaris seu vulgaris, ut
ita dicam, sat explicita videtur, ut patete x verbis va dicendo che si sottomette ala decisione di Roma.
14. SACERDOS CICERO ROMÃO ab ipsis primordiis damnationis et proscriptionis fictionum de
Joaseiro, inobediens apparuit, vel haud sincere subiectus. Etenim ad hortationes et monita Episcopi, ut
ipse cum sociis sacerdotibus plene et sincere se subiiceret, «voulut tergiveser, alléguant que la decisión
n’ayant pas le privilege de l’infaillibilité était réformable; et que le saint-Office pouvaint se tromper,
comme s’était tromper dans le iugement de Galilée etc. » Episcopus suaviter refutavit huiusmodi
effugia, et additis novis paternisque monitionibus plenam obedientiam a singulis sacerdotibus
postulavit, qui « promirent tous de [p.12] rendre l’obéissance exigée ». Deinde « se retirerent chacun
en leur residénce respective. Le prêtre Cicero retourna a Joaseiro, malgrè mes instances ». Tamen tunc
temporis Sacerdotes isti haud sinceri fuerunt, nam « lorsqu’ils étaient interrogés par le peuple curieux,
ils répondaient aux uns d’une maniére équivoque, aux autres que la décision était réformable etc. »
Quapropter, Episcopus scriptam retractationem publice edendam singulis imposuit. Et excepto
sacerdote Antero, qui aequivocam, et sacerdote Cicero, qui sat mancam, caeteri sacerdotes
sufficientem declarationem conscripserunt, recteque deinceps de factis de Joaseiro iudicarunt,
convaicus même qu’ils étaient dans l’illusion, ut dictum est supra n.12. « La prêtre Cicero, aprés
beaucoup de sophismes, donna endin une déclaration que j’acceptais, bien qu’elle ne fut pas
satisfaisante, et je la publiais para la voie de la presse, dans l’espèrance que le temps et le grâce de
Dieu le ramèneraient dans le bon chemin » (Epist. 16 Aug. 1896).
15. Interim infelix sacerdos Cicero, sub die 11 vel 12 Decembris 1894, sequens telegramma
(pessime transcritpum) transmisit : Eminentissimo Senr Cardial Monaco. Roma – Eminentissimi
Cardinales Inquisitores per amovet Dei nil iterum pronuntietis ac staxatis de factis quo accidesunt in
Joaseiro priusquam ad pedes vestras adveniat petitio humilis servi. – P. Cicero Romao.. Quo lecto in
Congregatione feriae IV 19. Dec. 1894, EE. VV. Decreverunt : Respondendum – Acquiescat decisis.
Et ita per telegraphum responsum fui die 2 Ian. 1895.
16. Haec autem petitio humilis servi (i.e.Cicero Romao), sub data 27 Dec. 1894, cum sit quase
fundamentum posteriorum recursuum, ex integro transcribitur: «Emi e Rmi Signori Cardinali della S.
C. dela S. Inq. R. Chiamati (1) alla presenza del nostro preclaro Vescovo di Fortaleza, io ed altri
fratelli sacerdote, obbediamo prontamente, come figli amanti e sottomessi che sempre [p.13] siamo
stati della Santa Chiesa, e per questo come maggior sacrifizio, abbiamo fatto il più incomodo e penoso
viaggio per superare la distanza dalla Sede Episcopale ed obbedire la sua autorità. – In seguito ,
dunque, della fedeltà della nostra sottomissionoe, il nostro Prelato Eminentissimi Signori Cardinali,
c’intimò la Vostra Decisione e Decreti del 4 dell’ultimo Aprile intorno ai fatti occorsi con Maria de
Araujo nel Joaseiro, commando che facessimo un ritiro di 3 giorni in riparazione delle profanazioni,
che per grazia di Dio, mai avevamo fatto al Santissimo Sacramento dell’Eucaristia, e ci minacciò di
altre pene privandoci di ogni esercicio dei nostri Ordini nello stesso distretto di Joaseiro, specialmente
a me che fin dall’Agosto del 1892 fui sospeso dei miei Ordini, eccetto di celebrare il S.Sacrifizio,
come conseguenza degli stessi fatti, daqi quali grazie a Dio, mai fui colpevole, ed ho concienza che
furono veri e sinceri. – A tutto, malgrado ciò, abbiamo obbeditto umilmente ed in conferma della
verità, non solamente prendiamo Iddio per testimonio che mais abbiamo profanato né mai
consetiremmo nessuna profanazione contro il Ssmo Sacramento dell’Eucaristia in Joaseiro; ma
rinnoviamo, di più, la professione della nostra obbedienza ceh sempre abbiamo avuto per il nostro
Buon Dio Gesù Cristo Nostro Signore, per la sua Santa Chiesa, per Voi Eminentissimi Signori
Cardinali, per l’Eccellentissimo e reverendissimo Signor Internuncio del Brasile, per il nostro Prelato
Diocesano e per tutte le Autorità che Iddio stesso ha costituito sopra di noi. Per tanto come fu soltanto
per questo spirito di obbedienza che accetiamo tutte le pene che ci furono imposte, prego umilmente le
EE.LL. Rme. Di dignarsi accetare questo voto di obbedienza e questo testemonio di coscienza che
(cioè) mai abbiamo profanato nè mai consentito nessuna profanazione contro il Ssmo Sacramento
dell’Eucaristia, poichè, per grazia divina, daremmo il nostro sangue e la nostra vita per veder Nostro
Signore Gesù Cristo amato, adorato e glorificato, come merita e deve essere amato, adorato e
glorificato nel Ssmo. Sacramento dell’Eucaristia. [p.14]

