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Anais do V CONACIR: Religião e


subalternidade
Luís Gabriel Provinciatto

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A religião na sociedade e sua relação com a esfera pública à luz da Gaudium et Spes
Crist iano Tavares

Conversões forçadas e o discurso de resist ência na obra de Maimônides (1135 – 1204)


Tat iane Sant os de Souza

GEOGRAFIA E RELIGIÃO: A EXPANSÃO DAS IGREJAS PENT ECOSTAIS NO MUNICÍPIO DE OEIRAS DO PARÁ
FAGEO Faculdade de Geografia
V CONGRESSO NACIONAL DE CIÊNCIA DA RELIGIÃO

“RELIGIÃO E SUBALTERNIDADE”

18 A 20 DE MAIO DE 2021

ANAIS DO V CONACIR
EDIÇÃO
Cláudia Santos Oliveira
Luís Gabriel Provinciatto
Rafael de Souza Bertante
Silas Roberto Rocha

JUIZ DE FORA
2021
Organização
Comissão Organizadora do IV CONACIR

A revisão textual dos manuscritos originais é de responsabilidade de seus respectivos


autores, com anuência dos coordenadores dos Grupos de Trabalho.

Realização:

Dados para Catalogação da Publicação

CONACIR – Congresso Nacional de Ciência da Religião (5.: 2021: Juiz de Fora, MG)

Anais do V Congresso Nacional de Ciência da Religião: “Religião e


subalternidade”. Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), 18 a 20 de maio de
2021. Edição: Cláudia Santos Oliveira, Luís Gabriel Provinciatto, Rafael de
Souza Bertante e Silas Roberto Rocha.
502p.

ISSN: 2447-7184

1. Ciência da Religião 2. Teologia 3. Anais do V CONACIR.


COMISSÃO ORGANIZADORA
Presidente
Dr. Frederico Pieper Pires

Coordenação Discente
Maiara Rúbia Miguel
Nathália Ferreira de Sousa Martins
Raquel Turetti Scoton

Comissão Científica
Docentes
Dr. André Sidnei Musskopf
Dr. Humberto Araújo Quaglio de Souza
Dra. Maria Cecília dos Santos Ribeiro Simões

Discentes
Danilo Souza Mendes de Vasconcellos
Luana de Almeida Telles
Rosiléa Archanjo de Almeida

Comissão Artística
Luana de Almeida Telles
Mara Bontempo
Rita Suriani

Secretaria e Tesouraria
Ernani Neto
Gisele Maia

Equipe Técnica
André Yuri Abijaudi
Danilo Souza Mendes de Vasconcellos
Dantagnan Abdias Silva
Ernani Neto
Gisele Maia
Matheus Landau
Silas Roberto Rocha

Edição
Claudia Santos Oliveira
Luís Gabriel Provinciatto
Rafael de Souza Bertante
Silas Roberto Rocha

Comunicação
Raquel Turetti Scotton
Mara Bontempo
Dantagnan Abdias Silva

Arte
Luana de Almeida Telles
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO..................................................................................................................................................... 9

GT 1 – CATOLICISMOS EM DISPUTA: SOCIEDADE, NARRATIVAS E PODER ............... 11


Violência e intolerância religiosa no Paraná: uma análise de conjuntura .............................................. 12
Michel Eriton Quintas e Regina de Holanda Gamboa Almeida
A associação entre a ação missionária e a dinâmica colonial no Brasil: a evangelização fragmentada
em ciclos e o fenômeno dos sem-religião no Brasil ..................................................................................... 18
Claudia Danielle de Andrade Ritz
CFE-2021: conflito de visões antagônicas ...................................................................................................... 25
Rogério Fernandes da Silva
Ética teológica contemporânea: entre Bíblia e moral .................................................................................. 32
Marta Luzie de Oliveira Frecheiras
A ética social do Papa Francisco: o Papa das periferias ............................................................................. 40
Robson Ribeiro de Oliveira Castro Chaves
A inquisição nos trópicos: heresias e catolicismo popular no Brasil Colônia (séc. XVI-XVIII) ... 47
Letícia Maia Dias
As práticas devocionais em Monte Santo como narrativa de uma contraconduta pastoral .............. 55
Neffertite Marques da Costa
A teologia da libertação hoje: uma intenção de pesquisa ........................................................................... 61
Felipe de Lima França
A educação católica: uma via para conter o protestantismo em Anápolis............................................. 68
Maximiliano Gonçalves da Costa
Tudo ou nada: o papel do catolicismo nas análises da história feitas por Hilaire Belloc e por
Herbertgeorge Wells ............................................................................................................................................. 76
Rhuan Reis do Nascimento

GT 2 – RELIGIÃO E CULTURA AUDIOVISUAL .................................................................................. 81

A submissão do corpo como caminho da santidade no franciscanismo do século 13 ....................... 82


Claudinéia G. Varotti
“Manda-nos para a vara de porcos”: religião e subalternidade na história em quadrinhos Lavagem
..................................................................................................................................................................................... 89
Gustavo Soldati Reis
Punks, protestantes e hare krishnas: influências e aproximações religiosas através da subcultura
straight edge ............................................................................................................................................................ 98
Henrique Brambila Conti
O homem por trás do pseudônimo e a influência da religião na produção literária: como a utilização
da arte permite analisar a inter-relação da cultura com a religião .......................................................... 103
Robson Jorge do Rosário Rangel

GT 3 – TEORIAS DA RELIGIÃO .................................................................................................................. 108

René Girard e o bode expiatório: a crucificação de Jesus Cristo ........................................................... 109


Bianca Vicêncio Leis
A centralidade da violência na constituição do sujeito e da religião: a autenticidade da revelação
mitológica a partir da teoria mimética de René Girard ............................................................................. 115
Rondinele Felipe
O ressentimento e o sagrado: um diálogo entre René Girard e Max Scheler ..................................... 123
Maiara Rúbia Miguel
Religião como “culto crente”: uma abordagem hermenêutica ................................................................ 129
Felipe de Queiroz Souto
Teopoética: relacões entre literatura e religião ............................................................................................ 134
Darío Gómez Sánchez
A religiosidade e o direito: a secularização do ordenamento jurídico constitucional ...................... 140
Mariana de Faro Felizola
A vivência religiosa como resultado da transcendência e possibilidade do conhecimento de Deus
................................................................................................................................................................................... 145
Jonas Pacheco Machado
A essência da religião em Schleiermacher.................................................................................................... 150
Henrique Nilo da Silva
Jihadismo, colonialismo e modernidade ........................................................................................................ 156
Karolina dos Santos
Mal, sofrimento e esperança: reflexões a partir de Andrés Torres Queiruga ..................................... 163
Felipe de Moraes Negro
A morte de Deus como ressignificação do sagrado e os caminhos da religião na pós-modernidade
................................................................................................................................................................................... 167
Ana Carolina Ferreira Sales
Cristianismo primitivo e o governo dos homens......................................................................................... 173
Gabriela Mariotto de Almeida Santos
Fé, amor e paradoxo: uma leitura da religião a partir da obra “Migalhas filosóficas” de Søren
Kierkegaard ............................................................................................................................................................ 180
Presley Henrique Martins

GT 4 – TRADIÇÕES E RELIGIÕES ASIÁTICAS ................................................................................. 187

Uma breve introdução à ritualística no hinduísmo ..................................................................................... 188


Paulo Victor Cota de Oliveira Franco
Noções de natureza no Pṛthivī (Bhūmi) Sūkta da Atharvaveda Saṃhitā ............................................. 194
Matheus Landau de Carvalho
Liberação através da escuta: um estudo de caso sobre a vida e os cantos do Mahāsiddha indiano
Vīṇāpa...................................................................................................................................................................... 200
Felipe Andrade Arruda
Taoísmo e suas aproximações éticas .............................................................................................................. 205
Rogério Fernandes Calheiros
Krishna e Arjuna no Campo dos Goytacazes: o épico hindu em terras norte fluminenses ............ 211
Caio Cézar Busani
Teoria e prática do mantra yoga pela ótica de um teósofo ....................................................................... 217
Silas Roberto Rocha Lima
Pluralismo e tolerância religiosas na Bhaghavad-Gītā .............................................................................. 223
Janderson Clayton de Lima
Os três estados experienciais do Ātman e sua posição de eterna testemunha: o Sākṣin .................. 230
Bruno do Carmo Silva
Reconstruindo a biografia de São Tomé – pistas sobre a ida do apóstolo de Jesus para a Índia . 234
Giuliano Martins Massi
A extensão semântica do conceito de Smṛti (“memória”) no Yogasūtra e sua interlocução com
outras tradições soteriológicas da Índia ......................................................................................................... 241
Daniel Faria Ribeiro
Mística e estados não ordinários de consciência no Samādhi do yoga hindu, e na dança do Samā’
sufi: resultados e perspectivas .......................................................................................................................... 248
Ana Carolina Kerr Neppel Mariano

GT 5 – OS CAMINHOS ESPIRITUAIS DE DESVELAMENTO DA NATUREZA.................. 255

As ninfas gregas – a espiritualidade nas paisagens naturais .................................................................... 256


Luana de Almeida Telles e Aline Faria do Valle Ferreira de Castro
Caminhando com a natureza ............................................................................................................................. 264
Túlio Toledo
“Acredito na floresta e na campina, e na noite, durante a qual o milho cresce”: religião e natureza
na filosofia de Henry David Thoreau ............................................................................................................. 271
Letícia Ferreira Lamha
Intolerância religiosa: um estudo sobre a utilização polêmica da Ayahuasca, chá xamânico milenar,
nos rituais daimistas ............................................................................................................................................ 278
Ronaldo Emiliano de Miranda

GT 6 – RELIGIÃO, GÊNERO E SEXUALIDADE ................................................................................. 286

A ortodoxia no armário em “o pecado da carne” ........................................................................................ 287


José Flávio Nogueira Guimarães
Narrativas de Jacqueline de Oyá e Airá uma mulher negra de axé ....................................................... 297
Gisele Rose da Silva
Morada da fé: o corpo como categoria substancial de ser ........................................................................ 304
Beatriz de Oliveira Pinheiro
A fraternidade contra a violência de gênero ................................................................................................. 308
Luís Felipe Lobão de Souza Macário
O espiritismo perante os conceitos de gênero, sexo e sexualidade ........................................................ 315
Daniel Salomão Silva
Lilith para além dos portões do Éden: reconstruindo caminhos indecentes........................................ 323
Giovanna Sarto
A participação das mulheres no culto em 1Cor 11 e 14............................................................................ 331
Marcela de Jesus Dias

GT 7 – RELIGIÃO E EDUCAÇÃO: EXPERIÊNCIA E PRÁTICAS ESCOLARES PÓS-


PANDÊMICAS ........................................................................................................................................................ 338

Educação e pandemia: reflexões acerca das práticas pedagógicas no ensino religioso ................... 339
Douglas Willian Ferreira
Aprendizagem nas aulas de ensino religioso: mudança do ensino presencial para o remoto ........ 346
Neuzair Cordeiro Peiter e Elcio Cecchetti
Educação enferma: o efeito placebo do ensino remoto e o ensino religioso em vigília .................. 352
Adriana Rocha Ribeiro Araújo
Ensino religioso nos PETs do estado de Minas Gerais em 2020 ........................................................... 360
Mauro Rocha Baptista e Goretti Marciel Pereira Goulart

GT 8 – RELIGIÃO E CIÊNCIA: ENTRE CONFLITOS, MITOS E DIÁLOGOS .................... 369

As viagens de C.G. Jung e o princípio pluralista ........................................................................................ 370


Aline Fátima de Souza

GT 9 – RELIGIÃO, MÍDIA E DECOLONIALIDADES ....................................................................... 377

Maria: aspectos da religiosidade virtual ........................................................................................................ 378


Adriana Fernandes Balbi
A mundialização/globalização e suas faces: da colonização pela comunidade imaginada com a
imagem fixa às imagens em movimento contemporâneas ....................................................................... 383
Celeide Agapito Valadares Nogueira
A igreja saiu do ar e ficou só a televisão: pluralismo, mercado e religião no contexto brasileiro
................................................................................................................................................................................... 390
Ernani Francisco dos Santos Neto
Descolonizando narrativas midiáticas: resistência de mulheres islâmicas e umbandistas à violência
................................................................................................................................................................................... 397
Flávia Abud Luz e Ana Clara Tomaz Carneiro
Ancestralidade e memórias literárias coletivas: visão transdisciplinar na decolonialidade ........... 405
Gabriel Ambrósio
Espiritismo e pandemia: discursos da imprensa sobre o espiritual e o coronavírus ......................... 410
Grazyelle Fonseca
Maçonaria virtual: os impactos do distanciamento social da pandemia de covid-19 nas adaptações
tecnológicas da grande loja maçônica do estado do Pará ......................................................................... 418
Marcelo Vitor Branco de Lima
Religião e política no brasil: disputas e violências ..................................................................................... 424
Mariane Gonçalves Bento
O poder midiático das religiões: poder e política na palma das mãos .................................................. 431
Ronaldo Sales
A culpa é do carnaval: argumentos religiosos de acusação da pandemia nas mídias ...................... 438
Rosiléa Archanjo de Almeida e Rafael Otávio Dias Rezende
Ser católico na internet: reflexões sobre ser “Igreja” a partir de documentos eclesiais .................. 445
Thiago Luiz de Sousa e Luiza Vieira Godinho

GT 10 – RELIGIOSIDADES AFRO-BRASILEIRAS E ESPIRITUALIDADES AMERÍNDIAS


........................................................................................................................................................................................ 450

Ewé Ọsanyin: o Senhor das folhas medicinais e litúrgicas ...................................................................... 451


Vinicius Vasconcelos Castro e Severino Alexandre Alves Filho
Quando o conhecimento gera tolerância e/ou intolerância ...................................................................... 459
Zuleica do Carmo Garcia de Barcelos
O diálogo inter-religioso nas missões protestantes, pentecostais e neopentecostais em áreas
indígenas ................................................................................................................................................................. 465
Siloeh Cerqueira Lopes Piermatei e Monique Nogueira Rezende Laroca
O terreiro enquanto espaço de inclusão: vivências de um sacerdote surdo no tambor de mina
paraense................................................................................................................................................................... 471
Diego Jonata Carvalho Dias e Sérgio Maurício de Oliveira Júnior
Os Palikur. O contexto religioso na aldeia Kumenê .................................................................................. 478
Alexander Protta Ribeiro
A música como expressão da religião no cotidiano: o diálogo inter-religioso entre o cristianismo e
a umbanda tratadas na música do grupo O Rappa, “Cristo e Oxalá” .................................................... 483
Edgar Francisco da Silva Júnior
A Dama do passo do maracatu: o sagrado vivido pela yabá guardiã da calunga .............................. 489
Valdenice José Raimundo e Maria Lúcia Gomes dos Prazeres
A tradição religiosa dos reinados negros belo-horizontinos na diferença colonial ........................... 496
Glaydson de Oliveira Souza
APRESENTAÇÃO
Apresentação
O V Congresso Nacional de Ciência da Religião (CONACIR) foi um evento que reuniu
estudos sobre a religião que alunas e alunos do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião
(PPCIR) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) organizaram sob a supervisão e ajuda dos
docentes, da coordenação do PPCIR e do Departamento de Ciência da Religião (DCR). Nosso
objetivo foi reunir pesquisadores nacionais e internacionais para estimular reflexões sobre o tema da
religião e suas variantes, promovendo e divulgando pesquisas desta área. Em 2021, por conta de todo
o processo pandêmico, decidiu-se realizar o V CONACIR na modalidade virtual, dando oportunidade
de toda a gente participar de onde estiver, da forma mais segura possível. Para essa quinta edição,
escolheu-se o tema Religião e subalternidade.
Subalternidade é uma condição determinada pelo colonialismo, na qual quem é
subalternizado(a) está nas fronteiras invisíveis dos impérios colonizadores – seja na esfera política,
social, econômica ou religiosa. Os debates decoloniais, que dão visibilidade aos embates contra a
colonialidade, dentro da Ciência da Religião, buscam ora ressignificar ora romper com essa posição
de dependência, criada na invenção de um discurso dominante, logocentrado e excludente. Nesse
sentido, a proposta do V CONACIR foi colocar em discussão os limites e possibilidades para pensar,
desconstruir e reconstruir modelos de pensamento para além da dualidade centro-margem. Foram

9
apresentadas perspectivas que refletiram a partir das experiências vivenciadas nos corpos que foram
historicamente deixados de lado na construção de pensamentos hegemônicos. Assim, foi possível
caminhar no sentido da valorização da diversidade de crenças no seu entrecruzamento com questões
de classe, gênero, etnias e raças. Diversidade essa que é constitutiva do campo religioso e social no
Brasil.

Comissão Organizadora

10
Coordenação
Paulo Victor Zaquieu-Higino (UFJF)
paulovictorzh@hotmail.com

Rhuan Reis do Nascimento (UERJ)


nascimentorhuanreis@gmail.com
Ementa
O catolicismo, entendido como um vasto espectro de expressões e ethos, na ainda maior nação
católica do mundo, está inserido em uma sociedade permeada por complexos conflitos sociais e segue
sendo um elemento relevante desde sua chegada nas embarcações dos colonizadores até a crise
democrática e sanitária que agora se vivencia no Brasil. Para além da Igreja romana, o catolicismo,
ou melhor, os catolicismos, ainda operam como ingrediente importante nos disputas sociais e nas
ideologias que os alimentam. Seja na mão dos catequistas-colonizadores, que tentaram destruir a
cosmovisão dos indígenas, seja nas mãos do padre idoso, que destruiu as pedras debaixo dos viadutos
de São Paulo recentemente, as disputas internas ainda impactam a realidade extramuros. Igualmente,
o mundo secular impõe readequações: direitos humanos, ecologia, indígenas, redes sociais entre
tantos outros fenômenos e movimentos sociais. Com estes novos desafios da modernidade, novos
artefatos culturais e narrativas são construídos como um bem simbólico efetivo para conquistar novos
adeptos aumentando o alcance de fiéis e influência na sociedade, além da busca pela hegemonia de
um autêntico Catolicismo. Nesse sentido, o GT “Catolicismos em disputa: sociedade, cultura,
narrativas e poder”, desdobramento do Núcleo de Estudos do Catolicismo (PPCIR/UFJF), propõe ser
um espaço aberto a reflexões sobre múltiplas possibilidades de interfaces dos catolicismos.
Convidamos, portanto, trabalhos dos diversos saberes que auxiliem no debate e compreensão da
relação do catolicismos no Brasil e no mundo como: estruturas e hierarquias, ideologias e ideólogos,
Direitos Humanos, natureza, corpo, história, artes, movimentos sociais, política, economia e mídias
sociais.
Palavras-Chave: Catolicismo. Igreja Católica. Religião. Sociedade.

11
VIOLÊNCIA E INTOLERÂNCIA RELIGIOSA NO PARANÁ: UMA
ANÁLISE DE CONJUNTURA

Michel Eriton Quintas1


Regina de Holanda Gamboa Almeida2
Resumo
Desde os antigos registros de manifestações religiosas, passando pela concepção de ser humano na cultura
arcaica grega, pela hegemonia cristão-católica na era medieval, pelos pressupostos éticos da teologia protestante que
culminaram na formação de um sistema econômico, e chegando ao fenômeno religioso contemporâneo, a figura de Deus
– ou deuses – exerce grande influência. Assim, importa atentar ao tipo de religiosidade presente alinhada aos direitos
humanos fundamentais ou emergentes feitos instrumento de propagação de violências. Nesse sentido, com o objetivo de
analisar apenas uma parcela do contexto religioso do Brasil, o presente artigo aplica o método da análise de conjuntura,
juntamente de revisão e reflexão bibliográfica, para mapear casos de intolerância, compreender suas raízes e identificar
possíveis transformações. Na medida em que a coleta de dados de diferentes dossiês da esfera pública aponta para um
crescente número de casos de intolerância religiosa, muitas vezes praticados entre as próprias denominações religiosas, a
pesquisa bibliográfica relacionada possibilita a compreensão de suas origens ou, ao menos, de alguns aspectos dela. Dessa
forma, conclui-se que o presente artigo/análise de conjuntura, além de facilitar uma reflexão urgente, serve de ferramenta
para que diferentes atores sociais promovam o respeito, uma religiosidade positiva e uma cultura de coexistência.
Palavras-Chave: Intolerância religiosa. Análise de conjuntura. Igrejas. Direitos humanos.

Introdução
Desde os antigos registros de manifestações religiosas, passando pela concepção de ser
humano na cultura arcaica grega, pela hegemonia cristão-católica na era medieval, pelos pressupostos
éticos da teologia protestante que culminaram na formação de um sistema econômico, e chegando ao
fenômeno religioso contemporâneo, a figura de Deus – ou deuses – exerce grande influência. É a
partir do nascimento das ciências humanas e, posteriormente, das epistemologias latino-americanas,
dentre as quais se situa a Teologia da Libertação, que surgem análises críticas e contextualizadas
sobre o discurso religioso como instrumento de legitimação de violências, intolerâncias e opressões.
A religiosidade latina foi muito pautada por esta visão hegemônica cristã desde o período
colonialista que acabou responsável, em grande parte, pelo surgimento e manutenção das
intolerâncias. Atualmente, ainda que o Estado seja marcado pela laicidade e liberdade de culto, o
paradigma de aversão ao diferente se mantém intrincado na consciência dos indivíduos. Segundo
dados do Ministério dos Direitos Humanos (MDH, 2017), evidenciados através das denúncias de
discriminação religiosa de 2011 a 2017 através canal Disque 100, os casos vêm crescendo. Em 2012
registrou-se 109, em 2013 foram 231 e, em 2017, 537. Mas a questão não é nova; em 1829, na cidade
de Curitiba, por exemplo, proibia-se os batuques e fandangos por lei. Além disso, no período do
Estado Novo (1937-1945), são numerosos os relatos de repressão às religiões afro-brasileiras
legitimada pelo próprio governo.

1
Mestrando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR; bacharel em Teologia pela mesma
Universidade; bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. E-mail:
michel.quintas@pucpr.edu.br
2
Bacharela e Teologia pela PUCPR. E-mail: regina.hgamboa@hotmail.com

12
Na medida que de um lado surge uma consciência social e teológica que percebe pontos
negativos da religiosidade, de outro, com a substituição das metanarrativas na pós-modernidade,
também as expressões religiosas acabam moldadas pela subjetividade. Nesse contexto de
recomposição de elementos e valores religiosos, políticos e culturais (ESPERANDIO, 2007, p.9),
apesar da espiritualidade deixar de ser imposta por uma grande e coercitiva instituição, o surgimento
de pequenos relatos e experiências torna ainda mais complexa a tarefa de identificar e combater a
instrumentalização do discurso religioso. No entanto, esta é uma tarefa imprescindível do ponto de
vista de uma teologia orientada por princípios de igualdade, justiça e liberdade.
Para analisar uma parcela do contexto religioso do Brasil – neste caso o Paraná – o presente
artigo aplica o método da análise de conjuntura, a partir de Herbert de Souza (cf. 1985, p.1-52),
juntamente de revisão e reflexão bibliográfica, com especial atenção aos conceitos de trabalho
religioso em Bourdieu e enantiodromia em Jung e ao labor da Teologia da Libertação. Em suma,
deseja-se mapear casos de intolerância no estado, compreender suas raízes e identificar
transformações: a) conjunturais, a partir da ação dos próprios atores sociais; e b) estruturais, na soma
de vozes que culmina em mudanças de estruturas com potencial permanente.

Descrição da Realidade
O Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil, do Ministério dos Direitos
Humanos (2016, p.13-15), afirma que, historicamente,
“O desenho da intolerância religiosa no Brasil colonial acompanha as questões comerciais e
a valorização do europeu versus o indígena e o africano. [....] Com o Brasil independente,
foram se estabelecendo por aqui outros grupos religiosos [...] oriundos de outros países da
Europa, como os luteranos, que vieram especialmente da Alemanha e da Suíça em meados
de 1824. [...] As perseguições veladas ou consentidas pelo Estado tornaram difícil o
enraizamento de outras crenças religiosas ao largo da sociedade brasileira do século XIX.
[...] Contudo, o declínio do Catolicismo como religião oficial do Brasil esteve previsto com
a possibilidade instaurada na liberdade e no pluralismo religioso. [...] [E finalmente] Com a
Constituição Federal de 1988 não se garantiu somente ela, mas todo o feixe de direitos de
que se constitui a questão. No artigo 5º, inciso VI, da atual Carta Magna, declara-se ser
“inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos
cultos religiosos e garantida na forma da lei, proteção aos locais de culto e suas liturgias”.

O Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil (2011 – 2015), do MDH (2016,
p.42; 55) traz um balanço sobre as reportagens sobre intolerância religiosa publicadas neste período:
409 casos neste período. Além disso, os números evidenciam que, segundo as reportagens, as
religiões de matriz africana (53%) são as que mais sofrem ataques e, das tradições identificadas entre
agressores, o grupo de evangélicos (27%) é o mais violento.
No estado do Paraná — delimitação escolhida no contexto desta análise de conjuntura —, os
números e realidades também são consideráveis, além dos casos de intolerância identificados on-line
e em redes sociais, cuja identificação de unidade federativa não é possível. Segundo os dados, também
do MDH (2017), somente sobre os casos de discriminação registrados pelo Disque 100, de 2011 a

13
2017, o Estado registrou 40 ocorrências, com crescimento progressivo ano após ano. As denúncias,
no entanto, também estão presentes em outros canais de atendimento como o Disque 180 (Central de
atendimento à mulher), cujo número de casos atrelados a violência contra a diversidade religiosa, de
2018 a 2019, é de 14 (MDH, 2019).

Discussão
Os fenômenos da religiosidade e da violência/intolerância são complexos e se inter-
relacionam com diversos aspectos. Desde a imagem que se tem do outro e do diferente, passando
pelas disputas de poder, pelas hierarquias, pelas ideologias e pela cultura, a atualidade revela uma
grande e evidente dificuldade de articulação do individual com o coletivo (CORTELLA; LA
TAILLE, 2015, p.39). É nessa linha que se situam, também, as reflexões de Pierre Bourdieu sobre o
trabalho religioso. O sociólogo trabalha a existência de uma produção de capital simbólico polarizada
entre o anônimo e o coletivo que determina a concentração deste capital na mão dos produtores
especializados, ou seja, aqueles que têm nele seu meio de vida (OLIVEIRA, 2011, p.183).
O poder simbólico, assim,
como poder de construir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou
de transformar a visão do mundo e, desse modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo,
poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física
ou econômica) graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido,
quer dizer, ignorado como arbitrário. Isto significa que o poder simbólico não reside nos
«sistemas simbólicos» em forma de uma «illocutionary force» mas que se define numa
relação determinada – e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe estão
sujeitos, quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz a
crença. O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou
de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença
cuja produção não é da competência das palavras (BOURDIEU, 2007, p.14-15 apud
OLIVEIRA; GONÇALVES, 2015, p.48).

Na esteira do pensamento de Bourdieu, Oliveira e Gonçalves (2015, p.48) argumentam que a


violência se naturaliza quando se torna imperceptível aos envolvidos, tanto por processos de
retroalimentação de crenças, quanto pela afirmação da dominação institucionalizada daqueles que
exercem o poder. É nesse sentido, também, que Fonseca e Giacomini (2013 apud BANAGGIA, 2014,
p. 413) vão associar o crescimento dos ataques aos terreiros no Rio de Janeiro com o crescimento das
denominações evangélicas.
Este fenômeno, marcado por processos de conversão, oferece diagnóstico ao paradigma da
aversão, trata-se da enantiodromia de Carl Jung (2000, p.225), onde o indivíduo que abandona um
lugar, assume outro totalmente oposto; lugar que deve ser afastado porque tido como “vilão”. A
construção de um pensamento religioso intolerante por parte dos agentes especializados e este
processo de total oposição a coexistência, portanto, são responsáveis, entre outras variáveis, pela
disseminação da violência atrelada e “justificada” a/pela religião. A ideologia religiosa exerce
controle social. E na própria história do Brasil, Herbert de Souza (1985, p.35-36) aponta para os

14
mecanismos da resignação e do medo como ferramentas de controle ideológico, bem como para a
atuação da Teologia da Libertação no processo de minar suas bases.
Como movimento que nasce na América Latina e reconhece a problemática social nela
estabelecida, a Teologia da Libertação mostra-se como um importante movimento, sobretudo do
ponto de vista da atuação eclesial — mas certamente com incidências em toda a sociedade –.
Entendida “como aquela reflexão da fé da Igreja que tomou a sério a opção preferencial e solidária
pelos pobres. É a partir deles e junto com eles que a Igreja quer atuar de forma libertadora” (BOFF;
BOFF, 1985, p.74). As faces da pobreza que, portanto, são muitas, representam todas as mazelas da
sociedade causadas por sistemas e interesses muito particulares. A intolerância religiosa, então,
certamente poderia ser reconhecida como um dos rostos da pobreza, como uma forma de opressão e
controle, à qual a Teologia latina deseja responder com solidariedade, comunhão, libertação e justiça.

Construção de cenários
a) CENÁRIO 1: Dadas as circunstâncias apresentadas, um primeiro cenário, pessimista, indicaria
um total desprezo pela questão da violência e da intolerância religiosa por parte do governo e das
religiões existentes nesta circunscrição geográfica. A pasta dos Direitos Humanos poderia ser
reduzida à uma compreensão proselitista e contrária ao fundamento da laicidade e ao paradigma
da tolerância. Aqui, é certo que os casos aumentariam e, talvez, deixariam de ser acompanhados.
Faltariam dados para conciliar com o imaginário criado pelas próprias religiões. O preconceito
contra religiões minoritárias (como as causas históricas de ataques às religiões afro-brasileiras)
seria, portanto, legitimado pelo poder público e incitado pelas denominações detentoras de certa
hegemonia.
b) CENÁRIO 2: Em um segundo cenário, as circunstâncias permanecem as mesmas. Existiria certo
mapeamento dos casos de intolerância e algumas denominações se empenhariam em trabalhos
isolados de conscientização acerca do combate aos preconceitos. O número de casos poderia
manter-se segundo as mesmas proporções, ou aumentar de modo significativo, mas com um
mapeamento subjacente das incidências. Nenhuma ou poucas mudanças significativas
apareceriam.
c) CENÁRIO 3: Num cenário, ideal/utópico, (num Estado Brasileiro verdadeiramente laico/secular
que prega a separação da religião e seus valores sobre os atos governamentais, como diz a
Constituição Federal de 1988) as propostas do governo ampliaram as ferramentas de combate das
violências no âmbito religioso. Os casos seriam acompanhados e mapeados de forma mais
abrangente e criteriosa. De maneira complementar, as Igrejas se empenhariam na construção de
um imaginário intelectual cujo respeito pelo diferente é um fundamento indispensável. Em uma
projeção de curto e médio prazo os números de casos diminuiria ou, ainda que se mantivessem

15
com a mesma incidência, seriam categorizados, identificados e, sobretudo, solucionados. A longo
prazo, seria inevitável a redução de casos; criar-se-ia uma cultura da tolerância, com fundamentos
legais por parte do Estado e experiências religiosas mais saudáveis.

Considerações finais: Tomada de decisão


Diante desses cenários, vemos necessidade e a formação de movimentos que lutam para que
o Brasil seja de fato e de direito um Estado Laico. Estes movimentos de integração de forças pela luta
de reconhecimento, onde “os direitos humanos são as [próprias] lutas sociais concretas da experiência
de humanização” (SOUZA JÚNIOR, 2000, p.183 apud ESCRIVÃO FILHO; SOUZA JÚNIOR,
2016, p.30), no âmbito da tomada de decisões, aparecem como possibilidades de atuação cujo
horizonte é o cenário 3. Torna-se importante, então, denunciar os retrocessos cometidos pela atuação
da bancada religiosa fundamentalista, pelo discurso do “Deus acima de todos”, totalmente oposto ao
Deus (ou deus) cristão, marcado pela experiência da kênosis (Fl 2,6ss), pela opção de estar com o
povo, de “caminhar, compreender, conviver e transformar a vida da humanidade por meio de uma
relação íntima” (REGO; DAMIÃO, 2021, p.57).
De modo concreto e a partir das reflexões do presente trabalho, fica estabelecido, portanto,
que é preciso encontrar caminhos que levem a sociedade brasileira e, de modo específico, o estado
do Paraná, a conciliar os cenários 2 e 3. É preciso lutar contra o primeiro cenário, pois o Estado laico
é uma garantia fundamental – inclusive para a pluralidade religiosa do país –. O terceiro cenário, no
entanto, mostra-se bastante utópico diante das atuais conjunturas do estado. Assim, é necessário que,
a partir do cenário mais provável, o segundo, caminhe-se para o terceiro.
Isto significa, a longo prazo, passar das mudanças conjunturais à uma mudança estrutural
permanente. O desenvolvimento do paradigma da tolerância aparece, portanto, como premissa e
decorrência: é necessário para a existência de uma mudança política e legal que não tome, ainda que
de modo implícito, a religião cristã como influência direta. E, por outro lado, precisa desta mudança
política e legal para que o paradigma adquira solidez. Nesse sentido, se a religião é uma força que
concede estruturas à sociedade, que o faça de modo positivo. E o itinerário do presente artigo
possibilita, por fim, uma tarefa fundamental para a contemporaneidade, que deve continuar a ser
valorizada e posta em prática por diferentes grupos e em diferentes níveis de articulação, quer seja
social, religiosa, pastoral, institucional ou acadêmica.

Referências Bibliográficas
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SOUZA, Herbert José. Como se faz análise de conjuntura. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1985. 52p.

17
A ASSOCIAÇÃO ENTRE A AÇÃO MISSIONÁRIA E A DINÂMICA
COLONIAL NO BRASIL: A EVANGELIZAÇÃO FRAGMENTADA EM
CICLOS E O FENÔMENO DOS SEM-RELIGIÃO NO BRASIL

Claudia Danielle de Andrade Ritz1

Resumo
A estruturação da missão católica no Brasil durante a colonização se fundou no projeto colonial português. A
ação missionária foi realizada por meio do sistema colonial que agregava concepções políticas, compreensão teológica e
domínio do transporte marítimo. Em sintonia com o modelo colonizador e com os ideais de “Reino de Deus na terra” e
do messianismo português, no qual a coroa se assumia como escolhida e representante divina, se estruturou as missões
de evangelização no Brasil. A partir da historiografia da Igreja no Brasil, podemos distinguir a evangelização em quatros
ciclos missionários e com a presença de várias ordens religiosas. Nosso objetivo é apresentar estes ciclos missionários e
alguns aspectos que sugerem evangelização fragmentada. Para tanto abordamos: 1) Primeiro ciclo missionário: a
ocupação do litoral brasileiro; 2) Segundo ciclo missionário: a ocupação do sertão e São Francisco; 3) Terceiro ciclo
missionário: a ocupação de Maranhão e Grão-Pará; 4) Quarto ciclo missionário: Minas Gerais das confrarias aos
seminários. A metodologia utilizada nesse estudo foi bibliográfica, sobretudo a historiografia da Igreja no Brasil.
Concluímos que a fragmentação da evangelização pode ter contribuído para a fragilização da herança católica, sendo este
um aspecto a ser considerado na compreensão do fenômeno dos sem religião no Brasil.
Palavras-chave: Catolicismo. Ciclos de missões. Fragilização da herança católica no Brasil. Fenômeno dos sem
religião.

Introdução
Esta comunicação é parte do nosso estudo de douramento. Iniciaremos tratando do projeto
colonizador português, no qual as missões se configuraram como parte intrínseca. A partir da leitura
dos referenciais teóricos sobre a história da Igreja no Brasil, podemos distinguir quatros movimentos
missionários no Brasil: o Litoral brasileiro; o Sertão e o rio São Francisco; Maranhão e Grão Pará e
Minas Gerais. (HOORNAERT, 1992, p. 42). Nosso objetivo nessa comunicação é apresentar a
sucintamente a dinâmica destes quatro ciclos missionários e refletir sobre o modo fragmentado pelo
qual as missões se realizaram no Brasil. A fragmentação sugere fragilização no processo de
evangelização missionária e este aspecto pode contribuir para a compreensão e análise do fenômeno
dos sem religião no Brasil.

1. As missões como parte intrínseca do projeto colonizador português


O projeto de evangelização no Brasil se fundou no projeto colonial, ou seja, no sistema
colonial português. Dentre outros objetivos, buscou-se implementar a fé católica portuguesa e o
resultado almejado era a conversão ao catolicismo como parte do projeto de “Reino de Deus na terra”.
A dinâmica colonial das missões no Brasil, se volta sobretudo para o rei de Portugal e não para o

1
Doutoranda em Ciências da Religião na PUC Minas – PPGCR, sob a orientação do Prof. Dr. Flávio Senra. Membro do
Grupo de Pesquisa Religião e Cultura da PUC Minas. Mestra em Ciências da Religião pelo PPGCR da PUC Minas (2018)
como bolsista CAPES, sob orientação do Prof. Dr. Flávio Senra. Bacharel em Direito pela PUC Minas (2008). Especialista
em Direito do Trabalho pela UCAM RJ (2009). Bacharel em Teologia pelo Centro Universitário Izabela Hendrix (2018).
E-mail: claudiaritz7@gmail.com Bolsista FAPEMIG.

18
Papa, especialmente em razão do padroado. Esse é um modo distinto de missão e evangelização.
Segundo Enrique Dussel (1983, p. 38) ocorre uma “instrumentalização da Igreja”. No Brasil, a
implementação da fé católica ocorreu, conforme historiografia da Igreja, associado ao projeto
colonial, por meio de ciclos missionários, os quais abordaremos a seguir.

1.1 Primeiro ciclo missionário: a ocupação do litoral brasileiro


O auge do ciclo missionário do litoral brasileiro está no “século XVI e nos primeiros anos do
século seguinte [XVII]”. (HOORNAERT, 1992, p. 43). A ocupação colonizadora no ciclo litorâneo
abrange a costa do pau brasil2, a zona da mata e toda a área dedicada ao cultivo do açúcar, que se
estendia do Rio Grande do Norte até à região de São Vicente no Sul. “A cultura criada em torno da
cana-de-açúcar influenciou sobremodo a evangelização e lhe deu características próprias.”
(HOORNAERT, 1992, p. 42). Naquele contexto, não apenas os missionários, mas os engenhos de
açúcar também eram vitais para a evangelização. Os missionários tinham pouca influência sobre o
mundo dos “engenhos que concentrava muita renda nas mãos de poucos e tinha um modelo
exportador de economia.” (HOORNAERT, 1992, p. 45).
Em termos de evangelização realizadas por missionários, este ciclo litorâneo comporta
missões das ordens jesuítas, franciscanos, carmelitas e beneditinos, sendo esta última uma ordem
mais dedicada à contemplação que propriamente às missões e evangelizações. Os franciscanos
tiveram atuação na região, mas aparentemente a atenção destes missionários era mais voltada aos
moradores portugueses, do que propriamente aos indígenas e ainda em menor escala aos africanos.
(HOORNAERT, 1992, p. 55). Os carmelitas chegaram em 1580 e se estabeleceram em Olinda, onde
construíram um convento e em 1596 iniciaram o curso de teologia com aulas em brasílica3. Os
beneditinos chegaram em 1518 à Bahia e fundaram a abadia em 1584, mas suas ações eram pouco
missionárias.
No sistema colonial, “as ordens se estabelecem com relativa facilidade, fundam mosteiros e
conventos cada vez mais opulentos e por vezes pouco solidários com o povo e com a gente nascida
no Brasil, vive do trabalho escravo, se identificam com os projetos dos colonizadores.”
(HOORNAERT, 1992, p. 57). Além disso, as ordens dos franciscanos e carmelitas, por meio das
chamadas ordens terceiras de São Francisco e Carmo, respectivamente, proporcionam alguma
validação aos feitos coloniais, especialmente porque tais ordens terceiras são destinadas aos

2
A costa do pau Brasil abrangia as florestas litorâneas de pau-brasil e se estendiam do Rio Grande do Norte ao Rio de
Janeiro, sendo que Pernambuco, Porto Seguro e Cabo Frio, eram as regiões de maior concentração do produto.
3
Os conventos carmelitas com aulas em brasílica se expandem para Pernambuco, Paraíba, Maranhão, Pará e Amazonas,
Bahia, Rio de Janeiro, Santos, Santa Catarina, São Paulo e Minas Gerais. Em Minas Gerais, os carmelitas são os primeiros,
mas não terão permissão para permanecer no período mineiro do século XVIII.

19
indivíduos em situação econômica privilegiada. “Estas ações praticadas pelas ordens, levantam
barreiras ao espírito missionário.” (HOORNAERT, 1992, p. 57).
Nesse ciclo litorâneo, a conversão ao catolicismo não equivaleria à salvação física, pois,
alguém da permanência em situação de escravização, ensejava a renúncia plena da cultura pregressa.
A permanência na situação de escravização, era endossada no discurso religioso, com a promessa de
salvação da alma. Em resistência ao modelo colonial, os indígenas realizavam confrontos, enquanto
os africanos organizavam fugas. Com o tempo “o modelo colonial e a ação missionária entraram em
declínio.” (HOORNAERT, 1992, p. 63).

1.2 Segundo ciclo missionário: a ocupação do Sertão e o Rio São Francisco


O segundo ciclo do Sertão tem maior vitalidade na segunda parte do século XVII, com os
capuchinhos, sobretudo com Martinho de Nantes e os oratorianos, mas franciscanos e jesuítas
também atuaram. (HOORNAERT, 1992, p. 43-63). “Os capuchinhos tiveram grande influência sobre
a religião do povo brasileiro porque eram propagandista de uma forma de missão ambulante com
repercussão durante os séculos XVIII, XIX e XX, com pastoral no modelo do Concílio de Trento.”
(HOORNAERT, 1992, p. 65). Cumpre ressaltar que tanto os capuchinos como os oratorianos tinham
particularidades, pois dependiam da Congregação Romana da Propaganda Fide, enquanto os jesuítas
estavam ligados ao rei português no modelo de padroado. Por isso, há historiadores da Igreja que
afirmam que durante o período colonial “a Igreja no Brasil teve caráter predominantemente leigo, por
força da instituição do padroado.” (AZZI, 1992, p. 234). Além disso, os capuchinhos não eram
portugueses e, por isso, estavam menos vinculados aos projetos colonizadores de Portugal.
A partir de 1670, foram construídos aldeamentos no Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba,
Pernambuco, Alagoas e interior do rio São Francisco. Todavia, no rompimento das relações políticas
entre os portugueses e franceses, em 1698 as obras missionárias dos capuchinhos foram
interrompidas, porque foram expulsos do Brasil. A continuação das obras missionárias ficou a cargo
dos carmelitas descalços, mas posteriormente retornam as obras missionários via capuchinhos
italianos. O movimento oratoriano no Brasil, “é na realidade do clero secular, nascido dos ermitães
em Portugal, com reforma da vida cristã, o núncio de Portugal recomendou aos oratorianos distância
dos capuchinos e capuchos, para evitar atritos entre eles.” (HOORNAERT, 1992, p. 68).
Evidentemente que os conflitos não eram apenas entre os colonizadores, fazendeiros e
algumas ordens religiosas, envolvia também divergências entre as ordens religiosas. Tais atritos,
demonstram a pouca convergência na estruturação do processo evangelizador. O ambiente era de
tensão sob vários aspectos, especialmente porque nesse segundo ciclo, o foco estava no manejo dos
nativos indígenas, a partir do qual gravitavam riquezas. Por volta de 1680 houve uma chacina
decorrente da insurreição dos nativos indígenas contra as violências sofridas e a repressão foi violenta.

20
Os missionários se envolveram e manifestaram reação coercitiva, como aponta a biografia de Matinho
Nantes e outros4. Como resultado desse confronto, em torno de 1690, as ações missionárias foram
compostas preponderantemente por jesuítas e franciscanos no rio São Francisco.
Os franciscanos assumiam as missões nas quais os jesuítas não eram mais aceitos por motivos
variados e as missões conflitaram com os interesses dos fazendeiros de gado, com destaque ao
Coronel Francisco Dias d’Ávila representante da Casa da Torre. Este segundo ciclo se encerrou com
a derrota dos nativos indígenas que foram sucumbidos, alguns foram expulsos, outros escravizados
como vaqueiros, boiadeiros, cabras do sertão, caboclos, sertanejos. A realidade escravizadora e
opressora dos fazendeiros se consolida nesse ciclo das missões e alguns religiosos passam a assumir
conduta similar de escravização. “Nos anos 1700, os missionários se conformam e também começam
a criar gados, escravizando.” (HOORNAERT, 1992, p. 75). A perseguição pombalina alcançou a
margem esquerda ou pernambucana do rio São Francisco, limitando a continuação dos aldeamentos.
Tais circunstâncias conflituosas e de eliminação dos indígenas, contribuíram para a fragilização da
mensagem de evangelização católica nesse ciclo.

1.3 Terceiro ciclo missionário: a ocupação de Maranhão e Grão-Pará


Esse terceiro ciclo é da segunda parte do século XVII e primeira do século XVIII. Os
franciscanos e carmelitas foram os primeiros a evangelizar essa região, conectados ao sistema
colonial português. (HOORNAERT, 1992, p. 77). A chegada do primeiro governador do Maranhão,
em 1624, Francisco Coelho de Carvalho, faz com que a vida religiosa se desenvolva no local. Isso
porque, o governador trouxe consigo o frei Francisco Cristóvão de Lisboa, que era qualificador do
Santo Ofício. Este frei percorreu a região antes mesmo dos jesuítas, porém não dominava a língua
brasílica e teve dificuldades de comunicação. A premissa colonizadora do frei é um dos motivos de
sua oposição ao Jesuíta Luís Figueira, afinal, era avesso ao tema “liberdade aos índios”. Os índios
despertavam no frei interesses “científicos, [...] pelos restos mortais.” (HOORNAERT, 1992, p. 117).
Em 1652 chegam os capuchos da Piedade e os capuchos da Conceição de Beira e Minho, ambos de
Portugal, assim como os mercedários e começaram a atuar na região.
Diante da variedade de ordens religiosas nesta região e da necessidade iminente de proteção
às fronteiras territoriais, a coroa portuguesa organiza a atuação das ordens religiosas por regionais.
Em 1750, devido aos muitos privilégios, a região tinha cerca de trezentos missionários, dentre
os quais os jesuítas da ação missionária de Luís Figueira (1575-1673). Os franciscanos eram
indicados para a margem esquerda do rio Amazonas e carmelitas no alto do Amazonas e Belém. Esse
movimento cominou no Regimento das Missões do Estado do Maranhão e Grão-Pará de primeiro de

4
Sobre os escritos de Martinho Nantes ver (HOORNAERT, 1992, p. 75).

21
dezembro de 1686 e “provocou o maior conflito da História da Igreja no Brasil. “[...] Os missionários
começaram a controlar a vasta região amazônica de maneira independente.” (HOORNAERT, 1992,
p. 86). Os jesuítas, aplicaram o modelo implementado no Paraguai, “os aldeamentos foram feitos
diferentemente dos ciclos do litoral e sertanejo, as aldeias ficariam longe dos centros coloniais, para
que os indígenas pudessem conservar sua liberdade.” (HOORNAERT, 1992, p. 76). Esse novo
modelo proposto pelos jesuítas, teve por objetivo melhorar o êxito das missões de evangelização, que
até então estavam sendo pouco exitosas “[...] realizando o que talvez seja a maior obra missionária já
efetuada no Brasil.” (HOORNAERT, 1992, p. 42).
A proposta jesuítica de aldeamento fomentou um descolamento entre a evangelização
missionária e a prática colonizadora portuguesa. (HOORNAERT, 1992, p. 73). No decorrer do século
XIX, as ações missionárias na região aos poucos se extinguem, especialmente com a expulsão dos
missionários dessa região.

1.4 Quarto ciclo missionário: Minas Gerais


O quarto ciclo remonta ao século XVIII, especialmente com os ermitães Feliciano Mendes e
Lourenço de Nossa Senhora, os santuários e as irmandades nas cidades e vilas mineiras. Esse ciclo,
contudo, é marcado pela ausência missionária. Isso porque, em 1711 a coroa proibiu a entrada de
religiosos em Minas Gerais. Entre 1717 e 1721, determinou aos jesuítas que tinham residência em
Mariana, a saída das terras de Minas Gerais e das regiões mineiras como Cuiabá em 1719 e Goiás em
1725. As ordens dos franciscanos, beneditinos, carmelitas e capuchinhos comuns em outros ciclos,
não são comuns neste ciclo mineiro. Aliás, sequer os bispos de Olinda, Salvador e Rio de Janeiro
sabiam qual deles prestaria assistência religiosa à região mineira. “A constituição da região de Minas
Gerais é diferente, caótica, foi terra de mamelucos portugueses e africanos de Guiné, não de fidalgos
como Tomé de Sousa”. (HOORNAERT, 1992, p. 92).
Minas Gerais trazia consigo a “febre do ouro” e esse metal interessou à coroa, que aproveitou
da guerra dos emboabas (1709) entre mamelucos paulistas e portugueses recém-chegados, para se
impor e centralizar. Minas Gerais, sem acesso ao mar, sem missionários evangelizando ou a influência
dos colégios e conventos religiosos, se distingue dos demais ciclos, em termos colonial e missionário.
“É exatamente por essas circunstâncias tão difíceis e opressoras que em Minas Gerais houve um
verdadeiro e genuíno movimento missionário, não clerical, mas leigo.” (HOORNAERT, 1992, p. 94).
O movimento religioso em Minas Gerais não pertenceu à Igreja e aos sacerdotes como instituição
clerical, mas ao povo, sobretudo fomentada pelos ermitães. A proposta dos ermitães era divergente
da famigerada febre do ouro das Minas Gerais. “Enquanto uns corriam numa busca desenfreada pelo
ouro, os ermitães lembravam da vaidade dessa corrida.” (HOORNAERT, 1992, p. 94).
Em Minas Gerais, inicialmente floresce um catolicismo pouco institucionalizado.

22
Esses registros sugerem um catolicismo pouco institucionalizado e diverso do
catolicismo europeu. Tratava-se de um catolicismo mineiro. Em Minas Gerais,
a religiosidade se manifestou de forma distinta, minimamente clericalizada, mas com a
criação do bispado de Mariana em 1745, formada pelo clero secular e a religião popular no
Brasil [que emergiu e Minas Gerais] considerada supersticiosa, ignorante, fanática, perigosa.
A forma de controle foi o seminário. (HOORNAERT, 1992, p. 98).

Diante desse catolicismo atípico ao modo europeu português, o bispo de Mariana em carta ao
Governador de Minas, ao se referir ao Santuário do Senhor do Bom Jesus de Matosinhos afirma: “Tal
era a confusão e tão descomposto o tumulto, que a capela de Matosinhos mais parecia praça de touros
que a igreja de fiéis.” (HOORNAERT, 1992, p. 96). A estratégia necessária foi institucionalizar o
catolicismo mineiro, com a criação dos seminários, o clero se torna funcionário público, perde sua
dimensão evangelizadora leiga. (HOORANERT, 1992, p. 34). O controle clerical se institui
sobremodo após a instituição do Bispado de Mariana. “O catolicismo mineiro, fruto da missão leiga
não clerical, que só foi controlado pelo clero após a criação do bispado de Mariana em 1745.”
(HOORNAERT, 1992, p. 42). Assim, o ciclo missionário mineiro se amolda em certa medida ao
modelo colonial português com manifesta fragilização.

Conclusão
A associação entre dinâmica colonial e a ação missionária é um dos elementos que
consideramos ensejador da fragilização do processo missionário. A fragmentação em ciclos e ordens
variadas é outro aspecto de fragilização. Outrossim, condutas dos missionários, como a exploração
da mão de obra via escravização em razão do anseio econômico, conflitos entre missionários e
colonizadores, conflitos entre missionários e escravizados, dentre outras situações, fragmentam as
ações missionárias e fragilizam a herança católica trazida pelas missões.
Cada ciclo reserva particularidades, mas como ponto em comum, podemos dizer que todos os
quatro ciclos missionários “terão momentos de dinamismo e florescimento com posterior
estabelecimento e acomodação, sem inspiração missionária.” (HOORNAERT, 1992, p. 43).
Concluímos, portanto, que estes fatores podem ter contribuído para a fragilização da herança católica,
sendo este um aspecto a ser considerado na compreensão do fenômeno dos sem religião no Brasil.

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24
CFE-2021: CONFLITO DE VISÕES ANTAGÔNICAS

Rogério Fernandes da Silva1

Resumo
A Campanha da Fraternidade Ecumênica (CFE) de 2021, promovida na quaresma pela Igreja Católica e demais
igrejas filiadas ao Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic), tornou-se um problema para as autoridades eclesiais
católicas, diante da denúncia de um grupo de leigos do Rio de Janeiro, com vários questionamentos em relação ao texto
e autoria. Tais questões são reflexo de uma disputa pelo que a Igreja Católica representa. De um lado, os grupos
conservadores; do outro, os progressistas. Diante das polêmicas, pelo menos dois arcebispos, alguns bispos e sacerdotes
romperam com a Campanha da Fraternidade. Uma igreja ortodoxa síria aproveitou a situação e rompeu com o Conic. Esta
apresentação visa discutir não só o protagonismo progressista nas decisões eclesiais, mas também questionar a visibilidade
de alas conservadoras da Igreja no Brasil. Os organizadores da Campanha não pensaram na possibilidade de uma reação
dos grupos conservadores, por isso a surpresa estupefata pela reação promovida nas redes sociais. O diálogo interacional
das redes às vezes traz vozes com reivindicações próprias. O método usado neste trabalho foi análise de vídeos,
documentos e declarações sobre a CFE-2021 e a polêmica.
Palavras-chave: Conservadorismo, Diversidade, Progressismo, Ecumenismo.

Introdução
Em fevereiro de 2021, durante a preparação para a Quaresma católica, que nesse ano teria um
tema ecumênico compartilhado e celebrado pelas igrejas participantes do Conselho Nacional de
Igrejas Cristãs (Conic), houve algo inesperado para os organizadores. Um grupo de leigos católicos
postou no YouTube um vídeo que gerou ampla repercussão nas redes sociais. Eram críticas à
Campanha da Fraternidade Ecumênica (CFE). O vídeo teve muita visualização, superando as dos
vídeos que eram postados na página doesse grupo de leigos católicos. A página do YouTube pertencia
ao Centro Dom Bosco, uma associação de leigos católicos na cidade do Rio de Janeiro.
As críticas acertaram em cheio o imaginário conservador católico insatisfeito com a
politização das Campanhas da Fraternidade. Essa insatisfação era antiga em relação às Campanhas
da Fraternidade; sempre houve críticas ao longo dos anos, devido ao que os críticos chamavam de
“politização dos temas”. Entretanto, essa politização sempre foi uma perspectiva da campanha que
visa à conscientização para temas sociais. A primeira proposta de uma campanha da fraternidade
surgiu em 1961. Em 1962, ela foi lançada com o tema “Igreja em Renovação”, tendo como lema
“Lembre-se: você também é Igreja”2, abrangendo as igrejas católicas da Região Nordeste. Depois
vieram as demais, e em 1964 passaram a ser nacionais.

1
Doutor em Humanidades, Culturas e Artes pela Unigranrio, mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP e professor
de História da rede pública do Estado do Rio de Janeiro.
2
Disponível em: <https://www.a12.com/redacaoa12/como-surgiu-a-campanha-da-fraternidade-15-02-2019-08-19-17>.
Acesso em: 20 jun. 2021.

25
As campanhas ecumênicas
A partir do ano 2000, as campanhas passam a serem ecumênicas a cada cinco anos,
relacionadas e planejadas em conjunto com o Conic, e seriam apresentadas e trabalhadas em cada
uma dessas comunidades cristãs na época da Quaresma.

Figura 1 - Cartaz da Campanha3

Apesar de todas as críticas, não houve, ao longo da história das campanhas, rupturas drásticas
como a que se seguiu à CFE-2021. A campanha deste ano foi um ponto de desequilíbrio em relação
às demais, pois deixou clara a crise em que se encontra a Igreja Católica no Brasil em relação aos
projetos político-sociais dentro dela. Não que a palavra crise seja uma palavra mágica para identificar
o que antes era harmonioso. A crise é constante dentro das sociedades humanas. Talvez a crise seja o
projeto (não intencional) mais bem-sucedido da humanidade. O tema da Campanha de 2021 foi
“Fraternidade e diálogo: compromisso de amor”, seguido pelo lema: “Cristo é a nossa paz: do que
era dividido fez uma unidade (Ef 2,14a)”.

CFE-2021
Os problemas da Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021 (CFE-2021) podem ser vistos
de diversos aspectos. Desde o conflito político interno dentro da Igreja Católica no Brasil à tensão
política atual quanto ao peso dos novos meios de comunicação, que não foram levados em conta.
Acredito que o cerne do conflito está na linguagem do texto-base e na dinâmica do ciberespaço.

3
O cartaz também foi motivo de críticas, pois o grupo autor da arte é o Ateliê15, cujos trabalhos possuem forte influência
de esquerda cristã.

26
O ápice da crise aconteceu com a publicação de um vídeo feito por um grupo de leigos da
cidade do Rio de Janeiro, o Centro Dom Bosco; publicado no dia 5 de fevereiro de 2021, até o
momento conta com mais de 673 mil visualizações, sendo de longe o mais acessado do canal. Mas
quais foram as acusações do grupo? Na verdade, eles atacaram a linguagem do texto-base,
considerando-a produto de uma opção radicalizada da esquerda cristã; o alvo dos questionamentos
foi o protagonismo da secretária geral do Conic, Romi Márcia Bencke, pastora da Igreja Evangélica
de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), que havia se posicionado diversas vezes a favor do aborto
e militado a favor disso. O vídeo mostra recortes de outros vídeos com declarações de Romi em
vídeos e lives (vídeos transmitidos ao vivo, que depois podem ficam disponíveis em alguma
plataforma) e de outras personalidades da esquerda cristã. Contudo, o vídeo do Centro Dom Bosco
se centralizou na crítica a Romi e ao texto-base; talvez esteja aí o motivo do sucesso dessa produção
audiovisual. Num mundo conectado ou em rede, as vozes antes silenciadas agora são ouvidas, pois a
internet permitiu que mais vozes fossem ouvidas (CASTELLS, 2015).
O vídeo tem 28min 20seg, com boa iluminação e bom áudio; o apresentador se veste de
maneira formal e dialoga pausadamente e de forma clara. O vídeo tem diversos trechos de outras
produções audiovisuais feitas pela Romi e membros da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB). Desses trechos, um que se destaca é aquele ressaltando Romi como “a alma desta campanha
ecumênica”, que é repetido diversas vezes. Outro elemento de destaque é o uso da ferramenta de
pesquisa de palavras usado para encontrar termos como feminicídio, LGBT+, racismo, mãe de santo,
coleta etc. Isso revela a preocupação do grupo em ressaltar a linguagem do documento, que
supostamente está em contradição com a doutrina católica. O narrador chega a dizer que são
revolucionários, dando um sentido ruim ao termo.
Vamos destacar alguns trechos do texto-base para compreender melhor as críticas:
68. Outro grupo social que sofre as consequências da política estruturada na violência e na
criação de inimigos é a população LGBTQI+. O já citado Atlas da Violência de 2020 mostra
que o número de denúncias de violências sofridas pela população LGBTQI+ registradas no
Disque 100 no ano de 2018 foi de 1.685 casos. Segundo dados do Grupo Gay da Bahia
apresentados no Atlas da Violência 2020, no ano de 2018 420 pessoas LGBTQI+ foram
assassinadas, destas 164 eram pessoas trans. Percebe-se que em 2011 foram registrados 5
homicídios de pessoas LGBTQI+. Seis anos depois, em 2017, esse número aumentou para
193 casos. O aumento no número de homicídios de pessoas LGBTQI+, entre 2016 e 2017,
foi de 127%. Esses homicídios são efeito do discurso de ódio, do fundamentalismo religioso,
de vozes contra o reconhecimento dos direitos das populações LGBTQI+ e de outros grupos
perseguidos e vulneráveis4.

Este é o trecho que foi destacado no início do vídeo; a temática das minorias sexuais estava
presente no documento, além de que foram ressaltados a participação do Conic na comemoração dos
500 anos da Reforma Protestante e a militância pelo Estatuto do Desarmamento. Esses três temas

4
CONIC/CNBB. Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021: Texto-base. Brasília: Edições CNBB, 2020.

27
tocaram em pontos sensíveis da militância católica conservadora; em seguida ao trecho destacado,
temos trechos de vídeos de Romi falando sobre direitos reprodutivos das mulheres como temas
sensíveis para a direita. Para o Centro Dom Bosco, Romi trouxe temas da chamada esquerda
identitária para dentro da Campanha da Fraternidade.

Figura 2 - Nota do arcebispo militar do Brasil

A resposta dos leigos ao vídeo foi rápida: dois bispos arquidiocesanos e um bispo, assim como
diversos padres, se colocaram contra o documento, disseram que não iriam usar o documento como
base. Mas também temos que pensar o não dito de forma oficial, porque alguns preferiram não dizer
nada publicamente, mas boicotar a campanha. Nos bastidores de uma importante diocese do Nordeste,
o bispo arquidiocesano disse, numa reunião de leigos, que não sabia da “gravidade do texto-base”. A
província franciscana também estabeleceu que não iria usar o texto, principalmente em seus colégios,
evitando conflitos com os pais.

28
Diante dessa crise, a Igreja Sirian Ortodoxa de Antioquia aproveitou para pedir desligamento
do Conic5. As informações obtidas sobre essa saída foram conseguidas em uma pequena entrevista
de forma anônima, porque os sacerdotes foram proibidos de conversar publicamente ou mesmo
veladamente sobre a situação. Pesou sobre essa saída diversos conflitos, inclusive jurídicos, com a
Igreja Católica Romana sobre o uso do termo “católico”, além de problemas entre o representante dos
sírios dentro do Conic e da própria restruturação da Igreja Sirian no Brasil.
Seja como for, observa-se uma ruptura dentro do que foram as Campanhas da Fraternidade
até o momento. Sabemos que várias sofreram críticas e que sofrem resistência, mas até o momento
essa foi a mais polêmica. A seguir está um trecho do ofício do bispo arquidiocesano de Juiz de Fora.

Figura 3 - Trecho do ofício do arcebispo metropolitano de Juiz de Fora

No trecho destacado, as opiniões do arcebispado são parecidas com as do Centro Dom Bosco:
a preocupação com a linguagem do texto-base e sua oposição à doutrina católica. No vídeo do Centro
Dom Bosco há uma referência que deve ser ressaltada: o papel da coleta feita no Domingo de Ramos,
que em 2021 seria no dia 28 de março. A proposta do grupo de leigos cariocas era que a coleta fosse
boicotada; não temos dados ainda sobre o efeito dessa proposta, mas é perceptível que diversas
paróquias não fizeram tal coleta. Outra questão é se o boicote foi feito em forma de protesto contra a
proposta ou se os administradores paroquiais não quiseram levantar ainda mais polêmicas.

5
Disponível em: <https://www.igrejasirianortodoxa.org/2021/02/comunicado-de-desligamento-do-conic.html>. Acesso
em: 15 jun. 2021.

29
Diante da repercussão negativa da CFE-2021, as autoridades da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil lançou uma nota. Merece destaque também trecho da conversa com Dom Joel
Portella Amado, bispo auxiliar do Rio de Janeiro e secretário-geral da CNBB, que foi publicada em
1º de março, no jornal Valor Econômico.
Secretário-geral da CNBB, que está no topo da hierarquia da Igreja Católica no Brasil, dom
Joel Portella Amado, vê o clima de polarização da Campanha da Fraternidade como reflexo
de um fenômeno mundial, mas nem por isso é complacente com os excessos dos grupos
ultraconservadores. Dom Joel afirma que a Igreja não tem ingerência alguma – a não ser
religiosa, com a orientação por padres ou leigos – sobre os grupos de inspiração católica; e
que, por serem associações civis, não há sanções previstas no ordenamento canônico. Em sua
opinião, o “único modo de enfrentar esse tipo de atitude é o diálogo e, no caso das redes
sociais, não compartilhar, não seguir etc.”. Pondera que, numa sociedade democrática, todos
têm o direito de se manifestar, mas avisa: “Deve, contudo, arcar com as consequências das
manifestações, que acontecem, quando é o caso, perante a justiça civil ou criminal, por serem
instituições apenas civis”6.

Note-se a linguagem de classificar o grupo do Centro Dom Bosco como ultraconservador e


da ameaça de processo jurídico, o que até o momento não sabemos se foi levado adiante. A posição
da CNBB, pelo menos do seu núcleo, foi de culpabilizar pela polêmica o Centro e ignorar as outras
vozes descontentes, tachando como radicais conservadores.
A resposta dos arcebispos envolvidos foi rápida, indicando que não seria apenas a questão
envolvida na CFE-2021, mas um descontentamento com o posicionamento da CNBB. Mesmo que os
fiéis tivessem reclamado, deveria haver predisposição para aceitar a crítica. Assim, centralizar a
influência do Centro Dom Bosco na polêmica é apenas superdimensionar seu poder. Utilizando a
abordagem do professor do Programa de Pós-Graduação de Ciência da Religião da Universidade
Federal de Juiz de Fora, Emerson Sena da Silveira, a posição do Centro é de um tradicionalismo que
prosperou no ciberespaço.
No caso do catolicismo, essa rede adensou-se com o tempo, multiplicando-se o número de
blogs pessoais, sites, páginas eletrônicas, perfis no Facebook, contas no Twitter e no
YouTube que expressam motivos, interesses, ideias e desejos religiosos. Uma parte dessa
rede é tradicionalista, por defender explicitamente valores inegociáveis enfileirados em torno
de dois princípios na visão tradicionalista-conservadora: uma verdade única como existência
iniludível (Deus, Igreja, Revelação e Sagradas Escrituras) e a família heterossexual cristã
como ordem natural (homem, mulher e filhos com papéis e funções reprodutivas)
(SILVEIRA, 2014, p. 217).

Esse tradicionalismo foi percebido em 2014 por Silveira; neste caso, percebemos a
consolidação dessa prática. O conservadorismo na cibercultura vem sem estabelecendo nas redes
sociais, obtendo espaços para sua expressão desde a virada do milênio.

6
Disponível em: <https://www.cnbb.org.br/ao-jornal-valor-economico-dom-joel-afirma-que-clima-de-polarizacao-da-
campanha-da-fraternidade-e-reflexo-de-um-fenomeno-mundial/>. Acesso em: 20 maio 2021.

30
Conclusão
Os organizadores da Campanha da Fraternidade Ecumênica não pensaram na possibilidade de
reação dos grupos conservadores, daí a surpresa estupefata pela reação promovida nas redes sociais.
Numa sociedade em que as redes sociais têm peso e o YouTube é um dos meios de informação, de
formação e de divulgação de opiniões, os autores da Campanha não imaginaram a resistência que
poderia haver, talvez porque nossa esquerda ache que seus termos sejam já senso comum. Entretanto,
o que se viu foi que a Campanha ativou o gatilho de diversas controvérsias adormecidas no seio
católico.
O texto da CFE-2021 não parece pensado para um grupo amplo, mas escrito para iniciados
numa linguagem militante. Aliás, diversos temas estão em moda nas universidades e ainda recentes,
como a necropolítica, cuja discussão é recente no meio acadêmico brasileiro. Quem conhece o termo
fora da academia? Poucos; aliás, nem muitos dentro dela o conhecem. Podemos dizer que a linguagem
do texto-base é muito academicista e, por que não dizer, sem preconceitos, militante. Todavia, um
texto-base atinge diversas pessoas, de pensamentos e formação diferentes; para isso, sua linguagem
deve ser objetiva, simples e com clareza, considerando horizonte a ser alcançado na produção. Por
fim, textos publicados são e sempre serão sujeitos a críticas – e as lições apreendidas servem para não
se cometerem os mesmos erros.

Referências Bibliográficas
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Trad. Roneide Venâncio Majer. 8ª ed. São Paulo:
Paz e Terra, 2005.
______. O poder da comunicação. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
CONIC/CNBB. Campanha Fraternidade Ecumênica 2021: Texto-Base. Brasília: Edições
CNBB, 2020.
SILVEIRA, Emerson José Sena. Debates do NER, Porto Alegre, ano 15, n. 25, p. 215-239,
jan./jun. 2014

31
ÉTICA TEOLÓGICA CONTEMPORÂNEA: ENTRE BÍBLIA E MORAL

Marta Luzie de Oliveira Frecheiras1

Resumo
Nesta comunicação, partimos da hipótese de que a teologia moral católica não havia, pelo menos, até o final do
século XX, incluído plenamente o pressuposto bíblico como principal suporte teórico para a reflexão teológica no âmbito
da moral. Por outro lado, apesar de a Escritura não poder oferecer soluções diretas e eficazes acerca de uma série de
problemas específicos do mundo atual, ainda assim pode-se aprender, com os autores bíblicos, não só a viver uma vida
de intimidade com o Deus vivo e verdadeiro, como também buscar orientações indispensáveis, a fim de se refletir sobre
a melhor maneira de conduzir o agir moral em conformidade com o plano salvífico de Deus. Sendo assim, faremos uma
análise do documento Bíblia e Moral: raízes bíblicas do agir cristão gestado pela Pontifícia Comissão Bíblica e que
estabelece a pessoa de Jesus como modelo e parâmetro para reflexão e ação.

Introdução
Neste artigo, trataremos das rotas de investigação na teologia moral católica, desde o
documento da Pontifícia Comissão Bíblica: Bíblia e Moral, Raízes Bíblicas do Agir Cristão de 2008.
Por outro lado, partimos também do pressuposto que a perspectiva bíblico-sapiencial pode realizar
com melhores resultados a ponte entre a Bíblia e a moral católica, do que a ética das virtudes, porque
os escritos sapienciais partem do pressuposto do temor de Deus, distintamente da ética das virtudes:
“o temor de IHWH é princípio do conhecimento” (Pr 1,7). Contudo, não é possível partir-se do
pressuposto bíblico sem antes contra-argumentar com as duas principais objeções que nos são
antepostas.

1. Objeções e contra-resposta
1ª objeção: A recusa das pessoas, na atualidade, em aceitar normas, obrigações e
mandamentos. A humanidade, na atualidade, anseia por plena felicidade e por plena liberdade, no
sentido de poder agir segundo o seu próprio arbítrio e sem qualquer vínculo com as normas. Para
alguns, essa ilimitada liberdade é mesmo essencial a fim de atingir a plena e verdadeira felicidade.
Segundo essa mentalidade, a dignidade da pessoa pressupõe que ela não deva aceitar norma alguma
que lhe venha imposta de fora. Neste sentido, a normatização presente na Bíblia, o desenvolvimento
da Tradição e do Magistério da Igreja que interpreta e concretiza essas normas, aparecem como
obstáculos que se opõem à felicidade e dos quais é necessário livrar-se.
Resposta à 1ª objeção: A “pessoa X”2 não criou a si mesma, não se trouxe ao mundo por livre,
espontânea e exclusiva vontade. A vida não transcorre como desejaria o pleito humano, até porque o
ser humano é sempre um dentre múltiplos “outros” e que interferem nas ações alheias, levando-as a

1
Professora titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Bacharel, mestre e
doutora em filosofia pela UFRJ. Bacharel, mestre e doutoranda em teologia pela PUC-Rio. Pós-doutorado em Filosofia
na Ludwig Maximilian Universität München e pela Universidad Complutense de Madrid. Email: marta.luzie@uol.com.br
2
A “pessoa X” é qualquer pessoa em qualquer tempo e lugar.

32
um resultado inesperado. Há também o agir da natureza que modifica o resultado das ações humanas.
Nesse sentido, mesmo aquele que não aposta na existência de Deus e de seu agir tem na natureza um
possível adversário à realização de seus desejos. Além disso, a “pessoa X” também não morrerá na
data, lugar e modo escolhidos por ela mesma, a menos que tire a própria vida. Por outro lado, na
antropologia bíblica, fundamental e primeiro é a ação de Deus, que antecede toda ação humana. O
agir de Deus é a priori e anterior ao agir humano.
2ª objeção: Pelo fato de muitos textos bíblicos terem sido escritos há cerca de dois mil e
quinhentos anos atrás, alguns acham que eles não podem servir mais para encontrar soluções aos
inúmeros problemas morais da atualidade, tais como: terrorismo, imigração, sexualidade, bioética e
família, dentre outros.
Resposta à 2ª objeção: Em primeiro lugar, é importante destacar que quando investigamos os
seres humanos, devemo-nos nos deter tanto no aspecto cultural quanto no aspecto essencial. O
aspecto cultural e específico da humanidade em uma determinada época e lugar aparece nas
dimensões histórico-sociais, política e econômica. O aspecto essencial brilha na trama
existencial/ontológica, na tessitura da vida individual, onde surge a necessidade de se viver buscando
a si mesmo. Sendo assim, apesar do tempo cronológico que nos distancia da redação final dos escritos
bíblicos, ainda assim é possível lê-los levando em consideração o clamor presente neles, que
silenciosamente nos convida a buscar somente aquilo que é essencial para a vida humana e que nos
foi revelado por Deus. O estudo bíblico, ao buscar referências e orientações, pode ajudar-nos a
consolidar o dom do discernimento.
Os problemas e inquietudes dos tempos bíblicos não são idênticos aos nossos, e os nossos
exigem orientação concreta. Não somente isso, mas as respostas a problemas semelhantes
aos nossos correspondem ao grau de compreensão da Revelação que tinha o autor que a dá.
É assim que, por exemplo, o problema do divórcio recebeu diferentes respostas em diferentes
escritos da Bíblia (veja Dt 22,13-29; 24,1-4; Mc 10,1-12; Mt 19,3-9; 1Cor 7,12-15). A
vontade de Deus para nosso momento histórico atual deve ser buscada tal como os autores
fizeram nos tempos bíblicos. Com seus testemunhos de fé, com suas respostas a situações
concretas, os escritores bíblicos, nos oferecem referências e orientações indispensáveis (mas
nem sempre respostas inalteráveis). Os compositores dos escritos da Bíblia foram inspirados
pelo mesmo espírito de Deus que continua presente em nosso mundo: é o mesmo Espírito
que guiou o povo de Israel, os profetas, Jesus e as primeiras comunidades cristãs , o qual
continua guiando o povo de Deus hoje (ARENS, 2018, p. 233-234).

1.1 A moral revelada


Segundo a Escritura, a moral é secundária, já que ela é oriunda da experiência de Deus (PCB,
2008, p.8). Primeiro é a relação do ser humano com Deus, na qual Ele se dá a si mesmo, se revela e
se autocomunica de forma totalmente gratuita. Ele o faz como um dom. A partir daí, surge a moral
revelada como uma interpelação de Deus para que os seres humanos conformem “seu pensamento e
sua ação ao modelo divino: sejais santos, porque eu, o SENHOR vosso Deus, sou santo” (PCB, 2008,
p.8).

33
O documento Bíblia e Moral: raízes bíblicas do agir cristão gestado pela Pontifícia Comissão
Bíblica e que aduziremos, em parte, nesse artigo, tem início ao estabelecer como critério fundamental,
para qualquer análise do agir moral na Bíblia, tanto a antropologia bíblica, quanto a pessoa de Jesus
como modelo e parâmetro de reflexão e ação. A partir deste critério fundamental, o documento
supracitado apresenta o entendimento moral que podemos depreender de vários escritos bíblicos e
que passamos a apresentar em forma de resumo.

1.1.1 Gênesis
O primeiro aspecto a ser destacado diz respeito ao fato de Deus ter criado o ser humano à sua
imagem: “Façamos o ser humano à nossa imagem e segundo a nossa semelhança” (Gn 1,26)3.
Segundo o documento da PCB, aqui já aparece de modo claro a concepção da antropologia teológica
a nós revelada: o ser humano imagem de Deus, fator fundamental para o início de qualquer reflexão
moral cristã que deve ter como fundamento a semelhança com Deus. Além disso, porque o ser
humano e o mundo foram criados por Deus, ambos nada são sem Ele. Daí a necessidade do
reconhecimento da total dependência Dele e de assumir que não é possível uma compreensão
verdadeira do mundo e de si mesmo alienada de Deus (PCB, 2008, p.11).

1.1.2 Êxodo
Aqui aparece a “fórmula da Aliança”: “Eu serei o teu Deus e tu serás o meu povo”. A PCB
afirma que, nesse contexto, nasce a “moral revelada” em “situação de aliança” como um dom gratuito
de Deus e que interpela o ser humano ao conclamá-lo por um sim pleno, um sim integral,
transformando a moral revelada num caminho revelado e presenteado aos seres humanos (PCB, 2008,
p.15). Destaca-se, ainda, que esse caminho moral diz respeito à história da salvação, por esta razão,
em primeiro lugar, vem o encontro, a relação entre Deus e o ser humano para, em seguida, o ser
humano dar os primeiros passos e desdobrar-se nesse caminho salvífico-moral, pois ele esse caminho
visa a conversão.
O decálogo, por sua vez, é iniciado descrevendo a ação libertadora de Deus: “Eu sou IHWH
teu Deus que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão” (Ex 20,2). Por isso, a PCB afirma
que o “decálogo abre largamente o caminho a uma moral de libertação social” (PCB, 2008, p.21),
além do fato de o decálogo ter um alcance universal porque sua formulação é apodítica, isto é,
universal e necessária, num programa de dez pontos decrescentes, sendo Deus em primeiro lugar e as
coisas materiais em último. Contudo, na moral revelada, os direitos humanos estão subordinados à
soberania universal de Deus, bem como existe um equilíbrio entre direitos e deveres relacionados à
pessoa humana.

3
As citações bíblicas baseiam-se na Bíblia de Jerusalém, Bíblia do Peregrino, na TEB, bem como nos originais em grego
e hebraico, todos citados nas Referências Bibliográficas, já que algumas vezes foi preciso consultar o texto original.

34
1.1.3 Códigos legislativos
O Código da Aliança (Ex 21,1-23,33) retoma a intuição profética da proximidade de Deus em
relação aos mais pobres, a fim de combater e vencer a pobreza (PCB, 2008, p. 23); a Lei de Santidade
(Lv 17,1-26,46) formula leis levando em consideração os estrangeiros, posto que tanto os habitantes
como os estrangeiros têm uma responsabilidade comum estabelecida pelo vínculo do amor; e o
Código Deuteronômico (Dt 4,44-26,19), que insiste sobre o estatuto particular da terra confiada por
Deus aos israelitas. Israel usufrui da terra confiada por Deus aos israelitas. Assim, a justiça social
aparece como a resposta do povo de Israel à ação do dom de Deus (PCB, 2008, p. 12).

1.1.4 Salmos
Eles traduzem o louvor e a adoração frutos do reconhecimento do mistério, da grandeza e da
soberania de Deus. O louvor e a gratidão ocorrem no saltério ainda mesmo diante da incerteza, da
ameaça e do sofrimento, já que a confiança do salmista está no “Criador benévolo que continuamente
cuida de suas criaturas” (PCB, 2008, p. 24).

1.1.5 Profetismo
Baseia-se nos dez mandamentos presentes em Dt 5,1-6.28-33em respeito à ação de Deus na
história do povo de Israel, principalmente a partir do êxodo. Daí a importância espiritual dos profetas
para o povo de Israel, pelo fato de o relembrarem e de o confrontarem continuamente diante da atitude
desse mesmo povo junto às nações estrangeiras que se esquece da Lei de Deus.
Destaque é dado ao texto de Jr 31,31-34, que afirma a presença de uma “Nova Aliança” a
partir da qual a Lei de Deus não estará mais escrita em pedra, mas, sim, inscrita e gravada no coração
dos seres humanos, já que a Torá será ensinada pelo próprio Deus ao seu povo e não mais por
mediadores humanos, o que segundo os cristãos aconteceu por meio da morte salvífica de Jesus de
Nazaré em Mt 26,28.

1.1.6 Os Livros Sapienciais


Um dos aspectos mais interessantes dos Livros Sapienciais, e que nunca foi aproveitado com
vistas à formação moral do Novo Povo de Deus, é o fato de que a sua função principal é ensinar o
justo comportamento às pessoas (PCB, 2008, p. 26).
O texto da Pontifícia Comissão Bíblica acentua a importância do livro Eclesiastes por ele
frisar que a vida humana está em constante transformação, lançada na temporalidade fugaz e, por isso
mesmo, o ser humano não é capaz de ter controle de nada, apesar de ambicionar arduamente esse
poder. Ao fim e ao cabo, tudo é hebel, ou seja, vazio, vão (...) e, portanto, vanitas, vaidade. A falsa
sensação de controle e de poder, por parte do ser humano, seria então pura vaidade e apenas um

35
pensar subjetivo e mental, posto que não há qualquer tipo de possibilidade humana de dominar a
realidade que é objetiva e cheia de inconsistências e contradições. O autor relembra ao povo de Israel
que ele deve “temer a Deus” porque esse sim é o princípio da sabedoria (Eclo 3,14).Outro texto
sapiencial que recebe destaque da Comissão é o livro Eclesiástico, porque ele une a vertente
experiencial própria do sábio4com a observância da Torá, sendo que o autor bíblico afirmou
veementemente: “Toda sabedoria vem do Senhor”(Eclo 1,1) e “O temor do Senhor é glória e honra,
alegria e coroa de exultação” (Eclo 1,11).

1.1.7 Reino de Deus nos Sinóticos e em João


O principal tema do Novo Testamento é a pessoa de Jesus de Nazaré, seus gestos, palavras e
ações (PCB, 2008, p. 28). Nesse sentido, Jesus aponta sempre para o Pai e faz da expressão “Reino
de Deus” o seu conceito fundamental, pois é a boa notícia que Ele veio nos dar: a de proclamar a
presença já presente do Reino de Deus no meio de nós, ainda que a plenitude desse reino só venha
ocorrer plenamente na eternidade. Essa expressão significa que Deus é rei e senhor e que, por esta
razão, o definitivo destino da humanidade está nas mãos de Deus. Cabe ao cristão confirmar, por
meio de suas ações, o querer de Deus, mesmo que no momento atual o mal ainda atue dificultando o
discernimento, trazendo sofrimentos, injustiças, discórdias e, principalmente, perseguições para o
seio da vida cristã.
Além disso, nos evangelhos sinóticos, Jesus acentua o aspecto de sua missão relativa aos
pecadores, àqueles que desconhecem Deus, confirmando as promessas da Nova Aliança e de que
todos o conhecerão, conforme presentes em Jr 31,34b. O papel central de Jesus Cristo como modelo
de relacionamento com o Pai e, consequentemente, como modelo de ação moral para os cristãos
também aparece nos sinóticos (PCB, 2008, p.30). Jesus de Nazaré vem a ser o guia para mostrar o
caminho justo5 a ser seguido pela humanidade. Não só o caminho justo, mas também o caminho da
misericórdia6, próprio do Pai, e que aparece especialmente representado nas Bem-aventuranças (Mt
5,3-10 e Lc 6,20-22).
Enquanto nos sinóticos o Reino de Deus é conceito central, em João, Jesus de Nazaré anuncia
o “amor”, porque “Deus amou tanto o mundo, que lhe deu o seu Filho único” (Jo 3,16), introduzindo
assim, na vida humana, um novo modo de vivê-la e que tem na soberania amorosa de Deus o seu
fundamento. Esse novo modo de viver baseia-se na imitação de Cristo e na ação gratuita, porque foi
assim que Jesus viveu. Os sinais que Ele realizou comunicam a presença de Deus no mundo e o apelo
para a conversão, para a adesão a Deus por meio de sua pessoa.

4
O sábio vive e reflete constantemente sobre aquilo que vive.
5
Justiça é dar a cada um aquilo que lhe é devido.
6
Dar muito além do que a pessoa merece receber.

36
1.1.8 Escritos Paulinos
Paulo escreve suas cartas para as comunidades que estão com problemas reais, que precisam
ser resolvidos. Contudo, ele não alude diretamente aos problemas, ele procura apresentar as linhas
fundamentais de sua compreensão do Evangelho em Rm 1-8 a fim de que os destinatários de suas
epístolas possam meditar e escutar o Espírito Santo que neles habita. Para ele, é a experiência do amor
infinito de Deus a base da moral, e não as normas externas. Sendo assim, a moral é consequência do
relacionamento pessoal com Cristo que nos fez morrer para o pecado junto com Ele (PCB, 2008, p.
36).

1.1.9 Cartas Católicas


Tiago é um autor ocupado com a vida moral das comunidades e, por isso, distingue a sabedoria
do alto revelada, que é obra de Deus, da sabedoria terrena, produto da mente humana, a ue ele
denomina de “diabólica”. Em sua carta, ele também destaca a importância da “justiça social”,
principalmente em relação ao pobre como uma forma de respeito à dignidade humana (PCB, 2008,
p.37).
A primeira carta de Pedro apresenta normas de conduta a serem seguidas pela comunidade
cristã, dentre elas, a principal está no fato que, como os cristãos são migrantes e forasteiros (1Pd
2,11), eles não devem de modo algum viver sob as normas das sociedades pagãs; também devem
buscar encorajar uns aos outros nos momentos de perseguição.

1.1.10 Apocalipse
Aqui o tema da aliança é retomado com configurações próprias e de modo mais alargado a
partir dos livros Êxodo, Jeremias e Ezequiel e a referência presente é aquela do Cristo-Cordeiro e
esposo, tendo Jerusalém como noiva (Ap 21,9). A tenda que Deus armaria em Jerusalém na “arca da
aliança”, agora é compreendida como o ser humano fiel a Deus (Jerusalém) e o coração do fiel (a arca
da aliança). Neste sentido, os cristãos, a partir do batismo, são transformados em pedras vivas do
reino de Deus. Logo, o empenho do cristão deve estar voltado para a concretude da história e ser
desenvolvido no confronto dialético entre o bem e o mal. Por isso, a tensão moral vivida pelo cristão
deve ser dada como “uma oblação pela vinda do reino de Deus e deve comportar um permanente
estado de conversão” (PCB, 2008, p. 42).
Contudo, essa interpretação moral do livro do Apocalipse, se a confrontarmos com a
compreensão moral de Paulo, poderá confundir o fiel cristão que permanecerá sem saber se ele deve
1) olhar somente para a eternidade; ou 2) se ele pode e deve olhar para o presente, empenhando-se
em auxiliar no predomínio do reino de Deus neste mundo.

37
1.2 O discernimento ou a determinação atenta
As informações provenientes tanto da análise bíblica por meio do método histórico-crítico,
quanto pelo método linguístico (a crítica textual; o gênero literário; a análise do discurso; e a retórica
bíblica), têm papel fundamental na correta avaliação moral do teólogo bíblico voltado para a teologia
moral, mais do que pelo exegeta, haja vista que o teólogo bíblico é capaz de ter uma visão de conjunto
tanto do Antigo, quanto do Novo Testamento. O papel da exegese bíblica é aquele de deixar luzir, no
texto, apenas o seu fundo, o sentido mais humano e transcultural, em lugar de permitir aplicar um
preconceito cultural de uma época como se fosse um princípio moral. Para nós, o teólogo deverá ter
sólida formação tanto na área bíblica, como também na área sistemática, especificamente em teologia
moral.
Além da exegese bíblica e da compreensão do teólogo bíblico, devemos levar em consideração
alguns aspectos na análise moral de um texto bíblico:  Levar em consideração o lugar que o escrito
bíblico e a perícope ocupam no cânon da Escritura, a fim de saber o seu nível de reelaboração até
chegar à redação final;  Ter atenção particular diante das prescrições morais, com o intuito de
descobrir se elas vêm acompanhadas de fundamento teológico ou se elas são apenas prescrições
casuísticas;  Ocupar-se também dos modelos sociológicos que subjazem ao texto bíblico;  Extrair
sempre e apenas o sentido transcultural da moralidade vigente no texto bíblico;  Observar
atentamente e comparar se há continuidade entre as questões apresentadas no texto bíblico
investigado;  Inquirir-se acerca do sopro do Espírito Santo, na atualidade, por meio do
discernimento espiritual comunitário. Contudo, o discernimento comunitário tem primado espiritual
sobre o discernimento pessoal, apesar da “consciência” ser o lócus principal da moralidade, por ser a
última instância de decisão;  Ter clareza que a Igreja católica desaprova qualquer leitura
fundamentalista da Bíblia;  Levar em consideração o refinamento da consciência moral inspirado
na “justiça do reino”;  Se capaz de conciliar os direitos e as aspirações da pessoa, mas fincados no
discernimento espiritual comunitário; e  Abordar questões difíceis usando o tríplice recurso: a) os
métodos exegéticos em constante progresso; b) a autoridade eclesial e magisterial; e c) a consciência
governada pelo Espírito Santo.

Referências Bibliográficas
ARENS, E. A Bíblia sem Mitos. Uma introdução Crítica. 5ª edição. São Paulo: Paulus, 2018.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2015.
BÍBLIA DO PEREGRINO. São Paulo: Paulus, 1997.
BÍBLIA TEB. São Paulo: Loyola, 1994.
FREEDMAN, D. N. (Ed.) The Anchor Bible Yale Dictionary. Vol 1.New York: Doubleday,
1990.
KITTEL, G. Theological Dictionary of the New Testament. Vol IV. Grand Rapids: Eerdmans,
2013.

38
LIDELL, H. G.; SCOTT, R. Greek. English Lexicon. Oxford: Clarendon Press, 1977.
NESTLE, E.; ALAND. K. Novum Testamentum Graece 28ª. Stuttgart: Deutsche
Bibelgesellschaft, 2012.
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. Bíblia e Moral: Raízes Bíblicas do Agir Cristão.
Vaticano: Roma, 2008.

39
A ÉTICA SOCIAL DO PAPA FRANCISCO: O PAPA DAS PERIFERIAS

Robson Ribeiro de Oliveira Castro Chaves1

Resumo
O objetivo deste trabalho é analisar a preocupação do Papa Francisco com os mais fragilizados da sociedade e a
sociedade do descarte. Para tanto, buscar-se-á analisar o contexto de seus documentos que versam sobre a realidade atual
do mundo e a Igreja. Francisco apresenta uma relação íntima com o cuidado do ser humano, menos hierarquizada e mais
humana, fugindo dos grandes protocolos. Seu pensamento ético e posicionamento diante dos problemas político-sociais
nos convocam a refletir a realidade do ser humano. Observar-se-á a investida de Francisco atento a uma sociedade mais
igualitária e a promoção da dignidade humana. Colocar-se-á, ainda, em pauta a ética teológica e seus desdobramentos no
caminho da defesa dos menos favorecidos. Utilizar-se-á do termo “cultura do encontro” para o cuidado com o próximo
contra uma cultura do descarte. Por fim, apresentar-se-á uma reflexão sobre o poder e o serviço como a grande e autêntica
marca de Francisco e sua atuação no meio do povo.
Palavras-chave: Ética. Papa Francisco. Direitos Humanos. Cultura do encontro. Periferias.

Introdução
As relações interpessoais nos dias atuais são pautadas mais nos bens materiais e conquistas
do que na interação social e no bem comum. A fragilidade humana e suas relações desestruturadas
nos revelam uma situação complexa de condicionamentos. Para tanto, é preciso uma nova realidade
e se ater ao básico que é o respeito ao próximo e às diferenças.
O Papa Francisco, além de demonstrar preocupação com os temas sociais, atrela a esta questão
a defesa dos direitos de cada ser humano, principalmente com relação aos pobres. Sua apreensão
perpassa a desvalorização da pessoa, o que compromete a vida, principalmente quando se pauta em
uma sociedade que prega a exclusão e o individualismo.
Diante deste aspecto, é necessário observar o caminho ético que Francisco propõe e a cultura
do descartável que faz com que o ser humano seja um mero objeto. Ao elaborar este artigo,
colocaremos em pauta a ética, e seus desdobramentos no caminho da defesa dos menos favorecidos.
A ética teológica, o agir frente às situações mais complexas, nos convida a olhar para o
evangelho e para o Cristo. Para isso, buscaremos propor uma análise da atual realidade e da ação do
cristão frente ao individualismo. Observaremos que a moral não limita o ser humano, ou a sua
liberdade, mas sim norteia as ações, colocando-nos a pensar e refletir.
Assim, pautado em uma ética teológica da caridade e do amor ao próximo, nos atentaremos
para a possibilidade de uma cultura do encontro, contra uma cultura do descarte e da transformação
do ser humano como mero objeto de consumo, muito cultuado na nossa sociedade e que fere a
dignidade humana. A relação humana deve se voltar para uma vivência cristã pautada no próximo.
Ao se colocar em serviço, o ser humano se preocupa mais com o outro e vive em comunhão com
todos numa relação solidária. Nosso debate será permeado pelas alocuções e mensagens do Papa

1
Mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Professor de Teologia no Instituto Teológico
Franciscano (ITF), e Petrópolis (RJ). E-mail: robsonrcastro@yahoo.com.br.

40
Francisco, além de apresentarmos seu posicionamento e suas admoestações quanto às violações aos
direitos humanos na sociedade atual, que ferem a dignidade humana e a moral.

Papa Francisco e a ética cristã


A sociedade excludente não corrobora para a igualdade, estamos distantes de uma condição
de empatia com o próximo, principalmente os mais fragilizados e que sofrem com os problemas
econômicos. O Papa Francisco, como se verá a seguir, tem o desejo de conscientizar a humanidade
para que todos tenham os mesmos direitos, independente do poder aquisitivo ou posição social.
Francisco se preocupa com aquilo que é valorizado na relação humana e demonstra sua
insatisfação com relação ao individualismo e à cultura do descartável. A competição desenfreada, a
todo custo, faz de nós meros fantoches do mercado. Há uma perda de valores e se volta o olhar para
o enriquecimento em desvalorização ao trabalho e do próprio ser humano.
Francisco acrescenta a realidade de uma “Igreja em saída” e sua condição frente aos desafios
da atualidade:
A Igreja ‘em saída’ é uma Igreja com as portas abertas. Sair em direção aos outros para chegar
às periferias humanas não significa correr pelo mundo sem direção nem sentido. Muitas vezes
é melhor diminuir o ritmo, pôr de parte a ansiedade para olhar nos olhos e escutar, ou
renunciar às urgências para acompanhar quem ficou caído à beira do caminho. Às vezes, é
como o pai do filho pródigo, que continua com as portas abertas para, quando este voltar,
poder entrar sem dificuldade. (FRANCISCO, 2013, n. 46).

O Evangelho, subversivo para muitos, é um autêntico clamor por maior dignidade humana e
respeitos por todos. É importante observar que o Evangelho não muda, mas a conduta do ser humano
sim; devemos nos propor a sair do nosso comodismo e ir ao encontro do outro na proposta de
acolhimento.
A valorização da vida e a superação das violações da dignidade e dos direitos humanos é uma
proposta de ação ética em nossa realidade. Para tanto, a caridade é base de uma ética-teológica, porém
é necessário haver uma renovação neste pensamento. A renovação trazida pelo Concílio Vaticano II
e seu ressoar ao longo dos anos nos mostra a necessidade de uma nova prática, principalmente pela
necessidade de atuação mais consciente e mais humana na sociedade.
O princípio da ação e da ética cristã é a caridade, para tanto, é necessário enaltecer as relações
humanas e proporcionar uma igualdade entre todos. O ser humano se apega aos bens
materiais e é nesta relação que há uma inversão dos valores éticos e morais. A caridade tem
sua tradução na solidariedade, sendo esta última o bem primordial do ser humano que é a
dignidade humana. (CHAVES, 2021, p. 183).

Hoje o que se ressalta é a exclusão e a desvalorização do ser humano, apesar de a ética cristã
ser a base para as ações e relações, defendendo os direitos humanos e promovendo uma igualdade
longe das exclusões. Decorre daí, como consequência ética, que a dignidade e todos os seus direitos
devem ser reconhecidos em cada ser humano. Há um desafio, pois a solidariedade

41
é o valor fundamental mais necessário em nossa realidade, para que se defenda o bem que é
a base de todos os outros: a dignidade humana. O desafio é como transformar esse valor em
algo efetivo e transmissível através de um ethos da solidariedade.” (JUNGES, 2001, p. 210.
grifo do autor).

Como cristãos é mister observar os ensinamentos do próprio Cristo, que veio nos apresentar
um reino de fé, esperança e caridade. Assim, a ética teológica nos dá base para pensar as ações de
forma mais humana e solidária, atenta às necessidades do próximo, evitando, portanto, a cultura do
descartável que promove a destruição do ser humano.

Francisco e a cultura do encontro


Francisco vem mostrando que não se deve viver à mercê de uma realidade desumana que
compromete a vida de todos, e se sobressai quando afirma que não devemos cultuar o dinheiro, pois
não é possível servir a dois senhores. (cf. Mt 6, 24). Aos poucos, os “entraves” e o tradicionalismo
vão caindo por terra, sobressaindo seu lado humano, fugindo dos grandes protocolos.
Ainda nesta ótica, a proteção e a não violação dos direitos de cada um dos indivíduos deve ser
mantida, não se podendo pensar em uma sociedade que discrimina ou que segrega. Francisco, em seu
discurso na ONU em 2015, assevera que a exclusão econômica compromete o bem estar social e as
classes mais desfavorecidas e que vivem na periferia sofrem com o descaso. Por isso, são “descartados
pela sociedade, ao mesmo tempo são obrigados a viver de desperdícios, e devem injustamente sofrer
as consequências do abuso do ambiente.” (FRANCISCO, 2015b).
A pessoa nunca está sozinha, vive em sociedade. Entretanto, o contexto social compromete o
bem do indivíduo, pois a disputa por melhoria de vida e bens de consumo faz do sujeito escravo de
sua necessidade. Francisco apresenta a sua preocupação ao relatar sua insatisfação com a
desvalorização do ser humano e a desigualdade social em que o lucro e o enriquecimento estão acima
das relações harmoniosas de trabalho e família.
Diante desta desvalorização do indivíduo e as constantes ameaças que a dignidade humana
vem sofrendo, Francisco se preocupa com o crescimento desenfreado da sociedade e a busca pelo
enriquecimento a todo custo. Ao abordar o termo “cultura do descartável” (FRANCISCO, 2013, n.
53), o Papa nos alerta para a realidade de exclusão social e a forma como o ser humano é descartado.
Atento à realidade do ser humano de hoje, ele afirma que a humanidade precisa se encontrar
e promover os encontros de fraternidade. Francisco acrescenta que é preciso observar o que podemos
fazer e promover uma cultura do encontro, principalmente nas relações familiares e nos momentos à
mesa:
“Quantas vezes as pessoas, enquanto comem, veem televisão ou escrevem mensagens no
telemóvel. Todos são indiferentes ao encontro. Não há encontro nem sequer no núcleo da
sociedade, que é a família’, comentou. Eis então a sua exortação conclusiva ‘a trabalhar por
esta cultura do encontro, com tanta simplicidade como fez Jesus’.” (FRANCISCO, 2016).

42
Mais do que nunca é preciso promover o encontro, pois temos uma sociedade ferida e que
precisa ser curada, não apenas de doenças físicas, mas de doenças sociais, como a pobreza, a exclusão
social e as diversas formas de escravização deste mundo. Por isso, é urgente promover um diálogo
entre todos para tentar ajudar às pessoas a se relacionarem melhor e de forma mais saudável. Assim
se faz necessário ouvir todos para saber de suas expectativas, esperanças e desejos.
O respeito pela pessoa humana e os seus direitos caminham juntos na necessidade de se
repensar as estruturas econômicas, fugindo de uma economia líquida, que só atende às necessidades
de alguns para uma economia social. Assim, tratar o ser humano como pessoa e não como mero objeto
já é uma grande transformação social. De fato, é preciso, de forma genuína, dar condições dignas para
as pessoas, principalmente as que vivem nas periferias sofrendo a cada dia as dores de uma sociedade
excludente e individualista.
Não podemos ser coniventes com uma sociedade tão desigual, Jesus veio para assumir o
projeto e foi um defensor da igualdade para todos sem distinção. Francisco, alertando para a
desigualdade existente, reforça a necessidade de se sair dos comodismos e seguir até às periferias:
“cada cristão e cada comunidade há de discernir qual é o caminho que o Senhor lhe pede, mas todos
somos convidados a aceitar esta chamada: sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar
todas as periferias que precisam da luz do Evangelho.” (FRANCISCO, 2013, n. 20).
Assim, promover mais a dignidade humana do que os bens, pois se incomoda ao ver o ser
humano ser tratado como objeto e não respeitado em sua essência como ser querido e amado por
Deus, mas somente mais um membro que produz e leva lucro e garantias para a sociedade
desumanizada. (cf. FRANCISCO, 2013, n. 224).
Assim como Cristo, Francisco pretende promover uma ética teológico-cristã, encarnada na
vivência cotidiana, pautada na acolhida e no respeito humano, enfim, inspirada na misericórdia. Uma
ética voltada, sempre, para a valorização da vida do outro. O próprio Papa afirma: “‘habituados com
uma cultura da indiferença’ e por isso necessitados de ‘trabalhar e pedir a graça de fazer uma cultura
do encontro, deste encontro fecundo, deste encontro que restitua a cada pessoa a sua dignidade de
filho de Deus, a dignidade de um ser vivo’”. (FRANCISCO, 2016).
Por isso, seu propósito é combater a indiferença, algo que o ser humano tem em demasia,
além da superficialidade das relações. Francisco deseja uma realidade completamente diferente que
é pautada no zelo com o próximo e um propósito de um encontro com o outro e suas dores e
realidades.
De fato, ele se preocupa com a condição do outro, seus direitos e sua condição no mundo.
Para tanto, é preciso analisar a dignidade humana e sua condição, fugindo da cultura do descarte (cf.
FRANCISCO, 2013, n. 53) e defender a igualdade e, principalmente, a dignidade humana. Francisco

43
crítica a forma capitalista de viver e a condição desumana frente aos problemas econômicos que
distanciam as classes sociais e promovem uma competição desenfreada pelo lucro, desrespeitando
valores intrínsecos a dignidade humana. (FRANCISCO, 2014).
Assim sabedores desta realidade, é necessário fomentar o desejo de ouvir o outro, ver o mundo
de outra ótica, observar seu sofrimento e experiência humana nas mais diversas culturas, raças e
tradições. Francisco nos apresenta a realidade de que é imprescindível que o ser humano tenha a
capacidade de ter uma ascensão social, conseguindo sua manutenção e de sua família e seu
desenvolvimento. É necessário ter os três “T” – terra, teto e trabalho – havendo uma harmonia entre
esses três, fugindo da escravização do indivíduo e da supremacia de um sobre o outro.
A relação humana deve se voltar para uma vivência cristã pautada no próximo. O Papa se
condói daqueles que são escravizados e alerta para a realidade dos que sofrem diante da desigualdade.
Ao se colocar em serviço, o ser humano se preocupa mais com o outro e vive em comunhão com
todos numa relação solidária.
Francisco nos alerta para nossa realidade, principalmente para como a cultura do ódio e da
vingança compromete diretamente o bem da sociedade. É preciso viver atentamente a relação
humana, buscando a valorização do ser humano. É necessário buscar atitudes éticas para que se possa
vivenciar uma relação coerente na realidade no mundo de hoje, uma reestruturação das relações
pautadas no outro e buscar a igualdade para todos. (cf. CHAVES, 2021, p. 186).
Francisco, preocupado com a discriminação, assevera quanto à exclusão social: “a defesa do
ambiente e a luta contra a exclusão exigem o reconhecimento duma lei moral inscrita na própria
natureza humana, que inclui a distinção natural entre homem e mulher e o respeito absoluto da vida
em todas as suas fases e dimensões.” (FRANCISCO, 2015b).
Francisco salienta que a Igreja deve sempre falar dos direitos de todos os seres humanos. Ele
se preocupa com a fragilidade das relações o crescimento desenfreado do individualismo e
principalmente do relativismo: “falar de direitos humanos significa, antes de mais nada, repropor a
centralidade da dignidade da pessoa, enquanto querida e criada por Deus à sua imagem e
semelhança.” (FRANCISCO, 2018).
Desta maneira, no intuito de esclarecer qualquer mal-entendido com relação a esta
interpretação equivocada, Francisco apresenta sua opinião e preocupação com a dignidade do
indivíduo.
O futuro da humanidade não está unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes
potências e das elites. Está fundamentalmente nas mãos dos povos; na sua capacidade de se
organizarem e também nas suas mãos que regem, com humildade e convicção, este processo
de mudança. (FRANCISCO, 2015a).

É urgente combater qualquer afronta aos direitos humanos, defender a liberdade e a igualdade
em todas as relações. Para tal, a sociedade não pode aceitar uma realidade voltada somente para o

44
lucro e enriquecimento sem antes pensar na realidade. O ser humano não pode ter taxado como apenas
números e muito menos como bens desvalorizados e sem dignidade.

Conclusão
Ao analisar os posicionamentos de Francisco, pode-se observar que seu desejo é, acima de
tudo, o ser humano e sua dignidade. Estamos cada vez mais longe de viver a solidariedade evangélica
que Cristo pregou. É necessário se humanizar, partilhar o pão de cada dia, promover uma sociedade
mais humana e, acima de tudo, ações éticas pautadas na vivência cristã, tão esquecidas nos dias de
hoje e que são tão urgentes.
Francisco mostra seu intuito de colocar a Igreja mais próxima e retirar as diferenças. Em seu
pontificado, encontramos uma Igreja mais aberta e pronta ao diálogo. Para isso, observamos suas
atitudes com relação ao próximo, buscando ser ético e não deixando nunca o caráter humano das
relações.
A proposta de Francisco é de uma sociedade igualitária de respeito a todos e a promoção da
dignidade humana. Colocou-se, ainda, em pauta, a ética e seus desdobramentos no caminho da defesa
dos menos favorecidos. Francisco, preocupado, afirma que não se deve cultuar a guerra e a destruição
da raça humana, mas sim a paz, que deve ser cultuada na justiça e no respeito dos direitos invioláveis
de todo ser humano. O Evangelho é o centro de toda ação da ética cristã, pois a pessoa humana,
imagem e semelhança de Deus, é dotada de todo o bem do próprio criador. Deus, como autor da vida
e princípio de tudo, coloca todo o seu amor e sua dedicação ao ser humano.
Francisco enaltece o bem comum para que as periferias tenham voz e vez, frente ao descaso
do poder público. Desta forma, é necessário enaltecer a responsabilidade de todos em promover a
dignidade humana e sua relação com o próximo.
Assim, o cristão deve ser promotor de uma igualdade de oportunidades, propositor de uma
igualdade de condições, colocando-se em escuta atenta ao chamado de Deus. Por fim, fica a
orientação e o chamado a sermos atenciosos como o pai bondoso que espera atentamente o retorno
do filho, para acolhê-lo e curar suas feridas.

Referências Bibliográficas
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002.
CHAVES, Robson Ribeiro de Oliveira Castro. Terra, teto e trabalho: Direitos Humanos e a
Doutrina Social da Igreja a partir do Papa Francisco. Revista Encontros Teológicos, Florianópolis,
v.36, n.1, Jan.-Abr. 2021, p. 173-189.
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mundo atual. São Paulo: Loyola, 2013.
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Populares. Vaticano, 28 out. 2014. Disponível em:
http://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2014/october/documents/papa-
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45
FRANCISCO. Discurso aos participantes no 2º Encontro Mundial dos Movimentos
Populares. Vaticano, 9 jul. 2015a. Disponível em:
http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/july/documents/papa-
francesco_20150709_bolivia-movimenti-popolari.html. Acesso em: 8 mai. 2021.
FRANCISCO. Visita à Organização das Nações Unidas. 25 de set. de 2015a. Disponível em:
<http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/september/documents/papa-
francesco_20150925_onu-visita.html>. Acesso em: 8 mai. 2021.
FRANCISCO. Meditações matutinas na Santa Missa celebrada na Capela da Casa Santa
Marta. Por uma cultura do encontro. 13 de set. de 2016. Disponível em:
<http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/september/documents/papa-
francesco_20150925_onu-visita.html>. Acesso em: 8 mai. 2021.
FRANCISCO. Discurso do Papa Francisco ao corpo diplomático acreditado junto da Santa
Sé. 8 de jan. de 2018. Disponível em:
<https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2018/january/documents/papa-
francesco_20180108_corpo-diplomatico.html>. Acesso em: 8 mai. 2021.
JUNGES, José Roque. Evento Cristo e a ação humana. Temas fundamentais da ética
teológica. São Leopoldo: Unisinos, 2001.

46
A INQUISIÇÃO NOS TRÓPICOS: HERESIAS E CATOLICIS MO
POPULAR NO BRASIL COLÔNIA (SÉCULOS XVI - XVIII)

Letícia Maia Dias1

Resumo
Desde os primórdios da colonização nos trópicos, a Igreja empreendeu um projeto de catolicismo que visava não
apenas disseminar a religião, bem como disciplinar os comportamentos e extirpar os pecados da sociedade colonial. Posto
isto, o Santo Ofício português se consolidou no decorrer de seu funcionamento (1536-1821) enquanto um importante
instrumento deste projeto, e embora não tenha estabelecido um tribunal local no Brasil, atuou mediante a égide do
Tribunal de Lisboa e uma extensa rede de agentes, composta por leigos e clérigos que espalhados pelo território ficavam
responsáveis pela jurisdição inquisitorial. Neste contexto, através das fontes inquisitoriais (denúncias e processos)
localizadas no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, buscamos identificar e analisar as heresias praticadas pelos
habitantes coloniais, evidenciando também as singularidades que o catolicismo assumiu na conjuntura colonial. Portanto,
mostramos que não obstante aos esforços da Inquisição e da Igreja de conformar e normatizar a sociedade colonial por
meio da religião, o catolicismo popular acabou por assimilar não somente as influências religiosas europeias, mas também
as indígenas e africanas, adquirindo contornos sincréticos e heterogêneos.
Palavras-chave: Inquisição, heresias, catolicismo popular e Brasil Colônia.

Introdução
A Inquisição é, sem dúvida, um símbolo dos excessos da desumanidade a que se pode chegar
em nome da religião e do que se considerava a verdade. Ainda assim, representa também
uma instituição filha de seu tempo que, para ser seriamente compreendida, precisa ser
estudada no seu contexto e nas suas consequências concretas (MARCOCCI; PAIVA, 2013,
p.14).

O Tribunal do Santo Ofício português, um dos órgãos mais representativos da mentalidade


lusa (cf. SIQUEIRA, 1978, p.115), surgiu em uma conjuntura marcada pela crescente hostilização
dos cristãos-novos2 e pela preocupação da Igreja católica em preservar seus sacramentos e dogmas e
extirpar as heresias praticadas — tanto pelo clero quanto pelos fiéis —, de modo a tentar restringir o
avanço do protestantismo no seio da sociedade cristã. Logo, no decorrer dos seus 285 anos de
funcionamento (1536-1821), foi responsável por averiguar, julgar e punir os indivíduos que
transgrediam as normativas e os dogmas do catolicismo, em toda a extensão do Império Ultramarino
luso, possessões do Reino às suas possessões coloniais.
Por conseguinte, desde o início do processo colonização nos trópicos, a tentativa de
disseminar a fé católica foi apoiada e reforçada pela Coroa, uma vez que por intermédio da religião
buscava-se controlar e disciplinar os comportamentos de seus habitantes, garantindo a coesão do
Império. E embora não tenha sido instalado um tribunal local no Brasil, que funcionava mediante a
égide do Tribunal de Lisboa, a atuação inquisitorial se deu através das visitações oficiais3, da densa

1
Licenciada em História e habilitada em Patrimônio Histórico (UFJF), mestra em História Moderna (Universidade de
Évora- Portugal), aluna da especialização em Ciência da Religião (UFJF), doutoranda em História (UFMG).
2
Designação dada em Portugal aos judeus e seus descendentes que, a partir da determinação do rei D. Manuel I em 1497,
foram forçados a se converter ao catolicismo, mediante a pena de serem expulsos do território.
3
A historiografia e as fontes mencionam que foram realizadas quatro visitações inquisitoriais oficiais no território
brasileiro: em Pernambuco e na Bahia (1591-1595); nas partes da Bahia (1618 e 1620 ); nas Capitanias do Sul ( Rio de

47
rede de agentes espalhados pelo território (destacam-se os comissários, notários, qualificadores e
familiares), e do auxílio prestado pelas autoridades eclesiásticas locais (clero regular e episcopal).
Com a promulgação das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), as visitas
diocesanas, também denominadas de episcopais ou eclesiásticas, passaram a ser realizadas de forma
contumaz pelos bispados, permitindo a identificação de indivíduos suspeitos de praticar delitos de
alçada inquisitorial e que eram encaminhados ao Tribunal de Lisboa. Além disso, por meio das fontes
históricas, nota-se que muitas autoridades eclesiásticas, eram simultaneamente membros do Santo
Ofício, potencializando a atuação da máquina inquisitorial.
A implantação e desenvolvimento da rede de agentes coloniais composta majoritariamente
por familiares4 (único cargo que admitia pessoas leigas), foi estruturada ao longo do século XVII, e
consolidou-se nas primeiras décadas do século seguinte, consoante um aumento da concessão de
habilitações. 5 Em vista disso, mesmo sem a realização de visitações inquisitoriais na primeira metade
setecentista, este período evidenciou o ápice da repressão inquisitorial e do número de processos e
denúncias em terras brasílicas.
Todavia, a partir da segunda metade do século XVIII e o início do XIX marcam o declínio do
Tribunal em Portugal, fato que pode ser entendido como um reflexo da influência que a filosofia
iluminista, os ideais de racionalismo e a busca pelo progresso tiveram entre inicialmente entre as
elites letradas portuguesas, disseminando-se posteriormente nas demais camadas sociais urbanas, e
que tornava impossível a presença de uma instituição que por mais dois séculos adotou e legitimou
procedimentos de iniquidade, tortura, violência e intolerância religiosa.
Nesta conjuntura, o último Regimento de 1774 feito durante o governo do Marquês de
Pombal, secretário de Estado de D. José I, acabou por limitar a jurisdição inquisitorial aos delitos de
cunho doutrinal (eclesiásticos e espirituais), e ao determinar o abrandamento das sentenças que só
podiam ser espirituais e instrutivas, o fim do segredo processual, o melhoramento da defesa dos réus,
a proibição das práticas de tortura, a abolição da distinção entre cristão-novo e cristão-velho e o
consequentemente fim da perseguição dos judaizantes, eliminou os princípios nos quais a Inquisição

Janeiro, Espírito Santo e São Paulo entre 1627 e 1628) e a última na Amazônia Colonial ( Grão Pará, Piauí, Maranhão e
Rio Negro, onde hoje é o estado do Amazonas entre 1763 e 1769).
4
Aldair Carlos Rodrigues (2007) enfatiza que função dos familiares era denunciar, confiscar e prender os acusados de
heresia, representando assim, um elo profundo entre a Inquisição e a sociedade, sendo os indivíduos sujeitos
constantemente aos olhares atentos dos agentes inquisitoriais. Consequentemente, enfatizamos que a própria organização
interna do Santo Ofício revelava uma sociedade colonial tipicamente de Antigo Regime e por isso, essencialmente
hierarquizada, dado que ser um agente inquisitorial possibilitava a estes indivíduos não apenas zelar pela ortodoxia do
catolicismo e da vida religiosa colonial, mas era sobretudo uma importante via de acesso a promoção, distinção e ao poder
social e político, que os permitia gozar de uma série de privilégios fiscais e de foro privado.
5
De maneira geral para se tornar oficial era preciso passar por um processo de habilitação que envolvia a comprovação
da limpeza de sangue (não poderiam ter ascendência judaica, mourisca ou mestiça), bons antecedentes (não ter parentes
condenados pela Inquisição), ter condições financeiras de arcar com os custos do processo, possuir virtudes morais ( como
a bondade) e domínio da leitura e da escrita. Ademais, fazia-se a distinção entre os membros eclesiásticos *comissários,
notários e qualificadores) e leigos (os familiares)

48
havia pautado todo seu funcionamento até então, sublinhando “a primazia do absolutismo Real e do
Estado, não só como autoridade última de todo o direito, mas também protetor da Igreja e provedor
do direito eclesiástico”( FRANCO; ASSUNÇÃO, 2004, p.75).
Enfim, ao ser transformado em Tribunal régio, o Santo Ofício português vivenciou em suas
últimas décadas um processo gradual de secularização, decorrente do esvaziamento de seu poderes,
de suas atribuições jurídicas e de alguns de seus elementos constitutivos, que aliados aos
acontecimentos internos (como a vinda da Corte para o Brasil e a Revolução do Porto), culminaram
com a sua extinção em 1821 (cf. MATTOS, 2009, p.111).

1. A Inquisição nos Trópicos (Séculos XVI - XVIII)


Mediante às especificidades de sua formação e povoamento, que evidenciava uma grande
heterogeneidade social, religiosa e cultural, a Igreja com o auxílio da Inquisição e da Coroa
portuguesa, esforçou-se em estruturar a religiosidade local e sobretudo unificar a multiplicidade
existente na colônia por meio do catolicismo. Contudo, impôs a religiosidade popular contornos
sincréticos e heterogêneos, consoante a interpenetração cultural que ocorreu entre as populações
ameríndias, africanas, europeias e também as que Eduardo França Paiva (2019, p.140) denomina
como “mestiçadas”, resultantes destas misturas, e que incluem “ todos os tipos sociais mesclados
biologicamente, tais como mestiços, mamelucos, bastardos, mulatos, pardos, caboclos, cabras,
curibocas, cafuzos, caburés, zambos, entre outros”.
Outrossim, o extenso volume documental de denúncias e processos inquisitoriais de
indivíduos nascidos ou moradores na América portuguesa revela que a religiosidade praticada no dia-
a-dia, em muito se distanciava da religião instituída e pregada nos púlpitos das Igrejas e capelas, fato
que na sociedade colonial está diretamente vinculado ao intenso processo de convivências, trocas e
assimilações culturais engendradas entre populações de distintas origens, que no transcorrer de três
século, se consolidaram como “agentes de um longo processo de sincretização” ( SOUZA, 1986,
p.16).6

2. Heresias e catolicismo popular no Brasil Colônia (Séculos XVI - XVIII)


Os crimes julgados pela jurisdição inquisitorial no Brasil colônia como heresias (tais como o
judaísmo, luteranismo, bigamia, sodomia, sacrilégios, blasfêmias e proposições heréticas, solicitação
e feitiçaria), demonstravam não somente a existência nos trópicos de uma sociedade essencialmente

6
No tange a identificação das vítimas da Inquisição na Inquisição no Brasil colônia mencionamos as seguintes obras:
NOVINSKY, Anita: Prisioneiros no Brasil – séculos XVI a XIX. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009 e RESENDE, Maria
Leônia Chaves de; SOUSA, Rafael José de. Em nome do Santo Ofício: Cartografia da Inquisição nas Minas Gerais. 1ed.
Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2015.

49
transgressora, mas de uma sociedade que incorporou ao catolicismo uma religiosidade fluída, em que
o sagrado e profano concomitantemente se assimilavam, subvertiam e ressignificavam, em
decorrência da convivência entre tradições, crenças, mentalidades e vivências múltiplos.
A maioria das vítimas perseguidas pelo Santo Ofício luso foram os cristãos-novos,
descendentes de judeus, que mesmo forçados a se converter ao catolicismo, reproduziram em seu
cotidiano os ensinamentos marranos herdados ao longo das gerações. Anita Novinsky (2009, p.27)
salienta como estes cristãos-novos, sofreram variadas influências multiculturais ao chegarem no
Brasil, e que embora em sua maioria desconhecessem o real sentido da religião judaica, que havia se
diluído no imenso território, “permaneceram nas margens, e criaram uma tradição de clandestinidade,
sem a qual é impossível conhecer e constituir a sociedade colonial”.
As irmãs Ana 7e Elena do Valle,8cristãs-novas, nascidas no Rio de Janeiro, residentes em
Minas Gerais foram presas pela Inquisição em 1734. Ambas foram excomungadas, obrigadas a usar
um hábito penitencial perpétuo, e tiveram seus bens confiscados ao confessarem que não acreditavam
na Santíssima Trindade, nos sacramentos e que Cristo era o Messias, pois tinham fé apenas na Lei
de Moisés, e por isso, faziam jejuns e não comiam carne de porco, lebre ou peixe com pele. Ademais,
nos dois processos consta que seus avós, pais e irmãos já haviam sido penitenciados, o que mostra
que mesmo frequentando a Igreja, as famílias cristãs-novas continuavam a realizar interior de suas
casas, práticas e cerimônias judaicas.
O luteranismo, termo empregado para designar também os adeptos de outras religiões e
pensamentos de cunho protestante, foi uma heresia mais comumente relatada nos dois séculos de
colonização, período em que a presença de calvinistas franceses no Rio de Janeiro e de luteranos
holandeses no Nordeste foi mais intensa. O pedreiro Baltazar da Fonseca,9 nascido em Coimbra e
morador na Ilha de Maracá em Pernambuco, foi preso em 1594 por luteranismo, após dizer que não
acreditava e nem idolatrava a cruz, os santos e a Virgem, somente a Deus. Tais afirmações foram
associadas ao protestantismo, e ele foi repreendido, fez penitências espirituais e pagou dez cruzados
ao Santo Ofício.
A bigamia violava o sacramento do matrimônio, e sua prática era condicionada pela própria
dinâmica da sociedade colonial, marcada pela grande mobilidade física, sendo comum que maridos
ficassem muito tempo distantes, e até mesmo nunca mais retornassem aos seus lares. A índia
Rosaura,10 natural de Juruapás, no bispado do Grão Pará e trabalhadora na fazenda dos religiosos da
ordem de N. Senhora das Mercês de Guararape Grande, no mesmo bispado, foi presa em 1768 por se
casar pela terceira vez, sendo seu primeiro marido ainda vivo. Dessa maneira, foi repreendida,

7
ANTT/TSO-IL/028/06989.
8
ANTT/TSO-IL/028/04220.
9
ANTT/TSO-IL/028/ 06365.
10
ANTT/TSO-IL/028/00222.

50
instruída na fé, e quando libertada, foi ordenada a fazer vida marital com seu primeiro marido. Já
Antônio José Cogominho,11 natural de Évora, e morador em Sabará onde era chefe da intendência,
por ter se casado segunda vez em Minas, tendo esposa viva em Lisboa, foi condenado em 1743 a
cumprir degredo por cinco anos em Castro Marim, e realizar penitências espirituais, além de pagar
suas custas do processo.
A sodomia, era uma transgressão reconhecida pela Inquisição, pela Igreja e pelo Direto civil
como um “pecado nefando”, e sua definição se estendia aos que confessavam ter tido relações
homoafetivas, e aos praticantes de relação sexual anal mesmo se fossem casados, pois enquanto
posição contra natura, era considerada ofensiva a ordem divina, e ao intuito de procriar, que deveria
ser o único a impulsionar os casais durante o sexo (VAINFAS, 2001, p. 117). Felipa de Souza 12,
costureira, natural de Tavira e Paula de Siqueira,13 ambas casadas e residentes em Salvador, foram
acusadas em 1591 e presas no ano seguinte por manterem uma “nefanda amizade” durante dois anos,
onde eram constantes os “ajuntamentos carnais” e a troca de cartas de amor entre as duas. A primeira,
foi açoitada pelas ruas de Salvador, degredada perpetuamente para fora da capitania baiana, e cumpriu
penitências espirituais. A segunda foi repreendida, sendo-lhe impostas penitências espirituais e o
pagamento das custas do processo.
No que diz respeito sacrilégios e desacatos, referentes ao Santíssimo Sacramento e as imagens
sagradas, mencionamos mulheres denunciadas em Minas e que apesar de não terem sido processadas,
demonstram a presença de influências diversas na vivência religiosa colonial, como Águeda, parda
forra, que teria em 1754 pintado a imagem de Cristo com carvão;14 Maria Madalena, índia parda, que
no mesmo ano, foi delatada por enterrar a imagem de Nosso Senhor crucificado, com trapos, arcos e
pedras15 e Maria Correia de Alvarenga, que em 1761 foi denunciada por ter subido numa caixa
16
contendo a imagem de Nosso Senhor crucificado, dizendo que o pisaria, pois ele era seu negro .
Como exemplo masculino citamos o negro Francisco da Costa Xavier,17 escravo e oficial de sapateiro,
natural da Bahia e residente no Grão Pará, que por ter guardado a sagrada comunhão recebida durante
a missa em um papel branco, e tentar persuadir outros negros a fazer o mesmo, colocando-as nas
feridas como forma de proteção, foi preso em 1771 por sacrilégio, instruído na fé, açoitado
publicamente e degredado para as Galés por dez anos.

11
ANTT/TSO-IL/028/00131. Cf. DIAS, Letícia Maia. Um bígamo nas Minas Gerais: casamento, religiosidade e
sociedade no século XVIII. 2020. Dissertação (Mestrado em História Moderna) – Escola de Ciências Sociais,
Departamento de História, Universidade de Évora.
12
ANTT/TSO-IL/028/1267.
13
ANTT/TSO-IL/028/ 3307.
14
ANTT/TSO-IL/030/0305 – m0903 e m0904– f.369 e 369v.
15
ANTT/TSO-IL/030/0308– m0028 a m0032– f.28 a f.32.
16
ANTT/TSO-IL/030/0818 – m1081 e m1082– f.525 e f.525v.
17
ANTT/TSO-IL/028/00719.

51
As blasfêmias e proposições heréticas eram os delitos que envolviam falas contrárias a
doutrina católica, e que eram essencialmente contra a pureza da Virgem Maria, o mistério da
Santíssima Trindade, os santos, a divindade e a morte ou encarnação de Cristo. 18 Entre eles, citamos
a João José de Deus19, negro, e que anteriormente teria trabalhado para alguns padres jesuítas, natural
de São João Del Rey. Em 1771 foi preso na Bahia, por pregar nos sertões dizendo entre outras
heresias, que seu sangue remia os pecados assim como o de Jesus. Em 1774 foi libertado, assinando
um termo de segredo na Mesa da Inquisição.
A solicitação era um crime praticado por padres que durante o sacramento da confissão
assediavam sexualmente os penitentes, sobretudo as mulheres. Em 1663, o clérigo Jorge
Gonçalves,20natural de Messejana, residente em Belém, no Grão Pará, foi preso, advertido de seu
crime, sendo proibido de realizar o sacramento da confissão pelo resto da vida e de regressar a Belém.
Já o frei Cosme Damião da Costa Medeiros,21 natural de Vila Rica, e morador no Maranhão, foi preso
em 1791 por ter solicitado algumas mulheres prostitutas, porém foi absolvido.
Por fim, a feitiçaria que abrangia práticas mágicas ligadas à adivinhação, cura, proteção,
sortilégios, pacto diabólico, e a esfera das afetividades, é a heresia que em certa medida, mais
personifica o complexo processo de interpenetração cultural ocorrido na sociedade colonial entre os
séculos XVI e XVIII, visto que revela a capacidade dos habitantes de ressignificar o catolicismo
imposto, conforme a incorporação de elementos da religiosidade indígena, europeia e africana. Aliás,
também demonstra como alguns deles viam na esfera sobrenatural da religiosidade uma maneira de
lidar com algumas situações que careciam de uma resposta mais imediata, como Timótia Nogueira,
parda forra que em 1777 foi denunciada e presa por fazer feitiços amorosos, pactuar com o demônio
e usar seu conhecimento acerca das ervas medicinais para curar várias doenças e também provocar
mortes e malefícios22; de Luzia Soares, escrava mulata que foi presa durante uma visita pastoral 1742
e enviada à Inquisição por provocar, com o auxílio do demônio, malefícios a sua senhora que, quando
tentava castigá-la, sentia dores fortes nos braços e na cabeça.23
A negra forra Luzia Pinta24, natural de Angola, moradora em Sabará, foi presa em 1742 por
feitiçaria e por realizar calundus (cerimônias religiosas de origem africana que envolviam práticas de

18
Segundo Diogo Pereira (2010), os blasfemadores geralmente eram pessoas do povo que usavam expressões rústicas,
grosseiras e jocosas, demonstrando assim, ter comportamentos que mesclavam humor, zombaria, uso de palavrões e falta
de conhecimento. Em contrapartida, as proposições heréticas, eram praticadas majoritariamente por indivíduos letrados e
instruídos na fé, cujas palavras ofendiam, questionavam e transmitiam novas concepções relativas à religião.
19
ANTT/TSO-IL/028/04330.
20
ANTT/TSO-IL/028/07338.
21
ANTT/TSO-IL/028/08125.
22
AEAM. Devassas. Livro de Testemunhas, jan.-mar. de 1767-1778, f. 67v - 71 v.
23
ANTT/TSO-IL/028/11163– m0010 a m0146 – f.1 a f.97 v.
24
ANTT/TSO-IL/028/00252.

52
possessão espiritual, cura e adivinhação) que o Santo Ofício concebia como pacto diabólico. Em
sentença foi determinado que ela deveria cumprir degredo por quatro anos em Castro Marim.

Considerações finais
A análise histórica das heresias presentes nas fontes inquisitoriais relativas a indivíduos
nascidos ou residentes no Brasil colônia, nos permitem por meio de um exercício de Micro-História,
acessar os fatos que compõe a trajetória destes sujeitos históricos anônimos e principalmente
compreender algumas particularidades do cotidiano colonial através destas trajetórias. Sendo assim,
evidenciam as inúmeras possibilidades de produzir uma historiografia do Santo Ofício português que
não se centralize apenas em sua ação jurídica e institucional, mas que busque atribuir protagonismo
também as suas vítimas.
Posto isso, as vivências religiosas, culturais e sociais foram profundamente marcadas pelas
dinâmicas de mestiçagens e pela escravidão, delineando um catolicismo popular que, ao assimilar e
ressignificar tradições religiosas europeias, indígenas e africanas, evidenciou contornos fluídos,
sincréticos e heterogêneos, o que porpiciava aos indivíduos exercer condutas desviantes aos preceitos
da fé católica, incorrendo em heresias denunciadas e processadas pela Inquisição.

Fontes Manuscritas
Arquivo Nacional da Torre do Tombo; Fundo: Tribunal do Santo Ofício; Subfundo:
Inquisição de Lisboa (1536-1821), 028 (Processos) e 030 (Cadernos do Promotor 1541-1802).
ANTT/TSO-IL/028/00131.
ANTT/TSO-IL/028/00222.
ANTT/TSO-IL/028/00252.
ANTT/TSO-IL/028/00719.
ANTT/TSO-IL/028/01267.
ANTT/TSO-IL/028/03307.
ANTT/TSO-IL/028/04220.
ANTT/TSO-IL/028/04330.
ANTT/TSO-IL/028/ 06365.
ANTT/TSO-IL/028/06989.
ANTT/TSO-IL/028/07338.
ANTT/TSO-IL/028/08125.
ANTT/TSO-IL/028/11163 – m0010 a m0146 – f.1 a f.97 v.
ANTT/TSO-IL/030/0305 – m0903 e m0904– f.369 e 369v.
ANTT/TSO-IL/030/0308– m0028 a m0032– f.28 a f.32.
ANTT/TSO-IL/030/0818 – m1081 e m1082– f.525 e f.525v.
Arquivo Eclesiástico de Mariana (AEAM)
AEAM. Devassas. Livro de Testemunhas, jan.-mar. de 1767-1778, f. 67v - 71 v.

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política nos Regimentos da Inquisição Portuguesa (séc. XVI-XIX). Lisboa: Prefácio, 2004.
DIAS, Letícia Maia. Um bígamo nas Minas Gerais: casamento, religiosidade e sociedade no

53
século XVIII. 2020. Dissertação (Mestrado em História Moderna) – Escola de Ciências Sociais,
Departamento de História, Universidade de Évora.
MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro Paiva. História da Inquisição Portuguesa
(1536-1821). 2ed. Edição revista e corrigida. Lisboa: A esfera dos livros, 2013.
MATTOS, Yllan. A última inquisição: os meios de ação e funcionamento da Inquisição no
Grão-Pará pombalino (1763-1769). 2009. Dissertação (Mestrado em História) — Universidade
Federal Fluminense, Niterói, RJ.
NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil – séculos XVI a XIX. 2. ed. São Paulo:
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PAIVA, Eduardo França. Filhos de índios e negros e dinâmicas de mestiçagens nas Minas
Gerais do século XVIII - entre o cativeiro e a liberdade. In: ALVEAL, Carmen; DIAS Thiago (Orgs.).
Espaços Coloniais: domínios, poderes e representações. São Paulo, Alameda, 2019. pp.139-169.
PEREIRA, Diogo Tomaz. Falas nefandas: Inquisição, blasfêmias e proposições heréticas no
Brasil colonial (século XVI-XVIII). 2017. Dissertação (Mestrado em História) — Instituto de
Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora.
RESENDE, Maria Leônia Chfaves de; SOUSA, Rafael José de. Em nome do Santo Ofício:
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RODRIGUES, Aldair Carlos. Sociedade e Inquisição em Minas colonial: os familiares do
Santo Ofício (1711-1808). 2007. Dissertação (Mestrado em História Social) — Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.
SIQUEIRA, Sonia Aparecida de. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial. São Paulo:
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SOUZA, Laura de M. e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular
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VAINFAS, Ronaldo. Homoerotismo feminino e o Santo Ofício. In: DEL PRIORE, Mary
(org.); BASSANEZI, Carla(coord.). História das mulheres no Brasil. São Paulo, Contexto, 2001,
pp.115-140.

54
AS PRÁTICAS DEVOCIONAIS EM MONTE SANTO COMO NARRATIVA
DE UMA CONTRACONDUTA PASTORAL

Neffertite Marques da Costa1

Resumo
O catolicismo está presente desde o início da colonização do Brasil e os projetos político-econômico-religiosos
para a América portuguesa criaram diferentes práticas religiosas pelo território. Partindo das especificidades do
catolicismo no Brasil, o presente trabalho propõe uma análise da religiosidade popular a partir da relação dos sujeitos
com o poder pastoral. Uma vez que o pastorado, conforme Foucault (2008), é um conjunto de técnicas e procedimentos
para a condução das almas, gerando movimentos de contraconduta que buscam escapar dessa forma específica de poder
e definir para si outras formas de salvação e modos de serem conduzidos, as práticas devocionais verificadas na
peregrinação ao Santuário da Santa Cruz, em Monte Santo, no sertão baiano, pode ser um estudo de caso da religiosidade
popular como contraconduta pastoral. Para tal, será analisado o folheto Aparição de Nossa Senhora das Dores e a Santa
Cruz do Monte Santo, do poeta popular Minelvino Francisco Silva, disponível no acervo digital da Fundação Casa de Rui
Barbosa. Assim, além do debate da relação entre religião e sociedade, espera-se contribuir com o entendimento do uso da
Literatura de cordel como documentário de costumes e de mitos do mundo rural brasileiro, conforme Santos (2006).
Palavras-chave: Religiosidade popular; contraconduta; Literatura de cordel; Monte Santo.

Introdução
Partindo da compreensão de que há catolicismos em disputa, em função das relações de poder
existentes na sociedade, o presente trabalho se volta para a religiosidade popular, entendendo as
práticas devocionais na via sacra de Monte Santo como narrativa de uma contraconduta pastoral, de
acordo com a noção apresentada por Foucault. Primeiramente, será apresentada essa via sacra,
construída no sertão baiano, no final do século XVIII, situada no movimento de construção dos
montes sacros e da instituição da memória social religiosa da narrativa da via sacra, para, então, a
análise das práticas devocionais, tendo como suporte a Literatura de cordel.

As práticas devocionais em Monte Santo como narrativa de uma contraconduta pastoral


O catolicismo no Brasil foi implantado pela ação da Coroa portuguesa, que, pelo Padroado,
uma aliança entre a Igreja de Roma e o Estado português, era responsável por organizar e financiar
as atividades religiosas nas possessões ultramarinas. Dessa forma, as ordens religiosas atuaram de
acordo com o projeto político-econômico para a América portuguesa, por meio de movimentos
missionários para a conquista do litoral e a ocupação do vale amazônico, conforme Hoornaert et al
(1983), em que havia concorrência com outros Estados europeus, contribuindo, para tal, os jesuítas,
os franciscanos, os carmelitas e os beneditinos.
Ainda de acordo com Hoornaert et al (1983), a ocupação do sertão ocorreu em um segundo
momento da colonização, por meio da atuação de outro movimento missionário. Os capuchinhos,
primeiro de origem francesa, entre 1646 e 1698, e depois italianos, de 1705 a 1831, tiveram a sua

1
Mestra em Ciência da Religião e doutoranda em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com
financiamento da CAPES e da Fundação São Paulo. Contato: profa.neffertite@gmail.com.

55
saída do Brasil motivada por decretos portugueses; porém, a vinda e permanência de missionários
dessa ordem religiosa não estava ligada ao Padroado, mas à Propaganda Fide ou Sagrada
Congregação para a Propagação da Fé, criada, em 1622, pelo Papa Gregório XV, com o intuito de
oferecer as diretrizes missionárias e sustentar os religiosos que estivessem em missão.
Esses missionários foram responsáveis pelas visitas pastorais no sertão nordestino, no qual
faltava uma maior estrutura eclesiástica, em função da falta de interesse do Padroado, já que a região
estava fora dos ciclos econômicos coloniais. Também realizaram missões em aldeamentos indígenas,
razão da presença do frei italiano Apolônio de Todi, em 1775, no nordeste da Bahia, na aldeia
indígena de Massacará, no atual município de Euclides da Cunha, quando visualizou na Serra do
Piquaraçá, uma réplica natural do Monte Calvário, de Jerusalém, dando início a construção do
Santuário da Santa Cruz do Monte Santo.
Ao término da Santa Missão, no dia todos os Santos, o frade organizou uma procissão para
subir a serra e foi colocando cruzes de madeira no caminho “no modo e na distância que
ordenam os Sumos Pontífices”. No meio da jornada, um violento furacão apagou as lanternas
penitentes, obrigando-os também a se abaixarem, principalmente as mulheres que, separadas
dos homens, vinham atrás do préstito religioso. O frade ordenou nada temessem, mas que
invocassem nosso Senhor do Amparo, cuja imagem conduziam. Feito o sinal da cruz a
ventania cessou. Um milagre. (...) Exortou aquele povo espiritualmente tão abandonado, a
nos próximos anos visitar as santas cruzes, no dia santo. Por fim, tomou uma decisão de
momento, determinando que daí por diante ninguém chamasse mais serra de Piquaraçá,
aquele local piedoso. Principiara a era de Monte Santo, pontilhada de milagres. Apareceram
na extensão das cruzes, arco-íris de cinco cores; azul, amarelo, branco, roxo e vermelho. As
gentes da redondeza passaram a frequentar as santas cruzes e os doentes ficaram bons dos
seus males quando beijaram a cruz do Calvário. Espalhou-se a notícia dos milagres. De longe
também vinham cegos, aleijados, conduzidos em redes. E todos ficaram bons (SILVA, 1983,
p. 3, 4, grifo do autor).

A via sacra construída, naquela que passou a se chamar Serra do Monte Santo, reproduziu
uma antiga tradição de construção de montes sacros, iniciada na Itália e também reproduzida em
Portugal, apontando para uma determinada intencionalidade pastoral, que não só estabeleceu, por
meio do exercício da via sacra, uma memória social religiosa da Paixão de Cristo, mas o intensificou
com o monte sacro e, no caso de Monte Santo, incorporou as devoções populares, uma vez que, além
dos catorze Passos da Paixão, foram marcadas e construídas capelas dedicadas às almas, ao Senhor
dos Passos, as sete dores de Maria, a Nossa Senhora das Dores e ao Calvário.
Certamente que, em Jerusalém, na Palestina e na Galiléia, os lugares de comemoração são
mais numerosos: toda a história evangélica está escrita sobre o solo (...). Mas, apesar de tudo,
o que importa é a significação invisível e eterna desses fatos, não há lugar onde não possamos
evocá-la, com a condição que adotemos a mesma atitude, quer dizer, que reproduzamos
materialmente a cruz e os santuários que os erguem sobre o teatro histórico dos evangelhos.
É assim que se constitui a devoção da via sacra, como se, ao reconstituir-se bem longe de
Jerusalém a via dolorosa e suas estações, estivéssemos aptos do mesmo modo que os
peregrinos, para reviver interiormente as sucessivas cenas da Paixão (HALBWACHS, 1990,
p. 158, 159).

As vinte e cinco capelas da via sacra de Monte Santo, finalizada com a capela do Calvário,
incorporada à Igreja da Santa Cruz, construída posteriormente, apontam para uma religiosidade

56
praticada pelo povo, considerando-se as devoções às almas do purgatório e a Nossa Senhora das
Dores e a atração de peregrinos motivados pelas narrativas de milagres, desde a primeira procissão
pela via sacra, ainda com o missionário capuchinho, até os primeiros relatos de curas milagrosas.
Dessa forma, estabeleceu-se uma determinada relação dos sujeitos com o poder pastoral.
A doutrina dos sete sacramentos foi definida no século XVI no Concílio de Trento, com uma
conseqüente valorização do papel do clero. Embora o Brasil tenha sido descoberto no século
XVI, na realidade esse espírito tridentino só será implantado efetivamente no período
imperial, durante o século XIX. Durante os três primeiros séculos da história colonial a vida
religiosa do Brasil está mais vinculada ao mundo medieval. Daí uma certa concepção mítica
da religião, com ênfase nos milagres e prodígios, nas promessas e ex-votos. Em última
análise, a salvação é atribuída especialmente à devoção aos santos e não tanto à prática
sacramental, característica da mentalidade tridentina (AZZI, 1978, p. 156).

Foucault (2008) estudou o pastorado como um conjunto de técnicas e procedimentos para a


condução das almas, aplicado pela figura de um pastor. Em contrapartida, como forma de resistência
ao exercício dessa forma de poder, haveria as contracondutas pastorais, como movimentos que
buscam outras formas de condução (outros procedimentos, objetivos diferentes, outras formas de
salvação) ou que não querem ser conduzidos por outros (querer outros condutores, pastores ou escapar
da conduta dos outros).
São movimentos que têm como objetivo outra conduta, isto é: querer ser conduzido de outro
modo, por outros condutores e por outros pastores, para outros objetivos e para outras formas
de salvação, por meio de outros procedimentos e de outros métodos. São movimentos que
também procuram, eventualmente em todo caso, escapar da conduta dos outros, que
procuram definir para cada um a maneira de se conduzir (FOUCAULT, 2008, p. 256, 257).

Assim, a narrativa estabelecida na via sacra de Monte Santo e as práticas devocionais ali
realizadas podem ser vistas como uma contraconduta pastoral, uma vez que a religiosidade
manifestada pelo povo no sertão nordestino apresenta características apontadas e estudadas por
Foucault como formas de contracondutas pastorais: o ascetismo, a formação de comunidades, a
mística, o problema da Escritura e a crença escatológica.
Para a verificação dessas práticas na via sacra de Monte Santo, será utilizada a Literatura de
cordel como fonte de pesquisa, compreendida como “documentário de costumes e de mitos do mundo
rural brasileiro (...). O termo folheto de feira é empregado tradicionalmente para designar esse
pequeno livro (...) com um formato médio de 11 x 64 cm., imposto pelo modo de distribuição”
(SANTOS, 2006, p. 60, 61).
Dessa forma, o folheto Aparição de Nossa Senhora das Dores e a Santa Cruz do Monte Santo,
do poeta popular Minelvino Francisco Silva, disponível no acervo digital da Fundação Casa de Rui
Barbosa, com provável publicação em 1976, de acordo com a xilogravura impressa na capa do folheto
Uma explicação aos romeiros e a mudança das promessas, que trata da prática de soltar foguetes em
celebrações religiosas, inclusive em Monte Santo, traz nos versos uma peregrinação a via sacra no
Dia de Todos os Santos, data instituída pelo Frei Apolînio de Todi para o exercício da via sacra.

57
A primeiro de novembro
Ninguém pode contar tanto
Carro grande e pequeno,
Romeiros de todo canto
Que vão fazer a visita
Mostando que acredita
Nessa Cruz do Monte Santo

Quando chega em Monte Santo


Cada se sente feliz
O choufer do caminhão
Pra todo romeiro diz:
Podem se assegurar
Três vezes vamos passar
Arredor dessa matriz

O carro passa três vezes


Na Igreja arrodeando
Os romeiros lá em cima
Alegres todos cantando
Bendito da Santa Cruz
E o Coração de Jesus
Tudo ali glorificando

Assim que desce do carro


Com respeito e com cuidado
Entra logo na Igreja
E se põe ajoelhado
Diante de São José
Bom Jesus de Nazaré
Nosso Senhor de lado

Depois destas orações


Que fazem aos pés de Jesus
Também de Nossa Senhora
E São José que a conduz
Pedindo a eles socorro
Depois vão subir o morro
Vizitar a santa cruz

Vão subindo o Monte Santo


Com grande satisfação
Dando esmola aos penitentes
Que pedem por precisão
Com pandeiros, com violas
Pedindo suas esmolas
Pela Sagrada Paixão
(SILVA, s.d., p. 3, 4).

Nos primeiros versos das próximas cinco estrofes, foi evidenciado a dificuldade do acesso ao
santuário pela subida da montanha: “Vão subindo, vão subindo”, “Vão subindo novamente”, “Vão
subindo mais a mais”, “Continuando a subir” e “Subindo mais um pouquinho”. As paradas ao longo
do caminho são para a visita às duas capelas maiores, dedicadas ao Senhor dos Passos e a Nossa
Senhora das Dores, e para a contemplação da natureza e da cruz no interior de uma das estações da

58
via sacra. A última estrofe dessa sequência aponta a fé como força motriz para a realização do
exercício da via sacra, além do esforço físico necessário ao empreendimento.
Subindo mais um pouquinho
Pra santa cruz visitar
As pernas dão pra doer
A roupa da pra molhar
O suor por todo canto
Se não tiver fé no santo
É obrigado a voltar

O ascetismo, como uma das formas de contracondutas pastorais, está presente na via sacra de
Monte Santo. Para Foucault (2008, p. 272), “ser asceta, aceitar o sofrimento, recusar-se a comer,
impor a si próprio o chicote, usar o ferro em seu corpo, em sua carne, é fazer que seu corpo se torne
como o corpo de Cristo”. Outro movimento de contraconduta verificado nas práticas devocionais em
Monte Santo foi a mística, que, para Foucault, escapa do poder pastoral:
A alma não se mostra ao outro num exame, por todo um sistema de confissões. A alma, na
mística, se vê a si mesma. Nessa medida, a mística escapa fundamentalmente,
essencialmente, do exame. Em segundo lugar, a mística, como revelação imediata de Deus à
alma, também escapa da estrutura do ensino e dessa repercussão da verdade, daquele que
sabe àquele que é ensinado, que a transmite. Toda essa hierarquia e essa lenta circulação das
verdades ensinadas, tudo isso é curto-circuitado pela experiência mística. (...) O pastorado
era o canal que ia do fiel a Deus. Claro, na mística, vocês têm uma comunicação imediata
que pode estar na forma do diálogo entre Deus e a alma, na forma do chamado e da resposta,
na forma da declaração de amor de Deus à alma, da alma a Deus. Vocês têm o mecanismo
da inspiração sensível e imediata que faz a alma reconhecer que Deus está presente. Vocês
têm também a comunicação pelo silêncio. Vocês têm a comunicação pelo corpo a corpo,
quando o corpo do místico sente efetivamente a presença, a presença premente do corpo do
próprio Cristo (FOUCAULT, 2008, p. 280, 281).

A função de comunicação da mística foi destacada por Foucault. Nos versos de Minelvino
Francisco Silva, é possível verificar uma comunicação entre os devotos por meio dos ex-votos,
depositados em uma sala no santuário como narrativa dos milagres. O foguete também aparece como
uma comunicação da chegada ao santuário, podendo ser interpretada como uma comunicação entre
os devotos, mas, também, como comunicação entre o devoto e o santo de devoção, uma vez que o
estouro do foguete produz fumaça no céu.
Tem a sala de milagres
De fazer admirar
Perna de pau e cabeça
Se ver em todo lugar
Todos olhando essas peças
Conhece que foi promessas
Que romeiro foi pagar

Foguete sobe no ar
O seu estouro produz
A fumaça no espaço
Cobrindo as serras azuis
Quem de longe está olhando
Diz: é os romeiros soltando
Dando viva a Santa Cruz

59
Enquanto isto tem outros
Fazendo sua oração
Lá no pé da Santa Cruz
Com seus joelhos no chão
Pedindo a Jesus que o sagre
Agradecendo o milagre
De todo seu coração
(SILVA, s.d., p. 6).

O folheto se encerra com os versos de exaltação do sacrifício da penitência, como uma prática
cristã, e a promessa do retorno no ano seguinte, confirmando a prática da peregrinação como algo
recorrente no universo sertanejo, além da inclusão de dois benditos, canções sacras populares, de
autoria do próprio poeta: Bendito da Santa Cruz do Monte Santo e A despedida dos romeiros a Santa
Cruz do Monte Santo.

Considerações finais
Espera-se ter contribuído para a utilização da Literatura de cordel como fonte de pesquisa nos
estudos da Religião e da noção de contraconduta pastoral, de Foucault, para o estudo da religiosidade
popular, sendo entendida como essas práticas que ocorrem nas bordas da religião oficial sem precisar
romper com ela. As práticas devocionais na via sacra Monte Santo podem ser vistas como essa
narrativa de contracondutas pastorais, as quais precisam ser estudadas de forma mais aprofundada
nos estudos da Religião.

Referências Bibliográficas
AZZI, Riolando. O catolicismo popular no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1978.
FOUCAULT, Michel. Aula de 1.º de março de 1978. In: __________. Segurança, Território,
População: Curso dado no Collège de France (1977-1978). Tradução de Eduardo Brandão. São
Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 253-303.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Laurent Léon Schaffter. 2. ed.
São Paulo: Edições Vértice, 1990.
HOORNAERT, Eduardo et al. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir
do povo - Primeira época. 3. ed. Petrópolis; São Paulo: Vozes; Paulinas, 1983.
SANTOS, Idelette Muzart-Fonseca dos. Memória das vozes: Cantoria, romanceiro & cordel.
Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo; Fundação Cultural do Estado da Bahia, 2006.
SILVA, José Calasans Brandão da. Subsídios à história das capelas de Monte Santo. Bahia:
s/e, 1983.
SILVA, Minelvino Francisco Silva. A aparição de Nossa Senhora das Dores e a Santa Cruz
do Monte Santo. S.l., s.d. Disponível em:
http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=CordelFCRB&PagFis=36198. Acesso em: 14
mai. 2021.
SILVA, Minelvino Francisco Silva. Uma explicação aos romeiros e a mudança das
promessas. Itabuna, 1976. Disponível em:
http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=CordelFCRB&PagFis=36869. Acesso em: 14
mai. 2021.

60
A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO HOJE: UMA INTENÇÃO DE PESQUISA

Felipe de Lima França1

Resumo
O presente trabalho tem o objetivo de dialogar com os pares acerca da representação e imaginário da Teologia
da Libertação nos dias de hoje, tanto na formação seminarística como na geração mais jovem dos sacerdotes de
Pernambuco. Na atual conjuntura política, são identificados como formadores de opiniões e referenciais legítimos na
criação de uma consciência política cristã orientada em palavras como Fé, Tradição, Deus, Família, Pátria, Comunismo,
Teologia da Libertação e outras. Esse fenômeno não surge ao acaso, mas novos referenciais são identificados nesse
processo, tais como o Pe. Paulo Ricardo e Olavo de Carvalho. Por meio de entrevistas, o objetivo é identificar essa
politização da fé e da operação teológica, visíveis e/ou invisíveis, nas conversas e partilhas de vida dos seminaristas e
padres. Um dos resultados esperados é compreender melhor os conceitos terceirizados, principalmente o da Teologia da
Libertação e o do Comunismo, e de como foram aplicados nas diversas atividades e planos pastorais desenvolvidos por
eles.
Palavras-chave: Teologia da Libertação. História Oral. Representação e Imaginário.

Introdução
Esta intenção de pesquisa surgiu com a leitura do artigo Padres e artesãos: narradores
itinerantes de Antônio Montenegro (2001) resultado do projeto Além-Mar2 , que por meio de 1

entrevistas e história oral escutou as narrativas de vida de religiosos holandeses, franceses, italianos
e belgas. Esse trabalho traz alguns relatos e experiência desses padres imigrantes que chegaram ao
Brasil, inspirados e enviados pela Fidei Donum (1957)3 , com a missão de combater a expansão e a
2

ameaça comunista em terras brasileiras. Memórias relembradas, reconstruídas, e revividas que se


transformaram em linguagem oral revelando uma teia de redes sociais valorativas no meio dos
segmentos populares que são anônimas na dimensão macro da história, mas quando remetidas às
práticas microssociais adquirem importante visibilidade.
Os doutos que chegaram com a missão de ensinar e combater o comunismo, tiveram um
choque de realidade e também se colocaram no lugar de aprendizes, passando a lutar pela dignidade
de vida e trabalho das camadas sociais mais pobres, onde se fixaram, e por isso foram acusados de
comunistas em pleno regime militar, investigados e perseguidos pelos militares. Todos esses
resultados foram aprimorados por Montenegro na obra Travessias: Padres europeus no Nordeste do
Brasil (1950-1990), publicada em 2019.

1
Graduando em História (licenciatura) pela Universidade Federal de Pernambuco/UFPE desde 2018.2. Pesquisador
Júnior do Instituto de Estudos da África IEAf-UFPE desde 2019.1 com pesquisas em desenvolvimento sobre Missionação
na África Central a partir da primeira metade do século XIX, aprovada pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica da Universidade Federal de Pernambuco - PIBIC/UFPE/CNPq - para desenvolver o projeto “Padre Ângelo
Vinco na África Central: Diários de viagem (1851-1852) sob orientação de Luiza Nascimento dos Reis, Professora
Adjunta do Departamento de História da UFPE. A partir do contato com a História Contemporânea, pesquisadores e
trabalhos, passou a ter interesse em questões do Tempo Presente, permanências e novidades, nas relações Religião e
Política, Teologia e História. O presente artigo é um dos resultados do atual interesse nessa temática. E-mail:
felipe.mazzapx@gmail.com
2
Segundo Montenegro, esse projeto de pesquisa foi apoiado pelo CNPq e tinha como um dos seus objetivos entrevistar
padres que imigraram para o nordeste do Brasil entre o final da década de 1950 e 1960.
3
Carta Encíclica de Pio XII incentivando os padres à evangelização e missão.

61
Vale ressaltar que nesse período um padre ser acusado de comunista tem um grau de escândalo
e de excepcionalidade quando analisados numa dimensão macro histórica, entretanto, do ponto de
vista da micro história, a descoberta de que o excepcional passa a ser “exepcional normal” lembra um
pouco a figura de Menocchio na obra O queijo e os vermes de Carlo Ginzburg (2006). A Teologia da
Libertação teve papel importante nessa associação entre “TL” e comunismo, iniciando com acusações
aos padres, mas evoluindo posteriormente aos bispos, alguns exemplos são Dom Hélder4, Dom José
Maria Pires5, Dom Pedro Casaldáliga6, Dom Paulo Evaristo Arns7 e tantos membros do episcopado
brasileiro.
Atualmente, pela primeira vez na história da Igreja Romana, essa acusação de TL e comunista
chegou à principal liderança e ganhou força. O papa Francisco, jesuíta latinoamericano, que exerceu
seu episcopado inteiro em Buenos Aires, primeiro como bispo auxiliar e depois nomeado arcebispo
dessa igreja particular, cardeal do “quase fim do mundo”8 eleito para suceder o papa Bento XVI em
2013, não se destaca por uma experiência em cargos diplomáticos ou eclesiásticos no próprio
Vaticano, como a maior parte de seus antecessores, mas pela sensibilidade com as periferias, uma das
palavras e conceito chave desde o início de seu pontificado.
Dessa forma, este trabalho apresenta resultados iniciais de uma pesquisa na Arquidiocese de
Olinda e Recife acerca desse conservadorismo e tradicionalismo em uma igreja particular por onde
passou Dom Hélder, sendo sucedido pelo conservador canonista Dom José Cardoso Sobrinho9, e, por
sua vez, sucedido por Dom Fernando Saburido10, beneditino de formação e considerado moderado.
Por meio de entrevistas a seminaristas e padres jovens, diocesanos (seculares) e religiosos11
(regulares), o objetivo era dialogar acerca de conceitos como “conservador” e “tradição” com a
intenção de compreender melhor esse fenômeno visível do retorno às práticas antes do Concílio
Vaticano II, tais como a Missa em Latim e o uso de vestes como a batina.
A partir de suas falas tem sido possível perceber que esse movimento extrapola os limites
religiosos até chegar em dimensões sociais e políticas, mesmo que se considerem isentos de política
partidária, formando uma parcela considerável de leigos preocupados em uma formação doutrinal
“sem partido”, o resgate de modelos passados e a luta pelo comunismo e a Teologia da Libertação.
Mesmo delimitando uma arquidiocese, aos poucos vai aparecendo uma rede de movimentos,
apostolados, personagens importantes no surgimento e manutenção desses grupos.

4
Arcebispo da Arquidiocese de Olinda e Recife (PE) de 1964 a 1985 (21 anos de episcopado).
5
Arcebispo da Arquidiocese da Paraíba (PB) de 1965 a 1995 (30 anos de episcopado).
6
Bispo da Prelazia de São Félix (MT) de 1971 a 2005 (34 anos de episcopado).
7
Arcebispo da Arquidiocese de São Paulo (SP) de 1970 a 1998 (28 anos de episcopado).
8
Palavras usadas por Francisco na sua primeira saudação aos fiéis após conclave em 13/03/2013.
9
Arcebispo da Arquidiocese de Olinda e Recife de 1985 a 2009 ( 24 anos de episcopado).
10
Atual arcebispo da Arquidiocese de Olinda e Recife desde 2009.
11
O termo religioso neste artigo se refere aos seminaristas e padres das diversas congregações e ordens religiosas, não ao
ato de piedade como, por exemplo, uma pessoa piedosa nas diferentes formas de religiosidades.

