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X Encontro

de História
e Imagens
– X GEHIM

Imagens
Auto/Biográficas:
na História e na
Prática Artística
Anais - 2020

apoio:
X GEHIM
IMAGENS AUTO/BIOGRÁFICAS NA HISTÓRIA E NA PRÁTICA ARTÍSTICA

ANAIS

Realização
GEHIM – Grupo de Estudos de História e Imagens
NuPAA - Núcleo de Práticas Artísticas Autobiográficas

Apoio
UFG- Universidade Federal de Goiás
UEG - Universidade Estadual de Goiás
UPM - Universidade Presbiteriana Mackenzie
PPGH/UFG- Programa de Pós Graduação em História
PPGACV/UFG- Programa de Pós Graduação em Arte e Cultura Visual
PPGEAHC-PPG em Educação, Arte e História da Cultura – Mackenzie
Corpo Editorial
Heloisa Selma Fernandes Capel
Fernando Martins dos Santos
Manoela dos Anjos Afonso Rodrigues
Nayara Crístian Moraes

Capa e Diagramação
Debora Taiane Oliveira Alves

ISSN 2447-6676

Periodicidade: Anual

Idiomas: Português/ Inglês/ Francês/ Italiano/ Espanhol

Ano: 2020

Universidade Federal de Goiás


Campus II – Samambaia
Faculdade de História
Caixa Postal 131 - CEP 74001-970

Revisão de responsabilidade dos próprios autores

TEXTOS COMPLETOS
SUMÁRIO

ENREDOS HISTÓRICO-BIOGRÁFICOS
............................................................................................................................................................................06
DIÁSPORA E IDENTIDADE EM PAULO FLOR: BIOGRAFIA, HIBRIDIDIZAÇÃO E CRISE.
Elias J. B. Binja

(AUTO) BIOGRAFIAS EM AMBIENTES DE FORMAÇÃO E ATUAÇÃO


............................................................................................................................................................................21
JUSCELINO KUBITSCHEK E AKHENATON: ENTRE AS AUTO(BIOGRAFIAS) E AS IMAGENS
Pepita de Souza Afiune

ATÎAÎA: PERCEPÇÕES DO MEIO AMBIENTE ATRAVÉS DE PRÁTICAS ARTÍSTICAS AUTOBIO-


GEOGRÁFICAS
Ingrid Costa Moreira

NEM”AUTODIDATA”, NEM “INSPIRADO”: A FORMAÇÃO ARTÍSTICA DE VEIGA VALLE


Fernando Martins dos Santos

CINEMATOGRAFIAS BIOGRÁFICAS
............................................................................................................................................................................62
A VISITA (1974) E QUE NÃO DOESSE (1998): CONFRONTO E RECONCILIAÇÃO NOS DOCU-
MENTÁRIOS DE MARCEL ŁOZIŃSKI
Davi Marques Camargo de Mello

“A BIOGRAFIA DE ANDREI TARKOVSKI PRESENTE NO FILME: O ESPELHO”


Carolina da Silva Ferrarezi

DOGMA 95: CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOGRAFIA DO MOVIMENTO


Felipe Monteiro Pereira de Araújo

IMAGENS BIOGRÁFICAS INSTITUCIONAIS


.........................................................................................................................................................................115
ENTRE FATOS E IMAGENS: ENSAIO SOBRE A BIOGRAFIA INSTITUCIONAL DA UNIVERSIDA-
DE FEDERAL DE GOIÁS
Maria Imaculada Correia de Miranda
A MORTE, A MULHER E O ESTRANGEIRO: AUTO/BIOGRAFIAS ARTÍSTICAS
.........................................................................................................................................................................131
REFLEXÕES SOBRE OS AUTORRETRATOS DE HIERONYMUS BOSCH
Tiago Varges da Silva

SONORIDADES BIOMUSICAIS
.........................................................................................................................................................................144
SONORIDADES DE SI NA VOZ DE ELY CAMARGO
Nayara Crístian Moraes

“JEITO GOIANO”: ELEMENTOS AUTOBIOGRÁFICOS E IDENTITÁRIOS NA CANÇÃO POPULAR


GOIANA
Inglas Ferreira Neiva dos Santos

PERFORMANCES BIOGRÁFICAS
.........................................................................................................................................................................168
AMARILDO JACINTO: FOLIA E PAIXÃO DO GRUPO DESENCANTO
Nélia Cristina Pinheiro Finotti

BIOMEMÓRIAS ENTRE IMAGENS E MONUMENTOS


.........................................................................................................................................................................179
“A PRÓXIMA FRONTERA DOS QUADRINHOS”: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A ARGENTI-
NIDADE NA REVISTA HORA CERO SEMANAL (1957-1961)
Leonardo Pires Nascimento

HQS E ZINES BIOGRÁFICOS – OS CAMINHOS ARTÍSTICOS INTUITIVOS PARA UM AUTOCO-


NHECIMENTO (OU PARA UMA AUTOPOÉTICA)
Gazy Andraus

A REPRESENTAÇÃO BIOGRAFICA DE D. PEDRO I NO MONUMENTO LIVRO AÇO DOS HE-


RÓIS E HEROÍNAS DA PÁTRIA
Dâmata Caroline M. Gundim Alves
Eliézer Cardoso de Oliveira
CÂNONES MITOBIOGRÁFICOS
.........................................................................................................................................................................227
NARRATIVAS DA TRAGÉDIA DA PIEDADE E AS MUITAS FACES DE EUCLIDES DA CUNHA
Anna Paula Teixeira Daher

A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO SEGUNDO SIMONE DE BEAUVOIR


Rita de Cássia Caetano Teixeira

ICONOGRAFIAS (AUTO)BIOGRÁFICAS
.........................................................................................................................................................................259
COMO SE FAZ UMA GRAVURA NO SÉCULO XVI? A VIDA DE JOHANNES STRADANUS
(1523-1605)
Augusto Godinho Vespucci

MARIA LEOPOLDINA, A MÃE DO BRASIL: A REPRESENTAÇÃO BIOGRÁFICA A PARTIR DA


ESTÉTICA MONUMENTAL
Mayara Monteiro Guimarães

ENTRE O SACRO E O PROFANO: NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS NA PINTURA DE NAZA-


RENO CONFALONI (1950-1977)
Jacqueline Siqueira Vigário
ENREDOS
HISTÓRICO-BIOGRÁFICOS
DIÁSPORA E IDENTIDADE EM PAULO FLORES: BIOGRAFIA,
HIBRIDIDIZAÇÃO E CRISE.

Elias J. B. Binja1

Introdução

A história de Paulo Flores, em um simples esboço, pode ser dividida em quatro mo-
mentos distintos:

1º (1972 – 1976 - do nascimento em Luanda - Angola à migração para Lisboa - Por-


tugal) - As guerras sucessivas, antes e depois da independência, se por um lado tendiam a
inviabilizar o desenvolvimento cultural, também constrangeram as consciências e o ima-
ginário coletivo a não pensar em outra coisa, senão na sobrevivência em face da morte
iminente. Por esta razão muitas famílias angolanas abandonaram o país, em busca de
melhores condições de sobrevivência no estrangeiro. Para as famílias que permanece-
ram em Angola, no final da década de 1970, a existência ficou condicionada a solucionar
problemas imediatos às necessidades básicas. Por causa da guerra civil, logo depois da
proclamação da independência (11 de novembro de 1975), o investimento protagoniza-
do pelo Estado nesse período, teve como foco principal a compra de armamento bélico
para defesa da soberania nacional. As artes, fundamentalmente a música, mergulharam
num “estado de depressão” que parecia crônico, em que a imaginação criativa tinha um
único tema, a morte, explicitada no sofrimento desmedido, nas injustiças sociais, nos fa-

1 Professor na Fam – Centro Universitário, Fama – Faculdade de Mauá – Uniesp/AS, Flam – Faculda-
de Latino-Americana. Professor convidado da Universidade Agostinho Neto em Luanda – Angola. E-mail:
eliasbinja@hotmail.com

BINJA, Elias J. B. Diáspora e identidade em Paulo Flores: biografia, hibridização e crise, In: GRUPO DE ESTU-
DOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática Artística, 2020,
Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 7-20.
lecimentos precoces além, de, obviamente, nas famílias desencontradas. É assim que a
família de Paulo Flores encontrou refúgio em Portugal.

2º (1977 – 1988 - a formação em artes: composição, música, dança) - Paulo Flores é


filho de músico e cresceu cercado de músicos da elite cultural angolana que, por razões
da guerra civil migraram para Europa. Em Lisboa começou sua carreira artística como bai-
larino, juntamente com Tersa Mukuyo, uma cantora moçambicana que fixou residência
no Reino Unido. Com Carlitos Vieira Dias, célebre guitarrista angolanos nos anos 1970,
Paulo Flores faz as suas primeiras incursões no semba tradicional, autêntico ritmo mar-
cado por guitarra e melodias em tons menores (Jet7 – Angola, 2020). Enquanto isso, em
Angola, a década de 1980 foi marcada pelo consumo significativo de culturas estrangei-
ras através da música. O diálogo diminuto da música local com as gerações mais novas
foi significativo, pois não conseguia explicitar satisfatoriamente as aspirações, os sonhos
e as inquietações dos jovens. Os temas em foco eram os mesmos, e não podiam satisfazer
o espírito intranquilo da juventude oitentista. Foi no estrangeiro, sobretudo na música
de Cabo Verde, das Antilhas Francesas, do Brasil, do Congo Democrático, de Cuba e de
outras paradas, que os jovens encontraram alento para pensar em outras coisas além da
fome e da guerra, que matavam sem piedade. Em 1988, Paulo Flores, aos 16 anos de ida-
de, lançou seu primeiro disco começando como cantor de kizomba. No álbum que tem
como título: “Kapuete Kamundanda”, as canções trazem temas diversos como: o Amor, a
vida quotidiana dos Angolanos, a guerra civil e a corrupção, cantados em kimbundo e em
português.

3º (1989 – 1998 – a ascensão do artista) – Depois do primeiro lançamento, Paulo Flo-


res assumiu serenamente sua responsabilidade de artista angolano e não parou mais: em
1990, gravou o disco “Sassassa”; em 1991, gravou “Coração Farrapo” e “Cherry”; em 1993,
gravou “Brincadeira Tem Hora”; em 1995, gravou “Inocente”; e em 1998, gravou “Perto do
Fim” (Jet7 – Angola, 2020). Na medida em que os discos foram se sucedendo, simultanea-
mente, o seu sucesso aumentava. Entre os cantos dolorosos – tradição dos lamentos an-
golanos – alternam-se ritmos de dança que associam instrumentos acústicos e elétricos.
Paulo Flores buscou com afinco e vontade a criação de um semba que correspondesse
aos seus sentimentos e à tradição cultural angolana. No seu semba dá-se a fusão entre a

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tradição e o moderno, em um hibridismo fecundo. Mas é a dor e o sofrimento do povo an-
golano que assumem destaque em sua poesia e música. As suas composições seduzem e
emocionam os angolanos, falando com ousadia de esperança. Ao cantar a própria histó-
ria, simultaneamente canta a história coletiva, exprimindo o desejo de dias melhores na
triste existência do angolano. Os versos em português mesclam-se ao kimbundu, à gíria
luandina, e até ao inglês e o francês, aparecendo, não poucas vezes, numa justaposição
sutil, proposital e intencional, elaborada para criar o seu hibridismo linguístico.

4º (1999 – Volta definitiva para Luanda – Angola). As idas e vindas de Lisboa – Por-
tugal a Luanda - Angola, que caracterizaram o seu percurso até então, ganham uma nova
página, pois Paulo Flores fixou residência definitiva em Angola. Em Luanda, estreitou
seus vínculos e criou novas colaborações com outros músicos angolanos, nascendo um
período que representa uma viragem na sua criação musical. Neste mesmo ano gravou
“Recompasso”. Em 2003, gravou “Xê Povo” e “Quintal do Semba”, trazendo melodias,
sonoridades e palavras que refletem a grande diversidade do seu repertório poético-mu-
sical. Nestes álbuns contou com a colaboração de músicos da elite musical angolana tais
como: Ciro Bertini, Betinho Feijó, Carlos Burity, Tito Paris, Lura e Sara Tavares, entre ou-
tros. Em 2005, gravou “Vivo”, em que sublinha e reforça a sua visão da história de Angola.
Até o presente, já gravou mais de 15 álbuns, conciliando a composição, os estúdios e as
turnês por todo mundo. Atualmente produz seu trabalho em uma linguagem que se as-
senta na procura e na valorização do patrimônio cultural e musical angolano. A seu ritmo,
ao mesmo tempo em que traz a bagagem da hibridização das suas diásporas, influencia
outros gêneros musicais locais assim como as novas gerações de músicos. Muito além da
música, Paulo Flores desempenha também um papel social importante no apoio à mo-
dernização da música angolana através da colaboração com jovens músicos angolanos.
Além disso também atua no desenvolvimento de ações de solidariedade social como
Embaixador da Boa Vontade da ONU em Angola – desde 2007 – (Jet7 – Angola, 2020).

O sucesso da música estrangeira em Angola era proporcional à necessidade de


abertura para o mundo. A música, o cinema, as novelas, ou as artes em geral, produzidas
além-fronteiras, além de trazerem oxigenação cultural ao contexto local viciado e ma-
culado pela tristeza, serviram de janelas para horizontes desconhecidos, despertaram a

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imaginação criativa e trouxeram um vislumbre do que acontecia em outros continentes,
em particular nos países irmãos. O Brasil, por exemplo, ostentava uma “cultura de paz”
cobiçada pelos angolanos, que mal conheciam as tensões internas, devidamente ma-
quiadas nas novelas e nas parcas notícias que chegavam. Mas foi no seio dos contrastes
sociopolíticos e econômicos, assim como em meio ao consumo da cultura estrangeira
que foram gestados os vanguardistas da cultura angolana, dos quais destacamos Paulo
Flores.

Diáspora, Identidade e hibridismo em Paulo Flores

O contexto de sucessivos conflitos em Angola gerou fome espiritual na sociedade.


Como diriam Mariani e Vilhena (2011), a fome confunde as pessoas, provoca uma ansie-
dade que leva a querer saciá-la de qualquer maneira. A entrega desordenada a ela pode
suscitar a rejeição do alimento que nutre, para optar-se pelo que é oferecido em grande
quantidade, que promete ao corpo uma sensação de satisfação. O consumo da música
estrangeira na década de 1980, grosso modo, refletia essa entrega desordenada à fome
espiritual. O que não se levou em conta foi o deslocamento daquelas músicas de suas
condições e origem, assim como seu funcionamento na experiência. Elas construíram
muros em torno de si que, em geral, impossibilitava o povo angolano de captar a sua sig-
nificação geral (DEWEY, 2010). Assim a música estrangeira estava remetida a um campo
separado, onde era isolada da associação com as condições culturais e identitárias de sua
origem – o povo angolano mal compreendia as línguas em que eram cantadas. Foi do es-
forço de jovens vanguardistas, como Paulo Flores, que se deu a construção da música au-
tóctone, com forte influência estrangeira. A música hibrida que daí emergiu restabeleceu
a continuidade da tradição cultural local sem abrir mão das grandes novidades trazidas
do estrangeiro, da diáspora. O resultado foi o nascimento de uma música refinada que
intensificou a experiência do angolano com a própria cultura, articulando desse modo, a
própria identidade cultural e musical.

Paulo Flores está no interstício da tradição músico-cultural da sua geração, vale di-

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zer, enraizado na tradição musical do semba2, lança-se ao novo, como a kizomba3, num
diálogo fecundo e criativo do desenvolvimento cultural. Ele é a expressão significativa
da dinâmica cultural na música e na composição artística do presente tempo, sempre
aberto ao diálogo com as novas tendências. Paulo Flores vê no diálogo com o diferente a
possibilidade da articulação contínua da identidade cultural e musical angolana, levando
para o mundo os valores, as percepções da realidade e o modo de ser e estar do povo
angolano, vale dizer, o modo de autorrepresentação e representação do mundo, fruto do
complexo processo histórico desse povo e de sua diáspora. Neste sentido, o valor do hi-
bridismo aparece como elemento constituinte não só da linguagem, como também das
expressões, e, portanto da representação, o que implica na impossibilidade de se pensar
uma descrição ou discurso autêntico sobre artista e sua obra (BHABHA,1998). A aborda-
gem sobre o artista e sua representação já carrega as marcas deste hibridismo por conter
traços dos discursos, que se por um lado apontam para o jogo de diferenças, por outro
sinalizam a busca por uma autenticidade, vista como infecunda. A identidade, por sua
vez, sob a perspectiva do hibridismo, é dinâmica, inscrita em um processo que remete a
uma imagem sempre em construção.

Na diáspora, as tensões constantes e as crises contínuas, de negociação de si com o


outro diferente, deram a Paulo Flores uma percepção de si e da sua cultura, que de outra
forma não teria. E no reconhecimento da alteridade, num exercício contínuo de “fusão
de horizontes”, deu-se o diálogo que hibridizou as suas expressões culturais, acolhendo
o diferente em si. Mantém vivo, dessa forma, um senso forte da sua terra de origem, pre-
servando uma identidade cultural viva de Angola. A despeito da sua condição diaspórica,
inserido no complexo universo de culturas distintas, as suas identificações associativas
com a sua cultura de origem permanecem fortes, gerando, desse modo, novas identifica-
ções culturais por meio da sua música àqueles que estão na terra natal. Neste sentido, a
força do seu elo umbilical está também refletida em outros artistas angolanos, alguns até

2 Gênero musical e de dança tradicional de Angola, mais popular entre no povo akua kimbundo, tor-
nou-se muito popular nos anos de 1950. A palavra semba significa “umbigada” em kimbundo. Em tradução
livre, significa “o corpo do homem que entra em contato com o corpo da mulher pela barriga”. Umbigada,
por aqui, é uma dança afro-brasileira praticada nos quilombos.

3 Gênero musical e estilo de dança originário de Angola, nascidos da mistura de diferentes estilos an-
golanos com o zouk. Por essa razão é geralmente confundido com o zouk por ter o ritmo muito semelhante.

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já aposentados: Elias Diakimueso, Nike, Kamosso, Bangão, Kalabeto, entre outros.

Na situação diaspórica de Paulo Flores, a identidade se torna múltipla. Junto com


os elos que o liga a Angola, sua terra natal, há outras forças atuantes: a necessidade de
não perder e manter em si a angolanidade na diáspora. Essa afirmação de si o possibilitou
identificar-se com outros angolanos na diáspora, ao mesmo tempo em que se distingue
de outros diaspóricos de outras origens. A interação cultural com os outros de outras
origens, mas na mesma situação de diáspora, foi sempre fecunda. Em algum momento,
Flores, viu a necessidade de voltar e fixar residência em Luanda, o que ocorreu em 1999.
Daí em diante passou a nutrir seus vínculos identitários com a diáspora portuguesa, num
vai e vem constante: ora em Angola, ora em Portugal e daí para o mundo todo. Entretan-
to, não podemos cair na tentação de pensar que o regresso a Angola significou o retorno
à origem, a cena primária da sua autenticidade, visto que o país que encontrou não é o
mesmo que deixara. Vale dizer, seria bom se pudéssemos retornar a uma unidade pas-
sada, visto que só podemos conhecer o passado, a memória, o inconsciente através de
seus efeitos, quando trazido para dentro da linguagem (HALL, 2013). Neste caso, através
do semba, da kizomba e outros ritmos locais, deu início à nova viagem sem destino ou
rumo certo. Independemente da impossibilidade do retorno a “origem primária”, a volta
exerceu um efeito significativo na vida artística de Paulo Flores. Abriu-lhe o caminho da
circulação de volta à restauração de seu momento originário, à cura de toda ruptura e a
reparação de cada fenda na sua identidade gerada na diáspora, o que vai transparecer
nas suas expressões artísticas.

Possuir uma identidade cultural, neste sentido, é estar primordialmente vinculado e


em contato com o seu núcleo imutável e atemporal. Simultaneamente liga-se o passado
ao futuro e ao presente, mantido no fio condutor de sua história. O fio condutor é a tradi-
ção, que testa constantemente a fidelidade às origens, por meio da consciência de si na
autenticidade do vocabulário valorativo das expressões. Em Paulo Flores, a fidelidade às
origens é latente, sua autenticidade se renova em cada trabalho discográfico e nas apre-
sentações em público: sua arte não nega sua pessoa, ao mesmo tempo em que o pano de
fundo cultural o vincula às origens do semba. A autenticação vem dos mais velhos que o
reconhecem e o aprovam.

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Segundo Hall (2013), a distinção da nossa cultura é manifestamente o resultado do
maior entrelaçamento e fusão, na fornalha da sociedade colonial, de diferentes elemen-
tos culturais do continente e outros quadrantes, tal fato deve-se ao caráter dinâmico das
identidades. É na medida em que nos dispusemos a articular a nossa identidade que ba-
lançamos as teias de relações culturais, em busca de novas identificações, pela abertura,
pelo reconhecimento e aceitação do outro diferente. Angola viveu e vive intensamente
o fato. Nos anos de 1980, quando a música estrangeira ganhou protagonismo jamais vis-
to, os Kassav, por exemplo, pareciam provincianos de Luanda. O sucesso do estrangeiro
parecia ameaçar soterrar o nacional, o local, na impossibilidade de novas manifestações
criativas, que atendessem os anseios do povo ávido pelo novo. A saturação emocional,
gerada pela tensão da guerra civil, criou um ambiente cujos desdobramentos exigiam
“escoadouros catárticos”, que a música local não dava conta, resultando na hibridização.
O resultado híbrido não mais pode ser facilmente desagregado em seus elementos de
origem, considerando o assento e o lugar que passou a ocupar na cultura musical ango-
lana. O hibridismo, a impureza, a mistura, a transformação, que vêm de novas e inusitadas
combinações musicais, culturas, ideais, políticas, cinematográficas, cancioneiras, são ele-
mentos da novidade, que entra na cosmicidade do angolano (HALL, 2013).

A relação entre as culturas: angolana, portuguesa, cabo-verdiana, caribenha, entre


outras, na música de Paulo Flores, em sua diáspora, não pode ser adequadamente com-
preendida em termos de origem e cópia, de fonte primária e reflexo pálido, mas unica-
mente a partir da relação entre as suas diásporas: a portuguesa que lhe fornece o material
e as condições necessárias para a autorrealização identitária, e a angolana, que além de
fornecer o pano de fundo cultural, as raízes identitárias, é, ao mesmo tempo, a que con-
cede o conteúdo formal da sua música. Desta feita, Angola é, por assim dizer, uma nova
diáspora para Paulo Flores, que embora seja a referência de sua nacionalidade autentica-
da em si, deixa-o perceber-se aquém e além da simples angolanidade. As fronteiras cultu-
rais rígidas limitadas pela simples angolanidade não o contém, Paulo Flores transcende,
transborda, e se inscreve numa busca ávida por algo mais, para além daqueles limites. En-
tão, a cultura, como em Bhabha (1998), é considerada dentro dos limites do hibridismo; é
dinâmica, é transnacional e tradutória, cria novos significados para a identidade e para as

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identificações artístico-musicais. Desta feita, o que está em jogo é a questão da sobrevi-
vência cultural, face aos deslocamentos de sua base originária, diante dos encontros com
outras culturas. Por isso mesmo, o hibridismo em Paulo Flores dá ênfase ao fato de que
a cultura angolana é uma construção fecunda e que a tradição é uma invenção sempre
aberta, que se recria em contato com novo e diferente.

É verdade que “em qualquer caso, as culturas sempre se recusaram a ser perfeita-
mente encurraladas dentro de fronteiras nacionais. Elas transgridem os limites políticos”
(HALL, 2013, p.39), e tratando-se da música, é bem mais do que se pode imaginar. O su-
cesso da música estrangeira constitui a prova, mas daí não resulta que a proposta musi-
cal de Paulo Flores tenha sido acolhida como estrangeira. Muito pelo contrário, desde o
início, a acolhida é calorosa e o sucesso é imediato, como se fosse plenamente autóctone.
Mesmo sabendo que ela vem embalada de Portugal, de início, ela traz as marcas tangíveis
e indeléveis de ser-se angolana. Então é importante ver a perspectiva diaspórica da mú-
sica de Paulo Flores como subversiva dos modelos tradicionais orientados, desde então,
pelos “mais velhos”. E independemente das configurações culturais do semba, da música
tradicional angolana, Paulo Flores imprime a ela uma nova dinâmica que a desterritoriali-
za em seus efeitos, destinando-a a outros ouvintes para além de Angola. Mas é claro que
as culturas têm seus locais de referências, embora nem sempre seja tão fácil identificá-los,
fundamentalmente na música. Entretanto, a genialidade e o cuidado primoroso de Paulo
Flores subvertem essa lógica quando ele é visto a partir das impressões palpáveis dos
traços da cultura angolana nas suas composições. Os resultados do seu labor artístico,
acolhido com entusiasmo em Angola, sinalizam a identificação real da sua identidade
musical com a identidade cultural do povo angolano.

A música de Paulo Flores nasce na diáspora, estrutura-se como diaspórica, e mesmo


que seja atualmente autóctone, conserva, de certa forma, o caráter diaspórico, incorpo-
rando uma variedade de outros estilos que dialogam com a música angolana. A geração
contemporânea de Paulo Flores produziu uma música, no final dos anos de 1980, que car-
rega não poucos cruzamentos culturais (zouk, funana, kuassa-kuassa, reggae, pop, soul
entre outras), criando versões híbridas e próprias. Deste modo, arregimentaram a força
necessária para articular e reconfigurar a cultura musical angolana; criaram novos fato-

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res hermenêuticos para interpretá-la; e trouxeram novos elementos que incorporaram à
identidade cultural do povo angolano.

Durante muito tempo a África forneceu recursos de sobrevivência de histórias al-


ternativas àquelas impostas pelo domínio colonial, bem como as matérias-primas para
retrabalhá-las em formas e padrões culturais novos. Hoje os processos de globalização
tendem no sentido oposto, e nessa perspectiva, as sobrevivências em suas formas origi-
nais são maciçamente sobrepujadas pelo processo de tradução cultural (HALL, 2013) e
pela ocidentalização das culturas não ocidentais. As resistências, ainda que exíguas, a jul-
gar pela fragilidade dos sistemas sociais e políticos, manifestam-se com certa tenacidade
nas artes. A música, em particular, acolhe o diferente, processa, reinterpreta e o devolve
ao público na forma híbrida, adaptando-o ao contexto local. É assim que Paulo Flores, na
vanguarda da cultura musical angolana, escapa às determinações das imitações simples.
Na verdade, cada movimento social e desenvolvimento criativo na arte musical angolana
em Paulo Flores, nas últimas três décadas, começou com esse momento de tradução do
reencontro com as tradições africanas e depois com tradições além-fronteiras, incluin-
do-as na dinâmica de recriação da cultura musical. As lutas por redescobrir as novas ro-
tas da musicalidade angolana no interior das complexas configurações da cultura e se
comunicar com o público através desse prisma, das rupturas e recriações, produziram a
revolução cultural com a bem-sucedida carreira do músico angolano. Daí endossarmos o
pensamento de Hall (2013): a diferença cultural de um tipo rígido, etnicizado e inegociá-
vel foi submetido à miscigenação, à hibridização.

Além do mais, o que há de tão especial, para nós angolanos, na música de Paulo
Flores? A resposta para essa questão, antes de mais nada, está na própria arte que mostra
o ordinário de forma extraordinária, dando cada vez novos significados ao mundano (OC-
VIRK [et al], 2014). O cotidiano, o costumeiro, até o vulgar, tematizados na poesia cantada
de Flores transcendem o ordinário, convidando o ouvinte a mergulhar no impensado.
O óbvio ganha novos contornos e bordas sugerindo significados que trazem o fundo
da cultura e da tradição na superfície, nas expressões. As tristezas gestadas no bojo das
guerras, indizíveis pelas feridas e mágoas causadas, se por um lado tornam-se convites a
repensar a insensatez dessa brutalidade, por outro tornam-se rizíveis, enquanto se dança

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as próprias “Malambas” do povo. Deste modo, Paulo Flores dá novos sentidos e significa-
dos, trazendo outra vitalidade ao cotidiano, transportando-nos para além do corriqueiro.
Com sua música, passa a comunicar emoções complexas, conforta a alma cansada da dor
persistente, instiga o pensamento e as atitudes em face dos fatos adversos. Com uma
linguagem acessível, possibilita a explicitação mais genuína da sensibilidade angolana ao
mesmo tempo em que expressa ideias que de outra forma não seriam possíveis.

Para além da própria arte, a composição músico-artística de Paulo Flores está ins-
crita na “Tradição Oral”. Segundo Duarte (2009), nas sociedades organizadas a partir do
tronco Bantu, as narrativas orais configuram os pilares em que se apoiam os valores e
as crenças transmitidas pela tradição e, simultaneamente, previnem as inversões éticas
e o desrespeito ao legado ancestral da cultura. Segue-se à tradição, a performance que
acompanha as narrativas, que assume a responsabilidade pela atualização constante dos
ensinamentos, tornando-se exercício vivo e interativo entre os membros da sociedade. A
tradição oral é visual, mímico, imaginativo e encantatório; vale dizer, o texto oral transmi-
te o legado mais legítimo das culturas locais através dos exemplos que visam à solidifica-
ção dos laços entre os membros do grupo, além de garantir o discernimento do lugar de
pertença do indivíduo, sua filiação identitária, permitindo-lhe uma visão de si mesmo e
do outro com um mínimo de conflitos. Esses traços e características são reunidos, de cer-
ta forma, nos versos cantados, nas coreografias, nas apresentações públicas e em outros
elementos ao longo da trajetória artística de Paulo Flores.

Se a tradição oral é fonte preciosa, que oferece dados de um registro de memória,


aqui ela se inscreve nos versos que lembram os velhos ditados, cantados nas línguas na-
cionais, transgredindo a língua de Camões. Livre das peias do código da língua oficial,
o kimbundo, o umbundo, o kikongo, os jargões de outros tantos dialetos, desfilam com
leveza, às vezes até parecendo como ato-falho proposital, nas canções rigorosamente
compostas. É o desfile de uma história não oficial na tematização das nossas “makas”, o
lamento de nossas “malambas” da corrupção, a indigestão da guerra feroz que mata sem
piedade... Nada impede a narração dessa história não permitida. A inércia do espírito co-
lonial persiste gerações depois da independência, tentando sufocar o espírito crítico, a
transgressão e a subversão que são inevitáveis na história dispersa no conjunto de cada

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álbum. É assim que, como o texto oral afigura-se como um relicário em que umas das
mais genuínas expressões do povo encontram guarida, o nosso artista transfere e inscre-
ve esse valor na música.

Em Paulo Flores, o ritual que acompanha as suas narrativas cantadas possibilita a re-
edição do mundo ideal das ações justas e dos heróis da tradição musical: Dionísio Rocha,
Manuel Rui Monteiro, André e Rui Mingas, Teta Lando, Teta Lagrimas, os irmãos Kafala,
Bonga, entre outros tantos, que não se analisam pela ótica ocidental. A ótica ocidental
tende a sujeitar a música angolana a um crivo que, quando não nega contrapõe os valo-
res ancestrais a uma nova escala incompatível com os códigos familiares enraizados na
cultura local e sacralizados pela tradição. A ritualização do ato de cantar, a reverência que
Paulo Flores tem pela palavra, o gestual, a interação com o seu público, geram cumpli-
cidade e permitem falar da diferença, reconstruir o velho, pela memória. Desse modo é
possível o recepcionar o novo pela fantasia, pela esperança, pela sacralização, pois é do
sagrado cultural que a sua palavra extrai o poder criador e operacional. As tradições afri-
canas têm uma relação direta com a manutenção da harmonia tanto no homem como no
mundo que o envolve, razão pela qual a maioria das sociedades orais tradicionais, como
a angolana, considera a mentira como uma verdadeira chaga moral (DUARTE, 2009). Cre-
mos que é dessa preocupação que nasce em Flores a necessidade e a busca constante
pela autenticidade. Porque nas tradições africanas, aquele que falta à sua palavra, mata
a sua pessoa civil. Mais do que isso, “desliga-se de si mesmo e da sociedade” (DUARTE,
2009, p.187). Vale dizer que é contra a morte identitária, gerada no bojo do processo de
ocidentalização, que Flores luta. Assim Flores se expressa diante da reverência votada à
palavra cantada, que não admira mais o desconforto do africano no mundo ocidental,
inundado da verborragia inócua que sustenta e contém a massa insatisfeita, anestesiada
com promessas utópicas, vinculadas unicamente no arregimentar de todas as formas de
poder, enquanto se pasteurizam as massas na identidade cultural global.

Considerações Finais

A globalização do mundo, além de criar maior aproximação entre povos e culturas,

17
criou também novas possibilidades de coexistência e relações intersubjetivas. O amálga-
ma identitário e cultural daí resultante, se por um lado reforça a urgência de narrativas
que apontam para a afirmação do sujeito angolano pós-independência, por outro per-
mite um processo de emancipação, possibilitando a construção de novas identidades e
identificações culturais. Ao mesmo tempo, (esse amálgama identitário e cultural) redun-
da no processo de mobilização e resistência que visa salvaguardar os valores originários
que definem a identidade cultural pelo cultivo da arte. Paulo Flores, através da música,
tem dado significativas contribuições na preservação de rituais e expressão culturais. Ain-
da assim, há nele o reconhecimento de que a cultura angolana não se pretende única, co-
locando-a entre outras, na sua diferença, em um diálogo franco e aberto. Foi na diáspora
portuguesa que Paulo Flores descobriu a riqueza e as possibilidades que a hibridização
musical oferece.

Como nos referimos anteriormente, Paulo Flores está no interstício da tradição mú-
sico-cultural da sua geração, enraizado na cultura tradicional da música angolana, onde o
semba aproxima-se ao zouk, resultando no melhor kizomba. Desde o início de sua carrei-
ra artística, percebe as inquietações e as variáveis com as quais a sua geração se debatia,
propõe um diálogo entre a tradição musical angolana e os novos estilos trazidos pela
música estrangeira. O resultado deu em uma música hibrida que restabeleceu a continui-
dade da tradição cultural sem abrir mão das grandes novidades trazidas do estrangeiro. A
música de Paulo Flores é, neste sentido, inovadora, refinada e intensifica a experiência do
angolano com a própria cultura, possibilitando a articulação da identidade cultural e mu-
sical. A troca que estabelece com outras culturas musicais propicia a construção de uma
nova narrativa poética da história do povo angolano, narrativa essa suscitada por sua
experiência diaspórica. A poética do “exílio”, da saudade da terra, inspirada nas viagens
de idas e vindas, e na história de outros refugiados e migrantes oriundos de outras ex-co-
lônias, o definem, assim como redefinem o estilo musical angolano. A música angolana
ganha, desse modo, nova matizes sem necessariamente abdicar de suas raízes.

A identidade assumida e reiterada na música de Paulo Flores vincula-o ao seu nú-


cleo imutável e atemporal da cultura angolana. Entretanto, essa identidade liga o passa-
do ao futuro e mantém no presente o fio condutor de sua história musical. A tradição an-

18
golana é esse fio condutor que constrói a sua carreira artística, que o possibilita articular
diálogos com outras tradições musicais distintas. No diálogo, a sua fidelidade às origens é
testada constantemente, mas é a consciência de si autônoma que o possibilita expressar
através da música a autenticidade do seu vocabulário valorativo angolano. Entretanto,
Paulo Flores é genial, criativo, cuidadoso e primoroso e ao subverter a “lógica” da cultura
estática, a partir das impressões palpáveis dos traços da cultura angolana, incrementa
novos elementos de outras culturas nas suas composições. O resultado é acolhido com
entusiasmo pelo seu povo, sinalizando uma identificação real da sua identidade musical
com a identidade cultural angolana.

A arma poderosa de seus feitos é a “Tradição Oral”, instrumentalizada para “invocar”


o espírito ancestral no imaginário coletivo. A poesia cantada, como nas narrativas orais,
passa a configurar os pilares em que Paulo Flores apoia os valores e as crenças transmiti-
das pela tradição. Paulo Flores em sua performance explicitada através da coreografia nas
danças, segue a tradição, à medida em que atualiza a sua geração com os ensinamentos
no significado de suas mensagens, tornando o exercício de cantar tão vivo quanto intera-
tivo com os seus ouvintes.

Paulo Flores não só reivindica o resgate de suas raízes específicas e suas tradições,
como também, pela defesa dos valores artísticos africanos, tenta e constrói uma nova tra-
dição poético-musical, que certamente lhe permiti escapar da corrosão e destruição dos
mitos de seu povo, da rotulação de que a cultura africana é exótica. Então, é diante desta
reverência votada à palavra cantada que, como africano no mundo ocidentalizado, dribla
os desconfortos das crises diaspóricas. Através da afirmação da identidade, Paulo Flores
consegue afirmar a sua diferença, garantindo à sua geração a preservação de valores tra-
dicionais tão longamente negados, ora pela colonização, ora pela guerra civil e cultural.
Apesar das grandes contradições sociais e políticas na sociedade angolana, enfrentando
dificuldades educativas de toda ordem, na música e na dança o povo angolano se encon-
tra e espanta seus males.

19
REFERÊNCIAS

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Tradução de Miriam Ávila, Eliana L. L.Reis e Gláu-
cia R. Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

DEWEY, John. Arte como Experiência. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Ed. Martins
Fontes, 2010.

DUARTE, Zuleide. A Tradição Oral na África. Estudos de Sociologia. Rev. do Progr. de


Pós-Graduação em Sociologia da UFPE. v. 15. nº 2, p. 181 – 189, 2009.

HALL, Stuart. Diáspora: identidades e mediações culturais. 2ª ed. Tradução de Adelai-


ne La Guardia Resende... [at al.].Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2013.

Jet7 – Angola. Paulo Flores. Disponível em: https://www.jet7angola.com/biografia-do-


-musico-angolano-paulo-flores. Acesso em 22/06/2020.

MARIANI, Ceci B. e VILHENA, Maria A. (org.). Teologia e Arte: expressões de transcen-


dência, caminho de renovação. São Paulo: Ed. Paulus, 2011.

OCVIRK, Otto G. (at al.). Fundamentos de Arte: teoria e prática. 12ª ed. Tradução de
Alexandre Salvaterra. Porto Alegre: Ed. AMGH, 2014.

20
(AUTO) BIOGRAFIAS EM
AMBIENTES DE FORMAÇÃO E
ATUAÇÃO
JUSCELINO KUBITSCHEK E AKHENATON:
ENTRE AS AUTO(BIOGRAFIAS) E AS IMAGENS

Pepita de Souza Afiune1

Introdução

Juscelino Kubitschek foi um homem a quem foi atribuído uma mística muito gran-
de. A sua particular religiosidade que podemos perceber em várias fontes, como seus
discursos, suas biografias e autobiografias, suscitou interpretações místicas por parte de
comunidades esotéricas e/ou espiritualistas, como a Eubiose e a pesquisadora Iara Kern.
São essas duas fontes que utilizarei como análises imagéticas, procurando compreender
de que forma as biografias do ex-presidente carregam informações a respeito das liga-
ções entre JK e o Egito Antigo, que puderam suscitar diversas interpretações de cunho
místico.

As crenças de que Brasília é a Nova Akhetaton e que JK é a reencarnação do faraó


Akhenaton estão evidentes no discurso de muitos grupos espiritualistas / místicos e isso
me leva a diversos questionamentos: até em que medida JK teria se apropriado do imagi-
nário místico que envolvia a construção de Brasília para reforçar sua agenda política? Até
que ponto JK atraiu os variados grupos místicos e espiritualistas?

A própria Brasília foi alimentada por muita religiosidade nos momentos de sua co-

1Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás. Bol-


sista CAPES/FAPEG. pepita_af@hotmail.com

AFIUNE, Pepita de Souza. Juscelino Kubitschek e Akhenaton: entre as auto(biografias) e as imagens, In:
GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática
Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 22-35.
solidação. Juscelino Kubitschek (2000) em sua autobiografia2 relata que desde os primei-
ros momentos da construção de Brasília até a sua inauguração, todos empenhavam-se
“trabalhando arduamente”, por espírito de cooperação, assim como o ex-presidente nar-
ra: “Era a ‘mística de Brasília’, que atuava no espírito daqueles milhares de pioneiros” (p.
365). Podemos perceber no relato de JK o caráter místico atribuído à construção de Brasí-
lia, reforçando que essa aura influenciava os trabalhadores, atribuindo ao seu papel uma
espécie de missão divina.

A partir da década de 80, dentro do contexto da Nova História Cultural e o retor-


no da narrativa, que passou a admitir novas fontes de pesquisa, a biografia começou a
receber uma importância dentro da historiografia. Em 1989 Jacques Le Goff, um dos fer-
renhos críticos da biografia, parece ter se rendido ao gênero, afirmando que ela poderia
ser muito importante para a análise de estruturas sociais, coletivas, e que seria o ápice do
trabalho do historiador.

O uso da biografia é importante para se compreender o contexto histórico-social


no qual o indivíduo estava inserido. Apesar das críticas estruturalistas, como é o caso de
Pierre Bourdieu, que dizia que o gênero biográfico é repleto de imprecisões, a utilização
da biografia como fonte histórica tem o objetivo de mostrar que o indivíduo é um agente
histórico transformador de sua realidade. No caso das biografias de Juscelino Kubitschek,
a tese de doutorado de Maria Leandra Bizello (2008, p. 18) nos alerta que, em geral, elas
são superlativas, e que contribuíram para a propagação da imagem otimista e glamouri-
zada do ex-presidente. Isso se deve ao fato de que entre as suas fontes estão os meios de
comunicação em massa, em especial, o Cruzeiro e a Manchete, as fotografias, e os filmes
que também se valeram da preocupação em construir uma imagem pública positiva de
JK3.

2 O Senado Federal publicou o livro Porque construí Brasília (2000) no aniversário de 40 anos da
cidade, que se constitui em uma autobiografia do ex-presidente JK.

3 Recomendo a leitura da tese de doutorado de Maria Leandra Bizello (2008) intitulada Entre
fotografias e fotogramas: a construção da imagem pública de Juscelino Kubitschek (1956-1961) que se
debruçou sobre várias fontes históricas, como documentos, fotografias, jornais e documentários, para
compreender de que forma ocorreu a construção da imagem pública de JK no período de seu mandato.
As imagens da construção de Brasília também contribuíram para a legitimação de sua autoridade, como
um novo presidente, visionário e moderno.

23
A mística nos espectros de JK

Não é a primeira vez que JK é relacionado a alguma personalidade mítica. A disser-


tação de Andreia Jordânia M. Soares (2011) intitulada Juscelino Kubitschek e Salomão: A
força de uma ideologia que procura fazer uma comparação entre ambas personalidades
e os seus empreendimentos. De forma similar, ambos teriam, na hipótese da autora, obti-
do reconhecimento internacionalmente por suas políticas construtoras, riqueza, sabedo-
ria, dedicação, e ao mesmo tempo, os seus bastidores, opressão e dominação de milhares
de trabalhadores que serviram em seus empreendimentos. A autora defende que:

Tanto Juscelino quanto Salomão entraram para os compêndios da História ofi-


cial como figuras célebres, grandes personalidades dotadas de um espírito empreen-
dedor. Porém, a ideologia propagada por Juscelino e Salomão mascarou e silenciou
todo um sistema de opressão, miséria e segregação social (p. 63).

Assim, a autora traz um crítico debate do que foi oculto pela história oficial de Brasí-
lia, que enfatiza a monumentalidade e a opulência da nova capital brasileira, escondendo
a situação de pobreza e segregação social sofrido pelos candangos. Não entrarei nesse
pormenor, pois o objetivo em citar esta pesquisa é a sua relação entre ambas personali-
dades, o que aloca JK mais uma vez ao campo místico.

A autora compara os desejos de JK e de Salomão em relação às suas formas de go-


vernar, influenciados por grandes reis do Oriente. Salomão organizou seu governo sob os
moldes da burocracia egípcia, dividindo o território em 12 distritos, cada qual com seu
administrador. A construção do templo teria influências sírias e palestinas. Assim também
foi JK quando visitou o Egito e ficou fascinado por sua cultura e pela história do faraó
Akhenaton.

Andreia Soares (2011) não defende a tese de JK é o novo Salomão4, na verdade,

4 O maçom João Baptista Bellavinha (2006) realizou um estudo procurando estabelecer relações
entre o planejamento de Brasília com o Templo de Salomão. Sua tese é a de que Brasília foi inspirada na Bí-
blia e na Maçonaria. Tudo começa pela determinação de três personagens responsáveis pelas construções
de ambos os empreendimentos. O principal destes três personagens, que no Templo de Jerusalém, era o
rei Salomão, este que forneceu todo o material necessário para a construção e acompanhou todo o traba-
lho. O segundo personagem, um artífice, conhecedor da arquitetura e da ciência, Hiram Abiff. O terceiro

24
a pesquisadora procurou estabelecer um crítico debate entre a monarquia dadívica e a
política de JK, encontrando elementos em comum nas suas formas de lidar com grandes
empreendimentos. O que eu achei interessante é que JK suscitou esse tipo de compara-
ção a personagens míticas, que tem sido algo que tenho encontrado com muita frequ-
ência. JK é comumente comparado a diversos líderes políticos, e até mesmo religiosos,
como é o caso do faraó Akhenaton.

Aspectos místicos contornam JK5 desde o seu nascimento. O biógrafo Couto narra
uma versão sobre o fato: No dia 12 de setembro de 1902, no Vale do Jequitinhonha, João
César de Oliveira gritava para todos que o encontravam “Nasceu Juscelino Kubitschek de
Oliveira, futuro presidente do Brasil!”. Outra versão narra que João César de Oliveira teria
enviado um bilhete a um comprador de pedras com quem iria se encontrar, dizendo que

personagem foi aquele que planejou e colocou o projeto inicialmente no papel, o Rei Hiram. Aqui Bellavi-
nha (2006) relaciona JK com o rei Salomão, o Oscar Niemeyer com o Hiram Abiff e Lúcio Costa, com o Rei
Hiram. Ele coloca algumas passagens bíblicas sobre orientações que Deus teria fornecido quanto às cons-
truções dos templos destinados a seu culto, sendo o primeiro deles, o tabernáculo, missão esta, destinada a
Moisés. O Templo de Salomão veio substituir o tabernáculo trezentos anos depois, e para ele, as ordens de
Deus determinavam a construção de duas colunas de bronze para ficarem em frente ao templo “destacan-
do-se de todas as demais obras existentes pela grandiosidade e adornos luxuosos” (p. 44). Aqui uma clara
referência aos dois prédios do Congresso Nacional. Depois da destruição do Templo de Salomão, o Templo
de Zorobabel foi construído, sendo o segundo templo. O Templo de Herodes foi o terceiro, mais luxuoso
que o de Salomão, construído pelo rei Herodes I para agradar os judeus, mas também foi destruído em 70
a.C. pelos próprios romanos. O terceiro templo, era a própria cidade de Jerusalém, o Templo de Jesus Cristo,
que foi incendiado pelos romanos.

5 Couto (2011) narra o crescimento de JK como um período conturbado, pelo fato de a família ter
perdido o pai. JK crescia engajado nos estudos sob a educação rígida e preocupada de sua mãe, Júlia Ku-
bitschek, que teria feito muitos sacrifícios para cuidar de seus filhos devido aos problemas financeiros. Aos
dez anos de idade encantou-se com todo o caminho percorrido pelo prefeito Cosme do Couto, assistindo
às solenidades, e disse a sua mãe que um dia seria prefeito. Com quinze anos completou o seminário e
surgiu um novo sonho, ser médico. Conseguiu fazer aulas de francês e inglês. Aos 19 anos, depois de tanto
procurar emprego, se empenhou nos estudos e passou em um concurso para telegrafista em Belo Hori-
zonte. Dois anos depois ingressou na Faculdade de Medicina. Mas a sua dura rotina de trabalho e estudos
rendeu-lhe problemas de saúde, precisando se licenciar do trabalho, obtendo ajuda de seu tio paterno e
padrinho, Zino, para permanecer na faculdade. Quando se formou, começou a atuar na Medicina e docên-
cia no ensino superior. Conseguiu uma bolsa na Escola de Medicina de Paris, aperfeiçoando-se em sua pro-
fissão e conhecendo o exterior. Quando retorna, casa-se com Sarah Luísa Gomes Lemos. Em 1932 adentra
em sua carreira política, quando foi nomeado capitão-médico da Força Pública de Minas Gerais, trabalho
no qual se destacou e se aproximou de personalidades políticas. Foi nomeado Secretário da Interventoria
de Minas Gerais. Em 1934 foi eleito deputado federal pelo Partido Progressista de Minas Gerais. Em 1940 foi
nomeado prefeito de Belo Horizonte pelo interventor Benedito Valadares. Em 1951 chegou ao governo de
Minas Gerais, conquistando a confiança de Vargas e de vários brasileiros. Em 1954 se candidata à presidên-
cia da República pelo PSD e PTB. Em 1955 vence a eleição com 36% do total de votos.

25
não poderia ir porque a sua esposa teria dado à luz ao futuro presidente da República
(COUTO, 2011, p. 35). Esse fato foi abordado até pela minissérie JK da TV Globo (2006)6.

A biografia de autoria de Alexandre Nonato (2010) merece destaque no quesito


místico. Foi baseada em uma extensa pesquisa ao longo de seis anos entre biografias,
cartas, entrevistas, bibliografias e diversas fontes, procurando deixar de lado as caracte-
rísticas descritivas das biografias, inserindo suas próprias análises psicológicas e espiritu-
ais. Nonato analisa aspectos físicos e extrafísicos de JK, realizando uma projeção astral, a
partir da qual, ele acredita ter identificado que JK permanece, em espírito, intercedendo
por Brasília. Chico Xavier teria incorporado uma personalidade política brasileira impor-
tante, que não é mencionada, e teria orientado JK como ele deveria proceder.

JK e Akhenaton

Outra representação mística de JK, uma das mais popularizadas atualmente, é aque-
la que faz uma relação entre o ex-presidente e o faraó Akhenaton, assim como podemos
encontrar na poesia de Nicolas Behr:

jotakamon, último faraó, inaugura o deserto


junto à tumba foram encontrados
uma máquina de escrever discursos
um fusca em miniatura
duas dentaduras
cinco pares de sapatos
ó grande faraó jotakamon
teus hieróglifos são siglas
tuas siglas, nossos enigmas
nossos enigmas para sempre soterrados
(BEHR, 2010a, p. 61).

Com um tom cômico, Nicolas Behr relaciona JK a um faraó, e que sua tumba seria

6 Recomendo a leitura do artigo Acontecimentos históricos x conflitos amorosos: o caso da minis-


série JK de autoria das pesquisadoras Paula R. Puhl, Cristina E. da Silva e Valesca S. da Fonseca (2010) que
analisa as representações do período histórico retratado na minissérie e a sua relação com a inclusão de
conflitos amorosos na trama.

26
um museu com máquinas de escrever discursos, fuscas em miniatura, dentaduras e pares
de sapatos. Essa representação se deve à popularização das pesquisas dos egiptólogos
Iara Kern e Ernani Pimentel que desenvolveram uma teoria cujo teor é mais encarado
como místico do que científico, auferindo importância dentro dos meios ufológicos e
esotéricos.

Um exemplo disso foi uma palestra que ocorreu no Departamento da Eubiose de


Brasília, da qual participei como ouvinte, na data de 26 de janeiro de 2019, com o tema
“Fundação de Brasília e a Conexão JK-Kunaton” pelo eubiota Eduardo Nunes de Carvalho.
O cartaz da palestra apresenta um rosto formado por metade do rosto de JK, e metade do
rosto de Akhenaton (Figura 1):

Figura 1 – Cartaz de uma palestra ocorrida na Eubiose

Fonte: eubiose.org.br

Outro eubiota, Miguel Henrique Borges (2002) publicou a obra intitulada JK JK! A
conexão esotérica, que traz informações sobre as conexões que JK possuía com a Eubiose.
O autor descreve que JK visitou o templo da Eubiose de São Lourenço (MG) e que possuía
íntimas relações com esta instituição. A obra traz fotografias dessas visitas de JK que ocor-

27
reram durante a década de 70 (Figura 2):
Figura 2 - JK no Templo da Eubiose de São Lourenço (1972)

Fonte: Borges (2002, p. 74).

O livro, de acordo palavras do então Diretor da SBE Elielson Vianna Gomes:

[...] apresenta a trama que envolveu o Presidente Juscelino como própria de um gênio
transcendente, o que se justifica pelas grandes realizações de seu governo, sobretudo
a inauguração de Brasília, construída num período de quatro anos. Como pôde fazê-la,
sendo o País tido como pobre, sem verbas especiais e no regime democrático? Daí a
inclinação de Juscelino Kubitschek para a espiritualidade e sua ligação com ordens
esotéricas, em nível discreto [...] Interpretações de muitos atos do Governo Juscelino
são colocadas de maneira diferente pelo Autor [...] descartando o estigma de mero
capricho ou interesse menor, costumeiramente lançado sobre grandes decisões dos
governantes (BORGES, 2002, p.05).

Percebi a importância desta obra como uma fonte que traz informações não ofe-
recidas pelos aparatos estatais de Brasília a respeito do nosso ex-presidente. É uma obra
rara, escrita por um eubiota que obteve todo o apoio da Sociedade Brasileira de Eubiose
para a sua realização, pois para tal tarefa, concedeu-lhe acesso aos seus arquivos, como
fotos e depoimentos dos fundadores da SBE.

Dentre estes depoimentos, estava o de Hélio Jefferson de Souza, filho do fundador


da SBE, que relatou a respeito da estadia de JK em São Lourenço e a sua participação em
alguns ritos no Templo em São Lourenço (sede da Eubiose) no ano de 1972:

28
[...] E lá no Templo ele contou que tempos atrás estava em Paris e uma astróloga fran-
cesa lhe disse que a letra K dominava o mundo. (Papai inclusive escreveu sobre isso: os
três KKK, Kennedy, Kubitschek e Kruschev. JK era o ponto de equilíbrio entre Kennedy
e Kruschev). JK se referia ao assunto momentos antes, dizendo que, uns anos depois, o
presidente dos EUA estava morto, o premier soviético desterrado7 e ele mesmo criva-
do de problemas. (SOUZA apud BORGES, 2002, p. 20).

Essa questão dos três “K”s é popularmente conhecida entre os eubiotas, e alguns
deles me disseram que existem alinhamentos políticos que não existem por acaso. Nesse
caso, JK estaria alinhado espiritualmente com ambos líderes políticos dos Estados Unidos
e da União Soviética no período, que estariam nestas posições para realizarem ações im-
portantes afinadas entre os três países. Lembrando que historicamente estes dois líderes
estavam em posição antagônica entre si, frente a uma iminente guerra, e JK seria um
ponto de equilíbrio necessário. Mas o que havia em comum entre eles é que “tinham em
suas mãos, quase que o destino da humanidade” (ibidem, p. 23).

Sobre a palestra na Eubiose - O palestrante relatou sobre episódios sobrenaturais


que teriam ocorrido na vida de JK como um fato que ele chama de “whisky on the rock”.
Em um dia de festa, entre os construtores da capital, na qual JK estava presente, não havia
gelo para a bebida. Entre o incômodo que isso provocou entre as pessoas, todos percebe-
ram, de repente, que começou a chover granizo, e com este gelo, garantiram as bebidas
refrescantes. Procurando por registros desta história, encontramos o seguinte relato do
próprio JK em uma de suas autobiografias:

Mais ou menos à meia-noite, os pioneiros, exaustos, resolveram tomar um uísque, an-


tes de se recolherem para um descanso de umas poucas horas. Mas não havia gelo
para refrescar a bebida, ainda morna da longa exposição ao sol do Planalto. Mal en-

7 JK se referia à queda de Nikita Khrushchev em 1964 e a sua consequente expulsão política da URSS.
Então podemos perceber que os anos de 1963 a 1964 foram complicados para os três líderes políticos, já
que Kennedy foi assassinado em 1963 e JK teve seus direitos políticos cassados através do Golpe de 64
e se exilou em Paris, Lisboa e Nova York, retornando em 1967, sendo aqui vigiado e proibido de atuar na
política. “Angustiado pela mordaça que o obrigava a se calar, Juscelino Kubitschek, agora apenas um velho
fazendeiro, morre a 22 de agosto de 1976 em um acidente automobilístico na Via Dutra, próximo à cidade
de Rezende, no Rio de Janeiro. O acidente nunca foi bem aceito pela opinião pública que até hoje levanta
a suspeita de uma possível sabotagem, já que semanas antes do acidente, havia se espalhado pela mídia
um boato sobre a morte de JK em condições semelhantes ao que aconteceu a seguir” (CÂMARA DOS DE-
PUTADOS, 2006).

29
cheram os copos, o céu enfarruscou e uma violenta tempestade de granizo desabou
sobre o acampamento. “Milagre!”“Milagre!” — gritavam os construtores, recolhendo as
pedras de gelo, maiores do que uma bola de gude, caídas das nuvens. E o uísque, ge-
lado com granizo, correu de mão em mão, festejando, com alvoroço, aquele primeiro
dia de trabalho (JK, 2000, p. 58 – 59).

JK não deixou claro a sua impressão sobre o ocorrido, dizendo apenas que os ho-
mens gritavam que aquilo era um milagre. A partir de elementos como este, muitos espi-
ritualistas e esotéricos buscam imputar misticismos em diversos momentos da sua bio-
grafia.

O fascínio pelo Oriente, mais especificamente pelo Antigo Egito, ficou mais eviden-
te na região na década de oitenta quando a egiptóloga Iara Kern publicou a obra intitu-
lada De Akhenaton a JK: das Pirâmides a Brasília (1984)8. A partir de sua leitura do sonho
considerado profético do sacerdote italiano Dom Bosco, Iara Kern desenvolveu uma pes-
quisa relacionando a cidade de Brasília com a cidade de Akhetaton no Egito, na qual, ela
também defende que Juscelino Kubistchek seria uma reencarnação do faraó Akhenaton.
Iara Kern afirmava que sua pesquisa tinha um caráter místico, e passou a receber convites
de vários grupos esotéricos para ministrar palestras.

Desde os 12 anos de idade Iara Kern era apaixonada pelo Egito Antigo, e pertencia a
uma família protestante, o que a levou a entrar em choque entre os seus preceitos e cren-
ças. Iara fez a sua graduação em História na Universidade de Santa Maria e o Mestrado em
Arqueologia no Queen’s (EUA). No período do seu Mestrado, Iara assistiu a um discurso de
um dos diretores da Nasa que acreditava que o Planalto Central brasileiro era o local mais
seguro do mundo para a transição de Eras, pois a região foi mar há mais de 450 milhões
de anos e nela a civilização teria se principiado (LUZ, 1986, p. 36).

Dioclécio Luz (1986, p. 35) conta que Iara Kern realizou o seu Doutorado em Egip-
tologia na Universidade do Cairo, tendo começado em 1973, ano em que a pesquisadora

8 “Referência obrigatória em qualquer citação ao aspecto místico da cidade, a primeira edição (de
2.000 exemplares) esgotou-se em 40 dias e a segunda (de 5.000 exemplares), ampliada substancialmente,
foi lançada em meados de 1985. O livro já foi traduzido em seis idiomas [...]” (LUZ, 1986, p. 36).

30
esteve com os Cóptas9 participando de seus rituais. Em um deles, Iara foi informada pelo
sacerdote que uma vida passada, teria feito parte da Sexta Dinastia egípcia, tema do qual
ela trabalhava em sua tese e que não era conhecimento da comunidade. Iara conheceu a
sua múmia e de sua família, que estavam no Museu de Sakara, no Cairo, eram uma família
real. Descobriu que teve 11 reencarnações no Egito.

Kern defende que Brasília teria sido construída inspirada na cidade antiga egípcia
Akhetaton e todas as suas edificações da arquitetura monumental seriam inspiradas pe-
las suas edificações. “Assim como no Egito Antigo emergiam monumentos em homena-
gem aos seus fundadores, em Brasília temos uma Ermida em homenagem a D. Bosco”
(KERN, 1984, p. 21).

Kern também analisa vários edifícios de Brasília, como o Congresso Nacional, a Ca-
tedral Metropolitana, o Teatro Nacional, a obra “Meteoro” de Bruno Giorgi no Palácio do
Itamaraty, o Cemitério de Brasília, o edifício da Igreja Católica de Santa Cruz, o edifício do
Conselho Nacional de Pesquisas (CNPQ), o Memorial JK, dentre outros.

A relação que a obra sustenta entre o faraó Akhenaton e o presidente JK é embasa-


da em muitos dos discursos do presidente, que por sua vez, demonstrava conhecimento
e admiração pela antiguidade egípcia. Kern cita trechos da obra Meu caminho para Bra-
sília (1974) de autoria do presidente, para defender que ele perpetrava algumas relações
entre Brasília e o Egito, bem como a sua inspiração no faraó Akhenaton:

Hoje, tanto tempo decorrido, pergunto-me, às vezes, se essa admiração por Akhena-
ton, surgida na mocidade, não constituiu a chama, distante e de certo modo românti-
ca, que acendeu e alimentou meu ideal, realizado na maturidade, de construir, no Pla-
nalto Central, Brasília – a nova Capital do Brasil (KUBITSCHEK apud KERN, 1984, p. 60).

Segundo Kern, JK também mencionou Akhenaton em outros trechos: “Como Akna-


ton escreveu o Hino ao Sol, na inauguração de sua cidade planejada, hoje em pleno sécu-
lo XX tudo se repete, pois é o mesmo sol que nos ilumina” (KUBITSCHEK apud KERN, 1984, p. 67).

9 Merece mais explicação. Um trabalho sobre eles?

31
Kern cita uma série de discursos do presidente em outras de suas obras, para insistir
que ele teria uma espécie de relação muito forte com o antigo faraó. Ou seria uma espé-
cie de reencarnação? Não que ela deixe isso claro em sua tese, mas pela obra apresentar
um cunho esotérico não é de se estranhar as várias interpretações que isso engendrou
nos pesquisadores que procuram compreendê-la. Para concluir a sua teoria, Kern defen-
de que a forma do Plano Piloto se assemelha ao formato da ave Íbis.

Aproveitamos a fala de Iara Kern para investigar nas autobiografias de JK as suas


relações com o Egito Antigo, para procurar entender que JK procurou imprimir em suas
autobiografias um discurso místico relacionado ao Egito. Então Iara Kern se apropriou
destes discursos para mistificar a própria figura de JK. O livro de Iara Kern traz obras do
artista plástico Byron de Quevedo, a coleção intitulada Brasília Mística, composta por dez
telas que foram expostas entre os dias 16 e 22 de novembro do ano de 1984 em uma ex-
posição no Banco Central. A obra de destaque é a Figura 3.

Figura 3 – Brasília Mística

Fonte: Kern (1984, p. 15)

Em sua autobiografia Meu caminho para Brasília (1974) JK relata a sua viagem ao

32
Egito, demonstrando um deslumbramento perante a sua antiga cultura:

A visão do Egito constituiu, para mim, um espetáculo inesquecível. Ali estavam os tú-
mulos dos faraós, as lendárias pirâmides, os santuários Karnak e Luxor, o misterioso
deserto e o velho Nilo, correndo grave e solene através de um universo de areia. Tudo
me parecia fantasmagórico, olhando aquela paisagem áspera, amarela de pó, tive a
impressão de que desfilavam diante dos meus olhos – numa compreensível reversão
histórica – as figuras de César, Marco Antônio, Cleópatra, seguidos, a distância, pelos
chefes das diferentes dinastias, com sua indumentária característica e seus milhares de
servidores. Recordei a beleza, aureolada pelo infortúnio, da Rainha Nefertiti e o visio-
narismo do seu marido Amenófis IV ou Akhenaton – o “Faraó herege”. Apesar da minha
formação religiosa, não escapei do fascínio daquela estranha personalidade, misto de
sonho e audácia, cuja obra de reformador constituiu, durante algum tempo, uma das
preocupações do meu espírito (KUBITSCHEK, 1974, p. 110 – 111).

JK diz que as obras de Akhenaton foram durante algum tempo, preocupação de seu
espírito. Podemos analisar mais adiante no seu depoimento, que ele descreve todo o tra-
balho do faraó e ressalta sobre a mudança da capital do Egito, demonstrando claramente
a sua dedicação ao estudo deste faraó, o que pode ter lhe influenciado em seus feitos no
Brasil.

O Faraó tinha, então, apenas dezenove anos de idade. E, apesar da sua juventude, com-
preendeu que sua revolução religiosa só teria êxito se procedesse, igualmente, a uma
mudança de sede da monarquia, de forma a subtraí-la à tutela milenar dos sacerdotes
dos antigos ídolos, especialmente dos de Amon. Surgiu, assim, a ideia de mudança da
capital do Egito. Ao invés de Tebas – a monarquia iria funcionar em Ekhenaton, a “Cida-
de do Horizonte de Aton”. O plano de transferência, apesar de tão recuado no tempo
– quase quatro mil anos atrás – foi levado a efeito com uma técnica e um planejamento
dignos do século XX. Arquitetos foram contratados. Artífices vieram de todas as partes
do Império. Engenheiros, astrônomos, técnicos em hidráulica, britadores, escultores,
pedreiros especializados foram mobilizados. O local escolhido foi Tell El-Amarna, um
vale situado entre o Nilo e as encostas rochosas do deserto. [...] (KUBITSCHEK, 1974, p. 111)

Analisando esse relato sem se considerar o local o qual JK se refere, essa história
contada pelo ex-presidente muito nos remete à mudança da capital para Brasília. Outra
parte que vale a pena citar é quando JK conta a respeito de seu encontro com a princesa
Marina da Grécia, duquesa de Kent. Quando a princesa conheceu Brasília, por volta de
1958, ainda apenas um canteiro de obras, ela teria dito para o ex-presidente: “O senhor
constrói, Presidente, como os faraós do Antigo Egito o faziam”. (p. 113). E JK ter-lhe-ia

33
respondido: “Quando à monumentalidade, é possível que sim, Alteza, mas quanto aos
objetivos, seguimos caminhos diametralmente opostos. Os faraós construíram para os
mortos, e eu construo para as gerações do futuro” (KUBITSCHEK, 1974, p. 113).

Apesar de todas as comprovações contrárias a partir dos esboços e discursos dos


idealizadores Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, Kern resguarda a ideia de que toda essa es-
tética da cidade não teria sido feita de forma intencional. A autora defende que isso teria
acontecido de forma natural, sem que os próprios arquitetos desconfiassem. Mas o im-
portante para essa pesquisa, é que essas representações ganharam uma popularidade
muito grande além dos circuitos esotéricos.

Considerações Finais

Diante de tais circunstâncias em que viu sua imagem relacionada a misticismos de


toda ordem, é possível que JK tenha passado a valer-se de tais volições a fim de garantir
controle político de seus projetos, desde os primeiros momentos da concretização daqui-
lo que parecia impossível, uma cidade moderna em meio à vastidão do cerrado, até os
anos após a sua presidência, quando sofreu perseguição política por parte dos militares.
É nesse aporte espiritual que ele se apoiava.

Isso não significa que estou julgando que isso se tratava de pura estratégia política,
pois JK era um homem religioso e não é possível saber a respeito de suas crenças íntimas.
Entretanto, após a sua morte, essas representações místicas fortaleceram-se e dissemina-
ram-se de forma pluralizante e é essa questão que me interessa enquanto pesquisadora,
entender de que forma essas representações surgiram e encontraram força para perma-
necer até a atualidade.

34
REFERÊNCIAS

BIZELLO, Maria Leandra. Entre fotografias e fotogramas: a construção da imagem pú-


blica de Juscelino Kubitschek (1956 – 1961). Tese (Doutorado em Multimeios) - Universi-
dade Estadual de Campinas, Campinas-SP, 2008.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. JK: cassação, o exílio e a morte. Brasília: Rádio Câmara, 2006.
Disponível em: https://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/CAMA-
RA-E-HISTORIA/337708-JK:-A-CASSA%C3%87%C3%83O,-O-EX%C3%8DLIO-E-A-MOR-
TE-(09'-51%22).html. Acesso em 29 de abril de 2019.

FONSECA, Valesca Soares da; PUHL, Paula Regina; SILVA, Cristina Ennes da. Aconteci-
mentos históricos x conflitos amorosos: o caso da minissérie JK. ALCEU. v. 11, n.21.
Departamento de Comunicação Social da PUC RIO. jul/dez 2010, p. 90 - 103. Disponível
em: http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/Alceu21_7.pdf. Acesso em 21 de março de
2019.

LUZ, Dioclécio. Roteiro Mágico de Brasília. Ilustração de Antônio José. Brasília: CODE-
PLAN, 1986.

SOARES, Andreia Jordana M. Juscelino Kubitschek e Salomão: a força de uma ideolo-


gia. Dissertação (Mestrado em Teologia) - Faculdade EST, São Leopoldo, 2011.

Fontes

BEHR, Nicolas. Brasilíada. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2010.

BELLAVINHA, João Baptista. JK – Maçonaria – Bíblia – Brasília, tudo a ver. 1ª ed. Con-
selheiro Lafaiete-MG: Grande BH, 2006.

BORGES, Miguel Henrique. JK JK! A conexão esotérica. Rio de Janeiro: Aquarius, 2002.

COUTO, Ronaldo Costa. Juscelino Kubitschek. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições
Câmara; Senado Federal, Edições Técnicas, 2011. [Série obras em parceria, n. 2].

KERN, Iara. De Aknaton a JK: das Pirâmides a Brasília. 2ª ed. Brasília: Ed. Gráfica Ipiranga
Ltda., 1984.

KUBITSCHEK, Juscelino. Meu caminho para Brasília. Vol 1. Rio de Janeiro: Bloch, 1974.

KUBITSCHEK, Juscelino. Por que construí Brasília. Brasília: Senado Federal, Conselho
Editorial, 2000. [Coleção Brasil 500 anos].