284
In tanto, come si sa che molto dopo che fossero diniti i lavori della Commisione Vescovile in
Joaseiro, e senza conoscenza nostra, certi documenti e carte presentarono noi come profanatori del
Ssmo Sacramento; ed a me specialmente, come eretico, disubbediente e scismatico, e in questo vi è
gravissima ingiustizia, supplico umilmente le EE.VV. Rme. Che se è del piacimento delle Vostre
Eminenze Reverendissime, si degnino chiamare alla presenza Vostra me, e gli altri miei fratelli
sacerdoti, o mandare una Commissione Apostolica la quale da sè stessa indaghi, verifiche e testifiche
quello che è avvenuto in Joaseiro, o diano un’altro provvedimento. – D’altronde, nel supplicare Vostra
Carità e Misericordia, Eminentissimi Signori Cardinali, non voglio offendere il mio venerable Prelato,
nè disapprovare niente di quello che fece, poichè in tutti gli consacro vero amore ed obbedienza; e
soltando prego, Emi. Signori Cardinali, che tutto si faccia e tutto sia per la maggior gloria di Dio e
della sua Santa chiesa, nella cui obbedienza ed amore, per grazia dello stesso Iddio, voglio vivere e
morire. – Ai vostri piedi ecc. – P. Cicero Romão Baptista.»
______
[p.12] (1) Ipse solus subscribit: nescio quanam auctoritate nomem aliorum usurpat.
______
[p.14, cont.]
17. Non obstante responsione telegráfica A.O Acquiescat decisis, sac. Cicero Romão obstinatus
permansit, et perperam invocata necessitate et pettitione novarum investigationum, sacrilegas fictiones
sustinere ausus est; unde die 13 Aprilis 1896 suspensus fuit etiam a facultate Missam celebrandi.
Liceat haec verba novissimae relationis Episcopi transcribere: «Mais malhereusement tout fût inutile,
car ce prêtre, qui n’a pas la complète jouissance de toutes ses facultès mentales, se laisse conduire par
José Joaquim Telles de Marrocos, ancien èleve expulsè du Séminaire, homme astucieux, qui cherche
continuellement à troubler la paix et l’harmonie religieuse dans le Diocése, dejà des l’époque de mon
illustre prédecesseur ; et en outre, les negociants du village de Joaseiro, réalisant d’importants
bénéfices avec les pélegrinages que font en cette localité certaines personnes ignorantes, exploitent ce
manque de jugement et cette faiblesse du malhereux [p.15] prêtre, pour arriver à leurs fins intéréssées.
– Ces spéculateurs en sont arrivés au point de faire frapper des médailles, portant sur une face une
figure de prêtre, entourée du nome prêtre Cicero, (Padre Cicero), et sur le reves une figure de femme,
ornée de l’aureóle, avec des rayons aux mains symbolisant l’effusion des grâces, et portant sur la
circoférence le nom de « Maria de Araújo ». Malgré ma protestation, ces médailles étaient vendues au
pauvre peuple ignorante avec le consentement du prêtre Cicero, qui dit avoir des conversations avec
Nostre Seigneur. – Ainsi, voyant que le malhereux prêtre be se corrigeait point de ses excés, par
ordonnance du 13 Avril de l’année courante, je l’ai déclaré suspens de la faculter de célébrer la Sainte
Messe. Il s’est soumis a la suspense, mais il m’a adressé une lettre d’appel, déclarant qu’il en avait
appelé au Saint Pére, sur la cause de Joaseiro ; et que – Il (le Saint Pére) lui avait télégraphié pour
linformer qu’il prenait connaissance de l’appel etc... ».
18. Ex decreto autem suspensionis, haec transcribenda videtur : « Consideránt que le prêtre Cicero
Romão Baptista, principal protagoniste de cette triste histoire de Joaseiro, par la croyance et
l’importance qu’il donnait aux artifices de Marie de Araujo et de quelques autres femmes aussi
fourbes, bien qu’il nous eût déclaré, tant en particulier qu’officiellement, comme il a été publié par la
presse, se soummettre avec un entière obéissance à la susdite décision de la Suprême Congrégation de
la Sainte Inquisition Romaine Universelle, continue, au mépris de nos avis et observationes, à
inculquer à des personne simples et de bonne foi, principalmente aux habitantes de l’intérieur, dans la
diocèses environnants, la croyance aux prétendus miracles dejà mentionnès, avec cette circonstance
aggravante de solliciter et de recevoir des offrandes et des dont faits en faveur de cette croyance fausse
et condamnée ; - Considérant que ce même prêtre, par sa conduite incorrecte, et par ses perfides
conseils, détourne beaucoup de fidéles de la soumission due aux enseignements de la Sainte Eglise, el
les éloigne des Sacrements ; - [p.16]
Considérant que cette lamentable abérration du dit prêtre Cicero, ou a pour cause efficiente une
criminelle pertinacitè, incompatible avec l’esprit du prêtre catolique, ou provient encore l’état
d’hallucination que l’a amené au point de recevoir en communion des hosties habilement présentées
par certaines femmes, et à donner la Sainte Communion trois fois par jour à Marie de Araujo et à deux