62
Primeiros resultados
Ao serem questionados acerca do processo pessoal de discernimento vocacional de cada
seminarista, chama atenção como cada um tem uma experiência própria e como fazem memorial
desse período durante as partilhas de vida. Entretanto, esse itinerário é mais diversificado entre os
jovens que estão nas etapas formativas das ordens e congregações religiosas do que os que estão nos
seminários diocesanos.
O espaço onde a vocação é pensada/refletida entre os religiosos se dá em movimentos e
pastorais com ações práticas sociais mais visíveis, alguns ligados ao próprio carisma da família
religiosa que pertencem. Já o espaço onde os diocesanos pensam e refletem sobre a vocação sacerdotal
é no serviço do altar, como coroinhas e cerimoniários, ajudando ao padre nas missas e liturgias, sendo
o gosto pelos ritos e paramentos os primeiros sinais de vocação. Entre os diocesanos, é unânime entre
eles esse serviço como lugar e etapa importante para querer ser padre, enquanto os religiosos, alguns
nunca pertenceram a essa pastoral.
Uma pastoral que também aparece importante na caminhada desses jovens é a catequese e o
papel do catequista, essa de forma mais equilibrada entre diocesanos e religiosos, mas com objetivos
diferentes. Enquanto os religiosos têm o interesse de ficar no meio dos jovens, propor modelos de
acordo com o carisma específico que representam, de propaganda vocacional, de convites para outras
experiências juvenis construídas em conjunto, os diocesanos concordam que essa pastoral tem o
objetivo de ensinar a fé, salvar almas e levá-las para o céu, sendo o Catecismo da Igreja Católica
(CIC) o texto base, seguido pela Bíblia e documentos da Igreja.
Essas duas concepções do que é o catecumenato e seus objetivos parece que não extrapolam
os limites religiosos, mas uma leitura atenta sinaliza o contrário. Os religiosos, pelo próprio carisma,
se inserem em lugares além da estrutura paroquial, das catedrais e paróquias, conseguindo atingir
outros espaços como escolas, diversas obras sociais, periferias diversas, tendo contato com um
público imenso, não sendo os ritos e liturgias uma primeira preocupação imediata como forma de
inserção e apostolado. Os diocesanos olham a catequese como aulas repletas de conteúdos que os
alunos precisam aprender; para além dos textos bases, eles se preparam com o auxílio dos sites como
o Fiel Católico, Aleteia e do Prof. Felipe Aquino, e do Pe. Paulo Ricardo e entre outros.
É interessante que a maior parte dos diocesanos se autodeclaram conservadores, simpáticos
ao uso de sinais externos como o uso da batina preta e camisas clericais com o colarinho romano. Isso
implica na forma como se comportam, trabalham, falam e ensinam a fé, sem perder a ligação e
conexão com a tradição. Entre os religiosos esse debate é pouco sentido, embora também exista
vocações religiosas autodeclaradas conservadoras. O serviço ao altar e a catequese são espaços
importantes onde os autodeclarados conservadores atuam na formação de outros por meio da
transmissão de conteúdo, modelos e comportamentos.

63
Vale ressaltar que o termo conservador por si só é problemático porque dependendo do grupo
que se faz parte, o conceito passará por mudanças e adaptações. Por exemplo, os fiéis católicos
pertencentes ao Movimento Renovação Carismática Católica (RCC) pensam o conservadorismo de
um jeito, e mesmo entre eles há divergências e convergências, do mesmo modo os pertencentes aos
movimentos Caminho Neocatecumenal ou aos Focolares, sendo esses movimentos e grupos inúmeros
e incontáveis.
Para os seminaristas aqui trabalhados, ser conservador é além de resgatar a importância do
uso das vestes litúrgicas para o clero, resgatar também o uso do véu para as moças nas celebrações
eucarísticas, do canto gregoriano, das belas liturgias, dos princípios e valores morais como a Fé,
Esperança e Caridade, Prudência, Temperança, Fortaleza e Justiça, sempre agradar a Deus porque ele
é o centro de tudo, fazendo referência ao período medieval e um imaginário de que nesse tempo a
Igreja foi a responsável de levar o homem a contemplar a Deus, religando-o com o criador, e por isso
um intervalo histórico de harmonia, paz, muitos santos e uma teologia e liturgia cristocêntrica.
Todo esse imaginário construído está dentro da concepção de mundo dos seminaristas
autodeclarados conservadores, e por isso é necessário olhar para o passado procurando ver quando
Deus saiu do centro e o homem ocupou seu lugar. É dessa forma que todos olham com antipatia para
temas como Comunismo, Socialismo, Teologia da Libertação e tudo que tenha uma origem e
formação comum, questões consideradas como o ápice do culto ao homem e ao materialismo ao
mesmo tempo em que o divino e o cristianismo é perseguido e reformulado por interesses próprios.
De acordo com o padre Tomás Halík12, esse saudosismo dá origem e bases a ideias e
concepções de mundo como o fundamentalismo, o fanatismo e a intolerância religiosa, sinalizando a
existência de “‘museus folclóricos’ da Igreja do passado que tentam simular um mundo de “simples
piedade humana” ou um tipo de teologia, liturgia e espiritualidade de séculos passados, “preservados
dos estragos da Modernidade.” (2016, p. 35.) Para ele, esse imaginário construído nada mais é que
“caricaturas tristemente cômicas do passado”.
Essas questões ganharam ainda mais visibilidade quando analisadas na conjuntura política
que elegeu Jair Bolsonaro como presidente do Brasil em 2018. Embora exista um jargão que política
e religião não se misturam ou não se discutem, na prática temos visto muita fé politizada ou a
politização da fé, tanto entre católicos como entre evangélicos. Palavras como Deus, Fé, Tradição,
Moral, Família ganharam todo um sentido político que sinalizavam uma oposição forte às ideias e
movimentos influenciados pelo comunismo.

12
Padre católico, filósofo e teólogo checo, perseguido durante a ocupação comunista como “inimigo do regime”.
Atualmente ensina Sociologia e Filosofia da Religião na Universidade Charles, em Praga, e é professor-convidado nas
universidades de Oxford, Cambridge e Harvard. Foi homenageado com prêmios nacionais de literatura e diálogo
intercultural e inter-religioso.

64
A liturgia durante um tempo era o instrumento mais eficaz para formar a consciência de
submissão do ser criado ao criador, auxiliada com os canto gregoriano, os incensos, os gestos, os ritos
e o latim, os paramentos e tantos elementos exteriores que por si só evangelizavam e catequizavam.
(FONSECA LACERDA LIMA, 2019, p. 8). Agora, a liturgia em si evangeliza pouco porque o
comunismo e a modernidade enganou o homem tal qual a serpente no Éden e por isso a política
partidária se tornou um auxílio para resgatar tudo o que foi perdido com o comunismo e a TL, sendo
o anticomunismo um denominador comum dos autodeclarados conservadores em diversos sentidos
que extrapolam a dimensão puramente religiosa.
De acordo com Hobsbawm, a Igreja se aliou a movimentos fascistas e reacionários
anacrônicos na Itália por causa de “um ódio comum pelo Iluminismo do século XVIII, pela Revolução
Francesa e por tudo o que na sua opinião dela derivava: democracia, liberalismo e, claro, mais
marcadamente, o ‘comunismo ateu’” (1995, p. 95). Mesmo que esse autor se refira a uma aliança
datada, é fácil identificar sinais bastante visíveis que apontam para uma retomada e/ou permanência
de uma aliança anticomunista com segmetos políticos partidários, simpáticos a personagens que
assumem essa posição em discursos eleitorais, como o próprio Jair Bolsonaro e diversos políticos
acolhidos por ele.
É importante ressaltar que quando referimos à “Igreja” não deve ser entendida na sua
totalidade ou institucionalmente, visto que é um termo impossível de unificar ou generalizar. Há
vários segmentos que divergem e convergem em inúmeras questões. Aqui queremos nos referir a uma
Igreja representada parcialmente por membros autodeclarados conservadores que politicamente se
aliaram, diretamente ou indiretamente, a políticos também autodeclarados conservadores, originando
uma síntese teológica política partidária. Mais específico ainda, Igreja delimitada geograficamente na
Arquidiocese de Olinda e Recife, sem ter feito comparação com seminaristas e padres pertencentes a
outras arquidioceses e dioceses.
É nessa parcela da igreja que aparecem personagens como Pe. Paulo Ricardo e Olavo de
Carvalho, sendo a teologia política ou a política teológica o fruto da síntese entre o conservadorismo
e o anticomunismo, aplicados em suas atividades e ações pastorais, levando não só à igreja matriz,
mas também à capelas dentro do território paroquial, atuando como extensões desses referenciais
nesses espaços, resultando na origem de uma geração de leigos também autodeclarados
conservadores.
Conceitos como comunismo, socialismo, teologia da libertação são terceirizados na formação
desses leigos, influenciando também em uma leitura de mundo intolerante, fundamentalista e fanática,
sendo o comunismo um inimigo escondido em diversos lugares, como em partidos políticos de
esquerda, como o PT, Psol, PCdoB; em políticos importantes, tais como Lula e Dilma; em
movimentos da própria igreja, como a Pastoral da Juventude (PJ) ou a Pastoral da Juventude do Meio

65
Popular (PJMP) considerados TL; e, as universidades públicas por concentrarem grande parte de
“professores comunistas” preocupados em doutrinar os alunos e formar mais pessoas nessa linha.
Alguns casos apontam que a própria Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) também foi
influenciada por essas ideias.
Vale ressaltar que entre esses leigos se encontra de forma mais explícita o curioso fenômeno
do próprio papa ser acusado de comunista por causa de sua sensibilidade pelas questões como
dignidade humana, indiferença dos poderosos sobre os mais vulneráveis, o olhar pelos mais pobres.
Enquanto que entre o clero e seminaristas autodeclarados conservadores, o acusam de forma mais
implícita, sinalizada por exemplo, pelo saudosismo do pontificado do papa emérito Bento XVI.
A acusação de comunista, que antes partia dos militares e órgãos oficiais do governo, nos dias
de hoje parte de dentro da própria igreja, mais explícita entre os leigos autodeclarados conservadores.
Embora as análises se deem geograficamente limitadas na Arquidiocese de Olinda e Recife, esse
fenômeno está espalhado em outras dioceses do mundo inteiro, sendo o motu proprio Traditionis
Custodis13 (2021) um sinal de que há excessos internamente desses segmentos que extrapolam os
limites religiosos, limitando-os do uso das missas em latim, dando ao bispo local mais autoridade
para decidir se em sua diocese particular é oferecida ou não, onde e quem pode presidir tais
celebrações. Até então qualquer padre era livre para celebrar quando e onde quisesse sem a
autorização do seu bispo.
Sobre as narrativas construídas dos bispos antecessores, esses identificam em Dom Hélder
uma figura que contribuiu para introduzir na arquidiocese todos os movimentos de tronco comunista,
sendo sua causa de beatificação uma afronta à Igreja, por isso que precisou de Dom José Cardoso
Sobrinho sucedê-lo para organizar e desestruturar a maior parte dos trabalhos de seu antecessor. Dom
Fernando Saburido é considerado moderado ao ser colocado entre essas duas figuras.

Considerações finais
Embora este trabalho ainda esteja em fase inicial, já é possível perceber o quanto a história
oral é um instrumento no fazer historiográfico, sinalizando que muitas vezes se vê apenas a ponta de
um iceberg, sendo as entrevistas um método de dar a conhecer a parte que está submersa nas práticas
microssociais vividas por diversos autores, remetendo-nos a novos desafios (MONTENEGRO, 2001,
p. 52). Consideramos que palavras como Deus, Fé, Tradição, Comunismo e tantas outras são como
que essas pontas, que quando trabalhadas melhor, apresentam uma rede e conexão de realidades
amplas e complexas, interligando a política e a religião com diversas camadas sociais, leigas e
ordenadas.

13
Documento disponível na íntegra no site do Vaticano, link nas referências bibliográficas.

66
Também é possível perceber que por muitas vezes esses conceitos terceirizados,
principalmente o de comunismo, é compreendido de forma datada e generalizada, não levando em
consideração que a história é movimento e as realidades, inclusive a linguagem, passam por processos
constantes de mudança. Dessa forma muitos confundem comunismo com a luta por direitos civis e
políticos, trabalhistas, de igualdade e justiça, tal como já aparecia em contextos anteriores como do
regime militar, também trabalhado por Montenegro em outro momento (2011, p. 234).
Com a continuação da pesquisa, o objetivo é compreender melhor essas redes que vão se
formando entre seminaristas, padres e leigos, como se autodenominam a si e aos outros, e como a fé
vai extrapolando os limites religiosos por meio de uma politização da fé e uma fé politizada,
resultando em uma teologia criada em contextos de polarização política. Essa teologia dita pura e
essencial, tem papel importante na formação de leigos autodeclarados conservadores, inimigos de
tudo que possa ser associado ao comunismo, ao petismo e a Teologia da Libertação, nos dando um
campo imenso de análises e estudos de casos entre dioceses, seminários, movimentos e conceitos.

Referências Bibliográficas
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“pompa e circunstância” como modo de demarcar o lugar social da Igreja em uma sociedade do
Antigo Regime. Faces de Clio, [S. l.], v. 5, n. 10, p. 4–29, 2019. Disponível em:
https://periodicos.ufjf.br/index.php/facesdeclio/article/view/28682.
FRANCISCO. Lettera Apostolica in forma di “Motu proprio” di Papa Francesco
“Traditionis custodes” sull’uso della Liturgia Romana anteriore alla Riforma del 1970 (16 luglio
2021) | Francesco. Vatican.va. Disponível em:
<https://www.vatican.va/content/francesco/it/motu_proprio/documents/20210716-motu-proprio-
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HALÍK, Tomás. A noite do confessor: a fé cristã num mundo de incerteza. Tradução de Maria
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HOBSBAWN, E. J. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução: Marcos
Santarrita; revisão técnica: Maria Célia Paoli. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
MONTENEGRO, A. T. Padres e artesãos: narradores itinerantes. História Oral, [S. l.], v. 4,
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https://www.revista.historiaoral.org.br/index.php/rho/article/view/34.
MONTENEGRO, A. T. Ação trabalhista, repressão policial e assassinato em tempos de
regime militar. Topoi, v. 12, n. 22, jan.-jun. 2011, p. 228-249. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/topoi/a/vYyWK6G8wDMfCJjB5z9vXXL/?format=html&lang=pt

67
A EDUCAÇÃO CATÓLICA: UMA VIA PARA CONTER O
PROTESTANTISMO EM ANÁPOLIS

Maximiliano Gonçalves da Costa1

Resumo
O presente artigo propõe uma reflexão sobre a atuação da Igreja Católica diante do avanço do protestantismo no
Brasil, de maneira mais específica em Goiás. Abordaremos como se deu a ação de Dom Emanuel Gomes de Oliveira,
bispo de Goiás para conter esse avanço, principalmente na cidade de Anápolis. A estratégia do referido bispo para esse
combate foi investir na educação católica trazendo para a cidade as congregações religiosas que cuidaram da formação
local e, também da assistência religiosa. Sendo assim, chegaram as irmãs salesianas na cidade em 1937 para cuidar da
educação feminina e, os frades franciscanos em 1944 para cuidar da educação masculina e atender pastoralmente aquela
região. Para a elaboração do artigo utilizamos a referida bibliografia citada abaixo e o escopo documental das fontes
eclesiásticas que nos possibilitaram refletir sobre o tema em questão.
Palavras-chave: educação, protestantismo, franciscanos

A educação católica uma via para conter o protestantismo


Diante da expansão do protestantismo em Goiás no início do século XX, Dom Emanuel
Gomes de Oliveira viu na instrução católica uma via para combatê-lo. Em carta2 enviada ao Núncio
Apostólico no Brasil, Dom Henrique Gasparri, para informar-lhe sobre os protestantes em Goiás,
Dom Emanuel dizia que a principal forma de propaganda dos protestantes no Estado dava-se por
meio da distribuição de folhetos.
Ainda conforme Dom Emanuel, eles visitavam, preferencialmente, os lugares que não tinham
paróquia e sempre procuravam comprar um imóvel, casa ou terreno para fazerem suas igrejas. “O
resultado é em geral insignificante e reduz-se a alguns pontos a duas ou três pessoas. Mesmo os
adeptos muitas vezes perdem dentro em pouco o primeiro fanatismo e tornam-se completamente
indiferentes” (OLIVEIRA,1924, p. 1). Dom Emanuel dizia que eles atingiam as pessoas de classes
sociais mais baixas, uma vez ou outra, algum fazendeiro. O bispo ressaltava na carta que a escassez
de padres era uma das razões mais graves para a proliferação do protestantismo em Goiás. Portanto,
a estratégia dele foi buscar sacerdotes estrangeiros e membros de congregações religiosas para
ajudarem nos serviços paroquiais e criar mais institutos católicos para a educação da juventude em
ambos os sexos.
Anápolis foi um dos focos mais importantes para o protestantismo no campo da educação em
Goiás. Logo, Dom Emanuel preocupou-se em trazer congregações religiosas para atuarem nesta
cidade, sobretudo, na educação. Em 1934, ele convidou as Irmãs Filhas de Maria Auxiliadora para
Anápolis. Em sua carta à Madre Superiora ele disse: “a acção protestante maléfica que infelizmente

1
Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Goiás. Bolsista CAPES. Mestre em História pela Universidade
Estadual de Goiás, e-mail: max.historia@gmail.com
2
OLIVEIRA, Dom Emanuel Gomes de. Carta a Dom Henrique Gasparri, Núncio Apostólico. Rio de Janeiro, 15 de julho
de 1924. 2 páginas. Arquivo do Instituto de Pesquisa e Estudos Históricos do Brasil Central.

68
ali assentou suas tendas com escola mixta para creanças, hospital com escola de enfermeiras,
catechistas e etc.” (OLIVEIRA, 1934)3. Aqui encontramos expressa a preocupação do referido bispo
com a situação em Anápolis. As obras educacionais protestantes o motivaram a buscar as irmãs
salesianas para atuarem na cidade, como uma forma de afirmar a presença da Igreja Católica, bem
como uma tentativa de coibir a ação protestante.
As irmãs salesianas aceitaram o convite de Dom Emanuel e chegaram a Anápolis em 1937,
data em que assumiram a Escola Normal de Anápolis que, até então, era conduzida por leigos. Em
1938 essa escola foi entregue de vez às irmãs salesianas, tornando-se a Escola Normal Nossa Senhora
Auxiliadora. Para se opor à educação mista dos protestantes, a escola normal dedicava-se à formação
das meninas, numa perspectiva tradicional, de acordo com os princípios católicos. Sendo assim,
Anápolis teria duas escolas católicas, a Escola Normal e o Ginásio Arquidiocesano de Anápolis.
Se já havia uma congregação religiosa feminina, agora era necessária uma escola para o
público masculino da cidade. Para suprir essa necessidade, Dom Emanuel endereçou convite aos
frades da Ordem Franciscana. Em 1942, ele encaminhou um pedido formal ao Núncio Apostólico
manifestando seu desejo.
Julgando conveniente a criação de um Comissariado de RR. PP. Franciscanos nesta
Arquidiocese de Sant’Ana de Goyaz, com a devida vênia consulto a V. Excia. Revma. se
poderia confiar-lhes, ad nutum SanctaeSedis, a administração de quatro paróquias, em que
deverão manter um Instituto de Educação e Ensino Secundário Superior (OLIVEIRA, 1942) 4.

Em resposta positiva, o próprio Núncio Apostólico5 indicou a Dom Emanuel que procurasse
o frei Paulo Stein, que residia em Divinópolis-MG e que, no momento, havia sido eleito Delegado
Geral dos Franciscanos no Brasil, para tratar da fundação do Comissariado Franciscano em Goiás,
com a finalidade de cuidar de paróquias e escolas. Diante desse parecer favorável, Dom Emanuel
encaminhou seu pedido a frei Paulo Stein e recebeu resposta favorável para tal fundação.
Como já comunicou a V. Excia. o Pe. Frei Mateus Hoepers, estou de pleno acordo com a
projetada fundação, e já escrevi ao Padre Delegado Geral dos Frades Menores da América
do Norte para encaminhar e auxiliar e favorecer um empreendimento de tanto alcance para o
bem espiritual de milhares de almas. O Ministro Provincial da Província do Santíssimo Nome
já teria escrito a V. Excia. a respeito, mas achou melhor esperar um pouco até que ele tivesse
certeza do número dos padres disponíveis. Para obter esta certeza mandou uma carta circular
a todos os conventos da Província, afim de que se apresentem candidatos, que de certo não
há de faltar. Assim, como V. Excia. Vê, o assunto está em vias de ser resolvido conforme os
desejos de V. Excia. Praza a Deus que o Comissariado Goiano corresponda plenamente a
expectativa de V. Excia. gerando e produzindo frutos abundantes para a salvação de tantas
almas abandonadas e expostas aos perigos da propaganda protestante (STEIN, 1943) 6.

3
OLIVEIRA, Dom Emanuel Gomes de. Carta a Madre Inspectora das Filhas de Maria Auxiliadora. Goyaz, 04 de abril
de 1934. 2 páginas. Arquivo do Instituto de Pesquisa e Estudos Históricos do Brasil Central.
4
OLIVEIRA, Dom Emanuel Gomes de. Carta ao Núncio Apostólico Dom Bento. Goyaz, 19 de maio 1942. Arquivo do
Instituto de Pesquisa e Estudos Históricos do Brasil Central.
5
BENTO, Dom. Núncio Apostólico no Brasil. Carta a Dom Emanuel Gomes de Oliveira. Rio de Janeiro. 01 de junho de
1943. Arquivo do Instituto de Pesquisa e Estudos Históricos do Brasil Central.
6
STEIN, Frei Paulo. Delegado Geral dos Frades Menores do Brasil. Carta à Dom Emanuel. Divinópolis, 6 de junho de
1943. Arquivo do Instituto de Pesquisa e Estudos Históricos do Brasil Central.

69
Na carta do referido frei encontramos, de maneira clara, que um dos motivos que os trouxeram
a Goiás, e de modo específico para Anápolis, seria a contenção da atuação dos protestantes que agiam
na região. De maneira geral, em Goiás, o desafio de Dom Emanuel, no que diz respeito às novas
pedagogias, foi o de ter que lidar com a pedagogia protestante, que tinha muitos elementos
semelhantes aos princípios defendidos pela Escola Nova.
Em outra carta, Dom Emanuel escreveu a frei Mateus, provincial dos franciscanos, reforçando
o consentimento do Núncio Apostólico e pedindo o apoio do frei para essa causa. Por ser uma causa
urgente, ele tinha pressa de resposta e, consequentemente, da chegada dos frades norte-americanos
em Goiás, com o desígnio de cuidar de quatro paróquias: Anápolis, Jaraguá, Pirenópolis e Corumbá,
além de assumirem um colégio, o Ginásio Arquidiocesano de Anápolis. Nesta mesma carta, Dom
Emanuel revelou o desejo de que os franciscanos organizassem os cursos superiores de agronomia,
farmácia e odontologia em Anápolis. Para tanto, conforme carta, afirmou também que ele se
encarregaria de fazer a doação de terras necessárias, bem como providenciar as respectivas condições
para a permanência dos frades.
O pano de fundo que permeava esse contexto era a ação protestante. A presença e o trabalho
do médico e missionário inglês Dr. James Fanstone consolidou em Anápolis um projeto protestante
forte e arrojado. Os protestantes criaram o colégio Couto Magalhães, que foi fundado para acolher os
filhos dos protestantes que, até então, tinham que se submeterem às escolas que estavam imbuídas de
práticas católicas. Práticas essas que eram inadmissíveis para eles. Além disso, os protestantes viram
na educação uma via consistente para a propagação de seus valores, incentivando a alfabetização e o
ensino, uma vez que ao menos o crente deveria saber ler para ler a Bíblia. Isto posto, Dr. James
Fanstone encontrou o apoio do Dr. Carlos P. de Magalhães para a consolidação do colégio em 1932
(ABREU, 1997, p. 108). Sobre o tema, Ferreira Sobrinho (1997, p. 198) afirma que a escola possuía
em sua grade curricular as disciplinas básicas, agregadas de história natural, tais como: conhecimento
dos reinos animal, vegetal e mineral; uma prática de amor à pátria, cantando o hino com frequência,
com a presença de um pendão nacional em todas as salas de aulas; e aulas de educação física.
Sendo assim, os franciscanos deveriam assumir o Ginásio Arquidiocesano de Anápolis para
fortalecer a educação católica em Anápolis. Se as irmãs Salesianas cuidavam de um colégio para as
meninas, os padres franciscanos deveriam cuidar de um colégio para os meninos. Isso reafirmava
uma contraposição sobre a educação mista utilizada pelos protestantes no Colégio Couto Magalhães.
Além disso, Dom Emanuel manifestava seu desejo de implantar a educação superior em Anápolis,
com a criação dos cursos de farmácia e odontologia. De acordo com frei Alexandre Wyse (1987), se
esse projeto desse certo, os frades norte-americanos se interessariam, pois, a província nova-iorquina
se dedicava a educação e mantinha vários estabelecimentos de ensino superior, que remontavam à
sua fundação.

70
O desejo de Dom Emanuel quanto à criação de cursos superiores na área da saúde era também
uma forma de combater a educação dos protestantes, que já atuava nessa área antes da Igreja Católica.
O Dr. James Fanstone, antes de criar o Colégio Couto Magalhães, já tinha criado o Hospital
Evangélico Goiano, em 1927. Este hospital tornou-se referência para toda a região, principalmente
diante do crescimento da demanda que surgiu como fruto do desenvolvimento urbano da região com
a chegada da estrada de ferro.
O Hospital Evangélico Goiano se tornou o hospital mais bem equipado de Goiás,
especialmente para a realização de cirurgias. O hospital foi se consolidando aos poucos e logo
começou a atender uma grande demanda não só de Anápolis, mas de toda a região, tendo em vista o
precário serviço de saúde ofertado à época em Goiás (MORAES, 2012). Isso não foi visto com bons
olhos pela Igreja Católica, o que a levou a contrapor este feito. Desta forma, a iniciativa da construção
da Santa Casa de Misericórdia de Goiânia, em 1935, veio como uma resposta a esse acontecimento.
Criar em Goiânia, capital, um hospital católico de maior estrutura consistiria em uma autoafirmação
da Igreja Católica frente à ação dos protestantes com o Hospital Evangélico de Anápolis.
Subsequentemente, a criação dos cursos de Enfermagem, Farmácia e Odontologia agregariam a esse
projeto, tornando-o mais forte e visível. Até mesmo porque Goiânia, sendo a capital do Estado, teria
um valor simbólico mais forte do que Anápolis, que estava no interior.
Diante dessa tramitação entre o bispo e os franciscanos, em junho de 1943, frei Mateus7
escreveu a Dom Emanuel dizendo que o pedido fora consentido e acolhido com entusiasmo pelo
Delegado Geral dos Franciscanos na América do Norte, e que esta província americana do Santíssimo
Nome de Jesus estava prestes ao seu Capítulo Provincial, tempo propício para tomar decisões
importantes como essa. Logo, Dom Emanuel deveria entrar em contato com frei Matias Faust, em
Nova Iorque, responsável pela província americana.
Constatamos, que de acordo com a visão do bispo, a presença e a atuação dos protestantes era
uma ameaça à religião e à pátria. Logo, as paróquias da região precisavam ser bem atendidas
pastoralmente e a atuação no colégio teria como finalidade, além de formar bem a consciência dos
católicos para que estes não se tornassem protestantes, combater os adeptos ao protestantismo.
Frei Mateus Hoepers8 (1943), no seu pedido a frei Mathias Faust para que os franciscanos
americanos viessem para Goiás, dizia que um dos motivos para que se apressasse a vinda destes seria
a presença dos americanos protestantes que estavam trabalhando em Anápolis e que causavam muitos
problemas ao arcebispo. Hoepers disse que, para Dom Emanuel, a presença dos frades franciscanos
americanos seria o melhor obstáculo contra a proliferação dos protestantes.

7
HOEPERS, Frei Mateus. Carta ao Exmo. Revmo. Sr. Dom Emanuel. São Paulo, 25 de junho de 1943. Arquivo do
Instituto de Pesquisa e Estudos Históricos do Brasil Central.
8
HOEPERS, Frei Mateus. In: The Provincial Annals. Province of the Most Holy Name Order of Friars Minor. Vol. IV,
n. 01. New York, 1943. p. 158. Arquivo da Custódia Franciscana do Santíssimo Nome de Goiás.

71
Em 24 de agosto de 1943 frei Mathias Faust9 respondeu Dom Emanuel, comunicando-lhe que
seriam enviados nove frades sacerdotes e cinco frades irmãos para formarem o Comissariado 10, e para
cuidarem de quatro paróquias e do Ginásio Arquidiocesano de Anápolis. Alguns dos sacerdotes que
viriam já tinham prática no trabalho em freguesia e também no campo da instrução sendo professores
nos colégios franciscanos. Agora era necessário aguardar a licença do governo brasileiro para que os
frades norte-americanos chegassem a Goiás – sobretudo, diante da dificuldade que os Estados Unidos
empunhavam para a saída de seus compatriotas em período bélico. Enquanto isso, os frades se
ocupariam com a tarefa de aprender a língua portuguesa.
Com o desejo de agilizar a parte burocrática para liberação legal dos frades, Dom Emanuel
foi ao Rio de Janeiro para mediar junto à Coordenação de Assuntos Interamericanos do governo dos
Estados Unidos da América. Dom Emanuel encontrou-se com Sr. Frederick Hall, da divisão de
informação, no Instituto São Francisco de Sales, para tratar do assunto, o qual se prontificou em
ajudá-lo nessa mediação com o governo norte-americano. O mesmo pedido foi enviado também ao
Ministro da Justiça, para que os trâmites pertinentes fossem agilizados (NATTIER JR, 1943)11.
Toda mediação política e legal que Dom Emanuel fez para acelerar a liberação e vinda dos
franciscanos norte-americanos a Goiás demonstrava tão grande desejo da parte dele para que essa
congregação religiosa chegasse a Anápolis para sua nova missão. Mesmo com a mediação do bispo
junto ao escritório de Assuntos Interamericanos, a liberação não saiu com rapidez. Na carta de frei
Paul Seibert, responsável pelo comissariado, a Dom Emanuel, ele relatava as grandes dificuldades
que tiveram em obter os passaportes americanos. O processo era longo e burocrático, além das
dificuldades de encontrar rotas e meios de transporte para os sacerdotes chegarem a Goiás.
Por parte do governo brasileiro não houve tantos empecilhos. Em carta do Ministro Alexandre
Marcondes Machado Filho, encontramos a concessão do visto permanente em favor dos religiosos:
“em resposta à carta de 04 setembro próximo passado, tenho a honra de levar ao conhecimento de
Vossa Excelência Reverendíssima que, por despacho de 21 daquele mês, concedi visto permanente
em favor dos religiosos pelos quais interessa”12. Dom Emanuel respondeu ao frei Paulo Seibert,
compartilhando a sua felicidade em saber da partida dos frades para o Brasil, e que os aguardara
ansiosamente:

9
FAUST, Frei Mathias. Carta à Dom Emanuel do Delegado Geral dos Franciscanos nos Estados Unidos. Nova Iorque,
24 de agosto de 1943. Arquivo do Instituto de Pesquisa e Estudos Históricos do Brasil Central.
10
O comissariado era formado pelos freis: Fr. Paul Seibert, o responsável pelo comissariado, Fr. John Granahan, Fr. Philip
Kennedy, Fr. Christopher Neyland, Fr. ConallO’Leary, Fr. Andrew Quinn, Fr. Dunstan Carroll10, Fr. Bernard Tainor, Fr.
James Schuck; os irmãos: Fr. Celsus Gansen, Fr. Anselm Donahue, Fr. Damian Carney, Fr. John Krieg, Fr. Gabriel
Hughes.
11
NATTIER JR, Frank. Carta à Dom Emanuel do Coordinator of Inter-American Affairs. Rio de Janeiro, 15 de setembro
de 1943. Arquivo do Instituto de Pesquisa e Estudos Históricos do Brasil Central.
12
MACHADO FILHO, Alexandre Marcondes. Carta à Dom Emanuel concedendo o visto permanente em favor dos
religiosos. 08 de outubro de 1943. Arquivo do Instituto de Pesquisa e Estudos Históricos do Brasil Central.

72
Estamos plenamente satisfeitos e edificados com o espirito missionário que os anima a
chegarem quanto antes, ardentemente ansiosos para começarem a sua tarefa no arcebispado
em novo campo de ação que a Divina Providencia lhes aponta para recantarem as tradições
apostólicas gloriosas dos primeiros Filhos de São Francisco de Assis, no Planalto Central de
Goiaz- Coração do Brasil. Os esperamos de braços, na nossa pobreza que qualificaríamos
ultra-franciscana, numa diocese vastíssima (OLIVEIRA, 1943)13.

Dom Emanuel sempre gozou de muita influência política e eclesial, as quais foram de suma
importância para a consolidação de seus projetos. O seu trânsito livre entre as instâncias
governamentais, principalmente as federais, lhe possibilitaram certa facilidade para que as coisas
fossem articuladas e organizadas e, assim, saíssem como ele havia desejado. Fato perceptível ao
analisarmos o trato diplomático dispensado para facilitar e resolver questões burocráticas relativas à
vinda dos freis. A sua articulação junto às estruturas políticas sempre foi utilizada para o
fortalecimento do seu projeto eclesial em Goiás.
Em janeiro de 1944, todos os frades já estavam no Brasil. Chegaram pelo Rio de Janeiro, onde
permaneceram algum tempo para aprenderem a nova língua, seguindo logo depois para Anápolis,
conforme combinado. O comissário frei Paulo, juntamente com frei Cipriano, vieram na frente, em
uma primeira visita a Dom Emanuel, chegando a Anápolis no dia seis de janeiro do mesmo ano, para
conhecerem as paróquias que iriam assumir. Após essa visita, ficou definido que os frades assumiriam
Anápolis, Pirenópolis, Pires do Rio e Catalão, e não mais Corumbá e Jaraguá, como previsto no início
das negociações. Anápolis ficou sendo a sede do Comissariado.
Em fevereiro, chegaram a Anápolis os frades que assumiriam o trabalho pastoral na paróquia
de Sant’Ana e, conforme previsto, assumiriam também o Ginásio Arquidiocesano e Municipal de
Anápolis (GAMA). Consequentemente, os frades ganharam a doação de um grande terreno em um
novo bairro que nascia, o Jundiaí, local em que foi construído o novo colégio que recebeu o nome de
São Francisco de Assis.
Como a maioria dos protestantes que atuava em Anápolis havia recebido seus ensinamentos
e tradição dos missionários protestantes advindos da América do Norte e Inglaterra, a presença de
uma congregação religiosa que viesse dos Estados Unidos seria um contraponto estratégico para essa
batalha entre católicos e protestantes. Os frades norte-americanos já tinham uma maior convivência
e conhecimento das ações protestantes nos Estados Unidos. Em Goiás, o protestantismo ainda estava
se estruturando e não tinha a mesma força como nos Estados Unidos. Mas os frades teriam maior
perspicácia e formação para fazer esse trabalho. O envio de missionários estadunidenses para
Anápolis teve uma importância primordial e estratégica para que se frutificassem as ações católicas,
principalmente na educação, refutando a educação protestante de matriz norte-americana.

13
OLIVEIRA, Dom Emanuel Gomes de. Carta ao Revmo. Sr. Pe. Frei Paulo Seibert, Comissário Provincial. Campinas
04 de novembro de 1943. Arquivo do Instituto de Pesquisa e Estudos Históricos do Brasil Central.

73
Além das irmãs salesianas que já estavam em Anápolis, chegaram, em fevereiro de 1946, as
Irmãs Franciscanas de Allegany, vindas dos Estados Unidos para assumirem a Escola Paroquial de
Sant’Ana, que era dirigida por uma leiga e supervisionada por frei Celso Hayes. Os frades, juntamente
com as freiras franciscanas, assumiram três escolas em Anápolis, o ginásio mais antigo, e as escolas
paroquiais de Sant’Ana e Santo Antônio. Além desses, existia ainda o Ginásio Auxilium, que estava
sob a direção das salesianas. Diante disso, em um breve espaço de tempo, a Igreja Católica estava
conduzindo quatro escolas em Anápolis. Para o contexto da época, considerando as grandes
dificuldades, entendemos que esses acontecimentos se tornaram marcantes para a História da Igreja
Católica em Goiás. A existência de quatro colégios católicos em Anápolis demonstrava o desejo da
Igreja em confirmar a sua força diante do avanço emergente dos protestantes na cidade e, ao mesmo
tempo, nos leva a crer que a via utilizada para tal fim seria a educação.
Percebemos que todos os esforços por parte da Igreja Católica, para se consolidar em Anápolis
com mais força, principalmente no campo educacional, exigiu dela muito empenho também quanto
a fatores burocráticos internos, para que tudo se encaminhasse de maneira legal e, assim, esta pudesse
alcançar sua finalidade última: uma proposta educacional consistente que se contrapusesse à dos
protestantes.

Considerações finais
As ações de Dom Emanuel no campo da educação católica em Goiás tinham um pano de fundo
maior, ou seja, as orientações que vinham do Vaticano, que indicavam a instrução como um caminho
para vencer o protestantismo. A estratégia utilizada pela Santa Sé nessa campanha contra os
protestantes no Brasil deveria partir de uma união entre os bispos brasileiros, na partilha de iniciativas
e fortalecimento de sua unidade, com o desejo de revigorar as ações católicas. Como a missão da
Nunciatura era orientar e coordenar as direções dadas pela Santa Sé em cada país, coube ao Núncio
Apostólico, Dom Carlo, encaminhar isso aos bispos no Brasil, principalmente aos arcebispos. O
fortalecimento do episcopado brasileiro e, consequentemente, das suas atividades, garantiriam uma
maior eficácia da ação católica em todo o Brasil, a fim de enfraquecer o protestantismo. Como vimos
na citação anterior, a instrução era por excelência o meio mais eficaz para esse combate. Assim, os
feitos de Dom Emanuel no campo da educação explicitam a dedicação do bispo para colocar em
prática em Goiás as instruções emanadas de Roma.

Referências Bibliográficas
ABREU, Sandra Elaine Aires de. A criação da Faculdade de Filosofia “Bernardo Sayão” e
o Protestantismo em Anápolis. 1997. 189 f. Dissertação (Mestrado em Educação Escolar Brasileira)
– Faculdade de Educação, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1997.
CORDEIRO, A. L. Religião e projetos educacionais para a nação: a disputa entre metodistas
e católicos na primeira república brasileira. Horizonte, Belo Horizonte, v. 4, n. 7, dez., 2005.

74
FERREIRA SOBRINHO, Olímpio. Meio século formando gerações. Goiás: Associação
Educativa Evangélica, 1997.
MORAES, Maria Augusta de Sant’Ana. Dos primeiros tempos da saúde pública em Goiás à
Faculdade de Medicina. Goiânia: Cânone Editorial, 2012.
RAMALHO, J. P. Colégios protestantes no Brasil: uma interpretação sociológica da prática
educativa dos colégios protestantes no Brasil no período de 1870 a 1940. Rio de Janeiro: Zahar,
1975.
WYSE, Frei Alexandre. No Coração do Brasil. Ensaio da História dos Quarenta Anos (1943-
1984) da Custódia do Santíssimo Nome de Jesus em Goiás. Anápolis, 1987.

75
TUDO OU NADA: O PAPEL DO CATOLICISMO NAS ANÁLISES DA
HISTÓRIA FEITAS POR HILAIRE BELLOC E POR HERBERTGEORGE
WELLS

Rhuan Reis do Nascimento1

Resumo
O presente artigo tem por objetivo, expor, comparar e comentar o papel do Cristianismo Católico nas análises
da história propostas por Hilaire Belloc e por Herbert George Wells. No início do século XX, Belloc e Wells viviam em
Londres. Por terem amigos em comum, frequentavam os mesmos espaços. Os pensadores, no entanto, divergiam em uma
série de temas. Enquanto Belloc era liberal e católico, Wells era um socialista que tendia ao ateísmo. Em 1920, Wells
publicou, em fascículos, um volumoso estudo intitulado The outline of History, no qual tratou da História do Mundo,
desde a origem do Planeta até a Primeira Guerra Mundial. Em tom crítico, Belloc argumentou que Wells, ao privilegiar
uma perspectiva materialista e cientificista, não deu o devido destaque à figura de Cristo e à atuação da Igreja Católica.
Com efeito, Belloc tomou para si a tarefa de fazer oposição a Wells, escrevendo obras capazes de apresentar de forma
clara e didática a importância do Catolicismo na formação da sociedade contemporânea. Para isso, escreveu livros como
The crisis o four civilization (1937). É sobre as disputas travadas por Belloc e Wells em torno do Catolicismo que o nosso
estudo versa.

Introdução
Nosso artigo objetiva expor, comparar e comentar o papel do Cristianismo Católico nas
análises da história propostas por Hilaire Belloc e por Herbert George Wells. Para isso, utilizaremos
como fonte as principais obras sobre a História de ambos os autores. Tais livros serão lidos a partir
dos métodos propostos pelos historiadores ligados à chamada “História das Ideias”, sobretudo, John
G. A. Pocock e Quentin Skinner. Em outras palavras, buscaremos analisar os contextos linguísticos
nos qual os autores desenvolveram e lançaram suas obras.

H. G. Wells e Hilaire Belloc


H. G. Wells nasceu em setembro de 1866, em Londres. Após ter iniciado, sem sucesso, uma
carreira como negociante de tecidos, estudou biologia e, nas últimas décadas do século XIX, alcançou
sucesso ao publicar romances científicos como A máquina do tempo (1885), O homem invisível
(1897) e A guerra dos mundos (1898).
Um pouco mais jovem que Wells, Hilaire Belloc nasceu em 1870, em solo francês. Mudou-
se para a Inglaterra nos seus primeiros anos de vida, para fugir da Guerra Franco-Prussiana. Belloc
também alcançou notoriedade como romancista no final do século XIX. Seus primeiros livros eram
voltados ao público infantil. Dentre estes, destaca-se The Bad Child’s Book of Beasts (1896) e More
Beats (for worse children) (1897).

1
Doutorando em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em História pela mesma instituição.
Graduado em História pela Universidade Católica de Petrópolis. E-mail: nascimentorhuanreis@gmail.com. O presente
trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) -
Código de Financiamento 001.

76
Entre o final do século XIX e o início do XX, Wells e Belloc tomaram conhecimento da obra
um do outro. Belloc admirava a obra de Wells, como contou em carta para sua irmã (PEARCE, 2016,
p. 67). Wells, por sua vez, comentou entusiasmado, em carta a Arnold Bennett, algumas paródias
escritas por Belloc e publicadas na Speaker (PEARCE, 2016, p. 95).
Wells e Belloc possuíam amigos em comum, como o escritor Gilbert Keith Chesterton e o
romancista George Bernard Shaw. Essas amizades fizeram com que Wells e Belloc se encontrassem
e se aproximassem. Tão logo se deu a aproximação, a admiração mútua começou a dar espaço às
divergências. Belloc era católico, liberal, e tinha a fama de defender com certa agressividade suas
posições. Wells era socialista e não demonstrava apreço ao Cristianismo. Em 1908, Wells escreveu
na revista New Age que, embora admirasse Belloc, evitava o autor franco-inglês por sua agressividade
partidarista (PERACE, 2016, p. 129).
Ainda na New Age, Belloc e Wells se opuseram em um debate que teve como tema as causas
dos problemas sociais ingleses e as propostas de solução. Nessa ocasião, enquanto Shaw e Wells
defenderam uma posição que tendia a uma reforma de caráter socialista, Belloc e Chesterton
defenderam a fragmentação e a ampla difusão da propriedade privada dos meios de produção entre o
maior número de indivíduos possível. Esse debate é tido como o momento fundacional do
Distributismo, teoria econômica formulada por Hilaire Belloc (CASTAÑO, 2005, pp. 27-30).

Em tudo ou em nada: qual o lugar de Deus na História?


As diferenças entre Wells e Belloc foram aprofundadas em 1920, após Wells publicar um
volumoso estudo histórico intitulado The outline of History. Nessa obra, Wells objetivou apresentar
história da humanidade, desde o Período Paleolítico até a Primeira Guerra Mundial. O livro de Wells
repercutiu rapidamente. Foi traduzido para vários idiomas e impactou consideravelmente os estudos
universitários acerca da História.
Belloc, contudo, que havia se consagrado como historiador, protestou que o autor de The
outline of History não deu o devido valor à figura de Cristo e nem à atuação da Igreja Católica em
sua obra.
De fato, Wells tratou com certo desdém os temas relacionados ao Cristianismo. Sua fala sobre
a existência de Jesus demonstra isso.
Mas todos os quatro (evangelhos) nos oferecem a pintura de uma bem definida personalidade;
e todos se acham embebidos do mesmo caráter de realidade que se encontra nos relatos
primitivos sobre Buda. A despeito das adições miraculosas e inacreditáveis, é-se obrigado a
reconhecer: ‘Era realimente um homem. Esta parte da história não podia ter sido inventada’
(WELLS, 1956, p. 186).

Para Belloc, Wells produziu uma história materialista e cientificista, que apontava o progresso
como uma superação da religião pela ciência. Belloc escreveu para a revista Universe uma série de
críticas ao livro de Wells, que iam desde a exposição de erros de digitação até uma análise minuciosa

77
da metodologia utilizada por Wells. As críticas de Belloc foram reunidas no livro A Companion to
Outline of History do Sr. Wells (1926).
Segundo Belloc, Wells era um autor tendencioso, que escreveu uma história distorcida, que
carecia de correções.
Se a História é escrita de forma incorreta, os leitores que não têm esse discernimento terão
uma visão distorcida das ações humanas, levando a um mau entendimento das coisas mais
essenciais da vida, incluindo a Religião; e a História escrita por Wells é obviamente e
fatalmente distorcida em razão do seu provincialismo (BELLOC, 1926, p. 15, tradução
nossa).

“Provincialismo” é, segundo Belloc (1926, p. 15), acreditar que se possui todo o conhecimento
sobre determinado assunto e, com isso, fechar-se aos novos conceitos e ideias. Na perspectiva do
autor franco-inglês, o provincialismo em The outline of History à medida que Wells rejeitava as
experiências sociais e religiosas que não eram de seu feitio. Dentre todas as rejeições e omissões
feitas por Wells, a mais grave era, na visão de Belloc, a falta de importância dada à Igreja Católica
no curso da História (BELLOC, 1926, p. 18).
H. G. Wells respondeu aos apontamentos de Belloc, em livro intitulado Mr. Belloc Objects to
“The outline of History” (1926), no qual reafirmou suas posições. Belloc, por fim, voltou a contestar
Wells, em Mr. Belloc still objects (1927).
Além de polemizar com W. G. Wells, Belloc tomou para si a tarefa de expor de forma clara e
didática a importância da Igreja na História do Mundo. Esse objetivo ficou claro em As crises da
nossa civilização (1937), que aborda a história da civilização ocidental, que, na perspectiva de Belloc,
corresponde à chamada “Cristandade”, composta pela Europa e pelo Novo Mundo (BELLOC, 1945,
p. 7).
Nas primeiras páginas do livro, Belloc expôs seus postulados. Nesta parte o autor explicitou
sua opção pelo determinismo religioso. Com efeito, escreveu Belloc: “a religião é o principal
elemento determinante que atua na formação de toda a civilização” (sic) (BELLOC, 1945, p. 25).
Ciente de que sua afirmação causa estranheza, Belloc explicou:
Um grupo de seres humanos que creem em geral que proceder bem ou mal nessa vida tem as
consequências correspondentes depois da morte, que a alma do indivíduo é imortal, que Deus
é o pai onipresente de todos, se comportará de maneira uniforme. Um grupo que nega a essas
ideias se comportará de modo distinto. Um grupo que concentra sua visão espiritual sobre a
imagem de poderes aterrorizantes e malignos se comportará de uma maneira ou outra. [...] O
espírito que anima ao conjunto de um grupo humano transmite a este seu sabor e suas
características. Este espírito pode com justiça chamar, em quase todos os casos, de religião
(BELLOC, 1945, p. 25).

Ademais, Belloc minimizou os principais determinismos de sua época, atribuindo a eles um


caráter religioso. Desse modo, afirmou que o alemão que defende a superioridade racial nada mais
faz do que divinizar sua raça. O marxista, em seu turno, professa, na perspectiva de Belloc, a religião
do materialismo. Por este prisma, o que ambos fazem – o racista e o materialista – é reafirmar a
centralidade da religião como fator determinante da cultura (BELLOC, 1945, pp. 26-27).

78
No mais, o historiador tratou da Antiguidade como o período de fundação da Cristandade,
havia logrado êxito ao reunir, sob os princípios da religião cristã, aspectos da cultura grega e da
cultura romana (BELLOC, 1945, pp. 45-77). Abordou a Idade Média como período no qual o
Cristianismo plenamente estabelecido funcionou de base para a formação de uma sociedade
economicamente estável, voltada ao desenvolvimento integral dos homens.
Devido a essa estabilidade e ao conjunto de costumes tradicionais consagrados no espírito de
todos os homens, porém, sobretudo, devido à religião universalmente aceita, com sua liturgia
onipresente e sua filosofia que explicava a queda universal do homem, sua bem-aventurança
e sua relação com o Divino; devido todas essas coisas, ao final da Idade Média e apesar de
tudo, a alma da Europa possuía uma estrutura firme (BELLOC, 1945, p. 114).

Por fim, Belloc tratou das “crises” que dão título ao livro – a Reforma Protestante, e a
emergência do Capitalismo e do Comunismo – como fenômenos de matriz religiosa. Isto, pois, Belloc
afirmava existir uma relação linear entre a fé protestante e a moral capitalista, à medida que aquela
permitia e legitimava a usura e a livre competição, aspectos fundamentais para a emergência do
capitalismo (BELLOC, 1945, pp. 197-136). Já o comunismo, seria um possível remédio aos males
trazidos pelo capitalismo. Contudo, como era um remédio baseado na moral materialista e ateísta era,
na visão de Belloc, um remédio destrutivo (BELLOC, 1945, pp. 237-261).

Determinismo religioso em Hilaire Belloc


Belloc criticava Wells por seu determinismo materialista. Contudo, é forçoso reconhecer que
a análise histórica de Hilaire Belloc está imersa em uma outra espécie de determinismo: o
determinismo religioso.
Não concordamos com a ideia a qual o determinismo religioso corresponde à explicação da
causa dos fenômenos a partir da ingerência divina. Acreditamos que esse entendimento se aplica de
forma correta ao chamado determinismo teológico. Por determinismo religioso entendemos a
perspectiva segundo a qual a causa dos acontecimentos e fenômenos pode ser explicada a partir das
relações religiosas. Isto é, para os autores que pautam suas análises nesse tipo de determinismo, o
pano de fundo das ações humanas é estabelecido pela religiosidade, seja no plano moral, seja no
institucional.
Objetivando expor aquela que acreditamos ser a correta acepção de determinismo religioso,
parece-nos útil lançar mão do esquema explicativo do determinismo econômico comumente
relacionado ao materialismo histórico.
Duas são as formas de determinismo atribuídas ao materialismo histórico. A primeira delas
corresponde ao chamado determinismo diacrônico, a partir do qual se entende que uma estrutura
econômico-social específica resultaria fatalmente em outra – por exemplo, o modo de produção
feudal conduziria invariavelmente ao modo de produção capitalista. A segunda forma, por sua vez,
diz respeito ao determinismo sincrônico, descrito a partir da ideia de que existe uma base que

79
determina e condiciona uma superestrutura. No caso do materialismo histórico, tal base seria formada
pelas relações econômicas. Estas, determinariam a superestrutura – composta pelas demais formas de
vida – política, social e intelectual e etc (BARROS, 2011, pp. 97-99). É o esquema explicativo do
determinismo sincrônico que nos interessa.
Isto, pois, acreditamos ser possível afirmar que os autores que fundamentam suas análises
históricas no determinismo religioso compreendem que são as relações religiosas que constituem a
base que condiciona a superestrutura. Para esses autores as relações econômicas fazem parte da
superestrutura. Em outras palavras, os pensadores que baseiam seus estudos sobre o passado no
determinismo religioso tendem a apontar a religiosidade como o principal motor das ações dos
homens. Desse modo, estes pensadores comumente empreendem leituras históricas que partem do
religioso para explicar os fenômenos políticos, culturais, econômicos etc. É esse tipo de determinismo
que aparece na análise histórica de Hilaire Belloc.

Conclusão
Analisamos a importância dada ao Cristianismo Católico nas análises da História propostas
por H. G. Wells, em The outline of History e por Hilaire Belloc em The Crisis of our civilization.
Concluímos que, enquanto Wells minimizou o papel da religião cristã em sua obra, Belloc parece ter
supervalorizado o Cristianismo, colocando-o como motor da História. Se na obra de Wells o objetivo
era demonstrar que a religião foi superada pela ciência, Belloc, por sua vez, coloca a religiosidade à
frente de todas as outras formas de relação humana.

Referências Bibliográficas
BARROS, José D’Assunção. “Materialismo histórico e determinismo: revisitando uma
polêmica”. In: Cultura e Sociedade: revista de cultura política. V.1, n.1, jan/jun de 2011
BELLOC, Hilaire. A companion ro Mr. Wells’s outline of History. London: Sheed and Ward,
1926.
BELLOC, Hilaire. La crisis de nuestra civilización. Buenos Aires-ARG: Edtorial
Sudamericana, 1945.
CASTAÑO, Daniel Sada. Gilbert Keith Chesterton y el distributismo inglés em el primer
tercio del siglo XX. Madrid: Fundación Universitaria Española, 2005.
PEARCE, Joseph. El viejo trueno: biografia de Hilaire Belloc. Madrid: Ediciones Palabra S.
A., 2016.
WELLS, H. G. História universal. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956, v. 3, p.
186.

80
Coordenação
Ana Beatriz de Carvalho dos Santos Alexandrini (UMESP
biaalexandrini@hotmail.com
Carlos Eduardo Mendes de Araújo Couto (UFJF)
cadumendescouto001@gmail.com

Elainy Fátima de Souza (UFJF)


elainyfatimasouza@yahoo.com.br
Marcelo Massi (UFJF)
celmassibrother@gmail.com

Ementa
Religião e Cultura Visual são campos de estudo e atuação próximos. Através do discurso
simbólico e de elementos visuais, ambas as áreas atuam nos sentidos e no intelecto humano. E, se por
um lado, as diferentes formas religiosas, institucionalizadas ou não, empregaram desde sempre
aspectos visuais como meio de comunicação e linguagem de fé e forma de conduzir o indivíduo ao
sagrado; por outro, a cultura visual de uma determinada sociedade não deve ser compreendida de
maneira limitante apenas como uma atividade estética ou mercadológica, sendo um vasto campo
epistemológico no qual também há uma busca pela condição espiritual humana. Assim, o modo de
ver e idealizar, podem manifestar as várias relações e as diferenças de classe, gênero e etnias. Isto
posto, os estudos sobre esse diálogo inter(trans)disciplinar estão cada vez mais comum no meio
acadêmico e se fazem necessários. Conforme David Morgan (1957-), da Duke University nos EUA,
a cultura visual apura como os indivíduos articulam a forma de contemplar o mundo e como isso os
atingem. Com isso, torna-se possível fazer essa análise da cultura visual religiosa, a partir do que se
apresenta visualmente. Assim, o GT tem como objetivo reunir pesquisadores que investiguem as
articulações entre religião e as diferentes modalidades da cultura visual, que contempla a cultura e as
artes populares, tendo em vista a apresentação e o debate de seus objetos de estudo. Para tanto, acolhe
trabalhos que tratem das diversas formas pelas quais a cultura visual ganha expressão (ícones,
fotografia, gravura, escultura, artes plásticas, cinema, etc.), dos mais diversos períodos históricos,
tradições religiosas e culturas. Consideram-se também trabalhos que proponham análises da força
performativa de imagens e sobre a metodologia para interpretação da cultura visual contemporânea.
Palavras-Chave: Religião. Diálogo inter(trans)disciplinar. Cultura visual. Artes.

81
A SUBMISSÃO DO CORPO COMO CAMINHO DA SANTIDADE NO
FRANCISCANISMO DO SÉCULO 13

Claudinéia G. Varotti1

Resumo
O material aqui apresentado faz parte de um projeto de pesquisa maior onde buscamos entender a conexão entre
a origem e a importância da constante presença imagética de Santo Antônio nas igrejas eslovacas. No processo para tal
compreensão nos deparamos com o diálogo e uma correlação entre as imagens de Santa Elizabeth da Hungria e Santo
Antônio. Tendo como ponto de partida a composição iconográfica desses santos e a relevância dos mesmos como
formadores identitários e propagadores de um ideal religioso o qual ainda hoje é decodificado por seus expectadores,
nosso intento será analisar as composições imagéticas utilizando de material biográfico e angiográfico. O suporte teórico
e metodológico foi baseado na análise da cultura visual proposta por David Morgan e Erwin Panofsky o qual será
determinante para a decodificação da chave hermenêutica. A intenção desse estudo é elaborar uma comparação entre o
caminho para a “Santidade” escolhida ou seguida por Santo Antônio e Santa Elizabeth da Hungria e como o corpo físico
foi instrumento facilitador ou não nesse processo.
Palavras-chave: Santo Antônio. Santa Elizabeth da Hungria. Santidade. Eslováquia. Submissão.

Introdução
A origem. Partindo da referência apresentada por David Morgan em seu livro Religious Visual
Culture in Theory and Practice, “o estudo da iconologia não deve ser apenas o estudo de uma obra
de arte, mas os valores simbólicos que representam em uma cultura” (tradução livre da autora)2.
Entendemos que a presença das imagens de Santo Antônio e Santa Elizabeth da Hungria traz uma
mensagem ou faz memória a um fato ocorrido no passado do país. Entretanto nesse artigo nossa
intenção é relacionar os itens da composição imagética com a ascese.
São Francisco de Assis e Santo Antônio dispensam apresentações: suas histórias e imagens se
fazem presentes nos mais diversos ambientes, principalmente em decorrência do grande número de
imigrantes recebidos no Brasil provenientes de Portugal ou Itália. Porém, não podemos afirmar o
mesmo na Eslováquia, país fechado pelo comunismo por muitos anos, sem a tradição de receber
imigrantes e a religião foi levado por mãos de ferro. E qual não foi nossa surpresa ao adentrarmos a
uma igreja pertencente à Ordem Jesuítica em Bratislava, capital do país e nos depararmos com uma
escultura em tamanho natural de Santo Antônio como que a nos recepcionar? Tal fato imediatamente
despertou nosso interesse.
A presença imagética de Santo Antônio nas igrejas católicas eslovacas é constante. Em nossa
busca por informações que explicassem a presença antoniana na Eslováquia descobrimos que foram
os franciscanos os responsáveis pelo processo de evangelização do então Império Austro Húngaro, o
qual a pequena Eslováquia no período medieval estava inserida. Conectada a essa informação

1
Pesquisadora participante do Grupo RIMAGO, mestre em Ciências da Religião e historiadora da arte.
2
“Iconology studies just this content of the work of art, that is, its invocation of a culture's broader symbolical values.”
In MORGAM, David. Religious Visual Culture in Theory and Practice (pag.28)

82
descobrimos que São Francisco escreveu pessoalmente para a então Rainha Elizabeth da Hungria 3
pedindo que ela acolhesse e auxiliasse no trabalho missionário dos irmãos franciscanos enviados por
ele. Santa Elizabeth da Hungria fez parte do processo formador e identitário do movimento
evangelizador iniciado por São Francisco de Assis. Em seu livro In Search of Sacred Time, Jacques
Le Goff ressalta a importância que o autor medieval Jacobus de Voragine dedica a Santa Elizabeth
em sua The Golden Legend (LE GOFF, págs. 161-164). Assim, o famoso historiador nos indica que
a Igreja e seus contemporâneos entenderam a importância de Santa Elizabeth. Suas ações são descritas
no famoso livro The Golden Legend – Reading on the Saints (VORAGINE, 1996, págs. 688-704).
De Fernando a Antônio. A vida de Santo Antônio é narrada em sua hagiografia conhecida
como As Florinhas de Santo Antônio. O pequeno livro é composto por três partes: a primeira uma
biografia, a segunda os milagres ocorridos pela intersecção do santo em vida e os milagres ocorridos
após a morte de Santo Antônio4.
O estudioso do tema antoniano Carlos A. Moreira Azevedo, afirma que
“...dos ciclos iconográficos antonianos como o famoso Sermão aos peixes, o Milagre
eucarístico ou da mula, ou o episódio de Santo António a livrar o pai da forca. Grande parte
destes episódios não resiste à crítica histórica moderna, porque a sua origem é tardia nas
fontes... (AZEVEDO, 2010, p. 21).

Assim, ao observarmos os fenômenos que se apresentam como Milagres Antonianos,


podemos entendê-los como interpretações de fatos ocorridos ou não; entretanto, não deixam de ser
uma expressão do momento histórico ou do sentimento partilhado por indivíduo / indivíduos. Quando
nos detemos nas Florinhas de Santo Antônio observamos que os franciscanos entendiam plenamente
a sociedade onde estavam inseridos e pretendiam “cuidar dos pobres” assim como observamos a
mudança nos pronomes de tratamento a uma mulher: se pertencente à nobreza eles a apresentam como
uma certa senhora5, sem título de nobreza, por mulherzinha6. Em um primeiro momento o tratamento
parece demonstrar um descrédito pessoal, entretanto, devemos nos lembrar de que o fundador do
Franciscanismo ficou conhecido como o Pobrezinho de Assis7, assim esses tratamentos vão

3
In PIEPER, Lori. SFO. The Voice of a Medieval Woman – St. Elizabeth of Hungary as a Franciscan Penitent in The
Early Sources for Her Life. Kindle format.
4
Utilizamos da Legenda antoniana de autor anónimo aprovada em 1316 por Frei Jacobo Sauro e todo o Capítulo reunido
em Verona, e da qual fala Rodolfo Tossiniano nos seus Historiarum Seraphicae Religionis Libri três (Veneza, 1583, pp.
83)
5
Legenda antoniana de autor anónimo aprovada em 1316 por Frei Jacobo Sauro e todo o Capítulo reunido em Verona, e
da qual fala Rodolfo Tossiniano nos seus Historiarum Seraphicae Religionis Libri três (Veneza, 1583, cap. XXIII)
6
In: Legenda antoniana de autor anónimo aprovada em 1316 por Frei Jacobo Sauro e todo o Capítulo reunido em Verona,
e da qual fala Rodolfo Tossiniano nos seus Historiarum Seraphicae Religionis Libri três (Veneza, 1583, cap. XVIII)
7
In:PAOLAZZI, Carlo; ACCROCCA, Felipe; SOLVI, Daniele; CERRA, Modestino; OLGIATI, Simpliciano;
SARTORIO, Fabio; COSTA, Francesco; BIGARONI, Marino; MARINI, Alfonso; CARGNONI, Costanzo; AQUINI,
Gilberto; BARTOLI, Marco; LAINATI, Chiara Augusta, CREMASCHI, Giovanna; ACQUADRO, Agnese;
TEMPERINI, Lino; GUIDA, Marco; FILLARINI, Clemente; PIERPAOLI, Giuseppe. Fonti Francescane, III edizione,
Editrici Francescane, Padova, 2011.

83
descrevendo como as escolhas de pobreza, serviço e caridade vão se impregnando nos irmãos frades
que fizeram a mesma escolha que seu fundador8.
Santo Antônio nasceu em Lisboa em 1190, recebendo por batismo o nome de Fernando. Ainda
muito jovem ingressou na Canónica-Mosteiro de São Vicente de Fora. Já Cônego Regrante de Santo
Agostinho transferiu-se para a Canônica-Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra em busca de silêncio e
oportunidade de aprofundar seus estudos na Sagrada Escritura.
No ano de 1219, o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra recebeu em acolhida cinco frades
franciscanos enviados em missão de levar a Boa Nova ao Oriente (Marrocos). Os missionários
franciscanos impressionaram o jovem Fernando, tamanho desprendimento e alegria ao serviço
(PEREIRA; CORREIA, 2017, p.36-45). Os franciscanos foram martirizados em missão e seus restos
mortais retornaram para o Monastério de Santa Cruz. Tal evento foi um divisor na vida de Fernando
que deixou o Monastério agostiniano e se uniu aos franciscanos, pois queria evangelizar. Tornou-se
Antônio e decidiu viver e morrer por Cristo aceitando com alegria os padecimentos que lhes foram
impostos para louvar e servir ao Senhor. (idem, p. 37-38).

Imagem 1 - Santo Antônio de Pádua, Pintura em Vitral instalado na Igreja de São Landislav, Bratislava-SK.
Fonte: Arquivo pessoal da autora.
O Menino Jesus, os pães e o Livro. Para entendermos a concepção imagética de Santo
Antônio é preciso deter em sua hagiografia. Para este fim, utilizaremos do método proposto por Erwin
Panofsky, pois segundo o autor:
...”A existência dessa imagem devocional estabeleceu uma associação fixada de ideias... a
interpretação iconológica requer algo mais que a familiaridade com conceitos ou temas
específicos transmitidos através de fontes literárias... os métodos de abordagem que aqui
aparecem como três operações de pesquisa irrelacionadas entre si, fundem-se num mesmo
processo orgânico e indivisível, a saber; descrição pré-iconográfica, análise iconográfica e a
interpretação iconológica”. (PANOFSKY, 2012, p. 63-64).

O Menino Jesus9 nos braços de Santo Antônio tem sua origem segundo o capítulo XX da
Legenda Antoniana, sendo o título: Como um certo fidalgo viu Santo António abraçado ao dulcíssimo
Menino e Senhor Nosso Jesus Cristo. O texto nos apresenta Santo Antônio a peregrinar e a

8
Idem
9
Legenda antoniana de autor anônimo aprovada em 1316 por Frei Jacobo Sauro e todo o Capítulo reunido em Verona e
da qual fala Rodolfo Tossiniano nos seus Historiarum Seraphicae Religionis Libri III (Veneza, 1583, pp. 83)

84
evangelizar. Certo fidalgo lhe ofertou abrigo e foi testemunha do encontro entre o santo e o infante
narrando assim esse acontecimento: “vi por uma porta entreaberta estar o santo a brincar e a ter nos
braços o Menino Jesus”.
A veste franciscana10 estabelecida por São Francisco como um sinal de desprendimento das
coisas mundanas, ganha nova importância no capítulo VII da mesma Legenda, temos: “Como Santo
António livrou a certo monge vexado por tentação impura”. Um irmão franciscano que sofria as
tentações da carne e por mais que buscasse purificação através das orações, penitências e suplícios
não alcançava o resultado desejado. Buscando a salvação no irmão Santo, o irmão franciscano usou
a veste do irmão Antônio e em oração é investido com o poder transformador da veste, foi purificado
das tentações, pois alega o escritor: “A veste carregava em si tanta pureza que purificou o monge...”.
Assim entendemos que a submissão do corpo faz parte do processo de purificação para que a alma se
torne agradável a Deus. Entretanto, nesse acontecimento, são as vestes que fornecem o elemento
purificador do corpo tornando o caminho da salvação da alma possível.
O Livro11 e Os pães12 são elementos relacionados ao conhecimento da Palavra e ao Serviço.
Assim uma iconografia religiosa católica é composta de vários elementos que trazem um
entendimento para o mundo e/ou pessoas de um determinado momento ou espaço geográfico. Como
afirma Morgan (2005, p.9), “a crença é a cola que mantém o mundo unido... Como fenômeno mental,
a crença sempre pode ser atribuída à sensação”.
A AÇÃO. Santa Elizabeth da Hungria é descrita como uma jovem que desde sua infância
busca viver a Caridade e a Santa Pobreza. Entretanto, sendo filha de nobres pertencentes ao Império
Austro Húngaro como era de costume no século 13 foi dada em casamento ao futuro rei do império.
Autora de dois importantes livros sobre a santa, Lori Pieper13 afirma que a santa teria tido uma visão
de sua mãe falecida no purgatório pedindo que a filha lhe salvasse daquele sofrimento (PIEPER,
2016). Sendo ela rainha, tinha direito a uma capela particular e um padre confessor a sua disposição.
Acreditando que o padre era por demais complacentes com o ambiente da corte e suas influências
mundanas, solicitou ao seu esposo um novo padre confessor, alguém que fosse indiferente ao poder
da nobreza e lhe impusesse um caminho árduo, pois entendia ser necessárias punições ao corpo e a
alma. Assim, acreditava que estaria salvando a mãe do purgatório e se encaminhando ao Céu. O
confessor enviado foi o Inquisidor Konrad von Marburg.

10
Idem
11
Idem
12
Idem
13
In PIEPER, Lori. SFO. The Voice of a Medieval Woman – St. Elizabeth of Hungary as a Franciscan Penitent in The
Early Sources for Her Life.

85
Os Pães, a coroa e as rosas.

Imagem 2 - Santa Elizabeth da Hungria, escultura em madeira policromada em altar lateral. Catedral de
Santa Elizabeth da Hungria em Košice-SK.
Fonte: Arquivo pessoal da autora
A imagem de Elizabeth nos mostra a coroa14, pois ela foi a Rainha do Império Austro
Húngaro15. A deposição da coroa frente ao Crucifixo comentada pelo Papa João Paulo II16 faz
referência à retirada da coroa da jovem Elizabeth na capela do castelo, argumentando que não poderia
usar uma coroa de ouro quando seu Senhor usava uma de espinhos. Essa comparação nos faz perceber
como Elizabeth acreditava que a salvação é um caminho acessado pelo sofrimento físico. Entretanto,
ela utilizou muitas vezes sua influência e poder para diminuir a exploração dos nobres sobre seus
servos (WOLF, 2010, p.63). Indo ao encontro dos necessitados, ofertou muitas vezes seus bens e sua
riqueza para socorrer os pobres (idem, p.58). Assim, a escolha da submissão do corpo é oponente a
opressão social/econômica. As flores17 e os pães18 estão conectados a escolha da caridade e serviço.
Os pães como elemento composicional nos leva a entender que a caridade e o serviço aos necessitados
são passos que encaminham à santidade. Entretanto a purificação do corpo não se faz presente ainda.
As vestes da santa podem variar. A mais tradicional é identificada como a veste de sua
viúves19 relacionando a morte do marido e sua escolha definitiva pela Santa Pobreza e o Serviço aos
pobres. O Rei Ludwig IV foi convocado à sexta cruzada vindo a falecer. Analisar esse período
histórico é controverso, pois alguns autores como Pieper alega que a jovem viúva foi expulsa
enquanto Wolf argumenta que ela teria deixado o reino com intenção direta de viver em pobreza e
serviço. Foi um período de grandes provações, sofrimentos físicos, ofensas, afastamento de suas

14
In PIEPER, Lori. SFO. The Voice of a Medieval Woman – St. Elizabeth of Hungary as a Franciscan Penitent in The
Early Sources for Her Life.
15
Idem
16
https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/letters/1981/documents/hf_jp-ii_let_19811119_chiesa-ungheria.html
17
Idem
18
Idem
19
Idem

86
damas de companhia. A tudo isso ela saudava com alegria, pois percebia como o momento de
submeter o corpo a vontade divina.
Consoante a todas essas imposições, ela oferta a Deus o juramento do celibato, de pobreza e
de serviço aos pobres e “assume as vestes franciscanas”. Novamente temos as vestes como chave
para a leitura da ascese. O juramento de obediência ela já o havia feito como condição imposta por
Konrad (WOLF, 2010, p. 49) para ser por ele guiada ao caminho da salvação. A proteção oferecida
formalmente pelo Papa Gregório IX e o retorno da cruzada dos aliados do Rei Ludwig IV
estabeleceram novos rumos à jovem Elizabeth: recebeu a autorização de se dirigir a Marburg in Hesse
sendo-lhe permitido acessar parte dos bens de seu falecido esposo e suas damas de companhia
retornem ao seu convívio. Com todos esses recursos a sua disposição, ela passa a viver seu maior
sonho: viver a Santa Pobreza e o Santo Serviço, os caminhos escolhidos pelo Franciscanismo para
salvação. Elizabeth criou a primeira Casa de Misericórdia para os pobres onde eles eram cuidados,
alimentados e amparados.
Santa Elizabeth da Hungria morreu aos 24 anos. Sua diferente escolha de vida e ação compôs
um novo olhar sobre a pobreza assim como São Francisco de Assis e Santo Antônio de Pádua também
o fizeram: o sofrimento, a penitência e a mortificação dos desejos da carne eram escolhas para se
alcançar a Salvação. Entretanto, quanto à imposição da miséria, do abandono e da exploração, não
deveria ser aceita ou permitida.

Referências Bibliográficas
AZEVEDO. D. Carlos A. Moreira. Variantes iconográficas nas representações antonianas.
Cultura, Revista de história e Teoria das Ideias. Open Edition Journals. Vol. 27/2012. In
https://journals.openedition.org/cultura/332 acessado em 17/05/2021.
Carta do Papa João Paulo II à Igreja da Hungria por ocasião do 750º da Morte de Santa
Isabel in https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/letters/1981/documents/hf_jp-
ii_let_19811119_chiesa-ungheria.html
LE GOFF, Jacques. In Search of Sacred Time. Translated by Lydia G. Cochrane. Princeton
University Press. 2014.
LE GOFF, Jacques. São Francisco de Assis. Tradução de Marcos de Castro. Editora Record.
Rio de Janeiro. 14 Edição. 2017.
MORGAN, David. Religion and Material Culture, The Matter of Belief. Routledge Press.
New York. NY. 2010
MORGAN, David. Religious Visual Culture in Theory and Practice. University of California
Press. Berkeley and Los Angeles, California. 2005.
PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. Editora Perspectiva. São Paulo-SP. 2012.
PAOLAZZI, Carlo; ACCROCCA, Felipe; SOLVI, Daniele; CERRA, Modestino; OLGIATI,
Simpliciano; SARTORIO, Fabio; COSTA, Francesco; BIGARONI, Marino; MARINI, Alfonso;
CARGNONI, Costanzo; AQUINI, Gilberto; BARTOLI, Marco; LAINATI, Chiara Augusta,
CREMASCHI, Giovanna; ACQUADRO, Agnese; TEMPERINI, Lino; GUIDA, Marco;
FILLARINI, Clemente; PIERPAOLI, Giuseppe. Fonti Francescane, III edizione, Editrici
Francescane, Padova, 2011.
PEREIRA ofm, Pe. CORREIA, José Antônio. Cord. Fontes Franciscanas. Santo António.
Legendas e Sermões. Editorial Franciscana. Braga. 2017.

87
PIEPER OFS, Lori. The Greatest of These is Love: The Life of St. Elizabeth of Hungary.
Second Revised Edition. New York. TAU Cross books and media, 2013.
SAURO, Frei Jacobo. Legenda Antoniana. 1316. Fontes Franciscanas in
https://www.capuchinhos.org/franciscanismo/santo-antonio-de-lisboa/santo-antonio-de-lisboa-o-
santo-de-todo-o-mundo acessado em 17/05/21.
VORAGINE, Jacobus de. The Golden Legend – Reading on the Saints. Princeton University
Press. 1993.
WOLF, Baxter Kenneth. The Life & Afterlife of St. Elizabeth of Hungary. Testimony from
Her Canonization Hearings. Oxford University Press. 2010

88
“MANDA-NOS PARA A VARA DE PORCOS”: RELIGIÃO E
SUBALTERNIDADE NA HISTÓRIA EM QUADRINHOS LAVAGEM

Gustavo Soldati Reis1

Resumo
O objeto de análise dessa comunicação é a História em Quadrinhos (HQ) Lavagem, do artista brasileiro Shiko.
Lavagem narra a história de uma jovem mulher religiosa, possivelmente evangélica, que mora com seu marido – um
criador de porcos – em um pequeno casebre de palafitas. O roteiro e desenho de Shiko, usando cores em preto e branco,
são riquíssimos: duro e incisivo ao mesclar as personagens com a força do ambiente, o artista paraibano constroi várias
camadas metanarrativas onde realidade e imaginação, medo e delírio formam um campo simbólico em torno do que pode
ser nomeado, hipoteticamente, por “práticas de subalternidade”. Assim, em que medida os discursos religiosos
representados na HQ constroem processos culturais que controlam o corpo social, principalmente o feminino, em nome
de poderes heterônomos (na HQ, os discursos em nome de Deus feitos por homens) que relegam a outra a um circuito
desumano e violento, a uma “lavagem”? A comunicação pretende contribuir, a partir de estudos de cultura visual em
Ciências da Religião (HIGUET, 2012; 2015) na interface com estudos decoloniais (VERGÈS, 2020), para o diálogo mais
profícuo com as HQs enquanto linguagem artística escrita e de predominância do visual.

Introdução
O texto é fruto de uma comunicação acadêmica apresentada, de forma online, no Grupo de
Trabalho “Religião e Cultura Audiovisual” no V Congresso Nacional de Ciência da Religião, da
Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Justifico a construção do objeto de pesquisa,
o que contribui para deixar mais claro alguns objetivos, da seguinte forma: primeiro, reconhecer que
as Histórias em Quadrinhos (HQs), enquanto linguagem artística, são legitimas produtoras de
processos culturais, ora reforçando representações sociais hegemônicas, notadamente fruto de
processos (neo)coloniais, ora criticando e resistindo a essas mesmas representações (VERGUEIRO,
2017, p. 12ss). Segundo, enquanto linguagem, as HQs são ambientes de produção de sentido que
transversalizam com outras linguagens, notadamente do mundo das artes. Conforme diz D. Barbieri
(2017, p. 18), linguagens não são meros instrumentos, mas meio-ambientes que habitamos e nos
habitam. Assim, nas HQs podemos perceber o quanto a religião está representada posto que, enquanto
uma linguagem própria, a religião intersecciona-se com o mundo das artes. Se a Ciência e/ou Ciências
da Religião tem dialogado, cada vez mais, com estudos de cultura visual (HIGUET, 2012, p. 69ss),
os Quadrinhos, como arte específica, ainda tem lugar diminuto nesse diálogo, destinado mais a outras
formas de arte como pinturas, esculturas e cinema.
Ora, as HQs, em seus mais diferentes gêneros, são amplamente produzidas, reproduzidas,
consumidas e ressignificadas no contexto brasileiro. Se a área de Ciência(s) da Religião tem um
amplo capital científico de análise do campo religioso brasileiro, importa olhar com mais atenção

1
Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo / UMESP. Professor Adjunto I da
Universidade do Estado do Pará / UEPA. Atua no Departamento de Filosofia e Ciências Sociais. É um dos líderes do
Grupo de Pesquisa ARTEMI – Arte, Religião e Memória, onde coordena a Linha de Pesquisa “Religião e Quadrinhos”.
E-mail de contato: gustavo.reis@uepa.br

89
para a presença de uma linguagem presente na construção desse campo, no caso, as artes
quadrinísticas. Para isso tenta contribuir esse texto. Por fim, não sem motivo, a HQ aqui cotejada é
produção de um artista brasileiro e toca em certa faceta do imaginário religioso nacional. Longe de
ser alvo de leituras preconceituosas e apressadas que reduzem as HQs a meras histórias infantis e
juvenis que alienam as “massas”, a eleição dessa HQ, além de valorizar a arte brasileira, é um belo
exemplo do que falamos anteriormente, ou seja, de como HQs são uma linguagem artística que relê,
criticamente, construções de dominação e processos de subalternização tendo, como caminho, a
religião. Não introduzirei aqui a relação entre problemas, hipóteses e objetivos, devido ao espaço
diminuto que tenho para a escrita desse texto. Essas relações estão afirmadas no resumo apresentado.
Portanto, sigamos para o desenvolvimento do texto.

A linguagem da HQ em seu percurso sígnico


Francisco José Souto Leite, o Shiko, nascido em Patos, na Paraíba, em 1976, é um quadrinista,
grafiteiro, roteirista, diretor de curta-metragens e ilustrador. Possui diversas HQs publicadas, tais
como “O Azul indiferente do Céu”, “Talvez seja mentira” e suas duas Graphic Novels mais recentes:
“Três Buracos” (2019) e “Carniça e a Blindagem Mística, Volume I” (2020). Embora tenha lançado
algumas de suas principais obras por selos editoriais já consagrados no mercado como, por exemplo,
a Graphic Novel “Piteco – Ingá”, pela MSP – Maurício de Souza Produções, notabilizou-se por uma
carreira na cena independente. A HQ, objeto de construção analítica nesse texto, trata-se de
“Lavagem” que é, originalmente, um Curta-Metragem produzido e dirigido pelo próprio Shiko em
2011. O curta teve a influência de um outro Curta-metragem apresentado como Introdução ao filme
“Um Homem Sério”, dos irmãos Coehn. A HQ foi lançada em 2015 pela Editora Mino.

Figura 1: Capa da Graphic Novel “Lavagem”. Fonte: SHIKO. Lavagem. São Paulo: Mino, 2015

Shiko foi influenciado, dentre outros, pelos quadrinhos de terror de Mozart Couto e os
experimentalismos entre regionalismo, ficção científica e cultura pop do artista recifense Watson
Portela em uma espécie de dialética entre o local/regional e o global nas HQs.
De forma muito sucinta, o roteiro de “Lavagem” aborda o protagonismo de uma jovem mulher
que vive com um homem em uma casa muito simples de palafitas, circundada pelo que parece ser um

90
manguezal. Frequentadora de uma Igreja, a mulher ressente-se da maior presença afetiva e
companheira de Omar, o homem com quem ela vive e que, segundo ela, “(…) só fala com os porco”
(SHIKO, 2015), em alusão à atividade do marido como criador de uma vara de porcos. Em uma noite
o casal recebe a visita de um pregador do Evangelho, provavelmente um pastor, alguém que a mulher
qualifica como “(…) um homem de Deus […] abençoado” (SHIKO, 2015). A partir daí as várias
camadas narrativas visuais entremeiam a fala do pastor à mulher, também a fala do pregador de um
culto evangélico televisivo sobre a importância da família e do casamento, em representações da
realidade fática e imaginária, sob certa postura impassível do marido. A narrativa culmina, motivada
pela fala das pregações e por tempos a fio de violências domésticas, no assassinato do homem
chamado Omar por sua jovem companheira que, ao cabo e ao fim, esquarteja-o e lança-o como
lavagem aos porcos. A leitora e o leitor são convidados, a todo o momento, a decidirem se a
personagem vive caminhos de fato ou se tudo é um caminho de catarse imaginária. Ou as duas coisas.
Os enquadramentos fechados, estilo “janela”, reforçam a ideia de “opressão” vivida pela
personagem. O roteiro pede requadros e sarjetas específicas. As ênfases na onomatopeia e no plano -
ao mesmo tempo fechado e expansivo das personagens – contribuem para dar a ideia de som e
movimento, de gravidade das situações de violência representadas. Lembremos que a HQ, de certa
forma, inspira-se na linguagem artística do cinema que lhe deu origem. A maneira como os quadros
e requadros são “dissolvidos” no todo da página, com o uso do preto e branco, borrões, fontes
tipográficas diferentes, um desenho menos “arte finalizado” e mais bruto, “rústico”, feroz, com ênfase
nas gestualidades e expressões faciais (inclusive dos porcos), mas sem desconsiderar a ambientação
(a casa e o chiqueiro) como “personagens”, conforme pode ser depreendido nas figuras 2 e 3. Essas
características são significadas porque se constituem em signos que performam a narrativa visual da
HQ em questão. O gênero que o próprio autor define Lavagem é o de terror. Veja o que ele próprio
afirma: “Então não tenho a pretensão que as pessoas se assustem com o Lavagem, mas se eu conseguir
tensionar a leitura, acho que cheguei no resultado máximo que poderia”2. Eu acrescentaria uma
dimensão trágica/poética. Seria um thriller de horror psicológico que faz uma severa crítica social?

2
Em entrevista ao portal “Vitralizado”. Disponível em: https://vitralizado.com/hq/papo-com-shiko/ Acesso em
16/05/2021.

91
Figuras 2 e 3: páginas da HQ que mostram a ambientação e o trânsito das personagens – mulher, Omar e os porcos no
devir-lavagem. Fonte: SHIKO. Lavagem. São Paulo: Mino, 2015.

Religião e práticas de subalternidade


Tomo aqui a noção de subalternidade, em consonância com a proposta geral do V Conacir –
“Religião e Subalternidade”, como categoria de análise a partir de considerações de G. Spivak e do
decolonialismo feminista de F. Vergès. É importante estabelecer que imagens – no caso, os desenhos
- são signos que fundam linguagens de tradução e representações de conflitos culturais e sociais. A
questão da subalternidade, por exemplo – que não é um termo, seguindo Spivak, para denotar
qualquer sujeito marginalizado - é que o subalterno é silenciado. Ele fala. Mas não é ouvido. Nesse
sentido, pelo menos dessa perspectiva dos estudos decoloniais e de subalternidade, a arte quadrinística
“não quer dar voz” às subalternas representadas. No caso de “Lavagem”, a mulher protagonista da
narrativa. O problema da representação – no duplo sentido de assumir um lugar outro e de prefigurar
uma performance – é reposicionado na mediação: eis a característica da tradução mencionada no
início do parágrafo para me referir a imagens. O subalterno é, para Spivak, destituído de qualquer
possibilidade de agenciamento. É nesse sentido que ele “não pode falar” (SPIVAK, 2010). Ao voltar
à HQ podemos problematizar: Em que medida a mulher fala ou, como subalternizada, não pode falar?
Quem fala por ela? A religião? E o que essa representação religiosa “fala” na narrativa visual da
imagética quadrinística? Seria a atitude da mulher, ainda que violenta, um percurso de liberdade que
a retira, em alguma medida, da subalternidade? Nesse caso, ela conseguiria algum poder de
agenciamento? Como essas questões são representadas na HQ em questão? Proponho algumas
hipóteses elencadas a seguir.

A. Representações do silenciamento como práticas de subalternidade


Eis o papel da personagem mulher nas palavras do próprio Shiko: “No Lavagem a personagem
mulher da história vai muito por aí, ela é uma personagem feminina oprimida em uma realidade
masculina e ela vai em busca de uma redenção, de uma libertação. O caminho que ela vai pra isso

92
não é simples, né? (risos) Não é óbvio, ela não tem um discurso feminista, mas ela tem um impulso
de libertação desse mundo em que vive”3.

Figura 4: A mulher representa o marido como a não-relação na conversa com o pastor, o “homem de Deus”. Fonte:
SHIKO. Lavagem. São Paulo: Mino, 2015.

Dificilmente a construção de uma personagem feminina será “feminista” em um autor/artista


homem que, primeiramente, não faz a experiência de reelaboração de suas vivências com o
feminismo, em uma sociedade machista e patriarcal. Mas vejamos a figura 4 acima. Ela mostra as
três personagens (Omar, a mulher e o “homem de Deus”) sentados à mesa do jantar. Essa mulher é
construída, na narrativa quadrinística, de forma ambígua: ao mesmo tempo em que ela fala, inclusive
ao exercer críticas ao “não falar” do marido (ou melhor, “só fala com os porcos”, como já
mencionado), por outro lado é produzida como subalterna uma vez que, reduzida a um sistema de
opressão que a objetifica no sentido da despessoalização - ao contrário do marido, ela nunca é
nomeada na HQ com nome próprio, exceto como “puta” e “rapariga” –, resta-lhe o silenciamento o
que, em termos da subalternidade, significa ser “reduzida a uma categoria monolítica e indiferenciada
quando, na realidade, todo sujeito é “irredutivelmente heterogêneo” (SPIVAK, 2010, p. 11). Em um
primeiro momento, ainda que a jovem mulher fale, sua fala precisa passar pela determinação e
comportamentos discursivos dos homens da narrativa, o pastor e o marido.

B. O (Des)controle do corpo feminino como crítica a uma religião subalternizadora


O lugar da religião enquanto vetor de práticas de subalternização e, portanto, de afirmações
hegemônicas do patriarcado, pode ser analisada nessa HQ. De fato a mulher é representada, muitas
vezes, na expressão corporal que transita entre a desconfiança e o medo, naquilo que F. Vergès chama
de “status de pessoa supérflua” ou corpos-húmus que alimenta – na linguagem da HQ, corpo-lavagem
– o sistema simbólico de escravização capitalista (VERGÈS, 2020, p. 20). Claro que Vergès se refere,

3
Em entrevista ao portal “Vitralizado”. Disponível em: https://vitralizado.com/hq/papo-com-shiko/ Acesso em
16/05/2021.

93
principalmente, às mulheres negras e racializadas no contexto europeu (principalmente a realidade
francófona). No caso da HQ, estamos a falar de homens e mulheres subalternizados no contexto
ficcionalizado de pobreza do nordeste brasileiro. Mas ambos os contextos se encontram, cada um a
seu modo, na estrutura colonialista. Todos os agentes religiosos na HQ, tanto o pastor que aparece a
pregar no programa televiso quanto o pastor que chega à casa do casal, são homens que instauram
poderes heterônomos, masculinizados e heteronormativos em nome de Deus: “não falo da relação
matrimonial da perspectiva cultural”, diz o pastor no Programa televisivo (SKIKO, 2015)4.
A performance sexual – hétero, no caso -, é emblemática na HQ: o marido desconfia que a
jovem esposa mantém relações extraconjugais e a repreende por isso, ao mesmo tempo que a reprime
/silencia em todo momento. Ignora-a. Prefere como diz a mulher, a companhia dos porcos: “Ele –
Omar – não gosta de mim. Só gosta de porco” (SHIKO, 2015), diz a mulher para o pastor. A figura
5 mostra a mulher replicando para o homem de Deus à mesa as cenas do programa pastoral televisivo.
Nesse momento, Shiko dá à mulher uma performance sutilmente erotizada: ainda que subalternizada
pelas palavras e performances do pastor televisivo (e, depois, pelo homem de Deus em sua casa), ela
tateia/caminha pelo seu próprio corpo, transformando o discurso religioso em vetor para o desejo, o
eros: “parece até Deus passando a mão em mim” (SHIKO, 2015). Essa discussão nos leva ao próximo
ponto.

Figura 5: Fala da Mulher na erótica divinizadora do corpo feminino como forma de acolher o afeto negado pelo
homem. Fonte: SHIKO. Lavagem. São Paulo: Mino, 2015.

C. Medo e delírio religiosos como práticas de subalternização


Afirmei, no item anterior, que Shiko produz uma narrativa visual, através dos desenhos, em
planos narrativos não lineares: a conjunção entre imaginação, delírio e factual se entrelaçam de forma
muito preponderante na HQ. Na figura 6 temos um exemplo disso: o fato do artista não trabalhar com

4
No curta-metragem que deu origem a HQ, as cenas do programa evangélico mostradas na TV são de um culto com a
pregação do pastor pentecostal da Assembleia de Deus “Vitória em Cristo”, Silas Malafaia.

94
sarjetas5 mais delimitadoras, reforça a conjunção afirmada: a fala do pastor incitando a mulher a reagir
a um possível ato de assassinato do marido representa a religião, por hipótese, em uma de suas arenas
preferidas: a dissolução entre o real e o imaginário mediados pelo delírio e o desejo.

Figura 6: as imagens quase sobrepostas entre a mulher, porcos e o “homem de deus”: narrativa dinâmica entre o desejo
e o medo. Fonte: SHIKO. Lavagem. São Paulo: Mino, 2015.

A religião, ao mesmo tempo em que reprime os corpos, realoca o desejo. No caso da HQ, a
liberdade desejada pela jovem mulher, oprimida por esse hegemonismo sexista que diviniza o
masculino, volta a ser controlada pelo discurso do medo e da desconfiança imposto pelo homem
religioso.
Shiko não problematiza a dimensão mais estrutural, essencial para entender o capitalismo
racista e sexista através, também, das artes. Afinal, tudo parece ser insinuado como algo que ocorre
na psique do indivíduo mulher. Por outro lado, parece que Shiko quer propor esse convite: deixar a
leitora e o leitor nessa fronteira entre o fático e o imaginado. Assim, na análise da HQ, depreende-se
que uma leitura pelo viés dos estudos de subalternidade e decolonialidade (pelo menos a modo de
Vèrges), a religião, tal como representada na HQ, é indutora de violência quando não
interseccionalizada com outras dimensões da vida social. O “homem de Deus” representa essa
indução: leva a mulher a romper com certa lógica de violência (a dominação do marido – o “não
crente” que não tem ouvidos para Deus), mas à custa da manutenção da violência: a mulher mata o
marido, esquarteja e lança seus pedaços aos porcos. Mas, justamente, esse não é o problema de fazer
uma redução da análise à psique do indivíduo? O fato de a mulher agir de forma violenta reforça o
estigma de que tudo se “resolve” no plano da catarse individual, o que só faz perpetrar o circuito da
violência uma vez que pode, no plano da conjunção entre a realidade e delírio, reforçar outros
estigmas às mulheres como “loucas” e “desvairadas”. Até mesmo a possível justificativa de que a
mulher agiu sob o impulso, a tentação, a provocação de desejos “divinos” do líder religioso, cria uma
vitimização deslocada da realidade que só reforça a dominação masculina: seja para o bem ou para o
mal a mulher só é protagonista como fala segunda a uma fala primeira masculina. Claro que a HQ

5
Apenas uma observação: na teoria das histórias em quadrinhos as sarjetas são signos, em diferentes estilos e formas,
que delimitam o espaço entre um quadro com o desenho e outros quadros na sequência narrativa.

95
convida a problematizar um tema fundamental em sociedades com forte história colonial: a violência
doméstica contra a mulher e seus fatores religiosos. Isso não é de menor importância. Por isso, ao
fazer a crítica, é possível pensar na protagonista fazendo o exercício de que variáveis, para além do
psiquismo individual, estão representadas a fim de fazermos a intersecção e compreender os modos
de construção social e simbólica que sustentam as múltiplas violências mostradas na HQs.

Considerações finais
Vários outros temas podem ser elencados para a devida problematização. A HQ é muito rica
nesse sentido. Mas nesse breve espaço textual é preciso encaminhar as considerações finais. O título
atribuído a esse texto é uma provocação intertextual à Bíblia, no Evangelho de Marcos 5,11-13, onde
a personagem Jesus expulsa uma legião de “espíritos imundos” de uma pessoa e, em seguida, esses
mesmos “espíritos” possuem os corpos de porcos que, alucinados, precipitam-se no abismo. Na
primeira página da HQ a narrativa começa com a mulher dizendo ao seu marido que vai à Igreja. Na
última página, ao ser perguntada pelo barqueiro se iria à Igreja, a jovem (repito, nunca é nomeada no
texto) responde: “Não”. A narrativa quadrinística, toda ela é uma “lavagem”. Aqui o termo ganha
força metafórica muito grande: em um sistema neocolonial, onde práticas religiosas, muitas vezes,
reforçam a dominação patriarcal, transformam as mulheres, em suas corporalidades, em “lavagem”
para alimentar os “porcos” do sistema: elas são construídas como “sujas”, “resto”, sendo-lhes
impostas um devir onde o que sobra é o “chiqueiro”, o não-lugar. Por outro lado, “lavagem” pode
significar o horizonte de mudança, de resistência e despojamento/limpeza dessas situações materiais
e simbólicas de dominação.
A HQ joga com elementos sígnicos que permitem situar a leitora e leitor nessas ambiguidades.
A narrativa existencial e social da jovem mulher é uma “lavagem”: ela faz o seu “devir-porco”, ou
seja, diante de contextos de subalternidade e de neocolonialismos racistas, sexistas e patriarcais quem,
de fato, nos possui? Quem nos converte em “lavagens”, principalmente quando se trata de mulheres
negras e empobrecidas desse país? Será que a “legião de demônios/espíritos imundos” não é a própria
religião organizada a nos possuir e subalternizar? Em situações de profunda opressão e violência
sofrida não é melhor o risco de se lançar no abismo do que a “segurança” do planalto
religioso/colonial? Essas são algumas inquietações que provocam a continuidade das pesquisas como
tema das relações entre representações religiosas e histórias em quadrinhos.

Referências Bibliográficas
BARBIERI, Daniele. As Linguagens dos Quadrinhos. São Paulo: Peirópolis, 2017.
BÍBLIA SAGRADA. VV.AA. São Paulo: Paulinas, 1985.
HIGUET, Etienne A. Interpretação das imagens na teologia e ciências da religião. In:
NOGUEIRA, Paulo A. de S. (Org.) Linguagens da Religião. Desafios, métodos e conceitos centrais.
São Paulo: ANPTECRE/Paulinas, 2012.

96
SHIKO. Lavagem. São Paulo: Mino, 2015.
SPIVAK, Gayatri C. Pode o Subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.
VERGÈS, Françoise. Um Feminismo Decolonial. São Paulo: Ubu, 2020.
VERGUEIRO, Waldomiro. Pesquisa Acadêmica em Histórias em Quadrinhos. São Paulo:
Criativo, 2017.

97
PUNKS, PROTESTANTES E HARE KRISHNAS: INFLUÊNCIAS E
APROXIMAÇÕES RELIGIOSAS ATRAVÉS DA SUBCULTURA STRAIGHT
EDGE

Henrique Brambila Conti1

Resumo:
Esta pesquisa tem como objetivo desenvolver uma investigação e uma reflexão sobre moral religiosa, música,
contracultura e contestação política, estudando a vertente do movimento Punk chamada “Straight Edge”. Surgido na
década de 1980, também nos Estados Unidos, o “Straight Edge” (ou sXe), além de manter a postura política, a rebeldia e
a contestação advindas do punk, passa a questionar a autodestruição do corpo e da mente dos e das punks em relação ao
uso de drogas líticas e ilícitas, e ao sexo promíscuo. A partir de suas condutas principais, como a abstinência de drogas
lícitas e ilícitas, pretende-se criar um paralelo de possíveis ligações do surgimento do Straight Edge com a moral
protestante e o período que ficou conhecido como "guerra contra as drogas” nos Estados Unidos. Já sob a óptica brasileira
do Straight Edge, pretende-se analisar as relações que se deram com os Hare Krishnas aqui no Brasil. As relações
corporais no que diz respeito à abstinência e ao sexo promíscuo é o que conduzirá as reflexões e análises. A pesquisa
possui um caráter qualitativo de revisão bibliográfica, buscando autores e autoras que possam contribuir para melhorar
seu desenvolvimento.
Palavras-chave: Straight Edge. Protestantismo. Hare Krishna. Abstinência e Corpo.

Introdução
Para realizar tal pesquisa, que ainda está em desenvolvimento, é utilizado o método
bibliográfico exploratório, que, de acordo com Gil (2010), é desenvolvido com base em materiais já
elaborados, como artigos científicos e livros, por exemplo. Para além de materiais acadêmicos como
artigos, livros, teses, monografias e dissertações, são utilizados alguns materiais de fontes primárias
como músicas, documentários e fotografias. A pesquisa procura contribuir para a construção do
estudo sobre o movimento straight edge no país, além de buscar respostas sobre como e em que
medida o protestantismo e o hare krishna se aproximam e influenciam o movimento straight edge
tanto no cenário norte-americano, quanto no cenário brasileiro.

Do punk ao straight edge


O punk é conhecido mundialmente por ser uma cultura juvenil, politizada e contestadora, que
sempre está envolvida em questões sociais. Alguns estereótipos o perseguem, sobretudo por culpa da
mídia. Isso é evidente em O’Hara (2005), Oliveira (2015) e Gangz (2019), que dedicam capítulos e
tópicos em seus livros justamente sobre a temática. Os estereótipos em volta dos punks rondam
sempre em torno da violência, do visual, do comportamento, do novo modo de se fazer música e sobre
o uso das drogas. O excesso do uso de drogas lícitas ou ilícitas, juntamente do seu jeito de fazer
música, combinado com sua estética os tornavam verdadeiros Outsiders, no sentido mais abrangente

1
Graduado em Ciências Sociais (Licenciatura) e graduando em Ciências Sociais do 8° semestre (Bacharelado) pela
Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-CAMPINAS). Membro do grupo de pesquisa: Religião, Linguagem
e Cultura (RELINC). Email: rick.conti.hc@gmail.com

98
ao qual Becker definiu como “quando uma regra é imposta, a pessoa que presumivelmente a infringiu
pode ser vista como um tipo especial, alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras
estipuladas pelo grupo. Essa pessoa é encarada como um outsider” (BECKER, 2019, p.17).
É justamente por conta do uso exagerado de drogas que em meados de 1980 surge em
Washington D.C o movimento straight edge, contrariando todo o estereótipo acima. Os straight edges
passam a questionar a autodestruição dos punks, e se opõem ao uso de qualquer tipo de drogas, tanto
lícitas quanto ilícitas, e criam questionamentos em relação ao sexo promíscuo, que era praticado sem
tabus entre os punks da época. Nas palavras de Jhessica Reia:
O straight edge (ou sXE) é uma subcultura que surgiu no início dos anos 1980 nos Estados
Unidos, em contraposição ao niilismo e aos excessos da cena hardcore punk do período.
Buscando a sobriedade a partir da abstinência do consumo de álcool e drogas, consegue, há
mais de três décadas, combinar som agressivo e danças violentas com militância política.
Além da sobriedade, são valores comuns na subcultura straightedge: o ativismo, o
veganismo/vegetarianismo e o sexo responsável. (REIA, 2013, p. 84).

Assim como a maioria das culturas juvenis ou movimentos culturais e sociais, o straight edge
também possui um símbolo oficial. Este era um “X” colocado nas costas da mão. O símbolo foi
escolhido pois, de acordo com Andersen (2015), em Washington D.C, onde o movimento surge, o
“X” era marcado na mão de menores de idade que frequentavam shows punks em bares, para que
assim não fossem vendidas bebidas alcoólicas a eles. Ao ver isso os straight edges passaram a utilizar
aquilo para além da sua principal razão, agora eles marcam o “X” nas mãos não apenas por serem
menores e não poderem consumir bebidas alcoólicas, mas por escolherem não beber.

O protestantismo americano e o surgimento do movimento straight edge.


O cenário vivido por esses jovens era o de um país arraigado a uma moral protestante
hegemônica, de um período de guerra contra drogas e de um conservadorismo político através da
nova administração de Ronald Reagan. Até o presente momento, foi possível identificar, através das
pesquisas, que existem aproximações entre protestantismo e straight edge, porém são vistas e
explicadas de diferentes maneiras por dois autores. Para Haenfler (2004; 2006) existe uma influência
de uma nova esquerda de classe média, a “New Left middle-class”, que possuía certo radicalismo
orientado por questões morais ou de natureza humanitária, que provinha de uma herança cristã,
sobretudo protestante - isso influenciou principalmente os jovens straight edges de Los Angeles, New
York e Connecticut.
In particular, sXe’s emphasis on clean living, sexual purity, lifetime commitment, and
meaningful community was reminiscent of youth evangelical movements, while the focus on
self-control suggested Puritanical roots. In addition to these conservative influences, sXe
was, in many ways, a continuation of New Left middle-class radicalism oriented toward
“issues of a moral or humanitarian nature. (HAENFLER, 2004, p.416).

Em uma segunda leitura da relação entre os jovens straight edges e o protestantismo,


Fernandes (2015) nos mostra que, apesar do straight edge ter surgido do punk, o cenário

99
estadunidense de guerra contra as drogas e de uma moralidade protestante e conservadora irá
influenciar o surgimento do straight edge. Para ele os straight edges vão seguir todas as características
do protestantismo. Atrelado ao pensamento Foucaultiano, Fernandes (2015) evidencia que o
autocontrole, palavra chave para os jovens straight edges, diz muito sobre a influência do
protestantismo sobre o grupo. O contexto histórico e político dos Estados Unidos para ele é
fundamental para o surgimento do grupo, visto que eles se sentem encorajados pelo cenário. Para
validar sua linha de raciocínio ele se utiliza de capas e letras de músicas das bandas straight edges e
de casos em que os straight edges estão envolvidos, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, com
o propósito de fazer uma generalização acerca dos comportamentos do grupo.
Até o presente momento da pesquisa é possível notar que há semelhanças e diferenças nas
linhas de raciocínios dos autores, afinal ambos constatam que há uma influência protestante sobre o
movimento straight edge, porém é notória uma diferença entre os autores.
Para Fernandes (2015) essa influência é direta e determina como o grupo age e se comporta,
atrelando-o a um caráter religioso, apesar de nem todos os straight edges seguirem tal religião. Para
Haenfler (2004; 2006) a influência do protestantismo sobre o straight edge não seria tão determinante
assim como Fernandes acredita. Para este autor a forma de agir e de se comportar dos straight edges
mostra diferenças de comportamento e ideais em comparação aos protestantes.
A pesquisa tinha foco apenas nos Estados Unidos, mas, através da revisão bibliográfica feita,
se destacou por intermédio de Bittencourt (2016) que há diferenças entre os straight edges brasileiros
e norte-americanos, principalmente no modo de agir e se comportar. Com isso avaliou-se a
necessidade de analisar se existiria alguma influência ou aproximação religiosa entre os straight edges
brasileiros que fosse diferente em relação aos straight edges norte-americanos.

As ligações entre o straight edge e o Hare Krishna no Brasil.


Já no Brasil o straight edge chega ao início dos anos de 1990 e se difunde, de acordo com
Bittencourt (2011), juntamente com a chegada da internet nos lares brasileiros - outro grande meio
de importante divulgação do movimento, além de revistas e CDs. A vertente brasileira do movimento
surge a partir de coletivos anarquistas como a Juli (Juventude Libertária), mas, ainda de acordo com
Bittencourt (2017), é depois da passagem da banda Shelter em 1996 que o straight edge passa a ser
conhecido fora dos nichos aos quais pertencia. A banda norte-americana teve muita divulgação nas
rádios e programas musicais de TV. Uma de suas características principais além de ser uma banda
straight edge é a de que todos os membros da banda eram devotos do hare krishna.
Devido a essa característica da banda, muitos dos straight edges brasileiros se aproximaram
da religião, fazendo com que ela fosse uma aliada. O marco do straight edge no Brasil era o festival
Verdurada que, de acordo com Reia (2013), surge em 1996 e reúnem shows, palestras, vendas de

100
produtos livres de crueldade animal, exposições e um jantar gratuito no final do evento produzido por
um grupo de hare krishnas.
Para além das aproximações vistas até aqui, ficou evidente até o presente momento da
pesquisa que a relação entre jovens straight edges e os jovens hare krishnas, ou vice e versa. A
aproximação acontece em sua maioria por parte de uma questão de identificação - ambos
compartilham princípios básicos que são semelhantes: os straight edges levam como regra a
sobriedade em relação a qualquer uso de drogas, assim como os hare krishnas. Outro ponto seria o
do vegetarianismo/veganismo que desde muito cedo já era presente dentro da cena 2 straight edge -
apesar de não fazer parte dos princípios básicos, a grande maioria dos straight edges brasileiros são
adeptos às práticas veganas e vegetarianas.
Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos
inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe
sempre algo ''imaginário" ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre
incompleta, está sempre "em processo", sempre "sendo formada"... Assim, em vez de falar
da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um
processo em andamento. A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está
dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é "preenchida" a partir de
nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros. (HALL,
2002. pp. 28-29).

Ficou evidente na pesquisa que a partir da influência da banda Shelter a aproximação entre
straight edge e hare krishna aconteceria através de um processo de identificação por ambas as partes,
resultando até em trabalhos compartilhados, como a distribuição de alimentos veganos, que acontecia
ao final das Verduras. Para uns, os straight edges, isso significava uma militância em prol de sua
causa e ideais e para outros, os hare krishnas, isso significava cumprir com seus princípios religiosos.
Notória a complexidade do straight edge que ao mesmo tempo reúne influências religiosas do
protestantismo e do hare krishna, além de dialogar com ideais políticos anticlericais como é o caso
do anarquismo. Essa complexidade despertou o interesse e a presente pesquisa tem como objetivo
analisar as influências e aproximações religiosas dentro do movimento straight edge.

Referências Bibliográficas
ANDERSEN, Mark. Dance of Days: duas décadas de punk na capital dos EUA. / Mark
Andersen e Mark Jenkins; tradução Marcelo Viegas e Ana Carolina Odinique. São Paulo: Edições
Ideal, 2015.
BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.
BITTENCOURT, João. A etnocartografia como experimento antropológico ou da arte de
mapear territórios subjetivos. In: 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, 2016, João Pessoa. Anais
da 30ª RBA, 2016.

2
Definição retirada do glossário da tese de doutorado de João B. M. Bittencourt. “Cena: Expressão que designa o espaço
de circulação dos punks. Ela é formada pelas casas de shows, lojas de discos, distribuidoras, fanzines, enfim, todos os
elementos que compreendem a chamada “cultura punk”.” (BITTENCOURT, 2011, p. 313).

101
BITTENCOURT, João. Nas Encruzilhadas da Rebeldia: Uma Etnocartografia dos
Straightedges em São Paulo. 2011. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – IFCH, Unicamp,
Campinas, 2011.
BITTENCOURT, João. Negociando condutas: estilo de vida Straightedge no Brasil e os
discursos sobre política e sexualidade. Cadernos de Arte e Antropologia, v. 6, p. 53-69, 2017.
BITTENCOURT, João. Tatuando territórios: sobre a produção das marcas corporais no
universo straightedge. In: XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais, 2011, Salvador.
Anais eletrônicos do XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais, 2011.
FERNANDES, Walisson. Straight edge: uma genealogia das condutas na encruzilhada do
punk. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2015.
GANGZ, Billy. My way: A periferia de moicano. São Paulo: Reginaldo Ferreira da Silva
Produções, 2019. – (Selo Povo; 8).
GIL, Antonio. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas, 6ª Edição, 2017.
HAENFLER, Ross. Rethinking Subcultural Resistance: core values of the straightedge
movement. In: Journal of contemporary ethnography, vol.33, nº4, 2004.
HAENFLER, Ross. Straight Edge: Clean-Living Youth, Hardcore Punk, and Social Change.
New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2006.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
O’HARA, Craig. A filosofia do punk: mais que barulho. São Paulo: Radical livros, 2005.
OLIVEIRA, Antônio. Os Fanzines contam uma história sobre punks. São Paulo: Rizoma
Editorial, 2015.
REIA, Jhessica. DIY or DIE! Reflexões sobre a busca por autonomia na produção musical
em torno da subcultura straightedge. In: XXXVI Congresso Brasileiro de Ciência da Comunicação,
2013, Manaus. XXXVI Congresso Brasileiro de Ciência da Comunicação, 2013.
REIA, Jhessica. Hardcore, sobriedade e direitos dos animais: reflexões sobre as relações
entre produção musical, veganismo e abstinência na subcultura straightedge. IN: 9° Encontro
Internacional de Música e Mídia, 2013.

102
O HOMEM POR TRÁS DO PSEUDÔNIMO E A INFLUÊNCIA DA
RELIGIÃO NA PRODUÇÃO LITERÁRIA: COMO A UTILIZAÇÃO DA
ARTE PERMITE ANALISAR A INTER-RELAÇÃO DA CULTURA COM A
RELIGIÃO

Robson Jorge do Rosário Rangel1

Resumo
O presente trabalho tem por objetivo o desvelar do homem Hippolyte Léon Denizard Rivail que é apresentado
como protagonista da biografia “Allan Kardec: o educador e o codificador” de Zêus Wantuil e Francisco Thiesen, bem
como da cinebiografia “Kardec: a história por trás do nome”, filme de Wagner de Assis. Propõe-se identificar, portanto,
com a dimensão religiosa se articula com outras esferas sociais, bem como as representações da biografia e da
cinebiografia desta personalidade mundialmente conhecida (e como o viés religioso o acompanhou desde sua educação à
sua formação profissional), constituiu um verdadeiro diálogo trans-religioso na europa do século XIX e cujos reflexos
repercutem atualmente, e, de forma cada vez acentuada num país tão religiosamente diversificado como o Brasil. Dentre
as diferentes modalidades da cultura visual, vislumbradas a partir do ponto de vista das artes, destacam-se neste mister a
literatura e o cinema. Pela representatividade adquirida no cenário sociocultural brasileiro, são uma das matrizes
essenciais na conformação dos enredos audiovisuais. Destarte, pelo presente texto será possível verificar um pouco mais
da história do homem por trás da obra e do pseudônimo que o consagrou mundialmente conhecido, por meio de sua
análise crítica e o método da experimentação utilizado.
Palavras-chave: Biografia. Cinebiografia. Diálogo trans-religioso. Audiovisual.

Introdução
O presente trabalho tem por objetivo o desvelar do homem Hippolyte Léon Denizard Rivail
(1804-1869) que é apresentado como protagonista da biografia “Allan Kardec: o educador e o
codificador” (2019) de Zêus Wantuil e Francisco Thiesen, bem como da cinebiografia “Kardec: a
história por trás do nome” (2019), filme de Wagner de Assis.
Propõe-se identificar como a dimensão religiosa ou o religioso se articulam com as outras
esferas sociais (aqui, mais detidamente com a literatura e com a arte), pois conforme nos ensina a
Professora Elisa: “o que se observa da religião, por conseguinte, é como se manifesta, quais são e
como construídos os seus discursos (mitos e teologias), quem são as suas personagens e atores sociais
(tipos de lideranças, adeptos e processos de adesão).” (RODRIGUES, 2020, p. 84).
Um competente profissional de educação formal dos homens, o renomado Professor
Hippolyte Léon Denizard Rivail abdicou de sua reputação, construída com brilhantismo na area da
educação e assumiu (no anonimato de desconhecido pseudônimo) a tarefa de codificação da Doutrina
dos Espíritos.
Utilizando-se do método da experimentação, evitou formular teorias preconcebidas,
observando atentamente, comparando, deduzindo as consequências, dos efeitos procurando remontar

1
Palestrante. Advogado. Pós-graduado em Direito Constitucional com extensão pela Universidade de Santiago de
Compostela (Espanha). Graduando em licenciatura de Ciência da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF). Atuação em projetos de monitoria (Departamento de Ciência da Religião) e de extensão (Faculdade de Educação)
na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: robsonjr.rangel@gmail.com

103
às causas pelo encadeamento lógico dos fatos, não admitindo como válida uma explicação, senão
quando ela podia resolver todas as dificuldades da questão.
Destarte, e, pelas linhas vindouras será possível verificar um pouco mais da história do homem
por trás da obra e do nome que o consagrou mundialmente conhecido, pelo que será exposto como a
partir de sua educação e posterior formação enquanto professor e pedagogo, a sua análise crítica e
método da experimentação permitiram-no atuar como tradutor, publicar obras voltadas à educação
francesa e em momento posterior codificar a Doutrina dos Espíritos, como ficou conhecida.

Nascimento e formação do jovem Rivail


Nascido em Lyon, às 19 horas do dia 3 de outubro de 1804, descendente de antiga família
lionesa, católica, de nobres e dignas tradições, foram seus pais Jean-Baptiste Antoine Rivail, homem
de leis, Juiz, e Jeanne Louise Duhamel, residentes à rua Sala, n. 76.
Destacam-se as palavras contidas na obra biográfica de Wantuil e Thiesen (2019, p. 140):
“Bem cedo, o menino se revelou altamente inteligente e perspicaz observador, sempre compenetrado
em seus deveres e responsabilidades, denotando franca inclinação para as ciências e para os assuntos
filosóficos”.
Educado na Escola de Pestalozzi, em Yverdun (Suíça), era dotado de notável inteligência e
profundamente atraído para o ensino, pelo seu caráter e pelas suas aptidões especiais, sendo nesta
escola que lhe desabrocharam as ideias que mais tarde o colocariam na classe dos homens
progressistas e dos livres-pensadores.
Homem do século XIX, século de profundas e agitadas discussões filosóficas, século em que
se hipertrofiou muito o espírito crítico, “Hippolyte teve uma formação humana muito propensa ao
raciocínio analítico e filosófico”. (AMORIM, 1981, p. 25-26).
Uma vez concluídos seus estudos em Yverdon, Rivail voltou para a França, onde começou a
exercer o magistério. Conhecendo a fundo a língua alemã, em suas horas vagas se dedicava à tradução
de obras. Traduzia para a Alemanha diferentes obras de educação e de moral, e, o que é muito
característico, as obras de Fénelon, que o tinham seduzido de modo particular.
O seu primeiro livro, assinado por H.-L.-D. Rivail, foi relacionado na Bibliographie de la
France em 1º de fevereiro de 1823 e em 6 de dezembro de 1823, a Bibliographie de la France
registrava o aparecimento do “COURS pratique et théorique D’ARITHMÉTIQUE d’aprês la méthode
de Pestalozzi, avec des modifications” — par H.-L.-D. Rivail, disciple de Pestalozzi.
O Cours d’Arithmétique constituiu a primeira obra de cunho pedagógico e a primeira entre
todas as demais dadas ao público por Rivail. Entre as suas numerosas obras de educação, citamos as
seguintes:

104
Plano proposto para melhoramento da Instrução pública (1828); Curso prático e teórico de
Aritmética, segundo o método de Pestalozzi, para uso dos professores e das mães de família (1823);
Gramática francesa clássica (1831); Ditados especiais sobre as dificuldades ortográficas (1849),
obra muito apreciada na época do seu aparecimento e da qual ainda recentemente eram toradas novas
edições.
Diversas de suas obras foram adotadas pela Universidade de França, e vendendo-se
absolutamente, pôde o Sr. Rivail conseguir, graças a elas e ao seu assíduo trabalho, uma modesta
abastança. “Seu nome era conhecido e respeitado, seus trabalhos justamente apreciados, muito antes
que ele imortalizasse o nome de Allan Kardec”. (KARDEC, 2012, p. 14).

O professor Rivail toma conhecimento do fenômeno das mesas girantes e dançantes


Em 1853, a Europa inteira tinha as atenções gerais convergidas para o fenômeno das chamadas
“mesas girantes e dançantes”, considerado este o maior fenômeno do século. O referido fenômeno
era na verdade uma grande recreação da aristocracia parisiense, um passatempo como outro qualquer.
Foi em 1854 que o Sr. Rivail ouviu pela primeira vez falar nas mesas girantes, aplicando a
essa nova ciência (as mesas girantes) os seus primeiros estudos sérios em Espiritismo, o método da
experimentação.
Ele observava atentamente, comparava, deduzia as consequências, dos efeitos procurando
remontar às causas pelo encadeamento lógico dos fatos, não admitindo como válida uma explicação,
senão quando ela podia resolver todas as dificuldades da questão.
Assim, dá-se que um dos primeiros resultados das suas observações neste tocante foi que os
Espíritos, não sendo senão as almas dos homens, não tinham a soberana sabedoria, nem a soberana
ciência; que o seu saber era limitado ao seu grau de adiantamento, e que a sua opinião não tinha senão
o valor de uma opinião pessoal.
Foi então neste momento de profunda observação e estudo dos fatos relacionados aos Espíritos
que uma noite, seu espírito protetor “Z.,” deu-lhe por um médium uma comunicação na qual lhe dizia,
tê-lo conhecido em uma precedente existência, quando ao tempo dos druidas, viviam juntos nas
Gálias. Ele se chamava então ALLAN KARDEC.
Todos os biógrafos de Kardec são unânimes quanto a esse seu procedimento básico.

A Codificação espírita feita por Kardec


Uma vez posta em foco à questão das manifestações dos Espíritos, Allan Kardec se entregou
a observações perseverantes sobre esse fenômeno, cogitando principalmente de lhe deduzir as
consequências filosóficas. Entreviu, desde logo, o princípio das novas leis naturais: as que regem as
relações entre o mundo visível e o mundo invisível.

105
Suas obras principais sobre esta matéria são: O Livro dos Espíritos (referente à parte filosófica,
e cuja primeira edição apareceu em 18/04/1857); O Livro dos Médiuns, (relativa a parte experimental
e científica – janeiro de 1861); O Evangelho Segundo o Espiritismo (concernente à parte moral – abril
de 1864); O Céu e o Inferno, ou A Justiça de Deus segundo o Espiritismo (agosto de 1865); A Gênese,
os Milagres e as Predições (janeiro de 1868); A Revista Espírita – jornal de estudos psicológicos,
periódico mensal começado a 1º de janeiro de 1858.

O Auto de Fé de Barcelona
Uma verdadeira “cruzada” foi empreendida contra as publicações de Allan Kardec,
oportunidade em que se verifica grafado na história verdadeiro ato de violência em céu aberto, pois,
com o surgimento de O livro dos Médiuns (1861), há-se de admitir, ocorreu um fato histórico dos
mais relevantes para a Humanidade.
O bispo católico de Barcelona, Antônio Palau y Termens, o levaria literalmente à fogueira,
com outras obras espíritas, na manhã do dia 9 de outubro de 1861, em episódio que passaria à história
como o Auto de Fé de Barcelona. E o Tribunal do Santo Ofício, da Igreja Católica, em decreto de 20
de abril de 1864, o incluiria no seu Index Librorum Prohibitorum, ao lado da Revista Espírita, de O
espiritismo na sua expressão mais simples e de O livro dos espíritos.
Este fato histórico está retratado na cinebiografia do professor e pedagogo, filme intitulado de
“Kardec” (2019), cuja inspiração advém de outra biografia de Kardec, o livro “Kardec: A Biografia”,
do jornalista Marcel Souto Maior (2013).

Considerações finais
O presente trabalho propõe-se identificar como a dimensão religiosa se articula com outras
esferas sociais, vislumbradas a partir do ponto de vista das artes, destacando neste mister a literatura
e o cinema. Pela representatividade adquirida no cenário sociocultural brasileiro, é uma das matrizes
essenciais na conformação dos enredos audiovisuais.
Destarte, pela biografia e cinebiografia analisadas, verificou-se que Allan Kardec se mostrou
ao longo de sua vida um trabalhador infatigável.
De respeitado professor cujas obras voltadas à educação se mostraram importantes para o
ensino francês, atuou, ainda, como brilhante pesquisador, sendo que pelo método da experimentação
analisou acuradamente o novo fenômeno que tomou conta dos salões parisienses do século XIX.
A biografia pesquisada mostrou-nos, ainda, que desde longos anos, sofria o Sr. Rivail de uma
enfermidade do coração que só poderia ser combatida por meio de repouso intelectual e pequena
atividade material.

106
Desta forma, a máquina física do professor e codificador, após longo período de dedicado ao
seu trabalho sucumbiu aos 31 de março de 1869.
Sem crucifixo ou padre, seu comboio fúnebre foi acompanhado por milhares de pessoas.
Teve o corpo incinerado, ganhou um discurso de seu amigo Flamarion e, um ano depois, um
dólmen foi colocado no lugar, onde suas cinzas repousaram: “Nascer, morrer, renascer e
progredir sempre, essa é a lei”. (DEL PRIORE, 2014, p. 59).

Referências Bibliográficas
AMORIM, Deolindo. Allan Kardec. 4. ed. Juiz de Fora: Instituto Maria e Instituto de Cultura
Espírita de Juiz de Fora, 1981, p. 25-26.
DEL PRIORE, Mary. Do outro lado. 1. ed. São Paulo: Planeta, 2014.
KARDEC, Allan. Obras Póstumas. Tradução de Guillon Ribeiro. 40. ed. Rio de Janeiro:
Federação Espírita Brasileira, 2007, p. 15.
KARDEC, A história por trás do nome. Direção de Wagner de Assis. Rio de Janeiro:
Conspiração Filmes, 2019. (110 min.).
KARDEC, Allan. O que é o espiritismo: Noções elementares do mundo invisível, pelas
manifestações dos Espíritos, com o resumo dos princípios da Doutrina Espírita e as principais
objeções que podem ser apresentadas. 1. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2012, p.
15.
RODRIGUES, E. Ensino Religioso: um campo de aplicação da Ciência da Religião.
HORIZONTE - Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 18, n. 55, p. 77, 30 abr.
2020. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/22257. Acesso
em 09 mar. 2021.
SCHUBERT, Suely Caldas. Mediunidade: caminho para ser feliz. São Paulo: Casa Editora
Espírita “Pierre – Paul Didier”, 1999, p. 131.
WANTUIL, Zêus; THIESE, Francisco. In: WANTUIL, Zêus. (Org.). Allan Kardec: o
Educador e o Codificador. 4. ed. 1. Imp. Brasília: Federação Espírita Brasileira, 2019.

107
Coordenação
André Yuri Gomes Abijaudi (UFJF)
andreyuri7@hotmail.com
Felipe de Queiroz Souto (UFJF)
felipeqsouto@gmail.com

Rondinele Laurindo Felipe (UFJF)


rondinelefelipe17@gmail.com

Ementa
A religião como conceito e categoria de análise científica é originária do período moderno.
Mesmo assim, ela ainda se constitui como um conceito insuperável para análise das mais variadas
dimensões da vida humana e carrega consigo origens etimológicas que nos dão fundamentos para
estudá-la criticamente como produto da modernidade. Além disso, devido à constituição
interdisciplinar da área de Ciência da Religião – inclusive com diferentes nomenclaturas em uso no
Brasil – não se tem uma abordagem metodológica unívoca da religião. Geralmente o pesquisador se
vale de uma teoria da religião que funcione em sua análise a partir de determinados objetivos,
demandas e da lógica interna de seu objeto de estudo. O que parece consenso, é que o termo “religião”
busca designar uma área específica da vida humana – cujas funções podem ser as mais variadas – e
que pode ser analisada de diferentes perspectivas e metodologias. Em virtude disso, o debate e o
confronto entre diferentes conceitos e teorias da religião pode contribuir para se pensar o papel da
religião. Diante disso, este GT se propõe não apenas a discutir os diversos conceitos de religião
existentes na área, mas principalmente as questões teórico-metodológicas envolvidas na compreensão
do fenômeno religioso, analisando os elementos fundamentais que constituem o desenvolvimento das
teorias da religião. Essas concepções são problematizadas do ponto de vista epistemológico,
sistemático ou empírico, considerando diferentes perspectivas, períodos históricos, tendências,
autoras e autores e interfaces da religião (como as artes, a política, a economia etc.) e outras
abordagens que se propõe a discutir o tema.
Palavras-Chave: Teorias da religião. Ciência da religião. Hermenêutica da religião. Conceito
de religião. Sentido da religião.

108
RENÉ GIRARD E O BODE EXPIATÓRIO: A CRUCIFICAÇÃO DE JESUS
CRISTO

Bianca Vicêncio Leis1

Resumo
René Girard, intelectual francês do século XX, dedicou suas pesquisas em compreender as relações humanas e
a interpretar mitos bíblicos e gregos se utilizando do método antropológico, produzindo obras em contexto com a
antropologia da violência e com o simbolismo religioso. Um dos principais mitos estudados pelo francês foi o mito da
Paixão de Cristo, demonstrando como Jesus se tornou bode expiatório e revelou aos humanos o mecanismo da violência.
A partir disso, o objetivo da comunicação em tela é apresentar, através do método bibliográfico de caráter qualitativo,
como Girard estabelece a relação entre o mecanismo do bode expiatório e o mito da Paixão e como Jesus revela aos
humanos o ciclo da violência ao se inserir nos moldes de Satanás. Será Jesus, para o pensador, o messias que corrompe
os moldes humanos e revela o mecanismo aos quais todos os humanos estão presos.

Introdução
O antropólogo René Girard se dedicou em suas pesquisas a compreender o comportamento
social das comunidades humanas em contato com a mimesis. O desejo mimético, segundo o
intelectual francês (2008), ocasiona relações triangulares, que compõe: sujeito – modelo - objeto. O
problema é que estas relações podem suscitar em conflitos humanos, uma vez que o sujeito deseja o
mesmo objeto de seu modelo, sendo assim, necessário dispor de um aparato social que contenha os
impulsos humanos. Logo, Girard (2008) estando em contato com as investigações do sociólogo Émile
Durkheim, constata que o responsável por manter ordem e paz social é o fenômeno religioso. A
religião, como afirma o sociólogo (1996), é uma forma de coerção social, responsável por estabilizar
os membros de uma comunidade.
A partir disso, Girard (2008) certifica que a religião recorre ao mecanismo do bode expiatório
para cumprir com sua função social. Pois, explica que os indivíduos ao reprimirem seus desejos
miméticos, produzem internamente uma inevitável violência que precisa ser exterminada, caso
contrário, a sociedade é passível de conflitos generalizados. Então, a religião influencia seus fiéis a
selecionar um de seus membros a bode expiatório, por adquirir estereótipos inaceitáveis para conviver
em sociedade. Deste modo, em uma cerimônia ritual religiosa, a vítima é submetida ao sacrifício,
libertando a todos da violência presente e resultando na idolatria da comunidade perante a vítima
sacrificada.
Girard descreve diversos mitos bíblicos e gregos, realizando uma interpretação sob o viés da
violência, constatando o mecanismo do bode expiatório. Ao utilizar de uma análise antropológica
sobre as narrativas míticas, Girard (2008) observou que o aparato regulador da ordem de uma

1
Mestranda em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), com bolsa de
estudos financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Bacharela em
Ciências Sociais pela mesma universidade, PUC-Campinas. – E-mail: bianca.vccleis@hotmail.com.

109
comunidade seria a religião, uma coerção social. Porém, entre os diversos mitos estudados pelo
intelectual francês, destaca em suas obras o mito da Paixão. Segundo Girard (2008), a morte de Jesus
Cristo apresenta a razão pela qual a religião não é capaz de assegurar a ordem social nas sociedades
complexas, e como os homens ficaram sob suas próprias condutas.
Para explicar como Jesus se tornou um bode expiatório perseguido pela comunidade, Girard
(2004) primeiramente relata uma narração bíblica que demonstra o princípio da perseguição em
relação a Jesus. O mito é sobre um território intitulado de Decápole em Gerasa, que há tempos
guardava um indivíduo visivelmente possuído habitando entre as tumbas. O homem se portava
livremente, nu, mas “prisioneiro de sua própria loucura” (GIRARD, 2004, P. 219). Os membros da
comunidade haviam tentado de todas as formas dominá-lo, mas o sujeito sempre conseguia quebrar
as correntes que lhe prendiam. Jesus Cristo, ao atravessar o mar da Galileia, encontra-se com o
homem. Ao observar o estado em que se encontrava, Jesus consegue libertá-lo da possessão e
transmitir o mal que o dominava para os porcos que ali perto pastavam. Os porcos, ao ficarem
possuídos, atiravam-se no mar, caiam do precipício e morriam afogados. O povo que observava o
acontecimento, temia o ocorrido e assim pediam para que Jesus nunca mais aparecesse na cidade
novamente.
Todavia, Girard (2004) nota o paradoxo intrínseco no mito dos demônios de Gerasa, pois
Jesus, ao libertar o homem da possessão e resolver os problemas dos membros da comunidade,
observa que não correspondeu aos desejos dos indivíduos. Pois a população, aderindo a um homem
que causava a desordem, tinha a quem submeter o mecanismo do bode expiatório. Mas, como Jesus
faz o contrário e encerra o mecanismo instituído, ele é o novo causador da desordem social: “O pedido
é paradoxal pelo fato de que Jesus acaba de obter de uma só vez sem a menor violência o resultado a
que eles próprios parecem visar com suas correntes e suas algemas, mas que, na realidade, não
desejam a cura definitiva do possuído.” (GIRARD, 2004, p. 221).
O fato que comprova o possuído como parte do mecanismo do bode expiatório, é a resposta
proferida à pergunta de Jesus sobre seu nome, que dita ser Legião, porque igual a ele haveria muitos.
Então, ao afirmar a Jesus que haveria diversos homens como ele, o messias decifra o que ocorre, e
compreende o mecanismo social do bode expiatório.
Talvez o possuído diga a seus concidadãos: ‘Vocês não precisam, vejam bem, tratar-me como
gostariam de fazer, não têm necessidade de me lapidar; eu mesmo me encarrego de executar
a sentença de vocês. A punição que inflijo a mim mesmo ultrapassa em horror o que sonhais
infligir a mim.’ (GIRARD, 2004, p. 222)

Após a análise do mito dos demônios de Gerasa, Girard (2004) interpreta a Paixão de Cristo
como o mito revelador. A Paixão de Cristo é um mito sobre o mecanismo do bode expiatório como
todos os outros, correspondendo ao mesmo drama, mas que obtém relevância religiosa e social,
revelando o mecanismo fundador de toda violência: o bode expiatório.

110
O messias Jesus Cristo se destacou em sua época pelos ditos milagres descritos na Bíblia,
como a libertação do homem possuído de Gerasa. O messias obtinha em sua personalidade o caráter
da dominação carismática (COHN, 2003) e atraia para si um conjunto de fiéis cada vez maior. Jesus,
diferentemente dos membros da sociedade, não diferenciava e estereotipava ninguém, ao contrário,
se aproximava dos sujeitos considerados bodes expiatórios para a comunidade. O fato de não
expressar preconceito como os outros, faz com que a sociedade o considere como um sujeito que
causa a desordem, temendo-o.
Então, frente à comoção que Jesus gerava na comunidade, as autoridades e os cidadãos tinham
receio dele, selecionando-o como um bode expiatório e gerando, sobre Jesus, o fenômeno do duplo
monstruoso2, instituindo-se uma coletividade que pedia a sua condenação. A crucificação de Jesus,
como de todas as outras vítimas, demonstrava a necessidade da violência a ser libertada entre os
homens: “Vocês não sabem de nada. Vocês não percebem que é melhor que um só homem morrer
pelo povo, do que a nação inteira perecer?” (Jo 11, 49-51).
O poder do Estado nas sociedades, geralmente, se concentra nos domínios das autoridades
locais, constituindo uma minoria. Mas o mesmo não acontece mediante a uma coletividade movida
por seu caráter violento, sendo necessário Pilatos ceder Jesus ao sacrifício, pois mesmo oferecendo a
população o direito de livrar um de seus réus da condenação, por conta do feriado da Páscoa, não
optaram por libertar Jesus da morte, e sim Barrabás: “Eles a colocam até na boca de Pilatos, que
afirma: Não vejo causa depois de ter interrogado Jesus. Pilatos ainda não está influenciado pela
multidão e nele é o juiz, é a encarnação do direito romano, da racionalidade legal, que se inclina de
modo fugitivo, mas significativo diante dos fatos.” (GIRARD, 2004, P. 139). Contudo, a multidão
representa a força atribuída socialmente pelo duplo monstruoso:
A multidão da paixão também adota de olhos fechados as vagas acusações proferidas contra
Jesus. A seus olhos, Jesus se torna esta causa suscetível de intervenção corretiva – a
crucifixão – que todos os amantes do pensamento mágico se põem a procurar ao menor sinal
de desordem em seu pequeno universo. (GIRARD, 2004, p. 136-137)

Os homens inseridos dentro da lógica sacrificial seguem os efeitos de satã, disseminando a


mimesis um ao outro, por meio do duplo monstruoso, gerando linchadores e perseguidores de bodes
expiatórios. Girard (2004) explica que há diferenças ao comentar sobre o divino, pois o Deus dos
homens corresponde ao profano, criado por eles mesmos, estabelecendo ser necessário o sacrifício de
um bode expiatório para manter a paz social, sendo gratificados por seu próprio Deus pelo sangue
derramado. Já o verdadeiro divino, o Deus transcendente, afirma Girard (2004), é o Deus transmitido
através das palavras e das ações de Jesus, que ignora a reciprocidade da vingança e se entrega à morte

2
O conceito de duplo monstruoso utilizado por Girard (1990), significa a transferência de um objeto de desejo a uma
coletividade que ao se multiplicar persegue o modelo rival, tornando o desejo recíproco a todos, resultando em uma
“cegueira coletiva”.

111
para honrar sua palavra com Deus e atribuir a si todos os pecados mundanos, libertando a todos do
mecanismo do bode expiatório em seu ato de amor.
Se os bodes expiatórios não podem mais salvar os homens, se a representação persecutória
se desmorona, se a verdade brilha nos lugares escusos, isso não é má, mas boa notícia: não
há Deus violento; o verdadeiro Deus nada tem que ver com a violência e não é mais por
intermediários distantes que ele se dirige a nós, mas diretamente. O Filho que ele nos envia
está profundamente unido a ele. A hora do Reino de Deus soou. (GIRARD, 2004, p. 247).

Pois, segundo Girard (2004), Jesus ao vir à terra, tinha como intuito revelar aos homens o
mecanismo da violência que eles mesmos criaram, libertando-os. No entanto, Jesus, ao oferecer aos
homens o Reino de Deus, é ignorado e, assim, o nazareno utiliza do próprio mecanismo de satanás
para revelar os segredos instituídos nos mitos, demonstrando que a necessidade da morte do outro
para o estabelecimento da paz são obras do mal: “Se os fariseus fosse verdadeiramente hostis a
Satanás, eles não deveriam reprovar Jesus por expulsar Satanás por Satanás; mesmo que tivessem
razão, o que Jesus acaba de fazer contribuiria para a destruição final de Satanás.” (GIRARD, 2004,
P. 241). Desta forma, Girard (2004) concebe as ações de Jesus como divisora do reinado de satanás:
“Satanás dividido contra si mesmo”. (GIRARD, 2004, P. 240), pois ao se dispor em seus planos,
revela aos homens a violência inserida socialmente: “Se estiver dividido contra si mesmo, o reinado
de Satanás não se manterá.” (GIRARD, 2004, P. 241).
Com isto, Girard (2008) esclarece que a morte de Jesus não deve ser considerada um sacrifício
como tantos outros descritos na Bíblia, mesmo que Jesus represente a posição de bode expiatório e
tenha sido julgado pelo povo que pressionava Pilatos. Pois o nazareno, ao se inserir no mecanismo
vitimário, é visto pela sociedade como bode expiatório. Entretanto, mesmo sendo concebido, pela
comunidade, como um bode expiatório, a morte de Cristo não deve ser considerada um mero
sacrifício porque, segundo Girard (2008), ela se diferencia, na medida que Jesus é o Messias e, por
sua morte, livra, de fato, todos os seres humanos da violência:
Livrar-se da violência é uma tarefa à qual Jesus convida todos os homens e ele a concebe em
razão da verdadeira natureza dela, das ilusões que ela suscita, da maneira pela qual ela se
propaga, e de todas as leis que tivemos mil vezes oportunidade de verificar durante esses
nossos encontros. (GIRARD, 2008, p. 243).

Como descreve Girard (2008), ao se submeter à morte Jesus realiza os desejos de Deus. Por
não se juntar aos homens e ser indiferente à violência que continuam a desenrolar, Jesus prefere a
morte. Os homens tendem a praticar o ato violento contra seus membros por acreditarem em uma
falso Deus, criado por eles, que necessita do derramamento de sangue para que se reestabeleça a
ordem, o que na verdade estaria apenas representando os seus próprios desejos mundanos.
Assim, Girard (2008) afirma que os homens ao não ouvirem a palavra de Cristo, e ao não
diferenciarem sua morte de um sacrifício, tendem a fundar uma nova religião, o cristianismo,
dissimulando o verdadeiro significado da morte de Jesus, não percebendo a escravidão que a violência
lhes impõe, utilizando do religioso como método para não atribuir culpa mediante aos assassinatos e

112
a continuar a cometê-los, impondo a si mesmos uma falsa visão divina. A vinda de Jesus em meio
aos homens é a última chance dos sujeitos se livrarem da violência recíproca e encontrarem o Reino
de Deus. O fracasso não é atribuído diante o Reino, mas, segundo a perspectiva evangélica, ao fato
de os homens não ouvirem a mensagem divina, caminhando da crucificação de Jesus para o
apocalipse. Girard (2008, p. 254) cita um trecho bíblico (Ez. 33, 1-11) referente à ordem de Cristo a
Jesus:
Quanto tu escutares uma palavra de minha boca, hás de avisá-los de minha parte. Quando eu
disser ao homem mau: “Homem mau, vais morrer”, e se tu não falares para advertir o homem
ruim que abandone sua conduta, é ele, o ímpio, que morrerá por seu pecado, mas é a ti que
pedirei contas de seu sangue. Se o contrário tu avisares o homem ímpio para que ele abandone
sua conduta, para que ele se converta e se ele não se converter, ele morrerá por causa de seu
pecado, mas tu salvarás tua vida.

O intelectual fala sobre o apocalipse porque é nesta fase, na crucificação de Jesus, que os
homens já não têm como voltar atrás, continuando o seu modelo de violência como reconciliador da
ordem, mas também como inimigo dos homens, porque estes sempre necessitarão cometer mais atos
violentos para manterem a paz social. Como afirma Girard (2008), é o Reino de satã dividido cada
vez mais contra ele mesmo.
Eis-nos agora livres. Sabemos que estamos sós e entre nós, sem nenhum pai disciplinador
para atrapalhar nossas histórias. Então, é preciso olhar não mais para trás, mas para a frente,
mostrando do que o homem é capaz. A fala apocalíptica decisiva somente afirma a
responsabilidade absoluta do homem na história: vocês desejam que sua morada seja deixada
por conta; pois bem, ela lhes é deixada. (GIRARD, 2008, p. 241).

Portanto, a morte de Jesus não deve representar um sacrifício, para que se possa distinguir dos
tantos mitos sacrificiais da Bíblia e revelar o mecanismo fundador do bode expiatório. Entretanto, o
problema é que os homens enxergaram a morte de Jesus como sacrificial e, assim, produziram através
da morte da vítima expiatória, a religião cristã, permanecendo os indivíduos dentro do mecanismo da
violência, repetindo, segundo Girard (2008), que os cristãos cometeram o mesmo erro de seus “pais
judaicos”:
Trata-se de mostrar que os filhos cristãos repetiram, agravando-os todos os erros de seus pais
judaicos. Assim, a condenação que os cristãos fazem pesar sobre os judeus cai sob o golpe
da frase de Paulo na Epístola aos romanos: “Não julgues, ó homem, pois tu que julgas, tu
fazes a mesma coisa”. (Rm 2, 1) (GIRARD, 2008, p. 271).

A justificativa inerente a essa afirmação se encontra, segundo Girard (2008), nas Epistolas
dos hebreus, que procuram argumentar, sob um olhar sacrificial, a morte de Jesus, o que possibilita
aos homens o livramento de sua culpa, de sua responsabilidade sobre o assassinato que cometeram.
No entanto, Girard (2008) afirma que nos Evangelhos, em nenhum momento, sua morte é concebida
como um sacrifício.
A Paixão, explica Girard (2008), se destaca principalmente neste ponto, pois diferente de
todos os outros mitos bíblicos, a morte de Jesus não deve ser vista como um sacrifício, mas como um
assassinato. Tal realidade se opõe à atribuição sacrificial feita pelos religiosos, inclusive e

113
especialmente a partir das Epístolas, a qual desloca a morte de Jesus ao mecanismo do bode
expiatório. Como demonstra ao citar passagens bíblicas, o nazareno repudiava qualquer ato de
violência:
Eu, porém, lhes digo: amem os seus inimigos, e rezem por aqueles que perseguem vocês!
Assim vocês se tornarão filhos do Pai que está no céu, porque ele faz o sol nascer sobre maus
e bons, e a chuva cair sobre justos e injustos. (Mt 5, 44-45)

Contudo, considerar a morte de Jesus fora dos métodos sacrificiais, significa compreender a
revelação que o filho do Pai transmite aos homens, desvendando o mecanismo da violência. A morte
de Jesus como manifestação da fé em Cristo é o momento, explica o intelectual (2008), que liberta
todas as antigas vítimas expiatórias já descritas: “Em suma, são as vítimas assassinadas desde a
fundação do mundo que começam a retornar a esta terra para serem reconhecidas.” (GIRARD, 2008,
p. 282-283).

Referências bibliográficas
BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. São Paulo: Paulus, 1990.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na
Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
GIRARD, René. A violência e o sagrado. Tradução de Martha Conceição Gambini. São Paulo:
Ed. UNESP, 1990.
GIRARD, René. Coisas ocultas desde a fundação do mundo: a revelação destruidora do
mecanismo vitimário. Tradução por Martha Gambini. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
GIRARD, René. O bode expiatório. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004.
WEBER, Max. Organizador: Gabriel Cohn. Sociologia. São Paulo: Editora Ática, 2003.

114
A CENTRALIDADE DA VIOLÊNCIA NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E
DA RELIGIÃO: A AUTENTICIDADE DA REVELAÇÃO MITOLÓGICA A
PARTIR DA TEORIA MIMÉTICA DE RENÉ GIRARD

Rondinele Felipe*

Resumo
Compreender a noção de mito no pensamento de Girard é fundamental para entendermos suas teorias. Conforme
Girard, os mitos não são simplesmente alegorias ou fantasias, todavia são elaborações e narrativas de acontecimentos
reais de violência contra vítimas inocentes. A violência está na origem da cultura, gerando toda mitologia. É precisamente
essa violência, na maioria das vezes dissimulada, que confere veracidade aos mitos. Portanto, o exame apurado do mito
equivale, constitutivamente, ao descobrimento da origem violenta do sagrado e das culturas. Assim, Girard aplica aos
textos bíblicos, às tragédias gregas e à literatura a mesma valoração que dedica aos mitos. A hipótese mitológica girardiana
passa pela compreensão combinatória do desejo mimético e do mecanismo do bode. O entendimento de que o desejo
humano não é autônomo, mas imitativo e competitivo, é imprescindível para entender por que Girard atribui um valor
social à violência na constituição do sujeito e da cultura. Esse aspecto do mitológico é decisivo para o esclarecimento
teórico do projeto mimético girardiano, além de revelar, hermeneuticamente, um conceito específico de religião que se
fundamenta na hipótese vitimária da violência sacrificial. Para entender essas noções, será necessário investigar como
Girard interpreta e concebe seu projeto mimético como função desencadeadora dos mitos.
Palavras-chave: Mito. Religião. Mimesis. Violência. Bode expiatório.

Genealogia da violência
Como a partir do pensamento de René Girard a hermenêutica dos mitos contribui para o
entendimento da origem da violência e do sagrado? Na teoria girardiana, os mitos são abordados
como narrativas de um assassinato fundador. Eles remontam o desenvolvimento cultural humano em
torno do sagrado. Para entender essa estruturação mitológica, será necessário investigar como
desencadeia essa violência geradora do sagrado. Se o sagrado, como destaca Girard, está na origem
das culturas, os mitos seriam fontes comprobatórias de que os sacrifícios deram origem à religião e
de que, aliás, a linguagem alegórica e fantasiosa dos mitos teria a função de dissimular uma terrível
verdade a respeito do comportamento humano1. Dessa forma, a leitura hermenêutica dos mitos se faz
imprescindível para essa finalidade, ou seja, para a revelação da especificidade da violência humana,
visto que, de acordo com René Girard, a cultura começa a surgir principiada pela explosão de um
comportamento de apropriação mimética que não teria encontrado outros meios, a não ser o sacrifício,
para fazer cessar a violência coletiva. Com destaca Richard Golsan: “No pensamento girardiano, o
mito permite atar as pontas de sua reflexão acerca das origens da cultura” (GOLSAN, 2014, p. 15) –
e essa origem se encontra ligada ao sagrado. Dessa maneira, como se constitui o sagado de acordo
com Girard? Para esse autor, o sagrado nasce da violência coletiva e, para responder essa questão, os
mitos são lidos como suporte teórico da compreensão de sagrado e do comportamento violento

*
Doutorando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: rondinelefelipe17@gmail.com
1
Girard desenvolve esse assunto com mais detalhes na obra que resultou de uma entrevista com João Cezar de Castro
Rocha e Pierpaolo Antonello (GIRARD, René; ROCHA, João Cezar de Castro; ANTONELLO, Pierpaolo. Evolução e
conversão. São Paulo: É Realizações, 2010).

115
humano. A violência surge, nas sociedades arcaicas, como uma pulsão negativamente ordinária ao
comportamento do homem e, por isso, precisava ser constantemente exorcizada, canalizada por meio
do sacrifício de vítimas. Tanto é assim que a elucidação dessas crises previa o assassinato coletivo.
Era preciso eleger um culpado, uma vítima que verdadeiramente todos acreditassem ser responsável
pela maldição.
Quando falamos dessa violência como parte integrante das relações humanas e do religioso,
poderá ser revelador que investiguemos sua origem, a fim de desvendar o mistério desse
comportamento aniquilador comum a muitas espécies. Não obstante, a espécie humana,
estranhamente, fez da violência um antídoto para aplacar as crises coletivas, por meio das quais os
sacrifícios mantiveram por muito tempo a estabilidade cultural. Nesse caso, podemos inclusive
destacar, pois não passou despercebido, que alguns pensadores procuraram explicar o comportamento
violento dos humanos buscando soluções racionais, com o propósito de oferecer uma forma de
controlar a violência e, portanto, garantir a manutenção da cultura.
O filósofo Thomas Hobbes (Leviatã, 1999, p. 109) assinalou que o ser humano nasce com
predisposição para o mal; por isso, precisamos de um contrato. Entretanto, a ideia de que o contrato
social teria tirado o homem de seu estado de natureza é divergente do projeto girardiano, pois ignora
o momento que precede à cultura. Girard (2015) não aceita a ideia de que a violência coletiva poderia
ser apaziguada por meio de um contrato estabelecido com serenidade e reflexão. Não obstante, Girard
se aproxima de Hobbes na medida em que o filosofo inglês percebe um panorama de conflitos
intermináveis anterior ao contrato.2 Outros contratualistas, como Jean Jacques Rousseau e John Locke
(MARCONDES, 2010, p. 204), defenderam, embora com algumas divergências, a mesma ideia de
um contrato ou pacto social, a fim de evitar a propagação da violência. Contrariando a perspectiva
contratualista e etiológica, Girard defende a origem cultural-religiosa como um processo inconsciente
na resolução da crise, cujo sacrifício expiatório teria favorecido o nascimento da cultura. É
precisamente por não ter um fundamento contratual e reflexivo que a cultura pôde emergir. Dizendo
de outra maneira, a solução sacrificial não pode ser uma escolha ou algo combinado entre as partes,
pois, se assim o fosse, não seria de natureza sacrificial, mas sim de uma carnificina. É porque os
homens não sabem o que fazem quanto à solução vitimária que, de acordo com Girard, por meio dela,
foi possível falar em gêneses cultural; o nascimento do religioso e da cultura teria sido um processo
naturalmente sacrificial. É precisamente por não ser premeditado, ou estabelecido um contrato
racional, que se caracteriza como sacrifício expiatório. Assim, a questão que se coloca é a de que os
filósofos contratualistas não investigaram com atenção a origem da violência humana, nem como,

2
É importante notar que o filósofo Hobbes chegou a sugerir um momento de conflito na disputa por um único objeto: “se
dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se
inimigos” (Leviatã, 1999, p. 108).

116
ainda que exista um contrato, a violência continua latente, nomeadamente, contra as vítimas cujas
marcas vitimárias parecem aguçar a ira dos perseguidores.
Sendo assim, nossa intenção em construir e delimitar um mapa da violência poderá nos indicar
um caminho mais plausível acerca da origem da cultura e, além disso, mostrar-nos que a noção de
sagrado abordada nessa teoria, enquanto originário de um sacrifício primeiro, revelará nosso segredo
mais escuso, que é a violência mimética (imitação). Aliás, entender que a violência surge de forma
comportamental, conduzida e propagada pelo “desejo mimético”, é a primeira intuição de Girard. A
partir da noção de violência mimética, podemos sugerir uma hipótese na tentativa de perfilar a origem
da violência.

Desejo mimético
Pois bem, para entendermos a agudeza de René Girard ao desenhar um perfil da violência
mimética e quão intensamente o desejo humano pode ser sugerido por outra pessoa,
fundamentalmente, teríamos que considerar suas premissas de que a violência nasce na relação
triangular do desejo de apropriação. Isso quer dizer que, quando desejamos qualquer objeto, não o
desejamos por aquilo que ele é, mas porque imitamos o desejo de um modelo, de alguém que nos
indica o que desejar. Na obra Mentira romântica e verdade romanesca, Girard diz que o homem não
deseja isoladamente, de maneira inata. O nosso desejo (desejo objetal) é mediado por um desejo
alheio; o desejo humano é mimético.
A leitura que Girard (2009, p. 15) faz de autores, como Cervantes, Proust, Shakespeare,
Dostoiévski, entre outros na literatura, forneceu-lhe suporte para a formulação da teoria mimética. A
percepção de um dado comum entre esses autores levou Girard a buscar, em várias obras e dramas
da literatura, uma estrutura análoga e recorrente acerca do desejo de imitação. Ele encontra em muitos
autores, de épocas e contextos diferentes, o mesmo mecanismo básico. Nesse ponto, é importante
notar que Girard interpreta a literatura, os mitos e a Bíblia empregando equivalente interpretação: de
que tais obras revelam esse mecanismo de efeito mimético. A partir da leitura comparada, Girard
percebe que os autores clássicos, sem nunca terem se encontrado, falam sobre esse mecanismo
comportamental responsável pela competição e violência. Se pelas análises comparativas Girard
percebe a estrutura do desejo nos dramas e peças teatrais, e não mais uma leitura romanceada desses
clássicos, consequentemente ele fornece nova luz na maneira de interpretá-los. Por conseguinte, a
mentira romântica, na concepção girardiana, é pensar que o nosso desejo, inclusive amoroso, é
resultado de nossa escolha individual. Ora, como entender esse desejo mediado pelo desejo do outro?
O que posteriormente Girard denominaria de desejo de apropriação mimética foi inicialmente
elaborado nos pressupostos da literatura comparada. Outro autor que se insere nessa dinâmica do
desejo mimético é Richard Golsan (2014, p. 25), segundo ele, não desejamos de maneira livre e

117
autônoma, o desejo precisa de mediações. De acordo com essa hipótese, desejar, segundo o desejo de
um modelo, é sempre querer o seu lugar, usurpar seu ser. Por isso, a violência seria a próxima etapa.
De maneira mais didática, poderíamos conceber a imagem do desejo mimético
geometricamente representado como figura triangular, em que um objeto é sugerido por um terceiro
que é o modelo, ou seja, aquele que reforça e aguça o nosso desejo pelo objeto. É precisamente a
partir dessa lógica, como sugere a teoria mimética, que a ideia de autonomia do desejo é abalada.
Desse modo, contrariando o pensamento moderno, a noção de autonomia e de originalidade, vistas
hegemonicamente como liberdade e capacidade criativa dos sujeitos, é tragicamente estremecida.
Talvez o mais terrível e impactante nessa hipótese, que, por sinal, atrai muitas críticas ao projeto
girardiano, seja o fato de o sujeito não decidir por conta própria, mas sim de o sujeito ser exaurido do
seu centro de decisões e escolhas, uma vez que toda escolha pode ser mediada.
Esse audacioso projeto girardiano parece contrariar a noção de subjetividade que, a partir de
Kant,3 situa o sujeito racional como aquele que ocupa o centro do conhecimento e decisão.
Inversamente, em Girard, o sujeito é destituído de seu, por assim dizer, individualismo, embora
precisemos considerar que o desejo não é orientado pelo objeto. Ao mesmo tempo, em Kant, o objeto
é destituído do centro, passando a ser orientado pelo sujeito (MARCONDES, 2010, p. 213). Porém,
precisamos ressaltar que, mesmo em Girard, não é o objeto que orienta o sujeito, como já vimos, mas
o sujeito que é orientado pelo desejo de um modelo que indica tal objeto como desejável. É
precisamente desse desejo, orientado e reforçado por um modelo, que, momentos depois, o objeto é
esquecido e os desejos se justapõem tenazmente, de tal modo que o sujeito desejante quer ser o outro,
assumir seu lugar. Nesse quadro de desaparecimento do objeto e, portanto, de crise, surge a violência.
É notável o fato de Girard dedicar grande parte de seu esforço na dinâmica do desejo
competitivo. No entanto, o mesmo não despreza a natureza da mimésis enquanto aprendizagem.
Nessa linha, ele ressalta: “Não há nada, ou quase, nos comportamentos humanos que não seja
aprendido, e qualquer aprendizagem se remete à imitação. Se os homens, de repente, parassem de
imitar, todas as formas culturais se dissipariam” (GIRARD, 2009, p. 27). Complementando essa
afirmação de Girard, podemos perceber que, já em Aristóteles, o mecanismo mimético está sugerido
como processo essencial de aprendizagem: “Ao homem é natural imitar desde a infância e nisso difere
ele dos outros seres, por ser capaz da imitação e por aprender, por meio da imitação, os primeiros
conhecimentos; e todos os homens sentem prazer em imitar” (ARISTÓTELES, 2008, p. 40). Do
ponto de vista positivo, a mimésis é estudada desde os filósofos clássicos. Nesse sentido, Girard não
foi descuidado em destacar com veemência o lado negativo da mimésis; aliás, o autor reconheceu que

3
Na obra Crítica da razão pura, Kant reformula a revolução copernicana na qual defendia não ser o sol que girava em
torno da terra, mas a terra que girava em torno do sol. Diferentemente, Kant defendia que não era o sujeito que se orientava
pelo objeto, mas o objeto que é definido e determinado pelo sujeito. In: KANT. Crítica da Razão Pura. Coleção Os
Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1999.

118
Platão e Aristóteles demostraram o valor da imitação no que se refere ao aprendizado e, em alguma
medida, quando associada à arte como representação e cópia.4 Entretanto, a especificidade do projeto
girardiano está em perceber que há na mimésis um elemento desagregador e que a imitação do desejo
também provoca violências, pois, paradoxalmente, a mimésis que desagregava, ao mesmo tempo
reunia as comunidades primitivas. O que os mitos fazem é recontar, mesmo que de maneira velada,
a verdade dessa violência no interior das sociedades. Acontecimentos que, segundo Girard, são
totalmente revelados e, de maneira gradativa, denunciados pela Bíblia.

Descrição mitológica
Partindo do pressuposto de que os mitos, quando interpretados sob a ótica mimética,
documentam uma violenta perseguição coletiva e um real assassinato no interior das comunidades,
será importante ressaltar como esses mitos relatam essa violência contra a vítima expiatória. Vale
lembrar que, nessa descrição do mitológico, Girard não está falando de uma violência indiscriminada,
mas de uma forma de violência coletiva que se encontra na origem das culturas e que, evidentemente,
poder-se-á notar o mesmo fenômeno em muitos comportamentos grupais em toda evolução cultural
humana, inclusive na contemporaneidade.
A partir dessa constatação, chegaremos à concepção constitutivamente mimética e sacrificial.
Nessa direção, nasce o sagrado como alicerce das culturas humanas. Assim, vemos diante dos olhos
o projeto girardiano ser esboçado, tendenciosamente, situando a religião como embasamento
científico e antropológico da cultura. A teoria do religioso em Girard passa por um entendimento
gradual entre o desejo mimético, a crise coletiva e a violência sacrificial como surgimento,
manutenção e evolução da cultura. Um elemento novo e proeminente nessa hipótese mimética é,
precisamente, a audaciosa teoria de apresentar o início de tudo, ou seja, a gênesis da religião e cultura.
Se propusermos situar o pensamento de Girard na esfera da ciência do homem, descobriremos que,
para esse autor, religião é a constatação de que somos governados por um mecanismo de apropriação
mimética, gerador de violência, de crescente complexidade, que tem seu desfecho no assassinato de
uma vítima sacrificial que, com sua morte expiatória, canaliza o contágio explosivo e perecedor da
crise mimética. Entender o paradoxo com relação à função da violência no processo cultural humano
é fundamentalmente necessário para a compreensão do projeto mimético girardiano. A dicotômica
noção de harmonia e crise, diferenciação e indiferenciação, violência e paz, é incrivelmente
reveladora quando se busca entender o pensamento desse autor. Em outras palavras, mesmo que o
desejo de apropriação mimética tenha gerado uma crescente violência no interior dos grupos

4
O filósofo Stéphane Vinolo, inclusive, vai sugerir que, em A República (PLATÃO, 2014), há uma consideração quanto
à influência comportamental e apropriativa da mimésis (VINOLO, Stéphane. René Girard: do mimetismo à hominização.
São Paulo: É Realizações, 2011).