NONATO, Alexandre. JK e os bastidores da construção de Brasília. 1ª ed. Foz do Igua-


çu, PR: Editares, 2010.

35
ATÎAÎA: PERCEPÇÕES DO MEIO AMBIENTE ATRAVÉS DE PRÁTICAS
ARTÍSTICAS AUTOBIOGEOGRÁFICAS

Ingrid Costa Moreira1

Introdução

Este artigo é fruto de minha pesquisa de mestrado intitulada Atîaîa: Percepções do


Meio Ambiente através de Práticas Artísticas Autobiogeográficas, que está vinculada à
Linha de Pesquisa (B) Poéticas Artísticas e Processos de Criação, do Programa de Pós-
-Graduação em Arte e Cultura Visual (PPGACV) da Faculdade de Artes Visuais (FAV) da
Universidade Federal de Goiás (UFG). A Linha B do PPGACV prevê pesquisas de cunho
teórico-prático do fazer artístico e seus processos de criação, considerando articulações
entre teorias, narrativas e linguagens na produção de poéticas artísticas.

O objetivo geral da minha investigação é compreender, por meio da proposição


de uma série de ações artísticas, como as nossas relações com a natureza foi moldado ao
longo do tempo, seja por nossas experiências individuais e coletivas, ou por práticas e
pensamentos impostos que colocam a natureza fora da humanidade. A consciência des-
sas imposições, que moldam a forma como nos relacionamos com a natureza, nos ajuda
a entender como essas relações influenciam políticas que impactam o meio ambiente e,
consequentemente, nossa existência.

As ideias que colocam o ser humano e a natureza como elementos separados e não

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais


daUniversidade Federal de Goiás FAV/UFG. E-mail: sp.ingrid33@gmail.com.

MOREIRA, Ingrid Costa. Atîaîa: percepções do meio ambiente através de práticas artísticas autobiogeográfi-
cas, In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na
Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 36-49.
interligados (KRENAK, 2019), ainda persistem e fazem com que a humanidade continue a
legitimar grandes corporações que super exploram e destroem a natureza e os recursos
ao seu redor. As mesmas que seguem construções de conhecimentos moldadas pela in-
fluência da colonialidade, que ainda afeta políticas e conhecimentos referentes às narra-
tivas sobre a natureza (QUIJANO, 2005).

Nesta investigação, estudo as estratégias dos movimentos ambientais e ecofemi-


nistas como o Bem Viver (originalmente andino), Chipko (Índia) e o Movimento das Mu-
lheres Camponesas (Brasil) para criar uma metodologia baseada na prática artística desti-
nada a reunir histórias de vida de um grupo de mulheres residentes no bairro Itatiaia, em
Goiânia. Meu interesse é observar, nas narrativas, as percepções que essas mulheres têm
do ambiente e das transformações desse lugar onde vivem há mais de dez anos.

Parto de experiências autobiográficas vividas em dois lugares: na fazenda do meu


avô, primeiro lugar de lembrança do contato com a natureza e, depois, na minha morada
ao longo de quatro anos no bairro Itatiaia e proximidades. A abordagem autobiográfica
situada, ou seja, a autobiogeografia (RODRIGUES, 2017) como ponto de partida me esti-
mula a refletir sobre como essas narrativas de si atreladas ao lugar são importantes para
as construções das práticas e das imagens dessa investigação. Práticas que envolvem
questões ecológicas interligadas às narrativas de vida de outras mulheres que também
compartilham dessas experiências.

A produção artística prevista nesta pesquisa em arte consiste na realização de uma


série de práticas colaborativas com a participação de cinco mulheres residentes no bairro
Itatiaia, em Goiânia, juntamente com a produção de uma publicação de artista que irá
conter fragmentos das percepções ambientais e de vida que o grupo irá compartilhar.
Essas práticas serão organizadas por meio de encontros que irão mediar as ações e toda
a criação artística prevista nessa pesquisa.

Na próxima parte deste texto, apresento a narrativa autobiográfica que direcionou


esta pesquisa e os seus acionamentos. Depois, discorro sobre os movimentos ecofeminis-
tas que serviram de inspiração para planejar minha prática artística e seus desdobramen-

37
tos. Por fim, escrevo sobre os resultados futuros que espero obter com essa prática, posto
que a pesquisa de campo está temporiamente suspensa devido à Covid-19.

Reabertura da porteira esquecida

Minha história de admiração e interesse pelo que chamo de meio ambiente se inicia
na minha infância, num lugar por vezes esquecido, mas que é guardado com afeto em mi-
nhas reminiscências. Esse lugar, que não sei ao certo se possui um nome, tem localização
em Bela Vista de Goiás, município do interior do estado de Goiás, de propriedade do meu
tio João e outros tios, e que mais tarde se tornou também do meu Avô Osmar (Figura 1).
Lugar de paz e tranquilidade ao qual sempre volto ao recontar a trajetória desta pesquisa.

Figura 1. No centro estão eu e minha mãe ao lado do meu avô Osmar e, do lado direito da foto, está meu
tio João, primeiro fundador do local. Fonte: Acervo pessoal.

O lugar que chamo de fazenda começa a ser presente em minha vida desde o nas-
cimento. Era o lugar escolhido por meus pais para encontrar a família e tirar um descanso
dos dias na cidade. Nesse ambiente retornam as memórias de infância, dos dias de brin-
cadeiras e tranquilidade em meio à imensidão verde. A vontade de voltar a esse lugar
após um longo período sem visita-lo aumenta.

38
Ao adentrar na fazenda, após um período extenso de terra de chão, deparamo-nos
com uma vasta área de gramíneas, diversas árvores e terra. A primeira parada é na casa do
meu tio João, casa simples rodeada de árvores, com celeiro e pomar com jabuticaba, li-
mão, mexerica, banana e muitas outras frutas que não serão lembradas nesse relato. Des-
cendo a estrada da casa avistamos a represa, onde retornam as lembranças dos dias que
passei descansando sob sua bancada ou brincando com meu irmão e meus primos de
pegar girino, achando inocentemente que girino era peixe. Após a represa fazemos uma
caminhada e chegamos à segunda parada, a casa do meu avô Osmar, outra casa simples
rodeada de árvores. Casa rústica, com móveis e janelas de madeira, cheio panelas pen-
duradas acima da pia ao lado da garrafa de café e um vaso de erva-cidreira num canto.

Durante o dia brincava, corria e via os bichos enquanto meus familiares faziam pa-
monha. Já à noite a escuridão e o silêncio irrompiam e nesses momentos os tios acen-
diam a fogueira para contar histórias de terror para todos. Há apenas uma memória triste,
do dia em que meus primos ficaram na fazenda e meus pais não me deixaram ir, meu
irmão voltou contando várias aventuras, algumas inventadas e outras reais como o furún-
culo que ganhou de presente no joelho quando foi pegar mel no mato.

A presença do meu avô, hoje com 75 anos, fez com que eu voltasse repetidamente
a esse lugar para visitá-lo. Anos depois, ele sofreu um acidente na estrada, fraturou uma
perna e ficou impossibilitado de voltar ao seu lar. Nos dias que se seguiram, na casa da
minha tia, ficava angustiado e falava somente em voltar para sua fazendinha. No entanto,
com a piora da sua perna essa volta não aconteceu. Os exames que tinham que ser feitos
mensalmente fizeram com que meu avô voltasse a morar na cidade, fazendo com que eu
não mais voltasse a esse lugar.

Com frequência, a saudade da fazenda aparecia. As férias escolares já não eram as


mesmas, porém o tempo passou depressa até que enfim chegou o tempo de construir a
minha trajetória. Quando entrei no mestrado não sei claramente o porquê tive a vontade
de fazer um projeto de pesquisa relacionado à arte e ao meio ambiente. Notei que mi-
nhas narrativas autobiográficas, que pareciam estar esquecidas, não só retornaram como
sempre estiveram presentes, influenciando minhas escolhas. Por meio delas, tive a cons-

39
ciência de que os interesses por temas relacionados ao meio ambiente ao longo da mi-
nha trajetória pessoal e profissional talvez estejam ligados a essa experiência da infância.

A temática do meio ambiente e natureza me interessou em diversos trabalhos pro-


fissionais que realizei antes de ingressar no mestrado. Interesses que tiveram início em
2015, quando ingresso no curso Design Gráfico da FAV-UFG e que se mantiveram logo
depois, no meu primeiro estágio na Secretaria de Comunicação da UFG (SECOM). Na SE-
COM, comecei a fazer trabalhos ligados às áreas ambiental e ecológica, os quais me ren-
deram projetos visuais férteis desenvolvidos para os cursos de Biologia e Ecologia, bem
como para algumas matérias do Jornal da UFG (Figura 2).

Figura 2. Ingrid Costa. Ilustração publicada na capa do jornal da UFG, 2017. Fonte: Acervo pessoal.

Após esse período, sob a inscrição de número 219, ingressei no mestrado em Arte
e Cultura Visual, onde tento interligar os temas Arte e Meio Ambiente numa investigação
desenvolvida na Linha de Pesquisa (B) Poéticas Artísticas e Processos de Criação. Essa
pesquisa tem o objetivo de investigar percepções sobre o meio ambiente por meio de
uma prática artística colaborativa criada para acessar histórias de vida de cinco mulheres
moradoras do bairro Itatiaia, em Goiânia.

40
O bairro Itatiaia entrou em minha vida em 2015, no início da graduação, mas foi só
no final de 2016, quando me mudei de fato para o bairro, é que ele se tornou um lugar
presente em minha vida. Após quatro anos como residente, vejo o bairro como um lugar
especial, carregado de momentos e lembranças. Tais lembranças perpassam lugares e
esquinas, ruas e praças que estarão por muito tempo em minha memória. São ruas cheias
de árvores e verde, casas familiares enormes que parecem ter anos de existência e que
contemplo com admiração, tentando imaginar e inventar suas histórias.

No bairro Itatiaia existe uma área de preservação que fica na sua parte central. É
uma área de praça que corta todo o bairro, composta por passarelas que são rodeadas de
árvores que foram plantadas pela prefeitura e pelos moradores, uma iniciativa que acre-
dito fazer diferença para os seus residentes. Ao investigar mais sobre a origem do bair-
ro e de seu nome, percebi que o significado de ‘Itatiaia’ está ligado ao Pico das Agulhas
Negras, situado no Parque Nacional de Itatiaia2, no Rio de Janeiro, uma das unidades de
conservação ambiental do Brasil. Essas unidades são administradas pelo Instituto Chico
Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) que presta atividades de preserva-
ção, pesquisas científicas, educação ambiental e turismo ecológico. Nesta pesquisa, um
de meus objetivos é provocar uma reflexão sobre os significados do lugar e do nome
Itatiaia, pois esse é um nome derivado da língua Tupi-Guarani e significa “Pedra Pontuda”
(itá significa “pedra” e atîaîa quer dizer “pontudo”), originalmente se referindo ao Pico das
Agulhas Negras, no Rio de Janeiro. O nome do bairro carrega esse traço da cultura indí-
gena, porém deslocado, parece ter sido usado sem levar seu sentido em consideração.
Itatiaia é um nome que revela o afeto e a profunda relação dos povos indígenas com o
seu lugar de origem. Um afeto que os leva a atribuir nomes próprios aos elementos da na-
tureza como forma de agradecimento, nomes que têm seus sentidos e práticas apagados
nos processos de nomeação que se dão assim, de forma deslocada.

Essa referência indígena se conecta a essa pesquisa profundamente, pois é nela


que me baseio para pensar em alternativas de consciência ambiental. Chego, então, aos
movimentos das comunidades que fazem parte de espaços não mercantilizados, menos

2 Parque Nacional do Itatiaia: https://www.icmbio.gov.br/parnaitatiaia

41
exploratórios e distantes de um sistema hegemônico e capitalista. Movimentos ambien-
tais e ecofeministas que fogem desse sistema e propõem alternativas sistêmicas para a
valorização da preservação da natureza e dos saberes ecológicos e tradicionais de povos
originários. Os conhecimentos e práticas dessas comunidades são passados a cada ge-
ração através do relato oral. Então, nessa pesquisa utilizo também a história oral, que foi
uma estratégia adotada por esses movimentos nos anos 1960 e 1970 para terem o con-
trole sobre suas próprias narrativas de forma integral (CUSICANQUI, 1987). Nos encontros
com as participantes, utilizarei mapas mentais como meio para acessar suas narrativas de
vida, e a história oral bem como os registros fotográficos das participantes serão funda-
mentais como ferramentas de acesso às suas percepções sobre o meio ambiente.

La historia oral en este contexto es por eso mucho más que una metodología “partici-
pativa” o de “acción” (donde el investigador es quién decide la orientación de la acción
y las modalidades de la participación): es un ejercicio colectivo de desalienación, tanto
para el investigador como para su interlocutor. (CUSICANQUI, 1987)

O método de história oral surge com o intuito de descobrir novas formas de inves-
tigar, por meio do relato oral das participantes que servirá também como matéria para
uma produção artística que consiste na realização de encontros com as mulheres e tam-
bém na produção de cartazes e de um mapa de narrativas que será distribuído poste-
riormente pelo bairro. Esse mapa será o caminho utilizado para circular nossas reflexões
sobre a história do bairro Itatiaia entre os moradores e também estabelecer relações de
vínculo a partir das narrativas das mulheres que foram compartilhadas durante a prática
artística colaborativa.

No momento, devido à pandemia de Covid-19, fiquei completamente isolada em


meu bairro, sentindo-me privilegiada por morar num lugar cheio de verde e que, segun-
do meu irmão que sempre repete pelo que lhe parece, ‘é um lugar que tem o ar mais puro
do que o centro da cidade’. Embora estejamos em isolamento, minha pesquisa está em
andamento e já foi aprovada pelo Comitê de Ética da UFG. No entanto, a etapa de entre-
vistas e ações colaborativas a serem conduzidas com as cinco moradoras do bairro está
momentaneamente suspensa.

42
Caminhadas possíveis

Os acionamentos que constroem tanto a prática artística colaborativa quanto a produção


de imagens ao longo da pesquisa vêm diretamente das afinidades que vou construindo, por
meio desta pesquisa, com os modos se ação dos seguintes movimentos ambientais a ecofe-
ministas: Bem Viver (originalmente andino, mas que possui outras origens em outros lugares),
Chipko, na Índia, e o Movimento de Mulheres Camponesas no Brasil (Figuras 3, 4 e 5). Eles são
exemplos de comunidades que têm incorporado no seu modo de vida as formas de trabalho
não mercantilizadas, mais sustentáveis e de cuidado e atenção com o lugar onde habitam.

Figura 3. Mulheres Andinas. Fotografia. Fonte: Organização sem fins lucrativos Pachama Raymi.

Figura 4. Movimento Chipko: crianças e mulheres abraçando uma árvore, 1987. Fotografia. Fonte: The
Right Livelihood Award.

43
Figura 5. Mulheres do Movimento de Mulheres Camponesas. Fotografia. Fonte: Movimento de Mulheres
Camponesas | MMC Brasil, http://www.mmcbrasil.com.br/site/

Nas Figuras 6 e 7, apresento minhas primeiras econarrativas visuais3 criadas espe-


cialmente para a exposição Tecelume: colcha de autosaberes, que foi uma iniciativa do Nú-
cleo de Práticas Artísticas Autobiográficas - NuPAA4, grupo de pesquisa da FAV/UFG/CNPq
do qual faço parte. A exposição integrou o encontro de grupos de pesquisa I Simpósio
do Núcleo de Práticas Artísticas Autobiográficas – I SiNuPAA e o X encontro do Grupo de
História e Imagem - X GEHIM.

Na obra Sementes (Figura 6), faço referência ao movimento Chipko e à ativista am-
biental, filósofa e feminista Vandana Chiva. O movimento Chipko (Figura 4) surgiu nos
anos 1970 na Índia e buscou criar uma resistência feminina frente à destruição das flo-
restas que afetava diretamente as atividades de quem delas dependiam. Essa resistência
foi fundamental para o reconhecimento da autonomia das mulheres, além de sinalizar a
importância de haver mulheres envolvidas com a causa ecológica (SHIVA, 1995). O movi-
mento dessas mulheres foi resistente à destruição das florestas em suas comunidades e
lutou de forma pacífica abraçando árvores com seus corpos para evitar sua derrubada, o
que fazia com que os madeireiros desistissem dessa tarefa. O desaparecimento das árvo-
res nativas da região traria como consequência a deterioração do seu território, que inclui

3 O termo “econarrativa visual” é um dos conceitos que estou a desenvolver nesta pesquisa de mestrado,
como uma ideia de gênero autobiográfico que nasce das narrativas de vida contadas a partir da relação com o
lugar (autobiogeografias), porém com foco nas questões da percepção da natureza e do meio ambiente.

4 www.nupaa.org

44
a substituição dessas árvores por monoculturas.

Vandana Shiva (1995) reconhece e divulga a importância desse movimento de re-


sistência e também denuncia as grandes multinacionais como a Monsanto, que detém o
controle sobre determinadas sementes. Sementes geneticamente modificadas e que não
conseguem se reproduzir, o que vem causando a dependência de agricultores indianos
que têm que pagar royalties pela patente colocada pela empresa sobre as sementes. As-
sim, esses agricultores se endividam e, por não terem como pagar a dívida e sobreviver,
acabam tomando medidas drásticas, o que revela uma realidade triste na Índia onde uma
das grandes causas de morte de agricultores é o suicídio (SHIVA, 1995).

Na obra Sementes (Figura 6), destaco a importância da reprodução do alimento


e da terra onde as sementes germinam. Coloco as mulheres também na posição de se-
mentes, porque cada uma dessas mulheres traz uma proposta de cuidado e preservação
desenvolvida em seu modo de viver, crucial para a conservação e proteção do meio am-
biente, em suas organizações sociais e de trabalhos não mercantilizados e sustentáveis.
Cada uma dessas sementes brota como contraponto a uma sociedade consumista e ex-
ploratória que visa apenas à economia e ao lucro.

Figura 6. Ingrid Costa. Sementes, econarrativa visual, 2020. Imagem digital. Dimensões variadas. Fonte:

Acervo pessoal.

45
A existência de pensamentos e conhecimentos impostos, que moldam as visões
sobre a natureza e colocam a Terra como uma coisa e a humanidade como outra, faz com
que as grandes corporações ainda usem essa justificativa para continuar explorando os
recursos da natureza, muito além do necessário para sobrevivemos (KRENAK, 2019). Uma
ideia colonial de natureza que foi iniciada com os cristão que descreviam a natureza e
o ser humano como coisas opostas, com o humano fazendo parte da “cultura” e não da
“natureza”, esta que estava ali apenas para ser dominada e explorada pela humanidade
(MIGNOLO, 2017).

Essa visão de separação entre natureza e humanidade é oposta ao que outros povos
acreditavam, sobretudo na América Latina onde os aimarás5 e os quíchuas6 acreditavam
que tudo o que faziam era parte do meio ambiente, tendo sua existência e suas práticas
como parte da natureza (MIGNOLO, 2017). Na cultura indígena brasileira o sentimento
é semelhante, os povos daqui possuem afetos profundos pelos elementos naturais que
os rodeiam, dando nomes a seres inanimados, a pedras, montanhas e rios como forma
de agradecer pela existência. Esses elementos são seus guias, são de onde eles tiram seu
alimento e suas orientações sobre o clima, colheitas e vida (KRENAK, 2020).

Na obra Olhares da Pacha (Figura 7), trago os olhares femininos sobre a Pacha, por-
que existem vários movimentos que nomeiam a Terra com nomes relacionados ao fe-
minino: Mãe Terra, Pacha Mama, Gaia, uma provedora maternal, um símbolo de comu-
nidades tradicionais femininas, que têm uma importância fundamental para a proteção
ambiental e conservação do meio ambiente, como demonstra o líder e ativista indígena
Krenak (UNBTV, 2019, 20 min 26 s):

Eu acho que depois de um final do século XX totalmente decadente, a gente tem uma
possibilidade de que essa energia feminina que a visão que as mulheres têm sobre a
história de seus povos, pensando nessa constelação de povos indígenas que no caso
de se estender além da fronteiras do Brasil chegam a cerca de 40 milhões de pessoas

5 Povo estabelecido desde a Era pré-colombiana no sul do Peru, na Bolívia, na Argentina e no Chile.
Também conhecidos como Quollas ou Kollas.

6 Designação aplicada aos povos indígenas da América do Sul, que falam o quíchua, especialmente o
quíchua meridional. Distribuem-se pela região andina, especialmente no Peru, na Bolívia, Argentina e Chile.

46
que ficam dentro dessa chave ‘povos indígenas da América Latina’. Pode parecer um
número qualquer, uma cifra qualquer, mas quem conhece a história dos povos indí-
genas na América Latina pode perceber que isso significa que nos estamos vivos e
viemos para ficar, e que agora a voz que deve ser preponderante é a voz que deve ser
preponderante é a voz das mulheres. (KRENAK, UnbTV, 2019, 20 min 26 s).(KRENAK,

Figura 7. Ingrid Costa. Olhares da Pacha, econarrativa visual, 2020. Imagem digital. Dimensões variadas.
Fonte: Acervo pessoal.

Considerações finais

Neste texto, apresentei parte dos elementos que são articulados em minha inves-
tigação de mestrado Atîaîa: Percepções do Meio Ambiente através de Práticas Artísticas
Autobiogeográficas. Apresentei minha narrativa autobiogeográfica que está a acionar as
práticas artísticas, as construções de imagens (econarrativas visuais) e os métodos utiliza-
dos na condução desta investigação. Destaquei, também, os três movimentos ecofemi-
nistas que informam a minha prática artística e compartilhei duas econarrativas visuais
que criei como resposta poética à pesquisa que estou fazendo sobre esses movimen-
tos. Como sinalizado anteriormente, esta é uma investigação em andamento que já foi
aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Goiás, porém está com a pes-
quisa de campo temporariamente suspensa devido à pandemia de Covid-19. Assim que

47
possível, realizarei os encontros com as cinco mulheres moradoras do bairro Itatiaia para
desenvolver uma série de ações artísticas colaborativas em que compartilharemos narra-
tivas de vida e produziremos econarrativas visuais. Depois, ingressarei na etapa de produ-
ção de cartazes e, ao final, produzirei uma publicação de artista. Espero com essa pesqui-
sa instigar o pensamento crítico por meio da arte, fortalecer o sentimento de cuidado e
preservação com o lugar e criar espaços para compartilhar histórias auto/biogeográficas
que demonstrem as afetividades e as histórias que vão sendo articuladas do “entre nós e
a natureza” ao “nós como natureza”.

48
REFERÊNCIAS

CUSICANQUI, Silvia RIVERA. “El potencial epistemológico y teórico de la historia oral: de


la lógica instrumental a la descolonización de la historia”. revista Temas Sociales. La
Paz, [S. l.], v. número 11, p. 49–64, 1987.

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em: 15 jun. 2020.

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leira de Ciências Sociais, [S. l.], v. 32, n. 94, p. 01, 2017. DOI: 10.17666/329402/2017.

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www.youtube.com/watch?v=qFZki_sr6ws&app=desktop >. Acesso em: 08 jun. 2020.

49
NEM “AUTODIDATA”, NEM “ UM INSPIRADO” - A FORMAÇÃO 
ARTÍSTICA DE VEIGA VALLE

Fernando Martins dos Santos1

No antigo arraial de Meia Ponte (Pirenópolis), em nove de setembro de 1806, nascia


aquele que seria considerado o principal artista goiano do século XIX, José Joaquim da
Veiga Valle. Filho do capitão Joaquim Pereira Valle2 (natural de Vila Boa) e Ana Joaquina
Pereira da Veiga3 (natural do arraial de Meia Ponte). O casal teve sete filhos, sendo Veiga
Valle o quarto filho dos sete.

O capitão Joaquim Pereira Valle, era advogado, foi membro da Irmandade do San-
tíssimo Sacramento4 e lá ocupou os cargos mais importantes da Irmandade, como: pro-
curador (1810 e 1811), tesoureiro (1816 e 1817) e provedor (1820). O capitão Joaquim
Pereira Valle também ocupou vários cargos públicos e políticos de destaque, como te-
soureiro da subscrição voluntária para a compra de embarcações de guerra (por ocasião
da Independência do Brasil), Juiz de paz e ordinário (JAYME, 1973; SALGUEIRO, 1983), foi

1 Doutorando em História no Programa de Pós-Graduação em História, pela Universidade Federal de


Goiás (UFG) membro do Grupo de Estudos de História e Imagens. Email: prof.fernandosantos@globo.com

2 Seus pais eram o alferes José Pereira Vale (Guimarães, arcebispado de Braga, Portugal) e Maria Fran-
cisca Castelo Branco (JAYME, 1973).

3 Era filha de Custódio Pereira da Veiga e de Petronilha do Amor Divino (JAYME, 1973).

4 Podiam, portanto, fazer parte delas pessoas maiores de doze anos, brancas, de ambos os sexos,
casados e solteiros, desde que idôneas, suficientes e ornadas de bons costumes, para servirem de exemplo
aos confrades. O termo da Irmandade de Meia Ponte, além disso, determinava que o postulante tivesse o
necessário “acceio para vestir uma opa e professar a Religião Cathólica Apostólica Romana”, e que fizesse a
sua custa uma opa encarnada ou vermelha (MORAES, 2012, p.123).

SANTOS, Fernando Martins dos. Nem “autodidata”, nem “um inspirado” - a formação artística de Veiga Valle,
In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prá-
tica Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 50-61.
nomeado pelo presidente da província5, como 4º suplente de delegado da cidade de
Meia Ponte (em 28 janeiro de 1852). Mas o cargo que lhe deu maior destaque foi o de ve-
reador, inclusive quando se instalou a Câmara Municipal de Meia Ponte, ele foi escolhido
como presidente da recém inaugurada camarada.

Sendo Veiga Valle de influente família meiapontense, tinha fácil contato com o que
havia de mais “luxuoso” no Arraial de Meia Ponte e na província, o que acabou influen-
ciando na sua formação artística. Não existe nenhuma documentação que comprove se
ele teve algum professor, ou algo parecido, em algum momento de sua vida, que lhe en-
sinasse a esculpir, dourar e fazer o esgrafiado6. Sendo esse motivo, que alguns estudiosos
afirmam que ele seria um autodidata. Surgindo uma das maiores controvérsias sobre o
artista: se ele foi um autodidata ou não.

O pintor João José Réscala, em seu relatório para a primeira exposição que reuniu
as obras de Veiga Valle, em 1940, na Cidade de Goiás, afirma que o santeiro “Iniciou seus
estudos de escultura e pintura com padre Amâncio, superando em tempo o mestre” (RESCA-
LA, 1940, p.1). Mas nenhuma documentação comprova essa informação, nem mesmo
alguma que se refere ao padre Amâncio como escultor, pintor ou dourador.

Outro fato que corrobora com essa ideia é o fato de Veiga Valle nunca ter saído da
província de Goiás, de não ter nenhuma notícia de algum outro artista, que tivesse técnicas
parecidas com a sua, que fosse contemporâneo a ele. Outro fato que fortalece essa ideia foi
a notícia de seu obituário no jornal Correio Official em 31 de janeiro de 1874, afirma que o
artista dedicou por curiosidade a escultura desde muito moço. De acordo com o obituário

O do major José Joaquim da Veiga Valle, na manhã de 29 do presente.


Na idade de 68 anos, sucumbio aos prolongados sofrimentos d´uma dor ciática, que
lhe afligiu por mais de oito mezes, redusindo-o por fim a uma debilidade invencível.
Era o finado um dos homens mais circunspectos e respeitados da nossa sociedade,

5 A época da nomeação o presidente da província de Goiás era Antônio Joaquim da Silva Gomes.

6 Os desenhos são feitos calcando-se com o esgrafito, espécie de estilete, a camada externa tinta
seca, de modo que a camada interna, o “pão de ouro” brunido, apareça evidenciando os ornamentos. (SAL-
GUEIRO, 1983, p. 71)

51
bom catholico, dotado d´um animo inofensivo, e exemplar pai de família.
Sem estudos, dedicou-se por mera curiosidade d´esde moço as artes de estatuária e
pintor, que exerceo com grande proveito, tornado seo nome muito conhecido na pro-
víncia inteira e legando-nos obras que abonarião a qualquer profissional.
Fica d´elle também um discupulo aproveitável na pessoa de seo filho o Sr. Henrique
Ernesto da Veiga.
Ocupou por vezes lugares de distinção, sendo eleito por muitos anos sucessivos, mem-
bro da assemblea provincial.
Deixou inconsolável a virtuosa consorte, a que esteve ligado por mais de trinta anos,
e que talvez, não resista ao duro golpe da separação pelo estado de abatimento em
que ficou por acompanha-lo desveladamente em tão longa enfermidade; e oito filhos.
Sentimos profundamente a perda; o que manifestamos a aquella Exma. Senhora, fi-
lhos e genro (CORREIO OFFICIAL, 31 de janeiro de 1874, p.02)

A partir da falta de documentação e se apegando a notícia de seu obituário e ao


relatório de João José Réscala se criou-se a ideia de que ele seria uma pessoa “inspirada”,
um “autodidata”. Os principais defensores dessa ideia são Luiz A. Carmo Curado e Elder
Camargo de Passos (CURADO, 1955; PASSOS, 1997), segundo o professor Luiz Curado em
texto para a Revista Renovação

(...) A precisão das atitudes anatômicas de seus santos surpreende, quando se pensa na
falta de mestres. O frescor de suas tintas quase centenárias, desafia o entendimento,
quando se cogita da técnica de sua obtenção.
Se não ousarmos afirmar ter sido Veiga Valle um gênio pelo menos temos de admitir
que possuía uma fecunda inspiração genial, palpitante em suas obras.
Seria mais acertado chama-lo “um inspirado”, que um “autodidata”. (CURADO in RENO-
VAÇÃO, 1955, p. 16 e 28).

No texto do professor Luiz A. Carmo Curado, que não especifica e diferencia “ins-
piração genial” de “autodidata”, e do relato do professor e restaurador Amphilóphio de
Alencar7, que também era de Pirenópolis e se dizia um autodidata, Elder Camargo de
Passos cria sua afirmação de que Veiga Valle fosse um autodidata

(...) tornamos a afirmar que VEIGA VALLE foi um autodidata e que durante a sua for-

7 Amphilóphio de Alencar Filho (1940-1988), era professor titular da Faculdade de Educação da Uni-
versidade Federal de Goiás. Em seu relato para Elder Camargo de Passos, o professor afirma que desde a
infância começou a restaurar imagens de amigos e parentes e foi evoluindo conforme suas necessidades.
No entanto, quando se via diante de alguma dificuldade ou impasse, recorria aos livros de arte para tentar
solucionar o problema (PASSOS, 1997).

52
mação artística, observou, estudou, experimentou várias formas e meios de dar vazão
a sua ânsia artística, perscrutando as imagens existentes em Meiaponte e em várias
igrejas da redondeza (PASSOS, 1997, p.125)

Tanto o professor Luiz Curado como Elder Camargo de Passos reconhece a impor-
tância do ambiente que artístico e cultural que rodeava Veiga Valle para sua formação
como artística. No entanto os relatos dos viajantes que passaram pela região, nos apre-
senta um pouco tal ambiente: Saint-Hilaire, que esteve na região em 1819, relata que
no arraial tinha um ar de nobreza, que as ornamentações tinham inspiração europeia e
completa que na “região tinha móveis e pratarias muito bem trabalhadas, que tinham sido
feitas na província”; conta também que na casa do vigário da cidade, existia quadros com
desenhos de flores que “tinham sido feitos por um homem que jamais se afastara de Vila
Boa” (SAINT-HILARE, 1975), nesse ano Veiga Valle teria 14 anos de idade. O que se deve
destacar do relato do viajante é que na província tinha a existência de artistas que tinham
qualidades admiradas e reconhecidas pelos viajantes.

Outro viajante que passou pela região, foi Raimundo da Cunha Mattos, em 1824, e
em seus relatos mostra que “Os carpinteiros já foram excelentes como o mostram as bellas
obras de talhas, nas igrejas, sobretudo na Matriz e na Lapa de Goyaz, nas matrizes de Meia
Ponte, e na do Pilar” (MATTOS, 1874, p. 278). Foi principalmente este ambiente religioso,
que lhe possibilitou o contato com obras de arte que lhe serviram de inspiração, como os
elementos decorativos dos tetos e dos altares, a prataria, a variedade de peças sacras que
vieram de Portugal e de outras regiões do Brasil.

Era dentro dos templos religiosos do Arraial de Meia Ponte que Veiga Valle apreciava a
pintura, escultura, teatro e música, mesmo porque muitas dessas peças são muito parecidas
com as que são atribuídas a Veiga Valle. Sendo assim, para melhor entendimento, se mostra
necessário uma descrição dos principais templos católicos do arraial e fazer uma comparação
das obras existentes com as obras de Veiga Valle. Mas é importante salientar que em mo-
mento algum a intensão será afirmar que Veiga Valle era um simples copista, mas sim tentar
demonstrar a influência dessas obras em seu aprendizado e, quando for o caso, pontuar que
na cidade já se teve outros “artistas” e que alguns conviveram com Veiga Valle.
A mais antiga igreja da cidade é a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, tendo sua

53
construção iniciada em 1728; é considerada a primeira grande igreja a ser construída na
província. Mas seu acabamento foi feito de forma mais gradual, as torres só foram con-
cluídas em 1763, a igreja contava com um altar-mor e mais quatro altares laterais com
esculturas de São Miguel, Nossa Senhora das Almas, São Francisco e Nossa Senhora do
Rosário, sendo todas elas do século XVIII. Em 1766, foi contratado o pintor Reginaldo Fra-
goso de Alburqueque para pintar o frontispício do altar-mor. Em 1770, foram esculpidas
duas estátuas de anjos e o cortinado de franjas no arco do altar (ETZEL, 1974). O arraial
contava com pintores que ofereciam seus serviços para as irmandades. Chama atenção
a imagem de Nossa Senhora do Rosário, sendo o Menino-Jesus e os querubins no globo,
por lembrarem muito as peças de Veiga Valle, como se pode ver abaixo:

Figura 1 - Autor desconhecido. Século XVIII. Nossa Senhora do Rosário. Escultura em madeira. Fonte: JAYME, 2002.

Figura 2 - Veiga Valle. Século XIX. Nossa Senhora com o Menino. Escultura em madeira dourada e policro-
mada, 47 cm. Fonte: UNES, 2011

54
A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos8 foi edificada entre 1743 e 1757, era
composta pelo altar-mor e dois laterais, onde tinham imagens do século XVIII, possivelmente
portuguesas. Na igreja, tinha altares que superassem, em arte e formosura, os das demais igrejas
meiapontenses, altares que atestassem, eloquentemente, a habilidade artesanal dos marceneiros
e entalhadores daqueles tempos de grandeza! (JAYME, 2002, p.46). No altar-mor ficava a ima-
gem de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, e nos nichos laterais, uma imagem São Rafael
e outra de São Bento. No altar direito, uma imagem de São Sebastião e no altar a esquerda,
uma imagem de São Benedito. Tais imagens portuguesas, principalmente a Nossa Senhora
do Rosário do Preto, lembra a composição do rosto das madonas de Veiga Valle.

Figura 3 - Autor desconhecido. Século XVIII. Detalhe de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Escultura
em madeira Fonte: JAYME, 2002.

Figura 4 - Veiga Valle. Século XIX. Detalhe de Nossa Senhora das Mercês. Escultura em madeira dourada e
policromada, 38,5 cm. Museu de Arte Sacra da Boa Morte, Cidade de Goiás - GO. Foto: Fernando Santos.

8 A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos não existe mais, por estar em ruínas foi demolida
em 1944. Todas as suas imagens, alfaias, paramentos, móveis e demais pertences e preciosidades da Ca-
pela, após ser a mesma arrasada, em 1944, por ordem religiosa superior, foram repartidos entre as igrejas
existentes na cidade (três). Entretanto, muitas coisas preciosas (imagens, castiçais, crucifixos, móveis etc.)
foram vendidos a antiquários, atraves de seus testas de ferro locais, ou então foram furtadas e até mesmo
destruídas (JAYME, 2002, p.47 e 48).

55
A menor das igrejas do Arraial de Meia Ponte, é a Igreja de Nossa Senhora do Carmo,
se acredita que sua edificação se deu por volta de 1750, a mando de dois ricos mineiros,
Luciano Nogueira Nunes9 e seu genro Antônio Rodrigues Frota10 (ETZEL, 1974). A igreja
era composta com um altar mor, que abriga uma imagem de Nossa Senhora do Monte
Carmo, do século XVIII, vinda de Portugal. Hoje a igreja é composta por mais dois altares
laterais, mas estes altares são da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e foram le-
vados para o local após sua demolição em 1944. Na igreja tem mais uma obra que serviu
de base para que Veiga Valle compusesse suas peças, uma imagem de Nossa Senhora do
Monte Carmo, que como se pode observar o globo com os querubins chama muita aten-
ção por se assemelharem aos querubins de sua Nossa Senhora do Parto, de Veiga Valle.

Figura 5 - Autor desconhecido. Século XVIII. Nossa Senhora do Monte Carmo. Escultura em madeira. Fonte: JAYME, 2002.

Figura 6 - Veiga Valle. Século XIX. Detalhe de Nossa Senhora do Parto. Escultura em madeira dourada e policroma-
da, 140 cm. Museu de Arte Sacra da Boa Morte, Cidade de Goiás - GO. Foto: Fernando Santos.

9 Dizem que suas filhas se gabavam de poderem dançar sobre um leito de pepitas de ouro, porém,
acabaram a vida na mendicância (ETZEL, 1974).

10 Sepultado na igreja, em 1774 (ETZEL, 1974).

56
A Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, foi construída entre 1750 e 1754. Na cidade
se conta a lenda que, devido a construção da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, feriu a
vaidade de um outro rico mineiro da região, Antônio José de Campos, que logo também
mandou construir uma igreja. A igreja é composta por três altares, dois laterais e um cen-
tral. Ainda no espírito de rivalidade, Antônio José de Campos, mandou trazer da Bahia,
uma grande imagem do Senhor Crucificado, que foi conduzida por um comboio de 260
escravos e colocada no altar-mor. No nicho tem uma porta em duas folhas, onde está
pintada uma imagem de Cristo Crucificado e ao fundo paisagem de Jerusalém. Tal artifí-
cio era utilizado na Semana Santa, quando todas as imagens deveriam ser cobertas com
pano, pois a porta estando fechada, não seria necessário cobrir a imagem, e, ao mesmo
tempo, a imagem de Cristo sempre ficava presente (ETZEL, 1974). Segundo Jarbas Jayme,
o teto, o corpo, capela-mor e os altares foram pintados por Inácio Pereira Leal (JAYME,
1971). Nessa igreja, mais uma vez se observa peças que inspiraram Veiga Valle, o Cristo
Crucificado, da Igreja do Nosso Senhor do Bonfim, tem o rosto e a composição da roupa
semelhante ao Cristo Morto, de Veiga Valle.

Figura 7 - Autor desconhecido. Século XVIII - Cristo Crucificado. Escultura em madeira. Igreja Nosso Se-
nhor do Bonfim, Pirenópolis - Go. Fonte: JAYME,2002.

57
Figura 8 - Veiga Valle. Século XIX - Cristo Morto. Escultura em madeira, 14,3 cm. Fonte: SALGUEIRO,1983.

Como se pode notar, Veiga Valle viveu em um ambiente que lhe possibilitou apren-
dizado para a iniciar a produzir suas peças. Mesmo não tendo nenhum documento que
comprove a formação de Veiga Valle, pesquisadores como Bruno Correa Lima (1972), Re-
gina Lacerda (1977) e Heliana Angotti Salgueiro (1983), descartam seu autodidatismo e
reafirmam a influência do ambiente que vivia.

Bruno Correa Lima, em seu estudo intitulado Veiga Valle – o genial santeiro de Goiás
(1972), coloca que as peças, que se acredita serem da fase inicial de Veiga Valle, não de-
monstram indecisões típicas de uma pessoa que está iniciando um aprendizado sozinho.
Ele faz a seguinte ponderação sobre o autodidatismo de Veiga Valle

Ora, sendo o escultor J.J. Veiga Valle um autodidata, haveria forçosamente de incorrer
em indecisões até assenhora-se da técnica da estruturação da figura. Assim, entre as
primeiras obras colocou-se as que não apresentava esse apoio bem definido, combi-
nado com o cânone baixo e as dobras da indumentária muito singela, pois em conti-
nuação ver-se-á que o mestre demonstrou durante a evolução da sua arte uma grande
capacidade de invenção no drapeamento. (LIMA, 1972, p. 152)

58
Outra pesquisadora que refuta o autodidatismo de Veiga Valle é a folclorista Regi-
na Lacerda, em seu texto Veiga Valle – o santeiro goiano (1977). Regina rebate a ideia de
Rescala, que coloca o padre Manoel Amâncio da Luz como professor de Veiga Valle e a
também a ideia do professor Luiz Curado, que Veiga Valle seria “mais um inspirado que
um autodidata”. Segundo a folclorista a vida civil e religiosa de Veiga Valle era uma só, e
que isso possibilitou ele “dialogar imaginariamente” com os autores das obras das igrejas.
Regina imagina como foi esse contato de Veiga Valle com o ambiente que o rodeava

(...) O ambiente em que se criou o artista de certa forma já estava preparado: seus olhos
puderam comtemplar a imagem de Nossa Senhora do Rosário (dada como pertencen-
te à igreja-matriz de Pirenóplis, desde 1728); aí se vêem anjos tocando trombetas no
retábulo do altar-mor, pinturas no teto, do camarim e do trono, que o teriam impres-
sionado – feitas em 1766 por pelo pintor Reginaldo Fragoso de Alburqueque. Teria se
impressionado o jovem escultor uma imagem de Nosso Senhor do Bonfim, bela com-
posição barroca trazida da Bahia nos ombros de 260 escravos, por onde do sargento-
-mor Antônio José de Campos – para a igreja construída em Meia-Ponte (entre os anos
de 1750-1754) em honra do mesmo bom Jesus Venerado (LACERDA, 1977, p.70).

Heliana Angotti Salgueiro, em seu livro intitulado A singularidade de Veiga Valle


(1983). Não encontrando nenhum documento que comprove o aprendizado do artista,
a pesquisadora faz um grande levantamento de inventários particulares que demostram
“quadros de santos”, “estampas diversas de santos”, “livros de preces e devoções”, e que a
criação artística resulta não só do talento, mas do ambiente, da experiência, da forma-
ção e das viagens (SALGUEIRO, 1983, p.41). E o ambiente que viveu Veiga Valle, de tantas
imagens em igrejas e particulares, pode lhe ter propiciado um caráter tipológico. A pes-
quisadora continua seu levantamento a partir dos relatórios dos viajantes Cunha Mattos
e Saint-Hilaire, na tentativa de encontrar relato sobre algum entalhador, dourador ou pin-
tor, que fosse remanescente a Veiga Valle, mas nada encontrou, e logo conclui

A documentação examinada quanta a formação escolar evidencia-a precária. No que


concerne à educação artística, pouco se pode afirmar com certeza, uma vez que nem
mesmo foi possível apurar a presença de mestres-artistas nas cidades em que viveu.
Se os documentos nada especificam sobre a formação letrada e artística de Veiga Valle,
não se conclui por sua ausência. O historiador sabe que a arte não era ensinada em
escolas ou academias, inexistentes no interior do Brasil, mas que era aprendida em
ateliês, no próprio exercício do ofício, sob direção de mestres artistas. (...). O nível de
instrução de Veiga Valle é evidenciado pelo inventário de seus livros, por sua caligrafia
e pelos próprios cargos políticos que exerceu. Quanto a sua formação artística, muito

59
embora os documentos se calem, é patente um conhecimento cabal de anatomia e de
desenho, explicito na erudita fatura da imagem. Escultor culto, domina segredos plás-
ticos e os códigos iconográficos: Veiga Valle não pode ser um autodidata. (SALGUEIRO,
1983, p.47)

Ao analisar os principais estudos sobre a formação artística de Veiga Valle, corrobo-


ro com os estudos de Bruno Correa Lima (1972), Regina Lacerda (1977) e Heliana Angotti
Salgueiro (1983), e acrescentando algumas informações adquiridas e analisadas duran-
te a pesquiso devo concordar e refutar o autodidatismo do artista e da mesma forma a
ideia de inspirado, que no seu caso é coloca como se fosse uma influência divina. Veiga
Valle mostra um entalhe firme, sabia da iconografia de cada peça, tinha conhecimento
de anatomia. Todas as suas peças ou têm carnação, douração ou esgrafiado, técnicas que
demandam intenso conhecimento, sendo inimaginável aprender sozinho. E para isso,
era necessário o conhecimento para o preparo dos seus pigmentos. Exemplos para sua
produção não faltaram, como demonstrado, o arraial de Meia Ponte contava com igre-
jas ornadas em talha, por “excelentes carpinteiros”, e com peças do século XVIII, as casas
contavam com oratórios e quadros. Mesmo não tendo um documento que comprove
sua formação em Meia Ponte, Veiga Valle aprendeu sua arte, o ambiente que lhe rodeava
sempre o inspirou, mas uma inspiração iconográfica, não “inspiração divina” como se cos-
tuma relatar sobre o “santeiro goiano”.

60
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61
CINEMATOGRAFIAS
BIOGRÁFICAS
A VISITA (1974) E QUE NÃO DOESSE (1998):
CONFRONTO E RECONCILIAÇÃO NOS DOCUMENTÁRIOS DE
MARCEL ŁOZIŃSKI

Davi Marques Camargo de Mello1

Introdução

Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a Polônia esteve sob um regime ligado
à URSS, provocando constantes crises econômicas e perseguições à classe artística e aos
membros da oposição. Embora a presença de censores, o Estado financiava os filmes dos
cineastas poloneses, ainda que controlasse o material que seria lançado. Contudo, exis-
tiam realizadores que conseguiam driblar a censura e denunciavam o sistema autocrático
do país, e seus filmes eram selecionados e premiados em importantes festivais de cinema.

O movimento que marcou a revitalização do cinema polonês do pós-guerra ficou


conhecido como a Escola Polonesa (1956-1964), cujos principais representantes foram os
cineastas Andrzej Munk (1920-1961) e Andrzej Wajda (1926-2016). Buscando principal-
mente uma estética que fugisse da higienização paternalista do Realismo Socialista, os fil-
mes produzidos nesse período mostravam o descontentamento com o período stalinista
e a urgência em retratar realidade e cultura nacionais.

A Escola Polonesa ainda influenciaria outros cineastas nas décadas seguintes, cujas

1 Doutorando em Educação, Arte e História da Cultura na Universidade Presbiteriana Mackenzie,


Mestre em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi e Bacharel em Cinema e Audiovisual pela
mesma instituição (UAM). E-mail: davimcmello@gmail.com

MELLO, Davi Marques Camargo de. A visita (1974) e que não doesse (1998): confronto e reconciliação nos
documentários de Marcel Loziński, In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens
Auto/Biográficas na História e na Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de
Goiás, 2020. p. 63-78.
produções mais representativas fizeram parte do movimento conhecido como Cinema
da Ansiedade Moral. O termo se referia a filmes realistas que examinavam assuntos con-
temporâneos, realizados principalmente entre 1976 e 1981. Essas produções eram forta-
lecidas por uma linguagem híbrida, semi-documental, e retratavam pessoas comuns e
suas ações cotidianas afetadas pelo sistema.

Marcel Łoziński é um dos mais aclamados documentaristas poloneses, cuja traje-


tória coincide com as principais transformações estéticas do cinema a partir do cená-
rio político de seu país. Como a maioria dos cineastas poloneses do pós-guerra, Łoziński
formou-se no tradicional curso de direção cinematográfica da Escola de Łódź, por onde
passaram Krzysztof Kieślowski, Andrzej Wajda e Roman Polanski. Da Escola Polonesa, foi
influenciado pela herança do documentário social e seus traços neorrealistas; do Cinema
da Ansiedade Moral, aproveitou-se da crítica política ao explorar narrativas que mescla-
vam público e privado, ficção e documentário. Sua passagem pela TV estatal certamente
permitiu-lhe a experimentação formal de um discurso jornalístico, e, desse modo, intro-
duziu em suas narrativas elementos eticamente questionáveis, mas com um propósito de
reflexão sobre a manipulação e o alcance das mídias.

É o caso, por exemplo, do curta-metragem A Visita2 (Wizyta, 1974). Łoziński acom-


panha uma repórter (Marta Wesolowska) e um fotojornalista (Erazm Ciolek) da revista
polonesa Polityka. A equipe visita uma comunidade rural onde reside Urszula Flis, uma
jovem de origem simples que cuida da fazenda da família e de sua mãe, não se interes-
sando por festas ou por relacionamentos amorosos, embora demonstre um fascínio pelas
Artes e pela Literatura. Urszula é constantemente confrontada pela jornalista, ainda inti-
midada por duas câmeras – a cinematográfica, da equipe de direção de Łoziński, operada
por Jacek Petrycki, e a fotográfica, de Erazm Ciolek, o qual também acompanha as entre-
vistas. Questiona-se, dessa maneira, a exposição indolente dos veículos de comunicação,
que buscam imagens e depoimentos sensacionalistas, ferindo princípios éticos.

Após 23 anos, com o média-metragem Que não Doesse (Żeby nie bolało, 1998), Mar-

2 A Visita é parte de uma trilogia sobre a mídia criada por Marcel Łoziński. Os outros filmes são Teste
de Microfone (Próba mikrofonu, 1980) e Exercícios Práticos (Ćwiczenia warsztatowe, 1986).

64
cel Łoziński retorna à mesma fazenda com a mesma equipe de filmagem e capta o im-
pacto do filme na vida de Urszula Flis. Esse material é rico na construção de um debate
sobre performance e manipulação do realismo cinematográfico, pois vemos indicações
da direção sobre posicionamentos dos corpos, repetições de ações e o próprio confronto
verbal entre personagem e realizador. Desse modo, a transparência do material ressigni-
fica um processo de produção de quase três décadas.

Marcel Lozinski e Urzsula Flis – Mediador e personagem

A Polônia havia perdido a sua independência e grande parte de seu território duran-
te a Segunda Guerra. Cerca de seis milhões de cidadãos poloneses morreram no conflito,
metade deles judeus, e os sobreviventes sofriam de subnutrição, tuberculose e outras
doenças de proporções epidêmicas. Milhares de artistas, intelectuais, líderes civis e mili-
tares se dispersaram pelo mundo e nunca mais regressaram ao país (ZAMOYSKI, 2010, p.
313). A necessidade de reerguer a nação e de promover o reencontro com sua identidade
mobilizaram a Igreja e outras organizações sociais, contando inclusive com a participação
dos partidos nacionalistas de direita e de membros da aristocracia (ZAMOYSKI, 2010, p.
319). Por algum tempo, houve um crescimento na economia e na industrialização, atrain-
do as pessoas do campo para a cidade3. Com a mudança nas fronteiras polonesas e sob
o domínio soviético, a Polônia foi iniciada em um processo de doutrinação de um novo
cidadão socialista por meio de uma perspectiva Marxista-Leninista.

Contudo, a censura promovida pelo novo regime afastava os cidadãos poloneses


de algumas obras clássicas nacionais. Eram proibidas também as traduções de livros es-
critos nas línguas imperialistas, como o inglês e o francês, gerando uma massiva expansão
da literatura russa no mercado, consumando, por fim, a decreto do Comitê Central do Par-
tido em 1948, uma nova literatura e arte, o Realismo Socialista, estética totalitária em que
se afirmava a onipresença do sistema e a figura paternalista (ZAMOYSKI, 2010, p. 325).

3 Em 1970, 63% dos funcionários e trabalhadores de escritório eram de origem rural (ZAMOYSKI,
2010, p. 322).

65
O florescimento de uma nova sociedade polonesa foi motivado pelo desenvolvi-
mento da literatura e das artes nos anos 1950. Ainda que muitos escritores estivessem
dispersos em outros países, seus escritos, publicados por editoras dos círculos emigrados,
chegavam à Polônia. No entanto, a censura passou a ser mais frequente a partir de 1958,
quando a tiragem de exemplares desses livros foi controlada, assim como restringiu-se
a quantidade de apresentações de peças teatrais. Como explica Zamoyski, os escritores
que não se alinhavam eram perseguidos e presos. Desse modo, refugiavam-se nas metá-
foras para evitar a censura, ou usavam outros métodos de resistência. Stanisław Lem, por
exemplo, célebre autor de Solaris (1961), passou a escrever ficção científica (ZAMOYSKI,
2010, p. 332).

O Realismo Socialista seguia as normas do modelo implantado na União Soviética


por Andrei Zhdanov durante o I Congresso dos Escritores Soviéticos em 1934. No cinema,
impunha-se que as produções precisavam eliminar a ideologia burguesa reacionária do
passado e isso só seria possível se as histórias abordadas nos filmes fossem construídas
sob um prisma Marxista, difundindo imagens de heróis positivos por meio do nacionalis-
mo, da luta de classes e das forças antigas sendo vencidas/doutrinadas pela destreza dos
novos oponentes (HALTOF, 2002, p. 56).

Pondo fim no período stalinista do cinema polonês, foi só com a chamada Escola
Polonesa que cineastas e espectadores compartilharam de novas tendências e fôlegos es-
tilísticos, refletindo a realidade que tinha sido velada pela estética então superada do Re-
alismo Socialista, um período de revitalização da cinematografia polonesa compreendido
entre 1956 e 1964. Os diretores eram jovens e compartilhavam das mesmas experiências,
logo, adotavam uma gama temática e estilística similar. Os diretores da Escola Polonesa
tiveram acesso a uma importante produção vinda do mercado ocidental, como os filmes
do neorrealismo italiano4, os quais acabaram por influenciar suas obras.

4 O neorrealismo italiano foi um importante movimento cinematográfico que surgiu no final da


Segunda Guerra Mundial, tendo como maiores representantes os cineastas Cesare Zavattini, Roberto Ros-
selini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti. O movimento consistia na representação da realidade sócioeco-
nômica pós-Guerra, trabalhando elementos característicos do documentário, usufruindo de locações reais
– a saída dos estúdios, com paisagens em suas situações verdadeiras, arruinadas, assim como o uso da luz
natural dos ambientes –, a abertura ao improviso nas cenas e elencos formados por não-atores (MELLO,
2018, p. 32-33).

66
Durante o período comunista na Polônia, o cinema documentário se tornou uma
ferramenta de propaganda, e, desde 1949, a principal produtora responsável pelos docu-
mentários no país foi a Estúdio de Documentário de Varsóvia (Wytwórnia Filmów Dokumen-
talnych, ou WFD), de Varsóvia. Segundo Jazdon, de 1945 a 1949, existia uma liberdade
limitada que permitiu que os documentaristas poloneses desempenhassem maiores ex-
perimentações com os seus filmes, bastante inovadores e originais (JAZDON, 2014, p. 68).

A indústria cinematográfica polonesa era financiada com o dinheiro do Estado, e,


embora os filmes fossem feitos com a intenção de lançamentos em salas de cinema, não
havia pressão comercial sobre os produtores e o público; no entanto, os documentários
passaram a ser vistos como produtos pessimistas, então alvos dos censores. Muitas pro-
duções que não passavam pela censura ficaram engavetadas por anos, e, como alterna-
tiva, eram exibidas em sessões semi-clandestinas por um núcleo fechado de intelectuais
de Varsóvia, que igualmente produziam os filmes sem a liberação exigida (STOK, 1993, p.
vxii-vxiii).

Outra mudança significativa no fazer documentário na Polônia do pós-guerra veio


com um grupo de jovens realizadores que passaram pela Escola de Łódź entre meados
de 1960 e o começo de 1970, influenciados pelo professor e também documentaris-
ta Kazimierz Karabasz, cuja importância no cinema polonês possui status similar ao de
John Grierson no documentário britânico, ou Dziga Vertov no documentário russo (JA-
ZDON, 2014, p. 77). Frequentemente identificado como um cineasta neorrealista, Kara-
basz procurava mostrar em seus filmes as dificuldades de uma comunidade socialista,
partindo dos detalhes individuais dos cidadãos em suas ações cotidianas (AITKEN, 2005,
p. 704). Essa tendência incorporada por cineastas que buscavam uma descrição da rea-
lidade social de suas personagens ficou conhecida como a escola Karabasz, compreen-
dendo nomes importantes da cinematografia polonesa, como Tomasz Zygadło, Krzysztof
Kieślowski, Wojciech Wiszniewski, Paweł Kędzierski e Marcel Łoziński (MARCEL, data não
indicada na publicação).

Marcel Łoziński nasceu em 17 de Maio de 1940, em Paris. Filho de poloneses, retor-


na à Polônia com a sua família no fim da Segunda Guerra. Antes de se consolidar em uma

67
carreira de documentarista, trabalhou como editor de som no Estúdio de Documentário
de Varsóvia. Em 1967, matricula-se no curso de cinema da Escola de Łódź, onde se forma
em 1971, embora só fosse receber o seu diploma em 1976.

A primeira fase de sua obra é pautada na observação de indivíduos simples e os


meios de doutrinação e manipulação política por intermédio da mídia. Durante a lei mar-
cial na Polônia, período que compreende 1981 a 1983, perseguido e com obras censura-
das, Łoziński deixa de fazer filmes e só volta ao seu ofício no final dos anos 1980. A partir
dos anos 1990, assume uma abordagem mais pessoal, pensando experiências particula-
res para entender memórias coletivas da sociedade nacional, mas sempre interessado em
uma estética híbrida.

Quanto ao seu método, Łoziński afirma:

Não estou interessado em documentários puros, nem em um formato puro de ficção.


Ao fazer um documentário, você está apenas assistindo; no caso de uma ficção, você
nunca ultrapassa a fronteira das tramas pré-estabelecidas. É por isso que estou ten-
tando empregar metodologias de ambos os gêneros. Alguém disse uma vez que, ao
fazer um filme, é preciso encontrar um equilíbrio entre a ideia e as coisas que surgem
diretamente da realidade. Dessa forma, eu geralmente tento intervir na realidade ao
meu redor, e depois sigo abertamente aquilo que nasce dessa intervenção (ŁOZIŃSKI,
data não indicada na publicação).

Como construção de um discurso político que prevê um estudo imagético-social


sobre a afetação da mídia na vida privada de um cidadão comum, Łoziński amplifica o
debate para um campo metalinguístico, uma vez que o próprio fazer cinematográfico é
questionado por seu autor, o qual se expõe, diretamente ou de maneira experimental,
ao articular uma narrativa sobre princípios éticos da imagem. Conforme revela o próprio
Łoziński ao crítico de cinema Tadeusz Sobolewski, “Eu queria fazer um filme autotemáti-
co, sobre nós mesmos, cineastas e jornalistas” (ŁOZIŃSKI, 2012). Observa-se, portanto, um
questionamento não sobre um problema do meio em si, mas antes de seus mediadores.
A câmera, dispositivo de registro, também é de censura: ela escolhe e prepara o foco das
ações. A montagem, por sua vez, pode ser um guia de ressignificações narrativas, alteran-
do fatos, memórias e ideologias.

68
Em seu curta-metragem Exercícios Práticos (Ćwiczenia warsztatowe, 1986), como o
próprio nome sugere, Łoziński exercita a forma da reportagem jornalística. Pessoas de
todas as idades são questionadas sobre o quê elas pensam sobre a juventude contempo-
rânea. As respostas, em sua maioria, são negativas, adotando um discurso pouco otimista
sobre o futuro dos jovens poloneses. Łoziński decide remontar o material por duas ve-
zes. Num primeiro momento, os depoimentos perdem o seu caráter pessimista ao serem
invertidos: as vozes dos entrevistados são trocadas umas pelas outras, diluindo ideais e
identidades, alterando qualquer tom que demonize o assunto retratado. Na montagem
original, os jovens eram vistos como cidadãos sem perspectivas de vida e baderneiros;
já com a alteração da montagem, os comentários são editados com um viés progres-
sista e positivo. No segundo experimento, Łoziński anula completamente os diálogos,
separando apenas imagens em que os seus entrevistados aparecem sorrindo, mesmo
se, a princípio, alguns desses sorrisos fossem do constrangimento devido à invasão da
câmera. Terminando por inserir uma música animada como acompanhamento, o trecho
se transforma em ironia e pastiche. São três exercícios práticos que exploram o potencial
de manipulação da televisão e da propaganda.

A experimentação com a montagem cinematográfica, assumindo uma fabulação


ficcional e performativa, aparecerá em outros de seus trabalhos, como Happy End (1973),
Matriculation (Egzamin Dojrzałości, 1979), O Teste do Microfone (Próba mikrofonu, 1980) e
How to Live (Jak żyć, 1981). O estado crítico de seu país fornece a Łoziński a possibilidade
de um “estudo de caso”. Para compreender a situação política da Polônia, o diretor fez de
sua obra uma tese sobre os setores de dominação e influência populacionais; contudo,
articula-se um estudo universal da linguagem audiovisual, independente de períodos
históricos e sistemas governamentais, pois antes instaura-se um olhar atento à sociedade
e à sua relação com o bombardeamento de imagens cotidianas derivadas da televisão, da
propaganda e do próprio cinema.

Nessa dialética entre autor/personagem e forma/conteúdo, dois de seus trabalhos


mais conhecidos versam sobre uma mesma figura, Urszula Flis, retratada inicialmente no
curta-metragem A Visita (Wizyta, 1974), e depois reapresentada no média-metragem Que
não Doesse (Żeby nie bolało, 1998).

69
A Visita prepara sua geografia com a exponenciação sonora: cavalos relinchando,
galinhas cacarejando e o grito abafado de pneus de motocicletas. Enquanto observando
a jornalista Marta Wesolowska e o fotógrafo Erazm Ciolek, bem vestidos e equipados com
seus aparelhos de filmagem, adentrando um campo monocromático, Marcel Łoziński pa-
rece nos contar, em um único plano contemplativo, a diferença de classes e costumes, a
invasão cosmopolita no pacífico condado de Wysokie, situado na cidade de Lublin, ao
leste da Polônia, onde reside Urszula Flis, uma jovem agricultora intelectual cuja única
companhia é sua mãe doente.

A câmera é quase sempre vigilante, possuindo uma distância que não provoca inti-
midação; todavia, de sua performance à esquiva, percebe-se um interesse inicial em não
se intrometer na ação, para assim ganhar a confiança de suas personagens e colocar em
prática um exercício de provocação. Ela capta os moradores em seus afazeres domésticos,
a força braçal e a mecanização de seus movimentos.

Ao longo do filme, Marta Wesolowska questionará as escolhas de Urszula Flis, mui-


tas das vezes constrangendo-a por suas predileções intelectuais – como o Teatro e a Li-
teratura – e por ser uma mulher solteira, situações as quais, segundo a jornalista, não lhe
garantirão um futuro próspero no campo.

Em entrevista com Ela Bittencourt, Jacek Petrycki conta que, ao ser contratado por
Łoziński para ser o diretor de fotografia de A Visita, viu a oportunidade de pensar “a forma”
do documentário, não apenas o quê era retratado, mas em “como” ele seria realizado.

Marcel queria fazer um filme sobre a mídia, sobre como jornalistas e cineastas podem
ser injustos e brutais em relação a seus assuntos. Sua esposa viu na televisão uma
moça, Urszula, que era perfeita para o filme. Marcel avisou Urszula que ele traria a
mídia, a qual abusaria dela. A jovem jornalista que Marcel trouxe havia se destacado
na política. Ela era forte, mas não comunista. Portanto, o filme não é necessariamente
em preto e branco. Sua essência está na interação entre essas duas mulheres, entre o
ataque de uma e a defesa da outra (PETRYCKI, 2015).

A jornalista trabalha com a persuasão. “Você é a mais inteligente do vilarejo”, e então


lhe direcionada um julgamento, como se a opção de vida de Urszula fosse incorreta. A seu

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ver, estando Urszula em seu espaço, uma agricultora que cuida sozinha de 13 hectares,
teria como melhor escolha seguir um padrão do patriarcado, de trabalhadora e mulher
do lar. “Você acredita que o desenvolvimento humano consiste apenas em ler livros, escrever
cartas ou ir ao teatro de vez em quando?” – aqui, a jornalista afronta o conhecimento, como
se educação e cultura fossem exclusivas de uma só classe. A provocação se estende quan-
do a jornalista afirma que a solução para Urszula é “se adaptar ao ambiente em que vive”.

Ela [Marta Wesolowska] forçou seu ponto de vista, ignorando completamente a sensi-
bilidade da pessoa com quem falou. Era comum então que alguém chegasse “ao cam-
po” com uma tese pronta e alcançasse a realidade. Eu era um estranho nesse método.
Sim, ao preparar um filme, sei mais ou menos o que quero dizer, mas quando vejo a
realidade se movendo em outra direção, sigo a realidade (ŁOZIŃSKI, 2012).

Para Marcel Łoziński, a câmera é um elemento externo, comprovando que o apare-


lho em si não é o fator principal que intimida as ações e suas personagens, mas sim o di-
recionamento das pessoas envolvidas no projeto, porque é a partir deste direcionamento
que uma imagem será eternamente registrada, seja na fotografia ou no vídeo. O con-
fronto parte, sobremaneira, da direção, que poderia interromper a entrevista a qualquer
momento, embora permaneça atenta ao esgotamento de sua personagem, às lágrimas
de seu sofrimento.

Após 23 anos, Marcel Łoziński decide visitar novamente Urszula Flis com parte da
equipe de filmagem d’A Visita. No média-metragem Que não Doesse, contudo, o cineasta
percebe que o seu interesse não é mais questionar o papel da mídia, mas antes entender
o impacto de um filme na vida dos envolvidos – sejam suas personagens, ou a própria
equipe em bastidores.

De fato, “Que não Doesse” não é mais sobre cinema, é sobre o medo que me domina
quando filmo. É uma questão de idade, ou um maior senso de responsabilidade? Eu
não sei. Eu me pergunto muito mais sobre isso do que costumava fazer. Lembro que,
há 23 anos, a coisa mais difícil foi convencer Urszula de que queria ser honesto. Fiquei
com ela por três dias e finalmente consegui (ŁOZIŃSKI, 2012).

Produzido pela TV Polonesa, Telewizji Polskiej S.A, o diretor opta por iniciar o novo
trabalho com imagens d’A Visita. Vemos os bastidores das antigas filmagens, desde o

71
operador de câmera ao captador do som direto: a elaboração da performance. Diante
deste recurso, ao relembrar de seu próprio passado cinematográfico, Que Não Doesse as-
sume-se um filme autoconsciente, não apenas preocupado em situar o espectador, que
pode ou não ter visto o material que originou a nova busca, como também em realocar
seu espaço e tempo, os anos que separam as duas obras.

E então, toda A Visita se repete. Os forasteiros, a jornalista Marta Wesolowska e o


fotógrafo Erazm Ciolek, que aparecem de costas ostentando suas câmeras e microfones,
equipamentos de trabalho. Somos reapresentados aos primeiros entrevistados, aqueles
que não dizem muito sobre Urszula, a não ser que ela é uma mulher diferente na vila,
julgando-a por seus hábitos incomuns. “Eu dirijo um trator, sou solteira, e isso é estranho”,
já disse Urszula. E outra vez constatamos as marcações dos corpos e enquadramentos, a
mise-en-scène que busca um tipo de heroísmo em sua personagem. Apreciar a cultura
pelo cotidiano, por suas ações, ainda que mecânicas, o cotidiano que lhe fornece o de-
sejo pelo conhecimento, olhando para a sua realidade, a identificação de Urszula com a
própria literatura que consome. Abdicar de seu mundo é enxergar o seu cotidiano sem
presente ou futuro.

Passam-se treze minutos. O sépia se esvai e as cores remontam o tempo do pre-


sente, o ano de 1998. Uma nova jornalista, Agnieszka Kublik (da Gazeta Wyborcza), e o
mesmo fotógrafo, Erazm Ciolek, aproximam-se do condado, captados em ângulos seme-
lhantes ao d’A Visita. Escutamos, no entanto, sons industriais sobressaindo-se ao som da
natureza. É o grito da sirene de uma fábrica, uma transformação temporal de aparelha-
mento e maquinário no campo.

Dessa vez, a câmera não quer ficar à esquiva, não mais se comporta como um
voyeur, perdeu a vergonha de outrora e passa até mesmo a frequentar a casa da persona-
gem filmada. Sua observação é participativa, de inclusão.

Urszula descobre que Marta Wesolowska, a jornalista do primeiro filme, deixou de


escrever e hoje vive na Suécia, construindo uma nova carreira em uma companhia de
computação, e, portanto, não quis participar das novas filmagens. Agnieszka Kublik é

72
mais receptiva, demonstra interesse pela história de Urszula e respeita o seu discurso.

“Você se arrepende de ter aceitado que fizéssemos esse filme?”, pergunta Łoziński.

“Não, a reação depois do filme até que foi boa, mesmo na vila”, revela Urszula.

Em outro momento do filme, Urszula recebe uma indicação do diretor, tentando


repetir situações outrora filmadas no curta-metragem. Ela rapidamente compreende o
jogo de encenação de Łoziński, a recriação do passado pela memória das imagens e do
espaço dos anos 1970, não para criar uma alegoria da passagem do tempo, mas de per-
ceber as mudanças das imagens em si, no fazer cinematográfico e na relação entre as
personagens retratadas e seu interlocutor.

Se antes a observação acompanhava o cotidiano, a tentativa de recriar o passado


afetaria o próprio senso de documentário, do registro objetivo. O diálogo então pode ser
expandido: o meio manipularia o próprio passado com o cenário do presente, e não é isso
que Urszula Flis deseja.

Ao dar espaço para sua personagem se questionar, enquanto A Visita assume-se


como filme de confronto, Que não Doesse se portará como um filme de reconciliação.