285
autres femmes, donnant chaque fois trois hosties consacrées à l’une, cinqu à une autre, et sept à une
troisième, de sorte que la première recevait neuf hosties par joour, al deuxiéme quinze, la troisiéme
vingt-et-une !; - Nous, dans l’accomplissement de notre sacre devoir de mettre les fidéles engarde
contre les erreurs et les abus préjudiciables à la vraie foi, para la présent ordonnance, lançons la peine
de suspense contre le dit prêtre Cicero Romão Baptista, lui retirant le pouvoir de célébrer les très-Saint
Sacrifice de la Messe, unique faculté que nous avions laissée, lorsque, par ordonnance du 6 Aôut 1892,
nous lui avions retiré les pouvoirs de prêcher et de confesser dans notre diocèse ».
19. Libellus autem appellationis sic iacet : « Monseigneur – Le prêtre Cicero Romão Baptista déclare
que, non obstant l’appel par lui fait antérieurement au Soverain Pontife sur la cause de Joaseiro, et
bien que la Sainteté eût daigné prendre connaissance de l’appel, selon le télégramme qu’elle adressa
au suppliant – Votre Grandeur, officiellement, par ordonnance du 13 Avril dernier, lui impose de
nouvelles prohibitions, et comme le suppliant, pour de trè-justes motifs devant Dieu et devant la loi,
n’a pu absolument s’y conformer, il vient appeler de ces dites prohibitions au Souverain Pontife, et
ainsi demande à Votre Grandeur que cette même appellation soit prise comme acte d’appel, à l’effet
de produire kes conséquences juridiques en conformitè aux Saints Canonns. – Par cet acte d’appel,
l’Orateur demande et espère justice ».
20. Post heac obstinatus Sacerdos recursus iteravit via telegraphca trasmissos. Sic die 25 vel 26 Iunii
1896, auxilium invocavit Emi Card. Gotti per sequens telegramma (cum risposta pagata lib 50) : Per
Iesum, [p.17] intercede veniat commissionem expensis nostris inquirendum veritatem Joaseiro
persecutionem mille millium fidelium etiam per Deum responde. Presbyter Cicero Romanas. (sic). Et
eadem die eademque via telegrafica iisdemque, quoad substantiam, terminis, ut videtur, ad ipsam
augustam Personam SS.D.N. Leonis Papae XIII recurrere ausus est. Unde feria IV die 1 Iulii 1896
EE.VV. decreverunt: Sacerdoti Cicero Romao pro nunc nihil esse respondendum; fiat additio
distribuenda per manus uma cum praecedenti relatione, et scribatur Episcopo ut referat super
hodierno rei statu. Rogetur Rmus. P. Martinelli pro additione Rmus. Et 11 Iulii Congrg àrt. Dixit.
Rogetur pro additione Rmus P.Martinelli. Quid ad officium Delegati Apostoloci promotus relationem
conscribere non potuit; et aliunde omnino desiderabantur pleniores notitiae (quas Episcopus
Fortalexiensis sub die 16 Aug. 1896 transmisit).
21. Irrequietus tamen recurrens, die 4 Iulli 1896, aliud ad SSmun. D. N. Papam Leonem XIII misit
telegrama, scilicet: Sanctissime Pater. Per Iesum benigne respondere digneris. – Presbyter Cicero
Romanus; quod die 6 Iulii 1896 ad hanc Supreman Congreg. Transmittens, R.P.D. Pro-Secretarius
S.C. NN.EE.EE. scripisit: Avendo telegrafato di nuovo il detto sacerdote, ed anche avendo telegrafato
l’amministrazione dei telegrafi del Brasile per avere una risposta telegrafica, prego V.S.Illma. e Rma.
ad indicarmi se e che cosa si deve rispondere. Et hac re perpensa, EE.VV. fer. IV die 8 Iulii 1896
decreverunt: Respondeatur scriptum fuisse Episcopo et tradatur syngrapha pro expensis. In positione
notatur: 14 Luglio 1896. Si risponda a Mons. Cavagnis come dal decreto di feria Iv 8 Luglio e gli si
mandi la cartolina telgrafica della risposta pagata (quod ita factum est eadem die).
22. Quod autem huiusmodi iterati recursus obstinatam voluntatem sacerdotis Cicero confirment, non
declinandi videlicet a via sacrilegarum fictionum, sed potius is ea perseverandi, patet ex factis et gestis
eiusdem. Siquidem, ait Episcopus: «Le prêtre Cicero et ses partisans profitent de tous les moyens,
même des plus indignes, pour ébranter la force morale de l’autoritè diocèsaine [p. 18] et du S. Office,
dé tournant ainsi quelques personnes ignorantes de l’obéissance due à la Sainte Eglise : Il arrive à
Joaseiro identiquement ce qui est survenu à Loigny, au diocèse de Chartres en France, au sujet de la
célebre Marchat : L’amour propre blessé, et une honteuse spéculation, maintiennent encore unreste de
superstition » (Epist. 16 Aug. 1896).
23. CONCLUSIO. – Ex hucusque dictis patet : 1° Acta et gesta Marie de Araujo, et aliarum
muliercularum publice nota et habita esse tamquam meras et sacrilegas fictiones ; ideoque mulieres
illae ont perdu tout crédit, et il y a longtemps déjà qu’elles ne font plus de « miracles ». 2° Sacerdotes
illusos generatim ad rectam viam sincere rediisse. 3° Sacerdotem Antero formalem et authenticam
retractactionem haud emisisse, publice tamen va dicendo che si sottomette ala decisione di Roma.
4°Solum sacerdotem Cicero superstitiosae fictionis de Ioaseiro defensorem, et paucorum illusorum
devotionis obiectum hodie existere; ideoque merito concludere Episcopum 16 Aug. 1896:

286
ACTUELLEMENT LE PRÊTRE CICERO EST SEUL OBJET DE LA DÉVOTIONS DES
FANATIQUES qui le considerènt comme um saint. Quod si aliquos laicos complices habet, id turpis
lucri cupiditati adscribendum est.
24. Data autem obstinatione sacerdotis Cicero eiusque mentis debilitate, perdifficile erit Episcopo
cessationem scandali obtinere. Unde merito scribit, ibidem: «Cette triste histoire continuera à faire
plus on moins de bruit tant que le prêtre Cicero restera à Joaseiro. Je sais que ce prêtre s’est adressé à
Son Excellence Mgr. L’Internonce et au Saint Siège pour m’accuser et se pleindre. L’unique moyen et
le seul efficace, pour en finir absolument avec cette superstition et cette opiniatretè, serait d’appeler le
prêtre Cicero à Rome ; sa santé et ses ressources lui permettent de faire ce voyage ; mais si d’ailleurs,
il venait à alleguer le manque de de moyens, je pourrais les lui donner. Si ce prêtre répondant à l’appel
va à Rome, le S. Office verra qu’il a à traiter avec un homme que ne jouit pas de toutes ses facultés
mentales ; s’il n’obeit pas, sa rebellión et son opiniatretè dans l’erreur seron reconnues » .
[p.19]
25. Quapropter, dicendum censeo, salvo meliori : Scribatur R.P.D. Episcopo Fortalexiensis ut
sequitur: - Relatis recursibus Sacerdotis Cicero Romão Baptistae, eiusque fautorum, attentisque
omnibus rerum adjunctis, EE.PP. decreverunt : Omnino standum esse decisis in decreto feriae IV diei
4 Aprilis 1894. Episcopum bene se gessisse in executione eiusdem decreti, eiusque pastolarem zelum
contra sacrilegas fictiones et superstitiosa vanaque ostenta de quibus agitur in eodem decreto
specialem laudem mereri. Insuper Sacerdos Franciscus Ferreira Antero, si nondum punlice et in
scriptis decreto S. Officii se subjecerit, quam primum pure et simpliciter per publicam et scriptam
declarationem coram Episcopo vel eius delegato peragendam se subiiciat, sub poena suspensionis a
divinis Romano Pontifici reservatae elapsis decem diebus a cognitione istius praecepti incurrendae.
Sacerdos autem Cicero Romão Baptista intra decem dies a cognitione praesentis mandati locum de
Joaseiro et finítima relinquat , sub poena excommunicationis latae sententiae Romano Pontifici
similiter reservatae ; et si iterum ad S. Sedem recurrere velit, contra poenas sibi ab Ordinario
impositas, primum pareat decretis feriae IV 4 April 1894 et praesentis feriae..... et deinde
Romanquamprimum veniat. Denique Epsicopus iterum prudenter curet ut panni sanguine perfusi ac
hostiae aliaque ceu reliquae asservata, de quibus actum est in citato decreto feriae IV 4 Aprilis 1894
omnino auferantur et comburantur, ut in eodem decreto praescriptum fuit ; intimata si opus fuerit,
detentoribus, eorundem obiectorum privatione sacramentorum, si ea non tradiderint proprio
Ordinario sive per se sive per respectivos parochos aut confessarios. Et ad mentem : Mens est ut
Episcopues praesens decretum ex parte vel ex integro rerum adiunctis, magis in Domino expedire
iudicaverit. Et opportune referat de resultantibus.
In omnimode reverentia, et in osculo S. Purpurae.
E conv. S. Nicol. Tolent. 14 Nov. 1896
Fr. I.C. a Llevaneras O. M. Cap. Cons.
[p.20]
SUMMARIUM (1)
___