119
primitivos, ao mesmo tempo, a solução para essas crises não foi desprovida de violência; aliás, trata-
se de uma violência sacrificial, um último golpe contra a vítima expiatória. No que se refere à
violência fundadora, por mais que Girard tenha desenvolvido um projeto audacioso e singular, ele
compreende, a partir de Freud, a primeira intuição acerca da violência fundadora. A propósito, Girard
assinala na obra A violência e o sagrado (GIRARD, 1990, p. 243) o fato de Freud não desenvolver a
noção de desejo mimético. Não obstante, o autor de Totem e tabu teorizou a respeito do assassinato
coletivo pressupondo um desfecho sacrificial (FREUD, 2013, p. 98).
A acepção de Freud com relação ao assassinato fundador é digna de nota. No entanto, a
proximidade do pensamento de Girard com Freud é mais amistosa quando se trata da obra Totem e
Tabu,5 na qual Freud conduz sua atenção para a antropologia. Na citada obra, tivemos uma importante
sugestão da gênese da violência principiada pela morte do pai tirano que se coloca como obstáculo
entre os filhos e a mãe, culminando no primeiro assassinato ou, melhor dizendo, na violência
fundadora. Ora, desse modo, poderíamos sugerir que a instituição cultural humana está regida sobre
as bases de um primeiro assassinato que violentamente sentencia um bode expiatório condenado a
morrer na função substitutiva, com propósito de aplacar o contágio da violência humana. Não é sem
importância advertir que, mesmo que Freud tenha sugerido uma violência primeira na fundação
cultural humana, seu intento não fica livre de críticas, uma vez que, em seu projeto etiológico (origem
do fenômeno), está pressuposta a noção de família, que, logicamente, não poderia ser pensada como
ato fundante de uma gênesis cultural. Aliás, a noção de instituição social pressupõe a cultura já
estabelecida. Em vista disso, por mais que tais pensadores tenham desenvolvido contundentes teorias
visando entender o processo de sociabilidade humana, ainda não teorizaram o bastante a ponto de
responder a problemas tão urgentes e crescentes quanto àqueles relacionados à violência.
O que Girard propõe como hipótese do surgimento da cultura é que o primeiro sacrifício
derivou da violência coletiva contra uma vítima. Uma questão reveladora na teoria girardiana propõe
que, na origem da cultura, existe um réu, um culpado, um bode expiatório. A agudeza de Girard está
em sugerir que os mitos sejam lidos sob uma ótica antropológica, cuja mensagem central é revelar,
mesmo que nas entrelinhas, uma verdade acerca violência vitimária. De acordo com essa teoria, os
mitos teriam sofrido alterações de natureza fantasiosa e alegórica, a fim de dissimular a perspectiva
persecutória do acusador. Em outras palavras, nos registros mitológicos, as vítimas são culpadas; por
esse motivo, os sacrifícios seriam sempre justificados e os atos horrendos dos perseguidores

5
Nessa obra, Freud buscou entender como o homem produziu cultura, ressaltando que, a partir do primeiro assassinato,
justifica-se o sentimento de culpa, bem como o nascimento da religião como derivação desse sentimento de culpa
(FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. 2013).

120
pareceriam justos. Nesse ponto, a presumida hipótese principiada por uma leitura hermenêutica dos
mitos exigirá certo esforço no sentido de perceber as alterações, bem como a assumida linguagem
alegórica presente nos mitos de perseguição, que, de acordo com Girard, teria o propósito de eliminar
as investidas contagiosas e injustas da perseguição vitimária (GIRARD E VINOLO, 2011, p. 147).
Nos mitos de perseguição, a coletividade se convence de que existe um responsável pelas
crises que precisa ser punido. Essa vítima, com sua morte, redime seus algozes, eliminando a
violência destruidora, restaurando a paz. A consequência disso é que a vítima, antes culpada pelo
infortúnio, tornava-se inocente por ter restaurado a paz social e, por isso, elevava-se à condição de
sagrado. Tal vítima é o bode expiatório. Ora, como Girard conclui que a humanidade teria surgido a
partir de um comportamento negativamente funéreo? Uma hipótese razoável é que Girard reabilita a
Bíblia e os mitos como fontes autênticas de conhecimento das origens humanas. Portanto, a
interpretação de que a história teria sido contada pelos perseguidores lança uma luz na compreensão
dos mitos. Na hermenêutica girardiana, não podemos perder de vista o aspecto vitimário do
assassinato fundador. Isso se torna mais claro quando Girard propõe uma leitura antropológica da
Bíblia e encontra não apenas os mesmos mecanismos que havia encontrado nos mitos e na literatura,
mas também percebe que, nas páginas do Livro sagrado, há uma denúncia crescente do mecanismo
vitimário que encontra sua realização nos Evangelhos.
Na Bíblia, há uma ideia gradativa de que a vítima é inocente. Apresentada de maneira mais
acertada nos Evangelhos, a lógica mitológica é invertida. No mito, a vítima é condenada, sacrificada
e se torna sagrada, ao passo que, nos Evangelhos, o sagrado, o inocente, que é sacrificado. Ora, se o
sagrado é sacrificado, o sacrifício é injusto, pois a vítima que está sendo sacrificada é consequência
da crise mimética e, portanto, da violência. De acordo com João Cezar de Castro Rocha (2011), uma
das derivações do desejo mimético é o ato de acusar o outro, apontar o erro, dizer: essa é a origem da
culpa, esse é o bode expiatório! Ao fazer isso, estimulamos o contágio mimético e a violência. Dessa
forma, para diminuir a violência, precisamos deixar o gesto de acusar e adotar a postura de
compartilhar a culpa. Somos todos culpados, porque acusamos o tempo todo. Porque desejamos a
posse do outro, das coisas do outro, somos miméticos. Enfim, compartilhar a culpa é deixar de criar
bodes expiatórios.

Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. Poética. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2008.
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. São Paulo: Coleção L e PM Pocket, 2013.
GIRARD René, João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello. Evolução e conversão.
São Paulo: É Realizações, 2010.
GIRARD René. Coisas Ocultas Desde a Fundação do Mundo. São Paulo: Paz e Terra, 2009.
GIRARD, R. Mentira romântica e verdade romanesca. São Paulo: É Realizações, 2009.
GIRARD, R.; VINOLO, S. René Girard: do mimetismo à hominização. São Paulo: É
Realizações, 2011.

121
GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 1990.
GIRARD, René. O bode expiatório e Deus. Trad. Marcio Meruje. Disponível em:
<www2.uefs.br/filosofia-bv/pdfs/girard_01.pdf> Acesso em: 12/06/2015.
GOLSAN, R. Mito e teoria mimética. São Paulo: É Realizações, 2014.
HOBBES, Thomas. Leviatã. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
KANT. Crítica da Razão Pura. Coleção Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1999.
MARCONDES, Danilo. Iniciação a história da filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
PLATÃO. A República. 14.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2014.
ROCHA, João César de Castro. Teoria mimética e vulnerabilidade do sujeito – ou René
Girard, Sigmund Freud e Oswald de Andrade. Vol. 2. Porto Alegre: Philia&Filia, 2011. Disponível
em: http://seer.ufrgs.br/Philiaefilia/article/view/23930. Acesso em: 20/05/2021.
VINOLO, Stéphane. René Girard: do mimetismo à hominização. São Paulo: É
Realizações, 2011.

122
O RESSENTIMENTO E O SAGRADO: UM DIÁLOGO ENTRE RENÉ
GIRARD E MAX SCHELER

Maiara Rúbia Miguel1

Resumo
O estudo de René Girard (1923-2015) sobre a relação entre a violência e o sagrado é uma das produções dentro
de um pensamento complexo. A conceituação do que é violência e sua respectiva relação para com o sagrado depende de
uma delimitação, que parte das análises literárias publicadas em Mentira Romântica e Verdade Romanesca (2012). A
violência existe porque há rivalidade entre sujeitos. Essa rivalidade é inflamada pelo ressentimento. Esse sentimento no
coração das relações humanas desencadeia a violência, que deve ser expulsa pelo rito sacrificial. Desse modo, essa
comunicação pretende analisar a influência do conceito do ressentimento, influenciado pelo filósofo Max Scheler (1874-
1923), no pensamento de Girard. Essa comunicação pretende refletir a seguinte questão: como o ressentimento se
relaciona com o sagrado em René Girard? Para isso, dependeremos de dois momentos: (1) a conceituação do que é
ressentimento em Scheler; (2) o ressentimento e o sagrado no pensamento de Girard.
Palavras-chave: Sagrado. Violência. Religião. Ressentimento.

Introdução
Compreender que coexistimos e nos relacionamos em um mundo de significados que contribui
para a nossa forma de ser no mundo é mandatório para compreender e correlacionar pontos teóricos
de dois autores muito diferentes, a saber: René Girard (1923-2015) e Max Scheler (1874-1923). Aqui
não se trata de um estudo comparativo, mas sim da compreensão da influência do conceito de um no
todo de uma teoria. É assimilar a importância de uma parte em um todo. A parte que buscamos
resgatar aqui é o conceito ressentimento, tal como trabalhado e desenvolvido por Max Scheler, em
busca de compreender como tal conceito se relaciona com os aspectos da violência e do sagrado,
pormenorizados por René Girard. Dessa forma, essa comunicação possui um objetivo muito claro:
apreender o conceito ressentimento dentro da teoria girardiana e, por conseguinte, refletir a seguinte
questão: como o ressentimento se relaciona com o sagrado em René Girard?

1. O ressentimento e a teoria mimética


Viver em relação é um desafio existencial que é lançado diariamente desde que o ser humano
é ser humano. Os desafios existenciais vão muito mais além do que questões metafísicas sobre o ser
ou não ser. Mas, coloca em questão quem é o dono de um terreno, quais os direitos de um determinado
povo, como dividir um espaço, comida. Ou, ainda, como realizar trocas para que nada essencial careça
para a existência de meu bando. Essas questões dependem de expectativas relacionadas as coisas e
pessoas e, por muitas vezes, as coisas que almejamos dependem de outras pessoas. Toda essa
dinâmica depende não só de uma convivência, mas de uma coexistência que, em certos momentos,

1
Doutora em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Professora de Ensino Religioso e Filosofia
na rede pública do estado de Minas Gerais. E-mail: miguelmaiara1@gmail.com.

123
torna-se conflituosa. Isso é o que René Girard tentou ilustrar: nós desejamos objetos, o que é bom
porque demonstra que o homem ou mulher almeja ir além da sua própria animalidade. Desejar algo
se dá a partir de um outro alguém ou com um outro alguém. Vivemos em relações mediadas que
culminam num objeto de desejo. Nós imitamos modelos em busca de coisas que tanto ansiamos.
Com essa realidade em mente, aos ler romances clássicos da literatura, René Girard decifra a
natureza dessas relações e esboça a sua chamada teoria mimética. Em Mentira Romântica e Verdade
Romanesca (2009), Girard trata as relações humanas e suas mediações a partir do desejo metafísico.
Nós desejamos algo porque imitamos um modelo, um alguém. Essa imitação pode se dar de modo
ideal, sendo a mediação mimética externa, essa que permite que o sujeito admire e declare sua
admiração por uma pessoa em alto e bom tom e ao declamar tal admiração, passa a desejar os objetos
que esse modelo ideal esteve perto de alcançar ou já alcançou. Esse modelo não precisa existir
factualmente, pode ser uma personagem de filme, desenhos, romance. Ou, pode ser alguém que
existiu em um período histórico específico. Em suma, esse modelo não ocupa o mesmo espaço e
tempo que o sujeito que deseja a ponto de haver qualquer tipo de desavença no presente. Em suma,
para Girard: “[...] falaremos de mediação externa quando a distância é suficiente para que as duas
esferas de possíveis, cujo centro está ocupado cada qual pelo mediador e pelo sujeito, não estejam em
contato” (GIRARD, 2009, p. 33).
Na mesma medida em que tal relação é possível existe a mediação mimética interna. Essa
mediação é um tanto quanto diversa porque não se trata de desejar ser como um modelo, mas sim se
tratar de obter o objeto desejado e se deparar com um obstáculo no meio do caminho, que já possui
ou está mais próximo de alcançar. Esse obstáculo é o que chamaremos de modelo-obstáculo. No texto
Evolução e Conversão (2011), Girard salienta “[...] se pertencer ao mesmo domínio contextual, ao
mesmo mundo de seu modelo, se o modelo é também seu igual, então os objetos dos modelos estão
acessíveis, de modo que há possibilidade de a rivalidade irromper” (GIRARD, 2011, p. 80). Dessa
forma, na mediação interna a rivalidade irrompe por haver a ênfase de um sujeito tão somente com o
objeto e reconhecer que há um obstáculo em seu caminho. Nesse reconhecer, o sujeito acaba por se
confundir com o objeto e busca atingir somente o modelo-obstáculo, o rival. Aqui há o despertar de
um sentimento muito particular e único, pois o sujeito experiencia o venerar e o rancor. O sujeito
venera seu obstáculo por ser ou ter aquilo que gostaria e ao mesmo tempo sente rancor porque seu
rival tem aquilo que tanto gostaria de ter ou ser. Nesse sentido, vale a pena rememorar algumas linhas
do livro Evolução e Conversão (2011) de Girard sobre a realidade da mediação interna:
Devido à proximidade física e psicológica entre sujeito e modelo, a mediação interna tende
a ficar cada vez mais simétrica: o sujeito tenderá a imitar seu modelo, assim como o modelo
o imitará. O sujeito se tornará o modelo de seu modelo, assim como o imitador se tornará
imitador de seu imitado. (GIRARD, 2011, p. 80)

124
Dessa citação podemos apreender as seguintes características: (1) quanto maior a intensidade
da relação, maior a rivalidade e indiferenciação, isto é, a relação que era triangular fica horizontal e
trata-se, dessa forma, de dois sujeitos que rivalizam e golpeiam um ao outro; (2) nesse momento não
há diferentes, somente iguais: o sujeito que deseja se confunde com o objeto e, em um segundo
momento, se confunde com o modelo. O imitado se torna imitador e o sujeito se torna modelo. Não
há nada no modelo que não possa ser identificado no sujeito que deseja; (3) quanto mais simétrica a
relação, mais rápido os golpes e ofensas, sustentados pelos sentimentos de ódio, rancor, vaidade,
vingança, inveja, cobiça, maledicência e etc., sentimentos que calcificam o ressentimento.

1.1 O ressentimento em Max Scheler na teoria de René Girard


O ressentimento surge no auge da indiferenciação da mediação mimética interna. Aqui as
contribuições do fenomenólogo alemão Max Scheler encontra espaço na teoria mimética de René
Girard. Os sentimentos de ódio, vingança, cobiça, maledicência, inveja, vaidade conecta-se ao desejo,
pois um sujeito A pode invejar e/ou cobiçar o sujeito B, por B possuir ou ser algo que A gostaria,
desejaria ser. Nesse recalcar, reviver de sentimentos, ressentir, em relação ao outro culmina na
rivalidade mais intensa da relação, o que contribui e traz consigo a violência. Ora, mas o que é o
ressentimento? Para tanto, assim como Girard, vamos considerar o seguinte sobre ressentimento, de
acordo com o texto O ressentimento na construção das morais (1994) de Max Scheler:
Ressentimento é um envenenamento pessoal da alma, com causas e consequências bem
determinadas. Ela é uma introjecção psíquica contínua, que através de um exercício
sistemática do recalcamento de descargas desperta certos movimentos internos e afecções,
que em si são normais e pertencem à estrutura fundamental da natureza humana. (SCHELER,
1994, p. 48)

Com essa caracterização em mente temos que o ressentimento é a interiorização psíquica


determinada por movimentos emocionais de resposta a situações e/ou objetos. Essa interiorização e
recalcamento de sentimentos se dá em situações determinadas e pode ocorrer com toda e qualquer
pessoa que esteja em relação com outra pessoa. No coração da mediação mimética interna que esse
envenenamento psíquico, tal como Scheler conceitua, que o ressentimento se faz realidade. Um dos
sentimentos que faz possível o existir do ressentimento é justamente o sentimento da vingança, pois
há movimentos internos específicos que conformam o ressentimento, a saber: “[...] o sentimento e
impulso de vingança, ódio, maldade, inveja, cobiça, malícia” (SCHELER, 1994, p. 48). É, justamente,
na realidade de uma mediação mimética interna ressentida e indiferenciada que a violência deve ser
expulsa do coração da sociedade. Sua expulsão se dá através de uma medida ritualisticamente
empregada pela violência sacrificial.

125
2. A violência sacrificial e a violência não-sacrificial
A coesão social e manutenção do status quo de um grupo social e comunidade depende do
bem relacionar entre os membros desse grupo e/ou comunidade. A organização social, considerando
as possíveis mediações que podem ser formadas e os sentimentos que podem ser conformados,
sempre está em risco e busca formas de reorganização e manutenção do corpo social. Algumas dessas
medidas são empregadas de acordo com a linguagem ritualística, linguagem que faz menção a uma
experiência religiosa particular de um povo ou comunidade. Segundo René Girard, é pelo rito do
sacrificio que comunidades pequenas e não-complexas expulsam a violência intestina e
desagregadora do corpo social, evitando qualquer medida vingativa e todo e qualquer sentimento que
possa calcificar o ressentimento social que influencia na violência não-sacrificial.
A violência não-sacrificial é aquela violência que desintegra e desagrega a sociedade. É a
violência que por onde se alastra causa confusão e até mesmo destruição. Essa é a violência que deve
ser expulsa pelo rito, prevenindo, dessa forma, toda e qualquer forma de vingança. A violência
sacrificial, por sua vez, é o rito sacrificial empregado para expulsar a violência não-sacrificial, através
do sacrificio de uma vítima animal e/ou humana – a depender dos critérios de cada comunidade e/ou
grupo social. Mas, antes de compreendermos os critérios do rito sacrificial, importa, dessa forma,
compreender que o conceito de violência em Girard carrega certa ambiguidade e sobre isso, vale
ressaltar:
O sacrifício apresenta-se de duas maneiras opostas: ou como “algo muito sagrado”, do qual
não seria possível abster-se sem negligência grave, ou, ao contrário, como uma espécie de
crime, impossível de ser cometido sem expor-se a riscos igualmente graves. (GIRARD, 1990,
p. 13)

Segundo o autor, em A violência e o sagrado (1990), para o sacrificio ocorrer deve seguir
ritualisticamente critérios para a expulsão da violência não-sacrificial e desagregadora. A vítima que
será expiada é essa válvula de escape. Mas, para que ela cumpra essa função, ela precisa ser morta.
Alguém deve cunhar o cutelo. Sendo assim, em Girard não existe o conceito de sagrado sem
considerar a ambiguidade de sua razão de ser no coração da sociedade que o sacrificio intenta
proteger. Ou seja, “[...] é criminoso matar a vítima, pois ela é sagrada... Mas a vítima não seria sagrada
se não fosse morta” (GIRARD, 1990, p. 13). Mas por que razão uma vítima deve ser morta? Quais
os critérios para seleção dessa vítima? A vítima morta é a válvula de escape porque a violência sempre
busca algo para devorar e, por esse motivo, o rito sacrificial encontra espaço, pois pela violência
sacrificial, a violência não-sacrificial é dissimulada pelo empregar do rito rigorosamente cumprido.
Quando a vítima é imolada, o sangue que escorre provoca a sensação catártica e reestabelece a ordem.
Contudo, para que essa ordem seja realidade é mandatório que o rito seja cuidadosamente seguido
que, por sua vez, estabelece que a vítima a ser sacrificada deve possuir pouco ou nenhum vínculo

126
para com a comunidade que intenta proteger, prevenindo, dessa forma, quaisquer prejuízos, em
especial o prejuízo da vingança.
O prejuízo da vingança deve ser eliminado e/ou contido. Caso contrário, a vingança pode ser
responsável pelo desaparecer de uma comunidade ou sociedade. A escalada da violência por meio de
ciclos vingativos cria uma motivação violenta e infinita, portanto a violência sacrificial quando
empregada elimina a vingança pela violência. Essa é uma diferença importante e que é assegurada
pelo rigor da linguagem ritualística. O sagrado é manifesto e regula os ânimos ao eliminar o caos da
vingança com o escorrer do sangue que esquenta o chão.
Em nossa sociedade racionalizada e complexa a linguagem ritualística da violência sacrificial
se apresenta assim como nossa sociedade, de forma complexa e racionalizada. Em nossa sociedade
temos a instituição judiciária que cumpre a função de ser a última palavra da vingança. Dessa forma,
o judiciário controla, a seu bel-prazer, e desvia racionalmente a vingança operando uma teologia,
desenvolvida por anos de estudos e teorias jurídicas, por agentes imparciais. Nesse caso, justiça se
identifica com vingança e a justiça é a última palavra da vingança. Por esse motivo, a diferenciação
entre violência e vingança fica por conta do judiciário e pelo seu fazer justiça neutro, racional e
imparcial.

Considerações finais
Se existe uma instituição em nossa sociedade como o judiciário para eliminar a vingança,
sendo a última palavra da vingança é porque mesmo em nossa sociedade racionalizada e complexa
esse sentimento traz prejuízos intensos, bem como solidifica o ressentimento. O ressentimento
inflama todo o caos e rivalidade existente que contamina a sociedade e seus grupos. Se o judiciário
não consegue fazer justiça sendo a última palavra da vingança então, dessa forma, temos o inflamar
e irradiar de uma violência ainda maior que consome as instituições e minorias.

Referências Bibliográficas
CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à
fenomenologia da religião. São Paulo, SP: Paulinas, 2010.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins
Fontes, 2010.
GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1990.
_________. Coisas ocultas desde a fundação do mundo: a revelação destruidora do
mecanismo vitimário. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
_________. Mentira romântica e verdade romanesca. São Paulo: É Realizações, 2009a.
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GIRARD, René; ANTONELLO, Pierpaolo; ROCHA, João Cezar de Castro. Evolução e
conversão: diálogos sobre a origem da cultura. São Paulo: É Realizações, 2011b.
SCHELER, Max. Da reviravolta dos valores. Petrópolis: Vozes, 1994.
_____________. Ética: Nuevo ensayo de fundamentación de un personalismo ético Tomo
II. Buenos Aires: Revista de Occidente Argentina, 1948.

127
_____________. Modelos e líderes. Curitiba: Campagnant, 1998.

128
RELIGIÃO COMO “CULTO CRENTE”: UMA ABORDAGEM
HERMENÊUTICA

Felipe de Queiroz Souto1

Resumo
Propõe-se com este resumo expandido apresentar o conceito de religião desenvolvido por Jean Grondin. O
filósofo entende que a religião pode ser definida por dois polos característicos: o culto e a crença. Os dois polos
característicos da religião define o objeto em questão. Com essa abordagem, tentamos avançar a discussão colocando a
possibilidade de o conceito ser debatido pela área. Será a religião enquanto culto crente uma boa definição do objeto ou
ela traz limitações ainda maiores para o campo de Ciência da Religião? Ainda, será que o exercício de Grondin não se
resume apenas a um movimento estrito à filosofia da religião? Sobre essas questões pensamos a segunda parte do texto.
Como referencial teórico tomamos a obra de Grondin Que saber sobre filosofia da religião? (2012) e utilizamos a
hermenêutica como método investigativo para acessar os conceitos do autor. Do ponto de vista da ciência da religião, nos
parece que a definição de Grondin não dá conta das discussões da área.
Palavras-chave: Filosofia da Religião. Epistemologia da Religião. Culto crente. Hermenêutica.

Introdução
O problema da definição do conceito de religião cruza às ciências da religião desde seu início.
A dificuldade por alçar um conceito decisivo e universal para todas as pesquisas da área possibilita a
pluralidade metodológica para se olhar o mesmo objeto: a religião. Partindo dessa perspectiva, nos
interessamos por trazer à discussão um conceito que seja universal e ao mesmo tempo que se permite
moldar-se às necessidades de cada pesquisador. Para tal tarefa, elegemos o conceito de religião como
“culto crente” oriundo da filosofia hermenêutica de Jean Grondin publicada em seu livro Que saber
sobre Filosofia da Religião (2012). No primeiro momento iremos dissertar a respeito do conceito em
questão e, no segundo momento, iremos levantar três questões para o debate.

1. Religião como “culto crente”


Na tentativa de definir o conceito a religião de modo objetivo, mas ciente da dimensão
multifacetada do fenômeno religioso, Grondin se pergunta pela essência da religião no sentido mais
elementar, isto é, “do que se fala quando se trata de religião? O que se mantém no fenômeno religioso
através de todas as suas metamorfoses?” (GRONDIN, 2012, p. 28). Na tentativa de responder essas
questões, ele identifica na religião dois polos característicos: o culto e a crença. Esses dois polos se
conectam e definem a forma da religião. A ideia de Grondin é que esses polos já estão presentes no
pensamento ocidental como aquilo que define a religião há um bom tempo, no entanto, eles
geralmente são associados separadamente. Ele observa que na modernidade, por exemplo, a religião
está associada à noção de crença, visto que ela “depende mais de uma crença do que de um culto”

1
Doutorando em Ciência da Religião pela UFJF com financiamento da CAPES. Discente do curso de Especialização em
Metafísica e Epistemologia pela UFCA. Mestre em Ciências da Religião pela PUC-Campinas (2021). Bacharel em
Filosofia pela PUC-Campinas (2018). E-mail: felipeqsouto@gmail.com

129
(GRONDIN, 2012, p. 34). O culto, por sua vez, decorre como produto da crença, mas não é ele fator
determinante da religião.
De acordo com Grondin, a crença como uma dimensão constitutiva da religião é uma ideia
que “aparece bem mais tarde na história das religiões” (GRONDIN, 2012, p. 34). Inclusive, as
religiões antigas como as grega e romana não conheciam estritamente a dimensão da crença, pois elas
eram voltadas para o ritual. Para dar coro à sua tese, Grondin traz para o debate o teólogo suíço Pierre
Gisel quando afirma:
Na Antiguidade greco-romana, a questão do crer não é pertinente. Nessa época o religioso
depende de uma relação com o cosmos, feito de sabedoria e de medida, ligado à condição do
humano. Narrações e mitos diversos, trazidos pelos poetas, relatam essa relação ou a colocam
em cena; eles contam o mundo, diversamente e onde nada é para crer. [...] Em relação com o
cosmos, a religião antiga é essencialmente ritual. Há ritos a cumprir, acompanhados pelo
mito. Os ritos devem ser cumpridos em tal lugar, por cada um, seja ele estrangeiro ou esteja
de passagem; sem este cumprimento a peste ou qualquer outra catástrofe cósmica pode
sobrevir. Há um rito a cumprir, sem engajamento crente nem retomada sobre si (GISEL,
2007, p. 54-55 apud GRONDIN, 2012, p. 34).

Sob essa perspectiva apontada por Gisel, Grondin pensa a dimensão do culto presente nas
religiões antigas como uma função “propiciatória” (GRONDIN, 2012, p. 35), pois tem por finalidade
propiciar os deuses ou as forças da natureza. Deste modo, os rituais cumprem uma tarefa, celebram
um ciclo específico, uma passagem da vida humana, um ciclo da natureza entre outros. O foco dessa
religiosidade não está na crença específica, mas nos símbolos, nos cantos, nas vestimentas e nos
componentes do ritual. É uma religião performática. É verdade que o culto se faz presente nas
religiões contemporâneas também, no entanto, a centralidade não está no culto. A dimensão religiosa
das religiões complexas está na crença. Para Grondin, a crença provém da razão moderna que costuma
ver a religião como “convicção pessoal [...] a religião se torna então uma questão cada vez mais, ou
até exclusivamente, privada” (GRONDIN, 2012, p. 35). Nessa perspectiva, ele afirma: “Se podemos
dizer que as religiões mais antigas estavam mais centradas no rito, as formas mais recentes de religião
insistem mais na crença” (GRONDIN, 2012, p. 35).
A ideia do filósofo canadense é a de que podemos associar o culto e a crença para definirmos
a religião. Ele argumenta que a origem da palavra culto está no latim: colere, que quer dizer cultivar.
No sentido religioso, cultivar (cultuar) é tornar o espírito fértil e fecundo para a divindade.
Todo culto implica, portanto, mesmo inconscientemente, um culto de si mesmo, na medida
em que o homo sapiens que toma parte em um rito o faz em certo espírito, sabendo ou
sentindo (sapiens!) que se trata de um culto que tem um sentido. É neste sentido que a religião
pode ser chamada um culto crente, na maioria das vezes partilhado por uma comunidade
(GRONDIN, 2012, p. 36, grifo do autor).

O que temos são os dois polos da religião articulados para a compreensão da mesma. “Um
polo não se orienta sem o outro [...] um rito só é cumprido porque ele é sentido – e, consequentemente,
crido – como algo significante” (GRONDIN, 2012, p. 36). Ninguém participa de um culto sem
pressentir que ele possui um sentido intrínseco e sua realização se estabelece à medida em que ele é

130
crido. Segundo Newton Aquiles von Zuben e Camila Medina (2020), a definição que Jean Grondin
traz acerca da religião pode ser entendida como
uma elaboração acerca de algo bem amplo, que ora pode estar mais próximo da dimensão do
culto (ao modo das religiões mais arcaicas, mais rituais ou baseada em mitologias), ora mais
próximo da dimensão da crença (como as religiões modernas, conscientes de si mesmas como
religiões e que se compreendem como crenças). Ou seja, todas as religiões comportariam
essas duas dimensões, porém, a depender da religião, haveria mais elementos de um ou de
outro nela. (VON ZUBEN; MEDINA, 2020, p. 128-129).

Do universo religioso, não nos falta exemplos para caracterizar essa relação: o sacrifício
animal para tornar o animal favorável aos deuses, o batismo na água para lavar os pecados, a
celebração da eucaristia como um momento expiatório, entre outros. Os símbolos da religião
(Grondin lembra de sumballein do grego que significa cair junto) dizem algo sobre a crença da mesma
e esse algo é razoável. O símbolo “exprime a fusão entre o que é dado e o que ele significa (a água e
a purificação)” (GRONDIN, 2021, p. 37). E é aqui que Grondin encontra a resposta à questão
levantada no início e afirma: “Portanto, em sua essência, a religião é um culto crente, no qual a
dimensão de culto ou de crença será mais ou menos ostentada, um culto simbólico que reconhece um
sentido a nosso cosmos e por conseguinte a nossa existência” (GRONDIN, 2012, p. 37).

2. Três questões para o debate


A perspectiva de Jean Grondin abre problemas e possibilidades. Uma característica da sua
forma de fazer filosofia é a hermenêutica e isso não é diferente em sua filosofia da religião. A filosofia
da religião de Grondin é hermenêutica não simplesmente porque ele é um hermeneuta, mas porque
ele concebe a religião como produto de sentido dentro de culturas que possuem um horizonte próprio
de interpretação do mundo. Assim, toda religião está dada dentro de uma concepção prévia e a
observação da mesma pelo cientista ou pelo filósofo também está marcada por uma condição própria
de estar no mundo, já que toda interpretação “traz consigo a marca de quem ‘conhece’” (VATTIMO,
2001, p. 24). Essa postura hermenêutica da abordagem de Grondin é o suficiente para pensarmos a
religião como um acontecimento ou fenômeno cultural que deve ser interpretado dentro de um
horizonte de sentido específico. Culto e crença se articulam dentro dos horizontes e como cada
horizonte é independente não deve existir imposição sobre um modo de pensar sobre outros. Aqui a
hermenêutica nos auxilia a vencer o epistemicídio e as inúmeras formas de violência, tal empreitada,
inclusive, é levada a cabo por pensadores pós-modernos como Gianni Vattimo. Também podemos
pensar a postura hermenêutica do culto crente e sua relação com o tema do V CONACIR. Quais as
possibilidades de pensarmos as religiões subalternas a partir da articulação binomial do culto-crente?
Parece-nos que por ser um conceito paradoxal, por permitir ao mesmo tempo uma definição unívoca
e plurívoca de religião, o culto-crente acolhe todas as formas do fenômeno religioso que produzem
sentido como religiões de fato.

131
Outra questão que podemos colocar é se culto crente realmente resolve o problema de
conceitualizar a religião. Ele seria viável para os cientistas da religião que trabalham com ciência da
religião empírica? Neste sentido, ele teria aplicabilidade prática ou a sua função se resume a um
problema da filosofia da religião que busca por uma essencialidade? Pela natureza do texto que se
propõe a ser um canal de provocação da discussão, não pretendemos encerrar alguma ideia que feche
o uso do conceito, no entanto, a problemática também traz à tona a intersecção da filosofia da religião
com a ciência da religião. Seria papel da ciência da religião abordar a essencialidade do fenômeno
religioso ainda que os primeiros teóricos da história das religiões tenham pensado nessa perspectiva?
Coerentemente, não temos respostas para essas questões. As dúvidas estão colocadas como
ponto de partida para uma reflexão conjunta dentro das pesquisas de Epistemologia das Ciências da
Religião e elas aparecem na medida em que um filósofo se propõe a conceitualizar uma definição que
se promete universal. Talvez seja mais produtivo seguirmos aquilo que o Prof. Frederico Pieper já
apontou em seu artigo Religião: limites e horizontes de um conceito (2019) e seguir os conceitos
como mapas que nos servem de guia.
os conceitos também são mapas que servem de guia, mas que nunca correspondem
exatamente ao território que pretendem indicar. Até mesmo porque um mapa que
correspondesse inteiramente ao território seria inútil. O que torna um mapa produtivo é que
ele se refere ao território, interpreta-o, concede uma unidade ao conjunto de cordilheiras, rios,
planícies, etc., de modo a nos fornecer subsídios suficientes sobre a direção que devemos
tomar, por onde nos movimentar e como chegar ao ponto pretendido. Eles não cobrem
exatamente o território, mas permitem que, de uma visada, seja possível perceber uma
unidade na imensidão do espaço real. Claramente, o mapa não é o próprio território. Antes,
o mapa apenas aponta para o território a ser explorado. Por isso mesmo, ele abre um espaço,
torna determinado território passível de ser atravessado. Em outros termos, um conceito não
é apenas expressão de uma realidade, mas possibilita o acesso a essa realidade. Para conceder
unidade ao território ele é, necessariamente, reducionista (PIEPER, 2019, p. 32).

Conclusão
Observamos nessas páginas a proposta de Jean Grondin para a filosofia da religião: definir o
conceito de religião no binômio culto crente. Nossa provocação parte da ideia de que esse binômio
pode ser tomado em seu uso como uma categoria de analise universal para a ciência da religião. No
entanto, diante da impossibilidade de responder à questão aqui levantada, passamos por alguns
problemas que esse conceito evoca e pelos quais precisamos pensar e nos dispor a resolvê-los caso
queiramos levar a cabo a definição de Grondin como uma categoria de análise da área. Em todo caso,
religião como culto crente só pode ser entendida dentro de uma perspectiva hermenêutica que a
compreenda antes como produto de um pensamento vigente, a religião é sempre vigência de um modo
de vida em relação com o mundo e captar a universalidade desse fenômeno não nos parece uma tarefa
razoável. Talvez, a única aplicabilidade do conceito de Grondin esteja justamente aqui, na filosofia
da religião.

132
Referências Bibliográficas
GRONDIN, Jean. Que saber sobre filosofia da religião? Aparecida/SP: Ideias & Letras,
2012.
VATTIMO, Gianni. A Tentação do Realismo. Rio de Janeiro: Lacerda Ed.: Istituto Italiano
di Cultura, 2001.
PIEPER, Frederico. Religião: limites e horizontes de um conceito. Estudos de Religião, São
Bernardo do Campo, v. 33, n. 1, jan.-abr. 2019, p. 5-35.
VON ZUBEN, Newton Aquiles; MEDINA, Camila. Reflexões sobre a experiência religiosa
a partir da hermenêutica filosófica de Gadamer. Estudos de Religião, v. 34, n. 2, maio-ago. 2020, p.
119-150.

133
TEOPOÉTICA: RELACÕES ENTRE LITERATURA E RELIGIÃO

Darío Gómez Sánchez1

Resumo
Em sentido amplo, o estudo da relação entre religião e literatura pode ser denominado de Teopoética. Mas, no
sentido estrito, a teopoética só se ocupa da leitura teológica das obras literárias, enquanto que a leitura ou aproximação
estética de obras religiosas seria mais própria da denominada literatura comparada. Desta perspectiva propomos
diferenciar três níveis de estudo da relação entre religião e literatura segundo a ênfase proposta: a) Teopoética geral ou
literária: linha de trabalho dentro da literatura comparada; b) Teopoética moderna ou tematologia: variante da literatura
comparada que se ocupa do estudo da temática religiosa; c) Teopoética específica: leitura teológica dos textos literários.

Introdução
A relação entre literatura e religião – ou se preferir, entre teologia e teoria literária - se
apresenta como uma das mais interessantes no campo dos estudos literários, se bem que tal relação
parece ter sido deixada de lado pela tendência dos estudos culturais, mais centrados nas questões
históricas ou sociológicas que metafisicas ou filosóficas.
Desde um primeiro momento, são vários os pontos de encontro entre as duas áreas: nas
sociedades primitivas, por exemplo, o poeta e o sacerdote (e o filosofo e o científico) eram uma
mesma pessoa: um líder espiritual encarregado de revelar com suas palavras o conhecimento do
transcendente. E, ao igual que o texto religioso reclama para sua compreensão de uma crença firme,
uma fé, o texto literário exige uma “suspensão voluntária da descrença” - seguindo a expressão de
Coleridge -, o que permite a captação de seu sentido. Ambos os textos trabalham com universos
possíveis. Além disso, é frequente o uso de imagens religiosas na poesia de diversas épocas para
dramatizar o amor profano, ou vice-versa, o erotismo aparece não poucas vezes como expressão de
comunicação com o sagrado. E se bem é verdade que há também diferenças definitivas, como o fato
de que o texto religioso está relacionado com a dimensão ética e a literatura com a elaboração estética,
tanto a religião quanto a literatura recorrem com frequência a termos que apelam ao sentimento e
involucram a emoção do leitor.
Inicialmente, em termos metodológicos, poderíamos pensar duas grandes possibilidades da
referida relação: uma aproximação literária aos textos cujo conteúdo e intenção é a expressão de uma
fé religiosa, e uma aproximação teológica aos textos que recuperam alguns temas ou formas das
expressões religiosas como material literário. Como sintetiza Manzatto (2016): “Na atualidade,
reconhecem-se dois caminhos que nasceram do recente diálogo entre teologia e literatura: aquele de
ler a Escritura com as ferramentas de análise literária e aquele de tirar de textos literários elementos

1
Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor associado ao Departamento
de Letras da Universidade Federal de Pernambuco. Email: dario.sanchez@ufpe.br

134
para a confissão de fé” (p. 15). Em síntese, a relação proposta trata de uma leitura ‘profana’ dos textos
religiosos e de uma identificação dos conteúdos monásticos em textos seculares.
Em um sentido amplo, o estudo da relação entre religião e literatura pode ser denominada de
Teopoética. Mas, se formos mais precisos, diríamos que, em sentido estrito a teopoética só se ocupa
de uma leitura teológica das obras literárias, enquanto que a leitura ou aproximação estética de obras
religiosas seria mais própria da denominada literatura comparada. Assim sendo, poderíamos pensar
três níveis de estudo segundo a ênfase proposta: a teopoética geral ou literária, a teopoética moderna
ou tematológica e a teopoética estrita ou leitura teológica dos textos literários. Eis a proposta que
pretendemos apresentar a seguir, diferenciando a teopoética específica da literatura comparada, e da
tematologia como uma de suas variantes.

A) Teopoética geral - literatura comparada


Em sentido geral, a teopoética estuda a relação entre literatura e religião em qualquer época,
com ênfase especial no reconhecimento da elaboração estética ou literária dos textos religiosos, com
destaque para algumas obras que são, simultaneamente, monumentos da história religiosa e literária.
Particularmente interessante neste primeiro nível é o estudo dos livros ou Escrituras sagradas cuja
origem, segundo os crentes, não se concebe como criação humana, mas como revelação divina. Trata-
se aqui da dimensão literária das escrituras das religiões abraâmicas: o Alcorão islâmico e as Bíblias
judia e cristã.
De fato, a consideração dos denominados livros sagrados como obras literárias tem favorecido
sua compreensão. A partir do momento em que tais obras são concebidas como textos literários é
possível considerar sua elaboração formal, além de sua significação doutrinal. Assim sendo, o
trabalho do redator de tais obras passa a ser considerado como uma elaboração artística com seus
próprios procedimentos e não apenas como uma composição histórica ou teológica. Como sintetiza
Manzatto (2016): “Isto é conhecido há muito tempo, mas foi apenas recentemente que as categorias
e ferramentas dos estudos literários passaram a ser aplicados na leitura da Escritura, e isto trouxe nova
luz para sua compreensão” (p. 14).
Especificamente o estudo dos livros sagrados como literatura permite tanto aos exegetas ler a
Bíblia a partir dos instrumentais oferecidos pelas teorias literárias quanto aos críticos literários mirar
a Bíblia enquanto obra literária ao lado dos demais clássicos, considerando, entre outras múltiplas
possibilidades, o estudo dos gêneros e subgêneros literários, as figuras de linguagem ou as
representações de deus como personagem, pois como afirma Jack Miles (2009) em Deus: uma
biografia: “a religião ocidental em particular pode ser considerada como uma obra literária mais bem
sucedida do que qualquer autor ousaria sonhar” (p. 15).

135
Um outro exemplo, por fora da tradição judeu-cristã, está no Hinduísmo, onde se encontra
uma obra religiosa com especial valor literário: Os Vedas, que incluem a seção dos Upanishads que
são comentários e interpretações filosóficas de notável elaboração formal e que giram em torno a
ideia dos vínculos ocultos entre os elementos da realidade, ideia que foi recuperada pelas correntes
do simbolismo literário nos termos de “Correspondências”, como titula Charles Baudelaire um de
seus poemas. Também do Hinduísmo são os poemas épicos do Mahabarata e o Ramayana, e incluído
no primeiro se encontra o poema filosófico espiritual Bhagavad Gita (Canto do Senhor) que apresenta
o diálogo entre o guerreiro Arjuna e a deidade Krishna que fala sobre o universo, os mistérios da vida
e da morte e a missão que o homem deve cumprir nesta vida.
Neste primeiro nível da teopoética geral também pode ser estudada a denominada literatura
crista medieval, pois se bem não se trata de textos confessionais ou sagrados como os anteriormente
mencionados, há neles uma evidente preocupação pela elaboração estética ou literária, além de uma
proposta ética e sua intenção didática. Aqui encontramos as cantigas, hagiografias, autos
sacramentais assim como a abundante literatura dos milagres marianos, todo o qual, segundo a leitura
de Jiménez (2007), pode ser pensado como antecedente da literatura fantástica em ocidente (p. 45)
Também merecem atenção especial neste nível da literatura comparada dois monumentos da
literatura universal como são as Confissões e a Divina comedia. O livro de Santo Agostinho é
considerado por muitos como a primeira obra literária moderna porque explora extensamente os
estados interiores da mente humana. Já a obra de Dante, não há dúvida de sua importância na
consolidação do imaginário literário ocidental.
E derivada dessa literatura crista teremos a poesia mística renascentista, especialmente em
língua espanhola, com Santa Teresa, Frei Luís de León e San Juan de la Cruz. De fato, a poesia será
um dos gêneros mais predominantes e permanentes nesta relação entre literatura e religião, como fica
evidente no período romântico e suas derivações como o simbolismo, o parnasianismo, e algumas
variantes do modernismo, nos quais encontramos poetas com evidentes preocupações religiosas. Mas
aqui já entramos no segundo nível de nossa proposta, que tem a ver não com a aproximação literária
à religião, mas com o tratamento de temas religiosos por parte dos autores literários.

B) Teopoética moderna – tematologia


O processo de secularização da cultura europeia e a consequente diminuição do poder da igreja
- iniciados com a Reforma luterana do século XVI e consolidados com o Iluminismo do século XVIII
- tiveram uma importante influência no surgimento de escritas não doutrinais, entre elas a literatura,
entendida no seu sentido moderno a partir desse momento. Aqui seria importante indagar se a
literatura cumpriu uma função de apoio ou resistência à secularização, ou até se ocupou o lugar das
antigas Escrituras. Mas, neste momento, o que nos interessa destacar é que a partir de tal processo

136
deixa de ser frequente a existência de uma literatura religiosa – no sentido dos livros sagrados da
antiguidade ou dos escritos religiosos medievais -, mas suas temáticas continuam aparecendo como
matéria de elaboração literária, inicialmente na poesia romântica com suas heterodoxias religiosas e
na narrativa realista de ficção com sua tendência positivista ou cientificista, posteriormente em
elaborações mais ecléticas ou sincréticas dos dogmas.
Nessa perspectiva, a identificação e análise da temática religiosa na literatura moderna pode
se inscrever no campo da Tematologia, aquela linha da literatura comparada que trata da diversidade
no tratamento de um tema ou personagem especifica por parte de diferentes autores ou em diferentes
épocas. Nessa linha é possível estudar a presença de um assunto religioso específico, por exemplo, a
ideia de deus: Qual é o discurso de um ou vários autores sobre Deus dentro da literatura do s. XX?
Sabendo que num romance é motivo de diferença se o autor acredita que o mundo e seus seres tenham
sido criados por deus ou são só um acidente ou resultado da evolução. A propósito, existe um
interessante estudo de autoria de Charles Moeller titulado Literatura del siglo XX y cristianismo- el
silencio de Dios (1960), que investiga a importância de Deus nas obras de Albert Camus, André Gide
e vários outros escritores.
Outro personagem “religioso” recorrente na literatura é Satanás. Sua presença dentro da
tradição cristã ao longo dos séculos é ampla e variada, mas é especialmente interessante sua
representação literária na modernidade, a partir da publicação das obras Lost Paradise de John Milton
em 1667, na qual é relatado o mito da insurreição de Lúcifer, e The Marriage of Heaven and Hell de
Willian Blake em 1790, que redefine os conceito do bem e do mal numa linguagem profética, além
do poema As litanias de Satã de Charles Baudelaire e o romance Là Bas de Karl Huysmans,
antecedentes estes da denominada literatura satânica do século XX.
. Alguns outros autores relacionados com o tratamento secular de temas religiosos são Rainer
Maria Rilke, Herman Hesse, Ernest Renan, Charles Dickens, Machado de Assis e José Saramago.
Isto porque na literatura do século XX dezenas de escritores dialogaram de diversas maneiras com o
texto bíblico. Outra questão derivada do processo de secularização são as elaborações mais pessoais
dos temas religiosos que desde finais do século passado se apresentam sob o nome de “Nova era” ou
“Nova religiosidade” e que se concretizam numa literatura de massas na qual os nomes de Paulo
Coelho e Dan Brown ocupam um lugar fundamental.

C) Teopoética – teologia
Num primeiro momento poderíamos incluir no nível anterior a proposta teórica de Karl Josef
Kuschel (1999) consistente em uma linha de estudos académicos direcionados ao discurso sobre Deus
no âmbito da Literatura e da análise literária. Mas é importante ter presente que seu estudo se centra

137
na reflexão teológica presente em alguns autores e, nesse sentido, é menos uma análise literária que
teológica, pelo que faz parte de nosso terceiro nível de análise.
Falando em propriedade, a teopoética é o estudo da relación entre literatura e religião desde
una perspectiva teológica, ou melhor, o estudo da presença da teologia na literatura: o problema da
fé e seus assuntos derivados como assunto dos textos literários. Para Bingemer (2016), a teopoética
é uma “Teoria do poder espiritualmente transformador dos textos bíblicos como textos [literários] e
da profundidade teológica dos textos literários, atualizados através de uma certa forma de leitura ou
interpretação” (p. 3).
O problema é que são muito diversas as possíveis leituras teológicas da literatura: a literatura
trabalha com imagens, a teologia com conceitos. Na medida que a teologia trabalha com imagens
estabelece uma relação com a literatura, mas sempre que não se reduza a literatura a teologia. Ou seja,
a literatura não é uma forma não teórica da teologia, uma testemunha ou exemplo ou “lugar
teológico”, mas uma expressão não conceitual da teologia ou uma forma legítima de teologia.
Segundo Carlos Barcellos (1999) na discussão sobre o caráter teológico da literatura é importante
considerar a diferença entre o poder teológico implícito (leitura teológica de qualquer obra) e o poder
teológico explícito (temática teológica de uma obra). No último caso seria melhor falar de uma
hermenêutica literária de obras com poder teológico e no primeiro caso de uma hermenêutica
teológica de obras com tema religioso, pois isso não depende da obra se não da leitura proposta. E
em ambos os casos a literatura pode ser instrumentalizada como uma fase da análise teológica: a
literatura oferece insumos especiais ou singulares a teologia, mas pode também ser considerada como
propriamente teológica (p. 15-20).
Assim sendo, teríamos duas possibilidades: uma teologia da literatura subdivisão da ciência
da literatura (assim como uma sociologia da literatura), e uma teologia que inclui como evidencia o
estudo da literatura. E é neste ponto que ocupa um lugar fundamental a proposta de Josef Kuschel.
No seu livro Os escritores e as escrituras, publicado originalmente em 1991, o teólogo alemão
faz uma representação teológico-literária de quatro grandes autores que, de algum modo, revelam nos
seus escritos reflexos da faceta de Deus: Franz Kafka (a questão da existência de Deus); Rainer Maria
Rilke (as metamorfoses da essência religiosa); Herman Hesse (a imagem de Deus e a impossibilidade
de sondar a alma); Thomas Mann (o redescobrimento do cristianismo, e as relaciones entre Deus e a
ética). Kuschel sustenta sua análise no questionamento dos métodos confrontativo (ideologia vs.
verdade) e correlativo (humanidade e divindade) porque ambos subordinam a literatura à teologia, e
propõe o método da analogia estrutural como um diálogo que estabelece semelhanças (o próprio) e
diferenças (o estranho) entre ambas. Posteriormente, sua proposta teopoética evoluirá para uma
teologia intercultural que não é este o espaço para resenhar.

138
Por enquanto nos interessa concluir afirmando que, desde uma perspectiva mais literária que
teológica, nosso interesse se centra nos dois primeiros níveis propostos por sua amplitude histórica e
sua ênfase literária na consideração da relação entre literatura e religião, e nesses casos o mais
apropriado é falar em literatura comparada, ainda que incluindo alguns elementos da teopoética.

Referências Bibliográficas
BARCELLOS, J. C. Literatura e teologia: perspectivas teórico-metodológicas no pensamento
católico contemporâneo. Numen: revista de estudos e pesquisa da religião. Juiz de Fora, v.3, n.2,
1999. p.9-30,
BINGEMER, Maria Clara: Teopoética: uma maneira de fazer teologia? Interações: Cultura e
Comunidade, Belo Horizonte, Vol. 11, núm. 19, jan.-jun. 2016, pp. 3-7
JIMÉNEZ Macedo, Tania. El relato milagroso en el contexto de la literatura religiosa
novohispana. La experiencia literaria. Madri, n. 14-15. Marco 2007. p. 33-63.
KUSCHEL, Karl-Josef. As escrituras e os escritores: retratos teológicos-literários. São
Paulo: Loyola, 1999
MANZATTO, Antonio: Teologia e Literatura. Bases para um diálogo In: Interações. Vol. 11.
n. 19, Ago. 2016. p. 8-18,
MILES, Jack. Deus-Uma Biografia. Tradução: José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia
das Letras, 2009.
MOELLER, Charles. Literatura del siglo XX y cristianismo- el silencio de Dios Madri:
Gredos, 1960
PIÑERO, Antonio (ed.). Los libros sagrados en las grandes religiones. Barcelona: Herder,
2016

139
A RELIGIOSIDADE E O DIREITO: A SECULARIZAÇÃO DO
ORDENAMENTO JURÍDICO CONSTITUCIONAL

Mariana de Faro Felizola1

Resumo
Pretende-se investigar se há relação entre o movimento ocidental conhecido como constitucionalismo e o
processo de secularização, de tal forma que se possa concluir pela base religiosa originária de todo o ordenamento
constitucional moderno. Entendendo-se a secularização como uma dialética entre elementos de crença e elementos que
dela pretenderam separar-se, mas ao fazê-lo, acabaram incorporando suas principais características. Com este intuito, os
métodos de procedimento utilizados serão o fenomenológico, o genealógico e o hermenêutico, a abordagem
será dedutiva e as fontes serão bibliográficas, com base nas teorias de Giacomo Marramao, Giorgio Agamben, Mircea
Eliade, dentre outros. No presente estudo, portanto, a religião não é analisada através de seu aspecto dogmático, mas, sim,
enquanto fenômeno com consequências práticas na sociedade e em outros ramos do conhecimento. Incluindo-se a
presente temática dentro da teoria funcionalista da religião, com foco na análise da função que exerce perante a sociedade,
ainda que por meio de institutos secularizados, mas cuja origem é dialeticamente religiosa. Desta forma, através da
transdisciplinaridade das Ciências da Religião, é possível que filosofia e direito conjuguem-se com o Sagrado na busca
de melhor entender as instituições seculares, especificamente a constitucionalização.
Palavras-chave: ciências da religião; constituição; genealogia; hermenêutica; secularização.

Introdução
A temática que envolve o processo de secularização possui uma forte carga de
transdisciplinaridade, de acordo com o que se pode observar dos textos de grandes autores que se
debruçaram sobre a matéria, tais como Giacomo Marramao e Eric Voegelin. Em seus estudos, os
autores perpassam sobre temas afetos à religião, à história, à filosofia e à sociologia, pois os autores
destacam a dialética inerente à conceituação de secularização, evitando a simplificação ou
reducionismo do fenômeno enquanto simples afastamento da religião do espaço público.
Reconhecendo, pois, a internalização de elementos religiosos na realidade moderna enquanto
fundantes do próprio Estado secular.
Será sob esta ótica que se pretende investigar se, sob a ordem secularizada, o conceito
contemporâneo de Constituição pode também ser fruto desta secularização, tendo eventualmente
absorvido e representado elementos que originariamente eram religiosos. Para isto, os estudos
perpetrados por Giorgio Agamben e Paulo Ferreira da Cunha serão centrais para demarcar o
protagonismo do Sagrado na origem da ordem jurídica.
Com este intuito, os métodos de procedimento de pesquisa utilizados serão o fenomenológico,
o genealógico e o hermenêutico, a abordagem será dedutiva e as fontes serão bibliográficas.
No presente estudo, portanto, a religião não é analisada através de seu aspecto dogmático,
mas, sim, enquanto fenômeno com consequências práticas na sociedade e em outros ramos do

1 Formada em Direito, especialista em Direito do Estado, mestranda em Ciências da Religião, UFS,


marifelizola@gmail.com

140
conhecimento. Incluindo-se a presente temática dentro da teoria funcionalista da religião, com foco
na análise da função que exerce perante a sociedade, ainda que por meio de institutos secularizados,
mas cuja origem é dialeticamente religiosa.

Da ordem religiosa à ordem secularizada: a crença no movimento constitucional


Historicamente, é possível, segundo o autor Giacomo Marramao (1997) faz ao longo de sua
obra, pontuar acontecimentos tais como a Reforma Protestante, a Paz de Westphalia e a ascensão do
iluminismo, como focos de uma aparente ruptura entre as instituições religiosas e as instituições que
se propunham estatais.
Ocorre que, não é possível afirmar que o movimento de secularização teve como marco
principal algum destes eventos especificamente. “Remonta assim à Antigüidade tardia o arquétipo
teológico-político do milenar confronto entre poder “temporal” e poder “espiritual”.”
(MARRAMAO, 1997, p. 20, grifos no original). Trata-se, portanto, de uma construção mais
complexa.
Tanto é assim que Agamben (2002, p. 16) analisa a origem do termo Sagrado a partir de uma
análise da vida em relação ao Estado, pois a vida nua do homo sacer seria aquela vida incluída no
ordenamento através de sua matabilidade ou possibilidade de exclusão, de forma que Sacer seria um
“[…] enigma de uma figura do sagrado aquém ou além do religioso, que constitui o primeiro
paradigma do espaço político do Ocidente.” (ibidem).
Para isso, à semelhança de Agamben, Gadamer (1999, p. 636) defende a análise histórica sob
a ótica hermenêutica através da análise crítica da história a partir de alguns fenômenos interpretados
levando em consideração a ideologia de determinado período de concepção.
Dessa forma, para que se possa enfim compreender um texto através da hermenêutica é preciso
que o intérprete identifique suas próprias concepções prévias (pré-conceitos) para que melhor consiga
superá-los.
Tem-se, portanto, um conceito-chave para unir a genealogia e a hermenêutica: a ideologia.
Isto porque, para que se possa alcançar a ideologia do discurso é necessário entender as crenças nele
envolvidas, sua rede de micropoderes, na tentativa de interpretar os fatos históricos não sob o nosso
crivo, mas sob um olhar de alteridade.
Assim é que a análise sobre a secularização da ordem estatal – enquanto transferência de
legitimidade – vem trazer, ao suceder império e igreja, um verdadeiro sincretismo entre ambos, na
medida em que seus elementos constitutivos articulam-se politicamente. Por isso é que “[...] numa
forma secularizada, essas categorias teológicas continuam a exercer influência sobre o mundo e as
experiências da existência humana que são formadoras do modo de conceber a realidade, a auto-
interpretação da sociedade.” (PRAZERES, 2019, p. 76).

141
Isto é, o aparente dualismo simplista entre os poderes – metaforizado pelas cidades
agostinianas – é superado. Mas para além desta superação, há uma interiorização de elementos
religiosos.
Ilustrativamente opondo-se a Igreja (A) e o Estado (B), o que se obtém é uma síntese entre
ambos: (AxB → AB x AB), ou seja, “[…] a dinâmica de tal processo acaba dando lugar a uma
simetria de opostos, em virtude da qual à “secularização da Igreja […] corresponde uma
“dessecularização do Estado”.” (VOEGELIN, 1982, p. 39). Sacralizando-se, assim, o Estado no
sentido de nele reconhecer elementos característicos da religiosidade em sua origem.
Sob esta ótica, é possível, portanto, observar ainda nos mitos, a sua faceta de fator legitimante
das normas, pois, segundo Eliade (1972, p. 19):
Nas civilizações primitivas, o mito desempenha uma função indispensável: ele exprime,
enaltece e codifica a crença; salvaguarda e impõe os princípios morais; garante a eficácia do
ritual e oferece regras práticas para a orientação do homem.

Enquanto que, nas sociedades modernas, a função da Constituição de um Estado pode ser
assim definida – aproveitando-se das palavras-chave acima utilizadas por Eliade – como o Texto
Magno que exprime e codifica a crença social, salvaguarda e impõe os princípios morais e garante a
eficácia de suas disposições, oferecendo regras práticas para a orientação do cidadão.
Isto porque, ao comparar a generalidade das constituições, José Afonso da Silva (2012, p. 44),
um dos grandes nomes da doutrina jurídica do Direito Constitucional, identifica uma estrutura
normativa comum composta pelas seguintes categorias: elementos orgânicos, organizadores do
Estado; elementos limitativos, limitam a autoridade através de direitos e garantias; elementos
socioideológicos, caráter interventor para limitar a autonomia privada; elementos de estabilização
constitucional, asseguram a solução dos conflitos e a defesa do texto; elementos formais de
aplicabilidade, explicativas da aplicação de suas disposições.
Não significa dizer que sempre estarão presentes, mas são de ordem comum, pois resumem a
preocupação com a organização estatal e a ingerência do Estado na vida do cidadão, principalmente
quando analisados os países ocidentais, nos quais o movimento de constitucionalização prevaleceu.
Necessário, neste ponto, destacar que cidadão não é qualquer um que crê, mas limita-se
àqueles que possuem os requisitos necessários – contidos na Constituição – e, nas democracias
modernas, e passam pelo rito de passagem burocrático que se configura na obtenção do título eleitoral.
Ao longo do constitucionalismo, a codificação das estruturas e expressão dos direitos e
deveres de um Estado, foi ganhando cada vez mais importância para legitimar a crença e consequente
respeito à norma.

142
Tal movimento possui como marco histórico a Magna Carta inglesa de 1215, que resultara
que um desentendimento entre a Coroa e a Igreja, prevendo limitação da liberdade e autoridade para
ambos. A vontade do monarca, para ser legítima, deve estar de acordo com a lei.
O constitucionalismo é, portanto, um movimento marcado pela tentativa de limitação do poder
das autoridades através da palavra codificada, possuindo em comum com o movimento de
secularização, a noção central e catalizadora da soberania. Ocorre que, muitas vezes ao longo da
história da formação dos Estados modernos, tal limitação foi meramente simbólica.
Daí a concepção política de Constituição definida enquanto produto dos fatores reais de poder.
De forma que, “[...] o Direito tem eficácia reduzida, pois tanto seu reconhecimento, em caso de dúvida
ou conflito, quanto sua aplicação no caso concreto ficam dependentes da conveniência política dos
detentores reais do poder” (DALLARI, 2013, p. 28).
Isto porque, não possuindo a população fé nas disposições constitucionais, coloca-se em risco
toda a sua estrutura, ficando à mercê dos acima citados fatores reais de poder, o que, em larga escala,
constituirá motivo de crise e desestruturação.
O movimento de constitucionalização segue, pois, concretizando a ideia de separação entre
Igreja e Estado no tocante às decisões políticas, mas, ao mesmo tempo une-os por estarem ambos
limitados pelas suas normas.
Assim, posterior ao caos revolucionário, o poder constituinte é instaurado e cria a nova ordem.
Considerando a atual doutrina constitucional que o Poder Constituinte Originário é ilimitado,
autônomo e incondicionado, não pertencendo à ordem jurídica anterior e, por isso mesmo, não se
encontra por ela limitado.
No entanto, tal ordem posta só mostrará efetividade se corresponder aos anseios político-
sociais, enraizando-se na crença da organização e limitações estatais que dela advirem. A ideologia
mostra-se, assim, como um filtro de interpretação que caracteriza forças políticas conflitantes. Filtro
de interpretação, porque sob determinada bandeira ideológica ações e comportamentos materializar-
se-ão enquanto único caminho verdadeiro.
Desta forma, a Constituição, criada a partir deste poder ilimitado, quase imanente, é norma
que institui direitos e impõe obrigações para os cidadãos, que se pretende paralelo aos microcosmos
de direitos e obrigações impostas pela religiosidade de cada indivíduo. Porém, sem deles muito
divergir, herdando a sua supremacia, institucionalidade e composição hierárquica.
Isto posto, a Constituição corporifica um mito utópico – através de suas normas programáticas
–, um mito de origem – pois o Poder Constituinte originário e ilimitado cria a nova ordem por ela
regida – e um mito que cumpre sua função de ensinar regras de conduta e prever punições. “A
constituição é, assim, uma utopia […] moldada ao género ficcional, como narrativa, conto, romance,
etc.” (CUNHA, 2007, p. 40).

143
Por isso é que, como afirma Marcelo Ramos (2010, p.50) “[...] a religião nunca deixou de
constituir para a tradição jurídica ocidental uma importante fonte de conteúdo. [...] os valores
transmitidos por meio das crenças religiosas predominantes não deixaram de compor a substância do
direito”.
Tais sãos fundamentos iniciais que permitem suscitar a imbricação entre a ideia da ordem
jurídica constitucional e elementos de origem religiosos levando em conta a intensidade com que são
absorvidos os ditames constitucionais pelos cidadãos, em comparação à crença e ensinamentos
religiosos ocidentais.

Conclusão
Do exposto, muitas são as correntes que estudam sob um viés genealógico a secularização,
tanto na filosofia quanto na sociologia. Seja qual for a ótica sob a qual se analise o tema, não há como
separá-lo da noção de política enquanto soberania e representatividade e, portanto, das bases que
fundamentam a ordem jurídica.
Fornecendo, pois, elementos suficientes à fase inicial de pesquisa de mestrado para que se
vislumbre a existência de um fenômeno de origem religiosa que permeia coletivamente a formação e
legitimação de institutos sociais modernos, ainda que conscientemente não se tenha por óbvia esta
origem.

Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: O poder soberano e a vida nua. 1ª ed. Belo Horizonte:
editora UFMG, 2002.
CUNHA, Paulo Ferreira da. A Constituição Viva: Cidadania e direitos humanos. 1ª ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado editora, 2007.
DALLARI, Dalmo. A Constituição na vida dos povos: da Idade Média ao Século XXI. 2ª ed.
São Paulo: Saraiva, 2013.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. 1ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1972.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. 3ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 559-686.
MARRAMAO, Giacomo. Céu e Terra: Genealogia da Secularização. 1ª ed. São Paulo:
UNESP, 1997.
PRAZERES, Alexandre de Jesus dos. Modernidade e Secularização: Questões Filosóficas.
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técnica abordados através da sociologia do conhecimento. 2019. p. 75-123. Disponível em:
https://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UFS-2_0b33f8c8ab5a1fb2ce9fc45458145897. Acesso em: 20 de
outubro de 2020.
RAMOS, Marcelo Maciel. Direito e religião: reflexões acerca do conteúdo cultural das
normas jurídicas. In: Meritum – Belo Horizonte, v.5, n.1, p. 49-76, jan/jun. 2010.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Consitucional. 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
p. 33-45.
VOEGELIN, Eric. A nova ciência da política. 2ª ed. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1982.

144
A VIVÊNCIA RELIGIOSA COMO RESULTADO DA TRANSCENDÊNCIA E
POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO DE DEUS

Jonas Pacheco Machado

Resumo
De algum modo, mesmo que minimamente, até o mais ateu de todos os ateus faz uma experiência de
transcendentalidade. A experiência transcendental é grande possibilidade de o homem tocar o mistério que envolve a sua
existência, e de certo modo, ela faz parte da vida humana. Querendo fugir de sua infinitude o homem pode se prender a
tarefas cotidianas. Mas essa condição de infinitude lhe perpassará hora ou outra na mais simples e rotineira ação. A
abertura para algo maior, além da racionalidade humana faz parte do ser do homem, o constitui. É o ir além de si, de seus
desejos, buscar aquela completude mais profunda de seu ser que está fora de si. A transcendentalidade coloca-nos sempre
na busca de um mistério que se dá a compreender, mas é inabordável. O homem é um ser referido a Deus, um ser referido
ao mistério absoluto. Sendo o ser humano um ser de transcendência, sabe-se que ele é voltado para Deus. Sabe-se que a
história da humanidade é a história da religião e está por sua vez, tem na constituição do humano sua maior expressão.
Dessa forma, a religião pode oferecer “caminhos” para a sociedade e cada vez mais se reconhecer nas diversas culturas,
pois a verdadeira religião é aquela que ajuda o Homem a ser melhor, completar-se.
Palavras-chave: Ser humano. Experiência. Transcendência. Religião .

1. O homem face a Deus


1.1 Convite a mergulhar no mistério
Esse subtítulo remete-nos a ideia de mergulho porquê de Deus é mistério, mas é um mistério
que se autoconvida a ser desvendado. Ele mesmo chama-nos ao seu conhecimento. “Entretanto, tu
és um Deus que se esconde, ó Deus de Israel, o Salvador”. (Cf. Is 45,15). Sabemos que Deus é
“misterioso”, mas isso não quer dizer que não podemos descobrir, conhecer, experienciar algo de
Si. É um mistério que podemos tentar possuir, e temos capacidades para isso. Possuir aqui não como
propriedade, mas como apreensão e experiência deste mistério. O convite que ele nos faz é dessa
natureza: realizarmos uma experiência com Ele
Não podemos falar do mistério de Deus, do mistério que é Deus sem esbarrar nos limites
racionais e também percebermo-nos limitados pelo próprio Mistério. O fato de a palavra Deus existir
coloca-nos diante de um mistério do qual não podemos escapar. Ao falarmos a palavra Deus falta-
nos uma ideia concreta como temos de outras. Algumas palavras mesmo sem termos conhecimento,
possuímos compreensão, entendimento, é possível ter certa experiência sobre elas. Quando falamos
a palavra Deus não temos uma experiência dessa palavra como temos de outras. Porém a palavra
Deus existe, está aí. “O que existe de mais simples e iniludível para o homem com respeito à questão
de Deus é que a palavra “Deus” existe em sua vida espiritual e intelectual”. (RAHNER, 1989, p. 61)
O simples fato da palavra “Deus” existir já merece nossa atenção. Porém “essa palavra” não
fala nada sobre ela mesma. Rahner chama isso de palavra sem rosto. Ela não diz nada sobre o
significado de Deus. Ao dizermos Senhor, Pai, temos uma ideia trazida pelo contexto da religião em
suas origens o que significam tais palavras.

145
Esse convite que recebemos para mergulhar no mistério é feito pelo próprio Deus. Ele nos
atrai a ele. Convite que é feito a todo e qualquer ser humano. É um convite diferente, onde de certo
modo somos impulsionados por uma condição propriamente do gênero humano. É por sermos
transcendentes que recebemos de Deus o convite para mergulhar no mistério absoluto que é. Será a
condição de transcendental do homem que veremos a seguir.

1.2 Homem: ser transcendente


De algum modo, mesmo que minimamente, até o mais ateu de todos os ateus, faz uma
experiência de transcendentalidade. Pode-se discutir a questão da existência ou não de Deus, mas a
experiência transcendental é indiscutível e intrínseca ao ser humano. Querendo fugir de sua
infinitude o homem pode se prender a tarefas cotidianas, rotineiras. Mas essa condição de infinitude
lhe perpassará hora ou outra na mais simples e rotineira ação.

O homem pode ignorar a experiência de transcendência. Na perspectiva do amor de Deus,


Ele nos amando tanto é possível em momento algum um homem não sentir-se amado e fugir da sua
condição de transcendência. Sendo assim, a transcendência não é algo ontológico ao ser humano.
Será mesmo isso possível? Pode fechar-se a seu mundo concreto, nas suas ocupações, vivendo de
ordens, comandos, se “maquinizando”1. Alguns negarão a transcendência de maneira ingênua, pois
se distanciam de si mesmos ocupados por situações materiais. Outros que por serem ceticistas
negarão a possibilidade de transcendência em várias situações preferirão ocupar-se de coisas úteis.
Mas em última instância não descartam a transcendentalidade.
Ao se caracterizar por essa transcendentalidade o ser humano confronta-se consigo mesmo,
torna-se pessoa e sujeito. Em relação a transcendência e o gênero humano Rahner diz:
Não é o “conceito” tematizado da transcendência, conceito em que se reflete objetivamente
sobre ela, mas é aquela abertura apriorística do sujeito para o ser em geral, que se dá
precisamente quando a pessoa se percebe envolvida na multiplicidade das preocupações,
ocupações, temores e esperanças no mundo do seu dia-a-dia. A transcendência propriamente
dita está de certa forma como que no fundo do quadro em que o homem vive, na origem
indispensável do seu viver e conhecer. E essa transcendência propriamente dita nunca é
captada pela reflexão metafísica totalmente e em sua pureza, ou seja, de maneira não
objetivada [...] Mas o homem é e contínua sendo ser de transcendência, ou seja, aquele ente
ao qual a infinitude indisponível e silenciosa da realidade se apresenta continuamente como
mistério. Assim o homem torna-se pura abertura para este mistério e precisamente assim põe-
se como pessoa e sujeito perante si mesmo (RAHNER, 1984, p. 50)

Abertura para algo maior, além da racionalidade humana. Faz parte do ser do homem, o
constitui. É abertura para o mistério que o compreende. É o ir além de si, de seus desejos, buscar
aquela completude mais profunda de seu ser que está fora de si. Não como algo puramente externo,
como se pegássemos um objeto para nos satisfazer, mas como aquele “vazio existencial” que é

1
Expressão utilizada para fazer referência a estado do homem que vive em ações repetitivas, automatizando-se.

146
preenchido por algo que traz completude, sentido a existência. E que também não se esgota. A
transcendentalidade coloca-nos sempre na busca de um mistério que se dá a compreender, mas é
inabordável. Com isso podemos afirmar com Rahner que o homem é um ser referido a Deus, um ser
referido ao mistério absoluto. Sendo o ser humano um ser de transcendência, nessa perspectiva que
estamos observando, sabe-se que ele é voltado para Deus. O homem vai conhecendo Deus à medida
que se abre a sua transcendentalidade. É o que desenvolveremos em outro capítulo, falando do
conhecimento de Deus que perpassa pela experiência que fazemos d’Ele, com Ele e para Ele. Tais
afirmações ficam claras em:
Se o homem é realmente um ser de transcendência, responsabilidade e liberdade, que como
sujeito está entregue a si mesmo e em suas mãos e nas mãos do que lhe foge ao controle,
então no fundo já dissemos, com isso, que o homem é um ser referido a Deus. E essa
referência ao mistério absoluto está sem cessar sendo-lhe outorgada por este mistério como
fundamento e conteúdo de sua essência. Ao entender o homem nessa chave de
compreensão, é claro que não queremos dizer que ao usar o termo “Deus” nesta proposição
saibamos o que o termo significa por outra fonte que não seja essa referência mesma ao
mistério [...]. O homem só sabe explicitamente o que significa “Deus” à medida que
permite à sua transcendentalidade, situada além de tudo o que possa identificar
objetivamente, entrar no campo de sua consciência, acolhendo-a e refletindo
objetivamente sobre o que já está dado com sua transcendentalidade3 (RAHNER, 1989,
p.60)

Podemos diante de tais afirmações inferir que esse mistério que é Deus está distante. Que
nossa abertura a transcendência está distante. Mesmo que possamos compreendê-lo ele se faz um
horizonte infinitamente longínquo. Mas, Deus o mistério absoluto permanece “mistério
compreensível” não somente distante. Ele é proximidade acolhedora. Por ser mistério que vai se
comunicando se faz próximo. Rahner supera o conceito escolástico de mistério. Alguma coisa é
mistério porque opõe a razão. Deus é mistério que se revelou em Cristo. Ele é um mistério que não
se opõe a razão.
Deus para Rahner é o “para onde” da existência humana. O horizonte de referência última do
homem. Todo ser humano faz a experiência de transcendência, pois se percebe referido a algo maior
que ele, que não define, que não nomeia. Esse para onde da existência é Deus. Em Cristo o mistério
absoluto se revela a nós. A palavra Deus é um conceito objetivamente para o mistério abissal. Após
falarmos do ser de transcendência que é o homem, dele estar voltado ao mistério que é Deus, vamos
no tópico seguinte, mostrar Deus como um mistério Absoluto que se faz compreensível, se faz
acessível a nós, se comunica ao ser humano.

1.3 Deus: mistério absoluto que se dá a compreender


O conhecimento racional para a escolástica é um conhecimento eficiente. O verdadeiro
conhecimento é aquele que se tem com a razão. O conhecimento do mistério é deficiente. O
conhecimento de Deus é uma visão beatifica. O conhecimento para Rahner não é algo que se dá

147
somente com a inteligência, tem a ver com a vontade, com a liberdade. Deus não entra em relação
comigo por causa da minha razão. O conhecimento do mistério é que é na verdade o conhecimento
eficiente. O conhecimento racional é que é deficiente, pois Deus não cabe na razão. O mistério de
Deus não cessa na visão bestifica. Conhece-se a Deus com a vontade, com o amor. João diz que
quem ama conhece a Deus.
Rahner quando fala de experiência está atento a esse conhecimento amoroso de Deus. O
próprio amor é conhecimento. O conhecimento de Deus é sempre conhecimento do mistério, de
mistério.
A razão não consegue apreender os mistérios de Deus. Não é possível separar conhecimento
da vontade, que tem a ver com o coração, com nosso desejo mais profundo. Quem conhece domina
uma realidade, mas Deus não é uma realidade que se possa dominar, como uma árvore por exemplo.
O intelecto capta o ser do objeto. Deus não é objeto nesse sentido. Ele é objeto da teologia enquanto
sujeito. É uma pessoa em relação conosco! Como se conhece uma pessoa? Conhecimento que
envolve o afeto. Conhecer, querer e ser livre são uma unidade. Para conhecer o mistério, o
conhecimento tem que se ultrapassar no amor, que é sempre uma experiência. Nosso modo de
conhecer é um modo finito de conhecer.
A palavra Deus, vamos tomá-la como um conceito. Na seguinte citação temos que: “o
conceito ‘Deus’ não é apreensão de Deus pela qual a pessoa domina o mistério, mas um deixar-se
apreender por mistério que sempre está presente e sempre se subtrai”. (RAHNER, 1989, p. 72).
Mistério este que permanece mistério, mesmo ao se manifestar ao homem. Segundo o jesuíta que
estamos estudando Deus é um “conceito reflexo” (1989, p.72)4. Esse subtrai lembra-nos não uma
diminuição. Não significa que o que conhecemos de Deus perdemos em determinado ponto. Mas o
mistério faz com que cada vez mais caminhemos em direção a ele e isso faz parecer que não estamos
apreendendo nada dele.

Podemos dizer Deus é absoluto, aquele que por definição, como diz a palavra, está solto,
(ab-soluto), livre de tudo. Não é possível pensar que a inteligência humana é uma espécie de
buraquinho onde é impossível que caiba o mar que é Deus.
Para permanecer verdadeira, toda ontologia metafísica sobre Deus deve sempre retornar à
sua fonte, deve retornar à experiência transcendental de sua referência ao mistério
absoluto, deve retornar à prática existencial do livre acolhimento dessa referência.
(RAHNER, 1989, p.72)

A experiência transcendental originária é aquela que jamais se pode captar pela reflexão.
Experiência esta que o homem se confronta com o mistério absoluto que chamamos Deus, onde ele
pode ou não acolher o desvelamento desse mistério. O acolhimento se dá na esfera existencial. O
ser humano acolhe em vida o mistério que se mostra. Esse acolhimento é também uma forma de
conhecer Deus. À medida que ele se mostra, que vai desvelando-se vou conhecendo-o melhor.

148
Quais são então os limites do conhecimento humano para compreender os mistérios de
Deus? Os limites do conhecimento de Deus estão mais no nosso comportamento, no nosso agir, na
maneira como nós nos relacionamos com as outras pessoas e com o mundo. É aí que os limites que
nós temos ou as limitações que nós colocamos no relacionamento com os outros se tornam também
limites para o conhecimento de Deus. Os limites são postos, não tanto pela nossa natureza, mas
principalmente por aquilo que nós com ela fazemos. Paulo diz que conhecer Deus é ser conhecido
por ele. Rahner tenta chegar a Deus pela via do que Ele não é do que aquilo que Ele é. Jeremias
coloca na boca do próprio Deus. “Socorrer o órfão, a viúva e o estrangeiro, isso, diz Deus, é
conhecer-Me”. (Cf. Jr 22,16).
Conhecimento que não se manifesta apenas na racionalidade, mas na ação, naquilo que
somos capazes de fazer por causa de Deus. No conhecimento de Deus, muitas vezes, há uma espécie
de descompasso entre aquilo que nós sabemos ou aquilo de que nós podemos dar conta e aquilo
que Deus, sem que nós saibamos direito como, nos manda fazer. Conhecer Deus é deixar que isso
que chamamos fé fale mais alto e ser capaz de agir de acordo com essa fé. Deus cria o ser humano
como aquele que é capaz de Deus, Capax Dei. No mais profundo de sua liberdade, o ser humano é
capaz de responder a Deus.

Referências Bibliográficas
RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé. São Paulo: Paulinas, 1989.

149
A ESSÊNCIA DA RELIGIÃO EM SCHLEIERMACHER

Henrique Nilo da Silva1

Resumo
Friedrich Schleiermacher é considerado um dos mais importantes filósofos e teólogos do século XIX. Elaborou
um sistema ético e religioso baseado em pensadores como Platão, Spinoza, Kant e no movimento romântico alemão. Com
a finalidade de combater a tendência anti-religiosa iluminista de seu tempo, elaborou profundas reflexões sobre a
experiência e o sentimento religioso. Diante da importância conceitual do sentimento de dependência absoluto para as
pesquisas sobre a experiência religiosa nas Ciências da Religião e Teologia, pretende-se discorrer por meio do método
teórico-bibliográfico o conceito de religião schleiermacheriano. Justifica-se, porque o termo sentimento foi interpretado
equivocadamente como puramente psicológico, dando uma conotação estritamente emocional e subjetiva. No entanto, a
noção de sentimento schleiermacheriano apresenta-se como uma consequência da intuição impactante do universo
objetivo sobre nós. Baseado em renomados interpretes, pesquisadores e estudiosos da religião, o texto estrutura-se em
três objetivos específicos: apresentar o contexto filosófico e teológico de Schleiermacher; analisar o sentimento e a
experiência religiosa como fundamento teológico; e relacionar a construção teórica do autor à uma abordagem
fenomenológica em Ciências da Religião.
Palavras-Chave: Schleiermacher; Religião; Intuição; Sentimento; Experiência Religiosa.

O contexto filosófico e teológico do pensamento scheleiemacheriano.


Procurando determinar um lugar especial para a religião na vida humana, os teólogos do
século XIX foram além do impasse resultante do Iluminismo. Schleiermacher (1768-1834) por meio
da filosofia e teologia distinguiu a consciência religiosa da metafísica (Hegel) e da ética (Fichte). Em
seus estudos universitários se interessou pelo pensamento de Platão, Spinoza e Kant, abandonando
algumas doutrinas fundamentais do cristianismo. Sob influência do círculo romântico buscou
reconciliar o ponto de vista filosófico com sua confissão religiosa. Apesar de seu pensamento
teológico divergir da ortodoxia protestante conservou-se piedoso, tendo em vista o legado de sua
família e professores. A proposta inovadora de Schleiermacher elevava a vida intuitiva à posição de
fundamento de uma teologia moderna. Entre os estudiosos do pensamento cristão moderno é
reconhecido como o pai da teologia moderna ou teologia liberal. Isto porque encarou abertamente o
problema apresentado ao cristianismo tradicional pela revolução científica e filosófica do iluminismo.
Com a finalidade de tornar a fé cristã compatível com o espírito de sua época empregou sua
metodologia teológica. Como reação ao racionalismo frio da filosofia iluminista participou
ativamente do círculo romântico devido sua ênfase aos sentimentos, imaginação e intuição do ser
humano. No romantismo valorizavam a poesia e a música como meios de realização e expressão do
indivíduo (GRENZ & OLSON, 2003).

1
Possui graduação em Teologia pela Faculdade de Ciências, Educação e Teologia do Norte do Brasil (2012), graduação
em Filosofia pela Universidade Iguaçu (2013) e graduação em Pedagogia pela Faculdade de Educação e Ciências
Gerenciais de São Paulo (2016). Mestrando em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Campinas
(PUC-Campinas). E-mail: henriquenilodasilva@gmail.com

150
Schleiermacher publicou traduções, livros sobre ética, teologia, pedagogia, filosofia,
hermenêutica e sobre a vida de Jesus. Entre suas principais obras estão: Sobre a Religião: Discursos
aos Ilustrados que a Desdenham (1799), Monólogos (1800), Ensaios de Crítica da Doutrina Moral
até o Presente (1803), Tradução dos Diálogos de Platão (1804, 1809 e 1828), A Fé Cristã segundo
os Princípios da Igreja Evangélica (1821-1822) e Hermenêutica e Crítica (1838). Porém as obras
que se tornaram amplamente reconhecidas foram Sobre a Religião e A Fé Cristã. Na obra Sobre a
Religião seu objetivo era convencer seus contemporâneos de que a religião não era aquilo que
pensavam. Pois, consideravam que a religião não passava de ortodoxia morta e moralismo autoritário
que impedia a liberdade individual e alienava as pessoas de sua verdadeira humanidade. Então,
argumentou que a verdadeira religião é um universal sentimento humano e que pouco tem a ver com
dogmas. Já sua teologia sistemática intitulada A Fé Cristã dividiu opiniões entre tradicionais e
progressistas. Segundo os tradicionalistas é a capitulação ao espírito anti-supernaturalista da era do
Iluminismo e, uma tentativa disfarçada de falar da humanidade como se estivesse falando sobre Deus.
Por outro lado, os progressistas observam a obra como uma liberação dos dogmas autoritários
ultrapassados e uma verdadeira forma de fé cristã moderna que se harmonizava com a ciência
(GRENZ & OLSON, 2003).
Sua abordagem por meio da intuição voltava-se para o sentimento humano universal e
fundamental, o sentimento de subordinação à realidade como um todo. Diante de uma teologia
revelada de modo sobrenatural e uma teologia pensada a partir de uma compreensão natural,
Schleiermacher sugeriu que o impasse entre a ortodoxia e o racionalismo poderia ser solucionado se
a experiência humana fosse a fonte da teologia. Assim, a reflexão teológica deixava de ser o conjunto
de proposições autoritárias e passava a ser a experiência religiosa ou a experiência humana de Deus.
Evidenciou que a essência da religião se encontra no elemento fundamental, distinto, integrativo da
vida e cultura humana, o sentimento de dependência total em algo infinito que se manifesta nas coisas
finitas e através delas. A palavra “sentimento” (Gefühl) no pensamento schleiermacheriano tem a
conotação de uma profunda percepção e consciência anterior à reflexão e a sensação consciente.
Quanto a autonomia da religião distinguiu a “devoção” (sentimento religioso) de ciência, moralidade,
dogmas e sistemas de teologia. Ao estabelecer que o assunto e o critério da teologia não são doutrinas
sobrenaturalmente reveladas, volta-se metodologicamente para a experiência do crente ou do sujeito
que crê2 (GRENZ & OLSON, 2003).

2
Frente ao caráter cultural e histórico das doutrinas acreditava que a experiência religiosa é primária e a teologia é
secundária e carece de constante reforma em relação aos aspectos que mudam dentro das comunidades religiosas. Desse
modo, o papel do teólogo é usar a reflexão crítica para expressar as inovadoras implicações da consciência religiosa viva.
A Bíblia tem uma autoridade relativa sobre a teologia cristã na medida em que apresenta um padrão puro de consciência
de Deus. É essa consciência do povo cristão que deve servir de critério absoluto da verdade para a teologia (GRENZ &
OLSON, 2003).

151
O sentimento e a experiência religiosa como fundamento teológico.
Para Schleiermacher o pensamento e o ser são correlativos. O pensamento adequa-se ao ser
pelo conhecimento científico (natureza) ou por si mesmo (espírito). A adequação do ser a nossas
ideias é evidenciada na atividade moral que é sustentada pelos ideais e propósitos no ato de pensar.
Aparentemente as distinções natureza e espírito, pensamento e ser, sujeito e objeto pode sugerir um
dualismo. O conhecimento teórico não pode apreender a realidade última da identidade do espírito e
da natureza no universo ou em Deus. Entretanto, tal identidade pode ser experimentada ou percebida
no sentimento que caracteriza a consciência de si mesmo. A autoconsciência imediata que equivale
ao pensamento não constitui uma apreensão do eu na diversidade de seus momentos ou fases, mas
uma consciência autoreflexiva ou intuição anterior a distinção e oposição do pensamento conceitual.
Não é uma intuição intelectual da totalidade divina como objeto direto e único no eu, mas sentir a si
mesmo dependente da totalidade que transcende todas as oposições. A parte religiosa da consciência
do eu é esse sentimento de dependência do infinito. Esta não é pensamento nem uma ação, mas uma
intuição do universo ou da realidade infinita que é descrito como a essência da religião
(COPLESTON, 1996).
Apesar da proximidade com a consciência estética do romantismo, diferenciou a consciência
religiosa como o sentimento de dependência (Abhängigkeitsgefühl). É um grande equívoco deduzir
que Schleiermacher nega a relação entre religião, ética e metafísica. Para ele a metafísica sem a
intuição religiosa seria uma construção meramente conceitual e sem fundamento. Por outro lado,
considerando a liberdade e a autonomia, a ética sem religião nos daria uma ideia do homem imprecisa
(COPLESTON, 1996).
No pensamento do autor a palavra “sentimento” designa a imediatez da consciência de
dependência sem excluir a atividade intelectual. A palavra “intuição” não remete a apreensão de
alguma divindade como um objeto concebido, mas consciência de depender do ser infinito ou de algo
indeterminado. Sob influência romântica e leitura de Spinoza compreendeu a experiência religiosa
como dependência que o eu sente em relação ao universo ou a totalidade infinita3. No conceito de
religião do autor não há oposições porque a totalidade é idêntica a si mesma, porém no campo teórico
as distinções e oposições são inevitáveis. Assim, unidade infinita se afasta de Deus e do mundo ao
ser pensados. Embora o mundo seja a totalidade de oposições e diferenças, Deus é concebido como
uma unidade simples e negação de qualquer distinção ou oposição. Portanto, o pensamento conceitual
tem que conceber a Deus e o mundo como correlativos: sem Deus não há mundo e não há Deus sem
mundo. No pensamento conceitual ambas as ideias não devem ser confundidas porque
necessariamente tem que conceber o universo através delas. Schleiermacher parece supor que a

3
Afirmou categoricamente que “a religião é sentimento e gosto pelo infinito” (SCHLEIERMACHER, 2000, p. 35).

152
distinção entre Deus e o mundo somente existe pela reflexão humana e que na realidade não há
distinção. Desse modo, evita tanto a redução do mundo a Deus como a redução de Deus ao mundo.
Diante da incapacidade de compreender a totalidade e o universo divino por meio do pensamento
conceitual pretende-se corrigir a tendência de separar a ideia de Deus e do mundo através da
correlação. Ciente de que a realidade divina transcende em si mesma, defende que o limitado alcance
de nossos conceitos deve evitar a separação por meio da identificação total (COPLESTON, 1996).
Em contraste com o princípio do dualismo o princípio de identidade possibilitou uma nova
compreensão da religião para Schleiermacher. Observou que o conhecimento teórico de tipo deísta
(racionalista ou sobrenaturalista) e a obediência moral do tipo kantiano, pressupõem uma ruptura
entre sujeito e objeto. Essa diferença precisava ser superada no poder do princípio da identidade, mas
o teólogo equivocadamente empregou o termo “sentimento” para a experiência dessa identidade.
Diante desse termo bastante questionável os psicólogos interpretaram o conceito schleiermacheriano
como função psicológica. Porém, o conceito de religião como sentimento não pretendia expressar
uma emoção meramente subjetiva, mas sim expressar o impacto produzido pelo universo nas
profundezas de nosso ser. Em A Fé Cristã esclarece que a expressão “sentimento de dependência
incondicional” não deve ser confundida com uma emoção subjetiva porque a palavra “incondicional”
transcende o campo meramente psicológico, onde todas as coisas no sentimento são condicionadas.
A incompreensão do conceito schleiermacheriano produziu muitos desentendimentos nas igrejas
alemãs e nos círculos científicos americanos. No primeiro caso as pessoas perderam o interesse na
igreja porque a religião foi reduzida a sentimento e hinos sentimentais. No segundo caso os cientistas
e políticos reduziam a religião ao mero sentimento subjetivo com a finalidade de torná-la inofensiva
(TILLICH, 1999).
Contudo, não é possível excluir o sentimento das experiências pessoais porque está presente
em todos os momentos. Sentir emoção inegavelmente faz parte do ser humano. A música e as artes
despertam uma experiência estética com fortes emoções, porém a experiência estética é mais que
emoção ou sentimento. Os diversos meios de expressão artísticas revela certa dimensão do ser que
sempre carregam um elemento emocional. Para Tillich, o conceito schleiermacheriano é análogo à
definição de sentimento de fascínio e sobreexcitação de Rudolf Otto em sua obra O Sagrado. O que
constitui o ato religioso não é o mero sentimento, mas o aparecimento do incondicional em nós. A
concepção de religião que Schleiermacher denomina como “dependência incondicional”, Tillich
denomina “preocupação incondicional”. Embora tenham diferenças na conotação, dogmaticamente
ambas concepções buscam transcender o esquema sujeito-objeto. Cumpre ressaltar, que a análise

153
filosófica da essência das coisas fez do conceito schleiermacheriano um conceito filosófico e
universal que não deriva do cristianismo, mas do panorama total das religiões de todo o mundo4.

Schleiermacher e a abordagem fenomenológica em Ciências da Religião.


De acordo com Antônio Gouvêa Mendonça (2011), os estudos da religião abandonaram as
tentativas de conceituar a religião ou buscar suas origens. Apontou como as causas dessa renúncia os
fracassos anteriores e a atitude pós-moderna de ver as coisas. Sugere que uma abordagem
fenomenológica pode comtemplar dois fatores inseparáveis: as essências e as formas. A multiplicação
de pesquisas sobre as formas de religião evidencia que a religião não desapareceu nem foi superada
por maneiras dessacralizadas de organizar a vida, mas que ela renasceu sob novas formas. Com a
fenomenologia podemos perceber em nossas pesquisas o que é contingente e o que é essencialmente
religioso5. A compreensão de um elemento essencial e outro elemento existencial nos leva a
considerar que as críticas não são endereçadas a religião enquanto essência, mas contra as formas
imperfeitas de religião. Para Schleiermacher os desprezadores da religião viam nela somente as coisas
externas e não alcançavam sua essência. Por isso, ocupou-se da religião sob o ponto de vista
fenomenológico porque coloca a essência da religião como um absoluto a priori. Religião é
essencialmente sentimento. O desenvolvimento da Ciências da Religião depende da distinção entre
essência e as formas da religião no âmbito de uma Fenomenologia da experiência religiosa. Assim
passaremos de uma mera descrição das formas para à compreensão do sentido, origens e
transformações da religião (MENDONÇA, 2011).
Segundo Tommy Akira Goto (2004), Schleiermacher é um exemplo de intuição “pré-
fenomenológica” porque no discurso Sobre a essência da religião há pressupostos que antecederam
o método husserliano: a volta às coisas mesmas, a descrição da experiência religiosa e a questão da
redução eidética. Divergindo do conceito predominante de sua época, procura fundamentar o que é
a religião no sentido originário. Para chegar à essência da religião propôs que ela deve surgir como
realmente é: “que a religião surja por si mesma do interior de cada melhor alma, que ela pertence a
uma província própria na alma”6 (SCHLEIERMACHER, 2000, p. 26). Este é o fundamento

4
Schleiermacher rejeita a ideia de uma religião natural universal que tenha sido substituída pelas religiões históricas.
Quanto a primeira, considera uma grande ficção, já a segunda entende como as únicas existentes. Compreendia que a
sucessão das religiões na história era uma revelação progressiva de um ideal que nunca se alcança plenamente. Os dogmas
são necessárias expressões simbólicas da consciência religiosa que podem se tornar um obstáculo para o livre movimento
do espírito. O cristianismo deve sua origem a um gênio religioso que é semelhante a um gênio artístico, pois sua vida se
perpetua graças ao culminar da mesma em um movimento vital e não pela fixação de uma série de dogmas (COPLESTON,
1996).
5
“O conhecimento das essências não é independente da experiência; as ciências eidéticas têm íntima relação com as
ciências dos fatos. Toda experiência concreta, do fato concreto, contém uma essência, mas não o contrário”
(MENDONÇA, 2011, p. 225).
6
“Sem distrair-se pela visão de objetos estranhos, concentre plenamente seu olhar no lugar em que o fenômeno deve se
mostrar” (SCHLEIERMACHER, 2000, p. 27).

154
fenomenológico da espontaneidade que Husserl chamou de “voltar às coisas mesmas” e que permite
o sentido do fenômeno se apresentar sem conceitos ou preconceitos. Considerando que o sentido
originário da religião não está em formulações teórica, a religião deve surgir da experiência de cada
indivíduo. Após suspender (epoché) todos os preconceitos metafísicos, morais e atitude natural, a
essência da religião aparece como uma unidade doadora de sentido. Surge na vivência religiosa
doando-nos o sentido do ser religioso. A redução eidética está na identificação do invariável em toda
vivência religiosa, pois “a religião não aparece em estado puro, mas com partes estranhas que se lhe
tem aderido” (GOTO, 2004).
A tentativa de definir ou conceituar o que é a religião ou ainda buscar seu sentido originário
é um caminho que se mostra possível na abordagem pré-fenomenológica schleiermacheriana. A
metodologia proposta por Schleiermacher nos auxilia contra os preconceitos que associam a religião
a tudo quanto é negativo ou prejudicial, apontando possibilidades de compreender o seu sentido.
Ciente que a temática Religião e Subalternidade abarca questões sobre religiões proselitistas e a
decolonialidade, onde subjugar é característica das religiões dominantes que exercem um projeto
impositivo, propõe-se esse clássico para a discussão. Cumpre ressaltar que, em Schleiermacher a
religião é compreendida como um elemento básico da vida espiritual do homem e que o sentimento
de dependência absoluto é alimento da reflexão filosófica. Dominar, guerrear e perseguir não é do
âmbito da religião, mas da moral e da metafísica. Os dogmas e doutrinas transmitido por uma tradição
religiosa remete ao campo da memória e da imitação que não é religião. Considerando que a religião
é uma forma particular de intuição e sentimento religioso, afirma:
Crer, pensar e sentir o que outros creem, pensam e sentem, é uma servidão dura e indigna
[...] Querer ter e conservar esta servidão, demonstra incapacidade para a religião; exigi-la de
outros mostra que não se a compreende [...] Ela não é nenhuma escravidão nem nenhum
cativeiro [...] todos devem ver com os próprios olhos e fazer eles mesmos uma contribuição
aos tesouros da religião (SCHLEIERMACHER, 2000, p. 70,71).

Referência Bibliográficas
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Eduardo R. & MORI, Geraldo de. Teologia e Ciências da religião: a caminho da maioridade
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Fonte Editorial, 2000.
TILLICH, Paul. Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX. São Paulo: ASTE,
1999.

155
JIHADISMO, COLONIALISMO E MODERNIDADE

Karolina dos Santos1

Resumo
O presente trabalho pretende retratar questões sobre o colonialismo no Egito no século XX, abordar aspectos
sociopolíticos e religiosos. O colonialismo é sustentado por potentes formações ideológicas que incluem noções de
território. Dessa forma, dentro de um contexto político irá surgir um reavivamento islâmico, que se deu em forma de
movimento, em reação ao colonialismo exercido pelos países europeus, em resposta a grandes opressões político-sociais
sofridas pelo povo egípcio. O movimento Ihwan al Muslimeen (Irmandade Muçulmana) irá trazer a tona um conceito que
é baseado em parte no conceito religioso. Dentro desse contexto histórico, será apresentado através desse conceito um
convite à todos os muçulmanos a conseguirem expressar suas ideias, sua liberdade e sua fé. O conceito, chamado de jihad,
já existente dentro do islã, será proposto com uma outra leitura pelo teórico Sayyid Qutb.Uma idéia que surge a partir de
um contexto colonial, e que vemos seus desdobramentos até hoje.
Palavras-chave: Colonialismo. Jihad. Qutb.

Introdução
A Europa passou por grandes transformações a partir do século XVI, tanto no campo das
ideias quanto na sociedade e economia; mudanças estas que permitiram com que dominasse outras
regiões. No século XVIII, por conta da Revolução Industrial, ocorre um grande aumento do poder
europeu sobre os países colonizados. A modernidade europeia começou a adentrar o Oriente mais
precisamente nos países islâmicos, em meados do século XVIII. Edward Said (1995) aponta que os
muçulmanos não reagiram de forma pacífica à colonização, e a entrada dos europeus nos países
islâmicos gerou reações as quais podemos ver até hoje.
Edward Said em Orientalismo irá questionar a noção ocidental de modernidade. Para ele, o
que consideramos ser moderno é uma verdade ocidental, uma visão que foi imposta e que a maioria
dos fatos que conhecemos sobre o mundo árabe é uma visão imperialista, baseada no colonialismo.
Porém Anthony Giddens (1991) afirma que a modernidade, é um estilo um costume de vida, e também
uma organização social, vinda da Europa do século XVII e que se tornaram mundiais na sua
influência. Para Said (2017), longe de serem um simples ato de acumulação, o colonialismo e o
imperialismo são sustentados por potentes formações ideológicas que incluem noções de território.

2. O colonialismo europeu
Durante o século XVIII, a Europa passou pela Revolução Industrial, que teve início na
Inglaterra, e em poucas décadas, espalhou-se pela Europa Ocidental e pelos Estados Unidos, tendo
novos processos de manufatura, novos métodos de produção e uso de máquinas. O início na Inglaterra
se deve a alguns fatores, entre os quais a ausência de outra cidade que se comparasse a Londres ou
que tivesse mais de cinquenta mil habitantes (HOBSBAWN, 2000). Os navios e o comércio

1
Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail:
apachesantos87@yahoo.com.br

156
ultramarino funcionavam como seiva da Grã-Bretanha, tornando sua marinha poderosa. Em meados
do século XVIII, a máquina a vapor já prestava serviços, a agricultura e as manufaturas eram
prósperas, mas era o comércio que os turistas valorizavam, sendo a Inglaterra conhecida como “a
nação de lojistas”: “O comércio britânico de acordo com os padrões do século XVIII era considerado
um fenômeno notável” (HOBSBAWN, 2000, p. 25).
Sobre a era das revoluções na Europa, segundo Hobsbawn (1977, p. 71), se a
economia do mundo do século XIX foi formada principalmente sob a influência da revolução
industrial britânica, sua política e ideologia foram formadas fundamentalmente pela Revolução
Francesa. Embora a Grã-Bretanha tenha fornecido o modelo para as ferrovias e fábricas, a França
deu a elas suas ideias, deixando o legado das revoluções e sendo o primeiro grande exemplo, o
conceito e o vocabulário do nacionalismo, ao fornecer os códigos legais bem como o modelo de
organização técnica e científica. A Revolução Francesa, cujas repercussões ocasionaram os levantes
que fomentaram a libertação da América Latina, depois de 1808, é um marco em todos os países,
sendo “o primeiro grande movimento de ideias da cristandade ocidental que teve qualquer efeito real
sobre o mundo islâmico”, e isso quase que de imediato (HOBSBAWN, 2000, p. 73). Dando
continuidade a essa relação, em consequência dos reinvestimentos, aperfeiçoamentos e revoluções,
os poderes navais britânico e francês chegaram ao Oriente. Primeiramente em Istambul, e
posteriormente, no final do século XVIII, uma expedição francesa ocupou o Egito. Logo nos cem
anos seguintes, as potências europeias colonizaram vários países islâmicos.
A invasão europeia teve início pela Índia, no século XVIII. Em 1798 as tropas de Napoleão
Bonaparte ocuparam o Egito, e logo após, nos cem anos seguintes, as potências europeias colonizaram
vários países islâmicos: Argélia em 1830, Tunísia em 1881, Egito em 1882, Sudão em 1889, Líbia e
Marrocos em 1912. Além disso, durante a Primeira Guerra, estabeleceram mandatos no Líbano, Síria
e Palestina. Ataturk, (militar revolucionário e primeiro presidente da Turquia), contudo, conseguiu
evitar o domínio europeu criando o Estado Independente da Turquia e se tornando seu primeiro
presidente. Hourani (2013) mostra que, diante do poder europeu, os países árabes, parte da Ásia e
África, cuja comunicação era fraca, não possuíam estrada de ferro e ainda enfrentavam a fome, não
conseguiram um poder equilibrado. Excetuando-se os países que produziam para exportação, a
produção agrícola permanecia somente para subsistência, não gerando acúmulo de capital para ser
usado como investimento.
O pensamento ocidental moderno se construiu a partir de um ideal de conhecimento e
organização social e política que legitimou o subjugo de outras culturas ao longo de séculos de
colonialismo. Como afirma Said (2012, p.32): ― “a relação entre o Ocidente e o Oriente, é uma
relação de poder, de dominação, de graus variáveis de uma hegemonia complexa”. Sobre o período
de colonização, os muçulmanos não o aceitaram pacificamente, as reações posteriores que são

157
resultados das ações que foram empregadas nesse período, são resultados dos estereótipos, das
políticas, da desigualdade, do etnocentrismo e do silenciamento de uma cultura de um povo (Santos,
2018). Posteriormente, por volta de 1920, afirma o historiador Hourani (2013), o
controle militar da Grã-Bretanha e da França no Oriente Médio estava mais forte do que
nunca, e a estrutura política que a maioria dos países árabes tinha se desintegrou, e a
idéia de independência do islã e as pretensões de califado desapareceram na história.
A forma como as sociedades reagem a influências externas, depende
necessariamente de sua identidade e de questões internas. Estruturalmente as sociedades
são baseadas em processos de gerar sentido, e comunicam aos indivíduos esse sentido
de vida- onde ele nasce, cresce e morre. Berger (2012) descreve que as comunidades
precisam de um mínimo de identidade na interpretação da realidade, porque somente
assim podem desenvolver um papel sólido na geração e suporte de sentido da vida de
seus membros. Quando olhamos para as sociedades modernas, vemos que torna-se
difícil a concordância nos processos de formação da identidade, e também de promover
o convívio de sentido. Podemos falar então de uma crise de sentido, ou identidade
desses grupos, tanto para o mundo islâmico quanto ao mundo ocidental.

O jihad da Irmandade Muçulmana


A Irmandade Muçulmana foi criada em 1928 como uma associação político-religiosa, com o
objetivo de pensar um modelo político em oposição aos modelos europeus, sendo marcada por um
discurso de autenticidade cultural expresso através do Islã. Fundada por Hassan al Banna, pensador
egípcio influenciado pelos movimentos reformistas, que irá, por sua vez, influenciar a maioria dos
movimentos islâmicos atuais. Para Hourani (2013) a força política da Irmandade é de grande
relevância, uma vez que sua influência ultrapassou o Egito, atingindo grande parte do mundo islâmico
sunita. De acordo com o sociólogo Enzo Pace “O despertar islâmico agora passa a ser uma luta
contra a força hegemônica do colonialismo inglês, ―para abrir um caminho islâmico autônomo
para a modernidade (Pace, 2005, p. 257)”.
Hassan al Bana, tinha seus princípios, e pretendia alcançá-los através da Irmandade – que é
espalhar o da'wah (pregação) criar um mundo islâmico unificado; uma família muçulmana [ideal],
educando as crianças sobre o caminho do Islã e construindo uma rede comunitária para apoiar uns
aos outros (Azoulay, 2015). Samuel (1997) coloca que politicamente a Irmandade queria tirar dos
países islâmicos toda a influência ocidental, porque era considerada fonte de ateísmo e corrupção.
Sendo perseguido pelo estado, Hassan foi assassinado em 12 de fevereiro de
1949, e com isso a irmandade passou a viver na clandestinidade, mas manteve grande
influência, não somente no Egito, mas também em outros países muçulmanos. O fortalecimento e a

158
queda da Irmandade Muçulmana deveram-se a três fatores principais: O primeiro, é a liderança e o
carisma de Hassan al Bana. O segundo fator , foi o uso de tática violenta. O terceiro fator foi a
frustração. Após alguns atos fracassados da Irmandade, sem mudanças na sociedade egípcia, a
frustração cresceu e levou a atos de violência (Azoulay 2015). Com a morte de Hassan, o papel de
líder foi assumido por Sayyid Qutb, que acrescentou um corpo teórico e um maior vigor a
irmandade.
Sayyid Qutb foi um crítico literário, poeta, ativista e militante nascido no Egito em 8 de
outubro de 1906. Lutou por um Egito independente do colonialismo inglês e propôs a restauração da
“Ummah”, ou seja, a nação islâmica, através da constituição de um Estado egípcio islâmico nos anos
50, por acreditar no esgotamento do papel do homem ocidental no desenvolvimento da humanidade,
tanto no campo material quanto espiritual. De acordo com Santos (2009) o conceito de Ummah seria
“o sentimento de família, unidade, nação”, dentro das práticas islâmicas. Qutb se formou em 1933, e
alguns anos mais tarde, entrou no Ministério da Educação do Egito, permaneceu por mais de uma
década se dedicando a literatura e a educação. Ele escreveu também poesia autobiográfica, esboços,
trabalhos de crítica literária e romances que tratavam os problemas do amor e do casamento. Mais
tarde, ele veio repudiar o próprio trabalho e distanciou-se de seus próprios escritos (Qutb, 2006).
Posteriormente, em 1947 procurou emancipar-se do emprego governamental tornando-se editor-chefe
de duas revistas, al-Alam al-Arabi (O Mundo Árabe) e al-Fikr al-Jadid (Novo Pensamento). Porém,
devido a desacordos editoriais, foi banido após apenas seis edições.
Em 1948, o ministro o enviou em uma missão de estudo para os Estados Unidos, supondo que
o conhecimento e o contato direto com a América iria incliná-lo às políticas oficiais e induzi-lo a
abandonar a política oposicionista (Qutb, 2006). Porém, as impressões de Sayyid Qutb sobre a
América foram em grande parte negativas. Sayyid Qutb visualizou e enfatizou de forma incisiva o
materialismo, o racismo e a permissividade sexual como características dominantes da nação
americana.
É surpreendente perceber, que apesar de sua educação avançada e seu perfeccionismo, quão
primitivo o americano realmente é em suas visões sobre a vida... Seu comportamento nos
lembra do período do "homem das cavernas". Ele é primitivo na maneira como ele cobiça o
poder, ignorando ideais, boas maneiras e princípios... É difícil diferenciar entre uma igreja e
qualquer outro lugar que é criado para entretenimento, ou o que eles chamam em sua
linguagem, diversão. (Qutb, 2006 p. 19)

Após esse tempo nos Estados Unidos, Qutb se tornou convicto de seu pensamento sobre a
América do Norte, desenvolvendo ainda mais suas teorias políticas baseado no que viu. Qutb era
ousado e não se contentava somente com o poder político, ele também ganhou autoridade no quesito
exegese do Alcorão e da Suna. Após visita ao solo americano sua exegese ganhou mais vigor, e
alegando ainda mais que a relação com o ocidente teria chegado ao limite, Santos (2018) acrescenta:
“Desde o início, quando Qutb começou a elaborar suas teorias, partiu do princípio que as relações

159
de imposição do ocidente ao oriente teria chegado ao fim, era necessário mudar, acabar com essa
relação de subordinação, e exploração (Santos 2018, p 9)”. A maneira como colonizadores tratavam
os muçulmanos era uma forma inaceitável. Era preciso que os islâmicos tomassem as rédeas da
própria história (Santos 2018).
Qutb apresentou uma interpretação rigorosa no quesito doutrina social dentro do
islã. Segundo Hourani (2013) Qutb afirma que o homem só era livre se fosse libertado
da sujeição de todos os poderes, exceto o de Deus: do poder dos sacerdotes, do medo, e
da dominação de valores sociais, desejos e apetites humanos. Como base central das idéias de Qutb,
aparece a palavra, jihad, muito usada dentro do contexto islâmico, e também fora dele, no caso do
ocidente, para se fazer referências a guerra e conflitos. A palavra jihad é conhecida desde os primeiros
séculos do islã. Traduzido do árabe, jhd”, quer dizer esforço, empenho. Para o historiador Albert
Hourani, jihad estaria ligado ao caminho de Deus. De acordo com Youssef Cherem (2009),
pesquisador da Unicamp sobre o jihad e seu conceito é visível que:
Com significado religioso, o jihad pode incluir uma luta contra as
tentações (“jihad do coração”, “jihad da alma”). Pode significar
também o proselitismo do islã (da’wa) ou a defesa da moralidade
(“comandar o bem e proibir o mal”, al-’amrbilma’rufwal-nahy ‘an almunkar) A noção de
jihad desenvolvida pelos juristas islâmico sé de
“guerra com significado espiritual” – jihad fisabili‘llah (jihad no
caminho de Deus), jihad al-sayf (jihad da espada), sendo sinônimo, no
Alcorão de qital fi sabilillah (“luta”, do verbo qatala, “matar. A doutrina do jihad só se
desenvolveu com o tempo (a partir do século II/VIII). O termo jihad, embora com raízes
profundas, é uma construção, em primeiro lugar, jurídica (CHEREM, 2009, p.155).

Dessa forma, através do campo teórico fornecido por Sayyid Qutb, o jihad passa ser uma
esperança de autonomia, não somente econômica, mas também politica e social. E também, o resgate
de uma identidade que eles alegam que foi dizimada devido a colonização e toda a influência e forma
de pensar ocidental aponta Santos (2018). O jihad foi um movimento para acabar com a tirania e
introduzir a verdadeira liberdade à humanidade, usando recursos de acordo com a situação humana
real, e teve estágios definidos, e para cada estágio foi utilizado novos métodos aponta Qutb (2006).
Qutb enfatiza se insistirmos em chamar o jihad de movimento defensivo, devemos mudar o
significado da palavra “defesa” por “a defesa do homem” contra todos aqueles elementos que limitam
sua liberdade. Quando é falado sobre o jihad, falam de forma equivocada e confundem as várias
etapas, distorcendo todo o conceito de jihad . O jihad Islâmico não tem nenhuma relação com a
guerra moderna, seja em suas causas ou na maneira como é conduzido aponta Qutb (Qutb, 2006). As
causas do jihad devem ser buscadas na própria natureza do Islã e no seu papel no mundo, e em seus
altos princípios, que foram dados por Allah e em sua implementação da qual Allah nomeou o Profeta
Muhammad como seu Mensageiro e o declarou com o último de todos Profetas e Mensageiros. Qutb
ainda acrescenta sobre o islã, conectando com o jihad:

160
O islã é realmente uma declaração universal da liberdade do homem da servidão a outros
homens e da servidão a seus próprios desejos, que também é uma forma de servidão humana;
é uma declaração de que a soberania pertence somente a Allah e que Ele é o Senhor de todos
os mundos. (Qutb,2006 p. 67)

Qutb faz um plano de ação e um chamado para todos os muçulmanos, para recriar o mundo
islâmico, seguir o Alcorão e acima de tudo combater a jahiliya (ignorância) através do jihad. O
ocidente por sua vez, praticava a jahiliya, que o significado em árabe é ignorância, rebeldia. Qutb
considerava a jahiliya como a essência do mundo ocidental, e que essa essência influenciava o
pensamento islâmico de alguma forma (Santos, 2018).

Conclusão
Foi visto que os muçulmanos, em geral, podem emergir como sujeitos de sua própria
história, recusando-se a vê-la como representação produzida pelo Ocidente ou como instrumento de
seu poder. Devem assumir plenamente seu status e contribuir ativamente para os debates e desafios
de nossos tempos. Devido ao período colonial e a entrada dos valores ocidentais, houve uma quebra
da irmandade, do sentimento de família e pertencimento. Dessa forma a Irmandade surge, e suas
ideias ainda são sustentadas no campo atual através de outros grupos, mas que partem de um contexto
de luta anti colonial e anti imperialista.

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Fora, v. 15, n. 2, p. 424-512, jul-dez/2018. III CONACIR

162
MAL, SOFRIMENTO E ESPERANÇA: REFLEXÕES A PARTIR DE
ANDRÉS TORRES QUEIRUGA

Felipe de Moraes Negro1

Resumo
Objetiva-se nesta comunicação apresentar uma reflexão sobre a temática do mal e do sofrimento a partir da
perspectiva de Andrés Torres Queiruga que se destaca por fazer uma teologia comprometida com os paradigmas do mundo
contemporâneo. Após mostrar que a problemática do mal atravessa os tempos, e continua sendo pertinente na atualidade,
uma vez que “O mal não é castigo, mas sim a passagem inevitável do crescimento em toda existência finita. Assim sendo,
ao longo deste trabalho apresentar-se-á reflexões embaladas pelo mal e o sofrimento neste contexto pandêmico hodierno,
para que ao final, a partir de Andrés Torres Queiruga, diante das religiões, se oferte ao leitor, o caminho da Esperança
como o limiar continuo para a busca de uma humanidade efetivamente comprometida com o bem.
Palavras-chave: Sofrimento. Esperança. Mal. Andrés Torres Queiruga. Religião.

Introdução
Assim como nas guerras, as grandes catástrofes pandêmicas nos fazem pensar: por que tanto
sofrimento? Por que Deus permite isso, tantos mortos por Covid-19 e tanta gente sofrendo? A
interpelação faz até mesmo o mais fiel dos crentes pensar. Nessas situações-limite, podemos ser
levados a respostas rápidas e o desespero pode nos levar a concluir que todo o mal que passamos,
como agora na pandemia, é castigo divino. No entanto, Andrés Torres Queiruga, nos propõe uma
outra chave de leitura, “O mal como problema nasce com a humanidade, “e ele nos toma de assalto,
como agora na pandemia. Por isso a importância de uma perspectiva Evangélica, ou seja, “A questão
do mal e do sofrimento no mundo [pós] pandêmico à luz do mistério pascal”.

Resposta Cristã ao Mal e ao Sofrimento a partir de Andrés Torres Queiruga no Contexto


Pandêmico e Pós-Pandêmico:
Com o tema “O mistério pascal e a resposta cristã à questão do mal e do sofrimento (uma
abordagem na perspectiva da teologia trinitária do sofrimento de Deus)” Queiruga destaca que o mal
é uma preocupação de todas as religiões, mesmo daqueles que não creem em Deus. “O cristianismo
é uma resposta a esse problema universal. A questão é que há grandes ambiguidades na hora de o
enfrentar”. Assim, aponta para o risco de cairmos num maniqueísmo em que jogamos com a própria
figura de Deus, que nos leva a interrogar se Deus é bom ou mau. “Quando nos vemos diante do mal,
do coronavírus, por exemplo, pedimos para que Deus acabe com o mal. Supomos que pode acabar,
mas não pode. Afinal, se Deus é amor e há mal no mundo, isso não pode vir de Deus”.
Para superar esse maniqueísmo (visão de mundo que divide em poderes opostos), sugere que
pensemos que Deus está conosco no mundo apesar do mal. “Vejam, novamente no exemplo do novo

1
Mestrando em Ciências da Religião pela Puc-Campinas, Especializando em Bioética pela UCS- SC e especializando em
Mariologia pela Faculdade Dehoniana/SP. E-mail: padrefenegro12@gmail.com

163
coronavírus, se pensarmos que Deus poderia evitar a doença, por que não o faz? Isso nos leva, na
verdade, a um falso problema”, observa. Para ele, é preciso que entendamos de onde vem o mal. “O
mal é do mundo, é da finitude do mundo. Logo, é um produto inevitável da finitude”.
Isso significa que o vírus, por exemplo, não é criação de Deus como castigo, mas sim que
Deus está conosco para que possamos enfrentar o vírus mesmo dentro de nossa finitude humana. “O
mundo produz o mal. E por que Deus cria o mundo? A resposta cristã é que o mundo vale a pena
apesar do mal. É isso que Jesus nos ensina ao se fazer humano como nós”.
“Deus não está na enfermidade, mas no enfermo”
Para ilustrar essa sua chave de leitura, Queiruga recupera a frase do pregador do Papa, Cardeal
Cantalamessa, que chama atenção de que “Deus não está na enfermidade, mas no enfermo”. Na lógica
trazida por ele, é pensar que Deus não criou a doença e não a pode tirar do mundo, mas pode e está
ao lado daquele que sofre com a doença. “Deus não está no vírus, mas nas pessoas que lutam contra
o vírus”, completa Queiruga.
Para Queiruga, é nesse mesmo sentido que a morte de Jesus precisa ser compreendida.
“Muitos veem a morte de Jesus como grande sacrifício e há certa verdade nisso. Mas podemos limitar
essa ideia do sacrifício, pois Deus se faz humano e finito e assim é confrontado com o mal”, explica.
Assim, demonstra que o Cristo tinha plena confiança no pai e mesmo na cruz afronta a morte ao se
entregar ao Pai. “E por isso acho importante lembrar do capítulo 8 de Romanos, quando São Paulo
medita e ao fim conclui que 'nada pode nos afastar do amor de Cristo'”. “Pai, sei que está me
ajudando”
Nesses tempos tão difíceis, os caminhos indicados por Queiruga nos estimulam a pensar que
apesar de sofrermos com o novo coronavírus e os problemas do mundo, Deus está conosco, e não
ausente, deixando que o mal aja, nem tampouco agindo pelo mal para nos castigar enquanto
humanidade. É por isso que ele nos provoca a pensar na relação com Deus para além desse
maniqueísmo e no que considera “uma via curta da teodiceia”, ou seja manter a confiança em Deus
apesar da falta de lógica do discurso. Significa colocar o problema do mal dentro do mistério. Não se
compreende totalmente, não há coerência lógica nos argumentos, mas continua-se confiando em
Deus. . E que forma melhor de repensar essa relação com Deus senão pela oração? É por isso que o
professor Queiruga sugere: “a nossa oração não deve ser ‘pai, ajuda-me’, pois se creio em Deus sei
que ele está comigo. Deve ser ‘pai, sei que está me ajudando apesar de não sentir. De tudo que está
contra mim, espero que estejas comigo e me faças ver como me ajudar’”.
A questão do sofrimento refletida por Queiruga no âmbito trinitário do sofrimento de Deus,
apresenta-se desde a perspectiva da ressurreição de Cristo, que se sobrepõe ao sofrimento a que o
próprio filho de Deus é submetido. “Jesus não foi aniquilado pela morte”, disse na época. “Senão que
segue sendo ele mesmo na sua identidade pessoal, não diminuída, mas potenciada enquanto

164
glorificada em Deus. A ressurreição da carne – eu prefiro dizer a ressurreição dos mortos – confessa
Jesus já plenamente realizado como Jesus Cristo”. Isso significa que esse é “o Deus de vivos e não o
Deus de mortos. O que ressuscita os mortos, todos os mortos e todas as mortas, desde o começo do
mundo”. Logo, o sofrimento é vencido pela vida que se refaz. Mas, estando nós vivendo em tanta dor
e sofrimento em tempos da implacável Covid-19, poderíamos ser levados a crer que o sofrimento é
necessário. O problema é que dizer isso a quem perde um ente querido ou vê a doença esfacelar os
nervos, deixando sequelas no corpo e na mente, pode soar um tanto perverso, configurando um Deus
carrasco e punitivo.
Só que não é nessa linha que Queiruga nos incita a pensar. “Deus nunca entregou Jesus à
morte, no sentido normal que as palavras têm, pois, pensar assim seria atribuir-lhe um crime horrível.
Jesus foi entregue à morte pela injustiça e pela maldade dos homens”. Pensando na pandemia, é como
se vivêssemos as consequências de nossos próprios atos e sofremos, num sofrimento imposto por nós
mesmos, para que ressuscitemos noutras relações conosco e com o próprio planeta.

Considerações finais: A esperança como chave


Essa reflexão de Queiruga acerca da Esperança, propõe sobre este espectro da reflexão em
curso, termos a possibilidade de não fixarmos nossos olhos as mazelas da humanidade, mas a
configurar nossas dificuldades na chave principal da fé que nos resgata o alvorecer de novos tempos
e mesmo que abruptamente um "pequeno" vírus tem se colocado como protagonista de transtornações
do mundo, fazendo de todos (pan) um único povo (demos): pela primeira vez uma "aldeia global",
tem também até mesmo Transtornado as fundações, fazendo cair, uma a uma, casas de papel,
seguranças vazias, preocupações superficiais”. Nisso já se é possível, vislumbrar o alvorecer de um
novo jeito de se compreender e se viver, marcado com a presença do mal, mas que não dá a última
palavra, isso se configura a Esperança. Ao longo desse texto, somos provocados a refletir que ao invés
de vermos esse episódio como castigo de Deus, que quem sabe poderia até nos livrar ou aliviar toda
essa dor, talvez seja mais interessante pensar na esperança de um Deus que é amor. Por isso, sugere
que olhemos esse como um “cenário mais verdadeiramente humano na inesperada explosão de
generosidade fraterna que nos une diante do sofrimento e da morte”. E sugere que “é urgente unir-se
na luta: através do diálogo crítico nas interpretações, aproveitando o que nos une na prática, antes de
chegar às diferenças na teoria”. É aí que chega em suas provocações de pensarmos até mesmo a
religião, pois “a religião precisa atualizar sua imagem de Deus e responder a ela com procissões ou
súplicas que tenham sentido apenas assumindo que um mundo-sem-mal é possível”. Afinal, como
conclui, “quem acredita em Deus tem a tarefa urgente de tornar sua imagem atual. Um Deus que cria
por amor e vive consignado à sua criação, mas com uma presença que não pode ser evidente, porque
funda e promove sem interferir respeitando a autonomia das criaturas: tanto a das leis físicas,

165
especialmente aquelas da liberdade”. Pois assim, acredita ele, “a esperança é possível, apesar do mal.
E a humanidade tem o direito de se sentir acompanhada”.

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166
A MORTE DE DEUS COMO RESSIGNIFICAÇÃO DO SAGRADO E OS
CAMINHOS DA RELIGIÃO NA PÓS-MODERNIDADE

Ana Carolina Ferreira Sales1

Resumo
O filósofo alemão, Friedrich Nietzsche, marcou a crise da modernidade ao anunciar a sentença da morte de Deus.
Observando a reação dos indivíduos ao cristianismo, o filósofo discorre que essa morte também enterrou consigo a moral
cristã, principalmente ao passo que houve uma substituição dos valores divinos para valores humanos. Diante desse
contexto, o presente texto objetiva analisar pela sentença de Nietzsche a suposta nova forma de ser humano que se instituiu
na Modernidade, indivíduos que se desprendem dos dogmas religiosos e os contestam pela ciência, até o surgimento da
pós-modernidade descrita pelo filósofo Gianni Vattimo com o desenvolvimento da hipótese de ressignificação da
influência religiosa na vida dos seres humanos. Utilizando-se como referencial teórico a pesquisa bibliográfica das obras
de Friedrich Nietzsche e Gianni Vattimo, pode-se elucidar os caminhos da religião na pós-modernidade centrando-se na
compreensão da vivência subjetiva do sagrado e na aproximação da figura de Jesus Cristo ao humano.
Palavras-chave: Religião. Nietzsche. Deus. Sagrado. Pós-modernidade.

Introdução
As reflexões filosóficas desenvolvidas por Friedrich Nietzsche (1844-1900) impactaram toda
a história da filosofia ocidental; suas obras são caracterizadas pela profundidade de aforismos que
contêm ponderações e críticas acerca de vários assuntos. Dentre elas, Nietzsche direciona uma dura
crítica à cultura ocidental, sobretudo, à tradição socrático-platônica e judaico-cristã que fundamentou
o cristianismo: “[...] pois o cristianismo é platonismo para o ‘povo’” (NIETZSCHE, 2018, p. 18).
Portanto, o filósofo da dinamite dedicou algumas obras ao estudo da religião, sendo um dos maiores
críticos dela que já existiu.
A concepção de Deus criada e propagada pelo cristianismo é um dos pontos centrais da
filosofia de Nietzsche, pois a figura desse Deus representa a redenção que socorre o povo e os homens
impotentes, atrelando a crença e os valores morais ao pecado, ou seja, os seres humanos são pecadores
e necessitam do perdão, além do cumprimento das regras morais para alcançar o paraíso. Logo, a
religião cristã exerce grande poder e influência sobre a vida dos seres humanos. Contudo, é na
modernidade que a ciência vai tomando o lugar desse Deus todo-poderoso e, por conseguinte, os
homens perdendo a fé. Diante disso, ocorre a reação ao cristianismo e Nietzsche radicalmente anuncia
que “Deus está morto”, sendo que essa “morte de Deus” discorrida pelo filósofo enterra também os
valores morais.
Portanto, a sociedade ocidental passa por uma profunda transformação, tanto cultural quanto
religiosa. A sentença anunciada por Nietzsche expressa o processo do abandono e a transformação da
metafísica pelos indivíduos. Cabe ressaltar que a humanidade não deixou de ser religiosa e muito

1
Graduanda em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). E-
mail:anacarolinasalles598@gmail.com.

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menos a religião enquanto instituição influenciadora perdeu seu poder. Porém, houve uma diminuição
dessa influência religiosa na vida dos indivíduos.
Temos como objetivo central neste artigo analisar num primeiro momento a sentença de
Nietzsche sobre “a morte de Deus”, destacando como ela ressignificou as concepções de crença no
sagrado. Posteriormente, investigaremos os novos caminhos da religião na pós-modernidade,
utilizando-se da compreensão do filósofo contemporâneo Gianni Vattimo, que expressou por meio
de suas obras a redefinição e o retorno do cristianismo.

A morte de Deus
Nietzsche desde muito pequeno já estava envolvido com a tradição religiosa. Sendo filho e
neto de pastores luteranos, ele foi ensinado sobre a fé cristã e afirma que aos trezes anos tinha “o
coração dividido entre brinquedos e Deus” (2009, p. 9) e, ao longo dos seus estudos, dedicou obras
explicitando a estruturação dos valores, da moral e do cristianismo. Filólogo de formação, Nietzsche
se aprofunda no estudo da linguagem e, posteriormente, usa desse meio para compreender a
construção da metafísica platônica e investigar a gênese das palavras “bom” e “mau”, especificamente
para descobrir como se originaram os valores. Em sua obra Genealogia da moral, o filósofo discorre
como a moral dos ressentidos recriou valores para dar origem à moral do rebanho no cristianismo,
que juntamente com o platonismo distanciou o mundo físico do ser humano.
A concepção socrática-platônica de mundo fundamentou o que seria mais tarde no
cristianismo chamado por “paraíso” ou “céu”, pois com o platonismo foi estipulado uma divisão de
“dois mundos”2 e houve uma espiritualização cristã dessa concepção, atribuindo a noção de pecado
ao mundo material e, consequentemente, o paraíso ao mundo inteligível, inclusive introduzindo as
regras morais na vida dos indivíduos pela negação dessa vida em favor de uma outra “vida” pós-
morte.
O sentimento de culpa que é colocado aos homens pela crucificação de Cristo e desempenha
ainda mais a recusa do corpo, da sexualidade e da própria existência, enfraquecendo-os. Como
podemos constatar nesta passagem:
O cristianismo é chamado de religião da compaixão. — A compaixão se opõe aos afetos
tônicos, que elevam a energia do sentimento de vida: ela tem efeito depressivo. O indivíduo
perde força ao compadecer-se. A perda de força que o padecimento mesmo já acarreta à vida
é aumentada e multiplicada pelo compadecer. O próprio padecer torna-se contagioso através
do compadecer; em determinadas circunstâncias pode-se atingir com ele uma perda geral de
vida e energia vital, numa proporção absurda com o quantum da causa (— o caso da morte
do Nazareno) (NIETZSCHE, 2007, afor. 7).

2
Em Platão o mundo sensível diz respeito ao mundo material, e o mundo inteligível ou dos pensamentos contém as formas
perfeitas.

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Nietzsche observa que é na modernidade que nasce uma reação ao cristianismo, considerando
que os homens vão abandonando os valores divinos e elevando a razão, sobretudo pelo avanço da
ciência que vai tomando o espaço desse Deus. Diante disso, a sentença sobre “a morte de Deus” é
radicalmente anunciada pelo filósofo em três aforismos: 108, 125 e 343, de sua obra A gaia ciência,
que foi publicada em 1882.
Especificamente no aforismo 125, intitulado “O homem louco”, Nietzsche diz:
— Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e
correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? — E
como lá se encontrassem muitos daqueles que não creem em Deus, ele despertou com isso
uma grande gargalhada. Então ele está perdido? perguntou um deles. Ele se perdeu como
uma criança? disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num
navio? Emigrou? — gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o
meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi!
Nós o matamos — vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como
conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte?
Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos
movemos? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados,
para a frente, em todas as direções? Existem ainda essas igrejas, se não os mausoléus e
túmulos de Deus? (NIETZSCHE, 2001, p. 171).

Discorrendo sobre “a morte de Deus”, o filósofo também insere o conceito de culpa, ou seja,
quem são os culpados pela morte de Deus? A crítica direcionada por Nietzsche diz respeito a toda
tradição da cultura ocidental que carrega o cristianismo, portanto, é o homem moderno com a sua
inteligência que transforma a sociedade e mata a influência de Deus sobre sua vida e seu pensamento,
pois só a humanidade pode matar e enterrar o Deus que ela mesma criou. Institui-se na modernidade
uma nova forma de humano, ou seja, indivíduos capazes de enxergar o paraíso neste mundo e de
reconhecer suas subjetividades diante o sagrado; os dogmas religiosos são contestados pela verdade
e ressignificados pela particularidade de cada homem. Ressalte-se que a moral cristã não é totalmente
abandonada na modernidade, porém ressignificada, usando de argumentos científicos, ou seja, o
paraíso agora se torna o futuro garantido pela ciência.
Porém, com a morte de Deus, e sem a fé, instaura-se o niilismo, que influencia no desabamento
da modernidade, sobretudo, porque há uma frustração com as ofertas do progresso científico que já
não sustenta todas as ideias de futuro da humanidade, consideramos aqui a concepção de niilismo
passivo tomada por Deleuze:
[...] Assim, o niilista nega a Deus, o bem e até mesmo o verdadeiro, todas as formas do
suprassensível. Nada é verdadeiro, nada é bem, Deus está morto. Nada de vontade não é mais
apenas um sintoma para uma vontade de nada, mas sim, ao limite, uma negação de toda a
vontade, um toedium vitae. Não há mais vontade do homem nem da terra (DELEUZE, 1976,
p. 124).

Nietzsche afirma que o nada tomou o lugar de Deus, mas esse niilismo é ruim para os humanos
e a forma de superação para esse vazio é a transvaloração dos valores, pois, sem o referencial de
Deus, os indivíduos podem substituir os valores sobrenaturais pelos seus próprios valores, tendo como
base a realidade física. Para tanto, Nietzsche origina o além-do-homem proclamado por Zaratustra:

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Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes vós para
superá-lo?
Todos os entes até agora criaram algo para além de si: e vós quereis ser a vazante dessa
grande enchente, preferir retornar ao animal do que superar o homem? [...]
[...] Vede, eu vos ensino o super-homem!
O super-homem é o sentido da terra. Que vossa vontade diga: seja o super-homem o sentido
da terra! (NIETZSCHE, 2017, p. 28).

Pela concepção do filósofo Gianni Vattimo em sua obra O fim da modernidade


compreendemos que, na história da filosofia, a pós-modernidade começa com a sentença da “morte
de Deus” e seu enterro pelos cristãos: “Por isso, a morte de Deus- momento culminante e, ao mesmo
tempo, final da metafísica” (1996, p. 19). Vattimo ressalta também que Nietzsche fundamenta
filosoficamente a pós-modernidade, especificamente pelos aforismos escritos na obra Humano,
demasiado humano, além da noção do conceito de verdade, que se desconstrói pelo enterro de Deus.
Segundo Vattimo:
É com essa conclusão niilista que se sai de fato da modernidade, segundo Nietzsche. Pois a
noção de verdade não mais subsiste e o fundamento não mais funciona, dado que não há
fundamento algum para crer no fundamento, isto é, no fato de que o pensamento deva
“fundar”: não se sairá da modernidade mediante uma superação crítica, que seria um passo
ainda de todo interno à própria modernidade. Fica claro, assim, que se deve buscar um
caminho diferente. É nesse momento que se pode chamar de nascimento da pós-modernidade
em filosofia, um acontecimento cujos significados e cujas consequências, assim como os da
morte de Deus [...] ainda não acabamos de medir (VATTIMO,1996, p. 173).

Vattimo afirma que, “[...] ao anunciar a morte de Deus, ele prevê que sua sombra continue a
se projetar sobre o nosso mundo” (VATTIMO, 2004, p. 19), portanto, a humanidade tenta achar um
novo caminho, novas oportunidades e novos valores para preencher suas vidas. A “morte de Deus”
não acaba com a religião ou a crença dos seus seguidores, mas na pós-modernidade ressignifica seu
papel para se encaixar tanto ao novo indivíduo, como às transformações sociais.

Religião na pós-modernidade
Ao tratar especificamente da religião, não há a pretensão neste tópico de defini-la, mas de
especificar sua condição na pós-modernidade, pois ela toma novas formas tanto na sociedade quanto
na vida dos seres humanos.
Gianni Vattimo nos apresenta um retorno da religião, tanto dentro da sociedade à qual ele
chama de “cultura comum”, como na filosofia, pois a experiência religiosa não pode ser dispensada
mesmo após a desconstrução da metafísica e, posteriormente, na essência da sociedade.
O filósofo pensa uma ética pós-moderna que não pode ser separada da religião ou da política.
O autor retoma as discussões sobre o fenômeno religioso na filosofia, destacando que esse retorno da
religião precisa ser compreendido pelos fatores histórico-culturais na experiência da atualidade. O
retorno da religião depois da modernidade acontece sobretudo pela descrença na ciência, pois os fiéis

170
se tornam cada vez mais livres para questionar suas crenças e viver sem a obediência restrita aos
valores divinos e às regras morais.
O Deus que morreu anunciado por Nietzsche, foi o Deus metafísico e dono da moral, aquele
que cometia a chamada violência metafísica. Segundo Vattimo, Deus transcendente, ou seja, o Deus
inalcançável pelos humanos que só podem adorá-lo e, para ultrapassar essa metafísica, Vattimo
identifica o modo do sacrifício de Jesus na cruz, que transpassa o divino para o histórico.
O filósofo italiano também ressalta o tema da secularização, sendo um ponto central no retorno
do cristianismo pensado por Vattimo, pois ele a toma como positivo no processo da pós-modernidade,
discorrendo que essa secularização ajuda na mudança e ressignificação da religião cristã:
O termo em torno do qual estes dois aspectos do discurso podem ser desenvolvidos é o da
secularização. Reconhecido no seu “parentesco” com a mensagem bíblica da história da
salvação e da encarnação de Deus, o enfraquecimento que a filosofia detecta como traço
característico da história do ser se chama secularização, entendida no seu sentido mais amplo,
que abrange todas as formas de dissolução do sacro que caracterizam o processo de
civilização moderno. Se, contudo, a secularização é o modo pelo qual se atua o
enfraquecimento do ser, ou seja, a kenosis de Deus, que é o cerne da história da salvação, ela
não deverá ser mais pensada como fenômeno de abandono da religião, e sim como atuação,
ainda que paradoxal, da sua íntima vocação (VATTIMO, 2004, p. 35).

Mesmo que o cristianismo entenda a secularização como um acabamento da concepção de


sagrado, Vattimo entende que a sociedade secularizada vai abandonando cada vez mais a sacralidade
e o paraíso (que só pode ser alcançado depois da morte). Pode-se ressaltar que o niilismo tomado por
Vattimo é intrínseco ao cristianismo e à secularização, porque ele compara a Jesus que morreu na
cruz e se esvazia para salvar seu povo, portanto, ele esclarece que além do niilismo o ser se esvazia e
os fundamentos diminuem, de modo que os indivíduos se aproximam de Deus (não o metafísico que
morreu pela sentença de Nietzsche), pois, se antes, na Idade Média e mesmo na Modernidade,
tínhamos um Deus todo-poderoso que castigava, com a ressignificação do sagrado e o fim da
metafísica esse Deus muda sua relação com os indivíduos, deixa de ser supremo e vira amigo, diminui
seu divino para dar alcançar o humano.

Conclusão
Gianni Vattimo atualiza o pensamento e a filosofia de Nietzsche na contemporaneidade, a
partir da sentença da “morte de Deus” e do processo genealógico, pois continua a refletir sobre o
retorno da religião na pós-modernidade pela inversão de valores e por novas interpretações da
experiência religiosa, pois como Nietzsche discorre, não existem verdades absolutas, mas diferentes
compreensões.
Ao pensar religião e sagrado na pós-modernidade, precisamos levar em conta as margens e
nem tanto o centro como se fazia na Idade Média e na Modernidade, ou seja, estudar e refletir a partir
da figura do próprio Jesus Cristo, que nasceu numa família humilde, doou sua vida para ajudar os

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mais pobres e necessitados e não queria a glorificação para si. Portanto, Vattimo nos apresenta uma
inversão do Deus redentor de todo poder para pensarmos no Jesus sacrificado como parte do processo
histórico que ocorre na secularização e no retorno do cristianismo.
Ao longo da secularização, as instituições religiosas diminuem seu poder essencial dentro da
sociedade, mas não deixam de influenciar esse campo e principalmente a política, ou seja, somente
ressignificam seu papel e continuam ganhando espaço e influência na vida das pessoas e em seus
contextos sociais. Cabe ressaltar, enfim, que os indivíduos na pós-modernidade cada vez mais
participam e vivenciam de forma subjetiva e particular as crenças, a fé e seus cultos, diante da sua
própria realidade, saindo muitas vezes do espaço religioso e adentrando às práticas culturais e
políticas.

Referências Bibliográficas
DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Trad. Ruth Joffily e Edmundo Fernandes Dias. Rio de
Janeiro: Editora Rio, 1976.
VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não-religioso. Trad.
Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004.
VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-
moderna. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad.
e notas de Renato Zwick; apresentação e cronologia de Marcelo Backe. Porto Alegre: L&PM, 2018.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad., notas e posfácio Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm; SOUZA, Paulo César de. A gaia ciência. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo, maldição do cristianismo e Ditirambos de Dionísio.
Trad. Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém.
Trad. de Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre: L&PM, 2017.

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CRISTIANISMO PRIMITIVO E O GOVERNO DOS HOMENS

Gabriela Mariotto de Almeida Santos1

Resumo
Essa comunicação teve como ponto de partida, a análise aprofundada, respectivamente, de duas aulas referentes
ao período de 8 e 15 de fevereiro, que correspondem a algumas aulas ministradas por Michel Foucault no Collège de
France no ano de 1978. O objetivo central é compreender a necessidade do entendimento do conceito
governamentalidade, citado a primeira vez pelo filósofo em uma aula anterior, para que possamos entender como a
metáfora “pastor e ovelhas” têm uma possível relação com o cristianismo primitivo. A análise do filósofo dos três
primeiros séculos d.C. que correspondem ao período citado, nos mostra rompimentos, não gerais, mas parciais em relação
a alguns aspectos, com a cultura grega e hebraica. Essas rupturas são essenciais para que possamos alcançar e acompanhar
o pensamento foucaultiano, acerca do cristianismo como produtor de um novo modelo de “governo”. A base da
investigação são as aulas que compõem o material didático, nomeado pelo próprio Michel Foucault por Segurança,
Território e População (2008). Essas aulas são essenciais para a notoriedade da institucionalização do que venha a ser o
pastorado como modelo e materialização do governo dos homens e que se estende pelo Ocidente, por certas regras.
Palavras-chave: Governo. Poder. Pastorado cristão.

Introdução
O estudo presente tem a proposta de analisar o pastorado cristão a partir da leitura feita por
Michel Foucault do cristianismo. A análise percorre o que podemos compreender como o período do
cristianismo primitivo, no qual corresponde aos três primeiros séculos d.C. O foco contextual é
importante para que seja possível captar a transição e aspectos próprios do cristianismo ocidental
como reinventor e inventor de um novo modo de governar.
A análise partindo desse período é essencial para o conhecimento da prática cristã como
modeladora de um novo comportamento, ou melhor, uma nova produção de sujeitos específicos. Um
processo que não se dá apenas por uma instituição fora ao indivíduo, mas também surgem técnicas
que motivam essa reprodução a partir do próprio indivíduo. Foucault analisa os aspectos iniciais que
refletem no que podemos compreender como pastorado cristão, destacando as relações iniciais entre
pastor e fiéis, antes mesmo do que podemos compreender como as primeiras
comunidades/instituições monásticas.

Da governamentalidade ao modelo específico de “governo”


A partir das aulas proferidas ao longo de fevereiro de 1978, Michel Foucault faz uma longa
análise da pastoral cristã. O filósofo esclarece como podemos compreender esse modelo como uma
prática de controle sobre a vida dos homens, e como se materializa de forma sutil. Mas para que seja
possível essa compreensão, deve-se entender todas as noções e processos isolados que contribuem
direta e indiretamente para que ocorra a conclusão.

1
Graduanda em Filosofia. Pontifícia Universidade Católica de Campinas. A presente pesquisa, em nível de Iniciação
Científica, está vinculada ao Grupo de Pesquisa “Ética, Política e Religião: questões de fundamentação”. Aluna
proponente: e-mail:gabi_mariotto@hotmail.com. Orientador: Prof. Dr. Douglas Ferreira Barros (e-mail: dfbarros@puc-
campinas.edu.br).

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Ao final da aula proferida em primeiro de fevereiro de 1978, é a primeira vez que o filósofo
cita o conceito governamentalidade e, desenvolve nas aulas seguintes. Foucault nos apresenta duas
possíveis maneiras de interpretar esse termo, nos atentamos a segunda, ele diz:
Por esta palavra, governamentalidade, entendo o conjunto constituído pelas instituições, os
procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma
bem específica, embora muito complexa, de poder [...]. Em segundo lugar, por
governamentalidade entendo a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não parou
de conduzir, e desde há muito, para a preeminência desse tipo de poder que podemos chamar
de “governo” sobre todos os outros - soberania, disciplina - e que trouxe, por um lado, o
desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de governo e, por outro lado, o
desenvolvimento de toda uma série de saberes (FOUCAULT, 2008, p. 143,144)

Dado como podemos entender esse conceito, já podemos destacar que é um modelo de
“governo” singular e autônomo que produz e projeta administração própria, isto é, goza de liberdade
de técnicas e aparelhos específicos de controle. Como é ressaltado pelo filósofo, esse conceito não
significa “comandar” ou “reinar”, abrange algo a mais, e para isso deve-se compreender o tipo de
poder que esse termo representa e abrange (FOUCAULT, 2008, p. 156).
Inicialmente, já se pode justificar a análise do período específico, a partir do exemplo do
hospital psiquiátrico, exposto pelo filósofo, destacando a importância de compreender o que ele
chama “a grosso modo de tecnologia de poder” (FOUCAULT, 2008, p. 157). A instituição em si
representa um importante papel para compreendermos aspectos cruciais da estrutura interna e externa
de determinada materialização de poder, mas por conta da metodologia específica utilizada por
Foucault, a genealogia, uma questão importante nesse estudo e deve-se a isso, é praticar uma análise
exterior ao que o filósofo classifica como “institucional-centrismo”.
O método genealógico permite uma perspectiva global, um panorama das motivações
externas, isto é, das estratégias e táticas de poder, a forma como se dá esse governar, não apenas a
base interna e um balanço histórico das funções próprias da instituição em questão, mas sim as reais
motivações de controle, como uma análise na contramão, Foucault afirma:
Quais são esses efeitos? Desinstitucionalizando e desfuncionalizado as relações de poder
pode-se estabelecer sua genealogia, isto é, a maneira como elas se formam, se conectam, se
desenvolvem, se multiplicam, se transformam a partir de algo totalmente diferente delas
mesmas, a partir de processos que são totalmente diferentes das relações de poder
(FOUCAULT, 2008, p. 160)

Ao longo das aulas que compõem o Segurança, Território e População (2008), Michel
Foucault está interessado no estudo, que consiste na matriz do estado moderno, sobretudo o que
ocorre do século XVI ao XVIII. O estudo voltado para Europa, e as transformações significativas que
ocorriam no período, como as mudanças geográficas, históricas e científicas. Diante dessa súmula
nos questionamos: Como é possível uma análise de um novo “governar” cristão dentre esse estudo?
O filósofo nas primeiras aulas do material expõe e exemplifica para o leitor, que no caso das aulas
eram seus ouvintes, a passagem do modelo de governar pelo período antigo e medieval, mas se
debruça de forma enfática nas aulas de fevereiro.

174
O francês começa o estudo pela sociedade da segurança, discorre sobre o território, e assim,
chega na questão do “governo”. Após as transições dos modos de governar, o filósofo se apropria da
noção de “governo”, e assim, inicia o processo até a pastoral cristã, posteriormente ao apresentar
resumidamente o termo governamentalidade (FOUCAULT, 2018). Mas vamos aprofundar a seguir
essa questão e respondê-la de forma mais clara.

Singularidade católica diante do modelo de "governar" e da pastoral hebraica e grega


Agora veremos esse "governar" a partir de como o filósofo nos situa da noção do conceito já
na aula de 8 de fevereiro de 1978, mas antes, é importante destacar que vai se dar na relação entre
poder e sujeito. Importante recordar que sempre que falamos poder em Foucault, falamos em relações
de poder, pois ele deixa bem claro que o poder não se funda em si mesmo, sempre se dá a partir de
relações, como expõe Gesueli:
Assim, apresentado de forma bem esquemática: as relações de poder são definidas por
relações estratégicas de condução de condutas, e tais atos de condução das condutas podem
ser denominadas pelo exercício de governo. Em um ciclo de conferências realizado em
Berkeley, em 20 de outubro de 1980, intitulado Subjetividade e verdade, Foucault (1993, p.
207, grifo nosso) diz que “o ponto de contato do modo como os indivíduos são manipulados
e conhecidos por outros encontra-se ligado ao modo como se conduzem e se conhecem a si
próprios. Pode chamar-se a isto o governo” (GONZAGA, 2020, p.5)

Logo, a partir dessa citação já podemos destacar não só a intenção da relação de poder, mas
também sua relação direta com o governo. Como vimos anteriormente, Foucault desloca o modelo
da análise, essa relação entre poder e sujeito, não é mais vista entre instituições fora ao sujeito, externo
a ele, mas é uma relação que se dá a partir do próprio sujeito.
Foucault apresenta caminhos que podemos traçar a partir da palavra “governo”, antes de
possuir uma conotação política e após, que é quando se torna uma conotação moral. Essa exposição
é muito importante para compreender como vai ser usado pelo cristianismo a partir de dispositivos.
Começando pelo sentido material, temos como exemplo, “fazer ir em frente”, “seguir um
caminho”, “sustentar assegurando a subsistência” (FOUCAULT, 2008, p.162). Já pelo sentido de
ordem moral, temos, “conduzir alguém” e “falar com alguém" (FOUCAULT, 2008, p.163), todas
como referências empíricas. Mas, o que de fato nos importa é a conclusão à qual o filósofo apresenta
diante da exposição. Independente da situação apresentada, seja de ordem semântica ou em relação a
estrutura política, sempre os quais vão ser governados, são os indivíduos, mesmo que de forma
coletiva ou não, nunca estruturas, mas as pessoas. Assim, “o governo, o ato de governar, então, dirá
a respeito da conduta dos sujeitos, de forma que aquele que governa, aquele que gerencia possa ser
responsável por “condução de condutas” específicas, direcionadas para determinados fins”
(GONZAGA, 2020, p. 20).
Ao contrário do que tendemos a fazer no Ocidente, a considerar determinados fatos a Europa
e em aspectos a herança greco-romana-ocidental, o filósofo inicia o que podemos compreender como

175
o governo dos homens, não como uma ideia grega, ao ver dele, mas como uma ideia cujo origem de
um Oriente próximo, primeiro pré cristão e depois pós cristão (cf. FOUCAULT, 2008, p.166).
A partir desse ponto, para ficar mais claro a característica singular católica como produtora de
um novo modelo de "governar", Foucault mostra alguns modelos referentes a uma metáfora, que
inclusive é tema central da aula do dia 8 de fevereiro, que é o poder pastoral, e ele faz isso a partir de
algumas tradições, direcionamos aqui a hebraica e grega.
Importante antes das diferenciações dizermos o que é esse poder pastoral, o filósofo esclarece
a ideia e a organização de um poder pastoral. “Que o rei, o deus ou o chefe seja um pastor em relação
aos homens, que são como seu rebanho [...]” (FOUCAULT, 2008, p.166). Dessa maneira, Foucault
evidencia que vê os hebreus, como os povos que desenvolveram e intensificaram a questão do
pastorado (cf. FOUCAULT, 2008, p.167). Nesse aspecto a relação pastor e rebanho é o que podemos
considerar como uma relação religiosa. Para os hebreus Deus é seu pastor e o rebanho (povo) deve
fazer sua vontade. Assim sendo, podemos dizer que o poder é de Deus e só ele pode exercê-lo sobre
seu povo (cf. FOUCAULT, 2008, p.168).
Já na sociedade grega essa influência direta cessa em um certo momento, não é considerado
onipresente, é uma relação bem distinta do modelo pastor ovelha em relação aos hebreus e aos
cristãos. Como é bem destacado pelo filósofo, o Deus (deuses) grego, está lá em certos momentos,
como no exemplo, “aparece nas muralhas para defender sua cidade” (FOUCAULT, 2008, p.169), se
apresenta como “um Deus territorial” (FOUCAULT, 2008, p. 168). Mas de um modo geral, não é
presente em todos os momentos como o Deus hebraico, que acompanha aos bons-caminhos, sempre
a frente e mostrando a direção.
Basicamente, Foucault irá centrar seu foco na pastoral cristã, de forma aprofundada, a partir
da próxima aula de 15 de fevereiro. Mas já no fim da aula do dia 8 o filósofo já demonstra
características que vão ser designadas a essa singularidade cristã, como o modelo de se conduzir e
direcionar. Nada mais relevante no momento do que as apresentações próprias do bom pastor que são
apresentadas ao fim dessa aula. Cabe ao poder pastoral a salvação do rebanho, o cuidado, sustento,
zelo e dedicação. O pastor deve se preocupar com cada ovelha, em sua individualidade especial, e
também com a comunidade como um todo. Não pode fugir uma ao seu comando.

Rompimento e diferenciação cristã com tradições da sociedade grega antiga


O foco principal do estudo se dá a partir desse momento, quando Foucault nos revela as
especificidades do cristianismo como responsável por introduzir no mundo ocidental, o poder
pastoral, por mecanismos e técnicas específicas, e podemos dizer que ao mesmo passo que foi
conquistadora também foi violenta, seja simbolicamente ou fisicamente.

176
Na aula de 15 de fevereiro, Foucault de certa forma, deixa mais claro essa diferenciação já
apresentada. Ele nos mostra o contraste da metáfora do pastor-ovelha, em especial utilizando o texto
grego, O Político de Platão, em contraposto ao cristianismo, principalmente o fato do pastorado
cristão “implantar seus dispositivos no interior do Império Romano” (FOUCAULT, 2008, p.174). A
marcação de determinados rompimentos com a estrutura da sociedade grega antiga esclarece e
contribui com o desvelar do entendimento.
O ponto de partida e de destaque desse rompimento, acredito que seja quando Michel Foucault
esclarece que a relação pastor-rebanho não cabe aos gregos, em especial, quando pensamos pelo o
que foi seu modelo político (FOUCAULT, 2008, p.182). Sendo um aspecto importante para se
destacar, principalmente pela importância política na sociedade grega.
Até podemos encontrar aspectos do pastorado na Grécia antiga, como em algumas literaturas,
mas “no que se chama de vocabulário político clássico da Grécia, a metáfora do pastor é uma metáfora
rara” (FOUCAULT, 2008, p.185).
De acordo com a revisão que Foucault faz de alguns textos de Platão, em especial do texto O
Político, podemos dizer que um dos papéis mais importantes na ideia de sociedade platônica, o
homem político, não cabe exatamente ao papel de pastor. Podemos dizer que os deuses ocupam uma
posição importante para o rebanho (comunidade), de certa maneira, ocupa o lugar do pastor que
buscamos. Mas já a política tem sua posição efetivada no momento em que os deuses, se assim
podemos dizer, “abandonam” seus filhos. Como explica Foucault:
A divindade é o seu pastor e, como diz ainda o texto de Platão, “por ser a divindade seu
pastor, eles não necessitavam de constituição política" [...] A política vai começar quando o
mundo girar no sentido inverso. De fato, quando o mundo gira no sentido inverso, a divindade
se retira, a dificuldade dos tempos começa. Os deuses, é claro, não abandonaram totalmente
os homens, mas só os ajudam de maneira indireta, dando-lhes o fogo, as artes, etc. Eles não
são mais, verdadeiramente, os pastores onipresentes [...] Os deuses se retiram e os homens
são obrigados a se dirigir uns aos outros, isto é, necessitam de política e de homens políticos
(FOUCAULT, 2008, p.192- 193).

Podemos concluir que os deuses ocupam um lugar importante como pastor, mas como
refletido no fim da aula anterior, o filósofo esclarece e já sugere que cabe ao pastor, que vamos
observar, em especial no cristão, a função “pastor” ultrapassa o limite de apenas “colaborador”, ele
se torna o maior apoio de cada indivíduo do rebanho. O que observamos no modelo grego como
“divindade-pastor”, abre caminho para que a política assuma e possibilite que os homens decidam
seu próprio caminho e sejam responsáveis pelas suas escolhas em determinado momento.
E é a partir dessa análise, que vemos a singularidade cristã na forma como o pastor lida está
exatamente ao lado de suas ovelhas. Sua relação com o rebanho é estritamente conjunta, acompanha
cada processo das ovelhas, ele guia, conduz, deve manter a salvação do rebanho em todos os
momentos de sua caminhada. Como descrito por Gesueli:

177
É a partir das singularidades técnicas do modelo de poder pastoral cristão, que terá início com
o cristianismo aquilo que Foucault denomina como uma arte de condução dos homens,
objetivando a direção cotidiana da vida de todos e de cada um. Essa forma de condução
integral, pautada no cotidiano, pode ser descrita pela máxima: omnes et singulatim. Todos e
cada um (GONZAGA, 2020, p. 60)

O cristianismo é o que trouxe o pastorado como modelo de poder e uma forma de comando
sobre a vida dos homens, de uma originalidade vital. Quando digo vital, é destacando a necessidade
que o cristianismo se fez na vida de grande parte da população, desde o século I d.C., no qual é o
período analisado. Pode parecer estranho para muita gente, mas mesmo com alguns transtornos em
relação ao cristianismo, sua abolição não foi uma opção, apenas foram visadas reformas.
Como Foucault bem demonstra, o fato do cristianismo ter se mantido séculos em um pedestal
intocável, ainda hoje, se “mede pela intensidade e pela multiplicidade das agitações, revoltas,
descontentamentos, lutas, batalhas, guerras sangrentas travadas em torno dele, por ele e contra ele”
(FOUCAULT, 2008, p.197).
Mesmo os tempos turbulentos não foram suficientes para derrubar a força pastoral cristã, esse
seguiu poderosa como condutora dos fiéis, em cada momento de sua vida, literalmente se moldou
como uma filosofia. Quando é colocado “em cada momento”, podemos classificar que até mesmo
uma ideia de vida após a morte e a alma do indivíduo é colocado em jogo nessa força classificado
como pastoral cristã. Não é somente um simples governar dos homens, mas faz com que eles mesmos
queiram se governar ao longo de cada dia, em cada atitude, pensamento e circunstância.
O pastorado cristão determinou e seguiu particularmente e inovadoramente, leis próprias,
técnicas e procedimentos. “O pastorado passa a ser, por excelência, o saber de todos os saberes. É a
partir das relações pastorais que se dão as formas de condução de condutas dos homens”
(GONZAGA, 2020, p. 20).
Ao fim da aula de 15 de fevereiro, Foucault traz uma nota importante e, ao que parece, é uma
questão complexa até mesmo para ele, até esse devido momento abordado. Mesmo com diversas
interferências, relações e alianças entre o catolicismo e a política, que como ele mesmo evidencia no
estudo, ocorreram “pelo menos até o século XVIII” (FOUCAULT, 2008, p. 205), não desfez ou
diminuiu o que podemos chamar de característica Ocidental cristã e, assim, “vai permanecer
absolutamente específico e diferente do poder político" (FOUCAULT, 2008, p.205).