Sinto que não abusei das ferramentas de câmera e microfone, que somos parceiros
neste filme. Fizemos com a Kasia Maciejko-Kowalczyk 23 ou 24 versões de montagem.
Cortamos, até percebermos que tiramos muito da personagem. Que ela não estava lá.
Então nós restauramos um pouco. E novamente paramos em alguma fronteira. Enviei
à Urszula a versão sem refilmagens. Ela aprovou (ŁOZIŃSKI, 2012).

Łoziński firma um compromisso de alteridade com sua personagem a partir do mo-


mento em que, antes mesmo de finalizar o seu filme, decide mostrar à ela o material
em processo de montagem. Houve não só uma preocupação com a exposição imagética
de Urzsula Flis, como também com o quê foi dito por ela. Dessa maneira, Urszula Flis se
permite ao confronto durante a nova entrevista, ciente de como funciona a preparação
cênica de um filme, mas dessa vez ocupando um espaço de defesa e afirmação de seus
ofícios e identidade.

73
Aproximando-se de seu desfecho, a jornalista Agnieszka Kublik e o fotógrafo Erazm
Ciolek de despedem da fazenda à alvorada, ao passo que o diretor prepara o último ato
de seu filme, uma ação voltada ao duelo entre criador e personagem, Marcel Łoziński e
Urszula Flis.

É Urszula quem primeiro toma a palavra, “Você realmente acha que é muito fácil co-
nhecer uma pessoa?”. Quando Łoziński afirma que é muito difícil compreender o ser hu-
mano, não é revelada a sua distância, uma vez que a mise-em-scène é reduzida a um
plano-contraplano não localizável no espaço. Łoziński e a sua equipe, nesse ato final, sur-
gem sempre na permanência de uma fotografia, um frame cheio de perguntas e poucas
respostas. Não há a exposição do movimento para para além de sua voz.

“Eu desejo que você tenha feito um bom filme e, ao mesmo tempo, eu desejo ser discre-
ta”. Nessa montagem performática entre humano e o meio, Urszula se direciona não mais
ao cineasta Łoziński, mas à iconografia de sua imagem.

“Então como podemos mostrar a verdade?”, é a voz de Łoziński.

“Quem precisa da verdade da qual você está falando? Quem precisa das histórias des-
sas pessoas, seus erros reais ou imaginários? É como uma anedota.”, provoca Urszula. Ela
sabe que o diretor precisa disso para completar o filme, que não é mais sobre si mesma,
mas também sobre Marcel Łoziński.

“Talvez as pessoas refletirão sobre suas vidas? Elas encontrarão um pouco delas em
você”, afirma Łoziński.

Ao que Urszula conclui, justificando com a frase-título que o filme recebe: “Sinto-me
satisfeita com o fato de Marcel fazer um filme sobre mim depois de todos esses anos, mas, por
outro lado, eu queria que não doesse”.

O plano que encerra o documentário é de Marcel Łoziński com o punho cerrado

74
ao queixo, pensativo. Quem pensa é a sua imagem, a imagem de um cineasta por trás
da câmera: a imagem de um personagem. Sua voz não pertence a essa imagem, assim
como essa imagem não define quem ele realmente é. Ausentar-se do movimento impede
o confronto de olhares. Ausentar-se do movimento inibe a sua emoção. Łoziński conse-
gue finalizar o seu filme, logo, para ele talvez não doa tanto – faz parte do narcisismo da
imagem.

Considerações finais

Questionar o papel da mídia na vida privada dos cidadãos poloneses era algo legí-
timo e indissociável ao momento político. O final da Segunda Guerra marca um período
de incertezas e estagnação econômica, que resultaria em uma conturbada crise política
no final dos anos 1960 e que se estendeu até a década de 1980. Ao mostrar a realidade
local sem princípios positivistas e nacionalistas, explorando narrativas sobre o cotidiano
de personagens à margem da sociedade, os cineastas eram cientes que os seus registros,
principalmente documentais, corriam o risco de serem censurados ou arquivados. Devi-
do ao nível de exposição, o acervo dessas vozes e imagens poderia prejudicar os entrevis-
tados quando usado de formas maliciosas pelo Estado.

Assim revela um importante cineasta polonês, Krzysztof Kieślowski:

Fiz um filme chamado Trabalhadores 71 na época das grandes greves na Polônia, e a


polícia sequestrou o material filmado. Não sei como o utilizou. Eu havia prometido se-
gurança às pessoas que participaram do filme, mas afinal coloquei sua própria vida em
risco. Este foi o primeiro sinal, e bastante precoce (pois eu havia começado no cinema
em 1969), de que eu não podia ser responsável pelas consequências do que fazia. Tive
muitas experiências assim (KIEŚLOWSKI in NAGIB, 1995, p. 211-212).

Quando um cineasta vira a câmera para si, transformando-se também em um per-


sonagem da obra, abrem-se possibilidades de observar melhor o mundo, a compreensão
do outro por intermédio de um recurso autorreflexivo; entender que a responsabilidade
dessas imagens visuais e sonoras é também do diretor de um filme, ou de um programa
de televisão, ou de uma reportagem jornalística. Marcel Łoziński enxergou o risco de um

75
material midiático e seus meios de propagação e criou uma tese alarmista sobre os possí-
veis efeitos indeléveis na vida de uma pessoa. “Em A Visita, falo sobre como é fácil evisce-
rar um homem, marcá-lo para a vida toda e depois abandoná-lo, sair e fazer os próximos
filmes” (ŁOZIŃSKI, 2012).

Reencontrar espaços, memórias e personagens 23 anos depois em Que Não Doesse


foi uma maneira de fazer as pazes com o passado por meio de revisionismos formais e
narrativos. Revisitar Urszula Flis é também revisitar Marcel Łoziński.

Eu apenas pensei que valeria a pena me registrar, ver o que aconteceu com ela depois
de anos. E o que aconteceu conosco? Urszula nos contou muito sobre si mesma, sobre
relações familiares, sobre os infortúnios que caíram sobre sua família. Tive a impres-
são de que nenhuma das nossas perguntas a surpreendeu, como se ela já as tivesse
perguntado antes. O que ela fez na frente da câmera foi confissão completa. Ela se
esforçou ao máximo, como se tivesse esquecido que seria um filme. Ela percebeu isso
somente depois das fotos, basicamente me culpando com toda a responsabilidade
pela qual a coloquei. Então, eu me tornei um censor, tive que estabelecer limites. Cor-
tei tudo o que ela podia se arrepender, que excedia os limites da intimidade (ŁOZIŃSKI,
2012).

As relações de poder ainda estão explícitas, e quem detém o poder é aquele que
observa com uma câmera. Contudo, na busca de um novo filme, dessa vez orquestrando
uma ideia sobre a ética de um cineasta, Łoziński demonstra empatia e respeito com a
sua personagem. Mas nem sempre as imagens dão conta da realidade, e é por isso que a
noção de realismo pode ser facilmente manipulada, doa a quem doer.

76
REFERÊNCIAS

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ZAMOYSKI, Adam. História da Polónia. Lisboa: Edições 70, 2010.

77
Filmográficas

QUE NÃO DOESSE. Direção de Marcel Łoziński. Produção de Zbigniew Domagalski,


Janusz Skalkowski, Piotr Sliwinski, Wojciech Szczudlo. 1998. (47 min.), son., P&B.

VISITA, A. Direção de Marcel Łoziński. Produção de Jerzy Herman. 1974. (15 min.), son.,
P&B.

78
A BIOGRAFIA DE ANDREI TARKOVSKI PRESENTE
NO FILME: “O ESPELHO”

Carolina Da Silva Ferrarezi1

VIDA E OBRA: UMA IMBRICAÇÃO INSEPARÁVEL

É certo que a vida não explica a obra, porém certo é também que se comunicam. A
verdade é que esta obra a fazer exigia esta vida. (MERLEAU-PONTY, 1984, P. 122)

Andrei Arsenyevich Tarkovski nasceu na aldeia de Zavrazhye no Distrito Yuryevet-


sky de Ivanovo Industrial Oblast (atual Distrito Kadyysky de Kostroma Oblast) na Rússia
em 1932. Filho de artistas, o pai o famoso poeta e tradutor Arseni Tarkovski, natural da
Ucrânia e sua mãe Maria Ivanovna uma atriz graduada no Instituto de Literatura Maxim
Gorky, que também atuou como revisora em uma gráfica. Teve apenas uma irmã mais
nova Marina Tarkovskaya, que nasceu em 1934.

O cineasta passou sua infância em Yuryevetsky, seus pais se separaram em 1937


quando Andrei Tarkovski tinha apenas cinco anos, ele e a irmã Marina ficam com a mãe
que os cria sozinha. Em 1939 o futuro cineasta muda-se com sua mãe e irmã para Moscou.
Em 1941 seu pai se alista no exército e vai para o front onde perde uma perna. Com o
surgimento da segunda grande guerra e com a batalha de Moscou, não foi possível viver
na capital, dessa forma, a família é rapidamente evacuada para Yuryevetsky, onde Andrei
e a irmã passam a viver na companhia da avó materna. Somente em 1943 com o fim da

1 Formada em Filosofia pela UPM, cursa mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de São
Paulo. Contato: carolina.ferrarezi22@gmail.com.

FERRAREZI, Carolina Da Silva. A biografia de Andrei Tarkovski presente no filme: “O Espelho”, In: GRUPO DE
ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática Artística,
2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 79-95.
batalha contra os alemães, a família retornou à Moscou.

Ao retornar para Moscou, Andrei Tarkovski continua seus estudos na antiga escola,
onde conhece o poeta Andrei Voznesensky, um dos seus colegas de classe. Nesse período
com o apoio da mãe, Andrei Tarkovski estudou música e pintura, manifestando sua veia
artística. De novembro de 1947 a primavera 1948, o cineasta ficou internado no hospital
com tuberculose. Após a formatura do ensino médio em 1952, Andrei Tarkovski estuda
árabe no MIV (Instituto de Estudos Orientais de Moscou), e geologia na Sibéria. Em 1954
durante uma expedição de pesquisa pelo rio Kureikye próximo de Turukhansk na provín-
cia de Krasnoyarsk que o cineasta decidiu estudar cinema. Dessa maneira, abandona o
trabalho como prospector de minérios para a Academia de Ciências Instituto de Metais
não Ferrosos e Ouro, e em 1954 entra na famosa escola de cinema VGIK em Moscou.

Podemos observar que a infância de Andrei Tarkovski é marcada por acontecimen-


tos sensivelmente marcantes para o cineasta: a relação de seus pais, a ausência paterna,
as guerras, a vida no campo, o contato com a música e a arte e o tempo no hospital são
vivencias significativas que irão refletir na sua forma única de fazer cinema. Em especial
no filme “autobiográfico” “O espelho” (1974), que pretendemos analisar neste artigo.

Ao entrar na escola de cinema, o futuro cineasta já se destaca pela sua concep-


ção cinematográfica, seu professor Mikhail Romm percebia o grande potencial de Andrei
Tarkovski. Enquanto esteve na escola de cinema, fez o curta para a televisão “Hoje não
haverá saída livre” (1959) e o curta metragem premiado: “O rolo compressor e o Violinista”
(1960).

Em 1957 Andrei Tarkovski casa-se com a atriz Irma Raush com quem tem seu pri-
meiro filho Arseny Tarkovski, o casamento termina em 1970. A atriz atuou em dois de seus
filmes: A infância de Ivan (1962) e Andrei Rublev (1966). E após a separação manteve uma
relação difícil com a ex-mulher, cercada de empecilhos para ver o filho. No mesmo ano do
fim de seu primeiro casamento, o cineasta casa-se com a atriz russa Larissa Tarkovskaya
com quem tem seu segundo filho Andrei A. Tarkovski e ficará casado até o fim de sua vida.

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É importante destacar que Andrei Tarkovski vive um período muito difícil na União
Soviética, desde sua infância até a vida adulta. As guerras sempre deixam suas marcas, é
difícil reconstruir, e o passado está sempre no presente. Além disso, o regime político do
país era duramente repressivo, especialmente com os artistas, que sofriam duras censu-
ras. Em seus diários, escritos entre 1970 até 1986, Andrei Tarkovski narra os acontecimen-
tos de sua vida, e em diversos momentos o artista se queixa sobre a dificuldade de fazer
o que amava.

O cineasta relata que em vinte anos de trabalho, sentia como se tivesse dezesse-
te anos de desemprego. Seus roteiros nunca eram aceitos, seus filmes tinham inúmeras
críticas, diversos pedidos de alterações. Precisava sempre reescrever discretamente os
roteiros para conseguir uma aprovação, sem contar que o intervalo entre os seus filmes
era enorme. Os “chefes” de Andrei Tarkovski pareciam não o suportar, evitavam divulgar
seus filmes no seu próprio país e recusavam diferentes eventos estrangeiros para não
promover o nome de Andrei Tarkovski.

Com muitas dificuldades de trabalhar em seu país, no ano de 1982, Andrei Tarkovski
deixa a Rússia, primeiramente sozinho, depois Larissa se junta ao marido na Itália, mas o
filho “Andriucha” é impedido pelas as autoridades de se juntar à família. O cineasta passa
os últimos anos em uma luta incessante com as autoridades russas para poder ver o filho,
e infelizmente só consegue reencontrá-lo no mesmo ano de sua morte. Na Itália recome-
ça sua carreira filmando um filme em parceria com Tonino Guerra e depois trabalha em
seu último filme na Suécia. Andrei Tarkovski morre com apenas 54 anos em Paris no ano
de 1986, vítima de câncer.

O cineasta produziu cinco filmes na Rússia, um documentário e um filme na Itália e


seu último filme na Suécia, totalizando apenas oito produções de longa-metragem. Sendo
eles: “A Infância de Ivan” (1962), “Andrei Rublev” (1966), “Solaris” (1972), “O espelho” (1974),
“Stalker” (1979), “Tempo de Viagem” (1983), “Nostalgia” (1983) e “O Sacrifício” (1985).

O cinema de Andrei Tarkovski expõe uma linguagem cinematográfica voltada para


a problemática existencial humana. Na maioria de seus filmes, os seus personagens tra-

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zem as angústias do homem lançado em um mundo que se abre aos mistérios da existên-
cia. A natureza está sempre presente, seu potencial estético, sua vitalidade e sua posição
revelam um homem que convive em intersecção com seu meio ambiente.

No documentário: Viagem pela Itália (1983), que traz as filmagens da viagem que
Tonino Guerra e Andrei Tarkovski percorreram pelo país para se prepararem para o filme
Nostalgia (1983), em uma das cenas do documentário, Andrei Tarkovski responde uma
pergunta que fora enviada por meio de uma carta de um de seus espectadores. O jovem
questiona que conselho o cineasta daria para os futuros companheiros de profissão? Ele
responde:

Hoje, qualquer um acha que pode fazer um filme, não gosto muito de dar conselhos,
mas a coisa principal que posso dizer ao iniciante, é que aprenda a não separar o pró-
prio trabalho, os próprios filmes, o cinema, afinal de sua vida cotidiana. Não deve haver
fratura entre as próprias obras, o próprio trabalho e as ações próprias. Isso porque o
diretor é igual ao pintor, ao poeta, ao músico. E como deve se entregar totalmente à
sua arte, fica estranho ver um diretor que considera o próprio trabalho como algum
privilégio, algo trazido pelo destino, e que se contenta só do próprio passado. Eles
vivem de uma maneira e fazem seus próprios filmes de modo totalmente diferentes.
Quero dizer, ainda, aos jovens diretores, que devem responder moralmente pelo filme
que mostram. Isso é o essencial. (NOSTALGIA, 1983)

Nesta fala podemos compreender por que Andrei Tarkovski cria um cinema que
nunca envelhece, como uma obra de arte que perpassa o tempo, seus filmes são sempre
atuais, pois sua subjetividade, seu olhar perante a existência, sua própria vida aparece na
tela como obra de arte. Sua vida não justifica sua obra, mas vida e obra estão imbricadas
na sua forma única de fazer cinema, de dar luz à expressão artística, assim como fazem os
pintores, os poetas e os músicos.

Para o cineasta a capacidade do cinema em captar o tempo, era sua essência mais
importante, por isso, o trabalho do diretor é de “esculpir o tempo”, conceito que ganha
o título do seu livro sobre cinema. De acordo com Tarkovski (2010), as pessoas buscam
o tempo no cinema: o tempo perdido, consumido ou ainda não encontrado. O especta-
dor procura uma experiência viva, e o cinema possibilita isso, pois amplia, enriquece e
concentra a experiência de uma pessoa, e não somente enriquece, mas como também a

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torna mais longa. Por isso, o cineasta relata em seu livro: que o objetivo de seus filmes era
de trazer a própria vida na tela. Em seu filme “O Espelho” (1974) o cineasta realiza esse ato,
traz sua própria vida na tela, e ao trazê-la, de certa forma, acaba também representando
a vida de inúmeros espectadores.

Muitas coisas, afinal, ficam em nossos corações e pensamentos como sugestões não
concretizadas. Em vez de tentar captar essas nuances, a maior parte dos filmes des-
pretensiosos e é “realistas” não só as ignora, como faz questão de usar imagens muito
nítidas e explicitas, o que no máximo consegue tornar o filme forçado e artificial. No
que me diz respeito, só admito um cinema que esteja o mais próximo possível da vida
– ainda que em certos momentos, estejamos incapazes de ver o quanto a vida é real-
mente bela. (TARKOVSKI, 2010, p.20).

Com essa intenção, Andrei Tarkovski desenvolve uma narrativa cinematográfica fei-
ta de imagem e movimento, trazendo um olhar diferente para o cinema, demonstrando a
vida como ela realmente é, relatando o homem que não constrói o mundo, mas que está
lançado nele. É interessante perceber como o cineasta incorpora os elementos da natu-
reza em seus filmes. Percebemos as imagens da terra, do fogo, da água e do ar em forma
de vento sempre presentes em sua forma de fazer cinema. O homem de Andrei Tarkovski
possui uma relação inerente com a natureza, um indivíduo que retrata seu envolvimento
com a vida cotidiana, e que de certa forma, transparece na tela as características e os de-
safios universais de um homem que se faz no mundo.

Dessa forma, o cinema de Andrei Tarkovski faz emergir na tela, a união do espírito
e do corpo, do espírito e do mundo, da intersecção e do movimento de um no outro. A
experiência do homem no mundo é um “reaprender a ver”, que pode ser identificado
na percepção de um invisível que será posto à visibilidade por intermédio do artista. O
movimento artístico ultrapassa todas as barreiras morais e possibilita o espaço ao novo.
O trabalho do cineasta de esculpir o tempo é, na tela, demonstrar as possibilidades de
ser-no-mundo, bem como, nossas angústias, aspirações, medos e nossa memória. A uti-
lização das imagens dos rostos humanos, assim como o registro do envolvimento do ho-
mem com os fenômenos da natureza eram muito importantes para o diretor. Pois, as ima-
gens das expressões faciais dos atores contribuem significativamente para desvelarmos
os sentimentos internos dos personagens. Para o diretor o sentimento também se faz ver

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no comportamento dos personagens.

A forma de ser-no-mundo de Andrei Tarkovski, expressa sua forma única de fazer


cinema. Sua visão de mundo, seu caráter subjetivo, sua veia artística não se separam de
sua biografia, de suas vivencias pessoais. Por isso, vida e obra formam uma imbricação
inseparável. Para o cineasta, o primordial era o comprometimento do artista com a sua
arte, o sucesso pode ser uma consequência, mas nunca uma busca. A arte em um sentido
metafórico colabora para despertar o homem do seu silêncio existencial, ou seja, trazê-lo
para a sua tarefa de vivenciar significativamente o seu estar no mundo. Pois, o contato
com a arte é a porta para nos conectarmos e refletirmos sobre o mundo e o nosso papel
significativo nesta existência, e os filmes de Andrei Tarkovski nos proporcionam essa ex-
periência.

De qualquer modo, fica perfeitamente claro que o objetivo de toda arte – a menos, por
certo, que ela seja dirigida ao “consumidor”, como se fosse uma mercadoria – é explicar
ao próprio artista, e aos que o cercam, para que vive o homem, e qual é o significado
da sua existência. Explicar às pessoas a que se deve sua aparição neste planeta, ou, se
não for possível explicar, ao menos propor a questão. (TARKOVSKI, 2010, p. 38)

UMA ANÁLISE ESTÉTICA DO FILME: O ESPELHO

Ao lermos “Os Diários” de Andrei Tarkovski, na parte em que o cineasta comenta


ainda sobre a ideia nascente do filme “Um Dia branco”, que futuramente levara o nome
de “O Espelho”, percebemos um desejo latente do diretor de “acertar as contas” com sua
memória, com seu passado. No seu livro “Esculpir o Tempo”, Andrei Tarkovski (2010) conta
que ao terminar de filmar “O Espelho”, as recordações de sua infância que por muito tem-
po não o deixavam em paz, por um instante desapareceram, como que por um encanto,
e o cineasta pôde deixar de sonhar com a casa que vivera em sua infância.

No Filme “O Espelho” de 1974, com direção de Andrei Tarkovski e roteiro também


do diretor em conjunto com Aleksandr Misharin, encontramos o desvelar da biografia
do cineasta. De uma forma lírica, profunda e espiritual, esse filme traz a representação
mais próxima do movimento da memória, que é construído pelo diretor de uma maneira

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excepcional. Elaborado com uma narrativa não linear, o filme se constrói por meio do
narrador personagem da história Alexei que está aparentemente próximo da morte, e
recorda seu passado, começa a repassar sua vida, em especial sua infância com um desejo
melancólico de poder retorná-la.

Percebemos que Alexei representa o próprio Andrei Tarkovski no filme, um perso-


nagem narrador, que não vemos nas cenas, apenas escutamos sua voz e a construção de
suas lembranças no desenvolvimento da película. Do mesmo modo que o cineasta relata
em seu livro “Esculpir o Tempo” a angústia de suas lembranças que tanto o atormenta-
vam, assim também ocorre com o protagonista. Por meio da narrativa imagética de Ale-
xei, vivenciamos a história da dor e do remorso de um homem que não amou sua família
o suficiente. E essa ideia o atormenta por uma busca incessante de retornar ao passado.

O Espelho não foi, em absoluto, uma tentativa de falar sobre mim mesmo. Ele fala-
va sobre meus sentimentos para com as pessoas que me eram muito queridas, sobre
meu relacionamento com elas, sobre minha eterna compaixão pelo seu sofrimento e
pelas minhas próprias falhas – o meu sentimento de dever não cumprido. (TARKOVSKI,
2010, p. 160)

Andrei Tarkovski ao trazer sua subjetividade, seus sentimentos e de certa forma sua
própria vida na tela não constrói um “típico” filme autobiográfico, pelo contrário, o filme
transpassa o caráter individual para uma universalidade, pois tece sentimentos universais
e também compõe a áurea de uma época marcada pela guerra, bem como, um modo de
ser russo. A história do diretor contata no filme, se torna a história de diversas pessoas que
viveram em sua época. No prefácio do seu livro “Esculpir o Tempo” nos deparamos com al-
guns depoimentos de seus espectadores que confirmam esse envolvimento com o filme:

“De que fala esse filme? De um homem. Não daquele homem em particular, cuja voz
ressoa por trás da tela, representado por Innokenti Smoktunovsky. É um filme sobre
você, o seu pai, o seu avô, sobre alguém que viverá depois de você, e que, ainda assim,
será ‘você’. Sobre um homem que vive na terra, que é parte da terra, a qual, por sua vez,
é parte dele, sobre o fato de que um homem responde com a vida tanto ao passado
quanto ao futuro. Deve-se ver esse filme com simplicidade e ouvir a música de Bach e
os poemas de Arseni Tarkovski; vê-lo da mesma maneira como se olha para as estrelas
ou para o mar, ou ainda, como se admira uma paisagem. Não há, aqui, nenhuma lógica
matemática, pois esta não é capaz de explicar o que é o homem ou em que consiste o
sentido de sua vida.” (TARKOVSKI, 2010, p. 4).

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Um professor de Novosibirsk escreveu? “Nunca escrevi a nenhum ator para dizer o que
eu sinto sobre um livro ou filme. Este, porém, é um caso especial: o filme livra o homem
do encantamento do silencio, permite que ele liberte o espírito das ansiedades e das
coisas vãs que o oprimem. Participei de um debate sobre o filme. Tanto os “físicos”
quanto os “líricos” foram unânimes: o filme é profundamente humano, honesto e rele-
vante – tudo isso se deve ao seu autor. E todos os que falaram, disseram: ‘Este filme fala
de mim.’ ” (TARKOVSKI, 2010, p. 6).

Na primeira cena do filme, após o episódio de abertura com o “gago”, temos a lem-
brança de Alexei quando criança de sua mãe sentada na cerca, fumando um cigarro, a
espera do marido, que os abandonaria naquela mesma época. Uma curiosidade sobre
essa cena, que está representada pela figura abaixo, é que o diretor conta em seu livro
“Esculpir o Tempo”, que não revelou para a atriz Margarida Terekhova que interpreta a
mãe de Alexei na juventude (mãe de Andrei Tarkovski), o enredo da história, se seu mari-
do chegaria. Andrei Tarkovski queria que a atriz tivesse a mesma experiência que sua mãe
teve ao esperar pelo marido, sem saber como seria sua relação futura com o esposo. O
cineasta tinha receio que de alguma forma, até mesmo inconsciente a atriz perpassasse
o sentimento da futilidade da espera, por saber que ele não chegaria. A cena precisava
registrar a singularidade daquele momento.

Figura 1: Mãe de Alexei esperando pelo marido (captura de tela)

A casa mostrada no filme foi criada a partir da réplica da casa em que o cineasta
viveu na infância, e foi reconstruída no mesmo lugar. Andrei Tarkovski (2010) relata que
quando a casa ficou pronta, levou sua mãe, Maria Ivanovna (que também participa do

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filme interpretando sua própria mãe, mais velha) para ver a casa, e sua reação superou
todas as expectativas do diretor. Maria Ivanovna experienciou à volta ao seu passado,
despertando sentimentos na atriz que o filme tinha a intenção de expressar.

Figura 2: A réplica da casa da infância de Andrei Tarkovski (captura de tela)

Outras cenas que complementam de forma expressiva a narrativa estética do filme


são as representações dos sonhos de Alexei. A cena que o pai ajuda a lavar os cabelos da
mãe, e a cena quando a mãe flutua na cama trazem uma realidade material e profunda,
uma apresentação extremamente fiel de como os sonhos são constituídos. Também po-
demos observar que as imagens vividas da natureza e seus fenômenos estão sempre pre-
sente no filme, os quatro elementos: fogo, água, terra e ar (em forma de vento), perpassa
toda a obra de “O Espelho”, demonstrando a integração dos personagens com a natureza.

Figura 3: Sonho de Alexei – A mãe lavando os cabelos (captura de tela)

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Figura 4: Sonho de Alexei – A mãe flutua na cama (captura de tela)

Maria Ivanovna, mãe de Andrei Tarkovski quando jovem atuou como revisora em
uma gráfica, e o cineasta inclui esse episódio da vida de sua mãe no roteiro do filme. Na
cena em que a protagonista tem a impressão de que cometeu um erro no “jornal” que foi
impresso, a mesma sai correndo para a gráfica para verificar sua suspeita. Não entendemos
o porquê de a personagem ficar tão angustiada, mas um detalhe sutil na cena pode nos
ajudar a decifrar o que para os russos pode ser de certa forma, evidente. No momento em
que ela termina de conferir o material impresso e percebe que não tinha cometido o erro,
fica extremamente aliviada, se levanta e aparece um quadro na parede que se assemelha a
figura de Josef Stalin. É importante ressaltar que no regime de Josef Stalin (1920-1953) não
havia espaço para erros, o equivoco podia resultar em consequências devastadoras.

Figura 5: A mãe de Alexei na gráfica de impressão (captura de tela)

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Outro elemento que o cineasta traz de sua biografia e que se incorpora à essência
do filme está nas imagens documentais dos episódios da guerra. Afinal, a guerra e toda
a estrutura do regime soviético marcaram profundamente a vida de Andrei Tarkovski. O
cineasta juntamente com as filmagens da guerra também inclui os poemas de seu pai: Ar-
seni Tarkovski, narrados por ele mesmo e essa junção tem o efeito de ligar todo o enredo
do filme, no sentindo de fluir e estabelecer uma conexão entre as imagens e os poemas.
Andrei Tarkovski (2010) relata que quando assistiu a essas imagens da guerra percebeu
que teria que usá-las e que se tornariam um ponto central do filme. O espírito daquelas
pessoas devastadas por um esforço terrível e desumano daquele trágico período históri-
co se tornaria o coração do filme que teve início com sua própria biografia, sua reminis-
cência lírica íntima de suas lembranças que tanto o atormentavam. Assim, as imagens da
guerra falavam de imortalidade e o uso dos poemas de Arseni Tarkovski possibilitou a
consumação do seu significado fundamental.

Figura 6: Exército vermelho atravessa o lago Sivash (captura de tela)

Assim como uma obra de arte, o filme está aberto para uma experiência estética
subjetiva, e nos faz refletir de diferentes formas à proposta artística de Andrei Tarkovski.
Um aspecto importante que nos remete a possível escolha do título do filme (“O Espe-
lho”) está diretamente relacionado nas relações que o protagonista Alexei teve com sua
mãe e seu pai, e como isso é replicado na sua vida. Percebemos a ausência do pai desde
a infância de Alexei e um relacionamento difícil com a sua mãe. Depois quando adulto
Alexei na função de pai de Ignate se comporta da mesma forma que seu pai se compor-

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tou: distante e com uma relação conturbada com a ex-mulher. É importante destacar que
a mesma atriz que interpreta a mãe de Alexei na juventude, faz também a sua esposa,
Natalya. E o mesmo ator que faz seu filho, Ignate, o interpreta na adolescência. Temos a
impressão de que a história se repete: como se a mãe espelhasse a esposa e o ele espe-
lhasse seu próprio filho, formando uma possível ideia de eterno-retorno.

Outra particularidade que também nos aproxima da motivação da escolha do título


do filme é a utilização do próprio objeto simbólico espelho. Observamos o emprego do
objeto em diferentes cenas. Os personagens estão sempre se olhando através do espe-
lho, como se tivessem encarando sua própria pequenez, se perdendo na imagem entre
o representante e o representado. O objeto também é utilizado nas cenas que formam
a passagem entre as memórias do narrador, nas mudanças não lineares do tempo, e por
vezes nos remete a ideia de vidas espelhadas.

Figura 7: Alexei se olha no espelho (captura de tela)

É relevante destacar que a obra do cineasta está em constante diálogo com outras artes,
seja pela inclusão dos poemas de seu pai, como citamos, ou pela inserção de obras de artes,
músicas de Bach e a literatura russa. No seu livro “Esculpir o Tempo”, Andrei Tarkovski nos presen-
teia com uma explicação estética do uso do quadro – Retrato de uma jovem com um ramo de
zimbo, de Leonardo Da Vinci no filme “O espelho”. Leonardo Da Vinci era um dos pintores que
Andrei Tarkovski mais admirava. O cineasta destaca que os quadros do pintor demonstram a ca-
pacidade do artista em examinar o objeto de fora, com um olhar que paira por cima do mundo.

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Assim, os quadros de Leonardo Da Vinci parecem sempre nos inquietar, rodeados
de mistérios assumem uma oposição que é impossível dizer a impressão final que o qua-
dro produz em nós. Não sabemos se gostamos ou não da mulher representada, se ela é
simpática ou desagradável. Ela nos parece ao mesmo tempo atraente e repugnante. O
belo e o satânico parecem tecer sua imagem. E a utilização deste quadro no filme, além
de ser escolhido como elemento atemporal, ao mesmo tempo compõe o confronto entre
o retrato e a heroína do filme, enfatizando nela e na atriz, Margaria Terekhova, a mesma
habilidade de ser encantadora e repugnante.

Figura 8: Quadro: Retrato de uma jovem com um ramo de zimbo - Leonardo Da Vinci (captura de tela)

Figura 9: O olhar da heroína (captura de tela)

No filme também temos a impressão do destaque da figura feminina. Os homens


parecem ausentes na trama, ou quando aparecem estão distantes, assim como a figura

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paterno-masculina de seu pai esteve longe em sua infância. As mulheres são as protago-
nistas do filme, sua força motriz, seu caráter antagônico ganham destaque. Não somente
pelo fato do cineasta ter sido criado somente por mulheres, mas também pelo próprio
espírito do filme, da época que Andrei Tarkovski vive os acontecimentos de uma Rússia
que é representada por crianças e mulheres.

A cena final do filme é simplesmente fantástica. O encontro entre o passado e o


presente, por meio da cena do pai e da mãe de Alexei jovens apaixonados deitados na
grama da casa de infância do narrador, e logo depois passa à cena de sua mãe já idosa
(interpretada pela própria mãe de Andrei Tarkovski) com Alexei e Marina ainda crianças,
representa a personificação do reencontro com o tempo: passado e presente estão de
mãos dadas, imbricados em um uno significativo.

Figura 10: Cena final do filme – A mãe de Alexei com ele e Marina (captura de tela)

Por fim, percebemos que a vida não justifica a obra, mas que ambas se complemen-
tam, se fundem para dar luz à proposta estética de Andrei Tarkovski, de um cinema como
expressão artística. A biografia presente no filme “O Espelho” nos apresenta um homem
sensível com o mundo e com outros, um artista que sente remorso, cujo passado não
consegue se desvencilhar, e talvez ao trazer sua vida para o filme consiga finalmente se
sentir em paz com suas lembranças. Como um pintor que precisa pintar uma paisagem,
o cineasta precisou trazer para a visibilidade o que estava no campo do invisível, com-
partilhando sua singularidade. O aspecto fundamental do filme é justamente o fato de

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não ser apenas um retrato autobiográfico. Andrei Tarkosvki parte da sua biografia, mas
o efeito de seu filme é universal, os espaços deixados pelo cineasta para as experiências
subjetivas dos espectadores, e todos os elementos artísticos e simbólicos fazem do filme
“O Espelho” uma obra de arte.

93
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ma. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

_____. O Olho e o espírito. Trad. Nelson Alfredo Aguilar. Os Pensadores. 2ª ed. São Pau-
lo: Abril Cultural, 1984.

_____. O Visível e o Invisível. Trad. José Artur Gianotti e Armando Mora d’Oliveira. 4ª
ed. São Paulo: Perspectiva, 2017.

STRUGPÁTSKI, Arkádi & Boris. Piquenique na estrada. Trad. Tatiana Larkina. São Paulo:
Aleph, 2017.

TARKOVSKI, Andrei. Diários 1970 – 1986. São Paulo: É Realizações, 2012.

___________________. Esculpir o tempo. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 3ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2010.

Wölfflin, H. - Conceitos fundamentais da história da arte. São Paulo: Martins Fontes,


1996.

Filmografia

A Infância de Ivan (Ivanovo Detstvo, Andrei Tarkovski, URSS, 1962).

Andrei Rublev (Andrei Rubliov, Andrei Tarkovski, URSS, 1966).

Nostalgia (Nostalghia, Andrei Tarkovski, Itália, 1983).

O Espelho (Zerkalo, Andrei Tarkovski, URSS, 1974).

O Sacrifício (Offret, Andrei Tarkovski, Suécia, 1985).

94
Solaris (Soliaris, Andrei Tarkovski, URSS, 1972).

Stalker (Andrei Tarkovski, URSS, 1979).

Tempo de Viagem (Tempo di viaggio, Andrei Tarkovski, URSS, 1983).

95
DOGMA 95:
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOGRAFIA DO MOVIMENTO

Felipe Monteiro Pereira de Araújo1

Introdução

No ano de 1995, os diretores dinamarqueses Lars von Trier e Thomas Vinterberg,


em razão da (comemoração?) do centenário do advento do cinema, redigiram e publica-
ram, no teatro Odéon, localizado na cidade de Paris, um manifesto cinematográfico de-
nominado Dogma 95, no qual vão de encontro às produções realizadas na sétima arte de
seu tempo. Fundamentaram-se, portanto, em uma “ação de resgate” (TRIER; VINTERBERG,
1995, p. 1), em que visavam recuperar uma suposta “essência” artística que, segundo eles,
o cinema havia perdido após os anos 60. Para tanto, os diretores utilizam-se de dez regras
estipuladas no seu manifesto, criando um norte de orientação para a restauração do as-
pecto simbólico nas produções cinematográficas dali em diante. Para pensar a identida-
de do movimento é necessário aprofundar nas suas características formativas, posto que
este é constituído por correntes que, por ora, se apresentam de forma difusa e paradoxal.
É neste sentido, portanto, que se pretende neste estudo problematizar o lugar do Dogma
95, averiguando os seus respectivos não-lugares, a fim de concatenar melhor as motiva-
ções, influências e identidades que lhe são inerentes.

As motivações do Dogma 95

1 Graduando em História pela Universidade Estadual de Goiás (UEG). Correio eletrônico: feh_mj@
hotmail.com

ARAÚJO, Felipe Monteiro Pereira de. Dogma 95: considerações sobre a biografia do movimento, In: GRUPO
DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática Artística,
2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 96-114.
A década de 60 traz, dentro da história do cinema, o advento da Nouvelle Vague e
as discussões teóricas levantadas no debate interno vivenciado pelos autores e cineastas
responsáveis pela ascensão desta escola francesa de cinema. É aqui, portanto, que pode-
mos começar a traçar alguns dos possíveis motivos que viriam, posteriormente, a ensejar
a proposta dinamarquesa do Dogma 95. De fato, já em 1954, o cineasta francês François
Truffaut publica um artigo intitulado Une certaine tendence du cinéma français, no nº 31 da
revista Cahiers du Cinema, palco das principais discussões relacionadas ao cinema dentro
do movimento, em que o cineasta expõe suas ressalvas quanto a situação do cinema
francês naquele momento, pois em suas próprias palavras:

Esta escola (francesa), que visa o realismo, sempre o destrói no momento em que o
capta, mais ansioso para encarcerar seres em um mundo fechado, protegidos por fór-
mulas, trocadilhos e máximas, do que deixá-los para se mostrarem como são, diante
de nossos olhos. O artista nem sempre pode dominar seu trabalho. Ele às vezes deve
ser Deus, às vezes sua criatura. (TRUFFAUT, 1954 apud LIMA, 2018, p. 73)

Desta forma, o olhar do cineasta se volta para uma certa vacância de sentido nas
produções francesas daquele período, salientando a instrumentalização no processo cria-
tivo dos cineastas franceses, posto que “o cineasta observa que o cinema francês caminha
rumo a uma proposta comercial que visa a satisfação das massas atendendo a um apelo
da ‘moda’ cinematográfica” (LIMA, 2018, p. 73). É isto que os proponentes do Dogma 95
querem salientar quando relembram o período de 1960. Observaram eles que a crítica
direcionada por Truffaut, que se estendia em larga escala para outros representantes da
Nouvelle Vague, estava correta. O ponto de discordância entre as duas escolas, portanto,
diz respeito justamente à ruptura propositiva, posto que “se Truffaut teve a coragem de
denunciar o cinema ilusório, lhe faltou agressividade para romper definitivamente com
a metodologia tradicional dos recursos fílmicos disponíveis à época” (LIMA, 2018, p. 75).
Considerando este contexto, o Dogma 95 vai mesmo contrariar a proposta dos franceses,
que propugnava “[...] a recusa do que é produzido na França (salvo seletas exceções) e o
cinema americano como foco privilegiado para a busca de autores que, de certa forma,
driblam o sistema e se impõem como artistas coerentes, capazes de construir uma escri-
tura” (MANEVY, 2006, p. 221).

Esta precedência pelo autor e pelo estilo, característica indissociável da Nouvelle

97
Vague, é vista pelos dinamarqueses como um fomento, ainda que sem a intencionali-
dade, das bases daquilo que os próprios franceses criticavam. De fato, para os cineastas
dinamarqueses “o próprio cinema anti-burguês tornou-se burguês, porque os fundamen-
tos sobre os quais suas teorias se baseavam era a percepção burguesa da arte. O conceito
de autor era o romantismo burguês desde o início e, assim, ...falso!” (TRIER; VINTERBERG,
1995, p. 1). Esse enfoque na autoria e na exultação de “mais cinema”, por parte dos fran-
ceses, identificava-se, assim, justamente como um artifício de ilusão ajambrado pelos
responsáveis pela produção do filme e, consequentemente, contrário aos pressupostos
dinamarqueses. Fica expresso, então, no próprio texto do manifesto, quando prenunciam
que “o Dogma 95 tem o objetivo expresso de contrariar ‘certas tendências’ no cinema
hoje” (TRIER; VINTERBERG, 1995, p. 1), o intento de romper com as bases do que, para os
cineastas dinamarqueses, constituía a falsificação do fazer cinematográfico, resultante do
processo de massificação e comercialização da arte fílmica. É nesse sentido, por fim, que
se caracteriza a ideia de “resgate” proposta pelo Dogma.

Tal reflexão, contudo, nos desperta para a seguinte incógnita: se a proposta do Dog-
ma consiste num resgate, qual a referência sob a qual ele lançará luz em nome deste pro-
cesso de recuperação? Além disso, qual o motivo desta possível referência ser a almejada
por eles e qual o método passível de utilização para chegar até ela? Para entender melhor
isto, faz-se necessário investigar mais a fundo o próprio texto do manifesto Dogma 95 e
buscar nele os sinais que nos permitam voltar na história do cinema e entender de manei-
ra mais profunda o seu intento. Nas palavras dos próprios cineastas:

A tarefa “suprema” dos cineastas decadentes é enganar o público. É disso que estamos
tão orgulhosos? É isso que os “100 anos” nos trouxeram? Ilusões através das quais as
emoções podem ser comunicadas? Pela livre escolha de truques do artista individual?
[...] Como nunca antes, a ação superficial e o filme superficial estão recebendo todos
os elogios. O resultado é estéril. Uma ilusão de pathos e uma ilusão de amor. (TRIER;
VINTERBERG, 1995, p. 1)

Nas entrelinhas deste trecho, é possível percebermos o forte enfoque que os direto-
res realçam sobre a presença do realismo na construção do filme e a consequente repulsa
a falsificação do filme, vide que consideram a abordagem ficcional um mecanismo de ilu-
são do espectador. Esta crítica, sobremaneira, direciona-se ao modo de produção fílmica

98
padronizado pela indústria hollywoodiana, posto que

O cinema hollywoodiano e o industrial em geral [...] obedecem ao [...] Modo Institucio-


nal de Representação – MIR (Institutional Mode of Representation) que se consolidou
na tentativa de construção de um mundo convincentemente real, mas tecnicamente
transparente, invisível. O MIR está vinculado historicamente à emergência da ideolo-
gia do ilusionismo, nascido na “intelligentsia” burguesa do século 19 em seu sonho de
“recriação da realidade”, de uma perfeita ilusão do mundo perceptual. O MIR é consti-
tuído por uma série de códigos para a recriação deste mundo ilusório: o ator não pode
olhar para a câmera para não romper a aparência de um universo fechado e isolado
daquele onde está o espectador, a ênfase nos olhares e nas reações individuais em
busca de identificação com os personagens, a composição do quadro e da iluminação
visando eliminar a realidade de duas dimensões da tela de projeção. (FURUITI, 2003,
p. 20)

Esta conjuntura de aspectos impulsionou a crítica dinamarquesa, que ensejou a


busca por elementos que visassem dar conta da aproximação do filme com a realidade.
Neste sentido, a proposta dinamarquesa identificou alguns pontos que considera fulcrais
nessa busca pelo real, tais como a proibição da construção da mise-em-scène, da utiliza-
ção de efeitos visuais e sonoros, do crédito ao cineasta, dentre outras normas. Essas me-
tas estipuladas, de maneira geral, visam lançar luz sobre um mecanismo de realce do real
em detrimento do ilusório. Tais pontos, contudo, apesar de possuírem uma forte carga
performática, são dispostos através de uma abordagem que se utiliza de uma argumen-
tação de traços ético-religiosos, de modo que

Somando-se aos traços estilísticos, uma questão conceitual reforça a presença de tra-
ços da mitologia cristã por trás do discurso dinamarquês. A primeira evidência nesse
sentido é a oposição binária (verdade x ilusão), que constitui o eixo central do manifes-
to e reproduz uma visão de mundo maniqueísta, compartilhada com a moral dessa re-
ligião. Do mesmo modo, o mote da revelação da verdade como método de libertação
do ilusionismo (“meu objetivo supremo é resgatar a verdade” é a penúltima frase do
manifesto), somado à ausência de uma definição clara para o que seria essa “verdade”,
atribui à ela um aspecto absoluto e mágico, uma vez que se acredita que a sua simples
exposição pública seja suficiente para destruir os vícios que se opõem a ela, procedi-
mento comum a várias religiões, notoriamente ligadas ao cristianismo. (HIRATA FILHO,
2008, p. 125)

A utilização deste discurso, de modo a conceber um caráter místico aos pressupos-


tos dogmáticos, confere um caráter paródico ao texto do manifesto. A própria utilização

99
de uma lista de regras composta por dez mandamentos que restringem os impulsos do
fazer cinematográfico já constitui, por si só, em uma paródia referente aos dez manda-
mentos cristãos. Para além desta roupagem ética-cristã em tom irônico, contudo, o dis-
curso relacionado à busca pela verdade em detrimento da ilusão fílmica encontra rastros
anteriores na própria história do cinema mundial, apontando para similaridades que con-
ferem ao movimento dinamarquês o seu caráter de resgate. Sobremodo, podemos citar o
neorrealismo italiano como um exemplo destes períodos, visto que nesta escola pode-se
perceber que:

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a Itália começou a reconstruir-se e a deixar


para trás as ruínas materiais e morais que a assolavam. A tarefa de reerguer moralmen-
te o país caberá aos intelectuais, pois estes sentiam a necessidade de deixar as torres
de marfim nas quais haviam se refugiado durante o chamado vicênio fascista (outubro
de 1922 – julho de 1943) e de intensificar suas relações com a realidade. (FABRIS,
2006, p. 191, grifo nosso)

É nesse sentido que, no contexto da Itália pós-guerra, nasce uma tendência cine-
matográfica que salienta a latência pelo real, posto que “a impressão que as imagens de
muitas realizações neo-realistas transmitiam era a de uma realidade da qual a câmera se
aproximava diretamente, sem recorrer a mediações formais” (FABRIS, 2006, p. 211). Não
obstante, outros pontos de convergência também podem ser encontrados entre a pro-
posta dinamarquesa e a escola neorrealista, tais como “a recusa dos efeitos visuais, [...] a
utilização de atores eventualmente não-profissionais, [...] a simplicidade dos diálogos, [...]
a utilização de orçamentos módicos” (FABRIS, 2006, p. 205-206). É por esta perspectiva
que o Dogma 95 se orienta, almejando trazer de volta estes elementos que, segundo os
teóricos dinamarqueses, deixaram de existir na produção cinematográfica. As aproxima-
ções com o neorrealismo, contudo, se encerram por aí, posto que “o resgate proposto
pelo Dogma 95 não implica na recuperação da linguagem e estética cinematográfica mas
na recriação do cinema, trazendo à baila a discussão sobre o papel do cinema no pensa-
mento” (LIMA, 2018, p. 76).

Além disto, os próprios limites desta tentativa de aproximação com a realidade por
parte do movimento esbarram nos próprios limites de suas premissas, posto que “a con-
sideração estética é de qualquer maneira indissociável de alguns elementos que podem

100
sofrer negligência, mas não supressão como o enquadramento e a composição, a movi-
mentação da câmera e o uso das lentes, a iluminação e as cores” (FURUITI, 2003, p. 14).
Logo, embora consiga estreitar as relações com o real a partir do despojamento técnico,
enfocando no aspecto narrativo, não há possibilidade de eliminar todo e qualquer ele-
mento de intervenção na produção, por menor que seja, posto que a simples filmagem
de um take já configura uma visão particular e escolhida de uma determinada realidade.
Desta forma, “em lugar da verdade, os filmes do Dogma 95 dialogam com a esfera do
verossímil através da construção eficiente de um mundo diegético que obedece a deter-
minadas regras e convenções bastante reconhecíveis, construídas pela anterioridade de
outros filmes” (FURUITI, 2003, p. 21).

Cabe-nos apontar, entretanto, que, embora o Dogma 95 possua essa atmosfera res-
tauradora em seu bojo, o elemento de resgate que o constitui não é puramente fílmico
ou metódico, mas possui um caráter inerentemente poético/simbólico, posto que visa
alimentar a discussão, iniciada já pelos franceses da Nouvelle Vague, na preeminência da
relação cinema e existência, conectando os indivíduos com a arte fílmica. O método (os
10 pontos delimitados) é, por consequência, apenas um meio para se alcançar este esta-
do de aproximação existencial, realçando as inquietações dos interlocutores com o filme.
Daí, por fim, a explicação para a máxima do manifesto que aponta que “para o Dogma 95,
o cinema não é individual” (TRIER; VINTERBERG, 1995, p. 1), posto que é somente a partir
do efeito gerado numa experiência coletiva frente à obra fílmica que se pode alcançar
este estado. Não obstante, não é somente o efeito que visa a coletividade, mas também a
própria abertura de possibilidades resultante do descompromisso com questões técnicas
presente no Dogma 95, que acaba por proporcionar a democratização da produção cine-
matográfica, que não é mais apenas produto de grandes orçamentos e empresas, o que
expande os horizontes da arte fílmica e a coletiviza. É possível concluir, à visto disto, que,
a despeito do caráter restaurador que o manifesto possui, ele é, igualmente, inovador,
pois responde às demandas que expõe com um arcabouço argumentativo excedente ao
próprio objeto de restauração.

Contudo, essa relação entre restauração e inovação se apresenta de maneira nebu-


losa e, por vezes, contraditória, fazendo com que estes polos se alternem de lugar e criem

101
uma fluidez de referência quanto ao lugar ao qual o Dogma 95 pertence. Essa realidade,
sobremodo, quando do advento da discussão de um “cinema pós-moderno”, presente,
grosso modo, a partir dos anos 80 do séc. XX, em que as fileiras de modelos de estilo e
linguagem estavam se tornando esgarçadas e a profusão de filmes destituídos de uma
referência de estilo e linguagem iam se acentuando, de modo que “tais filmes desafiaram
as categorias cinematográficas: clássica, modernista, vanguardista, expressionista, surre-
alista – nenhuma delas precisa dar conta de suas especificidades” (PUCCI JR., 2006, p.
363), sedimentou um espaço a ser preenchido. Esse contexto caudaloso de reflexividade
acerca das novas demandas colocadas pela profusão de filmes do período em questão,
alimentadas, também, pelo aprimoramento das técnicas e crescimento do mercado cine-
matográfico, deu sustentação para que, anos depois, surgisse um movimento que fosse
tanto afirmador quanto questionador de algumas das bases deste cenário histórico: o
Dogma 95.

É a partir deste movimento histórico, portanto, que o advento do Dogma 95 se tor-


na possível. Na mesma toada do discurso pós-moderno, o Dogma 95 assume o seu cará-
ter nostálgico, clamando por uma ação de resgate, no intuito de promover, novamente, o
estabelecimento de uma referência fixa da “essência” cinematográfica, que o movimento
imbui no respeito ao “Voto de Castidade”. Encarnando esta postura, o Dogma 95 também
enseja postular que a proposta dinamarquesa estaria direcionada a colocar em xeque
os valores que se sedimentaram na sétima arte, oriundos da sua origem burguesa. Tal
postura crítica e pessimista quanto aos valores hegemônicos e quanto aos vícios de uma
arte que preconizava, a cada dia mais, a precedência de uma metanarrativa em tom de
elegia ao paroxismo decorrente da ausência líquida de referências, constituiu elementos
fundadores no debate acerca do pós-modernismo nas artes. Esses elementos, de maneira
integrada ou não, encontraram eco na sétima arte por meio do Dogma 95. Chega-se à
conclusão, portanto, de que é a articulação entre estas forças opostas inerentes à pro-
posta dinamarquesa que o configuram não como um movimento reacionário ou revo-
lucionário do cinema, mas como a amálgama destas justaposições, que nos possibilitam
estabelecê-lo como uma força de equilíbrio, igualmente restauradora e inovadora. Ao
discutir este caráter dúbio de mescla entre renovação e inovação, GALVÃO (2015, p. 47)
se apropria dos postulados do teórico Hans Robert Jauss para afirmar que “reconstruir o

102
horizonte de expectativa sob a qual uma obra foi criada e recebida significa para Jauss re-
velar as questões para as quais ela se constitui como resposta. Assim [...] cada obra deixa
em aberto problemas formais e morais que são retomados pelas obras que lhe sucedem”.
Antes de mais nada, contudo, é a força do Dogma 95 enquanto ferramenta de crítica e re-
flexão sobre a sétima arte que se configura, abrindo caminho para que possamos melhor
compreender o seu lugar dentro da história do cinema.

As influências culturais do movimento dinamarquês

Embora tenha sido um movimento impulsionado por motivações de resistência ao


cinema que se praticava na maior parte do mundo, coexiste no Dogma 95 as particula-
ridades nativas que em muito contribuíram para a formação ideológica e simbólica da
concepção cinematográfica adotada pelo movimento dinamarquês. Nesse sentido, a fi-
gura de Carl Theodor Dreyer, diretor dinamarquês da primeira metade do século XX con-
siderado como um dos maiores cineastas de todos os tempos, representa uma influência
determinante na constituição da base conceitual que rege o Dogma 95. De fato, ao tecer
algumas palavras sobre o cinema, Dreyer revela que

[...] o realismo não está na própria arte, só o realismo psicológico. O que tem valor é a
verdade artística, isto é, a verdade arrancada da vida vivida, mas purificada de todos
os detalhes inúteis – a verdade filtrada através da alma de um artista. O que tem lugar
na tela, não é a realidade e nem deve ser, porque se fosse a realidade, não seria arte.
(DREYER, 1997, p. 70-71 apud FURUITI, 2003, p. 69)

A partir disto, é possível estabelecer algumas proximidades entre a concepção de


Dreyer e as premissas estabelecidas pelo movimento dinamarquês. Ambos, consideradas
suas especificidades, carregam em seu cerne uma atmosfera de busca pela purificação da
arte cinematográfica, a fim de estabelecer uma verdade. Esta verdade, contudo, é mani-
pulada de maneira diferente por ambos. Nesse sentido, pode-se perceber que o cinema
para Dreyer estabelece uma relação de proximidade psicológica e espiritual, que incorpo-
ra elementos de representação da intimidade interior do sujeito na diegese fílmica. Um
exemplo de elemento representativo que contribui para esta maior proximidade com a
verdade genuína, no cinema de Dreyer, é o enfoque no rosto. No entanto, a própria ques-

103
tão da expressão facial é aprofundada no cinema de Dreyer, transpassando a noção de
primeiro plano. Nesse sentido, ressalta-se que

[...] a decupagem afetiva procede através do que o próprio Dreyer chamava de ‘primei-
ros planos corrediços’. Que são sem dúvida um movimento contínuo através do qual
a câmera passa do primeiro plano ao plano médio ou geral, mas sobretudo uma ma-
neira de tratar o plano médio e o plano geral como primeiros planos, por ausência de
profundidade ou supressão da perspectiva. Não se trata mais de plano próximo, mas
de qualquer plano, que possa assumir o estatuto de primeiro plano – as distinções her-
dadas do espaço tendem a desaparecer. Ao suprimir a perspectiva ‘atmosférica’, Dreyer
faz triunfar uma perspectiva propriamente temporal ou mesmo espiritual: esmagando
a terceira dimensão, ele coloca o espaço de suas dimensões em relação imediata com
o afeto, com uma quarta e quinta dimensões, Tempo e Espírito. (DELEUZE, 1983, p. 138)

Logo, a técnica de Dreyer estabelece um paradigma diegético em nome da verda-


de fílmica que é conduzido através de uma supressão da perspectiva e do transpassar
dos elementos dos demais planos para o primeiro plano. Para o Dogma 95, por outro
lado, a produção da verdade fílmica estaria vinculada ao caráter reflexivo em relação aos
próprios meios de produção do filme, quando do próprio momento de sua produção,
no intuito de conferir maior autonomia em relação à realidade, induzindo uma repre-
sentação despojada e, portanto, mais acurada das inquietações existenciais e afetivas do
objeto comunicacional gerado pelo filme. Apesar das diferenças no trato desta questão,
o legado deixado por Dreyer foi, inegavelmente, uma influência pertinente para os par-
tícipes do Dogma 95. São as bases deixadas por ele que fundamentam a persistência de
uma consciência histórica que se solidifica no cinema dinamarquês, influenciada por um
impulso reflexivo. Não obstante

A importância histórica de Dreyer reside na sua contraditória condição intermediária.


Para nós hoje, a sua fascinação é a de um diretor que, nos modos como temos analisa-
do, abre uma problemática distância entre a prática cinemática dominante e um outro
cinema: um cinema que exige atividades perceptuais frescas, que recusa ser o cinema
como é habitualmente concebido e consumido. Semi-compreensíveis, os filmes de
Carl-Theodor Dreyer existem na fronteira da unidade, do sentido, do prazer. Além dele
está o cinema da ininteligibidade. (BORDWELL, 1979, p. 201 apud FURUITI, 2003, p.
73, grifo nosso)

Este legado deixado por Dreyer, em que nele já se percebia forte contrariedade às
estruturas de produção dominantes, é absorvido e intensificado pelo movimento dina-

104
marquês, quando da formulação de uma espécie de cinema-pensamento. Esta ruptura
em favor de uma maior exploração do aspecto reflexivo da produção cinematográfica
não traz mais apenas a intimidade localizada do sujeito narrativo, desvelado em verdades
identitárias a partir do enredo (como na visão de Dreyer), mas eleva esta reflexividade ao
patamar de fundamento ideológico do movimento dinamarquês, colocando em xeque
não apenas a narrativa, mas também o modus operandi pelo qual ela é elaborada. Nesse
sentido, diferentemente dos críticos das primeiras décadas do cinema, que pretendiam
promover o cinema ao patamar de arte, ou mesmo os posteriores formalistas e realistas,
que advogavam, cada um a sua maneira, por uma essência cinematográfica, o interesse
de Dreyer (e também do Dogma 95) não se debruça sob um valor de marketing, mas sob
o fundamento reflexivo. Logo, pode-se dizer que

Sua obra é independente e livre, sem se auto-afirmar sequer como arte, rejeitando ró-
tulos e definições; é uma busca constante pela provocação do pensar envolto em uma
desconstrução estética que beira à agressão dos sentidos, pois o afeto almejado é uma
forma de escândalo no senso vulgar que ultrapassa toda comodidade que se espera,
comumente, de um cinema promocional. (LIMA, 2018, p. 61)

Todo este aparato conceitual, contudo, remonta a uma tradição ainda mais recua-
da no tempo, influenciada profundamente pela filosofia existencialista do também dina-
marquês Søren Kierkegaard. Esta tradição conceitualiza uma relação comunicativa que é
estabelecida por meio de uma comunicação indireta, que interpela o Indivíduo Singular
na sua relação comunicacional. Neste sentido, a existência a partir de Kierkegaard es-
tabelece um fluxo de reflexividade ao interagir de maneira indireta com os elementos
simbólicos do instante. Frente a isto, vê-se que

O poder em Kierkegaard é a ação do Indivíduo Singular firmada na existência por sua


vontade (pathos). Uma comunicação de poder é legitimada pela liberdade do indiví-
duo em decidir na existência em um compromisso firmado para si mesmo, ou seja, não
é embasada pela autoridade de um indivíduo sobre o outro (em que ocorreria uma
comunicação objetiva, de saber categorial). A comunicação de poder é a ocasião, na
medida em que disponibiliza as relações significativas possíveis no questionamento
pelo como (LIMA, 2018, p. 44).

Este pressuposto kierkegaardiano estabelece uma conjuntura conceitual que é


apropriada pelo movimento dinamarquês na sua escritura fílmica. Nesse sentido, a mol-

105
dura despojada e irônica estabelecida nos ditames dogmáticos conduz a uma percepção
da escritura fílmica pautada na perspectiva de que o idealizador do filme se comunica
com o seu espectador, mas não o faz de maneira direta, transmitindo ideias ou parâme-
tros fixos acerca de alguma determinada questão exposta na narrativa, mas sim por meio
de uma comunicação indireta, em que o espectador não é apenas um sujeito que absor-
ve a informação transmitida na comunicação, mas se insere numa reflexão existencial
acerca de uma determinada questão proposta pelo autor da obra fílmica, colocando-se
na posição de um inspectador (ou Indivíduo Singular, na perspectiva kierkegaardiana)
que, a partir da sua interioridade subjetiva, estabelece uma relação dialética com o obje-
to imagético, dotando-o de uma interpretação própria. Logo, diferentemente da comuni-
cação direta, que estabelece uma ilusão pautada pela comunicação estática, despida de
inquietação existencial, a relação de comunicação proposta pelo Dogma 95 estabelece
uma efetividade na potencialização destas inquietações, conferindo-lhe maior verossi-
milhança e, portanto, desligando-se de ilusões. Logo, “a ironia penetra a existência que,
antes ilusória e superficial, se dissipa para dar lugar a uma existência autêntica que se
lança em direção à verdade” (LIMA, 2018, p. 63).

A influência de Kirkegaard, contudo, possui demais contornos para além do seu as-
pecto puramente comunicativo. Em certa medida, o Dogma 95 se associa a um princípio
do pensamento Kierkegaardiano, no que tange a crítica à modelos estigmatizados de
uma cultura engessada. Sobre a apropriação deste princípio no movimento dinamarquês
e no filme Os Idiotas, Tønder argumenta

Revelando estruturas ocultas de estigmatização em vários lugares, incluindo um res-


taurante antigo, uma fábrica moderna, uma piscina pública e um escritório local do
município, Os Idiotas vincula a imagem e a prática do spazzing – agir de uma maneira
que sugere que alguém não está no controle de suas faculdades mentais ou corporais
– a uma crítica iniciada por Kierkegaard 150 anos antes: a democracia dinamarquesa,
incluindo seu famoso estado de bem-estar social, é baseada em uma cultura nacional
que exalta o bem da comunidade às custas de indivíduos singulares que divergem
da norma e não assinam a auto-imagem ideológica da Dinamarca como mais igual e
mais liberada do que qualquer outro país do mundo. Essa auto-imagem está menos
associada a um único partido político e mais a uma tendência subjacente expressa por
alguns dos fundadores da Dinamarca, incluindo N. F. S. Grundtvig [...]. Kierkegaard e
von Trier pretendem subverter a imagem representada por Grundtvig, sugerindo uma
concepção e a desigualdade através de um ethos afirmativo de empoderamento e

106
singularidade. Kierkegaard desenvolve sua versão dessa concepção de regra seguindo
um registro filosófico que destaca o poder incorporado no cômico. Para isso, von Trier
acrescenta sua própria reviravolta cinematográfica: é necessário espantar – que é uma
experiência incorporada – para desvendar a hierarquia que trai o igualitarismo dina-
marquês e liberar a energia necessária para desenvolver outro conjunto de relações.
(TØNDER, 2016, p. 249)

A partir desta aproximação entre Kierkegaard e von Trier, a proposta dinamarquesa


se clarifica e se localiza em uma tradição de resistência perante uma cultura nacional do-
minante que é criticada a partir de uma política que o autor denomina de Regra Cômica.
Esta política leva em consideração o aspecto do cômico como ponto-chave da denúncia
perpetrada à esta cultura dominante. Contudo, de modo a compreender melhor o que se
entende aqui por cômico, o autor prossegue

O cômico não é simplesmente um termo genérico que representa a soma de ironia e


humor; ao contrário, ele se apresenta como um conceito independente que vai além
da ironia e do humor, incorporando dois aspectos concomitantemente – um relato da
condição humana e uma maneira de responder a essa condição. O cômico combina
dois opostos em uma estrutura – o exemplo preferido de Kierkegaard é Jesus como
homem e Deus – e implementa essa incongruência para interromper e revelar lacunas
na experiência vivida, permitindo que novos modos de pensamento e ação se apode-
rem de nossa existência. Assim, o cômico se transforma em uma condição de pensar e
agir. Sem ele, argumenta Kierkegaard, nenhuma passagem para um nível superior de
ser é possível. (TØNDER, 2016, p. 252)

Desta forma, Kierkegaard estabelece uma percepção afirmativa do cômico, a medi-


da que ele se estabelece na interação com o inspectador e o imbui de um engajamento
que o coloca em uma determinada direção ou propósito, a partir – como já argumenta-
mos anteriormente – da interlocução entre as inquietações do existente do cineasta e
da subjetividade com a qual o inspectador se defronta com elas. Todo esse processo, por
fim, construiria uma ponte entre os pressupostos do filósofo dinamarquês e o Dogma
95, que com isso estabelece uma maneira de ser identificado. Portanto, trata-se de “[...]
uma condição sine qua non da contestação política e da transformação social, que não
apenas interrompe, mas também acelera nossa capacidade de pensar e agir, pondo em
movimento novas formas de explorar a condição humana em toda a sua riqueza e pro-
fundidade” (TØNDER, 2016, p. 259).

107
Afora os já citados, residem entre as influências do Dogma 95, também, algumas
contribuições que fogem unicamente da produção cinematográfica. Tendo em vista este
fator, é preciso delinear os traços reforçados pelo movimento dinamarquês destas influ-
ências. Inicialmente, portanto, cabe uma aproximação do movimento com a teoria do
dramaturgo alemão Bertolt Brecht, a medida que este

[...] propunha uma “dramaturgia antiaristotélica” ou “anticatártica”; que se apropriava


de recursos como cartazes, projeções, letras de músicas, atores/narradores que comen-
tam a ação e interpretações antinaturalistas para interromper o fluxo da ação dramá-
tica e promover um efeito de distanciamento em relação aos afetos dos personagens
capaz de suscitar reflexão crítica e de des-alienar o espectador. (GALVÃO, 2015, p. 17)

Para aprofundar um pouco mais no que diz respeito a extensão da influência bre-
chtiana no Dogma 95, é preciso, contudo, determinar as bases fundamentais da fortuna
crítica do teórico alemão. Nesse sentido, ao escrever a respeito da Sétima Arte (traçando
um paralelo com os seus escritos sobre teatro), Brecht denuncia o ilusionismo ineren-
te do modo de produção cinematográfico dominante que, pautado em uma metódica
bastante intrincada e engessada, sob a qual – segundo o autor – as bases ideológicas da
sociedade burguesa estão assentadas, transmite os vícios desta cultura dominante. Em
razão disto, Brecht apresenta seu Verfremdungseffekt, técnica sob a qual os fragmentos de
construção da narrativa são expostos, desmantelando a consciência de unidade ilusória
do produto final da obra, posto que os próprios processos de produção da narrativa são
expostos ao espectador durante o desenrolar da trama.

Trata-se, portanto, de colocar em xeque as próprias bases constituintes do aparato


de produção da arte em questão, dando contornos reflexivos à própria relação entre obra
e espectador, que interagem de maneira subjetiva a partir do exposto na narrativa. Isto
posto, as próprias palavras do Lars von Trier, principal idealizador do Dogma 95, quando
perguntado a respeito da política de seus filmes e do Dogma 95, deixam claro o crédito
concedido à crítica brechtiana no seu discurso, quando este diz “este é meu Verfremdun-
gseffekt, porque eu forço a história para tão longe que todos podem ver do que ela é
feita” (SCHEPELERN, 2005 apud KOUTSOURAKIS, 2013, p. 1). Com isto, o cineasta se filia
à crítica brechtiana, apropriando-se dela no campo cinematográfico. Ante o exposto, é
possível perceber como este arcabouço de influências impingiu ao movimento dinamar-

108
quês os fundamentos para se fomentar uma alteração no status de produção do filme,
impulsionada pelos postulados dogmáticos dispostos no manifesto já elencados ante-
riormente, demarcando uma ruptura na mentalidade fílmica do próprio cinema dinamar-
quês. Uma ruptura que, devido ao seu caráter, é uma alteração que traz em seu bojo uma
proposição de novas bases; novos ditames. Uma ruptura dogmática em busca de uma
nova linguagem.

À guisa de (in)conclusão

Iniciamos a presente pesquisa argumentando que o Dogma 95 é constituído por


lugares e não-lugares, a medida que suas características e os elementos pelos quais o mo-
vimento é perpassado carregam aspectos difusos e paradoxais. A exemplo da sua própria
identidade, as interpretações sobre o movimento também se apresentam de maneira
igualmente heterogênea e transversal. Neste sentido, um breve histórico das vertentes
interpretativas distintas acerca da proposta dinamarquesa será necessário, no fito de de-
terminar uma abrangência interpretativa panorâmica das matrizes que já compõem os
olhares a respeito do Dogma 95.

Uma possibilidade interpretativa diz respeito a política performativa elaborada por


Linda Badley (2010), que compreende o Dogma 95 como um jogo performático no qual
as suas regras constituem ponto-chave de funcionamento, posto que atuam no sentido
de conduzir, por elas mesmas, uma alteração sintomática no modus operandi da produ-
ção cinematográfica mundial. Como exemplo, Badley (2010, p. 56) demonstra que o des-
pojamento no processo de produção do filme alimentado pela proposta dinamarquesa
intensificou um processo de revolução digital no cinema, que ganhou, com o passar do
tempo, proporções cada vez mais abrangentes. Sobre a aproximação do Dogma 95 com
esta revolução digital da produção fílmica, Bainbridge (2007, p. 95) sinaliza que “o papel
da câmera como mediador do espectador como testemunha é crucial aqui; ele preserva
nosso relacionamento com a ficção, enquanto dissimula o dizer a verdade que perturba
nossa familiaridade com a linguagem do filme”. Com isto, a autora conclui que é justa-
mente esta “nova visão” direcionada ao como se produzir um filme que constitui o Dog-

109
ma 95 enquanto instituição fílmica, dando contornos confirmatórios às bases discursivas
inclusas na proposta dinamarquesa de uma produção de “verdade” fílmica que, no senti-
do simbólico proposto pelo movimento, ela interpreta como residente nesta abertura de
possibilidades proporcionada pela facilitação do processo de produção fílmica.