NUM. I

Relatio R.P.D. Internuntii, hodie Emi Card. Gotti, 2 Octubris 1895 (2)

Eminenza Reverendissima
Con mio foglio del 28 Maggio 1894 mi feci un dovere di accusare ricevuta del riverito officio, col
quale Vostra Eminenza Rma. si degnò di communicarmi la decisione della S.R.U. Inquisizione in
Feria 4, del 4 Aprile del 1894 relativa agli asserti prodigi di Joaseiro nella
_____
(1) Ad solutionem causae propositae per se sufficiunt notitiae quae habentur in hodierna
relatione. Utilissime tamen ad plenam rerum memoriam legi potest num I praesentis Summarii; valde

287
utiliter num. II; utiliter num III. Idque notandum censeo ut vênia sit Consultori; humílimo servo EE.
VV., si tríplex nec brevis relatio in hoc Summario habeatur.
(2) Ut in hac relatione omnia magis ad rem facientia collecta habeantur; oportuna videtur integra
transcriptio accuratissimae istius relationis, cuiús reasumptio utilíssima erit quoties de rebus de
Joaseiro agendum erit. Nam, eheu! Negotia huiuhmodi, ob pertinaciam, ignorantiam et cupiditatem
paucorum, pluries, diversis quamvis de causis, reassumi debent.
_____
[p.21]
Diocesi di Fortalezza. Promisi inoltre che avrei dato conto a suo tempo di ciò che si sarebbe fatto ed
ottenuto sull’argomento. A discarico della mia obbligazione sottometto rispetrosamente a Vostra
Eminenza Rma. il presente rapporto, ritardato fino a questo giorno dalle vicende di questa grave e
fastidiosa questione.
1. Communicazione della decisione al Vescovo di Fortalezza – Con mia lettera del 5 Giugno
1894 trasmisi a Monsig. Gioachino Giuseppe Vieira Vescovo di Fortalezza il testo della suddetta
decisione del S. Offizio in copia autentica, con alcune istruzioni per l’esecuzione dei venerati ordini
della Suprema. Gli suggerii:
1. Che traducesse in portoghese e pubblicasse integralmente la decisione sui fatti supposti miracolosi,
nonchè le savie disposizioni pratiche del S. Offizio che interessavano il pubblico, proibendo i
pellegrinaggi, i libri, gli opuscoli e gli scritti di qualsiase forma in difesa dei pretesi miracoli e delle
persone in essi implicate, vietando a sacerdoti come a laici di trattare a voce o per iscritto [sic] dei
pretesi prodigi, ed ordinando che i panni intrisi di sangue, le ostie e le altre cose conservate come
reliquie fossero ritirate dall’Ordinario ed abbruciate.
2. Suggerii al lodato Vescovo che non pubblicasse subito per le stampe le severe ma giustissime
misure decretate contro i sacerdoti. Chiamasse piuttosto a se i compromessi, intimasse a ciascuno le
decisioni ed ingiunzioni della S. Sede, esigesse sottomissione e ritrattazioni della S. Sede, applicando
le penitenze indicate. Nel caso che i sacerdoti ricusassero di sottomettersi, sarebbe da procedere ad
ulteriora, anche dando pubblicità ai decreti che li riguardano.
3. Raccomandai allo stesso Monsignor Vescovo che si astenesse di publicare per la stampa la testuale
disposizione che ordinava di chiudere in una Casa religiosa la Maria de Araujo. Mi parve necessaria
questa riserva: perchè, essendo qui decretata nella Costituzione della Repubblica la separazione della
Chiesa dallo Stato, non essendo riconosciute le sentenze dei tribunali ecclesiastici, e molto meno la
competenza di essi in atti di coazione personale esterna, si aveva [p. 22] con fondamento a temere che
l’Autorità ecclesiastica venisse a trovarsi in gravi difficoltà o molestie se la giovane Maria de Araújo,
o la sua famiglia, o altri malintenzionati; avessero reclamato contro la detta misura presso i tribunali
civili. Esortai pertanto il Vescovo a procedere cautamente e per vie persuasive. Chiamasse a se la
Maria de Araujo e la inducesse a ritirarsi in qualche Casa religiosa, informandomi qualora
sopravvenissero complicazioni, onde combinare d’accordo ciò che più convenisse nel caso. Dirò fra
poco del risultato.
2. Communicazione al Metropolitano del Nord. – Considerando poi che si andava in
pellegrinaggi a Joaseiro non solo dalla Diocesi di Fortalezza, ma eziandio da parecchie altre del Nord,
communicai integralmente la decisione del S. Offizio anche a Mons. Arcivescovo di S. Salvatore di
Bahia, Metropolitano della Provincia ecclesiastica del Nord, affinchè ne procurasse la pubblicazzione
e la facesse eseguire per quanto a lui spetasse.
3. Pubblicazione della decisione in Feria IV, 4 Aprilis 1894 – Monsig. Vescovo di Fortalezza notificò
la decisione del S. Offizio alla sua Diocesi per mezzo d’una breve lettera pastorale a stampa. La
notificarono altresi alle rispettive Diocesi, accompagnandola con opportune raccomandazioni, i
Vescovi di S. Ludovico do Maranhão, di Parahyba, e di Olinda.
Pubblicarono poi la decisione medesima i pochi i piccoli periodici cattolici qui esistenti, come: A
Verdade del Ceará, il Monitor catholico di Bahia, l’Era Nova di Pernambuco, A Estrella di Rio de
Janeiro, O Viçoso di Marianna, A Patria di S. Paolo. La decisione della Santa Sede fu accolta con
generale rispetto; ed anzi perfino qualche giornale politico, non certamente religioso, fece plauso al
sapiente giudizio di Roma che pose fine una buona volta a tutte quelle scene di Joaseiro.