Considerações finais
O cristianismo desenvolveu essa tecnologia pastoral para a vida dos homens, que é como se
materializa a obediência ao longo da construção dos sujeitos. Um “governar” que vai além da
condução do outro indivíduo, ou de apenas uma pequena comunidade, se estendeu por todo o mundo,
de forma intensa no Ocidente, e perpassa e se mantém ao longo dos séculos.
A grande diferenciação, a singularidade cristã se dá no ponto que a pastoral se estende a toda

178
a vida e até mesmo na “pós-vida” do cristão. No sentido que opera no campo da moral, o cristianismo
a ligação com o pastor se dá como uma submissão individual, diante dos pretextos morais (bem e
mal) concebidos pelo pastor, a ovelha -fiel-, passa por um novo processo de saber, uma relação direta
com poder, e assim, começa todo o exame de consciência e a direção de consciência, ele passa a ser
seu próprio pastor, podemos dizer, o sujeito passa a se monitorar constantemente.
Michel Foucault ao dedicar seu estudo à pastoral cristã como um poder singular, ousou
problematizar algo de forma tão específica e aprofundada, nos mostra a importância de estudar essa
perspectiva, esses caminhos traçados desde o cristianismo primitivo para compreender o que somos
hoje. Ao dizer isso penso, isso foi posto aos sujeitos de forma tão sutil, até mesmo quando acreditamos
não ser cristãos ou não termos religião, até que ponto esse governo não está no nosso agir, sentir e
pensar. Isso pode ser definido pela problemática das formas de subjetivação, até que ponto não está
intrínseco em nossa formação.

Referências Bibliográficas
GONZAGA, F. G. Um cristianismo por Michel Foucault: pastorado cristão e vida
monástica a partir de uma leitura das práticas de governo. Dissertação. (Dissertação em Ciências da
Religião) - PUC. Campinas, 2020.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução e organização Roberto Machado.
8 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado Collège de France
(1977-1978). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

179
FÉ, AMOR E PARADOXO: UMA LEITURA DA RELIGIÃO A PARTIR DA
OBRA MIGALHAS FILOSÓFICAS DE SØREN KIERKEGAARD

Presley Henrique Martins1

Resumo
Em 13 de junho de 1844, Søren Kierkegaard (1813-1855) publica, sob o pseudônimo Johannes Climacus,
Migalhas Filosóficas. Na obra citada, Climacus inicia com o problema deixado por Lessing e polemiza com a mediação
– conceito que foi apropriado por Martensen, a partir da filosofia hegeliana. Entre Lessing e Martensen, lemos o problema
de Migalhas: a impossibilidade de o sistema mediar a relação entre o contingente e o necessário, o temporal e o eterno.
Num contexto filosófico eminentemente socrático-platônico, Climacus propõe um projeto alternativo de pensamento. O
objetivo deste trabalho é explorar os conceitos centrais desse projeto, a saber: fé, amor e paradoxo, como constitutivos de
um conceito de religião, que responde ao problema deixado por Lessing. Assim, pretende-se argumentar que a religião,
em Migalhas, é vinculada aos problemas cruciais da existência; precisamente porque a religião articula a relação entre
temporalidade e eternidade. Nesse sentido, entende-se que a religião se situa no âmago da existência e no limite do
sistema. Desse modo, propõe-se colaborar com os debates atuais acerca da religião, uma vez que há em Migalhas
Filosóficas uma teoria da religião que responde aos argumentos de pensadores contemporâneos que defendem a
inutilidade da religião em um mundo explicado pela Ciência.
Palavras-chave: Fé. Amor. Paradoxo. Religião. Kierkegaard.

Introdução
Søren Kierkegaard publicou em 1844, sob pseudônimo Johannes Climacus, a obra Migalhas
filosóficas. Logo na epígrafe da obra lemos: “Poderá haver um ponto de partida histórico para uma
consciência eterna; como poderá ele ter mais do que um interesse histórico; poderá erigir-se uma
felicidade eterna sobre um saber histórico?” (KIERKEGAARD, 2012, p. 31). A questão de Climacus,
apontada na epígrafe de Migalhas, remonta ao problema deixado por Lessing. No ano de 1777,
Lessing escreve um texto intitulado Sobre a prova do poder e do espírito como resposta ao diretor da
universidade de Hanover, Johann Daniel Schuman, que havia escrito Sobre as evidências da verdade
do cristianismo (cf. LESSING, 2005, p. 83). Em seu texto, Lessing questiona sobre a existência dessas
evidências, argumentando que o cristianismo está sedimentado em relatos históricos. E relatos
históricos não são evidências da verdade do cristianismo. Nesse sentido, relatos de milagres não são
milagres, profecias sobre as quais se houve falar nos relatos não correspondem à experiência que o
próprio indivíduo faz das profecias. Portanto, os relatos não são prova do poder e do espírito; se
aqueles que escreveram os relatos tiveram a prova do poder e do espírito e acreditam naquilo que
experienciaram, é uma coisa, mas aqueles que apenas têm acesso aos relatos, é outra coisa (cf.
LESSING, 2005, p. 83-85). Dessa forma, as verdades históricas não são evidências, pois elas não
podem ser demonstradas, pois “verdades contingentes da história nunca podem se tornar a prova
necessária das verdades da razão” (LESSING, 2005, p. 85). Portanto, estando o cristianismo
fundamentado em relatos históricos, e sendo contingente tudo o que é histórico, o cristianismo não

1
Doutorando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestre em Ciências da Religião
e licenciado em Filosofia, ambos pela PUC-Campinas. E-mail: presley.hmartins@gmail.com

180
pode ser uma prova necessária da razão. O problema exposto por Lessing está direcionado para o
conteúdo dos relatos, uma vez que o que está em jogo nos relatos do cristianismo é a própria salvação;
o indivíduo não terá provas necessárias da razão para decidir em relação aos relatos, ou seja, o
indivíduo deverá decidir sobre algo que é histórico, contingente e, portanto, não possui provas ou
garantias, cujo sentido de sua existência está em jogo. Assim, diante de sua decisão, o indivíduo
depara-se com um fosso, sem a possibilidade de mediação.
Além do problema deixado por Lessing, a obra Migalhas filosóficas também polemiza com o
conceito de mediação, que oferece uma resposta lógica para compreensão da encarnação de Cristo,
problema que corresponde ao núcleo do cristianismo. Martensen, importante figura intelectual no
contexto de Kierkegaard, enfatiza que a mediação supera a lógica do terceiro excluído. Nesse sentido,
“A ideia de Kierkegaard aqui é uma resposta à ideia de mediação encontrada nas obras de hegelianos
como Martensen” (STEWART, 2017, p. 183). Na lógica hegeliana não há contradições ou dicotomias
absolutas, tudo pode ser mediado. É o que ocorre com o conceito de nada, que não pode ser pensado
de forma isolada do conceito de ser. Ambos os conceitos podem ser lidos como uma contradição. No
entanto, segundo a lógica de Hegel, o ser não pode ser pensado de forma isolada do conceito de nada
e vice-versa. Desse modo, a relação entre o ser e o nada é mediada e superada pelo conceito de devir,
que é constitutivo do ser e do nada (cf. STEWART, 2017, p. 58). Nesse sentido, Martensen, afirmará
que não há diferença absoluta entre o divino e humano, entre a temporalidade e eternidade. Cada um
desses termos está necessariamente relacionado com o outro e, desta forma, mediado por ele (cf.
STEWART, 2017, p. 183). A mediação, portanto, na perspectiva de Martensen, poderia explicar a
encarnação de Cristo, uma vez que não há diferença absoluta entre o humano e o divino, a encarnação
pode ser compreendida pela mediação.
Kierkegaard parte do fosso de Lessing, cujo problema se opõe à mediação. O fosso é
precisamente impossível de se mediar. No entanto, Lessing não apenas deixou o fosso, mas propôs
um critério: mesmo que os relatos tenham perdido a prova do poder e do espírito, Lessing argumenta
que o conteúdo dos relatos pode ser decidido na medida de suas consequências, ou seja, mesmo não
tendo critérios suficientes para se decidir em relação aos relatos, ele pode pensar sobre as
consequências que os relatos podem ter em sua vida (cf. LESSING, 2005, p. 87-88). Portanto, é nesse
sentido que faremos a leitura de Migalhas, para pensarmos a religião iremos expor as duas formas de
pensamento e extrair suas consequências, conforme a proposta de Climacus, enfatizando os conceitos
de fé, amor e paradoxo enquanto conceitos cruciais para formulação do pensamento religioso de
Climacus.

181
Projeto de pensamento A
Em Migalhas filosóficas Kierkegaard, sob a pena de Climacus, leva a proposta de Lessing às
últimas consequências. Nesse sentido, o dinamarquês analisa minuciosamente dois projetos de
pensamento e suas consequências. O projeto de pensamento A, analisa a proposta socrática-platônica,
já o projeto de pensamento B, analisa a perspectiva do cristianismo. Para Álvaro Valls, “A expressão
‘Migalhas’ contém uma ironia contra a moda da época de se escreverem tratados sistemáticos ou,
como diria nosso autor, sistemas de sistemas” (VALLS, 2012, p. 25). É importante lembrar que
Climacus, no prefácio, retira a sua autoridade, uma vez não pretende fazer parte dos esforços
científicos, ou seja, dos fazedores de sistema, ele diz: “Só tenho a minha vida, que ponho prontamente
em jogo de cada vez que se apresenta uma dificuldade. […] Qualquer pessoa me é demasiada pesada
[…].” (KIERKEGAARD, 2012, p. 41). Nesse sentido, Migalhas tem um duplo distanciamento, se já
Kierkegaard utiliza-se de pseudônimos para retirar sua autoridade enquanto autor, Climacus replica
esse distanciamento. Esse duplo distanciamento, permeado pela ironia socrática, acentua a seriedade
e a gravidade do conteúdo a ser elaborado e pensado, uma vez que Climacus aborda um tema que é
crucial para o indivíduo e, portanto, cabe somente a cada indivíduo decidir.
Os projetos de pensamento expostos por Climacus articulam-se àquilo que é fundamental à
existência: sua felicidade eterna, que pode ser lida como salvação ou sentido de vida. Esse problema,
como vimos em Lessing, não pode ser mediado por argumentos que tenham uma razão necessária e
suficiente ao indivíduo em seu momento de decisão. Nesse sentido, a relação entre o núcleo da
existência do indivíduo e a religião deve ser pensada mutuamente, uma vez que concerne ao sentido
da existência do indivíduo. Segundo Roos: “[…] o sentido da existência é sempre simbólico, é sempre
algo que transcende a objetividade dos conceitos e dos dados e, nesse sentido, em termos amplos, o
sentido existencial se articula com o religioso” (ROOS, 2019, p. 27). A proposta de analisar dois
projetos de pensamento está no intuído de dissecar duas possibilidades de experiência a fim de revelar
suas consequências. Os dois projetos acoplam duas perspectivas abrangentes de tal modo que
podemos pensar se estamos no A ou no B, se escolhemos o A ou o B. A obra segue uma sequência
lógica: se afirma-se A no projeto A, no projeto B, afirma-se não A.
O projeto de pensamento A e B, tentarão responder o problema da epígrafe que remonta o
problema deixado por Lessing. A questão sobre a felicidade eterna articula-se com o encontro com a
verdade. Kierkegaard não está preocupado com o problema da felicidade em si, mas com o sentido.
A resposta que encontramos a partir da perspectiva socrática-platônica será através do conceito de
reminiscência: nós conhecemos a verdade, mas ela está esquecida, então o que temos que fazer é
recordar essa verdade. Para isso, cabe a figura do mestre, como Sócrates, ser a ocasião para a
reminiscência (KIERKEGAARD, 2012, p. 43-44). A consequência dessa perspectiva é que a ocasião
não tem significação decisiva, pois o indivíduo já está de posse da verdade. Nesse sentido, no projeto

182
de pensamento socrático-platônico, o mestre é aquele que instiga o aprendiz a procurar a verdade.
Portanto, ele é apenas a ocasião, mas para descobrir a verdade, o aprendiz terá que fazer isso por ele
mesmo. Assim, o ponto de partida histórico é algo casual e transitório, e Climacus argumenta que,
tendo em vista sua salvação eterna, essa perspectiva não pode interessar-lhe. “Para o ponto de vista
socrático, cada homem é para si próprio o centro, e o mundo todo centra-se somente nele, porque o
seu autoconhecimento é um conhecimento de Deus” (KIERKEGAARD, 2012, p. 49). A dificuldade
dessa perspectiva é o desespero. Se o indivíduo, tendo a verdade em si desde sempre se desespera,
então não poderá encontrar a verdade que o tire do desespero, nesse momento o ponto de partida
temporal será um nada, pois no mesmo instante descobre que desde a eternidade sempre esteve com
a verdade sem o saber, nesse mesmo momento esse instante estará oculto no eterno, não tendo um
aqui e ali, mas somente em toda parte e em parte alguma (KIERKEGAARD, 2012, p. 49-50).
A resposta para esse problema da reminiscência é o paradoxo, pois o paradoxo é a entrada da
eternidade no tempo:
A verdade eterna surgiu no tempo. É isso o paradoxo. Se o sujeito acima mencionado foi
impedido pelo pecado de retomar-se a si mesmo na eternidade, agora não deve mais se
preocupar por causa disso, pois agora a verdade eterna, essencial, já não se encontra lá atrás,
mas veio para a frente dele, pelo fato de ela mesma existir, ou ter existido, de modo que se o
indivíduo, existindo, na existência, não alcançar a verdade, jamais a alcançará
(KIERKEGAARD, 2013, p. 220)

Com o pecado, que pode ser entendido como desespero, o indivíduo fica impossibilitado de
encontrar a verdade em si mesmo a partir da reminiscência. Pensando nesse problema, no projeto de
pensamento B, Climacus colocará o indivíduo na condição de não-verdade; ele não está na verdade
nem tem consigo a condição para alcançar a verdade. Essa perspectiva corresponde ao oposto das
condições apresentadas no projeto A.

Projeto de pensamento B
Na perspectiva de pensamento B, o indivíduo, portanto, não tem a verdade. Ele se encontra
na não-verdade porque ele mesmo dissipa a condição da verdade. Nesse sentido, o aprendiz é
certamente não livre, ele está prisioneiro na sua condição e está excluído da verdade, uma vez que é
excluído por intermédio de si mesmo, e isso significa estar preso (cf. KIERKEGAARD, 2012, p. 52-
53). Nesse sentido será o mestre que lhe dará a verdade e também a condição de sua liberdade.
Segundo Climacus, esse mestre só pode ser um Deus. E se no projeto A o mestre é apenas a ocasião,
no projeto B ele será a condição. Climacus chama de conversão o momento em que o indivíduo
percebe que está na não verdade e recebe a verdade, essa conversão o transforma, proporcionando
um renascimento, a passagem do não-ser para o ser (cf. KEIRKEGAARD, 2012, p. 57-58). O mestre
que se apresenta como condição e verdade para o indivíduo, não é seu mestre, mas seu salvador. E
segundo Climacus esse mestre só pode ser um Deus. O Deus que vai ao encontro do aprendiz e lhe

183
devolve a condição e a verdade, é o eterno que se temporaliza, e, nesta perspectiva, o instante, o
eterno no tempo, passar a ter uma significação decisiva. O eterno no tempo é o paradoxo absoluto, e
esse é o paradoxo do pensamento, ou seja, o seu limite. É o choque do pensamento com o
desconhecido, é o absolutamente diferente, cujo entendimento choca-se continuamente com esse
desconhecido que decerto existe, mas que, por ser desconhecido, não existe (cf. KIERKEGAARD,
2012, p. 96). Segundo Stewart:
Desse modo, pode-se conhecer a Deus, mas somente com a ajuda divina. Mas não pode ser
demonstrado discursivamente que Deus entrou na história humana como um ser humano a
fim de comunicar a mensagem. Este é o paradoxo que desafia razão. Este parece ser o ponto
epistemológico por trás da doutrina do paradoxo2 (STEWART, 2003, p. 341)

Nesse sentido, discursivamente, não se pode mediar como Deus entrou no tempo. Se a relação
com Deus não pode acontecer através de mediações lógicas e através do discurso, a fé vem a ser a
possibilidade da relação. Mas a condição para fé é o próprio Deus. “Porém, para que o mestre haja de
poder dar a condição, tem de ser o deus, e, para pôr o aprendiz na posse dela, tem de ser o homem.
Esta contradição é, por seu turno, o objecto da fé, e é o paradoxo, o instante” (KIERKEGAARD,
2012, p. 117). Portanto, é pela fé que o indivíduo se relaciona com Deus. Se o indivíduo se encontra
na não-verdade e recebe a condição e a verdade, então a fé não é um ato da sua vontade, uma vez que
é Deus que devolve a condição, ou seja, a fé, mas é o homem que toma posse dela. Do mesmo modo,
a fé também não é uma forma de conhecimento, pois, ou se tem o conhecimento do eterno e perde-se
de vista o temporal e o histórico, ou se tem um conhecimento histórico e, nesse sentido, não se pode
ter um conhecimento segundo o qual o eterno seja histórico. (cf. KIERKEGAARD, 2012, p. 116).
Climacus, interroga-se sobre o que faz Deus ir de encontro ao aprendiz, uma vez que um Deus
de nada precisa, então somente o amor é o que o movimenta: “porque só no amor se transformará o
diferente no igual, só na igualdade ou na unidade há entendimento…” (KIERKEGAARD, 2012, p.
66). Este amor, que faz o Deus ir em direção ao aprendiz, é o amor que não procura destruir o desigual,
pois esse amor não é produzido pela ascensão e troca de vestuário daquele que se perdeu em sua
própria liberdade, mas é o amor da descida que devolve a liberdade através de si próprio no
acolhimento do desigual na igualdade (cf. KIERKEGAARD, 2012, p. 73). O instante, a entrada da
eternidade no tempo, ocorre através do amor, que devolve por amor, a possibilidade da liberdade,
para o indivíduo que se encontra na não-verdade.
Os conceitos de fé, amor e paradoxo, como tematizados no projeto de pensamento B,
correspondem aos conceitos fundamentais do cristianismo e caracterizam o projeto religioso de
Climacus.

2
No original: “Thus, one can know God but only with divine aid. But it cannot be discursively demonstrated that God
entered into human history as a human being in order to communicate the message. This is the paradox that defies reason.
This seems to be the epistemological point behind the doctrine of the paradox.”

184
Conclusão
O problema deixado por Lessing, além de ser imprescindível para compreendermos a obra
Migalhas filósóficas, também o é para compreendermos aquilo que é fundamenta à existência: o
sentido. Para essas questões, cujo sentido, a salvação eterna, está em jogo, não haverá respostas
prontas e mediações possíveis, tampouco, por força do conhecimento, poderá se superar o fosso. O
histórico ressalta o problema que indivíduo deve lidar: o contingente, a inconstância, que por
definição não oferece uma resposta ou evidência necessária para se fundamentar toda uma vida. Por
isso, segundo Kierkegaard:
Este [um ponto de partida histórico para uma consciência eterna] é e continua sendo o
principal problema com respeito à relação entre o Cristianismo e a filosofia. Lessing é o único
que lidou com isso. Mas Lessing sabia muito mais do que se tratava o assunto do que o
rebanho comum [Creti e Pleti] de filósofos modernos. - JP III 2370 (Pap. V B 1: 2) n.d.,
18443. (KIERKEGAARD, 1985, p. 176)

Nesse sentido, é justamente na existência, nas questões imponderáveis à razão, que a religião
cumpre uma função fundamental no pensamento de Kierkegaard, porque ela inicia no limite e na
fragilidade da razão. Se no projeto de pensamento A, para a construção de uma salvação eterna, a
razão encontra seu limite na possibilidade do pecado, no projeto de pensamento B, o indivíduo recebe
a condição para sua liberdade: a fé. E a condição é o próprio Deus, que é amor. E esse amor, a entrada
na eternidade no tempo, é o paradoxo que a razão não consegue explicar.
A religião preserva e ressalta o desconhecido, na impossibilidade de levar a razão adiante em
face dos problemas mais frágeis, decisivos e significativos da existência. Percebemos que o projeto
de pensamento B, é um retorno aos conceitos fundamentais do cristianismo, em que há o esforço de
distinguir platonismo e cristianismo. O caráter decisivo não está principalmente em suas respostas,
mas no paradoxo que proporciona um paradigma à existência ao enfatizar que aquelas questões mais
profundas da experiência humana, não podem ser mediadas, mas que através da fé e do amor, há
esperança para indivíduo que está na não-verdade, ou seja, no desespero.

Referências bibliográficas
KIERKEGAARD, Søren. Migalhas Filosóficas. Lisboa: Relógio d’Água, 2012.
KIERKEGAARD, Søren Aabye. Philosophical Fragments. New Jersey: Princeton University
Press, 1985.
KIERKEGAARD, Søren. Pós-escrito às migalhas filosóficas. Vol. I. Petrópolis, RJ: Editora
Vozes, 2013.
LESSING, Gotthold Ephraim. Philosophical and Theological Writings. New York:
Cambridge University Press, 2005.
ROOS, Jonas. Finitude, infinitude e sentido: um estudo sobre o conceito de religião a partir
de Kierkegaard. Brasília: Revista Brasileira de Filosofia da Religião, v. 6, p. 10-29, 2019.

3
Na tradução consultada: “This [a historical point of departure for an eternal consciousness] is and remains the main
problem with respect to the relation between Christianity and philosophy. Lessing is the only one who has dealt with it.9
But Lessing knew considerably more what the issue is about than the common herd [Creti and Pleti] of modern
philosophers.—JP III 2370 (Pap. V B 1:2) n.d., 1844”

185
STEWART, Jon. Kierkegaard’s Relations To Hegel Reconsidered. New York: Cambridge
University Press, 2003. (Versão eletrônica).
STEWART, Jon. Soren Kierkegaard: subjetividade, ironia e a crise da modernidade.
Tradução Humberto Araújo Quaglio de Souza. Petrópolis: Vozes, 2017.
VALLS, Alvaro. Kierkegaard: cá entre nós. São Paulo: Editora LiberArs, 2012.

186
Coordenação
Bruno do Carmo Silva (UFJF)
brunokarmo@hotmail.com
Matheus Landau de Carvalho (UFJF)
matheuslcarvalho@ig.com.br

Ementa
O objetivo do GT Tradições e Religiões Asiáticas é reunir pesquisadores/as visando estimular
os estudos e o diálogo em torno da pluralidade de tradições que se desenvolveram na Ásia – em
especial no subcontinente indiano, no leste e no sul asiáticos. Estes estudos podem ser compreendidos
através: (1) de uma dimensão religiosa, expressa em práticas rituais e devocionais, narrativas
mitológicas, sistemas de moralidade e produções artísticas; (2) de uma dimensão filosófica,
identificada na investigação dos princípios metafísicos, ontológicos, lógicos, éticos e estéticos que
caracterizam especulações de caráter cognitivo e soteriológico; e (3) de uma dimensão histórica, que
englobe expressões socioculturais e literárias genuinamente asiáticas como objeto de análise de
metodologias das Ciências Humanas, como a Sociologia, a Linguística, a Psicologia, a Antropologia,
a Ciência Política, a Teologia, a Geografia, a Literatura e a História. Seja qual for a dimensão da
pesquisa, deve refletir iniciativas contemporâneas de compreensão e/ou revisão de vários estudos e
realidades orientais, com a possibilidade de incluir processos de transplantação ou
transnacionalização cultural, estudo comparado das religiões e perspectivas de diálogo inter-religioso.
Palavras-Chave: Tradições religiosas asiáticas. Tradições filosóficas asiáticas. História da
Ásia.

187
UMA BREVE INTRODUÇÃO À RITUALÍSTICA NO HINDUÍSMO

Paulo Victor Cota de Oliveira Franco1


Resumo
O presente trabalho procura levantar a temática do ritual no Hinduísmo como ponto de partida para uma leitura
compreensiva dessa religião. Diante da bibliografia estudada, temos como principal função abordar de forma panorâmica
como a ritualística imprime importante papel para a cosmologia, mais especificamente entre Brahmanas embasados nos
conhecimentos ofertados pelos Vedas, ou seja, parte da tradição que aborda este conjunto de textos, além de seus
complementos reificado nos textos Upanishads. Entendemos que este trabalho se justifica enquanto uma introdução à
temática que possibilita aos leitores interessados um conhecimento inicial do assunto. Por outro lado, os apontamentos
apresentados pretendem direcionar um olhar mais cuidadoso aos interesses sobre os ritos para explicitar questões com as
quais dificilmente encontramos em nosso imaginário em relação ao Hinduísmo. Pretendemos assim trabalhar diversos
conceitos que se relacionam aos processos rituais dessa religião, juntamente com suas implicações filosóficas e evidências
de seus desdobramentos sociais e morais, condicionados aos fazeres religiosos, buscando apontar como é imprescindível
o ritual para entendermos o Hinduísmo.
Palavras-chave: Hinduísmo, ritual, cosmologia, Vedas, Upaniṣads.

Introdução: um ponto de partida


O Hinduísmo é uma das religiões originária da Índia e é considerada uma das grandes religiões
do mundo, sendo a terceira em tamanho, ficando atrás apenas do Cristianismo e do Islã. Volney
Berkenbrock (2019) afirma-nos que o Hinduísmo comporta cerca de quinze por cento da população
mundial, o que permite que esta tradição juntamente com o Cristianismo, Islã e Budismo concentrem
por volta de setenta e seis por cento dos religiosos em nosso planeta (BERKENBROCK, 2019, p. 20).
Portanto, ela é uma religião com vários adeptos, que comparado às outras de mesmo porte,
como islã e cristianismo, trata-se de uma religião com múltiplos aspectos e por isso não apresenta
uma doutrina única e exclusiva para todos seus crentes. O que nos impressiona e que nos leva ao
trabalho presente é de que forma são percebidas o ritual para o caminho de seus adeptos.
Assim, temos como principal função abordar de forma panorâmica no campo religioso do
hinduísmo como a ritualística imprime importante papel para a cosmologia, mais especificamente
entre Brahmanas embasados nos conhecimentos ofertados nos Vedas, ou seja, parte da tradição que
aborda este conjunto de textos e seus complementos reificado nos textos Upaniṣads.

Rituais para Libertação


Comecemos na abordagem sobre os aspectos que comportam a compreensão do hindu sobre
a dinâmica religiosa. Gavin Flood, em trabalho intitulado Uma introdução ao hinduísmo (2014) traz
uma afirmação, que para nós foi chave para iniciar a compreensão da relação hinduísta com suas
práticas religiosas. Ele escreve que:

1
Mestrando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: pvcota@gmail.com

188
A devoção (bhakti) aos deuses, mediada por ícones e pessoas sagradas, provê refúgio em
tempos de crise e até mesmo a libertação final (moksa) da ação (karma) e do ciclo de
reencarnação (samsāra). O transcendente é também revelado na literatura sagrada os
“Vedas”; e nos códigos de comportamento ritual, social e ético – geralmente subsumido pela
palavra dharma – termo este cujo conteúdo é objeto de revelação dessa literatura (FLOOD,
2014, p. 31).

Ao falar em devoção a vários deuses, o autor deixa claro que a multiplicidade de cultos
erroneamente é classificada como uma prática religiosa politeísta, pois estas diferentes formas são
consideradas como aspectos ou manifestações do sagrado e nada teria uma relação com a formação
de panteão divino. Este sagrado é visto como um Deus transcendente para além do universo que, ao
mesmo tempo, estaria dentro de criatura viva, podendo assim ser alcançado de diferentes formas
(Idem, p. 31). Esta é uma religião que, em sua variedade, proporciona uma concepção politeísta da
mesma, pelo aspecto, porém ela direciona a olhar a diversidade como manifestação de um único poder
derivado da condição única de Brahman, o que a enquadraria em uma religião monoteísta.
Acreditamos que na fala de Flood, os termos Veda e dharma são imprescindíveis para
adentrarmos nos aspectos da ritualística. O autor descreve os Vedas como as literaturas sagradas para
os hindus, composto por imenso corpus literário, escritos em sânscrito, a língua também sagrada para
eles. Estes escritos foram conhecimentos passados aos sábios da antiguidade os quais se fizeram
transmitir de geração a geração, pela tradição oral. Neste sentido, os Vedas comportam uma posição
privilegiada no meio religioso dos Hindus, pois sendo aceita como escritos a serem seguidos, ela
impõe os preceitos necessários para o cumprimento; para as pessoas que recusam seus ensinamentos,
provoca uma identificação contrária e diferente do que é ser hinduísta.
Os Vedas têm como função principal a ritualística. Intimamente ligado ao ritual védico, se
distinguindo de duas formas: entre mantra (ou Samhitā) e brahmana. Ainda Flood nos explica que
mantra são hinos versificados para liturgia enquanto que o brahmana diz sobre uma exegese ritual,
explicando como proceder na realização dos rituais, promovendo as devidas explicações sobre eles,
seus significados e propósitos (Op. cit., p. 60). Sobre os Vedas também observamos em Dilip Loundo
(2012) um apontamento interessante. Para ele, nos Vedas, existem dois elementos que consagram o
conhecimento: nos Brahmanas e Upaniṣads. No primeiro concentra as iniciais ações rituais
(karmakhaṇḍa); e no segundo aborda a porção final referente à filosofia/espiritualidade
(jñānakhaṇḍa) (LOUNDO, 2012, p. 36).
Em trabalho mais recente o autor destaca que esta dupla posição
[...]traduz-se num modelo de encaminhamento espiritual marcado por dois vetores de
progressão de sentido, que correspondem, grosso modo, às esferas revisitadas da “religião”
e da “filosofia”: num contexto de organicidade e harmonia, a segunda (filosofia) consagra-se
como sentido profundo da primeira (religião) que constitui, por sua vez, o pré-requisito
indispensável daquela (Id., 2020, p.252)

189
Ele explica que seriam dois níveis de compreensão: o primeiro um “nível introdutório” que
alcança um conhecimento parcial, atrelado a busca do desapego e a uma doutrina da transmigração
(saṃsāra) da alma (ātman) que levaria a um desfrute paradisíaco através de um renascimento. Este
“primeiro vetor” está conectado ao cumprimento de “preceitos morais, rituais, litúrgicos e
devocionais e a familiarização com narrativas míticas e princípios doutrinários e dogmáticos”, sendo
este nível conhecido por dharma ou saṃsāra. O segundo nível seria o de “aprofundamento” de
“caráter iniciático”, que avança para o campo intelectual e, ao invés de práticas rituais, promove o
desenvolvimento racional e de meditação. Neste ponto há condicionamento para o desapego absoluto
visando o conhecimento do Real e com isso a superação da condição transmigratória do ser e sua
dualidade, como também a participação “na natureza sempre-presente do Real ontológico”, que se
figura nas designações de mokṣa, nirvāṇa, ou preman, vista como Libertação (Ibid., p.253).
O que podemos apontar é que os Vedas têm um caráter litúrgico ritualístico do qual
compreende o registro de toda uma tradição religiosa que culmina em ensinamentos para o
cumprimento de seus deveres. Estes deveres dizem respeito ao próximo conceito a ser trabalhado.
Flood afirma que o dharma é revelação trazida nos Vedas e, assim, o termo que se aproxima do nosso
entendimento de religião no ocidente. Contudo, este termo engloba outras noções como “verdade”,
“dever”, “ética” e “lei” o que aponta maior significado para os hindus. Neste sentido o autor coloca
que dharma é uma referência para deveres a serem cumpridos “em função de seu status social, de
casta ou classe (varna), e, também em função do estágio de vida (āśrama) em que se encontra”
(FLOOD, 2014, p.32 e 33).
A condição de dharma é observada por Loundo sob um duplo aspecto a serem cumpridos em
rituais sacrificiais. O primeiro ele apresenta como sendo o nitya-karma que seria “ações obrigatórias
de caráter diário ou sazonal, que constituem desdobramentos inevitáveis de ações passadas e que,
portanto, não são produtoras de resultados futuros” (LOUNDO, 2012, p.37). Ela ainda se
caracterizaria por três elementos distintos: deveres para os ancestrais (grhya-dharma), com a
sociedade em geral (varnasrama-dharma) e rituais sacrificiais (nitya/naimitta-yajna). No segundo
campo, ele apresenta como sendo o Kamya-karma que seria “ações de caráter opcional que são
realizadas visando a satisfação das aspirações humanas pela progressão transmigratória conducente à
fruição paradisíaca em vidas futuras” (Id., ibid.).
Uma condição importante para compreender a ação do hindu diante do dharma é que não há
uma formação de credo que promova ação do hindu. É antes um cumprimento de sua posição social
na medida que seus valores expressados suplantam a crença. Há uma ortopraxia que precede a
ortodoxia (FLOOD, 2014, p.33). Dharma assim tem um apelo ritual e comportamental, no âmbito

190
moral e ético, negligenciar este encaminha a consequências negativas tanto no campo pessoal como
social, pois se diz de um cumprimento sagrado.
Neste sentido as Vedas e dharma são componentes importantes para avaliar a ação do hindu
em seu cumprimento social e ritualístico védico o que nos ajudou a observar o pensamento hindu
sobre a doutrina de transmigração das almas. Discriminado sobre os Vedas e dharma, sigamos a
pensar a afirmação citada no início deste trabalho. Como foi dito a finalidade para o hindu é buscar a
libertação (mokṣa). No dharma se distingue segundo Flood, uma “afirmação da vida e de valores
sociais ou uma renúncia da mesma vida mundana (samnyāsa) de salvação ou libertação (mokṣa). Na
primeira há uma preocupação com o papel social segundo sua posição e de necessidades práticas
como
obtenção de favor das divindades em momentos de crise, como no caso de doença de uma
criança; a garantia de obtenção futura, nesta ou na próxima vida, de uma condição existencial
superior; e o cumprimento adequado de ordenações de vida de acordo com o prescrito pelas
instituições sociais em que nasce (Ibid., loc. cit).

Na mesma linha de pensamento, Dilip Loundo ao abordar os aspectos ritualísticos nas


tradições védicas, ele apresenta que a inserção do ritual na Índia se deve a doutrina panindiana dos
puruṣārtha, como provedora de uma proposta racional e pragmática fundamentada em quatro
satisfações da condição de existência: kāma, artha, dharma e mokṣa (LOUNDO, 2012, p. 35).
Entre estes aspectos existe uma gradual progressão ascendente no qual se observa um processo
de realização dos objetivos, contudo, as últimas duas seriam exclusivamente de aspirações da
condição humana, se distinguindo de outras formas existenciais da alma. Também neles observam
não buscar objetos existentes. Nesta questão, dharma traça uma condição paradisíaca futura ao ato
ritual, e mokṣa uma “reflexão filosófica conducente à uma realização de uma totalidade que
transcende toda fruição objetiva” (Ibid., p. 36).
Reitera Dilip Loundo que a condição que “visa o ritual trata de um método de ação (yajna)
conducente à produção de objetos 'ainda não-existentes'; enquanto que o discurso que visa à reflexão
trata de um método de pensar (jñana) que visa à realização da realidade última como não dual, i.e.,
da não-diferença existencial(advaita) que subsume os conceitos de 'eu' (atman) e do todo (brahman)”
(Ibid., loc. cit.).
Focando na ideia de ritual de caráter opcional, (kamya-yajna), Loundo deixa claro que é neste
movimento que existe o aprimoramento existencial pela produção de estados paradisíacos futuros.
Nesta condição, o fiel promove ação de forma escolhida, sem imposição e por isso estaria diante do
exercício de seu livre arbítrio enquanto humano em dualidade aos efeitos imperativos das tradições.
As práticas rituais tem um duplo aspecto neste sentido, ao ser fruto da escolha tem seu cumprimento

191
facultativo, porém se transforma em caráter imperativo e teleológico, na medida em que é fator
destinal para as demais dimensões praxiológicas ao karma a ser gerado. (Ibid., p. 38)
Enquanto objeto, os rituais de caráter opcional (kamya-yajna) são centrais para a
argumentação dos brahmanas, com refinamento nos srauta-sutras. O próprio termo yajna é uma
forma genérica de designar a ação fundada no imperativo existencial que compele ao ritual sacrificial.
O termo yaj significa “sacrificar”, “renunciar”, “dar oferendas”(Ibid., loc. cit.).
Está claro que o papel do ritual é de suma importância para a produção de seus anseios
esperados, pois visa buscar até mesmo condições futuras de existência que permita um gozo melhor
do que na vida atual mediante uma condição de renúncia. Em outros termos, o cumprimento ritual
possibilita que o fiel concretize seus deveres e cumprimentos sociais e também busque seu caminho
para através do sacrifício.
Sobre o ritual, Loundo dá uma descrição de algumas características. O fogo sacrificial (agni)
é algo que funcionaria com divindade mediadora. Ele é central no ritual védico, pois faz a transposição
da oferta para seu destinatário. São feitos neste processo altares em tijolo para acender e demanda um
requinte na técnica e conhecimento matemático e geométrico para execução (Ibid., p.38).
Todo o processo ritualístico tem sob seu enfoque de eficácia no sacrificante (yajamana).
Mesmo com rituais complexos, que demandam grandes participações com diversos sacerdotes, os
resultados são colhidos individualmente. Loundo afirma que “a eficácia do ritual reside precisamente
na própria realização do ritual […] o correto desempenho das funções rituais, i.e., a determinação
ativa do sacrificante constitui causa instrumental na produção dos objetos de desejo” (LOUNDO,
2012, p. 43). Assim, não tem similaridade com a ideia de paraíso cristão pois descaracterizaria o fator
produtivo e criador do ritual e consequentemente o caráter múltiplo de desejos que o determinam e a
consequente individuação dos resultados (Ibid., p. 39 et seq.). A negativa do cumprimento dos rituais
seriam uma também negativa na retribuição passível, promovendo possível revés na vida do fiel.
Assim o dharma é antes um dever a ser seguido, uma “obrigação védica de caráter eterno” (FLOOD,
2014, p. 81).
Consideramos que toda esta tratativa deva ser passada para compreender a ideia de samsāra
e mokṣa. Na maioria das tradições hindus a libertação ou salvação (mokṣa) só é possível com o
encerramento do ciclo de reencarnações, ou melhor dizendo as transmigrações das almas (samsāra).
O encerramento das experiências de vida mediante ao alcance da totalidade espiritual, bem como a
realização de si-mesmo enquanto Brahman é o que promoveria o encerramento das vivências com
suas ações e resultados, finalizando assim os ciclos de vida (Ibid., p. 122).
Prothero afirma que entre os hindus há um razoável consenso que diz sobre o problema

192
humano e sua solução. A vivência é de sofrimento e qualquer felicidade buscada nela é transitória e
não permanente. A ideia que permeia não é um escape para uma vida celeste, um paraíso, escapar do
ciclo de vida e morte. (PROTHERO, 2010, p. 121). A mokṣa é adquirida de dentro do próprio
buscador. Contudo há sempre um interventor para essa busca: o guru. Ele é quem transmite o
aprendizado, como técnicas, para que o aprendiz chegue ao conhecimento por si mesmo (Ibid., p.
121). Sendo assim o caminho traçado pelo fiel que deseja se romper do ciclo de existências é um
caminho de renúncia na qual sob orientação ele conquistou sua libertação.

Conclusão
O conhecimento dentro do hinduísmo é repleto de riqueza e diversidade. Nosso esforço neste
trabalho implicou em minimamente pincelar parte da tradição e compreender dentro de alguns
princípios o campo cosmológico do hinduísmo, pautado na tradição védica brahmanica.
No que concerne aos conceitos trabalhados, a compreensão do dharma tanto o cumprimento
ritual quanto o comportamento moral implica em perceber como a condição religiosa traduz muita
das vezes o comportamento social dos fiéis, podendo se confundir até com a própria dinâmica social.
Os vedas têm uma importância considerável na tradição hinduísta, visto ser considerado um grande
compêndio de leituras contendo verdadeira sabedoria e postulando concomitantemente uma história
da própria religião.
Pensar o agir religioso no hinduísmo tem a ver com suas motivações diversas (kama, artha,
dharma e mokṣa), motivações tais que exigem do fiel promover rituais em busca de seus anseios e
assim buscar sua felicidade. A libertação do ciclo de vida é vista como algo de cunho filosófico e de
busca incessante de compreender o seu “eu”. Contudo a construção ritual tem seu valor na medida
em que apresenta às condições de renúncia do interessado e não necessariamente uma busca de troca
de favores entre o fiel e a divindade.

Referências Bibliográficas
BERKENBROCK, Volney J. O mundo religioso. Petrópolis: Ed. Vozes, 2019.
FLOOD, Gavin. Uma introdução ao Hinduísmo. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2014.
LOUNDO, Dilip. O ritual na tradição védica: Abertura, pluralidade e teleologia. In:
GNERRE, Maria Lucia Abautre; POSSEBON, Fabrício (Org.). Cultura oriental – Filosofia, língua e
crenças. João Pessoa: Ed. Universitária UFPB, 2012.
LOUNDO, Dilip. Budismo, Vedismo e Hinduísmo: Raízes, Continuidade e Ruptura.
Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 4, n. 10, p.251 – 291, jul./dez., 2020.
PROTHERO, Stephen R. As grandes religiões do mundo: conheça as oito maiores religiões
do mundo e descubra o que faz a diferença entre elas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

193
NOÇÕES DE NATUREZA NO PṚTHIVĪ (BHŪMI) SŪKTA DA
ATHARVAVEDA SAṂHITĀ

Matheus Landau de Carvalho1

Resumo
A publicação do artigo The Historical Roots of Our Ecologic Crisis, do historiador estadunidense Lynn White
Jr., na Revista Science (1967), constitui um marco histórico e bibliográfico nas pesquisas ocidentais circunscritas à relação
entre Natureza e espiritualidade. Desde então, este campo de pesquisa acadêmica vem ganhando uma significativa atenção
em universidades e centros de pesquisa no mundo todo, englobando as mais diversas tradições religiosas.
A presente comunicação tem como objetivo mais amplo traçar um panorama geral das relações entre a cultura hindu e o
que, no Ocidente, se compreende como Natureza, principalmente nos elementos naturais que prescindem da intervenção
humana para existirem como tais. Para isso, serão abordadas as maneiras pelas quais estes elementos são percebidos por
um dos hinos védicos presentes nos mantras da Atharvaveda Saṃhitā, o Pṛthivī (Bhūmi) Sūkta, a partir de quatro
dimensões da relação da cultura védica com elementos naturais, a saber, a importância de alguns acidentes geográficos
para a religiosidade hindu, a intrínseca ligação de algumas práticas védicas com o mundo vegetal, a presença irrevogável
do reino animal na cultura hindu, e a determinância da natureza para os rituais védicos.
Palavras-chave: Tradições hindus, Natureza, Atharvaveda Saṃhitā, Pṛthivī (Bhūmi) Sūkta.

Uma das concepções hindus pertinentes para a compreensão de sua relação com o que, no
Ocidente, se compreende como Natureza é a crença de que a terra é uma divindade, uma mãe, Pṛthivī
(ou Bhūmi), a Mãe-Terra, testemunha da ação universal (ṛta) e da verdade (satya), aquela que nutre
a vida (palak). Uma das expressões devocionais hindus mais conhecidas neste âmbito são os sessenta
e três versos de um sarga (cântico) da Atharvaveda Saṃhitā, o Pṛthivī Sūkta (ou Bhūmi Sūkta). A
Atharvaveda Saṃhitā é um conjunto de mantras pertencente a uma das quatro tradições ritualísticas
e filosóficas dos Vedas, quais sejam, a Ṛgveda, a Sāmaveda, a Yajurveda e a Atharvaveda. Cada uma
destas quatro tradições está alicerçada em escolas (śākhās) de transmissão discipular de
conhecimentos e ensinamentos refletidos em quatro dimensões textuais, a saber, os Mantras, os
Brāhmaṇas, os Āraṇyakas e as Upaniṣads. O Pṛthivī Sūkta (ou Bhūmi Sūkta) é o primeiro sarga
(cântico) do décimo segundo kāṇḍa (parte, seção) dos mantras da Atharvaveda:
1. A verdade (satva), a Lei elevada e poderosa, o Rito de Consagração (dīkṣā), o Fervor
(tapas), Brahma e o Sacrifício (yajña) sustentam Pṛthivī.
Que ela, a Rainha de tudo o que é e deve ser, que Pṛthivī nos conceda um mundo amplo.
2. Jamais superada pela multidão dos filhos de Manu, ela que tem muitas alturas, inundações
e planícies niveladas;
Ela, que possui plantas dotadas de variados poderes, que Pṛthivī para nós se estenda
amplamente e nos favoreça.
3. Em quem o mar, e Sindhu, e as águas, nas quais nossa comida e terras de milho existiam,
Em quem tudo que respira e se move está ativo, Bhūmi nos atribui a posição e a condição
mais importantes!
4. Ela que é a Senhora das quatro regiões de Pṛthivī, em quem o nosso alimento e as
plantações de milho tiveram sua existência,
Protetora em cada lugar onde se respira, ao conferir movimento às criaturas, Bhūmi, sem
falta, nos concede vacas plenas de leite!
5. Contra quem os homens de outrora antes de nós lutaram, sobre quem os devas atacaram
os asuras hostis,

1
Doutorando (2019-) pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião (PPCIR), pela Universidade Federal de
Juiz de Fora (UFJF).

194
O lar diversificado de pássaros, vacas e cavalos, esta Pṛthivī nos concede sorte e
esplendor!
6. Firmemente estabelecida, abrigo de tudo, fonte de tesouros, com peito dourado, portadora
de tudo que se move.
Que Bhūmi, que carrega Agni Vaiśvānara, consorte do poderoso Indra, nos conceda
grandes posses.
7. Que Bhūmi, sempre protegida por cuidados incessantes dos devas que nunca dormem,
Que ela nos derrame um néctar delicioso, que nos banhe com uma torrente de esplendor.
8. Ela que a princípio era água no oceano, a quem com seus poderes maravilhosos os sábios
seguiram,
Que ela, cujo coração está nas alturas dos céus, cercada da verdade e da eternidade,
Que Bhūmi nos conceda brilho e nos conceda o poder na esfera mais elevada.
9. Sobre quem as águas universais correm ininterruptamente dia e noite,
Que ela, com muitos riachos, derrame leite para nos alimentar, que ela nos banhe com
uma torrente de esplendor.
10. Ela, a quem os Aśvins mediram, sobre quem o pé de Viṣṇu caminhou,
A quem Indra, Senhor do Poder e da Força, libertou, por si mesmo, de todos os inimigos,
Que Bhūmi derrame seu leite para nós, uma mãe para mim, seu filho.
11. Oh Pṛthivī, auspiciosas sejam as tuas florestas, auspiciosas sejam as tuas colinas e
montanhas cobertas de neve.
Vivo, ileso, não subjugado, pus os pés em Bhūmi,
Na terra marrom, preta, avermelhada e de todas as cores, na terra firme que Indra protege
do perigo.
12. Oh Pṛthivī, teu centro e teu umbigo, todas as forças que emanaram de teu corpo
Coloque-nos em meio a essas forças; respire sobre nós.
Eu sou o filho de Bhūmi, Pṛthivī é minha mãe. Parjanya é meu senhor; que ele me
favoreça.
13. Bhūmi, em cuja superfície eles encerram o altar, e todos os oficiantes tecem o fio da
adoração (yajña);
Onde as estacas do sacrifício, resplandecentes, são fixadas e elevadas antes da oblação,
que ela, Pṛthivī, prosperando, nos faça prosperar.
14. O homem que nos odeia, Pṛthivī! Que luta contra nós, que nos ameaça com pensamento
ou arma mortal, faça dele nosso escravo como tu fizeste antes.
15. Provenientes de ti, sobre ti movem as criaturas mortais: tu as carregas,
tanto quadrúpedes quanto bípedes.
Teus, Pṛthivī, são esses Cinco Tipos humanos, para os quais, embora mortal,
Sūrya, ao se erguer, espalha com seus raios a luz que é imortal.
16. Em uníssono, que essas criaturas nos rendam bênçãos.
Favoreça-me com o mel do discurso, oh Pṛthivī.
17. Bondosa, sempre graciosa seja Bhūmi em que pisamos, a Terra firme,
Pṛthivī, sustentada pelo dharma, mãe das plantas e ervas, criadora de tudo.
18. Em uma vasta morada tu te tornaste a Poderosa.
Grande importância, pressão e agitação repousam em ti, mas com incessante cuidado, o
grande Indra te guarda.
Então faça-nos brilhar, oh Bhūmi, a nós com o esplendor do ouro. Que nenhum homem
nos olhe com ódio.
19. Agni está na terra (Bhūmi), nas plantas; as águas seguram Agni nelas, nas pedras está
Agni.
Agni habita profundamente nos homens: Agni habita em vacas e corcéis.
20. Agni dá brilho e calor no céu: a ampla atmosfera é dele,
o amante da gordura para o deva, portador da oblação, os homens o acendem.
21. De joelhos escuros, revestida de um manto de fogo, Pṛthivī me afia e me dá esplendor!
22. Em Bhūmi, eles oferecem sacrifícios e oblações temperadas aos devas.
Os homens, mortais, vivem sobre Bhūmi por meio do alimento, de acordo com seu
costume.
Que Bhūmi nos conceda fôlego e força vital. Pṛthivī, conceda-me vida longa!
23. O aroma que surgiu de ti, oh Pṛthivī, a fragrância que o cultivo de ervas, plantas e águas
carregam,
Compartilhado por apsarases, compartilhado por gandharvas, conceda-me doçura com
isso: que nenhum homem me odeie.
24. Teu perfume que penetrou e possuía o lótus, o perfume que eles prepararam no noivado
de Sūryā,

195
Perfume que é imortal, Pṛthivī! Desde tempos antigos recolhido, com isso conceda-me
doçura: que ninguém me odeie.
25. Teu perfume nas mulheres e nos homens, a sorte e a luz que há nos homens,
Isso está nos heróis, nos corcéis, nos animais silvestres e nos elefantes,
A esplêndida energia das donzelas, agregue-nos com ela, Terra!
Que nenhum homem nos olhe com ódio.
26. Rocha, terra, pedra e poeira, esta Bhūmi se mantém compacta, firmemente ligada.
A esta Pṛthivī, de seios dourados, fiz minha adoração.
27. Aqui, clamamos Pṛthivī, firmemente estabelecida, que tudo apoia,
Sobre a qual as árvores, senhoras da floresta (vāna), permanecem cada vez mais firmes.
28. Sentados à vontade ou levantando-se, ficando de pé ou seguindo nosso caminho.
Com o pé direito ou com o esquerdo não cairemos sobre Bhūmi.
29. Falo com Pṛthivī, que a tudo purifica, com a paciente Bhūmi que se fortalece por meio
de Brahma.
Oh Bhūmi, podemos reclinar sobre ti, que carregas força, amplitude, porções de víveres
e gordura.
30. Purificadas para os nossos corpos correm as águas: levamos angústia para aquele que nos
ataca.
Eu me purifico, oh Pṛthivī, com aquilo que purifica.
31. Bhūmi, sejam tuas as regiões leste e norte, aquelas situadas ao sul e aquelas situadas a
oeste.
Propícias a mim em todos os meus movimentos. Enquanto eu pisar no chão, não me deixe
tropeçar.
32. Não nos tire do oeste ou do leste, não nos tire do norte ou do sul,
Tenha misericórdia de nós, oh Bhūmi; que os ladrões não nos encontrem; mantenha longe
a arma mortal.
33. Contanto que, em ti, eu olhe ao redor, tendo Sūrya como um amigo,
Por muito tempo, a cada ano que se segue, não deixe meu poder de visão falhar.
34. Quando, enquanto eu repouso, oh Bhūmi, eu viro meu lado direito e meu esquerdo,
Quando, esticados em toda a nossa extensão, colocamos nossas costelas sobre ti que nos
encontra. Não nos machuque aí, oh Bhūmi, aquela que fornece uma cama para todos.
35. Deixe que o que eu cavo em ti, oh Bhūmi, surja e cresça rapidamente de novo.
Oh Purificadora, não me deixe perfurar seus órgãos vitais ou seu coração.
36. Bhūmi, que o teu verão e as tuas chuvas e o outono, o teu inverno e as tuas geadas
orvalhadas e a primavera.
Que teus anos, Pṛthivī! e estações ordenadas, o dia e a noite, derramem abundância sobre
nós.
37. A purificadora, ao encolher-se diante da Serpente, ela que detinha os fogos que repousam
nas águas
Que oferece como presa os dasyus, blasfemadores dos devas, Pṛthivī, ao escolher Indra
por seu Senhor, e não Vṛtra, se agarrou ao Forte e Poderoso Śakra.
38. Base para assentos e cabanas, sobre os quais a estaca sacrificial é erguida,
Sobre quem os brāhmaṇas que conhecem o Yajus recitam seus hinos e cantam seus
salmos,
E os ministros se ocupam para que Indra possa beber o néctar do Soma;
39. Sobre quem os antigos ṛṣis, eles que fizeram o mundo, louvaram as vacas,
Sete adoradores, um em cada sessão, com seu fervoroso zelo e sacrifício;
40. Que ela, Bhūmi, nos confira a opulência pela qual ansiamos,
Que Bhaga compartilhe e auxilie nas tarefas, e Indra venha liderar o caminho.
41. Que ela, Bhūmi, sobre a qual os homens cantam e dançam com gritos e ruídos variados,
Onde os homens se encontram na batalha, onde o grito de guerra e o tambor ressoam,
Que ela afaste nossos inimigos, que Pṛthivī me livre de meus inimigos.
42. Em quem se encontra o alimento, cevada e arroz, a quem pertencem esses Cinco Tipos,
Toda a homenagem a ela, esposa de Parjanya, a ela cuja medula é a chuva!
43. Cujos castelos são obra dos devas, e os homens lutam sobre sua planície
O Senhor da Vida cria Pṛthivī, que carrega todas as coisas em seu ventre,
agradável para nós por todos os lados!
44. Que a devī Pṛthivī, que carrega seu tesouro armazenado em muitos lugares,
ouro, pedras preciosas e riquezas,
Doadora de opulência, nos conceda grandes posses, conferindo-as com amor e graça.
45. Que Pṛthivī, comportando povos de línguas variadas, com diversos ritos conforme
convém às suas moradas,

196
Despeje, como uma vaca constante e irrepreensível, mil riachos de tesouro para me
enriquecer!
46. Que tua serpente, que teu escorpião pungente, deitado escondido, desnorteado, gelado
com o frio do inverno,
Que o verme, oh Pṛthivī, e cada coisa que nas chuvas revive e se agita,
Rastejando, não se aproxime de nós! Abençoe-nos com todas as coisas graciosas.
47. Seus muitos caminhos pelos quais as pessoas viajam, a estrada para o veículo e as estradas
para viajar,
Neles encontramos o bom e o mau, aquele caminho que podemos alcançar sem um
inimigo ou ladrão. Com todas as coisas graciosas, abençoe-nos.
48. Suporte tanto dos tolos quanto dos pesados, ela carrega a morte do bom e do mau.
Em amistosa harmonia com o javali, Pṛthivī se abre para os porcos selvagens que
vagueiam pela floresta.
49. Que todos os teus animais silvestres que amam as florestas, devoradores de homens,
assombradores da floresta, os leões, os tigres,
A hiena, o lobo, o Infortúnio, o espírito maligno, se afastem de nós, leve os demônios
para longe.
50. Gandharvas e apsarases, kimīdins e espíritos malignos, todos os piśācas e rākṣasas,
Mantenha-os, Bhūmi! longe de nós.
51. Sobre quem os bípedes alados voam juntos, pássaros de todos os tipos, os cisnes, as
águias;
Sobre quem o Vento sopra impetuoso, Mātariśvan, levantando a poeira e fazendo as
árvores tremerem, e as chamas perseguirem a explosão aqui e ali;
52. Bhūmi, sobre a qual estão assentados, unidos, a noite e o dia, o escuro e o avermelhado,
Pṛthivī cercada pela chuva ao seu redor,
Felizmente, ela pode nos estabelecer em cada lugar encantador de habitação.
53. O Céu, Pṛthivī, e os domínios da Atmosfera me concederam este amplo espaço,
Agni, o Sol, as Águas, todos os devas se juntaram para me conferir poder mental.
54. Eu sou vitorioso, sou chamado de senhor superior de Bhūmi,
Triunfante, dominando o conquistador por todos os lados.
55. Lá, quando os devas, oh Devī, te nomearam, espalhando tua vasta extensão quando tu
estavas se expandindo para o leste,
Aí, então, em ti passaram muitos encantos e glórias: tu fizeste para ti as quatro regiões do
mundo.
56. Em aldeias e bosques, e em todos os conjuntos de Bhūmi,
Nas reuniões, nos encontros das pessoas, falaremos coisas gloriosas de ti.
57. Enquanto o cavalo espalha o pó, ela espalhou as pessoas que habitavam sobre Pṛthivī, ao
nascer,
Líder e chefe de todo o mundo, encantadora, a protetora das árvores e defensora das
plantas.
58. O que quer que eu diga, falo com a doçura do mel, tudo o que vejo porque eles me amam.
Deslumbrante e impetuosa sou: outros que se agitam ferozmente eu mato.
59. Suave, graciosa, docemente cheirosa, leitosa, com néctar em seu seio,
Que Bhūmi, que Pṛthivī conceda sua benção, com leite, a mim.
60. A quem Viśvakarman, com sua oblação, seguiu, quando ela foi colocada no oceano
ondulante no meio do ar
Um vaso útil, escondido, quando, por distração, ela se manifestou para aqueles que tinham
mães.
61. Tu és o vaso que contém as pessoas, Aditi, provedora de desejos, amplamente difusa.
Prajāpati, o Filho primogênito de ṛta, fornece a ti tudo o que te falta.
62. Que teus seios, protegidos da doença e do Consumo, sejam Pṛthivī,
produzidos para nosso proveito.
Através de uma vida longa, despertos e vigilantes, possamos ser teus servos tributários.
63. Oh Bhūmi, minha Mãe, deixe-me, contente, em um lugar seguro.
De acordo com o Céu, oh Sábio, coloque-me na glória e na riqueza.1

A leitura do Pṛthivī Sūkta (ou Bhūmi Sūkta) desperta a atenção para quatro dimensões da
relação da cultura védica com elementos naturais, a saber, a importância de alguns acidentes

1
Cf. saṃhitā em devanāgarī presente em: LINDENAU, 1924, pp. २६७-२७२.

197
geográficos para a religiosidade hindu, a intrínseca ligação de algumas práticas védicas com o mundo
vegetal, a presença irrevogável do reino animal na cultura hindu, e a determinância da natureza para
os rituais védicos.
A maneira pela qual Bhūmi é literalmente percebida e descrita aponta não apenas para a
riqueza do horizonte que se desvela diante da atenção e do embevecimento dos praticantes hindus,
filhos de Manu, um mundo com diferentes níveis de altura e de planícies, sobre cuja superfície correm
incansavelmente diversos tipos de águas e movem-se caudalosas inundações, cujo “corpo” é
compactamente constituído por pedras, rochas e auspiciosas “colinas e montanhas cobertas de neve”
do reino mineral. Não somente um espetáculo para o deleite humano, Pṛthivī também participa da
construção dos horizontes do ser humano que dela recebe alimentos através da generosidade das terras
preta, vermelha e marrom, onde foram plantados os víveres para subsistência, assim como seus cursos
d’água que espraiam torrentes de esplendor, cujos poderes são fielmente seguidos por sábios hindus.
Na visão de Dwivedi, este sūkta sustenta que “atributos da terra (tais como sua firmeza, pureza e
fertilidade) são para todo mundo e que nenhum grupo ou nação tem autoridade especial sobre ela.”2
De modo semelhante, esse “dom materno” de Bhūmi acolhe todo o mundo vegetal possível
em seu regaço, liderança tão firme quanto encantadora das árvores, senhoras das florestas (vānas),
também percebida como mãe de plantas e de ervas imbuídas de vários poderes terapêuticos, assim
como de plantações de cevada, arroz e milho que espantam a fome dos homens. Pṛthivī, como
soberana materna, conforta não apenas o corpo, mas também a mente daqueles que lhe retribuem sua
generosidade, uma auspiciosidade presente, sobretudo, no aroma e na fragrância que exala
terapeuticamente de suas florestas. A exortação por trás deste universo vegetal hindu aponta para o
legado natural sempre preservável para futuras gerações, no intuito de que “mesmo quando as pessoas
cavam a terra para fins agrícolas ou para extrair minerais, que seja para que seus órgãos vitais não
sejam feridos e que nenhum dano sério seja causado ao seu corpo e aparência”3
O reino animal também é abraçado pela concepção hindu de Pṛthivī, morada superlativa que
abençoa o praticante hindu por seus pássaros, cavalos, javalis, corcéis, animais silvestres, porcos
selvagens e elefantes, além, é claro, das vacas, tão sagradas para a religiosidade védica. As bênçãos
conferidas por Bhūmi refletem, na perspectiva hindu, o refúgio necessário a quaisquer manifestações
hostis, como leões e tigres, animais devoradores de homens, assim como aqueles que, supostamente,
trazem mau agouro, como hienas, escorpiões, lobos, serpentes e vermes, sendo, além disso, a mansão
da bem-aventurança conferida por cisnes e águias. Esta larga concepção de fauna segundo a
mentalidade hindu aponta para a noção de que

2
“attributes of earth (such as its firmness, purity, and fertility) are for everyone and that no one group or nation has special
authority over it.” (DWIVEDI, 2006, p. 166).
3
“even when people dig the earth either for agricultural purposes or for extracting minerals, let it be so that her vitals are
not hurt and that no serious damage is done to her body and appearance” (DWIVEDI, 2006, p. 166).

198
Cada entidade e organismo é parte de um grande sistema de família extensa presidido pela
eterna Mãe Terra. É ela quem nos sustenta com seus abundantes dotes e riquezas, é ela que
nos nutre, é ela que nos dá um ambiente sustentável e é ela que, ao se enfurecer com os crimes
de seus filhos, os pune com desastres.4

O universo ritual hindu também é contemplado pelo espectro semântico de Mãe-Terra


inerente ao Pṛthivī (Bhūmi) Sūkta, pois sem ela seria impossível a construção do altar e a colocação
das estacas do sacrifício para os ritos de oblação, para a tessitura dos fios de adoração em prol da
prosperidade dos praticantes hindus. Bhūmi é a generosa plataforma sobre a qual sacrifícios e
oblações temperadas são oferecidas aos devas, hinos sacros são recitados por brāhmaṇas, e louvores
fervorosos às vacas sempre foram expressos por ṛṣis há milênios. Pṛthivī, por sua vez, é sustentada
pela verdade (satva), pela Lei elevada e potente, pelo Rito de Consagração (dīkṣā), pelo Fervor
(tapas), por Brahma e pelo Sacrifício védico (yajña), além, é claro, pelo dharma hindu.

Referências Bibliográficas
APTE, Vaman Shrivam. The Student’s Sanskrit-English Dictionary. 2. ed. Delhi: Motilal
Barnasidass Publishers, 1970.
DWIVEDI, O. P. Hindu religion and environmental well-being. In: GOTTLIEB, Roger S. The
Oxford Handbook of Religion and Ecology. New York: Oxford University Press, 2006, cap. 6, pp.
160-183.
LINDENAU, Max. Atharva Veda Sanhita. 2. ed. Berlin: Ferd. Dummlers
Verlagsbuchhandlung, 1924.
MONIER-WILLIAMS, Monier. A Sanskrit-English Dictionary. 2. ed. Oxford: Oxford
University Press, 1899.
WILSON, Horace Hayman. A Dictionary, Sanskrit and English. Calcutta, Hindoostanee
Press, 1819.

4
“Every entity and organism is a part of one large extended family system presided over by the eternal Mother earth. It
is she who supports us from her abundant endowments and riches, it is she who nourishes us, it is she who provides us
with a sustainable environment, and it is she who whem angered by the misdeeds of her children punishes them with
disasters.” (DWIVEDI, 2006, p. 163).

199
LIBERAÇÃO ATRAVÉS DA ESCUTA:
UM ESTUDO DE CASO SOBRE A VIDA E OS CANTOS DO MAHĀSIDDHA
INDIANO VĪṆĀPA

Felipe Andrade Arruda

Resumo
O presente estudo pretende abordar a hagiografia (Tib. rnam thar) do mahāsiddha budista indiano Vīṇāpa (séc.
IX, o “tocador de vīṇā”), com o intuito de observar as relações entre as transmissões de ensinamento através dos cantos
poéticos dohā – típica dos mahāsiddhas indianos e tida como um meio de “liberação através da escuta” (Tib. thos grol)
– e o contexto específico de Vīṇāpa de aplicação dos ensinamentos à sua prática musical. A partir de uma exegese sobre
as Histórias dos Oitenta e Quatro Mahāsiddhas (Tib. grub thob brgyad bcu tsa bzhi’i lo rgyus), este o principal texto
relatando as vidas e os cantos dos adeptos que viriam a se tornar mestres proeminentes do Budismo Vajrayāna no sub-
continente indiano, tal abordagem tem como objetivo investigar como as técnicas meditativas particulares da tradição
tratam a questão da escuta como meio específico de liberação espiritual e, consequentemente, quais seriam as implicações,
no caso de Vīṇāpa, das mesmas sobre o seu fazer musical, contribuindo, portanto, para um aprofundamento dos estudos
acerca das tradições religiosas asiáticas e das singularidades de suas perspectivas sobre arte.
Palavras-chave: Budismo, dohā, mahāsiddha, música, Vajrayāna.

Nas Histórias dos Oitenta e Quatro Mahāsiddhas (ABHAYADATTA, 1979), vemos


relatadas as vidas e os feitos de “grandes adeptos” (Skt. mahāsiddha, Tib. ‘grub chen) do Budismo
Vajrayāna, os quais viveram no sub-continente indiano em um período que se extende
aproximadamente do século VIII ao XII, sendo relatadas pelo erudito indiano Abhayadatta Śrī ao
monge tibetano Möndrub Sherab (Tib. smon grub shes rab), supostamente logo após o falecimento
daquele que seria o último dentre estes oitenta e quatro (DOWMAN, 1985, p. xi-xii) e sendo o texto,
posteriormente, traduzido e preservado apenas no idioma tibetano.
O conceito de hagiografia, no presente contexto, parte do termo tibetano rnam thar,
significando literalmente “completa liberação”, e se refere a narrativas específicas de como
determinados indivíduos partiram de seus contextos de origem em jornadas espirituais que viriam a
trazê-los a uma total liberação espiritual ou, em termos tradicionais budistas, à “iluminação” (Skt.
bodhi, Tib. byang chub). A atribuição específica ao número oitenta e quatro, sabendo-se, de fato, que
durante tal período haviam diversos outros1, se deve possivelmente a certo simbolismo numérico, em
referência à exposição atribuída ao Buda histórico sobre a existência de oitenta e quatro mil formas
de “obscurecimentos mentais” (Skt. kleśa, Tib. dug), para os quais ele próprio oferecera oitenta e
quatro mil ensinamentos.
O termo budista Vajrayāna (Tib. rdo rje theg pa, literalmente “veículo adamantino”) se refere
à classe de ensinamentos que se destaca por sua literatura tântrica, assim como pelas práticas
específicas da mesma, as quais, internamente, possuem diversas subdivisões. Esta foi a abordagem

1
Como podemos ver, por exemplo, na coletânea de cantos de instruções da tradição Dzogchen (Tib. rdzogs chen) em
KUNZANG, 2006.

200
enfatizada pelos oitenta e quatro adeptos e, dentre eles, vemos alguns que acabaram por se tornar
pivotais no processo de introdução e estabelecimento do Budismo no platô tibetano, local no qual tais
práticas vieram a prosperar ao longo dos séculos subsequentes, até o infeliz advento da Revolução
Cultural de 1959.
O conceito de “escuta” (Tib. thos pa), em tibetano possui uma vasta abrangência de
significados, desde sua atribuição ao sentido da audição, propriamente dita, passando pelo ato de
escutar atentamente, até as designações de estudar e aprender. Dentre o amplo espectro de técnicas
meditativas pertencentes ao Vajrayāna, podemos encontrar, em termos gerais, três grandes âmbitos
de abordagem da escuta como prática espiritual. Em uma primeira instância, a escuta é entendida a
partir de certo cultivo meditativo envolvendo visualizações de divindades, às quais fórmulas textuais
intituladas mantra (Tib. sngags) são associadas e portanto utilizadas como recitação, e a partir das
quais desenvolve-se certo senso perceptivo da realidade sonora ao redor como sendo em essência
uma manifestação do mantra entoado. Segundo, no contexto do espectro de técnicas físicas e
respiratórias, associadas posteriormente a tais visualizações, os “ventos sutis” (Skt. prāṇa, Tib. rlung)
que permeiam o corpo humano são tidos como a fonte de toda forma de expressão, sendo relacionados
a sílabas particulares a diversos pontos do organismo. Por último, a escuta é tida como uma forma de
reconhecimento do estado absoluto da consciência, de sua “essência” (Tib. ngo bo), a qual, em termos
de como a mesma se faz percebida pela escuta propriamente dita, é a inseparabilidade entre som e
“vacuidade” ((Skt. śūnyatā, Tib. stong pa nyid). Em outras palavras, trata-se do cultivar da
consciência auditiva como um estado de reconhecimento de toda manifestação sonora como não
dissociada do silêncio que a precede e portanto a contém.
As vidas dos oitento e quatro mahāsiddhas são marcadas por certo caráter subversivo, seja
relativo ao contexto religioso budista, predominantemente monástico, ou às normas sociais vigentes.
Recorrentemente, vemos situações nas quais o tornar-se um adepto é sinônimo de abandono de seu
contexto social, mundano ou religioso. Ao mesmo tempo – e criando uma possível ambivalência com
tal aspecto –, é possível constatar certa tendência à integração dos ensinamentos e práticas dos tantras
à situação em que o adepto se encontra (e aqui vemos um contraste entre os mahāsiddhas e a vida
monástica budista), sendo a abordagem dos primeiros a de transformação da percepção da realidade
fundamentada em interface com as circunstâncias nas quais o adepto se vê, despindo-se da
necessidade de abondoná-las em busca de condições supostamente mais apropriadas. Nesse sentido,
os mahāsiddhas buscam romper com formas pré-estabelecidas de cultivo da realidade, ao mesmo
tempo transformando o olhar e a conduta frente às mesmas. A renúncia destes, portanto, se faz mais
como uma quebra de paradigmas de como se percebe a realidade – e consequentemente de como se
lida com a mesma – do que de um estabelecimento de um novo estilo de vida religioso, havendo,
eventualmente, um despir-se de normas pré-concebidas coletivamente.

201
Ainda que ao lermos as oitenta e quatro histórias desses grandes adeptos nos deparemos com
uma ampla variedade de contextos e circunstâncias – vemos a vida de um rei, de um ladrão, de uma
dona de casa, de uma princesa, de um músico e de um sapateiro, para citar alguns – um elemento
fundamental que constitui certa unidade como modalidade de caminho espiritual se dá através da
forma com que os ensinamentos são transmitidos. No Budismo monástico, então vigente na Índia,
vemos, de maneira geral, a necessidade de se formatar as transmissões em busca de certa
funcionalidade contextual (sem a qual uma ordem monástica dificilmente se manteria como tal), a
qual, principalmente no contexto filosófico do Mahāyāna, é moldada ao redor de estudos detalhados
de textos e comentários expositivos, em conjunção com as técnicas meditativas associadas aos
mesmos. Já no âmbito dos mahāsiddhas, vemos uma tendência à sintetização dos conteúdos literários,
tântricos nesse caso, em versos poéticos concisos e repletos de simbolismo, entoados como cantos
denominados dohā (Tib. mgur), através dos quais um mestre, após conceder as transmissões rituais
necessárias a seu discípulo, condensa instruções meditativas especialmente adequadas ao neófito em
questão – e, nesse sentido, ressalta-se o fato de que tais transmissões, novamente em contraste à vida
monástica, se faziam invariavelmente de forma individual. É de se notar, todavia, que o próprio
Budismo Vajrayāna ao criar suas raízes no solo tibetano, acabou por se institucionalizar,
predominantemente, sendo integrada portanto à vida monástica, advento esse que, segundo Chögyam
Trungpa, fez com que os modos de transmissões originais dos mahāsiddhas fossem de certa forma
diluídos. O autor comenta:
Hoje em dia, as linhagens desenvolveram formas mais brandas de lidar com os alunos. Elas
criaram suas próprias igrejas, seus próprios mosteiros, seus próprios seguidores, e assim por
diante, o qual eu penso ser uma pena. Se esta prática anterior tivesse continuado, teria sido
ideal (TRUNGPA, 2017, p. 8-9).

Os cantos dohā são comumente traduzidos como “cantos de realização”, ou “cantos


espontâneos”. Tais atribuições se devem a uma segunda constante de utilização dos mesmos. Uma
vez que um determinado adepto, após anos intensivos de prática meditativa acerca dos ensinamentos
recebidos por seu mestre, chega a um estado de “realização" (Skt. siddhi, Tib. grub) dos mesmos,
esse estado é expressado igualmente através de um canto, no qual os versos delinearão como o
caminho tomado por esse adepto atingira fruição espiritual.
O príncipe indiano que viera a se tornar o adepto conhecido pelo nome de Vīṇāpa, fora
inicialmente um músico. Desinteressado pelos afazeres de sua monarquia e, em última instância,
afastando-se de qualquer empreendimento relativo à sucessão de seu pai no trono, Vīṇāpa se dedicava
dia e noite ao estudo e á prática musical através de seu instrumento de predileção, a vīṇā2.
Preocupados com a situação do filho, seus pais decidiram por convidar um sábio asceta da região

2
A vīṇā é um antigo instrumento de cordas dedilhadas, ao qual a deusa indiana Sarasvatī, patrona da música e da poesia,
é associada.

202
com o intuito de tentar convencê-lo da importância de suas responsabilidades. Vīṇāpa recebera então
a visita de um mahāsiddha de nome Buddhapa3, o qual, ao perceber que o príncipe estaria maduro o
suficiente para seguir um caminho espiritual, lhe ofereceu a oportunidade de receber seus
ensinamentos, obtendo como resposta de Vīṇāpa que uma prática espiritual só lhe caberia se a mesma
não obstruísse sua dedicação à música. O que se sucede na ocasião ressoa com a perspectiva de
instrumentalização das transmissões, típica dos mahāsiddhas indianos, na qual o mestre utiliza
elementos particulares das circunstâncias de seu interlocutor para transmitir instruções que lhe sejam
ao mesmo tempo familiares e libertadoras. Buddhapa instrui:
Abandone a distinção entre o som da vīṇā
E o ato de escutá-lo.
Faça com que o experienciar do som
E a consciência que o percebe
Se tornem apenas um
(ABHAYADATTA, 1979, p. 324).

A história relata que Vīṇāpa, então, se dedica a prática de seu instrumento musical a partir de
tais instruções por nove anos até, por fim, atingir realização plena destes e entoar o seu próprio canto
espontâneo:
Aos sons do olhar habitual
Com devoção, eu me dediquei.
Mas quando o som primordial realizei
Eu, Vīṇāpa, fui além de mim
(SHES RAB, 2002, p. 128).

No dohā de instrução de Buddhapa, vemos o mestre instruir a seu discípulo sobre o fato de
que, para se realmente escutar, ou seja, para se experienciar a escuta livre de imputações mentais, é
necessário dissolver qualquer forma de apego à mesma. Em outras palavras, a escuta real, de acordo
com o adepto, advêm do libertar-se do apego à escuta e, em um sentido mais profundo, revela que
aquilo que inicialmente é estabelecido como suporte à prática espiritual, deve ser eventualmente
superado. E os versos de Vīṇāpa refletem o resultado dessa instrução. O termo tibetano phyin ci log,
aqui traduzido por “olhar habitual”, é comumente entendido pela tradição como “visões errôneas” ou,
mais especificamente, como hábitos arraigados de se perceber a realidade aparente, de distorcê-la em
função de uma dualidade pré-concebida entre sujeito e objeto, entre aquele que percebe a realidade e
aquilo que por este é percebido. Quando o príncipe, portanto, se refere ao termo em relação à
manifestação sonora – “aos sons do olhar habitual” – , o mesmo revela sua condição inicial de uma
escuta distorcida por sua imaturidade espiritual. O conceito de som primordial por ele expresso se
refere à inseparabilidade entre som e vacuidade, mencionada anteriormente, o qual, uma vez
experienciado diretamente pelo discípulo, se torna uma experiência não-dual, inalterada e portanto

3
Ao qual não existem referências históricas precisas, estando, inclusive, ausente na lista dos oitenta e quatro adeptos.

203
livre de suas próprias interpretações, resultando assim na superação de uma visão errônea constituída
pela constante auto-referenciação.
Utilizando sua tão prezada música como foco de dedicação espiritual, Vīṇāpa aprofundara sua
escuta e, aprofundando-a, acabara por se libertar do apego a ela. Ainda, como de costume nas histórias
dos grandes adeptos, tendo se libertado ele próprio, seu canto espontâneo se tornara um instrumento
de liberação através da escuta àqueles que tiveram a oportunidade de ouvi-lo. Há aqui, portanto, um
ponto nodal de distinção entre escuta e música. Ainda que possamos, a partir da ótica tradicional do
caminho budista, perceber a música ou o canto como “meios hábeis” (Skt. upāya, Tib. thabs) de
liberação através da escuta, é digno de nota que tal potencial só se faz verdade, como no caso aqui
estudado, através de uma realização espiritual que a precede, na qual reside, por assim dizer, o atributo
da escuta desperta. Todavia, como reiteração da natureza nodal que dispõe a música como meio hábil,
a recorrência do canto como forma de instrução e de expressão de realização espiritual, nas Histórias
dos Oitenta e Quatro Mahāsiddhas e, somado a esta, o fato de que em vinte e uma dessas histórias
vemos a escuta, o som ou a música como elemento central das técnicas meditativas por eles utilizadas,
podemos destacar certa singularidade da escuta como meio de transmissão.
Enquanto os dohās entoados como instrução oral de mestre a discípulo se revelam como
formas de introdução à escuta desperta ou, em outras palavras, como um “despertar da escuta para a
natureza da realidade” – entendendo por natureza da realidade o termo tradicional dharmatā (Tib.
chos dbying), referente à expansão indizível da essência do ser e da existência –, os dohās de
expressão final de realização espiritual se mostram como um transbordar da iluminação do adepto,
como uma forma de “bênção” (Tib. byin rlabs) que liberta os ouvintes ou, mais especificamente, que
os alinha com a possibilidade de um caminho de superação do sofrimento inerente à existência
condicionada. Desta forma, a escuta se mostra como mediadora da natureza além de conceitos ao
âmbito arraigado da percepção dualista, convidando-a, justamente, a escutar a realidade despida de
fabricações mentais.

Referências Bibliográficas
ABHAYADATTA. grub thob brgyad bcu tsa bzhi’i lo rgyus. In: Buddha’s Lions: The Lives
of the Eighty-Four Siddhas. Berkeley: Dharma Publishing, 1979.
DOWMAN, Keith. Masters of Mahāmudrā: Songs and Histories of the Eighty-Four Buddhist
Siddhas. Albany: State University of New York Press, 1985.
KUNZANG, Eric Pema. Wellsprings of the Great Perfection: The Lives and Insights of the
Early Masters. Boudhanath: Rangjung Yeshe, 2006.
SHES RAB, smon grub. grub thob brgyad bcu rtogs pa’i snying po rdo rje’i glu. In: sgrub
thabs kun btus. TBRC W23681. Kangara: Dzongsar Institute for Advanced Studies, 2002.
Disponível em: < http://tbrc.org/link?RID=O1GS39248|O1GS392481GS40126$W23681>. Acesso
em: 20 mar. 2020.
TRUNGPA, Chögyam. Milarepa: Lessons from the Life and Songs of Tibet’s Great Yogi.
Boston: Shambhala, 2017.

204
TAOÍSMO E SUAS APROXIMAÇÕES ÉTICAS

Rogério Fernandes Calheiros1


Resumo
O objetivo deste trabalho é apresentar uma análise sucinta entre duas linhas do taoísmo e suas aproximações com
a ética e a bioética. Lao-Tsé, autor da obra Tao Te King, escrito entre 350 e 250 a.C. inaugura um pensamento baseado
na liberdade do indivíduo e na sua harmonia com a natureza. De tal pensamento deriva dois campos distintos e opostos
de atuação na sociedade chinesa: o taoísmo filosófico e o taoísmo religioso. o primeiro baseia-se no princípio da não-
ação, ou não interferência no curso natural das coisas, o segundo acredita na imortalidade física do ser. Esta análise toma
como base os textos do Tao Te King e comentadores como Mircea Eliade e Thomas Merton. Verificou-se nesta análise
uma concentração na importância da prática de virtudes que por um lado levam a um estado de autocontrole e não
violência e por outro a um desejo de longevidade. A partir de tais resultados pode-se encontrar possíveis caminhos de
compreensão e entendimento nas áreas de ética e bioética entre o ocidente e o oriente, contribuindo assim; para as
discussões no âmbito teológico na perspectiva de um diálogo inter-religioso a que se propõe o GT 4 - Tradições e religiões
asiáticas.
Palavras-chave: Lao-Tsé. Taoísmo. Religião. Ética. Bioética.

Introdução
Segundo a edição francesa de 1989 de Marc Haven e Daniel Mazir do Tao Te King pouco se
sabe da vida de Lao Tsé, o escritor do tratado ou Via do Princípio Supremo ou como é conhecido
entre nós na sua denominação mais reduzida o Tao.
Seu escrito Tao te King teria sido composto num episódio em que o mestre, disposto a transpor
a Grande Muralha e a retirar-se do império Chinês, foi interpelado por um de seus guardiões e lhe
deixou o resumo sua doutrina, que é o Tao Te King como conhecemos.
Este escrito não é um tratado nos padrões ocidentais, portanto sua perspectiva não é filosófica,
portanto, sua leitura não compreende especulações metafísicas e nem seu caminho de Verdade pode
ser interpretado como tal. É, antes de mais nada uma reflexão que se orienta pelo caminho da ascese
que busca traçar no espírito humano uma vida de virtudes, ou comportamentos a serem adquiridos a
fim de se atingir um modo de vida mais equilibrado e harmonioso, ou seja, uma ética a serviço da
estética ou da forma.
A presente comunicação é então, a partir deste pressuposto, uma tentativa de olhar o taoísmo
e seu texto fundante nas suas perspectivas éticas, fazendo aproximações na medida do possível com
a cultura ocidental. Isto é com autores que possam minimamente trazer a ponte entre o mundo oriental
e o ocidental e assim trazer mais luz sobre este assunto que envolve doutrina religiosa, ética oriental
e pensamento ocidental.

O taoísmo filosófico e o taoísmo religioso


Segundo Eliade (2011) a tradição chinesa distingue o taoísmo filosófico chamado de Tao Kia
ou escola taoísta do taoísmo religioso ou Tao Kiao ou religião taoísta. Para ele o taoísmo de Lao-Tsé

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação de Ciências da Religião da PUC-Campinas. E-mail: calheirosb@gmail.com

205
é uma filosofia pura que caminha em sentido oposto a busca da imortalidade física, que é o núcleo
central da religião taoísta.
O livro das cinco mil palavras, o Tao te King, segue em sua paradoxal lógica interna um
pensamento que busca a explicação do método wu-wei, o não agir, entendendo que o seu praticante
é aquele que, permanecendo inativo jamais intervém no curso das coisas, indicando que o verdadeiro
taoísta é aquele cuja a existência é ignorada do mundo e que os meios mais eficazes para adquirir
poder é praticar o wu-wei e a não violência. (ELIADE, 2011. p. 32)
Lao-Tsé condena os valores sociais por serem estes uma ilusão, uma máscara que esconde
verdadeiras, destrutivas do comportamento humano, bem como a ciência especulativa, que
igualmente destrutiva promove e estimula a confusão. O Tao é a realidade última, fonte e origem de
toda a criação. Na sua função cosmogônica se assinala se caráter inefável, de tal modo que não é
possível demonstrar sua existência, e sua presença/experiência é compartilhada pelos místicos.
Lao-Tsé aborda a questão de uma realidade que não se deixa apreender nem nomear, mas que
algumas metáforas podem revelar aproximações de sua estrutura, são elas a do tao como mãe do
mundo, divindade do vale, fêmea obscura que não morre. A esse respeito diz Eliade:
A imagem do vale sugere a ideia de vazio e, ao mesmo tempo, de receptáculo das águas, de
fecundidade, pois. O vazio está associado, por um lado, à noção de fertilidade e maternidade
e, por outro, à ausência das qualidades sensíveis (modalidade específica do Tao). (ELIADE,
2011. p. 34)

O ideograma Tao, segundo explanação de Marc Haven e Daniel Mazir (1995), sendo
composto pelo radical que na sua etimologia significa princípio foi usado desde a antiguidade para
designar uma doutrina ou ensino moral e social usado comumente por todos os filósofos chineses,
sendo que Lao-Tsé dá a este princípio uma acepção de princípio absoluto, ou absoluto inacessível ou
ser/não ser de tudo o que há.
O estudioso Iñaki Preciado Idoeta (2013) em entrevista ao canal UNED documentos afirma
que para compreender o taoísmo filosófico é preciso ter-se em conta que na escola taoísta a liberdade
individual predomina sobre a responsabilidade social e que este aspecto de liberdade e harmonia com
a natureza, é uma não intervenção no curso natural das coisas, não fazendo nada que não seja
espontâneo e natural, não esforçando-se de maneira alguma, isentando-se de toda atividade política
intencional ou forçada.
Em outra direção vai a doutrina do taoísmo religioso; Alberto Poza Poyatos (2017) ao
investigar a fonte de institucionalização do taoísmo religioso, percebeu que o caos e a decadência
gerados a partir do contexto histórico da dinastia Han (206 a.C. a 220 a.C.) promoveu o aparecimento
de movimentos milenaristas que, exigindo um propósito de rearmonização do estado, projetaram um
sistema hierárquico que lançaram as bases do taoísmo como religião estabelecendo seu cânon textual.

206
Segundo Eliade (2011) o objetivo último dos iniciados era alcançar a imortalidade física. Os
ideogramas sugerem que numa primeira categoria o iniciado passa por uma transformação apoteótica
quando se torna um mestre e em uma segunda categoria o iniciado, vivendo durante séculos num
estado paradisíaco de vida, volta de vez em quando a condição terrestre para transmitir as fórmulas
de imortalidade e a numa terceira categoria, o iniciado, passando por uma morte aparente, se libertava
de seu cadáver e atingia os paraísos terrestres.

O Conceito de ética no taoísmo


Segundo Ana Lúcia Meyer Cordeiro (2009) o taoísmo baseado no Livro do Tao e do Te foi
compreendido por Lao-Tsé e Chuang Tsu (séc. III a.C.) dentre outras coisas com o objetivo de alinhar
a vida cotidiana através do conceito do wu wei.
Além desta concepção o taoísmo aborda aspectos relativos à ecologia quando busca uma
sintonia com a natureza, em oposição ao espírito de dominação e controle sobre a mesma. A natureza
não é algo a ser conquistado ou controlado, mas aceito como parte integrante de seu ser.
Outro aspecto a se destacar é a relatividade dos valores, expressado no conceito identitário
dos opostos que simbolizados pelos ideogramas ying e yang representam as oposições básicas da vida
e do universo, que embora em tensão não são francamente opostas, mas complementares umas às
outras, integradas e interdependentes numa realidade maior que é o Tao.
A essa união suprema Lao-Tsé chama Via do Céu, na qual está o oceano espiritual da Virtude
do Tao, contudo esta via que não é uma via é
um caminho que não é caminho, um retorno as raízes, um profundo respeito pela realidade
em seu estado primitivo e inescrutável como um bloco não esculpido. O seu caminho era de
não-ação, que é falsamente interpretada como puro quietismo quando, na realidade, é uma
política de não interferência e uma abstenção de ação artificial e inútil. (MERTON, 2006. p.
60)

Os comentaristas do Tao Te King (1995) afirmam que nossa concepção de virtude entra em
choque com a palavra de Lao-Tsé, que rejeita as lições seculares de todos os moralistas, mesmo que
elas tenham por finalidade um ideal elevado.
Para eles Lao-Tsé, conceituando a virtude como algo uno e indivisível, não pode conceber e
admitir virtudes compartimentadas e independentes umas das outras já que tal noção é um
distanciamento do princípio do Tao e uma queda para o domínio da multiplicidade, onde não há
condições de subsistência do ser como tal.
Portanto só a há Virtude do Tao, onde
governo, política e até mesmo sistemas éticos, por melhores que fossem em si mesmos, eram
uma perversão da simplicidade natural do homem. Tornavam o homem competitivo,
egocêntrico, agressivo e, por fim, levavam-no à obsessão com ideias irreais de si mesmo.
Desses delírios nasciam ódios, cismas, facções, guerras e a destruição da sociedade.
(MERTON, 2006. p.54)

207
Thomas Merton ao escrever a sua via de Chung Tsu (1969) observa que havia uma distinção
entre o Tao incognoscível, o Tao eterno, e o Tao identificável, mãe de todas as coisas, na qual a
filosofia conhecida como Ju se apoiava. Esta determinava segundo princípios confucianos, como
sendo este último o Tao terrestre e, portanto, o Tao ético ou o Tao do homem, manifestação em ato
do princípio do amor e da justiça.
Mas Chuang Tsu considerava este conceito ilusório pois nega que a felicidade possa ser
encontrada pelo hedonismo ou pelo utilitarismo tal como proposto pela escola de virtudes
confucionistas. (MERTON, 1969. p. 30)
A diretriz da virtude do Tao seria então a prática do bem de forma simples e segundo as reais
condições que existem em nós para praticá-lo, vivenciando-o num estado de humildade, e frugalidade
sem se importar em uma prática de esforço.
A este estado tanto Chuang-Tsu como os demais taoístas chamam de wu wei ou o não fazer,
ou inação que é descrita por Merton como aquilo que
Não almeja resultados, e não se preocupa com planos conscientes estabelecidos, nem com
tentativas deliberadamente organizadas: “A minha maior felicidade consiste precisamente
em não fazer nada que seja calculado a fim de obter felicidade... A perfeita alegria é não estar
alegre... se você me perguntar o que deve ser feito, na terra, para produzir felicidade, eu
responderia que estas perguntas não possuem uma resposta (fixa e determinada) que se adapte
a cada caso. (MERTON, 1969. p. 33)

Desta forma o ensinamento de Lao -Tsé conduz a simplicidade original na qual o não lutar, o
não desejo, engendrando-se mutuamente, identificam a originalidade do desejo do Tao, pois “não há
mal maior que querer satisfazer os desejos. Não há maior desgraça que não saber estar satisfeito. Não
há calamidade maior que desejar possuir. (LAO-TSÉ, 1995. 46)

Princípios de bioética no taoísmo


Kerry W. Bowman e Edwin C. Hui no seu artigo sobre bioética chinesa publicado no The
Cambridge Textbook of Bioethics de Peter A. Singer e A. M. Viens em 2008 ao investigarem os
conceitos fundamentais bioéticos nos meandros da tradicional medicina chinesa, esclarecem que para
a cultura tradicional chinesa não existe um pensamento formal a respeito das questões bioéticas. Suas
concepções morais se fundam basicamente em princípios tradicionais relacionados a família, ao clã
e a comunidade. Assim o conceito de autonomia, tão caro ao mundo ocidental é visto, na cultura
chinesa como um “eu relacional” que se vincula com as estruturas familiares ou do clã a que pertence.
É a família e não propriamente o indivíduo que desempenha um papel de decisão sobre as questões
da vida.
Segundo os autores, a medicina ocidental concentra-se nas anormalidades na estrutura e
função dos órgãos e sistemas corporais e a medicina tradicional chinesa por outro lado, interpreta o

208
corpo e a alma como um todo integrado e esse todo, por sua vez, está integrado com o ambiente
natural a sua volta; proteger essa integridade é então fundamental para a saúde.
De acordo com a visão taoísta três são os pilares fundamentais desta compreensão em aspectos
teóricos: O Qi, que é a energia vital que flui através do corpo; na medicina tradicional chinesa em
seu contexto taoísta, existe o conceito de que o corpo é composto por doze canais principais através
dos quais a energia flui e uma das principais causas da doença é a obstrução destes canais no corpo.
O ying e o yang; o ying compreende tudo o que é escuro, úmido, mole, frio e feminino e o
yang tudo o que é luminoso, seco, quente e masculino. Sendo tudo o que existe constituído de ying e
yang, a harmonia é alcançada quando estes dois elementos estão em equilíbrio. Todas as funções
corporais são resultado da harmonia deste princípio. Um leve desiquilíbrio implica estado de doença
e uma ruptura desta harmonia implica a morte.
O Wu-hsing que é o conceito a partir do qual os cinco elementos são as categorias
constituintes da matéria. Como o corpo é parte da natureza, este é constituído pelos cinco elementos
que se distribuem através dos órgãos do corpo e determinam suas funções, incluindo as emoções.
Através deste sistema, o taoísmo explica as interações entre os órgãos e a influência dos fatores
ambientais sobre o corpo e as emoções.
Segundo a ótica destes conceitos, além de enfatizar uma medicina preventiva e de manutenção
da saúde, o taoísmo procura integra-la com as medidas de intervenção terapêutica aguda, visando
fortalecer a resistência corporal.
As questões de implicações éticas relacionadas ao início da vida se ligam ao taoísmo filosófico
que determina que nada deve interromper o curso natural da existência; obedecendo esta visão, as
práticas de interrupção da vida são tidas como antinaturais e, portanto, proibidas.
Com relação a morte e ao falecer, a crença do taoísmo religioso prega a imortalidade física,
prolongando-se então a vida, a longevidade e a juventude o máximo possível, já o taoísmo filosófico,
por sua vez, tem uma visão radicalmente oposta, acreditando que o homem enquanto vivo agora, vai
em direção a morte. Por esta razão deve-se aceita-la com serenidade e deixar que os acontecimentos
naturais tomem o seu curso, não admitindo quaisquer intervenções artificiais para prolonga-la ou
interrompe-la.
Como o conceito de autodeterminação do indivíduo não faz parte da cultura tradicional
chinesa, no taoísmo o naturalismo exerce um peso maior sobre as decisões humanas, estas devem
estar perfeitamente integradas e harmonizadas com o fluxo da natureza, provocando uma relação de
interdependência entre as respostas e reações do paciente e o equilíbrio natural de seu corpo e mente
com o ambiente a sua volta, mais do que uma resposta efetiva a uma anamnese clínica ocidental.

209
Considerações finais
O Tao Te King ou Livro do Caminho e da Virtude, escrito por Lao-Tsé provavelmente entre
350 e 250 a. C. identificava o Tao, ou caminho como princípio fundamental do universo. Seguir esse
princípio se traduz em praticar ações que não interrompam o fluxo contínuo e inalterado deste
caminho, que é o caminho do universo e vive-lo em harmonia com a natureza.
Sendo o Tao eterno e imutável é a sua contrapartida que é a vida que está em constante
mutabilidade. Deve-se, portanto, liberar-se de todas as preocupações e apegos materiais ilusórios, tais
como o desejo, a raiva, a ambição, e simplesmente deixar-se levar por um caminho de simplicidade,
espontaneidade, e humildade, despertando para o princípio do não agir ou o wu wei.
A ética taoísta tem como escopo principal o conceito de wu wei ou inação, no qual há somente
um único princípio de virtude, a virtude do Tao, que extingue todas as formas e práticas artificiais de
virtudes comumente aceitas pela sociedade.
Na cultura tradicional chinesa não existe um pensamento formal a respeito das questões
bioéticas, por conseguinte toda a sua ética se baseia em princípios tradicionais relacionados a família
e a comunidade.
No tocante ao conceito de doença, o taoísmo procura vincular o paciente a uma totalidade que
implica matéria e espírito, homem e natureza. Esta situação singular traz no tocante as questões éticas,
interpretações próprias a serem compreendidas e assimiladas pela cultura ocidental, nas quais se
destacam as questões relacionadas ao início da vida, a morte e ao falecer, e a comunicação entre
profissionais da saúde e pacientes.

Referências Bibliográfica
BOWMAN, K. W.; HUI, E. C. Chinese Bioethics. New York: Cambridge University Press,
2008.
CORDEIRO, A. L. M. Taoísmo e Confucionismo: duas faces do caráter chinês. Sacrilegens-
Revista dos alunos do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião- UFJF, Juiz de Fora,
v. 6, n. 1, p. 04-11, janeiro-dezembro 2009. ISSN 2237-6151. Disponível em:
<www.periodicos.ufjf.br>. Acesso em 20 novembro 2020.
ELIADE, M. História das Crenças e das Ideias Religiosas - De Gautama Buda ao triunfo do
cristianismo. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor Ltda., v. II, 2011.
IDOETA, I. P. UNED documentos. Taoísmo filosófico, 2013. Disponivel em: <www.
youtube.com>. Acesso em: 20 novembro 2020.
MERTON, T. A via de Chuan Tzu. 1º. ed. Petrópolis: Editora Vozes Ltda., 1969.
MERTON, T. Místicos e Mestres Zen. 1º. ed. São Paulo: Livraria Martins Fontes Ltda., 2006.
POYATOS, A. P. Taiping Jing 太平經: Fuente para la institucionalización del taoísmo
religioso. ’Ilu. Revista de Ciencias de las Religiones, Madrid, n. 22, p. 323-341, 2017. ISSN 1135-
4712. Disponível em: <www.dx.doi.org/10.5209/LUR.57419>. Acesso em: 21 novembro 2020.
TSÉ, L. Tao Te King. 2º. ed. São Paulo: Attar Editorial, 1995.

210
KRISHNA E ARJUNA NO CAMPO DOS GOYTACAZES: O ÉPICO HINDU
EM TERRAS NORTE FLUMINENSES

Caio Cézar Busani1

Resumo
Esta pesquisa tem como objetivo explicar e diferenciar os conceitos de mito e épico, muito discutidos ao longo
da história das ciências sociais, utilizando autores da antropologia. Demonstrarei como o conceito de épico pode ser
diferenciado de mito embora seja influenciado por esse. Esta distinção de conceitos visa aprimorar a compreensão de
categorias nativas e processos cognitivos elaborados por distintas culturas, afim de compreender o mundo envolvente
desses grupos e as formas como acumulam e transmitem conhecimentos. É utilizado como estudo de caso o épico hindu
Bhagavad-Gita, sua narrativa e a forma como transmite seus símbolos e significados. Para tanto realizo pesquisa de campo
com observação participante junto ao Centro Hare Krishna Casa de Prabhupada e ao Espaço de Yoga Damaru, na cidade
de Campos dos Goytacazes – RJ por meio da utilização do método qualitativo verificando como os membros desses
grupos agenciam essa narrativa na interpretação e conformação de suas ações cotidianas. Percebe-se que a partir dessa
narrativa épica, acontece a identificação e aprendizagem, uma vez que o entendimento e assimilação das atitudes tomadas
pelas personagens, mediante os problemas da vida, pode permitir a reflexão e compreensão dos sistemas de crenças e
valores culturais dos dois grupos envolvidos.
Palavras-chave: Mito, Épico, Etnografia, Bhagavad-Gita, Hinduísmo.

Introdução
O estudo dos mitos está presente desde o início da antropologia. As histórias sobre grandes
heróis e heroínas que venciam monstros, superavam grandes obstáculos, enfrentavam situações
terríveis, sempre chamou a atenção de grandes pesquisadores das ciências sociais, seja pela sua
narrativa, seja pela forma como demonstram a cosmovisão de um grupo. A partir dessas histórias, um
povo pode passar a diante às novas gerações, seus valores e conceitos a respeito da vida e de seu
significado. Quando mergulhamos no universo que estas narrativas nos apresentam, desde seus
símbolos, até a maneira como são contadas (e por quem são contadas), podemos perceber aquilo que
é mais importante para aquele grupo, que vai de questões éticas e morais, respostas sobre a existência
(de onde viemos, para onde vamos etc) até o estabelecimento de papeis sociais. Sendo assim, analisar
os mitos e histórias épicas de uma cultura, é uma forma de entender a visão de mundo que aquele
grupo possuí. Neste texto faço um sobrevoo a respeito das ideias de alguns dos mais importantes
estudiosos dos Mitos e Épicos das ciências sociais, e uso como estudo de caso a Bhagavad-Gita, um
texto indiano mundialmente conhecido por conter vários elementos importantes da religiosidade
indiana. Para tal, realizei a prática do trabalho de campo como proposta por Malinowski
(MALINOWSKI, 1922). Esse trabalho etnográfico foi realizado em dois espaços presentes na cidade
de Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro, no ano de 2017, o Centro Cultural Hare
Krishna Casa de Prabhupada e o Espaço de Yoga Damaru.

1
Pós-graduando em Ciência da Religião, UFJF E-mail: caiobusani@gmail.com

211
Épico e Mito nas Ciências Sociais
Os primeiros trabalhos de etnógrafos europeus, na virada do século XIX para o século XX,
descreviam os mitos e narrativas épicas como fábulas fantasiosas que os chamados nativos usavam
para explicar o mundo ao seu redor. Hoje, podemos dizer que essa forma de interpretação era
eurocêntrica e simplista, desmerecendo as demais culturas que existiam fora do universo europeu.
Foi Bronislaw Malinowski (1922) um dos primeiros estudiosos a perceber a importância
dessas histórias míticas, compreendendo-as como elemento fundamental de uma cultura, sendo um
dos principais instrumentos pelo qual o grupo transmite seus ensinamentos e as regras de conduta
daquela sociedade. Ele foi o fundador da escola funcionalista, e tinha a proposta de estudar o mito
por ele mesmo, buscando seus símbolos e significados, dando especial atenção a tradição oral e a
maneira como estas narrativas eram contadas e repetidas ao longo do tempo. Para ele, esta repetição
do mito era uma forma de mantê-lo vivo para o grupo, sempre relembrando seus ensinamentos,
fazendo com que estes ficassem sempre na memória daqueles que ouviam. Os ritos seriam um dos
instrumentos para essa repetição, através deles é que seria possível ‘reviver” o mito e seus
ensinamentos. Por ter uma visão funcionalista, Malinowski defendia que as narrativas épicas e míticas
possuíam somente esta função de estabelecer e lembrar ao grupo seus direitos e deveres, ou seja,
deixar claro os aspectos morais e éticos daquela sociedade (MALINOWSKI, 1948).
Outro importante pesquisador foi Mircea Eliade, filosofo e historiador que se dedicou ao longo
de sua carreira o estudo da religiosidade e como o ser humano lida com o sagrado em cada cultura.
Para ele as narrativas míticas são modelos da conduta humana. Quando vemos os heróis das histórias
passando por situações difíceis, muitas vezes tento que fazer alguma escolha de caráter moral, nos
vemos naquela situação, nos colocando no lugar do personagem. Isso auxiliaria nossa apreensão
daquilo que o mito está querendo ensinar. Por isso a repetição dos mitos e épicos seria tão importante
(ELIADE, 1963). Em seu livro “Mito e Realidade” (1963), ele também separa os mitos em três tipos:
da Criação, que explicam a formação do mundo habitável, os de Heróis, que contam grande aventuras
de heróis do passado, transmitindo os valores dos grupos, e os mitos Medicinais, que falam da origem
das curas bem como a sua devida utilização. Para Eliade os mitos teriam sim uma função objetiva
(como em Malinoski) mas não só isso. Eles também serviriam para dar sentido e significado a vida,
indo além de meros deveres e práticas objetivas do cotidiano, explicando a existência e seu sentido.
Um dos maiores nomes da antropologia dos séculos XX foi Claude Levi-Strauss. Ele estudou
os mitos profundamente e os considerava como uma “expressão da alma humana”. O mito supriria a
necessidade humana de ordenar as coisas, ou seja, as histórias míticas colocariam em ordem o mundo
que para os humanos estaria desordenado ou sem sentido. As narrativas míticas estariam intimamente
ligadas a maneira de ver e interagir com a realidade de um povo, nelas estaria contida essa forma de
ver o mundo. Também em seus símbolos e significados estariam a significação moral e valorativa,

212
que eram preservadas e repassados através dessas histórias. No entanto, para Levi-Strauss existiria
no mito um caráter de reflexão inerente ao ser humano. Uma busca de dar sentido a vida, que não
necessariamente buscasse uma explicação ou função objetiva. A isto ele chamou de “pensamento
desinteressado” (LEVI-STRAUSS, 1978).
Inspirado em Levi-Strauss e trazendo a noção de uma estrutura binária do mito, o antropólogo
Edmund Leach defendia que existem sempre duas naturezas, dois elementos de diferentes espécies
nas histórias míticas. De um lado o elemento humano, mortal, temporário, e do outro o elemento
divino, eterno, supremo. Estas duas naturezas não se misturariam, permaneceriam sempre divididas,
embora tenham algum tipo de relação (LEACH, 1979). A mudança viria com o surgimento de um
terceiro elemento, que seria proveniente da união da natureza divina com a natureza humana. Os
semideuses, os heróis épicos, os escolhidos, seriam esse terceiro elemento nas histórias. Seres
especiais que trazem o equilíbrio e são exemplos de conduta para os demais. Os épicos teriam como
principal personagem esses elementos formados de ambas naturezas divina e humana.
Outro importante autor é Alf Hiltebeitel, que vai propor a distinção entre os termos Mito e
Épico, na antropologia. Profundo estudioso dos mitos indianos, ele explica que embora o épico seja
influenciado pelo mito, o primeiro estaria mais vinculado as narrativas que falam das vidas dos heróis
e semideuses, que servem como exemplo moral e ético para a sociedade. Estas histórias são
ambientadas em um “tempo épico”, que é caracterizado por reinados, grandes clãs e famílias, e toda
a sua intriga e atividade política. Já os Mitos, estariam mais vinculados as narrativas de criação do
universo, falando de um tempo imemorial, além do próprio tempo, explicando por exemplo o
surgimento e relacionamento dos deuses, e os “porquês” que dão significado ao mundo visível e por
que as coisas são como são (HILTEBEITEL, 1976). Além dos tempos Mítico e Épico, haveria, para
o autor, o tempo Histórico, referente ao tempo dos homens. Um tempo que pode ser contato e
estudado, que está dentro do nosso tempo, e onde os deuses não mais se relacionam diretamente com
a humanidade, nem os semideuses existem entre nós.

A Gita em Campos dos Goytacazes – RJ


Muitos dos elementos dos mitos e épicos que discutimos até aqui estão presentes na narrativa
do MahaBharata, o grande épico hindu que conta a história da família real indiana de muitos séculos
atrás, e todos os conflitos que surgem na corte, bem como na vida dos personagens (DHARMA,
2016). Desta extensa obra, a parte mais conhecida no mundo é chamada de Bhagavad-Gita, o
momento da história em que o príncipe Arjuna se vê confuso sobre sua função na guerra e pede
concelhos para seu amigo Krishna, um avatara, uma encarnação do divino na Terra. Neste diálogo
de aproximadamente 700 versos, os dois conversam sobre conceitos centrais da religiosidade indiana,
como karma, as ações e suas consequências, o dharma, aquilo que é o correto a ser feito, prakriti, a

213
natureza material e isvara, o ser supremo ordenador da criação. Além dos processos (yoga) para se
alcançar moksa, a liberação das limitações materiais como nascimento, morte, velhice e doença
(RESNICK, 2015).
A Gita (bem como o MahaBharata todo) possuí elementos épicos bastante interessantes. De
primeiro podemos citar a presença dos heróis, semideuses, como Arjuna, filho do deus Indra. Ele,
bem como os demais heróis, possui poderes sobre-humanos e é constantemente, durante a narrativa,
testado em situações em que seus comportamentos morais e éticos refletem aquilo que a sociedade
indiana julga como sendo o ideal para a conduta humana. Ou seja, em diversos momentos as crenças
do hinduísmo, em toda sua pluralidade, são elementos importantes e centrais na história. Também é
possível notar os elementos que caracterizam o tempo Mítico, já que todo o épico se passa num tempo
de reis, príncipes e conflitos da corte. Além de ser um momento em que os deuses interagem com os
humanos. A estrutura binária também é visível, sendo os heróis (Arjuna e seus irmãos) como o
terceiro elemento, que une o divino com a existência humana.
Para enriquecer a analise deste épico, também é necessário observar sua reprodução, a maneira
pelo qual os indivíduos que acreditam em seus valores e conceitos apresentam e reproduzem a
narrativa. Por isso, meu trabalho etnográfico se deu em dois ambientes. O primeiro o Centro Cultural
Hare Krishna Casa de Prabhupada, vinculado a International Society for Krishna Consciousness
(ISKCON), um ambiente de práticas religiosas da vertente hindu gaudyia vaishnava (os adoradores
do deus Vishnu da bengala ocidental). E o segundo o Espaço de Yoga Damaru, onde ocorrem aulas
de Hatha-yoga e estudos filosóficos de textos indianos, como a Gita, ministradas pela dona do local,
Gilda Andrade. Escolhi estes dois locais pois julgo interessante que estes dois ambientes (e seus
frequentadores) possuem uma abordagem diferente um do outro em relação ao épico. O primeiro
possuí uma visão mais religiosa e devocional, enquanto que o segundo uma abordagem mais de
estudos filosóficos e comparados com outras doutrinas religiosas. Isto não impede eles de possuírem
muitas semelhanças quanto a representação do épico.
Irei então ilustrar as semelhanças que estes dois grupos possuem ao reproduzir a narrativa
épica da Gita. Ambos possuem um representante autorizado, que se coloca como detentor do mito.
Ou seja, alguém que é socialmente reconhecido como conhecedor dos ensinamentos contidos na
história épica, e que está autorizado (de alguma forma) a ensinar os outros sobre tais ensinamentos.
No Centro Hare Krishna, quem palestrava era o presidente do centro, Murli Krishna Dasa, iniciado
como sacerdote na religião a mais de 10 anos. No Espaço Damaru, a Gilda, dona o local, participou
de muitos cursos e cerimônias com o Swami Dayananda e a reconhecida professor Gloria Arieira,
especialista na filosofia indiana Vedanta. Sendo assim, percebemos outra semelhança. Existe nos
locais uma organização hierárquica, que estabelece uma diferenciação, daqueles que somente ouvem
e perguntam sobre o mito, e daqueles que tem o direito (e o dever) de propaga-lo. Importante salientar

214
também, o caráter ritualístico dos encontros. Antes e no final das aulas, sempre eram recitados
mantras, orações e dizeres sagrados provenientes da literatura religiosa indiana (como os Vedas e os
Upanishads). Eles eram entoados pelo palestrante, em seguida repetido pelos presentes. O épico não
pode ser falado de qualquer forma, é necessário que haja uma ritualística que prepare o ambiente para
reviver o mito e seus significados. Isso também nos faz crer que ambos utilizam de palavras de poder
para compor esse momento ritual. Estas não são simples palavras, mas orações que lembram a
narrativa épica, que agradecem aos mestres por mantê-la viva e que orientam o estudante na conduta
ideal para ouvir os ensinamentos.
É claro que estes dois grupos também têm suas diferenças. A que foi percebida por mim de
imediato, foi a maneira com o qual os integrantes lidam com o livro da Gita. Os Hare Krishnas
colocam o livro sobre um pedestal, e é proibido que ele toque o chão, pois para eles se trata de um
livro sagrado. Já no espaço Damaru, o livro também é respeitado, no entanto todos levam-no dentro
de bolsas, anotam em suas páginas, marcam partes que julgam importantes. Lidam com o livro muito
mais como uma importante obra de estudo, do que como algo sagrado. Além disso, no espaço de
yoga, é comum a comparação dos ensinamentos da Gita com demais doutrinas religiosas, como o
cristianismo (principalmente o espiritismo kardecista) e o judaísmo (e sua relação com a cabala
judaica). Isso não ocorre no centro Hare Krishna, que provavelmente busca afirmar sua própria
doutrina para os frequentadores e visitantes.

Conclusão
Como percebemos ao longo do texto, a antropologia possui muito material a respeito dos
mitos e épicos. Aqui selecionei apenas alguns autores que escreveram diretamente sobre esses temas.
Podemos ver que estes dois conceitos podem ser considerados distintos, embora um influencie o
outro. A Bhagavad-Gita, nossa narrativa épica analisada, contém todos os elementos principais de
um épico. Seus heróis, semideuses, reis e rainhas demonstram bem o conceito de tempo Épico, e
como essa narrativa tem como foco a vida desses personagens heroicos, bem como seus feitos e seu
exemplo para a humanidade. O trabalho etnográfico nos mostrou como este épico é reproduzido em
uma cidade do interior do Rio de Janeiro. Mesmo distante de seu local de origem, a narrativa
sobrevive com seus rituais, representantes e símbolos, que mantêm seu significado vivo, e levam-no
para grupos e maneiras de reflexão distintos.

Referências Bibliográficas
ARIEIRA, Gloria. Bhagavadgita: Diálogo entre Sri Krishna e Arjuna. Vidya-Mandir, Rio de
Janeiro, 2012.
DHARMA, Krishna. Mahabharata: versão condensada da maior epopeia do mundo. Editora
Nova Fronteira, 2016.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. Editora Perspectiva, São Paulo, 1972

215
HILTEBEITEL, Alf. The Ritual of Battle. 1976.
LEACH, Edmund. Genesis as Myth. 1969.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Edições 70. 1978.
MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo, Os Pensadores,
1976.
MALINOWSKI, Bronislaw. Myth in primitive psychology, 1926.
PRABHUPADA, Bhaktivedanta Swami. Bhagavad-Gita: Como ele é. BBT, São Paulo, 2011.
RESNICK, Howard. Guia Completo da Bhagavad-Gita: Com tradução literal. Coletivo
Editorial, São Paulo, 2015.

216
TEORIA E PRÁTICA DO MANTRA YOGA PELA ÓTICA DE UM
TEÓSOFO

Silas Roberto Rocha Lima1

Resumo
O professor I.K Taimni foi um pesquisador indiano que em sua pesquisa bibliográfica buscou analisar e explicar
os efeitos da prática do mantra yoga. Me baseio em suas obras publicadas pela Editora Teosófica para em um primeiro
momento, no presente trabalho acadêmico, apresentar a teoria de Taimni sobre a formação, os efeitos e a execução da
prática da recitação de mantras. Em um segundo momento, buscarei aplicar a teoria de Taimni na análise de alguns
mantras usados pelas religiões da Índia durante seus atos devocionais. Para tanto, proponho avaliar o discurso do autor,
que é o objeto da presente pesquisa, utilizando os conceitos do mito, rito e sagrado, presentes em pesquisadores clássicos,
como Mircea Eliade (2010), Rudolf Otto (2007), Calasso (1999), Claude Lévi-Strauss (2008), Émile Durkeim (1996), e
Joseph Campbell (2008). A relevância do presente trabalho está em trazer a apreciação do ambiente acadêmico, uma
teoria criada a partir de uma interpretação das tradições devocionais da Índia que apresenta uma narrativa que se propõe
a despertar em seus praticantes um estado epifânico de aproximação com um sagrado, que se encontra imanente e
manifestado na condição humana.
Palavras-chave: Mantra. Japa. Teosofia. Taimni.

A sociedade teosófica foi fundada em 1875, em Nova Iorque, por uma aristocrata russa e um
oficial do exército norte americano e por um advogado também americano. Este grupo de
pesquisadores tinha como objetivo analisar religiões de matriz oriental a Índia do extremo Oriente,
dentro de uma concepção generalista ocidental. Dentro desse discurso, eles apresentavam uma visão
que se focava em elementos narrativos e interpretativos que são compartilhados por diferentes
religiões orientais. Destas semelhanças discursivas e mitológicas e ignorando aspectos culturais e
ritualísticos que individualizam e personalizam a prática de cada tradição religiosa referenciada,
construiu-se uma metanarrativa que tenta explicar e analisar todo um montante de religiosidades
diferentes sob uma mesma lógica ocidental2. Em suma, a literatura teosófica e os seus membros
fundadores são responsáveis por um processo formação de um discurso que faz a apropriação e
ressignificação de conceitos e valores das religiões da Índia e Ásia sob uma ótica universalista, que
se julga apta para explicar a causa e funcionamento do fenômeno religioso em diversas religiosidades
e espiritualidades, sejam elas ocidentais ou orientais, monoteístas ou politeístas.
O movimento teosófico teve como princípio agregar pessoas de nacionalidades, raças e etnias
que compartilhavam dos seus interesses no estudo comparado de religiões e tradições esotéricas,
como uma forma de promover uma certa estrutura de fraternidade universal e inclusiva. Desta forma,
além de membros pertencentes à sociedade europeia havia também membros da nacionalidade hindu,
como é o caso do professor I.K. Taimni, que é objeto do presente trabalho acadêmico.

1
Doutorando em Ciência da Religião pela UFJF. E-mail:silas.cr.ufjf@gmail.com.
2
Este esforço de montar um discurso amplo e ao mesmo tempo é encontrado nas obras basilares das Teosofia, que são:
Isis sem Véu e Doutrina Secreta.

217
I. K. Taimni é um teosofista de nacionalidade indiana reconhecido dentro do quadro de autores
da sociedade teosófica, pelas suas obras que versam sobre ioga, mantra, teologia e cosmogonia hindu.
Membro de uma família da casta brâmane, Taimni vivenciou a prática de uma religiosidade
tradicional da Índia. No entanto, devido ao seu bom desempenho escolar teve oportunidade de fazer
um curso em uma universidade ocidental, obtendo o título de doutor em química. Ao retornar para a
Índia, o professor Taimni passou a lecionar em uma universidade indiana onde veio, posteriormente,
a se aposentar neste cargo. Somente após atingir a idade de 50 anos, ingressou no movimento
teosófico indiano, se tornando, de certa forma, um membro tardio desta organização. Sua contribuição
para a literatura teosófica é fundamentada em seu estudo do sânscrito, correlacionando este com as
informações obtidas em suas vivências religiosas bem com de sua formação científica ocidental.
No meu entendimento, como acadêmico e teósofo, a teosofia em sua fundação seguiu um
caminho de apropriação e redefinição de conceitos, narrativa e discursos de várias religiões dentro de
uma ótica particularmente ocidentalizante. No entanto, através de alguns autores como Taimni é
provável que a teosofia, na atualidade, faça um caminho inverso ao percorrido em sua formação.
Nesta nova trajetória, as particularidades e elementos diferenciadores das religiões têm se mostrado
tão relevantes para a compreensão do fenômeno religioso, quanto a sua fundamentação cosmológica
e mitológica.
Taimni apresenta a sua compreensão sobre a formação e funcionalidade dos mantras em sua
obra Gâyatri, o mantra sagrado da Índia. Entretanto, ele complementa essa teoria em trechos dos seus
livros de Ciência da Ioga, que se trata de uma tradução do sânscrito, com comentários do Ioga Sutra
de Patañjali. Shiva Sutras, realidade e realização supremas, outro texto em sânscrito traduzido e
comentado por este teósofo indiano.
O modelo teórico de Taimni é definido pelo termo Mantra Yoga (MY), que é apresentado
como sendo um ramo da yoga3 que trataria de uma metodologia conceitual responsável por explicar
e demonstrar a forma correta e mais eficaz de se recitar os mantras, objetivando o desenvolvimento
ou alteração do estado de consciência do adepto. Esta teoria informa que, para a prática eficiente do
mantra, é necessário combinar os seguintes elementos: a fórmula verbal e escrita geralmente derivada
de um trecho dos textos védicos, a pronúncia correta ou a visualização dos sons mântricos, o
conhecimento do significado do texto contido nos mantras, saber a métrica usada na elaboração da
fórmula mântrica, conhecer a deidade que é evocada pelo texto mântrico e por fim a identidade do
rishi (vidente) que “revelou” o mantra. Desenvolvo melhor este tema no artigo: Mantra Yoga, rito e
mito na ótica de um teósofo que se encontra nos Anais do IV CONACIR4.

3
O conceito para este termo que adotaremos neste trabalho é a definição do Glossário Teosófico: “A palavra yoga
significa, literalmente, “união” e é usada no sistema Patañjali para designar a união ou harmonia do eu humano, ou
inferior, com o Eu divino, ou superior, através da prática da meditação”. (BLAVATSKI, 2011, p762)
4
Fonte: https://drive.google.com/file/d/1bcuNHyW9AX7DV8GAOVAylgtva3Cep3NZ/view Acesso:26/07/2021

218
Como roteiro de prática para o MY, Taimni apresenta uma ritualística devocional denominada
Upâsana cujo termo significa “adoração, veneração, serviço respeitoso, consideração” (TAIMNI,
1983, p.191). Este modelo de ritual é organizado em cinco etapas sucessivas e utiliza como mantra
principal o Gâyatri. O Upâsana tem como essencial os seguintes momentos:
Em seu primeiro momento, é realizada uma ou duas cerimônias purificadoras que consistem
na recitação de mantras dedicados a certos aspectos do sagrado hindu, com o objetivo de para
“harmonizar os veículos e sintonizar a mente com o Eu Superior” (TAIMNI,1983, p.161).
Em seguida, o adepto deve realizar a invocação e meditação do “Sol Espiritual” que seria uma
manifestação do princípio espiritual do “Sol Físico”, como forma de promover a aproximação do
recitador com um dos aspectos do divino imanente. Neste momento do processo de meditação e
recitação mântrica, o adepto constrói a imagem de um orbe solar que será preenchido pela presença
de uma deidade masculina, ou seja, um Devata. No caso do Gâyatri, o deus evocado é Suria Narayana,
também considerado por Taimni como sendo o Logos Solar, isto é, o princípio inteligente que
organiza e dirige tanto os aspectos espirituais, quanto dos fenômenos naturais do sistema solar.
Em uma terceira etapa, o adepto invoca a imagem da Devi5que representa o mantra que é,
neste caso, pode ser uma das deidades associadas aos “princípios” masculinos contidos nos devatas
solares, ou seja, Brahma, Vishnu e Shiva6. Portanto, de acordo com a fase do dia em que se recita o
Gâyatri, a deidade que é descrita pelo mantra pode ser: Saraswati, Deusa do Conhecimento e consorte
de Brahma, Lakshmi, Deusa da fortuna e consorte de Vishnu e Parvati, Deusa da fertilidade e consorte
de Shiva. Nesta fase preparatória, que antecede a recitação do mantra principal, a devi é invocada no
orbe solar anteriormente formada pela imaginação do adepto e este medita sobre sua representação
imagética e seus atributos míticos.
Por fim, após o momento de recitação mântrica preparatória, o mantra Gâyatri é invocado e
meditando-se e identificando seus devatas e rishis, e se “apropriando” do significado de sua fórmula
que é baseado em um trecho do Rig Veda:
tat savitur varenycun, bhargo devasya dhimahi dhiyo yo nah pracodayät, "Que possamos
receber esta luz desejável do deus Savitr7, que deve impulsionar nossos pensamentos"
(Rigveda 3.62.10).

5
Devi: “Deusa, uma Divindade feminina” (TAIMNI<1983, p.184)
6
Segundo a mitologia hindu, a energia suprema manifestada “com forma” seria o Trimurti ou trindade um grupo de três
deuses superiores às demais divindades da Índia. São eles Brahma, o criador de tudo, Vishnu, o que protege os bons e
Shiva, o que destrói o mal. A “energia imensa” deles controla o universo e suas atividades. (CHATURVEDI, MATHUR,
2008, p. 24)
7
Savitr é interpretado como sendo o “Sol da Consciência espiritual” por Tamni (1983, p.180).

219
Ainda, na etapa acima descrita do Upâsana, inicia-se a prática do japa8, recitando o mantra
Gâyatri que é introduzido pelo termo OM9 seguido da evocação dos três planos da existência, isto é,
bhuh, bhuva e suvah, que traduzido literalmente seria: terra, atmosfera e céu. Para Taimni, estas
regiões representam simbolicamente e respectivamente ao plano físico10, ao plano astral11 e ao plano
mental12. Desta forma, a recitação do mantra passa a ser: “Om, bhuh, bhuva, suvah /tat savitur
varenyam/ bhargo devasya dhimahi/ dhiyo yo nah pracodaya.” (FLOOD, 2014, p.284)
Após a recitação ritualística do mantra Gâyatri, na forma prescrita pela prática do Japa, o ritual
de adoração, ou seja, o Upâsana, se encerra com a “despedida à Gâyatri Devi e ao Surya Devata 13.
Segundo Taimni, este momento que consiste na recitação de dois mantras, simbolizaria “um
afastamento da mente do sadhaka14 daquela séria e sagrada tarefa que ele havia empreendido”
(TAIMNI, 1983, p. 172), embora o mesmo autor lembre que: “não há realmente um partir por parte
do Ishta Devata15, o qual está sempre presente no coração do sadhaka (TAIMNI, 1983, p. 172).
A ritualística do Upâsana está melhor descrita no artigo que apresentei no III CONACIR em
2018 e publicado na revista Sacrilegens, vol. 15 com o título: Upâsana Gâyatrî: rito e mito na prática
da adoração do mantra Gayatri.
Desta forma, concluímos que o método teórico de Taimni para analisar e explicar os efeitos
dos mantras está fundamentado no Mantra yoga, um método que leva em conta os elementos
essenciais à construção de uma fórmula mântrica a saber: significado literal da escrita e sonoridade
do mantra, simbologia contida, o Devata para quem o mantra é dirigido, a métrica utilizada na
estruturação do mantra e, por fim a identidade do Rishi (Vidente) que revelou o mantra.
Quando se analisa a parte prática da recitação métrica, segundo as propostas de Taimni,
podemos observar que o ato devocional se baseia na utilização do japa, ou seja, na repetição cíclica
dos sons mântricos, o que conduziria os adeptos alteração do estado de consciência levando-os a

8
Japa: “pronúncia meditativa ou repetida, repetição articulada ou mental de mantras” (TAIMNI, 1983, p. 185) Apesar de
não ser comentado pelo Professor Taimni, tradicionalmente na Índia o número de repetições mântricas ideal é de 108
vezes, pois este número multiplicado por 10 simbolizaria a “totalidade do tempo” (CALASSOS,1999).
9
“O mantra om está presente em todos os rituais hindus, do sacrifício védico à puja diária do templo. É considerado o
som mais sagrado do Vedas e, como observa Dermot Killingly, representa e sintetiza a totalidade do corpo védico. [...]
Mesmo não tendo um significado semântico, om é reverenciado com o som do Absoluto que manifesta o cosmo, a essência
dos Vedas” (FLOOD, 2014, p.285)
10
Plano Físico: “É o plano inferior, aquele da matéria mais ou menos densa...” (BLAVTSKY,2011, p.493).
11
Plano astral: “É a região do Universo imediata ao plano físico, [...] Neste plano, a vida é mais ativa e a forma é mais
plástica do que no plano físico. [...] Devido à sua extraordinária ductilidade, as entidades astrais podem modificar
rapidamente seu aspecto, poque a matéria astral que as compõe, toma forma sob cada impulso do pensamento”
(BLAVTSKY,2011, p.493).
12
Plano Mental: “É aquele que corresponde à consciência, quando atua como pensamento. [...] O plano mental segue em
ordem ascendente o plano astral; [...] (BLAVTSKY,2011, p.493).
13
Neste caso o Surya Devata seria os aspectos do Trimurti (Brahma, Vishnu e Shiva), evocado durante as fases
preparatórias da recitação do japa.
14
Sadhaka: “Aquele que procura trilhar a senda espiritual e adota os meios necessários para alcançar a meta” (TAIMNI,
1983, p. 188).
15
Ishta Devata: “Divindade escolhida, a forma particular em que Deus é adorado por indivíduo” (TAIMNI, 1983, p. 184).

220
despertarem suas potencialidades e percepção para as manifestações do sagrado e desenvolvendo
“poderes” inerentes e normalmente adormecidos da psiquê humana.
No exercício de aplicar a teoria e prática de Taimni na análise da recitação de mantras das
tradições que se devotam a divindades como Vishnu e Shiva, duas das principais e mais populares
correntes da religiosidade hindu; convém observar que estas têm natureza diversa à do mantra
Gâyatri. Enquanto este último obedece a uma “visão védica ortodoxa”, tendo a função de invocar um
aspecto do divino para que este possa interferir “de forma mágica”, os primeiros seguem “tradições
tântricas”, cujas a fórmulas são recitadas com a finalidade de materializar um poder ou energia das
divindades a quem o adepto dirige a sua súplica (FLOOD,2014).
Sobre este aspecto dos mantras tântricos Staal (1996) constata haver uma correlação quanto
aos mantras purânicos16 por estes não poderem ser distinguidos pelos seus significados ou divindades
evocadas e sim pela métrica adotada. Assim, ao serem recitados mantras como: namah siväya,
''homenagem a Siva"; om namah siväya, "OM! Homenagem a Siva"; om namo nârâyanâya,
homenagem a Näräyana17"; om namo bhagayatëvasuaevâya, "OM! Homenagem a Lord Väsudeva18"
e srirâmajayarâmajayajay anima, "(viva) Sri Räma, viva Râma, viva Rama19!"
Estes mantras são distinguidos uns dos outros apenas pela sua construção silábica, podendo
ser, metricamente falando, formado por cinco silábicos (pancàksara) e seis silábicos (sadaksara), oito-
silábico, entre outras combinações. No entanto, a intenção destas fórmulas mântricas é evocar a
presença das divindades e criar um elo entre o adepto e esta deidade, fazendo que determinados efeitos
sejam produzidos no estado de consciência do recitador, segundo as teorias levantadas por Taimni
em suas obras.
Desta forma, concluo que I. K. Taimni, em sua literatura teosófica voltada para a ritualística
e cosmogonia hindu, faz mais do que retratar um padrão na estruturação das ritualísticas das tradições
religiosas da Índia. Ele buscou através de uma análise metodológica, respeitando os princípios da
lógica científica do ocidente e valorizando os saberes e a mística da classe dos brâmanes, construir
uma narrativa que tenta tornar compreensivo ao olhar ocidental a prática do Mantra Yoga mediante
o uso do método do japa.

16
Purânicos são os mantras fundamentados ou inspirados em trechos dos Purânas. Os Purânas tratam-se de uma “coleção
de escritos simbólicos e alegóricos, em número de dezoito, que se supõe foram escritos por Vyâsa, o autor do
Mahabhârata. (BLAVATSKY,2011, p.529)
17
“Näräyana (sânsc.) – Aquele “que se move sobre as águas” do Espaço. Epíteto de Vishnu, em seu aspecto de Espírito
Santo, que se move sobre as Águas da Criação” (BLAVATSKY,2011, p.402)
18
Väsudeva ““Filho ou descendente de Vasudeva.” Nome patronímico de Krishna” (BLAVATSKY,2011, p.733).
19
Rama “Sétimo avatar ou encarnação de Vishnu; filho mais velho do rei Dazaratha [...] É o protagonista do grande
poema épico filho mais velho do rei Dazaratha [...] É o protagonista do grande poema épico Râmâyana”
(BLAVATSKY,2011, p.554)

221
Referências Bibliográficas
BLAVATSKY, Helena Petrovna. Glossário Teosófico. 6ª edição. São Paulo/SP: Ground,
2011.
CALASSOS, Roberto. Ka. São Paulo/SP: Companhia das Letras, 1999.
CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus, mitologia oriental. 6ª edição. São Paulo/ SP:
Palas Athenas, 2008.
CHATURVEDI, B.K; MATHUR, Suresh Narain. Deuses e Deusas Hindus, sua hierarquia e
outros assuntos sagrados. São Paulo, SP: Madras, 2008.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa, o sistema totêmico na
Austrália. 1ª edição. São Paulo/SP: Martins Fontes, 1996.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano, a essência das religiões. 3ªedição. São Paulo/SP:
Editora WMF Martins Fontes, 2010.
FLOOD, Gavin. Uma introdução ao hinduísmo. Juiz de Fora/MG: Editora UFJF, 2014.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. São Paulo/SP: Cosac Naify, 2012
OTTO, Rudolf. O Sagrado. Petrópolis, RJ: Editora Vozes; 3ª edição, 2007.
LIMA, Silas Roberto Rocha. Upâsana Gâyatrî: rito e mito na prática da adoração do mantra
Gayatri. Sacrilegens, Juiz de Fora, MG; v. 15, n. 2, p. 1296-1309, jul-dez/2018.III Conacir UFJF
Fonte: https://periodicos.ufjf.br/index.php/sacrilegens/article/view/27051/18726 Acesso:
26/07/2021.
LIMA, Silas Roberto Rocha. Mantra Yoga, rito e mito na ótica de um teósofo. Anais do IV
CONACIR, UFJF. Fonte:
https://drive.google.com/file/d/1bcuNHyW9AX7DV8GAOVAylgtva3Cep3NZ/view Acesso:
26/07/2021.
STAAL, Frits. Rituals and mantras, rules without meaning. First Indian Edition: Delhi, 1996.
TAIMNI, I. K. Gayatri, o mantra sagrado da Índia. Brasília, DF: Editora Teosófica, 1983.
TAIMNI, I. K. A Ciência do Yoga. Brasília, DF: Editora Teosófica, 4ª edição, 2006.
TAIMNI, I. K. Shiva Sutras, realidade e realização supremas. Brasília/DF: Editora Teosófica,

222
PLURALISMO E TOLERÂNCIA RELIGIOSAS NA BHAGHAVAD-GĪTĀ

Janderson Clayton de Lima1


Resumo
Este trabalho estuda a Bhagavad-Gītā a fim de identificar em seus escritos ensinamentos acerca da diversidade
de práticas espirituais que possam se aproximar daquilo que os teóricos contemporâneos Claude Geffré, Raimon Panikkar,
Andrés Torres Queiruga e Vivekananda nomeiam de pluralidade religiosa. Acreditando que o livro explica, ainda que não
pormenorizadamente, a origem das diferentes tradições espiritualistas e demonstra aceitação de todas elas, foi possível,
nessa pesquisa, estabelecer pontos de aproximação e distanciamento entre os escritos da Bhagavad-Gītā e os pensamentos
sobre a pluralidade e a tolerância religiosas. Nota-se, primeiramente que a própria ideia de pluralidade não é uniforme
entre os teóricos, contudo em suas concepções sobre o tema é possível apontar aspectos básicos que também podem ser
encontrados no livro indiano. Contudo, a multiplicidade de entendimentos sobre o tema faz com que a interpretação do
livro pela ótica pluralista – que, em nosso referencial, é majoritariamente católica – traga contatos e afastamentos dos
teóricos citados em maior ou menor grau. Por fim, conclui-se que a abordagem da Bhagavad-Gītā em relação à pluralidade
religiosa já traz consigo pontos presentes no que teólogos do século XX viriam a formular enquanto teoria, todavia a visão
do livro sagrado deve ser recepcionada em suas peculiaridades.

Introdução
Pensar o pluralismo religioso de forma inclusiva é postura recente no cristianismo e no
ocidente – a partir do Concílio Vaticano II (1962 – 1965), onde essa religião se manteve hegemônica
por séculos. Na modernidade, esse espaço foi perdido e o cristianismo se deparou com o desfio de se
repensar em uma sociedade cada vez mais secular e plural e de rever sua relação com outras crenças.
Por outro lado, no subcontinente indiano, a pluralidade de religiões é uma realidade há
milhares de anos. Religiões autóctones com suas ramificações e religiões introduzidas na região –
seja por migrações, seja por invasões – lá há muito convivem, de forma, mormente não conflituosa.
Nesse contexto, religiosos locais têm seu entendimento próprio do pluralismo já manifesto em
diversos de seus escritos ou nos livros sagrados que estudam.
O objetivo deste trabalho é perceber como a pluralidade se manifesta nos versos da Bhagavad-
Gītā (BG), livro tido por muitos como o mais importante da literatura védica, e comparar com os
pensamentos de teólogos do pluralismo que partem, em sua maioria, do cristianismo.
Inicialmente será revisada brevemente a BG em sua história, sua confecção e sua localização
na literatura védica e na religiosidade hindu. A seguir, veremos os conceitos de pluralismo religioso
e tolerância em Claude Geffré, Raimon Pannikar, Andrés Torres Queiruga e Vivekananda. Por último,
será feita uma articulação dos conceitos estudados no momento imediatamente anterior com
passagens extraídas do livro em questão.

A Bhagavad-Gītā
Bhagavad-Gītā significa “canção de Deus” e é um trecho do grande poema épico Mahā-
bhārata. Ela relata o diálogo entre Arjuna e Kṛṣṇa (leia-se Krishna) no campo de Kuruk-ṣetra pouco
antes dos exércitos dos Pāṇḍavas e dos Kurus se enfrentarem em batalha. Arjuna ao ver seus parentes,

1
Mestrando em Ciências da Religião pela PUC Minas. E-mail: janderson.lima@gmail.com

223
amigos e mestres no campo oposto ao seu, nega-se a lutar e pede ajuda a Kṛṣṇa, que, então, explica
metafisicamente toda a existência.
Sábios hindus afirmam que os eventos por ela narrados são verídicos e ocorreram há cerca de
cinco mil e cem anos, contudo estudiosos ocidentais, além de contestarem a veracidade dos fatos
descritos no livro, acreditam que o poema teria sido escrito por volta do século V AEC. (cf.
RESNICK, 2015, p. 20-21).
A BG tem seu lugar na religiosidade hindu, mesmo enquanto alguns estudiosos e/ou religiosos
não recepcionam o poema como uma das escrituras védicas e outros sim. (cf. VALERA, 2015, p. 11).
Controvérsias acadêmicas e religiosas à parte, o livro é estudado por diferentes escolas tradicionais
védicas (sampradayas) dentro do hinduísmo e tido por muitos como a obra mais importante dentro
da literatura védica, pois conteria a essência do pensamento filosófico dos Vedas. (cf.
PRABHUPĀDA, 2017, p. 18).

Pluralismo religioso e tolerância


O pluralismo religioso e a tolerância religiosa podem ser pensados de várias maneiras. Claude
Geffré separa os entendimentos de pluralismo em pluralismo de fato e pluralismo de princípio. (cf.
GEFFRÉ, 2004, p. 134-135). O primeiro entende a diversidade de manifestações religiosas como
ignorância por não reconhecerem Cristo como o salvador e todas elas, eventualmente, confluiriam
para o cristianismo. De acordo com Panasiewicz, o pluralismo de fato “pode assumir posturas de
anulação do outro”. (PANASIEWICZ, 2020, p.44). Panasiewicz percebe a pluralidade de confissões
de fé como expressão da vontade divina. Esta última seria uma escolha teológica, que entende as
manifestações religiosas como parte do desígnio de Deus – e por isso lhes dá valor. São reflexos das
várias formas da humanidade de tentar capturar o “mistério transcendente de Deus”.
(PANASIEWICZ, 2010, p. 116). Essas diferentes tradições são resultados das tentativas de
contemplação de uma realidade infinita, transcendente e ilimitada a partir de olhares finitos, históricos
e limitados, dentro de culturas distintas.
Em sua visão de pluralismo, Andrés Torres Queiruga afirma que as religiões são todas
verdadeiras, uma vez que Deus estaria presente no centro de toda a história da humanidade de forma
salvífica e reveladora – e indistinta – para todas as culturas, dentro das limitações da captação humana.
(TORRES QUEIRUGA, 2007, p. 138-139). Essa presença se traduziria concretamente nas diferentes
religiões. Outra ideia utilizada para sustentar a veracidade das religiões é a “particularidade como
necessidade histórica”. (TORRES QUEIRUGA, 2007, p. 139). Esta mostra que Deus se comunica
tanto dentro quanto fora quando de cada religião – na e pela História – para se revelar da melhor
forma possível para cada povo. Cada tradição recebe Deus dentro de suas limitadas capacidades, e
“de todas [Deus] se serve para ajudar os outros”. (TORRES QUEIRUGA, 2007, p. 55).

224
Raimon Pannikar, por sua vez, entende que pluralismo pode ser um conceito liberal em que
“todos os sistemas são equivalentes, não é possível alcançar a verdade, as contradições são
necessárias e as verdades são muitas”. (PANIKKAR, 2016, p. 177). A partir dele, atingimos uma
ideia de tolerância como indiferença. Para o teólogo, nenhum cristão pode aceitá-la, uma vez que se
baseia na inexistência de uma verdade única. Por outro lado, pluralismo pode significar a existência
de uma verdade única, porém pluridimensional, porque a humanidade é diversa.
Como consequência, a atitude pluralista se dá no reconhecimento de que cada um é somente
capaz de apreender apenas parte do mistério que encobre o real, e que outros apreendem outras partes
da mesma realidade de diferentes formas. Essa atitude não significa abdicar de suas próprias crenças
em favor daquelas de outro, mas “reconhecer que sua perspectiva não é a verdade absoluta e estar
aberto ao relacionamento com quem pensa diferente”. (PANESIEWICZ, GRASSI, 2018, p.4).
De acordo com Diana Chao Decock, em Vivekananda, pensador indiano, vê-se um pluralismo
religioso que se baseia na ideia de que todas as práticas religiosas tanto partem do mesmo princípio
quanto objetivam o mesmo fim – o fiel elevar-se a Deus – e, por isso, são verdadeiras. Para ele, as
religiões – ou, pelo menos, as “grandes religiões”, a saber: cristianismo, budismo, hinduísmo,
judaísmo, islã e zoroastrismo – compartilham do desejo de alcançar a Deus, e esse “tornar-se Deus”
não depende de dogmas ou teorias. (cf. DECOCK, 2019, p. 66) Dessa maneira, as religiões visam à
mesma experiência de atingir a mesma verdade, que está no cerne de tudo, enquanto se manifesta de
forma plural na forma das diversas religiões.

Pluralismo e tolerância religiosa na Bhagavad-Gītā


Entendidos os conceitos de tolerância religiosa e pluralismo religioso, iremos neste momento
explorar como eles podem ser aplicados na BG. Contudo, para melhor compreender o conteúdo do
livro, é necessário esclarecer, mesmo que apenas rapidamente, o entendimento de Deus nele presente.
De acordo com A.C. Bhakitvedanta Swami Prabhupāda, a Verdade Absoluta pode ser
percebida em três fases idênticas: Brahman – o espírito impessoal em tudo presente –, Paramātmā –
o aspecto do Supremo que se localiza no coração dos seres vivos – e Bhagavān – a Suprema
personalidade de Deus, o Senhor Kṛṣṇa. (PRABHUPĀDA, 2017, p. 68). Veremos, a seguir, o
pluralismo em passagens extraídas do livro.
No verso 11 do capítulo quatro, Kṛṣṇa afirma: “A todos que se rendem a Mim, Eu recompenso
proporcionalmente. Todos seguem o meu caminho sob todos os aspectos, ó filho de Prthā”. Nessa
passagem, Kṛṣṇa mostra que o devoto será acolhido e recompensado independentemente do modo
como se deu a aproximação. Kṛṣṇa se põe, assim, simultaneamente além e dentro de todas as práticas
religiosas, que são consideradas, portanto, válidas.

225
No capítulo sete da BG, encontramos um conjunto de versos que Resnick chama de “versos
identidade” e “versos origem”. (cf. RESNICK, 2015, p. 61-69). Os primeiros identificam os seres e
coisas com as quais Kṛṣṇa se identifica, sendo parte dele, mas não ele. Os últimos demarcam Kṛṣṇa
enquanto origem de toda a criação. Logo após, Kṛṣṇa mostra que os homens e mulheres iludidos pelas
energias do criador não o veem e não se entregam a ele. Contudo, esses seres se devotam aos
semideuses “através de determinadas regras e regulações que se coadunam com suas próprias
naturezas”. (Bhagavad-Gītā 7.20). Logo após, afirma que, estando no coração das pessoas enquanto
Paramātmā, reforça a fé dos devotos para que possam adorar os semideuses, que lhes concedem
benefícios.
Nas passagens anteriores, nota-se a aceitação de Kṛṣṇa de todas as religiões. Como foi visto
anteriormente, os semideuses são partes dele, portanto a adoração feita a qualquer uma de suas
manifestações, expansões ou partes, são adorações ao próprio Kṛṣṇa, mesmo que inconsciente e
involuntariamente. Dessa forma, apesar de “A suprema personalidade de Deus” indicar uma forma
mais adequada de devoção que as outras, todas as manifestações de fé são válidas, pois derivam de
uma verdade única, como defendem os autores do pluralismo aqui abordados. Nota-se também a
concordância com ideia dos dois primeiros autores sobre a capacidade individual de interpretação de
Deus determinar diferentes formas de religiosidade.
Assim como no capítulo sete, no nono capítulo encontramos “versos identidade” e “versos
origem”. Aqui Kṛṣṇa mostra que desde os objetos usados nos rituais, passando pelos diversos objetos
de adoração até a meta, tudo é ele. (Bhagavad-Gītā 9.16-19). Kṛṣṇa, a seguir, explica que nem todas
as práticas têm o mesmo resultado e há aquelas formas de adoração incorretas e uma única correta.
Essa única prática, entretanto, não se manifesta em uma religião, mas em uma entrega e devoção ao
próprio Kṛṣṇa. (Bhagavad-Gītā 9. 20-34). Nesse sentido, a BG não é um livro discriminatório entre
religiões, nem descritivo de uma prática religiosa formalmente pré-estabelecida, mas, por todas
aceitar – mesmo enquanto aponta suas diferenças e aquela preferencial –, é tolerante com todas.
No décimo segundo capítulo, Kṛṣṇa afirma que aqueles que se dedicam ao serviço devocional
são os mais perfeitos, porém aqueles que adoram o Brahman também o alcançarão. Nesse mesmo
capítulo, Kṛṣṇa enuncia as práticas que podem ser executadas por devotos e devotas para o atingirem
desde a mais até a menos elevada e, em seguida, as qualidades que lhe são mais queridas em quem o
busca. Novamente Kṛṣṇa, em atitude tolerante, aponta caminhos com diferentes resultados, mas
decreta a validade e aceitação de todos, não impondo um sistema religioso, mas dando ênfase a
práticas características individuais, que são desenvolvidas pela prática correta.
No capítulo dezessete, Kṛṣṇa afirma que cada indivíduo tem um determinado tipo de fé de
acordo com a natureza material na qual se situa. Também demonstra que enquanto práticas realizadas
com conhecimento têm repercussões positivas, outras, realizadas em ignorância, repercutem

226
negativamente. Conclui-se, assim, que, na BG, as práticas devocionais são resultados da natureza
material da própria constituição humana e determinam resultados equivalentes à natureza da qual
emanam. Como a natureza material é resultado das energias de Kṛṣṇa, todas as práticas são derivadas
dele. Percebe-se aqui, novamente os entendimentos de Torres Queiruga e Pannikar acerca de as
múltiplas percepções da divindade serem limitadas pelo fator humano e também a tese de “verdade
única” por trás das religiões trazida por todos os autores estudados.
O capítulo dezoito, a conclusão da BG, traz os versos 55 e 66, onde fica claro que a prática
recomendada por Kṛṣṇa como a suprema é o serviço devocional e sua não vinculação a qualquer
tradição religiosa – apesar dele mesmo ter anteriormente reconhecido que todas as práticas são por
ele estimuladas, levam a ele de um modo ou de outro e que os devotos são recompensados por ele.
Nota-se, portanto, que a BG manifesta um pluralismo que acolhe as diversas práticas religiosas
como derivadas, em última instância, de Kṛṣṇa/Deus aceitando a veracidade de todas, uma vez que
nelas Kṛṣṇa está presente, assim como entende Torres Queiruga, Pannikar e Vivekananda. No livro,
Kṛṣṇa não elege uma religião, mas, contrariamente, pede aos devotos – pela pessoa de Arjuna – que
abandonem as religiões e se dediquem a ele.
O livro também afirma que as diversas formas de devoção são frutos da percepção humana da
realidade – pensamento compartilhado por Andrés Torres Queiruga e Raimon Pannikar.
A partir dessas constatações, pode-se afirmar que o pluralismo religioso da BG – por entender
a diversidade como equívoco de percepção, mas não pregar uma religião verdadeira e por ver o
sagrado em todas as manifestações religiosas, sem crer em um plano divino como fonte da pluralidade
– localiza-se entre os pluralismos de fato e de direito de Claude Geffré.

Conclusão
Pudemos ver, a partir dos teóricos estudados na segunda parte desse trabalho, que o pluralismo
religioso não é visto de forma única. Há, inclusive, entendimentos que complementam ou até mesmo
contradizem postulados anteriores. Entretanto, nessa diversidade, notam-se três elementos em comum
no campo teológico: Deus é pluridimensional; Deus é fonte de todas as religiões e; as religiões
derivam da pluridimensionalidade divina.
Esses mesmos entendimentos são encontrados na BG. Pudemos ver que a Verdade Absoluta
pode ser percebida enquanto Brahman, Paramātmā e Bhagavān/Kṛṣṇa. Deste emana toda a criação,
inclusive os semideuses. Das suas energias, formam-se as naturezas materiais. Situados nelas, os
devotos realizam diferentes práticas de adoração e sacrifício, com objetivos e resultados distintos.
Kṛṣṇa afirma que, em última instância, todas lhe alcançam, a todas estimula e a todos os devotos
recompensa.

227
Percebe-se no poema védico a mesma ideia de uma verdade única, infinita e inefável como
fonte de todas as práticas religiosas, porém não credita as diferenças entre as religiões à incapacidade
humana de perceber Deus – apesar de essa incapacidade ser também uma verdade védica – ou à
diversidade de contextos culturais em que surgem as confissões de fé.
As diferentes práticas se originariam, de fato, pela confusão humana entre as energias externas
de Kṛṣṇa e a própria divindade. Influenciados por essas energias enquanto qualidades da matéria –
sattva, rajas e tamas –, os devotos estabelecem objetivos para suas práticas e focam sua fé em
diferentes objetos. Ou seja, a pluralidade religiosa não se estabelece como um desígnio divino na BG.
Também, diferentemente do que afirma Vivekananda, o poema não confere a todas as práticas
devocionais um mesmo objetivo. Pelo contrário, separa práticas que objetivam benefícios espirituais
daquelas que pretendem benefícios materiais. Ao mesmo tempo, declara que qualquer objetivo deve
ser abandonado, a não ser aquele de servir a Kṛṣṇa. Em tempo: a ideia de “Religião Universal” de
Vivekananda estabelecida a partir do objetivo/origem “Deus” não considera diversas práticas
religiosas que ou não possuem essa (ou apenas essa) deidade e/ou a meta de retornar a ele. É, de fato,
um universalismo excludente.
Por não entender a pluralidade nem como algo absolutamente negativo, pecaminoso, passível
de anulação em prol de uma religião única e verdadeira, nem como a manifestação de um plano
incognoscível de Kṛṣṇa/Deus, o pluralismo da BG merece um entendimento particular, à parte dos
entendimentos de pluralismo cristãos até hoje elaborados.

Referências Bibliográficas
DECOCK, Diana C. Sobre a religião universal em Vivekananda. Voluntas: Revista
Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 10, n. 2, 2019, p. 63-70. Disponível em:
https://periodicos.ufsm.br/voluntas/article/view/39710. Acesso em: 17 dez. 2020
DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO. In: PANASIEWICZ, Roberlei. Dicionário do pluralismo
religioso. São Paulo: Recriar, 2020.
GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar. Tradução de Lúcia M. Endlich Orth. São Paulo: Vozes,
2004.
PANASIEWICZ, Roberlei. Pluralismo religioso contemporâneo: diálogo inter-religioso na
teologia de Claude Geffré. 2 ed. São Paulo: Paulinas; Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2010.
PANASIEWICZ, Roberlei; GRASSI, Rita M. O diálogo inter-religioso na obra de Raimon
Panikkar, In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE FILOSOFIA, TEOLOGIA E CIÊNCIAS DA
RELIGIÃO, 03 a 05 out. 2018, Belo Horizonte. Anais [...] FAJE, 2018. Disponível em:
http://www.faje.edu.br/simposio2018/arquivos/seminarios/ROBERLEI%20PANASIEWICZ%20RI
TA%20GRASSI.pdf. Acesso em: 12 fev. 2021.
PANIKKAR, Raimon. VI. Culturas y religiones en diálogo: 1. Pluralismo y interculturalidad.
Barcelona: Herder, 2016. [Obras completas].
PRABHUPĀDA, A.C. Bhaktivedanta Swami. Bhagavad-Gita como ele é. Tradução de
Antônio Irapuam Ribeiro Tupinambá, Robson Guia Chepkassof Chaves, Enéas Guerreiro. 7. ed.
Pindamonhangaba: Bhaktivedanta Book Trust, 2017.
RESNICK, Howard J. Guia completo da Bhagavad-Gītā com tradução literal. Tradução de
Daniel Cruz, Katiane Junqueira, Mariana Bessa. 2. ed. Pindamonhangaba: Coletivo Editorial, 2015.

228
TORRES QUEIRUGA, Andrés. Autocompreensão cristã: diálogo das religiões. Tradução de
José Afonso Beraldin da Silva. 5 ed. São Paulo: Paulinas, 2007.
VALERA, Lúcio. A mística devocional (bhakti) como experiência estética (rasa): um estudo
do Bhakti-rasāmīta-sindhu de Rūpa Gosvam2. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) –
Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2015.

229
OS TRÊS ESTADOS EXPERIENCIAIS DO ĀTMAN E SUA POSIÇÃO DE
ETERNA TESTEMUNHA: O SĀKṢIN

Bruno do Carmo Silva1


Resumo
Nossa existência é experienciada de diversas maneiras mas nem todas ocorrem no estado mais comum do existir,
que é o estado de vigília. Segundo o Māṇḍūkya Upaniṣad, o estado onírico durante os sonhos, assim como o estado de
sono profundo, onde não há sonhos, também são estados experienciais da existência. No entanto, além desses três estados
experienciais, viz., vigília, sono e sono profundo, há o quarto ou turīya. O quarto é considerado um não-estado ou um
estado não-experiencial onde destaca-se a eterna testemunha ou sākṣin. Nesse sentido, apresentarei algumas reflexões
acerca do ātman enquanto sujeito, como também, enquanto fundamento absoluto de toda subjetividade. É justamente
enquanto fundamento absoluto da subjetividade que o ātman é considerado a eterna testemunha de nossas ações e
experiências, i.e., o sākṣin. Essas reflexões sobre o ātman irão contribuir para um melhor entendimento sobre a noção de
sujeito e sobre o si-mesmo na tradição do Advaita Vedānta.
Palavras-chaves: ātman; sākṣin; Advaita Vedānta; Vedāntasāra.

Introdução
Segundo afirma Andrew: “Dentre todos os textos posteriores do Advaita Vedānta que
mencionam a doutrina catuṣpād, o Vedāntasāra parece ser o que leva o esquema do Māṇḍūkya
Upaniṣad mais a sério” (ANDREW, 1990, p. 83).2 Sendo assim, fundamento este presente trabalho
na obra Vedāntasāra de Sadānanda, obra escrita no século XV que sintetiza os princípios
fundamentais da filosofia não dualista do Advaita Vedānta.

O ātman enquanto sujeito


A palavra ātman enquanto conceito pode referir-se tanto à noção de sujeito ou agente quanto
ao fundamento da subjetividade. Sendo assim, vejamos agora as principais características do ātman
enquanto sujeito.
Primeiramente, o ātman enquanto sujeito é marcado pela limitação (upādhi) e pela ignorância
(avidyā), pois encontra-se afastado de sua real natureza ontológica e, portanto, encontra-se na posição
de ente, i.e., uma entidade dotada de nome e forma (nāmarūpa). O nome e a forma do ente se
superimpõem ao Ser, i.e., ao ātman, com isso cria-se a falsa noção de Eu. Isto é o que chamamos de
ego (ahaṅkāra). No entanto, essa noção de sujeito é apenas a expressão circunstancial do estado de
ignorância e afastamento do Ser (ātman). Não é uma identidade real do ponto de vista ontológico,
pois carece de substancialidade. Com efeito, somente o ātman é substancial, pois é ontologicamente
não-diferente de Brahman (Absoluto). Sobre isso, Loundo nos diz que
O primeiro nível discursivo sobre o sujeito – o sujeito enquanto objeto determinado e atual –
aponta, especificamente, para um sujeito qualificado por seus objetos de desejo de caráter
empírico, i.e., objetos existentes e atuais. Isso pressupõe um princípio de identidade
relacional, intersubjetivo/interobjetivo, marcado por uma interdependência com relação ao

1
Mestre em Ciência da Religião pela UFJF. E-mail: brunokarmo@hotmail.com
2
“Of all later Advaita texts which mention the catuṣpād doctrine, the Vedāntasāra seems to take the MāU scheme most
seriously” (ANDREW, 1990, p. 83, tradução nossa).

230
outro. O termo em sânscrito para esta determinação de ātman é ahaṃkāra, que poderíamos
associar com a ideia de persona ou ego (LOUNDO, 2014, p. 13).

Avasthā-traya: os três estados experienciais do ātman


Na condição de sujeito o ātman experiencia três estados (avasthā-traya) ou três modulações
básicas da consciência (citta-vṛtti). Estes três estados conforme descritos no Māṇḍūkya Upaniṣad são:
jāgrat ou vigília, svapna ou sonho, e suṣupti ou sono profundo. Durante o estado de vigília o sujeito
interage com os objetos grosseiros que compõe o mundo fenomênico. Já no estado de sonho, o sujeito
interage com os objetos sutis do mundo onírico. E no sono profundo não há objetos, pois é um tipo
de sono sem sonhos. Com efeito, durante o sono profundo a consciência encontra-se em um estado
de pureza no qual o Ser (ātman) torna-se mais evidente. Esses três estados são modulações do ātman
e não sua real natureza, portanto, são níveis de consciência do ātman enquanto sujeito, i.e.,
modulações experienciais do ātman em sua condição circunstancial de alienação, marcada pela
ignorância e sofrimento (duḥkha). No entanto, no estado de sono profundo (suṣupti) há uma breve
experiência de ānanda ou bem-aventurança, pois neste estado a consciência é livre de objetos,
diferente do estado de vigília e sonho, onde respectivamente, os objetos grosseiros e sutis são
experienciados. Sendo assim, o estado de sono profundo (suṣupti) é o mais próximo da pura
consciência. Como no sono profundo não há sonhos, não há nenhuma experiência objetiva que possa
ser lembrada posteriormente. No entanto, após o despertar, é possível lembrar de maneira subjetiva,
enquanto um sentimento de bem-estar, a breve experiência de bem-aventurança (ānanda)
experienciada durante o sono profundo (suṣupti). Com efeito, a bem-aventurança experienciada
durante o sono profundo só é percebida enquanto uma lembrança durante o estado de vigília (jāgrat).
Portanto, é uma experiência de bem-aventurança breve e passageira, que não se mantém após o
despertar.
Vejamos agora os três estados experienciais do ātman conforme apresentados no Māṇḍūkya
Upaniṣad:
(i) “O primeiro estado é vaiśvānara ou homem universal. Está situado no estado de vigília,
percebendo o que está do lado de fora [...]”3
(ii) “O segundo estado é taijasa ou brilhante. Está situado no estado de sonho, percebendo o
que está dentro [...]”4
(iii) O terceiro estado é prājña ou conhecedor. Está situado no estado de sono profundo. O sono profundo é
quando um homem adormecido não deseja e não sonha. Ele torna-se um com a pura consciência de bem-
aventurança (ātman), que é o senhor de todos, o conhecedor de todos, o controlador interno e o ventre de
todos, porque é a origem e a dissolução de todos os seres [...] 5

3
“jāgaritasthāno bahiṣprajn͂aḥ saptāṅga ekonavimśatimukhaḥ sthūlabhugvaiśvānaraḥ prathamaḥ pādaḥ”
(MĀṆḌŪKYA UPANIṢAD, 2008, 3, p. 474, tradução nossa).
4
“svapnasthāno‘ntaḥprajn͂aḥ saptāṅga ekonaviṃśatimukhaḥ praviviktabhuk taijaso dvitīyaḥ pādaḥ” (MĀṆḌŪKYA
UPANIṢAD, 2008, 4, p. 474, tradução nossa).
5
“yatra supto na kan͂cana kāmaṃ kāmayate na kan͂cana svapnaṃ paśyati tatsuṣuptam suṣuptasthāna ekībhūtaḥ
prajn͂ānaghana evānandamayo hyānandabhuk cetomukhaḥ prājn͂astṛtīyaḥ pādaḥ eṣa sarvaśvara eṣa sarvajn͂a
eṣo‘ntaryāmyeṣa yoniḥ sarvasya prabhavāpyayau hi bhūtānām” (MĀṆḌŪKYA UPANIṢAD, 2008, 5-6, p. 474, tradução
nossa).