Uma interessante interpretação do lugar do Dogma 95 diz respeito a tese levantada


por Angelos Koutsourakis (2013) de que o Dogma 95 teria sido um movimento cinemato-
gráfico derivado da crítica pós-brechtiana. Neste sentido, dando sequência aos argumen-
tos já apresentados em seções anteriores deste estudo, o argumento do autor é de que
o Dogma 95 utiliza-se do dispositivo Verfremdungseffekt, entendido na crítica brechtiana
como a reflexão a respeito do processo em si da construção da obra, desmistificando o
seu valor enquanto produto. Tal proposta, contudo, traz em sua concepção original um
forte vínculo ideológico com políticas identificadas com as teses marxistas, que não é
observado na mesma latência na sua posteridade. Nas palavras do autor: “muito esque-
maticamente, o termo “pós-brechtiano” descreve um repensar pós-moderno de Brecht
que compartilha sua preferência por uma representação fragmentada e uma abstração
formal, mas não suas certezas políticas” (KOUTSOURAKIS, 2013, p.12). Neste sentido, ao
discorrer sobre os filmes de Lars von Trier (inclusive aquele pertencente ao movimento
discutido no presente estudo), o autor continua afirmando que

[...] os filmes de von Trier priorizam práticas formais experimentais que pretendem de-
safiar o assunto, a exibição habitual de filmes e a própria instituição cinematográfica.
Von Trier emprega estratégias de representação que não se preocupam apenas em
reproduzir ações dramáticas, mas em apontar contradições que não podem ser resol-
vidas dentro dos limites da dramaturgia dos filmes. (KOUTSOURAKIS, 2013, p. 15)

Com isto, o discurso dogmático ancora-se na crítica pós-brechtiana, levando em


consideração o aspecto da relação subjetiva estabelecida entre o autor e o receptor da
obra; relação esta que estabelece um vínculo existencial, do qual já discorremos ante-
riormente neste estudo, em que a prioridade se aloca nas inquietações existenciais do
sujeito, tendo, por fim, um desgarrar intenso no que tange a produção de metanarrativas
de orientação política, como no caso da crítica brechtiana em sua originalidade.

A principal matriz interpretativa a respeito do Dogma 95, contudo, diz respeito à

110
tese levantada pela pensadora Mette Hjort (2003, 2007), devido a centralidade de sua
perspectiva em todos os demais estudos acerca do Dogma 95. Neste sentido, tentando
apresentar o cenário da indústria cinematográfica da Dinamarca, a autora apresenta in-
formações de como mesmo após a mudança de paradigmas propiciada pelo advento
da cinematografia e persona de Lars von Trier, a intervenção do Estado no fazer fílmico
ainda se fazia presente. Contudo, essa interferência se dava, principalmente, no campo
econômico, não mais cabendo ao Estado interferir no conteúdo dos filmes. Neste cená-
rio, argumenta a autora, a figura de Henning Camre, CEO do Danish Film Institute (DFI),
órgão responsável por desenvolver o cinema dinamarquês, que trouxe novas ideias para
a indústria. A atuação tanto de Camre quando da DFI foram cruciais para que o cinema
dinamarquês sofresse um crescimento significativo. Muitas foram as iniciativas adotadas
para levar à cabo esta meta estipulada, as quais a autora elenca de maneira a esboçar
melhor a orientação da atuação tanto de Camre quanto da DFI. Afirma

A DFI enfatizou o suporte ao desenvolvimento de roteiros em um esforço para incen-


tivar histórias originais em vez de adaptações. Também insistia em uma abordagem
mais sistemática da distribuição de filmes, com estratégias de marketing e grupos-alvo
figurando centralmente, mesmo nos primeiros pensamentos sobre novos projetos de
filmes. A DFI forneceu subsídios para exames de teste e pesquisas de saída, bem como
para a produção de várias impressões, permitindo a liberação simultânea de um filme
em todo o país e, assim, a estimulação da cinefilia nas áreas não-urbanas. Foi feito um
esforço considerável para impedir o desaparecimento dos cinemas nas pequenas ci-
dades por meio de subsídios para a renovação dos cinemas existentes e para a criação
de novos cinemas. Além de seu papel como organismo de financiamento, a DFI assu-
miu um papel consultivo em conexão com o renascimento e expansão das telas de
cinema da Dinamarca. Também ajudou a facilitar a colaboração entre investidores pri-
vados e vários governos locais na área de exibição de filmes. O resultado geral foi uma
rede significativamente expandida de cinemas em todo o país. (HJORT, 2007, p. 29-30)

Toda esta agenda propositiva engendrada pela DFI contribuiu significativamente para
a expansão interna do mercado dinamarquês, provocando maior fluxo comercial e trazendo
inovações artísticas no que tange a produção cinematográfica em si, tanto no que diz respeito
ao seu processo de produção quanto no próprio conteúdo de seus filmes. A ruptura com todo
este cenário, contudo, se dá com o advento do Dogma 95, definido por Hjort (2003) como “a
resposta de uma pequena nação à globalização”. Neste sentido, a autora relaciona a proposta
dinamarquesa com uma resposta à globalização a partir do fato de que
[...] o Dogma 95 evita o tipo de investimento nostálgico no local, que é uma caracterís-

111
tica dos tipos dominantes de filmes patrimoniais e, portanto, surge como uma atraen-
te resposta não-nacionalista à globalização. A discussão do Dogma 95 como resposta
à globalização envolve, então, um contraste implícito com os filmes de herança nórdi-
ca e dinamarquesa. Enquanto os filmes patrimoniais pertencentes a uma tradição de
pertencimento nacional ou transnacional em primeiro plano de “qualidade”, o Dogma
95 insiste na participação nacional – no mundo da arte e na renovação das tradições
artísticas internacionais. Uma diferença fundamental tem a ver com a participação em
oposição à pertença, com o acesso ao mundo da produção de filmes, e não a algum
conteúdo semântico de primeira ordem. O Dogma 95 [...] é uma tentativa de resistir à
dinâmica de um localismo intensificado alimentado pelo globalismo, concentrando a
atenção, não na herança e na etnia, mas na própria definição da arte cinematográfica
e nas condições de produção dessa arte. (HJORT, 2003, p. 38)

Com isto, a autora enxerga que o Dogma 95 está incluso dentro de um panorama
mais amplo do cinema dinamarquês, marcado por uma progressiva expansão do mer-
cado interno – em razão dos investimentos da DFI – e da figura excêntrica de Lars von
Trier. Seu estudo é, de fato, seminal para o entendimento do lugar do Dogma 95, con-
tudo, a focalização única e exclusivamente no aspecto estruturante das consequências
político-econômicas causadas pelo Dogma 95 dentro de um cenário globalizante parece
apresentar lacunas, posto que desconsidera – e, por vezes, até mesmo ignora – aspectos
diversos da técnica performática e técnica das próprias intenções, motivações e influ-
ências inerentes ao apelo proposto pelo movimento dinamarquês, como apresentamos
anteriormente.

Neste sentido, apesar de entendermos a centralidade do estudo da pesquisadora,


pode-se perceber que apenas este estudo em si não esgota as variáveis de atuação pre-
sentes na dinâmica dogmática. Da mesma forma, tanto as demais propostas aqui expos-
tas quanto outras visões menos relevantes sobre o tema – que podem ser encontradas
na coleção de artigos Purity and Provocation: Dogme 95 (2003) – não parecem dar cabo da
pluralidade de fatores que compõem a proposta dinamarquesa. Em razão disto, entende-
-se que, para efetivar uma abordagem melhor elucidada do lugar pertencente ao Dogma
95 dentro da história do cinema, é preciso que se encontre um elemento central que, de
alguma forma – seja em menor ou maior escala – aja no sentido de unir estas matrizes
interpretativas, deixando de colocá-las como divergentes e encontrando um ponto de
convergência para que uma complemente a outra.

112
REFERÊNCIAS

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Trier. – Illinois: University of Illinois Press, 2010, p. 54-69.

BAINBRIDGE, Caroline. A new vision?: Dogme 95 and the digital revolution. In: ______.
The cinema of Lars von Trier: authenticity and artifice. – Londres: Wallflower Press,
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“Festa de Família” e na Trilogia Coração de Ouro, de Lars von Trier. Dissertação (Mestrado
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GALVÃO, Emília Maria da Conceição Valente. O efeito choque e os problemas da afeta-


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– Universidade Federal da Bahia: Salvador, 2015.

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KOUTSOURAKIS, Angelos. Politics as form in Lars von Trier: a post-brechtian reading. –


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113
SCHEPELERN, Peter. ‘Kill your darlings’: Lars von Trier and the origin of Dogma 95. In:
HJORT, Mette & MACKENZIE, Scott. Purity and provocation: Dogma 95. – Londres: Bri-
tish Film Institute, 2003, p. 58-69.

TØNDER, Lars. “At the fringes of one’s consciousness”: Kierkegaard, The Idiots, and the
Politics of Comic Rule Following. In: HONIG, Bonnie & MARSO, Lori J. Politics, theory,
and film: critical encounters with Lars von Trier. – Nova York: Oxford University Press,
2016, p. 247-265.

Fontes

TRIER, Lars Von & VINTERBERG, Thomas. Dogma 95. 1995. Disponível no sítio eletrônico:
https://pov.imv.au.dk/Issue_10/section_1/artc1A.html#i1. Acesso em 22/12/2018.

114
IMAGENS BIOGRÁFICAS
INSTITUCIONAIS
ENTRE FATOS E IMAGENS: ENSAIO SOBRE A BIOGRAFIA
INSTITUCIONAL DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

Maria Imaculada Correia de Miranda1

I – Introdução

O texto em tela resulta de dados coletados para desenvolvimento de pesquisa de


doutorado em estágio inicial, nomeada “Confrontos entre autonomia e expansão univer-
sitária: uma perspectiva comparativa dos debates sobre o Reuni no Centro-Oeste (UFG,
UFT e UFMT – 2006-2013)”. A pesquisa pretendida está situada no espaço da educação
superior do Brasil, e de modo amplo presente buscará refletir sobre os confrontos perce-
bidos entre expansão e autonomia no processo de expansão universitária ocorrido UFG,
UFT e UFMT a partir do Programa Reuni, sob a perspectiva de um estudo comparado.
Pontuamos que embora tal pesquisa tenha a intenção de fazer um estudo comparado
sobre as três instituições citadas, no presente texto trabalharemos apenas com imagens
que versam sobre a UFG, tendo em vista o material coletado até o presente momento.

O embrião do objeto de estudo da presente pesquisa de doutorado, o Reuni, sur-


giu no meu percurso profissional no final de Junho de 2007, momento em que passei
a integrar o corpo técnico-administrativo da UFG, após ter sido aprovada em concurso
público para ocupar cargo de nível superior (E), Secretária Executiva, na Coordenação de
Extensão e Cultura do Campus Avançado de Catalão (atualmente Regional Catalão). No
final de 2014, a publicação institucional “Livro da Gestão UFG 2006-2013”, que contempla

1 Discente do PPGH/UFG (Doutorado), e-mail: imaculadamiranda@gmail.com, orientada pela Prof.ª


Heloísa Selma Fernandes Capel, pesquisa: “Confrontos entre autonomia e expansão universitária: uma pers-
pectiva comparativa dos debates sobre o Reuni no Centro-Oeste (UFG, UFT e UFMT – 2006-2013)”

MIRANDA, Maria Imaculada Correia de. Entre fatos e imagens: ensaio sobre a biografia institucional da Uni-
versidade Federal de Goiás, In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/
Biográficas na História e na Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás,
2020. p. 116-130.
o período Reuni, chamou-me atenção porque, dentre outros recursos, utiliza-se da foto-
grafia para construir um discurso, uma narrativa institucional sobre o tema em tela.

Tal embrião resultou na dissertação de mestrado nomeada “Expansão e Reestru-


turação da Educação Superior: Debates sobre a implementação do Programa Reuni na
UFG (2006-2008)”. As leituras e os estudos feitos por ocasião do Mestrado terminaram
por apresentar indícios de que houve um certo protagonismo da UFG no processo de
expansão das IFES propiciado pelo governo Lula, o que motivou a pesquisa ora iniciada,
que, dentre outros, pretende investigar esse provável protagonismo da UFG em relação a
expansão universitária via Reuni, agora sob uma perspectiva comparada.

Assim, parte das imagens ora trabalhadas advém da publicação institucional citada
e estudada por ocasião do mestrado, enquanto outras imagens, embora não façam parte
dela, também compõem a história da UFG. Desse modo, trabalhamos aqui com imagens
de origens diversas, que tem em comum o fato de que podem ser consideradas como
marcos biográficos da UFG, tendo em vista que retratam momentos importantes do cres-
cimento da instituição.

O Reuni foi instituído pelo Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007, como parte
das ações que integraram o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE). Seu objetivo
principal foi o de ampliar o acesso e a permanência na educação superior por meio de
uma série de medidas para retomar o crescimento da educação superior pública, criando
condições para que as IFES promovessem a expansão física, acadêmica e pedagógica da
rede federal de educação superior (BRASIL, 2007). As ações do programa contemplaram
o aumento de vagas nos cursos de graduação, a ampliação da oferta de cursos noturnos,
a promoção de inovações pedagógicas e o combate à evasão, dentre outras metas, tendo
como propósito maior a intenção de aumentar o acesso à educação superior pública e,
consequentemente, diminuir as desigualdades sociais no país.

Conforme consta no artigo 1º do Decreto 6096/2007, o Reuni nasceu com o obje-


tivo primário de possibilitar a criação de “condições para a ampliação do acesso e per-
manência na educação superior, no nível da graduação, pelo melhor aproveitamento da

117
estrutura física e de recursos humanos existentes nas IFES” (Brasil, 2007). A premissa era
de que cada IFES que aderisse deveria elaborar seu plano de ações e se esforçar para o
cumprimento das metas estabelecidas no Decreto que previa um acréscimo de 20% ao
orçamento total destinado às IFES. Os recursos adicionais estavam vinculados ao cumpri-
mento das metas estabelecidas para cada etapa, e condicionados a capacidade orçamen-
tária e operacional do MEC. A adesão ao programa, com prazo de duração previsto para
cinco anos, foi estabelecida como voluntária, de modo que a implantação do Reuni teve
início em 2008 e foi concluída em 2012.

Por sua vez, a Universidade Federal de Goiás, criada pela Lei no. 3.834 C, de 14 de
dezembro de 1960, é uma instituição de ensino superior público voltada para o ensino,
pesquisa e extensão. Assim, objetiva transmitir, sistematizar e produzir conhecimentos,
com o intuito de ampliar a formação do ser humano para vida cotidiana e profissional,
de modo a contribuir para a existência de uma sociedade mais justa e democrática (UFG,
2013, p. 12). Registros disponibilizados no site da instituição informam que ao longo dos
59 anos de história da UFG a universidade passou por transformações e pela ampliação
da atuação institucional, de modo que atualmente a UFG possui 102 cursos de graduação
presenciais e 22 mil estudantes, distribuídos em duas regionais, Goiás e Goiânia. Na ca-
pital, a UFG conta com o Câmpus Aparecida de Goiânia, o Câmpus Colemar Natal e Silva
(Praça Universitária) e o Câmpus Samambaia. Na Regional Goiás, a UFG oferece 7 cursos
divididos em duas Unidades Acadêmicas Especiais. Além da graduação, a UFG oferece 78
cursos de pós-graduação stricto sensu entre mestrados, doutorados e mestrados profis-
sionais, com mais de 4.200 alunos2.

Nesse sentido, discorrer sobre a biografia da UFG, especialmente quando voltamos


o olhar para tempos mais recentes, nos leva, de modo especial, a suscitar reflexões sobre
o marco de crescimento institucional (período 2006-2013), a partir do aporte de capital
originado pela adesão da UFG ao Reuni. Tal momento foi registrado na reportagem de
capa do Jornal da instituição, edição de outubro de 20073, que noticiou que depois de

2 Disponível em: <https://www.ufg.br/p/26910-apresentacao-ufg>, acesso em 20 de julho de 2020.

3 Disponível em: https://www.jornalufgonline.ufg.br/up/243/o/jornal-ufg-14.pdf. Acesso em: 20 dez 2017.

118
amplo processo de discussão (grifo nosso), o Conselho Universitário da UFG (Consuni)
aprovou a adesão da UFG ao Reuni com 46 votos a favor e apenas 3 contrários.

Essa mesma reportagem discorre sobre as diversas mudanças que ocorreriam na


instituição nos próximos cinco anos, a partir de 2008, tendo em vista a expansão das va-
gas e a criação de novos cursos. Outrossim, as transformações expressivas originadas na
instituição neste período resultam diretamente da adesão da UFG ao Reuni e parte delas
compõem a narrativa contida no já citado Livro da Gestão UFG 2006-2013, uma vez que
a publicação traz uma narrativa institucional sobre a reconfiguração da UFG ocorrida a
partir do Reuni. Nesse sentido a introdução de tal livro nos explica que se trata de:

Registro de um período histórico da UFG feito sob um olhar fotográfico, memorial e


descritivo. É esse o propósito deste livro, construído por várias mãos, que a UFG faz
questão de incluir em sua produção literária. E mais, fazer chegar informações relevan-
tes a todos aqueles que participaram, viveram ou usufruíram dos resultados dos fatos
e feitos desta instituição pública no período 2006-2013. (UFG, 2013, p. 15)

Buscamos então no presente texto, seguir a direção desse registro histórico e de


outros olhares fotográficos, tendo em vista motivar a busca dos significados revelados
por essas imagens institucionais de diferentes momentos da história da UFG, com ênfase
nas narrativas visuais decorrentes do Reuni e da realidade instalada na instituição a partir
da implementação desse Programa de Expansão Universitária na UFG.

Assim, as imagens ora elencadas figuram como suporte dos testemunhos de sujei-
tos históricos da biografia da UFG, e tem o intuito de ampliar nossa percepção a respeito
das mudanças ocorridas na UFG desde a sua criação nos anos de 1960 até os dias atuais.

II – Metodologia

Quanto aos procedimentos metodológicos, o estudo em tela apresenta uma abor-


dagem qualitativa, uma vez que busca de modo amplo a descrição, compreensão e ex-
plicação das imagens elencadas. No que diz respeito ao material iconográfico, como já
citado, parte das fontes advêm de imagens institucionais selecionadas no Livro da Gestão

119
UFG – 2006-2013, que traz uma narrativa institucional do período Reuni sob a perspectiva
da gestão da UFG, e da página do Facebook do movimento de estudantes da UFG nome-
ado “As Minas na Reitoria”, ocorrido em junho do ano de 2016.

III – Resultados e Discussão

Figura 1: Ato solene de criação da UFG em 18 de dezembro de 1960. Praça Cívica, Goiânia-GO
Autor: Hélio de Oliveira. Fonte: Acervo Cidarq/UFG, Livro da Gestão UFG (2006-2013), p. 21.

A figura 1, nomeada “Ato solene de criação da UFG” retrata o momento da assi-


natura da lei de criação da Universidade Federal de Goiás e da Universidade Federal de
Santa Maria, do Rio Grande do Sul, em 18 de dezembro de 1960. A imagem retrata em
primeiro plano o então Presidente da República, Dr. Juscelino Kubitscheck, ladeado do
lado esquerdo por José Feliciano Ferreira, então governador do Estado de Goiás, e pelo
lado direito, vemos o então senador da República, Pedro Ludovico Teixeira. O cenário do
registro fotográfico é a sacada do Palácio das Esmeraldas, Praça Cívica, no centro da ci-
dade de Goiânia-Goiás. A imagem traz outros personagens no cenário retratado, embora
não nominados.

Temos nessa imagem a pueril presença da pungente curiosidade infantil, que pode
ser vista por meio de duas crianças que ali aparecem se esgueirando entre os adultos,
tentando capturar, ao modo delas, o momento solene certamente por elas não entendi-

120
do. A presença dessas crianças pode nos remeter ao anos primeiros de criação da UFG,
permeado de esperanças e norteado por inquietações criativas. Por outro lado, posicio-
nado logo atrás do Presidente da República, Dr. Juscelino Kubitscheck, temos a figura de
um homem portando óculos escuro e uma espécie de quepe militar, aparentando ser al-
guma espécie de autoridade do exército ou similar. Certamente um prenúncio sombrios
dos anos de chumbos4 que sobrevieram sobre a nação brasileira poucos anos depois.

Por trás dessa imagem, que revela o início da consolidação de um sonho, existe
a história de um grupo de pessoas que integravam a sociedade goiana e que ousaram
sonhar com a criação dessa universidade em solo goiano, pleno Brasil central, a despeito
das resistências próprias do contexto social e político dos anos de 1960, tão próximos dos
anos de chumbo que estavam por vir. Nesse sentido HALBWACHS (2006, p. 42) afirma que
não há lembranças que reaparecem sem que de alguma forma seja possível relacioná-las
a um grupo. Assim, de acordo com o Livro da Gestão UFG 2006-2013:

A concretização de uma universidade pública em Goiás foi marcada pela luta persis-
tente de abnegados, verdadeiros guerreiros, ainda em 1960, antes da ditadura militar.
Destaca-se o professor Colemar Natal e Silva, um dos seus fundadores e primeiro Reitor
(1961-1964), que enfrentou aqueles que se posicionaram contrariamente à criação de
mais uma universidade na capital; pois há um ano já havia sido criada a Universidade
Católica de Goiás (UCG). O contexto histórico era favorável, pois estava em curso um
processo para impulsionar o desenvolvimento do Centro-Oeste, tanto que a primeira
denominação extraoficial da instituição foi Universidade do Brasil Central. (UFG, 2013,

p. 21)

4 No Brasil, usamos o termo “anos de chumbo” para descrever um período específico do regime mi-
litar. Igualmente, países como a Argentina, Alemanha e Itália também adotam a expressão para qualificar
sua história na década de 70. Fonte: https://www.todamateria.com.br/anos-de-chumbo/. Acesso em 20 de
julho de 2020.

121
Figura 2: Sede da Faculdade de Direito de Goiás, de 1937 a 1966 – Rua 20, nº 17, Setor Central.
Fonte: Acervo Cidarq/UFG, Livro da Gestão UFG (2006-2013), p. 21.

Por sua vez, a figura 2, nomeada “Sede da Faculdade de Direito de Goiás, de 1937 a
1966” é um registro fotográfico de uma casa com estilo arquitetônico Art Decor5. A ima-
gem traz em primeiro plano o busto de um dos idealizadores da UFG, o já referido Pro-
fessor Colemar Natal e Silva, além de outros elementos panorâmicos como o céu claro
ao fundo, a fiação de energia vinculada a casa e atravessando o céu, bem como parte da
vegetação circunvizinha.

Essa imagem nos remete ao início dos trabalhos da UFG, ao retratar o que atual-
mente é chamado institucionalmente de “Casa da Memória”. Assim, situada na Rua 20,
n.º 19, no Setor Central de Goiânia, é na Casa de Memória que se inicia a história da UFG,
através do diretor da Faculdade de Direito, Professor Colemar Natal e Silva, que se tornou
o primeiro reitor da UFG. De acordo com o Centro de Informação, Documentação e Ar-
quivo – CIDARQ/UFG6:

a Casa da Memória é um espaço aberto ao público que abriga exposições promovidas


pela Universidade Federal de Goiás e também móveis, fotos e documentos da Justi-

5 Art Decó é um estilo artístico que surgiu na Europa nos anos 20 e influenciou as artes, moda, cine-
ma, arquitetura, design de interiores, entre outras áreas. Disponível em: <https://www.vivadecora.com.br/
pro/arquitetura/art-deco/>. Acesso em 20 de julho de 2020.

6 Disponível em < https://cidarq.ufg.br/p/3525-casa-da-memoria>. Acesso em 20 de julho de 2020.

122
ça Federal. Teve sua história iniciada na década de 1930, funcionando como Palácio
Provisório do Governo do Estado de Goiás, tendo sido palco de importantes decisões
que definiram o rumo da nova capital enquanto se erguia o Palácio das Esmeraldas,
assim como abrigou a Faculdade de Direito de Goiás quando houve a transferência da
antiga para a nova capital. De 1969 a 1972 a Casa de Memória abrigou o Conservató-
rio de Música da UFG e em junho de 1973 dá espaço ao Poder Judiciário. Neste ano
ocorreu o ato de assinatura da aquisição do prédio da Rua 20 pela Justiça Federal à
UFG tendo sido tombada como Monumento Histórico através do Despacho n.º 1.086,
de 18 de outubro de 1982, expedido pelo governador Ary Ribeiro Valadão e entregue
à população em 10 de novembro daquele ano, após reforma e restauração de suas
características originais. (CIDARQ/UFG, 2020)

Figura 3: “O Crescimento da UFG”. (Anatoly Kranchenko) - p. 28 e 29, Livro da Gestão UFG (2006-2013).

A figura 3, nomeada “O Crescimento da UFG”, de Anatoly Kranchenko, p. 28 e 29 do


Livro da Gestão UFG (2006-2013), trata de uma imagem de satélite que mostra o espaço
geográfico do Campus II da UFG em diferentes períodos, primeiro em 2006 e depois em
2013. A parte que retrata 2006, antes da adesão da UFG ao Reuni, revela uma UFG com
um número menor de edificações e vias, bastante verde e áreas vazias no espaço delimi-
tado. A parte que retrata o campus em 2013, após a adesão da UFG ao Reuni, mostra o
aumento da área física construída da UFG pós Reuni, estimado em 90%.

A figura 3 mostra que entre 2006 e 2013 vários prédios foram construídos na UFG
como pavilhões de salas de aulas e o Centro de Cultura e Eventos da UFG, assim como o
aumento da urbanização do Campus II por meio de abertura de novas vias, adequação
dos acessos para deficientes, asfaltamentos, sinalização de trânsito e paisagismo, embora

123
as reservas verdes do Campus II tenham sido mantidas.

Logo, a figura 3, além de retratar a diminuição dos espaços vazios, mostra também
a construção de uma UFG que cresce de modo significativo a partir das dimensões do
Reuni. Desse modo, a figura 3 apresenta uma vinculação direta e ampla om a primeira di-
mensão do Reuni, que trata da “Ampliação da Oferta de Educação Superior Pública” uma
vez que essa dimensão previa uma expansão do espaço físico para abrigar a expansão da
oferta de vagas contemplada pela primeira dimensão do Programa. Nessa direção o Livro
da Gestão UFG 2006-2013 afirma que:

os números mostram o avanço da instituição. Além da oferta de 63 novos cursos, fo-


ram ofertadas novas turmas em cursos já existentes em Goiânia e nos câmpus fora
de sede, e de forma especial, as vagas criadas no período noturno constituem-se no
exemplo mais claro desse crescimento. O número de vagas nos cursos de graduação
duplicou, assim como o número de matrículas; da mesma forma, o quantitativo de
docentes foi ampliado em quase duas vezes e meia e, ao mesmo tempo, o número de
doutores praticamente triplicou. Esse quadro de expansão se repete com os progra-
mas de pós-graduação stricto sensu, que cresceram de 28 em 2005 para 68 em 2013,
e os cursos de doutorado se elevaram de 11 para os 30 cursos já autorizados em 2013.
A pesquisa se consolidou ainda mais na UFG. Milhares de novas publicações, a cada
ano, são colocadas à disposição da ciência mundial pela UFG. Esse crescimento foi
acompanhado de uma expansão física sem precedentes, quando a área construída da
universidade foi ampliada em cerca de 90%. (UFG, 2013, p. 16)

A figura 4, por sua vez, nomeada: “Inclusão, Acesso e Permanência”, retrata a colação
de grau da primeira turma do curso de Educação Intercultural Indígena da UFG. Assim, a
imagem retrata um aluno indígena em uma tribuna, vestido com trajes acadêmicos em
uma cerimônia de colação de grau, momento em que aparece em primeiro plano, com
o braço erguido, uma alusão clara a um gesto de vitória, de luta, falando ao microfone, o
que sugere que ele tem voz, ou seja, está empoderado no espaço no qual está inserido,
e com uma expressão de felicidade no rosto, sendo certamente a representação do sen-
timento dele e dos seus demais semelhantes, por ele representado em primeiro plano e
que aparecem em segundo plano na fotografia. Assim sendo, a figura 4 também apresen-
ta uma vinculação direta com a segunda dimensão do Reuni, que trata do “Compromisso
Social da Instituição” (acesso, inclusão e permanência), ressaltando o cumprimento da
democratização do acesso ao ensino superior proposta pelo Programa.

124
Figura 4: “Inclusão, Acesso e Permanência”. Fonte: Ascom/UFG, Livro da Gestão UFG (2006-2013, p. 111).

Figura 5: Ocupação da Reitoria da UFG, Sarau do Movimento “As Minas na Reitoria”, 21 de Junho/2016.
Fonte: Acerto fotográfico da Comunidade Minas da Reitoria abrigado em página do Facebook

A figura 5, nomeada “Sarau do Movimento As Minas na Reitoria” é um registro fo-


tográfico de um momento de uma ocupação Feminista no prédio da Reitoria da UFG
ocorrida no período de 15 à 27 de junho de 2016 contra o machismo, o racismo e todas
as formas de opressão dentro da universidade7, realizada majoritariamente por estudan-
tes mulheres da instituição. A imagem mostra um ângulo do prédio da Reitoria da UFG

7 Fonte: <https://www.facebook.com/asminasnareitoriaufg/?ref=page_internal>. Acesso em 20 de


julho de 2020.

125
em um cenário noturno. Vamos uma espécie de pátio, com iluminação artificial, pessoas
agrupadas neste espaço, assim como vemos algo que lembra uma chama ou uma foguei-
ra que aparece parcialmente atrás de uma mesa no centro do agrupamento.

Em primeiro plano a imagem retrata diversos estudantes reunidos em frente ao


prédio da Reitoria da UFG, aparentemente em diálogo. Alguns deles sentados em cadei-
ras, outros no próprio chão, enquanto outros estão em pé. O grupo aparenta estar espe-
rando algo, assim como parece haver um clima de relaxamento entre os estudantes que
o compõe. Ao fundo da imagem vemos o prédio da Reitoria da UFG, ladeado por duas
palmeiras, com luzes acesas em uma parte do prédio e outras parte às escuras, nos reme-
tendo a própria origem do movimento de ocupação que se deu a partir de uma denúncia
não confirmada de um caso de estupro nas imediações da Faculdade de Comunicação
da UFG.

Na retaguarda da imagem vemos a sacada do prédio da Reitoria, onde há um cartaz


marrom fixado no limite do topo do prédio com um imenso dizer em vermelho assim
escrito: “OCUPADA”, tendo na frente dessa área um estudante com os braços levantados
para o alto, enquanto outro estudante também aparece na sacada, este situado no lado
direito da imagem, em uma posição que parece estar abaixado ou de cócoras. Um pouco
mais baixo, ainda na sacada, há outro cartaz fixado, agora de uma mulher amordaçada.
Embora haja frases escritas também neste cartaz, elas não são perceptíveis na imagem
(constava escrito: machismo, agressão, violência e assédio). Ao fundo e na parte superior
da imagem vemos o céu negro da noite escura, propício ao sarau programado pelos ocu-
pantes naquele momento.

O movimento “As Minas na Reitoria” ocupou a Reitoria da UFG no final da manhã


de 15 de junho de 2016 e lá ficaram até a noite de 27 de junho de 2016, após um grupo
de estudantes, formado por membros e não-membros da ocupação terem saído pelo
Campus Samambaia da UFG bradando palavras de ordem sobre machismo, violência e
assédio. Constava da introdução do documento-proposta que o movimento direcionou
para a gestão da UFG a seguinte afirmação:

Entendemos que a universidade é um lugar de diversidade, pluralidade de ideias, am-

126
pliação de debates e inclusão social. Por estes mesmos motivos, apresentamos suges-
tões e contrapontos à resposta da Reitoria da UFG. Pois a mesma está “comprometida
com a superação das desigualdades e o respeito às diferenças e que forme sujeitos
históricos capazes de promover a transformação da sociedade”. (Minas na Reitoria-U-
FG, 2016).

Embora o movimento não tenha sido naquele momento escutado, tampouco


atendido pela gestão com a sensibilidade e profissionalismo necessário, o movimento
retratado nessa imagem foi um importante ponto de partida institucional para a imple-
mentação de discussões que ficavam implícitas ou à margem do cotidiano da UFG, em-
bora seus resultados maléficos fossem explícitos e vivenciados por diferentes esferas da
comunidade acadêmica, sobremaneira pela classe estudantil, com ênfase nas mulheres,
homossexuais, transgêneros, negros, índios e outras minorias que passaram a compor a
comunidade acadêmica de modo expressivo, sobretudo após a expansão das vagas da
UFG via Reuni.

Os enfrentamentos e discussões institucionais suscitados a partir do movimento


de resistência materializado pelas Minas na Reitoria em junho de 2016 contribuiu, dentre
outras ações posteriores de outros coletivos existentes na UFG, com a criação da Resolu-
ção Consuni nº 12/2017, normativa que institui normas e procedimentos a serem adota-
dos pela instituição em casos de assédio moral, sexual e qualquer forma de preconceito.
Cabe pontuar que essa Resolução tem sido considerada referência e espelho para criação
de Resoluções similares em diversas IFES pelo Brasil afora, na medida em que outras ins-
tituições se dispõem a rever suas condutas e a quebrar paradigmas.

Logo, entendemos a criação da Resolução Consuni nº 12/2017 como um marco na


história institucional, frente ao volume de denúncias não tratadas de modo satisfatório
pela UFG por mais tempo do que seria possível seguir admitindo, o que começa a mudar
a partir da publicação da normativa.

Nesse sentido, consideramos que a imagem aqui retratada figura como histórica
na biografia institucional na medida em que captou um dos tantos momentos de uma
ocupação liderada por estudantes mulheres da UFG, e que foi considerada infrutífera e

127
mesmo mal sucedida, no entanto, colaborou de modo significativo para forçar debates
indigestos para gestão até então silenciados por ela. Sobre a criação da Resolução Con-
suni nº 12/2017, a UFG assim se pronunciou:

A Resolução Consuni nº 12/2017 estabelece definições para os diferentes tipos de


assédio e as situações que os caracterizam. O documento também orienta sobre os
procedimentos a serem adotados por quem sofrer algum tipo de assédio e os meios
disponibilizados pela UFG para a formalização de denúncias. Outro procedimento
previsto na resolução e que já vem sendo adotado pela gestão da Universidade é o
encaminhamento imediato das denúncias desta natureza ao gabinete do reitor para
abertura de sindicância ou processo administrativo disciplinar. Um importante avanço
da resolução é a criação de uma comissão permanente de acompanhamento de de-
núncias e processos administrativos relacionados a questões de assédio moral, sexual
e preconceito, composta por representantes dos órgãos da gestão, das regionais e das
entidades representativas de professores, servidores técnico-administrativos e estu-
dantes. Esta comissão também poderá propor campanhas educativas e ações preven-
tivas. (UFG, 2017).

IV - Considerações finais

As imagens elencadas para compor esse texto retratam diferentes momentos do


desenvolvimento institucional da UFG e nos chama a pensar os fatos dispostos a partir
delas. Nesse sentido, entendemos que a biografia da UFG tem sido construída por um
crescimento contínuo e sustentado, a despeito dos diferentes governos e desafios im-
postos pelo tempo.

Percebemos também que, conforme narrado no Livro da Gestão UFG 2006-2013 e


por meio das imagens aqui agregadas, o programa Reuni foi um dos mais importantes
marcos biográficos dos últimos anos, tendo em vista a contribuição do programa para
o crescimento da UFG e, de modo significativo, com o surgimento de novos sujeitos e
cenários institucionais, permitindo que outras representações da sociedade passassem a
compor a construção da história e da identidade da instituição.

Assim, concluímos que as imagens em tela passam a mensagem prioritária de que


estamos diante de uma instituição sólida e em franca construção, que caminha para os

128
seus 60 anos de existência resistindo e respondendo com sabedoria e eficiência aos obs-
táculos inerentes ao caminho. Acima de tudo, as imagens nos levam a pensar nos dife-
rentes diálogos estabelecidos por essa instituição ao longo da sua construção biográfica,
diálogo esse ora tão ameaçado diante do nefasto cenário social e político que o país apre-
senta em pleno ano de 2020.

A despeito desse contexto, a trajetória biográfica da UFG revela que estamos dian-
te de uma instituição que possui todos elementos necessários para seguir avançado no
tempo, tendo em vista o importante papel dela diante da sociedade goiana, bem como
em relação as outras IFES existentes no Brasil. Nesse sentido, entendemos que imagens
institucionais como as que ora expomos, assim como outras que certamente virão, segui-
rão nos contando sobre essa caminhada.

129
REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto n° 6.096, de 24 de abril de 2007. Institui o REUNI. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6096.htm>. Acesso
em: 20 julho 2020.

________. Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – Reuni. Diretri-


zes Gerais. 2007. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/diretri-
zesreuni.pdf>. Acesso em: 20 julho 2020.

FACEBOOK. As Minas na Reitoria UFG (Comunidade). Disponível em: https://www.


facebook.com/asminasnareitoriaufg/. Acesso em: 24 junho de 2020.

HALBWACHS, M. A memória coletiva. Trad. de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.

UFG. Livro da Gestão 2006-2013 - Universidade Federal de Goiás. Goiânia: UFG,


2013. Disponível em: <https://issuu.com/ufgascom/docs/livro_ufg>. Acesso em: 24
junho de 2020.

_____________. Resolução Consuni nº 12/2017. Goiânia:UFG, 2017. Disponível em:


<https://www.ouvidoria.ufg.br/p/22482-resolucao-consuni-n-12-2017>. Acesso em: 24
junho de 2020.

130
A MORTE, A MULHER E O
ESTRANGEIRO:
AUTO/BIOGRAFIAS ARTISTICAS
REFLEXÕES SOBRE OS AUTORRETRATOS DE HIERONYMUS BOSCH

Tiago Varges da Silva1

Propõe-se aqui fazer uma reflexão a partir de duas imagens do rosto do pintor fla-
mengo Hieronymus Bosch (c.1450 – 1516), realizadas no séculos XV: o primeiro é o seu
autorretrato pintado no Inferno do tríptico O Jardim das Delícias (c.1500), atualmente no
Museu do Prado, Madri; e, o segundo, o famoso retrato conhecido por Autorretrato de
Hieronymus Bosch (15??), desenhado supostamente pelo pintor Pieter Bruegel, O Velho
(1525-1569), atualmente se encontra na Biblioteca de Arras, França.

Alguns questionamentos permearam esta reflexão. Por que Hieronymus Bosch, ao


se retratar, o fez em primeiro plano entre os danados do Inferno Musical? Por que Pieter
Bruegel retratou-o tão velho? E, quais as possíveis influências do autorretrato de Bosch,
no retrato pintado por Bruegel?

A hipótese de uma relação entre os retratos se sustenta inicialmente considerando


os aspectos formais e sociais, já que tanto o autorretrato de Hieronymus Bosch quanto o
de Pieter Bruegel são feitos inferindo uma relação estreita com a finitude humana. Bosch
se pintou no Inferno e Bruegel o retratou com uma aparência exageradamente envelhe-
cida. Enfim, os retratos apresentam pontos de reflexão que apontam para uma inter-rela-
ção, sobretudo, formal e histórica entre as duas imagens da face de Bosch.

1 Doutorando em História, pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de


Goiás. E-mail: tiagovarges@gmail.com.

SILVA, Tiago Varges da. Reflexões sobre os autorretratos de Hieronymus Bosch, In: GRUPO DE ESTUDOS DE
HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática Artística, 2020, Goiânia.
Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 132-143.
Os Rostos de Hieronymus Bosch

Esta análise será feita a partir de uma abordagem tríplice, ou seja, contemplando
três dimensões: a formal, a social e a semântica. Artur Freitas no artigo História e imagem
artística: por uma abordagem tríplice (2004), sugere que toda fonte visual pode ser analisa-
da partindo destas três dimensões. Para o autor, esta é uma sugestão metodológica para
o estudo da imagem e não um método rígido.

Porém, propõe-se aqui, também, ler e analisar os autorretratos, seguindo o pen-


samento de Didi-Huberman (2012), sendo que alguns questionamentos inferidos per-
passaram a esfera da imaginação, “termo caro ao historiador”. Não se está a falar de um
devaneio, mas sim de um exercício cognitivo que compreende a análise da imagem com
base em elementos históricos suscitados pela própria imagem.

A abordagem formal compreende “[...] o resultado de uma intenção produtiva, de


uma prática “plástica”, ou seja, de uma atividade somática que transforma a matéria com
vista à espacialidade visual-tátil.” (FREITAS, 2004, p.8). O visual tátil, segundo o autor, re-
fere-se o visual à cor, extensão, direção tonalidade e padrão e o tátil aos elementos que
atribuem sentidos a peso, volume, textura e temperatura.

A dimensão social compreende o entendimento da imagem como coisa, um artefa-


to social, que circula por várias mãos e instituições, construindo redes de sociabilidade e
valores, influenciando outras criações.

Desse modo, descrever a imagem como coisa é vê-la como um artefato que, sendo re-
sultado de um trabalho, circulou entre certas instâncias e instituições (galerias, museus,
coleções, exposições públicas ou privadas, acervos etc.), passou por certas mãos (mar-
chands, curadores, críticos, colecionadores etc.), construiu um circuito de relações com
outras “coisas” (relações de troca, de reprodutibilidade, relações com outras obras visuais
e/ou textuais etc.) e eventualmente engendrou certos valores. (FREITAS, 2004, p. 13).

O semântico compreende a dimensão dos significados da imagem “[...] diz respeito


aos ‘conteúdos’ [...].” (FREITAS, 2004, p.14). É o processo de interpretação dos significados
atribuídos por um observador. O valor dos significados parte da experiência de quem
observa, portanto, a imagem pode ser entendida como uma relação de atribuição de
significados.

133
Esta análise parte do autorretrato de Hieronymus Bosch, pintado por volta de 1500.
Jhéronimus van Aken; nasceu em Hertogenbosch, uma pequena cidade localizada na
província de Brabante, nos Países Baixos. Tomou como sobrenome uma parte do nome da
cidade, o “bosch”. Nenhum documento preciso testemunha seu nascimento, e, segundo
Gauffreteau-Sévy (1967), o que parece mais verossímil é situá-lo em torno de 1450. Bosch
ficou conhecido por pintar temas moralizantes e de cunho pedagógico e suas obras são
povoadas de representações pictóricas do pecado, cenas infernais e de danação. Bosch
faleceu em 1516 na mesma cidade onde nasceu.

O momento self2 de Bosch está registrado no Inferno Musical, no lado direito do tríp-
tico O Jardim das Delícias (c.1500), obra que é considerada uma de suas mais enigmáticas
criações. Pintura a óleo sobre madeira, no estilo gótico internacional, o tríptico narra os
três primeiros capítulos do livro de Gênesis, a história da criação dos seres humanos e o
envolvimento destes com o pecado e, a danação dos pecadores no Inferno, ambiente
onde Hieronymus Bosch se autorretratou.

Ao abrir o tríptico O Jardim das Delícias, encontramos os três ambientes imaginados


por Bosch. Na tábua central, pintado em cores vivas, o mundo é representado pelo O Jar-
dim das Delícias, à esquerda está o céu ou Paraíso, representado pelo Paraíso Terrestre, e à
direita o Inferno, representado pelo Inferno Musical.

Hieronymus Bosch. O Jardim das Delícias (c. 1500) tríptico aberto. Óleo sobre madeira. Dimensões aber-
to 220 × 389 cm.

2 Ato de autorretratar.

134
A trama pintada por Bosch tem início no lado esquerdo chamado de O Paraíso Ter-
restre, no qual é narrada a história da criação do primeiro casal humano, descrita no livro
de Gênesis, Adão e Eva, e o envolvimento destes com o pecado.

Em O Jardim das Delícias, o pintor buscou representar o mundo de seu tempo, se-
gundo ele, povoado de prazeres, sensualidades, imperfeições e pecados. A cena se de-
senvolve em um imenso jardim, com cores claras e fortes. Não há sombra, o que trans-
mite uma sensação de luminodidade; ao centro, em primeiro plano, encontra-se a Fonte
da Juventude e a sua volta casais com expressões felizes mergulham em suas águas. No
segundo plano, em uma pequena lagoa, algumas mulheres se banham, enquanto um
número maior de homens dançam em círculos montados em animais de várias espécies.

E, no terceiro plano, as cenas são mais próximas, casais nus se abraçam e festejam
alegremente, entregando-se ao divertimento, dentro de grandes frutos e bolhas, uma
clara referência ao pecado da gula e, sobretudo, da luxúria. Os animais e os frutos são
recorrentes no Jardim das Delícias, sendo que, para Bosing (1991), Bosch faz uma leitura
visual das canções e dos provérbios obscenos de seu tempo; frutos, animais e estruturas
minerais, por exemplo, fazia parte da literatura flamenga.

[...] muitos dos frutos mordiscados pelos amantes no jardim são metáforas dos órgãos
sexuais; os peixes que aparecem duas vezes no primeiro plano constituem o símbolo
fálico de antigos provérbios holandeses [...] os grandes frutos ocos e as cascas de frutos
para dentro das quais algumas das figuras mergulharam [...] significa uma coisa sem
valor. Bosch não poderia ter escolhido um símbolo do pecado mais adequado, pois foi
um fruto, afinal, que originou a queda de Adão. (BOSING, 1991, p. 53).

Todas as pessoas são representadas nuas, com excessão de uma que se encontra
no canto direito na parte inferior, um homem, que aponta o dedo para uma mulher, su-
gerindo culpá-la por algo. Nesta cena, possivelmente, o homem é Adão e a mulher Eva,
já que ela traz em uma das mãos uma maçã, alegoria do pecado. Eva está envolvida por
um tubo de cristal em uma referência à efemeridade dos prazeres terrenos. A imagem de
Adão vestido, culpando Eva pelo seu pecado, demonstra a condição da mulher na socie-
dade de Bosch.

135
Bosch descreve a sociedade de Brabante3 do século XVI, idealizada por ele como
um ambiente povoado pelos Sete Pecados Capitais4. Dentre eles, a luxúria e a gula são
os pecados mais explorados. Estes são representados pelos festins sexuais, piqueniques
de amor, banquetes de cerejas e framboesas, pintados em tonalidades vibrantes que
expressam uma sensação de tranquilidade. Mas, Bosch coloca o Inferno do outro lado,
enfatizando a danação do pecador.

Bosch pinta o resultado do pecado no lado direito do tríptico, o Inferno ou Inferno


Musical. Este é um ambiente que contrasta com os demais presentes na obra, tonalidades
escuras e foscas, recortadas por um colorido laranjado e amarelado que fazem alusão
ao fogo, transmitindo uma sensação de calor e agonia, que também é perceptível na ex-
pressão dos danados sendo torturados por criaturas demoníacas representadas a partir
do bestiário medieval.

De todas as partes do tríptico, O Inferno Musical é a mais complexa de interpreta-


ção; a pintura pode ser dividida em três planos, sendo que, o primeiro, na parte superior
se estende no horizonte tenebroso, com suas construções incompletas, uma alusão às
imperfeições5 causadas pelo pecado (AQUINO, 2006). Em meio às chamas, multidões de
pecadores são conduzidos por seres demoníacos aos planos seguintes.

Na segunda parte, utensílios de uso doméstico como facas, vasos, chaves e sinos são usa-
dos como instrumentos de tortura. O mais enigmático se encontra em destaque ao centro do
quadro, em um pequeno riacho de águas escuras e congeladas, contrastanto com a parte su-
perior que arde em vivas labaredas. Há, ainda, uma criatura com membros inferiores e tronco
que está plantada sobre dois barcos e equibilibra sobre a cabeça uma bandeja com estranhas
criaturas que dançam em círculos enquanto torturam os pecadores que as acompanham.

3 Província dos Países Baixos onde nasceu e viveu Hieronymus Bosch, segundo Gauffreteau-Sévy
(1967), ele nunca saiu de Brabante.

4 Vaidade, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e acídia. Está é a lista os pecados capitas organizada por
São Tomás de Aquino. O termo capital derivar italiano caput, cabeças (LAUAND, 2004).

5 Para São Tomás de Aquino o inferno e o pecado são a imperfeição humana, logo, tudo que está
relacionado ao pecado é imperfeito, inclusive o Inferno (AQUINO, 2006).

136
No centro do quadro infernal encontra-se, em analogia à Fonte da Vida do painel do
Paraíso, o chamo homem-árvore, cujo o torso oval assenta num par de cepos apodre-
cidos que terminam em dois barcos em jeito de sapatos. A sua nádega está caída, de
modo que o olhar do observador depara com a cena da taberna infernal [...]. (BOSING,
1991, p. 58).

A cabeça do homem-árvore, como chamou Bosing (1991), é o autorretrato de Hie-


ronymus Bosch. Quando ele pintou este autorretrato, possivelmente, tinha aproximada-
mente cinquenta anos, não é possível sabê-lo com exatidão, porque Bosch não tinha o
hábito de datar suas obras, como é o caso de O Jardim das Delícias. Sabe-se ao certo que
seu nascimento foi no ano de 1450 e muitos dos pesquisadores de sua obra são unâimes
em situar o ano de conclusão do referido tríptico em 1500.

O Inferno Musical (1500), em destaque o outorretrato de Hieronymus Bosch.

O autorretrato é de um senhor de aproximadamente cinquenta anos de idade, que


exibe discretas rugas, olhos grandes e vívidos, transmitindo uma sensação de vigor; o nariz
é grande, quase desproporcional à morfologia da face; os lábios estão cerrados; o rosto é
contornado por crespos cabelos que aparentam ser loiros, em processo de branqueamento.

137
A expressão de Bosch parece ser indiferente ao ambiente, não há tristeza nem ale-
gria. Ele ignora tudo a sua volta, não ouve os gritos dos danados, nem os ruídos das cha-
mas consumindo as construções no horizonte, não ouve a música tocada pela orquestra
da tortura, composta por uma harpa, um alaúde, uma gaita de fole, uma flauta, uma cor-
neta e um tambor. Bosch não olha para os lados, pois sua atenção está em quem o olha e
seus olhos estão fixados no espectador.

Mas, afinal por que Hieronymus Bosch se retratou no inferno? Sentimento de culpa
frente aos pecados? ou um ato irônio? Na interpretação de Gauffreteau-Sévy (1967), Bos-
ch usou o seu pincel para advertir os pecadores sobre o dramático fim que os esperava,
e que o seu autorretrato entre os danados era uma demonstração de humildade, pois na
mentalidade de sua época considerar-se como bem-aventurado era mal visto, um ato de
arrogância.

Para Bosing (1991), O Jardim das Delícias é uma narrativa pedagógica que ensina e
adverte, mas Bosch usa do estilo burlesco para transmitir seus anseios e impressões sobre
o pecado. É possível identificar na sua obra leituras teológicas, entretanto, a cultura popu-
lar da praça, dos provérbios e dos mitos medievais estão presentes no tríptico, da mesma
forma que estavam em seu inconsciente no momento da criação.

Considerando as hipóteses de Gouffreteaeu-Sévy (1967) e Bosing (1991), outra


questão faz deste autorretrato um ponto de reflexão importante para compreensão da
obra de Hieronymus Bosch. Primeiro, não era muito comum nas obras medievais os ar-
tistas se autorretratarem. Essa prática foi mais recorrente na renascença e tal fato se deve
à falta de uma técnica que desse contorno aos traços fisionômicos do indivíduo repre-
sentado. De acordo com Castelnuovo (2006), o estudo do retrato a partir de critérios da
fisionomia está fora dos objetivos da arte medieval.

Segundo, autorretratar-se como um danado só se encontra em Hieronymus Bosch por-


que sua obra traz elementos da mentalidade medieval, como as preocupações com o pecado
e o medo do diabo e as consequentes punições infernais. Entrementes, sua obra rompe com
alguns pressupostos característicos da arte medieval, como se autorretratar na obra.

138
Bosch não foi o único artista a se autorretratar em um dos Novíssimos do Homem6.
Temos dois casos de artistas italianos que também o fizeram: Luca Signorelli (1445/1450
– 1523) e Michelangelo (1475 – 1564). No caso Signorelli, o pintor aparece no afresco
Os Condenados que compõe o conjunto do Juízo Final, representado com um demônio,
pintado aproximadamente em 1503, na Catedral de Orvieto. Diferente de Bosch que se
coloca na condição de danado, Signorelli se autorretrata como um demônio, torturando
os condenados.

Os autorretratos de Luca Signorelli e de Hieronymus Bosch são contemporâneos,


entretanto, ambos apresentam mentalidades distintas, características das temporalida-
des históricas nas quais os artistas estavam inseridos. De acordo com Janson (1992), Sig-
norelli e Bosch pintam cenas infernais, mas os homens e mulheres de Signorelli apresen-
tam uma dignidade humana inexistente em Bosch.

O inferno de Signorelli, diametralmente oposto o de Bosch, tem luz do dia pleno, sem o
pesadelo das máquinas de tortura ou os monstros grotescos. Os condenados conservam
a dignidade humana e até os próprios demônios estão humanizados. A fé do Renasci-
mento no homem nem se quer no inferno perde a força. (JANSON, 1992, p. 434).

Michelangelo, também se autorretratou em seu Juízo Final, afresco da Capela Sisti-


na, pintada entre 1508 a 1512. Ao centro da disposição, o santo Bartolomeu segura uma
pele humana em alusão ao seu martírio, o mesmo foi esfolado, o rosto é o autorretrato
de Michelangelo. No sarcasmo impiedoso deste auto-retrato (tão bem escondido que só em
tempos modernos foi reconhecido) o artista deixou a sua confissão pessoal de culpa e desme-
recimento. (JANSON, 1992 p. 454).

Os dois autorretratos italianos apresentam propósitos diferentes do flamengo, mes-


mo sendo todos realizados em cenas do Juízo Final. Preocupação com a finitude, ou ape-
nas um chiste, o self de Bosch não ficou apenas no Inferno Musical, ele influenciou outros
retratos, inclusive o seu retrato desenhado, possivelmente, pelo pintor flamengo Pieter
Bruegel, O Velho. Bruegel nasceu na mesma região de Bosch, nas redondezas de Herto-

6 Trajetória da finitude humana na fé cristã: Morte, Juízo, Inferno e Paraíso.

139
genbosch, entre os anos de 1524 ou 1525, e faleceu em 1569.

Este artista foi fortemente influenciado pela obra de Bosch, considerado por Janson
(1992) como o grande pintor flamengo e o primeiro a pintar paisagens não apenas como
plano de fundo. Sua obra, assim como a de Bosch, apresenta uma dificuldade de compre-
ensão. “Não há dúvida que a obra de Hieronymus Bosch o marcou profundamente e que,
sob muitos aspectos, ele é tão difícil de compreender como o seu mestre [...].” (JANSON,
1992, p.493).

Bruegel conhecia bem a obra de Hieronymus Bosch e apreciava tanto o seu estilo
que, talvez essa admiração o levou a desenhar o seu retrato, quiçá com o objetivo de pin-
tá-lo. Mas, por que o fez com uma aparência tão envelhecida?

O referido retrato, chamado de O autorretrato (15??), encontra-se na Biblioteca


Municipal de Arras, na França. De acordo com Gauffreteau-Sévy (1967), trata-se do retrato
de Hieronymus Bosch, possivelmente desenhado pelo seu mais representativo seguidor,
Pieter Bruegel, O Velho.

O Autorretrato de Hieronymus Bosch (c.1560), atribuído a Pieter Bruegel. Desenho a lápis. Biblioteca de Arras.

Desenhado a lápis, com dimensões de 41 cm X 28 cm, chamado de O Autorretrato


(15??), Bosch é retratado como um senhor idoso, com a pele bastante enrugada, cabelos

140
crespos, brancos e volumosos que sai pelas laterais do gorro. Comparando estas carac-
terísticas com o autorretrato de Bosch pintado no Inferno Musical, não é possível inferir,
a priori, uma semelhança, porém quando observamos a expressão de Bosch, percebe-se
uma profunda relação entre as duas obras.

Os conjuntos faciais são idênticos, olhos grandes e vivos, que demonstram olhar
fixo no espectador, nariz volumoso, quase desproporcional ao rosto, e o mais surpreen-
dente, a boca é a mesma, lábios grossos e cerrados. O retrato tem uma semelhança na
expressão de cumplicidade, um olhar atento em quem o olha, parece querer dizer algo,
mas se cala.

Não é possível afirmar com exatidão que Bruegel conhecia outro retrato de Bosch,
que não seja o self do Inferno Musical, no entanto, este, e o seu desenho são os únicos re-
tratos conhecidos de Bosch. O mais provável é que Bruegel ao desenhar, tenha tomado-o
como modelo.

Um autorretrato de Pieter Bruegel realizado em 1565, já no final da vida, demonstra


aspectos formais muito parecidos com o retrato da Coleção de Arras. Trata-se de um de-
senho conhecido como O Pintor e o Comprador (1565), a pequena imagem mede 25,5 cm
X 21,5 cm e pertence à Coleção de Artes Gráficas de Albertina, Viena.

Pieter Brueguel. O pintor e o comprador. [c.1565]. Museu Albertina, Viena.

141
No desenho, há dois homens; em primeiro plano, o pintor, Bruegel, e em segundo
plano, o comprador. Velho com cabelo e barbas grandes, o pintor parece estar concluindo
uma obra já encomendada. Este desenho apresenta elementos muito próximos do retra-
to de Hieronymus Bosch e agora não só o gorro, mas novamente as expressões nos fazem
lembrar os dois retratos já analisados.

A expressão de Bruegel é a expressão de Bosch; nariz desproporcional ao tamanho


da face, lábios cerrados, olhos grandes e vivos, a diferença está no olhar, Bosch olha para
o espectador, já Bruegel, fixa o seu olhar na obra, porém sua expressão demonstra que
ele sabe que está sendo observado, não só pelo seu cliente, mas por olhares que estão
fora da cena.

Os retratos flamengos analisados apresentam uma relação estreita entre si, que
transcende as dimensões formais e sociais, o autorretrato de Bosch, assim como sua obra,
exprime uma complexidade de interpretação. No entanto, alguns indícios formais e histó-
ricos permitem leituras que lançam possibilidades de compreensão de alguns elementos
presentes em sua obra.

O rosto do homem árvore não é apenas um autorretrato de Hieronymus Bosch, mas


o retrato de uma sociedade que vive um momento de transição, entre dois tempos his-
tóricos, a Idade Média e o Renascimento. Os danados que são torturados têm o mesmo
rosto, eles sentem os suplícios infernais, pois estes, de fato, estão lá. Já Bosch, está no in-
ferno, mas o inferno não está nele, seu autorretrato é sintoma de uma época que convive
com esses dilemas, os homens que outrora tinham o mesmo rosto, agora têm fisionomia
própria.

142
REFERÊNCIAS

BOSING, Walter. Hieronymus Bosch, cerca de 1450 a 1516, entre o céu e o inferno.
(trad.Casa das Línguas Lda). Benedikt Taschen (volume 11), Taschen, 1991.

CASTELNUOVO, Enrico. Imagens Republicanas. In: Retrato e sociedade na arte Italia-


na. Ensaios de história social da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Lisboa: Ed. Imago, 2012.

FREITAS, Arthur. História e imagem artística: por uma abordagem tríplice. Estudos
Históricos (Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, v. 34, n. 34, p. 3-21, 2004.

GAUFFRETEAU-SÉVY, Marcelle. Hieronymus Bosch “el Bosco”. Traducción: Juan-Eduar-


do Cirlot. Barcelona, Editorial Labor, SA, 1967.

JANSON, H. W. História da arte. Tradução de J. A. Ferreira de Almeida et al – 5ª edição –


São Paulo : Martins, 1992.

LAUAND, Luiz Jean. Estudos Introdutórios. In: TOMÁS DE AQUINO. Sobre o Saber (De
Magistro), Os Sete Pecados Capitais. Trad. e estudos introdutórios de Luiz Jean Lauand.
2ª Ed. São Paulo. Martins Fontes, 2004.

A Bíblia Sagrada. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e Corri-
gida. Ed. 1995, São Paulo: Sociedade de Bíblia do Brasil, 1995.

TOMÁS DE AQUINO, S. Suma Teológica. [Tradução Coordenação geral: Carlos-Josaphat


Pinto de Oliveira, OP et alii]. Tomo III-IX. São Paulo: Edições Loyola, 2006.

DOCUMENTOS ICONOGRÁFICOS:

BOSCH, Hieronymus. O Jardim das Delícias. (tríptico aberto). Museu do Prado, Madri.
Óleo sobre madeira, 220 cm X 390 cm. Disponível em: < https://www.museodelprado.
es/coleccion/obra-de-arte/triptico-del-jardin-de-las-delicias/02388242-6d6a-4e9e-a-
992-e1311eab3609>. Acesso em: 06 de abril de 2020.

BRUEGEL, Pieter. O autorretrato. Biblioteca de Arras, Arras. Desenho, 41 cm X 28. Dis-


ponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/2d/Jheronimus_Bos-
ch_%28cropped%29.jpg>. Acesso em 06 de abril de 2020.

_______, Pieter. O Pintor e o Comprador. Desenho. Albertina, Viena. 25,5 cm X 21,5 cm.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:BruegelPortrait.jpg>. Acesso em:
06 de abril de 2020.

143
SONORIDADES BIOMUSICAIS
SONORIDADES DE SI NA VOZ DE ELY CAMARGO

Nayara Crístian Moraes1

Ela: a que saiu “com a cara, a coragem e a mala”

Ely Camargo, principal agente do trabalho em questão, nasceu na cidade de Goiás


em fevereiro de 1930, mudou-se para Goiânia em 1938, falecera na mesma cidade em no-
vembro 2014, aos 84 anos de idade. Filha de Élcima Veiga de Camargo2 e Joaquim Edson
Camargo, e bisneta do conhecido artista escultor santeiro goiano Veiga Valle. Embora
descendesse de família influente, Ely teve uma vida regada na infância e adolescência,
momento em que a família vivia apenas com o salário de professor do pai. Ely respirava
música desde pequena. Sua experiência em família teve grande influência em suas esco-
lhas.

Sua mãe, Élcima, estudou piano e tocava o instrumento em casa, embora muito
pouco, dada às inúmeras tarefas domésticas que carregava sobre si, além dos cuidados

1 Historiadora. Doutoranda em história no PPGH-UFG sob orientação da Dra Heloísa Selma F. Capel.
Mestra em História (PPGH-UFG, 2017). Estagiária docente na Faculdade de História da UFG. Email: ncm.
hist@gmail.com

2 É interessante apontar, principalmente porque este texto aborda relações de gênero, que a mãe de
Ely Camargo é negligenciada na biografia a respeito da artista nos principais veículos de informação social
e musical. Os principais jornais goianos (O Popular e Folha de Goiás), e dicionários e sites voltados para a
música, registram apenas que Ely Camargo é filha de do maestro Joaquim Edson de Camargo. Sua mãe
sequer é mencionada, como se ela tivesse sido gerada e criada apenas pelo pai. Nem mesmo no dicionário
Cravo Albin da música brasileira é mencionado o parentesco materno de Ely Camargo, talvez porque sua
mãe era “apenas” “do lar”? Nem mesmo para citar a descendência de Veiga Valle ou a influência musical da
prática de piano da mãe e seus parentes a figura materna é acionada. A influência do pai e maestro Ca-
margo é o que desponta como principal elo familiar influenciador na biografia escrita acerca dela. O único
documento encontrado até o momento que faz menção à mãe da artista é o documentário “Ely de Canto
a Canto” (2014).

MORAES, Nayara Crístian. Sonoridades de si na voz de Ely Camargo, In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA
E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...]
Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 145-155.
que dedicava ao avô de Ely. É o que afirma uma das irmãs da artista, em documentário
produzido acerca de Ely Camargo em 2014. Ely nasceu e cresceu em uma época em que
a desigualdade de gênero se mostrava até mesmo na própria legislação brasileira. De
acordo com a historiadora Maria Amélia Garcia Alencar (2006):

No Brasil das primeiras décadas do século XX, as relações de gênero que se manifesta-
vam na legislação perpetuavam a desigualdade, tendo como pano de fundo o papel
da “mulher moderna” que, de maneira ambígua, deveria ocupar os espaços públicos
como uma extensão do seu lar. Era a mãe exemplar, a esposa honrada, formadora dos
cidadãos, num discurso que combinava individualismo moderno e defesa da honra da
família, concebida como célula primordial da nação (ALENCAR, 2006, p. 161).

O pai de Ely era Joaquim Edson Camargo, professor de música, maestro, músico e
compositor conhecido em Goiás. E suas irmãs cantavam e tocavam piano assim como a
própria. Vários de seus parentes também tocavam e cantavam nas noites goianas. Toda-
via, rapidamente, seu nome dispensava o elo familiar como referência, tornou-se muito
conhecido em Goiás, assim como em outros Estados brasileiros. Ely se formou em farmá-
cia e cursou a chamada Escola Normal. Por uma década lecionou no Colégio Santa clara,
e foi lá que conheceu o primeiro incentivador de seu trabalho como cantora profissional,
Bariani Ortêncio..

Segundo o próprio Bariani Ortêncio, a Columbia discos se interessava por duplas


de mulheres intérpretes, tendo em vista que uma dupla de sucesso da gravadora não
poderia mais cantar na época, os empresários do meio pediram a Bariani que “arranjasse”
artistas para gravação de discos, tendo em conta que Ortêncio era um dos maiores com-
pradores de discos da empresa naquele momento. A princípio, a artista formou dupla
com sua irmã, e se apresentavam como as “Irmãs Camargo”. A dupla cantava em festas fa-
miliares e públicas, além de se apresentarem na rádio. Ely começou fazendo o programa
“Brasil de canto a canto”, que a levou para Brasília-DF, onde fazia não só rádio, mas tam-
bém TV. Nesse período, deu-se o casamento de sua irmã companheira de profissão, então
a dupla “Irmãs Camargo” se desfez. Logo, porém, a artista fez parceria com Onorina Barra,
e foi quando gravou seu primeiro disco em dupla, empresariada por Ortêncio, que nego-
ciava com gravadoras de outras regiões do Brasil. Ely e Onorina foram para São Paulo, e no
regresso à Goiás já estavam com o disco de 78 rotações pronto. O disco vendeu, “de cara”,

146
mil cópias por meio do Bazar Paulistinha. Mas essa parceria também não evoluiu.

Em 1960, devida à sua técnica vocal apurada, fez parte do conjunto vocal Trio Guaí-
ra. Depois de 15 anos trabalhando nas rádios de Goiânia e Brasília, e lecionando no Colé-
gio Santa Clara, Ely Camargo reuniu algum dinheiro e em meados de 1962, pôde, enfim,
ir para São Paulo fazer rádio e partir em busca de realizar seu sonho artístico profissional
como intérprete solista. Levou consigo uma carta de apresentação e indicação de Bariani
Ortêncio e entregou ao produtor cultural Tedy Vieira. Por seu talento e trabalho, ela con-
seguiu não só uma oportunidade na Rádio e TV Tupi, como também gravar seu primeiro
disco solo. Sua primeira apresentação em São Paulo como solista foi na rádio Tupi, com
um violonista que lhe era desconhecido e lá estava, em presença do produtor musical da
rádio. Depois de cantar de modo improvisado, foi imediatamente contratada como can-
tora e radialista. Permaneceu na Tupi por dois anos, fazendo sucesso tanto na rádio como
em seus shows por São Paulo e cidades do interior do Brasil (ELY, 2014)

É muito relevante registrar aqui as palavras de Ely Camargo quando se refere a seu
sonho de gravar discos, porque ao contar sua trajetória a artista coloca o seu sonho pro-
fissional à frente de interesses que a sociedade julgava mais importante para uma moça
do Brasil da época:

Enquanto as moças todas, amigas minhas, pensavam que o máximo, o bacana, era
entrar na igreja com um noivo, em um casamento né (sic), eu incentivava todo mundo
pra casar né, mais eu não (risos). Eu achava que eu não servia para casar né, porque
eu queria ser passarinha, queria voar, e com o casamento você logo arranja um filho
e...(sic). É maravilhoso né. Mas nunca me entusiasmei. Tive até uns pretendentes, mas
não dava não. Eu queria era ir para São Paulo cantar. Meu sonho sempre, sempre, era
ir pra São Paulo fazer carreira, e aqui em Goiânia eu não tinha nenhuma condição de
crescer (ELY, 2014).

Sua irmã afirma que ela saiu de Goiás “com a cara e a coragem, e uma mala”. Confiou
em si mesma. São Paulo era conhecida como a cidade dos artistas, quem queria gravar
deveria ir para lá, onde as grandes gravadoras e rádios ficavam. Nas palavras de Bariani,
naquela época ter um disco era uma honra, era como ter um diploma precioso na parede
(Ibid.).

147
De acordo com Natália Pietra (2018) as mulheres brasileiras nos anos 1960 já esta-
vam integradas ao mercado de trabalho e atuavam em diferentes áreas, embora ganhas-
sem menos e tivessem dificuldades de ascender aos postos de comando, mesmo quando
tinham maior nível de escolaridade, problemas que, infelizmente, ainda enfrentamos.

No mundo artístico musical do disco naquela época, entretanto, podemos consi-


derar algumas singularidades e desafios em comparação à outras ocupações. Se para um
homem já era difícil gravar um disco, para uma mulher o desafio era maior. Sair sozinha
em busca de fazer sucesso e gravar discos não era bem visto na sociedade patriarcal, por-
que envolvia renunciar a valores morais relevantes para tais grupos. Embora, no caso de
Ely, ela afirme que seu pai a dava muita liberdade e independência e era incentivador de
seu trabalho. Todavia, ressalta-se que a artista se sentiu na obrigação de justificar tal coisa
no documentário, diante, obviamente, da cobrança das pessoas acerca de suas escolhas
de vida.