288
4. Maria de Araújo. – Si potè, non senza tempo e fatica, indurla finalmente ad entrare in una Casa
religiosa in Barbalha; ma non vi perseverò. Monsignor Vescovo di Fortalezza mi riferi in data del 4
Maggio [p. 23] del corrente anno che Maria de Araujo, il 29 di Marzo, contro gli espressi ordini di lui,
se ne parti da quella Casa religiosa. Vi rimase sei mesi, duranti i quali non se volle confessare, sebbene
il Vescovo le avesse concessa la facoltà di scegliersi un confessore, naturalmente fra gli approvatti e
non sospesi. Il Reverendo Parroco di Barbalha, alla cui vigilanza era stata raccomandata la fece bensi
osservare che non poteva abbandonare quella Casa religiosa contro la volontà del Vescovo; ma essa
non fece caso di ammonizioni, usci e ritornò a Joaseiro.
Il Vescovo fa notare che «quella giovane è data a bevande alcooliche e non ostante questo vizio vuol
passare «per santa». In Joaseiro poi essa continua nella sua pervicacia, sostenuta dal noto protagonista
Sacerdote Cicero, di cui si dirà piu sotto.
5. Pellegrinaggi – Divulgatasi la sentenza di Roma i pellegrinaggi a Joaseiro, già troppo numerosi,
cessarono quasi interamenti; sebbene non manchino alcuni visitanti, o ignari della decisione della
S.Sede, o pertinaci.
6. Pannolini tinti di sangue, ostie etc. – Ordinò il S.O. che «panni sanguine, perfusi ac hostiae de
quibus actum est, omniaque alia ceu reliquiae asservata ab eodem Ordinario auferantur et
comburantur.» Prima però che fosse pubblicata la decisione del S. Offizio tutti i detti oggetti furono
fatti scomparire. Mons. Vescovo mi afferma che «furono rubati dalla chiesa matrice di Crato dal
secolare José Joaquim Telles de Marrocos, uomo astuto e terribile. » É colui che stampo in cattivi
giornali qualche articoli ingiurioso al Vescovo. Inultimente si adoperò finora il Vescovo, per se e per
mezzo d’altri, onde scoprire dove si trovino quegli oggetti; invano ricorse ad inchieste, ad esortasioni,
a minacce di pene ecclesiastiche: non riesce ad averne notizia, e ne è desolatissimo.
7. Opuscoli ed altri scritti relativi etc. – Ingiunse la Suprema che «scripta quaelibet, vel libri, aut
opuscula in defensionem illarum personarum ac illorum factorum edita vel forsan, quod absit, edenda,
pro damnatis et vetitis habeantur, et quantum fieri potest colligantur [p.24] et comburantur.» Non
saprei determinare quali e quanti dei detti scritti ed opusculi siano stati ritirati dai Vescovi e bruciati.
Ritengo che ancora ne esistano quà e colà; ma col tempo si riuscirà, forse a farli sparire.
8. Proibizione di discutere etc. – Fu inoltre ordinato dal S.O che: «Tam iisdem sacerdotibus, quam
aliis sive sacerdotibus sive laicis prohibeatur quominus de praetensis supra memoratis miraculis voce
vel scripto agant.» Non consta che dopo la decisione del S. Offizio siano comparsi opuscoli od altri
scritti indifesa dei fatti di Joaseiro. Consta invece che un secolare buom cattolico della Diocesi di S.
Paolo, di nome Stefano Leone Bourrol, convinto in buona fede ella verità dei prodigi di Joaseiro,
aveva composto un libro col titolo «Il prezioso sangue e i miracoli di Joaseiro». Già stava lo scritto
sotto i torchi, e ne erano stampate cento vinte pagine, quando venne a cognizione dell’autore la
decisione di Roma. Egli interruppe incontanente la stampa, con sua notabile perdita di denaro; ritirò il
manoscritto, distrusse i fogli già stampate e tutti le bozze, e publicò sul giornale Patria di S. Paolo una
esplicita dichiarazione in data del 7 Febbraio corrente anno, riprodotta dal Monitor Catholico di Bahia;
nella qualle notifica che interrope la stampa come sopra, e dice: «Roma locuta est, causa finita est:
ritratto ciò che feci, rittratto ciò che dissi, rittratto ciò che scrissi intorno a Joaseiro; depongo questa
mia ritrattazione ai piedi del S. Padre e del mio amatissimo Vescovo. Essi mi perdonino e benedicano
me, la mia sposa ed i miei figli.» - Bell’esempio dato da un secolare.
9. Sacerdoti – La Suprema ordinò che; «Sacerdotes omnes et singuli bene noti R.P.D. Episcopo.....
damnentur ad exercitia spiritualia.... interdicta illis quavis relatione etc. »
Mons. Vescovo di Fortalezza intimò ai suoi preti colpevolli le disposizioni del S.O.; ed in generale si
sottomisero, compiendo quanto ad essi fu imposto. Alcuni dei più compromessi si ritrattarono
pubblicamente. Eccone i nomi.
[p. 25]
1° Rev. Glicerio da Costa Lobo. Fu uno dei più caldi sostenitori e divulgatori dei pretesi miracoli. Fece
gli Esercizi sprituali del Seminario di Fortalezza, si ritrattò il 29 Gennaio del corrente 1895, e stampò
la rittrattazione nel periodico cattolico A verdade del 2 Febbraio 1895.
2° Rev. Emmannuele Rodriguez Lima parroco di Milagres in Diocesi di Fortalezza. Chiese perdono; si
rittratò pubblicamente sul periodico e numero sopra detto.