231
Portanto, conforme supracitado, o sono profundo (suṣupti) é o estado experiencial do ātman
que mais se aproxima do ātman enquanto Ser, i.e., enquanto fundamento da subjetividade. Entretanto,
essa aproximação é momentânea, pois ocorre somente durante o estado de sono profundo. Com efeito,
o estado de sono profundo, embora auspicioso, ainda encontra-se limitado pela ignorância. Em
relação a isso, o verso 43 do Vedāntasāra nos diz que: “A consciência relativa a ele é limitada em
termos de conhecimento e destituída de poder de senhorio. Ele é conhecido como prājña por que é o
conhecedor que ilumina a ignorância individual” (SADANANDA, 2016, 43, p. 46).6 Referindo-se a
Śaṅkarācāryā, Sharma nos diz:
O Advaitin argumenta que no estado de sono profundo a consciência está presente, que o
sono profundo é um estado de consciência e não de inconsciência. Embora não haja objetos
para se relacionar ou interagir. Isso porque, ao retornar à consciência durante a vigília,
afirma-se que “tive um sono maravilhoso”. Se a consciência estivesse ausente nesse estado
essa lembrança não seria possível. Com efeito, acredita-se que a consciência persiste mesmo
na ausência de todos os instrumentos dos sentidos e da experiência cognitiva.7

O ātman enquanto fundamento da subjetividade


O ātman pode ser definido como o fundamento absoluto da subjetividade, o Ser que possibilita
qualquer expressão identitária do ente, que neste caso, é dotado de nome e forma (nāmarūpa). Por
ser o fundamento da subjetividade, o ātman é aquilo que possibilita a noção de Eu (ahaṅkāra), no
entanto, o ātman em si mesmo é puro ser, consciência pura que ilumina e testemunha os fenômenos
da realidade sem se identificar com eles. Ontologicamente, o ātman é não-diferente de Brahman, i.e.,
há uma unicidade inerente (advaya) entre o fundamento da subjetividade e o fundamento da realidade.
Sendo assim, o ātman é eterno, sem nome e forma, ilimitado e substancial.

Sākṣin: A eterna testemunha


A tradição do Advaita Vedānta, de acordo com sua doutrina do catuṣpād, afirma que há um
estado não-experiencial que encontra-se além dos três estados experiências do ātman, viz., vigília
(jāgrat), sonhos (svapna) e sono profundo (suṣupti). Por isso, esse estado é denominado de turīya ou
o quarto. O quarto é o ātman em si mesmo, enquanto fundamento absoluto da subjetividade. Pelo fato
de ser o fundamento da subjetividade, o ātman encontra-se na posição de eterna testemunha (sākṣin),
testemunhando todos os eventos e experiências vividas pelo sujeito, seja no estado de vigília, sonho
ou sono profundo. Sobre isso, o Māṇḍūkya Upaniṣad nos diz que:
(i) Considera-se o quarto como um estado não-experiencial, que não volta-se nem para
dentro nem para fora, nem mesmo os dois juntos, i.e., não é nem um nem outro, é invisível

6
“etadupahitaṁ caitanyamalpajñatvānīśvaratvādiguṇakaṁ prājña ityucyata ekājñānāvabhāsaktvāt” (SADĀNANDA,
2016, 43, p. 46, tradução nossa).
7
“The Advaitin argues that in the state of deep sleep, consciousness is present, that deep sleep is a state of consciousness
and not of non-consciousness, although there are no objects there with which it relates or interacts. And this is because
upon returning to waking consciousness, one does affirm that ‘I had a wonderful sleep’. If consciousness were absent
altogether in that state, no memory affirmation of it would be possible. Consciousness, it is believed, thus persists even
in the absence of all of the instruments of sense and cognitive experience” (SHARMA, 2004, p. 58, tradução nossa).

232
e está além do alcance da percepção ordinária. É incompreensível, sem marcas, impensável,
indescritível. Sua essência é permanecer em si-mesmo, sempre tranquilo e auspicioso, sem
um segundo. Esse é o ātman, aquilo que deve ser conhecido.8

Segundo afirma o Swami Satchidanandendra Saraswati:


[...] nosso Eu real ou ātman, testemunha do sonho e da vigília, não conhece limitação de
tempo, espaço ou causalidade. Não é limitado por um segundo que possa reivindicar o mesmo
grau de realidade; pois nenhuma das entidades encontradas no sonho ou na vigília pode
escapar das garras do tempo ou espaço restrito a essa esfera particular. 9

Conclusão
O ātman enquanto sujeito vive alienado de sua real natureza, pois encontra-se
circunstancialmente marcado pela ignorância (avidyā) e pelo sofrimento (duḥkha). Nessa situação
circunstancial de ignorância o ātman experiencia três estados de consciência, viz., vigília, sonhos e
sono profundo. No entanto, esses três estados experienciais do ātman são meras modulações
identitárias advindas da ignorância, i.e., são identidades ontologicamente insubstanciais. Sendo
assim, o sujeito que se identifica com esses três estados ignora seu próprio ser (ātman), reconhecendo-
se apenas enquanto ente, limitado pela noção de eu (ahaṅkāra) e meu (mama). Embora no estado de
sono profundo (suṣupti) ocorra uma breve experiência de unicidade (advaya) e bem-aventurança
(ānanda), essa experiência ainda encontra-se marcada pela condição circunstancial de ignorância
(avidyā). Portanto, a realização plena da unicidade e bem-aventurança só pode ser alcançada por meio
do ātman em si mesmo, i.e., por meio da eterna testemunha (sākṣin).

Referências Bibliográficas
MĀṆḌŪKYA UPANIṢAD. In: UPANIṢADS: The Early Upanisads. Annotated Text and
Translation. Translated and edited by Patrick Olivelle. New York: Oxford University Press, 1998, p.
473-477.
SADANANDA. Vedantasara of Sadananda: with introduction, text, english translation and
comments by Swami Nikhilananda. Almora: Advaita Ashrama, 2016.
SARASWATI, Swami Satchidanandendra. Avasthatraya or The Unique Method of Vedanta.
Holenarasipura: Adhyatma Prakasha Karyalaya, 2006.
UPANIṢADS: The Early Upanisads. Annotated Text and Translation. Translated and edited
by Patrick Olivelle. New York: Oxford University Press, 1998.
ANDREW O. Fort. THE SELF AND ITS STATES: A States of Consciousness Doctrine in
Advaita Vedānta. Delhi: Motilal Banarsidass, 1990.
LOUNDO, Dilip. Ser sujeito: Considerações sobre a Noção de ātman nos Upaniṣads. In:
Cultura oriental, v. 1, n. 1. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2014, pp. 11-18.
SHARMA, Arvind. Sleep as a State of Consciousness in Advaita Vedānta. Albany: Suny
Press, 2004.

8
“nāntaḥprajn͂aṃ na bahiṣprajn͂aṃ nobhayataḥprajn͂aṃ na prajn͂ānaghanaṃ na prajn͂aṃ nāprajn͂am
adṛṣṭamavyavahārvamagrāhyamalakṣaṇamaci ntyamavyapadeśyamekātmapratyayasāraṃ prapan͂copaśāmaṃ śāntaṃ
śivamadvaitaṃ caturthaṃ manyante sa ātmā sa vijn͂eyaḥ” (MĀṆḌŪKYA UPANIṢAD, 2008, 7, p. 474, tradução nossa).
9
“[...] our real Self or Atman, witness of Dream and Waking, knows no limitation of time, space or causation. It is not
delimited by a second which can claim the same degree of reality; for none of entities to be found either in Dream or
Waking can get out of the clutches of time or space restricted to that particular sphere” (SARASWATI, 2006, p. 9,
tradução nossa).

233
RECONSTRUINDO A BIOGRAFIA DE SÃO TOMÉ – PISTAS SOBRE
A IDA DO APÓSTOLO DE JESUS PARA A ÍNDIA

Giuliano Martins Massi1


Resumo
A tradição oriental diz que São Tomé, discípulo de Jesus, foi ao Oriente comunicar o advento do Messias e se
estabeleceu na Índia, onde viveu até sua morte. Minha pesquisa consistiu em fazer uma breve reconstrução da biografia
de Tomé a partir das narrativas que envolvem esse discípulo. A metodologia adotada foi a de reconstruir a rotina dos
discípulos, selecionar indícios razoáveis para formar um conjunto de elementos de realidade coerente e comparar esses
indícios com supostos aspectos da vida cotidiana (visão religiosa, profissão, relações sociais, etc.) de Tomé. O objetivo
foi investigar a ideia cristã oriunda da vida de São Tomé, relatada por essa tradição. Essa pesquisa se justifica pelo fato
desse discípulo ser bastante incompreendido no Brasil e pela possibilidade de nos aproximarmos, ao menos teoricamente,
da visão acerca do Cristo que chegou à Índia. O resultado esperado é que seja considerada a hipótese de que a narrativa
recebida pelos primeiros cristãos indianos pode ser relacionada à imagem que se tem de Jesus como um ser divino
concreto, tangível, tal como a religiosidade cristã indiana entende Tomé. Em tempo, o discípulo que teria tocado Jesus
sempre inspirou a Índia, e sua biografia vive hoje nos cristãos indianos tomesinos.
Palavras-chave Índia; São Tomé; evangelho; cristianismo; erro de tradução da Bíblia.

A tradição oriental diz que São Tomé, discípulo de Jesus, foi para o Oriente comunicar o
advento do Messias visitando lugares tão distantes quanto a Pérsia e a China. Ele teria se estabelecido
na Índia, em uma praia na porção Oriental desse país, onde seu túmulo é venerado até os dias de hoje.
O fato de seu local de sepultamento estar voltado para o Ponto Cardeal do Nascer do Sol é um dado
de grande importância para este estudo, como veremos.
Com o objetivo de coletar pistas sobre a ida de São Tomé para a Índia, farei uma brevíssima
reconstrução da biografia de Tomé a partir das narrativas que envolvem esse discípulo, tendo em vista
uma composição de elementos que faça sentido em um quadro contextual cotidiano.
A primeira pista está na proximidade entre os apóstolos Tomé e Mateus. O evangelista Mateus
coloca Tomé antes até de seu nome, em sua lista dos doze discípulos de Jesus. O evangelista Marcos,
por sua vez, coloca Mateus e Tomé juntos, nessa ordem. Em outras palavras, podemos inferir que
Mateus considerava Tomé mais importante do que ele próprio. Já Lucas repete a ordem de Marcos
em seu próprio evangelho. Conforme a tradição indiana, o primeiro evangelho que teria chegado à
Índia teria sido o de Mateus.
Jesus viveu em Nazaré, uma cidade tão próxima da Síria que o idioma falado por Jesus
provavelmente era o aramaico, do qual o idioma siríaco deriva. São Tomé se denominava, na verdade,
Judá, mas era chamado de “T’ma”, em aramaico, uma palavra que pode ser dita foneticamente como
“Toma” ou “Tama”, e que pode significar “o outro”, “duplo” ou “gêmeo”. Ao contrário do que a
maioria dos estudiosos contemporâneos pensa, no entanto, acredito que o apelido de “duplo” foi dado
a Tomé não porque era gêmeo de Jesus ou algo parecido, mas porque ele andava sempre ao lado de
Jesus, formando uma “dupla”. Contextualmente, faz mais sentido.

1
Doutorando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora-MG.

234
O fato de os discípulos andarem em caravana deve ser considerado em termos práticos e
cotidianos. Pelos relatos do Novo Testamento, o grupo de seguidores de Jesus era relativamente
grande. Nessas circunstâncias, é razoável pensar que o extenso grupo precisasse se dividir em dois
em sua organização: um grupo da noite e um grupo do dia. E pelo menos dois apóstolos devem ter
atuado como seguranças armados: um para o grupo de dia, outro para o grupo da noite.
Mateus diz que, depois da prisão de João Batista, Jesus começou a pregar (Mt 4,17). Uma
providência de Jesus, que não está clara no texto bíblico, foi chamar dois irmãos para cuidar de sua
segurança: Pedro e André (Mt 4,18 – apenas um versículo depois).
Realmente não está óbvio que Pedro e André cuidavam da segurança armada de Jesus, com
uma espada cada um, mas se reconstruirmos o cenário contextual dos discípulos podemos ter em
mente que essa muito possivelmente era a realidade. No episódio do Getsêmani, Lucas diz claramente
que os discípulos portavam duas espadas (Lc 22,38), mas não diz quais discípulos estavam junto de
Jesus, dando a entender que muitos discípulos estavam distantes “a um tiro de pedra” (Lc 22,41). No
entanto, podemos extrair mais detalhes do cotidiano daquele grupo a partir do Evangelho de Mateus,
que, conforme minhas pesquisas2, é o mais acurado de todos.
Era a noite (Mt 26,30) após a Ceia Pascal, no Monte das Oliveiras, e Jesus diz a Pedro: “Em
verdade te digo que esta noite, antes que o galo cante, me negará três vezes!” (Mt 26,34). Após isso,
Jesus se afasta para orar levando Pedro e os irmãos Tiago e João, que dormem ao menos duas vezes
em menos de uma hora (Mt 26,40), indicando estarem cansados pelas tarefas do “grupo do dia”. Por
isso Pedro ficou incrédulo com a profecia de que iria negar Jesus três vezes durante a noite: isso seria
impossível porque ele, Pedro, estaria dormindo nesse período, como costumeiramente fazia.
André, irmão de Pedro, não fazia parte do grupo de dia: sua obrigação seria ficar de guarda
durante a noite. André provavelmente descansava no período da tarde, para ficar acordado no período
noturno. Pedro, Tiago, João, Mateus e Tomé muito provavelmente faziam parte do grupo do dia.
André e Judas Iscariotes provavelmente faziam parte do grupo vigilante à noite.
A ausência de André enquanto Jesus rezava no Getsêmani, no Monte das Oliveiras, sempre
foi questionada pelos estudiosos, mas nunca completamente explicada. Os irmãos deveriam andar
juntos, mas não estavam juntos naquele momento. Então, enquanto Pedro, Tiago e João
demonstravam cansaço a ponto de dormirem, vem Judas Iscariotes com um grupo enorme e armado
com paus e espadas (Mt 26,47). André estava separado de Pedro, dormindo para ficar acordado de
vigia durante o período noturno ou verificando os mantimentos do grupo, pois já era noite.
O bando enviado pelos chefes dos sacerdotes e pelos anciãos do povo prende Jesus (Mt 26,50).
Em seguida, “um dos que estavam com Jesus, estendendo a mão, desembainhou a espada e, ferindo

2
Ver: MARTINS, Giuliano. Desvendando a Estrela de Belém e a data do nascimento de Jesus. São Paulo: Fonte Editorial,
2020.

235
o servo do Sumo Sacerdote, decepou-lhe a orelha” (Mt 26,51). Esse “um que estava com Jesus” e que
brandiu a espada, pelo contexto que se desenrola a seguir, não era Pedro: era André.
Por que digo que foi André quem agrediu com a espada? Porque o Evangelho de João acusa
Pedro de ter cortado a orelha do “soldado” (Jo 18,10), defendendo André que, não por acaso, é
exaltado em todo o texto joanino: o impacto missionário desse apóstolo se tornou lendário na parte
ocidental da expansão cristã, mais especificamente na Capadócia, no norte da Grécia e na Anatólia
(ou Ásia Menor, onde o Evangelho de João teria sido elaborado em sua redação final).
Pensemos um pouco: se Pedro tivesse machucado alguém, ele seria reconhecido como o
agressor, e não como um dos que seguia Jesus. De acordo com o texto de Mateus (Mt 26,58), Pedro
foi “até o pátio do Sumo Sacerdote e, penetrando no interior, sentou-se com os servidores para ver o
fim” daquela história: se Jesus seria preso, se alguém acusaria André, ou se nada aconteceria.
Mateus, por sua vez, era coletor de impostos para o Templo de Jerusalém, que em parte era
separado para pagamento ao Império Romano como tributo. Em outras palavras, esse discípulo,
versado em contabilidade, provavelmente aprendeu seu ofício de coletor de impostos no próprio
Templo de Jerusalém, junto aos escribas. Era, portanto, alguém diretamente ligado ao Templo.
Tomé teria sido um dos primeiros companheiros de Jesus, chegando a conhecê-lo na infância3.
Era também um construtor de templos, e pode ter conhecido a família de José por força da profissão,
ainda em tenra idade. Devido à maior quantidade de madeira nas montanhas, era natural que
carpinteiros e construtores morassem nas regiões montanhosas, perto da matéria-prima de seu
trabalho, enquanto os artistas mais refinados estariam nas cidades. Na obra Atos de Tomé, o próprio
Tomé relata o que é capaz de fazer: “Em madeira posso fazer arados, cangas e varas (para tanger
bois). E barcos, e remos para barcos, e mastros e roldanas; e em pedra, pilares e templos, e tribunais
para reis” (ELLIOT, 1924).
Mateus e Tomé devem ter sido próximos, pois além de aparecerem juntos nas listas apostólicas
há outros pontos de ligação entre ambos, embora de maneira indireta. Conforme o Evangelho de
Mateus: “aproximaram-se dele os seus discípulos para lhe mostrarem a estrutura do templo. Jesus,
porém, lhes disse: Não vedes tudo isto? Em verdade vos digo que não ficará aqui pedra sobre pedra”
(Mt 24,1-2). Tomé era construtor de Templos, e Mateus deve, por suposição, ter relatado a admiração
pelas pedras do Templo a partir de um comentário de Tomé.
Partindo da suposição de que Tomé e Mateus eram próximos, é justo observar o Evangelho
de Mateus para identificarmos se existe alguma pista sobre a ida de São Tomé para a Índia.
Coincidentemente, o Capítulo 24 do referido evangelho, que começa com Jesus saindo do templo e
os discípulos apontando os detalhes da construção, é totalmente dedicado à explicação de Jesus sobre

3
A Tomé é atribuída a autoria do Evangelho da Infância de Jesus (ou Da Infância do Salvador).

236
quando e de que forma ele, Jesus, voltaria para junto dos homens. Os versículos do Capítulo 24 que
indicam qual teria sido, supostamente, o motivo de Tomé ter se dirigido para o Oriente, são esses:
“Se, portanto, vos disserem: ‘Ei-lo no deserto’, não vades até lá; (...) não creiais. Pois assim como o
relâmpago parte do oriente e brilha até o poente, assim será a vinda do Filho do Homem” (Mt 24,26-
27).
A palavra “relâmpago”, acima, é erro de tradução da Bíblia. Trata-se de uma luz que, no
contexto, indica ser o “lampejo da manhã”, pois a palavra grega ἀστραπὴ (“astrapé”) significa, no
contexto cotidiano e original dos tempos antigos, uma luz que caminha, como a produzida por
lâmpada ou tocha. Por isso Jesus diz que parte do Oriente, do Leste, e brilha até o Poente, o Oeste.
As próximas pistas vêm do Evangelho de João.
Há pesquisadores que dizem que o Evangelho de João foi confeccionado como peça teatral
(BUNCE, 2015), enquanto outros dizem que foi elaborado para refutar publicamente o Evangelho de
Tomé (PAGELS, 2004, p 65). Acredito, particularmente, que o Evangelho de João igualmente teve o
objetivo mais amplo de apresentar, principalmente ao público da Europa e do Oriente Médio, uma
reinterpretação das ideias contidas em tradições orientais em vigor à época.
O Evangelho de João é um texto cristão elaborado na Ásia Menor (Anatólia) que se utiliza de
um “sincretismo helenista-oriental” (VIELHAUER, 2005, p. 444) em um roteiro desfavorável a
Tomé, cujo cristianismo crescia no Oriente, em especial na Pérsia e na Índia, mas com fortes
referências siríacas e edessenas (mesopotâmicas). São Tomé foi o principal “alvo” de João.
Entre as verdades possivelmente distorcidas pelo Evangelho de João, uma delas pode ser vista
no chamado “segundo final joanino”, ou seja, um “final acrescentado” a esse evangelho (Jo 21) em
comparação a textos mais antigos e cuja cena final descreve Jesus deixando Tomé na praia,
literalmente. Outro dado é que Tomé, por ter sua imagem associada à ida ao Oriente, era corajoso, e
isso foi retratado no Evangelho de João mas em uma conotação que o coloca como afoito e insensato
(Jo 11,16). Além disso, Tomé aparentemente era um judeu típico e dedicado ao judaísmo, tal como
seu nome em hebraico sugere, Judá, e o Evangelho de João manteve essa característica nas entrelinhas
de seu texto ao demonstrar Tomé como “incrédulo” (Jo 20,25) embora ele, como judeu, certamente
considerava natural um descendente dos hebreus tocar fisicamente a divindade 4. Se filtrarmos tudo
isso, percebemos que as imagens conceituais acerca de Tomé o pintavam como um homem
destemido, respeitado, de pensamento judaico e que estava próximo à praia.
Para muitos judeus que acreditaram em Jesus, ele voltaria esclarecendo o mundo como a luz
que vem do Oriente, e apareceria tal como o Rei Davi havia cantado no Livro de Samuel: “O Deus de

4
Deus caminhava ao lado de Adão, manifestou-se a Moisés e conversou com Noé. Além disso, as Sagradas Escrituras
judaicas estão repletas de antepassados judeus questionando Deus, e até desafiando-o. Em comparação com os outros
evangelhos ditos sinóticos: “Apenas em João Jesus é explicitamente identificado como Deus (1.1,18; 20.28)” (CARSON,
2007, p.24).

237
Israel falou, a rocha de Israel me disse: Aquele governa os homens com justiça,/ governa com o temor
de Deus / é como a luz da manhã ao nascer do sol / na manhã sem nuvens” (II Sm 23,3).
Tomé, que devia possuir um tipo de pensamento bastante concreto em relação à vida,
naturalmente associou Jesus ao Sol, assim como muitos dos cristãos originários. Por exemplo, Plínio
(61-114 d.C.), chamado de “O Jovem”, relata em carta ao imperador Trajano que escravas “se
reuniam regularmente antes do amanhecer em determinado dia para cantar um hino a Cristo como se
fosse um deus5” (PAGELS, 2004, p. 87). Essa prática de buscar Jesus na aurora, com toda certeza,
não nasceu com essas escravas.
Na busca por Jesus, Tomé foi para o Oriente6, na direção do lugar em que o sol nasce.
Desembarcou na Costa do Malabar, atual estado de Kerala, na parte ocidental da Índia, e ergueu
igrejas. Atravessou até Chennai (Madras), no litoral oriental do Sul da Índia. Estabeleceu-se em uma
caverna onde havia água potável, no lugar chamado Pequeno Monte, onde fez morada. Todos os dias,
pela manhã, atravessava o Rio Adyar e esperava Jesus vir com o nascer do sol, na praia de Chennai.
Provavelmente fazia orações, cantava hinos e conversava com seu Senhor e seu Deus (Jo 20,28) a
cada alvorecer, na praia. Nessa praia, após sua morte, ergueram seu túmulo (que tempos depois se
tornou uma basílica).
Como Tomé sabia fazer barcos, e remos para barcos, seria fácil para ele trabalhar com os
pescadores daquela praia indiana voltada para o Oriente. À tarde, depois do período de pesca, São
Tomé atravessava novamente o Rio Adyar e caminhava um pouco além, para um monte maior, a fim
de repassar as mensagens de Jesus aos moradores das vilas mais interiores. Esse lugar é conhecido
até hoje como o Monte de São Tomé. No fim do dia, Tomé voltava para dormir no Pequeno Monte,
mais próximo do Rio Adyar e do litoral, para onde voltaria no dia seguinte.
Quando os portugueses chegaram a Chennai, em 1516, eles ergueram uma igreja em
homenagem a Nossa Senhora da Luz, supostamente devido a uma luz milagrosa que teria salvado
alguns portugueses do naufrágio. Ocorre que essa santidade de Maria se refere à Nossa Senhora que
deu à luz o Menino Jesus, pois remete à apresentação de Jesus no Templo de Jerusalém. Por isso ela
também é chamada de Nossa Senhora da Purificação ou da Candelária, em referência ao ritual de
purificação da mãe judaica após dar à luz, e devido às luzes do Templo oriundas das chamas do local
por ocasião dos rituais. Interessante é que, em 1523, os portugueses construíram outra igreja, agora
no topo do Monte São Tomé, e a consagraram à Nossa Senhora da Expectação. Em outras palavras,

5
Há outra tradução disponível na Internet: “...[os cristãos] têm como hábito reunir-se em um dia fixo, antes do nascer do
sol, e dirigir palavras a Cristo como se este fosse um deus” (Plínio, Epístola 96). Fonte: Wikipédia.
6
Segundo a tradição, São Tomé fez duas viagens à Índia. A primeira, subindo o Rio Indo até Taxila, um entreposto
comercial da Rota da Seda, onde teria recebido a notícia de que Maria, mãe de Jesus, havia morrido. Por isso teria voltado
a Jerusalém, onde teria elaborado o Livro da Infância de Nosso Senhor, no contexto desses acontecimentos. Sua segunda
viagem o teria levado para o Malabar, onde comerciantes judeus se estabeleceram principalmente visando o comércio de
especiarias, muitas delas produzidas somente naquela região.

238
a referência santífica do monte em que São Tomé pregava é Maria a esperar o nascimento de seu filho
Jesus (por isso “expectação”, de expectativa). Assim como Maria esperou a luz nascer, Tomé
esperava a volta de Jesus a cada amanhecer. E os Cristãos de São Tomé, como são conhecidos os
mais antigos cristãos indianos, até hoje rezam na direção do sol nascente.
O mais importante, contudo, é que a relação entre Tomé, Jesus e o Sol pode ser vista em
objetos religiosos que foram utilizados pelo menos até o período médio do Império Bizantino, entre
os séculos sétimo e treze da Era Cristã. É o caso de uma cruz relicário (com data entre o séc. XIX e
o séc. XI) que retrata São Tomé e, ao mesmo tempo, apresenta Jesus como o Sol:

Fonte: Corbis-EL006260. Acesso em 26 de agosto de 2014. Autor: Elio Ciol.

As palavras no topo da imagem, escritas sem espaço entre si e mal divididas silabicamente,
são “O HAGIOS TOMAS” (“Tomas”: θO + ΜAς), que significa “O São Tomé”. No braço direito da
cruz (vista à esquerda, na imagem) provavelmente está escrito “IDOY O 'LIOS”, que quer dizer, (de
maneira simplificada) “Eis o Sol”, com a figura solar logo abaixo dessas palavras, com raios
brilhantes e cruzes no interior do círculo. No braço esquerdo (lado direito da imagem), aparentemente
está escrito “IDOY IC7 ΕΆΤH”, (“ἔατε”) que abreviadamente indica “Eis JC (Jesus Cristo), aquele
que é”, palavras sustentadas por um desenho que representa um arco iluminado. Tanto o desenho de
Sol quanto o arco iluminado (e seus dizeres) fazem menção a Jesus-Sol.
Para Tomé, Jesus era um companheiro amigo que prometeu retornar vindo do Oriente, de
onde nasce o sol. E ele foi ao seu encontro.
Para a Índia, Jesus é o lampejo que ilumina todas as coisas para que o cristão enxergue e
entenda melhor o mundo a cada alvorada, e Tomé é o seu exemplo.
Para os portugueses, cuja presença na Índia iniciou com Vasco da Gama, na primeira viagem
à Índia, e com Pedro Álvares Cabral, na segunda viagem, os quais aportaram em Calicute, próximo

7
IC, Iesus Cristos, ou "IS", simplesmente a abreviação de Jesus. Na peça: Iς, aparentemente, ou IC, presumivelmente.

239
ao local em que São Tomé teria desembarcado no ano 52 d.C., aquele cristianismo tomesino indiano
era completamente estranho e herético. A doutrina tomesina era tão “terrena” que, segundo os
portugueses, os cristãos indianos “erravam” ao dizerem que, para eles, cristãos indianos tomesinos,
nem Maria de Nazaré, nem São Pedro, nem São Tomé “nem outro algum sancto está nos ceos gozando
de Deos, senão no paraizo terral até o dia do juízo" (BRAGANÇA, 1984, p. 296).
Todas essas pistas, embora tenham suas fragilidades, nos dão pelo menos uma firme certeza:
a de que a biografia de São Tomé vive até hoje nos cristãos indianos tomesinos a demonstrar que a
proximidade de Tomé com o Cristo também pode estar com eles, diariamente.

Referências Bibliográficas
BRAGANÇA, J. O. O Sínodo de Dimper. Didaskalia - Revista da Faculdade de Teologia de
Lisboa, Lisboa, vol. 14, no1-2, pp. 247-476, 1984.
BUNCE, James W. The Liturgy of the Last Gospel. Expository Times, n. 126 (2015), p. 270–
280
CARSON, D.A. O Comentário de João. Trad.: Daniel de Oliveira e Vivian Nunes do Amaral.
São Paulo: Shedd Publicações, 2007.
ELLIOTT, J. K. The Apocryphal New Testament – A collection of apocryphal christian
literature in an english translation. Translation and notes by M. R. James. Oxford: Oxford Clarendon
Press, 1924.
PAGELS, E. H. Além de toda crença: o evangelho desconhecido de Tomé. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2004
VIELHAUER, Philipp. História da literatura cristã primitiva: introdução ao Novo
Testamento, aos Apócrifos e aos Pais da Igreja. Santo André: Academia Cristã, 2005.

240
A EXTENSÃO SEMÂNTICA DO CONCEITO DE SMṚTI (“MEMÓRIA”) NO
YOGASŪTRA E SUA INTERLOCUÇÃO COM OUTRAS TRADIÇÕES
SOTERIOLÓGICAS DA ÍNDIA

Daniel Faria Ribeiro1

Resumo
A proposta deste trabalho é analisar algumas das possibilidades de aplicação de sentido à palavra sânscrita smṛti
(“memória”), no contexto daquele que é considerado o primeiro grande texto sobre a disciplina contemplativa denominada
yoga – o Yogasūtra de Patañjali – e estabelecer sua relação, em linhas gerais, com o contexto mais amplo das tradições
soteriológicas indianas em seu período clássico, como o budismo e algumas das escolas de matriz védica. O trabalho
buscará matizar as possíveis conexões entre as noções de “memória” e de “percepção”, ou entre algum modo de
engajamento mnemônico e a própria dimensão sempre-presente de experiencialidade do Real (anubhava), e contribuindo
para realçar o diálogo entre diferentes contextos de práxis soteriológica na Índia.
Palavras-chave: Yoga; Patañjali; Budismo; Memória.

Introdução
A palavra sânscrita smṛti compreende uma variabilidade de aplicações semânticas no contexto
das referências hermenêuticas clássicas de diferentes tradições filosóficas indianas, podendo se referir
desde a uma classe de textos escritos compondo o sentido de continuidade de uma tradição, até a um
dos instrumentos cognitivos essenciais para a prática meditativa de contextos soteriológicos. Se o
modo mais recorrente de traduzir a palavra sânscrita para o português é pelo vocábulo memória, é
inegável que este conceito, no tocante às tradições praxiológicas que serão abordadas no presente
artigo – em especial o yoga – abarca uma extensão de significados que vai muito além do escopo
semântico usualmente aplicado em contextos ocidentais, referente, em linhas gerais, à operação
cognitiva de recordação de fatos passados. Segundo o dicionário de sânscrito de Monier-Williams
(1872), a raiz-verbal smṛ pode abranger:
os sentidos de recordar, rememorar, registrar por escrito, trazer à mente, fixar à mente,
pensar sobre, estar atento a algo, etc; por sua vez, o termo smṛti pode se referir à memória,
recordação, reminiscência, tradição, aquilo que é lembrado ou trazido à mente, etc.
(MONIER-WILLIAMS, 1872, p. 1153-54).

E como seria aplicada essas nuances de sentido do conceito de memória em termos de uma
soteriologia, isto é, no interior de uma pedagogia com eficácia transformadora e se pautando
teleologicamente pela resolução de uma demanda existencial última? Ainda que cada tradição
soteriológica da Índia detivesse princípios doutrinários e um contexto de práxis específicos, talvez
seja possível identificar alguns traços fundamentais compartilhados, em maior ou menor grau, pelas
diferentes escolas quanto à aplicação dos sentidos de memória. Decerto, o mais relevante desses
aspectos é o que diz respeito à correlação entre algum tipo de prática de aspecto mnemônico e a

1
Graduado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e Mestrando em Ciência da Religião pela
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Bolsista FAPEMIG. Contato: danielribeiro1710@gmail.com.

241
percepção na sua acepção mais ampla. Pois a memória também pode ser uma forma de engajamento
da percepção, cujo movimento dar-se-ia em uma “via de mão dupla”, ou seja, remeteria ao passado
(e não necessariamente o biográfico) para, deste modo, retomar “ressignificando” o momento
presente. Práticas de cunho mnemônico abrangeriam desde a memorização de textos, imagéticas e
ensinamentos, a atenção focada em um objeto de meditação, a “co-memoração” de um “passado” ou
qualidade ancestral, e até o reconhecimento de uma condição existencial originária sempre-presente,
e que coincidisse, por sua vez, com a própria reflexividade inerente à percepção do praticante (cf.
GYATSO, 1992, p. 5). Por outro lado, a memória também seria vista em termos daquilo que deve ser
“purificado”, ou seja, movimentos da consciência (vṛtti) que se “cristalizam” na forma de resíduos
kármicos e impressões psíquicas condicionantes.
Essa ambivalência própria em torno da aplicabilidade pedagógica do conceito de smṛti se
encontra presente naquele que é, muito provavelmente, um dos mais importantes tratados indianos de
meditação e de práxis soteriológica: o Yogasūtra, do sábio Patañjali. Embora a noção de memória
apareça nominalmente apenas em 6 dos 195 enunciados (sūtras) que compõem as quatro seções do
texto, alguns de seus significados supracitados informam, direta ou indiretamente, muitos dos
ensinamentos. Conquanto o arcabouço filosófico e doutrinário do Yogasūtra seja, de maneira
precípua, aquele da escola de pensamento dualista do Sāṃkhya2, o seu caráter “compilatório” pode
sugerir que a sua textualidade é tributária de um contexto praxiológico muito mais amplo; Dominik
Wujastyk (2018) destaca, por exemplo, que “alguns dos enunciados [do Yogasūtra] não podem ser
propriamente compreendidos sem se atentar para o contexto budista do pensamento filosófico indiano
no período em que eles foram compostos” (WUJASTYK, 2018, p. 42). Como será visto, alguns dos
enunciados do primeiro capítulo, em que o termo smṛti (“memória”) se faz presente, demonstram
claramente essa correlação. Além disso, argumentamos que a extensão semântica do conceito de
“memória” no Yogasūtra pode se referir a um contexto filosófico, de matriz védica, muito mais amplo.

O conceito de memória no primeiro capítulo do Yogasūtra e o diálogo com o budismo


A palavra sânscrita smṛti aparece em quatro enunciados (sūtras) do primeiro capítulo do
Yogasūtra, denominado samādhipāda, “a seção sobre imersão contemplativa”, onde são expostos os
objetivos gerais que definem o caminho soteriológico do yoga da escola de Patañjali. Devido à
limitação de espaço, trataremos somente dos dois primeiros. Porém, antes analisarmos os enunciados
em questão, convém situar, em linhas gerais, o conceito de memória no contexto mais amplo do
capítulo.

2
Sāṃkhya (“enumeração”) é um dos antigos sistemas de filosofia de matriz védica, cujo traço doutrinário basilar é a
concepção do universo permeado por dois níveis distintos da realidade, puruṣa (“consciência”) e prakṛti (“matéria”).
Desde os Upaniṣads, o Sāṃkhya tem sido correlacionado com o Yoga, ambos compondo dois aspectos-chave da práxis
soteriológica: razão discriminativa e disciplina espiritual, respectivamente.

242
Os primeiros enunciados definem o yoga tanto em termos de sua metodologia quanto em
relação ao estado final de seu encaminhamento: yoga citta vṛtti nirodhaḥ (YS 1.2), “yoga é [o
processo] de cessação [das identificações] com os movimentos da consciência”, seguido de tadā
draṣṭuḥ svarūpe'vasthānam (YS 1.3), “então ‘aquele que vê’ habita a sua natureza própria [de
percebedor]”.3 O conceito fundamental aqui é o de nirodha (“cessação”), que implicaria em não
menos do que na reversão teleológica de uma situação existencial, ou seja, trata-se de um processo
epistemológico de desconstrução não-propositiva de erros cognitivos sobre a realidade. Esses erros
cognitivos, por seu turno, ensejam uma cristalização de apegos e “identificações” (saṃyoga) em torno
de noções reificadas sobre o “eu” e o “meu”, o self e o mundo, impedindo o sujeito de habitar a sua
natureza própria (svarūpya) de percepção plena e, por conseguinte, a experiência das coisas tais como
genuinamente se manifestam.
Esse processo de reversão (nirodha) de uma condição existencial condicionada dar-se-ia por
meio de uma pluralidade de práticas de “imersão contemplativa” (samādhi), em que os movimentos
da consciência (cittavṛtti) se transformam em objeto de análise atenta por parte do adepto do yoga,
com base em um processo gradativo e constante de prática (abhyasa) que perpassaria diferentes níveis
de discriminação cognitiva (viveka). Dá-se, então, o apuro perceptivo do “encontro” (samāpatti) do
sujeito com as coisas em sua singularidade, destituída de apegos.
É importante salientar que o conceito de cittavṛitti - “movimentos da consciência” - ocupa
claramente o ponto nevrálgico de todo o encaminhamento soteriológico da disciplina do yoga, uma
vez que vem a se constituir ora como foco de identificações e apegos, ora como o suporte (ālambana)
do processo mesmo de discriminação e do conhecimento. Cabe ainda ressaltar que a noção de
movimento (vṛtti) neste contexto considera “toda a vida interior e toda a realidade exterior como um
continuum de movimentos de diferentes espécies” (GULMINI, 2002, p. 121).4
Patañjali classifica os movimentos da consciência em cinco grupos genéricos, dos quais o
último trata-se justamente de smṛti, “memória”:
YS 1.6 pramāṇa viparyarya vikalpa nidrā smṛtayaḥ
[Os movimentos da consciência são:] conhecimento válido, erro, imaginação, sono profundo
e memória.
YS 1.11 anubhūta viṣayāsaṃpramoṣaḥ smṛtiḥ

3
A tradução dos enunciados em sânscrito do Yogasūtra no presente trabalho tem como principal referência a hermenêutica
do Prof. Dr. Dilip Loundo sobre o mesmo texto, realizada durante a disciplina “Tradições Religiosas do Hinduísmo”
(2020), do programa de Mestrado em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.
4
De acordo com a filosofia do Sāṃkhya e do Yoga, o termo citta (“consciência”) corresponderia ao conjunto de
instrumentos internos (antaḥkaraṇa) que comporiam a psique humana: buddhi (intelecto), ahaṃkāra (sentido de
individuação) e manas (mente). Esta última, por seu turno, desdobra-se nas 5 faculdades sensoriais (indriya) de percepção
(olfato, paladar, visão, tato e audição) e outras 5 de ação (fala, captação, locomoção, excreção e gozo). Além disso, há a
categorização das 5 “sensações” (tanmātra) (cheiro, sabor, forma, tato, e som), e os 5 elementos (bhuta) (terra, água,
fogo, ar e espaço), formando assim todo o continuum de princípios reais (tattva) da existência.

243
Memória consiste no não-esquecimento dos elementos de cognição experienciados.
No “comentário” (bhāṣya) ao enunciado acima, Patañjali expõe que todo o processo de
experiência do sujeito, ao abarcar a totalidade dos elementos cognitivos envolvidos, em maior ou
menor grau, no contato do intelecto (buddhi) com os objetos de percepção – compreendendo, nesse
ínterim, os outros instrumentos de cognição, isto é, sentido de individuação, mente e órgãos sensoriais
– resulta na formação de “impressões latentes” (saṃskāras) a todo ato de cognição, produzindo, por
conseguinte, “memórias” relativas a ambos, isto é, os objetos percebidos e os instrumentos de
percepção. Essas impressões, por sua vez, “germinam” em condições apropriadas, condicionando, de
maneira determinante, a percepção e o comportamento do sujeito da experiência. Patañjali prossegue,
contudo, demarcando a relação intrínseca entre buddhi – o nível de intelecção mais sutil da psique do
indivíduo para “discriminar” a realidade – e o conceito de memória, com base, muito propriamente,
naquela mesma pedagogia soteriológica de reversão (nirodha) dos movimentos da consciência que
ocupa o cerne da disciplina do yoga: “inteligência [buddhi] é o fenômeno no qual o instrumento de
percepção precede o objeto; e memória é o fenômeno no qual o objeto percebido precede o
instrumento de percepção” (PATAÑJALI apud GULMINI, 2002, p. 154). Ora, se o intelecto é o
receptáculo de todas as impressões latentes, justamente pela sua preeminência em relação aos outros
fatores cognitivos (cf. nota 2), em contrapartida advém dele a própria práxis cognitiva mais refinada
da “rememoração”, (re)orientada agora para a própria inaticidade (svarūpa) da percepção.
Wujastyk (2018) ressalta a presença do termo asaṃpramoṣa no enunciado 1.11, o qual
estabelece a noção de memória como um movimento da consciência (vṛtti). Trata-se do vocábulo
saṃpramoṣa (da raiz verbal mṛs, “esquecer”) precedida do prefixo a (“não”), sendo assim traduzida
como “não-esquecimento”. Segundo o mesmo autor, o vocábulo é sobremodo recorrente em textos
budistas em sânscrito, muitos deles contemporâneos ao Yogasūtra.5 Destaca-se, por exemplo, o
Abhidharma-samuccaya (“Compêndio de Abhidharma”) de Asaṅga (c. séc IV), que também se utiliza
do vocábulo em questão para apresentar uma definição de memória que não só se assemelha ao
sentido dado por Patañjali, mas que também é imbuída, muito propriamente, daquele sentido de
atenção plena ou da rememoração que invocaria, por extensão, a própria experiencialidade
(anubhava) do momento presente: “O que é smṛti? É o não-esquecimento pela mente (cetas) quanto
ao objeto experienciado. Sua função é a não-distração” (ASAṄGA apud WUJASTYK, 2018, p. 31).
Um outro importante texto budista e certamente contemporâneo ao tratado de Patañjali, o
Visuddhimagga (“O Caminho da Purificação”), atribuído a Buddhaghosa, também se utiliza de
conceituações semelhantes para sua definição de smṛti, além de fazer referência à noção de upasthāna

5
Philipp Maas (2013) sugere a provável data do Yogasūtra situada entre os anos 325 e 425 d.C. (MAAS, 2013, p.66).

244
(“fundação”), como o ato deliberado de cultivo da atenção, possuindo implicações tanto puramente
cognitivas quanto éticas:
smṛti tem a função de não-esquecimento (asaṃpramoṣaḥ)… [e] manifesta-se como o estado
de encontro com um espaço sensorial (viṣaya)… Tal engajamento mnemônico deve ser
considerado como um pilar firmemente estabelecido (upasthāna), ou como um guardião que
vigia cada porta dos sentidos (BUDDHAGHOSA, 2010, p. 471).

A memória em outros textos fundacionais e uma interlocução com Patañjali


A amplitude do escopo semântico de vocábulo smṛti (“memória”) no Yogasūtra pode ser
matizada não apenas a partir de sua evidente interlocução com contextos budistas, mas também ao se
revelar tributária de uma perspectiva filosófica muito mais ampla que seria atinente a diferentes
tradições de pensamento da Índia. Como já assinalado desde o início do artigo, a noção de “memória”
em contextos indianos ultrapassa em muito a ideia mais habitual de “recordação de fatos passados”
de um ponto de vista meramente particular ou “biográfico”. Conforme Gerard Larson (1993), a
memória aqui teria uma dimensão inequivocamente “agregadora”, não somente a partir da noção mais
evidente de uma perspectiva sincrônica de participação “mnemônica” no interior de uma
comunidade, mas também na linha de pensamento de que uma experiência de vida presente é
“somente uma parte de uma trajetória coletiva que se estende a um passado imemorial”, podendo até
mesmo envolver um modo “inversamente” teleológico de engajamento mnemônico que demonstrasse
não apenas sua ligação com vidas pregressas, mas que se estenderia “aos limites da vida em si”
(LARSON, 1993, p. 380).
Konrad Klaus (1992), por sua vez, aponta para a existência de diferentes aplicações de sentido
da raiz verbal smṛ (“recordar”, “pensar sobre”, etc.), em diferentes gêneros de literatura védica em
sânscrito, desde o próprio Ṛg Veda. O autor argumenta, inclusive, que o sentido mais especializado
da palavra smṛti como “cognição ou atenção direcionada ao momento presente” não seria uma nova
conotação surgida em um momento mais tardio e a partir, especialmente, de contextos de práxis
budista, mas que já seria etimologicamente inerente ao vocábulo desde suas primeiras aplicações em
contextos védicos mais antigos (cf. KLAUS, 1992, p. 78).
É o caso, por exemplo, dos Upaniṣads, textos sagrados fundacionais para uma grande parte
das tradições filosóficas e religiosas da Índia. Um exemplo notável é a do Kena Upaniṣad, quando
faz uso do recurso linguístico da analogia (adeśa) para sugerir aquilo que não pode ser concebido
objetivamente, conquanto seja “reconhecido” através do insight que se revela assim como um flash
de relâmpago, ou no instante fugidio de um piscar de olhos. A memória nessa situação – aqui na
variação lexical upasmarati (com o prefixo upa atuando como um enfatizador da ação) – parece ser
a condição cognitiva fundacional que levaria à percepção e a experiencialidade inerentes (anubhava)
daquela dimensão mais imortal (e imediata) do Real (brahman), e se refletindo, entrementes, como a
dimensão existencial mais íntima (ātman) do ser humano:

245
Assim é a sua analogia (adeśaḥ): que se acende como um relâmpago -AH!- e aparece e some
como um piscar de olhos – isto relacionado à dimensão divina. E com relação ao corpo
(ātman): quando a mente parece captá-lo, e através dela a imaginação instantaneamente
rememora (upasmarati) algo. Isto tem como nome tadvana, e como tal deve ser reverenciado
como ‘o mais querido’. (Ken. Up. 4.4-6) (OLIVELLE, 1998, p. 371).

Um outro importante texto, o Chandogya Upaniṣad, descreve a condição do paśya, isto é,


daquele que vê (paś) as coisas corretamente, como aquela em que “a pureza (i.e. a dimensão inata e
imediata) do ser é constante memória; no cultivo da memória todas as amarras são desfeitas” (Ch.
Up. 7.26.2.) (OLIVELLE. 1998, p.273). Com efeito, os sábios védicos parecem sugerir que a
memória (smṛti) seria não somente um princípio cognitivo pertinente a todo encaminhamento
soteriológico, mas estaria presente na própria constituição de sentido último da existência.
Em artigo publicado no ano de 2012, Dominik Wujastyk expôs o relativamente pouco
conhecido sistema de yoga presente no Carakasaṃhitā (“o Compêndio de Caraka”), o mais antigo
tratado do sistema clássico de medicina indiana, o Ayurveda. Contudo, o que seria mais revelador
quanto à breve exposição sobre o caminho óctuplo (aṣṭāṅga) do yoga de Caraka, i.e., baseada em oito
disciplinas concatenadas, tal como o de Patañjali, relaciona-se com o fato de que o cerne de seu
encaminhamento soteriológico é ocupado justamente pelo conceito de smṛti. Segundo o autor, Caraka
compartilhava, em termos substanciais, da linguagem e conceituações características de contextos
budistas: o conceito em pauta também estaria imbuído de dois de seus sentidos principais, ou seja, o
de recordação e o de cultivo da cognição experiencial ao momento presente (cf. WUJASTYK, 2012,
p. 35). O enunciado máximo do yoga de Caraka, compondo tanto a sua metodologia quanto seu
significado último, seria tattvasmṛter upasthānāt, isto é, o “habitar a memória/percepção do real”
(WUJASTYK, 2012, p. 41).
Em outro momento, Caraka afirma que “o poder de rememorar o real, ou a verdade (tattva),
é o caminho de libertação… aqueles que o seguem não retornam jamais”. Tal assertiva seria
determinantemente propícia a um diálogo com Patañjali, quando o mesmo propõe, no enunciado 1.32
do Yogasūtra,6 a prática da disciplina (abhyasa) – sendo esta, vale notar, tão somente uma forma de
engajamento mnemônico – sobre “o real” (eka tattva), com o intuito precípuo de prevenir ou
neutralizar obstáculos e “distrações”, aqui na sua acepção mais ampla, ou seja, incluindo formas
errôneas de ver o mundo, e o consequente apego a essas formas.

Conclusão
Alguns dos estudos sobre o escopo semântico do vocábulo smṛti com os quais embasamos a
análise no presente artigo, como os de Klaus (1992) e Wujastyk (2012), enfatizam a aplicação do

6
YS 1.32.tat pratiṣedhārtham eka tattvābhyāsaḥ. “Com objetivo de prevenir (as distrações), pratique-se a
disciplina sobre o real”.

246
sentido de “mindfulness” - ou algum vocábulo correlato que saliente os sentidos de atenção ou
cognição plena – como uma possibilidade de tradução ou de compreensão mais eficiente e mais
próxima do sentido original, em oposição à ideia mais usual de “memória” como lembrança de fatos
passados. Porém, nossa intenção foi demonstrar um pouco do caráter complexo e multifacetado que
a palavra original – smṛti – carrega no seu sentido mesmo de atividade mnemônica e, desse modo,
pensamos que a própria ideia de “mindfulness” seria semanticamente redutora da complexidade de
tal conceito.
Portanto, considerando o Yogasūtra e suas possibilidades de diálogo com outros contextos
soteriológicos clássicos, a concepção de smṛti, em toda sua potencialidade semântica, sugere o
próprio engajamento mnemônico com o Real, e nesse sentido a memória seria como um “espelho”
cognitivo da pura experiencialidade (anubhava) de “ser”. Em outros termos, a memória se confunde
com o próprio processo de “cultivo” de um habitar e um “habituar-se” à verdade, um desvelamento
como caminho e sentido último singular tanto “àquele que percebe” quanto à singularidade do parecer
das coisas.

Referências Bibliográficas
BUDDHAGHOSA. Visuddhimagga. Buddhist Publication Society: Kandy, 2011.
GULMINI, Lilian Cristina. O Yogasūtra, de Patañjali. Tradução e análise da obra. Dissertação
(Mestrado em Linguística) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
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https://www.jstor.org/stable/24010809. Acesso em: 04 mai. 2021.
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West. Vol. 43, No. 3, pp. 373-388, jul. 1993. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/1399575.
Acesso em: 07 mai. 2021
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OLIVELLE, Patrick (ed.). The Early Upaniṣads. Annotated Text and Translation. Oxford:
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BAIER, Karl et al. (Eds.) Yoga in transformation: Historical and contemporary perspectives. Vienna:
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WUJASTYK, Dominik. The Path to Liberation through Yogic Mindfulness in Early
Ayurveda. In: WHITE, David G. (ed.). Yoga in Practice. Princeton: Princeton University Press, 2012,
p.31-42.

247
MÍSTICA E ESTADOS NÃO ORDINÁRIOS DE CONSCIÊNCIA NO
SAMĀDHI DO YOGA HINDU, E NA DANÇA DO SAMĀ’ SUFI:
RESULTADOS E PERSPECTIVAS

Ana Carolina Kerr Neppel Mariano1

Resumo
Essa comunicação é fruto de minha dissertação de mestrado, que teve como objeto de pesquisa o conceito de
samādhi no yoga hindu e a dança do samā’ em uma das dimensões místicas do Islã, o Sufismo. A partir disso, pretende-
se explanar os resultados e perspectivas obtidos durante o estudo comparado entre ambos os fenômenos místicos (samādhi
e samā’), identificando suas peculiaridades e aproximações no que diz respeito aos estados não ordinários de consciência
(êxtases, visões, iluminações e etc.). A pesquisa teve como método a análise bibliográfica de obras clássicas referentes à
estas correntes, privilegiando relatos em primeira pessoa de experiências místicas de mestres como Patañjali, no yoga-
sutra (com os comentários de Vivekananda), e o samādhi no Vaiṣṇavismo Gauḍīya com base nos escritos de Prabhupāda
e para pensar o sufismo, tomei como base o fundador da dança do samā, o poeta e místico persa Rūmī. A principal
contribuição desse trabalho ao respectivo grupo temático é o enriquecimento da literatura sobre esses assuntos, que ainda
são muito escassos em nossa área, e a relevância do mesmo se justifica ao passo que ambas tradições ainda se encontram
em posição de marginalidade em nossa sociedade, sendo o conhecimento acerca das mesmas uma das possíveis soluções
para uma postura de respeito e tolerância perante esses fenômenos religiosos. Para traçar essa linha de pensamento,
primeiramente haverá uma apresentação acerca da temática e, após, serão explanados os resultados e perspectivas obtidos
a partir da pesquisa.
Palavras-chave: Mística; Yoga; Samādhi; Sufismo; Samā'

Introdução
Minha dissertação de mestrado em Ciências da Religião ocorreu entre os anos de 2018-2020,
no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-Minas, local em que atualmente
curso o doutorado na mesma área, porém estudando correlatos fisiológicos e neurais da música
durante a experiência mística do Sufismo. Minha pesquisa partiu do problema: quais as semelhanças
e diferenças, no que diz respeito aos estados não ordinários de consciência, das experiências místicas
no samādhi hindu e no samā’ sufi?
Para responder a essa pergunta, utilizei o estudo comparado entre obras clássicas sobre os
temas, com o intuito de buscar relatos em primeira pessoa nas literaturas existentes que evidenciassem
ENOC – Estados não ordinários de consciência, sob a luz do método fenomenológico e da perspectiva
da Filosofia da Mente. A escolha pela Filosofia da Mente como suporte teórico-metodológico se deve
ao fato de a mesma ser centralizada na discussão sobre a consciência, e também por dialogar com
diversas áreas do saber (neurociência e psicologia por exemplo), o que acredito tornar mais fértil a
discussão e a pesquisa acerca dos estudos da mística das Ciências da Religião no cenário brasileiro.
A análise comparativa se deu à luz do método fenomenológico, ferramenta que possibilita a
apreensão científica de fenômenos místicos experimentados em primeira pessoa situados nas
bibliografias disponíveis, particularmente em estado de samādhi e na dança do samā’,

1
Doutoranda e mestra em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais sob incentivo da
CAPES. E-mail: anacarolinakerr@yahoo.com.br.

248
É necessário enfatizar que o estudo comparado não visa igualar tradições religiosas. Embora
saibamos que haja semelhanças entre ambos fenômenos (dos quais trataremos de expor a seguir),
aprendi com meu orientador prof. Dr. Carlos Frederico que é nas diferenças entre elas ou seja, nas
sutilezas presentes em cada expressão religiosa que as tornam únicas, local onde se encontra a riqueza
da pesquisa.

Estados não ordinários de consciência


Tendo em vista que o foco do estudo comparado são os estados não ordinários de consciência,
começarei elucidando do que o termo se trata. Tendo como sigla ENOC, esses estados podem também
ser entendidos como estados alterados de consciência - EAC, embora opte-se por não utilizar este
último, para não ser atribuída uma compreensão pejorativa, muitas vezes confundida como agente
resultante do uso de substâncias ilícitas e/ou fatores patológicos. Podem ser traduzidos como êxtases,
visões, transes e iluminações, fenômenos que são relatados desde os primórdios da humanidade, em
diversas culturas e tradições religiosas (cf. HOT, 2020, p.125).
É importante enfatizar que, durante muito tempo, esses estados não ordinários de consciência
foram vistos pela comunidade científica (em especial a psiquiatria) como distúrbios de ordem
patológica, porém não é essa postura que assumi durante minha dissertação, pelo contrário. Entende-
se que ENOC oriundos de fenômenos místicos são um elemento antropológico presente nas
manifestações místicas dessas tradições, enquanto dados enriquecedores para a vida espiritual do
praticante e de sua comunidade (cf. HOT, 2020, p.127).
Estudos da neurociência afirmam que tudo que perpassa a experiência do ser humano possui
correlação em seu cérebro, inclusive experiências religiosas. Embora seja possível apreender esses
impulsos neuronais durante essas vivências2, existe a consciência de que não é possível descrevê-las
qualitativamente em primeira pessoa e tampouco medir a extensão e profundidade de cada vivência
em sua totalidade. Porém, a partir dos relatos de pessoas que experienciam tais práticas, podemos
chegar a uma análise aproximada sobre estes fenômenos. A dificuldade no objeto de estudo em voga
na dissertação, está em transmitir através das palavras, por meio de uma estrutura lógico-racional e
científica, como esses estados modificados de consciência oriundos do fenômeno religioso da mística
ocorrem. Sendo assim, primeiro iremos abordar de modo resumido a diferenças encontradas, e após
as semelhanças.

2
Sobre neurociência e religião cf. Davison (2013), Kraft (2005) e Lazar (2005; 2011; 2012).

249
Diferenças
A mística se dá de modo divergente nas tradições do Hinduísmo e no Islã. O que podemos
considerar como regra no caso das tradições hindus, tendo em vista que segundo Velasco (2003) o
Hinduísmo é uma religião essencialmente mística, “[...] é verdade que a religião da Índia se
caracteriza por fazer da experiência mística a base da religião” (VELASCO, 2003, p. 132, tradução
nossa)3. Entretanto, o cenário é consideravelmente oposto no caso do Islã, tendo em vista que a
mística é uma exceção, considerada heresia por alguns grupos ortodoxos e sendo praticada
pontualmente em algumas vertentes muçulmanas, como por exemplo no Xiismo e o Sufismo 4 (cf.
HOT, 2020, p. 152).
No campo devocional, suas divergências são bastante perceptíveis, ao passo que o conjunto
de tradições que compõem o Hinduísmo apresenta crenças politeístas, monoteístas e também
henoteístas. Já o Islã se baseia no monoteísmo como fundamento de suas doutrinas:
Sendo as práticas de devoção distintas, as decorrências da fé certamente também se
distanciarão nesse sentido. No meio hindu a devoção assume um caráter abrangente, pois o
culto pode ser a um só Deus, mas também pode se estender a Deuses, Deusas, deidades e
mestres espirituais (que vem sendo retratados em milhares de imagens e símbolos). Porém
no Islã, a base do credo é em um único e possível Deus, em árabe Allāh. Sua Grandeza é
tamanha, que os muçulmanos creem ser impossível retratá-Lo de quaisquer maneiras, e sua
tentativa é considerada uma ação gravemente pecaminosa. (HOT, 2020, p.152).

Outra divergência importante de ser enfatizada como um resultado da pesquisa são as formas
de oração de ambos objetos de estudo. No Sufismo da ordem Mevlevi, temos o Salat e os Zikr. A
primeira se refere às cinco orações diárias prescritas a todo muçulmano, e o Zikr são formas de
recitação, seja de versículos do Corão, seja dos nomes de Deus, com o intuito de recordar/lembrar
Allāh em seus corações. Já em Rāja Yoga, temos níveis de concentração da mente em meditação,
principalmente nos estágios de pratyāhāra, dhārāna e dhyāna5. No Vaiṣṇavismo, podemos pensar no
canto do Mahā-Mantra6 preconizado por Caitanya Mahāprabu.
Nos aspectos relacionados com os estados não ordinários de consciência, as diferenças
presentes entre esses estados místicos podem ser pontuadas do seguinte modo:
Em relação às formas de êxtases relatadas, o samādhi é um estado de dissolução no Sagrado,
que de acordo com o fiel, se traduz em iluminação plena oriunda da disciplina profunda
exercida no yoga. Na ordem Mevlevi, o êxtase se situa na unidade estabelecida com Allāh,
relação essa que preserva uma distinção ontológica entre Deus e o dervixe, e se dá
principalmente por meio da dança do samā’ e na recitação dos Zikrs. (HOT, 2020, p. 153).

Por último, percebemos que as principais diferenças entre os estados não ordinários de
consciência são que,

3
[...] es verdad que la religión de la India se caracteriza por hacer de a experiência mística la verdadeira base de la
religión.
4
É importante enfatizar que o Sufismo não pode ser considerado uma corrente propriamente dita, mas sim uma expressão
mística muçulmana que pode ser encontrada tanto no Sunismo quanto no Xiismo.
5
Cf. Vivekananda (1967).
6
Mahā-mantra, em sânscrito महामन्र, é traduzido como o “Grande Mantra”, conhecido também por mantra “Hare Kṛṣṇa”.

250
[...] em Rāja Yoga no estado de samādhi, é manifestada uma consciência que eleva o yogui
a ter plena identificação com a Verdade Suprema, Bhraman. Isso o capacitaria a mirar
estágios transcendentes do real. Em Bhakti-Yoga, o ENOC situado em samādhi, está
centralizado em desfrutar toda a abrangência da vida através da Suprema Personalidade de
Deus, Kṛṣṇa. Isso ocasionaria além de uma ótica singular perante a realidade, também numa
íntima relação com Deus. (HOT, 2020, p. 153).

Acerca da ordem Mevlevi,


[...] o samā’ não pode ser considerado um estado da mente como samādhi, porque samā’ é
uma dança, uma prática religiosa que pode levar ao ENOC durante sua execução. Durante
esse rito, há um esforço por parte do dervixe para se concentrar profundamente em Allāh.
Essa concentração gera a unidade mística no ápice do giro. (HOT, 2020, p. 153).

A título de síntese dos resultados obtidos, vide quadro abaixo acerca das diferenças
concluídas no estudo comparado:
Quadro 1 – Diferenças
Dimensões Hinduísmo/Rāja Yoga e Bhakti-Yoga Islã/Sufismo
Mística Elemento essencial presente na religião. Elemento particular, presente em algumas
vertentes do Islã.

Devocional Henoteísmo/Politeísmo/Monoteísmo. Monoteísmo.

De forma geral, em deuses, deusas, deidades, Somente em Allāh, o único Deus. É considerado
Fé mestres espirituais que são representados e cultuados pecado qualquer forma de representá-lo.
por meio de imagens e símbolos.

Rāja Yoga: Yoga como prática individual, não Ordem Mevlevi: religiosidade com forte
Jornada necessariamente atrelada à vivência comunitária. vivência comunitária, na qual se insere rituais de
espiritual Bhakti-Yoga: Práticas devocionais individuais e devoção a Allāh, e práticas místicas como a
também coletivas. dança do samā’ e os Dikr. Pode-se pensar que
em ambas se passa por estágios espirituais, os
maqamat, no sufismo, ou hal, estados mais
passageiros.
Rāja Yoga: Principalmente nos níveis de Ordem Mevlevi: Dikrs, recitação dos Nomes de
concentração de Pratyāhāra e Dhārāna, e mais Allāh, e versículos do Alcorão e o Salat, a
Oração intensamente em Dhyāna, a meditação propriamente modalidade de oração de todo muçulmano, que
dita. é um dos cinco pilares do Islã.

Bhakti-Yoga: Meditação, cantos de mantras, em


especial o Mahā-Mantra.
Rāja Yoga: Samādhi: completa dissolução no Ordem Mevlevi: Relação íntima com Allāh, na
Sagrado. maioria das vezes estabelecendo uma distinção
Êxtase ontológica entre Deus e indivíduo.
Bhakti-Yoga: Principalmente por meio do canto e da Principalmente por meio da dança do samā’ e na
dança, gera consciência plena de Kṛṣṇa (samādhi). recitação dos dikrs.
Rāja Yoga: No estado de samādhi, há um momento Ordem Mevlevi: Durante a dança do samā’, o
de supraconsciência, no qual eleva o sujeito a ter fiel esforça-se para ter plena concentração em
plena identificação com o seu objeto contemplado, a Allāh, o que gera um estado modificado de
Verdade Suprema, Bhraman, o que torna o fiel capaz consciência que se manifesta na mística, na
de contemplar níveis superiores de percepção da relação do dervixe com Allāh no momento do
Estado não realidade. giro. Revelações de Deus (haqīqā), vivência de
ordinários Bhakti-Yoga: Capacidade de presenciar Kṛṣṇa em amor pleno, em níveis superiores de
de toda sua manifestação na realidade. Desfrutar a vida consciência.
consciência através de Kṛṣṇa, atingindo plena consciência e Nos Dikr, práticas de respiração, movimentos e
profunda intimidade com a Suprema Personalidade canto geram um estado modificado de
de Deus. consciência que culminam na mística, na relação
do indivíduo com Deus, de forma profunda.
Fonte: elaborado pela autora (cf. HOT, 2020, p. 148).

251
Semelhanças
Depois de exposta as diferenças encontradas durante a pesquisa comparada entre ambas
expressões místicas, exporemos agora de modo sucinto as semelhanças. Dentre elas, podemos listar
primeiramente o papel do idioma como elemento simbólico crucial para a constituição fundamental
do Hinduísmo (com o sânscrito) e no Islã (com o árabe). Além disso, a presença de livros sagrados
(Vedas no Hinduísmo e Corão no Islã, por exemplo), também são elementos comuns em ambas
manifestações religiosas.
A relação entre mestre e discípulo na jornada espiritual de ambas modalidades religiosas é
uma semelhança. Os processos iniciáticos das práticas de Yoga possuem como guia espiritual os
gurus, e no Sufismo o mestre enquanto referência de sabedoria são os sheiks, que lideram as
cerimônias nas Tariqas, locais de encontros das ordens sufis.
Elementos artísticos também atravessam a experiência mística de ambas tradições: música,
arquitetura, poesia e dança são elementos similares no percurso espiritual dessas. Similitudes nas
formas de oração e de canto se encontram nas recitações sufis, que podem ser cantadas e repetidas
várias vezes como forma de devoção, bem como no Hinduísmo, a utilização de mantras como forma
de oração e canto, são práticas frequentes (cf. HOT, 2020, p. 154). Na perspectiva sufi,
Durante o samā’, os místicos relatam atingir níveis de profunda intimidade com Deus, em
níveis modificados de consciência, muitas vezes denominados de êxtases, transes, visões em
que são tomados por uma alegria imensa, amor pleno, gratidão profunda. Sentimentos nos
quais descrevem trazem melhorias em todas as esferas de suas vidas, dotando-as de sentido.
(HOT, 2020, p. 155).

E no contexto hindu,
No mais alto estágio do yoga, o samādhi, no sistema óctuplo proposto por Patañjali, o yogui
vivencia a experiência de real compreensão da realidade que, em suma, é traduzida na busca
pela unidade mística. Essa vivência não se resume ao samādhi, mas ao contrário, é resultado
de um processo disciplinado, que depende do sucesso em todas as etapas. (HOT, 2020, p.
155).

Como forma de síntese, vide quadro abaixo:


Quadro 2 – Semelhanças
Dimensões Hinduísmo/Rāja Yoga e Bhakti-Yoga Islã/Sufismo
Idioma Sânscrito é um idioma sagrado para os hindus, que Árabe é uma língua sagrada, a língua escolhida por Deus
possui papel fundamental no Hinduísmo. para revelar o Corão.

Textos Os Vedas são a base da religião. Sânscrito foi o O Corão é a base da religião. É a palavra de Allāh
Sagrado idioma escolhido pelos Deus Brahma para revelar encarnada na terra, revelada por meio do profeta
para os sábios. Muḥammad.
Mística Rāja Yoga: União com o Absoluto; União com Allāh (tawhīd).
Bhakti-Yoga: União com Kṛṣṇa.
Relação Sucessão de mestres espirituais como via de Sucessão de mestres espirituais como via de autenticação
Mestre- autenticação da ordem. Relação de iniciação por da ordem. Relação de iniciação por meio do mestre, o
Discípulo meio do mestre, o guru, e o discípulo, paramparā. sheik e o discípulo, murid.
(Guru-paramparā)

Música Ferramenta fundamental presente nas práticas Mecanismo essencial que participa dos rituais místicos
místicas. do samā’.

252
Oração e canto através dos mantras, e As recitações, Dikr, cantadas ou faladas em formas de
Oração / especificamente em Bhakti, o canto do Mahā- oração, com o objetivo de trazer a lembrança de Allāh no
Canto Mantra como fonte de salvação e adoração a Kṛṣṇa. coração.

Dança No Vaiṣṇavismo Gauḍīya, a dança é uma prática Na ordem Mevlevi, a dança do samā’ é um ritual místico.
devocional a Kṛṣṇa.
Em Rāja Yoga e em exercícios de meditação, a Durante a recitação do Dikr e em momentos de
Práticas consciência da respiração é um exercício meditação, são recomendadas atividades de controle da
de importante; controle de prāna e exercícios de respiração para obter maior sucesso nos exercícios
Respiraçã prānāyama. espirituais.
o
Nível de concentração mental, exercício de controle Busca por uma unidade mística com Deus por meio do
das oscilações mentais, pensar em Deus, cessar as treinamento espiritual: concentração mental, meditação,
Meditação atividades mentais, silenciar a mente. Rāja Yoga: contemplação e compreensão.
pratyāhāra, depois um nível de concentração maior Atividade de concentração profunda da mente durante o
em dhārāna e a meditação plena em dhyāna. samā’.

Rāja Yoga e Bhakti-Yoga: estado de samādhi; Ordem Mevlevi: Principalmente por meio da dança do
Êxtase supraconsciência; visões; transes; iluminação; samā’ e na recitação dos dikrs. Visões; transes
êxtases; amor pleno. profundos; iluminação; revelações.

Fator presente em estado de samādhi em Rāja Yoga Fator presente durante o giro do samā’ na Ordem Sufi
e em Bhakti Yoga. Promovem ao sujeito a Mevlevi, e também nas recitações (Dikr) que levam ao
iluminação da Verdade revelada por Deus, ou o muçulmano ter experiências de revelação de Allāh em
Sagrado, traz amor pleno, sabedoria universal, seu coração, êxtases e transes que provocam
conhecimento real sobre as coisas e profundas transformações em suas vidas, sentimento de
Estado mudanças na percepção interna e externa do preenchimento, alegria, amor pleno, gratidão. A
não praticante. O Sagrado se desvela, em Bhakti como a realidade se torna dotada de sentido, Allāh é expresso no
ordinários Suprema Personalidade de Deus, Kṛṣṇa, na qual o interior do sufi de modo infinitamente amoroso e
de sujeito em ENOC presencia uma relação íntima profundamente íntimo.
consciênci com Ele. Em Patañjali, o ENOC também se situa na
a iluminação do divino, que se transforma em Gnose
Real.
Fonte: elaborado pela autora. (cf. HOT, 2020, p. 149).

Considerações finais
É interessante observar que em muitos aspectos do samā’ e do samādhi, é possível encontrar
em um mesmo quesito aspectos de semelhanças e diferenças.
Tendo em vista o exposto, acredita-se que esses objetos de estudo se referem ao nível mais
íntimo em uma jornada espiritual, onde o fiel e a Divindade estabelecem uma relação direta. Esses
níveis contribuem para a manutenção das identidades religiosas e uma maior compreensão do
fenômeno religioso. Entender de forma mais profunda a relação estabelecida entre os praticantes com
suas respectivas crenças nos permite compreender com mais clareza as múltiplas facetas do Sagrado.
Vários foram os desafios durante o processo da pesquisa, dentre eles destaco a escassez de
literatura sobre essa temática em língua portuguesa. Mas vários também foram os aprendizados pois,
para além dos resultados da pesquisa em si, que considero satisfatórios, pude perceber como é
necessário o conhecimento sobre ambas tradições religiosas, seja no Hinduísmo, onde suas práticas
– sobretudo a yoga e meditação, são muitas das vezes utilizadas de maneira pejorativa, seja no
preconceito sofrido contra os muçulmanos, que reduzem o fenômeno religioso do Islã a atitudes

253
radicais. E talvez, sejam essas as principais perspectivas que me atenho para o futuro: pensar em
modos de enriquecer nosso arcabouço literário sobre essas temáticas, bem como levar conhecimento
para a comunidade geral, a fim de desconstruir preconceitos e posturas intolerantes.

Referências Bibliográficas
DAVISON, Richard J. O Estilo Emocional do Cérebro. Rio de Janeiro: Sextante, 2013.
HOT, Ana Carolina K. N. Mística e estados não ordinários de consciencia: um estudo
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VIVEKANANDA, Swami. Rāja Yoga: o caminho real. Rio de Janeiro: Vedanta, 1967.

254
Coordenação
Luana de Almeida Telles
lulu_telles@hotmail.com

Túlio Fernandes Brum de Toledo


tuliotoledo@hotmail.com
Letícia Lamha

Ementa
Nos tempos atuais, o debate acerca dos impactos catastróficos da relação do ser humano com
a sua morada natural se mostra cada vez mais presente. Nessa atmosfera, as considerações sobre o
Antropoceno (e fora dele) que florescem nos campos do conhecimento convidam as pesquisadoras e
pesquisadores da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) e áreas afins, à apreciação crítica das interconexões
entre as variadas concepções religiosas e os modos humanos de habitar a terra. Nesses termos, o
presente grupo de trabalho propõe um espaço de ponderação a respeito da relação entre as diversas
cosmovisões das religiões/espiritualidades e o lugar/valor da natureza nesses multifacetados discursos
religiosos. A partir do panorama geral do CONACIR, centrado na questão da subalternidade e da
necessidade de aprofundamento do tema da decolonialidade no âmbito dos estudos sobre as religiões,
o GT visa, especialmente, trazer à baila: 1) reflexões que problematizem as compreensões das
cosmologias/mitologias/espiritualidades sobre a “natureza”; 2) reflexões que versem sobre a
sacralidade da natureza nas variadas religiões/espiritualidades/filosofias, e 3) discussões acerca da
domesticação da natureza perante o indivíduo da lógica mercadológica.
Palavras-chave: Cosmologias. Mitologias. Espiritualidades. Natureza.

255
AS NINFAS GREGAS – A ESPIRITUALIDADE NAS PAISAGENS
NATURAIS

Luana de Almeida Telles1


Aline Faria do Valle Ferreira de Castro2

Resumo
O presente trabalho atenta-se à compreensão da figura das ninfas no contexto da espiritualidade grega,
privilegiando o olhar acerca da relação dessas entidades com as paisagens naturais, mais especificamente com os
elementos que as compõem, como rios, fontes, árvores e montanhas. Em um primeiro momento, a determinação
conceitual de “ninfa” é abordada, já que essa palavra assume diversas acepções no contexto do idioma grego. No segundo,
busca compreender o sentido da estreita aproximação entre o sagrado e os ambientes naturais no imaginário dos helenos
na antiguidade, estabelecendo o papel das ninfas na determinação dessa visão de mundo de sacralidade da Natureza em
suas múltiplas expressões e dimensões. Nosso objetivo é, portanto, contribuir para os estudos no cenário brasileiro sobre
a religião dos gregos na antiguidade, que apresenta uma enorme carência nos estudos sobre a religiosidade pelas lentes
da Ciência da Religião. Busca-se também compreender mais sobre as ninfas esboçando sobre seus mitos, ritos e como os
gregos imaginavam essas delicadas criaturas nas suas imbricações com a Natureza.
Palavras-chave: Ninfas. Natureza. Religião Grega. Mitologia. Grupo Cárites.

Introdução
A figura das ninfas foi muito explorada no imaginário dos pintores clássicos e modernos
através de suas representações de jovens mulheres belas e delicadas. Das pinturas para o imaginário
social atual, o entendimento sobre essas criaturas é marcado por formas hipersexualizadas, em
palavras como ninfomaníaca ou ninfeta, sendo estudadas como divindades inferiores e de menor
importância nas tradições com as quais se relacionam. No entanto, no imaginário grego, as ninfas são
personagens que estavam presentes desde a Era dos Titãs, isto é, antes mesmo dos deuses olimpianos.
Na titanomaquia, as ninfas lutam ao lado de Zeus contra Cronos. Na Teogonia de Hesíodo no
momento em que Cronos corta o falo de seu pai, Urano, nascem junto com a própria deusa Afrodite,
as Erínias, os Gigantes rútilos e as “ninfas chamadas Freixos sobre a terra infinita” (v. 187). Tinham
ainda o dom de profetizar, de curar e de nutrir. Larson coloca que existem três temas relacionados
com os domínios das ninfas:
Três temas recorrentes aparecem na tradição das ninfas em todo o mundo grego: primeiro, as
ninfas estão presentes na paisagem; estão ligadas ao abastecimento de água e às atividades
rurais do pastor e do apicultor. Elas também estão associadas à aquisição de matérias-primas
da terra: madeira, pedra e minérios. Em segundo lugar, as ninfas têm a ver com ritos de
passagem e a dimensão social da nymphé como noiva, além da criação geral dos jovens.
Terceiro, como filhas e consortes dos rios locais, ou mães e esposas de heróis primordiais, as
ninfas são onipresentes nas narrativas de fundação e colonização, as histórias pelas quais as
comunidades gregas estabeleceram suas reivindicações e laços afetivos com a terra.
(LARSON, 2001, p. 63)

1
Mestranda em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora/PPCIR, membra do Grupo de Pesquisas
sobre Espiritualidade e Natureza (RENATURA) e do Grupo de Estudo em Espiritualidade Grega (Cárites), ambos do
PPCIR/UFJF. Email: lulu_telles@hotmail.com
2
Mestranda em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora/PPCIR, membra do Grupo de Pesquisas
sobre Espiritualidade e Natureza (RENATURA) e do Grupo de Estudo em Espiritualidade Grega (Cárites), ambos do
PPCIR/UFJF. Email: tabidatsunomichi@gmail.com

256
A breve análise das diversas acepções e significados que a palavra “ninfa” (grego: νύμφη –
“nýmphe”) assume em seu idioma de origem é necessária, em um primeiro momento, para que o
objeto de estudo do presente trabalho seja melhor especificado. O termo “ninfa”, em sua acepção
mais comum, tem o sentido de “noiva”, “mulher já apta ao casamento”, o Dicionário Etimológico de
Grego (2010, p. 1026.) aponta essa significação em primeiro lugar, indicando ser essa a mais usual.
J. Larson (2001, p. 3) aponta o uso da expressão “ninfa”, quando aplicada a uma mulher “mortal”
(humana, não-divina), como identificação de sua “aptidão para a sexualidade”, não importando tanto
a sua idade cronológica. Para ela, as oferendas encontradas dedicadas as ninfas (chamadas de pré-
nupciais) deixam claro sua relação com a transição das meninas para a vida adulta e para o casamento,
o nascimento e a criação dos jovens.
Buscamos, no entanto, destacar a acepção de ninfa como um tipo de divindade de menor
centralidade cultual do que aquelas que compõem o panteão grego. Esse é o segundo sentido da
palavra apresentado no Dicionário que, não obstante ter relação com os significados já apresentados
anteriormente, aqui denomina um tipo de entidade que está efetivamente presente na religião políade
e iniciática grega, e que era objeto de veneração por essa sociedade. A compreensão de ninfa como
um ser divino, que já não mais se confunde com mulheres mortais. Isso porque pretendemos
apresentar, a partir do estudo das ninfas em relação à paisagem e à mitologia, a importância do caráter
divino das mesmas, na visão dos gregos, para os ambientes com os quais elas estão ligadas, assim
como o papel que elas exercem na relação entre ser humano, paisagens naturais e a percepção do
sagrado como componente essencial dessas.
Para o presente trabalho, importam principalmente as distinções relacionadas à presença das
ninfas nos ambientes naturais e seu papel na determinação da visão de sacralidade que os mesmos
adquiriam. Em geral, a associação das ninfas com elementos das paisagens naturais, como aquelas
que contêm água (fontes e rios, principalmente), montanhas, árvores e jardins, caracterizam não
apenas a ninfa como uma entidade pertencente ao âmbito do divino, mas também a própria paisagem
como dotada de caráter sagrado, adquirindo, portanto, especial relevância e reverência por parte do
indivíduo piedoso na Grécia Antiga. Nesse sentido, as ninfas geralmente estão relacionadas com
ambientes que marcam ambiguidades entre o domínio do civilizado e do selvagem.

As Ninfas na Paisagem
A centralidade do mito, sua importância e significação para a sociedade grega da antiguidade
é evidente, não restando dúvidas de que essa se organizava e compreendia a si mesma a partir das
narrativas e visões de mundo mitológicas que compunham seu imaginário. Essas tradições, que
determinavam sua vivência e prática religiosas, eram, portanto, fundamentais para a relação do grego
com o mundo ao seu redor. É nesse sentido que as paisagens naturais, em suas diversificadas

257
manifestações e componentes, estão necessariamente incluídas nessa cosmovisão religiosa. Essa faz
com que o ser humano enxergue e compreenda esses ambientes não apenas em sua dimensão
estritamente instrumental, mas também e principalmente como expressões vivas e perceptíveis do
sagrado. No entanto, a forma como os gregos consideravam a paisagem é de complexa determinação.
De acordo com a historiadora da arte Ada Cohen, a paisagem como elemento independente,
ou seja, por si só apreciável, não se encontra destacadamente presente nas expressões artísticas visuais
gregas de nenhum período da antiguidade. Em pinturas, geralmente predomina a visão
antropocêntrica, que privilegia as formas e dimensões humanas, explicitando “suas narrativas e
situações” (COHEN, 2009, p. 306), enquanto que elementos naturais são complementos muito menos
centrais nessas obras, em geral se resumindo a formas de menor destaque nas mesmas. Também nos
textos literários as narrativas se voltam para os feitos e circunstâncias dos seres humanos, assim como
dos deuses, que comumente assumem características antropomórficas, sendo as obras atribuídas a
Homero a maior e mais conhecida expressão literária determinante no âmbito da sociedade grega
antiga. Assim diz a autora:
A literatura grega antiga demonstra maior preocupação com as ações e sentimentos humanos
do que com as descrições de paisagens naturais; quando descreve a natureza, a literatura pode
usá-la metaforicamente para atribuir valores humanos a ela. Personificação nos traz um
círculo completo de volta à característica mais proeminente da arte grega em todos os
períodos, seu antropocentrismo. É difícil superestimar a importância do corpo humano como
portador primário de identidade e significado narrativo. A paisagem mitológica grega era
fundamentalmente uma paisagem corporal (COHEN, 2009, p. 24).

Isso não significa que os ambientes naturais estão ausentes nessas narrativas. É possível
encontrar nas obras homéricas descrições de elementos que compõem paisagens naturais, como rios,
montanhas e colinas, bosques, árvores, ou o próprio mar. É constante, por exemplo, a descrição
marcante que o poeta faz do nascer do sol, em passagens como “logo que a Aurora, de dedos rosa,
surgiu matutina” (Il., canto I, 2015, p. 54), evidenciando o aspecto divino desse fenômeno da
paisagem. Quando, no canto XX de Ilíada, Zeus convoca um conselho geral de todos os deuses e
divindades, narra Homero: “Não faltou rio nenhum, se excetuarmos, apenas, o Oceano, nem mesmo
as ninfas graciosas, que moram nos bosques floridos, pelas nascentes dos rios e prados virentes e
ervosos” (Il., 2015, p. 295). Os rios claramente seriam, portanto, elementos naturais que adquirem
viés sagrado, pois, além de se estabelecerem no ambiente como parte integrante e fundamental deste,
são também divindades que efetivamente frequentam as moradas dos deuses e tomam lugar na
assembleia dos mesmos.
Pode-se dizer que a contemplação da paisagem natural para os gregos se dá, então, com a
apreensão e compreensão da mesma não apenas em sua dimensão instrumental, mas também a partir
de suas belezas e singularidades, que estão em profunda associação com o caráter estético de
sacralidade dos elementos que a constitui, e que nela habitam. Em conformidade com Cohen, afirma
Larson que “em culturas de tradição politeísta, a apreciação estética da natureza é inseparável da

258
percepção do sagrado na paisagem” (in Ogden, 2007, p. 58). Assim, mesmo a beleza de determinado
ambiente, conforme menciona Larson citando Motte, é um elemento que corrobora e, ao mesmo
tempo, expressa essa sacralidade (ibid., p. 58), pois não apenas aponta para a presença de entidades
divinas, mas também se relaciona com a própria beleza desses mesmos seres.
Aqui esbarramos em uma questão de cunho essencial: a questão da Natureza e da
espiritualidade grega. J. Larson chama nossa atenção para diversos pontos dessa relação, na Ilíada,
por exemplo, poderíamos encontrar a noção de que “o mundo natural é inumano e, portanto, sem
piedade e compaixão” (LARSON, 2007, p.57). Outro ponto, são os locais de veneração a céu aberto,
aqueles santuários construídos nos locais mais remotos nas zonas mais rurais.
No entanto, os deuses estão presentes na paisagem antes mesmo de um altar ser construído;
a construção de um altar ou santuário é concebida como uma resposta à santidade preexistente
de um lugar (Cole 2004: 37-8). Como os gregos determinaram quais lugares eram sagrados?
Frequentemente, os lugares sagrados eram os mais bonitos (LARSON, 2007, p.57).

Que nos remete novamente para a relação entre a apreciação estética e o sagrado. Larson
confirma denominando as ninfas como “verdadeiras divindades da natureza, no sentido de que elas
personificavam características específicas na paisagem ou nos fenômenos do ambiente” (LARSON,
2001, p. 152), enquanto os outros deuses gregos estão “somente” conectados com algum fenômeno
natural – Zeus não personifica o raio apesar de estar intimamente entrelaçado a ele.
Já as ninfas são estreitamente associadas aos ambientes em que vivem, que são descritos pelo
poeta a partir de sua intenção de caracterizar e detalhar as circunstâncias relativas a essas divindades,
quais sejam, o necessário entrelaçamento a essas paisagens. Essas são ligadas à concepção de ninfa
como uma criatura sagrada que as habita, se tornando, portanto, indissociáveis da própria existência
de suas habitantes. E as ninfas, por sua vez, são da mesma forma vislumbradas em profunda e
essencial associação com os ambientes com os quais interagem, e para os quais oferecem beleza e
encanto, em uma relação de mutualidade que favorece a concepção de sacralidade de ambos. Afinal,
conforme aponta Cohen, “a interrelação do mito, como é conhecido por nós por meio de diversas
fontes textuais, com a paisagem emerge como uma questão-chave para se compreender o alcance do
imaginário mitológico grego” (2009, p. 310).
O caso dessas divindades é particularmente ilustrativo dessa associação profunda entre o
sagrado e as paisagens naturais no imaginário dos gregos antigos. Os elementos da paisagem
normalmente atrelados a essas entidades, como montanhas e fontes, rios, bosques e árvores
consideradas individualmente, além de jardins, estão geralmente atreladas a reverência ante o divino
por parte do grego da antiguidade, que reconheciam sua dimensão sagrada, assim como sua
associação com essas divindades específicas. Um bom exemplo é a menção de Sócrates às ninfas no
diálogo Fedro, quando ele e seu interlocutor buscam um local propício para que se dê o diálogo.
Um pouco além, em seu texto já mencionado, Platão atesta a compreensão de Sócrates do

259
local em que se encontra como um ambiente em que, de fato, eles se encontram na presença do
sagrado que, inclusive, pode até influenciar no andamento do diálogo: "Então fique quieto e ouça.
Há algo realmente divino sobre este lugar, portanto não fique surpreso se eu for tomado pela mania
das ninfas na medida em que prossigo com o discurso" (Phdr., 1997, p. 518). É evidente, portanto, a
percepção dos personagens platônicos acerca da dimensão divina do ambiente em que se encontram,
e como esse os afeta, tanto por sua beleza e pelo prazer e conforto que geram, quanto pela influência
concreta que entidades divinas podem exercer em seres humanos, conforme acreditavam os gregos.
No caso, em relação à “mania”, ou “loucura”, das ninfas, Sócrates quer se referir à “ninfolepsia”, ou
seja, um estado de inspiração por essas criaturas em que o ser humano teria um aumento em sua
capacidade de percepção e de expressão, alcançando certa habilidade adivinhatória.
Para os gregos, os jardins das ninfas eram lugares agradáveis que marcavam as fronteiras entre
o selvagem indomado e o campo agrário cuidadosamente cultivado, eram reconhecidos como a
morada dos deuses e, por isso, tinham sempre altares e oferendas. Eram lugares maravilhosos
compostos por árvores, vinhas, plantas herbáceas e fontes de água (LARSON, 2007, p. 59). Mas aqui
há uma questão a ser levada em consideração, pois o jardim das ninfas mitológicas se organiza
espontaneamente para sua residente, como os jardins exuberantes de Calipso na Odisséia (5,63-74,
7,114-32). Já os jardins realizados pelos ninfoleptos são criados e utilitários. E ainda, o critério usado
para analisar o jardim é o ponto de vista humano, o que agrada ao homem agradaria, também, aos
deuses.
O jardim divino não representa a natureza selvagem domesticada pela ação humana; expressa
o ideal de um mundo natural que permanece indomado, mas que se conforma aos padrões
antropocêntricos de segurança, conforto e prazer: um mundo da era de ouro. (...) Em certo
sentido, o ninfolepto se esforça para se aproximar do ideal literário do jardim da ninfa
(LARSON, 2007, p. 61).

Conforme Larson, em certa medida, as ninfas seriam habitantes de ambientes selvagens,


intocados por mãos humanas, “a natureza percebida como o ‘outro’” (in Ogden, 2007, p. 58), “O
epíteto de Homero para as ninfas que dançam com Artêmis (Odisseia 6.105-8) é agronomoi,
‘morando em lugares selvagens’” (LARSON, 2007, p. 58), como o que está além do alcance dos seres
humanos. No entanto, como destacamos acima, a construção dos jardins das ninfas se devia
essencialmente pela construção de seus ninfoleptos, somente o jardim das ninfas mitológicas foram
cultivados sem intervenção humana. A própria descrição realizada por Sócrates, exposta
anteriormente, seria um ambiente de jardim dedicado às ninfas, um “locus amoenus”, como o chama
Larson, que convida ao descanso e à reflexão, e pode até mesmo gerar pequenas epifanias a partir do
contato com essas divindades. Geralmente, se há qualquer participação humana na criação desses
ambientes, ela deve ser mínima, deixando clara a predominância do selvagem e do sagrado que ali
reside.

260
A ninfolepsia era uma das formas de adoração das ninfas, mas não era a mais comum entre os
gregos. Era muito comum os gregos deixarem presentes nas cavernas das ninfas, como foram
encontradas arqueologicamente na caverna de Saftulis objetos de bronze como vasos e joias; e,
também prestavam homenagem a altares e fontes nas cidades como aponta na Odisséia (17.205–11).
Existiam também cavernas de adivinhação como era o caso da caverna em Delfos dedicada às ninfas
e a Pan, “a caverna também era um centro de adivinhação, com astragaloi ou ‘knucklebones’ de
ovelhas e cabras, que eram lançadas como dados. Essa forma de adivinhação foi associada a Hermes,
cuja relação com as ninfas corienses é mencionada no Hino homérico (4) a Hermes (552–65)”
(LARSON, 2007, p. 61).

As Ninfas na Mitologia
Os cultos dedicados as ninfas eram majoritariamente locais, permeando-se principalmente
entre as populações rurais e não elitistas, embora não se confinasse a esses grupos. Eram adoradas de
forma coletiva, ou individual, mas na maioria dos mitos as ninfas se apresentam em trios. Estavam
quase sempre na companhia de outras divindades, principalmente aquelas ligadas aos campos, ao
pastoreio, e as que “se deliciavam com a música, o passatempo do pastor solitário” (LARSON, 2001,
p. 26), como Pan, Hermes e Apolo; e também aos rios, especialmente Acheloös. No folclore dos
pastores, as ninfas possuíam o poder de multiplicar os rebanhos de quem as favorecessem,
especialmente os mortais que eles tomaram como amantes” (LARSON, 2001, p.). A Odisseia
(14.434-6) retrata o cenário em que um pastor separa parte de seu alimento, flores e frutas para
oferecer a Hermes e as ninfas. Larson diz que esse tipo de oferenda às ninfas é bem atestado nas
fontes escritas, no entanto são arqueologicamente invisíveis. Nos mitos, apareciam como
companheiras de Dioniso, Artêmis e Afrodite.
As ninfas, espíritos de lagos, montanhas, árvores e, acima de todos as nascentes, eram
onipresentes no mundo grego antigo (...). Muito como descrito em Homero (Od. 13.102-12,
349-51; 17.205-11), elas eram adoradas em santuários de nascentes simples ao ar livre e em
cavernas formadas pela ação da água. Muitas vezes consideradas as primeiras habitantes da
terra e citadas como ancestrais divinos, ajudaram a definir a identidade da mesma forma que
os rios, e estavam igualmente preocupados com o bem-estar dos jovens. (LARSON, 2001, p.
153)

Em geral, estavam associadas aos locais onde animais pastoreavam e também a ambientes
relacionados à caça, “as atividades de pastoreio, apicultura, corte de árvores, caça e até extração
podem cair sob sua alçada por causa de seus laços espaciais e conceituais com os oros (montanhas,
colinas). Homero os chama de orestiades numphai, e mais tarde ouvimos falar de oressigonoi
numphai (ninfas nascidas nas montanhas) e oréades” (LARSON, 2001, p. 9). As colinas, ou as
montanhas, assim como os bosques com sua vegetação predominante de árvores, são paisagens
naturais de habitação das ninfas. Nas passagens mencionadas, e bastante visivelmente na fala de
Sócrates, portanto, são apontados diversos elementos naturais usualmente associados à presença e

261
atuação das ninfas, como fontes, árvores e colina, sendo o próprio local aquilo que se compreende
como “jardim” dedicado a essas entidades, conforme o filósofo mesmo considera.

Conclusão
Ao longo do texto, perpassamos por aqueles três temas destacados por Larson no início: (1)
as ninfas inseridas na paisagem, conectadas com o pastoreio, com o campo e com os ambientes
naturais; (2) associadas aos ritos de passagem sociais dos jovens para o casamento e a vida adulta; e,
(3) a genealogia poético mitológica das ninfas. É oportuno concluir apontando que Larson destaca
que, nos épicos atribuídos a Homero, uma das fontes literárias mais antigas para o estudo dos deuses
gregos, as ninfas já possuíam a maioria de seus aspectos característicos. No entanto, duas questões
chamam atenção: nesses textos o termo náiade é usado generalizadamente para todas as ninfas, e
todas essas são filhas de Zeus. Se analisarmos as obras de Hesíodo, por outro lado, encontramos
outras versões da origem dessas divindades:
Terra primeiro pariu igual a si mesma Céu constelado, para cercá-la toda ao redor e ser aos
Deuses venturosos sede irresvalável sempre. Pariu altas Montanhas, belos abrigos das Deusas
ninfas que moram nas montanhas frondosas. (Teogonia, TORRANO (trad.), 2003, pp. 90-1)

Além disso, Larson também chama a atenção para a questão de gênero e a relação entre as
ninfas e os deuses e as deusas. Com os deuses, as ninfas são imaginadas em termos de relacionamento
familiar como suas amantes, cuidadoras ou filhas. Já com as divindades femininas, elas se apresentam
como ajudantes e compartilham certas funções com as deusas que acompanham, estando ambas
associadas aos estágios do ciclo de vida da mulher grega. Concluímos que, as ninfas são como
divindades femininas que marcam a fronteira entre o ambiente agrícola, porém, em alguma medida
já civilizado, e o selvagem indomado. Gozam de um certo caráter divino, apesar de não serem
imortais, e apresentam menos rituais e cultos comparados aos deuses do panteão. São identificadas
com nascentes, fontes, cavernas, árvores, montanhas e outros elementos naturais das regiões em que
habitavam, diferenciando-as em muitos grupos. Podem ser consideradas divindades da natureza no
sentido de personificarem fenômenos e características específicas na paisagem natural.

Referências Bibliográficas
BEEKS, Robert. Etymological Dictionary of Greek. Boston. Ed. Brill. 2010.
COHEN, Ada. Chapter 10: Mythic Landscapes of Greece. In: The Cambridge Companion to
Greek Mythology; org. Roger D. Woodard. Cambridge University Press, 2009. P. 305-330.
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Greece. In: Classical Antiquity, Vol. 7, No. 2 (Oct., 1988), p. 155-189. Disponível em:
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EVELYN-WHITE, Hugh G. (tradutor). Hesiod, The Homeric Hymns and Homerica. Londres.
Harvard University Press. 1982.
HARD, Robin. The Routledge Handbook of Greek Mythology. Nova Iorque. Routledge. 2004.

262
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LARSON, Jennifer. Greek Nymphs: Myth, Cult, Lore. Nova Iorque: Oxford University Press,
2001.
PLATO. Complete Works. COOPER. John M. (editor e introduções). Indianapolis. Ed.
Hackett Publishing Company. 1997.
PLATO. The Republic of Plato – Volume 1: Books I-V. JAMES, Adam (editor). Nova Iorque.
Cambridge University Press. 2009.

263
CAMINHANDO COM A NATUREZA

Túlio Toledo1

Resumo
Toda jornada começa com um primeiro passo. Vagamos na busca por magníficas paisagens externas (meio
ambiente) e nos esquecemos de que não somos diferentes dessas mesmas paisagens (Natureza como ontologia do Ser).
Nosso agir deveria se misturar naturalmente com o canto dos pássaros que voam livremente, mas, nossa voz vai perdendo
intensidade quando submetida às rédeas curtas e severas das paredes de cimento cinza da extrema razão, com suas grades
impostas nas janelas que impedem até a passagem do mais singelo assobio. Quem fissura a estrutura hierarquizante
vertical da árvore de pedra da polis, para adentrar na coletividade transversal orgânica das raízes do manguezal? A
liberdade do caminhante está cada vez mais sofrendo limitações, a Natureza que pertencia apenas a ela mesma, hoje se
encontra como propriedade do Senhor alguém. Vivemos numa era de extrema urgência de reflexão perante nosso
relacionamento com o mundo natural, e com isso, conosco mesmos. Assim se define esta proposta, uma jornada pelas
obras de Henri Thoreau, rumo a uma possibilidade de revisitação de um estado selvagem que fora há muito tempo
domesticado pelo Ser do antropoceno.
Palavras-chave: Natureza. Ontologia. Domesticação. Reorientação. Liberdade.

Toda jornada começa com um primeiro passo. Vagamos na busca por magníficas paisagens
externas (meio ambiente) e esquecemos que não somos diferentes dessas mesmas paisagens
(Natureza como ontologia do Ser). Nosso agir, o devir humano, deveria se misturar naturalmente com
o canto dos pássaros que voam livremente, mas, nossas vozes heterogêneas vão perdendo intensidade
quando submetidas às rédeas curtas e severas das paredes de cimento da extrema razão, com suas
grades impostas nas janelas da percepção que impedem até a passagem do mais singelo assobio.
Quem fissura a estrutura hierarquizante vertical da árvore de pedra do antropoceno para adentrar na
coletividade transversal orgânica das raízes do manguezal? A liberdade do caminhante está cada vez
mais sofrendo limitações, a Natureza que pertencia apenas a ela mesma, hoje se encontra como
propriedade do Senhor alguém. Vivemos numa era de extrema urgência de reflexão perante nosso
relacionamento com o mundo natural, e com isso, conosco mesmos. Assim se define esta proposta,
uma caminhada pela obra de Henri Thoreau e outros autores imersos na Natureza, como Krenak,
Kopenawa e Viveiros de Castro, juntos por uma jornada pela poesia da intimidade rumo a uma
possibilidade de revisitação de um estado ontológico selvagem.
Podemos fazer mil experiências simples com nossas vidas; por exemplo, o mesmo sol que
amadurece meus pés de feijão ilumina ao mesmo tempo um sistema de planetas como o
nosso. Se eu tivesse me lembrado disso, teria evitado alguns erros. Não foi sob esta luz que
carpi os feijões. Quão maravilhosos os triângulos cujos ápices são estrelas! Quão distantes e
diferentes os seres nas várias mansões do universo que contemplam a mesma estrela neste
mesmo momento! A natureza e a vida humana são tão variadas quanto nossas várias
constituições (THOREAU, 2010, p. 15).

O devir e a poesia da Natureza são uma coisa só. É com essa afirmação que se inicia esse
ensaio. A estruturação do Ser enquanto uma identidade individualizada ocorreu através de um
processo histórico e linear, assim como o processo de afastamento entre humanidade e Natureza. “O

1
Licenciado e Bacharel em Ciência da Religião – UFJF. Mestrando em Ciência da Religião UFJF. E-mail:
tuliotoledo@hotmail.com

264
devir é uma participação ‘antinatural’ entre o homem e a natureza; ele é um movimento instantâneo
de captura, simbiose, conexão transversal entre heterogêneos. O Devir é o outro lado do espelho, o
avesso de uma identidade” (VIVEIROS DE CASTRO, 2018, p. 186). O Ser enquanto movimento de
imanência pertenceria à fluidez de um lago, ele se assemelharia a pulsação de uma floresta em dias
de ventania, mas, cada vez que vai se estabelecendo e se limitando ao invólucro isolado de uma
identidade, acaba por domesticar sua própria essência natural, ou como diria Pierre Hadot, “essa
involucração, esse velamento da Natureza é um movimento descendente para uma corporeidade cada
vez mais material” (2006, p. 80). O Ser que se estabelece no topo da cadeia existencial vai
acrescentando camadas hierárquicas em sua própria estrutura ontológica, e assim, a corporeidade vai
se tornando cada vez mais densa, mais individualizada.
Henri Thoreau se permitiu enxergar e ser enxergado pelo exuberante lago Walden, em
Concord. A leve fluidez das águas do lago possuiria o potencial de dissolução, ou desconstrução, de
toda centralidade que habita a estrutura do Ser do antropoceno. Perceber o limite da identidade seria
possibilitar sua própria reorientação2. Quanto mais Thoreau contemplava as margens de Walden mais
ele percebia que as margens - e aqui faço uma analogia com as margens do pensamento – também
possuem ontologicamente a Natureza em sua essência. Margens e centro se confundem no encontro
calmo das águas. “Um lago é o olho da terra, fitando dentro dele, o observador mede a profundidade
de sua própria natureza. As árvores fluviais perto da margem são os finos cílios que a franjeiam”
(THOREAU, 2010, p. 142). A Natureza sempre está diante de nossos olhos, sem véus, sempre
exercitando um constante movimento de convite para um diferenciado encontro relacional.
O Walden é um espelho perfeito da floresta, rodeado por pedras que, a meus olhos, eram tão
mais preciosas como se fossem gemas ainda mais raras. Talvez não exista na face da Terra
nada tão límpido, tão puro e, ao mesmo tempo, tão vasto quanto um lago. Água celeste.
Dispensa cercas. Nações passam, conspurcando-o. É um espelho que a pedra não quebra,
cujo mercúrio nunca se gasta, cujo dourado a Natureza restaura continuamente; nenhuma
chuva, nenhuma poeira pode empanar sua superfície sempre fresca – espelho de onde some
toda impureza, varrida e espanada pela escova enevoada do sol (THOREAU, 2010, p. 144).

A Natureza em sua totalidade se apresenta como um reflexo do movimento da vida, do fluxo


vital, ela seria como um espelho que refletiria a própria imanência natural do Ser. Na interdependência
coletiva da floresta não existe espaço para identidades isoladas. No movimento incessante da mata se
dissolveria toda individuação.
O Lago Walden é um grande cristal na superfície da Terra. Se estivesse perpetuamente
congelado, e fosse de tamanho que desse para apanhá-lo, decerto seria transportado por
escravos, como pedras preciosas, para adornar a cabeça de imperadores; mas, sendo líquido
e vasto, para sempre assegurado a nós e a nossos descendentes, mas pouca importância lhe
damos e apenas corremos atrás do diamante. São eles tão mais belos do que nossa vida, tão
mais transparentes do que nosso caráter! As aves com suas plumagens e melodias estão em

2
“Um retorno à bondade realizado diariamente no hálito tranquilo e benéfico da manhã faz com que, em respeito ao amor
à vida e o ódio ao vício, a pessoa se aproxime um pouco da natureza primitiva do homem, como os brotos da floresta que
foi derrubada” (THOREAU, 2010, p. 235).

265
harmonia com as flores, mas qual o rapaz ou a moça que está em consonância com a beleza
agreste e luxuriante da Natureza? (THOREAU, 2010, p. 152).

O Ser do antropoceno foi domesticando esse organismo de que é parte - a interdependência selvagem
da Natureza - e passou a assumir uma postura dicotômica e de soberania em relação ao mundo natural:
a humanidade em primeiro lugar e depois a Terra. Este desvio ontológico na percepção foi se
intensificando e se agravando ao passo que nariz, olhos, ouvidos, paladar e tato passaram a se
identificar cada vez mais com o mundo das coisas e das objetalidades. Com os sentidos domesticados3
pela mercantilização do mundo natural, o Ser do antropoceno se esquece de que “tudo é natureza. O
cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza” (KRENAK, 2019, p. 16), ou para
Kopenawa que diz, “transbordante de vida, a Terra é um Ser que tem coração e respira 4” (2015, p.
16). Trata-se aqui de refletir e descontruir a oposição entre Ente centralizado e Natureza, de
estabelecer um “regime ontológico comandado por uma diferença intensiva fluente, que incide sobre
cada ponto de um contínuo heterogêneo, onde a transformação é anterior ao ser” (VIVEIROS DE
CASTRO, 2018, p. 58). Antes da Era do antropoceno a Natureza já brilhava petulantemente.
Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, nós
liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista. Do
nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos
deixando órfãos (KRENAK, 2019, p. 49).

“A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória,
é absurda” (KRENAK, 2019, p. 22), pois a interdependência5 existencial com a Natureza é um axioma
sem origem, uma certeza sensível sem centralidade. O antropoceno determina à Natureza o status de
paisagem ou mesmo de mercadoria e vai marcando em ritmo acelerado a fumaça do maquinário
responsável pela depredação de sua própria morada. “Falam-me para imaginar outro mundo possível,
é no sentido de reordenamento das relações e dos espaços, de novos entendimentos sobre como
podemos nos relacionar com aquilo que se admite ser a natureza” (KRENAK, 2019, p. 67). É muito
questionador observar a ganância e a determinação em se conquistar novos planetas e astros, como a
lua, marte, todos se apresentando como novos e magnânimos objetivos de conquista do antropoceno,
mas ainda resta a pergunta: e o cuidado com a Terra, que é sua própria condição de vida?
Temos de aprender a redespertar e nos manter despertos, não por meios mecânicos, mas por
uma infinita expectativa da aurora, que não nos abandona nem mesmo em nosso sono mais
profundo. Desconheço fato mais estimulante do que a inquestionável capacidade do homem
de elevar sua vida por um esforço consciente. Já é uma grande coisa ser capaz de pintar um
quadro ou esculpir uma estátua, e assim dar beleza a alguns objetos; mas muito mais glorioso
é esculpir e pintar o próprio meio e atmosfera que nosso olhar atravessa, o que podemos fazer
moralmente. Afetar a qualidade do dia, tal é a arte suprema. (THOREAU, 2010, p. 72).

3
“Concentrando a mente, deixando o pensamento recrear-se no infinito, penetra-se com sutileza no mistério da Natureza.
O eu e as coisas são esquecidos. Abandona-se o corpo e recusa-se a objetalidade" (HADOT, 2006, p. 248).
4
Os povos originários tratam a existência como uma floresta fecunda (hutukara e urihi a), um ambiente natural, sua casa.
5
“Devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão de formas, incluindo cada pedaço de nós, que somos parte de
tudo” (KRENAK, 2019, p. 69).

266
Habitar o logocentrismo já seria assumir uma condição de ruptura ontológica, e assim como
Derrida se predispôs ao processo de auto fissura de uma origem identitária rígida e centralizada,
Thoreau também o fez, a sua maneira, uma desconstrução de si-mesmo para uma imersão na
totalidade da sensibilidade da Natureza. Neste não-lugar, animalidade, Natureza e humanidade não
pertenceriam a uma estrutura hierarquizada. O humano não mais seria o detentor da soberania
existencial isolada e passaria a se reconhecer como um Entre rizomático que estaria em plena
interligação com as outras camadas existenciais naturais. Pensar a relacionalidade do Ser seria
interrogar a idealização da soberania humana e os limites estabelecidos entre humanidade e o mundo
da intimidade agreste. Refletir sobre o afastamento histórico de uma pertença adormecida perante a
Natureza é também repensar a posição e o papel da humanidade em sua própria prática de sentido.
E imaginei que é por uma razão parecida que os homens permanecem em sua atual condição
baixa e primitiva; mas, se sentissem a prima e vera influência da primavera despertando-os
da dormência, forçosamente se alçariam a uma vida mais elevada e mais etérea. Os homens
dizem que muito sabem; Vejam só, até asas lhes cabem – Artes e ciências, e mil aparências;
E o vento que arrefece, é só o que o corpo conhece (THOREAU, 2010, p. 37).

Pensar a Natureza enquanto totalidade da qual fazemos parte seria exercitar um movimento
de libertação do mundo natural que se encontra refém de um sistema econômico e utilitarista. A
Natureza deixaria de ser vista como um mero subsistema auxiliar e reassumiria seu lugar enquanto
agente vital e condição da existência humana. Reconhecer a imanência selvagem não-dual do Ser é
permitir que a própria humanidade se reoriente enquanto humanidade, é possibilitar uma
reorganização de nosso ser e agir no mundo.
Ao observar a reflexão mito poética de Henry David Thoreau (1817-1862)6 sobre a jornada
de reorientação de seu próprio olhar perante sua pertença diante à imanência da Natureza, percebe-se
uma busca constante por um reencontro e philia com a selvageria nativa que fora sobrepujada da
ontologia do Ser. O pensamento Thoreauviano pulsa uma reflexão constante sobre a relação do Ser
perante a Physis, a Natureza. O ato de repensar o relacionamento humano com o mundo natural,
apresenta-se como uma reflexão urgente, que não pode mais ser colocada na gaveta da burocracia e
do sistema mercadológico e deixada para se resolver “depois”, mesmo porque, o “depois” foi
convocado para o presente. Esta reflexão possui também importantes desdobramentos nas práticas de
sentido e assim, abre o pensamento para a possibilidade de reorientação das estruturas
epistemológicas e científicas. Thoreau buscava exaltar a relação intrínseca entre a consciência e a
Natureza, e estimulava o repensar da atuação do antropoceno no mundo natural. Para Clodomir
Andrade7, o projeto Thoreauviano seria “libertário enquanto práxis política (ambiental global,
socioeconômica e ideológica) e libertador enquanto experiência metanóica (mudança essencial de
pensamento) radical de unicidade com o mundo natural”.

6
Nasceu em Concord, Massachusetts, na costa leste dos Estados Unidos.
7
Ensaio: Thoreau: por um pensamento selvagem, de Clodomir Andrade.

267
Thoreau dizia que não pretendia “escrever uma ode à melancolia, e sim trombetear
vigorosamente como um galo ao amanhecer, no alto de seu poleiro, quando menos para despertar
seus vizinhos” (2010, p. 09), e isso, seria sim, uma ode à Natureza aliado a uma convocação para se
pensar o relacionamento e as práticas da era geológica dos humanos.
Então, se de fato queremos restaurar a humanidade com meios realmente nativos, botânicos,
magnéticos ou naturais, sejamos primeiro simples e saudáveis como a Natureza, dissipemos
as nuvens que nos pesam na fronte, instilemos um pouco de vida em nossos poros
(THOREAU, 2010, p. 63).

Thoreau mereceria o título de filósofo da imanência que abriu seus sentidos para uma profunda
relação com o lago, com a mata, e, portanto, consigo mesmo. Para Clodomir, esse processo de
revisitação de uma pertença natural ao mundo selvagem, em Thoreau, assumiria o formato de uma
“pedagogia do despertar”, onde, os sentidos não mais domesticados e centralizados estariam livres
para uma práxis reorientada. Limpar a névoa que paira sobre a percepção do antropoceno seria um
ato existencial em prol de todo vida na Terra. “As mais finas qualidades de nossa natureza, como a
pele aveludada dos frutos, só podem ser preservadas com o mais delicado manuseio. E, no entanto
não usamos desses cuidados, nem conosco, nem com os outros” (THOREAU, 2010, p. 12).
Observando a revolução industrial de perto, Thoreau já apontava para os riscos da extrema
externalização do indivíduo e do mundo das coisas, que cada vez mais ganhava impulso. “Vestimos
camadas e mais camadas de roupa, nossas roupas exteriores, amiúde finas e elegantes, que não fazem
parte de nossa vida e podem ser removidas aqui e ali sem maiores danos” (THOREAU, 2010, p. 25).
O Ser quando caminha em direção ao ápice de sua própria individuação, mais e mais, vai
condicionando e moldando as características de suas moradas, interna e externa. A domesticação do
selvagem desenrola-se no encarceramento de nossa própria liberdade ontológica. Resgatar essa
intimidade natural seria possibilitar a idealização de um oikos diferenciado, seria estabelecer uma
nova relação com a morada Terra e toda sua complexidade e diversidade de manifestações. “Da
caverna passamos para os tetos de folhas de palmeira, de casca e galhos, de palha, até as pedras e
telhas. No final, não sabemos o que é viver ao ar livre, e nossa vida é mais doméstica do que
pensamos” (THOREAU, 2010, p. 28).
Quero dizer uma palavra em favor da Natureza, da liberdade absoluta e do estado selvagem,
em contraste com uma liberdade e uma cultura meramente civis — tomando o homem como
um habitante, uma parte, um quinhão da Natureza, mais do que como um membro da
sociedade (THOREAU, 2010, p. 28).

A própria ideia de morada - a Terra - foi sendo enclausurada e transformada de acordo com a
vontade do antropoceno que a modificava em aparatos de sua própria instrumentalização do
pensamento. A morada imanente e coletiva da Terra foi se metamorfoseando forçosamente em
moradias individuais e transcendentes, externas. Repensar o habitar do Ser é garantir que as nascentes
possam continuar jorrando sua imensidão de águas e que nós, os humanos, possamos estar aqui

268
sempre para poder continuar assistindo esse espetáculo natural. Thoreau dizia, “enquanto desfruto a
amizade das estações, sinto que nada conseguirá fazer da vida um fardo para mim” (2010, p. 101).
“Não era uma simples repetição do que valia a pena repetir das badaladas do sino, mas, em
parte, era a voz da própria mata; as mesmas notas e palavras triviais cantadas por uma ninfa dos
bosques” (THOREAU, 2010, p. 96). Thoreau apontava para a necessidade de abrir os sentidos para
intimidade agreste para que assim o próprio pensamento pudesse ser reorientado 8. Assim teríamos
um sistema de linguagem que não mais trataria a Natureza como objeto, mas sim, como potência que
possibilitaria a própria linguagem. A floresta assumiria sua legítima correspondência com o
movimento fluido da imanência que não possui centro, e que estaria geneticamente entrelaçado com
o DNA humano. A ontologia humana possui raízes, galhos e ruge. “Qual é o tipo de espaço que separa
um homem de seus semelhantes e o faz solitário?” (THOREAU, 2010, p. 103). Esse espaço seria esse
vazio ontológico de Natureza?
É a integração e o aprofundamento relacional perante o mundo natural que Thoreau se propôs
a despertar e a cativar, tanto em si mesmo, quanto em sua proposta pedagógica e filosófica. “Só
quando nos perdemos, em outras palavras, só quando perdemos o mundo, é que começamos a nos
encontrar, entendemos onde estamos e compreendemos a infinita extensão de nossas relações”
(THOREAU, 2010, p. 131).
O que é o homem, senão uma massa de barro descongelado? A polpa do dedo humano não é
senão uma gota congelada. Os dedos das mãos e dos pés são extensões que se escoam da
massa em degelo do corpo. Quem sabe o que o corpo humano expandiria e deixaria fluir sob
um céu mais propício? Não é a mão uma folha de palma que se abre com seus lobos e veias?
A terra não é um mero fragmento de história morta, estrato sobre estrato como as folhas de
um livro, e sim poesia viva como as folhas de uma árvore, que precedem as flores e os frutos,
não uma terra fóssil, mas uma terra viva (THOREAU, 2010, p. 230).

“Alguns não caminham nem um pouco; outros caminham nas estradas; só uns poucos
atravessam terrenos” (THOREAU, 2012, p. 30). Quem abandona a “segurança” do contrato social
para se aventurar em si mesmo em terras pantanosas? Porque não exercitar a caminhada ao ar livre
nu e liberto das amarras civilizacionais? Na frase de Thoreau, “Caminho para dentro de uma natureza,
uma que não é diferente de mim, mas que fora totalmente diferenciada” (2012, p. 30). Thoreau com
seus passos selvagens sempre deixou evidente a necessidade da revisão de nosso relacionamento com
o mundo natural. Romper com a ideia de uma Natureza domesticada e mecanizada seria o primeiro
passo da urgente caminhada que se faz necessária nesta presente era geológica dos humanos.
Estabelecer uma nova relação com o caminhar (devir) é garantir a possibilidade que ainda existam
infinitos caminhares e caminhantes. A Natureza é condição de existência de todos nós.
Confio que havemos de ser mais imaginativos, que nossos pensamentos serão mais claros,
frescos e etéreos, como nosso céu; nosso entendimento, mais amplo e abrangente, como
nossas planícies; nosso intelecto em geral atingirá uma escala maior, como nossos trovões e

8
“Quão vasta e profunda é a influência dos poderes sutis do Céu e da Terra! Tentamos percebê-los, e não os vemos;
tentamos ouvi-los, e não os ouvimos” (THOREAU, 2010, p. 104).

269
raios, nossos rios, montanhas e florestas; e nossos corações haverão de corresponder em
profundidade, largura e esplendor aos nossos grandes lagos (THOREAU, 2012, p. 33).

Caminhar é descontruir, é ultrapassar fronteiras estabelecidas pelo próprio pensamento. “Seria


um poeta aquele que conseguisse imprimir em seu trabalho os ventos e os rios, fazer com que falassem
por ele; aquele que cravasse as palavras em seus sentidos primitivos” (THOREAU, 2010, p. 37). A
cada passo vai se deixando para trás vícios de um pensamento colonial. Preconceitos sociais,
culturais, de gênero, étnicos, religiosos, exploração e depredação do mundo natural são como
sandálias que protegeram os pés dos colonizadores de gente, da Terra e do conhecimento. Quem está
pronto para abandonar as sandálias e colocar os pés no barro? Onde está o pensamento que dá
expressão à Natureza?

Referências
HADOT, Pierre. O Véu de Ísis. Edições Loyola, São Paulo, 2006.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami;
Tradução: Beatriz Perrone. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 1ª ed, São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.
THOREAU, Henry David. Walden. Tradução: Denise Bottmann. Porto Alegre, RS: L&PM,
v. 884, 2010.
THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Tradução: José Geraldo Couto, Penguin,
Compania das letras, 2012.
VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas Canibais. São Paulo: Ubu Editora, 2018.

270
“ACREDITO NA FLORESTA E NA CAMPINA, E NA NOITE, DURANTE A
QUAL O MILHO CRESCE”: RELIGIÃO E NATUREZA NA FILOSOFIA DE
HENRY DAVID THOREAU

Letícia Ferreira Lamha1

Resumo
Henry David Thoreau (1817–1862), filósofo, poeta e naturalista de Concord, Massachusetts, tem sido cada vez
mais aclamado como uma das figuras originárias do ambientalismo/ecocriticismo na América. O pensador norte-
americano ambientou suas reflexões em seu contato com as concepções filosóficas e teológicas do Transcendentalismo,
caracterizado por seus veios dialogais em sua aproximação das religiões e pela percepção do sagrado na natureza, traços
fulcrais na constituição da obra thoreauviana. A partir desse panorama, busco, em um primeiro momento, explicitar, de
forma panorâmica, algumas das conexões presentes entre os escritos de Thoreau e as perspectivas transcendentalistas em
sua abordagem das diversas tradições religiosas e em sua apreensão da sacralidade no meio natural. Em seguida, apresento
um esboço acerca da noção thoreauviana de “Natureza” e suas imbricações com a própria religiosidade do autor.
Palavras-chave: Thoreau. Religião. Natureza.

Henry David Thoreau (1817–1862) tem sido cada vez mais aclamado como uma das figuras
originárias do ambientalismo/ecocriticismo na América. Nascido em Concord, Massachusetts, no
início do século XIX, o filósofo norte-americano vivenciou a aurora da Revolução Industrial na Nova
Inglaterra, tempo ambientado em um fervoroso otimismo em relação ao futuro. Neste cenário, onde
o otimismo se atrelava também ao sistema desumanizador escravagista e à devastação ambiental,
Thoreau pode antever as consequências dramáticas de nossa relação desnaturalizada com a Natureza
e suas manifestações vitais.
Por outro lado, inserido em um contexto de grande efervescência cultural, o intelectual norte-
americano se apropriou de uma pluralidade de cosmovisões, e seu olhar sobre si mesmo reflete a
polifonia expressa em seu pensamento: ele dizia ser um místico, um transcendentalista e um filósofo
natural (THOREAU, 1906d, p. 4). Pincelada com tonalidades variadas, a obra thoreauviana é
estruturada a partir de suas inclinações multifacetadas e multidisciplinares, transitando entre a história
e a filosofia natural, as discussões abolicionistas, e o estudo de sendas espirituais diversas (como as
cosmovisões dos indígenas norte-americanos, as tradições sapienciais greco-romanas e orientais, e a
mitologia escandinava). Elo umbilical das reflexões thoreauvianas é a relação de comunhão espiritual
que o poeta-filósofo-naturalista cultiva com aquela que ele denomina Natureza Selvagem, a “uivante
mãe de todos nós”, que se espalha “à nossa volta, com tanta beleza, tanto afeto por seus filhos como
a mãe leopardo” (THOREAU, 2012a, p. 113). Em um tempo revelador da premente necessidade de
ampliação das discussões concernentes às repercussões negativas do Antropoceno para a totalidade

1
Bacharela em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestranda em Ciência da Religião e
graduanda em Filosofia na mesma instituição. E-mail: leticialamha@live.com.

271
da natureza, o chamado de Thoreau parece se dirigir, justamente, em apelo para nós, habitantes da
Terra no século XXI.

O contexto Transcendentalista
Ralph Waldo Emerson (1803–1882), expoente do movimento Transcendentalista de Boston,
foi mentor e amigo de Thoreau, e a diversidade de interesses que emergem nos textos thoreauvianos
está intimamente entrelaçada às concepções filosóficas e teológicas dos transcendentalistas. O
princípio hermenêutico emersoniano de “one mind”, por exemplo, pressuposto de uma mente comum
intrínseca a todos os humanos — oriundo, em boa medida, do diálogo emersoniano com a
compreensão do filósofo alemão Johann Gottfried von Herder (1744–1803) quanto à possibilidade
de modelação de uma nova mitologia poética do tempo presente —, ecoou profundamente no
pensamento de Thoreau e em sua tentativa sincrética de traçar, na contemporaneidade do espaço-
tempo de Concord, um diálogo orgânico com as tradições soteriológicas ancestrais (DAVIS, 2017, p.
56; RICHARDSON, 1986, p. 43). Nesse sentido, o “esforço de Thoreau foi superar, como um leitor
situado, a distância entre o eu e o outro, e visualizar uma identidade humana única, de modo que as
obras do passado profundo e de culturas distantes fizessem parte da própria herança humana de uma
pessoa, parte de uma única conversa global em curso”2 (DAVIS, 2017, p. 57).
As heranças transcendentalistas do estudo comparado das tradições espirituais, do chamado
“romântico” para a construção de uma mitologia consonante com o espírito da época, e, mais
amplamente, da compreensão valorativa da multidisciplinaridade (com ênfase nos estudos dos
clássicos e mitologias antigas, das literaturas poéticas modernas, e das investigações da filosofia
natural), são traços de nascença da formação intelectual de Thoreau. O “Transcendental Club”, desde
sua formação inicial, foi fortemente marcado pelo encontro de variadas correntes de pensamento, bem
como pelo distanciamento (compartilhado com os unitaristas) da radical separação, sustentada pelos
dogmas calvinistas, entre Deus, a natureza, e o ser humano. Nos termos de Joel Myerson, estudioso
do círculo Transcendentalista norte-americano, os pensadores “transcendentalistas eram
essencialmente sincréticos, tomando emprestado de várias filosofias, literaturas e religiões tudo
aquilo que consideravam apropriado para suas crenças em desenvolvimento, e forjando esses
empréstimos em um novo sistema”3 (MYERSON, 2000, p. xxv). Sobre as nuances policromáticas
que modelaram o Transcendentalismo, Arthur Versluis nos lembra que, em seu ensaio A Participant’s
Definition (1852), William Henry Channing mostrou algumas das tradições sapienciais que

2
No original: “Thoreau’s effort was to overcome, as a situated reader, the distance between self and other and to envision
a single human identity, so that works of the deep past and from distant cultures would be part of one’s own human
inheritance, part of a single, ongoing, global conversation”.
3
No original: “The Transcendentalists were essentially syncretic, borrowing from various philosophies, literatures, and
religions whatever they felt was appropriate to their developing beliefs, and forging these borrowings into a new system”.

272
influenciaram essa insurreição filosófica e teológica: “Em parte, [o Transcendentalismo] foi uma
reação contra a Ortodoxia Puritana; em parte, um efeito do reavivamento do estudo dos antigos ou
panteístas orientais, de Platão e dos alexandrinos, das Morais de Plutarco, Sêneca e Epicteto; em
parte, o produto natural do lugar e do tempo”4 (VERSLUIS, 1993, p. 6). No que concerne ao diálogo
com o pensamento contemporâneo, o Transcendentalismo de Boston incorporou os pilares basilares
do amplo movimento “romântico”: a percepção do sagrado na natureza, a relevância da interioridade,
e a contraposição às instituições estabelecidas (PACKER, 2010, p. 85), além do já mencionado
retorno às mitologias ancestrais do Oriente e do Ocidente.
Interessa-nos aqui observar que a incorporação de Thoreau de variadas tradições espirituais,
seu apreço pela ideia de um traço universal humano que se manifesta na diversidade das cosmovisões
religiosas/filosóficas, bem como sua crença na sacralidade da natureza (unida ao estudo da
história/filosofia natural), se inserem em um quadro que reflete os traços dialógicos fundamentais dos
pensadores norte-americanos identificados como “transcendentalistas” — pertença que, como
indicamos inicialmente, foi declarada pelo próprio Thoreau. Fazendo ecoar, a seu próprio modo, o
princípio hermenêutico emersoniano de “one mind”, Thoreau pinta a aura do filósofo com as nuances
de distintas tradições religiosas, uma vez que, a seu ver, todas elas comungam entre si um tronco
comum. “Para o filósofo”, pondera ele, “todas as seitas, todas as nações, são semelhantes. Eu gosto
de Brahma, de Hare, de Buda, do Grande Espírito, assim como de Deus”5 (THOREAU, 1906c, p. 4).
No que concerne à sua própria crença, afinada com as escalas musicais de diferentes composições,
Thoreau reformula o credo trinitário à sua própria face, e, em sua paródia naturalista, assim manifesta
a paisagem de sua fé: “Acredito na floresta e na campina, e na noite, durante a qual o milho cresce”
(THOREAU, 2012a, p. 101).

Em busca da Terra Santa


Transitando, na esfera do pensamento, entre as sendas variadas das divindades e mitologias
ancestrais, Thoreau movimenta suas perspectivas também em sua própria fisicalidade. A caminhada,
para utilizarmos os termos de Pierre Hadot, aparece nas reflexões thoreauvianas como um “exercício
espiritual”, um fertilizante para o enraizamento e a ramificação do solo no qual se desenvolve a
dimensão soteriológica de seu pensamento. Unida à observação do serpentear dos rios que atravessam
as terras da Nova Inglaterra e à atenção integral ao ver e ouvir o comportamento e as virtudes dos
animais, plantas e fenômenos elementais entre o céu e a terra ao longo das estações, a prática espiritual

4
No original: “In part, it was a reaction against Puritan Orthodoxy; in part, an effect of renewed study of the ancients or
Oriental Pantheists, of Plato and the Alexandrians, of Plutarch’s Morals, Seneca and Epictetus; in part, the natural product
of the place and time”.
5
No original: “To the philosopher all sects, all nations, are alike. I like Brahma, Hari, Buddha, the Great Spirit, as well
as God”.

273
de caminhar por entre as veredas da vida, na plena presença junto à morada natural, é a rota do
intercurso religioso no qual se lança o pensador de Massachusetts.
Em Walking (1862), Thoreau identifica a “arte de caminhar” com uma jornada religiosa,
excursão que tem seu motor em uma inclinação da interioridade humana para percorrer os passos da
rota sagrada: “cada caminhada é uma espécie de cruzada, proclamada por algum Pedro o Eremita
dentro de nós, para reconquistar esta Terra Santa das mãos dos infiéis” (THOREAU, 2012a, p. 82).
Neste ensaio, em uma inspiração peripatética, o pensador norte-americano vislumbra a perambulação
(sauntering6) em sua condição de percurso orgânico que compõe a busca do conhecimento de si
mesmo. “Em minhas caminhadas”, aponta H. D. Thoreau, “gosto de voltar a mim. De que vale ir até
o bosque se eu ficar pensando em algo que não está no bosque?” (THOREAU, 2012a, p. 87).
O movimento de refletir sobre a nossa própria consciência, como nos sugere o autor, se
harmoniza com o passo de nossos pés e o compasso do bailado que dá vida à dança de nosso olhar.
Sob essa ótica, a natureza que sustenta nosso caminhar e nos confere a visão e o ritmo é a única capaz
de nos apontar o percurso rumo aos mistérios da própria existência humana, incorporados e cantados
nas poesias e religiões da humanidade. Nesta busca existencial, mítico-poética, Thoreau almeja
atravessar a ponte paradoxal que reúne particularidade e universalidade: “Caminho para dentro de
uma natureza semelhante àquela onde penetravam os velhos profetas e poetas, Manu, Moisés,
Homero, Chaucer” (THOREAU, 2012a, p. 89). Nesses termos, o pensador de Concord compreende
que os mistérios divinos gestados pela Natureza são revelados continuamente àqueles que se tornam
capazes de vivenciar a atemporalidade mitológica, penetrada por Manu, Moisés, Homero, e tantos
outros. Em suas caminhadas, Thoreau comunga com aquela sacralidade natural que, como ele parece
apontar, somente pode florescer dentro de nós quando, como as sementes, nos dispersamos na terra e
resgatamos o contato com nosso solo hagiográfico, e somos nutridos por cada detalhe dos fenômenos
naturais. “Ao sol e ao canto dos galos”, escreve ele, “sinto uma santidade ilimitada, que me faz
bendizer a Deus e a mim mesmo. O sol quente lança seu dom incessante aos meus pés enquanto
caminho, desdobrando seus mundos amarelos”7 (THOREAU, 1906b, p. 202). “Assim peregrinamos
rumo à Terra Santa, até que um dia o sol brilhe com mais intensidade do que nunca”, proclama o
andarilho de Concord em Walking, “até que ele brilhe talvez dentro de nossas mentes e corações,
iluminando nossas vidas inteiras com uma grande luz que desperta os sentidos, tão tépida, serena e
dourada como a que banha uma margem de rio no outono” (THOREAU, 2012a, p. 123). A caminhada

6
Palavra que “deriva lindamente ‘das pessoas ociosas que vagavam pelo interior, na Idade Média, e pediam esmolas a
pretexto de se dirigirem à la Sainte Terre’, à Terra Santa, até que as crianças começaram a exclamar: ‘Lá vai um Sainte-
Terrer’, um saunterer” (THOREAU, 2012a, p. 81).
7
No original: “In the sunshine and the crowing of cocks I feel an illimitable holiness, which makes me bless God and
myself. The warm sun casts his incessant gift at my feet as I walk along, unfolding his yellow worlds”.

274
rumo à Terra Santa mostra-se, assim, simultaneamente em sua faceta corpórea, de contato físico com
o calor e o vigor da natureza, e em sua faceta espiritual, da promessa de iluminação, de despertar.

Miscelânias da Natureza Selvagem


Qual é, afinal, essa Natureza que revela para Thoreau as profecias e poesias de toda a
humanidade? Em uma entrada de seu diário datada de cerca de dois anos após a morte de Thoreau,
Emerson, em uma estranha homenagem ao amigo, escreveu: “Henry lançou seu tom muito baixo em
seu amor pela natureza, — não nas estrelas e sóis . . . mas em tartarugas, grilos, ratos almiscarados,
ventosas, sapos e rãs. Era impossível ir mais baixo”8 (PORTE, 2004, p. 10). Ainda assim, esse “tom
muito baixo em seu amor pela natureza” evidenciava que “sua posição era na Natureza, e assim
[Thoreau] comandou todos os seus milagres e infinitudes”9 (PORTE, 2004, p. 205). Como podemos
induzir a partir desse relato, ainda que a proximidade entre a vida e a obra de ambos os pensadores
seja inegável, há pontos cruciais de divergência em suas respectivas compreensões sobre a natureza.
Em Nature (1836), ensaio que tornou-se conhecido como o manifesto fundante do
Transcendentalismo, Emerson, ecoando o idealista alemão Johann Gottlieb Fichte e a tradição
metafísica ocidental em geral, inicia seu discurso apontando para a distinção entre o “eu” (a alma) e
a “natureza”: “tudo aquilo que é separado de nós, tudo aquilo que a Filosofia distingue como o NÃO
EU, isto é, tanto a natureza quanto a arte, todos os outros seres humanos e meu próprio corpo, devem
ser classificados por este nome, NATUREZA”10 (EMERSON, 1950, p. 4).
Thoreau, por sua vez, tem o norte de seu pensar e agir na concepção de que o ser humano,
antes de ser um “membro da sociedade”, é originariamente “um habitante, uma parte, um quinhão da
Natureza” (THOREAU, 2012a, p. 81). Assim compreendida, a Natureza thoreauviana não é,
essencialmente, o “não eu”, mas, antes, nosso “eu” mais radical. Em Walden (1854), ele medita: “E
como eu não me entenderia com a terra? Não sou também folha e húmus?” (THOREAU, 2019, p.
137). As operações naturais espelham a nossa própria imagem e semelhança. No experienciar do
despertar do lago Walden na primavera, Thoreau se questiona: “O que é o homem, senão uma massa
de barro descongelado?” (THOREAU, 2019, p. 291). E vislumbra, então, uma cosmovisão que revela
a aura mística de sua comunhão com a natureza: “O Criador desta terra patenteou apenas uma folha”
(THOREAU, 2019, p. 292, grifos acrescentados). A Natureza, como expressa pelo filósofo norte-
americano, é o coração da verdadeira experiência religiosa. Em seu comungar com os elementos
naturais, Thoreau enxerga uma prática de purificação espiritual. “Quando quero me renovar”, escreve

8
No original: “Henry pitched his tone very low in his love of nature, — not on stars & suns . . . but tortoises, crickets,
muskrats, suckers, toads & frogs. It was impossible to go lower”.
9
No original: “and yet his position was in Nature, & so commanded all its miracles & infinitudes”.
10
No original: “all that is separate from us, all which Philosophy distinguishes as the NOT ME, that is, both nature and
art, all other men and my own body, must be ranked under this name, NATURE”.

275
ele em Walking, “procuro o bosque mais escuro, o pântano mais denso, interminável e, aos olhos do
cidadão urbano, mais lúgubre. Entro num pântano como quem entra num lugar sagrado — um sancto
sanctorum. Ali está a força, o âmago da natureza” (THOREAU, 2012a, p. 105). Buscando, a seu
próprio modo, o sentido último da realidade nas pinturas desenhadas pelos fenômenos naturais, ele
se questiona: “Quando a natureza deixa de ser sobrenatural para uma pessoa — o que ela vai fazer
então? De que vale a vida humana — se suas ações deixam de ter este cenário sublime e
inexplorado[?]”11 (THOREAU, 1981, p. 481). A Natureza thoreauviana, morada de nosso eu mais
radical, nos oferece a rota de encontro com a paisagem originária e divina da existência, seu “cenário
sublime” e ainda “inexplorado”, o “santo dos santos”.
Devemos ter em conta que em Walden, assim como em seus diversos escritos, Thoreau “está
mais interessado em abrir questões-chave da ética da virtude e em urgir seus leitores a viverem suas
respostas particulares, do que em fornecer respostas finais às suas próprias questões”12 (CAFARO,
2004, p. 147). O que está em jogo na filosofia thoreauviana não é tornar translúcido determinado
conhecimento de forma sistemática, mas apontar para a aurora de uma reflexão panorâmica e
mosaica, que se mostra para o leitor na medida em que ele mesmo principia sua caminhada rumo à
Terra Santa. Nesses termos, “no que diz respeito ao conhecimento”, proclama Thoreau, “somos todos
filhos do nevoeiro” (THOREAU, 2012a, p. 116). A Natureza Selvagem, que compõe o solo aborígene
da experiência religiosa de Thoreau, aponta, desse modo, para uma realidade existencial que não se
pretende passível de conceitualização. Trata-se de uma experiência fenomenológica: “O
conhecimento não nos chega em detalhes, mas em lampejos da luz celeste” (THOREAU, 2012b, p.
145). A filosofia thoreauviana, assim compreendida, expressa o sagrado de forma semelhante àquela
declarada por Heráclito em relação à manifestação apolínea no oráculo de Delfos: não afirma e não
oculta, mas acena com um sinal13 (KAHN, 1979, p. 43).
O pensamento thoreauviano assinala, dessa forma, uma visão holística que oferece férteis
perspectivas para pensarmos, na contemporaneidade, o diálogo inter-religioso e a problemática do
antropocentrismo, na medida, precisamente, em que Thoreau, caminhando por sendas plurais,
empresta sua voz à diversidade da vida, multiplicidade que é, afinal, fomentada pela própria Natureza
— a sagrada “mãe de todos nós”, habitantes das terras e dos céus.

Referências Bibliográficas
CAFARO, Philip. Thoreau’s Living Ethics: Walden and the Pursuit of Virtue. Athens:
University of Georgia Press, 2004.

11
No original: “When nature ceases to be supernatural to a man — what will he do then? Of what worth is human life —
if its actions are no longer to have this sublime and unexplored scenery”.
12
No original: “he is more interested in opening up key virtue ethics questions and pressing his readers to live their
particular answers, than he is with providing final answers to the questions themselves”.
13
Fragmento XXXIII: “The lord whose oracle is in Delphi neither declares nor conceals, but gives a sign”.

276
DAVIS, Richard H. Henry David Thoreau, Yogi. Common Knowledge, Duke University
Press, v. 24, n. 1, 2017, p. 56-88.
EMERSON, Ralph Waldo. The complete essays and other writings of Ralph Waldo Emerson.
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THOREAU, Henry David. Journal I: 1827 – 1846. Editado por Bradford Torrey. The
Writings of Henry D. Thoreau. 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company, 1906b. v.
7.
THOREAU, Henry David. Journal II: 1850 – September 15, 1851. Editado por Bradford
Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau. 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company,
1906c. v. 8.
THOREAU, Henry David. Journal V: March 5 – November 30, 1853. Editado por Bradford
Torrey. The Writings of Henry D. Thoreau. 20v. Boston/New York: Houghton Mifflin and Company,
1906d. v. 11.
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desobediência civil. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo: Penguin Classics Companhia das
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THOREAU, Henry David. Walden. Tradução de Denise Bottmann. Porto Alegre: L&PM
Pocket, 2019.
VERSLUIS, Arthur. American Transcendentalism and Asian Religions. New York/Oxford:
Oxford University Press, 1993.

277
INTOLERÂNCIA RELIGIOSA: UM ESTUDO SOBRE A UTILIZAÇÃO
POLÊMICA DA AYAHUASCA, CHÁ XAMÂNICO MILENAR, NOS RITUAIS
DAIMISTAS

Ronaldo Emiliano de Miranda1

Resumo
A presente comunicação propõe investigar e a analisar a religião do Santo Daime, Religião da Floresta, fundada
em 1930, pelo maranhense Raimundo Irineu Serra até o seu desenvolvimento atual. Abordar-se-á as diferentes concepções
das visões das vertentes daimistas, que surgiam após a morte do Mestre Irineu, passando assim, a gerar tensões e
intolerância interna. De maneira singular, a religião daimista emprega nos rituais, a Ayahuasca, um chá de origem
xamânica, rebatizado pelo fundador como Daime, que é o gerador de outras discussões, fora da igreja daimista. O fato é
que a Ayahuasca é considerada uma substância alucinógena do grupo das drogas. Por esse motivo, surgiram inúmeras
intolerâncias, no país e no exterior. O texto procura apontar os avanços na compreensão da doutrina, oferecer boa
convivência com a pluralidade religiosa e sugere a disciplina introdução à educação para a interculturalidade, como
facilitadora na compreensão da importância da cultura oral. Assim sendo, tem-se a convicção de que o texto ajudará no
diálogo inter-religioso, e fortalecerá o sagrado direito de divergir. A comunicação foi construída a partir da pesquisa
documental em livros de autores renomados, artigos e sites oficiais das vertentes disponíveis sobre o tema.
Palavras-chave: Intolerância. Ayahuasca. Mestre Irineu. Daime. Sebastião.

Introdução
Esta comunicação tem por objetivo propor o estudo, a análise e a discussão sobre as
intolerâncias enfrentadas pela religião do Santo Daime, Religião da Floresta, desde sua fundação em
1930, pelo maranhense Raimundo Irineu Serra, até o seu desenvolvimento atual. A religião daimista,
genuinamente brasileira, de tradição oral, teve seu início a partir da concepção do novo significado
ritualístico da Ayahuasca2, rebatizada como Daime, pelo fundador. A construção e a sedimentação
do Santo Daime ocorreram de forma gradativa até a morte do Mestre Irineu (1971). Logo após a sua
morte, houve uma dissidência interna de opiniões sobre a doutrina, surgindo duas vertentes daimistas,
que geraram as tensões e a intolerância interna. Fora da igreja daimista o Daime é considerado um
alucinógeno do grupo das drogas, porém, para os fiéis daimistas é um enteógeno 3. Isto motivou
inúmeras intolerâncias no país e no exterior. Ainda assim, o Santo Daime conseguiu uma expansão
nacional e internacional. A metodologia usada na construção da comunicação é baseada em pesquisas
bibliográficas de livros, artigos e teses de autores conceituados e sítios oficiais das vertentes. O texto

1
Mestrado em andamento em Ciências da Religião, Pontifícia Universidade Católica Minas Gerais-PUCMinas, Minas
Gerais, Brasil. E-mail ronaldoemiranda@gmail.com
2
Ayahuasca é um chá indígena (xamânico) de uso milenar, com propriedades psicoativas, obtido através da decocção do
cipó (Banisteriopsis caapi), ou “jagube” e da folha do arbusto (Psychotria viridis), denominada pelos daimistas como
“Rainha” ou chacrona. Na língua Quéchua, Ayahuasca significa "trepadeira das almas" ou "liana (cipó) dos espíritos"
(Cf. LABATE, 2004 apud ASSIS; LABATE, 2014, p. 13).
3
Enteógeno é um termo derivado da palavra entheos, de origem grega que significa literalmente "deus dentro" e era
utilizada para descrever o estado em que alguém se encontra quando inspirado ou possuído por um deus que entrou em
seu corpo. Portanto, enteógeno significa aquilo que leva alguém a ter o divino dentro de si. (MACRAE, 1992, p. 16).

278
busca demonstrar que é possível, mesmo diante das visões antagônicas das vertentes, compreendê-
las e facilitar o diálogo inter-religioso, fortalecendo o “direito sagrado de divergir”.

A origem, a fundação e a sedimentação da religião do Santo Daime


No final do século XIX e início do século XX, ocorreu um importante movimento migratório
que ficou conhecido como o 1º Ciclo da Borracha, que prometia um enriquecimento rápido no Norte
do Brasil. As pessoas abandonaram a precária agricultura de subsistência no Nordeste (Estado do
Ceará e Maranhão), para se dedicarem à extração da borracha nos seringais da região amazônica
fronteiriça entre Brasil, Peru e Bolívia, e tiveram de adaptar às leis da Floresta Amazônica.
(MOREIRA; MACRAE, 2011, p. 79). Raimundo Irineu Serra, influenciado por esse movimento,
migrou-se para lá em 1912. Conhecido como Mestre Irineu, em sua comunidade, fixou-se
inicialmente em Xapuri, onde residiu por dois anos. Trabalhando na floresta amazônica, passou a
conhecer a população cabocla local e sua cultura. Nesse período, teve como companheiros os irmãos
Antônio e André Costa, seus conterrâneos. Através deles, tomou conhecimento do uso da Ayahuasca
na cidade de Cobija, na Bolívia, fronteira com o Estado do Acre (Brasil). (MACRAE, 1992, p. 61-
62).
Ao beber a Ayahuasca, entre os anos 1912 e 1914, o Mestre Irineu teve revelações psíquicas
e espirituais que o conduziram, nos anos posteriores, a organizar uma nova forma de trabalho com
essa bebida indígena. Dentre as primeiras experiências fazendo uso do chá, o Mestre Irineu relatou a
aparição repetida de uma entidade feminina, denominada Clara, que posteriormente, ele a identificou
como a Nossa Senhora da Conceição, ou a Rainha da Floresta. Ele relata que a entidade lhe teria dado
instruções a respeito de uma dieta que deveria seguir, preparando-se para o recebimento de uma
missão especial que o tornaria um grande curador. (MACRAE, 1992, p. 62).
A partir da década de 30, na cidade de Rio Branco (Acre), sobe a direção do Mestre, deu-se o
início ao processo de formação da doutrina daimista, com a ressignicação da Ayahuasca como Daime,
a introdução de uma nova técnica para o preparo do chá e a criação dos rituais e símbolos da religião.
(OLIVEIRA, 2007, p.33). Com a divulgação das narrativas que relatavam curas, bênçãos e feitos
miraculosos divulgadas no meio da comunidade, atribuídos ao uso do Daime4, no decorrer do tempo,
passou a ser chamada de Santo Daime. (OLIVEIRA, 2007, p. 76).
Com o passar dos anos, a doutrina daimista foi se sedimentando e as sessões começaram a ser
frequentadas por outras pessoas, inclusive de raças diferentes. O Mestre Irineu, já conhecido, contava
com a amizade e o apoio de personagens influentes na política local. Devido ao prestígio do Mestre,

4
O nome Daime vem das invocações "dai-me luz" ou "dai-me amor", usados pelos participantes dos rituais daimistas.
(MIRANDA, 2020). Presentes no hino nº 41 “ Estrela D’água ” do Mestre Irineu.

279
com o governador do Acre, Guiomard dos Santos, obteve, na década de 1940, segundo MacRae
(1992), a doação da Colônia Custódio de Freitas (Rio Branco, no Acre), cujas terras foram divididas
entre as famílias frequentadoras do culto daimista. Desde então, a colônia passou a ser conhecida
como Alto Santo, onde foi construída uma Igreja-sede do culto, batizada de Centro de Iluminação
Cristã Luz Universal (CICLU). (MACRAE, 1992, p. 65-66). Mais tarde, em 1963, foi fundado o
CICLU / Alto Santo, que foi liderado pelo Mestre Irineu até o seu falecimento, em 1971. Logo após
a sua morte, sugiram disputas e algumas segmentações dentro do CICLU, que passou a ser dirigido
por Leôncio Gomes. Segundo a Comunidade do Alto Santo (2021), ainda hoje, o centro é comandado
pela viúva de Irineu, Peregrina Gomes Serra, conhecida como “Madrinha Peregrina”. Por outro lado
Sebastião Mota de Melo, conhecido como Padrinho Sebastião, um dos principais discípulos do Mestre
Irineu, se desvinculou do CICLU, por desavenças com o líder Leôncio, e passou a construir a sua
própria comunidade. Em 1974, a sua vertente foi denominada Centro Eclético da Fluente Luz
Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS), que manteve as bases dos rituais, as fardas e os
principais hinários, mas agregou novos elementos aos rituais herdados do Mestre Irineu como a
aproximação com o espiritismo kardecista e com as religiões afro-brasileiras, que empregam as
incorporações de espíritos nos rituais, daí surgiu o termo “ umbandaime5”. O Padrinho Sebastião
faleceu em 1990 e o seu filho, Padrinho Alfredo, o sucedeu (ASSIS; LABATE, 2014, p. 14-22).
É importante destacar que dentro da religião do Santo Daime, tanto o ato de ingerir o Daime,
quanto ao seu preparo (feito do chá), e os seus poderes visionários (as mirações) são concebidos como
sagrados, tornando o Daime, santo aos olhos de quem o aceita como instrumento extático, um veículo
mediador de contato com essa Realidade Sagrada. (OLIVEIRA, 2007, p. 40).
Dentro da religião daimista existe uma convicção compartilhada de que o Mestre Irineu, é a
reencarnação de um mesmo espírito que se manifestou na terra como Buda, que é pouco difundida,
mas a ideia de ser uma reencarnação de Jesus Cristo é mais disseminada, e finalmente foi acolhido
também como Imperador Juramidam (nome espiritual do Mestre). Assim sendo, a concepção daimista
de que o Mestre Irineu seja uma reencarnação de Cristo, torna-se um dado relevante, por associar o
Santo Daime, “não apenas no contexto da história Cristã, mas no âmbito mais amplo das expressões
religiosas que se manifestaram ao longo da História da humanidade”. (OLIVEIRA, 2007, p. 245).
O sociólogo Berger (2004) afirma que os rituais e os símbolos são instrumentos de
“rememoramento”, ou seja, como a atualização do mito. (BERGER, 2004, p. 53).

5
Umbandaime é um termo pouco divulgado, sendo utilizado em algumas cidades brasileiras, e também por membros da
igreja cede da doutrina Céu do Mapiá, no Estado do Amazonas. (RUSSO J., 2016, p. 7).

280
A intolerância e divisões internas na doutrina daimista originária
Vale dizer que, em 1998, o centro CEFLURIS, vertente do Padrinho Sebastião, localizado às
margens do Igarapé do Mapiá (Amazonas) foi renomeado como Igreja do Culto Eclético da Fluente
Luz Universal (ICEFLU). A vertente CEFLURIS/ICEFLU, se distingue da vertente CICLU, por ter
uma característica plural com abertura para a inserção dinâmica de novos elementos ritualísticos, o
que possibilitou atingir uma expansão nacional e internacional, tendo o Céu do Mapiá como o maior
agrupamento daimista mundial. Na vertente CICLU, não se permite mudanças ou novidades na
doutrina daimista originária, e concentrando-se no Norte do país (ASSIS; LABATE, 2014, p. 23).
Oliveira (2011) enfatiza que, a partir da década de 1930, formaram-se novos contextos de
utilização da bebida denominada Ayahuasca (o Daime), em seus rituais, constituindo assim, algumas
religiões ayahuasqueiras, compreendidas por seus seguidores como cristãs. Dentre elas, destacam-se:
o Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal. Cada uma procura construir a sua própria
legitimidade, assumindo diferentes posições políticas e ideológicas nesse campo (BOURDIEU, 2004,
p. 89). Portanto, Oliveira (2011) esclarece que a linha associada ao uso do Daime, que emprega
trabalhos espirituais, conhecida como Barquinha, foi proposta pelo Mestre Irineu como opção ao seu
discípulo Daniel Pereira de Matos. Isso mostra a capacidade de tolerância do Mestre, mas preservando
a sua doutrina. (OLIVEIRA, 2011, p. 168). Então, diante dessa diversidade religiosa, cabe ressaltar
que, segundo Menezes (1996), ao afirmar que o “direito sagrado de divergir” é negar a quem quer
que seja – em especial ao Estado e às maiorias – “o direito de reprimir a diversidade alheia, de
perseguir os dissidentes, de tentar reduzir pela força as divergências” (MENEZES, 1996, p. 6).
Os daimistas ortodoxos do CICLU, na região do Alto Santo, segundo Oliveira (2011),
compreendem que para se conhecer a doutrina do Daime, tal como ela é, desde sua origem, as pessoas
de outros estados, ou outros países, devem se deslocar de onde residem até o Rio Branco. E, dessa
maneira, lá, vivenciarem as práticas daimistas nos moldes deixados pelo Mestre Irineu. Com isso,
defendem que a religião, com suas práticas e a doutrina, deve permanecer inalterada ao longo do
tempo, remetendo única e exclusivamente ao conjunto simbólico instituído pelo Mestre Irineu.
As diferentes concepções do que pode ser considerado legítimo, ou não, dentro do Santo
Daime são causadoras das tensões internas, gerando assim, a intolerância religiosa entre seus
seguidores e as organizações que fazem o uso do Daime (Ayahuasca). O sociólogo Berger (1985)
enfatiza que as práticas e os hábitos humanos vão se modificando influenciados pelo tempo. Portanto,
a partir da época de suas produções, a cada instante são recriados, reinventados ou ressignificados
(BERGER, 1985, p. 40-41). Dessa maneira, compreende-se que torna muito difícil fazer com que os
rituais daimistas de tradição oral permaneçam inalterados desde sua fundação, seguindo fielmente as
orientações e o legado estabelecido pelo Mestre, dentro de uma visão expansionista. Deixa-se claro
que as práticas ritualísticas do CEFLURIS/ICEFLU, mesmo com suas alterações ressignificadas,

281
remetem a uma releitura do passado que favorecem a exportação da religião daimista. (OLIVEIRA,
2011, p. 158 e 169).
O compartilhamento de que o “Mestre Irineu é e está no Daime”, para a maioria dos adeptos
daimistas, ameniza um pouco a polêmica estabelecida entre a compreensão de uma doutrina imutável
[ortodoxa] e uma doutrina viva e em expansão. Vale lembrar que o Mestre Irineu, durante a
construção da religião daimista, implantou diversas mudanças internas. (OLIVEIRA, 2011, p. 171).
Por outro lado, aspectos políticos e idealistas, envolvendo a continuidade da religião e a
legitimação das lideranças atuais do Santo Daime, são levados em consideração nas discussões,
mesmo diante das visões divergentes das vertentes. Diante disso, a imutabilidade das práticas
estabelecidas pelo Mestre Irineu, passam a ser compreendidas como sendo aparentemente normativas.
Dessa maneira, a legitimidade da autoridade daimista, pode ser aceita devido a manutenção do uso
do Daime e a acolhida da opinião de que as novidades na religião, sejam, analogamente,
compreendidas como normativas. Logo, seria plausível admitir algumas transformações na religião
do Santo Daime, desde que tivessem o aval dos seguidores da doutrina. Com isso, se buscaria um
esforço em se manter os elementos essências originários da doutrina, com a permanência do passado
e a legitimação da autoridade dos atuais líderes do Santo Daime, fundamentada na visão normativa
do sagrado, e nas construções mítico-fundadoras manifestas na oralidade. (OLIVEIRA, 2011, p. 171).
Vale lembrar o que diz Binoche (2010): “nenhuma comunidade humana é de fato viável se seus
membros não estiverem de acordo sobre certas ‘crenças’ comuns (dogmas religiosos, preconceitos
costumeiros, ideologias, valores compartilhados etc.) [...]”. (BINOCHE, 2010, p. 24).

A intolerância no Brasil e no exterior enfrentadas pela religião do Santo Daime


Como já mencionado, a visão de fora da religião daimista leva a concepções preconceituosas,
perseguições, aversão e repressão por conceber o Daime como um alucinógeno. O desconhecimento
do seu uso sacramental nos rituais é motivo de inúmeras intolerâncias em várias partes do mundo.
No Brasil, desde 1890, havia uma política oficial de repressão à feitiçaria, magia,
curandeirismo e uso de "substâncias venenosas", tidas como a prática ilegal da medicina, baseada nos
artigos 156, 157 e 158 do Código Penal da época. Dessa maneira, o Santo Daime já nasceu em um
contexto de ilegalidade. Mais tarde, a partir de 1985, a Divisão de Medicamentos do Ministério da
Saúde – (DIMED) incluiu o cipó (Jagube), na lista de produtos de uso proscrito no território nacional.
(MACRAE, 1992, p. 65-79). Porém, em 1987, o Conselho Federal de Entorpecentes – (CONFEN),
permitiu o uso do chá sacramental (Daime/Ayahuasca) somente para fins religiosos. (MACRAE,
1992, p. 79). Entretanto, esta liberação foi reexaminada, em 1992, e mantida a decisão anterior do
(CONFEN – 1987). (ASSIS; LABATE, 2014, p. 23-24). Somente em 2010, foi incluído na resolução
Nº1 do Conselho Nacional Antidrogas (CONAD), a decisão que regulamenta e legaliza o uso da

282
Ayahuasca nos ritos religiosos no Brasil. Por fim, em 2020, a deputada Jéssica Sales (MDB-AC),
propôs na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 179/20 que objetiva regular o uso do Daime no
Brasil dando o status de religião para o Santo Daime. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2020);
No Exterior, em 1971, a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas (CSP) das Organizações
das Nações Unidas (ONU), proibiu o uso da N.N-dimetiltriptamina (DMT), o principal composto
psicoativo da Ayahuasca, presente na folha da chacrona, por considerá-la uma substância proscrita
de nível 1, como o LSD, o Ecstasy, e a Mescalina. Porém, a DMT é obtida de maneira natural e não
manipulada, está presente em pequenas quantidades no corpo humano. Assim sendo, anos 1990 e
1999, nos Estados Unidos da América (EUA), surgiram os primeiros problemas de ordem legal
quanto a prática do Santo Daime. Da mesma forma, em 1994, na Alemanha; em 1999, na Holanda;
em 2000, na Espanha; em 2004, na Itália; em 2007 na Irlanda e em 2011, e na Bélgica, com prisões
de líderes daimistas e de recipientes contendo Daime. A indefinição quanto a legalidade do uso do
Daime nos países como Alemanha, Bélgica, Irlanda e França, não causou a extinção dos cultos e nem
inibiu a expansão da religião daimisa, mas contribui para a dispersão e a clandestinidade dos grupos
seguidores, tornando o controle da utilização do Daime mais difícil e menos organizado. No entanto,
nos países como Espanha, em 2002; na Itália e EUA (Estado do Oregon), em 2009, e na Holanda, em
2012, houve certa flexibilidade na aceitação do uso do Daime. (ASSIS; LABATE, 2014, p. 24-25).