A presença da mulher e as relações de gênero na indústria fonográfica desde que os


primeiros fonogramas começaram a ser comercializados no Brasil, a partir de 1900, ainda
carecem de pesquisas. No entanto, é possível afirmar que gravar discos, desde a era do
gramofone, não era profissão considerada apropriada para uma mulher, até que elas co-
meçaram a ocupar novos espaços décadas depois, embora debaixo de muita crítica. Em
1928, Theodor W. Adorno, sociólogo, musicólogo e crítico alemão, chegou a afirmar que:

As vozes masculinas podem melhor ser reproduzidas do que as vozes femininas. A voz
feminina facilmente soaria estridente – mas não pelo fato do gramofone ser incapaz
de captar as freqüências agudas, como é demonstrado pela sua adequada reprodução
da flauta. Preferencialmente, a fim de tornar-se livre, a voz feminina requer a aparência
física do corpo que a carrega. Mas é justamente este corpo que o gramofone elimina,
dando desse modo, a toda voz feminina um som que é pobre e incompleto (ADORNO,
2002, p. 274).

Consideramos, obviamente, que a presença da mulher nos espaços públicos e pri-


vados no mundo do trabalho era cerceado, de modo geral. No Brasil, durante o Estado
Novo, Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde, chegou , inclusive, a protago-
nizar um projeto que salientava a necessidade de promover o aumento da população e

148
de oferecer proteção estatal à família monogâmica e ao casamento indissolúvel. Para tan-
to, propunha, entre outras providências, a “progressiva restrição da admissão das mulhe-
res nos empregos públicos e privados. Não poderão as mulheres ser admitidas senão aos
empregos próprios da natureza feminina e dentro dos estritos limites da conveniência
familiar”. De acordo com Adalberto Paranhos, tratava-se de “reforçar o direcionamento
das energias femininas para funções julgadas compatíveis com sua ‘essência, o que signi-
ficava reafirmar seu enraizamento natural na vida doméstica” (PARANHOS, 2013, p. 136).

Na década de 1960, entretanto, os papéis da mulher na sociedade estavam sendo


reestabelecidos, diante das lutas feministas onde as transgressões estavam postas. Práti-
cas que antes eram consideradas desviantes, estavam começando a ser aceitas: o ques-
tionamento da família monogâmica, heterossexual e indissolúvel, por exemplo (Pietra,
2018).

Ainda de acordo com Adalberto Paranhos (2015), entretanto, foi apenas na década
de 1970 que o Brasil assistiu a ascensão da mulher no mundo da música discográfica: “em
escala até então inusitada, de compositoras que exploraram um território, o da música
popular brasileira, historicamente dominado por homens” (PARANHOS, 2015, p. 3).

Os laços matrimoniais conferiam às moças, até então, honra moral, à ela, ao marido
e à família. Maria Fernanda B. Bicalho, já em 1989 afirmou o seguinte:

Vemos, portanto, que a elaboração de uma nova identidade da mulher acha-se refe-
rida basicamente à família e aos papéis significativos de esposa e mãe, símbolo do lar
e da moral doméstica. Embora possamos perceber um processo de individualização
da mulher e a valorização de sua trajetória e projeto pessoais, a biografia feminina
continua a se polarizar em torno do casamento, da família e da maternidade, centros
organizadores de sua identidade (BICALHO, 1989, p. 94).

A escolha de Ely Camargo, feita ainda nos anos 50, em renunciar o casamento e a
maternidade, ainda não era muito bem vista, se é que esta escolha para as mulheres já
seja bem aceita nos dias de hoje. No entanto, por ter conseguido lugar de sucesso e proje-
tar Goiás a nível nacional, ela parece ter sido “bem aceita”, embora se tenha rumores acer-

149
ca de sua conduta “pouco feliz”3. Acontece que, tendo em vista o contexto daquele mo-
mento, de movimentos feministas advindas, inclusive, da inovação dos contraceptivos,
como afirma Raquel Soihet, as mulheres vinham lentamente buscando seus interesses e
questionando os papéis que lhes eram atribuídos pela sociedade: “As mulheres estavam
dizendo não a um modelo patriarcal que se lhe impôs, durante séculos apenas a função
de reprodutoras” (SOIHET, 2015, p. 209).

Após ir para São Paulo, Ely gravou 12 LP’s e uma série de discos compactos nas gra-
vadoras Chantecler, RCA Victor e COMEP (Comunicações Edições Paulinas). Seus discos
foram lançados em Portugal, África do Sul e México. Em seu programa de rádio chamado
“Canções da minha terra” dedicou-se à divulgação do folclore nacional e regional, tendo
recebido vários troféus como “melhor intérprete” do folclore brasileiro (ALENCAR, 2011,
p. 350).

A partir de 1964, com o Golpe Civil Militar, ela passa a considerar São Paulo, em
suas próprias palavras, “meio tumultuado”. A vida dos artistas começa a ficar mais agitada
e ela continua sua volta pelo Brasil, porque queria cantar a realidade, cantar o folclore
brasileiro, portanto não servia apenas imaginar. Ao mesmo tempo, continuava gravando
programas de rádio por onde ia e enviava para onde estava contratada em Sâo Paulo.
Entretanto, sempre voltava à sua terra natal, embora, entre idas e vindas, tenha vivo em
São Paulo por quase 30 anos a partir de 1962. Nos anos 2000 a artista passou a integrar,
inclusive, o comitê de cultura goiana (ELY, 2014).

Em 2009 Ely Camargo foi entrevistada pela historiadora Maria Amélia Garcia de
Alencar, pesquisadora da música folclórica, professora aposentada do Programa de Pós-
-Graduação em História da UFG. Em único escrito de cunho historiográfico acerca da ar-
tista, Alencar fez uma retomada dos estudos da cultura popular e do folclore no Brasil e,
a partir desses estudos, publicou o artigo intitulado “O folclore goiano chega ao disco:
autenticidade, identidade e memória”, na revista Dimensões, da UFES. Nele, Alencar dis-

3 As opiniões acerca de suas escolhas poderão ser mais bem exemplificadas em publicação futura
de entrevistas à autora deste trabalho, com pessoas que participaram de sua vida e acompanharam sua
carreira.

150
ponibiliza um pequeno trecho dessa entrevista e relaciona a obra de Ely Camargo como
contribuição para o estudo da cultura goiana e brasileira. Indagada pelo interesse de
pesquisar o folclore brasileiro, a artista responde que precisava “sentir o sabor do povo
cantando” e por isso começou a viajar para diferentes regiões do país a fim de registrar as
festas e performances populares (ALENCAR, 2011, p. 349).

Importante lembrar que neste momento da vida de Ely, uma figura muito impor-
tante se desponta. No documentário “Ely de canto a canto”, a artista indica a amiga Maria
Adalva Cavalcante, conhecida como Estrela Dalva, como principal apoiadora de suas via-
gens ao redor do país entre as décadas de 1960 e 1980. A amiga foi quem teve a ideia de
que viajassem de carro pelo país, registrando sonoridades ao vivo onde encontrassem.
Estrela Dalva dirigia o carro e Ely identificava e registrava os interesses por onde iam, do
Norte ao Sul do país. Adalva diz no documentário que para ela foi uma experiência única
e muito importante da sua vida.

Ely queria registrar o imaginário folclórico manifesto Brasil afora, entrando em con-
tato com diferentes formações de identidades culturais, míticas, religiosas, com diferen-
tes saberes populares, as manifestações originárias do sofrimento e da pobreza, da de-
sigualdade no sertão do país, sul ou norte, Goiás ou Minas Gerais. Assim em sua obra,
as coletividades ou individualidades, se desvelavam em sonoridades. Com o objetivo de
alcançar essa diversidade, gravou ao vivo em diferentes lugares:

Com gravador debaixo do braço, ela registrava cantos que encontrava em merca-
dos populares, praias e festas em diferentes lugares do país. Ouviu e armazenou cantos e
“tocadas” de mendigos, cegos na rua, pagadores de penitências e grupos de festejo que
cantavam em consonância com sua história pessoal e coletiva (ELY, 2014).

De acordo com Alencar, nesse período de coleta e registros sonoros, a artista pas-
sou a frequentar o Museu do Folclore em São Paulo, e foi lá conheceu o pesquisador e
professor Rossini Tavares de Lima, que a auxiliou no conhecimento das músicas que a
própria Ely cantava. Para Alencar, Lima pode ter influenciado a artista na preconização do
método histórico, comparativo e evolutivo, já que a cantora não pertencia formalmente

151
às instituições que promoviam o debate e a pesquisa nesta área: Percebe-se, nas palavras
de Ely, a filiação a um folclorismo romântico, mais ligado à busca das origens e à repro-
dução do ‘sabor do povo cantando’, em outras palavras, a busca por uma “autenticidade”,
que ela buscava preservar. Segundo a historiadora, esta era uma posição “dominante en-
tre os intelectuais goianos ligados à cultura do povo, ancorada numa “visão tradicional,
que enxergava nas raízes culturais algo que deveria ser preservado” (ALENCAR, 2011, p.
349-350).

Depois da década de 1970 sua trajetória como intérprete, instrumentista, compo-


sitora e pesquisadora autônoma continuou. Ely representava Goiás e o Brasil de canto a
canto, mas também levava sua performance para fora dele, visitando, até mesmo outros
países, fazendo suas apresentações, como mostram registros de jornais e entrevista pre-
sentes em documentário a seu respeito (ELY, 2014) e em entrevista à historiadora Maria
Amélia Alencar (2009). Foi entre a década de 1960 e 1990 que os discos de Ely Camargo
se apresentaram, sendo que no total de sua carreira foram lançados cerca de 22 discos,
destes apenas dois da década de 90, entre LPs e compactos. Além de músicas ditas fol-
clóricas, a artista gravou composições eruditas brasileiras, modinhas seresteiras e tantos
outros gêneros da música popular brasileira, tendo como parceria maestros e instrumen-
tistas conhecidos. Dentre os prêmios ganhos ao longo da carreira estão o Troféu Guarani,
da TV Record (canal 7), como melhor intérprete feminina de música regional e folclórica;
além dos prêmios “Prêmio Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro” e “Troféu Jaburu”.

A obra de Ely Camargo é composta por imagens do Brasil, evocadas e representadas


nas visualidades e sonoridades que embrenham seus discos, seja nas paisagens sonoras
das músicas, nas visualidades das capas, contracapas e encartes de discos, ou gravações
de seu acervo particular. Obra de uma mulher que enriqueceu com seu trabalho árduo
a cultura regional e nacional, e que deveria, devidamente, ocupar seu espaço e alcançar
sua importância no seio historiográfico da atualidade. Tal originalidade se concretiza com
a inexistência de pesquisa da obra de uma artista de tal alcunha, que está tão perto, e, ao
mesmo tempo, tão longe de nós, longe dos escritos e ditos acerca da história de Goiás, da
história do Brasil, da música, da nossa cultura.

152
Ely Camargo deu vida às imagens evocadas pelas manifestações de música, dança
popular folclórica e construções identitárias vivenciadas no Brasil. Iconografias musicais
presentes nos álbuns e acervo pessoal da artista, paisagens sonoras e discursos brasilei-
ros, conectados pela obra de Ely Camargo, poderão ser analisadas e “historicizados” em
pesquisas futuras, evocando imagens de um passado não muito distante, que reverbera
até nós em sons e imagens, projetando paisagens, que poderão nos despertar para me-
mórias que permeiam a cultura de várias regiões do país, por meio de uma artista goiana
quase desconhecida na historiografia cultural estadual e nacional.

Ainda na atualidade, Ortêncio se refere à Ely como promotora dos compositores e


artistas goianos. Para ele, sua música é folclórica e popular ao mesmo tempo. A partir de
1963 Ely Camargo, concomitante a seu trabalho na rádio e aos seus shows, começou a
viajar pelo Brasil registrando, com gravador portátil da época, performances culturais no
Nordeste, em Goiás e muitos outros Estados. É importante frisar que Ely foi reconhecida
por seu trabalho por diferentes críticos musicais da época, dentre eles Rossini Tavares e
José Ramos Tinhorão.

As buscas da artista pelas autenticidades nos rincões do Brasil, por meio de seus
registros folclóricos, foram acentuadas por José Ramos Tinhorão, o que demarca a boa re-
cepção de sua obra perante um importante crítico da música na época, quando o mesmo
dizia que Ely cantava a “voz anônima de um povo, a alma da própria terra” (TINHORÃO,
1983).

José Ramos Tinhorão disse, na época em questão, que o trabalho de Ely Camargo
chamava atenção porque ela estudou as “manifestações musicais na área das camadas
mais baixas do campo e mesmo dos núcleos de pobres das cidades”. Em sua crítica, men-
ciona que o povo não concebe a sua música como canção, porque a ligam com as danças
ou aos autos, os cânticos populares de caráter religioso, como benditos e hinos de procis-
são, e se prendem também às “manifestações coletivas, ou obedecem a finalidades indivi-
duais, mas específicas, como as canções de embalar, os pregões, as cantigas de velório ou
os cantos de pedir esmolas”. Para ele são atos de cantar ligados à dinâmica cotidiana da
vida, diferente da música popular viabilizada pela indústria cultural fonográfica: “Assim,

153
passa a tornar se um acontecimento altamente importante quando um artista urbano,
desprezando as glórias da comunicação com o público interessado apenas na música
da moda”. Destaca que artistas como Ely, uma artista urbana que empresta “sua voz para
fazer ouvir, através dela, o canto sempre universal do povo” é singular (Ibid.).

Por outro lado, destaca- se a singularidade na voz da artista, convocando a reflexão


de si. Sua obra é um entrelaçamento entre a voz do povo e a sua própria na busca por um
lugar no mundo da música que a recebesse como artista mulher em um Brasil moldado
em desigualdades sociais e de gênero. Talento, aspirações pessoais, memórias, sons co-
letivos e individuais...se entrelaçam em uma vida composta por discursos diversos, que
muitas das vezes estiveram dispostos em discos.

154
REFERENCIAS

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Gillespie et al., Trans.). Berkeley: University of California Press, 2002.

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BICALHO, Maria Fernanda B. O Bello Sexo: imprensa e identidade feminina no Rio de


Janeiro em fins do século XIX e início do século XX. In: COSTA, Albertina de Oliveira e
BRUSCHINI, Cristina (orgs.) Rebeldia e submissão: estudos sobre condição feminina. São
Paulo: Vértice/Editora dos Tribunais/ Fundação Carlos Chagas, 1989.

ELY de canto a canto. Direção: Thiago Camargo e Júlio Vann. Produção: César Kiss, Thia-
go Camargo e Júlio Vann. Roteiro: Thiago Camargo, Júlio Vann e Paulo GC Miranda.
Produção Executiva: César Kiss. Montagem e Edição: Thiago Camargo, Júlio Vann e Érika
Mariano. Captação de Imagens: César Kiss, Júlio Vann e Érika Mariano. Fotografias e Still:
Júlio Vann e Érika Mariano. Som Direto: Thiago Camargo e Bruno “Bicudo” Ribeiro. Dire-
ção de Arte: Ricardo de Podesta. Pós-Produção e Efeitos Visuais: Rildo Farias. Mixagem e
Edição de Som: Thiago Camargo. Entrevistados: Elci Camargo Romero, Elvane Camargo
Tiemann, Waldomiro Bariani Ortêncio, Álvaro Catelan, Dama da Conceição, José Men-
donça Telles, Maria Dalva Cavalcante. Goiânia: Mandra Filmes, 2014. 1 DVD (65 min),
son., color., 8 mm.

FILHO, Marcos Edson Cardoso. Vozes sem os seus corpos: o som da canção gravada por
cantoras no começo do século XX no Brasil. In: Congresso Anual da Anppom, 17., 2007,
São Paulo. Anais do XVII Congresso Anual da Anppom. São Paulo: 2007.

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In: Simpósio Nacional de História, 28., 2015, Florianópolis. Anais do XXVIII Simpósio
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PARANHOS, Adalberto. Além das amélias: música popular e relações de gênero sob o
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1980). In: Encontro Estadual de História da ANPUH-SP, 22., 2014,

TINHORÃO, José Ramos. Cantigas do Povo. In: CAMARGO, Ely. Cantigas do povo: água
da fonte. São Paulo: Edições Paulistinas Discos, 1983. 1 LP, 33 rpm.

155
“JEITO GOIANO”: ELEMENTOS AUTOBIOGRÁFICOS E IDENTITÁRIOS NA
CANÇÃO POPULAR GOIANA

Inglas Ferreira Neiva dos Santos1

Este texto tem como propósito apresentar algumas hipóteses/ideias de uma pes-
quisa de doutorado em andamento, cujo título é: Entre Acordes da Goianidade: identi-
dade e regionalismos na música goiana (1992-2013). No que se refere especificamente a
esse artigo a ideia principal caminha no sentido de explorar como elementos autobiográ-
ficos podem ser identificados em narrativas identitárias no que diz respeito às narrativas
envolvendo a ideia de goianidade. Tais elementos são vislumbrados por meio de entre-
vistas com artistas goianos de música popular goiana – nesse texto em específico, consi-
dero trechos de entrevista com a cantora Maria Eugênia2 -, juntamente com a canção Jeito
Goiano dos cantores Luiz Augusto e Amauri Garcia. Tanto a música quanto trechos da
entrevista, de algum modo, acionam questões referentes ao debate identitário do Estado
de Goiás, dialogando desse modo, com o exercício de construção das narrativas identitá-
rias para Goiás/Goiânia.

Os debates em torno dos estudos autobiográficos aproximam-se, indubitavelmen-


te, dos estudos sobre as questões identitárias. Assim, a compreensão dos os esforços e
tensões envolvidos em uma narrativa identitária em muito contribui com esforço presen-

1 Aluna em nível de doutorado do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal


de Goiás. Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG).

2 Em 2018, com o objetivo de contribuir com a pesquisa do Doutorado, fiz uma entrevista com a
cantora Maria Eugênia em sua residência. Na ocasião conversamos sobre músicas, identidade, goianidade
e obviamente sobre sua carreira.

SANTOS, Inglas Ferreira Neiva dos. “Jeito goiano”: elementos autobiográficos e identitários na canção popu-
lar goiana, In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na Histó-
ria e na Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 156-167.
te em uma narrativa autobiográfica, já que ambos os exercícios se constituem em uma
tentativa de localização, de identificação. Com base nessa premissa, faz-se interessante
uma breve incursão aos estudos em torno do debate identitário.

A concepção de identidade que orienta esse estudo filia-se aos estudos que conce-
bem a identidade enquanto móvel, atenta às forças envolvidas em sua construção. Logo,
“a identidade não é uma essência; não é um dado ou um fato – seja da natureza, seja
cultural. A identidade não é fixa, estável, coerente, unificada, permanente” (SILVA, 2014, p.
96), menos ainda homogênea, acabada, imutável. Por essa condição, ela deve ser enten-
dida como uma construção, uma implicação, um contínuo reinventar-se. Sob esse prisma
portanto, a identidade é compreendida enquanto inconstante, contraditória, fragmen-
tada, inconsistente, inacabada, estando inevitavelmente, ligada às estruturas discursivas
(SILVA, 2014, p. 96).

Assim, a partir de tal asserção, é indicado concebê-la como relacional, de modo


que não parece existir sentido na ideia de identidade, se esta se encerrasse em si mesma.
Logo, os processos identitários não se constituírem em uma via de mão única, expressan-
do-se em consonância com o panorama o qual estão inseridos. Dessa maneira só adqui-
rem sentido no jogo com o outro, de modo que a alteridade é constitutiva do processo
de construção de toda e qualquer identidade.

A partir dessa lógica relacional do debate identitário, segundo Agier (2001), faz-se
necessário pensar a si mesmo a partir de um olhar externo, ou até mesmo de vários olha-
res que se cruzam. Nessa perspectiva somos sempre o outro de outrem, revelando que
no delineamento de um campo identitário, o outro, contribui para o estabelecimento das
fronteiras e do entendimento do próprio eu. É sob tal perspectiva que a ideia de “goiani-
dade” – enquanto expressão identitária regional – está aqui sendo pensada, no interior
do jogo da construção identitária.

Nesse jogo relacional, no qual a identidade não deve ser apreendida enquanto es-
tática, mas dinâmica, assumindo diferentes matizes - no que tange às distintas socieda-
des e períodos – parece-nos interessante um rápido deambulo acerca de sua acepção e

157
operacionalização. Os estudos identitários inicialmente estiveram bastante vinculados à
formação das identidades nacionais e seus litígios, assim entender as forças e mecanis-
mos de construção dessas dadas identidades se configurou por longo período em objeto
de estudo – sobretudo se considerado a formação dos Estados nacionais, especialmente
no final do século XVIII, XIX e início do XX. De modo geral o que se entrevê ao longo dos
estudos identitários, sobretudo das construções identitárias nacionais, é que as socieda-
des – pelo menos a grande maioria - caminharam para uma complexidade sem prece-
dentes e parece não parar, suscitando uma (re) leitura da acepção bastante difundida da
ideia de identidade nacional. Em tese, os estudos vinculados à formação das primeiras
identidades nacionais – europeias e depois americanas – passaram por um processo de
“desconstrução” em torno de suas verdades, reverberando algumas reflexões. O proces-
so de globalização trouxe consigo novas demandas em torno do que se entendia como
sendo uma identidade nacional, quase sempre posta como livre de conflitos e por cer-
to, homogênea. Segundo Hall parece pouco provável que esse processo de globalização
simplesmente venha aniquilar com as identidades nacionais, sendo mais provável uma
produção concomitante de novas identificações “globais”, bem como com novas identifi-
cações “locais” (HALL, 2015, p. 45).

Infere-se, portanto, que apesar do advento do processo de globalização, as locali-


dades não foram suplantadas, erigindo outra dinâmica – ou outra relação de força – entre
o local e o global. Nessa nova dinâmica, novas identidades suscitam seus respectivos es-
paços, desenvolvendo em torno delas novas construções simbólicas, daí se configurarem
em espaços de luta, de conflito. Deste modo, são nos pontos de congruência entre o
local e o global – no campo das fronteiras – que se constituem as hibridações3. Canclini
orienta que a hibridação não deve ser entendida como uma fusão isenta de contradições,
mas deve ser entendida como uma proposta que tenta dar conta de formas particula-
res engendradas pela interculturalidade (CANCLINI, 2013, p. XVIII). Tendo em vista que as

5 Segundo o autor o “conceito de hibridação é útil em algumas pesquisas para abranger conjunta-
mente contatos interculturais que costumam receber nomes diferentes: as fusões raciais ou étnicas deno-
minadas mestiçagem, o sincretismo de crenças e também outras misturas modernas entre o artesanal e o
industrial, o culto e o popular, o escrito e o visual nas mensagens midiáticas” (CANCLINI, 2013, p. XXVII). O
autor busca assim definir hibridação: “[...] processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discre-
tas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas (CANCLI-
NI, 2013, p. XIX).

158
identidades são compostas por um arcabouço simbólico que atribui sentido as vivências
e por certo, sentido às formas de existência; criando, por conseguinte, significados aos
membros de uma sociedade, entende-se que na construção identitária de qualquer gru-
po, elementos da memória são ativados como modo dar sentido e coerência entre a ideia
de passado e presente.

É com base em tal cenário que tais ponderações em torno da acepção de identida-
de, assessora a ideia de goianidade, possibilitando identificar elementos que podem ser
pontuados enquanto constituintes do “jeito goiano de ser”, de uma conjecturada identi-
dade do Estado. Nessa operação algumas qualidades são eleitas como parte integrante
dessa dada identidade, em detrimento de outras.

Faz-se indispensável ressaltar que nesse movimento de construção das identida-


des – e, por conseguinte, da goianidade – há inevitavelmente a ativação de memórias,
afetividades, sociabilidades que não estão somente vinculadas à fundação de Goiânia
(enquanto capital fundada a partir da ideia de modernidade), mas especialmente ligada
ao acionamento de lembranças de outros tempos, tempos que remontam um passado
marcado por um panorama campesino, pautado pela simplicidade da vida nos interiores
do Estado de Goiás.

A partir desse entendimento em torno da ideia de identidade, penso ser possível


afirmar que a goianidade, igualmente, se constitui em uma construção estratégica, na
qual o poder político-econômico e, sobretudo intelectual local, exerce sua influência. Tal
construção, se expressa em distintos mecanismos narrativos: musical, biográfico, literá-
rio, jornalístico, dentre outros. Assim, a ideia de goianidade, enquanto construção iden-
titária deve ser pensada como uma categoria de autodefinição/localização sociocultural
e política, se configurando em narrativas que intitulam-se enquanto representativas da
coletividade.

É exatamente sobre tal perspectiva, que a canção Jeito Goiano bem como as narra-
tivas da cantora Maria Eugênia permitem identificar traços de narrativas identitárias que
são afins e complementares. Tanto a canção quanto a narrativa na qual a cantora narra

159
seu histórico (parentesco), se configuram em narrativas com teor autobiográfico, sendo
possível identificar elementos de uma escrita de si, sobretudo no que se refere à narrativa
da cantora.

A escrita autobiográfica enquanto gênero narrativo

A escrita autobiográfica, durante muito tempo, esteve ligada aos sujeitos públicos
e/ou eruditos, sendo possível relacioná-la aos grandes feitos, às histórias individuais in-
terpretadas como extraordinárias que de modo algum poderiam perder-se no tempo.
Essa leitura, inevitavelmente, fundamentou-se na clássica abordagem na qual os feitos
heroicos são tratados como extraordinariamente capazes de provocar mudanças, e con-
sequentemente de serem narrados e exaltados, advogando o princípio da existência de
indivíduos (heróis) repletos de qualidades, envoltos em uma aura quase que de “predes-
tinação histórica”.

Phillippe Lejeune (2008) discute a autobiografia considerando sua relação com os


gêneros vizinhos: biografia, romance e diário; enfatizando as possíveis nuances existen-
tes nesses limites. O autor alerta para o fato de quão escorregadios esses limites são,
chamando a atenção para problemas teóricos e metodológicos inerentes ao uso desse
gênero narrativo. Para o autor, trata-se de uma narrativa retrospectiva em prosa que uma
pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em par-
ticular a história de sua personalidade (LEJEUNE, 2008, p. 14). Para que haja autobiografia
(e, numa perspectiva mais geral, literatura íntima), é preciso que haja relação de identi-
dade entre o autor, o narrador e o personagem (LEJEUNE, 2008, p. 15). Essa identidade
narrador-personagem principal, orientada pela narrativa autobiográfica é comumente es-
crita na primeira pessoa (narração autodiegética), embora não exclua o uso da segunda e
terceira pessoa em casos incomuns.

A remissão aos estudos acerca da autobiografia enquanto aporte possível à escrita


historiográfica se deu a partir do advento da História Cultural, o que possibilitou uma
ampliação dos objetos de pesquisa enquanto fonte para a pesquisa historiográfica. No

160
que se refere a presente pesquisa às narrativas da cantora Maria Eugênia não advém de
uma publicação de um livro autobiográfico propriamente dito, mas de narrativas de si,
expressas em entrevista, na qual a cantora tece uma espécie de quadro biográfico linear,
de alguns membros de sua família até chegar à narrativa de si. Nascida em Goiânia, se-
gundo a cantora Maria Eugênia, desde muito cedo as influências artístico-musicais mar-
caram sua vida e suas escolhas profissionais. O trecho selecionado da entrevista com a
cantora, nos permite identificar o que Lejeune chama de “narrativa retrospectiva” de sua
existência, de suas experiências. As respostas da cantora, advêm dos questionamentos a
ela direcionados acerca do Projeto/CD Noites Goiana, e de sua origem enquanto artista
(linhagem familiar).

MARIA EUGÊNIA: Então, do Noites Goianas nós fizemos o Canto da Gente, que era o
Pádua, João Caetano, Fernando Perillo e eu. Que foi outro sucesso, assim, nós grava-
mos várias músicas, uma de Goiás, da Cidade de Goiás quando a Cidade de Goiás teve
aquela enchente. Nós gravamos uma música linda que ficou super marcada fizemos
anos de shows assim, que deram super certo. Quer dizer as pessoas gostam quando
elas veem essa goianidade explícita né.

MARIA EUGÊNIA: [...] primeira coisa de estruturar essa identidade, depois de ter orgu-
lho dessa identidade, e falar sim, é assim. Porque tem muita gente - jornalista que fala
assim, já falaram assim da gente do Noites Goianas e não sei o quê - e falam assim “E
quem quiser pequi que vá catar na terra”. Tipo assim, depreciando a gente, por que a
gente fala de Goiás e da goianidade (Entrevista realizada pela autora, na residência da
cantora em 09/05/2018).

[...]

[...] eu venho de duas famílias tradicionais goianas, Alencastro Veiga e Pacheco, são
duas famílias que ajudaram a construir o Estado. Então eu tenho essa coisa da goia-
nidade na minha raiz histórica de sangue. Estudei música desde sempre, eu me lem-
bro de saber ler partitura antes de saber ler. Eu estudo música desde os quatro anos,
porque é uma coisa muito infiltrada na minha família, então eu aprendi inicialmente a
tocar piano, depois sempre me interessei muito por teatro, por poesia, pela a arte em
geral.

[...]

Tenho toda ligação, a vertente do meu pai, eu descendo do Veiga Vale, não precisa
dizer mais nada né. Alencastro Veiga, Veiga Jardim, é uma família que se orgulhava
em ter fotógrafos, bailarinos, artistas. Tem um monte de artistas, meu avô tocava vio-
lino de ouvido, tia Fifi, Maria Lucy Veiga Teixeira é uma maestrina que estudou com
Vila Lobos, tá viva até hoje com 90 anos, tocando piano lindamente, foi uma das fun-

161
dadoras do conservatório de música. Enfim, é uma família muito bonita. Da parte da
minha mãe, eu sou descendente de Altamiro Pacheco, Altamiro Pacheco, foi meu tio
avô, uma pessoa que também tem uma história muito bonita, que ele formou todos os
irmãos, ele perdeu o pai e aí ele resolveu sustentar os irmãos depois ele se formou. Ele
que, por exemplo, que doou a casa dele pra Academia, Academia Goiana de Letras, ele
comprava livros. Era um intelectual né. Então assim, eu acho bacana isso, descender de
duas famílias que se importavam com esse tipo de coisa.

[...]

E na universidade naquela época dos anos 80 e tal, tinha uma efervescência cultural
muito grande eu entrei pra fazer um... Assim, eu não me interessava em cantar, não era
o meu sonho, a minha meta. Mas eu era muito nervosa, eu suava muito na mão quan-
do eu ia me apresentar no piano, ficava muito nervosa; resolvi, eu tava acompanhan-
do umas cantoras do piano e tinha lá erudita e tinha popular. Falei assim “ha eu vou
cantar para me exercitar”, (sorrisos) foi aí que surgiu assim, esse encanto pelo palco pra
cantar também. Eu vi que quando eu virei pra frente pra falar coisas para as pessoas,
eu me identifiquei com aquilo. E de uma certa maneira as pessoas me identificaram
como cantora. Acho que havia na época, uma necessidade de cantoras, havia poucas
interpretes que cantavam as músicas dos compositores goianos. Então eu já surgi as-
sim... os compositores foram se apresentando, vieram e pediram pra cantar, então eu
fiquei encantada com a música goiana desde o início da minha, do meu interesse foi
pelo canto popular. Então aí deste festival que eu ganhei por acaso eu esqueci a letra
aí soltei a voz, fiquei chorando porque eu esqueci a letra, mas as pessoas estavam
pensando que eu estava chorando de emoção. (risos) Aí eu via né - isso muito breve -
a música erudita tem uma estrutura muito firme, se você errar qualquer coisa, aquilo
desmorona, e na música popular não; você tem, você pode dar um jeito de fazer um
arranjo que a música se torne sua de uma maneira diferente. Então eu esqueci a letra,
improvisei, aí quando a letra voltou na minha cabeça eu terminei a música e com isso
foram várias descobertas. Descobertas da voz, descobertas de como é gostoso fazer
isso, descoberta da música feita em Goiás. Então logo imediatamente eu me interessei
pelo compositor (Entrevista concedida à autora em 09/05/2018 na residência da can-
tora Maria Eugênia).

A relação da cantora com a elite econômica e cultural da capital fica evidente, en-
trevendo-se que a música popular goiana, assim como a MPB (Música Popular Brasileira)
transcorreu entre as camadas sociais mais abastadas e com relativo nível intelectual. De
modo claro, é possível observar que o público dos artistas goianos4 apresenta perfil simi-

4 Os artistas referidos dizem respeito ao objeto de pesquisa da Tese, dentre eles a cantora Maria
Eugênia. A pesquisa do Doutorado propõe entender as relações entre a música e seu tempo, compreen-
dendo-a como uma possível linguagem de interpretação e expressão da sociedade com a qual interage.
Para tanto, utilizamos como ponto de referência o Movimento da Goianidade impetrado pela a Agência

162
lar, trata-se se, em grande escala, de um público com relativo nível de instrução (jovens
universitários e pessoas mais velhas), os quais, mormente ocupam a região central da
capital5. Ao observar as narrativas da cantora Maria Eugênia em tais fragmentos (origem,
linhagem familiar, iniciação musical), verifica-se claramente que elas se entrecruzam com
as narrativas identitárias do Estado de Goiás, no que diz respeito às narrativas oficiais.
Nesse sentido, as narrativas da cantora bem como parte das obras musicais que ele inter-
preta, dialogam com as narrativas identitárias do Estado, contribuindo, portanto com as
narrativas da goianidade. São narrativas, a exemplo da canção Jeito Goiano, que se confi-
guram em instrumentos de mediação e representação de narrativas identitárias, que de
modo claro, acionam memórias, que não tem como intenção serem apenas de seus com-
positores/artistas, mas outrossim, do coletivo. São autobiografias que apresentam uma
miscelânea entre o vivido e as experiências adquiridas por tabela, no bojo do convívio
social, entremeado por memórias.

No que diz respeito à canção Jeito Goiano, os autores da canção narram o modo
goiano de ser, todavia, falando de si mesmo, de modo que a narrativa se desenvolve na
primeira pessoa do singular, o que torna possível inferir que os compositores estão falan-
do de si mesmo.

Goiana de Imprensa (AGI) no início da década de 1990, cuja sua principal expressão foi a publicação de uma
única edição de uma revista denominada “Goianidade”, em 1992. Tal movimento trouxe dentre várias ma-
nifestações culturais um grupo de cantores goianos Maria Eugênia, Pádua, Luiz Augusto, Fernando Perillo,
João Caetano e Marcelo Barra – dentre outros, designados pela revista de “cantores da terra” e, por nós aqui
nomeados de cantores de “música popular goiana”. Considerando a obra e, em certa proporção, a vida de
tais artistas, buscou-se relacioná-las à dinâmica cultural do Estado de Goiás e sua capital, Goiânia, entre os
anos de 1992 e 2013.

5 Grande parte desses cantores mencionados, dentre outros, consolidaram suas carreiras pelos fes-
tivais da década de 1960 e 70, pelos bailes e especialmente pelos bares da capital. Vale ressaltar que esses
bares em geral lacalizavam-se em regiões nobres de Goiânia, dentre elas a Praça Tamandaré. Em entrevista
Fernando Perillo informa ter cantado em “dois bares que foram muito importantes, que foi o Círios que
foi na década de 70, e logo no começo da década de 80 no Zero Bala, aqui na Praça Tamandaré que eram
frequentados por universitários, jornalistas” (Entrevista concedida à autora em 17/04/2018 na residência
do cantor). Ao ser perguntado sobre o perfil do público Fernando Perillo afirma tratar-se de um público
intelectual, onde o cantor poderia tocar o que havia de melhor. O artista ressaltou ainda que “tinha uma
cobrança, meu repertório tinha que ter uma atualidade muito grande, as pessoas cobravam, e a música
popular brasileira - na década de 70 - foi o auge da música popular brasileira, em termo de... Foi na década
70 e a gente aproveitou isso, era uma música extraordinária” (Entrevista concedida à autora em 17/04/2018
na residência do cantor).

163
Jeito Goiano6
(Luiz Augusto, Amauri Garcia e Hamilton Carneiro - 2012)

Se alguém pisa no meu calo


Posso gemer, mas não xingo
Não guardo ressentimento
Não brigo e nem me vingo
Sou goiano de corpo e alma
Sou de cultivar a calma
De segunda a domingo

Gosto mesmo dum franguinho


Quiabo e angu de milho
Gosto de uma brevidade
Feita de um bom polvilho
Sou goiano de corpo e alma
Sou de cultivar a calma
Nunca coloco empecilho

Gosto do som da viola


Numa toada caipira
Com as mãos e com os pés
Marco bem uma catira
Sou goiano de corpo e alma
Sou de cultivar a calma
E gosto de prosa e mentira

Nosso rio Araguaia


É minha segunda casa
Olho pro seu sol poente

6 http://www.vagalume.com.br/amauri-garcia/jeito-goiano.html. Acesso em 12/10/2015. Meios


Tons, Sons Inteiros

164
Vermelho que nem a brasa
Sou goiano de corpo e alma
Sou de cultivar a calma
Pescando na água rasa

Gosto de uma morena


Com seu jeito de cabocla
Quando ela pisca pra mim
Eu sinto um doce na boca
Sou goiano de corpo e alma
Sou de cultivar a calma
Pena que a vida é pouca

No que se refere à questão rítmica, na canção Jeito goiano observa-se a influência


de ritmos como o forró e o baião, possuindo solos de viola com bases de violão, além de
arranjos discretos de acordeom ou sanfona. O destaque é para a bateria, na qual a “caixa”
se sobressai, conduzindo o ritmo. É possível identificar na música uma batida instrumen-
tal que remete às procissões religiosas dos interiores, em especial às festas religiosas de
Folia de Reis.

De modo claro o que fica evidente em tal canção é o esforço – tanto do letrista,
quanto do responsável pela melodia – em evidenciar por meio de uma linguagem artís-
tica o “jeito goiano de ser”. A narrativa caminha por reverberar a ideia, de que há elemen-
tos que podem ser identificados como autenticamente goianos, de modo a subentender
que, ser goiano é conjugar os adjetivos traçados pela canção. Embora seja uma narrativa
de si, isto é, que elege uma maneira de ser de quem narra a canção, expressa, todavia, de
que ser goiano extrapola o jeito individual de quem narra, dando a entender tratar-se
de um eu coletivo. Nesse âmago, o conceito de “tradição inventada” trabalhado por Eric
Hobsbawm e Terence Ranger parece nos ajudar a entender o esforço do compositor em
torno da manutenção da tradição7 descrita na música. Por “tradição inventada”

7 O Termo “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as
“tradições” realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram

165
[...] entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou
abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar cer-
tos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automa-
ticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, ten-
ta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado (HOBSBAWM,
RANGER 1984, p. 7).

No que se refere à goianidade, portanto, o esforço em inculcar certos valores e prá-


ticas parece ser uma constante, não só na música, mas em vários veículos. Busca-se um
passado que seja fidedigno, honroso e especialmente singular, se constituindo em uma
espécie de “mito de origem”. Nesse aspecto, a “invenção” da “narrativa histórica” parece ser
bastante útil se constituindo em um discurso que tem como intenção a veracidade dos
fatos, objetivando ser intencionalmente apropriado pela sociedade.

Portanto, ao se ponderar os trechos da entrevista com a cantora Maria Eugênia e a


letra da canção Jeito Goiano, observa-se que ambas esquadrinham características iden-
titárias de um mesmo lugar. Ambos os formatos narrativos apresentam narrativas de si
que dialogam com as narrativas presentes na ideia de goianidade. Assim, a habilidade
de composição, de interpretação, se apresenta, de algum modo, como contribuintes das
construções identitárias. A própria explicitação da cantora em relação ao seu parentesco
(relação com as famílias tradicionais do Estado), expressa legitimidade e relações de po-
der, à sua narrativa, constituindo-se em mecanismo de convalidação de suas narrativas.
São narrativas autoreferenciais que dialogam com referências identitárias, memórias de
um determinado lugar, daí pensar em construções narrativas balizadas por intenções,
ajustes entre o que se deve ser lembrado e que se deve ser esquecido58.

Assim, essas construções partem a partir dos interesses do presente, de modo que
essas memórias ao serem organizadas dão linearidade e coerência aos episódios narra-
dos, havendo portanto, um forte apelo identitário, pois é a partir de tal enredo – do loca-
lizar-se no mundo e no tempo – que as narrativas se enleiam e passam a adquirir sentido,
tanto para quem narra, quanto para quem de algum modo se identifica com o fato nar-
rado.

de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado no tempo – às vezes coisas de
poucos anos apenas – e se estabeleceram com enorme rapidez (HOBSBAWM, RANGER 1984, p. 7).

166
REFERÊNCIAS

AGIER, Michel. Distúrbios identitários em tempo de globalização. 2001.

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Moderni-
dade – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da


Silva, Glaucia Lopes Louro.10. Ed. Rio de Janeiro, DP&A, 2005.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Uni-


camp, 2007.

SILVA, Tomaz Tadeu da (org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferen-
ça: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

REVISTA

RESVISTA GOIANIDADE. Edição Especial – Goiânia, Dezembro/1992.

167
PERFORMANCES BIOGRÁFICAS
AMARILDO JACINTO: FOLIA E PAIXÃO DO GRUPO DESENCANTO

Nélia Cristina Pinheiro Finotti1

Introdução

O Grupo Teatral Desencanto tornou-se uma companhia teatral atuante nas manifes-
tações culturais e religiosas de Trindade, tendo início em 1988, marcado por uma singula-
ridade, pois transita em vários momentos de organização e participação de festividades
regionais por meio da produção de vestimentas e estilos multiplurais de arte, seja pelo
teatro, pela dança e outras expressões. A inserção do grupo nessas produções é revelada
por sua estética diversificada, ora profanos no Carnaval de Rua e peças diversificadas, ora
cenários sagrados na Caminhada de Fé com peças teatrais sacras.

Dentre as múltiplas atuações do grupo, fizemos o recorte para a nossa investigação


no Carnaval de Rua e na Caminhada de Fé, por entendermos que, em ambas, as vesti-
mentas produzidas se constituem como bens culturais que se revelam por simbologias
sagradas ligadas à fé cristã e também outras simbologias vinculadas à festa pagã.

Escola de samba acadêmicos de Trindade

Para melhor compreensão do objeto e da discussão proposta, faz-se necessário

1 Mestre em Ciências Sociais e humanidades pela Universidade Estadual de Goiás (UEG). Especialista
em Docência Universitária, pós-graduada em MBA gestão executiva com ênfase em liderança e graduada
em Design de Moda pela UNIVERSO. Graduada em Pedagogia pela FALBE. neliaueg@gmail.com. Partici-
pante do grupo de estudos GEFOPI. E-mail: neliafinotti@gmail.com. Contato (62) 998085280. https://orcid.
org/0000-0002-4946-651X

FINOTTI, Nélia Cristina Pinheiro. Amarildo Jacinto: folia e paixão do Grupo Desencanto, In: GRUPO DE ESTU-
DOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática Artística, 2020,
Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 169-178.
apresentar a pesquisa realizada, in loco, no ano de 2018 e 2019, com o Grupo Teatral De-
sencanto. Assim como aconteceu nossa participação nas reuniões e encontros do grupo,
também houve o registro em diário de campo e a realização de entrevistas semiestrutu-
radas com os membros do grupo no processo de construção do carnaval, ou seja, dos
figurinos, adereços e carros alegóricos.

A investigação foi aprofundada com o acompanhamento da escola de samba na


avenida e com a realização de entrevistas no processo de construção, na semana de pre-
paração, no dia do carnaval e na preparação da encenação da Vida Paixão e morte de
Jesus.

A Escola de samba acadêmicos de Trindade apresentou na passarela no ano de


2018 o tema “Desencanto trinta anos de Arte e Cultura”, foi feita uma homenagem entre
brilho, cores e tambores, e o samba com o enredo “A Deus, nosso agradecimento maioral,
trinta anos se passaram”.

Como apresenta na Ilustração 01, o carro alegórico Abre-alas e um dos destaques


da escola que separa o carro e a Ala da Comissão de Frente, apresentando o tema e a
escola ao público.

Ilustração 01 – Carro alegórico o Abre-alas

Fonte: Finotti (2018)

170
Para dar vida e cor aos figurinos, a escola contou com a participação dos integran-
tes do Grupo e da comunidade para o desenvolvimento desses figurinos para compor os
blocos do carnaval. Assim, a escola apresentou sete alas no carnaval de 2018, sendo que
a primeira trouxe a Comissão de Frente, representando os soldados romanos da grande
Caminhada de Fé; a segunda foi do ballet, trazendo a dança sempre presente no Grupo
Desencanto; a terceira, a Ala das Baianas, para falar da paz e da harmonia nas atividades
do grupo; a quarta foi a Ala Infantil, para representar as artes plásticas; a quinta foi das
Porta-bandeiras, representando a escola de samba; a sexta ala, dos Mestres-salas, arle-
quins representando o teatro; e a sétima ala foi a Bateria, trazendo a música em todas as
artes.

O carnaval de 2018 teve, em seu repertório, as atividades desenvolvidas pelo De-


sencanto, o que possibilitou analisar como são representados os figurinos na avenida,
ressaltando que o grupo possui uma identidade cultural local e que busca, com esses
figurinos, envolver a comunidade e apresentar histórias que são em sua maioria infor-
mativa. Portanto, o grupo preza por levar para a avenida não somente figurinos, carros
alegóricos e alegria, mas também informação, assim como Amarildo Jacinto (informação
verbal)2 esclarece: “não estamos fazendo carnaval, estamos fazendo arte e cultura”.

Para o carnaval de 2019, foi possível acompanhar o planejamento, o desenvolvi-


mento e o desfile na avenida, desde o início do processo, em agosto de 2018 a março
de 2019, o que possibilitou compreender como é realizada toda a organização do car-
naval da Escola Acadêmicos de Trindade. A análise se deu pelo estudo das vestimentas
produzidas pelo grupo e, para tanto, foi necessário compreender qual a função desse
figurino dentro do grupo. Pavis (2017) conceitua que a função do figurino como traje
serve primeiro para vestir, pois a nudez não é assumida com facilidade e ao corpo está
associada, pelos ornamentos ou efeitos do disfarce ou ocultação, sempre caracterizados
por um conjunto de índices sobre a idade, o sexo, a profissão ou classe social. Essa função
analítica é substituída por uma série de signos ligados entre si por um sistema de figuri-
nos mais ou menos coerentes no exterior da cena como referência ao nosso mundo onde
esses figurinos também têm um sentido.

2 JACINTO, 2019a.

171
O carnaval desde os primórdios, foi marcado pela valorização da sexualidade nos
figurinos apresentados pela escola, visto que há uma sexualidade presente e, mesmo o
Desencanto tendo uma ligação com a religiosidade local, percebe-se que, no carnaval,
não há uma legitimação do grupo em relação ao sagrado da cidade. São buscados figuri-
nos que possam representar o carnaval brasileiro, ou seja, com muita brincadeiras, alegria
e sensualidade. Nesse sentido, Weber (1999) discorre sobre as relações entre a religiosi-
dade e a sexualidade, em parte conscientes, em parte inconscientes, às vezes direta, às
vezes indiretamente, são cada vez mais extraordinariamente íntimas. O autor ainda relata
que a exaltação sexual é tipicamente um componente da primitiva ação social religiosa
dos leigos.

Weber (2015, p. 67) relata que “particularmente, há uma tensão entre a ética da fra-
ternidade religiosa e as esferas da vida estética e erótica”. No carnaval, é notável essa ten-
são entre a religiosidade, a arte e a sexualidade, e a peça traz ao grupo esta oportunidade
de inspiração e criação por meio da religiosidade. Trindade por ser uma cidade conside-
rada religiosa, o carnaval de rua do Grupo Desencanto pode estar em desacordo com os
padrões religiosos, por ser consideradas por muitos como uma festa pagã. Em várias alas
do carnaval estão presentes figurinos com acentuada sexualidade, alas essas que podem
ser elaboradas e utilizadas de forma consciente ou não da representatividade sensual
que tais figurinos exibem.

Os figurinos do grupo valorizam a sexualidade, pois em sua maioria deixam as par-


tes do corpo descobertas e, para além o próprio samba, é uma forma sensual de mos-
trar o corpo. Em conversa informal durante o carnaval de rua (2019), um dos figurantes
comentou, “é no carnaval que podemos vivenciar coisas diferentes, sentir-se igual aos
outros, sem ser rejeitada por estar fora do padrão estereotipado de beleza”. Nesta festa
de carnaval, percebe-se que há uma liberdade do corpo em se mostrar. A cada ano, é
construído um carnaval que possa apresentar na passarela uma história a ser contada,
por meio de figurinos, cenários, músicas e danças.

A Escola de Samba, em 2019, o grupo homenageou as questões folclóricas brasileiras


com o tema “Expressão Popular - riqueza de um povo”, composto por Amarildo Jacinto.

172
O samba-enredo trouxe uma letra que conta a história do folclore brasileiro, uma
brincadeira para dizer o que temos, e onde se encontram, apresentando sua identidade,
cantando a cultura, a arte e o Desencanto. E como não poderia faltar, a melodia das mar-
chinhas de carnaval.

Na Ilustração 02, está apresentada a entrada do carro alegórico o Abre-alas, apre-


sentando as cavalhadas de Pirenópolis. Observa-se a cabeça grande do boi na frente e
no fundo, o cavalo como guerreiro e dois destaques: o rei e a rainha ou mouro e cristão.

Ilustração 02 – Carro alegórico Abre-alas do carnaval de 2019

Fonte: Finotti (2019).

No carro alegórico, há a presença do destaque e das fantasias mais elaboradas, e é


notável a presença das três categorias de fantasias descritas por Viana e Bassi (2014), ao
relatarem que, para criar fantasias, há que se considerar três tipos: as de composição, as
de destaque e as de luxo.

173
Vida, paixão e morte de Jesus

Neste tópico, é apresentada a pesquisa realizada in loco, nos anos de 2018 e 2019,
junto ao Grupo Teatral Desencanto na representação da Vida, Paixão e Morte de Jesus
Cristo. A metodologia foi participação nas reuniões e encontros do grupo, assim como o
registro em diário de campo e a realização de entrevistas semiestruturadas com os mem-
bros no processo de construção da peça teatral.

A investigação foi aprofundada, com a participação da encenação da peça em


questão. No ano de 2018, foram feitos apenas registros fotógrafos, anotações e análises
durante a Caminhada de Fé e, no ano de 2019, foi possível participar da construção do
projeto e da encenação final, além da realização das entrevistas no processo de constru-
ção, na semana de preparação e no dia da apresentação. Dessa forma, a pesquisa conse-
guiu abarcar o pré-evento, o evento e o pós-evento.

Os ensaios da peça começaram em fevereiro, logo após o carnaval, sendo quase


dois meses de preparação. Esses ensaios são realizados ao longo da Rodovia dos Romei-
ros, geralmente às 20 horas, durante a semana, e nos finais de semana, no período da tar-
de, com início às 17:30, com a peculiaridade de começarem do último painel, finalizando
no primeiro.

No ano de 2018 foram utilizados mais de três mil figurinos e acessórios para a peça,
com um total de mais ou menos seiscentos atores. Há uma grande variedade de trocas de
figurinos no decorrer da apresentação – até seis trocas de figurinos por ator – e, por isso,
o grupo conta com cinco mil, setecentas e quarenta e oito peças de roupa para a encena-
ção da Caminhada de Fé.

O texto da encenação da Rodovia dos Romeiros foi escrito por Amarildo Jacinto, a cada
ano, ele escreve o início da cena de forma diferente. Em 2018, o grupo iniciou a apresentação no
primeiro painel com a história de Jesus no deserto por 40 dias e finalizou com Jesus no templo
sagrado expulsando os que ali faziam comércio. Nesse painel, acontecem mais de dez cenas que
contam a vida de Jesus para depois, a partir do segundo até o sétimo ocorrer o restante da peça.

174
No segundo momento da encenação, as cenas geralmente começam com músicas,
iniciando os preparativos para a Santa Ceia, a traição de Judas e com a saída dos guar-
das para prender Jesus. O terceiro painel começa com no mercado central de Jerusalém,
depois Jesus no horto e finaliza com a prisão de Jesus. No quarto ponto da Via-Sacra, o
espetáculo tem início com as mulheres arrumado o palácio de Caifás; em seguida, o julga-
mento de Jesus e termina com o suicídio de Judas. Quando a encenação chega ao quinto
painel, acontece a condenação de Jesus e o encerramento é com Jesus levando a Cruz,
juntamente com o cortejo para a crucificação. No sexto ato, Jesus cai pela primeira vez e,
carregando a cruz, ele caminha pela rodovia que simboliza o trajeto até o calvário. O sé-
timo e último painel acontece a crucificação de Jesus e a peça é finalizada com a entrega
do corpo de Jesus à sua mãe Maria.

O momento mais esperado e marcante é a cena de Jesus crucificado o que permite


inferir que esse é o motivo de o crucifixo ser um símbolo do cristianismo, pois relembra o
sofrimento e a morte de Jesus Cristo pela salvação da humanidade. A Ilustração 03 apre-
senta a cena da crucificação de Jesus no ano de 2018, pela qual é possível perceber Jesus
coberto apenas em suas partes íntimas por um tecido leve de cor branca e seu corpo
coberto por sangue.

Ilustração 03 – Encenação da Vida paixão de Jesus

Fonte: Acervo do Grupo Teatral Desencanto (2018)

175
A cena retrata o sofrimento de Jesus, com uma corroa de espinhos em sua cabe-
ça, cuja narrativa pode ser interpretada como um Jesus martirizado na cruz para tirar o
pecado do mundo com seu próprio sangue derramado por todos. Nesse ínterim, relata
Silveira; Reimer (2012, p. 69) que “através da narrativa religiosa são estabelecidos mode-
los que, às vezes, se expressam através de rituais e da vivência diária. Os mitos explicam
o surgimento de determinados fenômenos/eventos, comportamentos e posturas diante
do mundo”. A encenação tem sido retratada há mais de trinta anos como um evento reli-
gioso, sendo representado por seus rituais e mitos, em suas cores e formas, e podem ser
interpretadas como a salvação do mundo, bastante explorada pelo Grupo Desencanto.

Considerações

A relevância da pesquisa está na perspectiva de fomentar reflexões que contribuam


para uma melhor compreensão das representações culturais do grupo, uma vez que des-
de 1988, organiza os principais movimentos culturais da referida cidade, pari passu, pro-
movendo culturalmente o estado de Goiás em níveis regional, nacional e internacional.

Destarte, a presente investigação se insere nos estudos culturais, sobretudo na pers-


pectiva que valoriza a dimensão simbólica das práticas espaciais, via análise da produção
do território dada pelas manifestações culturais. Nesse sentido, a investigação sobre as
vestimentas reflete a formação e releituras de signos, simbolismos e representações cul-
turais e logo, o estudo está centrado no entendimento da pluralidade de estilos de ves-
timentas presentes nos eventos estudados, que caracterizam a identidade do grupo. A
partir dos eventos Carnaval de Rua e Caminhada de Fé, inferimos que as relações sociais
são estabelecidas por laços de pertencimento e de redes de sociabilidades, dados dentro
do universo simbólico do Grupo Teatral Desencanto.

O grupo conta em suas representações histórias regionais, principalmente da reli-


giosidade local, apresentando e valorizando a cultura regional e local. Ainda é oportuno
dizer que trabalham com as questões sustentáveis na construção de seus figurinos, e há
uma rede de sociabilidades que movimenta a escola no fazer carnaval, ou seja, a socieda-

176
de, a comunidade e a família estão presentes nesse fazer carnaval dentro e fora da Asso-
ciação Grupo Teatral Desencanto.

Para o evento do Carnaval não há um patrocinador e não há competição, o que


impede a comparação com as grandes escolas de samba do Rio de Janeiro e São Paulo.
A Escola de Samba Acadêmicos de Trindade tem suas particularidades e podemos men-
cionar que a agremiação não vende fantasias e nem cobra quaisquer valores para que as
pessoas possam adquirir fantasias ou desfilar.

Na Caminhada de Fé, o grupo é caracterizado por uma identidade própria e re-


gional, em especial pelas cores vibrantes, os tecidos leves e brilhosos. Os acessórios que
compõem os figurinos são característicos da região: a forma como colocam os tecidos
na cabeça em forma de véu é característico da camponesa goiana; os vários elementos
que compõem os figurinos – em especial dos personagens que interpretam o povo – são
produzidos com a inserção de vários objetos regionais, tais como capangas, peneiras,
balaios, cabaças, dentre outros que são referências de Goiás. Há também uma variedade
de acessórios sobre o figurino básico – uma túnica –, tornando o traje mais elaborado do
que o que era usado na época de Jesus. As sandálias são construídas de materiais que
também são locais, pois trabalham com sola de pneu e retalhos de couro das fábricas
locais. Para complementar o figurino, há sobreposições de tecidos diversificados, tam-
bém com características regionais, tais como tecidos de capim dourado, tecidos feitos
manualmente em teares, tecidos que são desconstruídos e reconstruídos com uma nova
identidade.

Tanto no Carnaval de Rua como na Caminhada de Fé, há uma integração de pessoas


em torno de um único propósito: fazer arte e cultura, cujo movimento envolve a comuni-
dade local e as famílias. Os figurinos são idealizados e construídos dentro da Associação
para a concretude dos trajes de cena e de folguedos, embasados em pesquisas de acordo
com a temática ou a história a ser contada.

177
REFERENCIAS

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2017.

SILVEIRA, João Paulo de Paula; REIMER, Haroldo. Prolegômenos para uma história cultu-
ral das religiões. In: REIMER, Haroldo; SILVEIRA, João Paulo de Paula; PROTO, Leonardo
Venicius Parreira (Coords.). Primeiros Diálogos: Uma introdução à reflexão histórica.
São Leopoldo: Oikos, 2012.

VIANA, Fausto; BASSI, Carolina Rosane. Traje de cena, traje de folguedo. São Paulo:
Estação das Letras e Cores, 2014.

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. São


Paulo: Editora Universidade de Brasília, 1999.

____________. Sociologia das religiões. São Paulo: Icone, 2 ed, 2015.

178
BIOMEMÓRIAS ENTRE IMAGENS
E MONUMENTOS
“A PRÓXIMA FRONTERA DOS QUADRINHOS”: UM ESTUDO DE
CASO SOBRE A ARGENTINIDADE NA REVISTA HORA
CERO SEMANAL (1957-1961)

Leonardo Pires Nascimento1

Introdução

A partir dos anos de 1950, as Histórias em Quadrinhos (HQs) ganharam força inédita
dentro da perspectiva industrial e cultural na Argentina. Fruto de um avanço tecnológico
da imprensa e da circulação massiva das narrativas impressas, a popularidade das publi-
cações consagrou-se como “Idade de Ouro” na bibliografia geral sobre o tema. Em meio
aos estudos dos impressos e da sociologia das obras, a origem da expressão se viabili-
za pela intensidade de produção (importada e exportada) e de consumo das historietas
frente a uma nova geração de leitores. Assim, considerando o avanço e aperfeiçoamento
mercadológico acerca das revistas em quadrinhos, pontuamos as especificidades edito-
riais de um grupo em específico: o grupo editorial Frontera.

A editora Frontera, capitaneada por Héctor Gérman Oesterheld, difundiu a publica-


ção de diversas revistas e títulos frente ao mercado nacional. A espontaneidade do consu-
mo das revistas publicadas se alinhava a uma extensa metodologia comercial da editora,
a prática editorial sugere narrativas elaboradas em um viés intelectualista e profissiona-
lizante do mercado artístico. Isto significa que, o ineditismo dos assuntos abordados nas
revistas, impactavam os leitores em formação e fidelizava um novo público heterogêneo,

1 Graduado em História pela Universidade Federal de Goiás. Atual mestrando pelo programa de pós
graduação da faculdade de História, também, pela UFG. Contato: lpires@discente.ufg.br

NASCIMENTO, Leonardo Pires. “A próxima frontera dos quadrinhos”: um estudo de caso sobre a argentini-
dade na Revista Hora Cero Semanal (1957-1961), In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM,
X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade
Federal de Goiás, 2020. p. 180-195.
formado por diferentes gêneros e extratos sociais. Assim, pontuando a perspectiva edi-
ficante dos títulos que davam cabo das revistas, a proposta de relacionamento da arte
com o público vai além dos padrões naturais da cultura de massa até então. Reiterando a
singularidade do grupo editorial nos anos cinquenta, as revistas sintetizavam um avanço
das artes (roteiros e desenhos) para a consolidação de um campo editorial alinhado às
perspectivas das HQs.

Inicialmente, pontuamos a atuação de Héctor Gérman Oesterheld no mercado edi-


torial. Geólogo de formação acadêmica, adentrou a indústria cultural através da publi-
cação de textos infanto-juvenis na editora Abril – fundada pelo italiano César Civita – ao
final da década de 40. Teve sucesso escrevendo roteiros e contos em diferentes revistas,
além de conquistar um prestígio editorial ao editar a revista Más Alla2. Adiante, instituído
como uma figura influente no mercado editorial de publicação de revistas infanto-juve-
nis, Héctor Oesterheld junta-se ao seu irmão Jorge Oesterheld para definir uma ideia de
campo artístico argentino e/ou em formação de artistas frente a uma narrativa argentina,
criando o Editorial Frontera no ano de 1957. Isto pois, trabalhando para o grupo Abril,
Gérman publica histórias com narrativas buscando uma identidade junto aos leitores,
mas editorialmente inviabilizado. Ou seja, a amarra editorial, que busca raízes na solidifi-
cação das práticas culturais italianas condicionava certas narrativas pela visão do editor
chefe das revistas. Os roteiros de Gérman eram tratados como peças autorais, mas tra-
duzidas e enviadas para desenhistas italianos (dentre eles Ivo Pavoni e Hugo Pratt), em
que reinterpretavam as construções do escritor argentino traduzindo-as em imagens. O
diálogo transcultural entre roteirista e desenhista tornava-se nulo, a mediação proposta
se retinha aos parâmetros editoriais do grupo Abril.

Papel barato: democratizando a leitura de HQs

A editora agenciada pelos irmãos Oesterheld trazia a necessidade de estreitar os


laços entre os artistas, solidificando um mercado e suas narrativas. Pois, quando questio-
nado acerca do uso exclusivo de seus roteiros pelos italianos, Gérman completa:

2 Tradicional revista de Ficção Científica da Argentina, em que publica-se os principais autores do


gênero no ano de 1950 – Kurt Vonnegut, Isaac Asimov, Philip K. Dick e outros. A revista localizava-se no
corpo de publicações da editora Abril.

181
“A mim desenharam todos, sem exceção. Mas houve um tempo em que me dediquei
a publicar livros (...). Quando me dissociei da Editorial Abril, comecei a publicar minhas
próprias revistas: foi assim que Frontera e Hora Cero nasceu, duas publicações que mar-
caram época no mundo dos quadrinhos. (...) Chegamos a lançar 90 mil cópias [por edi-
ção] e nasceu um impressionante lote de histórias e personagens” (OESTERHELD, 1974).

Neste estudo de caso utilizaremos apenas a revista Hora Cero Suplemento Semanal
como documentação primária. O sucesso comercial e a solidificação de um campo edi-
torial argentino reiteram-se em três instancias: a democratização da leitura, a formação
profissional de artistas e o uso da iconografia latina. Em primeiro lugar, a viabilização
da publicação em altas tiragens compete com as características de materialidade da re-
vista. Isto pois, custando apenas 1,50 peso, a revista compunha-se com quatro histórias
do tipo “continuará”; ainda, o papel de baixo custo, a impressão monocromática com as
histórias em preto e branco e o limitado número de páginas tornava a revista um produto
barato, viabilizando o consumo fácil entre os diferentes tipos de leitores. Ainda sobre a
materialidade, o produto possibilitava uma democratização da leitura e uma associação
aos fins didáticos. Gabriela Pellegrino Soares, em análise da formação de leitores na Ar-
gentina durante a primeira metade do século XX, sugere que, a participação do governo
na solidificação de uma cultura literária entre os leitores mais jovens, consolidavam uma
proposta de argentinidade mediante a divulgação cultural através do impresso. Assim, a
cultura de publicação de histórias infanto-juvenis representava grande parcela do merca-
do impresso argentino, ainda incentivado pelas figuras públicas e escolares em questões
pedagógicas de formação deste leitor dentro de uma orientação social (SOARES, 2007).
Ainda, complementa os sentidos de circulação destas obras de baixo custo através da pu-
blicação junto a jornais, em que os canais de distribuição popularizavam as tiragens por
localizarem-se em diversos pontos de vendas em rotas comerciais, habituado ao caminho
do médio operário (SOARES, 2007). Soares (2007) diz que todo o cenário de distribuição
de revistas “favorecia e expressava o florescimento do mercado editorial”.

A preocupação com a materialidade do produto publicado pela editora Frontera


está relacionado com uma certa perspectiva metodológica de Héctor Oesterheld. Este
posicionamento relaciona-se com a divulgação da cultura argentina e com a preocupa-
ção de uma leitura democrática. Inicialmente, a divulgação cultural se estabelece como
uma forma de aprimoramento narrativo das HQs infanto-juvenis, afim de formalizar um
público leitor embasado em aspecto intelectualizado e crítico, dentro dos parâmetros de

182
formação do cidadão argentino. Este ponto se estabiliza, segundo Sebastian Gago (2016),
na “identificação de princípios como o humanismo, a solidariedade, a relativização do
maniqueísmo da moral, a ênfase no protagonismo grupal e o sentido de resistência con-
tra um poder opressivo”. Já no segundo ponto, Gérman preocupa-se com esta democra-
tização e acesso cultural de uma forma mais plural e heterogênea. Assim, considerando
a exclusividade das narrativas intelectuais das novelas argentinas, Héctor Oesterheld diz:
“pessoalmente me sinto mais satisfeito escrevendo para uma massa de leitores de histo-
rietas e não escrevendo novelas para uma seleta minoria” (OSTERHELD, 2005).

Esta preocupação com a diversificação de suas obras se relaciona diretamente com


a proposta inicial deste estudo. Pois, acerca de uma divulgação cultural em grande escala
por meio de um produto de baixo custo e de fácil acesso, há a construção de uma identi-
dade argentina nas revistas. A proposta editorial do grupo Frontera vem como manifesto
encartado na primeira edição da revista Hora Cero Semanal (Fig. 1), em que diz sobre a
necessidade de “sabermos que com Hora Cero faz um novo aporte de valor ao grupo de
revistas (...) preferindo abrir suas páginas ao material argentino” (HORA CERO SUPLEMEN-
TO SEMANAL, 1957). Acerca desta proposta, Roger Chartier dialoga com a ideia de uma
leitura democratizada; diz que a leitura democratizada, privativa e individual – compre-
ende-se como independência da classe popular–, revela a soma identitária desta popula-
ção a uma ideia de memória e existência (CHARTIER, 1999).

FIG. 1 – O manifesto em defesa das historietas

Fonte: publicado em revista Hora Cero Suplemento Semanal número 1, 1957

183
Ainda, refletindo sobre o conceito de uma “revolução silenciosa” proposta por Jean-
-Yves Mollier (2008), podemos imaginar as HQs como parte da formação desta revolução
de características próprias, pois, pensando em que ela é “silenciosa por não acarretar mu-
dança no quadro político e não fazer correr sangue, essa revolução cultural é, provavel-
mente, o acontecimento mais importante entre os séculos XVIII e XX”. Assim, podemos
compreender a formação de uma cultura popular em divulgação, buscando atingir um
grande público para a consolidação de um sentido de argentinidade forte durante a pu-
blicação da revista Hora Cero Suplemento Semanal.

O ciclo de alimentação do campo cultural argentino

Em segundo lugar, o editorial Frontera preocupava-se com a constituição elabora-


da de um campo artístico na argentina dos anos 50. Isto segue na perspectiva da criação
de uma classe profissional e de melhores condições de produção. Assim, a editora atua no
mercado editorial através de uma lógica de sindicato, na qual o grupo teria condições de
fornecer uma série de direitos protecionistas frente a obra e criação autoral – das histórias
e personagens desenvolvidos. Estes direitos se localizam em algumas etapas e princípios:

“1º a compra dos direitos de reprodução: apenas uma vez; 2º devolve os originais ao
desenhista; 3º reconhece os direitos correspondentes do autor em qualquer uma das
próximas publicações que se façam em historietas; 4º constrói-se um sindicato e ven-
de as historietas ao exterior, abandonando os direitos junto ao autor” (DIBUJANTE, nº
29, 1957)

Discutindo os pontos de formação editorial frente a proposta sindicalista de Oes-


terheld junto aos desenhistas e a propriedade intelectual de ambos os autores (roteiris-
ta e desenhista), podemos ver a preocupação com a condição de formação dos autores
nacionais em contraponto a um padrão estrangeiro. Inicialmente, a reflexão em torno da
formação sindical afim de proteger o poder criativo e a elaboração de uma classe artística,
faz-se frente a um contexto histórico específico. Isto pois, durante a década de 1950, há
o apoio compulsivo do governo peronista na solidificação da classe sindicalista afim de
promover e intensificar a produção nacional contra o capital estrangeiro. Esta demanda
e necessidade reforça a visão da elaboração de um campo nacional artístico, pois existe

184
a vontade de Oesterheld de nacionalizar os quadrinhos através de uma produção estri-
tamente nacional, causadora de identificação e consumo dos leitores para a fortificação
da produção cultural argentina em período de Guerra Fria. A necessidade de proteger as
qualidades culturais nacionais, como visto por Oesterheld, exige uma demanda afim de
proteção, também, das narrativas contra o avanço do imperialismo cultural norte ameri-
cano. No mesmo manifesto citado anteriormente, Gérman complementa: “a historieta é
má quando se faz mal. Nega-la em conjunto, condenaria o globo, é tão irracional quanto
negar o cinema em conjunto pois há filmes ruins. Ou condenar a literatura pois há livros
ruins. (...) Cremos estar na linha das boas historietas” (OESTERHELD, 1957).