289
3° Mons. Francesco Rodriguez Monteiro. Sacerdote diocesano di Fortalezza, molto stimato, ma che
ebbe la debolezza di cadere nelle trappolerie di Joaseiro, figurandovi come attore. Si sottomise, e
pubblivò la sua ritrattazione nel foglio come sopra.
Si ritrattarono inoltre pubblicamente quattro sacerdoti della Diocesi di Olinda, già zelatori anch’essi
degli maraviglie di Joaseiro. Sono:
1° Il parroco Laurinde Giustiniano Ferreira Duettes.
2°Il Sac. Cicero Gioachino de Siqueira Torres.
3° Il parroco Emmanuele Antonio Martins de Iesus.
4° Il parroco Pietro Giacinto Ramos.
Le loro ritrattazioni comparvero sui periodici cattolici Era nova di Olinda, e Monitor Catholico di
Bahia.
10. Due sacerdoti renitenti. – Non dimostrarono eguale spirito di sottomissione due Sacerdoti di
Fortalezza compromessi più che gli altri negli imbrogli di Joaseiro.
I. Il Sacerdote Francesco Ferreira Antero.
É quel sacerdote che difese acremente gli asserti miracoli, e si recò a Roma per sostenerli. Deve essere
noto al S.O. Nel Monitor Catholico di Bahia, del Marzo 1895 si leggeva: «Il Vescovo del Ceará
(Fortalezza) sospese dagli Ordini il Sacerd. Francesco Ferreira Antero, che ricusò obbedienza al
Decreto della S.Sede che condanna i miracoli di Joaseiro».
Noto però, per imparzialità, che quel Sacerdote va dicendo che se sottomette alla decisione di Roma;
non consente però a fare una ritrattazione pubblica, perchè a ciò non si stima obbligato. Non la pensa
così il Vescovo di Fortalezza; e me ne scrisse il 4 Maggio del corrente anno inquesti termini: [p. 26]
«Passo or ad informare V.E. Revma. D’un fatto spiacevole relativo alla triste storia del Joaseiro Il.
Rev. Francesco Ferreira Antero, che avea preso una parte principalissima nella deplorabile commedia
arrivando al punto di adorarre e ricevere in commmunione particole di provenienza sconosciuta
presentategli dalla trappolatrice Maria de Araujo e da un’altra chiamata Antonia; questo Sacerdote che
prese tanto interesse inquella causa che andò a Roma nascostamente per trattare dell’approvazione di
quei tali miracoli, ricusò pertinacemente di dare pubblica testemonianza di obbedienza alla decisione
condannatoria degli stessi pretesi miracoli. Per quattro volte mi diressi a lui con offici e lettere
facendogli vedere la necessitá imprescidibile d’una dichiarazione pubblica della sua obbedienza alla
S.Sede in questo affare, atteso che pubblica e notoria du l’irregolarità del suo procedere, avendo egli
contribuito ad uno scisma in Diocesi, che felicemente non avvenne. Riusciti vani tutti i mezzi
persuasivi, mi vidi obbligato a privarlo dell’esercizio degli Ordini, considerandolo come disobbediente
all’autorità diocesana e ribelle alla S. Sede Apostolica. Non si umiliò quest’infelice Sacerdote; anzi,
dominato da orgoglio, pubblicò per le stampe uno scritto menzognero, calunnioso ed irriverente verso
il suo Diocesano. Non posso prevedere come finirà questa aberrazione; spero però che Dio farà venire
a repiscenza questo sacerdote fuorviato.»
II. Sacerdote Cicero Romão Baptista
Dalle relazioni che ricevo risulta che questo Sacerdote confessore, come è noto, della Maria de Araújo,
e protagonista nelle condannate scene di Joaseiro, è l’autore ed il mantenitore della parziale resistenza,
che ancora continua, contro la decisione della S.Sede. Egli feci una ritrattazione in data di 12 Gennaio
del corrente anno (v. Allegato N.IV. (1: Inutilis videtur transcriptio istorum allegatorum)). È però da
notare che egli scrisse a me il 27 Decembre 1894, ed anche al [p.27] S. Padre nei folgi che spedii il 25
Febbraio corr. Anno, «di non aver mai commesse profanazioni del Ssmo. Sacramento dell’Eucaristia.»
E frattanto constò recentemente, oltre gli altri fatti risultanti dal processo, che nel passato egli dava a
Maria de Araujo tre particole consacrate alla mattina, poi tre a mezzogiorno, ed infine tre nel
prmeriggio della medesima giornata, in onore, come egli diceva, della SSma. Trinità. All’atra bizzocca
Maria das Dores dava tre volte al giorno, come sopra, cinque particole in onore delle cinque piaghe di
N. Signore. Ad una terza bizzocca Maria da Soledade ne dava sette, tre volte come sompra, in onore
dei sette Dolori di Maria Ssma. Con tutto ciò non ammette d’aver commeso irriverenze verso il Ssmo
Sacramento.