Conclusão
Levando-se em conta o que foi observado, destaca-se que a religião do Santo Daime é
constituída basicamente de uma bricolagem de elementos da tradição indígena e da tradição cristã e
que após a morte do seu fundador, transformou-se em duas vertentes, o que causou discussões e
intolerância interna na compreensão da legitimidade de cada vertente. O CICLU, defende a
“manutenção do passado”, ou seja, a imutabilidade, enquanto o CEFLURIS/ ICEFLU, considera-se
uma “doutrina viva” e em expansão, com prática atualizada que lhe permite uma maior visibilidade
nacional e internacional. Com relação à intolerância externa diante da religião do Santo Daime ela
concentra-se no emprego do Daime, interpretado como uma droga alucinógena. Outro problema é
ressignificação dos elementos da tradição cristã, dentro da doutrina do Santo Daime. A história da
religião do Santo Daime que é fruto de uma cultura essencialmente oral, possui poucos registros
escritos sobre seus fundamentos e a própria doutrina. Apesar da existência das concepções
divergentes dentro das vertentes daimistas, subsiste uma unidade que se revela na convergência do
uso ritualístico sacramental do Daime, e que o “Mestre Irineu é e está no Daime”, isso possivelmente,
seja um meio para atenuar a intolerância e propiciar o respeito pelas diferenças. Cabe lembrar que o
próprio Mestre respeitava a diversidade religiosa cooperando com a criação da religião da Barquinha.

283
Enfim, a finalidade desta comunicação é contribuir para a redução das tensões e intolerâncias
diante da doutrina do Santo Daime, fazendo prevalecer “o direito sagrado de divergir” e favorecer o
convívio pacífico entre as diferentes instituições daimistas. Os avanços na tolerância fora da religião
do Santo Daime, fortalece sua inserção dentro do contexto religioso Ocidental. Para facilitar o diálogo
dialogal e permitir educar-se mutuamente, Panikkar (2006) sugeriu a introdução da educação para a
interculturalidade, favorecendo uma melhor compreensão da importância da cultura oral versus a
civilização de cultura escrita. Cabe pontuar que o estudo, ora apresentado, não exaure o assunto em
discussão, pois existem outras fontes de pesquisas acadêmicas disponíveis que se constituem em um
novo conjunto documental que abrem novas perspectivas para outros estudos.

Referências Bibliográficas
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lado do Atlântico: a expansão e internacionalização do Santo Daime no contexto religioso global.
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(org.). O outro como problema: o surgimento da tolerância na modernidade. São Paulo: Alameda,
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Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/640858-projeto-regula-uso-da-ayahuasca-e-da-
status-de-religiao-para-o-santo-daime. Acesso em: 04 jan. 2021.
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E MEMÓRIA – ICEFLU-Patrono Sebastião de Melo.
Biografia do Mestre Irineu. Disponível em: https://www.santodaime.org/site/religiao-da-floresta/
mestre-irineu/biografiamestre. Acesso em: 04 jan. 2021.
COMUNIDADE DO ALTO SANTO. Madrinha Peregrina. Disponível em: https://www.
facebook.com/pages/Comunidade-do-Alto-Santo-Irineu. Acesso em: 08 jan. 2021
MACRAE, Edward. Guiado pela lua: xamanismo e uso ritual da Ayahuasca no culto do Santo
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companheiros. Salvador: EDUFBA, 2011.
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290f. Tese (Doutorado em História) - Universidade de Brasília, Instituto de Ciências Humanas,
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OLIVEIRA, Isabela. Um Desafio ao Respeito e à Tolerância: reflexões sobre o campo
religioso daimista na atualidade. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 31, n. 2, 2011, p. 154-178.
PANIKKAR, Raimon. Paz e Interculturalidad: Una reflexión filosófica. Barcelona: Herder,
2006.

284
RUSSO JR, Álvaro Antônio. Na Boca da Mata: Diálogos entre Santo Daime e Umbanda.
2016, 104 f. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2016.

285
Coordenação
Ana Beatriz Vilhena (UFJF)
abeatriz.vilhena@gmail.com
Marcela de F. M. Máximo Cavalcanti (UFJF)
marcela.fmaximo@gmail.com

Ementa
Tem-se questionado na atualidade como a religião, especialmente sobreposta ao padrão
cultural brasileiro de sexualidade, pode ser, em alguma medida, reguladora do desejo e do prazer, e,
ao final, exercer um poder sobre o corpo sexual, conformando as diversidades sexuais no país. O
presente Grupo de Trabalho pretende reunir pesquisadores que se deitam a investigar questões
relacionadas à ingerência religiosa no que concerne ao corpo do indivíduo, à sua sexualidade, ao
exercício do prazer, e como, a reunião de todos esses elementos, podem “performatizar” o gênero e
o sexo e, sendo útil ao exercício controlado da fé e da crença, e como essa relação entre religião e
sexualidade se vê refletida na política, no direito e no modo de ser social e coletivo. Procura-se
discutir trabalhos que versem, dentre outros, sobre 1) sexualidade e religião 2) diversidade sexual e
religiosidade/espiritualidade/, 3) corpo, prazer e desejo na prática da fé cristã, 4) gênero e sexualidade
na igreja, 5) moral cristã, 6) ministério eclesial e a diversidade sexual, 7) conflitos políticos e
institucionais entre a igreja católica-protestante e a diversidade sexual, 8) exegese bíblica, sexualidade
e o controle da carne, etc. 9) as religiosidades minoritárias no Brasil e sua relação com a diversidade
sexual. Os temas deverão enriquecer a discussão da atualidade sobre fé, corpo e sexualidade, desejo
e prazer na vida religiosa.
Palavras-Chave: Religião. Sexualidade. Gênero.

286
A ORTODOXIA NO ARMÁRIO EM “O PECADO DA CARNE”

José Flávio Nogueira Guimarães1

Resumo
O presente artigo discute a dificuldade que o judaísmo ortodoxo enfrenta para lidar com a homossexualidade. A
questão ainda é tabu. O problema ainda é maior no meio ultraortodoxo como vemos no filme “O Pecado da Carne,” que
descreve toda uma história de abjeção da homossexualidade explícita e demonização do homossexual fora do armário,
aquele bem resolvido com sua sexualidade, considerado bode expiatório e o causador de todos os problemas da
comunidade em questão. Traçaremos um breve recorte histórico da homossexualidade. Tentaremos desmitificar o
interdito de Levítico 18:22: “E com homem não te deitarás como se fosse mulher; é uma abominação,” parte da Torá ou
Pentateuco, livro mais sagrado do judaísmo. A teoria Queer nos dará o suporte necessário para essa obra hercúlea.
Buscamos espaço para as diferenças e não apenas aceitação da diversidade, conforme Miskolci (2012, p.15).
Palavras-chave: Judaísmo. Ortodoxia. Homossexualidade. Teoria Queer. “O Pecado da Carne”.

Introdução
A homossexualidade ainda é um tabu em grande parte das comunidades judaicas. Apesar de
uma tentativa antiga por parte das comunidades liberais americanas de aceitação de casais formados
por pessoas do mesmo sexo, o que ainda prevalece hoje no meio liberal é uma opção pela diversidade
mas não uma aceitação da diferença como propõe a teoria Queer no raciocínio de Miskolci :
Distinguir entre diferença e diversidade ajuda a compreender mais claramente a proposta
queer. Uma perspectiva não normativa pode causar mudanças mesmo dentro de programas
que têm o título de diversidade. Se a diversidade apela para uma concepção horizontalizada
de relações, em que se afasta o conflito e a divergência em nome da conciliação, lidar com a
diferença é incomensurável. Mas as diferenças têm o potencial de modificar hierarquias,
colocar em diálogo os subalternizados com o hegemônico, de forma, quiçá, a mudar a ordem
hegemônica, a mudar a nós mesmos. A diferença nos convida ao contato e à transformação;
ela nos convida a descobrir o Outro como uma parte de nós mesmos (MISKOLCI, 2012, p.
49).

Começamos por situar a televisão por streaming israelense no mundo assim como a produção
israelense de filmes de temática gay. Citamos alguns e optamos por trabalhar, para efeito de ilustração
e comentários com “O Pecado da Carne”, filme lançado em 2009. Logo em seguida resumimos o
filme com breves comentários. Passamos então a tratar da dificuldade dos judeus ortodoxos e
ultraortodoxos em lidar com a homossexualidade. No entanto citamos a luta de gays ortodoxos
israelenses e norte-americanos por um espaço e uma voz na comunidade; caso mencionado do
primeiro rabino ortodoxo americano, Steven Greenberg, publicamente assumido homossexual.
Comentamos também a situação oposta dos judeus liberais, que desde final do século XIX aceitam
em suas comunidades pessoas de qualquer orientação sexual sem grandes problemas. Digno de nota
é a abjeção ao personagem Ezri, gay assumido e bem resolvido, no filme em análise. Traçamos em
seguida um breve recorte histórico da homossexualidade. Por fim tentamos desmitificar o interdito
de Levítico 18:22 - “E com homem não te deitarás como se fosse mulher; é uma abominação,”

1
Doutorando em Ciências da Religião na PUC Minas.

287
fazendo diversas citações da obra do já mencionado rabino Steven Greenberg, Wrestling with God
and Men: Homosexuality in the Jewish Tradition (“Lutando contra Deus e os Homens:
Homossexualidade na Tradição Judaica”). Terminamos concluindo que o judaísmo ortodoxo e
ultraortodoxo é algo primário e primitivo, que se atém ao literal e ficou portanto parado no tempo.
Mas mudanças têm acontecido, e portanto há esperança.

Israel na televisão por streaming e no cinema


A própria imprensa brasileira se deu conta da invasão das séries israelenses na televisão por
streaming. A revista Veja noticiou o fato na sua edição de 20 de novembro de 2020. Como um país
tão pequeno, de população diminuta pode produzir tantas séries? Chama nossa atenção duas delas:
“Nada Ortodoxa” e “Shtisel; por tratarem da questão religiosa que envolve a ortodoxia e
ultraortodoxia. Ambas abordam a sexualidade nessas comunidades, castração e casamentos
arranjados. O cinema israelense tampouco não deixa a desejar com sua extensa produção de filmes
de temática gay. Alguns deles são: “Além da Fronteira”, “Desobediência”, “O Confeiteiro”,
“Delicada Relação” e “O Pecado da Carne”.

“O Pecado da Carne”
“O Pecado da Carne” (Eyes Wide Open), filme de 2009, de uma hora e trinta minutos, dirigido
pelo novato Haim Tabakman, se passa num bairro ultraortodoxo de Jerusalém. Num dia chuvoso,
após a morte de seu progenitor, Aarão herda o comércio de seu pai, um açougue casher e assim
também seu ofício. Aarão reabre a loja e logo coloca a placa de procura-se ajudante. Aarão é
considerado pela comunidade um tsadic, homem justo e piedoso. É casado com Rivka com quem tem
quatro filhos. Ezri, jovem bem aparentado, recém expulso de uma yeshivá, seminário rabínico, ao que
tudo indica por ser gay, acaba de chegar em Jerusalém e bate à porta do açougue pedindo para usar o
telefone. Aarão permite e uma conversa se inicia. Ezri veio ao encontro de seu ex-namorado que
também mora no bairro. Todos são ultraortodoxos. A princípio Aarão não quer dar o emprego de
ajudante no açougue para Ezri mas após encontra-lo dormindo na entrada de sua sinagoga decide
emprega-lo; e como Ezri não tem onde ficar, cede o quarto do segundo andar da loja para Ezri morar.
A empatia entre ambos é instantânea. É óbvio que já existe impulsos e desejos homoafetivos em
Aarão. Pelas prédicas em sua sinagoga e conversas com seu rabino vemos que Aarão crê que estar
próximo de Deus é lutar e tentar controlar esses desejos. O seu rabino diz o contrário que estar
próximo de Deus é aproveitar a vida que Deus nos deu com toda sua plenitude de prazeres. Aarão
discorda a princípio.
Ezri aprende o ofício de açougueiro rapidamente. A intimidade e empatia entre ambos cresce
a cada dia. Vão a sinagoga juntos e Ezri é convidado por Rivka a participar das refeições de Shabat

288
na sexta-feira à noite com a família. Numa dessas sextas-feiras à tarde, antes do início do Shabat,
Ezri pede para sair mais cedo do açougue pois quer ir à uma mikvé, banho ritual, a céu aberto, um
pequeno lago, piscina natural, fora da cidade de Jerusalém, e convida Aarão, que a princípio fica
reticente mas acaba aceitando. Esse banho ritual geralmente é feito por pessoas completamente
despidas. Eles se banham, se divertem, brincam e após vão para a casa de Aarão para o kidush e
refeição.
Ezri tinha o hábito de desenhar no seu tempo livre, e um dia Aarão vê os seu caderno de
desenhos. Certa noite quando Ezri estava desenhando no último andar aberto do prédio, acima de seu
quarto, Aarão aparece e pede que Ezri faça o seu retrato. Eles quase se beijam mas Aarão resiste e
diz que para o crescimento humano é necessário que
resistamos a esses impulsos. Mas outras oportunidades irão surgir. Certa vez quando ambos estavam
descarregando um caminhão de carnes, eles impulsivamente se agarram dentro da câmera frigorífica
do açougue e o ato sexual é consumado. A partir daí os encontros são constantes no quarto do andar
de cima do açougue, e Aarão sai do local mais tarde e isso é percebido pelos vizinhos que começam
a fofocar. A “mishmeret tzniyut”, a polícia religiosa, visita o açougue de Aarão e o ameaça. Diz que
vai tirar o certificado casher do açougue, sua carne vai deixar de ser casher e se tornará “treif”,
imprópria para consumo. Mas a todo momento os rapazes da “mishmeret tzniyut” o chamam de
“tsadic”, justo e piedoso. Panfletos são distribuídos no bairro dizendo que a carne daquele açougue
não era mais casher, jogam pedras e quebram a porta de vidro do estabelecimento.
Ezri procura o ex-namorado para conversar e é agredido por ele e outros rapazes. Aarão
presencia tudo e também ameaça deixá-lo dizendo que tem família, esposa e filhos. É nessa hora que
Ezri o responde dizendo: - “E eu só tenho você.” Aarão então promete protege-lo. Ezri é demonizado
pelo ex-namorado e pela “mishmeret tzniyut”, a polícia religiosa. Ele é quem leva os outros ao pecado.
Aarão é sempre chamado de “tsadic”. Ezri é o bode expiatório. Rivka também começa a desconfiar
do marido que sempre chega tarde em casa e já não cumpre mais regularmente com os deveres
conjugais do ato sexual.
O rabino Vaisben procura Aarão para conversar e tentar convencê-lo a deixar Ezri ir embora.
Ele pergunta: - “Por que é tão difícil para você deixa-lo ir?” Aarão então responde: - “Ani chai!” –
“Eu estou vivo!” “Antes eu estava morto.” Mas Aarão logo muda de ideia e mesmo sem pedir a Ezri,
ele próprio, Ezri, decidi partir. Aarão conversa com Rivka e diz que ele cedeu, deu lugar, ao “yetzer
hará”, o impulso para o mal. No judaísmo é ensinado que o ser humano tem duas vozes, dois impulsos
dentro de si, o “yetzer hará”, o impulso para o mal, e o “yetzer hatov”, o impulso para o bem.
Após conversar com Rivka, Aarão sai de Jerusalém e vai para o pequeno lago, a mikvé, para
um banho ritual; a mesma mikvé que havia ido com Ezri no início do filme. Faz as três imersões
rituais e finalmente submerge e não aparece mais na superfície. Final do filme.

289
Ao que tudo indica Aarão se mata por afogamento; um suicídio sofrido e que exige muita
força de vontade. Algo simbólico pois acontece numa mikvé. Buscava Aarão purificação, redenção?
Agora que não pode mais ser realmente quem é, não pode estar vivo, “chai”, como ele mesmo disse
que se sentia quando ainda relacionava com Ezri, a única solução então é a morte.

A ortodoxia no armário
Não é recente a dificuldade dos judeus ortodoxos e ultraortodoxos de lidarem com a
homossexualidade. Em 2015, o judeu ultraortodoxo israelense Yishai Schlissel esfaqueou seis
pessoas na Parada Gay de Jerusalém. Ele “já havia sido condenado a 12 anos de cadeia por atacar três
participantes do mesmo evento em 2005, afirmou um porta-voz da polícia israelense.” Ele havia sido
libertado três semanas antes da Parada de 2015. As vítimas de 2005 também foram esfaqueadas,
conforme reportagem da BBC News Brasil (Veja link ao final nas referências.).
Em 2016 a Argentina realizou o primeiro casamento judaico gay da América Latina em grande
sinagoga no centro de Buenos Aires ao lado do Museu Judaico da cidade. A cidade de São Paulo mais
recentemente também realizou o primeiro casamento judaico gay do Brasil na Comunidade Shalom
oficiado pelo rabino Adrián Gottfried. Em ambos casamentos houveram protestos do lado de fora das
sinagogas por parte de judeus ortodoxos e ultraortodoxos.
Todavia parte da ortodoxia luta por sair do armário. São os judeus ortodoxos gays. No meio
ortodoxo americano e israelense há grupos de religiosos gays e rabinos gays, como atesta o
documentário Trembling Before G-d, de 2001, dirigido por Sandi Simcha Dubowski. Segundo
Warren Hoffman na introdução do seu livro The Passing Game: Queering Jewish American Culture,
o documentário Trembling Before G-d é um trabalho notável da recente cultura Queer norte-
americana. (HOFFMAN, 2009, p. 4)
Ao contrário, o judaísmo reformista há muito tempo, já no final do século XIX, deu sinais de
aceitação em suas sinagogas de pessoas de qualquer orientação sexual. O movimento reformista que
em 1885 fez sua aparição oficial na cena norte-americana privilegiando a ética em detrimento dos
rituais tem retomado grande parte das práticas que havia rejeitado. O Hebrew Union College, em
Cincinnati, Ohio, fundado em 1875, por ocasião da formatura dos primeiros graduandos do novo
seminário rabínico, em 1885, serviu como prato principal camarão, um alimento não-casher ou não
apropriado às leis dietéticas judaicas. “Isto estava de acordo com a declaração de crenças da
plataforma de Pittsburg de 1885 que foi estabelecida logo em seguida”, conforme afirma o rabino
Benjamin Blech no seu livro O Mais Completo Guia Sobre Judaísmo (BLECH, 2004, p. 343). O
mesmo autor ainda argumenta que
a CCAR, a Central Conference of American Rabbis (Conferência Central de Rabinos
Americanos, o corpo rabínico reformista), em sua convenção anual na mesma cidade de
Pittsburg, oficializou no dia 26 de maio de 1999 o desejo de retomar ao cumprimento de uma

290
série de rituais que os fundadores da reforma clássica haviam rejeitado (BLECH, 2004, p.
395).

Todavia, algumas crenças foram reafirmadas, como “a disposição liberal do movimento em


aceitar os casais formados por judeus e gentios e pessoas de qualquer orientação sexual”, de acordo
com (BLECH, 2004, p. 396, grifo nosso).
Retomando o filme “O Pecado da Carne”, e assim o personagem Ezri, vemos que ele é
demonizado e torna-se uma abjeção, um bode expiatório. O desprezo não era pelo personagem, mas
pelo o que ele representava, a homossexualidade fora do armário. Pois entre ele e Aarão, Ezri
representa o homossexual bem resolvido com sua sexualidade. Segundo Eve Sedgwick, “o armário é
a estrutura definidora da opressão gay no século XX.” (SEDGWICK, 2007, p. 26) Segundo Judith
Butler,
grande parte do mundo heterossexual sempre teve necessidade desses seres “queers” que
procurava repudiar mediante a força performativa do termo. Se o termo hoje tem sido
submetido a uma reapropriação, quais são as condições e os limites dessa inversão
significante? Essa inversão, reitera a lógica de repúdio mediante a qual gerou-se o termo?
Pode o termo superar sua história constitutiva de agravo? Apresenta hoje a oportunidade
discursiva para construir uma fantasia vigorosa e convincente de reparação histórica? Onde
e quando um termo como “queer” experimenta, para alguns, uma ressignificação afirmativa,
quando um termo como “nigger” (vocábulo desrespeitoso para referir-se as pessoas da raça
negra), apesar de todos os esforços e reinvindicações recentes, apenas parece capaz de
reinscrever sua dor? Como e onde reitera o discurso os agravos, de modo tal que os diversos
esforços para recontextualizar e ressignificar uma determinada palavra sempre encontra seu
limite em essa outra forma mais brutal e implacável de repetição? (BUTLER, 1993, p.313-
314, tradução nossa)

Talvez hoje pareça impensável o extermínio maciço de homossexuais, como ocorreu na


Alemanha nazista durante a 2ª Guerra Mundial, em nome de certa pureza de costumes. O que temos,
agora, no lugar do triangulo cor-de-rosa nazista é uma generalizada desqualificação moral, de modo
que “o homossexual continua vivendo num universo concentracionário, sob o rígido controle da
moral dominante”, como afirma Pasolini (1983, apud TREVISAN, 2000, p. 19).
A verdade é que a civilização sempre precisou de reservatórios negativos que possam
funcionar como bodes expiatórios nos momentos de crise e mal-estar, quando então, por um
mecanismo de projeção, ela ataca esses bolsões tacitamente tolerados. Em outras palavras,
sempre que a minha situação não tem saída, a saída é atacar o mal fora de mim. As periódicas
perseguições aos judeus têm sido, secularmente, claro exemplo dessa projeção ideológica.
Assim também, pode-se constatar na contemporaneidade um recrudescimento do racismo
contra os negros, agora em novos moldes, inclusive científicos – segundo os quais sua
inferioridade genética se refletiria num QI mais baixo. A homossexualidade inscreve-se
como mais um desses reservatórios negativos (TREVISAN, 2000, p. 22).

Por outro lado, entre os índios norte americanos, os chamados bardaches, um


homossexual/transexual, nas palavras de Greenberg (2004, p.187), ou figura andrógina, na concepção
de Trevisan (1998, p. 115), tinham um papel santificado. No judaísmo, nem na Torá, tampouco a
literatura rabínica, oferecem um papel xamânico para as pessoas intersexuais, como afirma
(GREENBERG, 2004, p. 187).

291
Breve recorte histórico da homossexualidade
Há registros de homossexualidade na Antiguidade; tanto na Grécia, Roma, como em Israel.
Os atos de afrodisia eram parte da cultura grega e eram praticados em diversas variantes. Em Roma,
as relações com pessoas do mesmo sexo ocorriam em diferentes estratos sociais. À época não havia
os modernos conceitos de sexualidade e seus respectivos rótulos. A moral vigente era outra.
Segundo o rabino americano Steven Greenberg,
Na retórica sexual dos mundos grego e romano, sexo é uma relação de poder. Ele ocorre
legitimamente apenas entre partes de poderes desiguais. Homens de eminência podem ter
sexo com mulheres, escravos, meninos, e estrangeiros. Hierarquias dentro da comunidade
dos homens permitem alguns homens terem relações sexuais legítimas com penetração com
homens inferiores a eles. Para um adulto ter uma relação sexual como passivo na cultura
helenística significava ser rebaixado a classe das mulheres. Kenneth James Dover, entre
outros, demonstrou que nas culturas grega e romana a relação sexual era concebida como um
ato de dominação. Um homem só podia ter relação sexual com alguém de posição social
inferior a dele. Na Roma antiga, um homem livre podia ter relação com um escravo, um
menino, ou uma mulher, mas jamais com um cidadão do seu nível social. Sexo homossexual
entre iguais era considerado inapropriado e a pessoa poderia ser acionada legalmente.
(GREENBERG, 2004, p. 196, tradução nossa.)

Já no Brasil colônia a prática da sodomia, ou “pecado nefando”, era vista como crime, além
de pecado, obviamente. Em suas visitas à terra, o Tribunal do Santo Ofício ou Tribunal da Santa
Inquisição julgou diversos processos cuja acusação era sodomia. A primeira visita ocorreu entre 1591
e 1595 na Bahia e Pernambuco; a segunda em 1605 no Rio de Janeiro; a terceira entre 1618 e 1620
em Salvador, Bahia; a quarta em 1627 no sul do país; a quinta em 1646 na Bahia “sem a presença de
um Visitador especial, que foi substituído pelo clero local. Sabe-se de processos inquisitoriais
também na Paraíba, Minas, Maranhão e Pará – este último entre 1763 e 1769”, conforme Novinsky
(1982, apud TREVISAN, 2000, p. 128). A linguagem dos autos dos processos é bizarra devido ao
preciosismo nas descrições dos atos. Beira ao cômico. Raramente era aplicada a pena de morte à tais
casos. O mais comum era o degredo. Outros crimes comuns julgados pelo Tribunal Inquisitorial vindo
de Portugal nessa época, segundo Trevisan, eram:
práticas judaicas, luteranas, ou maometanas; qualquer tipo de heresia, ai incluídas as
blasfêmias e quebras de preceitos religiosos; feitiçarias e bruxaria; bigamia; e costumes
gentílicos (tais como andar nu, pintar o corpo e, particularmente, tatuar-se à moda dos índios)
(TREVISAN, 2000, p. 129, grifo nosso).

As compilações jurídicas portuguesas também criminalizavam a sodomia. Dentre elas é


importante citar as Ordenações Afonsinas, promulgadas em 1446; as Ordenações Manuelinas
aplicadas no Brasil, pois vigoravam em Portugal à época do Descobrimento; e ainda as Ordenações
Filipinas que “continuaram vigorando ainda no Brasil independente, adaptadas para a Constituição
do Império, com as necessárias atualizações, em 1823”, de acordo com (TREVISAN, 2000, p. 164).
No entanto, elaborou-se um novo Código Criminal, que foi sancionado em 1830. Esse
Código brasileiro assimilou o que de mais avançado havia, na época, em matéria de
legislação criminal. Recebeu influência do filósofo inglês Jeremy Bentham e dos Códigos
Napoleônico (1810) e Napolitano (1819). Inspirado, sobretudo nas inovações napoleônicas,

292
o Brasil acabou eliminando da legislação a figura jurídica da sodomia (ou equivalente) – ao
contrário de países como a Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, Áustria etc., menos
vulneráveis aos pensadores franceses do período. Os iluministas, inspiradores do Código
Napoleônico, julgavam uma atrocidade punir a sodomia com a morte. Se exercida sem
violência ou indecência pública, segundo eles, a prática sexual não devia absolutamente cair
sob o domínio da lei. Nesse contexto, em 1810, Napoleão retirou os delitos homossexuais do
Código Penal da França, que a partir de então deixou de incluir punições à prática sexual
entre pessoas do mesmo sexo, quando privadamente e entre adultos consentidos. O Código
Penal brasileiro de 1830 parece ter sido tão importante que acabou influenciando
poderosamente o Código Penal Espanhol e, por intermédio dele, os códigos penais de muitos
países da América Latina. Tudo isso ainda eram, sem dúvida, ecos da Revolução Francesa
antimonarquista que, paradoxalmente, frutificava num Império Tropical – contradição com
certeza nada surpreendente nessa disparatada colcha de retalhos que o Brasil sempre foi
(TREVISAN, 2000, p.166).

Já Trevisan, agora em outro livro, Seis Balas num Buraco Só: a Crise do Masculino, narra
que “em muitas tribos, os bardaches, tipo de figura andrógina, acompanhavam os homens, na caça
ou na guerra, cozinhando para eles e servindo-os sexualmente. (...) Muito frequentemente, os
bardaches casavam-se com outros homens da sua tribo, como constatou-se, por exemplo, entre os
Karankawa”. (TREVISAN, 1998, p. 117)

Levítico 18:22
Grande parte da moral ocidental, assim como suas modernas leis, deriva do direito hebraico.
É justamente no Código Sacerdotal ou Lei da Santidade, especificamente o versículo 22, do capítulo
18 do Levítico que diz: “E com homem não te deitarás como se fosse mulher; é uma abominação”
(Bíblia Hebraica). Mas parece que há uma explicação, uma razão, para a proibição, logo abaixo, no
versículo 27 do mesmo capítulo: “Porque todas estas abominações fizeram os homens da terra que
estavam antes de vós, e a terra impurificou-se” (Bíblia Hebraica). A pena para tal ato é dada no
versículo 29: banimento do meio do povo de Israel. Portanto, o versículo 22 tem trazido grande
sofrimento para muitos dos judeus que são gays. No entanto ele é ambíguo, pois o sexo entre um
homem e uma mulher pode ser vaginal, anal ou oral; apesar da forma mais comum ser a vaginal. Se
o autor de Levítico se refere a sexo vaginal, então um homem não poderá jamais se deitar com outro
homem como se fosse mulher, pois homens não têm vagina. Atualmente, estudiosos eruditos da
Bíblia sugerem uma enorme variedade de significados para o versículo. A interpretação rabínica
clássica, existente desde a Idade Média é a de que o versículo estaria proibindo sexo anal entre
homens – algo cruel de se exigir dos homossexuais. Mais cruel ainda seria a sugestão do celibato;
afinal de contas celibato é uma doutrina espiritual Católica e não Judaica, de acordo com (DORFF,
2009, p. 153-154, tradução nossa).
Steven Greenberg, primeiro rabino ortodoxo norte-americano a se declarar publicamente gay,
no seu livro Wrestling with God and Men: Homosexuality in the Jewish Tradition (“Lutando contra

293
Deus e os Homens: Homossexualidade na Tradição Judaica”) apresenta quatro justificativas que
poderiam corroborar essa proibição de Levítico 18:22.
1 – A justificativa da reprodução. A lei proíbe essa forma de expressão sexual pois o casal
não pode gerar filhos. 2 – A justificativa do rompimento social. A lei tenta impedir que
maridos abandonem suas esposas por uma aventura com homens. 3 – A justificativa da
confusão entre categorias. A lei proíbe uma forma de relacionamento sexual que confunde
as categorias do feminino e do masculino. 4 – A justificativa da humilhação e violência. A
lei proíbe uma forma de expressão sexual que é, por definição, guiada pelo poder, controle,
e dominação. (GREENBERG, 2004, p.144-145, tradução nossa).

As duas últimas merecem considerações. No livro de Gênesis o homoerotismo sempre aparece


em contextos violentos. Cam, filho de Noé, estupra seu pai. A violência sexual entre homens continua
na história de Sodoma. Os filhos de Sodoma não podem ser culpados por perversão sexual, mas sim
pela humilhação de estrangeiros. O estrangeiro que deveria ser convidado para a proteção do lar (No
caso eram anjos em corpos de humanos.), é saudado por um clamor de muitos para ser submetido a
violentos favores sexuais. O que Levítico então proíbe é a humilhação de um camarada pela
penetração sexual, o desejo de humilhar o outro através da violação do seu corpo. Concluindo, o verso
proíbe o estupro e não o sexo consentido entre homens adultos.
E há ainda a questão hierárquica, a terceira justificativa da confusão entre categorias: feminino
e masculino. Na antiguidade judaica Deus está no topo, homens na base; homens no topo e mulheres
na base. Em relação a Deus, humanos são receptores; em relação aos homens, mulheres são
receptores. Assim como Deus governa os homens, os homens governavam as mulheres. Elas eram
seres de segunda categoria. A ordem foi criada para ser benéfica, mas seu potencial para a violência
está implícito.
No midrash, estudo ou ensinamento, sobre quatro governantes da antiguidade, entre eles
Nabucodonosor, e um dos faraós do Egito; todos os quatros se fizeram deuses, quiseram ser como
Deus, e por isso foram punidos e foram penetrados como mulheres. Tudo por causa da altivez deles.
E por terem violado a hierarquia de poder, terem se promovido ao status divino, sua punição foi o
rebaixamento ao status feminino, ao status de mulher. É uma punição típica de humilhação devido a
arrogância. E como humilhar um homem? Através da penetração sexual. E por que isso é humilhante?
Porque isso é o que um homem faz com uma mulher, de acordo com (GRRENBERG, 2004, p. 192-
194, tradução nossa).
Então concluímos que “se deitar com um homem como se fosse mulher” significa humilhá-
lo, rebaixá-lo, estuprá-lo. Não há relação alguma com a forma contemporânea de homossexualidade
entre dois adultos, algo consentido. Todavia esse significado de humilhação, rebaixamento e estupro
na antiguidade para o sexo entre iguais ainda permanece para muitos nos dias de hoje. Isso Greenberg
não menciona. É motivo de chacota entre heterossexuais e até entre gays em referência aos
homossexuais passivos.

294
Conclusão
Judith Butler acredita que o termo queer, como já foi pejorativo, e hoje para muitos já não o
é mais, jamais pode ser estático, assim como ela crê que a sexualidade não deve ser rígida mas fluida;
o termo também seguirá um continuum e será sempre mutante com múltiplos significados, conforme
(BUTLER, 2014, p. 318-319)
O que não é fluido mas estático é o modo como os ultraortodoxos lidam com a sexualidade.
Não apenas com a sexualidade mas com quase tudo. Eles se mostram primários e primitivos.
Interpretam quase tudo literalmente. Interpretam a Torá ou Pentateuco literalmente; razão pela qual
a homossexualidade é considerada pecado. Vide a análise de Levítico 18:22 acima. Suas roupas são
roupas que eram usadas na Europa do Leste no século XVIII. Eles literalmente esperam por um
messias de carne e osso que virá redimir o povo de Israel; ao contrário dos judeus liberais que creem
numa energia messiânica que virá com a Nova Era unindo todos os povos e trazendo uma era de paz
e bonança. Os ultraortodoxos creem, rezam e esperam pela reconstrução do Templo de Jerusalém!
Como assim?! O retorno do sacrifício de animais?! Parece que sim.
Difícil então esperar mudanças nesse tipo de comunidade. Mas acredite, pequenas já
acontecem e têm acontecido. Pelo menos no meio dos ortodoxos. Mulheres já não se sentam atrás e
homens na frente nas sinagogas. Agora elas sentam do lado esquerdo e os homens do lado direito.
Isso na comunidade Beit Chabad. Meninas agora são permitidas fazerem Bat Mitzvá. Antes só os
meninos faziam Bar Mitzvá. Essa é uma cerimonia de maioridade quando esses pré-adolescentes são
chamados à bimá ou púlpito e leem na Torá. Meninas aos 12 anos; meninos aos 13. Ao que tudo
indica parece que ainda há esperança.

Referências
BÍBLIA Hebraica. São Paulo: Editora e Livraria Sêfer, 2006. 877 p.
BLECH, Benjamin. O Mais Completo Guia Sobre Judaísmo. São Paulo: Editora e Livraria
Sêfer, 2004. 463 p.
BUTLER, Judith. Cuerpos Que Importan. Buenos Aires: Paidós, 2014. 345p.
BUTLER, Judith. Acerca del término “queer”. GLQ Journal, vol. 1, n. 1, Durham: Duke
University Press, outono de 1993. p. 314-339.
DORFF, Eliot. How Flexible Can Jewish Law Be? Parashat Acharei Mot (Leviticus 16:1-
18:30). In: Torah Queeries: Weekly Commentaries on the Hebrew Bible. New York and London:
New York University Press, 2009. cap. 29. p. 151-156.
GREENBERG, Steven. Wrestling with God and Men: Homosexuality in the Jewish
Tradition. Madison, Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 2004. 316 p.
HOFFMAN, Warren. The Passing Game: Queering Jewish American Culture. Syracuse,
NY: Syracuse University Press, 2009. 206 p.
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte:
Autêntica Editora: UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto, 2012. 78p.
SEDGWICK, Eve Kosofsky. A Epistemologia do Armário. Cadernos Pagu (28). Campinas,
janeiro-junho de 2007. p. 19-54.

295
TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: A homossexualidade no Brasil, da colônia
à atualidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000, 586p.
TREVISAN, João Silvério. Seis balas num buraco só: a crise do masculino. Rio de Janeiro:
Record, 1998, 236p.

296
NARRATIVAS DE JACQUELINE DE OYÁ E AIRÁ UMA MULHER NEGRA
DE AXÉ

Gisele Rose da Silva1

Resumo
Com base nas sabedorias ancestrais iremos propor um giro epistêmico através das narrativas da Yalorisha Omó
Oyá Jacqueline Costa zeladora do Ilê Oyá Gariazô localizado em Seropédica no Rio de Janeiro. O giro epistêmico
proposto neste resumo, nos indica a importância da inserção destas epistemologias outras nos variados âmbitos de
produção de conhecimento, considerando vivências e práticas. Neste contexto percebemos este outro horizonte filosófico
como uma prática de vislumbrar intersecções relevantes para compreender as questões relacionadas aos saberes de axé
conduzidos por meios materiais e simbólicos. O objetivo deste resumo é compreender narrativas que durante muito tempo
foram perseguidas, menosprezadas, ocultadas e demonizadas dentro de nossa sociedade, construindo um percurso de
valorização e visibilidade dos saberes de terreiro, através de uma mulher negra de 49 anos, mãe de 04 filhos, avó de 02
netas, iniciada a 32 anos no Candomblé e a 10 anos em Ifá. Dentro de uma perspectiva interseccional dos atravessamentos
demonstrados nas narrativas da Yalorisha Jacqueline, transitamos pelos caminhos da religiosidade de uma mulher negra,
mãe e empreendedora que através da espiritualidade mostra saberes, práticas e vivências dos tantos cotidianos presentes
em sua existência ressaltando subjetividades únicas e diversas.
Palavras-chave: Axé, Mulheres Negras, Espiritualidade, Narrativas.

Com licença Zambi eu vou abrir minha Urucaia


Pedimos licença para iniciar este trabalho através das narrativas da Yalorisha2 Omó Oyá
Jacqueline Costa iremos propor um giro epistêmico na construção dos saberes filosóficos de axé.
Demonstrando (PEREZ, 2003) que as narrativas biográficas se constituem como fragmentos
discursivos sobre a vida daquelas e daqueles que as relatam, fornecendo informações relevantes para
configurar o reencontro de experiências vividas, pois narrativas autobiográficas implicam num
sistema de interpretação e construção que situa, une e faz significar os acontecimentos da vida como
elementos organizados dentro de um todo e que também significa um projeto de si dentro de uma
construção biográfica.
Neste aspecto, o objetivo deste artigo é perceber a importância de narrativas que durante muito
tempo foram perseguidas, menosprezadas, ocultadas e demonizadas dentro de nossa sociedade, e a
partir disto, construir um percurso de valorização e visibilidade, pois:
A perspectiva narrativa se tornou tão relacionada a histórias, geralmente tratadas como textos
ouvidos ou contados, no entanto, as histórias de pesquisadores narrativos mostram que a
pesquisa narrativa é muito mais do que ouvir histórias, é uma forma de viver, é um modo de
vida, conforme Clandinin e Connelly (2011). Pesquisa narrativa é um processo de
aprendizagem para que se possa pensar narrativamente, para que se atente para as vidas,
enquanto vividas narrativamente (SAHAGOFF, 2015, p. 02).

Neste sentido, iremos demonstrar que todo e qualquer saber de axé envolve um compromisso
sério com o conhecimento, pois abordam as ritualísticas, os estilos de pensamento e os modos de

1
Graduada em Filosofia pela UFRJ. Mestre em Relações Étnico-Raciais CEFET-RJ. Atualmente atua como professora
de filosofia na SEEDUC-RJ. Email: rose.gisele@gmail.com.
2
Yalorisha (grafia utilizada por Jacqueline Costa), ialorixá, yalorixá ou mãe de santo, cargo designado sacerdotisa de um
terreiro, seja ele de Candomblé, Umbanda ou Quimbanda.

297
existência da cultura afro-brasileiras com base no valor civilizatório afro-brasileiro do axé
(TRINDADE, 2005).

Yansã mora na pedreira eu quero ver meu Pai Xangô


Compreender que ao observamos a grande quantidade de mulheres negras que ocupam
diversos cargos nos setores da sociedade, percebemos que ainda nos olham como aquelas que muito
têm a oferecer e pouco a receber, pois ainda hoje é negada a humanização, inclusão e inserção social
da mulher negra em alguns espaços de forma igualitária, esta afirmativa é de suma importância pois
as narrativas apresentam situações que em função do pensamento colonial foram subjugadas e
desumanizadas e não compreendidas como uma possibilidade outra de entendimento da subjetividade
de mulheres negras de axé.
Dito isto, iremos desbravar os percursos narrados pela Yalorisha Jacqueline que transitam pela
maternidade, empreendedorismo, religiosidade, espiritualidade e axé, propondo um olhar
diferenciado sobre as subjetividades e compreendendo a grandiosidade das vivências de uma mulher
negra de axé, e perceber muitos pontos de entrecruzo presentes nas nossas histórias, como a presença
da religiosidade enquanto valor civilizatório afro-brasileiro, que para a nação afrodescendente,
(TRINDADE, 2005) que seria mais do que uma religião, mais sim, um exercício permanente de
respeito à vida e doação ao próximo.
Eu me chamo Jacqueline Costa e nasci em 29/06/1971. Filha carnal de Osmar Bernardo da
Costa (in memoriam) mais conhecido como Mazinho 7 capas. Aos 02 anos de idade tive o
meu primeiro desmaio longo nessa época meu pai já estava no processo de separação de
minha mãe, mesmo assim ainda era presente, e quando aconteceu teve a intuição que aquele
estado não era só um desmaio e sim minha espiritualidade se manifestando. No mesmo
momento, conta minha mãe ele fez algumas coisas, mas por ser católica convicta não
entendeu, porém, permitiu e assim me recuperei. Após esse acontecimento não tive mais os
desmaios, mas por ser uma criança extremamente agitada vivia me quebrando, inclusive
quebrei quase o corpo todo, minha mãe sem saber o que fazer, fez uma promessa para nossa
senhora Aparecida que se eu parasse de me quebrar aos 07 anos eu seria levada sua igreja
para pagar a promessa. E assim foi. Após pagar essa promessa eu comecei a ter outros tipos
de problemas, e minha tia Norma que é baiana e espírita resolveu me levar num centro de
umbanda para me rezar. E ali naquele dia que era véspera do meu aniversário, houve minha
primeira incorporação com os espíritos3 (ENTREVISTA CONCEDIDA POR
JACQUELINE COSTA EM 06/02/2021).

A religiosidade está presente na diáspora com o propósito de nos fazer acreditar em momentos
melhores, como manutenção não de uma “fé cega”, mas num refúgio onde possamos nos proteger
das mazelas do mundo. A propósito, em tempos de tanta violência gratuita, vale pontuar que a vida é
um dom divino, de caráter transcendental, e deve ser usada para cuidar de si e do outro. O cruzo de
religiões, os olhares diferenciados sobre um mesmo acontecimento, as possibilidades variadas de

3
Narrativa enviada pela Yalorisha Jacqueline Costa no dia 06 de fevereiro de 2021 por meio digital, sendo preservada a
grafia.

298
contar a mesma estória, destacam a amplitude da compreensão de saberes e a abertura para
entendimento de perspectivas outras.
Nasci para o Orixá no mesmo dia que nasci pra vida 29/06/1988. E eu nasci para o Orixá
AIRÁ e OYÁ. ou Zazi Luango e Matamba. Como eu e minha mãe nada entendíamos e aquele
mundo pra nós era desconhecido o que meu pai falava era lei. O responsável pela minha
Iyalorisa era meu próprio tio Adhemar D Omolu, e a minha mãe era Yara D OXOSSI, mas
meu pai era ANGOLEIRO. E eu herdeira da cadeira, pois DANDALUNDA que fez questão
de vir e quando tudo se conclui, e disse meu cargo IYALORISA ou MAMETU. E me sentou
na cadeira, eu não entendia nada então nem sabia o que estava acontecendo. Mais hoje eu sei
e a partir disso minha vida tomou outra direção. Cumpri meus preceitos de Iyawo e muitas
coisas aconteceram com a minha Iyalorisa e quem me amparou e cuidou de mim foi minha
madrinha de Morunkó, mãe Celina D' Yoba, graças a ela me formei na enfermagem e dei
continuidade no candomblé. Aos 24 anos de vida paguei minha obrigação de 7 anos para
AIRÁ e somente aos 09 anos de santo consegui me encontrar nesse turbilhão chamado
candomblé. Aonde tive o Amparo religioso que certo ou errado salvou minha vida pela
Iyalorisa Selma D Aira, que organizou minha vida dentro do Candomblé. Passei a ser
conhecida como Jacqueline D'Oya e não era mais a XANGOZINHO. Mais jamais vou deixar
de ser do Orixá que nasci até porque ele é PRESENTE até hoje, e tenho tudo que um rei
precisa, pois ele é meu Pai Xangô e minha vida e Oya meu Ar. Passei a ser Ori Meji como
dizem. Após essa mudança me enfiei mais ainda no candomblé, pois dentro desse tive muitas
passagens que uma hora escrevo um livro e assim relato tudo que de fato luto pra que não
aconteça com ninguém que a espiritualidade escolha (ENTREVISTA CONCEDIDA POR
JACQUELINE COSTA EM 06/02/2021).

Uma das grandes questões presentes na narrativa da Yalorisha Jacqueline é o fato de


demonstrar a relevância de fatos, datas, nomes e locais, pois dentro de uma perspectiva de construção
de saberes filosóficos de axé, inserir estes dados nos mostra a existência de práticas ancestrais que se
apresentam durante muitos períodos, mas que em função do racismo religioso foram desconsiderados
como saberes.
As narrativas da Yalorisha Jacqueline nos demonstram a importância do sagrado para a
vivência de uma mulher negra que desde cedo já havia sido escolhida pela ancestralidade para seguir
os caminhos do axé. Através da sua narrativa percebemos a relevância das vivências e subjetividades
dos mais velhos, que nos mostram e trazem as ricas vivências e práticas da cultura e religiosidade
afro-brasileira.
É importante enfatizar a importância das mulheres negras na ótica da religião de origem
africana, pois estas simbolizam a força matriz que valoriza o sagrado feminino como fonte constante
e energia, equilíbrio e axé. Dito isto, através das narrativas da Yalorisha Jacqueline iremos perceber
a presença da ancestralidade, num processo de busca e valorização daqueles e daquelas que estiveram
presentes nos variados momentos de sua existência, representado uma fonte inesgotável de construção
de valores e saberes.
Ressaltamos também a importância de iniciar uma narrativa através da ancestralidade como
valor civilizatório fundamental para a construção da identidade da Yalorisha Jacqueline,
demonstrando que se torna imprescindível compreender nossos passos através da valorização dos
nosso ancestrais, pois:

299
Para a religião tradicional africana, antes de uma criança nascer – ou renascer –, vai até
Olorum, o Deus supremo, para receber um novo corpo, um novo sopro vital e um destino
para sua nova vida na Terra. Ajoelhado diante de Olorum, cada ser tem oportunidade de
escolher o próprio destino.
O destino tem um dia marcado no qual os seres devem voltar para o orum e abrange a
personalidade do indivíduo, sua ocupação e sua sorte. Assim, o dia da morte não pode ser
adiado, mas outros aspectos do destino da pessoa podem ser modificados por atos humanos,
por seres e forças sobrenaturais. Por isso, durante toda a vida a pessoa tem de oferecer
sacrifícios a seu anjo da guarda (à sua cabeça) e às divindades (THEODORO, 2014, p. 74)

Um fator importante a ser mencionado é que propomos um outro horizonte filosófico, pautado
em narrativas orais advindas de uma dimensão ancestral, promovendo uma transgressão na
compreensão de existências.
Pensar sobre os saberes de axé no âmbito filosófico é compreender o sentido de uma
epistemologia que foi subalternizada em função do racismo religioso (NOGUEIRA, 2020) que, tem
como alvo um sistema de valores cuja origem nega o poder normatizador de uma cultura eurocêntrica
hegemônica cristã, pois:
O racismo religioso, quer matar existência, eliminar crenças, apagar memórias, silenciar
origens. É a existência dessas epistemologias culturais pretas que reafirmam a existência de
corpos e memórias pretas. É a existência dessas epistemologias pretas que evidenciam a
escravidão como crime e o processo de desumanização de memórias existências pretas.
Aceitar a crença do outro, a cultura e a episteme de quem a sociedade branca escravizou é
assumir o erro e reconhecer a humanidade daquele que esta mesma sociedade desumanizou
e matou (NOGUEIRA, 2020, p. 123).

O giro epistêmico proposto neste trabalho, nos indica a importância da inserção destas
epistemologias pretas nos variados âmbitos de produção de conhecimento, considerando vivências e
práticas. Neste contexto percebemos este outro horizonte filosófico como uma prática de vislumbrar
intersecções relevantes para compreender as questões relacionadas aos saberes de axé conduzidos por
meios materiais e simbólicos.

Fechamos a nossa gira


Ao encerrarmos esse giro epistêmico com base nos saberes filosóficos de axé, podemos
perceber que os caminhos trilhados através da espiritualidade e da religiosidade se entrecruzam com
a experiência vivida apresentada nas narrativas da Yalorisha Jacqueline.
Compreender a importância desse cruzo é o objetivo principal desses escritos, ressaltando
todas as intersecções e subjetividades presentes na existência, pois a episteme preta, apresentada pela
Yalorisha Jacqueline é a episteme da vida, do caminho completo e menos fácil, mas que valoriza a
jornada (NOGUEIRA, 2020).
Pensar sobre questões oriundas dos caminhos de mulheres negras, entrelaçando com a
vivência de axé é uma tarefa que deve estar presente no cotidiano, compreendendo a necessidade de

300
forjar epistemologias outras que irão ressaltar práticas que forma consideradas subalternas por um
racismo religioso ainda hoje vigente em nosso país.
Aqui, ressaltamos saberes de uma ancestralidade que se apresenta em ritos, narrativas e mitos
que se propõe a através do valor civilizatório afro-brasileiro do axé nos dar uma perspectiva
diferenciada para as nossas ações futuras.
A narrativa da Yalorisha Jacqueline Costa vislumbra a necessidade de inserção de narrativas
outras que comtemplem existências e subjetividades percebendo a relevância da experiência do
vivido para refletir sobre saberes outros.
Que os saberes filosóficos de axé sejam cada dia mais divulgados e apresentados como formas
únicas, porém diversas de busca de um sagrado que se manteve vivo e pujante nas comunidades de
terreiro, e que apesar de toda a tentativa de desmonte deste arcabouço milenar resistem ainda hoje.
Encerramos com a esperança de que Yalorisha Jacqueline e tantas outras Yalorishas da
diáspora possam passar seus saberes e que suas estórias estejam presentes nos diversos espaços, mas
principalmente que nossa sociedade possa compreender e respeitar as práticas e vivências de terreiro,
e não apenas tolerá-las.

Referências
NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância Religiosa. São Paul: Sueli Carneiro; Pólen, 2020.
PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal. Professores alfabetizadores: histórias plurais, práticas
singulares. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
SAHAGOFF, Ana Paula. Pesquisa Narrativa: uma metodologia para compreender a
experiência humana. XI Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação SEPesq, 2015. Disponível
em: <https://www.uniritter.edu.br/files/sepesq/arquivos_trabalhos/3612/879/1013.pdf> Acesso em
08 de março de 2021.
THEODORO, Helena. Religiões afro-brasileiras. In: Guerreiras de natureza [recurso
eletrônico]: mulher negra, religiosidade e ambiente/organização Elisa Larkin Nascimento – recurso
digital: il. (Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira; 3). São Paulo: Selo Negro, 2014.
TRINDADE, Azoilda Loretto da. Valores Civilizatórios Afro-brasileiros na educação infantil.
MEC− Valores afro-brasileiros na Educação. Boletim, v. 22, 2005.

301
MORADA DA FÉ: O CORPO COMO CATEGORIA SUBSTANCIAL DE SER

Beatriz de Oliveira Pinheiro1

Resumo
Entender o corpo como categoria substancial do ser configura o ponto de partida para um estudo honesto sobre
as vivências da fé, uma vez que essa toma sentido junto da existência de uma sujeita, ou sujeito, que sente, e esse sentir,
por sua vez, é um sentimento situado, tanto em uma geografia espacial, quanto corporal. Visto isso, nesta comunicação,
parto da categoria de corpo como possibilidade de falar sobre a fé, sendo ele, portanto, sua morada. Tenho por objetivo
evidenciar a corporeidade como ponto de partida necessário para um estudo honesto acerca do sentimento de fé. Em um
primeiro momento, partindo da análise bibliográfica, explanarei a ontologia corporal trabalhada por Judith Butler em
Quadros de guerra. Em seguida, aproximarei sua teoria da Teologia Indecente de Marcella Authaus-Reid apontando a
necessidade de partirmos do real tanto nos estudos teológicos quanto nos estudos científicos sobre religião, visando uma
queerização da Ciência da Religião. Por fim, tratarei o corpo não só como morada da fé, mas também como motivo de
sua agência. Concluo abordando a necessidade de falar não só da ingerência religiosa sobre o corpo como também desta
inversão necessária: é o corpo quem possibilita a fé, ele é essência.

Introdução
O título atribuído a essa comunicação foi “Morada da fé: o corpo como categoria substancial
de ser”. Logo de início é possível identificar pontos importantes a serem trazidos: a morada enquanto
forma hermenêutica de se compreender o espaço de desenvolvimento da fé, da ética e dos valores; o
corpo como reivindicação desse espaço para que algo possa ser; e também a atribuição dada a ele de
“essência” neste processo de desenvolvimento do sentimento. Dizer que o corpo é morada, que ele é
categoria substancial de ser, e que ele é ambiente da fé, é como trocar as lentes que outrora olhávamos
para o fenômeno religioso dentro do campo. Isso não é o mesmo que dizer que o corpo hospeda o que
importa, que neste caso seria a fé ou os sentimentos, mas sim que a corporeidade direciona tanto a
forma com que elaboramos esse sentimento, quanto a nossa situação, isto é, a forma com que nos
situamos no mundo e somos atravessados pelas relações sociais. Por esse motivo o corpo é essência,
é substância.
Essa mudança de percepção se faz junto de uma educação um tanto quanto transgressora nos
estudos dentro das Ciências da Religião, visto que atribui corpo e geografia àquele fenômeno que se
pretende estudar, utilizando categorias como forma de abrir o diálogo, nunca de encerrar as
possibilidades de ser. Os sujeitos de fé não são, portanto, sujeitos abstratos. Pelo contrário, a
concretude da vida torna-se parte do estudo e não deve de forma alguma ser ignorada, visto que
participa do tornar-se sujeito que todos nós somos submetidas e submetidos.
Nessa linha de raciocínio, o corpo não é representação da imperfeição e do que pode morrer,
sofrer ou pagar pelo aprimoramento dos valores. Deixa de ser cárcere e se torna essência para a
vivência de qualquer sentimento de fé. A essência, nesse sentido, se aproxima mais de uma
materialidade da vida enquanto vai se distanciando da perspectiva metafísica. Não obstante, é

1
Bacharela em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, e-mail: beatrizopinheiro@hotmail.com.

304
evidente que não inovo ao colocar que o conhecimento passa pelos sentidos, mas o que quero dizer é
que a corporeidade deve ser compreendida nesse exercício reflexivo que se faz acerca das imagens
religiosas bem como de suas representações para que acessemos uma vivência realista da
espiritualidade e de seus adeptos. Ou seja, para que estudemos a espiritualidade de uma forma mais
honesta conosco, com o campo e com a realidade concreta de pessoas reais que vivem vidas reais
É evidente que categorias como a sexualidade, a economia, os marcadores sociais de raça,
classe e gênero não podem ficar de fora desse fazer científico. As estatísticas mais recentes que
utilizamos nos estudos de religião completaram dez anos em 2020. Nelas, conseguimos fazer um
cruzamento de dados verticais e horizontais que nos ajudam a compreender a diversidade religiosa
junto de fatores socioeconômicos que evidentemente impulsionam em parte a vivência ou a não
vivência da fé, assim como a afiliação ou não afiliação a instituições. No entanto, as estatísticas não
são suficientes por alguns motivos.
Um deles, diz respeito ao caráter abstrato próprio das estatísticas. Não estamos lidando com
histórias de vidas individuais de pessoas que relatam seus motivos detalhados para seguirem ou
romperem com determinadas tradições. Outro, envolve um jogo de subjetividades que se chocam
durante o recenseamento. Temos presente, além do recenseador e do entrevistado, uma aura de
preconceitos com determinadas tradições religiosas que podem coagir o entrevistado durante a coleta
dos dados. Isso não significa que o trabalho do Censo do IBGE seja dispensável, visto que, nas
Ciências da Religião, é a forma mais confiável que temos para olhar o fenômeno religioso no âmbito
nacional, e posteriormente estabelecer comparações internacionais. O que digo aqui é que ele, por si
só, não basta.
Não atoa nossa área se estrutura de forma empírica e/ou sistemática. E enalteço aqui a riqueza
de unir essas perspectivas nos estudos que falam de sujeitos marginalizados pela história. Por isso, a
corporeidade se faz importante nestes estudos, visto que ela também fora construída e ignorada pelas
epistemologias hegemônicas, pelas narrativas hegemônicas de religião, ou religiosidade. Mas fato é
que os corpos, e com eles os sexos, os desejos e o tesão são múltiplos e soltos. Toda tentativa de
categorizar sujeitos e sujeitas em que se pretenda fechar o diálogo, carrega consigo a frustração da
falha. Quando pensamos que compreendemos um fenômeno por completo, ou esquecemos de olhar
para algo ou algo já mudou seguindo a fluidez da vida que se faz atravessada pela mudança desde a
mais jovem existência.
Retomando a importância da corporeidade, este movimento de trazer para o corpo a categoria
ontológica de ser foi feito pela filósofa política Judith Butler. Para ela, quando perguntamos sobre “o
que é uma vida?”, ou melhor, sobre “o que são os enquadramentos que permitem a apreensão de uma
vida?” o problema é, por um lado, de ordem epistemológica visto que esses enquadramentos estão
politicamente saturados. Essas molduras, diz Butler, são operações de poder. E por outro lado, o

305
problema é de ordem ontológica, visto que a investigação é sobre o que é, ou quem é. Trata-se de
uma investigação do “ser”. Desse modo, Butler constrói uma ontologia corporal a partir da
investigação do que é sujeita, ou sujeito, e quais vidas podem ser apreendidas enquanto tais.
A autora de Problemas de gênero nos diz que para que a ontologia do corpo seja respeitada é
necessário perceber o outro enquanto sujeito. Para isso, temos que compreender a vulnerabilidade da
vida como condição. Todos nós nascemos vulneráveis e precisamos de cuidados primários antes
mesmo de compreendermos quem é o outro e quem propriamente somos. Essa condição precária, no
entanto, não é atribuída a todos os sujeitos e sujeitas. Os enquadramentos, que funcionam como
estruturas a priori e direcionam o nosso olhar para o fenômeno, deixam às margens vidas que não são
apreendidas enquanto tais.
E é nas margens que encontramos outra história a respeito da humanidade, assim como outros
valores a respeito do belo e do virtuoso. As narrativas produzidas a respeito da construção e vivência
da fé que são elaboradas nestes contextos nos ajudam a perceber a não linearidade da história e da
descrição de fatos históricos. Por se tratar de vidas marginalizadas, enquadradas como tal, essas
vivências ficam nos bastidores da História e são desconsideradas nos estudos que precisam de ir ao
campo. Ora, como vamos ampliar nossa compreensão de mundo se parte das vivências não são
investigadas? No Brasil, por exemplo, como vamos compreender os sem-religião ignorando esses
atravessamentos que falei logo acima se temos no mesmo campo teólogas, prostitutas, professoras,
mulheres trans, mulheres cis, mulheres ricas, mulheres pobres? Ou melhor, dessas mulheres acima,
quais são procuradas quando se vai investigar os sem-religião?
No trabalho que desenvolvo no mestrado, investigo a espiritualidade não religiosa de
profissionais do sexo da Rua Guaicurus. Quando eu escolhi o tema, ou quando ele me escolheu, não
percebi onde estava me metendo. Quando percebi, vi que era um caminho sem volta, pois quando
você decide olhar para o mundo na sua mais perfeita imperfeição e defender o campo dentro e fora
das academias algo quebra na fábula pessoal da cientista neutra.
Dentro de um Hotel de prostituição da Rua Guaicurus, por exemplo, encontrei mais do que os
livros me dizem que é a diversidade. Hoje percebo que estudiosos e estudiosas do diálogo inter-
religioso deveriam frequentar mais esses hotéis, não para ensinar algo com suas palestras, ou perceber
o campo como um totalmente Outro, mas para aprender sobre a convivência com o diferente e as
redes que se formam nas margens. Não faço aqui uma fetichização da prostituta, ou da prostituição,
não pensem por esse lado. Mas tenho percebido que as redes de apoio que se construíram na
Guaicurus através dos coletivos são atravessadas pela intersubjetividade. São profissionais do sexo
que se unem, se defendem e se representam diante de uma causa sem deixar de lado as subjetividades
envolvidas, que posso afirmar, são diversas.

306
Essa necessidade de partir da realidade para estudar o fenômeno religioso encontrei a partir
das leituras que fiz e estou fazendo de duas autoras: Judith Butler e Marcella Althaus-Reid. A
primeira, já mencionada nesta comunicação, produz seus textos em um contexto diferente do meu,
mas que me acordaram para os estudos sobre subalternidade. A noção de Butler de que temos que
enquadrar os enquadramentos e suspeitar de políticas sexuais que repetem narrativas hegemônicas
me atentou, enquanto pesquisadora, para as armadilhas que a nossa profissão pode nos preparar.
Considerar a corporeidade como parte essencial dos estudos sobre o fenômeno religioso e o campo
não é um movimento que pode abdicar das problemáticas econômicas e raciais, por exemplo.
A segunda, Marcella Althaus-Reid, é minha mais recente surpresa. A teóloga argentina que
compartilha comigo a natureza latino-americana molda uma teologia que flui no que ela chama por
indecência. Os estudos de Marcella fluem tanto que não dá para fechá-los na Teologia. Da mesma
forma que a autora passeia por diversas áreas para compreender a forma com que o cristianismo se
estabeleceu na América Latina e como as noções cristãs de decência foram importantes no processo
de colonização dos corpos e dos saberes, suas conclusões que estão abertas às mudanças do tempo,
podem, e devem ser trazidas para diversas áreas.
A teologia indecente é aquela que não se esquiva da sexualidade no momento da oração, e não
ignora a fome das pessoas empobrecidas. Os pênis e vaginas, e braços e narizes, e olhos e bocas, e o
corpo como um todo, dos teólogos e teólogas não somem durante a reza, assim como os corpos e
vivências sexuais das pessoas latino-americanas, principalmente de mulheres latino-americanas, não
mudam apesar do culto à castidade e a pureza. A idealização de uma figura representativa que exalta
a virgindade se faz necessária para a castração das mulheres que percebem desde cedo que não são
adequadas para o espaço público.
O que aproxima as duas autoras — apesar de Marcella ter uma perspectiva materialista
enquanto Judith Butler fala de uma ontologia corporal — é a necessidade de se olhar para o mundo
da forma que ele é, percebendo que as relações são políticas. A indecência que temos que ter em
nossos estudos nas Ciências da Religião significa sair deste pódio de neutralidade que nos foi
ensinado com a clássica distinção do que é ciência. Não existe neutralidade, existe respeito e
reconhecimento do outro como sujeita e sujeito, e isso é o que deve reinar nos estudos que têm como
categorias de análise as problemáticas de gênero, raça e classe.

Referências bibliográficas
ALTHAUS-REID, Marcella. Teología indecente. Barcelona: Ediciones Bellaterra, 2005.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2018.

307
A FRATERNIDADE CONTRA A VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Luís Felipe Lobão de Souza Macário1

Resumo
Artigo sobre a Campanha da Fraternidade Ecumênica realizada no ano de 2021 – com o tema “Fraternidade e
diálogo: compromisso de amor” e com o lema “Cristo é a nossa paz: do que era dividido fez uma unidade” – e sua
repercussão, utilizando como principal fonte de pesquisa seu manual para, através de uma leitura exploratória, analítica,
interpretativa e crítica, destacar sua origem, sua organização, seus objetivos gerais e específicos, assim como o tratamento
dado às questões de gênero, tendo por meta identificar sua preocupação em relação à violência praticada contra as
mulheres e a população LGBTQI+. Partindo de um pequeno histórico sobre as origens das campanhas da fraternidade
ecumênicas, o trabalho tem, por conclusão, a constatação de que alguns dos pontos positivos gerados pela CFE 2021,
como, dentre outros, a denúncia das diferentes violências praticadas em nome de Jesus e a promoção de uma cultura do
amor de forma a superar a cultura do ódio, acabou por gerar forte reação de grupos cristãos ultraconservadores –
principalmente católicos –, que acusaram a Campanha de promover uma suposta “ideologia de gênero”.
Palavras-chave: Religião, Ecumenismo, Campanha da Fraternidade, Gênero.

Introdução
Este trabalho – construído a partir de uma leitura exploratória, analítica, interpretativa e crítica
do manual da Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021 (CFE 2021) – com o tema “Fraternidade
e diálogo: compromisso de amor” e com o lema “Cristo é a nossa paz: do que era dividido fez uma
unidade” –, assim como de literatura relacionada à Campanha da Fraternidade, pretende discorrer
sobre o tratamento dado às questões de gênero, tendo por meta identificar sua preocupação em relação
à violência praticada contra as mulheres e a população LGBTQI+. O texto está dividido em três
partes. Na primeira, trato sobre as origens das Campanhas da Fraternidade Ecumênicas. Na segunda,
abordo a Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021, com ênfase ao tratamento dado às questões de
gênero. Finalmente, na terceira, procuro expor algumas reações de grupos cristãos ultraconservadores
– principalmente católicos – à CFE 2021.

A Campanha da Fraternidade
A CF nasceu na Arquidiocese de Natal, na Quaresma de 1962. D. Eugênio Sales, então
administrador apostólico local, era responsável pelo Secretariado Nacional de Ação Social da CNBB
– Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – e presidente da Cáritas Brasileira, organismo nascido
em 1957. Para que esta não fosse simples executora de programas de assistência social estabelecidos
pelo convênio entre CNBB e Catholic Relief Service (CRS), órgão da Conferência dos Bispos dos
EUA, surgiu a ideia de dinamizá-la através de uma campanha nacional – uma atividade ampla, em
tempo determinado, com arrecadação financeira, mas que também deveria promover a fraternidade
cristã, mediante o auxílio aos necessitados (cf. PRATES, 2007, p. 22; CNBB, 1983, p. 19 et seq.).

1
Mestrando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail:
lfelipemacario@uol.com.br.

308
Em dezembro de 1964, os bispos do Brasil aprovaram Campanha da Fraternidade – Pontos
Fundamentais apreciados pelo Episcopado em Roma, primeiro fundamento para organizar a CF, e,
em 1965, a CNBB assumiu toda a organização e implementação da Campanha. Desde então, a Igreja
Católica Romana no Brasil realiza um grande trabalho de animação evangelizadora, optando por um
caminho fraternal-libertador na perspectiva da construção do Reino do Deus-Pai, através da CF, uma
das principais atividades da Conferência. Sugerido o método ver-julgar-agir para mediar a formação
dos militantes cristãos, como proposto pelo Papa João XXIII em sua Encíclica Mater et Magistra, ele
também foi utilizado pela CF, com o ver significando a dimensão que auxilia a conscientização diante
das ambiguidades da realidade; o julgar, a que possibilita juízo crítico e discernimento, cujos critérios
são a Palavra de Deus e o ensinamento do Magistério da Igreja; e o agir, a dimensão que dinamiza
novas estratégias de ação em busca de transformar a realidade, no horizonte do projeto fraternal de
Deus-Pai (cf. CNBB, 1983, p. 8 e 23 et seq.; PRATES, 2007, p. 25 e 32 et seq.).
Conforme sugerido pela CNBB, a CF de 2000, organizada pelo Conselho Nacional de Igrejas
Cristãs do Brasil (CONIC), foi ecumênica, trazendo como tema Dignidade Humana e Paz e, como
lema, Novo Milênio sem Exclusões, prosseguindo a temática em torno dos grandes flagelos sociais
que excluem grande parte de empobrecidos da sociedade brasileira (cf. PRATES, 2007, p. 67). Em
seu texto-base, foi dito que o objetivo geral da CFE-2000 era “unir as Igrejas cristãs no testemunho
comum da promoção de uma vida digna para todos, na denúncia das ameaças à dignidade humana e
no anúncio do evangelho da paz”, enquanto, dentre os objetivos específicos, estavam “propor uma
prática de vida em que valores morais e éticos exaltem a dignidade da pessoa, evitem as exclusões
que marginalizam pessoas e grupos, criem condições de paz na convivência cotidiana”, assim como
“valorizar a contribuição indispensável da mulher nas Igrejas e na sociedade, na busca da superação
dos papéis culturalmente impostos” e “defender os direitos das minorias frágeis e marginalizadas,
contra as discriminações raciais, étnicas, culturais e religiosas” (CONIC, 2000, p. 22 et seq.).
Em 2005, a segunda CFE teve como tema Solidariedade e Paz e, como lema, Felizes os que
promovem a Paz. O texto-base esclareceu que o objetivo geral da CFE-2005 era “unir Igrejas cristãs
e pessoas de boa vontade na superação da violência, promovendo a solidariedade e a construção de
uma cultura de paz”, sendo objetivos específicos, dentre outros, “promover ações públicas para
reformar e aperfeiçoar a legislação e as instituições responsáveis pela segurança pública, tendo em
vista o respeito aos direitos humanos e a sua inviolabilidade” e “colocar-se ao lado dos desfavorecidos
e contribuir para soluções não violentas dos conflitos sociais” (CONIC, 2005, p. 47 et seq.).
A CFE-2010 teve como tema Economia e Vida, e, como lema, Vocês não podem servir a Deus
e ao Dinheiro (Mt 6,24). O texto-base apresentou como objetivo geral, naquele ano,

309
colaborar na promoção de uma economia a serviço da vida, fundamentada no ideal da cultura
da paz, a partir do esforço conjunto das Igrejas Cristãs e de pessoas de boa vontade, para que
todos contribuam na construção do bem comum em vista de uma sociedade sem exclusão
(CONIC, 2009, p. 21),

e como objetivos específicos “sensibilizar a sociedade sobre a importância de valorizar todas as


pessoas que a constituem” e “mostrar a relação entre fé e vida, a partir da prática da Justiça, como
dimensão constitutiva do anúncio do Evangelho”, dentre outros (CONIC, 2009, p. 21 et seq.).
A CFE-2016, cujo tema foi Casa Comum, nossa Responsabilidade, tendo como lema Quero
ver o Direito brotar como Fonte e correr a Justiça qual Riacho que não seca (Am 5,24), apresentou
o objetivo geral de “assegurar o direito ao saneamento básico para todas as pessoas e empenharmo-
nos, à luz da fé, por políticas públicas e atitudes responsáveis que garantam a integridade e o futuro
de nossa Casa Comum” e, dentre seus objetivos específicos, “unir igrejas, diferentes expressões
religiosas e pessoas de boa vontade na promoção da justiça e do direito ao saneamento básico” e
“desenvolver a compreensão da relação entre ecumenismo, fidelidade à proposta cristã e
envolvimento com as necessidades humanas básicas” (CONIC, 2015, p. 16 et seq.).

A Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021


Em 2021, tivemos a V CFE, com o tema Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor e o
lema Cristo é a nossa paz: do que era dividido fez uma unidade (Ef 2,14a). O Texto-Base traz, como
objetivo geral, fazer “as comunidades de fé e pessoas de boa vontade a pensarem, avaliarem e
identificarem caminhos para superar as polarizações e violências através do diálogo amoroso,
testemunhando a unidade na diversidade”, e, dentre os objetivos específicos, “denunciar as diferentes
violências praticadas e legitimadas indevidamente em nome de Jesus”, assim como “promover a
conversão para a cultura do amor, como forma de superar a cultura do ódio” e “compartilhar
experiências concretas de diálogo e convívio fraterno” (CONIC; CNBB, 2020, p. 13 et seq.).
A partir do lema da Campanha, o texto-base convida à reflexão sobre qual o significado de tal
confissão de fé em tempos que se caracterizam por conflitos, violência, racismos e xenofobias, dentre
outras práticas de ódio, e em que o sistema cria narrativas variadas para legitimar a exclusão e a
negação dos direitos humanos, acrescentando que a CFE 2021 pretende ser convite a prática de um
jejum agradável a Deus e que promova a superação de todas as formas de intolerância, racismo,
violências e preconceitos, estimulando a adoção de comportamentos de acolhida, diálogo, não
violência e antirracistas (cf. CONIC; CNBB, p. 13, 17 et seq. e 29).
O subsídio esclarece que a mensagem de Jesus não é de ódio e nem ergue muros, mas, por ser
de amor, derruba-os, ressaltando que ele nunca orientou ninguém a criar inimizades e perseguir outros
em seu nome, sendo suas palavras sempre voltadas para que as pessoas se comprometam com a defesa

310
da igualdade e do diálogo, concluindo sobre a necessidade de profecias que nos abram os olhos para
as desigualdades promovidas em nome da fé em Cristo, pois nele não há espaço para a violência, o
racismo, o ódio e a discriminação, sendo impossível estar com Deus enquanto se desrespeita outras
pessoas por suas diferenças étnicas, religiosas ou de gênero, pois ele não estabeleceu critérios para
amar, amando toda a humanidade incondicionalmente (cf. CONIC; CNBB, p. 16, 43, 49, 52 e 54).
O texto-base e o subsídio “Fraternidade Viva” fazem referência, dentre outras situações, a
como o retorno do Brasil à cultura de violência contra as mulheres e indivíduos LGBTQI+ foi exposta
pela atual pandemia. Quanto às mulheres, o texto-base denuncia que 30,4% dos homicídios destas
ocorridos em 2018, no Brasil, teriam sido feminicídios, com as negras constituindo 68% das mulheres
assassinadas naquele ano, o que demostra o quanto nossa sociedade ainda está estruturada no racismo
e no patriarcado, tendo havido um significativo aumento da violência doméstica no contexto da
pandemia (cf. CONIC; CNBB, p. 23, 34 et seq. e 95).
O texto-base afirma que as mulheres, em especial as negras e indígenas, são impactadas pelo
sistema de violência em todas as dimensões da sua existência, considerando as reformas trabalhista e
previdenciária agressões a direitos conquistados por elas ao longo de anos de luta, acrescentando
serem elas as principais atingidas pelo trabalho precarizado e as primeiras a ser demitidas nas crises,
com as trabalhadoras domésticas, em sua maioria afrodescendentes, ainda sofrendo as consequências
do sistema escravista do Brasil. Tais realidades, de acordo com o subsídio, evidenciam ser necessário
discutir as questões de gênero, sem se limitar à igualdade entre os sexos, mas incluindo a libertação
das mulheres de sua situação histórica de opressão (cf. CONIC; CNBB, 2020, p. 35 et seq.).
Ainda o texto-base esclarece que a necropolítica se volta contra grupos de pessoas LGBTQI+
que, por preconceito e intolerância, são vistos como não cidadãos e inimigos do sistema, com muitos
sendo vítimas de homicídios, fruto do discurso de ódio, fundamentalismo religioso e vozes contra o
reconhecimento dos direitos dessas populações e de outros grupos perseguidos e vulneráveis (cf.
CONIC; CNBB, p. 32 e 36). Assim, o subsídio “Jovens na CFE” identifica o bullying como “o uso
da força física ou psicológica, ameaça ou coerção, para abusar, intimidar ou dominar agressivamente
outras pessoas de forma frequente e habitual” (CONIC; CNBB, p. 173), citando como exemplo a
LGBTfobia, acrescentando que Cristo nos convida a olhar as pessoas como irmãos e a cultivar o amor
fraterno sem distinção quanto à sua orientação sexual, dentre outras características, e orientando que
o responsável pelos “meetings da paz” organize discussões sobre questões como violência contra a
mulher e homofobia, de forma a banir as discriminações de gênero (cf. CONIC; CNBB, p. 165).
Enfim, a oração final do “#MeetingDaPaz 4” do subsídio “Jovens na CFE” pede para que
Deus olhe “pelas jovens, mulheres e meninas que não podem exercer sua liberdade de forma plena
por medo da violência de gênero presente em seus lares, suas escolas, seus trabalhos e na sociedade

311
como um todo”, assim como por suas filhas e seus filhos “LGBTQI+ que clamam por amor e
acolhida”, para “que encontrem espaços que possibilitem viver seus projetos de vida com dignidade
e respeito”, e pelos jovens que sofrem preconceito por sua orientação sexual, para que o “Espírito
Santo intervenha e transforme os corações das pessoas que os ferem” (CONIC; CNBB, 2020, p. 176).

As reações à CFE 2021


A preocupação da CFE 2021 em relação à violência praticada contra as mulheres e grupos
LGBTQI+ provocou fortes reações. O jornalista Raphael Veleda (2021) destaca ataques ferozes nas
redes sociais, em vídeos no YouTube e ações de boicote, em uma verdadeira cruzada estimulada por
grupos católicos ultraconservadores, que, indispostos com o protesto da iniciativa religiosa contra a
violência sofrida por indivíduos LGBTQI+, acusaram os líderes religiosos promotores da Campanha
de terem aderido a “pautas abortistas e anticristãs”. Para o jornalista, os ultraconservadores se
revoltaram contra o texto-base, por este, baseado em dados do Atlas da Violência e da ONG Grupo
Gay da Bahia, denunciar o assassinato de 420 pessoas deste grupo em 2018. Enfim, Veleda cita
Frederico Abranches Viotti – porta-voz do Instituto Plínio Corrêa de Oliveira –, como um dos
propagadores do discurso extremista, tendo este, em um vídeo, afirmado que, no Brasil, o cristianismo
estava sendo desvirtuado pela ideologia de gênero, com a CNBB organizando uma campanha que
rompe as barreiras que o católico ainda tem ao pecado, como, por exemplo, do homossexualismo.
Para o jornalista Igor Carvalho (2021), o texto-base foi atacado por ter contornos progressistas
e denunciar a “necropolítica” brasileira, pedindo o acolhimento da população LGBTQI+ e criticando
os altos índices de feminicídio. Ele destaca as reações de conservadores, como: o grupo Apostolado
Filhos de Santo Atanásio; Dom Fernando Guimarães, arcebispo do Ordinário Militar do Brasil; Dom
Adair José, bispo da Diocese de Formosa (GO); padre Samuel Cavalcante de Araújo, da Arquidiocese
de Iguatu (PR), que, nas redes sociais, disse para que os católicos “rezem, amem e se receberem esse
texto da Campanha da Fraternidade, queimem”. Carvalho cita ainda que, na direção contrária, o padre
Julio Lancelloti defendeu o texto-base, questionando se “alguém pode ser contra superar as
desigualdades” e afirmando que “essa campanha denuncia o feminicídio, a homofobia, a LGBTfobia,
a transfobia”, sendo “uma campanha corajosa”, na qual igrejas cristãs se unem contra a violência.
O jesuíta Adelson Araújo dos Santos (2021) considera excelente o texto-base da CFE 2021,
que se opõe ao avanço do feminicídio no Brasil, denunciando, através de dados concretos, o sistema
de violência ao qual as mulheres estão expostas, tal como o aumento exponencial da violência contra
a população LGBTQI+, com centenas de casos de homicídios, indagando “como não se preocupar e
ficar calado diante de tamanha ofensa a Deus e ao ser humano, criado à sua imagem e semelhança?”.
Ele classifica como falaciosos os discursos que atacaram violentamente o subsídio na internet, sob

312
acusação de ser “um texto que defende o aborto, a prática LGBT, a ideologia de gênero”, e/ou por
ter sido elaborado “por uma pastora protestante feminista, defensora do aborto”. O padre afirma que
não há nada escrito no documento que confirme tais acusações, ou fake news, e que seus detratores
“querem no fundo atacar a Igreja, sob o pontificado de Francisco, por não aceitarem as reformas que
ele está fazendo, na direção de uma Igreja cada vez mais em saída, samaritana e sinodal”.
Enfim, Ana Beatriz Dias Pinto (2021) considera as críticas à proposta da CFE 2021 “como
fruto do delírio coletivo acirrado por meio do bizarro contexto político em que o Brasil se encontra”,
citando o vídeo “Saiba quem está por trás da Campanha da Fraternidade!”, divulgado pelo Centro
Dom Bosco do Rio de Janeiro, como “uma arma de propagação de ódio e de calúnias infundadas, que
do carisma salesiano nada tem”, um “material digno de repúdio”, por conclamar à desunidade. Ela
afirma que ao convidar à conversão sincera, algo que nem todo cristão pode divisar, e ao “pretender
educar para a vida em fraternidade, a partir da justiça e do amor”, o que é exigência do Evangelho, a
proposta da CFE 2021 chocou, fazendo com que seus contrários iniciassem uma “contra-campanha”,
um “desserviço, que revela o desejo intencional de se dividir ainda mais o povo do que unir”.

Considerações finais
Após o que foi colocado, e tomando como referência os materiais das Campanhas da
Fraternidade Ecumênicas anteriores, considero que o fato de os subsídios contidos no Manual da CFE
2021 lamentar as diversas formas de violência sofrida pelas mulheres e pelos indivíduos LGBTQI+
constitui um avanço extraordinário, embora não seja dado voz às vítimas, talvez por um cuidado
excessivo em relação a possíveis reações contrárias.
Porém, mesmo esse aceno ainda tímido à questão da violência de gênero, sem que tenha
havido nenhuma forma de apologia ao comportamento dos grupos LGBTQI+ por parte de nenhum
material da CFE 2021, não deixou de provocar reações acaloradas, em especial nos meios católicos
conservadores, através de posturas defensivas, agressivas e de intolerância, o que demonstra uma
inquietação e um mal-estar em relação ao pluralismo, embora disfarçado sob o pretexto de um
combate a uma suposta ideologia de gênero.
Mas, enfim, gostaria de concluir este trabalho com um toque de otimismo, pensando que a
CFE 2021 possa ser o início de uma reformulação – mesmo que lenta e gradual – do pensamento das
lideranças católicas romanas brasileiras, para que, inspiradas pelas práticas desenvolvidas pelo
CONIC, que abriu espaço para a atuação de importantes lideranças cristãs femininas – devidamente
atacadas pelos conservadores católicos –, possam começar a trilhar caminhos em direção a um
cuidado mais efetivo em relação a tais vítimas tão pouco protegidas.

313
Referências Bibliográficas
CARVALHO, Igor. Campanha da CNBB critica “necropolítica” e é atacada por católicos
conservadores. In: Brasil de Fato. São Paulo, 17 fev. 2021. Disponível em:
https://www.brasildefato.com.br/2021/02/17/campanha-da-cnbb-critica-necropolitica-e-e-atacada-
por-catolicos-conservadores. Acesso em: 20 jul. 2021.
CNBB. Campanha da Fraternidade: vinte anos de serviço à missão da Igreja. São Paulo:
Paulinas, 1983.
CONIC. Campanha da Fraternidade Ecumênica 2010: manual. Brasília: Edições CNBB,
2009.
CONIC. Campanha da Fraternidade Ecumênica 2016: manual. Brasília: Edições CNBB,
2015.
CONIC. Dignidade humana e paz – novo milênio sem exclusões: manual. São Paulo: Editora
Salesiana Dom Bosco, 2000.
CONIC. Solidariedade e paz: manual CF-2005 ecumênica. São Paulo: Editora Salesiana,
2005.
CONIC; CNBB. Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021: manual. Brasília: Edições
CNBB, 2020.
PINTO, Ana Beatriz Dias. A polêmica Campanha da Fraternidade 2021 – Parte 1: análise
jornalística. In: Bem Paraná. Curitiba, 8 fev. 2021. Disponível em:
https://www.bemparana.com.br/blog/teologiaeinclusao/post/a-polemica-campanha-da-fraternidade-
2021-parte-1#.YKGSV6hKjIU. Acesso em: 20 jul. 2021.
PRATES, Lisaneos. Fraternidade libertadora: uma leitura histórico-teológica das
Campanhas da Fraternidade da Igreja no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2007.
SANTOS, Adelson Araújo dos, Pe. Conhecendo melhor o Texto-Base da Campanha da
Fraternidade Ecumênica 2021. Para não se deixar enganar pelas fake news dos falsos profetas. In:
Instituto Humanitas Unisinos. Adital. São Leopoldo, 17 fev. 2021. Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/606822-conhecendo-melhor-o-texto-base-da-campanha-da-
fraternidade-ecumenica-2021-para-nao-se-deixar-enganar-pelas-fake-news-dos-falsos-profetas.
Acesso em: 20 jul. 2021.
VELEDA, Raphael. Católicos ultraconservadores sabotam Campanha da Fraternidade 2021.
In: Metrópolis. Brasília, 14 fev. 2021. Disponível em:
https://www.metropoles.com/brasil/catolicos-ultraconservadores-sabotam-campanha-da-
fraternidade-2021. Acesso em: 20 jul. 2021.

314
O ESPIRITISMO PERANTE OS CONCEITOS DE GÊNERO, SEXO E
SEXUALIDADE

Daniel Salomão Silva1

Resumo
Em seu meio, as tradições religiosas têm tido que lidar com as atuais questões de gênero, sexo e sexualidade.
Agindo e reagindo, com acolhimento, repulsa ou insegurança, têm debatido questões como o papel das mulheres nas
instituições religiosas e no contexto familiar, bem como a homo e da transexualidade de fiéis, ou mesmo entre lideranças.
Discutir a relação entre religião, gênero, sexo e sexualidade é fundamental, não apenas pelos religiosos, mas também para
quem se preocupa com uma postura respeitosa e inclusiva, tão urgente em nossa sociedade. Nesse sentido, buscamos
apresentar a visão do Espiritismo sobre esses assuntos, a partir das obras espíritas mais consensuais. O entendimento de
que o ser humano é, essencialmente, um espírito imortal, com diversas reencarnações ou experiências físicas em seu
processo evolutivo, ora como homens, ora como mulheres, apresenta uma interessante perspectiva sobre as questões
apresentadas acima. A igualdade de direitos entre homens e mulheres, o acolhimento de homo e transexuais nas
instituições espíritas e a postura que estas pessoas podem adotar para a própria vida segundo a proposta espírita se
enquadram no propósito deste texto.
Palavras-chave: Espiritismo, gênero, sexualidade

Introdução
Independentemente da forma como reagem, ora com acolhimento, ora com repulsa ou
insegurança, as tradições religiosas têm tido que lidar com as questões de gênero, sexo e sexualidade.
Questões como a igualdade de direitos entre homens e mulheres e a postura diante da homo e da
transexualidade devem ser discutidas.
O Espiritismo, ao entender o ser humano como espírito imortal em processo evolutivo
milenar, propõe uma visão bem particular do tema em questão. Em sua jornada, o espírito, que
essencialmente não tem sexo, pode encarnar em corpos masculinos ou femininos (KARDEC, 2010a,
p. 187), guardando ou não resquícios de suas experiências de gênero e sexualidade em vidas passadas,
o que permite explicações bem coerentes sobre a homo e a transexualidade. Além disso, adotando
como ética a proposta cristã, o Espiritismo naturalmente propõe o amor como melhor postura diante
das outras pessoas, a despeito de sua experiência reencarnatória momentânea. Entendendo o livre-
arbítrio como atributo do espírito, respeita as escolhas individuais, considerando que as
consequências felizes ou infelizes de seus atos são íntimas e transitórias.
Na discussão que propomos, vamos dialogar com as seguintes definições modernas (não
espíritas): sexo é o dado biológico, ou seja, as características genitais e genéticas que diferenciam os
seres humanos entre machos e fêmeas; gênero é o dado ou a identidade social, a partir “de regras e
padrões de comportamento que configuram a identidade social das pessoas”, a qual pode ser
correspondente ao que se espera de seu aspecto biológico ou não; e sexualidade é a orientação sexual,

1
Mestrando em Ciência da Religião pela UFJF. E-mail: salomaoime@yahoo.com.br

315
o alvo do desejo sexual do indivíduo, ao sexo biológico oposto ou não (MUSSKOPF, 2005, pp. 185
a 187).

Homens e mulheres
Em O Livro dos Espíritos afirma-se que os espíritos não têm sexos, pois que estes dependem
do organismo, ou seja, da constituição física. Logo, são os mesmos os espíritos que ocupam os corpos
de homens e mulheres, programando suas etapas reencarnatórias em acordo com as “provações,
deveres especiais e novas oportunidades de adquirirem experiência” (KARDEC, 2010a, p. 188).
Além disso, a igualdade de direitos entre homens e mulheres é defendida explicitamente na
obra base do Espiritismo bem antes dos movimentos mais recentes, pois “Deus deu a ambos o
conhecimento do bem e do mal e a faculdade de progredir” (KARDEC, 2010a, p. 499). Todo aspecto
que indique certa inferioridade da mulher decorre “do domínio injusto e cruel que o homem assumiu
sobre ela”, é o resultado de instituições sociais imperfeitas e do “abuso da força sobre a fraqueza”
(KARDEC, 2010a, p. 497), logo deriva de componentes culturais e biológicos. Todavia, pelo que já
foi exposto, há diferenças entre as experiências encarnatórias feminina e masculina.
Uma das diferenças apontadas entre homens e mulheres é a força física, no sentido muscular,
o que indica que cada um deles tem funções especiais: “ao homem, por ser o mais forte, os trabalhos
rudes; à mulher os trabalhos leves; a ambos o dever de se ajudarem mutuamente”. Além disso, se
Deus “deu à mulher menor força física, deu-lhe ao mesmo tempo maior sensibilidade apropriada à
delicadeza das funções maternais e à fragilidade dos seres confiados aos seus cuidados”. Mais à
frente, a obra ainda afirma que devem ser assegurados direitos iguais, mas não funções: “é preciso
que cada um tenha um lugar determinado; que o homem se ocupe do exterior e a mulher do interior,
cada um de acordo com a sua aptidão” (KARDEC, 2010a, pp. 497 a 499).
Logo, entendemos que o único modo de conciliar estas visões aparentemente contraditórias é
admitir que, apesar de apresentarem, em geral, tendências diferentes, sejam decorrentes de questões
espirituais, biológicas ou culturais, homens e mulheres têm direitos de exercer as funções que bem
entenderem. Para o Espiritismo, admitir incongruências entre as experiências masculinas e femininas
não implica em impedir que mulheres, por exemplo, ocupem profissões tradicionalmente masculinas
e vice-versa. Ambos têm papeis complementares na sociedade, mas a liberdade de aceitá-los ou não
deve ser assegurada.
Por fim, para o Espiritismo, é nesse longo processo evolutivo, vivendo ora como homem, ora
como mulher, que o espírito amadurece (XAVIER, 2012, p. 190). Mesmo conservando características
masculinas e femininas até nas “regiões mais altas”, em algum momento, já sem a necessidade destas

316
diferenciações, o Espírito encontrará equilíbrio pleno entre estas “polaridades” (KARDEC, 2018, pp.
10 e 11).

Homo e transexualidade
Segundo Allan Kardec, “pode ocorrer que o Espírito percorra uma série de existências num
mesmo sexo, o que faz que, durante muito tempo, ele possa conservar, no estado de Espírito, o caráter
de homem ou de mulher do qual a marca permaneceu nele”. Logo, reencarnando em um corpo com
sexo diferente, poderá “em sua nova encarnação, conservar os gostos, as tendências e o caráter
inerentes ao sexo que acaba de deixar. Assim se explicam certas anomalias aparentes que se notam
no caráter de certos homens e de certas mulheres” (KARDEC, 2018, p. 10). À época de Kardec,
quando ainda não havia diferenciação entre homo e transexualidade (nem mesmo existiam os
termos!), podemos entender como caracteres de um “sexo” tanto a identidade de gênero quanto a
orientação sexual. Desta forma, certas “anomalias aparentes” seriam explicadas. A palavra
“anomalia” significa “aquilo que se desvia da norma, da média geral; irregularidade” (KOOGAN &
HOUAISS, 1994, p. 54), ou seja, “diferente” do habitual, da maioria, sem conotação necessariamente
pejorativa. Podemos entender esta expressão como se referindo simplesmente a algo “aparentemente”
sem explicação, logo anômalo. A partir do momento em que o conhecimento espírita a esclarece, a
situação deixa de ser anômala. Entretanto, Léon Denis, no início do século XX, considerava como
anormalidade o que chamamos hoje de transexualidade e homossexualidade (DENIS, 2007, p. 243 e
244).
Segundo o espírito Emmanuel, em obra de 1970, pela mediunidade de Francisco Cândido
Xavier, indivíduos na vivência homo ou transexual solicitam “atenção e respeito, em pé de igualdade
ao respeito e à atenção devidos às criaturas heterossexuais”. Afinal, “a coletividade humana
aprenderá, gradativamente, a compreender que os conceitos de normalidade e de anormalidade
deixam a desejar quando se trate simplesmente de sinais morfológicos” (XAVIER, 2001, p. 90). Em
outro texto do mesmo médium, agora segundo o espírito André Luiz, é considerado erro lamentável
“supor que só a perfeita normalidade sexual, consoante as respeitáveis convenções humanas, possa
servir de templo às manifestações afetivas” (XAVIER, 2012, p. 196).
Contudo, seguindo o pensamento médico oficial da época (um século após Kardec), alguns
autores espíritas de renome associaram homossexualidade a “desvio patológico”, “prática sexual
deformada” (ANDRÉA, 2002, pp. 132 e 133) ou ainda a “anormalidades aviltantes” (PIRES, 2008,
p. 14), ambos no contexto da década de 1980. Para estes autores, a homossexualidade seria definida
como prática sexual entre parceiros do mesmo sexo (o ato sexual em si), e não como a orientação
sexual ao mesmo sexo (“sexualidade”), como no entendimento moderno.

317
De qualquer forma, nesses e em diversos outros textos a postura é mais tolerante em relação
à transexualidade, não entendida como “desvio de qualquer natureza” (ANDRÉA, 2002), visto
derivar de natural estágio do processo evolutivo, quando a reencarnação ocorre em sexo biológico
oposto ao vivenciado em sequência de encarnações anteriores, o que é coerente com o entendimento
kardequiano.
Entretanto, percebemos que nas obras espíritas mais “conhecidas”, a homossexualidade
(entendida como prática sexual entre parceiros do mesmo sexo) é vista como derivada ou associada
à transexualidade, que pode, ou não, contemplá-la. Nesse ponto há discordância das definições
acadêmicas apresentadas no início do texto. A transexualidade é natural, parte do processo evolutivo;
a homossexualidade, enquanto prática do ato sexual, é um problema para a maior parte dos autores
espíritas mais lidos, “encarnados” e “desencarnados”, como veremos.
A experiência encarnatória transexual pode decorrer de prática agressiva ou desrespeitosa ao
sexo oposto em vida anterior, o que pode acarretar reencarnação, com funções pedagógicas e
regenerativas – e não punitivas, como pensa o senso comum –, em corpo não correspondente à
identidade psicológica (DENIS, 2007, p. 244; XAVIER, 2001, p. 91; XAVIER, 2008, p. 266;
FRANCO, 1997, p. 119).
Ainda neste contexto expiatório, pode também haver a contribuição de outros espíritos, mal-
intencionados, que podem incentivar lembranças de existências anteriores a estes encarnados em
situação de “inversão”, desequilibrando sua transexualidade e “incentivando-os” à homossexualidade
(FRANCO, 2010, p. 156; FRANCO, 1994, p. 75; TEIXEIRA, 2015, p. 83). Enfim, nestas
possibilidades acima, a situação de transexualidade pode causar desconforto ao encarnado perante
seu estado temporário de incompatibilidade gênero-corpo.
Todavia, em outra situação, a vivência transexual derivaria apenas de escolha de uma
experiência em morfologia diferente das últimas existências, com fins de enriquecimento moral e
intelectual do espírito, pois, como já abordado, as experiências feminina e masculina têm suas
particularidades. Há também escolha de encarnação “em vestimenta carnal oposta à estrutura
psicológica” com objetivos missionários, por aqueles que aspiram a “realizar tarefas específicas na
elevação de agrupamentos humanos e, consequentemente, de si próprios” (XAVIER, 2001, p. 91).
Nesses dois casos, a transexualidade pode ser vivenciada sem conflito por parte do encarnado. Enfim,
essa vivência sexual é consensualmente, na literatura espírita, uma possibilidade natural para o
espírito. Dessa forma, não indica, necessariamente, desequilíbrios morais, problema de caráter,
patologia ou “safadeza” em quem a vivencia. Além disso, não é um “comportamento” ou uma
“opção” do encarnado, não deriva de uma escolha feita durante a vida física, mas de situações ou
decisões pretéritas. A homossexualidade, porém, enquanto relação sexual entre indivíduos do mesmo

318
sexo biológico (e não apenas uma orientação sexual), possivelmente derivada da condição transexual,
seria uma opção do encarnado, não necessariamente a mais adequada, como veremos adiante.
Como já apresentado, independentemente das razões apontadas como possíveis para a
transexualidade/homossexualidade, é consenso nos textos espíritas a necessidade de respeito, amor,
compreensão. Por exemplo, diante de um filho homossexual, “o que te caberá no quadro em foco será
o encaminhamento ético-moral condizente com os valores espirituais superiores, uma vez que não é
a orientação do sexo o dado mais decisivo para a qualidade da vida social” (TEIXEIRA, 2015, p. 82).
Em relação ao casamento homossexual, é bem interessante considerar até mesmo as formas
como certas perguntas e respostas aparecem em O Livro dos Espíritos, que não tratam o casamento
exclusivamente como união de um homem e uma mulher, mas como “a união de dois seres”
(KARDEC, 2010a, p. 439). Há também posições mais recentes explicitamente tolerantes ao
casamento e à adoção de crianças por casais homossexuais (FRANCO, 2013, p. 126).
Entretanto, a recomendação de “sublimação” do desejo sexual, abstinência ou “absoluta
castidade” para homossexuais é comum nos discursos espíritas (ANDREA, 2002, p. 133; FRANCO,
2013, p. 125; FRANCO, 1994, p. 73). Para o espírito Camilo, “o fenômeno homossexualismo [sic],
em si mesmo, impõe aos que por ele estão assinalados um regime de imperiosas disciplinas em sentido
amplo”. Se o amor é natural e saudável entre indivíduos de qualquer sexo, orientação e identidade
sexual, “o homossexual não necessitará mergulhar nos pântanos da pederastia, tampouco as
homossexuais carecerão de perder-se nos vícios do lesbianismo, nas voragens da relação carnal”
(TEIXEIRA, 1993, p. 43). Logo, para ele, é adequado que dois indivíduos do mesmo sexo se amem,
desde que sem relações sexuais.
Pela mediunidade de Divaldo Franco, é considerado como uso adequado da função sexual a
“sintonia entre a psicologia e a fisiologia da polaridade”. Logo, poderíamos disso deduzir que ou o
encarnado insiste em “alterar” sua psicologia (identidade de gênero ou orientação sexual) para se
adequar ao sexo biológico ou abstém-se de vivenciar sexualmente sua orientação, “evitando a
permissão do uso indevido” (FRANCO, 1999, p. 125; FRANCO, 2013, p. 125). Todavia, para o
espírito André Luiz, após reflexões sobre a disciplina do instinto sexual, conclusões nesse sentido
“não nos devem induzir a programas de santificação compulsória no mundo carnal” (XAVIER, 2012,
p. 192).
Ou seja, segundo esse ponto de vista, o enfrentamento de possíveis “conflitos” da sexualidade
não significa a imposição de tal ou qual comportamento a si mesmo. Desta forma, mesmo sendo a
“renúncia”, a “sublimação” das “vontades” ou o celibato um possível ideal para o indivíduo
homossexual, por essa perspectiva parece-nos compreensível que vivencie de forma equilibrada sua
homossexualidade, da mesma forma que o heterossexual deve viver, sem “santificação compulsória”.

319
Cabe ao indivíduo a avaliação íntima sobre se deve ou não vivenciar sua orientação sexual, consciente
de que a maior parte dos textos espíritas mais lidos, publicados até o presente momento, recomenda
que não a vivencie, ou, mais claramente, que não tenha relações sexuais.

Considerações finais
Em primeiro lugar, entendemos que ainda não há um consenso teórico entre os espíritas sobre
a melhor forma de se interpretar as diferenças entre homens e mulheres, reconhecidas nos textos
citados. Nossa sociedade atual tem observado homens cuidando do “interior” e mulheres do
“exterior”, sem ainda ter dados suficientes que indiquem ser esta nova configuração adequada ou não.
Naturalmente, não há dúvidas quanto à questão da igualdade de direitos, claramente defendida em O
Livro dos Espíritos. Em segundo lugar, diferentemente de qualquer pensamento que reduza o gênero
à construção social, o Espiritismo admite como presentes, além do componente cultural, o aspecto
biológico e as características que o espírito já traz de existências anteriores. Logo, ser homem ou ser
mulher, sentir-se homem ou sentir-se mulher, não é uma questão apenas social ou cultural. Suas
diferenças, porém, não devem colocá-los em qualquer situação de subordinação de um ao outro, mas
de ação complementar e conjunta em prol de uma sociedade melhor.
Quanto à vivência da homossexualidade, também entendemos que não há consenso. Todavia,
fica claro que, em boa parte dos textos acima, o problema está na relação sexual entre pessoas do
mesmo sexo biológico (trans ou homossexuais) e não no amor entre elas. Esses textos indicam ser a
abstinência sexual a melhor atitude por parte do homossexual, porém, alguns deles podem ser
interpretados em outro sentido: relacionar-se de acordo com sua orientação homossexual, desde que
sob parâmetros também adequados aos heterossexuais, pode não ser um problema. Naturalmente,
nenhuma dessas conclusões provisórias nos autoriza a ter qualquer atitude discriminatória ou
pensamento que associe ao homo ou ao transexual desequilíbrios morais, problema de caráter,
patologia ou “safadeza”.
Além disso, nos textos citados é comum entender a homossexualidade enquanto relação
sexual entre indivíduos do mesmo sexo biológico, de forma associada ou derivada da condição de
transexualidade, o que não corresponde ao entendimento atual nos círculos não espíritas, como
apresentado na introdução. Todavia, do ponto de vista espírita, poderíamos nos questionar, ainda sem
resposta, porque alguns espíritos reencarnariam na condição de homo e outros na de transexualidade,
sendo que as causas para ambas, na literatura espírita atual, parecem-nos idênticas.
Concluindo, é sempre importante destacar o caráter progressivo da Doutrina Espírita, sempre
aberta à análise crítica de seus postulados, pelo menos em teoria. Em primeiro lugar, segundo Kardec,
o Espiritismo “assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde

320
que hajam assumido o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o que ele
se suicidaria”. Logo, se conclusões científicas consensuais apontarem para entendimentos diferentes,
ele as acolherá, pois, “caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado,
porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se
modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará” (KARDEC, 2009, p. 59).
Em segundo lugar, pelo método que Allan Kardec elaborou, o Controle Universal do Ensino dos
Espíritos, os espíritas só devem admitir como seguro um novo conhecimento, por vias mediúnicas,
quando muitas mensagens recebidas por médiuns e espíritos diferentes, e em locais diferentes, o
atestam de forma racional e concordante (KARDEC, 2010b, p. 28). Logo, se ainda não há
concordância em todos os aspectos, entendemos que as conclusões sobre as questões de gênero, homo
e transexualidade ainda estão em construção.

Referências Bibliográficas
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KARDEC, Allan. A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Rio de
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KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2010a.
KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2010b.
KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos, ano IX: 1866.
Catanduva: EDICEL, 2017.
KOOGAN, Abrahão; HOUAISS Antônio. Enciclopédia e dicionário ilustrado. Rio de
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MUSSKOPF, André Sidnei. Quando sexo, gênero e sexualidade se encontram: reflexões
sobre as pesquisas de gênero e sua relação coma Teoria Queer a partir da teologia. História
Unisinos, v. 9, n. 3, 2005, p. 184 a 189.
PIRES, J. Herculano. Vampirismo. 9a ed., São Paulo: Paideia, 2008.
TEIXEIRA, José Raul. Educação e vivências. Pelo espírito Camilo. Niterói: Fráter, 1993.
TEIXEIRA, José Raul. Minha família, o mundo e eu. Pelo espírito Camilo. 2a ed., Niterói:
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XAVIER, Francisco Cândido. Vida e sexo. Pelo espírito Emmanuel. 22a ed., Rio de Janeiro:
FEB, 2001.
XAVIER, Francisco Cândido. Ação e reação. Pelo espírito André Luiz. 28a ed., Rio de
Janeiro: FEB, 2008.

321
XAVIER, Francisco Cândido. No mundo maior. Pelo espírito André Luiz. 26a ed., Rio de
Janeiro: FEB, 2012.

322
LILITH PARA ALÉM DOS PORTÕES DO ÉDEN: RECONSTRUINDO
CAMINHOS INDECENTES

Giovanna Sarto1

Resumo
Mitos sobre Lilith têm sido operados a partir de determinadas perspectivas que restringem concepções de gênero
e sexualidade. Em geral observa-se dois movimentos: ou de silenciamento ou de demonização da figura de Lilith. Não
obstante, esses movimentos utilizam-na enquanto importante instrumento pedagógico que regula e reforça noções sobre
corpo e feminilidade. Nesse sentido, o presente trabalho propõe um estudo das narrativas sobre Lilith a partir de análise
crítica e da suspeita de que elementos tradicionais associados a ela reforçam determinados padrões de gênero e
sexualidade e precisam ser problematizados. Para tanto, mobilizaremos estudos feministas e de diversidade sexual e de
gênero no campo da religião, a fim de elaborar compreensões acerca de quais mecanismos de poder têm sido acionados
e quais as possibilidades de revisitar esses mitos a partir de uma perspectiva outra: a da indecência, nos termos de Marcella
Althaus-Reid (2000).
Palavras-Chave: Lilith; Religião; Gênero; Sexualidade; Teologias Feministas.

Introdução
Toda narrativa mítica consiste em um complexo sistema de sentido. É através dos mitos que
diferentes povos e culturas escreveram sobre seus sonhos, prazeres, angústias, medos, concepções de
mundo e relações sociais, políticas, econômicas, de gênero e sexualidade. Como uma zona livre,
marcada pela permeabilidade e pela inconstância, por aquilo que é, que se mistura com o que poderia
ser – e que, por isso, é estranha por excelência. Nesse sentido, a interpretação que se faz de cada mito
é permeável, e por isso contextual.
Assim são também os mitos de Lilith, a primeira companheira de Adão segundo literatura
hebraica. Em uma interpretação do livro de gênesis, antes da criação de Eva teria existido essa outra
personagem: Lilith, criada do mesmo elemento que Adão, cuja sexualidade indomável foi estopim
para sua fuga do Éden. Anjos são enviados por Deus para trazê-la de volta ao jardim, mas Lilith
recusa todas as propostas oferecidas por eles. Sua punição é viver a eternidade na terra, dando à luz
centenas de demônios diariamente, que nasceriam mortos.
Mas do mito de Lilith não há apenas uma versão, e sim diversas. Todas elas constituem uma
pluralidade de possibilidades de interpretação e justamente por isso também são várias as formas de
trabalhá-los: no campo histórico, Eisentein (1915) possui uma importante tradução e análise do
documento Alfabet Of Ben Sira, que contém a versão mais conhecida do mito de Lilith. Já a partir do
campo teológico, é possível citar a obra de Davi Stern & Mirsky (1990), que explora aspectos da
versão hebraica desse mito, além de Judith Plaskow (2005), com um tratado feminista que revisita o
mito de Lilith a fim de observar seus efeitos e possibilidades no mundo atual. Mas o mais frequente

1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Membro
do REDUGE – Grupo de pesquisa em Religião, Educação e Gênero. Bolsista CAPES. E-mail: giihsarto@hotmail.com

323
tem sido estudos sobre Lilith no âmbito da psicanálise, com autores como Sicuteri (1985), Hurwitz
(2013), e Bárbara Koltuv (2017), olhando frequentemente para essa figura sob uma perspectiva
arquetípica, sobretudo a partir da teoria jungiana.
Uma constatação interessante entre os diferentes campos que estudam mitos de Lilith, é a
constante de que através desses mitos muitos povos se expressavam e expressavam suas certezas e
incertezas, bem como seus modos de conceber o mundo e as relações. Dessas expressões, a que se
destaca são questões de gênero e sexualidade: nos mitos de Lilith esse é um tema recorrente
(KOLTUV, 2017; SICUTERI, 1985, PLASKOW, 2005), ainda que a forma como vem sendo
observado e colocado pelas diversas pesquisadoras e pesquisadores não o seja.
Com efeito, dois movimentos são percebidos a partir dos diferentes estudos e modos de
analisar esses mitos: 1) o do silenciamento ou 2) o da demonização de Lilith. A hipótese do presente
trabalho é a de que essas duas tendências representam não apenas um marco importante nos estudos
sobre mitos de Lilith, como principalmente constituem-se enquanto importante instrumento
pedagógico de gênero e sexualidade que reforça concepções sobre corpo e sexo.
Nesse sentido, o presente artigo propõe uma revisitação breve das narrativas sobre Lilith a
partir de análise crítica e da suspeita de que elementos tradicionais associados a ela reforçam
determinados padrões de gênero e sexualidade e precisam ser problematizados. Com isso, não se
pretende esgotar as discussões e complexidades envolvendo mitos de Lilith, mas, ao contrário,
suscitar reflexões e possibilidades a partir dos estudos feministas e de diversidade sexual e de gênero
no campo da religião, a fim de elaborar compreensões acerca de quais mecanismos de poder têm sido
acionados e quais as possibilidades de revisitar esses mitos a partir de uma perspectiva outra: a da
indecência, nos termos de Marcella Althaus-Reid (2000).

Demônio, mulher e libertina: revisitando aspectos gerais do mito de Lilith


A versão mais conhecida do mito de Lilith é a que consta em literatura hebraica, mais
especificamente no Alfabeto de Ben Sira2 (SICUTERI, 1985, p.13-20). Nela ao contrário de sua
predecessora, Eva, que teria sido criada da costela de Adão, Lilith é criada do mesmo elemento que
ele: o barro. No entanto, para criar Lilith Deus usa barro misturado com sangue e saliva. A narrativa
continua com Adão e Lilith vivendo sob uma disputada continuada sob todas as coisas: como duas
forças opostas, brigando pela mesma posição. O estopim da tensão ocorre quando Adão ordena que
Lilith se submeta a ele no coito, como criatura dominada. Lilith sentindo profunda ira, revolta-se,
pronuncia o inefável nome de Deus e deserta do Éden. Deus envia anjos para trazê-la de volta, mas

2
Segundo a Biblioteca Virtual Judaica, o Alfabeto de Ben Sira é uma obra erótico-satírica datada entre 700 a 1000 d.C.
que ficou bastante popular entre os hebreus no período em que foi escrita (JEWISH VIRTUAL LIBRARY, 2008).

324
Lilith recusa-se. Como punição, os anjos sentenciam-na a parir diariamente uma centena de
demônios, que nasceriam mortos. Lilith então promete perseguir todos os recém-nascidos que não
carregassem consigo a marca dos anjos, bem como também levar a perdição todos os homens que
cruzassem seu caminho.
Nesta versão muitos elementos chamam atenção. O primeiro a ser destacado é o material
utilizado para a criação de Lilith: sangue e saliva misturados ao barro. Segundo Sicuteri (1985, p.23),
o sangue poderia significar uma alusão ao sangue menstrual, que é tido como impuro por muitas
correntes judaicas. Da forma como é disposto no mito, noções de impureza e transgressão são
acionadas: ser criada com sangue parece sugerir que esse sangue é um elemento indicativo da natureza
demoníaca de Lilith. A saliva, aqui, é também um elemento operado sob tal padrão: tem relação com
prazer erótico e transgressão sexual. É frequentemente associado a entidades híbridas, cobras e
prostitutas3.
Outro elemento que há de ser mencionado é o da pronuncia do inefável nome de Deus: para a
tradição judaica, a pronuncia do inefável nome de Deus não é expressão apenas de ira, mas sobretudo
de desrespeito e subversão. Ao pronunciar o nome de Deus, o mito de Lilith sugere que a personagem
assume sua essência impura e animalesca, que remete ao sangue e a saliva. Em outras palavras, é um
demoníaco que não se revela, mas que se expressão e se liberta. O desrespeito ao inefável
demonstraria o desrespeito pela ordem estabelecida e justificaria, portanto, sua condenação. Por
conseguinte, destaca-se a condenação: gerar centena de demônios mortos todos os dias expressaria
não só a dor e o luto como cotidiano de Lilith, mas a dor e o luto como condenação de sua
transgressão. Como revanche, Lilith jura perseguir recém-nascidos e homens que caírem em seu
caminho.
Ainda que a partir dos três elementos: criação, subversão e condenação, seja possível
desmembrar muitos outros, por ora limitamo-nos a destacar especificamente o sistema de pureza e
impureza que aparece transversal ao mito hebreu de Lilith. Isso porque é a partir dessas duas noções
que o mito parece se estruturar, bem como se constituir enquanto importante instrumento pedagógico.
Segundo os pesquisadores Kenner Roger Cazotto Terra e Abdruschin Schaeffer Rocha (2019),
pureza-impureza é um tipo de sistema que estrutura a realidade e constrói noções de identidade, que
define “nós” e “eles”. Essas categorias constroem muitas literaturas a partir do Segundo Templo,
inclusive os textos do profeta Isaias. Assim, quando é proposto observar os mitos de Lilith, nota-se
que sua figura é constantemente colocada como “o outro”, aquele que é impuro e que deve ser ou
temido ou combatido. A própria construção de Lilith como um demônio e a penalização de sua

3
Ver exemplo em mito de Apophis (RIBEIRO, 2017, p.24).

325
transgressão poderia evidentemente funcionar como modelo exemplar de qual é a penalidade para
aquilo que não está em conformidade com uma ordem supostamente estabelecida.
O sistema de pureza e impureza é chave para compreender também aquilo que Heimer (2009,
p. 125-126) coloca como recurso de linguagem mítica de afirmação de um credo monoteísta; uma
tentativa de tornar o exclusivismo de YHWH como oficial e identitário. Nessa aposta, toda e qualquer
outra prática religiosa destoante do credo monoteísta era tida como expressão do mal (ou impuro). A
importância do elemento feminino nos panteões mesopotâmicos é subvertida no campo imagético
dessa simbólica hebraica. Nesse tipo de formulação de identidade do monoteísmo hebraico, não só
as deusas mulheres passam a ser consideradas impuras, mas também a formulação da própria
concepção de mulher é subjulgada (ibid, p.125).
Nesse sentido, existe uma dimensão pedagógica nas formas de conceber os mitos de Lilith,
especialmente na literatura rabínica, que versam sobre identidade e sobre formas de ser e ler o mundo
e as relações sociais. Tratam-se de formas de linguagem4 organizadas pela tradição, que acabaram
por reforçar noções binárias e normativas de comportamento e conduta; isto é, concepções que
dividem o mundo social em dois: o dos homens (e da {hétero}sexualidade suposta a eles) e o das
mulheres (idem), onde cada uma dessas categorias possui diversos elementos sociais que funcionam
como marcadores, estáticos e universais tanto em um nível mais prático da vida social quanto de uma
forma menos explícita, como é na questão dos mitos.
Mas essas linguagens, assim como a sexualidade, podem ser também ambíguas, sendo
inclusive elemento constitutivo dessa narrativa. Como exemplo, tem-se a associação da figura ao
demoníaco. Ainda que nas narrativas hebraicas Lilith só apareça enquanto demônio após a fuga do
Éden, desde sua origem Lilith é livre, corpórea, sexual. Se tomarmos a definição de Althaus-Reid
(2019) para o demoníaco, este teria justamente uma relação com a questão do corpo e da sexualidade.
Nas palavras da autora: a “demoniologia é o chamado de inspiração a partir da corporeidade e da
sexualidade (...)” (ALTHAUS-REID, 2017, p.185). O demoníaco seria, na verdade, uma dimensão
da existência humana - nem essencialmente maligna, nem essencialmente benigna, o que torna
possível inferir que a associação da figura mitológica de Lilith ao demoníaco revela a importância do
corpo e da sexualidade em sua narrativa. Mas quais os efeitos dessa relação?

Efeitos demoníacos: indecência e possibilidades na reconstrução do mito de Lilith


O medo da demoníaca Lilith é documentado em inúmeros amuletos, livros de orações e
objetos encontrados por arqueólogos entre os séculos XVII e XVIII. Dentre eles, o mais famoso é um

4
Utilizamos linguagem, aqui, segundo o conceito foucaultiano em que esta é também uma forma de saber e, portanto, de
poder. Constitui-se enquanto mediadora do mundo ao mesmo tempo em que o forma (FOUCAULT, 2000, p.6-10).

326
vaso de cerâmica cujo centro está talhado com uma fêmea híbrida, de longos cabelos caídos pela
extensão do corpo e olhos profundos, com pés e mãos animalescos. Ao redor estão preces escritas em
aramaico, pedindo a proteção de Deus contra a “mãe de todos os demônios, Lilith”5.
Existe, então, um aspecto pedagógico que vai para além do mito: ele funciona diretamente na
realidade. Os medos retratados nos amuletos de proteção contra Lilith não são apenas sintomas de
um universo fantástico de anjos e demônios. Ao contrário, remetem a insubmissão, sensualidade e
erotismo como perturbações da ordem que deveriam ser duramente punidos, como o foi a própria
Lilith. Todas essas questões apontam para o mito como uma forma de linguagem que funciona como
mediação e como amparo pedagógico para ensinar formas de ser e não ser no mundo.
Mas ainda que tenha constituindo-se enquanto importante sistema de sentido e instrumento de
mediação, os mitos de Lilith não entraram nas formulações dos livros sagrados judaico-cristãos. Ao
contrário, há uma menção a ela em Isaias 34:14 como referência à animais noturnos e entidades
híbridas, como referência aos babilônicos. Dessa forma, nota-se que interpretações tradicionais sobre
os mitos de Lilith tem sido operadas sob dois modelos: (1) o do apagamento ou subjugação ou (2) o
da demonização de sua imagem. Ambos estão sob a égide do discurso dominante, através da
manutenção dos pressupostos sexuais que excluem a diversidade e a liberdade e a definem como uma
figura “indecente”.
A indecência de Lilith – ou sua imagem subversiva - possivelmente se constitui enquanto uma
forma de poder, especialmente a partir de uma perspectiva foucaultiana. Isso porque uma das
contribuições fundamentais de Foucault é pensar o poder como um sistema complexo que parte de
diferentes elementos e lugares e se manifesta principalmente por um caráter discursivo e outro prático
(FOUCAULT, 1988, p. 70-80). O autor ainda aponta que esse sistema (ou sistemas) de poder estaria
expresso, inclusive, nas formas de ser e ler o mundo ao redor. Nesse sentido, é possível sugerir que
os mitos seriam uma dessas linguagens (a nível discursivo) usadas por diferentes expressões de poder
a fim de orientar indivíduos e seus referenciais de mundo. Mas o mito vai para além de apenas
orientar: ele também expressa a experiência concreta da vida humana, com todas as suas
ambiguidades.
Na perspectiva foucaultiana também está presente uma observação quanto ao caráter ambíguo
das linguagens (ou formas de saber). Embora seu olhar estivesse voltado para a questão de poder e
não de mito, há ali uma chave interpretativa de interesse deste artigo. Como (o jogo do poder) é um
movimento circular, a estratégia hegemônica estaria a todo tempo em disputa com outras estratégias
(BRANCO, 2001, p.246). Dessa forma, nas linhas e entrelinhas das diferentes formas de saber é
possível falar de possibilidades de resistência frente aos poderes clássicos que imperam na sociedade.

5
Ver reprodução da imagem em “O livro de Lilith”, de Bárbara Koltuv (2017, p.137).

327
As lutas de resistência seriam lutas pela autonomia e emancipação, pela possibilidade de expressar a
vida desnuda, sincera, ambígua.
Quando amplia as noções de poder a perspectiva foucaultiana traz contribuições significativas
aos estudos dos mitos de Lilith: observando as relações de poder mais imediatas que estão em jogo
no marco da linguagem deste mito, é possível perceber quais mecanismos tornam possíveis discursos
que encontram reforço e reforçam concepções restritivas sobre gênero e sexualidade. Tal caminho
não é novo, e está profundamente relacionado, no campo teológico, às proposições dos estudos queer
em religião.
É no sentido de reconhecimento do caráter pedagógico das narrativas míticas, e em
contraposição à realidade normatizadora dos corpos e das sexualidades que as chamadas teologias
queer e os estudos queer em religião têm se preocupado em formular lutas de resistência em torno de
leituras tradicionais sobre gênero e sexualidade no campo da religião (ALTHAUS-REID, 2000, p.
100). Num sentido literal, o termo queer vem do inglês e significa “estranho” ou “em não-
conformidade”. Assim, o que as pesquisadoras e os pesquisadores queer têm feito é o exercício de
estranhar ou questionar radicalmente pressupostos cis-hétero normativos, colocando-se em suspeita
constante (MUSSKOPF, 2008, p.1-6.).
Nos estudos em religião, Marcella Althaus-Reid posiciona uma perspectiva queer como
aquela que ocupa permanentemente o não-lugar, sempre investigando as zonas de possibilidades que
existem para além do que está dado (ALTHAUS-REID, 2000, p.64). Uma das grandes contribuições
da autora é a reflexão sobre “indecência”. Para Althaus-Reid, as grandes escolas teológicas,
constituídas de modelos coloniais de pensar religião, têm feito leituras “decentes” sobre as histórias
sexuais das Escrituras Sagradas, e não têm levado em conta a diversidade e a experiência concreta
das mulheres pobres e sexualmente dissidentes, repleta de possibilidades.
Quando reivindicam a autoridade exclusiva sobre um texto, por exemplo, o que as tradições
fazem é a manutenção e suporte de múltiplas estruturas da vida social em conformidade com os
poderes dominantes. Nesse sentido, ao reivindicar a indecência, Marcella Althaus-Reid (2000; 2017)
propõe justamente que a pesquisadora e o pesquisador queer esteja sempre atenta e atento aos
pressupostos sexuais naturalizados no campo teológico e seus efeitos. Assim, a indecência, mais do
que uma categoria, tratar-se-ia de um modo queer de estudar religião.
A partir dessa chave interpretativa, abre-se a possibilidade de revisitar as narrativas sobre
Lilith e explorar alguns elementos sob uma perspectiva menos estática. É possível, por exemplo,

328
analisar ecos de subversão nos mitos de Lilith como um retrato do indecente6, sobretudo a partir do
método de indecentamento (queering) proposto por Marcella Althaus-Reid (2000; 2017).
Dessa forma, a criatura mítica que recusa o paraíso para viver sua liberdade sexual é indecente,
é demoníaca e é indomável. E esse é uma figura de linguagem que versa sobre identidades em
constante formação, e que versa também sobre tensões e ambiguidades próprias da vida humana. O
mito de Lilith trata-se de uma arena de disputas que acontece não sem resistência, e daí sua
ambiguidade: seu mito é uma potência subversiva (PLASKOW, 2003, p.341-343). Ao mesmo tempo
que narra a caça às existências dissidentes, abre a possibilidade para que a dissidência seja força
indomável e, por isso, ameaçadora.

Considerações finais
De modo geral, encontra-se no mito de Lilith um eco que está para além de uma função apenas
religiosa: ele potencialmente funciona como instrumento pedagógico que ensina modos de ser e não
ser no mundo, bem como define formas de experimentar o corpo e a sexualidade. As interpretações
tradicionais da literatura hebraica sugerem ainda uma caça às sexualidades (e corpos) dissidentes, e
tomam Lilith como símbolo do mal que deve ser evitado e temido. Assim, ensinam que as mulheres
devem ser heterossexuais e submissas, atribuindo a essa concepção um caráter divino: “porque Deus
assim o fez”. Essa é uma forma de interpretação que aparece também na literatura cristã, mais
especificamente no livro do profeta Isaias, e evoca uma relação de identidade e poder hierárquica e
autoritária, mas que não acontece sem resistência. Interessante é observar que a resistência encontra
instrumentos de subversão nos próprios elementos textuais desses mitos, como na recusa veemente
de Lilith a retornar ao Éden, e na aceitação de sua punição.
O caminho da indecência proposto por Marcella Althaus-Reid (2000) parece ser fundamental
para a reconstrução dos mitos de Lilith, especialmente porque chama atenção à necessidade de voltar
olhares aos pressupostos sexuais naturalizados nas interpretações tradicionais sobre mitos religiosos.
No caso dos mitos de Lilith, isso implica em aceitar a indecência da personagem como constitutiva,
e essa indecência é operada numa subversão do status quo, que muito tem a contribuir para
formulações menos restritivas de gênero e sexualidade. Um trabalho que aposta na resistência e na
flexibilização é o da rabina feminista Judith Plaskow. Plaskow investe na reconstrução dessa narrativa
a partir de um olhar crítico às formas de poder dominantes, que segundo ela estariam ameaçadas com
a “volta de Lilith”. A volta de Lilith – nesse caso, a revisitação do mito de Lilith sob perspectivas

6
Indecente, aqui, tem a ver com a categoria queer utilizada por Marcella Althaus-Reid em “Indecent Theology (2000).
Para Althaus-Reid, queer trata-se de uma não-conformidade com a ordem, e, portanto, “uma zona de possibilidades,
sempre inflada de um senso de potência que ainda não foi articulado” (ALTHAUS-REID, 2000, p.64).

329
feministas, como propõe Plaskow, encontra eco na proposta da Teologia Indecente de Althaus-Reid,
já que que seria justamente uma possibilidade de pensar a figura mitológica de Lilith desnuda, sincera,
queer.

Referências Bibliográficas
ALTHAUS-REID, Marcella. Indecent Theology. Theological perversions in sex, gender and
politics. London: Routledge, 2000.
ALTHAUS-REID, Marcella. O Deus Queer. Rio de Janeiro: Metanoia, 2017.
BIBLIA, A.T. Isaías 34:14. In: Bíblia Sagrada. Trad. Editora Vozes Ltda. Petrópolis, RJ, 50ª
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DAVID STERN, Mark; JAY Mirsky. Rabbinbic Fantasies: Imaginative Narratives from
Classical Hebrew Literature, New Haven and London: Yale University Press, 1990, p. 183
EISENTEIN, J. D. Alphabet of Ben Sira. In Otzar Midrashim. Nova York, 2 vol., 1915, p. 46-
47.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 14ª edição. Rio de
Janeiro: Graal, 1988.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
HURWITZ, S. Lilith, a primeira Eva. São Paulo: Fonte Editorial, 2013.
KOLTUV, Barbara Black. O Livro de Lilith: o resgate do lado sombrio do Feminino
Universal. Tradução Rubens Rusche. – 2 ed. – São Paulo: Cultrix, 2017.
LAITMAN, M. O ZOHAR. Rio de Janeiro: Imago, ed. 1991.
LOURO, Guacira Lopes. (Org.) O corpo educado: pedagogias da sexualidade/ Tradução dos
artigos: Tomaz Tadeu da Silva — Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
MUSSKOPF, André Sidnei. Quando sexo, gênero e sexualidade se encontram. Revista Tempo
e Presença. Gênero: da Desigualdade À Emancipação. Ano 3 - Nº 8, abril de 2008. Disponível em:
<http://www.koinonia.org.br> acesso em 26 de março de 2021.
PLASKOW, Judith. The coming of Lilith: essays on feminism, Judaism and sexual ethics,
1972/2003. Boston, Massachusetts: Beacon Press books, 2005. 244 p.
RIBEIRO, Maria Goretti. Imaginário da Serpente de A a Z [livro eletrônico]. 21ªed. EDUEPB:
2017. Disponível em: <https://www.uepb.edu.br> acesso em 20 de junho de 2021.
SICUTERI, Roberto. Lilith, a Lua Negra. Tradução: Norma Telles e J. Adolpho S. Gordo, 3ª
Edição, São Paulo, Paz e Terra, 1987.
STCHIN, Zecaria. O Começo do tempo. Tradução de Luís Fernando Martins Esteves. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Editora Best Seller, 2008.
TERRA, Kenner Roger Cazotto; ROCHA, Abdruschin Schaeffer. Judaísmo enoquita: pureza,
impureza e o mito dos vigilantes no Segundo Templo. Horizonte, Belo Horizonte, v.17, n. 52, p. 148
- 166, jan./abr. 2019–ISSN 2175-5841

330
A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NO CULTO EM 1COR 11 E 14

Marcela de Jesus Dias1

Resumo
A questão estudada nessa pesquisa é o problema da participação das mulheres no culto e a ordem nas assembleias.
Objetivos: Analisar e confrontar os textos de 1Cor 11.2-16 e 14.33b-36; buscar os motivos da instrução de Paulo em 1Cor
14.33b-36; relacionar os contrastes entre 1Cor 11 com 1Cor 14 e atualizar as perícopes na vida eclesial. Método: Se dá
em três níveis: histórico, literário e teológico. Resultados: Dúvidas eclodiram na comunidade em relação ao uso do véu
ou não no culto, a participação das mulheres na oração e na profecia perdia o sentido sem o véu. Pois, era um sinal de
autoridade tanto no culto como na sociedade. O contraste de 1Cor 11 e 14 se dá no sentido positivo pela presença das
mulheres, mas negativo por serem restringidas a ficarem quietas no culto. O pedido para que ficassem caladas era para a
boa ordem na assembleia. Notamos nas diversas igrejas um aumento das mulheres e da participação ativa dessas. Do
mesmo modo que mulheres possuem voz e vez, há muitas que são “oprimidas” e caladas pela leitura limitante dos textos
quais são peculiares a uma determinada época, de contexto cultural e social diferente do nosso.

Introdução
A chegada de Paulo (a partir de 49 d.C.) na cidade de Corinto e a sua permanência de um ano
e seis meses (At 18.11) foi de importância para os coríntios. Seu contato com a comunidade fundada
se deu através de cartas. Dando assim as possíveis orientações em relação às informações que
chegavam por meio de seus colaboradores (Estéfanas, Fortunato e Arcaico 1Cor 16.17; também as
pessoas da casa de Cloé 1Cor 1.11).
A ausência de Paulo fez com que várias questões surgissem da comunidade, devido ser
composta por gregos e cristãos de origem pagã (em geral de situação pobre), também havia elementos
de origem judaica. Por essa diversidade havia grande dificuldade para efetivar a comunhão de vida
entre os coríntios. Alguns aspectos visíveis ao decorrer da primeira carta são notados: como conflitos
e divisões entre judeus e gregos; escravos e livres; homens e mulheres; ricos e pobres; partidários de
Paulo, Cefas e de Apolo; os que queriam fazer uso dos carismas em proveito próprio e os que usavam
para a edificação da comunidade. Paulo também se defrontou com problemas no culto (na ordem, na
participação das mulheres, no uso dos carismas entre outros) e problemas morais; éticos sérios. Dentre
todas essas questões tratadas durante a carta, nos deparamos com o tema: A questão do
comportamento e a participação das mulheres na comunidade em Corinto, que será abordado nas
perícopes de 1Cor 11.2-16 e 14.33b-36.
Os problemas aparecem a partir da divisão dos homens em relação às mulheres na participação
no culto, também no uso véu ou não e no pedido de Paulo para que as mulheres permanecessem em
silêncio durante o culto. É necessário buscar entender o porquê dos conselhos do Apóstolo para com
as mulheres nestes textos, em relação aos seus ministérios (Paulo incluía as mulheres nas suas
exortações, é a partir dessas admoestações que fica claro que não eram só homens os participantes

1
Mestranda em Teologia – Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) – marcela.jesus@pucpr.edu.br

331
ativos da comunidade). Apesar do reconhecimento de Paulo para com as mulheres (na oração e na
profecia), ele tem certo cuidado com o culto, trazendo assim qualificações e restrições. A justificativa
se dá a partir de Cristo: “todos são um em Cristo”, nele não há divisões que perdurem.

Mulheres na família e na sociedade da época


De acordo com a primeira carta aos coríntios escrita por Paulo (55 d.C.), identificamos a
presença de mulheres na comunidade de Corinto, e além da presença destas constatamos de acordo
com os textos a presença atuante delas nos cultos. Para um maior entendimento é necessário
observarmos os seus papéis na família e na sociedade da época. “‘Musônio Rufo fala do papel
tradicional das mulheres casadas, o gerenciamento do lar, a direção dos afazeres dentro dos limites
da casa’” (BRANICK, 2009, p. 49). Essa era a realidade da sociedade greco-romana, em que fora dos
limites domésticos eram poucas atividades que poderiam usufruir, a limitação maior se dá pelas
classes sociais em que mulheres ricas tinham um “passo” a mais em relação às pobres.
“Aparentemente, oportunidades mais amplas existiram para as mulheres fora da Grécia. No oriente,
e especialmente em Roma, mulheres nobres podiam locomover-se livremente em público, receber
alguma educação e pertencer a alguma sociedade de mulheres” (BRANICK, 2009, p. 50).
Outras poucas exceções são mulheres que receberam honras municipais, por terem
proporcionado benefícios à cidade, seus nomes foram fixados em moedas. Porém não tinham
participação política como os homens. Algumas eram ativas, viajantes de modo livre no comércio e
manufatura como em Atos 16,14: “Certa mulher, chamada Lídia, da cidade de Tiatira, vendedora de
púrpura, temente a Deus, nos escutava [...]”. Mas, eram poucos os grupos de mulheres que tinham
sua presença ativa na sociedade, eram restritas ao casamento, e sempre deveriam estar com seus
maridos. Nos evangelhos encontramos exemplos das normas daquele tempo como: mulheres servindo
aos mestres (Lc 10. 38-42), ouvindo instruções (Lc 11.27,28), conversando com estranhos (Jo 4,7),
seguindo Jesus (Lc 8.1-3), alguns desses exemplos mostram a violação de certas normas da época
que Jesus quebra.
Foi necessária essa busca de informações sobre as mulheres no mundo helênico para
contextualizar as perícopes. A partir de então podemos entender as mulheres em Corinto e na
comunidade. Os textos escolhidos a serem trabalhados são: 1Cor 11.2-16 e 14.33b-36.

Mulheres na comunidade de Corinto


Análise de 1Cor 11.2-16:
No v.2 Paulo introduz o seu discurso com um “louvo” pelo motivo dos coríntios lembrarem-
se dele e das tradições quais tinha ensinado para o bom funcionamento do culto. Esse elogio evidencia

332
que mesmo sendo cristão não apaga as tradições do judaísmo, essas no grego (παραδόσεις) tem o
sentido de ordenanças. São essas tradições que irão suscitar dúvidas na comunidade: “Justamente por
isso solicitam agora seu conselho na questão que eclodiu, se uma esposa – é disso que se trata em
todo o trecho – pode orar e profetizar sem o véu ou não” (BOOR, 2004, p. 171).
O v. 3 tem por destaque: “Cristo”, “homem”, “mulher” e “Deus” como uma progressão. Sendo
Deus a cabeça de Cristo, Cristo a cabeça do homem e o homem a cabeça da mulher. “Cabeça” no
sentido de governo, Deus é colocado por último no sentido que Ele tem o governo sobre todos. No
entanto a subordinação que a mulher tem para com o homem é de companheirismo, sendo ele o chefe
da casa: “A mulher tampouco deve ficar a mercê da arbitrariedade de um homem dominador, mas ter
seu cabeça naquele homem que é, ele próprio, inteiramente servo de seu cabeça Cristo” (BOOR,
2004, p. 171).
A questão colocada nos vv. 4, 5 e 6 tem sua relação na honra-vergonha, qual Paulo vai
mencionar que o “homem que ora ou profetiza, tendo a cabeça coberta, desonra sua própria cabeça”,
assim se dá com a mulher que “ora ou profetiza com a cabeça sem o véu desonra sua própria cabeça”.
A diferença está na cabeça “coberta” e “descoberta”, para o Apóstolo o homem orar com a cabeça
descoberta (akatalyptô tê kephalê) era uma novidade como cristão, pois para o cristão cobrir a cabeça
é estar sob o governo de alguém (os judeus oravam somente com a cabeça coberta, diferente dos
gregos da época). Neste contexto algumas perguntas surgem: “Será que o ‘cabeça desonrado’ pelo
respectivo comportamento de homem e mulher é a cabeça deles mesmos, ou o ‘cabeça’ que a mulher
possui no homem, e o homem no Cristo?” (BOOR, 2004, p. 171). “Cabeça é primeiramente a cabeça
física, mas também pode haver aí uma referência a Cristo” (MORRIS, 1981, p. 122). Paulo direciona
esses versículos para referir-se ao comportamento do homem e da mulher segundo a decência
exteriorizada, pois o culto possui santidade. Um contraposto à ideia de submissão no texto: “O véu,
pois, não significa diretamente subordinação e dependência feminina. Com razão, A. Jaubert
‘sustentou que jamais ele é símbolo de submissão’. Exprime, quando muito, a concepção piramidal
baseada no esquema da cabeça” (BARBAGLIO, 1989, p. 304). Para o bom entendimento na cultura
judaica o homem é ligado diretamente a Cristo e a mulher ao homem. A preocupação de Paulo nestes
versículos é a decência no culto público.
A cabeça descoberta do homem no v.7 evidencia “imagem e glória de Deus”, já a cabeça da
mulher coberta indica a “glória do homem”. Para isso Paulo argumenta, nos vv. 8 e 9 recordando Gn
1.27 e Gn 2.18-24. Neste caso o homem é a gloria de Deus e a mulher a glória do homem. A diferença
se encontra na origem de ambos. Mesmo que com está diferença a mulher não deixa em nenhum
momento de ter seu valor. Por isso no v. 10 a mulher traz na cabeça um sinal de autoridade, ou sinal
de poder. No grego o termo é exousían, este possui algumas dificuldades de interpretação: “[...] uma

333
tendência muito difundida é interpretar exousía como domínio do homem sobre a mulher, ou também
como submissão e dependência desta em relação àquele, subentendendo-se que o véu seria símbolo
desse tipo de relacionamento” (BARBAGLIO, 1989, p. 305). A mulher judia ao usar o véu é um sinal
de dignidade e autoridade para ir e vir (cf. MORRIS, 1981, p. 123). Assim no culto ela passa a ter a
liberdade de orar e profetizar de forma ativa segundo as normas para a devida decência que tanto
Paulo preza.
No v.10 vai mencionar “Por causa dos anjos” tendo várias interpretações. Mas ficamos com
qual nos direciona aos anjos presentes no culto que levam a Deus as orações das pessoas (Ap 8.3),
desta forma se as mulheres se comportassem de modo indecente poderia ofender a presença angélica
no culto. Ou, “Nesse caso ela também vai agradar aos anjos que, conforme a concepção bíblica
perfazem a corte de Deus e acompanham a sua presença (cf. Is 6.1s). Gozará do agrado do próprio
Deus” (BRAKEMEIER, 2008, p. 143).
Paulo irá conduzir o texto para outro sentido, se na criação a glória da mulher é partir do
homem, no v.11 introduz “no Senhor”, ou seja, “em Cristo, homem e mulher estão firmemente
coligados um com o outro” (BOOR, 2004, p. 173). Em Gl 3.28: “Não há homem nem mulher”, todos
são um em Cristo. Este versículo rememora que “a mulher não é sem o homem, nem o homem, sem
a mulher”. A relação que os vv. 8 e 9 trazem a partir do gênesis, ganham um sentido diferente diante
do v.12, que suplementa expondo os processos comum do nascimento: “como provém a mulher do
homem, assim também o homem é nascido da mulher”. Por fim o versículo menciona que Deus é o
único princípio gerador de vida “tudo vem de Deus”.
O Apóstolo vem por meio de perguntas nos v.13, 14 e 15 aos coríntios. Para que após grande
parte do seu discurso os próprios membros da comunidade pudessem responder a esta questão: “Será
dessente uma mulher orar de cabeça descoberta”? Brakemeier conduz a uma resposta negativa: “[...]
claro que não. E mais um argumento está sendo aduzido, o da natureza que estaria ensinando que
cabelo longo é uma vergonha para o homem e uma honra para a mulher (v.14)” (BRAKEMEIER
2008, p. 144). Outra referência a natureza é na relação com os filósofos estóicos que deixavam a
barba crescer em conformidade com a ordem natural. Mas este argumento não é suficiente, pois cada
cultura tem seu modo de pensar e isto muda conforme o tempo. A questão do cabelo é problemática
e independente do contexto cultural, Paulo é defensor da tradição e de manter uma conduta honrada.
Por fim o v.16 inicia-se com a palavra “contudo”, indicando que mesmo com todo seu discurso
ele ainda não está convicto de seus argumentos. Por isso se refere “se alguém quer ser contencioso”,
ou seja, “se alguém deve ser briguento” que não concorde com seu posicionamento (sobre as mulheres
coríntias). Não tendo este costume e muito menos as igrejas de Deus. Brakemeier faz uma pergunta:
“Por que investir tanta energia em algo tão formal como o porte do cabelo”? o autor responde “Ora,

334
porque à sua maneira está em jogo a unidade da igreja” (BRAKEMEIER 2008, p. 145). Se no v.2 os
coríntios seguiam as tradições que lhes foram passadas, que seguissem também a esta.

Análise de 1Cor 14.33b-36:


Em uma leitura sem entender o contexto desta perícope, “dói” os ouvidos quando vemos o
tratamento de Paulo para com o comportamento das mulheres. É uma perícope bem complicada, pois
dá o entendimento de contradição com 1Cor 11.2-16 que em nenhum momento Paulo se refere às
mulheres para que ficassem quietas no culto.
Nos vv.33b, 34: “como em todas as igrejas dos santos”, “conservem-se caladas as mulheres
nas reuniões das igrejas”. Barbaglio nos traz uma resposta para este silêncio da mulher na igreja de
Corinto qual é fundamentado pela lei que exige submissão: “Preocupado em evitar uma atmosfera de
confusão e tumulto nas reuniões comunitárias, Paulo proíbe as intervenções não carismáticas das
mulheres, ou seja, suas perguntas sobre isto ou aquilo” (BARBAGLIO, 1989, p. 349). Esta perícope
se encontra num contexto carismático, se as mulheres intervissem inspiradas pelo Espírito o Apóstolo
não contraporia a está ação. Mas pelo motivo dos cultos serem em ambiente doméstico deveriam ter
certo cuidado em separar assuntos corriqueiros de proféticos (v.35). Segundo Dunn, “A severa
instrução, provavelmente, não era dirigida para todas as mulheres, mas às esposas”. O autor continua:
Assim, é provável que profetas mulheres tomavam parte no processo de avaliação de
profecias individuais (14.29), o que presumivelmente podia incluir que fizessem julgamento
acerca de profecias proferidas por maridos ou parentes masculinos mais velhos. Muitos
poderiam pensar que tal aparente questionamento da autoridade do paterfamilias enfraquecia
tanto a boa ordem da família como a da igreja. Seria ‘vergonhoso’. O decoro da família e da
igreja seria salvaguardado se as esposas fizessem suas perguntas em casa (14.35)” (DUNN,
2008, p.667).

Por fim uma pergunta é feita para a comunidade dos coríntios no v. 36: “Porventura, a palavra
de Deus se originou no meio de vós ou veio ela exclusivamente para vós outros”? Esta pergunta indica
que a igreja de Corinto é posterior a outras igrejas, não pode impor uma prática nova em relação as
igrejas da Palestina e da Síria.

Atualização das perícopes


O tema desta presente pesquisa não se esgota e tem a capacidade de vencer a distância de
tempo do texto escrito com o atual. Os textos trabalhados anteriormente são peculiares para a igreja
em Corinto, sendo direcionados ao que estava acontecendo na comunidade. Por este motivo, o
problema se encontra quando as igrejas usam essas perícopes para justificar um pensamento machista
em relação à participação das mulheres nas igrejas. A falta da leitura do texto sem seu devido contexto
cultural, literário, teológico provocando assim fundamentalismos para com a participação das

335
mulheres. Vemos igrejas que aderem o uso do véu pela leitura limitada de 1Cor 11. 2-16 qual Paulo
coloca sua preocupação com a decência do culto e na tradição do mundo judaico.
O véu utilizado pelas mulheres em Corinto não tem mais o mesmo sentido em nossos dias
devido nossa cultura latina. “E ainda que hoje as mulheres e moças amarrem um lenço na cabeça, ele
de maneira alguma é aquele ‘véu’ discutido por Paulo. O lenço de hoje não é mais um ‘sinal’. Ele não
tem mais um ‘poder sobre a cabeça’ de uma mulher hoje” (BOOR, 2004, p. 175). Quesnel relata:
“Qualquer fica estupefato ao pensar que, até 1950, muitas mulheres ainda tinham recusado a
comunhão em muitas igrejas porque estavam sem o véu” (QUESNEL, 1983, p. 72).
Do mesmo modo que mulheres possuem voz e vez, outras são “oprimidas” e caladas por
motivos alheios. Mas encontramos a luz do evangelho a inclusão das mulheres por Jesus (Lc 8.1-3) e
em Paulo uma lista de mulheres quais direciona saudações em suas cartas (Rm 16, Fl 4.2-3, Cl 4.15).
É a partir de Cristo que a igreja contemporânea deve fundamentar a sua praxi cristã. Em que todos
são importantes para o serviço no culto, tanto homem e mulher batizados são iguais, a diferença está
nas funções que cada um possui. E se estas funções estiverem baseadas a partir de subordinação e
preconceito pela diferença sexual (mulher como inferior) é um grande problema que como igreja
devemos estar atentos. A igreja como Corpo de Cristo deve ser um lugar de edificação para todos.

Considerações finais
Em consideração final, buscamos responder aos objetivos propostos na análise dos textos
escolhidos de 1Cor 11.2-16 e 14.33b-36, na sua função com o objetivo da carta.
Os dois capítulos de 1Cor 11 e 14 se relacionam em seu conteúdo. Podemos identificar o
contraste das duas perícopes no sentido positivo pela presença destas na comunidade. Mas, de modo
negativo na segunda onde as mulheres são restringidas a ficarem quietas. Diferentemente de 1Cor
11.6 em que a palavra “vergonhoso” aparece no sentido de cortar os cabelos; em 1Cor 14.35 aparece
como “falar na igreja”. O pedido de Paulo para que as mulheres se calassem, ecoa um tanto estranho
para uma primeira leitura do versículo, mas que tinha por objetivo a ordem no culto. Esta perícope
em relação com o contexto de 1Cor 14, uma longa instrução do Apóstolo aos coríntios sobre uso dos
carismas na assembleia, no mesmo intuito as mulheres deveriam ficar caladas no que se refere a
assuntos corriqueiros que não pertencessem ao culto (não fossem proféticos). O espaço das reuniões
contribuía por serem nas casas (ambiente familiar), por isso Paulo preocupado com a ordem e a
decência escreve aos coríntios suas instruções nas duas perícopes.
A pesquisa foi de suma relevância para entender o comportamento e a participação das
mulheres na igreja de Corinto. E se estende para a época presente nas igrejas contemporâneas:

336
católica, renovação carismática católica, protestantes, pentecostais e neopentecostais, por notarmos
um aumento de mulheres nos cultos e missas e, além disso, na participação destas de forma ativa.

Referências bibliográficas
ALMEIDA, João Ferreira de. Trad. A Bíblia Sagrada (revista e atualizada no Paulo. Sociedade
Bíblica Brasileira, 1983. Brasil) 2 ed. São Paulo, 1993.
BARBAGLIO, Giuseppe. As cartas de Paulo (I). São Paulo: Paulinas, 1989.
BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém. 4ª ed. rev. São Paulo: Paulus, 2006.
BOOR, Werner de. Cartas aos Coríntios. Curitiba: Evangélica Esperança, 2004.
BRAKEMEIER, Gottfried. A primeira carta do apóstolo Paulo à comunidade de Corinto. São
Leopoldo: Sinodal, 2008.
DUNN, James D. G. A teologia do Apóstolo Paulo. Trad.: Edwino Royer. São Paulo:
Paulus, 2003.
MORRIS, Léon. 1 Coríntios: Introdução e Comentário. Trad.: Odayr Olivetti. São Paulo:
Vida Nova, 1981.
QUESNEL, Michel. As epístolas aos Coríntios. São Paulo: Paulinas, 1983.
(cadernos bíblicos 20)

337
Coordenação
Andrea Silveira de Souza (UFJF)
andrea_silveira@yahoo.com
Gilciana Paulo Franco (UFJF)
gilcifranco@yahoo.com.br
Tania Alice de Oliveira (UFJF)
tania-alice@hotmail.com
Taciana Brasil dos Santos (PUC-Minas)
tacianabrasil@yahoo.com.br

Ementa
Religião é um tema muito debatido no contexto social. Ela assume papéis ignorados pelo
poder público, interfere no campo da política, dita comportamentos, promove paz e guerra. Com
tamanha força e abrangência, sua presença também pode ser sentida no debate educacional.
Atualmente, atendendo as prerrogativas da BNCC, o Ensino Religioso tornou-se espaço adequado e
legítimo para estudo do fenômeno religioso. As pesquisas sobre Ensino religioso também tornaram
se um espaço para discutir temas transversais como o preconceito, racismo, diversidade, tolerância e
respeito. Desafios metodológicos também se fazem presentes, como a contemporânea questão do
ensino híbrido e remoto, surgida devido a pandemia. Os reflexos do colonialismo que excluiu uma
parcela da população se fazem presente ainda hoje na sociedade deixando muitas pessoas sem renda,
sem segurança sanitária, sem perspectiva, sem acesso à escolarização, escancarando o abismo social
e mostrando os sinais de esgotamento da escola pública. Pretendemos propor um espaço profícuo
para discussões que tragam novos olhares sobre o aperfeiçoamento da nossa prática escolar visando
melhorar a formação dos nossos docentes. Esperamos proporcionar um espaço de troca de
conhecimentos e experiências que nos revitalizem, auxiliando-nos no enfrentamento dos novos
desafios impostos pela pandemia. Serão bem-vindas neste GT comunicações que abarquem relatos
de experiência em tempos de pandemia, ensaios resultantes de pesquisas científicas em andamento
ou não, e textos gerais que discutam práticas e/ou teorias pedagógicas comprometidas com a
diversidade religiosa.
Palavras-Chave: Religião. Educação. BNCC. Ensino remoto.

338
EDUCAÇÃO E PANDEMIA: REFLEXÕES ACERCA DAS PRÁTICAS
PEDAGÓGICAS NO ENSINO RELIGIOSO

Douglas Willian Ferreira1

Resumo
A pandemia da covid-19 fez parar nossas atividades humanas. Dentre tantas interrupções, nos deparamos com o
fechamento do espaço escolar e a consequente necessidade de se repensar a educação. Nesse processo, tornou-se urgente
ressignificar as práticas pedagógicas, considerando o contexto de isolamento social, de acesso às tecnologias e plataformas
digitais, de condições sociais e de preparo emocional dos estudantes. Frente a essa situação, a pandemia colocou em
evidência a desigualdade em educação e o despreparo dos professores para lidar com ferramentas e aplicativos
educacionais. Tais inquietações, experimentadas inclusive enquanto professor de Ensino Religioso, nos fez (re)pensar os
métodos e práticas viáveis para acessar os estudantes e tornar esse componente curricular atraente. Angústias, medos,
frustrações e aprendizado se tornaram elementos-chave na reflexão e ressignificação da prática educacional. Hoje, ainda
no contexto da pandemia, coloca-se como questão não somente uma análise acerca da educação nesse contexto
pandêmico, mas também, faz-se importante pensar as perspectivas e projetos para a educação que está por vir, seja no
modelo híbrido ou presencial.
Palavras-chave: Educação; Pandemia; Ensino Religioso; Modelos educacionais.

Introdução
O seguinte texto visa uma reflexão acerca de práticas docentes no Ensino Religioso,
desenvolvidas no contexto da Pandemia da Covid-19 em duas escolas: uma escola da rede particular
de ensino e uma escola pública estadual, ambas localizadas em municípios do Estado de Minas
Gerais. Aqui, tratamos de refletir as inquietações advindas das experiências pessoais frente o
constante desafio que tem sido efetivar o ensino-aprendizagem no contexto do distanciamento social,
do isolamento, da ausência da escola e do uso das tecnologias de informação e aprendizagem em
favor de melhores resultados acadêmicos e humanos no ensino remoto. Tomamos como referência
teórica capítulos da obra Educação e pandemia, uma visão acadêmica (2020) e a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC, 2017).

Início e Reinício: o processo de (re)adequação do ensino


É fato que não saberíamos ao certo o que seria e como se cumpriria a tão falada quarentena e
isolamento social quando em março de 2020 nos foram impostas tais práticas. Naquele momento,
nenhuma informação certa poderia ser dada. Além de novidade, tínhamos a sensação de estarmos
vivendo uma situação momentânea, rápida, e que voltaríamos à normalidade muito em breve. O ano
letivo já tinha sido iniciado e, com ele, as expectativas para 2020: projetos interdisciplinares que
tratassem acerca da felicidade, da religiosidade e cultura afro-brasileira já estavam em pleno

1
Doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Membro do Grupo de Estudos em
Teorias da Religião (ETER – UFJF). Professor efetivo da Secretaria Estadual de Educação do Estado de Minas Gerais.
Email: douglasinvictus@hotmail.com

339
andamento. Todos esses projetos, planos de cursos e de aulas tiveram que ser interrompidos. Esse
cenário é descrito por Sebatián Plá (2020, p. 20) do seguinte modo:
Os botões continuam a brotar na primavera, as baleias continuam suas longas migrações, a
temporada de seca volta a queimar a terra e o planeta continua sua rotação e translação, todos
indiferentes a nós. Somos os humanos quem, aterrados por uma morte invisível e viral, temos
parado nossas relações, encerrando-nos em unidades cada vez menores: o Estado-Nação, a
cidade, a comunidade, a casa, a solidão (tradução nossa).

Na solidão acompanhada de nossos lares, vivíamos a expectativa de que na semana seguinte


estaríamos mais uma vez nas escolas. Ainda que no princípio o distanciamento social estabelecido
pela pandemia e a suspensão das atividades acadêmicas tenha resultado numa alegria por parecer ser
o adiantamento das férias, com o tempo, as coisas foram sendo estranhadas por nós: professores e
estudantes passaram a se preocupar com o cumprimento do ano letivo e, com mais força, preocupar-
se com as avaliações externas como o Enem. Ninguém esperaria ser tão demorado esse momento.
Há que se ressaltar que muitos estudantes não retornaram para as aulas remotas, sobretudo, na
escola pública foi crescente o número de desistência e evasão escolar2. Outros tantos não interagiam
pelos canais propostos pelos professores como os grupos de WhatsApp e Facebook, e-mails, Google
Classroom, e outras plataformas de comunicação e ensino. Nos diversos momentos e etapas do estudo
remoto, é notada a baixa frequência dos estudantes. E isso se dá não somente nas aulas de Ensino
Religioso (ER), mas em todos os demais componentes curriculares. Essa situação desencadeou, em
parcela do professorado, um misto de angústia e ansiedade frente a esse modelo remoto e à
necessidade de repensar novas práticas de ensino, de cumprimento de carga horária e sobretudo, de
efetivação da aprendizagem.
Se o interrompido ano letivo havia começado em fevereiro de 2020, um novo início era
exigido a partir de março de 20203. Todavia, com as particularidades das instituições de ensino, o
reinício foi desigual e temporalmente diferente nas escolas. Destaco primeiramente que na instituição
particular, as atividades não foram interrompidas. O modelo remoto, foi aplicado, gradualmente,
desde o dia em que os estudantes foram liberados das atividades presenciais. Num primeiro momento
essas atividades foram realizadas pela plataforma Moodle, já utilizada na instituição. Os professores
cumpriam sua carga horária a partir de postagens de conteúdos no modelo assíncrono, e davam
plantão na plataforma para o esclarecimento das dúvidas. Na escola pública as atividades começaram
com o Programa estadual: Estude em Casa, composto de videoaulas na Rede Minas, o Se Liga na
Educação, e o uso de material impresso, os Planos de Estudo Tutorado (PET). Enquanto as aulas

2
Conferir a pesquisa: Juventudes e a Pandemia do Coronavírus (Covid-19), uma pesquisa realizada com mais de 68 mil
jovens de todo Brasil, cujo relatório final pode ser acessado pelo link: https://mk0atlasdasjuve5w21n.kinstacdn.com/wp-
content/uploads/2021/06/JuventudesEPandemia2_Relatorio_Nacional_20210607.pdf.
3
Esse reinício em março faz referência às escolas, sobretudo as privadas, que começaram suas atividades acadêmicas tão
logo iniciou o isolamento social. Sabemos, contudo, que esse processo de reinício não foi homogêneo.

340
síncronas na instituição particular começaram em junho de 2020, e em tantas outras até mesmo antes
disso, a proposição de aulas síncronas na rede pública estadual iniciou-se somente um ano depois do
início da Pandemia, em março de 2021. A partir desse simples panorama, somos levados a pensar e
reconhecer as diferenças educacionais surgidas e aprofundadas pela pandemia.

Educação, Ensino Religioso e pandemia


O fechamento da escola obrigou-nos a repensar o espaço educacional. Mais que isso, com a
ausência da escola, vimos a necessidade de ressignificar a educação. Em seu texto: A escola ausente:
a necessidade de se recolocar seu significado o educador Diaz-Barriga (2020, p. 19) afirma que “a
sensação que nesse momento temos, estudantes e professores, é que nós perdemos a escola, perdemos
as aulas”. Esse sentimento de perda deixou nítida não somente as angústias e os medos, mas também
e, no fundo, a sensação de perda dos direitos educacionais. Afinal, “a escola como instituição da
modernidade, se consolidou através dos sistemas educativos e de alguma forma se sacralizou: todas
as crianças devem ir à escola porque ela lhes proporciona educação para o futuro” (DIAZ-BARRIGA,
2020, p. 19).
Nesse sentido, as angústias se tornaram uma realidade não somente dos professores, mas
também dos estudantes e de seus familiares. Se tornaram rotina inquietações do tipo: como será a
educação dos meus filhos? Qual futuro terão? Que tipo de profissional se tornarão? Qual a garantia
de que estarão preparados para os testes externos? Uma coisa parecia certa: esse tipo de educação
remota, fora dos padrões e costumes dos brasileiros, tem resultado em fracasso. Pesquisas recentes
têm confirmado aquilo que pais e professores temiam. Para fins de ilustração, a pesquisa O impacto
da Pandemia na Educação, que mede os impactos do ensino remoto sobre a aprendizagem, foi feita
pelo Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora
(CAEd/UFJF) a pedido da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Na pesquisa do CAEd,
foram avaliados estudantes do 5º e 9º anos do ensino fundamental e 3º do nível médio. Os testes eram
referentes aos conteúdos de língua portuguesa e matemática. A avaliação aconteceu em escolas da
rede pública de São Paulo, mas que retratam bem, em maior ou menor grau, a realidade nacional. O
resultado da pesquisa foi fruto da comparação do início das séries em 2021 com o final das respectivas
séries em 2019. Dentre os resultados apontados destacamos o fato de que os alunos do 5º ano
precisariam recuperar habilidades do 4º ano. Infelizmente, a pesquisa lança luz sobre os resultados
negativos do ensino remoto. O déficit, contudo, não pode ser atribuído apenas às aulas remotas, mas
também ao conjunto de ações que envolveu a pandemia até que as secretarias estaduais de educação
e as escolas se organizassem, produzissem materiais e os fizessem chegar aos estudantes. Também,
tem-se que enfatizar a aceitação, participação e frequência nas aulas por parte dos adolescentes.