Neste sentido, a criação sindical relacionada junto a editora Frontera, é um meio


de solidificar as propostas de argentinidade frente ao avanço cultural estrangeiro, afim
de preservar a cultura popular e fortificar o mercado cultural nacional. Pois, a formação
desta classe política estaria sendo difundida afim de resguardar os direitos outorgados
aos trabalhadores de diferentes áreas da produção industrial argentina. A preservação
e a criação desta nova classe são um meio de poder incentivar e garantir a atuação dos
trabalhadores argentinos em espaços de formação. O meio em que está inserido este
desenvolvimento social seria o diálogo entre o corporativismo e o meio popular, como
forma de da resistência e a inserção dos trabalhadores na sociedade (ROMERO, 2016). O
sindicalismo dos artistas de quadrinhos na Argentina se desenvolveu nas secções deste
movimento geral dos anos de 1950, ainda que turbulenta durante a “Revolução Liberta-
dora” do General Aramburu em destituição do governo peronista em 1955, Arturo Frondi-
zi – presidente eleito em 1957 – retoma a coalização com o desenvolvimento sindicalista
na sociedade argentina – mesmo que sob condições conflituosas (TORRE; RIZ, 2018, p.
121). Assim, o editorial Frontera retoma força afim de promover e difundir a classe artísti-
ca profissional restituída em seus direitos.

Ainda, a respeito da proposta básica do sindicalismo artístico da editora Fronte-


ra, podemos refletir sobre a questão de sobrevivência autoral no mercado impresso ar-
gentino. Dos pontos 1º ao 3º estão dispostos acerca das necessidades dos desenhistas.
Enquanto Héctor Oesterheld assume todos os roteiros das historietas publicadas pela
editora, os artistas contratados possuem respaldo editorial na criação de seus persona-

185
gens. Assim, a compra dos direitos de publicação faz-se em apenas uma etapa: a qual o
desenhista será pago pelo que fora exigido pela empresa e permanecerá com seus direi-
tos de republicação para possíveis vendas futuras. Ainda, o retorno dos originais, prática
incomum do mercado, torna-se um ponto de sustentabilidade para do artista. O retorno
das obras originais (os desenhos utilizados como fonte de reprodução) funciona como
uma forma de garantir um sustento econômico extra para o desenhista, que consegue a
conversão econômica mediante a venda no mercado direto. E, finalmente, a relação de
venda e comercialização para o mercado estrangeiro em que as historietas, mediadas
pelo grupo Frontera, ganhava respeitabilidade e um novo mercado no velho continente.
Assim, formavam-se artistas como: Alberto Breccia, Carlos Roume, Alfredo Moliterni, So-
lano López, entre outros.

A imagem argentina nas páginas impressas: uma identidade visual

Para este estudo de caso nos deteremos nas três primeiras histórias publicadas em
Hora Cero Suplemento Semanal, são elas: Ernie Pike, El Eternauta e Randall the Killer. Em
terceiro lugar, a partir da percepção de Sebastian Gago, identificaremos os pontos críticos
das histórias de Héctor Oesterheld e dos desenhistas Hugo Pratt, Francisco Solano López
e Arturo Del Castillo, que compunham o sentido de argentinidade na narrativa das HQs.
Assim, nos deteremos na brevidade da primeira edição comercializada em 1957 na qual
apresenta as principais prerrogativas para o desenvolvimento do caráter nacionalista das
obras em questão.

Os símbolos de identificação argentina seguiam uma conexão direta com a icono-


grafia latina e popular, isto pois, em Ernie Pike – contos de guerra escritos por Héctor Oes-
terheld e desenhadas por Hugo Pratt – contemplava esta relação através do seu próprio
narrador. Personagem, Pike não atua nas historietas, porém as narrava. Esta característica
levantava o ponto da exclusão do heroísmo guerrilheiro, em que os méritos se esten-
diam ao longo dos atos e práticas de guerrilha dos soldados, exclusivamente, norte-a-
mericanos. Esta apropriação de linguagem por parte dos roteiros de Héctor Oesterheld
fez com que as narrativas aprofundassem nas características sentimentais dos soldados

186
anônimos, recobrando-os identidade e carisma nas páginas impressas. Esta conexão,
além, parte para a representação simbólica, há a metalinguística da proporia narrativa:
abordando a guerra por pontos humanos com uma característica exclusiva, Pike é dese-
nhado à semelhança de seu criador. Pois, “quando criei o personagem, anexei uma nota
com o primeiro roteiro e disse que o fizera simpático, nobre e bom. Como piada, terminei
a nota assim: ‘bah, o fiz como a mim’” (OESTERHELD, 1974). Esta representação caracteriza
o personagem, assumindo as feições latinas do próprio escritor, em que criatura é feita a
semelhança de seu criador (Fig. 2).

FIG. 2 – Semelhança entre personagem e roteirista

Fonte: publicado em revista Hora Cero Suplemento Semanal número 1, 1957

Além da apropriação imagética, Héctor Oesterheld adianta características das his-


tórias de guerra popularmente difundida nos Estados Unidos. Localizando as narrativas
no período da Segunda Guerra Mundial, recobra temas importantes em contexto com a
Guerra Fria. Assim, a narrativa de Pike torna-se lúgubre, com pessimismo e uma reflexão
crítica da falta de humanismo no desenvolvimento dos conflitos armados. Em tom paci-
fista, os roteiros dedicam a especialização dos sentimentos mundanos localizados nos
personagens. A subversão da linguagem das HQs frente ao desenvolvimento das histó-
rias de Ernie Pike pode ser localizada em dois pontos: na inexistência de personagem prin-
cipal e na condenação do conflito. Comentando sobre ambos os pontos: na primeira edi-
ção, Pike desenvolve a história de dois soldados, Tenente Holden e Tenente Long. Holden,

187
ainda jovem, é um homem precavido e feliz, que, segundos os soldados, não há ninguém
como ele para “não atacar sem medir os riscos, ou para alegrar um acampamento com
paródias de todo o mundo, desde Stalin até Betty Grable” (OESTERHELD, 1957). Enquanto
Tenente Long, distinto de Holden, é “um sonhador que seguia sonhando apesar de toda
a destruição que tem ao seu redor, seguia crendo na fundamental bondade do homem”
(OESTERHELD, 1957).

Assim continua os roteiros de Oesterheld, detalhando os sentimentos e as caracte-


rísticas fundamentais constituintes de dois soldados anônimos na batalha de El Alamein,
no Egito. Pike, quando defrontado pelo ouvinte, aqui representando os leitores da revista
desacostumados com o tom humanista, que diz: “Por que não me conta uma história
de sua vovozinha? Que demônios me importam como eram esses dois?” (OESTERHELD,
1957), completa: “para que entenda o que vou te contar, era necessário que conhecesse
Holden e Long” (OESTERHELD, 1957).

Segue, então, os tópicos elencados por Gago para o reconhecimento da argenti-


nidade presente nas obras de Héctor Oesterheld. Comovido pelo tom humanista e pela
representação do herói grupal, Gérman desenvolve a temática antibelicista e pacifista.
Narrando através dos personagens Long e Holden, Oesterheld reflete acerca da destitui-
ção do humanismo presente na guerra, o enfrentamento desenfreado de soldados anô-
nimos que compactuam com certas prerrogativas ideológicas em detrimento de outras.
Assim, questiona se é possível “aceitar sem enlouquecer um mundo onde não teria faísca
de bondade e generosidade? (...) Justamente nas guerras é quando se faz mais necessário
recordar quais são os verdadeiros valores humanos” (OESTERHELD, 1957).

Oesterheld compunha o cenário narrativo de Ernie Pike afim de refletir acerca das
temáticas de guerra, mas também de toda a composição do gênero em questão. Sobre-
tudo ao final da Segunda Guerra Mundial e o início do período de Guerra Fria, as histórias
de guerras intensificaram a produção de HQs. A carga de apropriação desse gênero nar-
rativo pauta-se na forte entrada dos comics norte americano no mercado argentino. Para
refrear tal avanço e conceituar as narrativas argentinas, Gérman utiliza este título como
uma forma de mostrar que pela “primeira vez no mundo que os americanos não eram os

188
bonzinhos e os alemães os maus. Haviam heróis em ambas fações, incluso os japoneses o
eram. O único vilão da historieta era a guerra” (OESTERHELD, 1974).

Avançando, enquanto Pike utilizava das características de representação simbólica


das narrativas de guerra, El Eternauta apoiou-se na característica da metalinguagem para
a composição narrativa deste primeiro número. Desenhada por Francisco Solano López,
nas primeiras páginas do título é apresentado a cotidianidade do roteirista de quadri-
nho. Afim de apropriar-se das linguagens argentinas, o uso da vivência do próprio Héc-
tor Oesterheld é representado na historieta, em que, logo no primeiro quadro da HQ, há
a representação gráfica da moradia do roteirista (Fig. 3), bem como o próprio roteirista
(Fig. 4). Assim, o tom de cotidianidade e da simplicidade das histórias atinge níveis mais
profundo do popular e da identidade direta entre história e argentinidade. As represen-
tações gráficas tanto da casa quanto do ofício autoral são realocadas para a centralidade
de Buenos Aires. El Eternauta, então, realiza-se como a primeira série de ficção científica a
representar uma cidade latina como palco principal para o desenvolvimento da história.

FIG. 3 – A ilustração e a realidade: a casa de Oesterheld

Fonte: publicado em revista Hora Cero Suplemento Semanal número 1, 1957; fotografia divulgada pelo
jornal San Isidro, 2016

189
A representação do cotidiano se estende, também, para o texto. As necessidades
de ampliação dos sentidos de criação de uma historieta são aprofundadas nas primeiras
páginas da história. Enquanto Héctor Oesterheld – ilustrado na HQ – escreve um novo
roteiro, detalha sobre o sentimento citadino de um trabalhador em seu descanso em
uma noite de inverno, pois “fazia frio, mas as vezes eu gostava. Trabalhava com as janelas
abertas. Olhar as estrelas descansa e apazigua o ânimo, como se alguém escutasse uma
melodia muito velha e querida. O único ruído que atrapalhava o silêncio era o leve roçar
da pena sobre o papel” (OESTERHELD, 1957).

FIG. 4 – Aparição de Oesterheld em El Eternauta

Fonte: publicado em revista Hora Cero Suplemento Semanal número 1, 1957

El Eternauta é uma história de ficção científica, em que seguirá o relato de um per-


sonagem, intitulado como Eternauta, em uma guerra contra uma invasão alienígena no
centro de Buenos Aires. Entretanto, mediante a apropriação da linguagem do heroísmo
e das ficções comumente publicadas no mercado estrangeiro, a narrativa toma rumos
diferentes. Além da apropriação da localidade, em que a história revela personagens real-
mente argentinos e explora a geografia das ruas e monumentos portenhos, a narração da
historieta não conclui em um sentido básico da formação do herói. Enquanto na primeira
edição o Eternauta apresenta-se como um viajante temporal/espacial, a história segue
com um heroísmo anônimo. Juan Salvo, nome original do Eternauta, torna-se um herói
através das consequências de seus atos, não necessariamente sobre a necessidade de
tornar-se herói. Contanto sua história com pesar, Eternauta discorre sua narrativa já em
sua forma final, o que será representado apenas ao final da HQ de Oesterheld e López.
Assim, o tom do heroísmo grupal, da sobrevivência na realidade devastada, longe da di-
cotomia mundana parte como focos centrais da historieta. O narrador, cansado, oferece
sua história em troca de uma cama para descansar. Diz que:

190
“Minha condição de navegante do tempo, de viajador da eternidade. Minha triste e
desolada condição de peregrino dos séculos... Tive sorte ao chegar aqui. Pressinto que,
despois de tanto tempo, poderei descansar um pouco” (OESTERHELD, 1957)

Ainda, o roteirista de quadrinhos ilustrado na HQ, que recebe o relato, completa o


tom sentimental da história:

“Escutei; todo o resto daquela noite não fiz outra coisa do que escutar. Tal como ele
disse. Quando concluiu já estava claro. Tão claro como para me encher de pavor. Tão
claro como para sentir por ele uma enorme piedade. Mas não adiantarei nada: quero
mostrar a história do Eternauta tal como ele me contou” (OESTERHELD, 1957).

Existe, na narrativa em El Eternauta, certos pontos constantes na obra de Oesterheld.


Inicialmente o dinamismo das questões de heroísmo: o herói não é feito a partir do acaso
ou de atitudes idealizadas, mas, sim, fruto de um conflito interno e externo que guiam
o personagem por certas consequências. Além, sempre existirá um ouvinte como, sim-
bolicamente, representante do leitor. Assim como em Ernie Pike narra seus contos para
alguém, o Eternauta narrou a história para um roteirista de quadrinhos, que escutava
pacientemente ao longo das edições subsequentes. Assim, o leitor encontra um ponto de
identificação para o maior entrelaçamento com as narrativas impressas. Ainda, guiando
o leitor através de sentimentos conflitantes em contextos profundos, há uma base para
diálogo intermitente por mais ficção que a história possa ser.

A conclusão da revista fica por parte de Randall the Killer, com roteiros de Héctor
Oesterheld e desenhos de Arturo del Castillo, que conta histórias e contos sobre o faro-
este norte americano. Nesta história os roteiros aprofundam-se nos sentimentos huma-
nistas relacionados aos personagens secundários. Em sinopse básica, a primeira edição
da historieta conta sobre o caso do cowboy Algernon Miles, que chegara a cidade deter-
minado a fazer uma proposta de casamento depois de ter vendido seu gado e acumula-
do vinte mil dólares. Miles retornava a cidade afim de “mudar por completo sua vida de
homem solitário” (OESTERHELD, 1957). Apaixonado por Lina, uma dançarina do saloon,
Miles volta a cidade afim de recuperar a dignidade e respeito de sua amada, torna-a mu-
lher de posse e prosperidade. Entretanto, o caso do valor acumulado por Miles ronda pela
cidade, principalmente entre os bandidos e mal encarados.

191
Ao longo da história, podemos compreender o sentimento e a vontade excitante de
Miles em contraponto com a determinação dos capangas. Assim, orquestrando um cami-
nho direcionando Miles ao saloon, que reunia os principais pistoleiros da cidade, os ca-
pangas o levam para o centro de uma confusão. Quando instigado por Tríbol, o pistoleiro
mais mortífero da cidade, Miles coloca-se como cowboy e defensor de sua amada Lina,
outrora insultada pelo matador. Entretanto, o plano dos pistoleiros acaba por funcionar,
Miles é assassinado no saloon e tem o dinheiro roubado. Lina desespera-se com a falta de
futuro, tanto da humanidade quanto de Miles. Em confissão, diz: “será possível, Hannah,
que nada castigue o crime em todos os tolos?” (OESTERHELD, 1957). Em resposta, recebe
“O único homem capaz de impor justiça está em Shawn Town, muito longe daqui. Ran-
dall... Não se conhece outro nome: lhe chamam Randall “the killer”, o matador.... Porque
só luta contra matadores” (OESTERHELD, 1957).

Nesta primeira narrativa de Randall the Killer podemos notar certas discrepâncias
com o padrão das historietas de faroeste. Inicialmente condicionamos, novamente, a per-
cepção do heroísmo; o personagem que dá nome a série não aparece nos primeiros nú-
meros da série. A apresentação é feita por meio de mitos e lendas, torna-se um cowboy
idealizado e problematizado. Enquanto ninguém o conhece por interim, tem seu nome
verbalizado com certo tom de terror, pois encarna-se como um justiceiro que recorre as
vítimas para ajuda-las. Não cobra por isso. Além, Randall é um meio de salvação para uma
população desesperada, mas não a única. Mesmo com a elaboração perfeita do justiceiro
do velho oeste, Lina concluí sobre o pistoleiro: “Eu o convencerei e o ajudarei a vingar a
Algernon. Mesmo que tiver que lutar ao seu lado, com revolver em mãos” (OESTERHELD,
1957). Lina representa a força do heroísmo coletivo, pois, enquanto não existe Randall, a
mulher levanta sua coragem afim de lutar contra a opressão, tornando-se, também, hero-
ína por conta das necessidades dos conflitos anteriormente representados.

Além, os discursos do narrador impõem aos leitores certas dicotomias na relação


entre personagens. Enquanto Miles apresenta-se como um bom moço, Tríbol é incluí-
do no plano de roubo por um acaso. Conhecido como pistoleiro, Tríbol assassina Miles
depois de ter sua imagem manchada em frente ao saloon. Ao longo do conflito entre os
dois homens Miles disfere um soco, acertando o rosto de Tríbol, que o chama para um

192
duelo. Ainda permitindo que Miles redima-se, este o enfrenta e acaba perdendo a peleja.
Assim, os sentidos de honra e humanismo se intensificam na relação orquestrada nesta
primeira edição, pois a resolução do conflito parecia simples ao primeiro momento, mas
aprofundada por conta dos interesses humanos frente a realidade de cada personagem.

Conclusão

A publicação de HQs na Argentina nos anos 50 segue um plano mercadológico de


construção de uma identidade nacional, bem como a solidificação de um campo artísti-
co. As historietas, entretanto, são um produto de baixo custo vinculados, essencialmente,
para o público infanto-juvenil. Reconhecendo estas necessidades básicas de circulação,
o grupo editorial Frontera usa como ferramenta para o desenvolvimento mais elaborado
de intensificação das práticas cultural. Esta produção voltada para um público em especí-
fico, como sugere Angela de Castro Gomes e Patrícia Santos Hansen, revela:

“O particular interesse de muitos mediadores na elaboração de produtos culturais que


atinjam públicos mais jovens – os “cidadãos do futuro” –, por via da instituição escolar
ou não, e que reforcem narrativas identitárias, as quais contribuem para a formação de
culturas políticas que defendam valores por eles acreditados” (GOMES; HANSEN, 2016).

A característica de localizar o público infantil neste seguimento industrial também


reflete-se em outros pontos. Com base nisso, podemos questionarmo-nos em que me-
dida tal leitor imaginado atua, de alguma forma, na produção final do texto/livro; neste
sentido, Robert Darnton (1990) ajuda a dialogar sobre tal ponto. Darnton (1990) discute a
relação entre o mercado livreiro e o público consumidor, para o autor, a influência do lei-
tor e editor sobre da produção de impressos é determinante para a construção de uma in-
dústria e/ou um mercado editorial em diferentes níveis. No ciclo editorial de Darnton, po-
demos realizar a intervenção criativa do leitor, que atua como fim do eixo de publicação
de um livro. Em função mercadológica, a editora e o autor refletem sobre a publicação de
gêneros de consumo massivo, o que gera retorno financeiro/comercial e viabiliza novos
títulos e narrativas, possibilitando novos ciclos e novas produções culturais dependente
de uma rede que auxilie a publicação e venda destes produtos. De certa forma, o merca-

193
do e o público consumidor atuam, em suas devidas proporções, também como editores.

Darnton considera que a publicação de um livro e a demanda de recepção fazem


parte de uma rede que se retroalimentam. Sendo assim,

“as partes não adquirem seu significado completo enquanto não são relacionadas com
o todo, e, se a história do livro não pretende se fragmentar em especializações esotéricas
isoladas entre si por técnicas misteriosas e incompreensões mútuas, parece necessária
alguma visão holística do livro como meio de comunicação” (DARNTON, 1990).

A relação entre público e leitor que constitui as características principais do merca-


do editorial ajuda a questionar e solucionar problemas em torno da temática de publi-
cação de quadrinhos na Argentina na década de 1950. As práticas de que Oesterheld se
apropriam para a construção de sentido de publicação e refletem-se necessariamente na
recepção do público leitor.

Assim, desenvolvem “estratégias e práticas” que concluem certa autoridade refe-


rente àquele sentido cultural primário. Em relação à atuação editorial de Oesterheld na
produção de HQs argentina, há uma intensa busca de reafirmação das “práticas” e “repre-
sentações” dos esforços nacionais referentes ao produto e gêneros narrativos reconheci-
damente estrangeiros em uma articulação de disputas sociais, sobretudo na publicação
da revista Hora Cero Suplemento Semanal. Podemos, a partir de então, considerar os esfor-
ços criativos de sintetizar um sentimento de argentinidade nas HQs da editora Frontera
como uma forma de reafirmação dos valores nacionais em contraponto dos sentidos edi-
toriais estrangeiros. Assim, Oesterheld considera a relação entre consumo e publicação
para a elaboração deste campo cultural nacional ao redor das historietas na década de
50.

194
REFERÊNCIAS

CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e biblioteca na Europa entre os
séculos XIV e XVIII. Brasília: editora UnB, 1999.

DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

GAGO, Sebastian Horacio. El Eternauta: as leituras de um clássico dos quadrinhos na


atualidade. In: história, histórias. Brasília, vol. 4, n. 7, 2016. ISSN 2318-1729.

GOMES, Angela Maria de Castro. HANSEN, Patricia Santos. Intelectuais mediadores:


praticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

RIZ, Liliana de. TORRE, Juan Carlos. Argentina, 1946-1990. In.: BETHELL, Leslie (Org.). A
América Latina após 1930: Argentina, Uruguai, Paraguai e Brasil. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2018.

SOARES, Gabriela Pellegrino. Semear Horizontes: Uma história da formação de leitores


na Argentina e no Brasil, 1915-1954. Belo Horizonte: editora UFMG, 2007.

ROMERO, Luis Alberto. Breve historia contemporânea de la Argentina. Buenos Aires:


Fonde de cultura económica, 2016.

OESTERHELD, Héctor Germán. Hora Cero Suplemento Semanal: edição 1. Buenos


Aires: Frontera, 1957.

_____. Héctor Oesterheld, el más imaginativo creador de populares historietas.


Siete Diás Nº 381 – del 23 al 29 de septiembre de 1974.

_____. Oesterheld em primera persona. Buenos Aires: ediciones la bañadera del có-
mic, 200

195
HQS E ZINES BIOGRÁFICOS – OS CAMINHOS ARTÍSTICOS
INTUITIVOS PARA UM AUTOCONHECIMENTO
(OU PARA UMA AUTOPOÉTICA)

Gazy Andraus1

AS ARTES DOS QUADRINHOS E DOS FANZINES

Antes de proceder à dissecção acerca do conteúdo artístico biográfico relativo à


minha autoria, que se promove em duas vias artísticas, seja a dos quadrinhos2 e/ou dos
fanzines3, é interessante forjar neste texto um pouco do reconhecimento acerca de am-
bas as artes, tanto a das Histórias em Quadrinhos (HQs) como a dos fanzines (zines), aos
que porventura tenham pouco contato com ela, pois isto auxilia numa contextualização
e entendimento de como o fator (auto) biográfico exponencial me alcançou em meu de-
senvolvimento lato e estrito.

CONTEXTUALIZANDO AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS AUTORAIS

As histórias em quadrinhos passaram por vários momentos desde sua oficial cria-

1 É pós-doutorando pelo PPGACV da UFG, Doutor pela ECA-USP, Mestre em Artes Visuais pela UNESP.
Também publica artigos acerca das Histórias em Quadrinhos (HQs) e Fanzines, bem como é autor de HQs
e Fanzines na temática fantástico-filosófica. E-mail: yzagandraus@gmail.com, gazyandraus@ufg.br, Sites e
blogs: http://tesegazy.blogspot.com/ , https://yzagandraus.wixsite.com/gazy/home

2 Histórias em Quadrinhos, ou HQs, ou ainda simplesmente quadrinhos, como podem ser denomi-
nadas tais artes.

3 Fanzines, ou zines, ou ainda atualmente artezines, como podem ser denominadas tais revistas ma-
nufaturadas independentes, e que representam o lema do “DIY – o it Yourself” – do “faça você mesmo”.

ANDRAUS, Gazy. HQs e zines biográficos – os caminhos artísticos intuitivos para um autoconhecimento (ou
para uma autopoética), In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográfi-
cas na História e na Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020.
p. 196-215.
ção, aos fins do século XIX, com a ampliação da possibilidade tecnológica de imprimir
jornais e posteriormente revistas. A “aura” que Walter Benjamim (1994) acreditava se es-
vair da reprodutibilidade possível das obras artísticas desde sempre jamais valeu para
este tipo de expressão que pede exclusividade de reprodução para compartilhamento:
as BDs (Bande Dessinèes e Bandas Desenhadas) na França e Portugal, os Comics nos EUA,
Mangá no Japão, Fumetti na Itália e ainda Historieta na América latina espanhola, como
são conhecidas as Histórias em Quadrinhos (HQ) são parte de um legado de arte que não
pode jamais ser menosprezado (como já o fora antes). Para Richerme (2007) a arte e sua
qualidade dependem da inteligência que a gerou e organizou (ainda que para este autor,
arte seja sempre arte, mesmo que diferenciada pelo seu grau de inteligência organiza-
cional), podendo-se afirmar que os quadrinhos (também chamados de Arte-Sequencial),
são essencialmente inteligentes em sua organização e diagramação das páginas, como
asseverou Tisseron (1990), já que neles se encadeiam suas linhas de requadros cartesiana-
mente em contraposição aos desenhos soltos e fluidos que são por eles abarcados.

Tardou, mas a atualidade e contemporaneidade colocaram as HQ em seu devido


valor: na arte. Pois desde sua gênese oficial nas publicações jornalísticas ao final de 1800
para as revistas no início de 1900, os quadrinhos foram desconsiderados como arte e até
perseguidos na década de 1950 como expoentes do mal, sendo ressignificados aos pou-
cos a partir das décadas de 1960 e 1970 em diante, alcançando mundialmente o patamar
artístico desde a aurora deste novo século XXI. A Pinacothèque de Paris atestou isso, defini-
tivamente, na exposição elencada do autor italiano Hugo Pratt, intitulada Le Voyage ima-
ginaire de Hugo Pratt, ocorrida em 2011. Nela, os apreciadores de arte, incluindo os de
quadrinhos (e/ou fumetti, ou ainda BD), puderam presenciar a obra do autor italiano em
seções temáticas. Naquela retrospectiva imagética, a pinacoteca parisiense, que se atém
a abarcar artistas e suas produções consagradas no rol das artes, reiterou a comprovação
da valorização artística das obras quadrinizadas do autor em questão, cujas narrativas
imagético-literárias aventureiras, já comentadas e estudadas por Eco (1998), descortina-
ram-se, sobretudo com a HQ/BD A Balada do Mar Salgado, exposta na íntegra em meio
a outros trabalhos seus, conforme apontei em meu recente e-book (ANDRAUS, 2019).

E assim, as histórias em quadrinhos cresceram comigo até eu me tornar amador e

197
depois profissional...porém, isto foi delineado graças também aos fanzines, como se verá,
após a contextualização de tais revistas independentes, conforme se segue.

FANZINES E BIOGRAFICZINES E SUA AUTORALIDADE BIOGRÁFICA

Os boletins criados em 19304 a partir da vontade de fãs da literatura de Ficção Cien-


tífica (FC) nos EUA em exaltarem-na, trazendo seus próprios contos, foram a gênese dos
(das5) fanzines, cujo termo foi concebido por Louis Russell Chaveunet em 1940, compon-
do a interação das palavras inglesas “fanatic” mais “magazine”, literalmente a “revista do
fã” (MAGALHÃES, 1993), uma publicação amadora como hobby, sem fins lucrativos. A in-
tenção de tais amadores e fãs era a de publicarem suas versões das histórias, criando-as
ou recriando-as, bem como refletirem acerca daquele gênero literário que então não era
para eles suficientemente reconhecido e valorizado. As publicações, tidas então como
boletins via máquinas de mimeógrafo antigo, passaram a ser impressas pelos mimeógra-
fos correntes6 e posteriormente via fotocopiadoras (e impressoras) como o são até hoje
(também via Internet).

No Brasil, o piracicabano Edson Rontani lançou em 12/10/1965 seu boletim “Fic-


ção”, que a despeito de seu autor desconhecer a denominação fanzine, veio depois a ser
lembrado como o pioneiro do fanzinato7 no Brasil8. Ainda na década de 1970, houve tam-

4 Em realidade, no ano de 1929, Jerry Siegel, o mesmo que cocriou depois o personagem Superman,
juntou histórias que ele escrevia e eram recusadas por uma revista de ficção científica, e montou sua própria
revista independente de contos chamada Comic Stories, utilizando máquina de escrever e mimeógrafo, dan-
do origem à gênese do que viria a ser batizado de fanzines na década de 1940 (MAGALHÃES, 2018, p.14).

5 Por ser um neologismo de origem pela língua inglesa, fanzine, na tradução em português, tanto pode
ser tido como do gênero masculino (“o” fanzine), como do feminino (“a” fanzine). Porém, adoto a forma do
gênero masculino para tratar dos fanzines e afins, neste artigo em específico.

6 Mais atuais, como os que eram usados em escolas.

7 Fanzinato é o equivalente da palavra inglesa fandom. Existem também os prozines, mas este termo
é pouco usado, e serve mais para definir os autores de quadrinhos norte-americanos (principalmente) que
fazem suas revistas independentes.

8 A partir de 2012 se comemora o Dia Nacional do Fanzine – data deliberada pelo autor deste artigo -
graças ao “Ficção” de Edson Rontani.

198
bém a “Geração Mimeógrafo”, contrária à ditadura e “que levou intelectuais, professores
universitários, poetas e artistas em geral a buscarem meios alternativos para a difusão
cultural” (NEGRESIOLO, 08/08/16).

É de se ressaltar, porém, que a popularização se ampliou devido à inovação das


fotocopiadoras e as publicações independentes vieram à tona com maior produção, es-
palhando-se mais ainda a partir das décadas de 1960 e 70, contendo tanto textos de re-
flexão, como expressões artísticas, com temas variados tais como FC, HQ, músicas, princi-
palmente de contestação como rock e punk (estas duas vertentes musicais foram as que
mais propulsionaram o fanzinato no mundo, naquele período, divulgando seus shows e
ideários), feminismo, anarquia, cinema, (auto) biografias, poesias etc.

Na atualidade, estas revistas independentes denominadas de fanzines estão des-


pontando como artes para nichos que as denominam no Brasil apenas de “zines” e/ou
agora, artezines (já que são chamadas no exterior de art-zines). Também vêm aumen-
tando os espaços nacionais e mundiais dedicados a elas, como as seções de fanzines em
bibliotecas, fanzinotecas, e eventos e feiras como no Canadá (TCAF and Zineland Terrace),
EUA (The Miami Zine Fair), França (Fanzines!Festival), Taiwan (Zine Day Taiwan) e Brasil (Fei-
ra Plana, Fanzinada, Ugrapress e Feira E-cêntrica) dentre outros. Ou seja, o fanzinato traz
uma publicação à revelia do sistema oficial e segue com sua própria lógica de uma para-
topia conforme Zavam (2004) considera a existência dos fanzines, já que à margem das
publicações oficiais da sociedade.

O Fanzine começa a ser muito utilizado atualmente no meio acadêmico, onde tem
aparecido como objeto teórico e prático em cursos de graduação e pós-graduação, como
os que foram ministrados por Elydio dos Santos Neto9, que aplicava os quadrinhos e os
fanzines para profissionais e mestrandos da educação e pedagogia, de forma a ampliar o

9 Falecido em 2013, foi professor respectivamente da Universidade Metodista de São Bernardo do


Campo e da Universidade Federal da Paraíba. Criou o conceito e termo dos Biograficzines para aplicar em
didáticas na área de educação, tanto na graduação como na pós, e também apreciava os quadrinhos poéticos
brasileiros, sendo até um autor que chegou a publicar suas artes em fanzines, como no Gibiozine. Ver mais
em: Andraus; Santos Neto, 2010.

199
alcance e a criatividade dos pesquisadores. Ele criou os biograficzines10, como parte de
sua didática a que cada estudante da educação pudesse melhor se conhecer e a seu po-
tencial criativo, muitas vezes bloqueado pelos sistemas que nos engessam. Há muitos ou-
tros exemplos, como a experiência do Gibiozine11, projeto idealizado pelo professor Hylio
F. Laganá, do curso de Licenciatura em Biologia da UFSCAR (Campus de Sorocaba), uma
mescla de gibi de temática da área de biologia cuja produção é fanzineira, trabalhada por
ele dentro de um projeto de pesquisas da universidade, em que os próprios alunos criam as
HQ (que podem ou não versar acerca da área de biologia), envolvendo-os grandemente, já
que colaboram na montagem da revista. Em Goiás, Carlos de Brito Lacerda, em Senador Ca-
nedo/Go, ex-professor do “Colégio Estadual de 1º. E 2º. Grau Pedro Ludovico Teixeira”, numa
empreitada interdisciplinar e com a anuência da gestão daquela escola, promoveu por dois
anos consecutivos, um trabalho com os alunos (e professores), culminando em apresenta-
ções e vendas/trocas dos fanzines de seus alunos e mesas-redondas com palestrantes da
área como convidados. O mesmo o faz Alberto Souza (Beralto) que leciona fanzines com
seu PEIBÊ zine12 no IFF-Campus Macaé do Rio de Janeiro, trazendo uma abrangência enri-
quecedora a seus alunos, dentro do Projeto IFanzine, do qual também colaboram outros,
enviando artes.

Em realidade, os fanzines não se enquadram facilmente, atestando seu potencial


“marginal” e sua própria denominação neologística, pois que o fanzine vem a ser uma
forma de editoração alternativa, independente do sistema vigente, libertária e, portanto,
criativa. Representa assim uma manifestação a partir de uma premência mental a partir
de um desejo autoral em expor, disseminar e trocar conceitos, ideias e expressões que se
traduzem e se materializam em várias outras possibilidades e formas, enveredando-se
pelos conhecimentos e expressões artísticos e de temas gerais (de ordem similar ao que
originaria o equivalente jornalístico, mas no fanzine tendo um caráter experimental).

10 Conhecidos como “perzines” no exterior.

11 O título Gibiozine é uma fusão dos termos: “Gibi+Biologia+Fanzine” e os primeiros números podem
ser baixados no link: http://www.ufscar.br/fotografia/gibiobanca.php

12 Que já foi laureado em 2015 com o prêmio de Melhor Fanzine para seu zine “Peibê” pelo Ângelo
Agostini,– evento anual que prestigia autores de quadrinhos e fanzines, devido ao Dia Nacional das Histórias
em Quadrinhos que ocorre todo ano em 30 de janeiro, no Brasil.

200
Como potencial de liberação e desenvolvimento da criatividade em que o autor
pode ser seu próprio editor (faneditor), o fanzine, (arte)zine e/ou biograficzine possibilita
a paratopia editorial às publicações ditas oficiais, não excluindo os ideários dos fãs ama-
dores que seriam “segregados” do sistema oficial, tendo nos zines13 espaços para suas
próprias publicações. Ou seja: fundamenta-se o fanzinato na premissa de que cada ci-
dadão, sendo um autor em potencial, pode verter e tornar factível esta potencialidade
produzindo seu próprio (fan)zine, expondo nele suas idéias e criatividade, muitas vezes
de cunho autobiográfico, e partilhando-o sem o peso de obter lucro e de ser cerceado em
seu conteúdo, visto que o fanzine não é tido oficialmente como um produto comercial
(mas contrariamente, fraternal).

OS/AS ART-ZINES(ARTEZINES)

Os zines, conforme se asseverou, são atualmente também classificados com status


de arte e seriam, assim, uma subcategoria dos fanzines (THOMAS, 2009, p. 27) ou um
sub-gênero, conforme atesta Batey (2014). Desta feita, os fanzines atrelados a estas pre-
missas (“declarações”) podem ser tidos como um gênero modificado a si mesmos, sendo
atualmente designados como art-zines (em português, denominar-se-á de artezines ou
simplesmente zines), já que, embora haja cada vez mais publicações via redes virtuais
(internet), voltam a ser “publicados” com mais ênfases via papel, dadas as características
de serem manipuláveis (não só ao serem lidos/vistos, mas também ao serem elaborados),
caracterizando uma preferência à manufatura - tal qual um livro de artista - trazendo um
caráter inovador em se buscar a insurgência de fanzines impressos (ou fotocopiados14)
como mola propulsora de expressividades autorais atuais, verificando-se que atendem
a alguns requisitos como complexidades artísticas (tal qual a literatura autoral, o livro de
artista, as gravuras, ou ainda revistas-objetos etc).

13 De maneira análoga o seriam os blogs na Internet.

14 Não se impedindo que haja fanzines eletrônicos, quer sejam apresentados exclusivamente pela rede
virtual da Internet, o que possibilita um outro estudo exploratório acerca do tema.

201
O BIOGRAFICZINE E SEU PROCESSO DE CONSTRUÇÃO

O Biograficzine é um fanzine que nos faz questionar como tornamo-nos os seres


humanos profissionais que somos hoje. E nos leva a partilharmos, utilizando imagens e
também a linguagem das histórias em quadrinhos, a reflexão sobre a própria trajetória
com outras pessoas envolvidas no mesmo tipo de processo formativo.

Caixa de TextoA despeito de muitos educadores que desconhecem os zines ou então


os veem de forma preconceituosa e negativa, há outros que, sabendo o valor que têm,
promovem uma aproximação benéfica aos universitários em geral e discentes de pós-gra-
duação. Elydio dos Santos Neto, ao utilizar os quadrinhos e os Biograficzines (fig. 1) em seu
trabalho de formação com mestrandos levava-os a ampliar o alcance e a criatividade como
parte de sua estratégia didática, numa tentativa de favorecer com que cada aluno pudesse
melhor se conhecer e a seu potencial criativo, muitas vezes bloqueado pelos sistemas que
nos engessam.

Figs. 1: Biograficzines de autoria de Elydio dos Santos Neto

Fonte: acervo do autor

Do ponto de vista da formação humana em geral, isto é, do complexo processo de


constituição de nós mesmos como seres humanos, individuais e coletivos, este pro-
cesso nos sugere muitas necessidades. Queremos destacar duas: a primeira, a neces-

202
sidade de resgatar nossas histórias de vida e, com elas, a nossa capacidade de viver
conscientemente experiências significativas para nossa própria constituição como se-
res humanos; a segunda, retomar a prática de narrar e compartilhar nossas experiên-
cias vividas. Parece-nos que aí estão duas perspectivas que podem nos auxiliar a viver
nosso tempo histórico sem perdermos a capacidade de avançarmos com o novo que
tem sido produzido, mas também sem perdermos o contato conosco mesmos e sem
abrirmos mão da prática da partilha de nossas experiências, o que tem sido uma es-
tratégia interessante de aprendizagem desde os primórdios humanos. (SANTOS NETO;
ANDRAUS, 2010, p.38)

Interessante como tais premissas abarcam as biografias pessoais, ou autobiografias,


como parte desta necessidade de se autoconhecer, que é deixada de lado no ensino car-
tesiano tradicional.

IMBRICAMENTO ENTRE OS QUADRINHOS E OS ZINES BIOGRÁFICOS

Caixa de TextoÉ interessante como nas artes dos quadrinhos e dos fanzines15 encon-
tram-se todos os tipos de temas, de maneira análoga à literatura tradicional e ao cinema
incluindo-se os biográficos, como nas HQs “Maus” de Art Spielgelman ou “Persépolis” de
Marjane Satrapi, ‘’Modotti’’ do espanhol Angel de la Calle, “Retalhos”, de Craig Thompson,
“Epiléptico”, vol. 1 e 2, de David B., “Memória de Elefante”, de Caeto e Homo Eternus, de
minha autoria, dentre muitos outros. Todos estes quadrinhos trazem, de alguma maneira,
narrativas de cunho biográficos e/ou autobiográficos (Figs. 2 e 2a).

Figs. 2 e 2a: HQs autobiográfica e biográfica: “Persépolis” de Marjane Satrapi e “Maus” de Art Spielgelman

15 Esclarece-se que os fanzines também publicam artes variadas, desde ilustrações, charges e cartuns,
bem como textos poéticos, resenhas, entrevistas etc, não se limitando aos quadrinhos e nem sendo atinentes
a eles com exclusivismo.

203
Mas as HQs se relacionam estreitamente aos fanzines, pois neles tem havido muita
publicação autoral e biográfica, tanto amadora como profissional, principalmente desde
as décadas de 1980 e 90 quando os fanzines serviram de esteio aos autores amadores e
profissionais do Brasil, que não tinham onde publicarem, visto que a maioria das editoras
nacionais preferia trazer material estrangeiro que aqui era traduzido (em especial norte-
-americanos, só depois vindo os mangás japoneses e, aos poucos, os europeus).

Figs. 3, 3a e 3b: Trechos e capas de HQs de autores europeus.

Fontes: Caza (arte); Killian (texto). “Vento”. In: Heavy Metal. Nº 17. (3). Ed. Heavy Metal, São Paulo:
1997, p.42; (3), Druillet, Phillipe. Urm Le fou. Genève: Les Humanoïds Associes, 1991(3a) e Moebius.
O Homem é bom? Porto Alegre: L&PM, 1984 (3b).

Ainda assim, os quadrinhos brasileiros resistiram, e neste percurso vieram as HQs de


temas poéticos, assim denominados por Edgar Franco (1997), e neles houve uma grande
influência derivada da banda desenhada francesa, com autores tais como Phillipe Druil-
let, Caza e Moebius, dentre outros (figs. 3, 3a e 3b). Estes eram parcamente publicados
no Brasil, mas os fanzines supriam sua falta na oficialidade editorial nacional trazendo
HQs como “Vento” de Caza, que somente muitos anos depois viriam a ser publicados ofi-
cialmente no Brasil.

Tais quadrinhos que traziam questionamentos de reflexão pessoal, mas também de


cunho filosófico-existencialista, ribombaram à época em autores amadores brasileiros,
como Flávio Calazans, Edgar Franco, Henry Jaepelt, eu e outros. E enquanto estes brasi-
leiros que também engrossariam a relação de pesquisadores defensores da Nona Arte e
dos fanzines, liam e faziam HQs de temáticas similares, acabaram por criar um estilo que
se desenvolveu inadvertidamente graças a isso, e que também foi objeto de estudo de
pós-doutoramento por parte de Elydio dos Santos Neto, cujo trabalho foi desenvolvido

204
na área de artes da UNESP16.

Eu mesmo estudei os quadrinhos e seu potencial artístico-poético no meu mestra-


do também na UNESP em 1996, e como um destes autores, tive minhas influências e tam-
bém meus percalços que incluíram um desenvolvimento artístico/acadêmico que con-
templou não só as histórias em quadrinhos, como os fanzines, realizando neles minhas
experiências num processamento criativo mais direto e baseado na audição musical,
transformando minhas HQs em poéticas, influenciadas igualmente pelos autores fran-
ceses como Caza e Druillet, conforme finalmente – e após expor as condições técnicas e
tecnológicas que as HQs e fanzines e seus imbricamentos permitiram - exponho a seguir.

MINHA AUTOPOÉTICA BIOGRÁFICA NA PRODUÇÃO AUTORAL DAS MINHAS


HQS E ZINES E OS CAMINHOS ARTÍSTICOS INTUITIVOS

Antes de nascer, vim literalmente de navio do Líbano, mas no útero de minha mãe,
que após passar um mês singrando o oceano com meu pai, chegaram ao Brasil, quando
três meses depois nasço em Ituiutaba – MG17 em 11/01/1967. Antes de aprender a língua
portuguesa, aprendi a arábica (mas permanecendo analfabeto na escrita e literatura), e
depois, aos 7 anos comecei a ler e a adquirir gibis infantis. Ao início de minha adolescência
passei a ler, concomitantemente, os gibis de super-heróis, consolidando tal leitura con-
forme avançava na adolescência, e diminuindo a leitura dos gibis de humor caricatural.

O mesmo se deu no meu desenvolvimento artístico de auto-aprendizado: desenha-


va dinossauros desde meus 8 anos e depois, na adolescência inicial mesclava com mons-
tros, dragões etc. Interessante ressaltar que na fase de meus 8 aos 14 anos, praticamente
vivi desenhando, pois meus pais tinham um bar-restaurante comercial na cidade de São
Vicente/SP. Como eu era criança em fase de crescimento indo à adolescência, apesar de

16 Histórias em quadrinhos poético-filosóficas foi o tema de seu pós-doc, concluído em 2010. Mais
sobre a defesa, aqui: http://portal.metodista.br/noticias/2010/setembro/docente-realiza-defesa-de-posdou-
torado-em-hqs-filosoficos

17 Coincidentemente, tal qual meu irmão das artes gráficas, Edgar Franco.

205
não gostar, era de certa maneira obrigado a trabalhar no estabelecimento, pois a família
assim vivia, e quase não havia tempo para estarmos no apartamento, como a maior parte
das famílias se constituía. Então, como não havia escapatória, meu tempo quase inteiro
no restaurante eu dedicava ao ato de desenhar, e o fazia sempre quando havia brechas
no trabalho de garçom que eu desempenhava (fig. 4).

Fig. 4 Desenhos de Gazy andraus, desde os 8 anos (dinossauros) aos 14 (super-heróis)

Fontes: acervo do autor (fig. 1) e https://merrick.library.miami.edu/cdm/search/collection/zines (fig.2).

Caixa de TextoAssim, continuando nos desenhos, a seguir aos dinossauros e mons-


tros, vieram os super-heróis e as elaborações de quadrinhos que realmente me levaram
a desejar ingressar num curso de artes na universidade. Após permanecer por um ano e
meio na FAV da UFG entre 1986 e 87, retorno ao estado de São Paulo devido às greves
freqüentes do professorado, e reinicio na FAAP, finalizando o curso de Licenciatura Plena
em Educação Artística em 1992.

De 1986/7 em diante, retorno aos quadrinhos, mas agora, embora com influência
de super-heróis, conforme fui conhecendo e adentrando as artes plásticas, os fanzines18
e o fanzinato, passo a me influenciar pelos quadrinhos europeus, alguns deles só “publi-
cados” paratopicamente no Brasil, em zines. Tais artes me fizeram intuitivamente querer
realizar quadrinhos relexivos, e de certa forma, autobiográficos, pois refletiam minha psi-
que e minha formação nas artes e nas leituras paralelas de ficção científica e livros da área
da espiritualidade e até da filosófica oriental, como taoísmo, dentre outros.

18 Minhas publicações iniciais e meu retorno a desenhar quadrinhos – após uma pausa entre meus 17
a 19 anos em que eu apenas desenhava figuras e/ou cenas, se deu inicialmente graças aos fanzines e seus
incentivos, aos quais venho me dedicando até a atualidade.

206
Portanto, algumas de minhas HQs e ilustrações refletiram19 não só meus estados
de ânimo, como meus conhecimentos alcançados durante aquele período acadêmico
que abarcavam fontes das artes e de leituras paralelas de outros temas oriundos de li-
vros, quadrinhos e fanzines. Um exemplo de minha arte foi a quadrilogia “Homo Eternus”,
fanzine de 4 volumes que desenvolvi e que trazia HQs curtas no estilo poético (também
denominado por “fantasia-filosófica), co-editado por mim e por Edgard Guimarães, autor
de quadrinhos, editor do fanzine mais longevo do Brasil, o “QI – Quadrinhos Independen-
tes” e professor de engenharia no ITA. Guimarães, naquele período da década de 1990,
divulgava em seu zines todos os fanzines que recebia, e auxiliava autores promovendo
uma coedição, permitindo-me lançar com ele, entre 1993 e 1994 minha quadrilogia foto-
copiada, que atualmente vem sendo republicada como álbuns comerciais pela Ed. Cria-
tivo (Fig. 5).

Fig 5 Acima, os 4 fanzines da quadrilogia “Homo Eternus” e abaixo, as capas dos álbuns homônimos I e II
lançados pela Ed. Criativo de S. Paulo, em 2018 e 2019, respectivamente.

Fontes: acervo do autor

As minhas HQs, como as que estampavam as páginas de meus fanzines como as


do “Homo Eternus”, traziam muito da sensibilidade arraigada nas artes e nas reflexões da
vida e do sofrimento humano (metaforizadas devido à “marginalidade” das pessoas que
não tinham seus direitos assegurados e/ou ponderações filosóficas e minha vertente era

19 Como refletem até hoje, embora eu as realize em menor monta, pois me tornei também pesquisador
e divido meu tempo nas tarefas acadêmicas, como esta aqui, por exemplo.

207
bastante questionadora sobre tais temas) cujas influências vinham de minhas leituras pa-
ralelas ao curso de artes, incluindo, como já mencionei, taoísmo e outras fontes paralelas
sobre a existência humana. Mas todo este meu processo criativo vinha (e ainda vem) sen-
do desenvolvido sob a audição de música, como o rock progressivo, o Heavy Metal e/ou
músicas instrumentais, conforme explanei à época de minha participação do II Seminário
de Pesquisa em Cultura Visual na FAV-UFG em 2009, no qual pode ser vista uma ação
minha a exemplificar meu processo de criação na época, quando apresentei na prática
tal explanação do processo (Fig. 6)20. Interessante ressaltar que desenvolvi um processo
criativo que me permitiu criar desenhos e HQs diretamente à nanquim, sem esboço pré-
vio, de maneira similar ao ato da pintura e desenho taoísta, fluindo com os movimentos
do pincel ao desenhar uma paisagem (mas sempre com uma ajuda da audição musical):

Fig. 6: Gazy no Seminário na FAV-UFG.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=k3d_xuog7Uk

Uma HQ importante que elaborei e que instintiva e intuitivamente reflete meu pro-
cesso autobiográfico daquele período foi “Casulo”, elaborada no início de desenvolvimen-
to dos quadrinhos poéticos, e que foi publicada no volume 1 do zine “Homo Eternus”,

20 Aqui o link direto: https://www.youtube.com/watch?v=k3d_xuog7Uk,

208
pode exemplificar também minha inserção no universo da arte quadrinhística, como se
visualiza na fig. 7:

Fig. 7: HQ autobiográfica poética de G. Andraus, “Casulo”, em que metaforicamente nasce para se “enquadrar
no métier dos quadrinhos.

Fonte: Acervo do autor

Fig. 8: HQ autobiográfica poética de G. Andraus, “Sina”, em que o ser pensa estar sofrendo, mas em realidade
não está (publicada em preto e branco no zine e álbum Homo Eternus nº2).

Fonte: Acervo do autor

Outra HQ emblemática e que metaforiza meu período de agruras quando univer-


sitário foi “Sina” de 3 páginas (fig. 8). Esta, ainda a fiz com lápis inicialmente, a partir de

209
uma imagem em 3 quadros que vieram à minha mente enquanto ouvia a música “Unfor-
gettable fire” do U2. Imediatamente levantei-me da cama e pus-me a esboçar as imagens
iniciais para, em seguida, finalizá-la em 3 páginas: o homem crucificado se debate e, so-
mente quando se acalma, se dá conta de ter estado sempre livre (no 1º quadrinho da pg.
1, embora ele esteja na cruz, não está preso a ela, realmente).

Na realidade, durante principalmente as duas décadas de 1980 e 1990, eu e ou-


tros autores (como Edgar Franco, por exemplo), acabamos por – inadvertidamente – criar
este estilo de HQs curtas, elípticas, que refletiam nossos seres internos (pois biográficos,
embora com metaforizações), que se estigmatizou como HQs poéticas (ou como gosto
de chamar, “fantástico-filosóficas”), e que até hoje ainda são emblemáticas como parte
do universo quadrinhístico, mas também fanzineiro, visto que a produção e publicação
independente é que permitiu tal desenvolvimento no Brasil. Além disso, é importante
lembrar que criamos muitas ilustrações, e juntas às HQs, naquele período, não só nós,
como a maior parte dos quadrinhistas independentes enviavam e trocavam suas artes
via correio, para que fossem publicadas nos diversos fanzines que passaram a povoar o
Brasil, tanto de norte a sul, como de leste a oeste, numa intercomunicação zineira que se
propagou e se alastrou. Isto permitiu, junto aos estudos que elevaram a seriedade dos
quadrinhos, fazer com que muitos autores da atualidade fossem reconhecidos ao mesmo
tempo em que a arte das HQs era elevada a um patamar de valor desconsiderado até
então, cujos méritos, repito, são em grande parte graças aos fanzines e aos intercâmbios
dos autores daquele período.

Atualmente algo similar ocorre na valorização dos fanzines, que vêm sendo cada
vez mais estudados e utilizados21, assim como foram os quadrinhos, e coincidentemente,
muitos dos autores em ambas as áreas que pertencem a este métier artístico duplo (tanto
autores de quadrinhos como autores de fanzines), igualmente pesquisadores, acabam
por auxiliar na valorização de ambas as artes.

Todavia, ressalto que na área dos quadrinhos e zines poéticos, na qual me “enqua-

21 Pois eu mesmo ora realizo estudos de pós-doutoramento dos zines como arte, os arte-zines, na Fa-
culdade de Artes Visuais da UFG.

210
dro”, os que mais representam trabalhos autobiográficos são estes atinentes a esta linha
temática “autopoética”, ou seja, uma linha que se criou inadvertidamente e se mantém
como processo autoral, conforme exemplifiquei com algumas de minhas artes.

Assim, aqui apresentei esse binômio, como autor dos fanzines e HQs em uma re-
lação à temática autobiográfica, como potencial artístico humano cuja importância ao
desenvolvimento social, cultural, etnográfico e principalmente de autoconhecimento
transparecem, no caso, em minhas obras apresentadas nos quadrinhos e fanzines artís-
ticos, (auto)poéticos e igualmente biográficos, pois que refletem meu ser e meus conhe-
cimentos e todo meu histórico como “personagem” que viveu uma infância e juventude
à revelia do “padrão (trabalhava num restaurante e não vivia uma vida familiar caseira),
desenhava sem parar dinossauros e super-seres, e (quase) sempre teve seus trabalhos
artísticos publicados paratopicamente, ou seja, não oficialmente, nos fanzines que são
considerados à margem da oficialidade. Também refleti uma busca de valorização nos
quadrinhos – que eram desconsiderados na sociedade e nas escolas - pois quando fui
aluno escolar, muito me aborrecia ficar “preso” na sala de aula, contando os minutos para
poder sair do jugo diário e estar no restaurante ou em casa22 com meus gibis e meus de-
senhos e músicas. Meu percurso, assim, tem me levado a uma certa rebeldia ao sistema:
no mestrado desenvolvi uma dissertação para auxiliar o valor aos quadrinhos, bem como
no doutorado (e desta vez, a que eles fossem aceitos, compreendidos e utilizados na uni-
versidade). Agora, no pós-doutoramento, enfatizo os “marginais” e paratópicos fanzines
(e os de arte) a serem estudados e valorizados como partes integrantes do ser-humano
que, como Morin (2000) afirma, não é só físico e racional, mas também biológico, psíqui-
co, cultural, social e histórico, lúdico e imaginário tornando-se totalmente desintegrado
na educação devido às tomizações disciplinares. E para arrematar, minha arte não é pa-
dronizada e muitos fãs de HQs desdenham-na por ser poética, mais uma vez sinalizando
meu processo interno fora do sistema padronizado, no caso, dos quadrinhos mainstream,
além de que eu publico em fanzines, que não estão no sistema oficial. E é nesse percurso
que intento reforçar e ampliar a importância (ainda um tanto desconhecida no âmbito
acadêmico e educacional, principalmente universitário) do potencial artístico dos cha-

22 Dos 8 aos 14 anos, havia o restaurante, dos 15 aos 17, ele foi vendido e pudemos permanecer no
apartamento, como eu sempre queria.

211
mados fanzines, que inclusive não têm a obrigatoriedade de venda, de lucro, nem de as-
siduidade ou de formato-padrão, além de suas possibilidades “mutacionais” para as artes
e seu plenipotencial criativo-educativo interdisciplinar que pode até alterar o estatuto
mental de quem se inicia a elaborá-lo manual e fisicamente (pois além de não visar lucro,
não se presta a pensar em concorrência, mas sim em troca e fraternidade). Como tem sido
comigo!

AUTO-BIO-CONSIDERAÇÕES

As HQs e Zines no Brasil são de suma importância à vida artística de amadores e/


ou profissionais de ambas as artes. Ambos, inclusive, como quaisquer outras mídias ar-
tísticas, detêm um caráter (auto)biográfico, inerente principalmente quando afeitos às
poéticas.

Em tais HQs e zines, muito do que são suas derivações poéticas são reflexões de
seus autores, como autobiografias no sentido de externar uma liberdade criativa, um ar-
rojo e um desligamento do status quo “comercial” (os zines não visam lucro), e tal noção é
reflexo da própria necessidade interna do autor de se externar, expressar suas tônicas vi-
tais e sua liberdade de alma, que num sistema competitivo e “oficial” regula e limita tudo.

Meu processo autopoético vem de um longo percurso de uma liberdade autônoma


sem cerceamento no sistema oficial, mas paratópico, pois é interessante lembrar que,
mesmo eu, vindo de ascendência árabe, optei por uma profissão das artes, insurgindo-
-me contra um padrão requerido geralmente pelas famílias árabes, em que seus filhos se
tornam médicos, engenheiros ou advogados, visando uma vida adulta estável financeira
– contrário ao que se percebe com relação a outras profissões como as de arte, de quadri-
nhos e congêneres – além do que, a área dos fanzines nem profissão regulamentada tem,
sendo uma espécie de “hobby”.

Assim, todas as angústias e reflexões sobre a vida, aliadas a uma busca de conhe-
cimento na área das artes devido à minha formação, além das leituras paralelas de fc e

212
filosofias orientais com reflexão acerca do espírito humano, vêm se refletindo em meus
zines e HQs poéticos, cuja influência também vem dos quadrinhos europeus. Além dis-
so, venho desenvolvendo estudos sobre tais artes, realizando um mestrado, doutorado e
agora cursando um pós-doutoramento, sempre acerca destas linguagens e do métier em
que estou, nas Histórias em Quadrinhos autorais artísticas e nos fanzines autorais de arte,
reflexos de meu ser autobiográfico intuído e vertido nelas23!

23 Tem mais no meu blog: https://www.youtube.com/watch?v=7ZwFOahEOTg&lc=UgxAGVnbYYL-


bWIeW9z14AaABAg&feature=em-comments e aqui podem ser vistos e lidos artezines meus: https://issuu.
com/gazyandraus/docs/projeto-3d-imagens-volii-ppoint_sequencia e https://issuu.com/gazyandraus/docs/
projeto-3d-imagens-volii-ppoint_sequencia

213
REFERÊNCIAS

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Fantasia, 2019. Disponível em: https://www.marcadefantasia.com/livros/quiosque/be-
las-artes-hq/belas-artes-hq.pdf

ANDRAUS, Gazy. As Histórias em Quadrinhos como informação imagética integra-


da ao ensino universitário. Tese de doutorado. USP: São Paulo, 2006. Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/tde-13112008-182154/

ANDRAUS, Gazy; SANTOS NETO, Elydio dos. Dos Zines aos BiograficZines: compartilhar
narrativas de vida e formação com imagens, criatividade e autoria. In MUNIZ, Cellina
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2010.

BATEY, Jackie. Art-Zines, The Self-Publishing Revolution: The Zineopolis Art-Zine Col-
lection. Publishing_Revolution_The_Zineopolis_Art-Zine_Collection. 2014. Disponível
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Técnica: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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A balada do Mar salgado. Lisboa: Meribérica/Líber: 1998.

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Quadrinhos no Brasil- teoria e prática. São Paulo: UNESP/PROEX, 1997, 51-65.

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NEGRESIOLO, Letícia. Como o mimeógrafo influenciou movimentos culturais. Galileu.


08/08/16. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Caminhos-para-o-futuro/De-
senvolvimento/noticia/2016/08/ha-140-anos-thomas-edison recebiapatente- do-mime-
ografo.html. Acesso em 22/05/2019.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Brasília/São Paulo:


Unesco/Cortez editora, 2000.

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olhar brasileiro.” In Visualidades – Revista do Programa de Mestrado em Arte e Cultura
Visual da FAV/UFG, Vol. 7 n. 1, Jan/Jun 2009. Goiânia, GO: UFG, FAV, 2009, p.68-95. Dispo-
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adx.28.2.27949520> e <http://www.journals.uchicago.edu/doi/pdfplus/10.1086/
adx.28.2.27949520> (link direto) Acesso em: 18/04/2019.

ZAVAM, Aurea Suely. Fanzine: A Plurivalência Paratópica.  Revista Linguagem em (Dis)


curso. v. 5, n. 1, jul./dez., 2004. < http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/
Linguagem_Discurso/article/view/319/341 > Acesso em 2005.

215
A REPRESENTAÇÃO BIOGRAFICA DE D. PEDRO I NO MONUMENTO
LIVRO AÇO DOS HERÓIS E HEROÍNAS DA PÁTRIA

Dâmata Caroline M. Gundim Alves1


Eliézer Cardoso de Oliveira2

Introdução

Na História de vários países há personagens importantes e que se destacaram por


algum motivo. Temos por exemplo Thomas Jefferson e Benjamin Franklin, na História
dos Estados Unidos, Simon Bolívar na América Latina, Napoleão Bonaparte na história da
França, entre outros. Eles devido as suas ações em determinado período ficaram marca-
dos na história de seu país. Na História do Brasil temos diversos personagens ilustres que
tiveram papel principal em determinado momento. E um desses personagens e que tem
destaque neste trabalho é D. Pedro I. Tomamos ô aqui por protagonista.

A vida do Imperador foi retratada por diferentes autores e em diferentes épocas. Em


algumas biografias ele é retratado em tom mais sério, onde ressaltam sua vida política,
já outras abordam mais sua vida privada dando enfoque a suas aventuras românticas. O
fato é que se consolidou duas imagens diferentes, na memória do povo brasileiro sobre
D. Pedro I. Segundo Pierre de Nora não há memória espontânea é preciso realizar algo, ou
que se veja algo que ative a memória, pois essa não é natural (1993, p.13).

1 Aluna do 7º período do curso de História da Universidade Estadual de Goiás. E-mail: damata.2698@


gmail.com

2 Orientador deste trabalho. Docente do curso de História da Universidade Estadual de Goiás, Doutor
em Sociologia pela Universidade de Brasília. E-mail: ezi@uol.com.br

ALVES, Dâmata Caroline M. Gundim; OLIVEIRA, Eliézer Cardoso de. A representação biográfica de D. Pedro I
no monumento Livro Aço dos Heróis e Heroínas da Pátria, In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM
- GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia:
Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 216-226.
O príncipe regente está eternizado na História do Brasil, em livros, na dramaturgia,
na teledramaturgia e em outros meios, o nome dele e uma breve biografia foi inscrita
em um monumento, o Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Monumento esse que tem o
objetivo de deixar registrado de forma perpetua o nome de D. Pedro I e outros heróis. O
livro de Aço foi projetado para que mesmo se houver uma catástrofe ele resista, fazendo
com que não se esqueça. Trazendo à memória das pessoas, aquelas figuras importantes
cujo o nome foi registrado ali.

O nome de D. Pedro I está inscrito no Livro de Aço, o que lhe concede o título de
herói nacional. Com a inscrição de seu nome no livro destaca-se sua imagem de Impera-
dor, formador da nação brasileira. Mas em contrapartida a essa imagem, tem-se a de um
Imperador bon vivant e galanteador, memória essa que é reforçada entre outros meios,
pelas suas representações na teledramaturgia. Neste trabalho elucidaremos essa contra-
posição que há entre as duas imagens de Dom Pedro.

A vida de D. Pedro I

Pedro de Alcântara nasceu em 1798, no Palácio Real de Queluz em Portugal, filho


de Dom João VI de Portugal e da Carlota Joaquina da Espanha. Viveu seus primeiros anos
em Portugal, recebera uma educação moderada, onde aprendera matemática, geografia,
história, latim, francês, música e outros. Quando aos seus nove anos de idade embarca
para o Brasil juntamente com sua família fugidos, pois seu pai soubera que Napoleão Bo-
naparte o havia destituído e que este invadiria Portugal. Durante a viagem D. Pedro leu
Eneida de Virgílio, passeava pela embarcação e aprendia a arte da navegação.

A educação de Pedro Alcântara foi “desenvolvida lentamente de forma irregular, o que,


certamente, acarretou os frágeis resultados da formação do Imperador” (SANTOS, 2003, p.38).
Em sua juventude, além de se ocupar com os estudos, gostava de atividades ao ar livre como
caçar e cavalgar. Andava pelas ruas do Rio de Janeiro e o seu tratamento para com as pessoas
era de igual para igual, possuía amigos de classes sociais diferentes e os tratava sem distinção,
e ao se relacionar com as senhoritas não utilizava-se da formalidade que lhe era exigida.

217
O primeiro relacionamento amoroso de Pedro de Alcântara foi com Noemi Thier-
ry, uma francesa, tiveram uma filha, mas esta não sobreviveu. D. Pedro se envolveu com
várias outras mulheres, o que lhe rendeu a fama de mulherengo, os filhos que teve com
diferentes amantes foram reconhecidos em seu testamento. Casou-se com D. Leopoldina
Josefa Carolina de Habsburgo-Lorena, filha do Imperador Francisco I da Áustria e da Prin-
cesa Maria Tereza da Sicília. Tiveram cinco filhos, dos quais o caçula Pedro de Alcântara,
posteriormente tornou-se D. Pedro II, Imperador do Brasil.

O casamento entre D. Leopoldina e D. Pedro foi arranjado, nas cartas enviadas pela
agora princesa do Brasil à Família, o casamento no início era feliz, com a morte de D. João
VI, a princesa deu bastante apoio a seu marido, tornou-se amiga de José Bonifácio e ambos:

Participaram ativamente da emancipação política do Brasil junto com D. Pedro e viam


o Brasil como uma unidade intrínseca, em relação a Portugal. Ela atuou ajudando e
corrigindo os caminhos políticos de D. Pedro. Influiu na mudança de comportamento
do Imperador, moldando, aconselhando e ensinando-lhe as verdadeiras funções. Era a
Imperatriz um exemplo de comportamento (SANTOS, 2003, p. 40).

Dona Leopoldina sofreu várias traições por parte de seu marido, o caso de D. Pedro
com a Marquesa de Santos Domitila de Castro, afetou bastante o casamento, a vida da
princesa e também o final do Primeiro Reinado. D. Leopoldina faleceu em dezembro de
1826 devido a desgostos e outros fatores. Posteriormente D. Pedro casou-se novamente
com Amélia Auguste Eugenie Napoleona von Leuchtenberg com a qual permaneceu até
sua morte em 1834, no Castelo Real de Queluz, em Portugal, vítima de tuberculose.

Em 1820 ocorre em Portugal a Revolução do Porto, que possuía entre seus obje-
tivos, “fazer retornar à metrópole o Rei e a legião de cortesãos e burocratas e acelerar,
assim, o processo de recolonização” (TEIXEIRA, 2000, p. 128). Conseguiram que D. João VI
voltasse para Portugal, e que jurasse fidelidade a Constituição Portuguesa, mas este deixa
seu filho D. Pedro no Brasil como regente. E então as pressões exercidas pela burguesia
portuguesa que antes convergiam sobre D. João VI, agora estão sobre o príncipe regente
D Pedro.

O governo de Lisboa exigia que D. Pedro voltasse para Portugal, mas no Rio de Ja-

218
neiro a população, através das lideranças políticas recolheram mensagens e manifestos
com milhares de assinaturas pedindo a permanência do regente. Diante disso no dia 9 de
Janeiro de 1822, o príncipe regente decide-se por ficar no Brasil tornando esse dia conhe-
cido como o “Dia do Fico” e /ou “O Fico”. Desde então o governante do Brasil teve que agir,
pois nesse momento acirrava-se ainda mais o conflito entre portugueses e brasileiros.

Segundo Francisco Teixeira, o Fico foi uma estratégia de D. Pedro, este ao tomar
suas decisões agradava a ambos os partidos os moderados e os radicais. José Bonifácio
de Andrada e Silva, era ministro no governo de D. Pedro, pertencia ao partido moderador
e buscava acalmar os movimentos separatistas e a radicalização das posições dos políti-
cos e influentes da época. Mas controlar esses movimentos estava cada vez mais difícil,
ao longo de 1822, medidas são tomadas pelo governo para evitar que Portugal recoloni-
zasse o Brasil.

O período era conturbado e exigia que D. Pedro tomasse atitudes certas, ele a prin-
cípio devido as suas atitudes de jovem não repassava muita credibilidade, mas surpre-
endeu em sua estreia política. Em julho de 1822 o Regente assina o Manifesto às Nações
Amigas, onde declarava-se a “Independência do Brasil como reino-irmão de Portugal”
(TEIXEIRA, 2000, p.131) com esse manifesto também ele afastava as ameaças e exigências
da Corte Portuguesa.

Mas ainda assim as Cortes continuavam insatisfeitas, queriam a volta do príncipe


regente para Portugal e criticavam os privilégios (do ponto de vista das Cortes) dados ao
Brasil. D. Pedro estava em viagem a São Paulo para inspeção militar e articulação política
então D. Leopoldina convocou uma Sessão Extraordinária que ficou decidido pela Inde-
pendência do Brasil. Uma carta portando as petições, queixas das Cortes portuguesas e
a decisão da Sessão Extraordinária foi enviada a D. Pedro em São Paulo. Então tem-se a
decisão final.

O príncipe regente D. Pedro declara a Independência do Brasil no dia 07 de setem-


bro de 1822. Segundo a história mais convencional e mais contada D. Pedro teria rece-
bido a carta enquanto estava viajando e então as margens do Rio Ipiranga, ele pega sua
espada a aponta em direção ao céu e brada “Independência ou Morte”. Este grito ficou
eternizado e a provável cena da Proclamação foi criada por vários artistas de diversas for-

219
mas. O Brasil torna-se um país, livre de Portugal e D. Pedro o primeiro imperador.