290
Sembra ora accertato che, versipelle come si dimostra coi fatti, impedisce realmente che i
provvedimenti del certo fermento nel Joaseiro. Si sospetta che sia egli medesimo il favoreggiatore del
trafugamento dei panni lini, delle particole etc. Che il S.O. ordinò di ritirare ed abbruciare.
Mi attesta Mons. Vescovo di Fortalezza che lo stesso sacerdote «continua a mantenere alcune persone
ignoranti nella speranza che la decisione del S.O. sarà riformata. Non vuole alontanarsi da Joaseiro; ed
ora dice che andrà a Roma per indurre il Santo Padre a riformare la decisione; ora dice che non andrà,
ma che quei tali miracoli saranno riconosciuti dalla Santa Chiesa.»
Egli aveva ricevute cospicue simma dai pellegrini che andavano a Joaseiro ad ammirare i prodigi di
Maria de Araujo. Il Vescovo gli ordinò di restituire quelle somme agli oblatori, e non potendo
restituire ad essi, di erogarle in opere pie. Non posso sapere se abbia eseguito quest’ordine del suo
Vescovo.
11. Secolari renitenti. – Si trovano ancora in Joaseiro alcuni renitenti fra i secolari. Primieramente
certe bizzoche testerecce ed illuse, o forse anche scientemente colpevoli. Poi alcuni uomini ignoranti,
e sopratutto interessato, feriti al vivo per la cessazione del [p. 28] denaro che affluiva in gran copia a
Joaseiro per mezzo di pellegrinaggi. Dicevano con aperta compiacenza che Joaseiro sarebbe pel
Brasile ciò che Lourdes per la Francia. Non mancò di dire qualche impertinenti che la Santa Sede
approvò i miracoli di Lourdes, perchè i francesi hanno i quattrini e sanno farsela valere: non approvò
quei di Joaseiro perchè i brasiliani del Cearà sono poveri e non ebbero a Roma chi li sostenesse.
Convien notare che i Brasiliani quando fanno pellegrinaggi a Santuarii sono assai larghi di offerte in
denaro, in cera ed in altri oggetti anche d’argento e d’oro. Quindi denaro ed offerte piovevano a
Joaseiro quando vi si recavano a turme i pellegrini da varie Diocesi, entusiasmati dai racconti sulla
visible apparizione del sangue di gesù Cristo. Inoltre i pellegrini volevano recare alle case loro un
ricordo di Joaseiro come cosa sacra. Gli interessati in quelle commedie trovarono due commodi
espedienti. Primo, fecero coniare una medaglia che poteva costare un soldo, avente da un lato
l’imagine del Prete Cicero e dall’altra quella della beata Maria de Araujo. Quelle medaglie erano
comprate a furia, e miglaia, al prezzo di circa una lira e mezza per ciascuna. Secondo, presero la
misura della statura di Maria de Araujo, tagliarono fittuccie e cordoncini della lunghezza di detta
statura, che vendevano poi facendoli pagare salati. E quella buona gente di pellegrini compravano a
medida la misura della beata per portala alle loro case come reliquia, come ricordo dei miracoli di
Juazeiro e della beata!
Ora sono mancate le offerte, gli introiti delle case, degli alberghi, delle osterie; è cessato il lucroso
commercio delle medaglie e delle misure. Si comprende perciò il malcontento e l’irritazione di
parecchi.
12.Vari ricorsi di renitenti – Nell’Aprile del corrente anno venne espressamente dal Ceará a
Petroppolis il Sig. José Joaquim de Maria Lobo, abitante in Joaseiro, socio d’una conferenza di S.
Vicenzo de’Paoli, uomo che parla molto di divozione, ma ignorante, testardo ed abbastanza
impertinente. L’esortai a sottomettersi alla decisione della Santa Sede e ad essere [p.29] ossequente al
vescovo. Allora egli mi dissi: che dei miracoli di Joaseiro sono state testimoni persone innumerevoli,
rispettabili e di tutte le condizioni sociali; che la Santa Sede ha condannati quei miracoli sentendo
solamente il Vescovo, e non sentendo l’altra parte. Lo rerdaguii come era dovere di questa insolenza, e
lo rimandai insistendo sulla necessità di piena sottomissione alla Chiesa ed al Prelato diocesano. Mi
lasciò un’istanza da spedirsi al Santo Padre; ed io l’unisco alla presente relazione sotto il n. I Poscia
me ne spedi un’altra, che viene sotto il n. I (bis).
Mi giunse in seguito, ia due copie, una pel Santo Padre, iuna pel S.Officio, un altro ricorso che
spedisco sotto il n.II e II (bis). È firmatto dalla famosa Maria de Araujo col segno di croce, e da altre
quattro bizzocche. Sono precisamente le illuse o maliziose autrice delle deplorabili commedie di
Joaseiro. Il Vescovo di Fortalezza, a terminin del decreto del S. Officio, proibi al Prete Cicero Romão
Baptista di confessarle e d’avere relazioni con esse. Queste vogliono confessarsi a lui solo, non ad
altri; e nol potendo, travisano le cose al punto di scrivere che in nome del S.Offizio furono excluse
dalla fede e dalla Chiesa cattolica. Del resto continuano con pertinacia ad affermare che nel Joaseiro
si manifestò il sangue eucaristico nelle specie sacramentali, e sparlano del loro Vescovo mancando
alla verità.

291
Giunse finalmente un altro ricorso del suddetto Sig. José Joaquim de Maria Lobo, e lo spedisco sott il
n. III. Nei detti ricorsi si afferma: 1. Che Monsig. Vescovo ha interdetta la capella di Joaseiro; 2. Che
una popolazione di dodici mila anime `epriva di tutti gli atti di religione e messa fuori della Chiesa
cattolica; 3. Che manca in Joaseiro l’amministrazione dei santi Sacramenti anche agli enfermi ed ai
moribondi. Ho chieste informazioni a Monsig. Vescovo, dalle quali risulta:
1. Essere assolutamente falso che il Vescovo abbia lanciato interdetto alcuno sulla cappella di
Joaseiro. Quella Cappella è figliale della parrochia del Crato; il parroco va periodicamente in Joaseiro
e confessa chi si presenta. Qualunque altro sacerdote vi può celebrare, predicare e confessare; ad
eccezione del sopra [p. 30] nominato Sacerdote Cicero Romão Battista, sospeso perchè ribelle e
mantenitore di rebllione, fra quegli illusi ed illuse, contro la decisione della Santa Sede.
2. Quella popolazione non è di dodici mila anime, ma molto minore. È poi un’asserzione senza
construtto che sia messa fuori della Chiesa. Non è vero che non possa avere atti di religione, cerimonie
di culto; le può avere da qualsiasi altro sacerdote approvato, fuorchè dal Reverendo Cicero Romão
Battista; e gli illusi le vogliono da lui solo che è sospeso.
3. Non è vero che manchi l’amministrazione dei Santi sacramenti. Gli amministra il parroco od
altro sacerdote a chi li desidera. Ma i ricorrenti e le ricorrenti vogliono confessarsi e communicarsi
esclusivamente dal Sacerdote Cicero Romão Battista, contro il quale il Vescovo mantiene la
sospensione.
Il parroco del Crato fece l’11 Luglio del corr. Anno una breve relazione, dalla quale estraggo il
seguente racconto.
Per incarico del parroco si recò Monsig. Monteiro alla casa di un’inferma presso Joaseiro per
confessarla. Prima della Confessione l’interrogò se si sottometteva alla decisione del S.O. riprovando i
falsi miracoli di Joaseiro. L’inferma ricusò ostinaramente, ed il Sacerdote Monteiro si ritirò senza
confessarla, giudicandola non disposta. Allora fu chiamato il Sacerdote Cicero Romão Battista, il
quale confessò ed assolvette subito, biasimando poi apertamente la condotta di Monsig. Monteiro.
Travisando questo e simili fattti, affermano i ricorrenti che in Joaseiro mancano i Sacramenti anche
agli infermi.
Sembra fuori di dubbio che la parziale ribellione ed il resto di fermento esistente in Joaseiro,
come pure le lagnanze, i ricorsi con esposizioni non vere; le firme, autentiche o no, ottenute su qualche
reclamazione; tutto ciò sia opera del Rev. Cicero Romão Battista. Il Vescovo metterebbe in Joaseiro
un altro buon Sacerdote per cappellano, e tutto sarebbe finito: ma nessuno vi andrà, nè vi potrebbe
durare, finché rimane in paese il Rev. Cicero. Dall’altra parti questi non vuole allontarnarsi, ed il
Vescovo non ha modo di constringerlo a partire. [p.31]
Nel suo atto di sottomissione stampato nel foglio A verdade, che spedisco sotto il N. IV, il
sacerdote Cicero manifesta il desiderio di recarsi a Roma. Se perseverasse in questo proposito e lo
eseguisse, si potrebbe sperare qualche rimedio.
È quanto posso riferire intorno al risultato della pubblicazione della decisione in Feria IV, 4
Aprile 1894. E sempre ossequente ai comandi di Vostra Eminenza Revma. m’inchino al bacio della
Sacra Porpora e mi rassegno con venerazione ecc.
NUM. II
Distribuitur relatio mensis Februarii 1894 (1)