341
Todavia, interessa pensar aqui acerca do Ensino Religioso (ER) no amplo contexto da
pandemia e sua influência na educação. Como nos comprometer com a efetivação dos objetivos
propostos pela BNCC num modelo de ensino remoto que ruiu com as bases de nossas experiências
docentes fazendo-nos reinventar o modo de ensinar? Como nos ocupar em aprender as novas
tecnologias, plataformas e aplicativos sem dissociar desse novo aprendizado a qualidade acadêmica
e humana desse ensino?
Promover a aprendizagem do conhecimento religioso a partir da realidade dos estudantes
(BNCC, 2017, p. 434) requer, primeiramente, o espaço de diálogo da sala de aula e a convivência
dialógica entre os diferentes. Na sala de aula digital, o silêncio prevalece mais que o diálogo e a
interação é forçada. A participação ativa dos estudantes nas aulas presenciais, com suas ricas
discussões, questionamentos e perguntas, foi sendo minada, amedrontada pelas aulas gravadas com
suas câmeras e microfones. Como resultado temos que grande parcela dos estudantes, ao serem
convidados a contribuir na discussão, preferiam e ainda preferem usar o Chat. O espaço de diálogo e
construção de conhecimento que caracterizavam a sala de aula, se tornou um espaço de apresentação
do conhecimento já construído, de transmissão de saberes. Todavia, da reinvenção diária do professor
nesse contexto pandêmico, ressurge novos modelos de participação ativa. A partir de cursos de
reciclagem e aprimoramento, tornou-se possível, por exemplo, o uso de plataformas e sites que
auxiliam nessa promoção da participação dos estudantes. Exemplo temos do site Mentimeter.com,
uma plataforma gratuita de interação que permite o uso de nuvens de palavras, onde o professor
compartilha com os estudantes alguma pergunta ou provocação que em tempo real vai sendo
preenchido por palavras que estão ligadas com o conteúdo trabalhado. Pode ser usado também
questões de múltipla escolha, quiz e interação por meio de postagem de respostas longas. Soma-se a
esse aplicativo o Wordwall, um site com uma infinidade de jogos didáticos que garantem maior
participação e interação dos estudantes com o conteúdo trabalhado. Aplicativos como, Padlet e suas
linhas do tempo, painéis e construção de conversas em tempo real ajudam na execução de aulas mais
dinâmicas. É também uma oportunidade de aprendizagem os vídeos do Youtube, que se bem
selecionados, se tornam um ótimo recurso de aprendizagem, de discussão e de proposta de reflexão.
Certamente, o uso dessas tecnologias de informação, comunicação e formação fez ver o quanto “é
imprescindível que a escola compreenda e incorpore mais as novas linguagens e seus modos de
funcionamento, desvendando possibilidades de comunicação (e também de manipulação), e que
eduque para usos mais democráticos das tecnologias e para uma participação mais consciente na
cultura digital” (BNCC, 2017, p. 59).
Enquanto professor de ER muito nos preocupou o bom andamento e qualidade das aulas.
Sobretudo porque as aulas presenciais são espaços de uma construção ativa: na sala, sentamo-nos em

342
círculo, debatemos temas, analisamos textos e figuras, assistimos e discutimos pequenos vídeos,
interpretamos a realidade ao nosso redor, lemos e interpretamos a religião na sociedade, na política,
na ética, na culinária, na arquitetura etc. Quando do início do isolamento e o consequente uso do
modelo remoto, não houve dúvidas de que perderíamos muito desses elementos nas aulas remotas,
apesar de todos os esforços. Foi, e ainda é preocupação, fazer o ER mais atrativo nesse modelo. No
entanto, é ainda angustiante pensar que “a profissão docente ficou reduzida ao técnico que elege
materiais para trabalhar com seus estudantes” (DIAZ-BARRIGA, 2020, p. 21).
Todavia, essa passagem do presencial ao remoto, por vezes apresentada como tranquila e
homogênea, ilustra o contexto de transição experimentado na escola privada. Por sua vez, o contexto
do ensino remoto nas escolas públicas é o seguinte: desigualdade de acesso, precariedade do serviço
de assistência técnica e pedagógica, execução de uma proposta que está fora da realidade de grande
parte dos estudantes, professores com grandes dificuldades de aprendizagem e acesso nas novas
plataformas, cursos limitados de aperfeiçoamento dos professores. Soma-se a isso a desconsideração
do poder público quanto às questões financeiras e de acesso de muitos professores e estudantes:
moradores da zona rural ou de periferias onde não há acesso à internet ou onde o acesso é precário.
Famílias que não possuem computadores, tablets ou smartphones, ou mesmo, que compartilham um
único aparelho entre si para diversas atividades: desde as de entretenimento até as educativas. Planos
de telefonia e dados móveis limitados que não comporta as plataformas usadas. Nesse ano letivo de
2021 tal diferença fica ainda mais evidente com a pressão da Secretaria Estadual de Educação do
Estado de Minas Gerais sobre os professores das escolas públicas estaduais para o uso da plataforma
Google Meet. Resultado:
O programa de educação digital é um amplo exemplo de promoção da desigualdade social.
Não se trata de desqualificar o esforço da autoridade educativa por aproximar dos professores
o emprego de tecnologias digitais para a aula, pois esta é uma necessidade imperiosa de nossa
época, mas sim de questionar até onde é esta a resposta adequada para impulsionar a
aprendizagem dos estudantes nesta situação (DIAZ-BARRIGA, 2020, p. 22).

Nessa lógica é urgente questionar: o que os governantes têm feito pela educação? Cortado
investimentos? Uma das soluções encontradas pela escola pública foi a seguinte: estudantes da zona
rural ou de baixa renda que não podem acessar via internet o Plano de Estudo Tutorado (PET),
recebem esse documento impresso. Nele, encontra-se o conteúdo a ser trabalhado pelo professor nas
aulas pelo Google Meet, pelo aplicativo Conexão Escola e pelo Se liga na Educação. Em que consiste
o método? Os estudantes vão à escola uma vez por bimestre, buscam o PET que foi impresso e fazem
em suas casas, sozinhos, ou com a ajuda de seus pais (muitos dos quais não são professores), as
atividades do material. Para esses estudantes o PET e as tele aulas são os únicos meios de
aprendizagem. No contexto do ER algumas perguntas inquietam: Como falar de pluralidade religiosa

343
e do fenômeno religioso num ambiente em que prevalece uma única crença (ou a falta dela): a dos
membros da família e dos pais? Como promover, nesse contexto limitado, um ER que apresente as
diversas cosmovisões, as riquezas das tradições religiosas minoritárias e orientais, o discurso e as
práticas religiosas que não são da religião familiar? Como educar para a tolerância num contexto de
pouco contato com o diferente? A angústia quanto ao sistema público é ainda maior.
Em relação aos estudantes que conseguem acesso à internet temos a possibilidade de
desenvolver um trabalho próximo àquele realizado na instituição privada. Mas a possibilidade de
acesso de alguns estudantes e a não possibilidade de outros deixa ainda mais nítida a escandalosa
diferença social e educacional do Brasil. Que exista uma imensa diferença entre o setor privado e o
público, não nos espantamos, mas é estravagante a diferença e seletividade evidenciadas por essa
dupla forma de educação (via impressões e via acesso ao Classroom) no setor público, onde alguns
estudantes sem acesso à internet e aos canais de comunicação são preteridos em relação àqueles que
possuem acesso à internet. Não tratamos aqui de criticar o empenho dos professores, dos gestores e
orientadores pedagógicos que têm dado o melhor de si para poder fazer chegar aos estudantes uma
formação de qualidade. A crítica é, antes de tudo, ao modo como os governantes têm assumido suas
responsabilidades frente a educação nesse contexto. A pandemia veio fazer-nos aperfeiçoar, mudar
estratégias e repensar práticas, mas é impossível colocar em prática uma educação séria quando os
governos não levam a sério a educação.

Considerações finais
Não podemos sair da pandemia do mesmo jeito como entramos nela. Há algo de pedagógico
no vírus. A pandemia deixou ainda mais latente a plasticidade dos professores que se deram conta da
necessidade de mudar seus método e práticas educativas. A mudança do modelo presencial para o
modelo remoto impôs desafios à prática docente, e mesmo em meio às angústias, medos e incertezas,
professores e estudantes foram se adequando à nova proposta. Em algumas instituições vimos
acontecer uma adequação rápida, sobretudo nas escolas privadas, enquanto o poder público
lentamente elaborava propostas acerca do modelo a ser adotado. Aos poucos os professores foram se
sentindo mais à vontade, mais capacitados para desenvolver o trabalho remoto, mas parece que em
momento algum, sentiram-se à vontade como quando estavam em sala de aula. Afinal, o resultado do
trabalho remoto é desanimador: a mínima participação dos estudantes e a duplicação do trabalho e
das demandas escolares. A impessoalidade do trabalho e as demandas sem limites, como no caso dos
professores da rede estadual que atendem os estudantes pelo WhatsApp, são demonstrativos do
desgaste físico e emocional dos professores.

344
Tem-se que destacar o quanto a pandemia evidenciou as já conhecidas diferenças sociais. As
pessoas mais pobres e os moradores da zona rural se veem cada dia mais distantes do aprendizado
esperado. O ensino remoto é elitizado, uma vez que para acontecer precisa de elementos básicos
como acesso a uma boa internet, computador, notebook, tablet ou um smartphone com adequados
dados móveis. As periferias geográficas mostram o quanto é impossível uma educação remota e
igualitária. É ainda importante pensar uma última questão: nos lugares onde as aulas ainda são
totalmente remotas, surge a angustiante pergunta acerca da maneira como será o retorno O que se
entende por educação híbrida? Que modelo é esse? Vemos que os mesmos professores que sofreram
para se readequar à proposta de atividades remotas, começam a sofrer diante da pressão de um modelo
híbrido. Ao que parece, será um modelo muito mais exaustivo, exigente e desgastante para os
professores. Conciliar aulas e horários online com aulas e horários presenciais resultará num aumento
de carga horário de trabalho e menor produtividade.

Referências Bibliográficas
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_20dez_site.pdf. Acesso em: 27 de dezembro
de 2017.
CONJUVE. Juventudes e a Pandemia do Coronavírus. 2021. Disponível em:
https://mk0atlasdasjuve5w21n.kinstacdn.com/wpcontent/uploads/2021/06/JuventudesEPandemia2_
Relatorio_Nacional_20210607.pdf. Acesso em 18 jun. 2021.
DÍAZ-BARRIGA, Ángel. La escuela ausente, la necesidad de replantear su significado. In:
INSTITUTO DE INVESTIGAÇÕES SOBRE A UNIVERSIDADE E A EDUCAÇÃO, Educación y
pandemia: una visión académica. México: Unam, 2020. Disponível em:
<http://www.iisue.unam.mx/nosotros/covid/educacion-y-pandemia>. Acesso em: 20 set. 2020.
PLÁ, Sebastián. La pandemia en la escuela: entre la opresión y la esperanza In: INSTITUTO
DE INVESTIGAÇÕES SOBRE A UNIVERSIDADE E A EDUCAÇÃO, Educación y pandemia:
una visión académica. México: Unam, 2020. Disponível em:
<http://www.iisue.unam.mx/nosotros/covid/educacion-y-pandemia>. Acesso em: 20 set. 2020.
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO. O impacto da pandemia
na educação: Avaliação amostral da aprendizagem dos estudantes. 2021. Disponível em:
https://www.educacao.sp.gov.br/wp-content/uploads/2021/04/Apresenta%C3%A7%C3%A3o-
Estudo-Amostral.pdf. Acesso em: 10 maio 2021.

345
APRENDIZAGEM NAS AULAS DE ENSINO RELIGIOSO: MUDANÇA DO
ENSINO PRESENCIAL PARA O REMOTO

Neuzair Cordeiro Peiter1


Elcio Cecchetti2
Resumo
Este artigo apresenta os impactos causados pela pandemia no processo de ensino aprendizagem com os
educandos do 1º ao 9º ano da rede pública municipal no componente curricular do Ensino Religioso. Com o intuito de
garantir o direito à aprendizagem dos estudantes através das habilidades e competências propostas pela BNCC e pelo
Currículo de educação do município de Chapecó SC, se identificam as múltiplas lacunas que o isolamento social vem
provocando, especialmente na relação educador e educandos. A partir da metodologia bibliográfica, os resultados desta
pesquisa apontam que o sistema remoto está muito distante de igualar-se ao sistema de educação presencial em que
educandos atuam como protagonistas, desenvolvendo a autonomia, a criticidade, a reflexão, elementos que são essenciais
para a formação educacional.

Considerações iniciais
Movidos pela essência do diálogo, da sensibilidade, da alteridade, neste contexto da não
presencialidade dos educandos nos espaços escolares, do olho no olho, da aproximação, da acolhida
da diversidade presente no espaço escolar, que vai nos construindo como seres mais humanos e
sensíveis, perpassamos por um período histórico em que os educadores e equipe escolar são
desafiados a repensar a aprendizagem e a convivência coletiva.
Os desafios atuais da aprendizagem no ambiente familiar se interligam também ao sofrimento
e as cicatrizes que a pandemia do Covid 19 vem apresentando onde, neste momento de dor, muitas
das famílias têm passado pela perda de um ente querido, os quais foram retirados da materialidade,
sem um ritual digno, sem despedida.
No intento de prosseguir com a aprendizagem dos estudantes uma das alternativas
desenvolvidas consistiu no ensino remoto que se caracteriza pelo estudo em casa a partir das
tecnologias digitais ou da retirada de materiais impressos disponibilizado pelas unidades escolares.
Preocupa-nos o ensino remoto, pois identificamos que muitos estudantes não tem acesso à internet,
não possuem computadores, precisam usar o celular do pai ou da mãe quando eles chegam do
trabalho, não tem um espaço adequado na sua casa.
No espaço da casa o pai ou a mãe precisaram assumir uma função mais intensa. E, ao
considerarmos que muitos pais e ou responsáveis não possuem escolaridade superior, se intensificam

1
Mestranda em Educação pela Uno Chapecó. Professora efetiva de Ensino Religioso na rede pública Municipal de
Educação no Município de Chapecó. Membro do grupo de pesquisa: Desigualdades sociais, diversidades socioculturais
e práticas educativas da Universidade Comunitária da Região de Chapecó. Contato: neuzair@unochapeco.edu.br
2
Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro titular do Comitê Nacional de
Respeito à Diversidade Religiosa (CNRDR/Ministério dos Direitos Humanos). Professor do Programa de Pós-graduação
stricto sensu em Educação da Unochapecó. Contato: elcioc@unochapeco.edu.br

346
as dificuldades no acompanhamento e desenvolvimento das atividades escolares. Interligado a isso,
não podemos deixar de mencionar o intenso esforço para custear o sustento familiar, a apreensão com
a doença e as situações de luto. Nesse sentido, constatam-se diversos problemas emocionais,
intelectuais e sociais no ambiente familiar, os quais impactam no processo de ensino e aprendizagem.
No modelo presencial, enquanto educadores(as) de Ensino Religioso, tínhamos o contato
semanal com os nossos educandos permeados pela conversa, com momentos de descontração, do
ouvir as suas histórias que revelavam tantas verdades, dos momentos de choros e de risos, dos abraços
de agradecimento e dos de pedido de socorro. Esse vírus nos obrigou a mantermos o distanciamento
social para que vidas fossem salvas e, ao mesmo tempo, nos desafiou a repensar a aprendizagem
escolar.
O vírus Covid 19 manifestou-se no Brasil em março de 2020 onde as aulas passaram do
sistema presencial para o remoto. Em 2021 iniciamos com a esperança de que seria diferente, que nos
encontraríamos na escola, onde nos aproximaríamos, mataríamos a saudade que foi causada por este
distanciamento, ou seja, tudo voltaria a “normalidade”.
As escolas já estavam todas preparadas para este reencontro, tudo organizado, os
distanciamentos, as instruções e as regras de segurança, as salas organizadas. Na primeira semana de
orientações tudo certo. Logo recebemos a notícia que não voltaríamos à escola, pois na nossa cidade
os casos de contaminados pelo vírus haviam se elevado resultando na morte de idosos, jovens e
crianças, junto com a falta de leitos.
Com três hospitais na cidade, além das UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) com
pacientes aguardando leitos para internação, devido a expansão do vírus, vários pacientes precisaram
ser transferidos para outras cidades do Estado, gerando uma preocupação ainda maior quanto à vida
da sociedade chapecoense.
Muitos destes pacientes na maioria das vezes faziam parte da família dos nossos educandos.
Alguns perderam o pai, a mãe, o avô, a avó, o irmão ou irmã, tios, amigos, vizinhos. E aí como é
possível assegurar a aprendizagem destes educandos sem a sua presencialidade no espaço escolar,
diante do luto, compactuando estas aprendizagens com as habilidades contidas na BNCC (Base
Nacional Comum Curricular) neste processo de tanta adversidade apresentadas?
Primeiramente, devemos reconhecer a gravidade da situação, os riscos da doença e a
necessidade de cuidados como o distanciamento social para que o vírus não se propague. A primeira
emergência é proteger a vida como um comprometimento coletivo. Assim, nas duas primeiras
semanas de março as aulas foram remotas onde muitos educandos participaram através da internet ou
buscaram atividades impressas na escola.

347
Na terceira semana, após um questionário assinado pelas famílias, iniciamos as aulas no
presencial, mantendo todos os cuidados necessários. Pouquíssimos educandos retornaram à escola.
Aos que optaram pelo não retorno, infelizmente tiveram a tarefa de desenvolver as atividades sem a
explicação do professor.
Noutras palavras, neste vai e volta, o mais prejudicado neste processo são os educandos. Os
que fazem parte do fundamental II (6º ao 9º ano) é mais tranquilo, mas torna-se mais difícil para o
fundamental I (1º ao 5º ano). Particularmente, acreditamos que as aulas presenciais se tornam mais
produtivas, apresentando um grau menor de dificuldade na aprendizagem, contribuindo no
protagonismo juvenil.
No processo da aula remota no componente curricular do Ensino Religioso, a aula não se torna
completa, por mais bem elaborada metodologicamente, pois carece da essência do toque, do visual,
do respeitar o outro nas suas diferenças, do elogio às qualidades, de perceber-se e como ser no
processo construtivo de melhoramento enquanto cidadão que interage com o outro, que pensa e age
de forma diferente, do entender a fala ou o momento de silêncio do outro, bem como da mediação do
educador nos debates, na relação ética, na interatividade das ideias, nos contrapontos, do andar pela
sala de aula, elogiando as letras, ou contribuindo na melhora, do acompanhar até o lanche, do cuidado
no recreio.
Consequentemente, o Ensino Religioso conforme o documento da BNCC (no ensino
fundamental) precisa atribuir à relação do diálogo, da interatividade, da valorização do conhecimento
do outro e também,
adota a pesquisa e o diálogo como princípios mediadores e articuladores dos processos de
observação, identificação, análise, apropriação e ressignificação de saberes, visando o
desenvolvimento de competências específicas. Dessa maneira, busca problematizar
representações sociais preconceituosas sobre o outro, com o intuito de combater a
intolerância, a discriminação e a exclusão (BRASIL, 2018, p. 434).

Nas aulas remotas, a fala permanece com o professor, o educando não pergunta, não interage,
participa pouco e a aula torna-se monologa, pois se camuflam as opiniões, as ideias, os conceitos, as
críticas e a conscientização revolucionária pela da busca de novos saberes. Logo, a aprendizagem não
acontece na coletividade.
Freire (1983) nos fala sobre a educação que se remete ao diálogo, na interação do educando e
do educador, não como um mero receptor, que não questiona e que simplesmente aceita o que lhe é
ofertado. Nesse viés, o autor nos apresenta o desafio enquanto educadores, pois a educação dialógica
implica liberdade e democracia.
A intencionalidade de Freire para a educação é “a libertação e não a domesticação” (FREIRE,
1983. p. 3), para isso, o educando precisa ter senso crítico. O diálogo se torna a linguagem de
compreensão e aprendizado mais significativo nesse processo de alfabetização. A educação

348
alfabetizadora humaniza e permite crescer em comunidade, pois, segundo Freire (1983, p. 5), “[...]
somos educados em comunidade a partir da reflexão da práxis da vida de cada educando [...]”.
Portanto, nas aulas de Ensino Religioso, precisamos proporcionar que os nossos educandos
aprendam a construir seu conhecimento, que sejam investigadores, pesquisadores, se tornando
construtores dos seus saberes, o que na modalidade de aula remota se torna muito difícil, não
permitindo educação como um projeto social que abrange e inclui a todos os que fazem parte da
sociedade.
Conforme o documento Curricular da rede municipal de Chapecó (2019), a interação entre
educador e educandos deve contribuir para a formação humana em seus diferentes níveis e etapas de
desenvolvimento, expressando o compromisso com uma educação integral, promovendo a equidade
e a qualidade das aprendizagens.
Portanto, ao expressar o comprometimento da educação na sua integralidade, com equidade,
mantendo as aprendizagens com qualidade no aporte da formação humana em todos os períodos de
desenvolvimento, vislumbramos a importância do ensino presencial. O termo equidade se relaciona
a ideia de reduzir as desigualdades que são geradas por diversos fatores sociais e econômicos e que
podem levar a diferenças na aprendizagem ao se comparar diferentes grupos.
Consideramos que:
A consciência do direito de constituir uma identidade própria e do reconhecimento da
identidade do outro se traduz no direito à igualdade e no respeito às diferenças, assegurando
oportunidades diferenciadas (equidade), tantas quantas forem necessárias, com vistas à busca
da igualdade. O princípio da equidade reconhece a diferença e a necessidade de haver
condições diferenciadas para o processo educacional (BRASIL, 2001, p.11).

Nesse sentido, nós educadores, precisamos ter a compreensão de reconhecer e valorizar as


diferenças, de acordo com suas próprias características e potencialidades, e garantir a equidade dos
educandos, ou seja, oportunidades iguais para todos.
O currículo municipal ao elencar sobre o processo avaliativo, destaca que deve aderir à
formação do educando, incentivando a construção e a socialização do conhecimento, onde se
evidencia o aprendizado e dialoga sobre o mesmo. Consecutivamente, o componente curricular de
Ensino Religioso tem a proporção para “a construção de um ser humano mais consciente de si, do
outro e do mundo, na construção de projetos de vidas e de sociedade, com espaço a dignidade e
diversidade.” (CHAPECÓ, 2019, p. 473).
O componente curricular de Ensino Religioso vincula-se sob a importância da Educação e
Formação Integral, visando uma educação que vai muito além de preparar o educando para o mercado
de trabalho, mas busca possibilitar uma formação em todas as dimensões humanas, no qual o sujeito
é o centro do processo de ensino – aprendizagem, com suas dificuldades e habilidades, adquirindo as

349
capacidades necessárias para o desenvolvimento da sua autonomia, na construção de seu projeto de
vida.
Entretanto, já se destaca e se defende o direito a integralidade em todos os seguimentos na
Educação Básica, pois:
[...] A Educação Básica deve visar à formação e ao desenvolvimento humano global, o que
implica compreender a complexidade e a não linearidade desse desenvolvimento, rompendo
com visões reducionistas que privilegiam ou a dimensão intelectual (cognitiva) ou a
dimensão afetiva. Significa, ainda, assumir uma visão plural, singular e integral da criança,
do adolescente, do jovem e do adulto. [...] Além disso, a escola, como espaço de
aprendizagem e de democracia inclusiva, deve se fortalecer na prática coercitiva de não
discriminação, não preconceito e respeito às diferenças e diversidades (BRASIL, 2017, p.
14).

Compactuando com isso, a escola se torna um espaço das diversas aprendizagens, em um


processo democrático e inclusivo, negando qualquer ato de preconceito e discriminação, na
valorização da individualidade do outro(a) e na (re) significação dos processos educativos mais
flexíveis e acessíveis aos educandos inseridos no contexto escolar onde essa aprendizagem faça parte
da vida real dos estudantes e professores, contribuindo para que as crianças e adolescentes vejam
sentido nas práticas pedagógicas e nos conhecimentos apresentados na escola.
Noutras palavras, a educação tem que levar em conta o contexto social de cada educando,
porque cada um se educa dentro de seu próprio meio social. Para esse autor, alfabetizar e educar
implica ter compromisso com a sociedade, de tal maneira que não existe conhecimento neutro, não
existe conhecimento sem posição política.
Deste modo, referente às aulas que migraram do presencial ao remoto, em prol do cuidado da
vida, torna-se impossível tratar estes objetivos aqui apresentados. Neste momento de tamanha
exigência que envolve a educação e a garantia das aprendizagens, onde se revelaram as diferenças
sociais nos mais variáveis âmbitos, onde o educando e a sua família se tornaram responsáveis pelo
seu processo formativo, sem acesso à internet, sem computador, e ainda precisando encarar os danos
emocionais que esse cenário promove a todos os sujeitos envolvidos, potencializando sentimentos
como a angústia, a ansiedade, a sensação de pressão, de cobrança constante para assegurar a
aprendizagem, vislumbra-se que a educação presencial continua a ser o melhor caminho na formação
estudantil e humana.

Referências Bibliográficas
BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR. Educação é a Base. Brasília,
MEC/CONSED/UNDIME, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso
em 12 de mar. de 2021.
CHAPECÓ. Secretaria Municipal de Educação. CURRÍCULO BASE DO ENSINO
FUNDAMENTAL. Chapecó - SC, Dezembro de 2019.

350
DECRETO nº 3.956/2001, de 08 de outubro de 2001 (Convenção da Guatemala). Promulga a
Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas
Portadoras de Deficiência. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, 2001.
FREIRE, P. Educação e mudança. Coleção Educação e mudança vol. 1. 9 ed. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1983.

351
EDUCAÇÃO ENFERMA: O EFEITO PLACEBO DO ENSINO REMOTO E O
ENSINO RELIGIOSO EM VIGÍLIA

Adriana Rocha Ribeiro Araújo1

Resumo
Esta proposta de comunicação versou sobre a possibilidade de meu relato de experiência com reflexões
envolvendo problemáticas e a busca de soluções com menos impactos negativos à educação básica pública no ano letivo
de 2020, dando visibilidade ao ensino religioso enquanto área de conhecimento científico laico contribuir com o GT do
V CONACIR. Com a pandemia, emergiram novos desafios à educação básica pública diante de múltiplas variáveis
sociais, econômicas, saúde e cognitivas: formação integral do aluno, as novas diretrizes propostas para o Ensino Religioso
do novo Plano de Curso Comum da Rede Estadual de Educação do Acre com base na BNCC em redução de carga horária
e conteúdo, minha decisão política de viabilizar o ensino religioso laico diante de pais de sua maioria evangélica. Ensinar
exige risco, exige aprender a aprender e a ensinar, de ser transformador e criar possibilidades de construir o novo projeto
de ensino à distância sem deixar ninguém para trás, por vias: rádio, televisão, material impresso disponibilizado na escola
e em grupos de whatsapp.
Palavras-chave: Ensino remoto. Ensino Religioso. BNCC. Laicidade. Pandemia

Introdução
A educação é uma rede de entrelaçamentos políticos, econômicos, culturais e históricos que
perpassam por contextos sociais que se refletem em cada sala de aula brasileira e que reflete em meu
relato de experiência em um ano letivo em que toda a sociedade, a incluir a acreana – a contar a da
escola em que leciono Serafim da Silva Salgado, sofreu o impacto de uma pandemia. Seguindo
orientação da Unesco e Unicef em consonância com a Organização Mundial de Saúde da Organização
das Nações Unidas, OMS/ONU, o espaço escolar físico se tornou virtual em favor da vida. Embora
já se apontassem para um possível aumento da evasão escolar e da desigualdade educacional, bem
como uma crescente distorção idade/série que impactaria toda uma futura geração, as tentativas
diversas do estado do Acre buscaram diminuir esse cenário mobilizando esforços de toda comunidade
escolar e governo do estado por via Secretaria de Educação para ofertar por meio da transmissão de
rádio, de televisão e por transmissão pelo YouTube programas gravados de áudioaulas e videoaulas.
Mas nem sempre o que se planeja acontece com a mesma intensidade com que se planejou, há muitas
variáveis atuantes que impossibilitaram o acesso.
Para tratarmos de um assunto tão delicado como foi a educação no ano de 2020, faz-se
necessário traçar alguns resgates de acontecimentos históricos educacionais de políticas públicas no
âmbito nacional que impactam e impactarão por muitos anos o cenário da educação brasileira. Assim
pincelaremos alguns enfoques do porquê a educação brasileira se encontra enferma enquanto

1
Mestranda em Ciências da Religião pela UFJF, especialista em Ciências da Religião pela UFAC em 2019 e graduada
em Letras Vernáculas pela UECE em 1997. Email:arocharibeiroaraujo@gmail.com

352
patrimônio público na educação básica que é o foco da discussão aqui. O IDEB 2, Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica, e outros indicadores que mensuram a qualidade da educação
brasileira demonstraram em 2019 uma melhora mesmo que tenha ficado abaixo da meta estabelecida
para o ano. Mas não será esse o motivo de discussão embora aponte como no título sugere a
abordagem sobre a educação enferma e que esteja entrelaçada com uma perspectiva de queda em
desenvolvimento de habilidades e competências com as quais foram destinadas a cada fim de ano
escolar neste cenário de pandemia.
Enferma nos remete a compreensão sobre causas, sintomas, desdobramentos em
consequências, implicações em tecituras que complicam o tratamento quando visto em simplicidade
imediatista e homogeneidade. Assim enquadramos a educação sendo enferma desde as
intencionalidades políticas religiosas dos antigos catequistas do Brasil colônia aos enlaces de
possibilidades de enfrentamento dos desafios que nos é apresentado hoje com a vivência em aulas
remotas e toda uma exposição social das fragilidades da educação.
O objetivo reflexivo e esperançoso deste texto dialoga com minha experiência durante este
ano pandêmico de 2020, pois comporta em si o desejo de alertar que existe uma teia de
acontecimentos que o professor deve estar atento para compreender as decisões que são tomadas que
reverberam na sala de aula e na relação ensino e aprendizagem, bem como as decisões que ele próprio
teve que adotar para estabelecer uma relação dialógica de aprendizagem com o aluno diante de um
cenário desafiador para ambos até mesmo de permanência do aluno no sistema de ensino. Paulo
Freire3 sempre atravessará os meus discursos assim como a pedagogia histórico-crítica de Demerval
Saviani4 e a histórico-cultural de Vygotsky5, pois creio que a educação deva ser um instrumento para
libertação e luta por equidade social mesmo diante de tantas adversidades particulares e as de
controles políticos de poder que refletem para manutenção do sistema desigual.
O Ensino Religioso completa o caminhar discursivo crítico sobre proposta de ensino presente
na atual Base Nacional Comum Curricular e a realidade em um ano com os desafios redobrados para
serem desenvolvidos, pois não foi possível haver trocas de experiências nem diálogos entre os alunos
e professora. Dividi em duas partes de abordagens para demonstrar o entrelaçamento político,

2
O IDEB considera dois fatores determinantes: a quantidade de alunos que passam de ano e o desempenho de
desenvolvimento em língua portuguesa e matemática obtido por meio do SAEB, Sistema de Avaliação da Educação
Básica.
3
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 45ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007 ; ___. Pedagogia da Autonomia: saberes
necessários à prática educativa. 25ªed. São Paulo: Paz e Terra, 1996
4
SAVIANI, Demerval. Educação Escolar, Currículo e Sociedade: o problema da Base Nacional Comum Curricular. IN:
MALACHEN, Julia; MATOS, Neide da Silveira Duarte de; ORSO, Paulino José (org). A Pedagogia Histórico-Crítica,
as Políticas Educacionais e a Base Nacional Comum Curricular. Campinas: Autores Associados, 2020, p. 14- 45
5
VIGOTSKI, Lev S. A formação social da mente. 7.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ___. A construção do
pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

353
educacional, social e pedagógico para explanar a experiência com a BNCC no ano pandêmico de
2020 com projeções de esperanças para o ano de 2021.

Educação Enferma
Compreendendo o contexto histórico-político-econômico dos últimos acontecimentos que
envolvem a educação consideraremos o panorama em que ela se encontra enferma: PEC 95, lógica
empresarial na educação pública, militarização das escolas públicas, escola sem partido e a polêmica
que envolveu o FUNDEB em 2020.
Comecemos com a luta pela sobrevivência do FUNDEB, Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais de Educação, PEC 53/2006
com duração de 14 anos que findariam em 2020 e que sofreu uma mobilização política para que se
tornasse permanente com a PEC 108/2020. Essa é uma conquista significativa para busca de uma
equiparação de investimento e diminuição das desigualdades educacionais. Mas o que também trouxe
polêmica ao ser inserida em proposta vinda da Câmara dos Deputados foi a inclusão de repasse em
10% do FUNDEB a escolas religiosas, filantrópicas e comunitárias – totalizando cerca de R$ 12,8
bilhões por ano de repasse, na primeira quinzena de dezembro do ano passado o que representaria
menos investimento na educação pública. O Senado conseguiu reverter no final de dezembro essa
proposta e retirou esse investimento nas escolas religiosas, filantrópicas e comunitárias e garantiu que
o repasse ficasse apenas para a rede pública de ensino.
Outro desgaste educacional de enfermidade é a PEC 95/2016 que congelou os gastos sociais
até 2036 e isso inclui a educação e com ela as despesas com o salário dos professores que também
ficam congelados, tendo apenas repasse inflacionário – uma realidade não alcançada desde 2017 no
estado do Acre - o que configura menos procura pelos cursos de licenciatura, e no caso o vinculado
ao ensino religioso com menos interesse e investimento em qualificação profissional na área de
Ciências da Religião.
A proposta de militarização das escolas públicas e a busca por uma logística empresarial em
torno de metas, bonificação, avaliações externas geram um déficit para o sistema educacional que
incorporam o discurso raso de roupagem de solução para o problema de indisciplina e violência nas
escolas e as mazelas sociais refletidas nas salas de aula. Esse discurso não ajuda na inclusão escolar
porque gera exclusão daqueles que não se enquadrarem na militarização do ensino que censura a
autonomia do professor e aluno em discutir as diversas realidades sociais e culturais, o que pode ser
comprovada em notícias que repercutiram nacionalmente denunciando a não participação das escolas
militares em Olímpiada Nacional de História do Brasil em 2019 por exemplo. A visão empresarial
logística implantada sobre as escolas públicas tem gerado competitividade entre as redes de ensino

354
público em busca de ranking e focado muitas vezes em apenas desenvolver habilidades e
competências de saberes científicos e os saberes e discussões sociointeracionais de reflexões de
projetos étnico-raciais, por exemplo, vão sendo inviabilizados.
Também havemos de considerar a enfermidade vinda com a escola sem partido que veio
legalizar a censura nas reflexões promovidas por professores sobre as realidades sociais, culturais,
políticas e econômicas num sistema de controle e punição. Todo esse cenário está presente no ano de
incertezas que 2020 trouxe sob o olhar vigilante dos pais em que o professor desenvolveu seu trabalho
em aulas remotas com a pressão de volta presencial com uso de protocolo de retorno.

Efeito Placebo do Ensino Remoto e o Ensino Religioso em Vigília


O ensino remoto foi a solução encontrada para que a educação não fosse tão prejudicada diante
do quadro de incertezas em meio a pandemia e envolveram várias questões: saúde, socioeconômica
e institucional de ensino.
Quanto à saúde tanto mental, física e social, as condições de trabalho também se tornaram mais
estressantes tanto para alunos quanto professores diante da fragilidade da vida de se contrair a covid-
19 que nos impulsionou ao isolamento social, sem separação de ambiente escola-casa. A população
adoecendo, os números de pessoas contaminadas e a procura de leitos hospitalares crescendo fizeram
com que muitos pais enviassem os filhos para as áreas rurais. Nós professores tivemos que além de
lidar com as nossas angústias, também lidar com as de pais e alunos. Não podemos compreender a
escola como apenas um lugar de repasse de conhecimento e produtora de índices como depositora
bancária, existem vidas que são compartilhadas. Mesmo que houvesse apenas um compartilhar de
mensagens via WhatsApp, houve um compartilhar que aproximou mais o professor da realidade do
aluno, de sua situação socioeconômica e de vulnerabilidades. A falta de acesso à internet ou acesso à
celular que comporta determinados aplicativos (google meet por exemplo) dificultou um diálogo
dialético que pudéssemos acompanhar o aprendizado do aluno para que pudéssemos adotar novas
estratégias de ensino. Isso provocou mudanças em meus horários de trabalho e me fizeram atender
alunos nos fins de semana e a qualquer horário do dia ou da noite com as mais variadas questões e
aflições. Procurei incentivar principalmente para que não abandonassem os estudos e o ano letivo.
A comunidade da escola Serafim da Silva Salgado, no bairro Sobral da cidade de Rio Branco
no Acre desenvolveu os trabalhos do ensino remoto no ano de 2020 apenas fazendo uso de postagem
de atividades nos grupos de WhatsApp das turmas e com o distribuir de atividades impressas. Apesar
de haver programação de videoaulas via youtube no canal Escola em casa da Secretaria de Educação
do Estado do Acre, SEE/AC, ou sendo transmitidas em vários horários no canal da TV Aldeia em

355
parceria com a rede Amazônica de televisão, muitos alunos não fizeram uso desses recursos para
acompanharem as aulas.
A BNCC propõe ao aluno uma formação integral em que ele possa desenvolver competências
e habilidades a partir das orientações básicas destinadas a cada ano e em cada componente curricular.
As secretarias de educação elaboraram as orientações curriculares para seus respectivos estados a
partir da BNCC de 2017. A secretaria de educação do Estado do Acre também fez o mesmo e assim
surgiu o Plano de Curso Comum da Rede Estadual de Educação do Acre que durante a pandemia
escolheu alguns conteúdos para serem trabalhados tendo a carga horária reduzida em 20%. Assim, as
aulas de ensino religioso que eram 40 horas anuais passaram a ser 32.
O professor em sala de aula planeja as aulas a partir das diversas tensões que administra, uma
delas é com o sistema de ensino que traz intencionalidades políticas que regem um currículo (o formal
que interage com o real). Os recursos escolares também influenciam nas tensões; assim como há a
comunidade escolar de maioria cristã vigilante de controle ao que é ministrado em ensino religioso.
O professor precisa conviver e administrar essas tensões que o subalterniza antes de construir o fazer
pedagógico também com o currículo oculto. A subalternidade é um fator de convivência social que
muitas vezes não dá pra escapar, mas tem com criar diálogos para se assumir como professor
autônomo, crítico-reflexivo sobre sua prática.
A partir do Plano de Curso Comum da Rede Estadual de Educação do Acre, em 2019, a SEE
determinou no currículo formal as diretrizes para cada bimestre e para ter certeza que isso seria
cumprido e com a intencionalidade que iria elevar os índices de aprendizagem determinou que
somente ela elaboraria as provas avaliativas bimestrais para todas as disciplinas do ensino
fundamental II que seriam destinadas aos alunos sem se ater as particularidades que há em cada
escola, sem respeitar as diversas identidades que tramitam no fazer pedagógico, retirando assim a
possibilidade do professor ser autônomo, crítico-reflexivo sobre sua prática, há casos de professores
que só tiveram acesso à prova de sua disciplina no dia em que foi aplicada aos alunos. Quando nos
deparamos com tal situação, situamo-nos nos diversos desafios que um professor de ensino religioso
que na imensa maioria do estado não possui graduação ou pós-graduação em Ciências da Religião,
pois no estado não há o oferecimento nessa formação acadêmica e muitos professores de outras
disciplinas completam a carga horária no ensino religioso. O alerta também está na ausência de
material didático. Nem indicação de textos foi oferecido para estudo para os professores do estado do
Acre se prepararem para ministrar as propostas que o Estado elaborou e ainda havia a submissão a
esse controle de avaliação. Foi o ano mais subalternizado que já vivenciei em toda minha experiência
de 24 anos de educação, mas consegui criar diálogos para que meus alunos não fossem prejudicados,

356
pois a minha especialização em Ciências da Religião me deu um norte de como eu poderia administrar
essa situação.
Por compreender que o professor deve ser autônomo em seu fazer pedagógico e assumir
decisões políticas que venham a dialogar com o aluno para construção de um aprendizado dialético e
o ano de 2020 trazer consigo além dos desafios assinalados6 outros, assumi diante das perspectivas
de orientação de conteúdos da SEE/AC uma proposta de exercícios que dialogava com o estudo do
fenômeno religioso em especificidade de leitura de mundo, assim fiz uso de notícias em jornais e
revistas, imagens e informações presentes em redes sociais que expunham o fenômeno religioso para
ser refletido e que eu poderia de alguma forma manter viva a proposta de desenvolver os objetivos
do Ensino Religioso na BNCC
a)Proporcionar a aprendizagem dos conhecimentos religiosos, culturais e estéticos, a
partir das manifestações religiosas percebidas na realidade dos educandos; b) Propiciar
conhecimentos sobre o direito à liberdade de consciência e de crença, no constante
propósito de promoção dos direitos humanos; c) Desenvolver competências e
habilidades que contribuam para o diálogo entre perspectivas religiosas e seculares de
vida, exercitando o respeito à liberdade de concepções e o pluralismo de ideias, de acordo
com a Constituição Federal; d) Contribuir para que os educandos construam seus
sentidos pessoais de vida a partir de valores, princípios éticos e da cidadania. (BRASIL,
2017, p. 434)

Também tivemos o desafio de adaptar as atividades para os alunos deficientes da nossa escola.
Sabendo que cada aluno traz consigo necessidades especificas de adaptação, para mim que leciono
para todos os anos, já conhecia a maneira como explorar os conteúdos com cada aluno do7º, do 8º e
do 9º, assim elaborei diversas atividades específicas para cada um. A maior dificuldade encontrada
fora com os alunos deficientes do 6º ano, pois não houve muito tempo para conhecê-los para
compreender de que forma eu poderia fazer abordagens, mas com um certo tempo as professoras do
AEE, Atendimento Educacional Especializado foram me orientando como poderia trabalhar, pois
havia muitos alunos deficientes intelectuais com níveis diferentes de desenvolvimento. Infelizmente
as atividades eram apenas repassadas à família dos alunos para que ela mesma acompanhasse seus
filhos nas tarefas adaptadas e muitas das atividades que elaborei que foram entregues pelo AEE não
foram devolvidas à escola, assim não consegui acompanhar o desenvolvimento de cada aluno em sua
compreensão.
A consideração sobre o ensino remoto ser placebo parte da realidade concreta em que se
encontrou a escola pública onde leciono para todas as turmas do ensino religioso do fundamental II
num bairro de periferia de Rio Branco, cujas possibilidades trazidas pelo panorama da pandemia e

6
No ano 2020, a Secretaria de Educação do Estado do Acre, SEE/AC, mudou sua estratégia de controle de avaliação e
determinou que 50% seria de elaboração dela e 50% ficaria a cargo do professor elaborar como num momento
participativo do professor no diálogo, mas não permite que as suas questões sejam modificadas nem adaptadas em
linguagem de acessibilidade ao aluno.

357
condições socioeconômicas e emocionais inviabilizaram uma das categorias básicas da educação que
é o diálogo dialético que promove a troca de experiências, reconhecimento de identidades plurais,
compreensão de mundo por meio dos diversos saberes que circulam na escola e que enriquecem o
ensino e aprendizagem. Os resultados alcançados de participação e aprovação no ano letivo de 2020,
no quadro I7, não nos deixou satisfeitos e nos remete a alertas quanto aos que passaram de ano em
relação a dúvidas sobre o verdadeiro aprendizado obtido que só foi adquirido com a comprovação de
realização de atividades, não houve reflexões sobre as respostas dadas, e o resolver de provas
disponibilizadas via google forms ou de maneira impressa. Não houve a troca de diálogos ou
diversidades de abordagens para contemplar desenvolvimento de capacidades.
Quadro I- Resultado de Aprovação

FONTE: elaborado pela autora a partir dos dados obtidos da escola em março de 2021

Considerações Finais
As implicações de uma educação enferma presentes neste texto nos faz pensar sobre o acesso
à internet gratuita que fora vetado pelo governo federal aos alunos de escola pública. Se a lei tivesse
sido aprovada iria favorecer o desenvolvimento de atividades em plataformas digitais e repercutiria
em uma diminuição na evasão escolar no ano de 2020. Existe, há 20 anos, o Fundo de Universalização
dos Serviços de Telecomunicações, Fust, constituído do montante de 1% da receita bruta de todas as
empresas do setor, tem por finalidade destinar o percentual para expandir os serviços digitais. Esse
fundo poderia ser utilizado para diminuir as desigualdades educacionais que aumentaram entre escola
públicas e privadas.
O Ensino Religioso está em vigília positiva, pois foi apresentado em exposição aos pais as
perspectivas científicas de se estudar os fenômenos religiosos em diálogos interculturais e de
promoção à ética de alteridades. O discurso proselitista que muitos pais dos alunos tiveram em estudo
enquanto estudantes de educação básica não tem mais espaço nas diretrizes oriundas com a BNCC
2017 e por reflexo também na proposta de plano de curso da Secretaria de Educação mesmo tendo
pontos a serem observados. Resta-nos agora caminhar enquanto professores de ensino religioso para
formação acadêmica em Ciências da Religião para se tornarem qualificatórias as abordagens e

7
Elaborei o quadro mediante aos dados que a coordenação de ensino disponibilizou aos professores em março de 2021
com o resultado de aprovação de cada turma

358
oferecer um desenvolvimento das competências e habilidades próprias da disciplina. O despertar para
a necessidade já é notório na BNCC.

Referências Bibliográficas
BRASIL. BNCC. MEC: 2017 Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase/#fundamental/ensino-religioso-no-ensino-
fundamental-anos-finais-unidades-tematicas-objetos-de-conhecimento-e-habilidades. Último acesso
em maio de 2021
SEE/AC. Plano de Curso Comum da Rede Estadual de Educação do Acre Reestruturado para
o ano 2020. Disponível em: https://educ.see.ac.gov.br/ . Último acesso em maio de 2021

359
ENSINO RELIGIOSO NOS PETs DO ESTADO DE MINAS GERAIS EM 2020

Mauro Rocha Baptista1


Goretti Marciel Pereira Goulart2
Resumo
Com a aplicação em 2020 do Regime Especial de Atividades Não Presenciais (REANP), o Estado de Minas
Gerais organizou de forma centralizada os Planos de Estudos Tutorados (PETs) que envolviam todos os componentes
curriculares previstos pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e pelo Currículo de Referência de Minas Gerais
(CRMG). Para o Ensino Fundamental II a adaptação da BNCC pelo CRMG já estava sendo adaptada na prática escolar
desde 2019, sendo 2020 um ano de maior exigência com a sua efetiva execução. Neste contexto a produção dos PETs se
tornaram um guia sobre as intenções do Estado sobre as abordagens curriculares dos diversos componentes. O caso
específico do Ensino Religioso (ER) se torna ainda mais emblemático neste sentido, uma vez que este foi o primeiro
material didático produzido para este componente com a chancela estatal. Compreendemos que a análise deste material
auxiliará a área a entender melhor alguns dos encaminhamentso propostos pelo Estado. Este é o intento do projeto "Ensino
Religioso nos Planos de Estudos tutorados dos anos finais do Ensino Fundamental", desenvolvido com apoio do
PAPq/UEMG, a partir do qual apresentaremos resultados parciais dos comparativos entre as habilidades apresentadas na
BNCC, no CRMG e aplicadas nos PETs.
Palavras-chave: Ensino Religioso. PET. BNCC. CRMG.

Neste momento estamos apresentando os primeiros resultados da pesquisa "Ensino Religioso


nos Planos de Estudos tutorados dos anos finais do Ensino Fundamental", desenvolvida na
Universidade do Estado de Minas Gerais com apoio do PAPq/UEMG. Visando atender os limites
deste texto optamos por priorizar a transcrição das tabelas comparativas desenvolvidas nesta primeira
etapa. A proposta da pesquisa envolve um segundo momento, em que o uso das habilidades nos PETs
será analisado de forma mais qualitativa, o que será objeto de outras publicações.
O primeiro passo desenvolvido pela pesquisa foi um levantamento das diferenças presentes
entre o texto da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a adaptação promovida pelo estado de
Minas Gerais no Currículo de Referência de Minas Gerais (CRMG). Aqui representaremos estas
diferenças com foco específico nas habilidades propostas para o componente curricular de Ensino
Religioso (ER). Cada habilidade é identificada por um código específico, mas com uma formatação
geral. Por exemplo, a primeira habilidade do sexto ano é formada pelo código: EF06ER01X. As duas
primeiras letras indicam o nível de ensino para o qual estão direcionadas, no caso EF indica o
direcionamento para o Ensino Fundamental. Os dois números seguintes o ano de formação dentro do
nível de ensino, no caso o 06 indica o sexto ano do Ensino Fundamental. Em seguida são inseridas
duas outras letras que se referem ao componente curricular, sendo ER a representação do Ensino
Religioso. Os dois números seguintes indicam o número da habilidade referida, no caso exemplar o
01 indica se tratar da primeira habilidade do sexto ano. Neste elemento existe uma pequena diferença

1
Doutorado em Ciência da Religião pela UFJF, professor do departamento de Ciências Humanas da UEMG/Barbacena.
mauro.baptista@uemg.br
2
Graduanda em Ciências Sociais pela UEMG/Barbacena, bolsista do PAPq/UEMG. goretti.0793337@discente.uemg.br

360
entre a proposta da BNCC e a do CRMG. Na BNCC cada ano possuí uma sequência de habilidades
iniciadas com o 01 daquele ano. O CRMG optou por numerar as habilidades incluídas em Minas
Gerais em uma única sequência, sendo assim a primeira habilidade incluída em Minas para o sexto
ano é a 17, as outras 16 são do fundamental I. O último elemento na formação do código indica se
ela está igual ao original da BNCC, neste caso após o número da habilidade não é inserido nada,
como, por exemplo, na segunda habilidade do sexto ano: EF06ER02. O exemplo que seguimos possui
um X após o número, indicando que a habilidade é original da BNCC, mas sofreu modificações no
CRMG. A outra possibilidade é a habilidade ter sido inserida em Minas Gerais, neste caso é incluído
um MG após o número da habilidade. Por exemplo, a já citada habilidade 17 do sexto ano:
EF06ER17MG.
Além da apresentação das habilidades a tabela também foi elaborada de forma a identificar a
inserção delas nas três unidades temáticas propostas pela BNCC e qual o objeto de conhecimento a
que estão vinculadas. Criamos uma sigla para cada objeto de conhecimento que será utilizada em uma
próxima tabela. As unidades temáticas mantêm a coesão do componente curricular sendo trabalhadas
e desenvolvidas ao longo de todos os anos do ensino fundamental. Desta forma, a unidade “Crenças
religiosas e filosofias de vida” está presente em todos os anos do fundamental II, mas os objetos
destacados em cada ano representam o desenvolvimento do tema e o amadurecimento no seu
tratamento. As habilidades representam os objetivos que devem ser alcançados pelos discentes na
concretização de um objeto de conhecimento. Ou seja, ao trabalhar com a “Tradição escrita: registro
dos ensinamentos sagrados”, primeiro objeto do sexto ano na unidade temática destacada acima, os
objetivos desejados pela BNCC são desenvolver nos alunos as habilidades de “Reconhecer o papel
da tradição escrita na preservação de memórias, acontecimentos e ensinamentos religiosos”
(EF06ER01) e de “Reconhecer e valorizar a diversidade de textos religiosos escritos (textos do
Budismo, Cristianismo, Espiritismo, Hinduísmo, Islamismo, Judaísmo, entre outros)” (EF06ER02).
À estas duas o CRMG soma uma terceira: “Pesquisar e listar os diversos tipos de textos sagrados. –
Identificar e apontar os tipos de linguagens e de gêneros textuais utilizados nos textos sagrados das
diferentes tradições religiosas” (EF06ER17MG). Devemos destacar que a habilidade não é um
conteúdo de simples “saber”, mas uma condição de “saber fazer”, uma condição prática de uso deste
saber. Não basta simplesmente transformar a habilidade em um tópico de aula que vise, por exemplo,
descrever a importância da tradição escrita para a preservação da memória, assim como não é
suficiente listar os nomes dos textos sagrados. O ideal seria trabalhar com os textos escritos de forma
que o alunado conseguisse perceber a sua importância, desenvolvendo dessa forma a habilidade de
reconhecimento e não meramente de identificação. Neste sentido o papel do professor seria o de
ofertar a diversidade de textos religiosos, tratando-os de forma respeitosa e valorizando sua

361
importância, sem proselitismos ou manifestações preconceituosas e pejorativas. No tratamento
respeitoso do objeto de conhecimento, a habilidade vai sendo construída em conjunto. Para o
desenvolvimento destas habilidades a forma com que o objeto é tratado ensina mais do que a
apresentação do objeto em si.
Nas habilidades que foram modificadas pelo CRMG, marcadas com X ao fim do código, a
tabela destaca com itálico o que foi incluído e entre colchetes o que foi excluído. Na primeira
sequência de tabelas foram divididas quatro tabelas, uma para cada um dos anos finais do ensino
fundamental.
Unidades Objetos de Habilidades
temáticas conhecimento
(UT) (OC)
Crenças Tradição escrita: (EF06ER01X) Reconhecer o papel e a função da tradição escrita na preservação de
religiosas e registro dos memórias, acontecimentos e ensinamentos culturais e religiosos.
filosofias de ensinamentos (EF06ER17MG) Pesquisar e listar os diversos tipos de textos sagrados. – Identificar
vida sagrados (TE) e apontar os tipos de linguagens e de gêneros textuais utilizados nos textos sagrados
das diferentes tradições religiosas.
(EF06ER02) Reconhecer e valorizar a diversidade de textos religiosos escritos
(textos do Budismo, Cristianismo, Espiritismo, Hinduísmo, Islamismo, Judaísmo,
entre outros).
Ensinamentos (EF06ER03X) Reconhecer e valorizar em narrativas e textos escritos,
da tradição curiosidades, costumes e ensinamentos relacionados a modos de ser e de viver e
escrita (ETE) princípios de vida.
(EF06ER04X) Reconhecer que as narrativas e os textos escritos são utilizados
pelas tradições religiosas de maneiras diversas.
(EF06ER18MG) Diferenciar os textos de diferentes tradições religiosas,
reconhecendo a cultura como marco referencial de sua elaboração.
(EF06ER05X) Descobrir e discutir como o estudo e a interpretação dos textos
culturais e religiosos influenciam os adeptos a [viverem] vivenciarem os
ensinamentos das tradições religiosas e das filosofias de vida.
Símbolos, ritos e (EF06ER06X) Reconhecer e relatar a importância dos mitos, ritos, símbolos e
mitos religiosos textos na estruturação das diferentes crenças, tradições e movimentos religiosos e
(SRM) culturais.
(EF06ER07X) Estabelecer e exemplificar a relação entre mito, e rito, e a presença
de símbolos nas práticas celebrativas familiares e das comunidades de diferentes
culturas e tradições religiosas, especialmente das matrizes de formação do povo
brasileiro.
(EF06ER19MG) Investigar os elementos constituintes das religiões.
(EF06ER20MG) Refletir que o sentido de determinados símbolos pode ter sentidos
diferentes para as pessoas, o que denota as diferentes histórias culturais e religiosas.

362
Identidades Relações e (EF06ER21MG) Reconhecer a importância do autoconhecimento e do
e alteridades narrativas conhecimento do outro para que haja relações respeitosas entre as pessoas.
pessoais (RNP)
Fonte: CRMG p. 898-9.
Nesta primeira tabela, referente ao sexto ano, destacamos de forma geral a retomada da
unidade temática “Identidades e alteridades” que na BNCC é prevista apenas para os anos iniciais,
mas no CRMG só não foi incluída no sétimo ano. Além das sete habilidades previstas pela BNCC
são incluídas outras quatro pelo CRMG, nenhuma delas, contudo, ressaltam alguma característica
regional. Nas modificações feitas ressaltamos a inclusão da palavra cultura e suas variações culturas
e culturais, além de costumes, como uma modulação da temática da religião. Por exemplo na
habilidade 01 enquanto a BNCC direciona sua atenção para “acontecimentos e ensinamentos
religiosos”, o CRMG faz a inserção do termo culturais, inclusive destacando este em primazia em
relação àquele, com a suavização da importância da temática religiosa através da análise de
“acontecimentos e ensinamentos culturais e religiosos”. Esse tipo de inserção é comum no espírito
do CRMG e merecerá maior atenção nos estudos futuros. Outra inserção comum é o termo
“narrativas” associado a “textos escritos” que aparecia na BNCC. Neste caso consideramos uma
complementação oportuna uma vez que a oralidade é trabalhada no quinto ano por um profissional
sem formação específica para a lida com a religiosidade. Sendo assim é possível retomar alguns temas
da narrativa oral, ou originariamente oral, ainda que posteriormente escrita, para criar uma maior
vinculação entre as unidades do componente curricular.
UT OC Habilidades
Manifestações Místicas e (EF07ER22MG) Conceituar o que é mística e o que é espiritualidade.
religiosas espiritualidades (EF07ER01X) Reconhecer que o ser humano, através de palavras, gestos,
(ME) símbolos, músicas, se expressa e comunica e respeitar as práticas de comunicação
com as divindades em distintas manifestações e tradições religiosas.
(EF07ER02X) Identificar e respeitar as práticas de espiritualidade (em expressões
emocionais, vivenciais ou simbólicas) utilizadas pelas pessoas em determinadas
situações (acidentes, doenças, fenômenos climáticos).
Lideranças (EF07ER03X) Reconhecer as funções e os papéis atribuídos às lideranças de
religiosas diferentes tradições religiosas.
(LR) (EF07ER04X) Listar e exemplificar líderes religiosos que se destacaram e se
destacam por suas contribuições à sociedade.
(EF07ER05X) Elencar e discutir estratégias que já foram utilizadas, mas também
novas formas criativas que promovam o diálogo e a convivência ética e respeitosa
entre as religiões e as filosofias de vida.
(EF07ER23MG) Conceituar e exemplificar o que é valor, moral e ética.

363
Crenças Princípios (EF07ER06X) Identificar princípios éticos e valores morais em diferentes
religiosas e éticos e valores tradições religiosas e filosofias de vida, discutindo como podem influenciar
filosofias de religiosos condutas pessoais e práticas sociais.
vida (PEVR)
Liderança e (EF07ER07X) Identificar, exemplificar e discutir o papel e a importância das
direitos lideranças religiosas e seculares na defesa e promoção dos direitos humanos.
humanos (EF07ER08X) Reconhecer e respeitar o direito à liberdade de consciência, crença
(LDH) ou convicção, identificando e questionando concepções e práticas sociais que a
violam.
Fonte: CRMG p. 899-901.
Com relação à tabela do sétimo ano destacamos que às oito habilidades originais da BNCC,
todas com modificações, são incluídas mais duas do CRMG, ambas destinadas ao esclarecimento
conceitual. Ressaltamos ainda que a maior parte das modificações promovidas nesta etapa estão
associadas à verbos incluídos como objetivos para as habilidades.
UT OC Habilidades
Crenças Crenças, (EF08ER24MG) Inventariar as principais crenças, convicções e atitudes religiosas
religiosas e convicções e contemporâneas.
filosofias de atitudes (EF08ER01) Discutir como as crenças e convicções podem influenciar escolhas e
vida (CCA) atitudes pessoais e coletivas.
(EF08ER25MG) Resgatar os conceitos de valor, moral e ética.
(EF08ER02X) Analisar filosofias de vida, manifestações e tradições religiosas
destacando seus princípios éticos para pleno desenvolvimento da cidadania.
Doutrinas (EF08ER03X) Explicar e analisar doutrinas das diferentes tradições religiosas e
religiosas (DR) suas concepções de mundo, vida e morte.
Crenças, (EF08ER26MG) Exemplificar como as ideias filosóficas e religiosas mobilizaram
filosofias de e mobilizam pessoas na história em defesa da cidadania.
vida e esfera (EF08ER04) Discutir como filosofias de vida, tradições e instituições religiosas
pública (EP) podem influenciar diferentes campos da esfera pública (política, saúde, educação,
economia).
(EF08ER27MG) Conceituar o que é laicidade e relação entre Estado Republicano
e Religião.
(EF08ER05X3) Exemplificar e debater sobre as possibilidades e os limites da
interferência das tradições religiosas na esfera pública.
(EF08ER28MG) Distinguir e exemplificar o que é público, privado e o que são
organizações do terceiro setor.
(EF08ER29MG) Identificar, reconhecer e valorizar os movimentos sociais e
religiosos que contribuem para promoção social e a inclusão.

3
Corrigindo o CRMG em que consta como final 04X.

364
(EF08ER30MG) Discutir como a presença religiosa atua no cenário político
contemporâneo brasileiro.
(EF08ER06) Analisar práticas, projetos e políticas públicas que contribuem para a
promoção da liberdade de pensamento, crenças e convicções.
Tradições (EF08ER07X) Inventariar e analisar as formas de uso e as influências das mídias
religiosas, e novas tecnologias de informação e comunicação (TIC), pelas diferentes
mídias e denominações religiosas.
tecnologias
(MT)
Identidades e Relações e (EF08ER31MG) Analisar e discutir como as relações são afetadas pelas novas
alteridade narrativas tecnologias de informação e comunicação e da importância dos valores da
pessoais (RNP) sinceridade, do respeito e da verdade para relações saudáveis.
(EF08ER32MG) Pesquisar e analisar como a violência e o desrespeito às ideias,
subjetivas e a corporeidade das pessoas afetam as relações e produzem problemas
na vida em sociedade.
Fonte: CRMG p. 901-3.
Nas habilidades previstas para o oitavo ano são incluídas pelo CRMG sete, que se somam às
outras sete previstas pela BNCC. As inserções ampliam o papel interdisciplinar do componente de
ER, demarcando ainda mais a relação entre a religião e os outros setores da sociedade.
UT OC Habilidades
Crenças Imanência e (EF09ER01X) Localizar e analisar princípios e orientações para o cuidado da vida,
religiosas e transcendência a defesa do meio ambiente e a cultura de paz, e nas diversas tradições religiosas e
filosofias de (IT) filosofias de vida.
vida (EF09ER02X) Listar e discutir as diferentes expressões de valorização e de
desrespeito à vida, por meio da identificação e da análise de matérias nas diferentes
mídias.
Vida e morte (EF09ER33MG) Investigar e analisar os conceitos de finitude humana e de
(VM) transcendência geradores de sentido para a vida.
(EF09ER03X) Identificar sentidos do viver e do morrer em diferentes culturas e
tradições religiosas, através do estudo de mitos fundantes.
(EF09ER04X) Identificar concepções de vida e morte em diferentes tradições
religiosas e filosofias de vida, resgatando memórias, por meio da análise de
diferentes celebrações e ritos fúnebres.
(EF09ER05X) Conceituar, examinar e analisar as diferentes ideias de imortalidade
elaboradas pelas tradições religiosas (ancestralidade, reencarnação, transmigração
e ressurreição).
Princípios e (EF09ER06X) Descrever e reconhecer o exercício da convivência e de [a]
valores éticos coexistência como possibilidade de uma atitude ética de respeito à vida e à
(PVE) dignidade humana.

365
(EF09ER07X) Identificar, descrever e formular princípios éticos (familiares,
religiosos e culturais) que possam alicerçar a construção de projetos de vida.
(EF09ER08X) Traçar objetivos, planejar e construir projetos de vida assentados
em princípios e valores éticos.
Identidades e Relações e (EF09ER34MG) Reconhecer que na construção das identidades são importantes os
alteridades narrativas princípios éticos e morais, pois dão qualidades às relações de amizade e de afeto.
pessoais (RNP)
Fonte: CRMG p. 903-4.
Com relação ao nono ano inseridas apenas duas habilidades pelo CRMG, e as modificações
nas outras oito propostas pela BNCC retoma o padrão de incluir verbos nos objetivos.
A partir da exposição das habilidades da forma como elas são reorganizadas pelo CRMG,
observamos que a proposta de plano de curso criada pela SEE/MG para o ano de 2020 não seguia a
ordem das habilidades, nem necessariamente os objetos. Para melhor compreender a forma como os
PETs foram desenvolvidos foi necessário criar uma tabela, destacando em cada bimestre o mês e o
número de dias previstos para o trabalho com cada habilidade (indicada pelo número final do seu
código). Destacamos ainda qual objeto, indicado pela sigla criada nas tabelas anteriores, cada
habilidade representa.
Previsão no Plano de Curso da SEE
4
Bim. Mês Dias 6º Ano 7º Ano 8º Ano 9º Ano
20205 Hab. Obj. Hab. Obj. Hab. Obj. Hab. Obj.
1º Fev. 12 04X ETE 23MG PVR 25MG CCA 08X PVE
Mar. 22 01X TE 06X PVR 02X CCA 07X PVE
Abr. 18 18MG ETE 05X LR 01 CCA 34MG RNP
2º Mai. 20 21MG RNP 04X LR 24MG CCA 06X PVE
Jun. 20 03X ETE 03X LR 03X DR 03X VM
Jul. 13 20MG SRM 07X LDH 29MG EP 33MG VM
27MG EP
3º Ago. 22 07X SRM 01X ME 28MG EP 04X VM
26MG EP
30MG EP
Set. 22 06X SRM 22MG ME 04 EP 05X VM

4
Para esta divisão se está considerando a divisão bimestre/mês relacionada nos Planos de Curso elaborados pela SEE/MG
e disponíveis em: <https://curriculoreferencia.educacao.mg.gov.br/index.php/plano-de-cursos-crmg>, acesso em 06 de
janeiro de 2021. Existem sutis diferenças entre a data de início e término dos bimestres, por exemplo: o 1º bimestre
terminaria em 28 de abril o que deixaria dois dias letivos de abril no 2º bimestre, mas optamos por manter a primazia da
relação habilidade/mês sobre a relação mês/bimestre.
5
Mesmo conscientes da não efetivação da proposta para 2020, para efeito de parametrização dos dias letivos mensais,
seguimos aqui a previsão do calendário escolar elaborado conforme resolução 4.254/2019 e disponível em:
<https://www2.educacao.mg.gov.br/component/gmg/story/10709-calendario-escolar-2020-ano-letivo-na-rede-estadual-
de-ensino-comeca-no-dia-10-de-fevereiro>, acesso em 06 de janeiro de 2021.

366
17MG TE 07X LDH 05X EP 33MG VM
4º Out. 18 19MG SRM 02X ME 32MG RNP 02X IT
Nov. 20 05X ETE 08X LDH 31MG RNP 01X IT
Dez. 13 02 TE 05X LR 07X MT 02X IT
Habilidade não incluída no Plano de Curso 06 EP
Fonte: Tabela desenvolvida pelo autor a partir dos Planos de Curso elaborados pela SEE/MG.
Podemos observar que nenhum dos anos começa pela habilidade número 01. No caso do
sétimo e do nono ela sequer está prevista para o primeiro bimestre. A sequência de trabalho com um
mesmo objeto só é respeitada integralmente no oitavo ano. Contudo este é o único ano em que uma
habilidade é deixada de fora do planejamento. O nono ano faz apenas uma modificação entre os
objetos, mas esta inserção faz com que o objeto em questão deixe de ser tratado integralmente no
primeiro bimestre e tenha uma habilidade separada para o segundo. No sexto e no sétimo os objetos
estão bastante misturados entre os bimestres.
Este planejamento seria a base para o desenvolvimento dos PETs oferecidos pela SEE/MG
como base para o desenvolvimento do ER em REANP. Esta última tabela é organizada de forma a
destacar a sequência das habilidades como elas estão previstas no planejamento da SEE/MG.
Indicamos qual o volume do PET em que a habilidade foi trabalhada e se ela foi usada no PET
avaliativo.
6º Ano 7º Ano 8º Ano 9º Ano
Hab. PET Aval. Hab. PET Aval. Hab. PET Aval. Hab. PET Aval.
04X 23MG 25MG I, III Sim 08X
01X I 06X I 02X I 07X I
18MG I, II Sim 05X I, II Sim 01 I, II Sim 34MG II Sim
21MG III Sim 04X III 24MG IV Sim 06X III Sim
03X IV Sim 03X IV Sim 03X III, IV Sim 03X IV Sim
20MG V Sim 07X V Sim 29MG V 33MG IV, VI
07X VI 01X VI Sim 27MG V Sim 04X V Sim
06X 22MG VII 28MG VI 05X VI Sim
17MG VII 07X V 26MG VI 33MG VI, IV
19MG 02X 30MG VI 02X VII
05X 08X 04 VII 01X
02 05X II 05X VII 02X VII
32MG
31MG
07X
06
Fonte: Tabela desenvolvida pelo autor a partir dos Planos de Estudos Tutorados elaborados pela SEE/MG.

367
Nesta última tabela é necessário compreender que a primeira habilidade de cada ano deveria
ter sido trabalhada durante as aulas presenciais antes da paralização. As habilidades marcadas como
presentes no PET I foram trabalhadas em outros componentes de forma interdisciplinar. No primeiro
volume não houve PET específico para ER. Ainda devemos destacar que algumas das últimas
habilidades de cada ano, referentes ao quarto bimestre, não foram trabalhadas no ano de 2020. Nos
próximos trabalhos desenvolveremos a análise destas tabelas.

Referências Bibliográficas
BRASIL. BNCC. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018. Disponível em:
<http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_20dez_site.pdf>, acesso em 09 de fevereiro
de 2018.
MINAS GERAIS. CRMG. Currículo Referência de Minas Gerais. Belo Horizonte: SEE/MG,
2018. Disponível em:
<https://drive.google.com/file/d/1ac2_Bg9oDsYet5WhxzMIreNtzy719UMz/view>. Acesso em: 03
abr. 2019.
SEE/MG. Planos de curso 2020. Disponível em:
<https://curriculoreferencia.educacao.mg.gov.br/index.php/plano-de-cursos-crmg>, acesso em 06 de
janeiro de 2021.
SEE/MG. Planos de Estudos Tutorados 2020. Disponível em:
<https://estudeemcasa.educacao.mg.gov.br/pets>, acesso em 06 de janeiro de 2021.

368
Coordenação
Cláudia Aparecida Santos Oliveira (UFJF)
claudinha.santos81@gmail.com
Joel Henrique Gonçalves (UFJF)
jhenriquegonalves@gmail.com

Ementa
A relação entre religião e ciência é percebida de diversas formas ao longo da história. Assim
como inexiste uma entidade uniforme chamada de “ciência”, a palavra “religião” também apresenta
dificuldades de conceituação, estando seu emprego condicionado à explicação do que se entende pelo
termo. Não há unanimidade nem univocidade no contexto religioso e científico de modo ser comum
ao se falar de ciência considerar as ciências naturais - distinta das demais (humanas, por exemplo)
pelo objeto (natureza) e métodos (empíricos) - e de religião, o cristianismo (em especial católico),
apesar das múltiplas possibilidades de cada categoria e, assim, de suas relações. Marcada por
conflitos, rivalidades e dicotomias entre os defensores da ciência e os defensores da fé com vários
episódios e desdobramentos a partir do século XVI, especialistas afirmam que a ideia de guerra –
fortemente apoiada pela mídia – é fruto de mal-entendidos ou interpretações errôneas da história. A
relação entre ciência e religião pode ser amistosa, sem que uma necessariamente exclua a outra, sendo
possível o diálogo, a convivência harmônica e o apoio mútuo. Inclusive, deve ser questionado até que
ponto elas podem aprender uma com a outra, considerando que muito têm a dizer sobre a realidade.
Sendo assim, o GT tem como objetivo suscitar o debate acerca dessa relação pouco explorada no
âmbito da Ciência(s) da(s) Religião. O espaço é aberto para trabalhos desenvolvidos nas diversas
áreas em que essa relação esteja problematizada em todos os sentidos, formas e possibilidades,
considerando a força que possuem para a cultura humana.
Palavras-Chave: Religião. Ciência. Conflito. Diálogo. Ciência da religião.

369
AS VIAGENS DE C.G. JUNG E O PRINCÍPIO PLURALISTA

Aline Fátima de Souza1

Resumo
O referido trabalho pautou-se pela investigação da obra de Carl Gustav Jung, intitulada Civilização em Transição,
a fim de encontrar trechos que possam apontar a função do conceito Princípio Pluralista na prática junguiana, mais
especificamente, nas viagens realizadas por Jung após o ano de 1920, em diversas etnias e culturas diferentes da europeia.
Foi abordada, inicialmente, a importância na Teoria Junguiana, no que diz respeito a existência do fenômeno da psique,
bem como, a inter-relação entre as instâncias psíquicas consciente - inconsciente (ego - self). Posteriormente, verificou-
se alguns dos relatos de experiências com o chefe Pueblo (Índios Pueblo - Novo México - 1924), e depois, na tribo dos
Elgonyi (Quênia - 1925), sobre como se apresenta a questão da religiosidade. A partir destas vivências de Jung, através
das lentes da autora deste texto, foi possível identificar aplicabilidade do referido conceito de Princípio Pluralista.
Palavra-chave: Consciente; Inconsciente; Diversidade; Religiosidade.

Introdução
Neste breve trabalho, pretende-se analisar as viagens realizadas pelo psiquiatra suíço Carl
Gustav Jung (1875-1961), com base na teoria do Princípio Pluralista proposto por Ribeiro (PhD na
Southern Methodist University)2 Apesar de serem momentos históricos contextuais diferentes, a
intenção se pauta pela observância em alguns aspectos (diálogo inter-religioso; alteridade;
hospitalidade; relações étnicas; diversidade cultural; entre-lugar/fronteiras) na obra junguiana.
Sabe-se que a partir de 1920 Jung iniciou uma série de viagens em busca de conhecimento
sobre outros povos e nações, como por exemplo, Argélia, Tunísia, Novo México, Quênia, Egito,
Índia, entre outros lugares (EISENDRATH & DAWSON, 2002). Isso coloca o seu leitor a pensar
como foram essas viagens e qual o impacto que causaram em Jung. Pois, são culturas extremamente
diferentes da europeia, e com isso, tudo mais se difere: modos, costumes, formas de se relacionar,
pensar, viver; e, além disso, como se dá a questão religiosa para esses indivíduos?
Por isso, o objetivo deste trabalho será averiguar, através da obra de Jung — Civilização em
Transição (volume X/III - Original: Zivilisation im Übergang 1964) qual impressão o autor deixa aos
seus leitores utilizando-se de uma hermenêutica baseada no Princípio Pluralista. Vale destacar que
esta obra se refere a um compilado de diversos textos de Jung referente a participação em congressos,
publicações de textos em obras, bem como, participação em grupo de trabalho, em diversos momentos
de sua vida no período de 1918 até 1958.

1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora
alinejfbrasil@gmail.com
2
RIBEIRO, Claudio de Oliveira. Religião, Democracia e Direitos humanos: Presença pública inter-religiosa no
fortalecimento da democracia e na defesa dos direitos humanos no Brasil. São Paulo: Reflexão, 2016. 159p.ISBN
978.85.8088.194-3

370
Princípio pluralista
Segundo Ribeiro relata, acerca do conceito Princípio Pluralista, a prática do diálogo deve
pressupor as diferenças religiosas. Conhecer a pluralidade é importante porque visa o respeito às
diferenças e nos impede de agir com preconceitos devido à nossa ignorância acerca da religião do
outro. Por isso, o Princípio Pluralista serve de instrumento para identificar a pluralidade que existe na
sociedade, além da questão religiosa, e oferece um novo olhar para outras formas, outros caminhos,
que também vão ampliar o conhecimento humano a fim de não ficar isolado em apenas uma ideia (cf.
RIBEIRO, 2017, p.18).
Através do a exemplo a seguir é possível compreender a que o autor se refere: se um indivíduo
pretende conhecer o cristianismo, é fato que ele terá que ler a bíblia. No entanto, há outras formas
que se somam a esta, como estudar sociologicamente uma igreja e verificar como se pensam os
membros desta instituição, ou seja, como é realizado o culto, qual a base material utilizada, quais os
textos canônicos se referem, a legislação instituída, os diferenciais de poder, etc. Inclusive, Ribeiro
sugere que é possível fazer uso de um texto literário, não sagrado, para tentar entender o cristianismo
através dele, como foi feito por Saramago, em seu livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1998),
“Assim, a fé cristã, por exemplo, seria reinterpretada a partir do confronto dialógico e criativo com
as demais fés” (RIBEIRO, 2017, p.18).
Esse conceito também se amplia para a questão cultural, levando-se em conta aspectos que
dizem respeito a questões de gênero, raça, etnias, política, economia, ou seja, temas ligados não
somente à disciplina da ciência da religião ou teologia, mas também a uma abordagem antropológica
(cf. RITZ, 2017, p.1088).
De fato, é preciso aprender a se desafazer dos laços pretéritos, de uma história, marcada por
“[...]formas de colonialidade do poder, do saber e do ser [...]” (RIBEIRO, 2020, p.163). As relações
devem ser pautadas com base na alteridade também presente no Princípio Pluralista, ou seja, de
reconhecer esse “Outro” que tem ideias e ideais diferente de mim, mas que mesmo assim, pode-se
haver uma relação de troca e respeito com base no convívio. “Não se trata de igualdade de religiões,
mas de relações justas, dialógicas e propositivas entre elas” (RIBEIRO, 2020, p.165). E isso, pode
ocorrer através da hospitalidade, por exemplo, a fim de se evitar o etnocentrismo, e assim, acolher a
diversidade.
Os movimentos inter-religiosos [...]expressam, considerados os seus limites e ambiguidades,
uma visão crítica à lógica do Império. Eles, pelo menos em sua maioria, e não obstante suas
contradições e limites, ao valorizarem a vida humana e a natureza acima dos interesses
econômicos e ao darem visibilidade às pessoas pobres e aos grupos subalternos de diferentes
naturezas, colocam em questão e evidência o espírito do Império e revelam, assim, uma
reserva de sentido contra-hegemônico (RIBEIRO, 2017, p. 24).

371
Por fim, ressalta-se que o Princípio Pluralista está inserido num campo onde a luta por uma
democracia de fato e a educação dos direitos humanos são essenciais para uma sociedade justa.

Carl Gustav Jung e suas viagens


Ao iniciar a reflexão sobre a obra Civilização em Transição, Jung nos apresenta textos
diversos sobre o relacionamento humano em épocas conturbadas da sociedade, como por exemplo,
período entre as duas Guerras Mundiais. O autor traz à tona a importância de se dar voz as
profundezas da psique, denominada por ele, como inconsciente pessoal3 e coletivo4. Dessa forma,
tantos os sonhos quantos as fantasias de cada ser humano são partes essenciais não apenas no caráter
individual e subjetivo, mas refletem os processos coletivos da humanidade, assim como as revoluções
sociais, políticas e as guerras, às quais ele qualifica de “epidemias psíquicas” (JUNG, 2013, p.17).
Um relacionamento com outra pessoa se pauta através de uma troca, seja em um nível familiar,
de amizade, amoroso, no trabalho, ou até no campo religioso. É um processo que se dá pela via
consciente, localizada no campo social, onde as duas partes se mostram através de suas personas 5.
Mas, há também outra via nessa relação denominada inconsciente. O lado oculto e obscuro da
personalidade de cada indivíduo, geralmente ocupado pelo oposto da primeira, é denominado
sombra6. Jung relata que “o inconsciente de uma pessoa se projeta sobre outra pessoa, isto é, aquilo
que alguém não vê em si mesmo, passa a censurar no outro” (JUNG, 2013, p.32). A reflexão é
extremamente oportuna acerca da crítica ao outro, pois coloca o indivíduo num lugar desconfortável,
ao convidá-lo a olhar para sua própria intolerância. Ele já alertava sobre isso, “Este princípio tem uma
validade geral tão impressionante que seria bom se todos, antes de criticar os outros, se sentassem e
ponderassem cuidadosamente se a carapuça que querem enfiar na cabeça do outro não é aquela que
se ajusta perfeitamente a eles” (JUNG,2013, p.32).
O objetivo de chamar a atenção para as instâncias psíquicas acima, descritas por Jung, tem a
ver com o fato dele mencionar nesta obra, que aquilo que está à nível inconsciente pode vir à tona,
“na medida em que for ativado por pequenas parcelas de energia, se projeta para fora, sobre
determinados objetos mais ou menos apropriados” (JUNG, 2013, p.33). Inicialmente, “reconhecido

3
Inconsciente pessoal: “As experiências vividas, mesmo que fiquem esquecidas, deixam vestígios na psique através dos
quais se pode reconhecer a experiência anterior. [...]Todo este material constitui o inconsciente pessoal. Nós o chamamos
pessoal porque consiste inteiramente de experiências da vida pessoal” (JUNG, 2013, p.15-16).
4
Inconsciente coletivo: “É por isso também que a relação com o inconsciente suprapessoal ou inconsciente coletivo vem
a ser uma expansão do ser humano para além de si mesmo, uma morte de seu ser pessoal e um renascer para uma nova
dimensão, segundo nos informa a literatura de certos mistérios antigos” (JUNG, 2013, p.17).
5
Jung utiliza o conceito de persona para se referir as máscaras sociais que as pessoas utilizam no seu cotidiano, assim
como eram utilizadas as máscaras pelos atores. “Mas o espelho está por detrás da máscara e mostra a face verdadeira”
(JUNG, 2000, p.30).
6
“A sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo, pois ninguém é
capaz de tomar consciência desta realidade sem dispender energias morais. Mas nesta tomada de consciência da sombra
trata-se de reconhecer os aspectos obscuros da personalidade, tais como existe na realidade” (JUNG, 1988, p. 6).

372
nos distúrbios de adaptação psicológica, [bem como] naquilo que promovia adaptação [...]
propriedades positivas do objeto” (JUNG, 2013, p.33). O autor faz diversas referências, e aqui, cita-
se aquelas relacionadas aos locais na natureza que tem certa magia, e que por isso, irá fazer uma
associação aos mitos ligados ao inconsciente coletivo. Jung aponta que este fenômeno pode ser
encontrado nos primitivos, e dirá que,
Seu país é ao mesmo tempo uma topografia de seu inconsciente [...]Naquela árvore
imponente mora o deus do trovão, naquela fonte mora “a velha”, naquele bosque está
sepultado o lendário rei, naquele vau as mulheres não podem cavalgar devido à presença de
um certo espírito, junto àquela rocha não se pode acender fogo por causa de um demônio que
vive dentro dela, aquele monte de pedras é habitado pelos espíritos dos ancestrais e as
mulheres precisam recitar depressa uma fórmula mágica para não engravidar, pois o espírito
de um ancestral poderia facilmente penetrar em seu ventre. Todo tipo de figuras e sinais
marcam esses lugares e um temor reverencial circunda o ambiente. É assim que o homem
primitivo vive em sua terra e ao mesmo tempo no país de seu inconsciente. Em toda parte,
seu inconsciente lhe vem ao encontro, vivo e real” (JUNG, 2013, p.34).

Jung alerta que é preciso ter prudência quando se fala desse outo fenômeno, pois quanto mais
o caminhar do homem e da mulher se tornar racional e unilateral, corre-se o risco de esquecer das
profundezas do inconsciente, excluindo tudo aquilo que faz parte da sua natureza primeva. E esta, irá
cobrar sua parcela de alguma forma, não apenas em relação as questões subjetivas e individuais, mas
através do somatório dessas questões que irão confluir em aspectos do coletivo, por isso, “ [n]a
verdade, porém, só uma mudança de mentalidade de cada indivíduo poderá levar a uma renovação
do espírito das nações (JUNG, 2013, p.35).
O autor continuará a demonstrar ao longo da obra várias diferenças entre o pensamento do
“homem dito primitivo” e do “homem dito civilizado”, ou seja, de homens e mulheres que pertencem
a diferentes etnias/culturas e, por isso, tem hábitos e crenças diferentes. Mostra que a forma que um
homem europeu branco age na natureza é oposta à forma como um homem Pueblo7 agiria em relação
ao “poder arbitrário” que rege o universo. Jung cita uma passagem à qual ele precisa se retratar com
um amigo chefe Pueblo (Lago da montanha), já que está de visita à sua tribo,
Lago da Montanha”, um chefe pueblo, quando ousei insinuar o argumento agostiniano
“Nosso senhor não é o sol, mas quem o fez”. Com grande indignação, ele exclamou,
apontando para o sol: “Aquele que vai ali é nosso pai. Tu podes vê-lo. É dele que vem toda
luz, toda vida. Não há nada que ele não tenha feito”. Estava tão agitado que até lhe faltavam
as palavras e acabou incisivamente: “Mesmo o homem na montanha, que vai sozinho, não
pode fazer seu fogo sem a ajuda dele”. Difícil seria caracterizar melhor o ponto de vista do
homem arcaico do que com essas palavras. Todo poder está localizado fora e só graças a ele
podemos viver. Pode-se ver, sem mais, como em nosso tempo sem deuses o pensamento
religioso ainda mantém vivo o ponto de vista espiritual arcaico. Milhões e milhões de pessoas
continuam a pensar assim (JUNG, 2013, p.77-78).

7
“Os índios pueblo são um grupo de tribos que vivem no nordeste do Arizona e do noroeste do Novo México, nos Estados
Unidos. Os exploradores espanhóis deram-lhes o nome de “pueblo”, que em espanhol significa “cidade”, “aldeia”. Os
europeus ficaram impressionados com as aldeias que os índios haviam construído. Hoje, o termo pueblo é usado tanto
para as pessoas como para suas aldeias” (Britannica Escola, 2020, recurso online).

373
Para o povo Pueblo faz total sentido pensar dessa forma acima, ou seja, o poder emana do
mundo externo, diferentemente do ponto de vista psicológico que defende a tese de que há uma
instância desconhecida, denominada inconsciente, e que se trata de um fenômeno psíquico para além
da consciência,
Mas seu tipo de realidade é diferente da realidade do mundo exterior, pois é uma realidade
psicológica. Por isso, é como se nosso consciente se encontrasse entre dois mundos ou
realidades, ou melhor, entre dois tipos completamente diferentes de fenômenos ou objetos
psicológicos. Metade das percepções lhe advém dos sentidos; a outra metade da intuição: a
visão de fenômenos interiores, provocados pelo inconsciente (JUNG, 2013, p.24) .

Mesmo assim, Jung convida seus leitores, mesmo que brevemente, a levarem em conta a
hipótese do povo Pueblo: “Será que, ao menos por um momento, teríamos a coragem de aventurar a
hipótese de que a primitiva crença nos poderes arbitrários é justificada não só do ponto de vista
psicológico, mas também pelos fatos? ” (JUNG, 2013, p. 78).
Ou,
Será que a função psíquica, a alma, o espírito ou o inconsciente, tem sua origem em mim, ou
será que a psique, nos inícios da formação da consciência, está realmente do lado de fora, sob
a forma de intenções e poderes arbitrários, e acaba tomando lugar, gradativamente, dentro da
pessoa, no decorrer do desenvolvimento psíquico? (JUNG, 2013, p.78-79).

São questões que o próprio autor deixa em aberto, pois são difíceis de se investigar. Quem
tem razão? Então, ele irá finalizar este raciocínio fazendo a seguinte pergunta: “Será que isto
simplesmente acontece assim, ou esta ideia já foi pensada e desejada antes que o homem existisse?
(JUNG, 2013, p.82).
Para finalizar a exposição deste capítulo, deixa-se a investigação feita, por Jung, a respeito
das cerimônias religiosas pelos montanheses da tribo do Elgonyi8. Jung os acompanhou por semanas,
pois queria descobrir se eles praticavam alguma cerimônia religiosa ou algo parecido. E não
encontrava, absolutamente, nada de costume religioso. Eles o receberam de boa-vontade, davam
informações, dialogavam sem precisar de intérpretes, enfim Jung estava adaptado à tribo dos Elgonyi.
Depois de um bom tempo, Jung ouviu de um velho tribal algo que definiria como um costume
religioso, mas que para eles não era considerado dessa forma:
Pela manhã, ao nascer do sol, saímos de nossas cabanas, cuspimos nas mãos, voltando-as
para o sol”. Pedi-lhes então que fizessem uma demonstração exata da cerimônia. Eles
cuspiram ou sopraram fortemente nas mãos colocadas diante da boca e depois voltaram a
palma da mão para o sol. Perguntei o que isso significava, por que agiam assim, por que
cuspiam ou sopravam nas mãos. Tudo em vão. “Sempre foi assim que fizemos” – era o que
diziam. Foi impossível obter uma explicação e ficou bem claro para mim que eles só sabem
o que fazem, mas não sabem por que o fazem. Não veem qualquer sentido neste ato. Também
saúdam a lua nova com o mesmo gesto (JUNG, 2013, p.81).

8
Os anciãos da tribo dos Elgonyi, no Quênia (JUNG, 2000, p.28).

374
Posteriormente, Jung convida seu leitor a fazer uma suposição, de que ele seria um estrangeiro
chegando na Suíça e lá ele iria fazer a mesma investigação com os moradores locais, ou seja, iria se
instalar no lugar, conhecer as pessoas e observar seus costumes, a fim de saber quais suas práticas
religiosas. E ao indagá-los diretamente sobre quais costumes religiosos praticavam, a resposta
também seria negativa, não frequentariam a igreja e nem nada. Mas, ao se aproximar de datas festivas
como a Páscoa e o Natal, eles fariam tudo conforme manda o figurino, ou seja, colocariam ovos
escondidos no quintal para as crianças procurarem e colocariam uma árvore natalina dentro de casa,
mas sem saber o significado. Com isso, Jung finaliza sua exposição e deixa a indagação acerca da
origem dessas ideias e cerimônias.

Princípio Pluralista e Psicologia Analítica


Após o exposto das teorias, cabe uma reflexão inicial sobre o tipo de relações que se
estabelecem nos contextos sociais, e em especial, no que diz respeito ao diálogo inter-religioso. O
primeiro questionamento que se faz é: aquele que participa ou promove o diálogo inter-religioso está
ciente de suas personas e sua sombra? Jung fez o alerta sobre o perigo do homem desconhecer os
princípios que regem a si mesmo num ambiente comum, ou seja, compartilhado com o outro. Logo,
se faz imprescindível utilizar-se da Alteridade, “Portanto, a capacidade de alteridade é reconhecer um
“Outro” que está além da subjetividade própria de cada pessoa, grupo ou instituição” (RIBEIRO,
2020, p.7).
Reconhecer esse “Outro” é também reconhecer os limites que regem essa relação, e também,
num nível mais cultural, tudo aquilo que contempla seus costumes, valores, crenças, a fim de
identificar o “entre-lugar”, mas para que ambos possam respeitar os limites que existem em cada
nação, cada indivíduo, inclusive os limites de si-mesmo. Visto que, as instâncias psíquicas que regem
o ser humano carecem que se estabeleça uma ponte entre consciente e inconsciente (ego — self), ou
seja, se “eu” não reconheço minha própria fronteira como será possível reconhecer a do “outro”?
Sobre a origem das ideias, sobre as crenças e costumes realizados, conforme foi exposto por
Jung, mesmo sendo desconhecidas ou não, será que tanto o homem arcaico quanto o homem europeu,
ou ocidental sabe o real significado daquilo que está fazendo? Será que a origem de costumes tão
diferentes não seria a mesma? Então por que tantas diferenças na forma de pensar e agir
religiosamente? Jung mostrou em seu livro que visitou diversos povos, e aqui foi citado, em especial,
o povo Pueblo e a tribo dos Elgonyi, pessoas com etnias e diversidade cultural completamente
diferentes entre si, e em relação ao homem europeu. Mesmo assim, ele foi bem recebido por onde
passou, o que prova que a noção de hospitalidade fez parte de seu percurso, e onde ele teve a
oportunidade de exercer o respeito mútuo em todos os lugares que esteve. Porém, nota-se que apesar

375
de diálogo e hospitalidade andarem juntos, e de ambos os homens se ouvirem, a questão de aceitar a
ideia que o Outro traz é ainda algo muito difícil de ocorrer. No início de seu texto Teixeira menciona
que Küng “afirmara que a paz no mundo implicava a paz entre as religiões, e que a paz entre as
religiões é um pressuposto para o diálogo entre as religiões” (KÜNG, 1992, p. 7 apud TEIXEIRA,
2020, p.65). Mais à frente, Teixeira amplia esse pensamento ao dizer que “[...] há que ampliar as
malhas dessa acolhida, envolvendo não apenas os humanos, mas abrindo o leque para a dimensão
mais ampla de toda a criação. O ser humano está relacionado, está vinculado na rede maior que tece
o universo” (TEIXEIRA, 2020, p.65). De acordo com esta fala, podemos compreender que Jung
também parecia pensar dessa forma ao propor hipóteses, encontros, investigações, enfim, o diálogo
com outras pessoas diferentes de si e de sua cultura. Ao fazer isso, Jung abre para possibilidade de
ver e enxergar o Outro, conhecer a outra realidade diferente da sua.

Considerações finais
Pode-se dizer que o presente trabalho foi uma singela tentativa de analisar trechos da obra
Civilização em Transição, de Jung, e tentar apontar algumas passagens onde se pôde perceber a
presença do Princípio Pluralista em sua teoria, bem como, em sua forma de agir com o “Outro”. Com
isso, constata-se que há no livro muitos outros trechos que poderiam ser trabalhados utilizando-se das
lentes do Princípio Pluralista. Pois, quando Jung se coloca disponível a fazer estas viagens, para
buscar informações e conhecimentos desse “Outro”, é possível pensar que existe na sua abordagem
todas as ideias que perpassam esta teoria.

Referências Bibliográficas
Britannica Escola. Pueblo. In: Web, 2020. Disponível em:
https://escola.britannica.com.br/artigo/pueblo/574501. Acesso em: 22 de novembro de 2020.
EISENDRATH, Polly Young & DAWSON, Terence (org.). Manual de Cambridge para
Estudos Junguianos / Organizado por Polly Young-Eisendrath e Terence Dawson; trad. Daniel Bueno
- Porto Alegre: Artmed Editora, 2002.
JUNG, Carl Gustav. Civilização em transição. RJ: Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. Aion — Estudos sobre o Simbolismo do Si-Mesmo. RJ: Vozes, 1988, p.6.
JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. RJ: Vozes. 2000, p.28-30.
RIBEIRO, Claudio de Oliveira. Princípio pluralista. In: RIBEIRO, Claudio de Oliveira et al
(org.) Dicionário do pluralismo religioso. SP: Recriar, 2020.
RIBEIRO, Claudio de Oliveira. O princípio pluralista: bases teóricas, conceituais e
possibilidades de aplicação. Cadernos de Teologia Pública - IHU, XVI, vol. 14, n. 128, 2017, p.18.
RITZ, Cláudia Danielle Andrade. Resenha da obra - Religião, Democracia e Direitos
Humanos: Presença pública inter-religiosa no fortalecimento da democracia e na defesa dos direitos
humanos no Brasil. Horizonte, Belo Horizonte, v. 15, n. 47, p. 1086-1090, jul./set. 2017 – ISSN 2175-
5841
TEIXEIRA, Faustino. Hospitalidade e diálogo. In: RIBEIRO, Claudio de Oliveira et al (org.)
Dicionário do pluralismo religioso. SP: Recriar, 2020, p.65.

376
RELIGIÃO, MÍDIAS E
DECOLONIALIDADES
Coordenação
Celeide Agapito Valadares Nogueira (UFJF)
celeidevaladares@gmail.com

Rosiléa Archanjo (UFJF)


rosileaarchanjo@yahoo.com.br

Ementa
A relação das religiões com as mídias é uma via de mão dupla, impactam-se mutuamente na
contemporaneidade. As religiões são doadoras de sentido e formadoras de valores morais, éticos e
sociais. Isto é considerado hodiernamente como capital simbólico. As mídias, por sua vez, são
instrumentos especiais para comunicar a dimensão religiosa num mundo globalizado, que podem se
utilizar deste capital com fins ideológicos e de expansão do mercado simbólico. O objetivo deste
espaço de debate é abrir para questões e temas que perpassam os atravessamentos destas duas
instancias de sentido. Historicamente ocorreram colonizações violentas de forma física e simbólica,
interpondo a ideologia, crenças e costumes do colonizador sobre os escravos, negros, indígenas, etnias
diferentes. Traços do colonialismo questionados nos dias atuais principalmente pelos discursos de
resistência. Na contemporaneidade, as mídias de certa maneira podem servir como neo-colonizadoras
de opinião, de crença e de cerceamento das liberdades de consciência modulando estas em bolhas
logoritmas. As novas tecnologias e a internet desencadeiam uma cultura da convergência sem
liberdade de escolha entre participar ou não desse sistema neo-colonial. Desse modo, há um tipo de
dependência destes aparatos tecnológicos e dessa racionalidade técnica. Este GT propõe então um
debate com pesquisadores interessados nestas tensões que emergem diante da realidade globalizada,
e que em meio à pandemia trouxe uma nova subalternidade do virtual.
Palavras-Chave: Religião. Mídias. Comunicação. Discurso de resistência. Decolonizadora.

377
MARIA: ASPECTOS DA RELIGIOSIDADE VIRTUAL

Adriana Fernandes Balbi

Resumo
Em meio à pandemia, nas quarentenas e ondas que se escurecem, o salto da fé sobressai. O uso da mídia virtual
na evangelização está presente na devoção mariana e nos movimentos de “sujeitos sem religião”. Assim, essa virtualidade
caracteriza-se como uma via de mão dupla, projetando diferentes crenças, já que “o sujeito sem religião” não é percebido,
aqui, como incrédulo. A partir desses dois movimentos, objetiva-se: I) entender a construção da religiosidade do povo
católico, no caminho da efervescência religiosa que originou comunidades no cristianismo primitivo e ainda perpetua
sócio e culturalmente, II) apontar a formulação da visão Epistemológica de Maria no cristianismo que perdura desde
testemunhos primitivos nos primeiros tempos apostólicos, mesmo de forma tímida e Cristológica. A relevância desse
estudo consiste em descrever a pertinência do termo Religião; sobretudo, frente aos que se declaram “não ter religião”,
bem como a problematização de aspectos religiosos no meio midiático/virtual em contexto pandêmico, buscando, assim,
consonância com as discussões propostas pelo Grupo temático: Religião, sociedade e descoloniedade.
Metodologicamente empreende-se estudo teórico-bibliográfico, buscando autores que dialogam com a temática e
descritivo no que diz respeito aos fenômenos observados.
Palavras-chave: Religiosidade. Virtual. Maria.

Introdução
Este ensaio lança olhar sobre a figura de Maria, Mãe e protótipo da devoção da católica, neste
momento de pandemia, em que seus devotos aparecem refletidos no espelho da fé. O tempo é de
isolamento social, porém, o olhar não se isola da condição de fé como estratégia natural de ver a
Deus. A instituição religiosa Católica, ainda que de portas fechadas, direciona seus fiéis à
possibilidade de esperança na busca da intimidade com o Sagrado, virtualmente.
Na reinvenção necessária deste momento de quarentenas e ondas que a cada dia se escurecem
(verde, amarela, vermelha, roxa), o salto da fé coloca em jogo a subjetividade da crença e, o contexto
pandêmico intensifica o uso da mídia virtual como uma nova forma de evangelizar. Nessa conjuntura
a figura de Maria não é um ícone apagado, envelhecido, fixado no passado, seu silêncio eloquente
nos evangelhos, ecoam nas transformações da devoção popular diante do cenário contemporâneo. Em
contrapartida, ao mesmo tempo, é objeto de observação ao cientista da religião os movimentos de
“sujeitos sem religião” ou sem um direcionamento de interesse religioso ou sagrado para a explicação,
por exemplo, da vida e/ou da morte. Sujeitos que consideram não serem ligados a nenhum templo
religioso, mas ligados ao mundo espiritual ou transcendental.
Assim, objetiva-se, aqui, entender a construção da religiosidade do povo católico, no caminho
da efervescência religiosa que originou comunidades no cristianismo primitivo e ainda perpetua sócio
e culturalmente; bem como o crescimento, principalmente, daqueles que se declaram “não ter
religião”. Essa problematização de aspectos religiosos em ambiente midiático/virtual, em contexto
pandêmico, busca, assim, pela via da fenomenologia reflexões não intencionando trazer

378
precipitadamente respostas, mas levantar questões, que orientadas por uma metodologia teórico-
bibliográfica, descreverá aspectos no que diz respeito aos dois fenômenos observados.

A devoção Mariana e o crescimento dos sujeitos sem religião


Na visão da figura de Maria, analisada a partir da formulação conceitual, é importante
destacar, logo de início, a mariologia como uma experiência originária cristã, ou seja, é lançado um
olhar histórico sobre a Sagrada Escritura, revisitando-a e trilhando um velho caminho novo. Há de se
abarcar, pois, duas formas de pensamento: a experiência de fé, tal como encontrada nas manifestações
religiosas e culturais e a descrição dada pela historia.
As minúcias deste grande processo histórico na ótica cristã não dizem apenas ocorrer no
tempo, mas numa caracterização que provém de uma relação objetiva, pois “Maria, concebida sem
pecado original é também concebida pelo povo pecador, peregrino d’este vale de lágrimas”
(PORELLA, 2016. p. 26), e assim na perspectiva da vivência do sagrado, apropriando a herança
maternal, a humanidade, aprende a ler as palavras e a realidade que a circunda, uma vez que para o
cristão católico Maria é símbolo de fé.
Ela está no tempo presente, nos desafios culturais do povo, na vivência eclesial, na intercessão
e na busca pela aproximação com o Sagrado. De modo que, segundo Portella, o olhar lançado à figura
de Maria dá margem para a interpretação contemporânea, que no momento atual de enfrentamento à
pandemia e exigência de isolamento social, presentifica na vida dos cristãos via TV, internet,
aplicativos; recursos virtuais que não lhe deixam perder a proximidade com aquele que crê; sobretudo
ganhando novos contornos em sua visibilidade, pois:
As faces de Maria refletem – basicamente – os rostos da fé do povo de cada época e lugar.
Não que a teologia mariológica simplesmente vá a reboque destes rostos da piedade geral;
interage com eles, e os vê, percebe e tenta fazê-los visíveis em uma estética mais doutrinal
(PORTELLA, 2016. p. 234).

Na figura de Maria, encontramos um pequeno compêndio da fé cristã. Ela, na travessia da


vida, desperta o coração de seu Filho, adormecido em cada ser humano. Os sinais do silêncio
eloquente de sua figura nos Evangelhos e de escritos apócrifos1 na diversidade das interpretações que
entre os cristãos é histórica contribuem para visão do esboço da mariologia na via das curvas
evolutivas das verdades marianas, tornando-se fundamental para estabelecer o diálogo entre as
religiões.

1
“Os textos apócrifos receberam esse nome a posteriori, no processo de definição do de cânon pela igreja antiga. Alguns
destes textos (ou extratos destes textos) são de antiguidade comparável aos escritos consideráveis canônicos (....) ao
contrário do que se possa imaginar esses textos gozavam de grande popularidade entre as comunidades cristãs espalhadas
pelo Mediterrâneo” (NOGUEIRA, 2018.p.36).

379
Para a religião cristã católica, Maria, ao lado de seu Filho, é a imagem mais perfeita da
liberdade e da libertação da humanidade. Ela ocupa lugar central na dogmática popular. No âmbito
do catolicismo brasileiro, o paradigma da devoção mariana, remete os fiéis à sua figura, como a
grande missionária, continuadora da missão de seu Filho. Por meio da qual a vivência do Sagrado
assume uma experiência singular, isso diz respeito à cultura e à história, de modo que a análise sobre
a figura de Maria em sua dimensão simbólica está inserida na cultura como aquela que tem a
transparência de Cristo.
Essa inserção sugere que a interpretação do fenômeno religioso em relação à devoção mariana,
diz respeito a aplicar as noções teóricas pertinentes aos estudos da Religião. A aproximação do
método fenomenológico de análise do campo religioso no arquétipo da figura de Maria é um caminho
para se formular hipóteses mais precisas de análise para a problematização de aspectos da Religião 2
entrelaçados aos tecidos social e cultural. Analisar o lugar e a missão da Mãe de Jesus por esse método
leva a compreender a devoção e a espiritualidade mariana. Baseado na moral que conduz à imitação
de tão boa mãe, e ao modelo de pessoa resignada, aproxima-se o sofrimento de Maria ao desamparo
do povo, principalmente na conjuntura atual e mundial, abatidos pela enfermidade e doença.
No contexto pandêmico, assiste-se à influência da mídia virtual na evangelização, havendo
uma “substituição de uma mensagem mais intelectualizada por posturas que enfatizam a expressão
corporal (gestos, danças, cantos); mais espaço para a emoção e o espetáculo do que para a razão e
para o culto ao mistério” (MARQUES, 2015. p.144), que levam os fiéis de participantes da
comunidade religiosa física a espectadores religiosos. Isso implica numa via de mão dupla; pois, de
um lado, pode haver a substituição de uma devoção comunitária (em muitos casos bem mais
envolventes) por outra fragmentada (e muitas vezes individualizada); porém, por outro lado pode-se
resgatar, no ambiente familiar, a denominada Igreja doméstica.
A devoção pela figura de Maria, respeitada, principalmente, pelos fiéis católicos que por meio
da crença expressam valores da experiência do Sagrado continua e crescente. Todavia, é possível
identificar riscos da evangelização virtual, pois se observa que, em dado momento, a religião tem que
ponderar sobre a realidade que a circunda principalmente na pandemia: de diálogo ou de repulsa.
Em correspondência, na contemporaneidade, aos movimentos de “sujeitos sem religião”3 ou
sem vínculos de pertença a uma instituição religiosa, observa-se certa ambiguidade, com

2
“Pode-se definir religião como sistema classificatório, como conjunto de crenças e práticas rituais, como alienação,
como projeção, como instituição, como sistema econômico, como linguagem e entre os que creem como fé, como
salvação, como ligação ou re-ligação entre ser humano e divindade” (RODRIGUES, 2019. p. 65)
3
“Dentro dessas muitas características do momento, aquelas que mais se aproximam da realidade dos cristãos sem igreja
são, principalmente, da emancipação e dessa distinção entre público e privado, que reestabelece o local da religião. A
grande questão trazida por esse processo de secularização foi, então, a diferenciação, a qual separou a religião daquilo
com o que ela comumente se misturava.” (MACIEL,2015. p. 93)

380
peculiaridades complexas e indeterminadas. Ligados ao mundo espiritual ou transcendental, mas com
desapego pela religião os “sujeitos sem igreja” demonstram em certa medida uma forma de quebra
de paradigmas, talvez não a destruição da tradição, mas um arquétipo de retorno às origens.
Provavelmente, na busca de liberdade ou de outras formas de se recriar a espiritualidade.
A construção da religiosidade do povo católico trilhou o caminho da efervescência religiosa
que originou comunidades no cristianismo primitivo e ainda perpetua de certa forma na sociedade
atual. A paleta de alternativas religiosas e não-religiosas se ampliou, bem como o lugar do espiritual
na vida social. A pertinência do termo Religião; sobretudo, frente aos que se declaram “não ter
religião” é atual, cabe aos pesquisadores se aproximar atentos aos seus discursos vindos deste grupo
e produzindo assim novos conhecimentos, sobretudo nos meios digitais.
Na possibilidade de questionamentos, tais como: abarcar uma religião desvinculada de poder
institucional sem se pensar a secularização, além da recolocação do ser humano e sua experiência
como centro da religião sem considerar a atualidade. Essas questões talvez respondam às
transformações do antes, quando a religião moldava a sociedade e do agora, em que ela continua
preponderante, porém de modo privado.

Considerações finais
Analisar a Religião e compreendê-la no tempo atual como construtora de sentido, inserida no
tecido social e cultural é relevante. A cultura Mariana em analogia com a experiência do sagrado,
lançadas, aqui, consisti em uma linha fenomenológica, na perspectiva da autocrítica em diálogo com
as diferenças e em atenção às mudanças temporais e espaciais.
Buscou se conciliar diálogo com ideias da modernidade e aprender a ciência que existe nas
religiões, e nos novos movimentos. Visando reconhecer a diversidade de conceitos que entrelaçam
o tecido sócio cultural e permitem a visualização do fenômeno religioso com a devida alteridade.
Ainda que sob riscos, o uso da mídia virtual contribui na reinvenção da evangelização nesse tempo
pandêmico, pois auxilia fomentar o diálogo frente às inquietações do mundo atual. Os
questionamentos aqui expostos visam ao arquétipo de um cristianismo autêntico, mais consciente da
liberdade, da criatividade e da capacidade de interpretação. Embasada na pesquisa e investigação
antropológica em seus diversos contextos; sobretudo sem abrir mão da tradição cristã, entendendo
que a virtualidade deve constituir um meio e não um fim em si mesmo.

Referências Bibliográficas
BÍBLIA - Bíblia do Peregrino. Comentários de L. A. SCHÖCKEL. São Paulo: Paulus, 2002.
MACIEL, Rebeca Ferreira Lobo Andrade. Cristãos sem igreja: um olhar a partir da
contemporaneidade. Revista Sacrilegens, Juiz de Fora, v.12, n. 2, p. 87-89, jul/dez 2015.

381
MARQUES, Luiz Henrique. Canção Nova e a devoção mariana: analise sob a perspectiva do
processo de midiatização da Religião. Anuário UNESCO /Metodista de comunicação Regional, ano
19.n.19, p.143-153 jan/dez. 2015.
NOGUEIRA, Paulo. Narrativa e Cultura Popular no Cristianismo Primitivo. São Paulo:
Paulus 2018. Coleção Academia Bíblica.
PORTELLA, Rodrigo. Mirar Maria: reflexos da Virgem em espelhos da história. São Paulo:
Aparecida, 2016.
RODRIGUES, Elisa. Religião e violência: Uma leitura Fenomenológica. Estudos Teológicos,
São Leopoldo. v. 59 , n.1, p. 61-79, jan/jun.2019.

382
A MUNDIALIZAÇÃO/GLOBALIZAÇÃO E SUAS FACES: DA
COLONIZAÇÃO PELA COMUNIDADE IMAGINADA COM A IMAGEM
FIXA ÀS IMAGENS EM MOVIMENTO CONTEMPORÂNEAS

Celeide Agapito Valadares Nogueira1

Resumo
Se a visão positivista do uso dos computadores já era, desde a década de 1964, uma vertente, o que se vê hoje é
um novo tipo de colonização através dos media. Mudam-se os media: da tela pictórica à tela do computador. Contudo, o
poder do capital simbólico é doravante, transposto de uma comunidade imaginada (ANDERSON, 2008) através da arte
pictórica em uma imagem fixa para imagens em movimento através das mídias televisivas e sociais. Se antes a
sensibilidade era dotada de um fundamento na arte sacra que operava a socialização primária através da imagética, agora
temos o movimento das imagens e discursos díspares pelos meios de comunicação. O pensamento humano opera um giro
360º para se localizar nesse mundo em que “tudo que é sólido desmancha no ar”. Nesta proposta de reflexão alguns
autores nos ajudarão em tal tarefa como: Anderson (2008); Baitello Junior (2019); Benanti (2020; Berger (2012); Berman
(1986); Couldry e Hepp (2020); Fanon (1968); Heidegger (1977); Mbembe (2017); Raminelli (1996); Santos (2007);
Sloterdijk (2016) e Vattimo (1996).
Palavras-chave: Media. Comunidades imaginadas. Colonização contemporânea.

Introdução
Segundo Sloterdijk (2016), Heidegger certa vez trouxe à tona a pergunta: “Onde estamos
quando dizemos que estamos no mundo?”. Partindo desta indagação, este ensaio busca uma reflexão
sobre como a visão de mundo do ser humano opera um imaginário em seu pensamento que propicia
a formação de um certo tipo de cultura com imagens, signos, sons, valores morais e éticos, religião,
religiosidade, espiritualidade, concepções científicas, ou mesmo um posicionamento face as doações
de sentido em como habitar o ser-no-mundo. As imagens do mundo até a modernidade estavam
calcadas na solidez de um mundo com a certeza de um progresso linear. Isto se desfaz a partir do
século XX, diante de proeminentes modos de destruição em massa, como dito por Vattimo (1996).
Para Mignlo (2003), quando se fala em modernidade implica-se o conceito de colonialidade,
sendo esta última a base constitutiva da primeira. Então, na sua concepção, “a ‘modernidade’ é uma
narrativa complexa, cujo ponto de origem foi a Europa, uma narrativa que constrói a civilização
ocidental ao celebrar as suas conquistas enquanto esconde, ao mesmo tempo, o seu lado mais escuro,
a ‘colonialidade’” (MIGNOLO, 2017, p. 2). Mignolo (2017) divide o mundo em dois cenários: no
primeiro cenário, em 1500, o mundo era policêntrico e não capitalista; e no segundo cenário, no final
do século XX e início do século XXI, o mundo está interconectado pela economia do capitalismo:

1
Doutoranda em Ciência da Religião. Programa de Pós Graduação em Ciência da Religião –
PPCIR/UFJF. Mestrado em Ciência da Religião pelo PPCIR/ UFJF (2012). Especialização em Ciência da Religião,
PPCIR/UFJF (2009) PPCIR/ UFJF. Especialização em Filosofia Moderna e contemporânea pela UFJF (2008).
Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2007). E-mail: celeidevaladares@gmail.com

383
“Por isso, a expressão comum e contemporânea de ‘modernidades globais’ implica ‘colonialidades
globais’” (p. 2).
É preciso deixar claro que o conceito de modernidade é polissêmico, ou seja: não é unívoco
por parte dos teóricos que se debruçam em discorrer sobre ele. Pensando a partir da perspectiva de
conceituação de Mignolo (2003), para quem a modernidade é uma forma narrativa de visão de mundo,
vamos situar-nos na primeira fase da modernidade no Brasil que é simultânea ao processo
colonizador, propriamente dito.

Alguns pressupostos teóricos sobre o conceito de modernidade


Mignolo (2003) propõe a hermenêutica como possibilidade de chave de leitura da instauração
da colonização e, ainda, a hermenêutica sobre os signos trazidos pelos colonizadores e como ela se
sobrepôs aos signos dos indígenas que aqui habitavam, e aponta que ainda impera no Brasil
contemporâneo o imaginário do colonizador. A efervescência da religiosidade popular que brota de
uma mística descolada dos modelos clericais das formas sensórias e ideologias semióticas (MEYER,
2019) é abafada, domesticada e racionalizada. O colonizado é expropriado de sua terra natal e também
do solo sagrado do seu lugar de origem e das suas coisas mais sagradas, como suas crenças,
religiosidades e sua forma de ver o mundo.
De acordo com Vattimo (1996), a modernidade é considerada a “época da história”. Com
a pós-modernidade há o rompimento em uma ideia de evolução da história nos moldes de um fim
da escatologia cristã com a visão de salvação e de progresso. Segundo Vattimo (1996), a técnica
moderna, com a invenção da bomba atômica, deixou à mostra a possibilidade de uma catástrofe,
vislumbrando um fim da história humana. Por outro lado, Vattimo (1996), Nietzsche e Heidegger
propuseram pensar a imagem da existência para além dessa condição de não historicidade e pós -
histórica (p. 12).
Em O tempo da imagem no mundo, Heidegger (1977) deixa pistas dessa dimensão da forma de
olhar e se apropriar das imagens no mundo propiciar a maneira de ação e conduta. O pensamento em
torno dessa construção do mundo através da fé perde espaço com a modernidade: “É certo que o
pensamento da criação fundado na fé pode estar agora a perder a sua força de orientação para o saber
do ente no seu todo. No entanto, uma vez estabelecida, a concepção teológica de todo o ente (a
consideração do mundo segundo [a concatenação de] matéria e forma)” (HEIDEGGER, 1977, p. 24).
Heidegger (1977) em seu texto, com sua chave de leitura aborda o “domínio técnico sobre
o planeta” onde o ser está absorto na objetividade da técnica. Sua subjetividade está condicionada
a esta realidade do domínio da técnica sem liberdade de escapar deste “destino”. A desdivinização

384
seria também o desencantamento do mundo de imagens míticas, e de qualquer forma de
transcendência que não seja através da mundividência cristã:
A desdivinização é o dúplice processo de, por um lado, a imagem do mundo se cristianizar,
na medida em que o fundamento do mundo é estabelecido como o infinito, o incondicionado,
o absoluto, e, por outro lado, o cristianismo transformar a sua cristianidade numa
mundividência (a mundividência cristã) e, deste modo, se modernizar. A desdivinização é o
estado de ausência de decisão sobre o deus e os deuses. Ao cristianismo cabe a maior parte
no seu despontar. Mas a desdivinização não só não exclui a religiosidade, como é até só
através dela que a relação aos deuses se transforma na vivência religiosa. Ao chegar-se aqui,
é porque os deuses fugiram. O vazio que surgiu é substituído pela investigação historiográfica
e psicológica do mito (HEIDEGGER, 1977, p. 98).

Mas acontece, paulatinamente e de modo reverso, que o pensamento científico e tecnológico,


com o advento da modernidade, tira a certeza da verdade fundada na fé. A questão da historicidade
muda a forma de olhar o mundo. A imagem do mundo indígena, resgatando nosso inicial tratado,
é diferente da imagem de mundo do europeu em muitos sentidos. Primeiramente, sua imagem
primordial é a natureza que lhe fornece, dando sentido existencial e ordenação social. Depois, o
mundo é restrito ao espaço em que se encontra e, por fim, não há uma visão d e um encadeamento
de uma narrativa histórica, diferentemente da civilização europeia, que já operava o pensamento
com a ideia da subjetividade (subjectum) e historicidade.

A arte histórica e a imagética de mundo: possibilidade analítica semiótica da cultura


Interessante observar na obra As imagens da Colonização Brasileira, e especificamente no
capítulo V, as representações discursivas e imagéticas que o autor Raminelli (1996) traz como senso
comum na literatura sobre o índio no Brasil no período da colonização. As imagens que permeiam o
livro denotam uma tendência de, por vezes, incutir uma ideologia nos leitores sobre um ser demoníaco
que uma terra exótica fora dos padrões civilizatórios, o qual tem que ser catequisado e doutrinado
dentro dos padrões burgueses da época dos colonizadores europeus.
O que se percebe que nas primeiras formas de exploração da terra do Novo Mundo já se tinha
em mente uma racionalidade técnica e predatória de dominação com fins de exterminar os corpos
indígenas. Francisco de Holanda concebia: “como a essência da pintura, a primeira forma de tradução
da ideia, a origem de toda a materialização do pensamento e do pensamento humano” (p. 140).
Holanda maravilhou-se e constatou nos desenhos dos povos considerados bárbaros no Brasil e no
Peru uma arte fora dos modelos greco-romanos e universalistas com a ideia neoplatônica do belo. Já
os colonos portugueses viram no cotidiano dos indígenas representações do seu mundo da vida.
O autor diz que os portugueses tentaram conhecer os costumes dos índios para melhor dominá-
los, mas menosprezaram suas práticas e não relataram suas concepções teológicas do mundo (p. 141).
As narrativas enfocavam apenas sob a ótica do colonizador o fato de casos de canibalismos,
descrevendo estes nativos como bárbaros, selvagens e demoníacos.

385
A imagem metafórica da “comunidade imaginada”
O ideário da modernidade já estava em processo na Europa quando ocorreu a colonização do
Brasil. Através da cosmovisão do mito da Santa Ceia (missa), os povos originários que habitavam na
terra “brasilis” passam, então, de uma religiosidade cósmica que tem como base uma visão de
simbiose entre homem e a natureza em uma inter-relação que orienta a vida e a existência, para uma
“comunidade imaginada” 2. O conceito da nação indígena transmuta-se, assim, para o conceito de
nação da modernidade que já vislumbra um rearranjo sobre o direito da terra como posse de um único
ser humano, pois para o indígena a terra é comum a todos, não é um bem de um só homem.
Sob o céu aberto o índio se vê como parte da natureza a qual ele deve respeitar e amar, pois
ela é a pátria materna. Porém, o pensamento humano, com a racionalidade técnica que se instaura
desde a modernidade, vislumbra a natureza como e se vê como capaz de utilizar-se desses recursos
naturais e industrializá-los como fonte de gerar riqueza e bem-estar social. O capitalismo, como
sistema hegemônico do globo, rege e dita as normas de melhor condição material que o sistema dos
povos originários, em reverência aos bens naturais.
Entre a cosmovisão de um mundo de sentido em uma religiosidade cósmica que passa,
paulatinamente, para a cosmovisão de um mundo cristão em um único Deus, os indígenas na Terra
da Santa Cruz foram catequisados para servir ao Deus da modernidade: o subjectum. Fora dos seus
ideais de vida em harmonia com a natureza, os povos originários são levados a explorar a terra e os
recursos naturais para fins industriais e capitalistas. A colonização portuguesa, com sua imagética
cristã católica foi, assim, construindo um imaginário diferenciado do aqui existente (nas culturas
indígenas), o que repercute, posteriormente, na transição de uma estética da religiosidade cósmica
indígena para uma religião doutrinária pela palavra do Deus católico.

O intercambiar das faces da mundialização à globalização


Em minhas conjecturas sobre o texto do Mignolo (2003), levo para a ênfase do imaginário,
onde o autor cita o filosofo martinicano Glissant (1990; 1997; 1998) o qual distingue os termos
“globalização” e “mundialização”. Segundo Mignolo (2003), para a autora Béji seria outra
compreensão: “globalização" (a civilização, para Béji e projetos globais, para mim) e
“mundialização” (cultura para Béji, histórias locais, para mim) (p. 70). Mudam -se as semânticas
de velhos conceitos o que para a proposta do desenvolvimento do que Mignolo (2003) quer
transmitir ou falar sobre os projetos globais e histórias locais
O conceito de “Pensamento Liminar”, ou “gnose liminar” ou, ainda, “epistemologia das
margens” são observados como um pensamento outro, enquanto o conceito “colonialidade de

2
Conceito cunhado por Anderson (2008).

386
poder” (Fanon, 1968) que toma como referência de Quijano (2007) refere-se à uma forma de
dominação ideológica de cunho científico e linguístico, que começa pela alteração do imaginário
daquela determinada cultura local? Ou é uma inversão semiótica da realidade cultural de
determinado povo? Os saberes dos subalternos que absorveram as histórias globais inferindo as
histórias locais um caráter subalterno, como segundo plano? Seria isto um tipo de apropriação
indevida da mundialização através da globalização?
Ingold (2015) fala sobre o indivíduo contemporâneo construir suas próprias mitologias e
trata o mito agregador dentro de uma única e grande narrativa doadora de sentido, que perde a
força de orientação de sentido coletivo. A modernidade, a “era da televisão”, abriu as portas para
uma cosmovisão de simultaneidade que subverte a lógica da historicidade dos fatos (VATIMO, p.
16). As imagens em movimento são doadoras de sentido e constroem um imaginário onde imperam
as demandas do mercado e da economia, e são um mundo de imagens construídas para afetar as
consciências.

Considerações finais
Os conceitos de mundialização e globalização são bem-vindos aqui para se pensar a
colonização das consciências através das imagens do mundo. O conceito de “mundialização” se refere
às trocas culturais em contato próximo no mundo da vida no face a face e na globalização as trocas
culturais podem se dar à distância, através das mídias no mundo onlife (SBARDELOTTO, 2021).
O poder da imagem fixa, mormente na representação pictórica se perfaz no tempo histórico
como fonte inesgotável de dar uma imagética fixa originária que move as energias psíquicas com a
sua capacidade de simbolização. Por outro lado, a imagem em movimento, própria das missas pela
TV e derivados remediadores ainda não se sabe se possibilita está mesma capacidade de retenção
simbólica. O imaginário dantes colonizado pela imagem pictórica sofre alteração para um novo
formato de colonização através dos algoritmos.
As imagens em movimento deslocam o significado do mito fundante da eucaristia (missa)
através dos vários recursos mediáticos que propiciam a religião. Há que ressaltar que fora de uma
comunidade de fé e de sentido de forma presencial. As “formas sensoriais” são apagadas pela
distância do modo virtual, sem o contato do face a face.
“Tudo que é sólido desmancha no ar” 3 refere-se aos processos advindos da modernidade e
modernização das sociedades planetárias que desmoronou as cosmovisões das diferentes culturas
alicerçadas na solidez sob um prisma de evolução teleológica. Ou seja, havia, outrora, uma ideia de
progresso linear donde o pensamento científico e as novas tecnologias calcadas em uma racionalidade

3
Berman (1986).

387
técnica dariam conta de tal projeto de “vontade de poder”. A pulverização das certezas sólidas em
fundamentos arraigados no pensamento humano como da ordem da sua própria capacidade de
gerência traz um sentimento de fracasso e esgotamento de possibilidades de um futuro em uma
escatologia cristã, por exemplo.

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SBARDELOTTO, Moisés. Deus digital, religiosidade online, fiel conectado: Estudos
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388
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VATTIMO, Gianne. Fim da Modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-
moderna. Gianne Vattimo, 1996.

389
A IGREJA SAIU DO AR E FICOU SÓ A TELEVISÃO: PLURALISMO,
MERCADO E RELIGIÃO NO CONTEXTO BRASILEIRO1

Ernani Francisco dos Santos Neto2

Resumo
Neste trabalho nos propomos a refletir sobre o fenômeno pluralista relacionando-o com a teoria de mercado
religioso, em sequência, apresentamos as nuances de um mercado religioso, tipicamente brasileiro, cristão e evangélico,
aliados as novas mídias e tecnologias. O estudo assinala que de fato é possível observar uma relação direta entre religião,
mercado e pluralismo, sendo estas categorias uma preocupação para os estudiosos da área. O entrelaçamento destas
temáticas aponta para desdobramentos e possibilidades diversas de compressão, cada uma delas pode ser analisada
separadamente, mas quando relacionadas revelam um mosaico complexo e intrincado. O pluralismo religioso como
fenômeno moderno ganhou maior visibilidade através das mídias e estreita sua relação com o capital. O exame evidência
que a dinâmica religiosa brasileira é antiga e opera sobre uma constante mudança, e que essa relação da religião com as
mídias não é tão recente, contudo, destaca-se como uma importante característica contemporânea onde essa aproximação
ocorre permeada pela lógica de mercado e do avanço das novas tecnologias. No contexto religioso brasileiro, as vivências
tradicionais dão lugar ao contato do indivíduo e/ou do fiel com as mídias e novas tecnologias, isso nos situa na época da
religiosidade midiática, em uma era digital e religiosa.
Palavras-Chave: Religião. Pluralismo. Mercado. Mídias. Brasil.

Introdução
A associação entre religião e mercado é um assunto há muito problematizado, não obstante,
acrescentamos a essa relação o fenômeno do pluralismo religioso, visto como uma nova tendência
contemporânea que altera substancialmente a realidade social. As discussões acerca das temáticas são
amparadas por várias teorias, dentre elas optamos aqui por dar atenção ao fenômeno do pluralismo
religioso, relacionando-o a teoria de mercado religioso.
A teoria do pluralismo religioso, assim como a de mercado religioso, foi trabalhada por Peter
Ludwig Berger (1929-2017), um sociólogo e teólogo luterano austríaco-americano, que na década de
1960 ganhou destaque por seu importante trabalho na sociologia do conhecimento, em particular na
reflexão sobre The Social Construction of Reality (A Construção Social da Realidade). Ele define o
pluralismo religioso como “Uma situação social na qual pessoas de diferentes etnias, cosmovisões e
moralidades vivem juntas, pacificamente e interagem amigavelmente” (BERGER, 2017, p.20). Trata-
se, pois, de um fenômeno global, que não é algo novo, ele (re)surge na modernidade traduzindo a
diversidade religiosa presente no espaço social. Logo, é uma condição observada nas sociedades em
que não ocorre a hegemonia de uma única expressão religiosa e que dá visibilidade tanto ao
surgimento de novas religiões, quanto à renovação e expansão de antigas tradições (BERGER, 2017).

1
O recorte apresentado neste trabalho e no GT-9: Religião, Mídias e Decolonialidades do V- CONACIR, faz parte do
II Capítulo - Teorias acerca do pluralismo religioso: os reflexos no cenário religioso brasileiro, de uma tese de
doutoramento em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, a qual busca compreender a
presença religiosa nas instituições asilares.
2
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião – UFJF. E-mail: ernanineto.psi@gmail.com

390
Ao problematizarmos temas como mercado e religião no campo de estudos da Ciência da
Religião uma das primeiras impressões que vem à mente é a teoria de mercado religioso. Essa
abordagem trata-se de uma forma de análise dos ditos fatos religiosos pela ótica de mercado, a
construção desse conceito se deu em meio aos estudos sobre a secularização3. Oliveira e Neto (2014)
abordaram o assunto, para eles, o mercado religioso pode ser conceituado da seguinte forma:
Um conjunto formado por ofertantes e demandantes de bens e serviços religiosos. Esses
ofertantes são as firmas ou organizações religiosas e os demandantes são os fiéis ou
seguidores religiosos. Quanto ao grau de concorrência, o mercado religioso pode variar de
modo abrangente. Assim, esse mercado pode possuir desde um perfil monopolista até ser
caracterizado como de livre competição (OLIVEIRA; NETO, 2014. p.222).

Sung (2014) destaca que na sua teoria de mercado, Berger apresenta uma visão negativa da
desregulação do campo religioso considerando como causa a instalação gradual de um acentuado
pluralismo na esfera religiosa americana. Dessa forma a situação pluralista estaria intrinsecamente
atrelada a lógica de mercado. Oliveira e Neto (2014) também abordaram a temática de regulação de
mercado e asseguram que onde o nível de regulação governamental no mercado religioso for menor,
haverá mais pluralismo religioso, isto é, aumento da competição e do número de organizações
religiosas e, consequentemente, aumento do consumo de bens e serviços religiosos. Berger (1985)
acredita que “na situação pluralista as instituições religiosas tornam-se agências de mercado, e as
tradições religiosas tornam-se comodidades de consumo” (BERGER, 1985, p.180). De qualquer
forma, grande parte da atividade religiosa nessa situação vem a ser denominada pela lógica da
economia de mercado. Para ele “a situação pluralista é, acima de tudo, uma situação de mercado”
(BERGER, 1985, p.180).

Brasil - pluralismo religioso, mercado e mídias.


Em várias esferas de compreensão da vida humana, observa-se que por sua natureza o homem
tende a buscar ganhos e recompensas através de interações e trocas, até mesmo na relação do
indivíduo com o sagrado se processa o mesmo toma lá, dá cá. Entendemos que a relação do indivíduo
com a religião é também uma relação de trocas, e no contexto brasileiro essa relação impera, sendo
constante e dinâmica. A história do Brasil revela que neste território já se trocou penico por ouro,
espelhos por pedras preciosas, tesouros por roupas e panelas. Hoje, troca-se dinheiro por promessas.
Mas as trocas nunca cessam, são necessárias. Precisamos do outro para tais empreendimentos, o qual
também está na relação do indivíduo com a religião. Por meio de terços e patuás, o fiel busca tanto a
proteção como a aquisição de bens simbólicos. Entre o recebimento de graças e sacrifícios,
simbolizados em pagamentos e oferendas, opera uma verdadeira lógica de mercado e, assim, o fiel

3
A Teoria da secularização era baseada na ideia de que a modernidade acarretaria necessariamente um declínio a religião.
Nessa linha de pensamento a religião estaria fadada a perder seu fluxo à medida que avança a modernidade.

391
busca realizar a quitação de sua dívida simbólica4. Aquele que se encontra em dívida com a divindade
pode saudá-la por meio do sacrifício, aqui sinônimo de dízimo. “O dinheiro sob a forma de dízimo
torna-se o produto ou animal a ser ofertado. Feito o sacrifício o mundo deixa de ser um caos; volta à
ordem” (BOBSIN, 2013, p.195). Nessa linha de pensamento, Araújo (2006) concebe o fenômeno da
troca como a instituição que funda o nascimento da cultura e das relações sociais, apoiado em Maus
(1908/1974) e em Meillasssoux (1985), que descrevem a repartição do produto do trabalho nas
sociedades primitivas e a intensificação das relações de troca, como uma consequência do
capitalismo.
Assim como Silva (2020), acreditamos que não resta dúvidas da existência de um mercado de
bens religiosos no Brasil, que a sua origem remonta a colonização e que esse mercado se desenvolveu
concomitante ao avanço da sociedade, expandindo-se e transformando-se ao longo dos anos. Além
das trocas pessoais, temos as transformações socioculturais e tecnológicas que operam em ritmo
constante e acelerado. Saímos do modo de vida tradicional e entramos na era digital, em que a
distância é reduzida a um simples toque, afinal, agora temos acesso ao mundo em questão de segundos
através da internet. Nesse contexto de mudanças, os sistemas e instituições também se adaptam as
novas tecnologias, inclusive a instituição religiosa.
O mercado religioso brasileiro é um tema discutido por vários autores que, direta ou
indiretamente, se dispuseram a problematizar a relação, religião versus mercado, a exemplo: Guerra
(2000); Prandi (2004); Mariano (2004, 2008); Cunha (2004, 2013, 2020); Teixeira (2017); entre
outros. Eles asseguram que essa lógica de mercado não opera apenas entre cristãos (católicos e
evangélicos), outras tradições também entram nessa acirrada competição. Prandi (2004) abordou as
religiões afro-brasileiras inseridas na lógica do mercado, assim como as demais expressões que
compõem o campo, estas são também percebidas como agências de serviços religiosos. O autor
pontua ainda que esse poder estava centrado na instituição católica, com o tempo o seguimento
evangélico se aproximou das mídias superando o catolicismo e, consequentemente, adotou uma
postura rígida e demonizadora travando uma guerra desleal com as tradições afro-brasileiras.
O mercado religioso está em plena efervescência ganhando maior evidência através das
mídias. Hodiernamente, a relação da religião com as mídias é uma das características da
contemporaneidade, e em um contexto no qual se configura de disputa, as religiões ganharam
evidência. Se na década de 1980 se processou o boom pentecostal através das mídias tradicionais

4
Françoise Hurstel explica que a "dívida simbólica" por J. LACAN (1995), e “dívida de vida" por M. Bydlovski (1997)
e P. Kammerer (2000), implica que, dando se a uma criança a vida biológica, os que a deram se engajaram a lhe oferecer
solicitude e limitações e proibições suficientes para que ela se humanize. A dívida de vida se abre ao que os psicanalistas
chamam de "segundo nascimento". Primeiro nascimento: biológico, a criança é uma massa de carne e pulsões
desorganizadas. Segundo nascimento: a criança é inscrita como sujeito no mundo simbólico humano da linguagem e da
cultura. De um nascimento a outro: a imposição de uma lei, o interdito do incesto.

392
(divulgação por meio de TV, rádio, jornais, revistas, eventos etc.), agora estão dispostas as
ferramentas digitais, ou melhor, as Mídias Sociais Digitais (sites e aplicativos que permitem conexão
e interação entre os usuários também conhecidas como redes sociais, as mais populares
hoje são Facebook, Youtube, Instagram e WhatsApp, o que potencializou a publicização das religiões
(CUNHA, 2004). Há uma variedade de expressões religiosas no cenário midiático, mas os cristãos,
especialmente, o seguimento dos evangélicos, tanto do ramo pentecostal como também do ramo
histórico, alcançaram patamares mais altos de visibilidade através das mídias. Não se trata apenas de
um sucesso repentino, Mariano (2004) percebe esse aumento como consequências de suas estratégias,
ou melhor, “de uma oferta sob medida”, para atender as demandas daqueles que buscam essas
denominações religiosas.
As igrejas neopentecostais revelam-se, entre as pentecostais, as mais inclinadas a
acomodarem-se à sociedade abrangente e a seus valores, interesses e práticas. Daí
seus cultos basearem-se na oferta especializada de serviços mágico-religiosos, de
cunho terapêutico e taumatúrgico, centrados em promessas de concessão divina de
prosperidade material, cura física e emocional e de resolução de problemas
familiares, afetivos, amorosos e de sociabilidade (MARIANO, 2004, p.124).

Cunha (2004) considera que “esse aumento não é um processo natural, mas fruto de um
projeto de expansão dos evangélicos, inclusive no Brasil, isso aliado ao fato de que os grupos atuem
separadamente, de modo desarticulado em acirrada competição” (CUNHA, 2004, p.87). A autora
nos relembra que o uso das mídias pela religião não é recente, e de fato não é, esta relação remonta
aos luteranos, a partir da tradução bíblica. Mariano (2004) descreve que essa expansão pentecostal
não é recente nem episódica, já que ocorre de modo constante a mais de meio século. Ele explica que
isso permitiu com que o pentecostalismo se tornasse o segundo maior grupo religioso do país. O autor
ainda reforça que esse avanço não é expressivo apenas nos planos religioso e demográfico já que
abarca os campos midiático, político partidário, assistencial, editorial e de produtos religiosos.
Cunha (2004) buscou analisar a explosão gospel no Brasil, e explica que para além de um
movimento musical este é também a construção de uma expressão cultural que marca o cenário
religioso evangélico no Brasil5. Em harmonia com Cunha (2020)6, na era digital as mídias atuam
como mediadores potencializando a visibilidade dos grupos religiosos no espaço público e,
consequentemente, maior evidência da pluralidade religiosa. Verifica-se, pois, na atualidade uma
nova roupagem, que aliada aos meios de comunicação e as novas tecnologias sofisticam seus produtos

5
Em sua pesquisa, problematiza ainda temas como Reforma Digital, Publicitação da Religião e a Midiatização das Igrejas
Evangélicas. Apresenta o termo Reforma Digital com referência a Elizabeth Drescher, já a expressão publicitação da
religião ou religião pública é abordada por Jonildo Buriy.
6
Curso de Extensão: Religião, mídia e política no Brasil contemporâneo, foi ministrado pela prof. Dra. Magali Cunha –
INTERCOM. O curso foi oferecido pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião – UFJF, em julho de 2020.

393
e serviços objetivando o que Silva (2020) chamou de Ampliação Institucional, e que Berger (1985)
descreveu como “expandir a igreja7”.
Um vislumbre disso ocorre no meio televisivo onde a “teologia da guerra espiritual”
sofisticou-se atingindo as grandes redes de televisão, algumas próprias – como é o caso da
TV Record (Igreja Universal do Reino de Deus) e da Rede Vida (Igreja Católica) – e outras
conquistadas com ‘iscas’ / produtos mercadológicos bem preparados. (SILVA,2020, p.05).

Mariano (2008, p.76) revela que “O evangelismo midiático em rádio e tevê constitui o mais
poderoso meio para atrair e recrutar rapidamente elevado número de adeptos”. O autor destaca que,
por sua inigualável capacidade de adentrar diariamente nos lares, o evangelismo eletrônico apresenta
a vantagem de alcançar aqueles que, antes de serem atraídos e recrutados por determinada igreja, não
possuíam relação de confiança, amizade e parentesco com crentes pentecostais, laços de sociabilidade
tradicionalmente importantes para o recrutamento de novos adeptos. Como exemplo, para uma
melhor exposição, citamos uma experiência própria.
Certa feita, em uma terça-feira, ligo a televisão para assistir o jornal da manhã, na procura por
um canal de notícias percebo que dentre os dezoito canais abertos disponíveis, quinze apresentavam
uma programação estritamente religiosa ou tratava-se de canais pertencentes a certas instituições
religiosas. Surpreso, pauso em um destes canais e uma frase me chama atenção “A Igreja saiu do ar
e ficou só a televisão!”. Tratava-se de um culto televisionado da Igreja Mundial do Poder de Deus.
Na tela, os informes e os dados de contas bancárias para depósitos pleiteavam a atenção do
telespectador. Em seguida, a tela foi dividida, e ao lado do culto abriu-se uma nova janela onde
podíamos observar um espaço com centenas de cabines equipadas com telefones e computadores com
o intuito de arrecadar os dízimos e doações dos fiéis - A sala de telemarketing. A todo tempo estava
disposto na tela um símbolo chamado de QR Code8 qual pareado ao aparelho celular conectava o fiel
e/ou o telespectador a uma das duas instituições bancárias disponíveis para realizar a sua oferta. O
depósito era realizado em um click!
O pastor-apresentador usa o trocadilho “A Igreja saiu do ar e ficou só a televisão” para se
referir ao momento vivido pela pandemia do COVID-19, em que as Igrejas foram obrigadas a
fecharem suas portas devido às recomendações sanitárias e ao isolamento social. Contudo, passaram
a atuar nas mídias, especialmente nos programas de televisão, ou seja, estavam abertas, no ar!
Estávamos em meio a pandemia, mesmo sem a presença ou frequência dos fiéis nos templos e Igrejas,

7
Berger usa esse termo para explicar o processo de ofertas de bens e serviços oferecidos em um mercado moderno, ele
usa como exemplo o cenário americano.
8
O QR Code (Quick Response Code) é um código de barras bidimensional que pode ser facilmente escaneado usando
um telefone celular equipado com câmera. Ele é uma evolução do código de barras que existe desde 1970 e revolucionou
a identificação de produtos. O QR consiste em um gráfico 2D (o código de barras comum usa apenas uma dimensão, a
horizontal, enquanto o QR usa a vertical e a horizontal. Esse código é convertido em texto, um endereço URL, um número
de telefone, uma localização georreferenciada, um e-mail, um contato ou um SMS.

394
houve um rearranjo das instituições religiosas, em especial das Igrejas evangélicas, para manter suas
atividades. Não que essa realidade fosse nova, seguramente não, ela estava sendo potencializada.
Neste contexto, as mídias e novas tecnologias passaram a ser meios propícios para a conquista de tais
objetivos. Estávamos de fato, vislumbrando as nuances de um mercado religioso tipicamente
brasileiro, cristão e evangélico9.
Cunha (2013, p.203), ao problematizar a religiosidade midiática, assegura que “as
manifestações culturais plurais têm inserido novas significações no modo de vida cristão, estes são
percebidos como um segmento, um mercado em plena expansão”. A autora destaca que a cultura do
consumo e a cultura das mídias são duas manifestações contemporâneas10. E como resultado dessa
midiatização da religião, temos maior visibilidade dos grupos religiosos que estão na mídia,
consequentemente, maior visibilidade da pluralidade religiosa. Temos, ainda, a perda do controle dos
símbolos e das doutrinas resultando em uma subjetivação religiosa. A autora afirma também que toda
midiatização da religião está relacionada à lógica de mercado.
Assim sendo, concluímos que de fato é possível observar a evidência de uma relação estreita
entre religião, mercado e pluralismo, sendo estas pautas uma preocupação bastante presente nos dias
atuais. O entrelaçamento dessas dimensões aponta para desdobramentos e possibilidades diversas de
compressão, cada uma destas categorias pode ser analisada separadamente, contudo quando
relacionadas revelam um mosaico complexo e intrincado. O pluralismo religioso, como fenômeno
moderno, ganha maior visibilidade através das mídias e estreita sua relação com o capital. O estudo
mostra que a dinâmica religiosa brasileira é antiga e opera sobre uma constante mudança. A relação
da religião com a mídia, não é tão recente, contudo, destaca-se como uma importante característica
contemporânea, na qual essa aproximação ocorre permeada pela lógica de mercado e das novas
tecnologias. No contexto religioso brasileiro, as vivências tradicionais dão lugar ao contato do
indivíduo e também do fiel com as novas tecnologias, estamos na época da religiosidade midiática,
em um era digital-religiosa.

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Psicologia - USP, São Paulo, v. 17, n. 1, 2006, p. 155-179.

9
O episódio descrito foi transmitido da Igreja Universal do Reino de Deus no Estado de São Paulo, pelo canal 18. O
evento ocorreu ao vivo no dia 09 de junho de 2020, às 06h58.
10
A autora se reporta a Renato Ortiz (1999, p.121) para definição do conceito de Cultura de consumo. Por cultura de
mercado entende-se o modo de vida determinado pelo consumo, essa cultura é baseada na oportunidade de participação
em um sistema de gratificação comercial e inserção na modernidade, oferecidos a todas as pessoas que tenham
possibilidade de adquirir um conjunto de bens e serviços que lhe são oferecidos. E por Cultura das mídias entende-se o
novo quadro de interações sociais, uma nova forma de estruturação das práticas sociais, marcada pela exigência dos
meios.

395
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396
DESCOLONIZANDO NARRATIVAS MIDIÁTICAS: RESISTÊNCIA DE
MULHERES ISLÂMICAS E UMBANDISTAS À VIOLÊNCIA

Flávia Abud Luz


Ana Clara Tomaz Carneiro
Resumo
Propomos debater as respostas do movimento transnacional de mulheres muçulmanas (Musawah) junto aos
países da Organização da Cooperação Islâmica (OIC) e a compressão da tradição umbandista pela igualdade de gênero
como forma emergente de luta e construção política na vida das mulheres do terceiro mundo. Tendo como perspectiva a
realidade das mulheres religiosas em contextos religiosos diferentes, buscamos enfatizar o movimento pelo qual as
mulheres se apropriam das mídias como instrumento para propagar discursos de resistência das violências de gênero,
destacando também a característica de ambas as religiões não serem hegemônicas e homogêneas, rompendo com a
construção midiática tanto sobre o Islamismo quanto sobre Umbanda e as formas como as mulheres são entendidas nas
religiões. Propomos um debate sobre as possibilidades de descolonizar as narrativas midiáticas e a religião a partir da
visão e experiência das mulheres religiosas, a partir das contribuições teóricas do campo dos estudos de religião e
feminismo e os estudos subalternos, tomando por referência os trabalhos de Gayatri Chakravorty Spivak (2010), Deepika
Bahri (2013), Anete Roese (2015), Maria Lugones (2014) e Maria José Rosado (2001) desenvolvemos reflexões sobre a
aproximação de dois campos religiosos – o islâmico e o umbandista.
Palavras-chave: Mulheres, Resistências, Mídia e Violência.

Introdução
Partimos das interpretações de Quijano (2005) de colonialidade do poder, caracterizado pelo
exercício em conjunto dos aspectos materiais, ou seja, de produção, comércio e trabalho e dos saberes
(a epistemologia dominante), que hierarquiza as relações sociais a partir das distinções etnico-racial,
diferenciando o colonizador do colonizado, assim, fundando a “diferença colonial” para entendermos
de que forma as representações midiáticas na modernidade é produzida e reproduzida a partir da
perspectiva ocidental que reforça a colonialidade, pois busca impor uma visão de mudo sem a crítica
das bases dos conhecimentos. Arrighi (1996) contribui ao identificar que hegemonia e controle da
subjetividade estão interligados, desta forma o poder hegemônico não se restringe à dominação pura,
mas consiste na associação à dominação ampliada pelo exercício da liderança intelectual e moral. O
poder da informação é essencial para o controle de subjetividades nesses moldes, sendo a mídia um
instrumento.
A mídia, portanto, contribui para a perspectiva colonizante das subjetividades a partir da sua
capacidade de formar e direcionar, mesmo que parcialmente, a opinião pública, através do seu poder
de difusão de ideias e de visões de mundo, sobre o certo, o errado, o legítimo, as regras sociais e os
padrões culturais (NOGUEIRA & MESSARI, 2005, p. 142-144). Nesse contexto, é de extrema
importância para propagação e controle das subjetividades, divulgando padrões ocidentais do saber,
que mobiliza pela via do convencimento o exercício da hegemonia, imprimindo a imagem da
realidade colonizante.

397
É nesse contexto em que se destaca a importância das mídias no que diz respeito às questões
e tendências religiosas, como Hoover (2014) entende que na atualidade não podem ser plenamente
abordadas e compreendidas sem a devida atenção às mídias, pois são elas fonte de informações sobre
as religiões, sobre as tendências e sobre as ideias religiosas, mas não apenas isto, pois as mídias
também interagem com as religiões de forma que essa interação modifica tanto as religiões quanto as
mídias. Destaca-se nesse contexto, que a interação entre mídia e religião tem experimentado
mudanças significativas, visto que as mídias possuem um poder particular em relação a cultura e as
práticas e instituições culturais, como ocorre com a religião. O poder da vigilância midiática assume
que se torne público os arranjos privados, não importando os níveis das relações. (HOOVER, 2014,
p. 61)
Desta forma, é possível identificar que emerge um posicionamento crítico em relação às
disposições das mídias e os contextos religiosos, visto que pretendemos dar caminhos para uma crítica
descolonial das formas midiáticas e a relação com a religião, principalmente no que se refere ao
próprio campo difuso das religiões em contexto global. Primeiro, que se faz necessário compreender
as diversidades e interpretações sofisticadas do que são religiões e como os grupos religiosos se
interpretam; também requer a interpretação de que forma a religião interage com outras dimensões
da vida social, política e cultural; por fim compreender de que forma os grupos religiosos
compreendem sua realidade e de que forma as mídias e religião se influenciam mutuamente na
atualidade.
Portanto, buscamos, através de contextos específicos de religiões não ocidentais, interpretar
como os discursos midiáticos sobre o islã e sobre a umbanda se estabeleceram como parte dos
processos de colonialidade do poder, para que a partir do destaque das vivências e realidades
específicas de mulheres religiosas, possamos descolonizar não apenas os discursos midiáticos, mas
também as subjetividades, em que as mídias possam ser estudadas a partir da prática religiosa na
perspectiva descolonial.

Narrativa midiática e as mulheres muçulmanas: discussões a partir da experiência do


movimento Musawah
Conforme discute Anna Piela (2010) o uso de mídias como a Internet e as redes sociais como
forma de trazer discussões acerca da relação entre gênero e Islã embora recente é um movimento que
não se iniciou de reprende, ao contrário, ele expressa de acordo com Piela (2010) “(...) uma extensão
muito moderna das discussões acerca do status da mulher no Islã, que tiveram início durante da vida
do Profeta Muhammad (PIELA, 2010, p.425)”, visto é uma forma de retomada da centralidade da

398
atuação feminina verificada no início do período islâmico, em que as mulheres estavam à frente da
nova fé em diversos países, como estudiosas e transmissoras de conhecimento religioso.
Em contraponto à narrativa hegemônica (e anglo-saxã) a respeito das mulheres muçulmanas
como passivas, submissas ou “alvo da missão civilizacional”, propomos aqui o debate a partir das
experiências contidas no movimento internacional de mulheres muçulmanas pela igualdade na
família, o Musawah, como forma de observar outra narrativa; uma em que os sujeitos se reconhecem
e são entendidos como agentes de mudanças sociais, religiosas, políticas e legais. Além disso, o
movimento possui outra característica relevante que é a utilização de diferentes mídias para
desenvolver discussões online, apresentar demandas político-sociais e relacionar-se com movimentos
locais de mulheres muçulmanas ao redor do mundo, articulando ações junto a organismos
internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU).
O Musawah foi criado em 2009 a partir da articulação entre intelectuais e ativistas ligadas às
Irmãs no Islã (na Malásia) com o objetivo central de apresentar uma interpretação alternativa da das
fontes religiosas islâmicas e das leis de família muçulmanas, compatibilizando-as com as convenções
internacionais acerca dos direitos humanos e direitos das mulheres, sobretudo a Convenção sobre a
Eliminação de Todas as formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, de 1979), que havia
sido ratificada com restrições em alguns países de população muçulmana pois países de população
muçulmana argumentavam que a shar’ia seria uma espécie de limite para a concretização de alguns
artigos presentes na referida Convenção.
Concentra, assim, suas atividades de advocacy no âmbito internacional ao propagar
interpretações igualitárias da doutrina islâmica por meio da adesão à construção discursiva do
feminismo islâmico (que oferece uma crítica aos entendimentos jurídicos/legais no que tange aos
direitos desiguais entre os gêneros, seus direitos e obrigações legais, argumentando pela possibilidade
de implementação da igualdade entre mulheres e homens no âmbito familiar) e aos princípios dos
Direitos Humanos, pressionando Estados de população muçulmana (majoritária ou não) a reverem
suas posturas com relação aos direitos das mulheres muçulmanas no âmbito da família (MUSAWAH,
2020). O discurso de igualdade mobilizado pelas expoentes do Musawah advém do feminismo
islâmico que como uma construção discursiva heterogênea utiliza aspectos como a livre interpretação
das fontes sagradas (como Alcorão e ahadith) para discutir os elementos dos entendimentos
jurídicos/legais no que tange aos direitos desiguais entre os gêneros utilizados na teoria jurídica
islâmica para determinar a elaboração e aplicação de leis de família, argumentando pela possibilidade
de implementação da igualdade entre mulheres e homens no âmbito familiar.
O enfrentamento de aspectos como a discriminação contra a mulher em todas as questões
relacionadas ao casamento, seu exercício e possível dissolução, bem como o da violência doméstica

399
são pontos importantes nas atividades de conscientização desenvolvidas pelo Musawah junto às
organizações locais de direitos das mulheres e direitos humanos em 40 países de população
muçulmana.

Narrativa midiática e a vivência umbandista: como as mulheres umbandistas podem se


representar
Para o debate que pretendemos trazer, cabe indicar o que é o campo umbandista, como é
determinado e de que forma contribui para pensarmos as temáticas relativas ao gênero e práticas de
mulheres. Assim como Concone (1987), acreditamos que toda tentativa de caracterização absoluta do
campo umbandista está fadada ao insucesso. Assim, se faz necessário entender e refletir sobre
características que são apresentadas em cada agrupamento com os diversos nomes que se apresentam
(Tendas, Choupanas, Terreiros, Casas, Centros). Contudo, cabe estabelecer que mesmo não sendo
uma religião uniforme, considerada heterogênea e não sendo hegemônica, encontramos certo
consenso de que a tradição transmitida para seus adeptos é dada de forma oral, reservada e que se
perpetua mobilizando memórias a partir da experiência do presente.
Entendemos que o campo umbandista sempre foi permeado de disputas internas e externas,
dentre as disputas externas encontram-se as disputas midiáticas, que de modo geral, reforçam as
disputas internas, no que diz respeito a aceitação e a perpetuação das formas de ritualizar a diversas
maneiras de apresentação da umbanda. Buscando compreender de que forma as relações midiáticas
afetaram e afetam a construção da representação da umbanda recorremos aos estudos de Negrão
(1996) ao apontar no âmbito da social a repressão policial com relação às práticas espíritas durante a
primeira metade do século XX, traz à tona o modo como a Umbanda é retratada nos jornais paulistas,
ressaltando que
[...] o Espiritismo, criminalizado no primeiro Código Penal Republicano, não mais está
incluído no rol das proibições que, contudo, se referem explicitamente à Macumba e ao
Candomblé. São, portanto, os cultos afro-brasileiros os mais diretamente visados. Mais tarde,
o trato com estes cultos passou a ser responsabilidade da Secção de Costumes e Diversões
do Departamento de Tóxicos e Mistificações da polícia do Rio de janeiro, ao lado das
questões ligadas ao consumo de álcool e de drogas, jogo ilegal e prostituição. Diana Brown
documentou a repressão no Rio. Vejamos, com auxílio dos jornais, como ela se deu em São
Paulo. Das 86 notícias conseguidas para o período, 79 são policiais, envolvendo atividades
repressivas: prisões de pais-de-santo ou curandeiros e de seus adeptos ou clientes, apreensão
de objetos rituais ou de remédios populares, instalação de inquéritos ou de processos. [...] A
partir da leitura destas ocorrências, não podemos concluir que o combate fosse
exclusivamente dirigido contra os cultos negros. Em onze casos deu-se contra centros
espíritas, certamente contra o “baixo espiritismo”, o que levanta a possibilidade de, dentre
eles, existirem terreiros disfarçados de centros. [...] É curioso notar que, quando a ação
policial se exercia contra centros espíritas, os cuidados eram maiores. Em dois dos onze casos
registrados, foram solicitados exames psiquiátricos dos envolvidos, o que nunca ocorreu no
caso dos acusados de macumbeiros, feiticeiros ou curandeiros (NEGRÃO, 1996, p. 70-71).