D. Pedro I com toda certeza será lembrado pela História, mas ele também será lem-
brado por outros meios e um desses meios é através dos monumentos. Que na maio-
ria das vezes passa despercebido aos olhos, mas estão ali, presentes no cotidiano das
pessoas. Alguns monumentos estão dentro de museus, igrejas, palácios e/ou ar livre, em
praças. Mas no caso do monumento que traz o nome de D. Pedro inscrito em si está loca-
lizado em um Panteão.

Feito em aço o Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria leva em si, inscrito, o nome de
personagens históricos importantes para a História do Brasil. O Livro de Aço faz parte da
exposição permanente do Panteão da Liberdade e Democracia -Memorial Tancredo Ne-
ves, que juntamente com outros museus e elementos, compõe o Centro Cultural dos Três
Poderes, em Brasília –DF.

Projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, o prédio lembra o formato de uma pom-
ba o que simboliza a liberdade e a democracia. Em seu interior fazendo parte da expo-
sição fixa, encontra-se o Mural da Liberdade de Athos Bulcão, o Painel da Inconfidência
Mineira de João Câmara Filho, o busto do almirante Joaquim Marques Lisboa, uma parte
dedicada a Tancredo Neves e claro o Livro de Aço. Compondo a estrutura do prédio e
fazendo parte da exposição, tem-se um vitral no formato do mapa do Brasil idealizado e
feito pela artista Mariane Peretti.

Na parte de fora do Panteão, na frente, há o busto do Joaquim José da Silva Xavier,


O Tiradentes, considerado Herói pela República Brasileira, ao lado a Pira da Pátria que
permanece acesa 24 horas, e simboliza a democracia, inaugurada em 1987 pelo então
Presidente José Sarney. Todos os elementos que fazem parte do museu de alguma forma
remete a Democracia, a Pátria e homenageia aqueles que se dedicaram de alguma forma
a formação do país.

O Panteão da Pátria foi inaugurado em 7 de setembro de 1986, em uma data sig-


nificativa para o Brasil. Mas a ideia de se construir um Panteão é anterior, data do ano de
1891, após a Proclamação da República.

220
A criação de um panteão em reconhecimento aos heróis brasileiros, defendida desde
1891 e concretizada quase um século depois, em pleno processo de redemocratiza-
ção, trouxe para o coração da República a lembrança eterna de personagens funda-
mentais para a consolidação da nação que conhecemos e amamos, inscrevendo de
maneira indelével na história suas contribuições para a Pátria brasileira. (Câmara dos
Deputados. Série cadernos do Museu nº10, 2010, p.7)

Para ter o nome inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria é preciso que a
Câmara dos Deputados e o Senado aprovem uma lei com o pedido de inscrição do nome
no livro e que o personagem cujo nome será inscrito, se encaixe em uma série de critérios
que estão dispostos no Projeto de Lei n. 2.022-A/2003. Veja os critérios abaixo:

I - tenham demonstrado especial dedicação:


a) à defesa da Pátria,
b) à integração nacional ou
c) à construção da identidade nacional.
II - tenham-se distinguido por excepcional contribuição:
a) ao processo de formação do povo brasileiro,
b) ao desenvolvimento econômico, social, político e cultural do País ou,
c) à constituição do Estado democrático de direito. (TEIXEIRA, Raquel. Projeto de Lei
n. 2.022-A/2003)

O nome de Dom Pedro I foi inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria através
da Lei N. 9.828 de 30 de agosto de 1999, pelo bicentenário do seu nascimento. Tornando-
-se assim o quarto nome a ser inscrito no Livro de aço, que tem entre suas finalidades o
registro perpetuo dessas personalidades.

Figura. 1 – Livro de Aço dos Heróis da Pátria

Fonte: http://odiarioimperial.blogspot.com/2017/04/os-dez-herois-do-livro-dos-herois-da.html

221
A inserção de Dom Pedro I no Livro de Aço significa que ele é considerado um “herói
alto”, um herói nacional, conforme a definição de Flávio Kothe (2000, p. 55): “há persona-
gens da história de um povo que personificam a “alma” desse povo segundo a ideologia
que num certo momento seja a dominante”. Essa definição é muito interessante pois não
vê o herói de modo absoluto, mas dependente de escolhas ideológicas.

No caso de Dom Pedro, isso é muito evidente, dada a recepção controversa da sua
personalidade nos meios políticos e historiográficos. A personagem marcial, segurando
um cetro, vestido e próximo aos símbolos de poder do Império, como no quadro de Pe-
dro Américo (1879) é o que se pretende preservar na memória nacional, como um dos
grandes heróis nacionais, o que o levou a ser o quarto indivíduo a ser inserido no Livro
de Aço.

Figura 2 – Imperador Dom Pedro I. Pintura de Pedro Américo, 1879. Acervo do Museu

Fonte: https://www.reddit.com/r/brasil/comments/9dv4df/imperador_dom_pedro_i_pintura_de_pe-
dro_am%C3%A9rico/

Contudo essa imagem entra em conflito com outras representações do Imperador. A


primeira delas é a da Abdicação do trono, em 1831, ocorrida após muitos protestos popu-

222
lares e que colocou dúvidas sobre a legitimidade do patriotismo de Pedro I. Nesse sentido

Segundo o julgamento pouco sereno da época, o Imperador continuava, a despeito


do sete de setembro, mais português do que brasileiro. Porque, embora abdicando o
trono de Portugal, não se desinteressava por completo das negociações do velho Rei-
no. Não era fácil convencer os patriotas em delírio que sua intervenção em tais casos
se dava como pai de uma rainha indefesa e por um amor próprio ferido (Otávio Tarquí-
nio apud Santos, 2003, p. 14).

Mais desgastante para a imagem de Pedro I, mais até do que a dúvida sobre sua leal-
dade à Pátria, foi a recepção popular dos seus vários relacionamentos amorosos. Um livro
didático de história, destinado aos alunos do Ensino Fundamental, assim descreve a ima-
gem do Imperador: “Sua imagem pessoal também não era das melhores. Não passava por
um bom chefe de família. Era casado com D. Leopoldina, mas costumava namorar outras
mulheres. O seu caso mais famoso foi com a marquesa de Santos”. (FERREIRA 1997: 75)

Essa imagem de “mulherengo” acabou sobrepujando a de um grande general ou es-


tadista, principalmente por causa da minissérie O Quinto dos Infernos, exibida no ano de
2002, que solidificou no imaginário nacional a sexualidade insaciável do Imperador. A prova
disso é a caricatura do ilustrador Ricardo Ferré que ressalta essa particularidade biográfica:

Figura 3 – Caricatura de Pedro I por Ricardo Ferré

Fonte: http://estudioferre.blogspot.com/2012/03/revista-selecoes_28.html

223
O livro de Paulo Setúbal As Maluquices do Imperador, também evidência essa ima-
gem de D. Pedro, como se pode observar no trecho a seguir: “O príncipe foi sempre, em
toda a sua existência, um louco por mulheres. Foi o seu fraco. O traço culminante do seu
caráter. D. Pedro amou furiosamente na vida. Amou quando príncipe. Amou quando im-
perador. Amou quando rei no exílio” (1927, p.24).

Para além dessas duas imagens consolidadas, tem-se a de um imperador que não
se dedicou muito aos estudos, “trocava rapidamente o caderno e a caneta pela corda e o
cabrestante, dado que era-lhe familiar o trato com os cavalos” (MACAULAY. Apud Santos,
2003, p.37). Tinha-se um D. Pedro que gostava bastante de caçar e cavalgar, que tratava
as pessoas que lhe cercavam sem os protocolos que lhe era exigido e mesmo as pessoas
de classes inferiores a sua, tratava de igual para igual.

Enfim, a presença de Dom Pedro I no Livro de Aço dos Heróis da Pátria intenciona
criar uma memória que transforma o primeiro Imperador do Brasil num herói alto da vida
política brasileira. Contudo, tão durável como o que foi escrito nas páginas de aço do livro
são outras particularidades biográficas que questiona a legitimidade do seu heroísmo
pátrio ou que o vê como um personagem caricaturesco de baixo.

Considerações Finais

O primeiro imperador do Brasil teve seu nome inscrito no Livro dos Heróis e Heroí-
nas da Pátria, o que lhe concedeu o título de herói nacional e seu nome ficou registrado
de forma perpetua. Com a inscrição de seu nome no Livro de Aço a memória que se pre-
tende perpetuar é a de um Imperador, símbolo de poder, formador da nação brasileira.
Mas em oposição a essa imagem (memória) de Imperador poderoso, há outra que tam-
bém se solidificou no imaginário das pessoas.

Essa outra memória sobre D. Pedro é ressaltada primeiramente pelo questionamen-


to sobre o seu patriotismo, pois mesmo depois da proclamação da independência do
Brasil e abdicação do trono português, ele procurava saber como andava as negociações

224
de Portugal e depois em 1831, abdicou do trono brasileiro para lutar por sua filha, para
esta assumir o trono Português.

Outras representações de D. Pedro como na minissérie O Quinto dos Infernos de


2002, a caricatura da figura 3 e outros, ressalta sua imagem de mulherengo, que sede as
vontades de suas amantes, que possui desejo insaciável, um “herói baixo”. Mais recen-
temente no ano de 2017 a novela Novo Mundo, traz novamente o imperador brasileiro
como um de seus personagens. Interpretado pelo ator Caio Castro a novela traz um D.
Pedro que se envolve com várias mulheres, realiza os pedidos das amantes e que não
consegue tomar as decisões do império sozinho, necessitando muito do apoio de sua
esposa D. Leopoldina e do Primeiro Ministro José Bonifácio.

O que se pode notar é que a imagem mais difundida e que permanece na memó-
ria do povo brasileiro sobre D. Pedro I, até a contemporaneidade é essa imagem de um
mulherengo dionisíaco, sobrepujando a outra de herói nacional fundador da nação bra-
sileira. Mas não se pode esquecer que como o Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, é um
monumento, e tende a trazer à lembrança do indivíduo algo, que no caso é a imagem de
Dom Pedro I fundador da nação brasileira. Pois lembrar as pessoas de alguém ou algum
fato que ocorreu é uma das funções que os monumentos possuem.

225
REFERÊNCIAS

CÂMARA DOS DEPUTADOS. A construção da memória nacional: os heróis no Pan-


teão da Pátria. Serie Cadernos do museu, n. 10, edições Câmara. Brasília. 2010.

FERREIRA, José Roberto Martins. História:7a série/Martins. São Paulo: FTD, 1997

KOTHE, Flávio R. O herói. São Paulo: Ática, 2000.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: História e
Cultura. Projeto História (Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História do
Departamento de História da PUC-SP), São Paulo, n. 10, dez. 1993.

SANTOS, Poliene Soares. D. Pedro de Bragança: entre o Império e o Reino. Dissertação


(Mestrado em História), UFG, 2002. Disponível em: https://files.cercomp.ufg.br/weby/
up/113/o/SANTOS__Poliene_Soares_dos.pdf

SENADO FEDERAL. Projeto de Lei n. 2,022-A/2003.

SETÚBAL, Paulo. As Maluquices do Imperador. 1927. Disponível em: http://www.domi-


niopublico.gov.br/download/texto/bi00191a.pdf.

SILVA, Verônica Bemvenuto de Abreu. Exposição de longa duração do Panteão da


Pátria, Brasília: sua relação com o público. Brasília, 2015.

TEIXEIRA, Francisco M. P. História Concisa do Brasil. São Paulo: Global, 2000. p.117-133

226
CÂNONES MITOBIOGRÁFICOS
NARRATIVAS DA TRAGÉDIA DA PIEDADE E AS MUITAS FACES
DE EUCLIDES DA CUNHA.

Anna Paula Teixeira Daher1

Euclides da Cunha2 é um intelectual reconhecido, tido como um dos grandes intér-


pretes do Brasil especialmente em razão de sua emblemática obra Os Sertões. Se a sua
vida foi repleta de momentos que nos soam grandiosos, como fazer parte do grupo que
tornou o Brasil republicano; ser enviado para cobrir a Guerra de Canudos; participar de
expedições Amazônia afora3, a sua morte não foi diferente - grandiosa na tragédia e nos
seus ecos. Cunha foi morto em 15 de agosto de 1909, alvejado pela arma de Dilermando
de Assis (1888-1951), amante da esposa de Euclides, Ana Emília4 (1872-1951). O fato pas-
sou à história como “A Tragédia da Piedade” e Euclides passou aos anais da literatura e da
história brasileira como um homem muito além dos outros homens.

Acerca não só da história de Euclides, mas também da própria Tragédia da Piedade,

1 Doutoranda no Programa de Pós Graduação em História da UFG. Membro do Grupo de Estudos


de História e Imagem da UFG e da Rede de Pesquisa em História e Culturas no Mundo Contemporâneo da
Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail: aptd78@gmail.com

2 Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha, engenheiro militar, jornalista, escritor, nasceu em Cantagalo,
RJ, em 20 de janeiro de 1866, e faleceu no Rio de Janeiro em 15 de agosto de 1909.

3 Euclides da Cunha foi apontado para fazer o levantamento cartográfico das cabeceiras do Rio Purus
pelo Barão de Rio Branco. A região era local de intensos conflitos entre caucheiros peruanos e seringueiros
brasileiros (RIBEIRO, 2006, p. 148).

4 A grafia do nome de Ana aparece algumas vezes, com apenas uma letra “n” e muitas vezes com
duas letras “n”. A opção pela grafia com apenas uma letra “n” se dá porque essa é a forma da documentação
oficial - como a certidão de casamento de Ana e Euclides, transcrita por Roberto Ventura (2003, p. 271). No
decorrer desse trabalho, quando a grafia é vertida com duas letras “n” trata-se de transcrição.

DAHER, Anna Paula Teixeira. Narrativas da Tragédia da Piedade e as muitas faces de Euclides da Cunha, In:
GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática
Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 228-240.
das inúmeras obras escritas, destaque-se Euclides da Cunha, esboço biográfico, de Ro-
berto Ventura (2003). Também parte dos livros que tratam do episódio em si, A tragédia
da Piedade, o grande drama da República, de Luiza Nagib Eluf (2009); Matar para não mor-
rer: a morte de Euclides da Cunha e a noite sem fim de Dilermando de Assis, de Mary Del
Priore (2009). Utiliza-se, de igual forma, de obras de cunho memorialístico que tratam
do triângulo amoroso. Águas de Amargura, o drama de Euclides da Cunha e Anna (1990),
depoimento de Joel Bicalho Tostes, casado com uma das netas de Euclides e Ana, Eliethe
(filha de Manoel Afonso), a Adelino Brandão e Anna de Assis, história de um trágico amor:
Euclides da Cunha, Anna e Dilermando de Assis (2ª ed. 2009), um depoimento de Judith de
Assis, filha de Ana e Dilermando a Jefferson de Andrade; além de O Pai (1998), de Dirce de
Assis, filha de Dilermando em seu segundo casamento. E, nessa mesma seara, de autoria
do próprio Dilermando de Assis, Tragédia da Piedade (1952) e Um Conselho de Guerra. A
morte do Aspirante da Marinha Euclydes da Cunha Filho (1916).

O que se busca em uma biografia? O que um historiador pretende ao explorar, mais


do que sólidas e visíveis construções de uma vida, os seus desvãos5? Se a vida é feita dos
grandes feitos e das pequenas coisas, e o que é importante para a história, o que fica?
Cumpre lembrar que não existe uma única história, haja vista que não existe uma úni-
ca verdade. Existem fatos, existem documentos, existem lembranças, tintas e pinceladas,
existem laudos, conflitos, morte, absolvição, redenção e a junção de todos esses fatos
torna possível uma visão de uma vida. Portanto, ao que dar importância, e por que dar
importância? A divisão tradicional dos gêneros literários abrange três itens: o gênero épi-
co/narrativo, o gênero lírico (poesia) e o gênero dramático (teatro). A biografia seria uma
espécie do gênero narrativo, assim como a tragédia, a comédia ou o drama são espécies
do gênero dramático, por exemplo. Trata-se a narração de um tipo. Por sua vez, romance,
conto, novela, fábula, parábola, apólogo, mito, lenda, caso, fofoca, notícia, ata, biogra-
fia são gêneros (TRAVAGLIA, 2007). Mas a biografia simplesmente como gênero literário,
aqui, não nos interessa. Mais importante é o papel da biografia como documento histó-
rico. Com efeito, a apropriação das biografias como documentos históricos não foi feita

5 Levillain (2003, p. 45) lembra que a biografia e a história se separam desde a historiografia grega,
quando a história era associada a uma narrativa da coletividade, enquanto à biografia se dava um sentido
de panegírico, de elogio e exaltação aos heróis.

229
sem críticas, embora atualmente não haja qualquer dúvida quanto à possibilidade de se
enfrentar uma biografia como um problema historiográfico.

A fim de recuperar a honra, Euclides envolve-se em uma tragédia que vai ser narra-
da de diferentes maneiras ao longo do tempo. No Rio de Janeiro dos primeiros anos do
séc. XX cabia à esposa ser fiel ao seu marido, a punição do adultério recaía essencialmente
sobre a figura da mulher, porque era dela a obrigação de guardar a honra6 da família, ou
seja, a respeitabilidade de Euclides dependia de Ana. A ele cabia o direito/dever de exigir
o bom comportamento da esposa. É como reverbera Mariza Corrêa (1983, p. 192), “o de-
ver mais enfatizado nesses casos tem sido o da fidelidade da mulher ao homem [...] sua
possível infidelidade absolvendo ou atenuando o ato agressivo cometido pelo acusado”.
E arremata: “esse dever da mulher corresponde a um direito do homem que pode, além
de exigir o seu cumprimento, punir o seu não cumprimento”. (CORRÊA, 1983, p. 192).

Euclides e Ana se casam em 1890 e logo começam a construir sua família: em 1891
Eudóxia nasce para viver poucos meses. Em 1892, mesmo ano em que Euclides conclui
o curso na Escola Superior de Guerra, é promovido a tenente e designado trabalhar na
Estrada de Ferro Central do Brasil, nasce Sólon. Em 1894, chega Euclydes Filho, o Quidi-
nho. Em 1897, Cunha, como correspondente d´O Estado de São Paulo, parte para o sertão
da Bahia a fim de cobrir o s conflitos em Canudos – lá ele chega com a quarta expedição
militar. No ano seguinte, atendendo às suas funções de engenheiro, muda-se com a fa-
mília para São José do Rio Pardo (SP) a fim de supervisar a montagem de uma ponte – e
também escreve grande parte do livro que o catapultaria à fama rapidamente, Os Sertões.
Em 1901 nasce o quarto filho de Ana e Euclides, Manoel Afonso, e em 1902 é publicado
Os Sertões, cuja primeira edição se esgota em cerca de dois meses.

Seu tempo de produção literária é curto, uma vez que morre ainda jovem, mas,
deixa uma produção que reflete sua formação científica - José Veríssimo aponta que o
escritor é “ao mesmo tempo um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um et-
nólogo, de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador e de

6 Segundo Halvor Moxnes (1993, p. 19-20), embora a noção de honra seja universal, a forma como ela
se apresenta varia entre culturas, por se tratar de uma construção social e, como tal, sua compreensão passa
pelo entendimento de contextos mais amplos, como o religioso, o social e o econômico.

230
um homem de sentimento, um poeta, um romancista” - (apud SOUZA, 2010, p. 38), seu
interesse pela natureza e a sua própria carreira de Engenheiro e Jornalista, que o levou
a Amazônia e a Canudos, por exemplo. A obra de Cunha, especialmente Os Sertões, é
basilar do estudo das ciências sociais no Brasil, segundo argumenta Florestan Fernandes
(1977, p. 35). E essa visão de um autor completo, com conhecimento em diversos cam-
pos, persevera. Quando se fala em Euclides dois pontos sempre se destacam: a extensão
e variedade do seu conhecimento, que resultou na produção de sua grande obra prima e
a tragédia da morte. E, cumpre apontar, essa visão do homem da ciência é reforçada pelo
próprio Euclides que, por exemplo, em seu discurso de posse na ABL, afirma ser escritor
por acidente, habituado a andar de terra a terra, “abreviando o espírito à contemplação
de fatos de ordem física adstrito às leis mais simples e gerais” (apud ABREU, 1988, p. 236).

Essa busca pela natureza, pela terra, o leva a aceitar participar da missão de reconhe-
cimento do Alto Purus (1904-05), a qual chefia após nomeação pelo Barão do Rio Branco.
Não sem prejuízo à sua saúde: além de contrair malária em Manaus, voltou a apresentar
sintomas de tuberculose na volta ao Rio de Janeiro em janeiro de 1906, quando encontra
Ana grávida de Dilermando – o menino, Mauro, que ele registra como seu, nasce no início
de julho desse mesmo ano, vive 7 dias e morre.Nesse mesmo período cheio de tantas
tensões familiares o escritor toma posse na ABL. No ano seguinte, 1907, Cunha publica
“Contrastes e Confrontos” e “Peru versus Bolívia” e registra o nascimento de Luís , mais
uma criança que não era sua biologicamente.Ao longo dos anos, vê-se que Euclides se
dedica muito à carreira, com uma força e fidelidade que não encontram par em nenhum
outro campo de sua vida. Ana sempre se queixou da falta de interesse do marido.

A vida de Euclides nos mostra o caminho até a Piedade. A forma como ele foi edu-
cado, as aspirações da sociedade na qual ele cresceu, as escolhas que precisou fazer para
sua formação e o sustento de sua família. São todas peças na construção do homem que
pegou uma arma emprestada sob a alegação de matar um cachorro raivoso, foi em busca
de sua honra perdida e acabou morto. As narrativas da vida de Euclides mostram que
ele era um homem de muitos conflitos, e que seus amigos e admiradores pareciam não
conseguir entender que um homem que enfrentasse tantas limitações no trato pessoal
pudesse ser o gênio reconhecido que ele era na vida pública, o nome influente da Repú-
blica, um exemplo. Um homem de tantos predicados estava fadado a ser bom pai, bom

231
marido, mas essa não foi a narrativa de Ana, nem a de Dilermando. A despeito dos admi-
radores, dos amigos e da própria imprensa.

Com efeito, nos dias e anos que se sucederam à Tragédia da Piedade, inúmeras vo-
zes se levantaram a favor de Euclides, construindo uma narrativa elogiosa, sempre ressal-
tando as qualidades do falecido, construindo a trajetória do herói e contribuindo para sua
mitificação. A Dilermando não coube a mesma sorte, ainda que a justiça o absolvesse do
ocorrido. Foi Monteiro Lobato (apud CIBELA, 1946), um declarado admirador de Euclides
da Cunha, uma das vozes dissonantes a defender Dilermando. Ao colocar-se no lugar de
Assis, Lobato entendeu que, diante do ocorrido, outra opção não lhe restara, “haverá uma
só criatura normal, dessas que olham Dilermando com horror, que, dentro do quadro
daquelas circunstâncias, não fizesse a mesmíssima coisa?” (apud CIBELA, 1946). Essa nar-
rativa em específico, apresentada pela filha de Ana e Dilermando à guisa de biografia da
mãe, apresenta luzes mais favoráveis tanto a Ana quanto a Dilermando e, embora tenha
o cuidado de sempre se referir a Euclides da Cunha de forma respeitosa, não lhe é parti-
cularmente favorável.

Dilermando, ainda que faceando o perigo de perder a própria vida, matara mais
que um grande nome da literatura, ele dera cabo também a um jornalista, um colega
apreciado de todos aqueles que, ainda que por dever do ofício, contariam para o mundo
os desdobramentos daquele dia fatídico. Note-se que além de ter matado um caro cole-
ga jornalista, Dilermando, um militar, matara um jornalista civil em meio ao turbilhão de
uma campanha civilista7.Não podemos divorciar de todos esses fatos a (não tão) pequena
questão: Dilermando dormira com a esposa de Euclides, mais que isso, mantivera uma
relação com ela por anos, ela engravidara, parira e Euclides registrara esses filhos como

7 É o que argumenta DEL PRIORE (2009, p. 104), “o caldo de amarguras contra o exército não ajuda-
va a situação de Dilermando. Neste quadro, um militar que matasse um civil, mesmo em legítima defesa,
não tinha a simpatia do público”. Campanha civilista foi expressão criada para designar a campanha de
Rui Barbosa nas eleições presidenciais de 1910. Quando, em 1908, o então presidente Afonso Pena (1906-
1909) indica o seu ministro da Fazenda, Davi Campista, como candidato à sua sucessão, não há consenso.
Ao contrário, diversas facções políticas entram em conflito, dividindo-se em dois grandes grupos liderados
pelo Partido Republicano Paulista (PRP) e pelo Partido Republicano Mineiro (PRM). Foi então lançada a
candidatura do marechal Hermes da Fonseca, ministro da Guerra de Afonso Pena e, mais uma vez, não
houve consenso. O PRM apoiou Hermes, mas o PRP não, indicando o nome de Rui Barbosa para concorrer
à Presidência. Era o embate entre a República da Espada e a República dos Bacharéis, e a espada venceu
(Conforme informações disponíveis em https://cpdoc.fgv.br/, acesso em 20 dez 2019).

232
seus. Dilermando teria o direito de se defender dos próprios pecados? Teria o direito de
salvar o próprio sangue quando a ele cabia lavar a honra enxovalhada de um homem sem
par? A justiça pode até ter dito que sim, mas, com o resto do mundo, não foi tão simples
assim.

Nos dias que se seguiram à morte de Cunha, os principais veículos de imprensa


continuaram na cobertura do acontecimento, as investigações, a recuperação de Diler-
mando, internado no Hospital Central do Exército. Desde então vê-se a construção de
uma cuidadosa narrativa que levava o nome de Euclides aos céus e o de Dilermando aos
mais baixos círculos do inferno. Ademais, como bem lembrou o próprio defensor de Assis
em juízo, Evaristo de Moraes, como sustentar que Euclides sequer desconfiasse da trai-
ção da esposa, quando ele passa mais de um ano fora e, ao retornar ao lar, em seis meses
ela dá a luz um bebê de uma gravidez a termo? Mas não se vê esse tipo de ponderação
pela imprensa.

É importante trazer a baila algumas características da sociedade brasileira do fin du


siècle, que valorizava a aparência (BORELLI, 1999, p. 45), buscava a moralização e a higie-
nização da população. Pretendia-se construir uma ideologia positiva do trabalho, e a ideia
contava com veemente apoio do Poder Judiciário, como se infere das reformulações in-
troduzidas pelo Código Criminal de 1890. Referido Código normatizou o comportamento
sexual em seu Título VIII, “Dos Crimes Contra a Segurança da Honra e da Honestidade das
Famílias e do Ultraje Público ao Pudor”, tratando dos crimes de defloramento, estupro e
adultério, entre outros.

O art. 279 do Código Penal de 1890 previa que a mulher que cometesse adultério
seria punida com um a três anos de prisão. O homem, por sua vez, só incorreria nessa pena
se tivesse concubina teúda e manteúda. O tratamento desigual entre os sexos, comum na
sociedade, repetia-se na lei, uma vez que o adultério feminino era punido a partir apenas
do simples fato de ter acontecido, enquanto que o masculino tinha requisitos para se ca-
racterizar. Jurista do final do séc. XIX, Francisco José Viveiros de Castro argumentava que
a legislação criminal assumia papel civilizatório, incutindo no homem a responsabilidade
pelos seus atos e o respeito à honra da mulher, em uma “vitória das idéias morais sobre a
brutalidade dos instintos” (CASTRO apud MARTINS JUNIOR, 2005, p. 2).

233
Nos primeiros momentos após a morte de Euclides, Dilermando insistiu no discur-
so que a relação entre ele e Ana era como a de uma mãe e um filho. Ao depor, procurou
protegê-la, afirmando que ela não estava na casa da Estrada Real, no dia dos fatos, que
no momento dos tiros aproximava-se da casa com os filhos Sólon e Luis (GALVÃO, 2009).
Quando Ana foi ouvida pelo Delegado de Polícia no dia seguinte à morte de Euclides
(GALVÃO, 2009, p. 66-68) declarou que atribuía a morte do marido aos ciúmes infundados
que este sentia de Dilermando. E sem razão porque “as suas relações com os moços Di-
lermando e Dinorah foram sempre de proteção e carinho maternal”. Contudo, na mesma
data, em nova declaração à polícia, Ana muda sua versão, alegando querer “levantar a
memória de seu marido” (GALVÃO, 2009, p. 77) e declara que embora sempre tenha reco-
nhecido a grandeza de seu caráter e sua honradez, o comportamento ciumento dele lhe
fora muito difícil e, ao longo do tempo, despertou nela sentimentos que lhe eram estra-
nhos e, conhecendo Dilermando nessas circunstâncias, desenvolveu por ele sentimen-
tos de afeição e carinho, a princípio com inocência, porque ele lhe dispensava o mesmo
tratamento, mas que o passar do tempo estreitou esses sentimentos, culminando com o
desejo de se separar de Euclides, situação que Ana declarou, ainda diante da autoridade
policial, ter informado a Dilermando justamente no calor dos acontecimentos que culmi-
naram com a sua viuvez (GALVÃO, 2009, p. 77).

Quando Ana muda a versão de seu depoimento, com o argumento que preten-
dia contar a verdade para que não restasse a impressão que Euclides agira desprovido
de motivo. Os jornalistas aprovaram a dignidade da atitude da viúva, que passou a ser
descrita como vítima de uma paixão doentia e exploração por um homem mais jovem,
que dela se aproveitou inclusive financeiramente. Dilermando, em A Tragédia da Piedade,
lembrou que “não se tratava de uma ingênua donzela, inexperiente e mal encaminhada,
a que me tivesse imposto pela artimanha e pelas lábias” (ASSIS, 1951, p. 319).

Dilermando conta ele mesmo sua versão do que ele chama de “erro dos 17 anos”.
Discorre sobre uma intimidade nascida da convivência eivada de falta de malícia:

E assim, nessa ebriez incontível, imperceptivelmente se consumou o meu crime. Por-


que é só onde vejo a transgressão à lei: no ter amado, aos 17 anos, uma mulher casada
cujo marido não conhecia e se achava ausente, em paragens longínquas, sem ser lem-

brado sequer por inanimada fotografia. (ASSIS, 1951).

234
Euclides, morto e enterrado, tinha sua memória cuidadosamente defendida por
amigos e colegas. Regina Abreu observa que os jornais destacavam “sua competência,
sua honestidade, seu profissionalismo, seu talento, seu caráter, e suas qualidades artís-
ticas e intelectuais” (ABREU, 1998, p. 280 e ss). Na verdade, diz a pesquisadora, logo, as
narrativas subiram alguns degraus e Euclides passou a ganhar os contornos de deidade
que o acompanham até hoje: um homem com “esforço de vontade quase sobre humano”,
um homem que entrou “triunfante na glória dos grandes escritores”, um homem que re-
alizou “uma verdadeira Odisséia, da qual triunfaram o patriotismo, o brio, e a tenacidade
do grande brasileiro” (ABREU, 1998, p. 280). Para a comparação de Cunha a Ulisses, é a
própria Ana quem oferece uma réplica registrada por Brandão (1994, p. 14), “e se fosse
ao contrário? Se as mulheres viajassem, como se portariam os maridos à espera?”. Judith
conta:

Minha mãe ficou uma porção de anos esperando meu pai, que partiu para a guerra,
como na história de Ulisses. […] Pobre Penélope. O marido podia dormir com quantas
princesas ou escravas quisesse, lá por Tróia. Ela não. Tinha que se manter como se não
tivesse nervos, carne, sangue, envelhecendo a fiar (BRANDÃO, 1990, p. 14).

A imprensa iniciara uma narrativa elucidando que Dilermando traíra uma relação
de confiança com Euclides de forma muito pior do que a mera traição física da esposa
(que, recordemos, já seria grave o suficiente para os parâmetros da época). Era recorrente
o argumento que Euclides acolhera e auxiliara Dilermando em sua carreira militar, para
então ser traído de forma tão amarga. A máquina judiciária também pareceu se unir em
torno da construção dessa narrativa e no esforço de preservação da honra de Euclides e
da condenação de Dilermando – e Ana. Evaristo de Moraes traz uma reminiscência:

Foi principal preocupação minha reunir provas de que não houvera a apregoada in-
gratidão, porque, no caso, só esse aspecto moral tinha importância; o mais sempre se
me afigurou pouco. Temível, a despeito dos esforços do delegado Oliveira Alcântara e
do escrivão Anôr Margarido, que visavam fechar o caminho à legítima defesa (MORA-
ES, 1922, p. 212).

Essa história se arrastou por muitos capítulos. Absolvido em primeiro julgamento,


Dilermando viu este ser anulado. Levado a júri pela segunda vez, quedou- se livre e en-
frentou, mais uma vez, a ira da opinião pública e da imprensa. No dia 03 de maio de 1913,

235
amanhecido o primeiro dia do segundo julgamento de Assis, a Folha do Dia insufla: “As-
sassino: o monstruoso matador de Euclides da Cunha”, e narra, sem descer o tom:

Mais uma vez, compareceu ontem, à barra do júri, Dilermando de Assis, o assassino
de Euclides da Cunha. Mais uma vez ainda ficou adiado esse julgamento reclamado
pela voz pública, para satisfação a uma sociedade de um delito monstruoso. A falta
de alguns jurados deu motivo a esse adiamento. Lá esteve o réu entretanto — auda-
cioso e cínico, a cuspir os seus olhares de escárnio sobre a multidão que o espreitava
como um ser desprezível e asqueroso. (Jornal Folha do Dia de 03/05/1913. Disponível
em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=3133 94&pag-
fis=49740&url=http://memoria.bn.br/docreader. Acesso em 06 set 2019).

Quando Ana e Dilermando se casam, após a absolvição dele em 1911, a imprensa


segue acompanhando a vida do casal. A revista Careta8 anunciou: “casaram- se o aspiran-
te Dilermando de Assis e a mulher que foi a esposa de Euclides da Cunha”. Ana não teve
direito nem ao próprio nome, sobre ela só interessava o nome do falecido marido, e a
preocupação com os filhos (de Euclides, note-se). A revista continua: “os filhos do grande
escritor à guarda de quem estão confiados? Incumbir-se-á de lhes formar o caráter a la-
mentável mãe transviada?”.

A biografia Anna de Assis, história de um trágico amor traz, de início, a seguinte de-
dicatória:

Dedico este livro aos descendentes de Anna de Assis. Quero deixar aqui consignado o
meu repúdio a tudo que já foi escrito sobre ela. Anna de Assis foi uma mulher excep-
cional, como amante, como esposa, como mãe. Com muito respeito e admiração, sua
filha Judith. (ANDRADE, 2009, p. 6).

De outro lado, a família de Euclides, contra-ataca (parece um pouco extremo, mas


é a melhor palavra para descrever o que se passa entre os descendentes da tragédia) em
Águas de amargura, o drama de Euclides da Cunha e Anna, que se inicia também com uma
dedicatória veemente:

Este é o desmascaramento de um livro medíocre, “Anna de Assis – história de um trági-

8 Revista de nº 153, ano IV, 06/05/2011, notícia às fls. 15. Arquivo disponível em http://objdigital.
bn.br/acervo_digital/div_periodicos/careta/careta_anos.htm, Acesso em 24 ago 2019).

236
co amor”, publicado em 1987 com a visível intenção de enodoar a memória de Euclides
da Cunha e sua família, além de injuriar, difamar e caluniar. Livro que inclusive desres-
peitou a credulidade do leitor, passando-lhe versões, situações e dados que, como será
demonstrado, são absolutamente falsos.
Por isso, não poderíamos deixar sem resposta procedimento tão indigno, colocando
este trabalho ao lado daquele, nas bibliotecas e nas estantes, para todo o sempre. De-
ploramos que a vaidade doentia dos que desejaram aparecer a qualquer custo, alia-
da à ganância do ganho financeiro pelo sensacionalismo condenável, tenha levado
alguns à reabertura do doloroso drama ocorrido em 1909, que sempre mereceu de
nossa parte o mais respeitoso silêncio.
Esperamos que estas páginas sejam suficientes. Mas, se necessário, ou se assim nos
forçarem os ousados caluniadores, nosso arquivo, mais uma vez, voltará a responder-
-lhes com novos documentos. (BRANDÃO, 1990, p. 9).

Dessas palavras exaltadas, importante destacar que o que se nota é uma das conse-
quências dos acontecimentos da Piedade foi a divisão da família entre os descendentes
de Ana e os descendentes de Euclides, como se os filhos de Euclides também não fossem
filhos de Ana. De fato, em muito, a narrativa se constrói para mostrar que Ana falhara no
seu papel primordial, o de guardiã da família, logo, falhara também com os filhos, que,
assim, necessitavam de proteção. Separada da família, ela até poderia recomeçar a vida
ao lado de Dilermando, mas preservar a honra do falecido Euclides passava por manter os
filhos dele longe de Dilermando – e de Ana.

Com a morte de Euclides e a prisão de Dilermando, Ana fica com a responsabilidade


dos filhos mais novos. Os filhos mais velhos, os filhos de Euclides, são educados em colé-
gios internos e supervisionados por tutores ligados ao falecido pai164 e seguem a vida.
Há registros de bilhetes e cartas trocados entre Ana e os filhos, mas não há depoimentos
diretos deles sobre essa relação que sofreu duros golpes em sequência, seja em razão
da própria relação entre Ana e Dilermando, seja pela morte de Quidinho pelas mãos do
padrasto, também por ferimento por arma de fogo.

Ana e Dilermando superaram muito juntos, mas a relação deles não resiste. O casal,
que se unira como amante em 1905 e em matrimônio em 1911, se separa no ano de 1926,
embora nunca chegue a requerer o desquite. Dilermando irá se tornar viúvo no ano de
1951, pouco antes de sua própria morte, ainda em tempo de regularizar a situação ma-
trimonial com sua companheira de muitos anos, Maria Antonieta, a Marieta, mãe de sua
filha caçula, Dirce, autora do livro O Pai.

237
Se Anna de Assis é uma ode de uma filha à mãe perfeita e Águas de Amargura uma
defesa veemente de um grande homem, O Pai é o retrato de um homem que passou a
vida à sombra das escolhas de sua juventude, e levou a família com ele. Acerca dos pais,
Dirce rememora, “sempre me custou acreditar que algum dia meus pais pudessem ter
sido jovens e felizes. E me causava surpresa, quase descrédito, qualquer testemunho de
que se pudessem ter enamorado e vivido paixões avassaladoras. ” (CAVALCANTI, 1998, p.
16).

Por se tratar de memória familiar, os envolvidos, certamente envolvidos emocio-


nalmente, encontram dificuldades quando há argumentos menos elogiosos (segundo
o ponto de vista deles) sobre seus familiares. A única versão possível torna-se a versão
deles. a versão deles. Portanto, Ana é a Ana de Judith, Euclides é o Euclides de Tostes e
dos euclidianistas e a história de Dilermando é aquela contada junto à Ana, embora a
filha Dirce também tenha se levantado em defesa do pai, especialmente quanto a seu
direito de defender a própria vida e não ser chamado de assassino. Quando Glória Perez
escreveu a minissérie Desejo, por exemplo, Judith de Assis foi à TV9, enfática nas críticas,
descrevendo a Ana de Assis da TV como uma mentira. Anna Sharp, diante de laudos téc-
nicos atestando que a letra do diário que ela alega ser da avó não é dela, insiste, dizendo
conhecer a letra de Ana, que a teria ensinado a escrever (PONTES, 2014). Joel Tostes in-
siste que a paternidade biológica de Luís seria de Euclides, mesmo diante de inúmeros
testemunhos e documentos atestando o contrário.

As disputas narrativas e de memória que nos chegam demonstram que as personagens


dessas narrativas nem sempre agem à altura das expectativas de seu tempo. O crime que os
une foi o grande drama da sociedade republicana do início do século XX, envolveu o peso da
honra de uma família de conduta ilibada e importância para a jovem República (seja pelo pró-
prio Euclides, seja pelo pai de Ana, o então Major Sólon Ribeiro). Honra que Euclides tentou
vingar – e não conseguiu. Honra que Dilermando contribuiu para manchar – e se safou. Honra
que pertencia a Ana, que a ela cabia cuidar, e que nem os “mecanismos de controle social, as
intrigas e fofocas, as denúncias à boca pequena e a ação da família e dos amigos” (VOGEL e
FERREIRA, 2014, p. 166) impediram-na de enxovalhar – segundo a compreensão da época.

9 Ela foi entrevistada por Jô Soares quando a minissérie Desejo foi ao ar. Disponível em https://www.
youtube.com/watch?v=nV6uM7NMopc. Acesso em 10 nov 2019.

238
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240
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO SEGUNDO SIMONE DE BEAUVOIR

Rita de Cássia Caetano Teixeira1

INTRODUÇÃO

O tema central do projeto é analisar a inferiorização da mulher a partir da obra de


Simone de Beauvoir O Segundo Sexo (1949). Possibilitando, uma possível resposta para
entendermos por que os homens detém os grandes privilégios da sociedade. O projeto
pretende ainda, analisar as causas e como aconteceu a inferiorização da mulher em rela-
ção ao homem, dialogando ainda com outros autores que tratam do tema.

O presente trabalho irá discutir quais as causas que a mulher foi dominada pelo
homem. Para isto, será usado como principal fonte o livro O Segundo sexo (1949), onde a
autora Simone de Beauvoir faz uma análise de como isso aconteceu, narrando os vários
momento que a mulher foi menospreza na história. Para Beauvoir, o fato de maior rele-
vância foi o advento da propriedade privada, que anulou a mulher, dando mais enforque
no homem, que passou a escravizar outros homens. Uma vez que as mulheres não tinha
força física para o trabalho forçado que a escravidão exigia. Outro fator de muita impor-
tancia, considerado para Beauvoir, a maternidade foi outro fato que ajudou para que a
mulher fosse anulada.

Para a tentativa de explicar como a mulher tornou-se menosprezada pelo homem,


será utilizada obras acerca do tema escolhido, dentre elas o artigo Entre gênero, feminismo
e utopia: as Reconfigurações da Maternidade em Narrativa de Marge Piercy e Octavia Bantler

1 Estudante do 7ª período de graduação, do curso de História da Universidade Estadual de Goiás,


Campus Morrinhos. Email: ritacassiateixeira97@gmail.com.

TEIXEIRA, Rita de Cássia Caetano. A representação do feminino segundo Simone de Beauvoir, In: GRUPO DE
ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e na Prática Artística,
2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 241-258.
(2013) que trata da questão da maternidade compulsória que é um dos pontos que é
tratado na obra O Segundo Sexo (1949) da alienação da mulher em questão de grandes
conquistas do mundo. Outra obra que será abordada dentro do tema é o artigo Um Dia-
logo Possível Entre Margaret Mead e Simone de Beauvoir, que faz a abordagem da mulher
enquanto gênero, foi a junção de duas importantes escritoras na temática, cada uma em
sua época que mudou todo um imaginário. Ambas as escritoras, cada uma viveu em uma
época, mas que com a análise deste artigo, percebemos que tem pontos semelhante nos
discurso das duas escritoras.

Para esta temática será utilizada ainda a obra de Micheli Perrot Minha História das
Mulheres (2006) esta obra é a mais acessível da autora. Nasceu de um programa de rádio
francês que fez muito sucesso, que tinha como objetivo divulgar o conteúdo de pesquisa
e reflexões acadêmica para um público que não tinha o entendimento adequado sobre o
tema. O livro aborda a crescente ascensão da mulher nos espaços da sociedade. A autora
faz uso de personagens para ilustrar como as mulheres conseguiu o espaço merecido na
sociedade. Será usado, ainda, o livro Problema de Gênero: feminismo e Subversão da Iden-
tidade (1990) de Judith Butler, que é a autora de referênciateorica de feminismo mate-
rialista e pós-modernidade. O livro desconstrói toda a teoria de gênero que o feminismo
baseava-se. A principal tarefa de Butler foi, repensar teoricamente a “identidade definida”
das mulheres como uma categoria definida e emancipada no movimento feminista.

O problema principal do projeto éanalisar as causas históricas de a mulher ser infe-


rior ao homem e como este fato foi avaliado. Considerando isso, o principal argumento
usado no trabalho, será o livro O Segundo Sexo (1949) que faz uma contextualização mui-
to interessante a cerca de explica como a dominação masculina aconteceu. Será usado
ainda, complementos das obras que foram citadas acima. Será apresentado, da melhor
forma possível, buscando no contexto histórico o processo em que torna a mulher infe-
rior ao homem.

OBJETIVOS:

Objetivo Geral: Analisar por meio da obra literária “O Segundo Sexo” da autora Simone
de Beauvoir como ela representa historicamente a dominação masculina ao longo da história.

242
Objetivos Específicos:

• Problematizar como a dominação masculina aconteceu na visão de Simone de


Beauvoir no livro O Segundo Sexo (1949).
• Analisar os fatos que impediram de a mulher ter uma maior visibilidade.
• Mostrar como a diferença de gênero perpassa os tempos.
• Investigar como outros autores discutem a questão de gênero, após Simone de
Beauvoir.

REFERENCIAL TEÓRICO

Para iniciar a discussão teórica, é necessário compreender o termo importante do


trabalho e que deu início a questão feminista: gênero. Para Joan Scott, o início dos estu-
dos sobre a mulher foi fundamental, mesmo que a princípio estivessem hesitantes. Pois
não sabiam como ia ser a aceitação das pessoas, em principal os homens. Com base nisso,
enfatiza:

[...] escreviam três historiadoras feministas “que escrever as mulheres na história impli-
ca necessariamente na redefinição e o alongamento das noções tradicionais daquilo
que é historicamente importante, para incluir tanto a experiência pessoal e subjetiva
quanto as atividades públicas e políticas (SCOTT, 1995).

O segundo capítulo do livro O Segundo Sexo (1949), discute o ponto de vista psica-
nalítico, que resumidamente, faz uma análise de como a psicanalise vê a questão de cada
gênero. Beauvoir, inicia dizendo:

Não é um corpo-objeto descrito pelos cientistas que exige concretamente e sim o cor-
po vivido pelo sujeito. A mulher é uma Femea na medida em que se sente femea [...].
Assim, é que a estrutura do ovário nela não se reflete; ao contrário, um órgão sem
grandes importancia biológica, como o clitóris, nela desempenha um papel de primei-
ro plano (BEAUVOIR, 1949).

Por tanto, para ser caracterizado com um gênero é preciso sentir-se pertencente a
tal gênero, na visão de Simone de Beauvoir. Com esta afirmação, surge por tanto, a discus-

243
são de determinismo biológico, onde Joan Scott explica:

A palavra indica uma rejeição do determinismo biológico implícito no uso de termos


como “sexo” ou “diferença sexual”. O termo “gênero” enfatiza igualmente o aspecto re-
lacional das definições normativa da feminilidade. Aquela que estavam preocupadas
pelo o fato de que a produção de estudos sobre a mulher se centrava nas mulheres
de maneira demasiado estreita e separada utilizaram o termo “gênero” para produzir
introduzir uma noção relacional em nosso analítico. Segundo esta visão, os homens
e as mulheres eram definidos em termos recíprocos e não se poderia compreender
qualquer um dos sexos por meio de um estudo inteiramente separados (SCOTT, 1995).

No entanto, Judith Batler põe o gênero como uma construção social por um corpo
sexuado, ou seja, só define homem ou mulher por que é ensinado para as crianças. Nesta
perspectiva, ela explica:

Levada ao seu limite logico, a distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade ra-
dical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos. Suponhamos por
um momento a estabilidade do sexo binário, não decorre daí a construção de “ho-
mens” aplique-se exclusivamente a corpos masculinos, ou o termo “mulheres” inter-
prete somente o corpo feminino (BATLER, 2003).

Assim percebemos, que era claro que com esta nova metodologia as mulheres se-
riam incluídas na história por meio de suas experiências pessoais. O qual iria explicar, pos-
teriormente, como o gênero seria uma nova categoria de análise. Assim, surgiria ao longo
dos tempos outras categorias de analise como raça, classe e gênero e, como resultado
das pesquisa seria mostrado o motivo das desigualdade de poder ao longo do tempo.

Batler ressalta:

Mas o “corpo” é em si mesmo uma construção, assim como o é a miríade de “corpos”


que constitui o domínio dos sujeitos com marcas de gênero. Não se pode dizer que
os corpos tenham uma existência significável anterior a marca de gênero; e emerge
então a questão: em que medida que o corpo vir a existir na(s) marca(s) do gênero e
por meio delas? (BATLER, 2003).

Simone de Beauvoir constrói isso muito bem, quando enfatiza que a “sexualidade é
coextensiva a existência”. Podemos entender esta afirmação de duas formas: a primeira é
que o avatar (corpo) tem todo o significado sexual e, a segunda que todo fenômeno sexu-

244
al tem sentido existencial. Ambas as afirmações são possíveis de haver uma conciliação.
Ela aponta, ainda: “[...] desde que se distingue “sexual” e “genitália” a noção de sexualidade
torna-se vaga. [...] Mas nada é mais turvo do que a ideia de “aptidão”, isto é, de possível: só
a realidade fornece a prova indubitável da possibilidade (BEAUVOIR, 1949).”

Era necessário incluir as mulheres na História, no entanto muitos consideram que


tudo é História. Sobre isso, Perrot reflete:

A questão parece estranha. “Tudo é história”, dizia George Sand, como mais tarde Mar-
guerite Yourcenar: “Tudo é história”. Por que as mulheres não pertenceriam à história?
Tudo depende do sentido que se dê à palavra “história”. A história é o que acontece,
a sequência dos fatos, das mudanças, das revoluções, das acumulações que tecem o
devir das sociedades (PERROT,2007).

Ela diz que a mulher ficou muito tempo sendo apenas uma reprodução, esquecidas
pelas massas da sociedade. É que fato que as mulheres não foram as únicas esquecidas,
como se estivesse fora do seu tempo. E, é esse esquecimento que tem muitas razões de
acontecer.

Mas, em Scott, ela destaca:

[...] Enquanto o termo “história das mulheres” proclama sua posição política ao afirmar
(contrariamente as práticas habituais) que as mulheres são sujeitos históricos validos,
o termo “gênero” inclui as mulheres, sem lhes nomear, e parece, assim, não constitui
uma forte ameaça. Esse uso do termo “gênero” constitui um dos aspectos daquilo que
se poderia chamar de busca pela legitimidade acadêmica para os estudos feministas,
nos anos 80 (SCOTT, 1995).

Assim, o “gênero” vem como um termo que não produz “ameaças”. Uma vez que os
homens poderiam achar que as mulheres pesquisadoras da história das mulheres, que-
riam pôr as mulheres em lugar de destaque. Sendo, que não era isso que acontecia, elas
queriam apenas igualdade na forma de viver e privilégios másculos, além de tentar en-
tender como esta dominação masculina aconteceu.

No entanto, em Perrot, ela destaca outros fatores:

245
Existem fatores sociológicos, entre eles, a presença das mulheres na universidade. [...]
Os fatores políticos, no sentido amplo do termo, foram decisivos. O movimento de
liberação das mulheres, desenvolvido a partir dos anos 1970, não visava de início à uni-
versidade e suas motivações não incluíam a história: contava com o apoio de mulheres
intelectuais (PERROT, 2007).

Assim, na visão de Michelli Perrot, o que proporcionou as mulheres escreverem


uma nova História que as incluíssem, foi o ingresso delas na universidade. Com isso, pos-
sibilitou que as mulheres intelectuais tivessem contatos com obras escritas por autoras
como Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo que teve sua primeira publicação no ano de
1949 e, é considerada a principal obra do movimento feminista.

O termo “gênero”, com isso, fez a substituição da palavra “mulher” e foi usado ainda,
para designar uma informação da mulher em relação ao homem. Scott, enfatiza que esta
informação, só confirma que o mundo das mulheres fazia parte do mundo dos homens.
“Gênero” também é utilizado para designar as relações sociais entre os sexos. Neste caso,
há a rejeição bastante explicita das explicações biológicas, como a ideia de dominador
comum e as diversas formas de subordinação feminina.

Ao invés disso, cria o chamado “construções sociais” por Scott, que a criação intei-
ramente sociais de ideias sobre os papeis adequados aos homens e as mulheres, é uma
forma de referir-se a origem da identidade social subjetivas de homens e mulheres. Por
tanto, segundo esta última definição, “gênero” é um categoria social imposta sobre o cor-
po sexuado. A partir disso, os estudos sobre a palavras “gênero” tomou o campo do sexo
e sexualidade tornando o mesma, uma palavra extremamente útil, pois difere a pratica
sexual atribuídos as mulheres e aos homens. Scott, explica:

O uso de “gênero” enfatiza todo um sistema de relações que pode incluir o sexo, mas
não é diretamente determinado pelo sexo, nem determina diretamente uma sexuali-
dade (SCOTT, 1995).

MichelliPerrot, complementa:

Comecemos pelo começo, o nascimento: a menina é menos desejada. Anunciar: “E


um menino” é mais glorioso do que dizer: “E uma menina”, em razão do valor diferente

246
atribuído aos sexos, o que Françoise Héritier chama de “valência diferencial dos sexos”.
Nos campos de antigamente, os sinos soavam por menos tempo para o batismo de
uma menina, como também soavam menos para o enterro de uma mulher. O mundo
sonoro é sexuado (PERROT, 2007).

Com esse pensamento, as meninas eram, em todos os aspectos, atrasada. E outra


coisa passa a ser supervalorizada: a virgindade das meninas. Isso acontece pela a super-
valorização da religião. Ela destaca também:

A virgindade das moças é cantada, cobiçada, vigiada até a obsessão. A Igreja, que a
consagra como virtude suprema, celebra o modelo de Maria, virgem e mãe. [...] Essa va-
lorização religiosa foi laicizada, sacralizada, sexualizada também: o branco, o casamen-
to de branco, no Segundo Império, simboliza a pureza da prometida.Preservar, pro-
teger a virgindade da jovem solteira é uma obsessão familiar e social (PERROT, 2007).

A violação nesse sentido, a violação das meninas é um grande risco, uma vez que
a iniciação dos meninos é construído um rito que era tolerado por todos. Os grandes
escritores, descreviam este ato como “um bando de rapazes que estavam atrás de uma
presa”. Aquela que se deixa-se capturar por essa tentação, tornava-se suspeita de ser uma
mulher fácil. Perrot, destaca ainda, que depois que as moças eram defloradas, nenhum
homem a queriam como esposa. Assim, uma vez deflorada, esta mulher era condenada a
serviço da prostituição, sendo renegada para o resto da sua vida.

Outro conceito importante que devemos trabalhar no texto, é o conceito de repre-


sentação. Usaremos ele, para entender como Simone de Beauvoir representa as mulheres
na obra analisada. Para este conceito, iremos refletir por meio do texto de Roger Chartier,
O Mundo Como Representação, que parte do princípio básico de que há uma crise nas
ciências sociais, o que gera um abandono no sistema global de interpretações e, ele pro-
põe que estamos chegando no momento hipotético de que a história entraria em crise,
pois, uma vez que os historiadores sentiam-se acomodados, pois a história ainda é consi-
derada uma disciplina sadia e vigorosa. No entanto, esquecem de que ela perdeu grande
alianças tradicionais.

Chartier nos deixa explicito que toda reflexão metodológica, tem suas raízes em
uma história pratica e particular, em um espaço de trabalho especifico. Ele propõe três

247
polos, que são separados pelas tradições acadêmicas:

de um lado, o estudo crítico dos textos, literários ou não, canônicos ou esquecidos,


decifrados nos seus agenciamentos e estratégias; de outro lado, a história dos livros e,
para além, de todos os objetos que contém a comunicação do escrito; por fim, a aná-
lise das práticas que, diversamente, se apreendem dos bens simbólicos, produzindo
assim usos e significações diferençadas (CHARTIER, 1991).

Assim, os trabalhos são construídos por meio de levantamentos particular ou coleti-


vo para que se possa compreender o que se pretende o tema. Portanto, a matéria é volta-
da para “o mundo do texto” e o “mundo do leitor”. Os texto tem que ser organizados para
que os leitores possam entender o que o autor que dizer. Chartier destaca que a leitura de
textos é uma pratica que sofre influência de gestos, espaço, hábitos e outros. A partir do
enredo do texto, com leitura de livros, pode-se formular várias suposições que articulam
com os recortes sociais e as práticas culturais. Com isso, a noção de representação coletiva
aparece com base nos autores Marcel Mauss e Emile Durkheim, que Chartier expressa:

há noção de “ representação coletiva” autoriza a articular, sem dúvida melhor que o


conceito de mentalidade, três modalidades de relação com o mundo social: de início, o
trabalho de classificação e de recorte que produz configurações intelectuais múltiplas
pelas quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos que
compõem uma sociedade; em seguida, as práticas que visam a fazer reconhecer uma
identidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar simboli-
camente um estatuto e uma posição; enfim, as formas institucionalizadas e objetiva-
das em virtude das quais “representantes” (instâncias coletivas ou indivíduos singula-
res) marcam de modo visível e perpétuo a existência do grupo, da comunidade ou da
classe (CHARTIER, 1991).

Chartier, coloca a construção da identidade social como o resultado de uma força


entre as representações impostas pelos que tem o poder de classificar o que cada comuni-
dade produz de si mesma e o que considera um recorte social objetivado como a tradução
de um credito conferido a apresentação que cada grupo dá para si mesmos, assim torna-se
capaz de reconhecer a sua existência por meio de uma unidade de demonstração.

Para trabalhar as lutas de representação, onde o ordenamento é fundamento, en-


tão, a hierarquização da própria estrutura social também é fundamental, a história cul-
tural separa-se da dependência estrita de uma história social dedicadas exclusivamente

248
aos estudos das lutas de econômicas. No entanto, há um retorno hábil sobre o social, pois
concentra a atenção nas estratégias simbólicas que determinam as posições e as relações
que constroem para cada classe, grupo e/ou meio, sendo um ser-percebido constitutivo
de sua própria identidade.

Assim, Chartier apresenta:

A relação de representação — entendida como relação entre uma imagem presente


e um objeto ausente, uma valendo pelo outro porque lhe é homóloga - traça toda a
teoria do signo do pensamento clássico, elaborada em sua maior complexidade pelos
lógicos de Port Royal (25) (CHARTIER,1991).

Essas modalidades são variáveis que permitem discriminar diferentes categorias de


signos e caracterizar o símbolo por sua diferença com outros signos. Mas, por outro lado,
ao identificar as duas condições necessárias para uma relação inteligível, a lógica de Por-
t-Royal, propõe uma questão fundamental: das possíveis incompreensões da represen-
tação, seja a falta de “preparação” do leitor, ou seja pelo o fato de uma “extravagancia” de
uma relação arbitraria entre os signos e os significados.

As formas de teatralização da vida social na sociedade do Antigo Regime dão exem-


plos de manifestação de uma perversão da representação. Chartier, exemplifica:

Os nossos magistrados conheceram bem esse mistério. As suas togas vermelhas, ps


arminhos com que se enfaixam como gatos peludos, os palácios em que julgam, as
flores-de-lis, todo esse aparato augusto era muito necessário: e, se os médicos não ti-
vessem sotainas e galochas, e os doutores não usassem borla e capelo e túnicas muito
amplas de quatro partes, nunca teriam enganado o mundo, que não pode resistir a
essa vitrina tão autêntica. Se possuíssem a verdadeira justiça e se os médicos fossem
senhores da verdadeira arte de curar, não teriam o que fazer da borla e do capelo; a
majestade destas ciências seria bastante venerável por si própria. Como, porém, pos-
suem apenas ciências imaginárias, precisam tomar esses instrumentos vãos que im-
pressionam as imaginações com que lidam; e destarte, com efeito, atraem o respeito” .
(Pascal, Pensamentos, tradução de Sérgio Milliet, São Paulo, Difusão Européia do Livro,
1957, pp. 70-71 apud CHARTIER, 1991).

A relação de representação é, de certo modo, perturbada pela a fraqueza de ima-


ginação, que faz com que se tome engodo pela verdade, que considera os signos visí-

249
veis como índices seguros de uma realidade que não o é. Portanto, após ser desviada,
a representação transforma em uma máquina de fabricar respeito e submissão, em um
instrumento que produz uma exigência interiorizada, que é necessária para onde faltar o
recurso da força bruta.

Quando Chartier fala das formas de exercício de poder, a perspectiva dele supõe
um distanciamento em relação ao “retorno político”. Foi fundada sobre a liberdade do su-
jeito, que pensando como livre de toda qualquer determinação, era privilegiado de ideias
e a partir da reflexãoda ação. Uma posição que firma a ideia de duas afirmações: ignora as
exigências não sabidas pelos indivíduos e que regulam as representações e ações e, su-
põe a eficácia das próprias ideias e discursos, separado das formas em que se comunicam,
destacando a pratica de investirem de significações plurais e concorrentes.

No entanto, Chartier, apresenta outra perspectiva das relações de poder:

Nossa perspectiva é outra: quer compreender a partir das mutações no modo de exer-
cício do poder (geradores de formações sociais inéditas) tanto as transformações das
estruturas da personalidade quanto as das instituições e das regras que governam a
produção das obras e a organização das práticas. A ligação estabelecida por Elias en-
tre, por um lado a racionalidade de corte — entendida como uma economia psíquica
específica, produzida pelas exigências de uma forma social nova, necessária ao abso-
lutismo — e, por outro, os traços próprios à literatura clássica — em termos de hie-
rarquia de gêneros, de características estilísticas, de convenções estéticas — designa
com acuidade o lugar de um trabalho possível (33). Mas é também a partir das divisões
instauradas pelo poder (por exemplo entre os séculos XVI e XVII entre razão de Estado
e consciência moral, entre patronagem estatal e liberdade de foro íntimo) que devem
ser apreciadas tanto a emergência de uma esfera literária autônoma como a consti-
tuição de um mercado de bens simbólicos e de julgamentos intelectuais ou estéticos
(34). Estabelece assim um espaço da crítica livre onde se opera uma progressiva politi-
zação, contra a monarquia do Antigo Regime de práticas culturais que o Estado tinha
durante algum tempo capturado em seu proveito — ou que tinham nascido como
reação a seu ascendente, na esfera do privado (CHARTIER, 1991).

Nesse momento, em que se encontra muitas vezes, recusada a pertinência da inter-


pretação social, que estas poucas reflexões e propostas não sejam tomadas como índice
de um alinhamento a uma tal posição. Ao contrário, na fidelidade crítica à tradição dos
Annales, elas gostariam de ajudar a reformular a maneira de ajustar a compreensão das

250
obras, das representações e das práticas às divisões do mundo social que, conjuntamen-
te, significam e constroem.

Assim, o conceito de gênero e representação é importante para podermos enten-


der como as mulheres passaram a serem inseridas na sociedade. Portanto, foi de suma
importância, o inicio dos estudos sobre gênero. Uma vez que foi por meio dele, que as
mulheres passaram a serem “vistas” na história, pois para estudar o homem teria que ter
a comparação com o corpo da mulher. Ao estudarmos representação, é para entender
como a Simone de Beauvoir propõe como é a história das mulheres e como esta obra foi
interpretada pelas as mulheres da época e as atuais.

FONTES

O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir.

METODOLOGIA

A História é construída por memorias coletivas e, esta memoria para ser cientifica
existe dois materiais: os documentos e monumentos. Estes materiais, podem ser classi-
ficados como, respectivamente, escolha do historiador e herança do passado. Le Goff,
conceitua sobre o monumento:

Mas desde a Antiguidade romana o monunmentum tende a especializar-se em dois


sentidos: 1) uma obra comemorativa de arquitetura ou de escultura: arco do triunfo,
coluna, troféu, pórtico, etc. 2) um monumento funerário destinado a perpetuar a re-
cordação de uma pessoa no domínio em que a memoria é particularmente valorizada:
a morte (LE GOFF, 2003).

E sobre os documentos, Le Goff, conceitua:

O significado de “papel justificativo”, especialmente no domínio policial, na língua ita-


liana, por exemplo, demonstra a origem e a evolução do termo. O documento que,
para a escola histórica positivista do fim do século XIX e do inicio do século XX, será o

251
fundamento do fato histórico, ainda que resulte da escolha, de uma decisão do histo-
riador, parece apresentar-se por si mesmo como prova e histórica. A sua objetividade
parece opor-se a intencionalidade do monumento. Além do mais, afirma-se essencial-
mente como um testemunho escrito (LE GOFF, 2003)

Boa parte dos documentos, tinha que ser em textos escrito. Mas, com o decorrer
do tempo, os documentos foram tratados como monumentos. Uma vez que, na época,
existia muita desconfiança em relação aos monumentos. Assim, o fundamento da histó-
ria “cientifica”, que vai permitir a critica do documento, de maneira a trata-lo como um
monumento.

Não podemos simplesmente, nos contentar com a constatação de que a Revolução


do documento e a reflexão como uma critica é um aspecto espetacular. O documento
é uma memoria coletiva, por este motivo, é transformado para história tradicional ou é
transformado em dados de um novo sistema de montagem de História em serie. Assim, o
documento passa por uma critica radical.

Le Goff, acrescenta:

O que distingue a língua monumental da língua documental é “esta elevação, esta


verticalidade” que a gramatica confere a um documento, transformando-o em mo-
numento. Por isso, a língua vulgar, que provisoriamente permaneceu em plano docu-
mental, só pouco a pouco se transformara em “francês monumental” ( LE GOFF, 2003).

No entanto, a concepção de documento/monumento é independente da revolu-


ção documental, pois entre os seus objetivos está o de evitar que tal revolução fosse
necessária transformar-se em um derivativo. Assim, podesse desviar o historiador do seu
principal dever: a critica do documento, seja qual for, enquanto um monumento.

Os documentos, portanto, não são qualquer coisa que fica no passado, são produ-
ções de uma sociedade, que foi fabricada de acordo com as suas forças e os poderes que
detinham. Somente a analise de um documento como um monumento, permite que a
memoria coletiva possa recupera-lo e, ao historiador, permite-lhe usa-los cientificamen-
te. Ou seja, com pleno conhecimento de causa.

252
A intervenção do historiador que escolhe o documento, extraíndo-o de um conjun-
to de dados do passado, atribui-lhe um valor de testemunho que depende de sua própria
posição na sociedade da sua época e de sua organização mental, inserindo assim, em
uma situação inicial que é menos “neutra” do que a sua intervenção.

O documento é antes de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente ou


inconsciente, da história, de uma época, da sociedade que produziu, mas também das
épocas sucessivas durante a qual continuou a viver, talvez no esquecimento, durante o
período em que foi manipulado, menos que em silencio. O documento é por tanto, é uma
coisa que fica, que dura e, o testemunho, o ensinamento que ele carrega consigo, deve
ser em primeiro lugar analisado, para que seja desmistificado o seu significado aparente.

O documento é um monumento, que segundo Le Goff, é o resultado dos esforços


sociedades históricas para impor o futuro, voluntaria ou involuntariamente, o que deter-
mina a sua imagem de si próprios. No limite, não existe um documento-verdade. Todo
documento é mentira. Cabe ao historiador não ser ingênuo.

Le Goff ressalta:

Esta desmontagem do documento/monumento não pode fazer-se com o auxilo de


uma única critica histórica. Numa perspectiva de descobrimento dos falsos, a diplomá-
tica, cada vez mais aperfeiçoada, cada vez mais inteligente, sempre útil, repetimo-lo, é
suficiente (LE GOFF, 2003).

Assim, o documento/monumento, é o produto de um centro de poder, uma se-


nhoria eclesiástica, um cartuládo deve ser estudado em uma perspectiva de econômica,
social, politica, cultura, mas, sobretudo, enquanto um instrumento de poder. É justamen-
te o cartulário que constitui um conjunto de provas que é fundamentos de direitos. Ele,
torna-se um testemunho de um poder polivalente e, ao mesmo tempo, recria-los.

O documento, é em síntese, um alargado além de textos tradicionais, que é sempre


transformado em dado, deve ser tratado como um documento/monumento. De onde há
urgência de ter uma nova erudição, é capaz de transferir este documento/monumento

253
do campo da memoria para o campo da ciência histórica.

Prost, 2008, vem nos elucidar sobre como devemos tratar os conceito históricos. Ele
diz que é possível encontrar conceitos adequados na linguagem da época, para que seja
designado as realidades do passado. No entanto, os historiadores recorrem a conceitos
estrangeiros da época por parecer bem adaptados.

Quando pensamos em conceitos contemporâneos, pode ocorrer anacronismo. É


um perigo particularmente grave no domínio da história das ideias ou da mentalidade.
No entanto, uma tentação é inevitável: o fato do historiador formular inicialmente, as
suas questões com os conceitos de sua própria época já que os define a partir da socie-
dade em que vive.

Para a compreensão, o historiador não pode escolhe entre os conceitos da época


e os conceitos ex post para que seja abordado de algumas realidades: referimos a perio-
dização e as diferentes evoluções das áreas da vida social. É raro que os de uma época
tinham uma consciência de originalidade do período em que vive, ao ponto de atribuir
um nome para aquele momento.

Prost, 2008, explica:

Somente os grandes movimentos populares, ou as guerras, é que suscitam entre


os contemporâneos o sentimento de constituir um período particular, exigindo um
nome: em 1789, a “Revolução” recebeu imediatamente tal denominação e os franceses
de 1940 tiveram a nítida consciência de viver uma “debandada” (PROST, 2008)

Assim, de modo geral, os processos histórico, ou seja, as evoluções mais ou mais


profundas da economia, da sociedade, e até mesmo, na politica, são raramente concei-
tuais. Uma das características da sociedade atual é a imediata presença a si mesma que
lhe permite, graças à sociologia científica ou jornalística, formar um prognóstico sobre o
que está em vias de se passar e que, às vezes, ainda não terminou, correndo o risco de
contribuir, assim, para fazer advir o que ela anuncia.

254
Os verdadeiros conceitos permite a redução a dedução; permitem uma definição
de uma propriedade pertinente, do qual resulta em uma serie de consequências. Os con-
ceitos da História não dependem de um tipo especifico de conceito, mas são contruidos
por uma series de generalização e são definidos por inúmeros de alguns traços pertinen-
te que tem a ver com a generalidade empirica.