NUM. III
Distribuitur relatio Revmi. P. Hickey edita mense Octobriis 1893 (2).

(1) Continent epistolam Episcopi Fortalexiensis et primam relationem R.P.D.Internuntii. Valde


utiliter legi potest, nam praecipuas probationes fictionis continet.
(2) Utiliter legi potest, nam continet plenam relationem tum facti tum iuris fictionum de Joaseiro.

292
N° 6. Decreto de 1894. Congregação para a Doutrina da Fé.

Ref.: Decreta Universa S. Suprema Coñgregationis S. O.. Archivio della Congregazione per la
Dottrina Della Fede (Sant’Uffizio), Vaticano, Roma, Itália.
Anno 1894 edita

[p. 178]

Anno 1894 edita


Feria IV - Die 4 Aprilis 1894
In aedibus S. O. Habita est Congtio Emorum ac Rmorum
DD. Cardd. Inquisitorum Generalium

Secreta interfuerunt Emi. ac Rmi. DD. Parocchi, Masella, Graniello, Mertel, Verga, Mazzella,
ac [??] Inquisitor Generalis Cardinalis Seraphinus Vannutelli; qui praestiti juramentum; ac. R.P.D.
Adsessor ac R.P.D. Commissarius S.O. et Profiscalis.
Fortalexien in Brasilia – Relate ad religiosam Mariam de Araujo de qua in fer. IV 13 Julii
1892 Emi = Scribatur R.P.D Internuntio Aplico [?] Brasilien juxta minutam (quae habetur in fine
hujus registus La. A.
Feria IV Die 19 Decembry 1894
Fortalexien in Brasilia / Relaty Em.
Quoad Marim d’Araujo de qua fer IV.4.Aprilis h.a. iiy qua per telegraphum scripit [?] P. Cicero
Romão Respondendum adquiescat decisis.
Minuta di lettera approvata dagli Emi. in feria IV de Aprile 1894
Fer. IV die 4 Aprilis 1894
Emi. DD. Decereverunt: - Scribatur r.p.d. Nuntis Apostolico brasiliensi, ut sequitur:
Praetensa miracula aliaque supernaturalia quae de Maria de Araújo praedicatur vana esse et
superstitiosa ostenta, ac gravissimam detestabilenque irreverentiam et impium abusum SSmãe.
Eucharistiae continere ideoque indicio apostólico reprobari, et ab omnibus reprobandu esse et pro
reprobatis et condemnatis habenda. Ut autem hyusmodi excessibus finis imponatur et graviora simul
praecaveantur mala, quae inde oriri possent, collatis consilius eiusdem r.p.d. Nuncii Apostoloci ac
r.p.d. Episcopi Fortalexiensis curandum quam cito esse ut eadem Maria de Araujo, imposita ubique
gravi est diuturna poenitentia quamprimum in aliqua pia vel religiosa domo includatur, ibique sub
directione pii et prudentis Confessarii, qui de illius mulieris anteactis doceatur, ad beneplacitum
Ordinarii permaneat. Insuper concurssus peregrinorum, aut curiosorum visitationes et accessus ad
illam aliasque mulieres in eademcausa culpabilies ab Fortalexiensi alisque Brasiliae Ordinariis,
quantum omnino fieri poterit interdicantur. Scripta quaelibet vel libri vel opuscula in defensionem
illarum perdonarum vel illorum factorum edita vel forlan, quod absit, edenda, pro damnatis et vetitis
habeantur et quantum fieri potest colligantur et comburantur.
Sacerdotes, omnes et singuli, bene noti r.p.d. Episcopo qui adeo nefarie sanctissima
Eucharistiam tractaverunttum corundem complices damnentur ad exercitia spiritualia ad tempus eidem
Episcopo benevisum et pro gravitate aiminis graviter ab codem puniatur interdicta illis quavis
relatione etiam per epistolam cun praesata milere: interdicta quoque illis, quatenus et quandiae
benevisum ipsi Episcopo videatur qualibet direcione animarum. Tam eisdem sacerdotibus, quam aliis
sive sacerdotibus sive laicis prohibeatur quominus de praetensis supramemoratis miraculis voce vel
scripto agant.
Panni sanguine perfusi ac hostiae, de quibus actum est omniaque alia [ilegível] reliquiae
osservata ab codem Ordinario auferantur et comburantur.

293

Você também pode gostar