Por serem abstratos e fazerem referência a uma teoria, os conceitos formam rede:
eis o que ficou demonstrado com o exemplo da crise do Antigo Regime. Por sua vez, o
exemplo do fascismo, que tem a ver com um domínio completamente diferente, é uma
demonstração, talvez, ainda mais esclarecedora.

Sobre isso, Prost, 2008, explica:

Uma parte do sentido dos conceitos históricos advém-lhes, de fato, dos determinantes
que lhes são atribuídos. Aliás, é rara sua utilização, pelo historiador, sob uma forma
absoluta: assim, o temi o revolução é reservado ao evento de 1789. Todas as outras
aplicações dessa palavra, para serem compreendidas, exigem uma qualificação por
adjetivos ou complementos: datas (1830, 1848) ou epítetos — revolução industrial e,
inclusive, primeira ou segunda revolução industrial, revolução das estradas de ferro,
revolução tecnológica, revolução camponesa, agrícola, chinesa, soviética, política e
social, etc (PROST,2008).

O sentido preciso do conceito é assumido pelo determinante que lhe é atribuído;


além disso, o jogo comparativo esboçado mais acima é, identicamente, busca do deter-
minante pertinente. É impossível, defender que os conceitos impõe a história uma ordem
mais rigorosa. As realidades históricas nunca se conformam plenamente aos conceitos
com a ajuda dos quais elas são pensadas; a vida transborda, incessantemente, a lógica e,
na lista de traços pertinentes racionalmente organizados que constituem um conceito,
verifica-se sempre a ausência de alguns, enquanto outros se apresentam em uma confi-
guração imprevista.

A história não cessa de pedir de empréstimo os conceitos das disciplinas afins: ela
passa o tempo chocando ovos alheios. Por ser ilimitadamente aberta, descartamos apre-
sentar a lista desses conceitos. Assim, Prost, 2008, considera:

255
Da forma mais natural do mundo, a história política utiliza os conceitos do direito
constitucional e da ciência política e, até mesmo, da política propriamente dita: regi-
me parlamentar ou presidencial, partido de quadros ou de massa, etc (PROST, 2008).

Compreende-se melhor, nestas condições, a relação ambígua da história com as


outras ciências sociais: o empréstimo de conceitos e seu uso bem determinado, contex-
tualizado, permitem que a história retome por sua conta todas as questões das outras dis-
ciplinas, submetendo-as ao questionamento diacrônico que é sua única especificidade,
sua única dimensão própria.

Portanto, o papel de junção das ciências sociais desempenhado pela história em


determinadas configurações sociais e científicas do mundo erudito. Daí, também, às ve-
zes, sua pretensão obsessiva de assumir certa hegemonia no universo dessas disciplinas:
a troca de conceitos faz-se em mão única, a história promove sua importação sem expor-
tá-los e pode posicionar-se no terreno das outras ciências sem perder sua identidade, ao
passo que a recíproca não é verdadeira.

O historiador tem o direito de utilizar todos os conceitos disponíveis na linguagem,


mas não de usá-los de forma ingênua. Sua máxima consiste em recusar-se a tratar os con-
ceitos como coisas.

Assim, a afirmação de que convém “historicizar” os conceitos da história e reposicio-


ná-los em uma perspectiva, por sua vez, histórica, comporta vários sentidos. O primeiro
visa a diferença entre a realidade e o conceito sob o qual ela é subsumida; o conceito não
é a coisa, mas o nome pelo qual ela é manifestada, ou seja, sua representação. Avaliar a di-
ferença eventual, ou seja, verificar se os traços compreendidos no conceito se encontram
na coisa, e reciprocamente, é já um preceito do método crítico, daquilo que Seignobos
designava como a crítica da interpretação.

A historização dos conceitos da história permite, ao circunscrever a relação entre


conceito e realidade, pensar situações dadas, simultaneamente, de maneira sincrônica e
diacrônica, segundo o eixo das questões e, ao mesmo tempo, dos períodos, como estru-
tura e como evolução.

256
Assim, os conceitos da história resultam, assim, de lutas raramente aparentes pelas
quais os atores tentam fazer prevalecer as representações do social que lhes são pró-
prias: definição e delimitação dos grupos sociais, hierarquias de prestígio e de direitos,
etc. Por exemplo, L. Boltanski mostra como a aparição do termo quadro, tão característico
da maneira francesa de dividir a sociedade, efetua-se no contexto do Front populaire,
em concorrência com o conceito de classes médias e por oposição, ao mesmo tempo, ao
patronato e à classe operária. Os conceitos adquirem sentido por sua inserção em uma
configuração herdada do passado, por seu valor performático anunciador de um futuro e
por seu alcance polêmico no tempo presente.

257
REFERÊNCIAS

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de


Renato Aguiar. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CHATIER, Roger. O mundo como representações. Estudos Avançados. Revista das Re-
vistas. Ano 1991.

LE GOFF, Jacques. Documento/monumento, In, Historia e memória. Tradução de


Irene Ferreira, Bernardo Leitão, Suzana Ferreira Borges. 5. ed. São Paulo/Campinas: UNI-
CAMP, 2003.

PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. In: Minha História das Mulheres. Tra-
dução de Angela M.S. Correa. São Paulo: Contexto, 2007.

PROST, Antoine. Os conceitos. In: ______. Doze lições sobre a História. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2008, pp.115-131.

Sardenberg, Cecília Maria Bacellar. Motta, Alda Britto da. Gomes, Márcia. Um Diálogo
com Simone de Beauvoir e Outras Falas. Disponível em: repositorio.ufba.br/ri/handle/
ri/6878. Acesso em: 20 de maio de 2019.

258
ICONOGRAFIAS
(AUTO)BIOGRÁFICAS
COMO SE FAZ UMA GRAVURA NO SÉCULO XVI?
A VIDA DE JOHANNES STRADANUS (1523-1605)

Augusto Godinho Vespucci1

A produção de impressos, dentre eles, as gravuras, no século XVI, é notadamente


um dos maiores indicadores de uma nova relação do Ocidente com suas próprias produ-
ções. Não falo aqui das produções de riquezas, mas das produções que buscavam produ-
zir uma visão de si mesmo. Stuart Hall em seu livro “A identidade cultural na Pós-moder-
nidade”, aponta que a construção da identidade ao longo do Renascimento modificou-se
na medida em que a perspectiva sobre a própria humanidade também mudou, fragmen-
tando o sujeito num movimento que levaria à descentralização do indivíduo moderno
(HALL, 2005). A prática de autorretratos faz parte desse movimento, principalmente no
ramo das gravuras, com sua maior capacidade de reprodutibilidade em relação aos bus-
tos feitos em escultura ou das pinturas feitas em telas, que não podem ser reproduzidos
e movimentados com facilidade. Edward Wouk afirma que as gravuras deram uma “ve-
locidade geográfica” para as imagens, inclusive porque a produção das gravuras esteve
internamente ligada à cultura visual dos séculos XV e XVI (WOUK, 2017). Os gravuristas
podiam se inspirar em pinturas famosas ou esculturas muito conhecidas para a criação
de suas obras.

Para pensarmos nas gravuras e sua circulação, precisamos entender como e por
quem eram produzidas. Um dos produtores foi Johannes Stradanus, nascido na cidade
de Bruges, na atual região da Bélgica. Seu pai, homônimo a si, era um gravurista não mui-

1 Mestrando no Programa de Pós-graduação em História (PPGH), da Universidade Federal de Goiás


(UFG). E-mail: augustovespucci1@hotmail.com

VESPUCCI, Augusto Godinho. Como se faz uma gravura no século XVI? A vida de Johannes Stradanus (1523-
1605), In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas na História e
na Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p. 260-269.
to conhecido, mas que possivelmente teve grande peso nas decisões que fizeram parte
da vida de Johannes Stradanus, já que este também se tornou um gravurista. Era comum,
como aponta Jacques Le Goff, em fins da Idade Média, que os ofícios fossem aprendidos
pelos filhos, para que estes dessem continuidade aos negócios dos pais (LE GOFF, 1992).
Contudo, ainda jovem, Stradanus se muda para a península Itálica, mais especificamente
para a cidade de Florença, um dos centros culturais renascentistas mais poderosos. Era
comum que os artistas de toda a Europa se dirigissem para Florença, porque buscavam
terminar seus estudos nas Artes. Era sabido também entre os artistas do período, que
os Médici, principalmente Cosimo I, atuavam como mecenas (comitentes ou clientes de
obras artísticas) e garantiam renda e trabalhos. O humanismo cívico instaurado por Leo-
nardo Bruni ainda no Quattrocento, deu nascimento a uma perspectiva de que Florença
era a cidade Moderna correspondente à Atenas de Péricles na Antiguidade, por isso pre-
zava-se pela contratação de artistas para o embelezamento da cidade (JANSON, 1966).
Em Florença, Stradanus trabalhou como pintor na Guilda de São Luca, sendo posterior-
mente contratado por Giorgio Vasari (1511-1574), para pintar afrescos no Palazzio Vec-
chio, sede administrativa da família Médici. Considerado como um artista independente
em Florença, é contratado por Mecenas privados e algumas igrejas, chegando a pintar no
Vaticano (MARKEY, 2012).

Após 1554, estuda na disputada Academia del Disegno por indicação de Giorgio Va-
sari e até a década de 1570 trabalha em projetos mais independentes, como demonstra a
sua produção de retratos para o Rei João da Áustria e Felipe II, rei da Espanha. A partir de
1570, Stradanus passa a ser visto como artista da corte dos Médici, trabalhando primeiro
para Cósimo I de Médici (1519-1574), depois para seus dois filhos, também Grão-duques
da Toscana, Francesco I de Médici (1541-1587) e Ferdinando I de Médici (1549-1609). Pro-
duziu também na Academia Degli Alterati para os Alamani, uma das importantes famílias
que compunham o grande patronado dos Médici por toda a região da Toscana.

Há, contudo, um momento em que a fama do gravurista flamengo passa a ser re-
conhecida também como gravurista e não somente como pintor. Nos volumes da obra
“Vida dos mais eminentes pintores, escultores e arquitetos”, de Vasari, Stradanus aparece
em algumas citações que indicam sua caracterização:

261
Da nossa academia, também, Giovanni della Strada, um flamengo, que [tem] bom de-
senho, a melhor fantasia, muita invenção e uma boa maneira de colorir; e, tendo feito
muita proficiência durante os dez anos em que trabalhou no Palácio em destemper,
afrescos e óleos, depois dos desenhos e instruções de Giorgio Vasari, ele pode [se]
comparar com qualquer um dos muitos pintores que o referido Grande Duque tem em
seu serviço (VASARI, 2009, p. 18).

O historiador da Arte cita Stradanus como um grande habilidoso na maneira de


colorir (o que costumeiramente só acontece na pintura), mas também como um bom
desenhista após ter passado 10 anos sob a sua orientação. Rafaello Borghini, em sua obra
“Il Riposo”, de 1587, identifica Stradanus como um “replicador”, o que se deve ao modo
como o ofício de Stradanus é reconhecido: como produção de réplicas (BORGHINI, 1587,
p. 189). As gravuras eram assim conhecidas porque muitas vezes, como já dito anterior-
mente, a produção de gravuras podia baseada em outras obras, como afrescos, pinturas
em tela e esculturas. Sabemos, contudo, que o inverso também ocorria, principalmente
se uma gravura com conteúdo considerado inovador se fizesse muito conhecida.

A identificação de produtores de gravuras como “gravuristas” será mais conhecida a


partir dos escritos na obra “Vidas” de Vasari, principalmente após a seção em que o historia-
dor biografa a vida de Albrecht Dürer. Essa identificação requer um pouco mais de atenção.
A denominação “gravurista” se encaixa em três ofícios diferentes, que atuam num mesmo
produto, pois a gravação perpassa ao menos três etapas. Há um inventor, que é aquele que
produz um desenho, geralmente em papel com tinta, que será o conteúdo da gravura;
num segundo momento, há a atuação de um gravador, conhecido como escultor, que é o
responsável por receber o desenho e “copiá-lo” numa superfície sólida (no caso das obras
aqui tratadas, numa chapa de cobre), com uma ferramenta chamada “buril”, que tem uma
extremidade pontiaguda, capaz de fazer sulcos na superfície sólida utilizada; no terceiro
momento, essa superfície sólida é levada para o executor, responsável por preencher a su-
perfície sólida com tinta e depois pressioná-la contra uma folha de papel que será marcada
com o desenho existente na superfície. A matriz sólida poderia ser de materiais diversos,
como por exemplo, a madeira, o cobre, uma pedra, etc. Segundo Alison Stewart, a utilização
de cobre (calcogravura) é datada no mundo europeu a partir de 1430, na Renânia, após a
já comum utilização da madeira (xilogravura), desde 1410, na Alemanha, França e Áustria
(STEWART, 2013). As práticas de produção de gravuras já eram conhecidas no oriente há
muitos séculos, mas só foram adaptadas para os padrões europeus no século XV.

262
Stradanus foi um inventor, ou seja, um desenhista de gravuras, aquele que produzia
o conteúdo a ser gravado e impresso. Na obra de Vasari, escrita entre 1550 e 1568, Stra-
danus já aparece como um bom desenhista, habilidade que lhe garantiu espaço no mer-
cado visual do período. Após a morte de Vasari - seu mestre -, Stradanus se dedica cada
vez mais à gravura e menos à pintura, fazendo parcerias com a família Galle, importante
no ramo de impressões na cidade de Antuérpia, nos Países Baixos. Primeiro Stradanus se
relaciona com Philips Galle (1537-1612), depois com seu filho Theodor Galle (1571-1633)
e o filho dele, Johannes (1600-1676). A produção da primeira edição de Americae Retectio
é feita com Philips e seu genro Adriaen Collaert. As próximas 4 edições publicadas entre
1591 e 1638 foram produzidas por Theodor e Johannes (MARKEY, 2012).

A maior parte da produção de Stradanus sobrevive no ramo das gravuras. O autor


desenhou temas diversos, que vão desde interpretações sobre a Bíblia, até caçadas, guer-
ras, temas da antiguidade e também temas mitológicos. Dependendo da encomenda,
Stradanus incluía mitologia grega em alguns contextos históricos, como numa série em
que retrata sobre a Descoberta da América, na qual os três grandes viajantes: Americus
Vespuccius, Christophorus Colombus e Ferdinandes Magalanes, são guiados por divinda-
des gregas, dependendo da necessidade do navegante.

Imagem 1: “Autorretrato de Johannes Stradanus”, desenho por Johannes Stradanus e impressão por
Johannes Wierix. Gravura em papel, 1581.

Fonte: British Museum.

263
Imagem 2: “Autorretrato de Johannes Stradanus”, desenho por Johannes Stradanus, gravação por Hen-
drick Goltzius e impressão por Johannes Wierix. Gravura em papel, 1583.

Fonte: British Museum.

Johannes Stradanus também produziu desenhos-base para gravuras sobre artistas


renomados no período, incluindo a si mesmo. As séries de retratos de artistas de grande
fama se tornaram um gênero amplamente produzido no ramo das gravuras e perdura-
ram, pelo menos, até fins do século XVII, quando Sebastiano Resta publicou um livro com
retratos em gravuras dos “mais eminentes pintores e artistas que floresceram na Europa”,
em 1694 (RESTA, 2011) . Nesses dois autorretratos, um de 1581 e outro de 1583, pode-
mos perceber alguns acréscimos feitos por um outro gravurista nortenho conhecido no
período, Hendrick Goltzius (1558-1617). O autorretrato publicado em 1581 traz figuras
alegóricas que circulam o halo de apresentação de Stradanus, representando a Arte da
Leitura (acima) a Arte da Pintura (à esquerda) e a Arquitetura e Perspectiva (à direita)2,

2 Katherine Park destaca que as alegorias são “representações físicas abstratas de conceitos, geral-
mente encorpados – sendo uma das principais formas literárias e visuais de comunicação na Europa Mo-
derna”, utilizadas para atribuir valores aos conteúdos das obras (PARK, 2011, p. 360, tradução nossa).

264
além de ornamentos, expressões e figuras grotescas3 (MARKEY, 2020). Já a publicação de
1583 trouxe algumas alterações, porque Hendrick Goltzius também participou da obra
como “escultor”, acrescentando detalhes no próprio design da gravura. O que Goltzius
acrescenta indica uma linha de pensamento de autovalorização não incomum no perío-
do. Itens como o compasso que fica abaixo da figura da Arquitetura, indicam harmonia
e equilíbrio, além da cabeça de leão alada abaixo do rosto de Stradanus, que é um dos 4
animais descritos no livro Apocalipse pelo apóstolo João. O leão alado (também conheci-
do como “Leão de São marcos”) fica sentado ao lado do trono de Jesus e é visto por João,
sendo o primeiro dos 4 animais a ser descrito pelo apóstolo. O leão é aquele que anuncia
a segunda chegada de Jesus Cristo, promovendo-lhe fama e glórias “sem descansar nem
de dia nem de noite” (A BÍBLIA, 2015, p. 1906). Outro acréscimo de Goltzius é destacável
aqui, como a mão de Stradanus que sai do halo de apresentação do artista, segurando
uma pena, quase como se o próprio Stradanus se desenhasse. A mão de Stradanus não
apenas parece se desenhar, mas também parece se construir, pois sua fama advém de seu
trabalho baseado na razão e objetividade, como veremos adiante.

A representação de objetos matemáticos acompanhando artistas estava associada ao


conhecimento do mundo material, já que estas ferramentas estavam presentes nos estudos
dentro do Quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia/astrologia). Os estudos
do Quadrivium eram vistos, segundo Katherine Park, de forma quase pejorativa, como “ciên-
cias medianas”, porque estavam ligadas à materialidade e não à subjetividade, como as áreas
do conhecimento contidas no Trivium (gramática, retórica e dialética). Contudo, ao longo do
século XVI as artes manuais começam a ser valorizadas pelos gravuristas nortenhos, princi-
palmente como formas de autovalorização, visto que se utilizavam destas ferramentas em
seus ofícios. Alguns gravuristas dos Países Baixos retrataram as áreas do conhecimento do
Quadrivium, como fez Virgil Solis (1514-1562), que os representou idealizados como deuses
supramundanos, enquanto Sebald Beham (1500-1550), em 1519, os representou como pes-
soas fisicamente fortes e poderosas, muito embora ainda ligadas ao mundo material, possi-
velmente influenciado pela obra “Melancolia” de Abrecht Dürer (1471-1528), que representa-
va as “ciências medianas” como objetos técnicos inseridos no mundo material (PARK, 2011).

3 As frases “IPSA VIVITUR”, “NON FALLITUR”, “RATIONE PERFECTUS” e “QUID NON SUPERBAT”, lidas jun-
tas formam: “Na razão, a vida é vivida mais perfeitamente; o que não excede não erra”. A frase “SOLA MA
NET VIRTUS, LABUNTUR CAETERA QUAEQUE AND DIVITAE VIRES, FAMA IVVENTA DECUS” se traduz como: “Resta
apenas a virtude, todo o resto se esvai: riquezas, força, fama, juventude, glória” (MARKEY, 2020, p. 184).

265
O gravurista alemão Augustin Hirschvogel (1503-1553) também retratou as “ciên-
cias medianas”, mas o fez em seu autorretrato, substituindo o pincel e o buril, instrumen-
tos típicos conhecidos no ramo de gravuras, por compassos e uma alegoria da Geome-
tria. Ainda segundo Katherine Park, “em meados do século XVI, entretanto, os artistas
começaram a se promover pelas suas habilidades particulares, anteriormente ligadas às
“artes mecânicas”, em alegorias, que corajosamente inseriram a imprensa e o desenho
ao ramo das Artes Liberais” (PARK, 2011, p. 363, tradução nossa). O conhecido pintor fla-
mengo, Frans Floris (1517-1570), fez o mesmo quando colou uma gravura na porta de sua
própria casa, em 1560, representando alegoricamente a Pintura, Escultura e a Geometria.
Portanto, Stradanus, já em 1583, estava familiarizado com a utilização de alegorias e ob-
jetos materiais em retratos, indicando as “artes manuais” não mais como partes inferiores
do conhecimento, mas valorizando-as, ao mesmo tempo que se valorizava. Park aponta
ainda que Stradanus foi um dos primeiros autores a dar um passo ainda mais além na
valorização das “ciências medianas”, pois algumas de suas gravuras que representam a
conquista da América demonstram a superioridade europeia em relação aos ameríndios
pela utilização de instrumentos racionais em oposição ao mundo supostamente irracio-
nal em que os nativos viviam (Idem, 2011).

Segundo Alessandra Baroni Vanucci, uma das maiores especialistas no estudo das
obras de Stradanus, o gravurista flamengo trazia ainda em suas obras outras facetas da
autovalorização, como pode ser percebido no lema inscrito abaixo de seu rosto nas ima-
gens 1 e 2: “ASSIDUITATE NIHIL NON ADSEQUITUR”, que se traduz como “Não há nada que
não possa ser alcançado por perseverança”, indicando uma perspectiva de valorização do
artista pela sua perseverança e não por talentos inatos. Esses autorretratos foram usados
como frontispício adicionados nas séries de gravuras “Passio Mors et ressurrectio de Nostri
Jesu Christo” (ca. 1584) e a “Encomium musicae” (ca. 1590), pois era comum, segundo Lia
Markey, que autores acrescentassem autorretratos nas suas séries, principalmente para
fazer sua imagem ser reconhecida (MARKEY, 2020). Alguns outros gravuristas, ainda se-
gundo a autora, buscavam formas de autovalorização muito mais amplas e destacadas,
como fez o próprio Hendrick Goltzius, que se dizia como o “Apeles de seus tempos”, um
conhecido pintor da Antiguidade clássica (VANUCCI, 2011, p. 5).

A prática de valorização e autovalorização renascentista cria uma perspectiva dos


artistas que está muito próxima da concepção moderna de artista, aquele que produz
solitário e é detentor de todas as etapas da produção de uma obra de Arte. Apesar de
muitos deles (incluindo-se os gravuristas) do século XVI não serem os únicos integrantes

266
dos processos de produção de suas obras, como ocorrerá nos séculos XVIII e XIX, a no-
meação de obras passa a ser um dos aspectos importantes quando elas são finalizadas.
No caso das gravuras, as obras são geralmente nomeadas por todos os seus autores. Um
dos primeiros gravuristas a começar a identificar a autoria das obras é Albrecht Dürer,
após ter descoberto que Marcantonio Raimondi copiava suas gravuras e as vendia como
se fossem de autoria dele (VASARI, 2009). O individualismo renascentista, segundo Jean
Delumeau, influencia no aumento da valorização dos artistas, principalmente a partir dos
retratos e autorretratos, que visavam o estabelecimento de um status soberano daquele
que possui habilidades consideradas raras e se destacava em meio aos demais cidadãos
(DELUMEAU, 1994).

Após um bom tempo na península itálica, sem ter perdido contato com os países
baixos, Johannes Stradanus falece em 2 de novembro de 1605, em Florença. Sua sepultura,
como era comum desde a morte de Leonardo Bruni, não carregava mais os traços medie-
vais que visavam à eternidade da alma, mas sim a valorização de seus feitos em vida e de
sua individualidade. Segundo Horst Janson, as tumbas eram dispostas de modo que po-
diam valorizar o indivíduo, não mais o direcionando para o Paraíso, mas sim para a História.
Leonardo Bruni, por exemplo, é enterrado com o livro “História de Florença”, uma coroa de
louros e com o manto que usou como secretário da República de Florença (JANSON, 1966).

Imagem 3: “Busto de Johannes Stradanus”, Giovanni Battista Caccini, mármore e metal, 1606, Florença.

Fonte: Wikimedia Commons

267
Apesar de não termos muitos dados sobre o sepultamento de Stradanus, sabe-
mos que um busto foi construído para sua lápide na Basílica Della Santissima Annuziata,
em Florença, por Giovanni Battista Caccini (um escultor também a serviço dos Médici) e
carregava a inscrição: “IOANNI STRADANO BELGAE BRUGENSI PICTORI CLARISSIMO IN HAC
AEDE QUIESCENTI SCIPIO FILIUS IMAGINEM AD VIVUM EXPRESSUM MOERENS BENEMEREN-
TI -P- MDCVI VIXIT ANNOS LXXXII OBIIT QUARTO NONAS NOVEMB. MDCV”, traduzida como
“Johannes Stradanus, belga brugense, pintor brilhantíssimo nessa quiescente imagem
de filho de Scipio, vivem expressos seus beneméritos de morte -P- 1606, viveu 82 anos,
morreu em 2 de novembro de 1605” (imagem 3). Essa inscrição identifica Stradanus como
“pintor brilhantíssimo” e não como gravurista. Isso possivelmente se deve ao fato de que
a gravura não era tida sempre como uma das formas de Arte e também porque, por ter
pintado o interior de muitas igrejas, pode ter sido mais reconhecido no ramo eclesiástico
por seus afrescos e menos por suas gravuras. A identidade de Stradanus não é monolítica,
mas sim, fragmentada, sendo pensada e vista por seus contemporâneos e por si mesmo
de acordo com seus contextos e seus valores. Essa variação da identificação de um artista
é um dos sintomas da crescente fragmentação moderna presente na autovalorização do
artista.

268
REFERÊNCIAS

A BÍBLIA. Apocalipse. Tradução de João Ferreira Almeida. Rio de Janeiro: King Cross


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BORGHINI, Raffaello. Il Riposo. Ed. Mario Rosci. Edizioni Labor, vol. 2. Milão, 1967.

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translations, 1450-1750, imagem, materiality, space. Ed. Routledge, New York, 2017.

269
MARIA LEOPOLDINA, A MÃE DO BRASIL: A REPRESENTAÇÃO
BIOGRÁFICA A PARTIR DA ESTÉTICA MONUMENTAL

Mayara Monteiro Guimarães1

Introdução

Segundo Félix (2004), o processo de construção das imagens é importante para


rememorar e refletir sobre a memória, que em grego significa “uma deusa identificada
como mãe das musas e das divindades responsáveis pelas memórias e inspiradora da
imaginação criativa dos artistas e poetas” (p, 35). Poderíamos, talvez, ousadamente dizer
que Leopoldina seria esta musa para o Brasil, pois a austríaca inspirou diversos artistas,
como poetas e pintores. Em homenagem a Imperatriz, foram produzidos diversos sone-
tos, pinturas e manifestos, contendo desde agradecimentos até lamentos por sua pre-
matura morte em 1826; no século XX e XXI documentários, livros, monumento(s) foram
produzidos, até escolas de samba fizeram homenagem a primeira Imperatriz - a mártir,
que renunciou seus interesses pessoais e que sofreu humilhações públicas e traições por
parte de seu esposo, mas que sempre colaborou com a sociedade por meio da política
e das obras de caridade. A Imperatriz também contribuiu de forma significativa em pro-
cessos históricos do Brasil, como o Dia do Fico e a Independência do Brasil – a presença
de Leopoldina nestes processos históricos teve uma grande representatividade, pois era
uma mulher mostrando sua educação e habilidades para atuação política nos momentos
mais importantes da História, num contexto em que a sociedade brasileira era regida por
um pensamento patriarcal.
Segundo Oberacker Jr (1973) D. Leopoldina apesar de ter perdido o amor do Impe-

1 Graduada em Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Goiás. Mestrando(a) do Pro-


grama de Pós-Graduação Stricto Sensu em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado- TECCER/UEG.
Email: mmguimamonteiro@gmail.com

GUIMARÃES, Mayara Monteiro. Maria Leopoldina, a mãe do Brasil: a representação biográfica a partir da es-
tética monumental, In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográficas
na História e na Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020. p.
270-281.
rador D. Pedro I para amante Domitila de Castro, conquistou o amor do povo brasileiro,
que muito admirou sua atuação social e política, e a considerou a matriarca da nação
independente.

A Habsburgo

Leopoldina nasceu no dia 22 de janeiro de 1797, em Viena, antiga fortaleza medieval


da família absolutista Habsburgo desde 1282. Filha de Francisco I, também Imperador do
antigo Sacro Império Romano-Germânico e de Maria Tereza das Duas Sicílias, foi batizada
com o nome de Carolina Josefa Leopoldina e lhe foi concedido o Título de Arquiduquesa.

Para a família Austríaca a educação era primordial, não só para os homens, como
também para as mulheres - ambos falavam diversos idiomas, tinham conhecimentos das
ciências naturais e da política. Segundo Rezzutti (2017) os membros da família Habsbur-
go também desenvolveram um modelo ativo de iniciativas em que se sobressaíram por
meio da caridade e que com o tempo passaram a ser parte inerente da feminilidade das
mulheres pertencentes à casa da Áustria.

Leopoldina desde muito nova dedicou-se aos estudos da mineração, botânica, lite-
ratura e religião. Tal dedicação aos estudos fica destacada em sua carta destinada à irmã
Maria Luisa.

11 de outubro de 1810: Quero te descrever brevemente meu programa diário: levan-


to-me às sete e meia, às oito e meia vou à igreja, às nove chega Felβenber, todos
os dias; às segundas, quartas e sextas, vem Jung das dez às onze, e às terças, quintas e
sábados, faço minhas lições; das onze às doze todos os dias vem Obernauβ. À tarde,
das três às oito, tenho todos os quatro e nos outros dias DarnauteEibler e todos os
dias Ridler [...].(CARTA DA IMPERATRIZ apud REZZUTTI, 2017, p. 65)

Além dos amplos estudos na área das ciências naturais, a jovem arquiduquesa estava
cada vez mais inserida nas reuniões políticas e apesar de não gostar tanto dos eventos de
gala, sempre comparecia. Em uma de suas cartas após o Congresso de Viena, em 1814, a Ar-
quiduquesa relata a angústia e falta de paciência para tais eventos da nobreza, dizendo que:

[…] Nossa vida atual não me agrada em nada: das dez da manhã às seis da noite

271
estamos continuamente em vestido de gala, de pé, passando o dia em cumprimen-
tos e ociosidade. Todos os dias temos um jantar de 34 pratos, que começa às quatro e
dura três horas, já que oczar da Rússia deixa-nos esperando durante duas horas […]2.
(apud REZZUTTI, 2017.p, 74-75)

No mesmo período, os biógrafos da Imperatriz afirmam que Francisco I, pai de Le-


opoldina, procurava um casamento para a filha, ou melhor dizendo, uma aliança para a
fortificação da família. Mas somente em 1816 que a família monarca firmava o casamento
- a jovem se casaria com D. Pedro, filho de D. João VI de Portugal. O casamento ocorreu
por meio de uma procuração que foi assinada em Viena, em maio 1817, o mesmo foi legi-
timado no Rio de Janeiro, meses depois.

Austríaca no Brasil: Entre a alegria e a indiferença

A Arquiduquesa chegou em 05 de novembro de 1817. Com ela, trouxe livros, co-


leções da mineração e pessoas com o conhecimento em diversas áreas do saber, como:
médicos, botânicos, zoólogos, mineralogistas e pintores naturalistas. Os estudiosos que
vieram ao Brasil com a Princesa em 1817 fizeram parte da “Missão Cientifica”, cujo obje-
tivo era conhecer o território, suas preciosidades naturais e os limites geográficos. Além
desta grande contribuição cientifica, D. Leopoldina trouxe sensibilidade, inteligência e
carisma ao povo brasileiro.

Quando a Princesa pisou nas terras do Brasil descreveu que […] Nem pena nem
pincel podem descrever a primeira impressão que o paradisíaco Brasil causa a qualquer
estrangeiro3, além disso, o povo havia preparado uma bela recepção. Del Priore destaca o
cortejo através da narrativa do Padre Perereca, cronista do evento:

“A filha do César austríaco pisava o solo do Brasil” entrando na mais “afortunada cidade
do Novo Mundo”, anotou um entusiasmado observador. Miríades de pessoas, que ha-
via dois dias aguardavam no cais, espremiam-se para acompanhar ou ver passar o
cortejo, que era precedido por batedores, músicos, porteiros e arautos, todos com
librés ricamente adornadas e plumas brancas nos chapéus. [...]Senhoras brasileiras

2 Citação retirada de D. Luís, O último marquês de Marialva, p. 37-52.

3 KANN E LIMA, op. cit., p. 313 apud REZZUTTI, 2017.p.193.

272
às janelas traziam seus melhores trajes e abanavam seus lenços coloridos. Uma chuva
de flores caía sobre os passantes e nuvens de aromas perfumavam os ares. Ao longo
do percurso e nas ruas vizinhas, como a do Sabão e dos Pescadores, serpentinas,
lustres de cristal, mangas e globos de vidro “pareciam uma só chama de fogo de várias
cores[...]. (DEL PRIORE, 2012.p,11-12)

A Princesa foi muito bem recebida e teve uma verdadeira festa de boas-vindas. Nas
cartas da Imperatriz, divulgadas nas biografias, vemos uma Imperatriz muito simpáti-
ca com os brasileiros e muito preparada para o saber, no entanto, despreparada para o
mundo, pois havia consigo, uma “filosofia” de vida muito atribuída às ideias religiosas.
Os biógrafos afirmam que ela era uma mulher muito alegre e que apesar das desilusões
matrimoniais, a jovem mãe desempenhou um papel caridoso e diplomático fundamental
ao povo brasileiro.

Ao que diz respeito à vida conjugal de Leopoldina e D. Pedro, os biógrafos expres-


sam que a vida em “harmonia” e “feliz” durou muito pouco, e que as maiores alegrias do
casal foram os filhos. Mary Del Priore apresenta em “A Carne E O Sangue” que depois da
entrada de Domitila de Castro, a vida matrimonial do casal se transformou em continuas
frustrações e indiferenças. A jovem Imperatriz passou a ser apenas a conselheira e pro-
genitora dos filhos herdeiros de D. Pedro I, tal fato a colocou em um estado extremo de
melancolia, pois tinha profundo sentimento por seu esposo e o mesmo, gerou uma serie
de humilhações a Imperatriz. Em uma das cartas escritas para sua irmã Luisa, D. Leopol-
dina descreve:

[…] Homens continuam sendo homens e nós mulheres devemos nos distinguir por
paciência, virtude e conselhos serenos, dados na hora oportuna; eles sempre voltam
e então nos prezam ainda mais e a pedra fundamental da verdadeira felicidade está
na serenidade, virtude, paciência e força interior [...] Poderia dizer também que estou
sozinha aqui, pois vejo tantas atitudes contraditórias que não consigo dormir direito,
e não sei se tenho um amigo em meu esposo e se sou realmente amada, e
sabes que uma maneira de pensar igual e sentimentos genuínos faz em a verdadeira
felicidade; entretanto prossigo no governo da casa, nunca negligenciando meus
deveres […].(RIZZUTTI, 2017.p.224.)

Na carta, ficam subentendido as traições do marido e a ‘função da mulher no casamento’; a


perda das satisfações; a dor e os horrores da indiferença do marido, que ela precisou suportar para
manter a aparência e minimizar escândalos que pudessem abalar a confiança do povo brasileiro.

273
Em maio de 1822 um grupo de mulheres baianas escreveu um manifesto político
em apoio à Leopoldina, dizendo:

[...]E ponderando nos que nesta heroica resolução teve V.A.R., anuindo ao que de-
liberava seu augusto e adorado esposo […] mostrando assim quanto é digna do
trono para onde a vontade do Onipotente arbítrio dos impérios a tem chamado;
possuídas do maior respeito, depois de congratularmos aos nossos conterrâneos
por termos entre nós tão preciosas e augustíssimas pessoas, vimos oferecer os
nossos corações, únicas oblações que pôs a natureza ao alcance do nosso sexo,
para que faça a posteridade o devido conceito das brasileiras e, em particular das
baianas.(REZZUTTI, 2017.p,291.)

Esta foi uma das primeiras manifestações em apoio e reconhecimento a D. Leopol-


dina para defender os interesses dos brasileiros(as). Desde 1821, a Princesa Leopoldina fa-
zia distinções entre “brasileiros” e “portugueses”, e “sua tendência em pender para o lado
do Brasil contra Portugal aparecia ora nas entrelinhas, ora de forma explícita” (REZZUTTI,
2017.p,258). Então, no dia 02 de setembro de 1822, Leopoldina, como Regente Interina
do Reino Unido do Brasil, convocou o Conselho de Estado no Palácio de São Cristovão
para a deliberação a favor do Brasil, que decidiu sob a sua presidência e de forma unâni-
me a separação do Reino do Brasil, do Império Português. A Independência foi oficializa-
da com D.Pedro I em 07 de setembro de 1822.

Antônio de Vasconcelos Menezes de Drummond, um dos grandes o estudiosos de


humanidades do século XIX, (re)escreve que o povo brasileiro reconhecia Leopoldina como:

[…] uma princesa que não nascera no Brasil, mas que o amava como se nele nascida
fosse. Fui testemunha ocular e posso asseverar aos contemporâneos que a princesa
Leopoldina cooperou vivamente dentro e fora do país para a independência do Bra-
sil. Debaixo deste ponto de vista o Brasil deve à sua memória gratidão eterna.
(DRUMMOND.1885-1886 op. cit., p. 42 apud REZZUTI, 2017.p, 297.)

D. Leopoldina muitas vezes fora tratada com indiferença por seu esposo, tanto no
casamento quanto nas questões políticas. Mas, diferentemente de D. Pedro, sua posição
política era muito mais firme e sempre pendia para o lado do Brasil - fato que colaborou
para a decisão mais importante da história brasileira, assim defendendo o trono dos fi-
lhos e os interesses dos brasileiros, e que acabou por conquistar o amor e a simpatia de
todos da nação.

274
A estética: Entre a biografia e o monumento da Imperatriz do Brasil

A estética filosófica foi um estudo muito discutido na Antiguidade, no entanto, ape-


nas no século XVIII que iluministas, como Kant e Burke se debruçaram sobre os concei-
tos de belo e sublime. Edmund Burke, em 1757, foi quem primeiro retratou a beleza e o
sublime como forças opostas. Para o filosofo, a ideia de beleza esta associada em algo
distinto da luxuria ou do desejo, o objeto belo transmite ao sujeito uma emoção que
proporciona o prazer ou um sentimento positivo; já o sublime é aquele sentimento que
gera terror (medo/morte) ao mesmo tempo pode gerar o deleite (medo e prazer) porque
não representa um perigo imediato, seus menores efeitos geram admiração, reverencia
e o respeito; na perspectiva de Immanuel Kant o belo e o sublime são comoções agradá-
veis, mas o segundo é bem diferente do primeiro, pois o sublime está associado à razão
e relacionado à comoção de um sentimento violento, para o filosofo o sublime é capaz
de suscitar o assombro e o sentimento de melancolia, em alguns casos, causa admiração,
ou uma beleza que atinge a dimensão do sublime que também pode estar vinculados às
virtudes úteis a sociedade.

Imagem I, II e II: Monumento destinado à Imperatriz Leopoldina

Fonte: Inventário dos monumentos do Rio de Janeiro. http://www.inventariodosmonumentosrj.com.br/index.


asp?iMENU=catalogo&iiCOD=655&iMONU=Imperatriz%20Leopolina:> Acessado em: 20 de maio de 2020.

O monumento de bronze tamanho natural, reproduzindo a figura da Imperatriz

275
Consorte D. Leopoldina acompanhada de seus filhos, herdeiros do trono de Portugal e do
Brasil: a primogênita, princesa d. Maria da Gloria, e o filho mais novo de colo, sucessor e D.
Pedro I; o Imperador D. Pedro II. Foi uma iniciativa de instituições brasileiras e austríacas,
para reverenciar uma das personagens mais expressivas da trajetória do país, no ano de
comemoração dos 200 anos do nascimento da primeira Imperatriz do Brasil.

A Imperatriz D. Maria Leopoldina, faleceu em 11 de dezembro de 1826 em conse-


quência de um aborto. Sua morte gerou grande comoção na população brasileira e fez
“o despertar” de sua importância política e social: “pela primeira vez sentiam-se irmãos,
o ódio nacional calava-se e os ressentimentos nacionais desapareciam4”, ou seja, os bra-
sileiros adquiriram o sentimento de fraternidade. Nos discursos, ela aparecia como a ma-
triarca da Independência, mãe do futuro Imperador do Brasil e mártir da paciência, e por
isso, merecia a eterna lealdade brasileira. Em outros momentos destacavam como era
sensível, caridosa, virtuosa e devota ao povo, pois sempre buscou socorrer aqueles que
mais necessitavam5. As biografias apresentam que a imagem da Imperatriz se consolidou
por seu desempenho como monarca e sua tão valorosa “simpatia”. Segundo Burke (2016)
a “simpatia”é o fato do indivíduo se preocupar com os outros, é quando nos colocamos
no lugar do outro gerando “uma espécie de substituição”, no qual, somos afetados da
mesma forma pelo o sofrimento.

Paulo Rezzutti, Carlos H. Oberacker Jr., Mascarenhas Menck e Mary Del Priore, apre-
sentam nas biografias a comoção da população do Rio de Janeiro com a morte da Impe-
ratriz, o resultado desta comoção foi à construção de inúmeras publicações em jornais,
inclusive produções de sonetos, destacando o sentimento de orfandade da população:
“[...] aquella Augusta!…Sublime dom a Mão Omnipotente/Ao pezar foi roubada, e dôr
mais justa/Corra do pranto, solte-se a torrente/Que este golpe tirano a Mãe nos custa/E
que Mãe!!! Sabe o Ceo; a Terra o sente6”. No século XX e XXI o sentimento é diferente, mas

⁴ SEIDLER apud DEL PRIORE, 2012.p, 111.

⁵ Leopoldina foi responsável pela criação de diversas instituições de caridade, como: asilos e orfanatos.

⁶ Soneto divulgado na Biografia “D. Leopoldina: A História não contada”, escrita por Paulo Rezzutti,
2017.p, 230.

276
a representação da primeira Imperatriz ainda é percebida como a mãe e matriarca do
Brasil que colaborou de diferentes formas para a sociedade, sua importância e represen-
tatividade culminaram em diferentes produções de sua história, como: o monumento,
biografias, músicas carnavalescas, documentários e novelas, ambos reforçando a imagem
da mãe solitária, virtuosa, e muito admirada pela população.

Imagem II

No livro Investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do


belo, publicado em 1757, Edmund Burke nos diz que as paixões determinam o destino do
ser humano, seja o de viver em harmonia com a sociedade, resultando em várias fontes
de prazer, ou o de lutar pela sobrevivência, que, por conseguinte, resulta na consciência
da dor e do sacrifício.

Sem qualquer dúvida, os tormentos que podemos sofrer são muito maiores em seus
efeitos sobre o corpo e a mente do que quais quer prazeres que o mais erudito sensua-
lista possa sugerir, ou do que a imaginação mais viva e o corpo mais requintadamente
sensível possam desfrutar. (BURKE, 2016.p, 52.)

As paixões possuem diversos aspectos e que também são fontes para o sublime,
que em seu menor grau, proporciona a sensação de admiração, respeito e reverencia;
prazeres subordinados e intimidadores. As paixões podem estar ligadas a autopreserva-

277
ção, sendo este o sentimento mais forte de todos; outras estão relacionadas à sociedade
e se destingem em duas perspectivas: a primeira é a “sociedade dos sexos”, este perten-
cente ao amor (luxúria) em que o objeto de beleza é a mulher; a outra é “a sociedade em
geral”, este nos faz perceber que existem escolhas em que somos movidos pelo prazer.
No caso do monumento da Imperatriz, ele nos move a observá-lo porque além de nos
conduzir a ideia da maternidade, ele também nos transmite o sentimento de solidão, que
está vinculado às privações em geral; para Burke (2016) “todas as privações gerais são
grandiosas” isso porque estão vinculadas a escuridão, solidão e vazio.

Imagem III

Tanto para Burke quanto para Kant, os objetos sublimes possuem grandeza, cor
escura, polidez, potência na expressividade, solidez e magnificência. Por tanto, pode-se
compreender que o monumento é sublime pelas seguintes características: ela está repre-
sentada somente com os filhos e sem a presença D. Pedro I, seu esposo, essa caracteriza-
ção perpassa a sensação do abandono matrimonial; a cor escura; a estatura em tamanho
real e a solenidade da postura e das vestimentas transmitem a ideia de grandeza, ou
nobreza; a posição centralizada dos corpos com todos olhando para frente sem nenhum
sorriso – características que promove um sentimento melancólico, mas que ao mesmo
tempo, gera admiração, respeito e digno de está ali.

278
De acordo com o pensamento de Emmanuel Kant (1993) a dignidade é uma virtude
moral, relacionada diretamente à justiça e a sabedoria – condutas genuínas, que neste
caso, representa a consolidação da imagem de D. Leopoldina enquanto mãe e matriarca
do Brasil.

Conclusão

Conclui-se que a representação biográfica a partir da estética monumental encon-


tra-se na consolidação da imagem de D. Maria Leopoldina como soberana, mãe protetora
e solitária. No entanto, as obras biográficas de Paulo Rezzutti, Mary Del Priore, Mascare-
nhas Menck e Oberacker Jr., desvelam que apesar da princesa austríaca ser apresentada
e representada como a jovem mãe solitária e “abandonada” por seu esposo, conquistou o
amor do povo brasileiro e manteve sua postura diplomática até as últimas consequências
para defender a monarquia, manter a estabilidade política e a boa relação com os brasi-
leiros.

O monumento em bronze a reconhece como participante do processo de Inde-


pendência do Brasil; a consolidação de sua imagem como matriarca da nação brasileira
e musa inspiradora para artistas. Outra questão a ser destacada é a descrição da reminis-
cência: “À Imperatriz Leopoldina, o Brasil Independente” – nos fazendo refletir que entre
os “pais da Independência” do Brasil, aqueles que receberam o titulo de “heróis da pátria”,
existiu a Imperatriz Leopoldina, mãe dos herdeiros da monarquia e da nação indepen-
dente, remontando a ideia de “heroína” que conquistou e fez grandes feitos à sociedade
brasileira tanto na presença, quanto na ausência de D. Pedro I.

O objeto estético dispõe de uma sensibilidade e solidez, que indica força e resistên-
cia, assim como as biografias apresentam a austríaca como uma mulher forte e determi-
nada. D. Maria Leopoldina foi muito mais que uma esposa obediente, uma mãe amorosa
e conselheira do Príncipe Regente, ela era uma estadista, Princesa da Independência, in-
centivadora das Artes e da Pesquisa Cientifica no Brasil.

279
Por mais que atualmente existam outras perspectivas sobre a Imperatriz, a imagem
de mãe solitária e matriarca da nação brasileira, abandonada pelo marido, mas amada
pelo povo, ainda se faz presente, e o monumento em comemoração aos 200 anos de seu
nascimento é a consolidação desta imagem que foi construída ainda no século XIX. A re-
miniscência também apresenta a estética do sublime em menor grau, pois incita respeito,
reverência, admiração e melancolia ao observador. Além disso, o objeto monumental nos
envolve em um passado, que apesar de tudo, nos causa uma “inflexível admiração7”.

⁷ Expressão encontrada na obra “Observações sobre o sentimento do belo e do sublime: Ensaio sobre
as doenças mentais” (KANT, 1993), para referir-se a um passado sublime.

280
REFERÊNCIAS

BURKE, Edmund. Investigação Filosofica Sobre a Origem de Nossas Ideias do Subli-


me e da Beleza.1.ed.São Paulo. Edipro Editora Ltda, 2016. 156 p.

DEL PRIORE.Mary. A carne e o sangue: A imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro I e Domitila,


a marquesa de Santos – Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2012.166 p.

FÉLIX, Loiva Otero. História e Memória: a problemática da pesquisa. Passo Fundo: UFP,
2004. Cap.2. 32-57 p.

KANT. Emmanuel. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime: Ensaio


sobre as doenças mentais. Tradução Vinicius de Figueiredo. – Campinas, São Paulo: Papi-
rus, 1993. 81 p.

MENCK, José Theodoro Mascarenhas. D. Leopoldina, imperatriz e Maria do Brasil – 2.


ed. – Brasília : Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2018. 142 p. Disponível em: ht-
tps://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/34580.Acessado em: 20 de mai. de 2020.

OBERACKER JR. Carlos H. A Imperatriz Leopoldina. Sua vida e sua época. Editado pelo
Conselho Federal de Cultura. Departamento de Imprensa Nacional. Rio de Janeiro. 1973.
391-394p. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/76257.
Acessado em: 20 de mai. de 2020

REZZUTTI, Paulo. D. Leopoldina: A história não contada: A mulher que arquitetou a


Independência do Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/LeY a Editora Ltda, 2017.432 p.

Site(s) acessado(s)

Inventário dos monumentos do Rio de Janeiro. Catálogo: Imperatriz Leopoldina.


c2015. Disponível em: http://www.inventariaodosmonumentosrj.com.br/index.asp?
atalogo&iiCOD=655&iMONU=Imperatriz%20Leopolina:> Acessado em: 20 de maio de
2020.

281
ENTRE O SACRO E O PROFANO: NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS NA
PINTURA DE NAZARENO CONFALONI (1950-1977)

Jacqueline Siqueira Vigário1

Eu não tinha este rosto de hoje, 


assim calmo, assim triste, assim magro, 
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força, 
tão paradas e frias e mortas; 
eu não tinha este coração que nem se mostra. 
Eu não dei por esta mudança, 
tão simples, tão certa, tão fácil: 
Em que espelho ficou perdida a minha face?

Cecília Meireles

Admitindo a discussão complexa no campo da história que trata sobre biografia e


auto/biografia, o texto apresenta análise de três autorretratos do artista moderno italia-
no Giuseppe Nazareno Confaloni2 em momentos distintos. Trata-se de uma sequência
que obedece uma linha de tempo, guardando relação com o ambiente o qual viveu e

1 Doutora em História pela Universidade Federal de Goiás, com doutorado Sanduiche pela Universitá
Degli Studio di Genova. É membro do GEHIM - Grupo de Estudos de História e Imagem CNpq. Email: vigario.
jacqueline@gmail.com

2 Giuseppe Nazareno Confaloni é um artista italiano que veio para Goiás no ano de 1950 para pintar
os afrescos da Igreja Rosário do Pretos a pedido do Bispo da prelazia na época, Dom Cândido Penso. Chega
a Goiânia em 1952, aqui inicia uma ação cultural que culmina em dois eventos importantes como marco de
ruptura artística: a criação da Escola Goiana de Belas Artes (EGBA) em 1953 e o Congresso Internacional de
Intelectuais em 1954. O artista é apropriado pela crítica, os intelectuais e políticos como o pioneiro da arte
moderna em Goiás.

VIGÁRIO, Jacqueline Siqueira. Entre o sacro e o profano: narrativas autobiográficas na pintura de Nazareno
Confaloni (1950-1977), In: GRUPO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E IMAGEM - GEHIM, X, Imagens Auto/Biográfi-
cas na História e na Prática Artística, 2020, Goiânia. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2020.
p. 282-292.
suas circunstâncias. No primeiro momento apresenta o início de sua vida, ainda jovem,
em suas raízes de infância, sua formação inicial eclesial e como artista. O segundo, apre-
senta o artista em Goiás desenvolvendo suas ações culturais como pioneiro da arte mo-
derna goiana. E, por último, antes de sua morte, quando o artista manifesta vontade de
aposentar-se e voltar para Itália para viver o resto de seus dias de vida no lugar onde nas-
ceu. A análise das imagens busca um diálogo com filósofo espanhol Julian Marias que nos
apresenta a noção de biografia em termos de pessoa, de um lado, o termo (minha vida)
precedido pelo pronome pessoal minha, trata da minha vida em termos substanciais, a
uma realidade que Ortega Y Gasset dizia (O homem é ele e sua circunstância), fazendo
referência a uma realidade que funciona como raiz da experiência dele mesmo. Do outro
lado, o termo (a vida humana) precedido pelo artigo A. Toda realidade pessoal, moral que
afeta o indivíduo humano radica “a minha vida”, (MARIAS, 1994), ou seja, se apresentam
como elementos constitutivos da vida de tal indivíduo, nesse sentido minha vida implica
em toda realidade.

Composições de uma auto (ficção) eu e outro

Figura 1 - N. Confaloni, Autoretrato. 1940, Pintura óleo sobre madeira 235 x 36 cm.

Fonte: Raisonné do artista, cód. de Tombo: PNTR:0273

283
Há um olhar que se (auto)descreve por meio da arte de pintar (Figura 1). Ao que
tudo indica é o sujeito ficcional que trabalha o sujeito autor, narrador. O desejo do artista
Confaloni de fazer-se representar foi uma constante, ao que se sabe, durante toda sua
vida. O tema retrato o fascinava, pois este remetia a um tipo de beleza com acréscimo de
constantes variantes de caráter individual. Segundo Siron Franco (1982): foi na pintura de
retratos que Confaloni mais se destacou, “[...] conseguiu maior síntese, maior personali-
dade, ele foi um dos grandes retratistas brasileiros, como tal foi magnífico”. Frei Lourenço
tornou-se amigo e conviveu com Frei Confaloni durante onze anos no Convento dos do-
minicanos, casa que agrega os padres junto à Igreja São Judas Tadeu. Em entrevista para
esta pesquisa, Frei Lourenço nos confirmou a afirmação de Siron, em diálogo gravado:

[...] Ele retratava um porquê específico da pessoa [...] ele tem um quadro comigo, des-
conhecido no Brasil, em toda Goiânia, que tinha um padre italiano que viveu aqui mui-
tos anos em Goiás, Padre Manes, e ele o pintou. Aquela pintura que é só tinta óleo,
mas é massa também, uma espécie de alto relevo. Olha, eu conheci esse padre, mas
ele pegou a psicologia do padre, ele pegou o essencial [...] isso do retratismo é, sem
dúvida, ... é importantíssimo.3

Mas, o que esperar desse olhar quando se trata do próprio autorretrato do artista?
Seria possível captar tal essência de si? Ora, a pretensão de Confaloni de construir uma ima-
gem de si, nada tem de inocente, escolhas foram feitas, pois procurou o melhor ângulo, a
melhor posição, a pose adequada e houve todo um cuidado com relação ao traje, ornamen-
tos, pequenos detalhes como sinais distintivos de posição social, a postura corporal e as
técnicas empregadas. Foi preciso criar uma atmosfera de mistério que levasse o espectador
a decifrar marcas deixadas pelo pintor em sua (auto)percepção e construção pessoal.

Pela imaginação, no percurso da narrativa interpretativa que Confaloni teceu todo


jogo pictórico de (auto)imagem, toda forma de disfarces, com significados para além de
linhas e formas, se revela diante de nós por meio da aparição e aparência, mas também
do seu mundo interior. De perfil, nesse desdobrar outra face em nosso olhar, formas diluí-
das, pingos e respingos de tinta escorrem batina abaixo. Qual seria o significado de pintar
uma indumentária eclesial não limpa? A fluidez da própria veste? Algo que se coloca e

3 Diálogo gravado em Novembro de 2014 entre a autora e Frei Lourenço, no espaço social do Convento
dos Dominicanos gentilmente cedido pelo Frei Estevão, pároco da Igreja.

284
se retira do corpo? Há também nuances de grisalho nos cabelos de um homem que nos
apresenta ainda vigoroso. Confaloni parece discutir entrelugares, mutações dele mesmo.
No perfil olha para um único ponto, ainda não seria o momento de mostrar a face. Os
anos de clausura escolar terão um sentido e um significado na sua vida mais ampla, so-
bretudo por se realizar em um contexto que perpassa a igreja, a família e o mundo artís-
tico. Mas como será que Confaloni se viu e como o viram nesse momento? Como afirma
Didi-Huberman (2013), é nesse movimento de ir e vir, do “fechar e abrir as pálpebras, de
separação e distanciamento que faz da imagem, [...] o olhar do incessante e do intermi-
nável”.

Pintar sua (auto)imagem constitui também, uma experiência do ponto de vista da


intencionalidade do pintor como afirmação de si, exposta, articulada, envolta de misté-
rios, em uma relação perigosa que correlaciona a forma de linguagem interior e exterior.
No movimento ondular o representado expõe suas experiências no âmbito do vivido, do
afetivo. Neste momento o pintor dá a pintar a sua história, em uma narrativa composta
por várias temporalidades que vão se entrelaçando nesta profusão de pinceladas, textu-
ras e cores. A semelhança surge como nos ensina Didi-Huberman: “vasta como a noite,
é antes porque nunca se consegue acabar com uma semelhança: ela envia sempre para
uma outra, ao menos”4.

Mas em todo o caso, teria nesse intento uma realidade histórica visível aos intérpre-
tes dessa obra? Como uma espécie de autobiografia, a imagem surgida é ela e seu con-
texto, na relação entre o pintor e o espelho, a apresentação de um outro: a semelhança
como um desdobramento de si mesmo, um personagem imaginado, traçados de linhas,
moldagem de formas e expressões, estados de Ser, de ausências, porque a imagem é em
si mesma o Ser e o não Ser, ela é um entre, surgido de um contexto e de um tempo ali já
tornado memória.

⁴ As imagens produzem um regime de significação que recorre aos processos da memória psíquica
que, elaborando-se como sintomas sobrevivem e se deslocam historicamente e geograficamente. Assim, elas
sugerem que se alarguem os modelos clássicos da temporalidade histórica e que se sigam a sua sobrevivên-
cia para além do espaço cultural do autor. “Pois é no presente que convivem as imagens que se entrecruzam,
se refletem e se apagam novamente: o anacronismo atravessa todas as contemporaneidades. Não existem
quase, as concordâncias entre os tempos”. (DIDI-HUBERMAN, G. De Semelhança a Semelhança. Alea, vol.13 nº
01, 2011, p. 31). Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1517-106X2011000100003 Acesso: 19/06/2015

285
Dirigindo o nosso olhar novamente para os traços vigorosos e as decididas pince-
ladas do autorretrato do Artista Nazareno Confaloni, percebemos o jogo de narrativas
pictóricas de (auto) imagem que são tecidos em seus desvios, num jogo de vida contada
entre memórias e confissões. Mas de uma criança que a certa altura sabia o que queria.
Sua imagem de perfil não dá a impressão de Confaloni se vendo inserido em um tempo
de preparação, a expressão denota um tempo de solidão. Todavia, a imagem está longe
de aludir momentos de sofrimento. Parece apresentar o momento de afirmação de sua
identidade religiosa, o que é reforçado com o uso da batina coberta de tintas que pode
significar também o quanto o exercício do sacerdócio e a arte fundiam-se em Confaloni.

A vida religiosa e as artes foram os eixos em torno dos quais o artista desenvol-
veu toda a sua existência. Nesse ambiente religioso e cultural, humanamente falando,
Confaloni se construiu e se ressignificou em diversos momentos e muito deve à vida de
missionário que favoreceu, por meio do seu olhar e do silêncio próprios dos dominicanos,
o artista sensível e voltado às causas sociais. Confaloni resgatava significados, tornando
os tipos humanos do cotidiano visto nos personagens do mundo da sua imaginação em
homens voltados para uma atitude de crença e valores espiritualizados. Seu sentido soli-
dário, o esforço afetivo humano, ávido por se fazer presente no seu trabalho artístico cuja
vontade era afirmar sua fé no aspecto humano do homem moderno, sem descartar a pro-
blemática do seu ser existencial foram elementos presentes em sua vida e obra. Sua arte,
segundo o crítico Emílio Vieira: “[...] coexiste em harmonia íntima com a própria natureza
humana: sobreviverá enquanto sobreviver um homem sobre a terra”5.

Ao que nos apresenta, a história de Confaloni está subsumida entre dois mundos:
em um contexto que abarca período entre duas Grandes Guerras, como sobrevivente
entre ruínas, restos de memórias, em um lugar que guarda vestígios de povos etruscos.
Mas também em Goiás, aquela pacata cidade com ruas de pedras, becos e casarões, e na
jovem capital Goiânia erguida como símbolo da modernidade. De fato, Confaloni parece
ter vivido entre mundos, o que amplia a percepção do seu valor como artista e de ser hu-
mano com valores tantas vezes exaltados por aqueles que o conheceram.

⁵ VIEIRA, Jornal O Popular, Suplemento Cultural, Ed. nº 166 de 04/06/1978. Pronunciamento de Emílio
Vieira na abertura da exposição de artistas goianos, promovida pelo Departamento de Cultura da Prefeitura
de Goiânia, por ocasião do aniversário da cidade, em Outubro de 1977, em uma homenagem póstuma a Frei
Nazareno Confaloni.

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O Frei artista em missão

Figura 2 - Nazareno Confaloni (1917-1977). Autorretrato, 1950. Óleo s/tela 21 x 26.

Fonte: Catálogo de exposição no MAG

Confaloni se representa e apresenta nessa autoimagem (Figura 2), num ângulo de


quarenta graus e parece conferir uma linguagem plástica que em muito faz lembrar outra
categoria de retrato: a que conhecemos como busto. O pintor escultor se (auto)estilizou
em pose discreta, em uma composição que tenta passar ao observador a presença de
um homem altivo, que olha para o futuro. O elemento chave da composição reside no
jogo de luz empregado na face retratada, ao que tudo indica se compõe em pleno sol
do meio dia. O artista se autorrepresenta com o olhar lusco-fusco e é possível perceber
toda importância dada ao tratamento dos olhos, estes quase cerrados pelo incômodo da
luz. Parece firmar os olhos em um único ponto à sua frente. A luz tanto parece incidir em
direção ao seu rosto como sobre sua cabeça eliminando zonas de sombras. Há apenas
um pequeno pedaço de sombra que incide ao pé da cena para quem observa do lado
direito. Trabalhou a imagem em tons ocre, branco, cinza e preto. Procurou realçar sali-

287
ências, rugas e sulcos parecem tremer diante de nossos olhos. Emprega um tratamento
cromático mais escuro ao fundo, contrastando com o rosto. Parte do pescoço para baixo
parece diluir-se na tela, como se ele estivesse irrompendo de dentro da terra, apenas com
cabeça para fora dela. Os contornos da representação se apresentam bem delimitados,
marcados em tons negros.

O pintor se apresenta ao espectador com detalhes de feição contemplativa, volta-


da para o horizonte. Com o seio da face mais protuberante de testa alta e larga, queixo
quadrado, e forma de rosto mais ovalada, verifica-se os traços angulosos da ossatura fa-
cial, algo intencionalmente construído pelo pintor. De olhos fixos em um único ponto,
Confaloni parece vislumbrar algo que se perde ao infinito, este homem parece projetar
seu olhar para o futuro. Talvez se possa interpretar neste segundo retrato, uma prospec-
ção narrativa de Confaloni, que se mescla entre a tradição sacerdotal e as possibilidades
de futuro enquanto horizonte de expectativa, algo que se situa entre a estética moderna
e a tradição, elementos que se entrecruzam em sua vida e estarão tensionados em sua
estética.

Essas indicações são relevantes na medida em que se busca correlacionar o que


pensa sobre si na construção de sua autoimagem, bem como a construção da sua ima-
gem pela crítica do período, afinal este homem dizia ter vencido os “tempos bárbaros” da
arte em Goiás. Na imagem em forma de busto, o artista parece ressaltar que as mudanças
acontecem no campo das ideias em nuances no olhar, um olhar visionário, um olhar de
quem aponta para o futuro. De fato, este aspecto será determinante na maneira como
Confaloni se apresenta como professor e pintor em Goiás, a crítica o vê com seriedade,
legitimado por sua condição de sacerdote, mas ao mesmo tempo um ícone da moderni-
dade por ter sido um artista a quem a inovação e os traços servem ao novo, cooptados
por claras intenções político-culturais. Confaloni se coloca a serviço do moderno em Goi-
ás, e sua atuação como pintor e professor da Escola Goiana de Belas Artes confirma este
aspecto.

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Confaloni: da vida ao vácuo

Figura 3 - Nazareno Confaloni, Autorretrato, 1962.

Fonte: Catálogo de Exposição MAG

O outro nascido com novas expressões fisionômicas tornou-se o verso de narrativas


vivenciadas, seu rosto parece se projetar em direção ao nada, com semblante carregado e
expressão aparentemente engessada: olhos fixos, sem brilho, quase fechados, com apre-
sentação de traços rígidos em uma expressão que nos evocam antigas máscaras mor-
tuárias. Os olhos se apresentam levemente cerrados, sem o menor sinal de vida, e, por
meio da posição do rosto, seu corpo encontra-se praticamente deitado como se estivesse
resignado ou mesmo morto.

De ombros eretos, firmes, posta uma indumentária dominicana com numerosas


pinceladas de tintas com gradação de claro-escuro espalhados. O gesto no pincel é rá-
pido expressa a ideia antes que se perca a percepção momentânea do que pretende
mostrar. Em pose hierática, com expressão austera, madura, vê-se que do lado direito
do observador há uma parte sombreada, e deste mesmo lado não é possível se ter uma

289
visão nítida da orelha, mas apenas de manchas, contornos que se diluem nas pinceladas
bruscas, assim como os cabelos que também ganharam o mesmo efeito, logo atrás do
rosto. Os cabelos parecem se misturar a uma massa de tinta que cobre o segundo plano
da tela. Mas o pintor parece querer confirmar no desenho da boca, ares que denotam a
idade, dentre os quais: uma boca com linhas e contornos bem definidos, levemente caí-
dos, sem volumes, o queixo é pequeno, porém equipara-se ao formato do rosto, apresen-
tando uma dobra logo debaixo, quase como um prolongamento do queixo. Pela forma
como o pintor trabalhou as pinceladas, ficou imperceptível ao espectador apresentação
de um rosto sulcado.

E aqui a questão: em que medida um autorretrato em identificação de postura


que denota aparência de máscara mortuária quer significar ou nos dizer alguma coisa?
Se dirigirmos nosso olhar para o desenho, rapidamente nos vem imagens que vão sendo
rasgadas e intensificadas em razão da própria ausência. Como nessa imagem o pintor car-
regou a autoimagem de uma seriedade e hieratismo próprios de sua condição humana,
confere a si próprio um ar de reflexão, em um diálogo com as máscaras de perenidade
das antigas representações mortuárias, querendo afirmar com isso sua condição mortal.

No ato de pintar, no olhar para si, o pintor se vê diante de um dilema: há um ponto


de vista a ser escolhido para se autorretratar e, neste jogar consigo mesmo, novos per-
sonagens se (auto)desdobram a dominar toda a cena pictural, porque tal personagem
construída, como em uma experiência a partir do espelho.

Sem meias verdades o pintor interroga, vivencia e expõe suas ações, suas relações,
suas vivências e experiências, e com o domínio da técnica e estilo inerente a ele mesmo,
utiliza de recursos pictóricos para usar de toda forma de disfarce, mínimos detalhes de
pose, expressões captadas de relance no instante mesmo da cena, e logo, em um tempo
relativamente próximo, tudo isso já terá virado memória. Colocado diante do espelho,
chamado a olhar para si próprio mesmo, “[...] no convite a duplicar e projetar o ente - ou o
lugar e a condição, porque o jogo ontológico é muito invasivo”.

No ano de 1972 quando passava férias na Itália, Confaloni resolve visitar sua sobri-
nha Rossela Orsini e manifestou desejo de aposentar e voltar para Itália.

290
Naquele ano retornou para o Brasil com a pretensão de construir na Itália sua últi-
ma morada e, como havia feito economia com o dinheiro que recebia de seus quadros,
comprou um terreno e já pensava no projeto da casa. Um ano antes de falecer (1976),
dera início a construção da casa. Os tempos eram de um artista maduro que manifestava
certo cansaço e vontade de refugiar-se em um lugar tranquilo que tivesse as marcas de
sua origem.

Esse foi o momento em que ele passa a pintar muitos frades, Santas ceias, madonas
(mulheres negras, do povo, em formato lacrimal, madonas triste, fantasmagóricas).

A vida religiosa e as artes foram os eixos em torno dos quais o artista desenvolveu
toda a sua existência. Nesse ambiente religioso e cultural, humanamente falando, Con-
faloni se construiu e se ressignificou em diversos momentos e muito deve à vida de mis-
sionário que favoreceu, por meio do seu olhar e do silêncio próprios dos dominicanos, o
artista sensível e voltado às causas sociais.

O esforço afetivo humano, ávido por se fazer presente no seu trabalho artístico cuja
vontade era afirmar sua fé no aspecto humano do homem moderno, sem descartar a pro-
blemática do seu ser existencial foram elementos presentes em sua vida e obra.

Em todo objeto artístico há uma motivação estética, ética, algo que nos leva a um
raciocínio sistemático ou se abre para uma série de maneiras de narrar. Foi partindo de
três (auto)imagens construídas pelo artista Nazareno Confaloni que decidimos interpre-
tá-lo, por meio da relação complexa entre vida e obra, como resultado de um jogo entre
o sentido que a forma mostra e o que ela pretende passar despercebido. Esse gesto de
elaboração da própria imagem e montagens são movimentos de tensão em torno de
identidades as quais o artista pretende construir significados, num jogo de ocultações e
revelações. Foi vendo um quadro do artista Confaloni que nos vimos interpretando Frei
Confaloni como um indivíduo plural, que em cada obra se desvela como um novo sujeito,
permitindo-nos uma leitura mais aprofundada referente ao ethos eclesial e cultural do
frade artista.

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REFERÊNCIAS

DIDI- HUBERMAN, Georges. Diante da Imagem. São Paulo: Ed. 34,2013, p.30

____________________. De Semelhança a Semelhança. Alea, vol.13 nº 01, 2011, p.


31). Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1590/S1517-106X2011000100003 Acesso:
19/06/2015

FRANCO, Siron. Confaloni por Siron Franco. Revista Goiana de Artes, Goiânia-GO, v. 3,
n.1, p. 81-86, Jan/Jun. 1982

MARIAS, Julian. Mapa del mundo personal. Madrid: Aliuanza Editorial, 1994, p.206.

SILVEIRA,PX. Conhecer Confaloni. Goiânia: Ed. UCG, 1991.

VIEIRA, Emílio. Jornal O Popular, Suplemento Cultural, Ed. nº 166 de 04/06/1978

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