400
Enquanto no século XXI, por outro lado, observamos nos mesmos jornais o registro e o
interesse cada vez maior dos leitores por assuntos relacionados ao Espiritismo. Como indica Mary
del Priore (2014), a religião espírita chega ao Brasil na forma de uma doutrina filosófica que encontra
espaço nas elites não somente porque eram estes que mantinham intercâmbio com a Europa e tinham
a capacidade da leitura das obras escritas em francês, mas, sobretudo porque a doutrina vinha
acompanhada de demonstrações práticas (mesas girantes, comunicações mediúnicas, etc.) que muito
agradavam os salões da alta sociedade e a própria corte imperial.
Silva (2019) faz um extenso levantamento das representações midiáticas da umbanda,
principalmente trazendo à tona as diversas formas em que a umbanda foi descrita e esteve presente
nos jornais entre os séculos XIX e XX. Observa-se que a partir da década de 1930 há uma modificação
na forma de comunicar os rituais umbandistas, em que
O enquadramento simbólico, apesar da perspectiva originária no Catolicismo (do qual o
próprio Espiritismo de Kardec é tributário) que traz consigo o embate entre bem e mal é
manifestado no simbolismo binário da luz e das trevas ou mesmo na espacialização presente
na noção de alto e de baixo. Depura-se, assim, o discurso, conduzindo-o não mais para o
nível das práticas ou dos indivíduos que os praticam, mas para o campo do propósito, este
sim indicativo do grau de elevação dos envolvidos (SILVA, 2019; p. 91)

Bezerra e Rodrigues (2016) contribuem a pensar a representação midiática das religiões afro-
brasileiras, segundo as pesquisadoras, é possível observar que a inserção de temas religiosos nas
programações da televisão brasileira não é recente, data da década de 1950, entretanto as
pesquisadoras destacam que a presença nessas mídias é restrita às igrejas neopentecostais e a igreja
católica. Assim, a mídia televisiva, no que diz respeito à religiosidade, não foge da lógica do sistema
de representação, onde quem tem o poder de definir é quem vai determinar as “identidades” dos
programas apresentados e, portanto, dos telespectadores (SILVA, 2000, p. 91). Por isso mesmo,
àquelas religiões que dispõem de menor recurso para esse tipo de investimento acabam por ficar à
margem das programações de TV, passando, portanto, por um processo de invisibilidade midiática,
como se a diversidade cultural-religiosa brasileira passasse apenas pelos segmentos católico e
evangélico” (BEZERRA & RODRIGUES, 2016; p. 71).
Oro e de Bem (2009) explicitam que houve uma ampliação dos ataques às religiões de matriz
africana a partir da difusão midiática, levando o preconceito e o desrespeito concentrado no meio
evangélico para inúmeros lares brasileiros, a partir do uso da televisão. Desta forma, mobilizam-se
dois aspectos na construção midiática da umbanda: a invisibilidade e a visibilidade negativa. Para
Bezerra e Rodrigues (2016) significa não dispor espaço midiático para mostrar os preceitos das
religiões afro-brasileiras e a visibilidade se atém a forma desrespeitosa e demoníaca dos cultos afro-
brasileiros, que leva a naturalização da intolerância se alastrando nos meios de comunicação em
massa. Para as pesquisadoras

401
Certamente o objetivo da TV, como dos demais meios de comunicação, em sociedades
democráticas, deveria ser o de ser instrumento de debate, de fortalecimento da cidadania e,
também o de educar, no sentido amplo definido por Paulo Freire. No entanto, o que temos
hoje é o monopólio dos meios de comunicação por poucos grupos e atores sociais, uma mídia
extremamente parcial e despolitizada que, ademais desses elementos, funcionam como
reprodutoras do pensamento hegemônico e conservador, que se fortalece a cada dia. Nesse
sentido, torna-se urgente a necessidade de criar mecanismos que possam controlar esses
excessos, tornando o espaço da televisão mais justo e adequado a uma nação que invoca na
sua constituição federal a liberdade religiosa (BEZERRA & RODRIGUES, 2016; p. 77)

A partir dessa perspectiva crítica em relação aos usos da mídia e as representações midiáticas
sobre a umbanda, buscamos compreender de que forma poderíamos observar mecanismos de
resistência e outras dinâmicas de representação da umbanda. Nesse sentido, buscamos destacar a
representação e as manifestações por espaços públicos e políticos dos próprios adeptos da umbanda,
como o que ocorreu com as mulheres umbandistas da Tenda de Umbanda Estrela Matutina, que
realizaram em 19 de novembro de 2019 o debate na Câmara Municipal de Campinas intitulado Povo
de Terreiro Contra Violência: Enfrentamento da Violência de Gênero e Doméstica, com a mesa de
debates formada apenas por mulheres, sendo elas: Ana Carolina Querino, Representante Interina da
ONU Mulheres; Eva Rete Mimbi, Cacique Guarani M’ymbia; Mãe Dango, Sacerdotisa de Matriz
Africana – Casa do Arco Íris; Ma. Luciana Bragil Cataldi, Sacerdotisa de Umbanda – representante
da TUEM; Maria Regina Teodoro, Representante das PLPs Campinas e Diretora do Sindicato das
Domésticas; Fernanda Gramostin, psicóloga da rede SOS Mulheres Campinas; e a vereadora do
município de Campinas Mariana Conti (PSOL).
Esse debate teve como escopo discutir o enfrentamento da violência de gênero, demanda
política da atualidade, e o papel da umbanda e das religiões afro-brasileiras para tal empreendimento,
destacando o esforço de tais mulheres se apresentarem e mostrarem a forma como sua religiosidade
pode ser mobilizada para discussões que interessam a comunidade exterior as de sua vida e prática
religiosa. Assim, como o debate esteve em campo público, na câmara municipal de vereadores da
cidade de Campinas - SP, foi possível a transmissão pela TV Câmara, pelas redes sociais e abriu-se
a possibilidade para que as próprias adeptas da umbanda e das religiões afrobrasileiras pudessem
debater e trazer aspectos de suas vidas religiosas para discussões relevantes para a sociedade, em que
puderam se reconhecer como agentes de mudanças, não apenas no campo religioso, mas político.
Sendo assim a partir de uma atitude descolonial e feminista que forneça histórias e leituras
alternativas, a partir dos lócus subalternos de enunciação e de um espaço da subalternidade, bem
como da alteridade, e que também articula agenciamentos, como propõem Almeida (2013) que
percebemos conexões entre os campos islâmicos e umbandistas, no contexto da crítica feminista e
como as mulheres religiosas respondem suas questões, de forma que as contribuições descoloniais e
feministas possibilitam teorizações que desestabilizam as bases consolidadas do saber, do
conhecimento e também das formas religiosas, possíveis de serem observadas também em relação às

402
formas pelas quais as diversas mídias representam tais religiões e como tais religiosas modificam
essas representações a partir de sua dinâmica religiosa e pública. (ALMEIDA, 2013, p. 698).

Considerações parciais: pontos para reflexão


Na década de 1980 a teórica indiana Gayatri Chakravorty Spivak lançou uma pergunta que
ainda ecoa junto aos estudiosos que se dedicam aos estudos pós-coloniais: “pode o subalterno falar?”.
Spivak (2010) discutia a impossibilidade de os subalternos exercerem o ato de fala porque sempre
que estes buscam fazê-lo são intermediados por outra pessoa que se apresenta como vetor da
reivindicação de outro. Ou seja, a fala do subalterno não ocorre porque ela não possui espaço para
efetivar-se e ser ouvida, elementos essenciais para a prática discursiva. Ao longo da argumentação de
Spivak (2010) acerca de práticas observadas junto às viúvas indianas destaca-se a impossibilidade do
sujeito subalterno (no caso uma mulher) de representar-se de forma efetiva, falar de si, visto que o
que se sabe ou aprende sobre este “outro” é mediado de alguma forma por um “outro/estrangeiro”
que trata de observar e “traduzir” experiências cotidianas de populações diversas.
A partir do viés feminista descolonial, que possibilite que as próprias mulheres falem por si,
buscamos considerar o modo como as mulheres vivem a religião, ao destacar a mobilização da
religiosidade na vida cotidiana que buscam responder às demandas políticas atuais, como, por
exemplo, as recomendações políticas na ênfase da igualdade espiritual e do combate à violência
contra a mulher. Observamos proximidades entre os campos religiosos aqui analisados (o islâmico e
umbandista) no contexto da crítica feminista e como as mulheres religiosas respondem suas questões,
de forma que as contribuições descoloniais e feministas possibilitam teorizações que desestabilizam
as bases consolidadas do saber, do conhecimento e das formas religiosas (ALMEIDA, 2013, p. 698).
Também pudemos observar que há uma tentativa por ambos os campos em romper com a
imposição advinda das representações midiáticas, em que no caso do islamismo trazem a perspectiva
de mulheres islâmicas subjugadas, sem poder de decisão, e no caso das mulheres umbandista
reforçam um estereótipo negativo das religiões afro-brasileiras. Destaca-se a desmedida intenção de
representar tais religiosidades e suas adeptas como inferiores, ou mesmo, como “ruins” a partir da
lógica de conferir características a partir do binômio eurocêntrico e colonizante de “bem e mal”.
Ainda no que tange as representações midiáticas de ambas as formas religiosas e seus movimentos
de mulheres, identificamos que assim como ocorre em relação às mulheres, que muitas vezes não se
representam, sendo sempre colocadas em um lugar que outra pessoa fala por elas, tanto a religião
islâmica quanto a umbandista passam por esse mesmo processo, pois em grande parte das formas
midiáticas sempre há um discurso exterior que às apresentam, poucos são os casos em que as tais

403
religiões possuem espaços para falarem a partir de seu lócus de enunciação sobre os diversos assuntos
que perpassam nossa sociedade.

Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Sandra Regina Goulart. Intervenções feministas: pós-colonialismo, poder e
subalternidade. Revista Estudos Feministas, v. 21, n. 2, p. 689-700, 2013.
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo.
São Paulo: UNESP/Contraponto, 1996.
BEZERRA, Edvania. K & RODRIGUES, Francilene dos S. Da invisibilidade à visibilidade
negativa das religiões africanas na televisão brasileira. Revista Interfaces Científicas -Humanas e
Sociais, v.5, n. 2, p. 67-80, 2016.
HOOVER, Stewart. Mídia e religião: premissas e implicações para os campos acadêmico e
midiático. Revista Comunicação e Sociedade, , v. 35, n. 2, p. 41-68, 2014.
MUSAWAH – FOR EQUALITY IN THE FAMILY. About Us. Disponível em:
<https://www.musawah.org
MUSAWAH – FOR EQUALITY IN THE FAMILY. Musawah Policy Brief #01, 2020.
Disponível em: <https://www.musawah.org/resources/policy-brief-1-why-muslim-family-law-
reform-why-now/>. Acesso em 10 mar. 2021
NOGUEIRA, João Pontes; MESSARI, Nizar. Teoria das Relações Internacionais,
correntes e debates. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Elsevier Ltda, 2005.
ORO, Ari Pedro; BEM, Daniel F. A discriminação contra as religiões afro-brasileiras:
ontem e hoje, Porto Alegre, n. 44, dezembro/2008. P. 301- 318.
PIELA, Anna. Muslim women's online discussions of gender relations in Islam. Journal of
Muslim Minority Affairs, v. 30, n. 3, p. 425-435, 2010.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER,
Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-
americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005, p.33-49.
RIBEIRO, Maurício. Umbanda e os meios de comunicação:documentos para compreensão da
história e atualidade desta religião: Umbanda, Cultura e Comunicação: Olhares e encruzilhadas.
Curitiba: Syntagma Editores, 2019.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

404
ANCESTRALIDADE E MEMÓRIAS LITERÁRIAS COLETIVAS: VISÃO
TRANSDISCIPLINAR NA DECOLONIALIDADE

Gabriel Ambrósio1

Resumo
O resumo tem como objetivo repensar as narrativas literárias ficcionais, o valor da ancestralidade a partir das
memórias silenciadas pela violência e invasão colonial. As comunidades locais que sofreram opressões por cultuar as
práticas culturais que visam dar referência ancestral, anterior à barbárie euro-cristão na África e na diáspora. A herança
coletiva e a tradição de partilha do conhecimento da natureza espiritual como garantia fértil de vivências existenciais. O
procedimento metodológico partiu da visão transdisciplinar entre narrativa A Geração da Utopia (2004), de Pepetela e a
outra compreensão do mundo dominado pelas visões ‘únicas’ de pensar no modo eurocêntrico a religiosidade, conforme
Machado (2019), em Filosofia africana, ancestralidade e encantamento são feitas de ‘teias’ sagradas que se interligam
nas histórias. O compartilhamento ressignificado na literatura marcada pela herança violenta da história da colonialidade
que se recriam busca espiritual da sabedoria ancestral, e as buscas identitárias da resistência histórica, sociocultural. O
suporte teórico baseado pelos contemporâneos críticos diaspóricos caminhando ao giro decolonial (Maldonado-Torres,
2020, Grosfoguel, 2020, Fanon, 2008). Conclusão a necessidade do diálogo para representação que permitam maior
diálogo cultural, simbólica no reconhecimento das cosmovisões africanas e diaspóricas, partindo dos processos históricos
que ressurgem nas comunidades africanas e na diáspora ligados pela decolonialidade.
Palavras-chave: Ancestralidade. Memória histórica. Herança da violência. Narrativas literárias.
Decolonialidade.

Introdução
A memória neste contexto é parte da ancestralidade de forma coletiva, pois a narrativa de
Pepetela (2004) transcende a ficção dentro do texto escrito. Sem esquecer-se de referenciar
ancestralidade de acordo com a professora e filósofa Adilbênia Freire Machado, em Filosofia
africana ancestralidade e encantamento como inspirações formativas para o ensino das
africanidades, é na verdade, essas memórias conjuntas das nossas existências, reexistências pela
vinculação cultural. A autora afirma que Ancestralidade como parte de “reconhecimento social,
cultural, espiritual, para criar mundos melhores” (MACHADO, 2019, p. 34-35). A criação destes
mundos melhores depende da nossa consciência literária que, por exemplo, o escritor angolano,
Pepetela na narrativa essa consciência sociocultural, histórica e espiritual, para as gerações africanas
de Angola e da diáspora através das perspectivas decoloniais de estudos pode ser estudada.
Pensarmos ancestralidade por meio das narrativas ficcionais, que nela podemos evidenciar como as
memórias silenciadas pela violência colonial, não se pode parar de reexistir pela energia espiritual da
memória coletiva que recontam e denunciam o apagamento cultural, ora com a imposição colonial
religiosa ou simbólica.
Quando trazemos expressões que nos remetem aos locais e as práticas culturais como da ficção
narrativa, reapropriamos por intermédio das memórias a espiritualidade, a sobrevivência da crença

1
Mestrando no Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens, pela Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul (UFMS) Bolsista da CAPES. O e-mail: ambrosionuni@gmail.com. Orientador. Dr. Andre Rezende Benatti

405
que convivemos contemporaneamente pela hibridização religiosa pelo contato ocidental. Pepetela
(2004) quando busca ou representa a profunda questão da cosmogonia mostra o seu reconhecimento
da existência de algo próximo ao que eurocentrismo, através da religião que prega universalismo
divino (CRUZ E SILVA, 2014). No entanto, a cosmogonia que todas as culturas dispõem
cosmogonias e cosmovisões, por exemplo, dentro da literatura “Cosmogonia é importante, toda
religião tem suas respostas, e essas perguntas sobre o espaço e universo” (PEPETELA, 2004, p.320).
Essa identidade coletiva do imaginário descolonial da religião dominante, mas como a colonização
religiosa não se desvincula facilmente, pois as raízes estão profundas nas sociedades colonizadas.
Contudo, os escritores, historiadores vivem e apresentam a criatividade e imaginários socioculturais
do mundo literário africano. Os decoloniais reafirmam essas diversidades e pluralidades identitárias
nas sociedades africanas.
De acordo com os teóricos Nelson Maldonado-Torres (2020) em “Analítica da colonialidade
e da decolonialidade: algumas dimensões básicas” como os movimentos de descolonização que é um
dos contextos da obra A Geração da Utopia (2004), de Pepetela que também narra a religiosidade
como fruto da colonialidade, mas busca trazer a resistência histórica desde as lutas dos movimentos
da descolonização. No entanto, Maldonado-Torres (2020) ao evidenciar que a decolonialidade “Como
luta viva no meio de visões e maneiras competitivas de experienciar o tempo, o espaço e outras
coordenadas básicas de subjetividades e sociabilidades humana precisa de uma abordagem diferente”
(MALDONADO-TORRES, 2020, p. 29). As subjetividades e experiências de visões não universais,
mas que sejam pertinentes para os sujeitos com suas diferenças.
Experienciar para nós pode ser por meio das memórias literárias e o nosso sentir, em espaços
e seus contextos, que nos colocam a repensar as hierarquias culturais impostas de um lado, e de outro
lado, resistir pela assunção da força inspiradora da ancestralidade como nos reafirma Frantz Fanon
(2008) em Pele negra, máscaras brancas. Fanon, sobretudo quando reflete sobre os nossos corpos
têm responsabilidade, consciência crítica e subjetividade, escreve ele que “ao mesmo tempo
responsável pelo meu corpo, responsável pela minha raça, pelos meus ancestrais” (FANON, 2008,
p.105). A reflexão é relevante para a resistência e compreensão teórica, mas também para a realidade
cotidiana do século XXI. Não só na diáspora, mas para o continente africano, americano ou pela
extensão dos vínculos culturais contemporâneos nas ciências sociais.
No entanto, as histórias se interligam entre filosofia, literatura e antropologia perpassando
pelo olhar do ‘giro decolonial’ que Maldonado-Torres (2020) para questionar os elementos religiosos
antes da colonização? Na narrativa de Pepetela encontramos alguns desses elementos identitários
como N´zambi “– Se quiseres arranjar um arquitecto, OK, não há maka. Apesar de achar que é
preciso, Dominus não ia deixar cair o seu templo. – Vai te lixar! Tu mesmo dizes que Dominus não

406
intervém nas coisas, é como Nzambi” (PEPETELA, 2004, p. 336-337). A narrativa neste recorre à
ironia, mas também a hibridização entre a cultura da crença em N´zambi como anterior a invasão
religiosa colonialista, que o autor na narrativa aqui chamada Dominus que pode ser um mestre nas
línguas latinas ou romana. A ironia é da construção de um templo, ou seja, uma igreja. Reconhecendo
que nas culturas angolanas não tinha uma instituição com nome igreja. Logo, a mesma igreja que
servirá para a dança, o canto, que é parte cultural africana que a coletividade como elemento que se
enquadra dentro da narrativa, pois evoca os momentos do corpo, para as várias divindades conforme
o trecho que nos diz;
[...] As bailarinas eram sagradas e tudo se passava com danças como as sociedades
tradicionais, porque o ritmo e o prazer dos movimentos do corpo são manifestações da
divindade, não, sendo, pois acaso que os africanos sejam os melhores bailarinos do mundo,
pois em África nasceu o homem, em África nasceu a fala, a palavra divina, e em África
nasceu a dança, a arte divina, e da África a verdadeira palavra (...) (PEPETELA, 2004,p.
351).

Essa reflexão literária é polissêmica, abrangendo os elementos simbólicos religiosos com


destaque a dança, o canto, o som como aparece nos rituais de manifestação espiritual, cultural e
religiosa. A palavra oral, escrita são partes consideradas sagradas pela arte divina. As bailarinas até
nas igrejas contemporâneas cristãs continuam a dançar, portanto são espaços da reexistência
espiritual. A narrativa do Pepetela nesta perspectiva demonstra a consciência histórica e uma
representação da antropologia e arqueológica da ciência contemporânea que se afirma África como
berço da humanidade. Mas, sobretudo, a religiosidade africana que se manifesta pelo corpo, na dança,
na música e invocação desde as sociedades tradicionais ou ancestrais que os rituais se realizam em
muitas partes diferentes, do país ou do continente. Entendemos como parte da representação artística
os rituais africanos, sobretudo o encantamento ancestral que “é plural e diverso. Ela (ancestralidade)
e ele (encantamento) geram pensamentos, reflexões, críticas, produções outras de sentidos”
(MACHADO, 2019, p. 41). Ancestralidade nos ajuda a repensar as representações e renovar as
críticas sobre as nossas próprias culturas e rituais.
A partir das narrativas das memórias coletivas descritas pela oralidade e pela própria escrita
sentimos a presença de uma reconexão daquilo que, durante séculos negados, apagado pela ideologia
universalista que não contemplava outras vozes não brancas. Conforme o antropólogo e filosofo
Diagne (1980) em “Renascimento e problemas culturais em África” os vários contextos de produção
cultural em renovação e pode se afirmar mesmo que “o próprio do artista, mesmo numa época de
renascimento é destruir, suprimir os entraves da tradição, a fim de libertar as energias e a imaginação.
O inovador em política ou moral percebe certas fissuras fecundas na sociedade” (DIAGNE,1980,
p.138). Alguns problemas foram deixados e às vezes, são reproduzidas mesmo pela literatura de
forma estética ou inconsciente.

407
A reprodução na representação da alteridade no passado foi compreendida numa visão. Um
dos missionários escreveu um ensaio sobre as culturas e rituais em algumas comunidades africanas,
o antropólogo Raul Asúa Altuna(2014) em Cultura tradicional Bantu, reproduz a visão da
representação religiosa foi atribuída a partir “de os portugueses, desde os primeiros contactos com
os povos negros- africanos, supunham que estes adoravam feitiços e ídolos” (ALTUNA, 2014,p. 354).
A representação é induzida pelo olhar do outro, cheio de subalternidade e de interpretações erradas
aos valores culturais locais. Um dos aspectos culturais que contemporaneamente chamamos de
religião é o “animismo, paganismo, feiticismo, ancestralismo, manismo, superstição, etc, que
serviram para identificar a religião africana” (ALTUNA, 2014, p.365). Sem esquecer esses conceitos,
apesar de ter reflexos dentro das cosmovisões, são representações de outros. São baseadas pelas
hierarquias superiores e inferiores Grosfoguel (2020) em “Para uma visão decolonial da crise
civilizatória e dos paradigmas da esquerda ocidentalizada” demonstra como a imposição
civilizacional foi violenta e amenizado pela modernidade que ele afirma “A modernidade tem
construído e privilegiado a ‘sociedade’ sobre a ‘comunidade’, praticando o destrutivo
‘comunitaricídio’ para encaixar todos nas ‘sociedades’, ficcionalmente chamadas “nacionais”
(GROSFOGUEL, 2020, p.56). Essa forma e lógica está presente nas sociedades africana e angolana
em particular, no entanto, essa destruição das comunidades- comunitaricídio desvaloriza as crenças
comunitárias, conhecimentos partilhados na comunidade sem ter um detentor único que impõe a
todos.
O eurocentrismo religioso e nas ciências sociais faz da sua lógica na perspectiva da “divisão
epistêmica ou hierárquica- sexual, gênero, religiosas, pedagógicas, médicas- seres superiores-
civilização-hiper-humanos-seres inferiores-selvagens, bárbaros, desumanizados” (GROSFOGUEL,
2020, p. 59). Esses conceitos e visões que se colocaram nos lugares de privilégio desvalorizam outras
visões não se enquadram nessas categorias e foram silenciadas, apagadas e combatidas ou então
excluídas.
Voltando na narrativa de Pepetela a presença de N´zambi não é ocidental, mas pelo contato
cultural, foi ressignificado pelos missionários que aprenderam com os nativos colonizados, alguns
conceitos2 foi aceite que continuasse na lógica cosmovisão não ocidental, ou seja, africana.

Considerações Finais
As notas conclusivas, pensamos na necessidade da resistência e permanente diálogo, partindo
das memórias coletivas históricas e culturais. Porém reafirmar que a violência simbólica euro-cristão,

2
Ver Artigo A memória cultural mukongo em face de colonialidade: decolonialidade com a desobediência epistêmica.
2021. RELACult- Revista Latino-Americano de Estudos em Cultura e Sociedade.

408
procedeu do epistemocídio religioso, nessa vontade de querer pensar as manifestações culturais não
europeias, como não importantes que continua a provocar o silenciamento da cultura ancestral, com
toda sua sabedoria. Precisa ser repensada, revisitada pela geração que estão escrevendo as memórias
coletivas. Essa escrita quer na ficção literária e noutras áreas com destaque a filosofia, antropologia,
linguística, história e ciências religiosas (teologias híbridas) na África. Mas também incluir a diáspora
africana está fortemente questionando a epistemologia ocidental, e recolocando cada vez mais, a
presença da disputa por teorias não excludentes e criticando o próprio poder da colonialidade na
academia ocidental.
Na questão religiosa, por exemplo, a intolerância contemporânea e a violência preocupam as
sociedades africanas. Na diáspora africana com as religiões de matriz africana são alvos da
intolerância religiosa também. Portanto, essa intolerância é a violência da herança da colonialidade
que se eterniza dia pós dia. Por isso, as perspectivas decoloniais ajudam a refletir e resistir para
estabelecerem-se pontes de diálogos e cultural epistêmicas sem hierarquias, nem subalternização, mas
que conviva com respeito como sujeitos seres humanos e outros seres da natureza. Reconhecimento
ancestral é uma busca de reconciliação espiritual da paz para todos os entes do mundo de N´zambi a
m´pungo tulendo [forças do mundo da natureza].

Referências Bibliográficas
ALTUNA, Asúa de Ruiz Raul.Pe. Cultura tradicional Bantu. Irmãs Paulinas, Luanda, 2014.
2ª edição.
CRUZ E SILVA, Teresa. Religião. In _ Dicionário crítico de ciências sociais dos países de
fala oficial Portuguesa.Org., Livio Sansone e Cláudio Alves Furtado. Salvador: Ed. EDUFBA, 2014
DIAGNE, Pathé. Renascimento e problemas culturais em África. In_ Introdução à cultura
africana. Alpha I. Sow, Ola Balogun, Honrat Aguessy e Diagne Pathé. Tradução Emanuel L.
Godinho, Geminiano Cascais Franco e Ana Mafalda Leite. Edições 70, Lisboa, 1980.
PEPETELA. Artur Maurício Pestana. A Geração da Utopia. Nzila, Luanda. 2004.
MACHADO, Adilbênia Freire. Filosofia africana: ancestralidade e encantamento como
inspirações formativas para o ensino das africanidades. – Fortaleza: Imprece, 2019.
MALDONADO-TORRES, Nelson. Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas
dimensões básicas. In _ COSTA-BERNARDINO, Joaze, MALDONADO-TORRES, Nelson,
GROSFOQUEL, Ramón. (Orgs). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. 2ª edi.; 3. Reimp.—
Belo Horizonte:Autêntica, 2020. (coleção cultura negra e identidades) (p.27-53).
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira, Salvador.
EDUFBA, 2008.
GROSFOQUEL, Ramón. Para uma visão decolonial da crise civilizatória e dos paradigmas
da esquerda ocidentalizada. In _ COSTA-BERNARDINO, Joaze, MALDONADO-TORRES,
Nelson, GROSFOQUEL, Ramón. (Orgs). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. 2ª edi.; 3.
Reimp.—Belo Horizonte:Autêntica, 2020. (coleção cultura negra e identidades) (p. 55-77).

409
ESPIRITISMO E PANDEMIA: DISCURSOS DA IMPRENSA SOBRE O
ESPIRITUAL E O CORONAVÍRUS

Grazyelle Fonseca1

Resumo
O presente artigo busca analisar o discurso acerca da doutrina espírita correlacionado à pandemia de Covid-19,
no tempo presente. Trata-se de uma busca de compreensão do discurso veiculado na imprensa leiga e religiosa a respeito
do espiritual, da relação de vida e morte, missão de vida e mediunidade. Alguns apontam a "Data limite", de Chico Xavier,
outros abordam o egoísmo e a resiliência. Desta maneira, como os discursos de vida, morte e espiritualidade são abordados
na doutrina espírita diante da doença? Como esta problemática de 2019-2020 afeta o discurso espírita brasileiro?
Palavras-chave: Espiritismo. Pandemia. Imprensa

Introdução
O contexto do tempo presente atravessa uma crise sanitária, política e econômica relacionada
à pandemia de Covid-19; isto é, associada ao coronavírus e que afeta tanto países desenvolvidos
quanto em desenvolvimento. Ainda é incerta a origem da pandemia do coronavírus, entretanto,
atribui-se a origem do foco da doença à cidade de Wuhan, na China, no ano de 2019. Assim, o vírus
com alta taxa de transmissão por pessoa, capaz de causar sequelas graves e com altos índices de
letalidade, tomou espaço nos noticiários diários da imprensa, nas preocupações sociais, atingiu todo
o mundo e continua oscilando nos picos das estatísticas de infectados e mortos. Sendo assim, o
agravamento da doença afeta o sistema respiratório, circulatório e compromete diferentes órgãos,
levando-nos a refletir acerca da doença e da morte em perspectiva coletiva.
Embora pandemias já tenham acontecido em outras circunstâncias do passado, é expressivo
como as gerações contemporâneas têm atravessado uma difícil relação entre lidar com mortes em
massa, problemas estruturais da sociedade e questões geopolíticas. Tem-se falado recorrentemente
sobre depressão, ansiedade, o problema de adoecer e morrer isolado e até questões metafísicas acerca
do sentido da vida. Trata-se de um momento cuja medicalização dos corpos e a institucionalização
hospitalar acerca da morte apresentam-se em evidência pela busca de uma vacina e tratamentos
eficazes, bem como, constantes discussões acerca da demanda pela interferência do Estado no
processo de preservação da vida.
Para muitos de nós, a morte pode se evidenciar como uma falta, uma grande lacuna e mobilizar
imaginários, levantar questionamentos metafísicos acerca da finitude, da motivação da existência e
da nossa condição frágil e perecível. Lidar com a morte traz à tona questões ligadas ao caráter, à
moral, ao tabu e a diversos sentimentos (luto, indiferença, inadequação e assim por diante). Na
condição de pandemia, cuja morte é coletiva, banalizada, numerosa estatisticamente, o medo e a

1
Doutoranda em Ciência da Religião, PPCIR/UFJF. Bolsista CAPES. E-mail: grazyellecarvfonseca@gmail.com

410
resignação andam lado a lado. Assim como, apresenta-se associada ao capital, à geopolítica, à
individualidade e dialoga com as fronteiras do discurso religioso, privado e público.
Um conceito importante cuja literatura em ciências sociais tem refletido é a ideia de
necropoder, de Achille Mbembe (2012), o qual parte do conceito de biopoder, de Michel Foucault, a
respeito da capacidade de o Estado fazer viver e deixar morrer diante de sua soberania, e considera a
necropolítica como uma parte específica dessa forma de poder a fim de direcionar a morte como
política. Assim, assistimos a morte como espetáculo, destruição e aniquilamento dos corpos, tanto
por tecnologias de guerra quanto por decisões políticas. Além disso, temos assistido a embates com
a indústria farmacêutica e líderes políticos a respeito da negociação e das patentes para vacinas e
tratamentos nesta crise sanitária que nos acomete.
Entretanto, a proposta da presente reflexão parte dos discursos do senso comum acerca da
pandemia e a espiritualidade, com isso, partirei das reflexões sobre a morte de Norbert Elias e as
concepções propostas pelo próprio espiritismo. Este trabalho se propõe como uma análise sobre o
discurso do doutrinário que articula predições, mediunidade e as diferentes associações que os
sujeitos têm feito em relação à pandemia. Desta maneira, utilizo como corpus de análise os editoriais
de revistas e o blog da Federação Espírita Brasileira (FEB) sobre a pandemia, bem como a declaração
de Chico Xavier no programa Pinga Fogo, da TV Tupi, no ano de 1971, acerca de uma possível “data
limite” para que os seres humanos se ajustassem numa vida mais justa e com menos provações. A
partir disso, com a pandemia jornais leigos abordaram o tema e a FEB buscou desmentir esta possível
associação. Como o discurso espírita tem considerado a crise sanitária que estamos atravessando?

O discurso espírita acerca da vida e da morte


A morte é um fato concreto da existência com o qual temos que lidar e com isso diferentes
sociedades criaram imaginários e discursos acerca da constatação da finitude ou para fundamentar
um sentido de permanência da construção do sujeito após a matéria. Norbert Elias (2001) apontou
quatro tendências: a mitologia, a repressão, a crença na imortalidade e a constatação do fato da
existência.
Nesse sentido, ganham evidência explicações religiosas de diferentes matizes para os males
que nos assolam, diante de um contexto científico e secular. Na doutrina espírita, a concepção de vida
considera a vida material e a espiritual como partes inerentes do mesmo processo de evolução
individual. Estruturado no século XIX, período cuja ciência e os desenvolvimentos tecnológicos e
industriais estavam em consolidação, o religioso fora deslocado para a instância da vida privada e
aspectos da vida cotidiana e da saúde tornaram-se explicados por argumentos científicos. Sendo de
um movimento espiritualista norte-americano e europeu, que buscava provar a capacidade de

411
comunicação com os espíritos / mortos, para esta crença, a morte é parte de um processo natural, que
representa o fim de uma missão terrena, embora haja a ideia de livre-arbítrio cujos sujeitos podem
seguir outro caminho e não cumprir os processos de construção moral.
No discurso espírita, há a ideia de estagnação ou evolução dos estágios de aprimoramento
individual, porém, não há a noção de regressão do estágio evolutivo. Nesta visão, a morte é a
decomposição do invólucro material. Porém, a capacidade cognitiva, os aprendizados e as vivências
das diferentes encarnações permanecem com o espírito, pois a explicação doutrinária aponta que os
sujeitos são compostos por corpo (invólucro material), perispírito (invólucro semi-material, que faz
a mediação entre matéria e espírito, além de guardar características da vida material da última
encarnação) e espírito (invólucro imaterial dotado de inteligência).
Nessa perspectiva, conforme o Livro dos Espíritos, a morte é o retorno da alma à sua origem
enquanto espírito. Entretanto, tal retorno mantém a individualidade da vida material. Trata-se da
recusa à ideia de retorno ao todo universal, como uma massa homogênea. A doutrina defende a
permanência da vida mesmo após a existência concreta do corpo. (KARDEC, 2009)
Como se pode notar na explicação oferecida pelo espiritismo sobre a possível constituição do
corpo, do espírito e do desligamento da matéria também se associa às faculdades psíquicas e aos
aspectos morais, os quais englobam a sexualidade e as escolhas da vida (ligadas à materialidade e à
sensualidade). Esta questão nos remete ao ensaio sobre os moribundos, de Elias (2001), o qual
argumenta que tanto a sexualidade quanto a morte são fatos biológicos cuja sociedade associou ao
comportamento e à experiência, neste sendo, a resistência ao tema e a percepção está correlacionado
ao desenvolvimento de uma determinada cultura. A doutrina está ligada ao tabu de sua época.

“Data Limite” atribuída a Chico Xavier


O espiritismo chega ao Brasil por volta de 1860, a partir da importação das ideias francesas e
aos poucos as camadas mais abastadas da corte interessaram-se pelo debate anticlerical. Entretanto,
devido ao contexto brasileiro de perseguições e embates acerca da legitimidade religiosa, a
perspectiva caridosa e cristianizada da doutrina ganha maior ênfase do que a proposta científica e
filosófica. Isto é, foi uma estratégia de resistência no espaço público. Na década de 1930, a Federação
Espírita Brasileira estabeleceu uma proposta teológica do Cristianismo Redivivo, junto com o
médium Francisco Cândido Xavier, conhecido como Chico Xavier (1910-2002). Conforme Lewgoy
(2004), a figura de Xavier é muito importante no imaginário espírita, cuja trajetória de vida
assemelha-se à de profetas e santos. Assim, “mais do que um médium influente, desempenhou um
papel decisivo na fabricação de costuras entre os sistemas éticos e cosmológicos opostos do carma e
da graça, assim como, aproximou ‘por baixo’ o catolicismo do espiritismo” (LEWGOY, 2004, p. 14).

412
A noção de “data limite” foi atribuída a Chico Xavier, pois, no programa Pinga Fogo, de 1971,
na TV Tupi, o médium falou sobre a necessidade de aprimoramento terreno dos sujeitos a fim da
transformação profunda da sociedade. De acordo com a fala dele, após a ida dos homens à lua (20 de
julho de 1969), os seres humanos teriam 50 anos para se aprimorar (ou seja, até julho de 2019). Para
alguns, houve a associação ao fim do mundo, outros compreenderam como uma profecia sobre o
coronavírus. Entretanto, a fala de Chico Xavier apresenta uma tendência à ideia de “nova era” e um
contexto pós-guerra e de Guerra Fria:
Nós nos encontramos no limiar de uma era extraordinária, se nos mostrarmos capacitados
coletivamente a recebê-la com a dignidade devida. Se os países mais cultos do globo puderem
suportar a pressão de seus próprios problemas sem entrarem em choques destrutivos - como,
por exemplo, guerras de extermínio que deixarão consequências imprevisíveis para nós todos
do planeta - então veremos uma era extraordinariamente maravilhosa. (CHICO XAVIER,
Pinga Fogo, 1971)

Trata-se de um discurso espírita com perspectiva evolucionista sobre a moral dos sujeitos,
associado ao apelo pela vinda de uma nova era. O fenômeno da Nova Era disseminou-se pelas
camadas mais abastadas, possui um caráter fluido de religiosidade e prevê a chegada da Era de
Aquário. Busca-se a purificação do self e o é dotada de uma individualização dos sujeitos.
(CAMURÇA, 2014)
Esta fala de Chico no programa Pinga Fogo tem sido retomada por jornais leigos e em
discursos religiosos. O jornal O dia, periódico comercial / leigo, realizou em 23 de janeiro de 2021
uma reportagem que buscou articular uma possível associação entre o Covid-19 e a “data limite”,
pois, conforme a manchete, seis meses após o fim da data eclodiu a pandemia. De acordo com a
reportagem, não existe uma data limite, mas um pedido de regeneração da sociedade a fim de que os
sujeitos possam usufruir dias melhores, assim como, há uma associação a desastres naturais e
doenças. Entretanto, não há um consenso sobre esse discurso no meio espírita. Anterior à pandemia,
em artigo publicado em março de 2017, o Correio Espírita, periódico doutrinário, negou a
possibilidade de uma data limite, pois impor datas desconsidera o livre-arbítrio. Ademais, “os
Espíritos verdadeiramente ponderados nunca predizem para épocas determinadas, limitando-se a nos
prevenir do seguimento das coisas que convenha conheçamos, finalizando que a insistência para obter
informes é expor-se às mistificações dos Espíritos levianos” (MONTEIRO, 2017).
De maneira geral, essa ideia de “data limite” é tratada como profecia. Carrega uma associação
entre lidar com o mundo dos espíritos, mediunidade, vidência e adivinhação. Revela a peculiaridade
do contexto brasileiro cujo espiritismo kardecista pode ser confundido com religiões de matrizes
africanas e até mesmo com especulações sobre o futuro. O espiritismo compreende a vidência como
parte inerente do ser humano, porém, não se trataria de uma busca somente pela felicidade:

413
Nada é tirado ao livre-arbítrio do homem, que permanece sempre senhor para agir ou não
agir, que cumpre ou deixa de cumprir os acontecimentos pela sua vontade ou pela sua inércia;
se lhe indica o meio para chegar ao objetivo, cabe-lhe dele fazer uso. Supô-lo submetido a
uma fatalidade inexorável pelos menores acontecimentos da vida, e deserdá-lo de seu mais
belo atributo: a inteligência; é assimilá-lo ao animal. O vidente não é, pois, de nenhum modo,
um adivinho; é um ser que percebe o que não vemos; é para nós um cão do cego. Nada,
pois,aqui, contradiz os objetivos da Providência sobre o segredo de nosso destino; é ela
mesma que nos dá um guia. (KARDEC, 2008, p. 69)

O documentário “Data Limite segundo Chico Xavier”, de agosto de 2014, dirigido por Fábio
Medeiros, apresenta Chico Xavier como um homem sensitivo, capaz de comunicar as previsões do
futuro sobre as comunicações interplanetárias, bem como, associada à parapsicologia. Partindo da
mensagem de Chico Xavier no programa Pinga Fogo, o documentário busca articular falas do
Médium Divaldo Franco, um ufólogo, um jornalista e representantes de forças militares a fim de
associar uma questão geopolítica (no que concerne às ações nucleares e de guerras), questões
interplanetárias (como a possibilidade da existência de OVNIS e seres extraterrestres), avanços
científicos e espirituais após julho de 2019. Este filme é pertinente de ser considerado, pois deu
projeção ao caráter de predição da fala do médium Chico Xavier acerca das possíveis modificações
nos relacionamentos interpessoais e espirituais dos sujeitos, embora possa ser inserido dentro de um
conjunto de filmes sobre as predições catastróficas do mundo e teorias da conspiração.
De acordo com Georges Minois (2016), a predição é inerente aos sujeitos, pois o futuro é
desconhecido e há necessidade de construção de ação. Para o autor, há diferença entre predição e
previsão, pois esta seria carregada do caráter mágico enquanto aquela uma busca pelo controle do
futuro. Entretanto, de acordo com Minois, a predição não é neutra, ela é dotada do temor, de uma
intenção pertinente à sua época ou civilização. Ou seja, ela estimula a ação para evitar danos.
Como a fala de Xavier ganhou diferentes interpretações os comentários do filme, no YouTube,
estão relacionados com a pandemia de covid-19 como parte inerente de um ciclo espiritual, visto que
os seres humanos não aderiram à guerra atômica após o contexto da Guerra Fria. Além disso, carrega
autoridade acerca da figura do médium como um ser espiritualizado, cujo discurso consegue dialogar
com diferentes religiões. Chico Xavier buscou alinhar um discurso que dialogava com diferentes
camadas sociais desde militares, médicos e até camadas populares, oferecendo “uma alternativa
religiosa de pertencimento social sem radicalismo ou ruptura com os valores católicos, como a
caridade e a fraternidade” e, além disso, compôs “símbolos laicos de ordem, como a nação, mas
também estratégias de prestígio e distinção, que valorizava a leitura, o estudo, a erudição e a ciência”
(LEWGOY, 2004, p. 103).

414
O discurso espírita brasileiro acerca do Covid-19
A Federação Espírita Brasileira (FEB) buscou alinhar seu discurso ao da Associação Médico-
Espírita (AME) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), recomendou, portanto, o isolamento
social e testagem por meio de exames. Conforme a nota da AME, publicada no site da FEB, a
condição da pandemia compreende um momento de transição e aprimoramento dos sujeitos (AME,
2020). No portal oficial da FEB, no texto assinado por Maria Antunes Moura (2020), a pandemia de
coronavírus é compreendida como parte inerente de um processo evolutivo dos sujeitos e sendo uma
das intempéries sanitárias pelas quais os seres humanos têm que atravessar. De acordo com a autora,
trata-se de um aprimoramento moral e intelectual. Dessa forma, seria preciso cuidar da mente e do
corpo.
Já Divaldo Franco, em palestra para a Federação Espírita do Paraná, entre 13 e 15 de março
de 2020, argumenta que o vírus é “um pequeno monstro invisível ao olho nu” para que o homem
pudesse temê-lo, a fim de evitar uma guerra nuclear. Assim, ele teria sido enviado por Deus em busca
do fortalecimento do amor na humanidade, pelo fim das guerras e a chegada de um mundo de
regeneração. De acordo com o médium, o importante é seguir as leis de Deus e as recomendações,
mas, de toda maneira, seguir as leis do amor e não se queixar da vida.

Considerações finais:
A doutrina espírita, desde a sua concepção, busca naturalizar a noção de morte a partir da ideia
de que o plano carnal / material é provisório e que a forma espiritual consiste em todos os ciclos de
vida, inclusive, em um plano extraterreno.
De maneira geral, o discurso da AME-Brasil buscou não realizar nenhum embate político ou
social em relação à pandemia. Entretanto, o discurso de Divaldo Franco evidencia que, embora os
estudos científicos tivessem apontado para um maior risco para a faixa etária idosa, ele considerou
que a “lei divina” ou “lei do amor” possui maior força em relação aos desígnios terrenos do que
propriamente realizar o isolamento social conforme recomendado pelas autoridades de saúde.
Ademais, há também uma naturalização da morte como um fato inevitável da vida, independente do
contexto social. De acordo com Maria Homem (2020), o advento da pandemia evidenciou o medo
diante de uma ameaça real, desconhecida e invisível, além da dificuldade de lidar com o coletivo ao
mesmo tempo em que se prepara para nos defendermos da ameaça. Talvez, esse apego à “lei do amor”
pode nos indicar que é a doutrina é para o médium uma tentativa de “porto seguro”, de defesa, que
justifique o amparo diante do desespero.
Na Revista Piauí, na edição 166, de julho de 2020, o jornalista Armando Antenore descreveu
uma sessão espírita no Lar Paulo de Tarso, fundado em dezembro de 1989, cujo objetivo era realizar

415
uma prece para os hospitalizados e falecidos por Covid-19, assim como, para pedir a proteção dos
“amigos espirituais” para médicos e enfermeiros. Com pausas para a manifestação dos espíritos, um
espírito que teria falecido por covid acreditava-se estar dormindo. Assim, em sua comunicação com
os médiuns, a sessão tornara-se um processo de compreensão da vida espiritual, bem como, do
encaminhamento desse espírito para um lar espiritual.
Tal como no Livro dos Espíritos, no relato narrado na revista Piauí, também se considera que
o espírito possui um tempo de tomada de consciência e de aprimoramento após o desencarne. Sendo
assim, a dirigente espiritual realiza o encaminhamento do espírito desencarnado em auxílio com os
espíritos “amigos”.
Embora seja uma revista com caráter comercial, a linha editorial seguiu o discurso alinhado à
doutrina espírita, sem apresentar críticas a este ponto de vista. Pode ser, por um lado, uma opção de
crença do editor e até de maior propagação doutrinária, bem como, por outro lado, também indica um
nicho da classe média leitora, na qual se insere grande parcela dos espíritas kardecistas e que consome
o conteúdo da revista. Considero importante destacar esta abordagem, pois se trata de um conteúdo
com caráter de reportagem combinados com crônica, pois cita o centro espírita e nomeia a dirigente,
não tendo, portanto, por intenção apontar um caráter ficcional. Pelo contrário, há abertura de um
espaço para a doutrina num veículo de grande circulação. Acredito que isto indica uma hegemonia
no discurso espírita, partido da FEB e a leitura de Allan Kardec, acerca do processo de desencarne e
a vida espiritual. Sendo Divaldo Franco um médium espírita com muito prestígio, após o falecimento
de Chico Xavier. Conforme Bernardo Lewgoy (2008), o espiritismo brasileiro possui uma
consolidação identitária acerca da estrutura do centro espírita, dos rituais e do ethos proposto e
exportado para mais de trinta países pela FEB.

Referências Bibliográficas
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FEB, 27 de março de 2020. Disponível em: https://www.febnet.org.br/portal/2020/03/27/nota-oficial-
da-ame-brasil/ (acesso em maio de 2021)
ANTENORE, Armando. “Estou sonhando?” Uma sessão espírita dedicada às vítimas do
coronavírus. Revista Piauí, edição 166, julho de 2020. Disponível em:
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/estou-sonhando/# (último acesso em maio de 2021)
CAMURÇA, Marcelo. Espiritismo e Nova Era: interpelações ao cristianismo histórico.
Aparecida: Editora Santuário, 2014.
DATA LIMITE SEGUNDO CHICO XAVIER. Direção: Fábio Medeiros. Produção: Juliano
Pozati e Rebeca Casagrande, Daniela Casagrande. Pozati Filmes e Cinemakers, agosto de 2014.
Documentário. Disponível em: https://youtu.be/4JxukHvGVzE (acesso em maio de 2021)
DIA, O. Data Limite de Chico Xavier a pandemia do coronavírus: existe alguma relação entre
elas? O Dia, 23 de janeiro de 2021. Disponível em: https://odia.ig.com.br/mundo-e-
ciencia/2021/01/6070669-data-limite-de-chico-xavier-e-pandemia-do-coronavirus--existe-alguma-
relacao-entre-elas.html (acesso em maio de 2021)

416
DIVALDO FRANCO. Canal FEP Uma reflexão sobre o Coronavírus - Alerta de Divaldo
Franco sobre a necessidade de amar. Disponível em: https://youtu.be/zyM3mB6vuJw (último acesso
em maio de 2020)
ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos, seguido de “envelhecer e morrer”. Rio de
Janeiro: Zahar, 2001.
HOMEM, Maria. Lupa da alma: quarentena-revelação. São Paulo: Todavia, 2020.
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Araraquara: IDE, 2009.
LEWGOY, Bernardo. A transnacionalização do espiritismo kardecista brasileiro: uma
discussão inicial. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 28(1): 84-104, 2008.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder; soberania, estado de exceção, política da
morte. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
MINOIS, George. História do futuro: dos profetas à prospectiva. São Paulo: Editora Unesp,
2016.
LEWGOY, Bernardo. O grande mediador: Chico Xavier e a cultura brasileira. Bauru, SP:
EDUSC, 2004.
MONTEIRO, André Afonso. Não existe data limite. Correio Espírita, março de 2017.
Disponível em: https://www.correioespirita.org.br/categorias/artigos-diversos/2374-nao-existe-data-
limite (último acesso em maio de 2021)
MOURA, Maria Antunes. Uma nova pandemia, conhecida como Coronavírus. FEBNET, 15
de julho de 2020. Disponível em: https://www.febnet.org.br/portal/2020/07/15/uma-nova-pandemia-
conhecida-como-coronavirus/ (acesso em maio de 2021).
CHICO XAVIER. Pinga Fogo com Chico Xavier, Tv Tupi, São Paulo, 28 de Julho de 1971.
Disponível em: https://youtu.be/8JD3wmC2ABU (acesso em maio de 2021)

417
MAÇONARIA VIRTUAL: OS IMPACTOS DO DISTANCIAMENTO SOCIAL
DA PANDEMIA DE COVID-19 NAS ADAPTAÇÕES TECNOLÓGICAS DA
GRANDE LOJA MAÇÔNICA DO ESTADO DO PARÁ

Marcelo Vitor Branco de Lima1

Resumo
A pesquisa, aqui apresentada, tem como foco dialogar sobre o fenômeno de midiatização da religião a partir de
uma análise sobre a adoção de recursos digitais de comunicação por parte da Grande Loja Maçônica do Estado do Pará,
durante o período de distanciamento social causado pela pandemia de COVID-19. Promove-se aqui uma elucidação
histórica do trajeto da Ordem Maçônica, desde seu surgimento na Europa até a fundação da Grande Loja Maçônica do
Estado do Pará e sua estrutura nos dias de hoje. Em seguida, apresenta-se o panorama das discussões acerca do debate
sobre religião e mídia, dialogando principalmente com as obras de Sbardelotto (2011; 2014) e Pedro Gomes (2004).
Finalizando com a aplicação da teoria no fenômeno ocorrido, com o intuito de observar as articulações entre tradição e
modernidade presentes nos movimentos da contemporaneidade. Os resultados alcançados ao final da pesquisa apontam
para uma aceleração do processo de midiatização da Maçonaria dentro da Grande Loja Maçônica do Estado do Pará
decorrida das incursões midiáticas adotadas pela mesma durante o período de isolamento social, bem como a sua
articulação para se estabelecer enquanto tradicional dentro do âmbito moderno.
Palavras-Chave: Maçonaria. Midiatização da Religião. COVID-19. Pará.

Introdução
A pesquisa, aqui apresentada, tem como foco analisar o conceito de midiatização das religiões,
termo estudado incialmente como a tomada dos espaços de comunicação por seguimentos religiosos,
incialmente programas de televisão, ou “Teleevangelismos” (GOMES, 2004), e que se ressignificou
através do aumento do uso da internet e a tomada destes espaços pelos mesmos grupos
(SBARDELOTTO, 2011).
Durante Pandemia de COVID-19 no ano de 2020, a Maçonaria no Estado do Pará passou por
reformulações e teve que se reinventar para superar os desafios decorridos deste fato. A primeira
consistiu em adaptações ritualísticas nas reuniões presenciais durante o início da pandemia no estado.
A segunda consistiu em uma reformulação completa de algumas suas cerimônias para as sessões
maçônicas à distância durante o isolamento social de fato. E no retorno às atividades presenciais,
alguns elementos típicos do período de restrição se adicionaram ao dia-a-dia maçônico, como
reuniões administrativas à distância e o aumento de palestras on-line.
Diante do problema exposto acima, esta pesquisa tem como foco analisar as adaptações
midiáticas e tecnológicas da Maçonaria decorrentes da Pandemia de COVID-19 no ano de 2020.
Tendo como foco a Grande Loja Maçônica do Estado do Pará - GLEPA e as suas Lojas espalhadas
pelo Estado.

1
Graduado em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Pará, Centro de Ciências Sociais e Educação.
marcelovitorbranco@gmail.com

418
O que é a maçonaria
A Maçonaria é uma ordem fraternal e filosófica que remonta o seu passado às antigas ordens
de construtores, a sua história é comumente dividia em três etapas chamas “Maçonaria Primitiva”,
“Maçonaria Operativa” e “Maçonaria Especulativa”. Onde a primeiro se refere às diversas
organizações de obreiros na história da humanidade que influenciaram os ofícios dos construtores do
ocidente; a segundo às guildas de construtores da idade média, de onde a Maçonaria tem ligação
direta; e a terceira iniciada em um momento com a fundação da Grande Loja da Inglaterra (Hoje
chamada United Grand Lodge of England), a partir da contribuição de quatro Lojas de Londres, em
24 de junho de 1717. (MARTINS, 2020).
É na terceira etapa que a Maçonaria se estabelece da forma que se mantém até os dias de hoje,
com o conhecimento técnico dando lugar ao saber esotérico e filosófico, e as suas Lojas congregando
pensadores de diversas áreas, norteando, inclusive, os ideais Iluministas do século XVIII, e se
espalhando pelo mundo ocidental nos séculos seguintes. (MONTEIRO, 2012)

A maçonaria no Brasil e no Pará


A história da Maçonaria brasileira tem seu período inicial no final do século XVIII e início do
século XIX. Neste período já havia movimentações de intelectuais com caráter semelhante ao da
Ordem, e José Castellani (2009) aponta que a primeira movimentação explicitamente maçônica
documentada ocorre em 1797 em águas próximas à Bahia, a bordo de uma fragata de bandeira
francesa, e regularmente em solo brasileiro em 1801, no Rio de janeiro, com a Loja “Reunião”. Logo
após, a mando do Grande Oriente Lusitano surgiram mais duas Lojas chamadas “Constância” e
“Filantropia”, ainda no Rio, e depois foram fundadas Lojas em Pernambuco e Bahia. (CASTELLANI,
2009), tendo sido fundado o Grande oriente do Brasil em 1822.
No estado do Pará a primeira Loja maçônica a ser fundada foi a chamada “Tolerância”, surgida
em 1831, sendo este fato detentor de fontes históricas mais concretas, como aponta Manuel Barata
em seu livro “Formação Histórica do Pará” (1973). E a Grande Loja Maçônica do Estado do Pará foi
fundada em 28 de julho de 1927, conta hoje com 83 lojas ativas, e 2229 membros regulares registrados
em sua jurisdição (GLEPA, 2021).
A Ordem Maçônica Regular no Brasil é hoje dividida em três instituições distintas, cada uma
com suas especificidades, isto implica dizer que cada estado brasileiro possui três organizações
maçônicas independentes entre si, cada um com seu representante e suas Lojas, sendo estes o Grande
Oriente do Brasil – GOB, as Grandes Lojas, e a Confederação Maçônica do Brasil – COMAB.
Analisando como se configura a Maçonaria em geral, bem como a estrutura Grande Loja
Maçônica do Estado do Pará, e compreendendo contexto de tradicionalidade em que se baseia a

419
identidade maçônica, sempre relembrando de seus feitos no passado, veremos então as adequações
realizadas pela mesma durante o período de pandemia, passando primeiro por uma visão da teoria
objetivada.

Debate sobre religião e mídia e as incursões tecnológicas na grande loja


A ideia do termo Midiatização da Religião é descrita por Pedro Gomes como a ação quando
“o campo religioso utiliza-se dos espaços midiáticos como instância de realização e atualização da
questão da fé.” (GOMES, 2004, p. 4). Ou seja, abrange todo o ato dos movimentos religiosos que
usufruem de aparatos de comunicação em qualquer situação.
Historicamente, ainda segundo Gomes (2004) observamos tal utilização de difusão em larga
escala desde o surgimento da primeira estação de rádio utilizada exclusivamente para o uso religioso,
chamada de WJBT - Where Jesus Blesses Thousands. Este tipo específico de difusão se fortalece
posteriormente com as mídias televisivas (O chamado “Teleevangelismo”) e, posteriormente com o
uso da internet.
Com a utilização do leque de possibilidades de interação entre usuário e plataformas
proporcionado pela era da internet, o fenômeno de midiatização da religião atinge um novo patamar,
com situações citadas por Sbardelotto (2011, p. 30) onde “a mídia já não é mais um fator de mediação
ou de extensão das capacidades comunicacionais, e religiosas do ser humano, mas torna-se a
ambiência em que esses fenômenos sociais acontecem”.

A relação entre mídia religiosidade nos anos de pandemia


Com o início da Pandemia de COVID-19 no Brasil ficou estabelecida a “necessidade do maior
isolamento físico possível como meio de adiamento da contaminação”. (BOTTINO; SCHELIGA;
MENEZES, 2020, p. 3). E a partir da segunda quinzena de março iniciaram-se no Brasil as primeiras
restrições de funcionamento de diversos estabelecimentos, sendo em dezesseis de março do ano de
2020 o início da primeira restrição de funcionamento de igrejas ou qualquer reunião de cunho
religioso no estado do Pará, limitando-se a 10 pessoas por reunião, através do Decreto Estadual nº
609 de 16 de março de 2020 (PARÁ, 2020).
Devido a restrição de funcionamento presencial as religiões precisaram se adaptar ao meio
virtual, e estas formas de organização religiosa trouxeram o que podemos chamar de uma nova forma
de relação entre religião e mídia, tomando Silva (2005) como base, onde a organização religiosa se
utiliza da mídia com a finalidade de se manter em movimento durante o período de restrições de
funcionamento, aderindo às incursões tecnológicas, mas atenta para não se “modernizar” demais.

420
Veremos que este contexto se aplicada na ao objeto de estudo tendo em vista que a Grande
Loja Maçônica do Estado do Pará se “aventura” em ambientes de comunicação, mas busca manter a
sua tradição, tendo em vista que a mesma não pretende perder a sua identidade legitimada e
reconhecida pelo cumprimento dos já citados Landmarks e demais elementos do ethos de uma
organização Maçônica regular.

A pandemia na grande loja maçônica do Estado do Pará


Com o agravamento da pandemia, em 19 de março as reuniões presenciais da Grande Loja
Maçônica do Estado do Pará foram suspensas pelo Ato nº 138 de 19 de março, que estabeleceu:
“ficam suspensos todos os trabalhos maçônicos, em toda a jurisdição, até 05 de abril de 2020, podendo
esse prazo ser prorrogado ou reduzido, a critério do Grão-Mestre, caso cessem ou se agravem as
razões que embasam essa decisão” (GLEPA, 2020).
Faltando dois dias para o término do prazo de suspensão das atividades, em 3 de abril, foi
emitido mais um Ato (nº 142) prorrogando a data de interrupção das reuniões até o dia 30 do mesmo
mês. E no dia 30 de abril, através do Ato nº 143, as atividades presenciais foram suspensas por tempo
indeterminado (GLEPA 2020).
Ainda no Ato nº 143, de 30 de abril, a Grande loja orientou que as reuniões presenciais fossem
substituídas pelas virtuais:
Recomenda-se que as Lojas passem a realizar reuniões ou sessões ritualísticas virtuais, de
acordo com a proposta do ritual já distribuído, nas mesmas datas de suas reuniões desde que
resguardados o sigilo das reuniões, autorizando-se, desde já, a realização de filiações,
readmissões e transferências, além da tomada de decisões através de votações virtuais,
inclusive por WhatsApp, quando não for possível reunir remotamente, tudo ad referendum,
do plenário da Loja na primeira reunião presencial. (GLEPA, 2020).

Da mesma forma apontada por Silva Junior e Ferreira (2020) sobre as articulações da igreja
católica durante o início da pandemia, vemos aqui um ajuste da Grande Loja propondo e permitindo
que ocorressem reuniões virtuais, elaborando um ritual próprio para tal, e, caso não pudesse ser
possível, recomendando que todas as questões necessárias fossem discutidas por whatsApp, para
depois ser votado durante a primeira reunião virtual que ocorresse.
Vemos, entretanto, que o rearranjo às formas de reunião à distância por parte da Grande Loja
Maçônica do Estado do Pará foi utilizado não como ferramenta de recrutamento de novos membros,
como é de costume ser analisado o tal fenômeno através dos “teleevangelismos” (Gomes, 2004) e
atitudes semelhantes, mas sim como meio de driblar as dificuldades interpostas pela pandemia de
COVID-19 e manter o ritmo costumeiro de reuniões administrativas e ritualísticas.

421
Considerações finais
Observamos que a grande Loja Maçônica do estado do Pará ao se adaptar ao delicado período
de pandemia, vê se no empenho em promover formas manter as atividades maçônicas, como rituais
e reuniões administrativas, entretanto, tentando não perder a sua tradicionalidade que a legítima como
organização regular, ou seja, ela não procura novos costumes, mas sim novas formas de praticar suas
antigas práticas. Sendo assim vemos a tentativa de uma “dilatação” da tradicionalidade através de
práticas modernas.
A partir da reflexão aqui elaborada sobre tradição e modernidade na Maçonaria dentro dos
debates entre religião e mídia, observamos uma nova forma de relação entre as duas, que destoa do
uso da mesma como simples difusora do conhecimento, ou como ambiente único de vivência da
religião apontado por Sbardelotto (2011), mas sim como certa “simulação” às práticas já estabelecidas
no movimento religioso, com objetivo de não deixar se dissolverem os seus ideais. Concluímos
observando o que afirma Jeremy Stolow (2014), que aponta o conceito (religião e mídia) como um
“campo de estudo em expansão”.
Desse modo, esperamos que o estudo apresentado tenha contribuído à comunidade acadêmica
e colaborado para o enriquecimento do debate sobre o tema proposto, além de encorajar pesquisas
posteriores que tenham a Maçonaria como objeto de estudo em suas diversas temáticas, e nos auxilie
a compreender as mudanças em nossa sociedade causada pela disseminação da COVID-19.

Referências Bibliográficas
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BOTTINO, Caroline Melo; SCHELIGA, Eva; MENEZES, Renata de Castro. Experimentos
etnográficos em redes e varandas: A religião em tempos de pandemia. São Paulo, Cadernos de
Campo, v. 29, p. 289-301, 2020.
CASTELLANI, José. A Constituição de Anderson e a dos Antigos. In: CASTELLANI, José;
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GLEPA - GRANDE LOJA MAÇÔNICA DO ESTADO DO PARÁ. Ato nº 142-GM/2018-
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2021, de 30 de abril de 2020. Belém, 2020

422
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423
RELIGIÃO E POLÍTICA NO BRASIL: DISPUTAS E VIOLÊNCIAS

Mariane Gonçalves Bento1

Resumo
O Brasil da atualidade nos mostra uma grande escalada de disputas narrativas entre adeptos de determinadas
linhas políticas, o que acaba por resvalar em grupos religiosos que corroboram à estas narrativas acentuando as tensões.
O presente trabalho busca traçar um mapa desta relação política religiosa contemporânea no Brasil e a escalada de
violência promovida muitas das vezes por entes que compõe grupos religiosos cristãos. É flagrante a necessidade de
pensar tais aspectos mediante os passos que o país tem dado neste sentido e a contribuição que esta análise pode dar à
reflexão do papel da religião frente a questões políticas atuais. A proposta é refletir tais questões mediante escritos já
produzidos pela comunidade acadêmica ao que toca as temáticas religião e política, conservadorismo, pentecostalismo,
mídias e religião. Espera-se, portanto, fazer um compilado de contribuições acadêmicas a esse respeito, bem como uma
análise autoral a partir das mesmas. A discussão política do Brasil atual encontra-se crivada de aspectos religiosos
orbitando em seu redor. Não é uma dinâmica inédita, entretanto carrega questões importantes de serem salientadas. Uma
delas é a escalada de violência legitimada pela religião e vinculada à narrativas políticas.

O cenário político brasileiro tem-se mostrado bastante turbulento nos tempos atuais, e as
discussões políticas acabam por resvalar no âmbito religioso e vice e versa. Neste sentido, o presente
trabalho, busca, à luz de literatura existente sobre o tema, analisar o contexto sobre o qual vivemos
atualmente e sua relação com a atuação religiosa de certos grupos e segmentos na via política e do
uso político de grupos religiosos.
Objetiva-se, portanto, traçar uma linha de raciocínio que traga à tona um esboço do cenário
político no que se relaciona com o religioso, sendo relevante a guinada rumo a um posicionamento
conservador e por vezes violento por parte de alguns indivíduos e grupos. O que nos leva a pensar
acerca da violência que as religiões são capazes de produzir em detrimento de uma fala ligada à paz
e fraternidade.
A análise direciona-se principalmente na via das igrejas neopentecostais, que tem participado
ativamente deste cenário. Não sozinhas, mas com bastante preponderância. Aqui também se destaca
o uso das mídias como ferramenta disseminadora de um discurso religioso atrelado a uma vertente
política. Pelo alcance e força de seus emissários, acaba por surtir um efeito avassalador na sociedade
brasileira ligada a denominações religiosas ou grupos que se veem representados por essas falas e
assim encorajados a chancelar estes posicionamentos.
Desde a chegada dos portugueses nas Terras de Santa Cruz que viriam a se tornar Brasil,
temos o crivo das manifestações religiosas em nossa história. A vivência da religião (a princípio
Cristã Católica) fez-se presente em nossa cultura em consonância com o mundo ocidental do século
XVI em diante. Esta direção fincada na religião atuara não somente na via dos costumes e práticas
religiosas, mas também marcara instituições políticas e sociais ao longo do Brasil Colonial,

1
Especialista em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Contato:
10070866619@estudante.ufjf.br

424
estendendo-se ao Império e claro, deixando como legado à República aspectos desta simbiose entre
as instituições religiosas (destaque ao Catolicismo) e as instituições políticas e sociais do Brasil.
No que concerne a aspectos históricos que envolvem essa vinculação entre religião e política,
Burity (2001) aponta que, mais do que dizer se há ou houve tal relação, tendo em vista que tal vínculo
nunca se rompeu, faz-se necessário aferir se o padrão existente no ocidente consegue dar conta do
que ele chama de deslocamento de fronteiras e ressignificação religiosa (cf. BURITY, 2001, p. 30).
Assim, na medida em que se observa a trajetória de eventos ligados a movimentos religiosos, é que
se tem de atentar para “uma configuração do religioso que opera segundo uma lógica de deslocamento
de fronteiras e ressignificação ou redescrição de práticas” (BURITY, 2001, p. 28). Esta análise
conduz para os caminhos diversos que a religião fora capaz de trilhar, já que apesar de haver
contemporaneamente um movimento de aprofundamento da experiência religiosa pessoal, ocorre
também uma “desprivatização ou publicização do religioso” (BURITY, 2001, p. 28). É uma análise
muito esclarecedora, pois mostra as várias possibilidades da religião não a colocando em caixas
separadas do todo que a envolve, sendo por isso um tema complexo e fonte de muitos
questionamentos e análises possíveis.
Não ocorre um desaparecimento da fronteira entre religioso e político, no entanto também não
há uma sobreposição de um sobre o outro. O autor define tal movimento como um deslocamento de
fronteiras que implica uma atuação e regulação maior do Estado em áreas antes consideradas
privadas, a ampliação da oferta e competição religiosa e as representações políticas que outrora eram
relegadas apenas ao âmbito privado e que agora aparecem como um problema político a ser sanado
(cf. BURITY, 2001, p.32).
Pois é notório que para além das reafirmações permitidas pela linguagem da "volta da
religião" ou da "ampliação da esfera pública ou política", o que se passa é uma mudança na
definição do que seja política ou religião. De um lado, os limites do político extrapolam o
estado, o que atesta a insuficiência do neutralismo e da separação entre igreja e estado para
disciplinar a relação religião/política. De outro lado, há uma visível desinstitucionalização da
religião, que se traduz na proliferação de igrejas, movimentos e grupos informais, que não
mais se prendem aos protocolos de autorização ou sanção eclesiástica, bem como na
difusão/disseminação do religioso para além das fronteiras reguladas pelas instituições
religiosas (BURITY, 2001, p. 34).

O Brasil experienciou uma grande movimentação em relação à sociedade civil no que


concerne à busca de direitos e voz frente à governabilidade autoritária engendrada desde 1964 em
solo brasileiro, e que pela força de vários fatores vieram a ruir em meados da década de 80. Nesta
via, o que é importante frisarmos é quão fundamental fora os questionamentos dos movimentos
sociais frente a estrutura política vigente. Nesta busca, traz-se à tona o desejo de ocupação do espaço
público e de um olhar mais apurado para as demandas não contempladas pelo Estado. Este movimento
acaba por fazer emergir novos atores no cenário político e os grupos religiosos são um deles.

425
A politização do discurso religioso nunca foi uma marca apenas deste período em questão a
exemplo da romanização do catolicismo, as repúblicas latino-americanas, a teologia da libertação
entre outros (cf. BURITY, 2016, p. 26). Entretanto, a partir dos anos 1990 observa-se uma
movimentação que traz “para o primeiro plano o discurso político pentecostal” (BURITY, 2016, p.
27). Este alvorecer do discurso político pentecostal é definido como uma expressão de religião
pública onde as práticas religiosas não se conteriam na fronteira do privado projetando-se pelo espaço
público como discurso de valores, cultura e ação coletiva (cf. BURITY, 2016, p. 36). As
características que teriam feito o perfil pentecostal pós 1980 tornar-se uma religião pública seriam a
demanda por participação nas instituições representativas, a publicização alcançada para além da
política tocando também a cultura de massas (jornais, gravadoras, tevê, rádio etc.) e tratando
detidamente da política a profissionalização da atuação e “a utilização deliberada de sua própria
linguagem teológica como registro legítimo de argumentação política” (BURITY, 2016, p. 37-38).
Neste movimento, a exposição pentecostal alcançada fora imensa e a partir de então inseriu-
se nas discussões sociais e politizou todos os temas que versassem sobre algum aspecto da fé deste
grupo. Deste modo, a definição correta seria de uma religião pública e não uma religião no espaço
público (cf. BURITY, 2016, p. 38).
Em outras palavras, a religião pública ao mesmo tempo impele “a religião” para o que já não
se contém ou regula pela jurisdição organizacional ou simbólica do mundo religioso, e
posiciona relacionalmente a identidade religiosa de tal forma que o “não-religioso” tanto
quanto o “outro religioso” passam a interferir permanentemente na vivência e no estar-em-
casa da identidade religiosa. Esse problema de definição da fronteira ou, antes, da crescente
porosidade da fronteira entre o religioso e o secular atinge a religião pública de duas formas:
porque ela ultrapassa fronteiras, levando o religioso para dentro do secular, por assim dizer;
e porque ela não pode erigir fronteiras impenetráveis à lógica secular no seu próprio interior.”
(BURITY, 2016, p. 40).

À luz da reflexão de Burity sobre o enquadramento do pentecostalismo brasileiro como


religião pública conseguimos vislumbrar a atuação religiosa dos adeptos desta vertente de um modo
mais específico. Cabe ainda demarcar de que forma procedeu-se tal atuação, o que brevemente será
abordado a partir daqui.
Rodrigues e Gouvêa (2020) no texto “Pentecostalismo, política e conservadorismo” buscam
compreender como os discursos religiosos de grupos pentecostalizados contribuíram para a política
nacional atual. E nos ancoramos nesta perspectiva para nossa linha de raciocínio.
Uma importante noção a partir daqui é a conceituação feita e que nos orienta a pensar no termo
“evangélico”, que no Brasil “tem sido usado de modo generalista para indicar uma pessoa ou grupo
de pessoas que declaram ser cristãos e seguirem a Bíblia, desde a literatura do Antigo Testamento até
as referências do Novo Testamento, que contam a vida e os ensinos de Jesus Cristo” (RODRIGUES;
GOUVÊA, 2020, p. 38)

426
Nesta dinâmica, a caracterização do evangélico traz à tona um grupo religioso que atua no
universo brasileiro de modo a balizar suas ações e modos de vida a partir de uma leitura bíblica
específica e que reverbera na sociedade como preocupação com os hábitos e formas de agir dos
indivíduos, instituindo assim regras de conduta. Nesta via, o conservadorismo ganha corpo,
pensando-se aqui conservadorismo como prática que envolve manter ideias e formas de agir que
sejam mais adequadas a um grupo.
Frente a isto, o “eu” evangélico supõe-se guardião dos bons costumes sociais e emana este
ponto de vista pela sociedade de modo a fazer com que todo aquele que não está investido do mesmo
pensamento, o “outro”, seja atingido por seu discurso. A leitura e interpretação dos textos bíblicos
são amplamente disseminadas a fim de proporcionar esta dinâmica de mediação entre o divino,
representado por aqueles que seguem as premissas de Deus (os escolhidos) e os que não se
enquadrariam neste grupo.
As noções de “povo escolhido” e “geração eleita” derivam da apropriação de textos bíblicos
do Antigo Testamento (AT). Segundo essas referências, Iahweh – Deus criador dos céus e da
terra– escolheu Israel como seu povo, eleito entre todos os outros povos, para reinar sobre a
terra. Portanto, esse povo, assim como seus herdeiros nas gerações seguintes, seria o povo
exclusivo de Deus e sob essa inscrição teria a exclusividade da salvação. Todos os outros
povos que se curvassem diante essa condição seriam igualmente abençoados. (RODRIGUES;
GOUVÊA, 2020, p. 41)

Assim sendo, a presença dos evangélicos como religião pública no Brasil corroboraria a esta
lógica de disseminação da “verdade” e atuaria fortemente na estruturação de uma política
“supremacista, hierárquica e violenta (beligerante).” (RODRIGUES; GOUVÊA, 2020, p. 45).
Sintomático deste movimento é a escalada de uma linguagem de violência emanada por
partícipes e lideranças de grupos religiosos. Em nome da fé e dos costumes que estes julgam ser mais
adequados, a discussão se acirra e reflete uma visão tomada por caracteres não tão afáveis. Em nome
de Deus percebemos legitimação de violências para com grupos considerados um problema para a fé
Cristã. Mais uma vez, não é uma novidade, entretanto o que há de perceber-se é que a narrativa
política é direcionada à comunidade cristã evangélica de modo a evidenciar a necessidade de
diferenciar-se daqueles que não são considerados fiéis. Os grupos religiosos por sua vez, se alimentam
deste discurso para fortalecerem-se como grupo político religioso e o ciclo são mantidos. Deste modo,
o casamento perfeito acontece. Mesmo que à custa de males diversos àqueles que não estão de acordo
com a narrativa política religiosa beligerante do contexto atual do Brasil.
Esta atitude muito tem a ver com a própria estrutura dos escritos religiosos que balizam o
pensamento cristão evangélico brasileiro. Rodrigues (2019) trata destes aspectos ligados a uma
linguagem que faz referência à violência e de algum modo as justifica. Aponta quão ligado está o
sagrado à violência onde unir-se a ele demandaria uma ritualística também violenta (cf.

427
RODRIGUES, 2019, p. 71). A Bíblia, portanto, traz aspectos que baseiam essa atitude voltada a
violências.
Deste modo, engendra-se uma lógica de que “todos os que não estão sob a fé em Deus estariam
sob o comando do Diabo, portanto seriam os inimigos de Deus e de seu povo” (RODRIGUES, 2019,
p. 73) e nesta via, a luta seria legítima. Estes inimigos são identificáveis em falas contrárias à dos
gays, participantes de religiões não cristãs, pessoas que não seguem uma vida ortodoxa. E nosso atual
governo, liderado pelo Presidente Jair Messias Bolsonaro, atua nestas frentes alimentando a
beligerância. Suas falas ríspidas que desrespeitam a pluralidade ganha apoio destes grupos e ao
mesmo tempo apoia o discurso de muitos deles, sendo importante nesta guinada conservadora e que
por vezes legitima a violência contra os entes da república “não fiéis”.
Não podemos negar quão atrelada a religião cristã está ao tema da violência, e em se tratando
do Brasil atual, muitas falas e ações resvalam em minorias causando ações intolerantes de toda sorte
por meio dos vários veículos de disseminação de informações.
Toda esta atuação é alargada pelo uso das mídias. Cunha (2016) trabalha nesta busca de
descrever e interpretar a maior ocupação de espaço pelos evangélicos na política partidária e como as
grandes mídias tratam a questão política. A autora aponta que o neoconservadorismo evangélico faria
parte de um contexto de fortalecimento conservador na esfera pública brasileira em geral (cf.
CUNHA, 2016, p. 153). E aqui, portanto, temos outro ponto relevante na análise, que é o fato de os
valores de direita (portanto mais conservadores) obter simpatia de uma grande parcela de brasileiros.
Frente a isso, lideranças evangélicas e políticos conservadores não ligados à igrejas
evangélicas mas que se ancoram nelas, emergem pautas conservadoras ganhando grande apoio
eleitoral nacional (cf. CUNHA, 2016, p. 153). Este apoio não ocorre somente pela força da
representatividade evangélica na política ou o uso político de assuntos ligados à moral cristã, mas
também por todo um contexto de apropriação destas pautas na sociedade como um todo.
Com discursos dentro do ideário da moral cristã (contra o aborto e o controle da natalidade,
e a favor da assistência psicológica a homossexuais, como se a opção sexual fosse uma
doença a ser tratada) aliado a princípios caros ao liberalismo na política e na economia
(Estado mínimo e elogios ao livre mercado), essas personagens têm captado apoios para além
do círculo religioso. Na visão destas lideranças, a família está sob a ameaça dos movimentos
civis de gênero e enfrentamento da violência sexual, reforçados pela abertura a estas
demandas no campo político, intensificada a partir de 2002. (CUNHA, 2016, p. 153)

A análise aqui apresentada aponta que tal escalada conservadora muito tem a ver com as
características da própria sociedade brasileira e que é acentuada pelo processo de midialização que a
religião e a política do Brasil hoje passam.
Cunha brilhantemente evidencia a atuação dos evangélicos como bloco articulado que
desenvolve cultura de massas e faz-se presente em vários âmbitos da vida do indivíduo. Seus

428
discursos políticos religiosos são bem aceitos por parcelas ligadas ou não a uma denominação
religiosa e o êxito acaba sendo bastante impulsionado pela força das mídias.
Comportando-se como segmento governista, os evangélicos se articulam em apoiar
candidatos com reais chances de vencer eleições e fazem também acordos em prol de sua
denominação religiosa (cf. GONÇALVES, 2010, p. 19) sendo, portanto, parte importante no cenário
político nacional atual. Neste aspecto, atentamo-nos para um cenário político crivado de dicotomias
que se acentuam cada dia que passa. E o discurso religioso conservador em muito colabora para este
clima.
Este contexto beligerante que enfrentamos é intensificado em meio ao momento de crise de
saúde que vivemos em razão da pandemia. Pieper e Mendes (2020) retomam um pouco dessa reflexão
mediante o conceito de necropolítica. Apontam, portanto que
um traço básico da necropolítica é esse laço de inimizade. Basicamente, a ideia é a criação
fantasiosa de um inimigo que pelo próprio fato de existir ameaça o “nós” e, portanto, deve
ser eliminado. Isso faz com que o ódio e o ressentimento criem vínculos entre as pessoas. E
esse mesmo ódio contamina todo esse sistema (PIEPER; MENDES, 2020, p. 23).

A violência e a morte ganham contornos diferentes numa política que faz do outro um inimigo
a ser combatido por não apresentar um ideário político religioso similar ao do seu grupo. Os laços de
inimizade evidenciados pelos autores são absorvidos também pelo discurso político religioso
evangélico sendo sintomática a aversão a tudo que não faz parte da cobertura narrativa cristã
pentecostal.
Por fim, cabe enfatizar que temos um sistema político que acaba por contribuir para o
fenômeno da ascensão de políticos religiosos. E nesta fragilidade, os eleitores escolhem seus
candidatos através de qualidades pessoais o que acaba por fazer largar na frente bispos e pastores (cf.
GONÇALVES, 2010, p. 20). Nesta ótica, é tempo de reflexão e ajuste tendo no horizonte o momento
delicado que vivemos, não podendo deixar escapar a oportunidade de repensar a atuação dos grupos
religiosos, sejam eles evangélicos institucionalizados ou não, na vida política do Brasil e as
implicações que esta guinada pode trazer positiva ou negativamente para o meio social e político.
A atuação religiosa na política arrebanha muitas pessoas e ao conter um discurso que traz em
si violências contra outros grupos tem-se uma problemática muito grande. Na necessidade de apontar
aqueles que não cumprem uma cartilha específica de vida e fé, é lançado mão de um posicionamento
intolerante com aqueles que não colaboram à uma perspectiva cristã evangélica conservadora. Os
agentes políticos eleitos sob o apoio de uma base religiosa evangélica, ou simpática à ela, ao expor
posicionamentos ligados à esta moral acaba por responder a seu grupo mas também traz implicações
à sociedade como um todo no que tange a uma perspectiva de conflito. As mídias sociais colaboram

429
em muito neste sentido, de modo a sustentar discursos religiosos atrelados à política e discursos
políticos atrelados à religião numa integração poderosa.
Em suma, acredito ser preciso pensar que o limite entre os âmbitos religiosos e político de
modo geral fora alargado e modificado contemporaneamente o que fez surtir em uma vivência de
religião pública por parte do pentecostalismo. Esta guinada diante de uma busca por
representatividade no cenário político desemboca em uma atuação intensa destes grupos religiosos e
também de políticos atrelados a tais grupos, reverberando social e politicamente na forma de debate,
discussões e produção de conteúdo midiático a fim de arrebanhar simpatizantes à sua forma de
pensamento.

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2021.

430
O PODER MIDIÁTICO DAS RELIGIÕES: PODER E POLÍTICA NA PALMA
DAS MÃOS

Ronaldo Sales1

Resumo
Refletir acerca do papel das mídias sociais no processo eleitoral de 2020, e bem como a forma com que os agentes
religiosos e sociais se apoderaram destas ferramentas como arenas de disputa na divulgação de suas ideologias e como
portas e promovendo o acesso para adesão de novos agentes. Analisar as implicações dos discursos de
aproximação/distanciamento ou de confirmação/negação. Visualizar as ações práticas e o material simbólico produzido
nestas mídias durante o processo eleitoral na cidade de Nossa Senhora do Socorro – Sergipe.
Palavras-chave: Poder midiático. Religião e política. Laicidade a brasileira.

Introdução
Mesmo sendo um tema de bastante discussão nas esferas políticas, educacionais e religiosas,
as questões relacionadas aos papéis do Estado e suas interlocuções com as religiões não são temáticas
novas e ao mesmo tempo em que a necessidade do diálogo, às vezes de contração ou de retração, não
é propriamente identificada como propriedade deste século. A proposta deste artigo é entendermos
como a construção da laicidade na história da humanidade desenvolveu modelos das mais diversas
práticas no mundo ainda mantém uma atual relevância.
Entender o uso da mídia para criação de conteúdo e como essas produções afetam a sociedade
de um país declaradamente laico em sua essência, demarcando territórios cibernéticos e geopolíticos,
tendo o espaço público como meta de alcance. Este artigo faz parte de um recorte específico de um
projeto que analisar as últimas eleições eleitorais do Município de Nossa Senhora do Socorro –
Sergipe.
Muitos fatos ocorridos através da relação entre Estado e religião (igrejas) no mundo
provocaram uma diversidade relativa de modelos de laicidade. Cada um desses modelos possui uma
relação direta entre as formas de compreensão dos processos de modernidade ocorridos nesses
Estados e como as conquistas e derrotas provocadas pelo desencantamento das religiões nos últimos
séculos contribuíram para a importância da delimitação da relação do Estado para com as religiões,
ora assumindo uma posição laica, ora assumindo uma posição proselitista e em alguns casos um
pseudo laicismo. De acordo com Camurça, é de extrema importância a necessidade de estabelecer
um processo de compreensão através da comparação destes modelos:
Neste sentido, a perspectiva da comparação veio a se colocar no sentido de se pensar estilos
distintos de laicidade(s), caminhos próprios de construção deste(s) regime(s), a partir dos
diferentes pactos firmados entre as religiões e os Estados modernos em diversos recantos do
globo. (CAMURÇA, 2017, p.856).

1
Graduado em Ciências da Religião e Mestrando do Curso de Pós Graduação em Ciências da Religião da Universidade
Federal de Sergipe.

431
Não haverá um modelo único de aplicação de laicidade no mundo e nem tão pouco modelos
que apresentem a mesma configuração em todo conjunto de sua aplicação. Entender a laicidade no
Estado democrático brasileiro nos permitirá entender panoramas diferentes em fases diferentes da
história político-religiosa do Brasil. Certo de que não basta apenas desconfessionalizar o Estado, mas
cercá-lo de leis que garantam a sua autonomia com relação às amarrações com a Igreja, em sua grande
maioria a Igreja Católica Apostólica Romana, de forma que os regimentos do Estado sejam capazes
de governar sem a necessidade de uma legitimação da(s) Igreja(s). Claro que para o modelo francês,
não bastou apenas à separação, ações voltadas à criação de uma identidade estatal que caminha contra
as religiões de acordo com Ari Pedro Oro em seu artigo “A laicidade no Brasil e no Ocidente: algumas
considerações” (ORO, 2011, p. 221-237).
No caso de Sergipe a Constituição Estadual de 1989, revisada para o Biênio de 2019-2021,
possui uma série de garantias para a preservação da pluralidade religiosa no Estado. O segundo
parágrafo do artigo 3º do texto desta Constituição fala dos direitos e garantias fundamentais e assegura
proteção contra discriminação por motivo de raça, cor, sexo, idade, classe social, orientação sexual,
deficiência física, mental ou sensorial, convicção político-ideológica, crença em manifestação
religiosa. (SERGIPE, 1989, p. 20). Este parágrafo segue o mesmo alinhamento da Constituição Federal.

Religiosos no espaço público da dinâmica sergipana


Neste século o aumento das fronteiras cristãs no espaço público em Sergipe, acompanhou a
dinâmica nacional. As delimitações que unem as práticas religiosas com o cenário político precisam
ser entendidas dentro do processo histórico. Nesse sentido Berger (2018) afirma sobre a necessidade
de entender esse contexto histórico para uma compreensão mais precisa das práticas resultantes desses
ambientes religiosos. Muitos estudiosos brasileiros têm abraçado à temática gerada pelo encontro
entre religião e política. Paul Freston, Marcelo Ayres Camurça, Ari Pedro Oro, Magali Cunha,
Péricles Andrade e Joanildo Burity, se debruçam não somente a entender as conquistas dos religiosos,
principalmente os evangélicos, no espaço público, mas também compreender as novas configurações
derivadas dessa associação. Sobre isso Magali Cunha nos fala que “A despeito de todas as tipologias
que buscam caracterizar a miríade de grupo relacionados ao segmento evangélico no Brasil, esse texto
se refere a “evangélicos” 2 para abordar todos os cristãos não-católicos ou ortodoxo que atuam no
campo religioso brasileiro.” (CUNHA, 2019, p. 26)

2
Faz-se necessário esse recorte conceitual acerca do que chamaremos por “evangélicos”, visto a importância da sua
definição histórica e de como o advento da modernidade desconstrói a visão dos religiosos concernente à política e de
como essa visão se reconstrói não de forma isolada, mas como um projeto de dominação desses espaços através das
movimentações estratégicas de seus agentes.

432
A conquista de espaço pelos evangélicos no cenário político sergipano garante uma adesão
das instituições desde a década de 80, mas é na década de 90 onde as instituições como a Assembleia
de Deus (AD) e a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) protagonizam com maior ênfase este
cenário. O Pr. Daniel Fortes é um desses representantes da Assembleia de Deus que assume uma vaga
da Câmara de Vereadores de Aracaju em 1992, uma vitória da instituição após o fracasso das eleições
de dois de seus membros em 1990. As eleições de 1996 a 2002 resultam na diplomação a vereador
do Pr. Daniel Fortes (AD) e do Pr. Antonio dos Santos (AD), e do Deputado Estadual o Pr. Heleno
Silva (IURD).
As eleições de 2004 a 2012 fortalecem a chegada de novos agentes e novas instituições como
à eleição dos vereadores Pr. Valdir dos Santos (IEQ), Pr. Daniel Fortes (AD), Pr. Jony (IURD), Matos
(Igreja Católica) e Daniela Fortes (AD), filha do Pastor Daniel Fortes. Neste período os sergipanos
elegem para a bancada federal dois deputados evangélicos: Laércio Oliveira (Presbítero da Igreja
Presbiteriana) e Pr. Heleno (Pastor da IURD e apoiado pela AD). Para a bancada estadual foi eleito o
Pr. Antonio dos Santos (Pastor da AD). O que se faz necessário frisar é a importância destas duas
últimas eleições em 2010 e 2012 como eleições estruturantes para a maioria dos municípios de
Sergipe.
Essa representação democrática vai além do imaginário de um cidadão comum e se amplia
para o imaginário cristão na identificação da necessidade de eleger alguém que possui uma missão
especial dentro do cenário público, missão esta que só pode ser cumprida por aquele que possuir
atributos definidos pela moral cristã. De certa forma, esse discurso se distorce na prática quando o
executor dessa missão passa a se tornar, não somente aquele que possui tais atributos, mas o que
também possuir a anuência da instituição religiosa que compartilha com seus fiéis a obrigação de
eleger tais escolhidos.

O caso do Município de Nossa Senhora do Socorro


Em tempos atuais a reconfiguração do cenário político-religioso no município de Socorro,
abreviando conforme prática popular começa a ganhar atenção em outubro de 2011 quando o Pároco
da Paróquia São João Batista no Conjunto João Alves – o Padre Inaldo, pede seu afastamento à igreja
do seu ofício sacerdotal conforme esclarecimento cedido em 11 de janeiro de 2012 ao portal de
jornalismo sergipano Infonet, o Padre informa que seu afastamento não é definitivo: “Eu solicitei o
meu afastamento da igreja em outubro do ano passado, por um período de cinco anos e depois vou
retornar às minhas atividades na paróquia. Agora estou me dedicando à pré-candidatura à Prefeitura
de Socorro. Além de mim, o Padre Raimundo da Silva Leal (PCdoB), vai concorrer à reeleição para
prefeito de Cristinápolis; o Padre Gerard Jullius (PT), é pré-candidato à Prefeitura de Japaratuba; o

433
Padre Barbosa (PSC) vai disputar a Prefeitura de Malhador; Padre José Alves é pré-candidato a
vereador de Umbaúba, em Itabaiana também temos um padre pré-candidato a vereador”, esclarece o
Padre Inaldo (PCdoB).
O Padre concorre às eleições à Prefeitura Municipal de Socorro juntamente com o atual
prefeito na época, Fábio Henrique do PDT. Sem o poder da máquina estatal em suas mãos e contando
apenas com as lideranças populares da Igreja Católica da região, porém sem o apoio declarado da
instituição, o Padre Inaldo perde e seguindo uma estratégia de resiliência junto com seus assessores
e concorrem a uma nova disputa eleitoral dois anos depois quando se candidata ao cargo de Deputado
Estadual, chegando a ALESE - Assembleia Legislativa de Sergipe com 14.510 votos de acordo com
o TRE/SE. Sua passagem pela ALESE lhe permitiu aumentar suas coligações político-partidárias.
As eleições de 2016 no Município de Socorro evidenciam uma nova arena acerca do local de
disputa do espaço público no Estado de Sergipe. Além da candidatura do Padre Inaldo, um novo
agente religioso entra no jogo político, uma jovem liderança evangélica da Igreja Assembleia de
Deus, o Evangelista e Advogado o Dr. Samuel Carvalho (PPS) na época com 33 anos. Membro da
Assembleia de Deus Ministério Missão do Município de Socorro, o “Jovem Evangelista” é possuidor
de uma influência que ultrapassava as linhas interdenominacioais, visto a facilidade com que o mesmo
permeia nas demais igrejas evangélicas sejam pentecostais, sejam igrejas tradicionais ou igrejas de
missões.
De forma similar ao Padre Inaldo, o Dr. Samuel conquistou apoio de lideranças populares de
sua igreja, porém sem o apoio oficial da instituição. O resultado final deste embate entre o Padre e o
Evangelista, resulta na vitória do Padre Inaldo com 35.190 votos que correspondem a 73,12% dos
votos válidos e o Dr. Samuel Carvalho (Evangelista) conquistou 12.276 votos que correspondem a
25,51% dos votos válidos segundo o TRE/SE. Com esse resultado, o Município de Socorro é
assumido pela primeira vez por um agente religioso.
Repetindo o percurso de seu opositor, o Dr. Samuel Carvalho reinicia sua jornada política ao
se candidatar em 2018 a Deputado Estadual pelo PPS, sendo eleito com 14.216 votos de acordo com
TRE/SE. Vale ressaltar que a Igreja Assembleia de Deus de Socorro, nesta eleição, estava apoiando
o já então Vereador Pr. Joanan Alves a Deputado Estadual, dividindo extra oficialmente os votos dos
membros desta instituição. Cabendo ao jovem Evangelista Samuel, recorrer ao apoio de
denominações de pequeno porte, mas que seriam decisivas para a sua vitória. Os ritos de preparação
para as eleições municipais de Socorro para o ano de 2020 começam no dia 17 de dezembro de 2018,
quando o Dr. Samuel é diplomado na ALESE. As articulações e os campos de influência se
reconfiguram, uma vez que o desafio entre gigantes se estabelece, desta vez com um equilíbrio de
forças maior.

434
Midiatizando as novas arenas nas eleições de 2020
O jogo eleitoral no Município de Socorro para o ano de 2020 é definido em suma pela tentativa
de um “religioso político” em permanecer no poder – o Padre Inaldo, a tentativa de outro “religioso
político” em conquistar esse poder – o então Deputado Estadual Dr. Samuel Carvalho, e para azeitar
a disputa, o desejo de um “político dito religioso” em reconquistar esse poder – o ex-prefeito deste
município, o então eleito Deputado Federal Fábio Henrique. As concepções político-religiosas dos
candidatos à Prefeitura do Município de Socorro se tornam o carro chefe em busca do aumento
daqueles que se fidelizam com suas propostas, todavia essa busca ultrapassa o âmbito do indivíduo e
perpassa o âmbito institucional. O eleitor deixar de reproduzir seus anseios individuais e começa a
reproduzir os anseios coletivos. A atuação eleitoreira da igreja, que marcou o processo eleitoral
durante anos de democracia, e que foi decisiva nas eleições que elegeram o Presidente Jair Messias
Bolsonaro em 2018, assim relatam os pesquisadores como Ricardo Mariano, Joanildo Burity, Marcelo
Ayres Camurça e Paul Freston, agora também serão capazes de decidir quem ocupará o cargo mais
importante do executivo municipal de Socorro.
Em um contexto moderno e democrático, o uso dos espaços digitais fortalece a ideia de
modernidade. O uso das redes sociais foram decisões extremamente eficazes mediante esse contexto
pandêmico. Mais do que em qualquer outro período a instrumentalização política dos agentes
religiosos nesta eleição, foi pautada pela profissionalização das suas assessorias de comunicação que
encontraram nos mecanismos digitais, um espaço que somente profissionais podem habitar.
Importante salientar a forma de sacralização dos espaços digitais. Ambos os candidatos com o cunho
religioso político não abriram mão de frases de impacto, muitas vezes com dialetos pertencentes
apenas à cultura cristã. Os registros das participações de missas, cultos, eventos musicais, passeatas
religiosas, lives e outros, foram fortemente utilizados nas principais mídias como Instagram, Twiter
e Facebook.
Um ponto importante já previsto nas disputas nos fluxos de uso de mídias, foi à corrida por
adeptos nas redes sociais. Um aumento considerável de seguidores em ambos os sacerdotes. No
Instagram, por exemplo, o Padre Inaldo chega a 23 mil seguidores no dia 27 de agosto de 2020 e o
Dr. Samuel chega aos seus 18 mil seguidores em 20 de outubro de 2020. Outra arena de medição de
forças nas mídias, principalmente no Facebook e no Instagram, são exposições de reuniões com
lideranças políticas e religiosas, tanto o Padre quanto o Evangelista, rechearam quase que
semanalmente imagens com Pastores, presidentes de Instituições religiosas e festas religiosas.
De forma estratégica, a maior representatividade religiosa do Município de Socorro pertence
às religiões cristãs com 85,5% da população de acordo com o censo do IBGE 2010. A importância
desta análise nos direciona a entender melhor os sistemas de trocas simbólicas. As apresentações das

435
propostas dos religiosos políticos se concentram não somente na apresentação de alternativas, mas
sim, na apresentação de escolhas irrefutáveis. Sendo necessária uma reorganização do caos através
de alguém comissionado para esta função. O discurso precisa ser repensado para atingir as classes
mais pobres da população, segundo Pierre Bourdieu:
A aptidão para formular e renomear o que os sistemas simbólicos vigentes afastam para o
domínio do informulado ou do inominável, deslocando assim a fronteira entre o pensado e o
impensado, entre o possível e o impossível (...). Tal aptidão constitui o capital inicial que
permite ao profeta exercer uma ação de mobilização sobre uma fração suficiente poderosa
dos leigos, simbolizando por seu discurso e por sua conduta extraordinários o que os sistemas
simbólicos ordinários são estruturalmente capazes de exprimir, em especial ao caso as
situações extraordinárias. (BOURDIEU, 2002, p.73)

Os discursos dos religiosos políticos são absorvidos por uma elevada estima de fé e
credibilidade, que para suas comunidades, o diferenciam do político ou do político religioso. Por isso
a medição de seguidores serve de certa forma, com um termômetro – um índice de medição superficial
da adesão destes discursos, visto que, seria necessária uma ampla pesquisa para identificar as razões
das adesões.
Finalizando, as redes sociais também serviram para identificar estratégias de aproximação
junto às comunidades religiosas. A primeira delas foi tomada pelo Padre Inaldo, enquanto Prefeito,
com a sanção da LEI COMPLEMENTAR Nº. 1.380 DE 10 DE DEZEMBRO DE 2019 que trata dos
dispositivos do código de tributação do município. Foi inserido o Inciso XII do artigo 187 dizendo
que “os imóveis locados integralmente para instalação e funcionamento de templos religiosos de
qualquer culto, enquanto da vigência do contrato de locação, estará isento quanto à cobrança do
IPTU”. Como boa parte das instituições religiosas deste município não possuem templos próprios,
tendo o aluguel como alternativa de se situar geograficamente, a notícia foi comemorada pela diretoria
municipal da UMESE – União de Ministros do Estado de Sergipe, que teve participação na
formulação da lei juntamente com a bancada evangélica da Câmara de Vereadores do Município de
Socorro. O projeto ainda prevê a isenção da TLF – Taxa de Licenciamento de Funcionamento para
templos religiosos.
Outra ação também divulgada nas redes sociais durante esta eleição considerada atípica em
virtude da pandemia foi a Lei 8.735 de 18 de agosto de 2020 sancionada pelo Governador Belivaldo
Chagas que reconhece a atividade religiosa como essencial à população do Estado de Sergipe em
períodos de crises ocasionadas por moléstias contagiosas ou catástrofes naturais, e dá providências
correlatas. A lei é de autoria dos Deputados Estaduais Dr. Samuel Carvalho e Gilmar Carvalho. A
repercussão também foi bastante positiva pelas instituições religiosas de todo o Estado, abrindo
caminhos para que as bancadas evangélicas municipais seguissem o mesmo exemplo.

436
Considerações finais
O saldo final foi favorável ao Padre Inaldo que com 27.042 votos - correspondentes a 32,91%,
vence o Dr. Samuel Carvalho que obteve 24.018 – correspondente a 29,23% e vence Fábio Henrique
que obteve 23.912 – correspondente a 29,10% dos votos segundo o TRE/SE. Claro que não há
intenção de forjar um consenso acerca dos votos dos religiosos, visto que outros candidatos não
citados também tiveram apoio de religiosos. O dissenso faz parte do jogo democrático, mas a
visibilidade dos fluxos produzidos junto às instituições religiosas nas mídias sociais foi claramente
evidenciada. Os exemplos dos reflexos das leis criadas para beneficio de entidades religiosas podem
evidenciar com exatidão o processo de trocas simbólicas entre políticos e religiosos na conquista do
espaço público. O uso das mídias é um caminho sem volta. Alinhado também ao desejo da construção
de uma área de domínio de consumos pelas grandes corporações que investem valores milionários
para o aumento da conectividade das populações, reduzindo a distância entre a oferta e a procura.
Ainda existem muitas análises a serem garimpadas nas terras da antiga Freguesia de Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro do Tomar da Cotinguiba, atual Município de Socorro. E que as
próximas eleições prometem novas análises. Em março de 2021 o Evangelista Samuel Carvalho foi
consagrado a Pastor da Assembleia de Deus – Ministério de Missão, pelo próprio Presidente o Pastor
Virgínio José de Carvalho Neto - ex Senador da República. Há um forte questionamento da vitória
do Padre Inaldo, tanto pelas denúncias de compra de votos, como pelo fato do município decidir
apenas em um único turno. Portanto as próximas eleições prometem importantes analises.

Referências Bibliográficas
ANDRADE, Péricles. SILVEIRA, Emerson Sena. Laicidade flexível, religião e esfera pública
no Brasil: Eleições Presidenciais 2018.
BOURDIEU, Pierre. A Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2002.
BERGER, Peter Ludwig., rumor de anjos: a sociedade moderna e a redescoberta do
sobrenatural / Peter L. Berger; tradução Waldemar Boff, Jaime Clasen. 2. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2018, 37 pp
CAMURÇA, Marcelo. A questão da laicidade no Brasil: mosaico de configurações e arena
de controvérsias. Horizonte, Belo Horizonte, v. 15, n. 47, p. 855-886, jul./set. 2017
COSTA, Maria Emília Corrêa da. Apontamentos sobre a liberdade religiosa e a formação do
Estado laico. In: LOREA, Roberto Arriada (Org). Em defesa das liberdades laicas. Roberto Arriada
Lorea/Ari Pedro Oro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
CUNHA, Magali do Nascimento. A ascenção da direita religiosa no Brasil contemporâneo.
In: LELLIS, Nelson (Org). Religião e política à brasileira: faces evangélicas no cenário politico /
Cláudio de Oliveira Ribeiro; Nelson Lellis (Orgs). São Paulo: Recriar, 2019.
ORO, Ari Pedro. A laicidade no Brasil e no Ocidente: algumas considerações. Civitas Porto
Alegre v. 11 n. 2 p. 221-237 maio-ago. 2011.
SERGIPE. Constituição (1989). Constituição do Estado de Sergipe: 1989 / Assembleia
Legislativa do Estado de Sergipe, 9ª ed. - Aracaju-SE: Assembleia Legislativa, 2019

437
A CULPA É DO CARNAVAL: ARGUMENTOS RELIGIOSOS DE
ACUSAÇÃO DA PANDEMIA NAS MÍDIAS

Rosiléa Archanjo de Almeida1


Rafael Otávio Dias Rezende2

Resumo
Em fevereiro de 2021, com o cancelamento oficial do carnaval brasileiro devido à pandemia de Covid-19,
circulou na internet uma série de ataques às escolas de samba. Nas mensagens, essas instituições eram culpabilizadas pela
disseminação do novo coronavírus, por terem supostamente zombado da fé cristã e ofendido a Deus em apresentações
recentes. Amplamente difundidos por grupos conservadores, tais críticas retomam a polêmica do uso de imagens
religiosas em desfiles. Diante da repercussão desses memes, o artigo propõe investigar quais os argumentos utilizados
para a acusação do carnaval como causador da pandemia, a partir de representações sobre Jesus elaboradas pelas Gaviões
da Fiel em 2019 e pela Estação Primeira de Mangueira em 2020. Tendo como procedimento metodológico o estudo de
caso (YIN, 2001), trabalha-se com a hipótese de que tais representações foram inseridas em um conflituoso cenário de
disputas ideológicas e de narrativas sobre a fé cristã. Conclui-se que tal ação tem o intuito de atender a interesses de poder,
visando mobilizar fiéis e eleitores a partir da distorção dos enredos propostos pelas agremiações.
Palavras-chave: Carnaval. Argumentos religiosos. Pandemia. Conservadorismo. Mídias.

Introdução
Em 1928, os sambistas do Largo do Estácio, região central do Rio de Janeiro, criaram a
primeira instituição carnavalesca denominada como escola de samba, a Deixa Falar. O termo logo se
popularizou e se multiplicou pela cidade e pelo país, dando origem a uma nova forma de brincar
carnaval, logo tornada símbolo da identidade nacional (cf. VIANNA, 1995).
Entretanto, o crescimento do conservadorismo no Brasil tem confrontado o papel e a
relevância do carnaval brasileiro como fenômeno cultural caro à identidade nacional. Dentro de uma
perspectiva religiosa ultraconservadora, essas narrativas reforçam a crítica da festa como um evento
profano, relacionado aos prazeres mundanos, dos quais os cristãos devem se afastar e condenar. Por
essa ótica, a liberalidade carnavalesca é pecaminosa e a valorização das tradições religiosas afro-
brasileiras entendidas como diabólicas. Logo, a inserção de uma imagem ou uma representação que
envolva símbolos e personagens da fé cristã só pode ser enxergada como um profundo desrespeito.
Seguindo esse raciocínio, as escolas de samba passaram a ser alvos de ataques de lideranças
conservadoras, culpadas por todo tipo de atraso verificado no país e até mesmo pela pandemia
mundial de Covid-19, que, em junho de 2021, já havia vitimado mais de 3,8 milhões de pessoas, 490
mil delas no Brasil3. Sendo assim, através do estudo de caso (cf. YIN, 2001), a pesquisa investiga
quais os argumentos e as imagens dos desfiles da Gaviões da Fiel (SP) de 2019 e da Estação Primeira

1
Doutoranda PPCIR (UFJF), rosileaarchanjo@yahoo.com.br.
2
Doutorando PPGCOM (UFJF), rafaelodr@yahoo.com.br.
3
Disponível em: encurtador.com.br/jxGKR. Acesso em: 18 jun. 2021.

438
de Mangueira (RJ) de 2020 foram utilizados por lideranças políticas e religiosas como argumento
para a culpabilização do carnaval como o causador da tragédia humana vivenciada pela pandemia.

Conservadorismo, carnaval e poder


Líderes religiosos ultratradicionalistas enfatizam a literalidade do texto bíblico e a força do
testemunho – visto como fato e não como interpretação – para assegurar a fidelidade àquilo que
entendem ser a vontade de Deus. É o caso dos grupos identificados como neopentecostalismo e
“catolicismo pentecostal” 4, para quem “[...] o descobrimento pessoal da Bíblia pelos convertidos dá-
lhes um sentido de superioridade absoluta” (COMBLIN, 1988, p. 45).
Por exemplo, encontramos o relato do pastor presbiteriano Antônio Junior: “Viveu uma
adolescência rebelde, mas teve um encontro com Deus que marcou a sua vida no ano de 2002, e desde
então, encoraja as pessoas com seus conselhos e experiências próprias [...]” (SOBRE, 2021). O pastor
afirma ainda que o carnaval traz ao indivíduo uma alegria passageira, tendo como consequência o
pecado para a vida inteira, onde “Deus fica de fora” (ANTÔNIO JÚNIOR, 2021),
Em que pese as crenças do pastor e de outras lideranças religiosas, deve-se problematizar a
construção desses discursos ideológicos que tentam se impor como uma verdade única e
inquestionável. Conforme o sociólogo Pierre Bourdieu (cf. 1989), a ideologia é um produto coletivo
e apropriado coletivamente, mas que serve a interesses particulares que tendem a apresentar como
interesses universais, comuns ao conjunto do grupo. Logo, ainda que creditada a um deus, a verdade
é deste mundo, sendo “produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos
regulamentados de poder”, não existindo fora do poder ou sem poder (FOUCAULT, 2020, p. 10).
Para Berger e Luckmann (2004, p. 106), “Historicamente, os papéis que representam
simbolicamente a ordem institucional total estiveram na maioria das vezes localizados em instituições
políticas e religiosas”, sendo, pois, imprescindíveis na percepção da realidade na vida cotidiana dos
indivíduos. Uma realidade que não precisa de prova ou reflexão, pois se impõe como tal na rotina
social. Eventualmente, condutas dissidentes desafiam essa realidade, colocando em questão seus
procedimentos operatórios cognoscitivos admitidos como certos (cf. BERGER; LUCKMANN,
2004). Nessa perspectiva, podemos compreender o carnaval como dissidência dentro das tradições
dos cristãos conservadores e do comportamento moral estabelecido pela sociedade. O projeto
domesticador do domínio colonial, que tem como modelo civilizatório as práticas do hemisfério norte
ocidental, legitimou as formas mais adequadas de se rezar, agir, vestir, trabalhar, etc. O carnaval se
mostra perigoso, aguçador de tensões, ao desafiar os mecanismos de controle dos corpos e das mentes,
oferecendo modelos culturais e de conduta que desafiam esses padrões (cf. SIMAS, 2020).

4
Tradicionalista e com ideias radicais, este grupo visa convocar os católicos a retornarem ao Espírito Santo.

439
“A conta chegou”: a responsabilização das escolas de samba pela pandemia
Já era manhã de domingo quando a Gaviões da Fiel iniciou a apresentação que encerrava os
desfiles do Grupo Especial de São Paulo em 2019. A escola apostou em uma reedição para aquele
ano: o samba-enredo A saliva do santo e o veneno da serpente, sobre a história do tabaco, foram
desenvolvidos originalmente para o carnaval de 1994. Devido ao sucesso naquele ano, o samba foi
reapresentado em 2019, ganhando uma releitura estética do carnavalesco Sidnei França.
A comissão de frente representou a lenda do surgimento do tabaco. A história conta que Santo
Antão, ao ser traído e picado por uma serpente que acolhera em sua casa, cuspiu o veneno no chão e,
daí, surgiu um pé de tabaco. Para transmitir essa mensagem, o grupo foi formado por um componente
fantasiado de Jesus, outro de diabo, seis seres do bem, seis seres do mal e um anjo, que defenderá
Jesus dos ataques do diabo (Figura 1). Acompanha a apresentação um tripé com uma grandiosa
escultura de Santo Antão. O duelo entre o bem e o mal é carregado por uma forte carga dramática e
uma maquiagem realista do protagonista e do antagonista, respectivamente, Jesus e o diabo. Ao fim
do embate, o bem vence, como explica o coreógrafo responsável, Edgar Júnior (2021):
O enredo mostra que o diabo perde a batalha para os anjos do bem diversas vezes. Depois
disso, ele coordena com as forças do mal e batalha com Jesus, que realmente sofre. Mas, no
final, os anjos protegem Jesus e ele aparece forte, abençoa a plateia, os anjos do bem e do
mal e até o diabo, porque ele é uma pessoa de luz. Acaba a guerra e ele fala com Santo Antão
como a dizer: ‘Não perca a sua fé, sempre vão testá-la, mas estou aqui contigo’.

Entretanto, imagens se alastraram pela internet mostrando cenas realistas e impactantes dos
instantes em que o personagem que representava o diabo maltratava Jesus, arrastando-o pelo chão da
avenida e atacando-o com o seu tridente. Deslocada da apresentação completa, a cena foi desvirtuada
de seu sentido original. Então, muitos fiéis a interpretaram como desrespeitosa por, supostamente,
mostrar a vitória do diabo sobre Jesus, tripudiado em cena aberta. A polêmica extrapolou o território
virtual, gerando críticas e notas de repúdio de deputados membros da bancada evangélica5 e de grupos
conservadores. Em uma ação na Justiça de São Paulo, a Liga Cristã Mundial solicitou o recebimento
de R$ 5 milhões, alegando danos morais por a escola ter, supostamente, debochado do sentimento
religioso dos cristãos. O pedido foi negado, pois a juíza Camila Rodrigues Borges de Azevedo alegou
que a agremiação tinha o direito de fazer o uso da liberdade de expressão artística6.

5
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/03/bancada-evangelica-acusa-gavioes-da-fiel-de-
intolerancia-religiosa-em-desfile.shtml. Acesso em: 27 mar. 2021.
6
Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/335469/desfile-da-gavioes-da-fiel-com-tema-religioso-nao-
ofende-a-fe-crista--entende-justica-de-sp. Acesso em: 27 mar. 2021.

440
Figura 1: Comissão de frente da Gaviões da Fiel (2019)
Figura 2: Alegoria O calvário, da Mangueira (2020)
Fontes: Marcelo Brandt/G1; Frame do vídeo. Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/8335948/programa/.

No ano posterior, a Estação Primeira de Mangueira (RJ) apresentou a vida de Jesus,


intercalando a representação clássica da narrativa cristã, semelhante à escrita bíblica, com uma licença
artística e poética do carnaval, negros, mulheres e LGBTQIA+), mais expostos a preconceitos, às
desigualdades sociais, às injustiças e às diversas formas de violência, ou, em uma alusão à trajetória
de Jesus, mais suscetíveis de serem “crucificados”. O samba sintetizou a mensagem do enredo:
Eu sou da estação primeira de Nazaré/ Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher/ Moleque
pelintra no Buraco Quente/ Meu nome é Jesus da gente/ [...] Eu tô que tô dependurado/ Em
cordéis e corcovados/ Mas será que todo povo entendeu o meu recado?/ Porque de novo
cravejaram o meu corpo/ Os profetas da intolerância/ [...] Favela, pega a visão/ Não tem
futuro sem partilha/ Nem messias de arma na mão/ [...] Mangueira samba, teu samba é uma
reza/ Pela força que ele tem/ Mangueira vão te inventar mil pecados/ Mas eu estou do seu
lado/ E do lado do samba também (grifo nosso) (CUÍCA; MÁXIMO, 2019).

Já no período pré-carnavalesco, o tema da Mangueira reforçou a aversão pentecostal ao


carnaval brasileiro. No embalo de ataques contundentes ao vídeo de especial de Natal promovido pelo
grupo de humor Porta dos Fundos, surgiram boatos de que o desfile da agremiação seria ainda mais
ofensivo com a fé cristã, pela ótica desses grupos conservadores 7. O samba-enredo foi considerado
pelos ultraconservadores como escárnio religioso, recebendo comentários críticos antes, durante e
após o desfile, mesmo que tenha sido aceito pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristã no Brasil
(Conic), que afirmou: “Visto a partir de uma perspectiva ampla, o samba-enredo e os carros alegóricos
da Mangueira não configuram ofensa para a fé cristã [...]” (SAMBA-ENREDO, 2021).
Diante da polêmica, Leandro Vieira convidou lideranças de diversas religiões ao barracão para
conhecerem o projeto que iria para a avenida. Dessa reunião, surgiu a ideia dessas autoridades
desfilarem perfilados à frente da escola, em ato simbólico que afirmava a aceitação pela interpretação
da vida de Jesus proposta pela Mangueira e contra à intolerância e aos ataques odiosos dos quais a

7
Disponível em: encurtador.com.br/lnJP3. Acesso em: 27 mar. 2021.

441
escola era vítima. Um deles foi o pastor Júlio Oliveira (2020, p. 30), que refletiu ao entrar na avenida:
“Esse espaço tido como profano, é um lugar de cuidado, de defesa e promoção da vida. [...] Esse é
um lugar sagrado. Porque para Deus, a vida é sagrada [...]”.
A atitude não impediu interpretações distorcidas e preconceituosas: pessoas influentes, como
o deputado federal Daniel Silveira8, consideraram que a agremiação havia comparado Jesus a um
bandido em uma alegoria (Figura 2), quando, na verdade, esta mostrava apenas uma versão de Cristo
à imagem e semelhança de um morador do morro da Mangueira: um jovem negro, com tatuagens,
bigode fino e cabelo pintado de loiro, com o corpo cravejado de balas – em uma crítica à violência
policial que atinge os moradores das periferias cariocas. Se valendo de uma visão estereotipada,
Silveira imediatamente relacionou o perfil físico representado na escultura com a de um bandido.
Outras dezenas de sites, blogs, canais no YouTube e perfis nas redes sociais criticaram com
veemência a apresentação da Mangueira. O deputado da bancada evangélica Rodrigo Delmasso
classificou os próprios responsáveis pelo enredo como “criminosos” e “bandidos”. Também
evangélico, o deputado federal Júlio César Ribeiro considerou a postura da agremiação “lamentável”.
Antes do carnaval, uma petição on-line tentava impedir a realização do desfile, considerando-o uma
blasfêmia. Nos textos das mídias conservadoras, o enredo foi interpretado como uma intenção de
confrontar os evangélicos, defender o marxismo e o socialismo, combater o bolsonarismo, banalizar
a crucificação, desvirtuar e debochar da imagem de Jesus. Afirmando que quem “lacra não lucra”,
atribuíram ao desenvolvimento do tema a derrota da escola, classificada em sexto lugar pelo
julgamento oficial, o que lhe deu o direito de voltar a desfilar no Desfile das Campeãs9.
O conflituoso histórico recente entre as escolas de samba e os grupos ultraconservadores
ganhou um novo capítulo durante a pandemia. Dessa vez, não pela realização de algum desfile, mas
devido à ausência deles. Vários memes se alastraram em 2020 nas redes sociais, se intensificando
com a proximidade do carnaval de 2021. A maioria deles contava com fotos de Jesus sendo violentado
pelo diabo, registrados na comissão de frente da Gaviões da Fiel de 2019. Em um deles (Figura 3), a
imagem contém erros de português (“Só pra vcs entender [sic] quem manda”), além de informar
equivocadamente o ano da encenação como sendo de 2020. Para completar a arte, que pode ser
considerada uma fake news, a imagem do sambódromo carioca vazio em 2021 representa as
consequências divinas pelo desrespeito à fé cristã. A exibição do sambódromo do Rio de Janeiro, e
não o de São Paulo – onde desfilou a Gaviões – mostra desconhecimento, ou pode ser interpretada

8
O político, filiado ao PSL e famoso por ter quebrado a placa em homenagem à Marielle Franco, foi preso em fevereiro
de 2021, após publicar um vídeo com apologia ao AI-5 e ataques a ministros do Supremo Tribunal Federal.
9
Informações disponíveis em: https://blogs.correiobraziliense.com.br/cbpoder/criminosos-e-bandidos-diz-deputado-
evangelico-sobre-desfile-da-mangueira/; https://pleno.news/entretenimento/cultura-e-lazer/peticao-online-repudia-
samba-enredo-da-mangueira.html; www.thiagorachid.com.br/debochar-de-jesus-cristo-tira-o-titulo-da-mangueira/;
encurtador.com.br/ryQR0. Acesso em: 30 mar. 2021.

442
como uma percepção conservadora de que todas as escolas de samba, independente da cidade ou do
ano, têm a natureza pecadora e são desrespeitosas com as suas crenças.

Figuras 3 e 4: Memes compartilhados na internet com imagens da comissão de frente da Gaviões da Fiel (2019).
Fontes: https://www.facebook.com/Assembleianosdevalor/posts/863460591059254/.
https://www.universal.org/bispo-macedo/post/a-conta-chegou/.

Na Figura 4, compartilhada por personalidades como o bispo e empresário Edir Macedo, a


frase de maior destaque sobre a foto é A conta chegou!. Embaixo, uma espécie de subtítulo informa:
“Sem Carnaval, escolas de samba fazem demissão em massa”. Em um período de crise sanitária e
econômica, com alta inflação e aumento do índice de desemprego, a demissão em massa dos
funcionários do carnaval é comemorado pelos conservadores. O meme indica que não apenas os
foliões são percebidos como pecadores, mas também os trabalhadores que constroem o espetáculo,
devendo todos ser punidos por confrontarem a narrativa cristã por eles defendida.

Considerações finais
Para os ultraconservadores o samba é uma ofensa. Não se admite, ainda mais no carnaval, que
Jesus possa participar de um evento pagão, nem mesmo que a vida dele seja contada nessa festa.
Assim, quando o Brasil anunciou o primeiro caso de Covid-19 na quarta-feira de cinzas de 2020, logo
a culpa pela disseminação da “peste” no país foi creditada ao carnaval, mesmo que as informações
reportassem a brasileiros recém-chegados da Europa. Posteriormente, em uma posição ainda mais
radical, as encenações de blasfêmia promovidas pelas escolas de samba foram tratadas como causa
principal pela doença que assolou o mundo.
Por mais que essa percepção soe absurda, ela obteve o coro de milhares de pessoas, que
compartilharam os memes e concordaram com as suas mensagens. Podemos supor que parte daqueles
que se identificaram com tal raciocínio o fizeram a partir de uma absoluta fidelidade ao pensamento
conservador religioso (em sintonia com o conservadorismo político), em alguns casos flertando com
o fundamentalismo. Porém, é possível que um outro segmento tenha se manifestado contra o carnaval

443
brasileiro menos por suas crenças e mais por interesses pessoais. Desde os desfiles de 2018, as escolas
de samba têm repercutido em seus enredos críticas a políticos de direita ou extrema-direita,
denunciando problemas sociais e reivindicando pelo fortalecimento da democracia. A representação
do Jesus da Gente, como proposto pela Mangueira, se insere nesse contexto de uma percepção crítica
e uma reação ao crescimento do ultraconservadorismo, tanto no campo religioso, como político.
Assim sendo, líderes conservadores e escolas de samba se colocaram em campos ideológicos
opostos. Logo, trata-se também de uma disputa de poder e pela consagração de seus discursos no
cenário cultural e nas percepções identitárias do país. Por essa perspectiva, o compartilhamento em
massa de memes que acusam o carnaval pela pandemia soa menos equivocado ou ingênuo. Ou seja,
ainda que muitos dos criadores e divulgadores dessas imagens tenham a plena consciência de que não
se justifica responsabilizar uma representação carnavalesca por uma tragédia global, eles utilizam
dessas imagens impactantes – retiradas de seu contexto original – para desqualificar a festa que
questiona seus dogmas, valores morais e – cabe repetir – interesses pessoais.

Referências Bibliográficas
ANTÔNIO JÚNIOR. Por que Deus não aprova o Carnaval?. Disponível em:
encurtador.com.br/gnprM. Acesso em 15 fev. 2021.
BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: Tratamento
de Sociologia do Conhecimento. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 2004.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S. A., 1989.
CUÍCA, Manu da; MÁXIMO, Luiz Carlos. A verdade vos fará livre. 2019. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=8p0qxZre1cE. Acesso em: 30 mar. 2021.
EDGAR JÚNIOR. ‘O bem vence no final’, diz coreógrafo da Gaviões da Fiel sobre desfile.
Veja. Matéria de Meire Kusomoto. Disponível em: encurtador.com.br/yRXZ8. Acesso em: 18 mar.
2021.
FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. Disponível em: encurtador.com.br/bdyK7.
Acesso em: 15 dez. 2020.
OLIVEIRA, Júlio. Caminhar junto: os significados e a importância de abrir o desfile da
Mangueira 2020. In: CABRAL, Pedro Caixeta (Org.): Caindo no samba com o Jesus da Gente:
olhares e perspectivas sobre o desfile da Mangueira em 2020.Cebi: São Leopoldo (RS), 2020.
SOBRE o pastor Antônio Júnior. Disponível em:
https://www.pastorantoniojunior.com.br/sobre-o-pastor/sobre-o-pastor-antonio-junior. Acesso em
14 fev. 2021.
SIMAS, Luiz Antonio. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2020.
VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

444
SER CATÓLICO NA INTERNET: REFLEXÕES SOBRE SER “IGREJA” A
PARTIR DE DOCUMENTOS ECLESIAIS1

Thiago Luiz de Sousa2


Luiza Vieira Godinho3

Resumo
Todo texto, como afirma Paul Ricoeur (1987), oferece ao seu leitor um mundo, um projeto de futuro, que é a sua
referência. Com os documentos episcopais, isso não acontece de maneira diferente, eles oferecem, entre outras coisas,
projetos de “igrejas”. Diante disso, nossa investigação pretende investigar os projetos oferecidos pelos documentos
eclesiais voltados para a igreja católica no Brasil e sua relação com a internet. Para isso, reconstruiremos algumas ideias
sobre as mídias presentes no Documento de Aparecida e no Documento 105 da CNBB e, após, analisaremos o Documento
99 da CNBB, que é voltado especificamente para a comunicação. O presente trabalho pretende contribuir com o GT,
apresentando uma reflexão sobre a tensão que existe entre o catolicismo e as mídias, em especial, a internet. Cremos que
os documentos eclesiais apontam para um projeto de igreja na internet e que tal “igreja” deve ser considerada no debate
contemporâneo sobre a influência (ou não) da igreja católica na internet, para que seja possível compreender o que é ser
católico na internet. Por fim, almejamos analisar alguns pontos de nossa reflexão que dialogam com a realidade atual da
igreja católica no Brasil e sua relação com a internet.
Palavras-chave: Catolicismo. Mídias. Internet. Documentos Eclesiais.

Em 1973, Paul Ricoeur deu uma série de palestras, sob o título O Discurso e o Excesso de
Significação, como parte da comemoração do centenário da Texas Christian University (KLEIN,
1987, p. VII). Alguns anos depois, em 1987, após o reconhecimento da importância dos textos
proferidos naquelas palestras, podemos encontrar esta série, traduzida para o português, sob um novo
título Teoria da Interpretação: O Discurso e o Excesso de Significação. Podemos notar nisso duas
coisas: (i) o título original, O Discurso e o Excesso de Significação, agora é apresentado enquanto
subtítulo; (ii) o novo título, Teoria da Interpretação, busca deixar claro o quanto aquele conjunto de
textos é importante, tanto para hermenêutica filosófica em seu sentido geral, quanto para
hermenêutica filosófica do próprio Ricoeur.
Dentre as diversas coisas trabalhadas em Teoria da Interpretação, uma de suas conclusões
finais nos chama a atenção e se faz muito importante para o presente trabalho, que está presente no
seguinte argumento: “Se referência do texto é o projeto de um mundo, então não é o leitor que
primeiro se projeta a si mesmo. O leitor é antes alargado na sua capacidade de autoprojeção, ao
receber do próprio texto um novo modo de ser” (RICOEUR, 1987, p. 132). Com essas palavras,
podemos ver a defesa de que o leitor encontra no texto um projeto de mundo, que oferece um novo
modo de ser. Por consequência, podemos dizer que os documentos eclesiais apresentam um projeto

1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil
(CAPES) - Código de Financiamento 001.
2
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail:
thiago-luiz-sousa@hotmail.com
3
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-
mail: luizaviig@gmail.com

445
de mundo, um novo modo de ser. No caso dos documentos eclesiais, um projeto ou modo de ser
sempre se faz presente e é atualizado a cada documento publicado, aquele que diz respeito ao que é
ser igreja católica, uma vez que isso se faz subjacente a todas as temáticas trabalhadas, desde os
projetos morais até os pastorais. Sendo assim, podemos afirmar: cada documento eclesial, ao seu
modo, diz o que é ser igreja.
O objetivo principal do presente trabalho é analisar o Diretório de Comunicação da Igreja no
Brasil (Documento 99), ou seja, pretendemos avaliar como este documento responde à questão o que
é ser igreja na internet? e que horizonte nos é oferecido a partir disso. Para isso, em um primeiro
momento, apresentaremos brevemente como alguns documentos eclesiais apareceram em nossas
pesquisas e como fomos conduzidos até o Documento 99. Em um segundo momento, avaliaremos, a
partir de alguns trechos, o projeto de igreja que tal documento oferece e o debate que a identidade da
igreja pensada a partir de tal atmosfera traz.

Os Documentos Eclesiais em nossas pesquisas


No ano passado, em 2020, com a colaboração de Victória Alves Junqueira, escrevemos e
apresentamos dois trabalhos que são gérmens do presente trabalho. O primeiro, Vozes da Igreja
Católica na Internet: Ser Leiga, Mulher e Modesta, se deu no contexto do Simpósio Internacional de
Estudos do Catolicismo, organizado pelo Núcleo de Estudos do Catolicismo (NEC) do Programa de
Pós-Graduação em Ciência da Religião (PPCIR) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF),
onde nosso objetivo principal era analisar como as mulheres, leigas e modestas, que estão presentes
na internet, respondem, aos seus modos, à questão: o que é ser igreja? O segundo, A modéstia
feminina católica na internet: um novo velho modo de ser mulher no mundo se deu no contexto do
44º Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
(ANPOCS), onde nosso objetivo principal era investigar essas mesmas mulheres, católicas, leigas e
modestas, presentes na internet, enquanto uma experiência de contestação à diversidade de gênero e
sexual. Em ambos os trabalhos, para podermos analisar como essas mulheres se reconhecem enquanto
igreja católica, tivemos que recorrer aos projetos de mundos presentes em alguns documentos
eclesiais.
Em Vozes da Igreja Católica na Internet: Ser Leiga, Mulher e Modesta, se deu no contexto
do Simpósio Internacional de Estudos do Catolicismo, fizemos o seguinte itinerário: primeiro, a partir
do subsídio Sou Católico: Vivo a minha Fé (2007) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), afirmamos o quanto a igreja católica assume que é impossível dar uma resposta definitiva
à questão o que é ser católico. Segundo o subsídio, “[a] Igreja é uma realidade tão rica que não cabe
nos limites de uma definição. Por isso dizemos que a Igreja é um Mistério” (CNBB, 2007, p. 33).

446
Diante disso, em segundo lugar, analisamos como o Documento de Aparecida (2007), do Conselho
Episcopal Latino-Americano (CELAM), dá pistas de um projeto de uma igreja que é missionária e
tem os leigos enquanto protagonistas. Segundo este documento, "[os] melhores esforços das
paróquias neste início do terceiro milênio devem estar na convocação e na formação de leigos
missionários” (CELAM, 2007, p. 88). Por fim, em terceiro lugar, mostramos como a igreja católica
do Brasil, através do documento Cristãos Leigos e Leigas na Igreja e na Sociedade (Documento 105)
(2017), aprofunda aquilo que já estava presente no Documento de Aparecida, quando afirmam:
Urge abrir espaços de participação, estimular a missão, refletir sobre avanços e retrocessos,
para fazer crescer a participação e o protagonismo dos leigos na corresponsabilidade e na
comunhão de todo o povo de Deus. [...] Nós, bispos, como toda a Igreja de Cristo, somos
devedores a estes e estas [leigos e leigas], que carregam a Igreja no coração e nos ombros e
fazem acontecer o Reino com suas mãos e seus pés (CNBB, 2017, p. 16).

Com isso, podemos dizer que ser igreja católica é, entre outras coisas, tanto missionária quanto
uma religião que reconhece cada vez mais o protagonismo do leigo. As mulheres, que eram objeto de
nossos estudos, se inserem neste contexto e invocam a virtude da modéstia, que fez com que em A
modéstia feminina católica na internet: um novo velho modo de ser mulher no mundo analisasse o
projeto de outro documento, o Catecismo da Igreja Católica (CIC) (2000), uma vez que lá é possível
encontrar uma reflexão sobre tal virtude, como mostra Jaqueline Sant’ana Martins dos Santos (2019,
p. 3) em um de seus trabalhos. Ora, se o nosso objetivo aqui é aprofundar como os documentos
eclesiais respondem o que é ser igreja na internet, outro trabalho que tivemos contato nos aponta para
outro documento. Trata-se de As mídias sociais e os desafios da evangelização, escrito por Renan
Paloschi Zanandréa, Edimar Scopel e Rene Antonio Zanandréa (2021, p. 481), onde destaca o
Documento 99, o Diretório da Comunicação da Igreja no Brasil, como uma importante fonte na
investigação sobre a relação entre mídias sociais e a igreja católica.

O horizonte do Diretório de Comunicação da Igreja no Brasil


Dentre as novidades que o Diretório de Comunicação da Igreja no Brasil traz, destaca-se,
para o nosso trabalho, o reconhecimento das redes digitais enquanto criadoras de uma nova realidade
e a valorização destes meios pela igreja, incentivando que seus membros, em especial os leigos, cada
vez mais estejam presentes na internet. Assim os bispos afirmam:
A sociedade da informação e as redes digitais desenvolvem uma nova forma de vida
comunitária. As pessoas estabelecem nas redes sociais digitais laços de proximidade além do
espaço geográfico e criam relacionamentos sem proximidade física. Elas têm alterado o modo
de as pessoas se comunicarem, e as comunidades que nelas surgem atraem e envolvem
milhões de pessoas diariamente. Ante essa nova realidade, a Igreja valoriza as lideranças
leigas que se colocam à disposição para o fortalecimento das comunidades presenciais ou em
redes digitais (CNBB, 2014, p. 103).

447
Como podemos notar, as redes digitais são vistas enquanto uma realidade para os sujeitos
possam ser igreja e fortaleçam suas comunidades, sejam elas presenciais ou digitais. Porém, como
aponta Camurça (2007), a relação entre mídia e religião deve ser vista enquanto uma “via de duas
mãos”, onde, por um lado, o religioso, de certa forma, se transforma em entretenimento e, por outro
lado, o entretenimento se transforma com os aspectos religiosos. Diante disso, os bispos reconhecem
a tentação da missa se transformar em uma espécie de entretenimento no mundo digital e deixa clara
sua posição diante desta possibilidade, a missa, em nenhum contexto, deve se transformar em show:
Em nenhuma circunstância e sob nenhum pretexto, a celebração da missa, na forma
presencial ou mediante a transmissão ao vivo por meios eletrônicos, pode converter-se em
espetáculo ou mesmo apresentar-se como marketing ou performance artística do ministro
que a preside ou proclama a Palavra, bem como dos músicos cantores ou de outros
envolvidos. Esperam-se de todos atitudes e sentimentos do Cristo Servo, que, observando as
normas litúrgicas, facilitem a participação da comunidade (CNBB, 2014, p. 78).

Neste sentido, o projeto que este documento apresenta é de uma igreja que possui uma única
via nas redes digitais, onde a religiosidade não sucumbe ao entretenimento, mas o converte. A igreja
se faz presente na internet através de sujeitos que se reconhecem enquanto sujeitos eclesiais, sujeitos
que são, antes de qualquer coisa, igreja e apresentam seu estilo, sua opinião, seus conteúdos de
entretenimento, entre outras coisas, tendo como base a tradição religiosa que ele está inserido. Por
isso, os bispos descrevem quem é o comunicador católico da seguinte maneira:
O comunicador católico adota um estilo pessoal e institucional no exercício do seu ministério.
Por isso, ao comunicar, ele não só transmite a sua vida mas também testemunha o que a Igreja
precisa oferecer, dentro do contexto mundial e local. A centralidade da pessoa faz com que
todos na comunicação eclesial - ministros ordenados, religiosos e leigos - exerçam o direito
originário de expressar livremente as próprias ideias, com atitudes construtivas, com
franqueza, mas também com a precaução de evitar comportamentos e intervenções públicas
que prejudiquem a verdade, a comunhão e a unidade do corpo eclesial (CNBB, 2014, p. 22).

Deste modo, podemos dizer que a definição de igreja que está subjacente a este documento,
através da oferta de um projeto, é a de uma religião que, diferente de outros tempos, onde buscava
proibir que seus fiéis consumissem determinado conteúdo (CNBB, 2014, p. 172), se propõe a confiar
mais em seus membros, em especial, nos leigos. Sendo assim, o Diretório antecipa o Documento 105,
onde os leigos são reconhecidos enquanto protagonistas da igreja católica no dia de hoje, e, ao mesmo
tempo, aprofunda o Documento de Aparecida, com o projeto de uma igreja missionária, que cada vez
mais vai ao encontro do outro. Neste sentido, as mídias digitais, em especial a internet, são
reconhecidas, entre outras coisas, enquanto os novos areópagos, onde a igreja católica envia seus
representantes para transformá-las. Nas palavras dos bispos, “[é] imprescindível que a Igreja se faça
presente nos areópagos e crie espaços de encontro e diálogo em vista da evangelização” (CNBB,
2014, p. 105) Ou seja, assim como Anchieta chegou outrora em nosso país, os católicos devem se
inserir na internet. O novo modo de ser igreja se aproxima do velho. Porém, os protagonistas serão
outros, os leigos. Será que ser igreja na internet é, de fato, um velho novo modo de ser igreja? Os

448
documentos eclesiais caminham em direção de uma resposta positiva. Aguardemos e avaliemos as
respostas de seus leitores, que são responsáveis por construir a história.

Referências Bibliográficas
BENTO XVI. Discurso (13 de maio de 2017). In: CELAM. Documento de Aparecida: Texto
conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. 2a. ed. Brasília;
São Paulo: Edições CNBB; Paulus; Paulinas, 2007.
CAMURÇA, M. “Um tradicionalismo na linguagem virtual? o catolicismo carismático
midiático”. Trabalho apresentado na 32º Congresso da ANPOCS, p. 1-15, 2007.
CELAM. Documento de Aparecida: Texto conclusivo da V Conferência Geral do
Episcopado Latino-Americano e do Caribe. 2a. ed. Brasília; São Paulo: Edições CNBB; Paulus;
Paulinas, 2007.
CNBB. Diretório de Comunicação da Igreja no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2014.
Documentos da CNBB (99).
______. Cristãos Leigos e Leigas na Igreja e na Sociedade. São Paulo: Paulinas, 2017.
Documentos da CNBB (105).
GODINHO, Luiza Vieira; SOUSA, Thiago Luiz de; JUNQUEIRA, Victória Alves. A
modéstia feminina católica na internet: um novo velho modo de ser mulher no mundo. In. ANPOCS
(Org.). Anais do 44º Encontro Anual da ANPOCS. Online: SPG24 - Gênero, sexualidade e família:
políticas, moralidades e direitos em disputa, 2020. Disponível em:
https://www.anpocs.com/index.php/encontros/papers/44-encontro-anual-da-anpocs/spg-7/spg24-5
JOÃO PAULO II. Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
KLEIN, Ted. Prefácio. In. RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação: O Discurso e o
Excesso de Significação. Tradução de Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, p. VI-VII, 1987.
RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação: O Discurso e o Excesso de Significação.
Tradução de Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1987.
SANTOS, Jaqueline Sant’ana Martins dos. “Modéstia Cristã no Vestir”: Agência e
Autonomia Feminina em Contextos Tradicionais. 19º Congresso Brasileiro de Sociologia, 2019.
Disponível em:
http://www.sbs2019.sbsociologia.com.br/arquivo/downloadpublic?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI
7czozNToiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjQ6IjE3NTAiO30iO3M6MToiaCI7czozMjo
iYzU3ZTViOTI1YWFhZmI0YTQxYTJlNTg4MTAwOGZmMDciO30%3D
SOUSA, Thiago Luiz de; GODINHO, Luiza Vieira; JUNQUEIRA, Victória Alves. Vozes Da
Igreja Católica Na Internet: Ser Leiga, Mulher e Modesta In. Núcleo de Estudos do Catolicismo
PPCIR/UFJF (Org.). Anais Do Simpósio Internacional Estudos Do Catolicismo. Juiz de Fora:
Resistência Acadêmica, p. 490-500, 2021. Disponível em: https://f1acd0fc-9f5b-45d7-8fe6-
c54f6ffc8a64.filesusr.com/ugd/4c5e85_b294ede821984d9b9194e48b1b75b32a.pdf
ZANANDRÉA, Renan Paloschi; SCOPEL, Edimar; ZANANDRÉA, Rene Antonio. In.
Núcleo de Estudos do Catolicismo PPCIR/UFJF (Org.). As mídias sociais e os desafios da
evangelização. In. Anais Do Simpósio Internacional Estudos Do Catolicismo. Juiz de Fora:
Resistência Acadêmica, p. 478-490, 2021. Disponível em: https://f1acd0fc-9f5b-45d7-8fe6-
c54f6ffc8a64.filesusr.com/ugd/4c5e85_b294ede821984d9b9194e48b1b75b32a.pdf

449
Coordenação
Zuleica Dantas Pereira (UNICAP)
zuleicape@hotmail.com
Raquel Tureti Scotton (UFJF)
raquel.turetti@hotmail.com
Siloeh Cerqueira Lopes Piermatei (UFJF)
siloehc@yahoo.com.br

Ementa
O presente Grupo de Trabalho tem como intuito ampliar o debate acerca das narrativas,
mediações e vivências encontradas nas mais diversas religiosidades afro-brasileiras e espiritualidades
ameríndias localizadas no Brasil. As religiosidades afro-brasileiras são reconhecidas através dos
Candomblés, Umbandas, Juremas, Tambor de Minas, Batuques, Congadas, entre outras. Tanto as
espiritualidades ameríndias quanto as religiosidades afro-brasileiras são alvos de estigmas, racismos,
ataques e opressões por parte do sistema hegemônico vigente. Por essa razão, visamos reunir
trabalhos que abordem cosmologias e saberes dos povos tradicionais indígenas e de terreiro e debater
questões latentes na sociedade envolvendo temas como liberdade religiosa, identidade, arte, mídia e
educação, por meio de epistemologias pós e decoloniais e multidisciplinares, com ênfase na área da(s)
Ciência(s) da(s) Religião(ões). O GT contempla, ainda, pesquisas que abordem espiritualidades
indígenas encontradas na América Latina e religiosidades de matriz africana identificadas em
diferentes contextos afro diaspóricos.
Palavras-Chave: Espiritualidades ameríndias. Religiosidade afro-brasileira.

450
EWÉ ỌSANYIN: O SENHOR DAS FOLHAS MEDICINAIS E LITÚRGICAS

Vinicius Vasconcelos Castro1


Severino Alexandre Alves Filho2
Resumo
Pretendemos analisar as características culturais e representações que definem o Orixá Ọsanyin, articulando
possíveis leituras dos elementos que compõem a divindade: os signos e símbolos. Faremos uma breve leitura da mitologia
yorubá sobre a divindade Ọsanyin, a partir da obra de Pierre Fatumbi Verger: Notas sobre o Culto aos Orixás e Voduns
na Bahia de todos os Santos, no Brasil, e na Antiga Costa dos Escravos, Na África. Além do mais, analisaremos a
influência das folhas para as operações da adivinhação e para as práticas de curas correlacionadas ao Orixá Ọsanyin,
sendo que tais práticas de cura sofreram no Brasil intensa perseguição. A medicina popular faz parte de um conjunto
maior de saberes e conhecimentos afro-ameríndios que foram considerados inferiores pelo cientificismo europeu.
Trabalharemos a partir de uma abordagem do hibridismo afro-ameríndio e do conceito de hibridação cultural vistos como
resultado de um multiculturalismo presente na sociedade brasileira, questionando os termos pejorativos e preconceituosos
com relação à religiosidade e a farmacopéia de matriz afro-ameríndio. Assim, este breve texto evidencia as
particularidades e articulações das relações étnico-raciais na dinâmica de um contexto multicultural, colaborando
afirmativamente para a conscientização das demandas sociais por respeito ao outro (o diferente) e a tolerância religiosa.
Palavras-chaves: Ọsanyin, Orixá, Símbolos, Sagrado.

Introdução
Este artigo se propõe analisar as características culturais e representações que definem o Orixá
Ọsanyin, articulando possíveis leituras dos elementos que compõem a divindade: os signos e
símbolos. A fonte desta pesquisa será basicamente os mitos pesquisados e selecionados pelo fotógrafo
Pierre Verger que publicou em 1957 pelo instituto Francês da África Negra, em Dacar, Senegal, a
obra Notas sobre o Culto aos Orixás e Voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na Antiga
Costa dos Escravos, na África. Resultado de uma pesquisa onde se procurou registrar as cerimônias
religiosas, de caráter iniciático, tanto em terras do continente africano quanto no estado brasileiro da
Bahia, entre elas o ritual do Bò Orí, realizado em um templo de Salvador, visto como uma primeira
iniciação à religião dos orixás e uma feitura de yàwó, que presenciou no sul do Daomé e que
descreveu em todas as etapas.
Das possíveis leituras que podemos fazer no trabalho de Verger, deduzimos que não existe
um único aspecto da cultura religiosa afro-brasileira que não interessou este autor. Em contato com
os babalaôs da Nigéria, os “pais dos segredos”, surge uma extensíssima investigação sobre as plantas
utilizadas na farmacopéia Iorubá e para que tipo de trabalho medicinal ou mágico seja empregadas.
Foi na África que Verger viveu o seu renascimento, recebendo o nome de Fatumbi, “nascido de novo
graças ao Ifá”, em 1953. Além da iniciação religiosa, Verger começou nessa mesma época um novo
ofício, o de pesquisador. O Instituto Francês da África Negra (IFAN) não se contentou com os dois

1
Especialista em Educação para as Relações Étnico-raciais na Universidade Federal de Campina Grande – UFCG. E-
mail vinniciusvasconcelos@hotmail.com
2
Bacharel em Arte e Mídia pela Universidade Federal de Campina Grane – UFCG. E-mail
alexandrealves.94@hotmail.com

451
mil negativos apresentados como resultados da sua pesquisa fotográfica e solicitou que ele escrevesse
sobre o que tinha visto. A contragosto, Pierre Verger obedeceu. Depois, acabou encontrando-se com
o universo da pesquisa e não parou mais.
Em seus últimos anos de vida, a grande preocupação de Verger passou a disponibilizar as suas
pesquisas a um número de pessoas e garantir a sobrevivência do seu acervo. Na década de 1980, a
Editora Corrupio cuidou das primeiras publicações no Brasil. Em 1988, Verger criou a Fundação
Pierre Verger (FPV), da qual era doador, mantedor e presidente, assumindo assim a transformação da
sua casa num centro de pesquisa. Em fevereiro de 1996, Verger faleceu, deixando à FPV a tarefa de
prosseguir com o seu trabalho.

Ewé o! Salve as folhas sagradas


Verger (1990) nos narra que cada Orixá tem uma “personalidade mítica” que é atribuído aos
seus descendentes, e segundo este autor, é através de mitos que as religiões de matriz africana
fornecem padrões de comportamento que modelam, reforçam e legitimam o comportamento dos fiéis.
Para Prandi (1991), os seguidores do candomblé podem simplesmente se apropriar dos atributos do
seu Orixá como se fossem os seus e tentar aproximar a sua identidade à do/a Orixá ou reconhecer
através dos atributos das divindades as bases que legitimam suas condutas no jogo de construção das
identidades. Prandi (1991) salienta que no candomblé, cada pessoa pertence a um deus/Orixá
determinado, que é o senhor ao qual rege a sua cabeça e mente. Assim o sujeito herda as características
físicas e de personalidade pertencente ao seu Orixá de cabeça, esta ritualística religiosa é de
responsabilidade do pai ou a mãe-de-santo que descobre esta origem mítica através do jogo de búzios,
sendo de fundamental importância para o processo de iniciação dos devotos do terreiro e a para se
fazer futuras previsões.
Durand (2002) enfatiza que o mito é um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e
esquemas que tende a compor-se em narrativas. O mito é já um esboço de racionalização, dado que
utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se revelam em palavras e os arquétipos em ideais. A
mitologia de matriz africana assim como afirma Verger (1999), tem certo “tom” educativo para com
os devotos e suas relações com a natureza, entretanto a tradição oral da narrativa do mito tem como
características a compreensão dos homens e mulheres, e suas aproximações ao divino e os elementos
que compõem a sua realidade social.
Segundo Verger (1999), Ọsanyin é a entidade das folhas medicinais e litúrgicas. Sua
importância é primordial. Nenhuma cerimônia pode ser realizada sem sua autorização. É o detentor
do aṣẹ (força, poder e vitalidade), de que nem mesmo os deuses podem privar-se. Esse aṣẹ encontra-

452
se em algumas folhas e em algumas ervas. O nome dessas folhas e seu emprego é a parte mais secreta
do ritual do culto aos Orixás.
O símbolo de Ọsanyin é representado por uma haste de ferro, cuja na extremidade superior
parte sete pontas dirigidas para o alto, como as varetas de um guarda-chuva virado pelo avesso. Na
vareta do centro encontramos na sua haste a imagem de um pássaro. Carneiro (2002) enfatiza que, os
deuses são representados por objetos inanimados e que sob a influência do catolicismo popular, os
deuses fazem-se uma representação pela sua simbologia - Ọsanyin, pela representação da sua
ferramenta.
Segundo Chevalier & Gheerbrant (2007) o vôo do pássaro os predispõe, é claro, a servir de
símbolos às relações entre o céu e a terra. Em grego, a própria palavra foi sinônimo de presságio e de
mensagem do céu. “O pássaro opõe-se à serpente, como o símbolo do mundo celeste ao do mundo
terrestre” (CHERVALIER & CHEERBRANT, 2007, p. 687). Em relação aos símbolos, Eliade (2002)
enfatiza que os mesmos não é exclusividade das crianças, pois o símbolo é unido ao ser humano,
assim precede a linguagem e a razão do discurso, revelando certo aspecto da realidade. Assim, o
estudo do simbólico pode-se “permitir-nos conhecer melhor o homem, (o homem sem mais), aquele
que ainda não transigiu com as condições da história” (ELIADE, 2002, p. 13).
Além do mais, Verger (1999), ressalta que Ọsanyin é o companheiro constante de Ifá. Que é
representado por uma sineta de ferro forjado, terminada por uma haste pontuda enfiada em uma
grande semente. A haste é fincada no chão, ao lado do òsùn (o asen dos fon) do babalawo. Assim,
por sua presença Ọsanyin traz a influência das folhas para as operações da adivinhação.
Assim, verificamos que as folhas desempenham um papel importante na farmacopéia africana.
O entendimento que os Yorubas têm das virtudes benéficas das plantas é por demais (des) conhecidos.
Entretanto, Verger (1999), ressalta que cada divindade tem suas folhas particulares. Contudo, o
emprego de uma folha contra-indiciada poderia apresentar efeitos nefastos, e, assim a colheita das
folhas é feita com extremo cuidado, ocorrendo sempre em lugar selvagem, mato (ta) ou floresta, onde
as plantas crescem livremente, pois as plantas cultivadas nos jardins não devem ser utilizadas, pois,
Ọsanyin vive na floresta.
Entretanto, Berkenbrock (2012), nos dar outras referências sobre o Orixá Ọsanyin, divindade
da vegetação, das folhas, das ervas e especialmente do Axé por elas contidas. Todos os preparos de
ervas estão sob a proteção de Ọsanyin. Ainda, segundo este autor, os banhos de purificação são partes
obrigatórias do tempo de iniciação, sendo feitos com a mistura de diversas ervas que podem ajudar o
individuo a entrar em transe. As ervas podem liberar diversos Axés na vida de um iniciado. Ọsanyin
vive no mato e sua cor é o verde. A parte “floresta” do terreiro é seu domínio. Ele é um Orixá cultuado

453
ao ar livre. Assim, as plantas e seus efeitos estão à disposição de todas as pessoas. Através de ervas,
ele pode vingar-se, como trazer sorte, saúde, amor e fecundidade.
Além do mais, os encarregados de ir recolher as folhas devem fazê-lo em estado de pureza,
abstendo-se de relações sexuais na noite anterior, tendo que ir à floresta pela manhã, bem cedo, sem
dirigir palavras a quem quer que seja, tomando o cuidado de deixar uma oferenda de dinheiro no
chão, tão logo cheguem lá. Para Farelli (2002), nos candomblés quem colhe as ervas é o “Mão-de-
Ofã”, que antes de entrar na mata saúda o Orixá Ọsanyin e lhe oferece um cachimbo de barro, mel,
aguardente e moedas. Ainda segundo está autora, “o sacerdote que se dedica às folhas, nos cultos da
nação, é o babalossaim, e ele usa seus dotes para a cura, para a preparação de amacis e na feitura do
Santo” (FARELLI, 2002, p. 12).
Segundo, Verger (1999) há folha da fortuna, da felicidade, glória, fecundidade, alegria, sorte,
frescor, brandura, paz, longevidade, coragem, das roupas, do corpo e dos pés, existindo também a
folha da miséria, das conversas indiscretas e outras ainda mais temíveis. Sob a forma de infusão, as
folhas fazem parte dos banhos de purificação ou, mais exatamente, dos banhos destinados a
estabelecer laço mágico entre a divindade, certos objetos que lhe são consagrados e os fiéis. Sobre as
folhas na localidade de Cuba:
“[...] Osain recebeu o segredo de Ewe. O conhecimento de suas virtudes. As ervas eram
exclusivamente suas e ele não as dava a ninguém, até o dia em que Changó, queixando-se a
sua mulher Oyá, dona dos Ventos, de que somente Osain conhecia o mistério e cada ewe e
de que os demais orishas estavam no mundo sem possuir uma única planta, esta abriu as
saias, agitou-as impetuosamente, formando redemoinhos e – fé fé – um vento fortíssimo
começou a soprar. Osain guardava os segredos de Ewe em uma cabaça de pendurada em uma
árvore e ao notar que o vento a desprendera e a quebrara, e que as ervas se dispersavam,
cantou: “Eé egguero, egguero, sáué éreo” e não pôde impedir que todos os orishas se
apoderassem delas e as repartissem entre si. Eles lhes deram nomes e comunicaram uma
virtude a cada uma das folhas [...] cada santo possui suas folhas na mata.” (VERGER, 1999,
p. 228)

Albuquerque Júnior (2013) considera o mito como um conceito a força motriz, sendo
intencional e historicamente motivado, o mito implanta toda uma nova significação para os sentidos
que foram esvaziados e transformados em significantes. Assim, contribui para que o conceito termine
por vir a ocupar o lugar do próprio significante. O mito é uma significação que se dá a partir de uma
forma já conceituada, já significada, assim, ele é um discurso que desloca o sentido da primeira
significação. Sendo que a principal atividade do discurso mítico é a deformação, o deslocamento de
lugar do sentido primeiro atribuída a uma dada forma.
Os caçadores e seu deus Oṣosi têm uma ligação freqüente com Ọsanyin devido a sua contínua
presença na floresta. Em Kétou, o guardião de Oṣosi é um Ọlọsanyin (sacerdote de Ọsanyin).
VERGER (1999) ressalta que durante as cerimônias de consagração de um noviço a uma divindade
o emprego das folhas é fundamental, sendo que estas folhas servem de elaboração do aṣẹ da

454
divindade, recebendo assim um acréscimo de forças que cria um primeiro laço de interdependência
entre o futuro adoṣu e seu Oriṣa. Ainda segundo este autor, a trituração das folhas, destinadas aos
banhos (omiero) são feitas com o mesmo cuidado que presidiram suas coletas. Assim os cânticos que
celebram as virtudes e os poderes de cada folha são entoados pelos oficiantes que, em sinal de
respeito, se apresentam nus da cintura para cima e descalços, como se estivessem na presença de um
rei.
O padre Baudin (apud VERGER, 1999), descreve uma entrevista com um Ọlọsanyin
(sacerdote):
“Vi certo dia um velho feiticeiro que se dizia discípulo de Arọni. Mostrou-me um diploma,
um pêlo espesso que vinha do lombo de um porco-do-mato. Dizia-se instruído em todo tipo
de remédios e queria curar-se da febre para sempre, garantindo que, daí por diante, eu seria
forte como o pau-ferro e que viveria até a idade mais vetusta, como um velho tronco de árvore
coberto de musgo. O maroto não pedia caro: apenas dois sacos de búzios para a sua
alimentação, durante as duas semanas que precisaria passar na floresta a fim de obter todas
as raízes e cascas necessárias para lignificar-me, mais um saco de búzios para adquirir um
pote preto e novo, um carneiro para consagrar o pote, através de um sacrifício solene e enfim,
naturalmente, uma garrafa de rum para dar-lhe a força de pular diante do pote, durante a
maceração misteriosa. Dispensei o espertalhão com suas promessas, sua medicina e seu
diploma, aconselhando-o a que fizesse um remédio que rejuvenescesse sua velha pele
enrugada. Ele foi embora rindo com escárnio.” (VERGER, 1999, p. 229)

Assim temos uma definição de Arọni, por Ellis (apud VERGER, 1999), considerando o Arọni
o deus da floresta (conhecendo a medicina tão bem quanto Oṣanyin) e o seu nome significa “Aquele
que tem os membros estropiados” (VERGER, 1999, p. 229 - 230). Sendo representado de forma
humana com uma perna só, a cabeça de um cachorro e uma cauda de cachorro. Segundo Verger
(1999), Arọni devora aqueles que entram na floresta e tentam fugir, mas se um andarilho o enfrenta
corajosamente e não demonstra medo, ele o leva para os recantos afastados da floresta, onde mora, e
o conserva junto de si por dois ou três meses, onde lhe ensina como usar as plantas medicinais. Assim,
quando o discípulo aprende o uso das plantas medicinais, ele o manda embora lhe dá um pêlo de sua
cauda como prova aos incrédulos que foi realmente iniciado.
Contudo, segundo Verger (1999), os redemoinhos de vento que fazem as folhas mortas voar
são considerados manifestações de Arọni. A. K. Ajisafe (apud VERGER, 1999), salienta que esses
redemoinhos de vento recebem o nome de Aja:
“Dizem que um redemoinhos de vento, Ajá, leva os homens para a floresta por um ano ou
mais. Durante esse período, o homem assim levado é alimentado por um ser sobrenatural e
aprende com ele a arte de fazer talismãs. Ao terminar, o homem encontra-se em sua casa sem
saber onde esteve e como voltou. Esse homem é tratado com temor reverencial e respeito e
dão-lhe um título muito elevado entre os Ọlọsanyin, mas um caso como esse é muito raro.”
(VERGER, 1999. p. 230)

Lydia Cabrera (apud VERGER, 1999), nos diz que em Cuba, os adeptos da regra lucumi
(Nagô, Yoruba), o adivinho, dono das ervas e da mata, é Osain, sendo que o mesmo é catalisado sob
o nome de Santo Antônio Abade e São Silvestre. Para outros devotos, “é São Raimundo Nonato,

455
porque Osain é um Orissa que não tem pai nem mãe. A mesma afirma que Osain apareceu, não
nasceu. Saído da terra. Igual a erva, não é filho de ninguém.” (VERGER, 1999, p. 230). Assim, está
autora, argumenta que Osain é caçador como o deus Oṣosi. Tendo apenas um braço, utilizando o arco,
a flecha e a espingarda correndo rapidamente com apenas um pé.
O padre Frobenius (apud VERGER, 1999), indica Ọsanyin não é um Orixá, mas é aquilo que
vivifica fazendo acontecer coisas maravilhosas. Verger (1990), nos dar outra indicação sobre
Ọsanyin, as pessoas dedicadas a esta divindade, usam colares de contas verdes e brancas. O sábado é
o dia consagrado a ele e as oferendas que lhe são feitas compõem-se de bode, galos e pombos. Seus
iaôs (Filhos/as) contrário daqueles de África, entram em transe, mas nem sempre possuem
conhecimento profundo sobre as virtudes das plantas. Segundo Chevalier & Gheerbrant (2007), a cor
verde é a cor do reino vegetal se reafirmando, o verde é o despertar das águas primordiais, o verde é
o despertar da vida. Ainda segundo estes autores a cor branco tem “como o símbolo de um mundo
onde toda a cor, em sua qualidade de propriedade de substâncias materiais, se tenha desvanecido”
(CHERVALIER, & GHEERBRANT, 2007, p. 141 - 144). Assim para Chevalier & Gheerbrant (2007)
o branco, produz sobre nossa alma o efeito do silêncio absoluto, sendo que esse silêncio não está
morto, pois transborda de possibilidades vivas.
Além do mais, Verger (1990), salienta que os arquétipos de Ọsanyin é o das pessoas de caráter
equilibrado, capazes de controlar seus sentimentos e emoções. É o arquétipo dos indivíduos cuja
extraordinária reserva de energia criadora e resistência passiva ajuda-os a atingir os objetivos que
fixaram. Daqueles que não tem uma concepção estreita e um sentido convencional da moral e da
justiça. Enfim, daquelas pessoas cujos julgamentos sobre “o homem e de todas as coisas” são menos
fundados sobre as noções de bem e de mal do que sobre as de eficiência.

Considerações Finais
Nós não abordamos neste trabalho as relações de gênero referente à representação do/da Orixá
Ossaim, Prandi (2001) e Verger (1999) apresenta Ossaim como masculino, entretanto Farelli (2002)
apresenta esta divindade como feminino, esta temática requer um aprofundamento e uma discussão
teórica ao qual não temos leituras e no momento não é a nossa proposta, assim deixamos esta análise
em aberto.
No decorrer do nosso desenvolvimento, visualizamos uma cultura preenchida por práticas
religiosas diversas, com base neste breve estudo, compreendemos que o texto pesquisado possui uma
pluralidade da matriz afrodescendente, verificamos que a análise serve de base, ou não, para futuras
interpretações, possibilitando diferentes olhares sobre a cultura Yorubá. O texto em análise está
carregado de narrativas étnicas. Além do mais, o ensino de História e da diversidade cultural, não

456
esta mais centrada em um currículo dito superior, voltado para a “civilização” de matriz européia,
lança-se sob uma nova perspectiva de estudos e trabalhos em sala de aula voltados para as culturas
de matriz africana e indígena, fazendo valer-se da Lei 11.645/08. Nesta nova perspectiva, a LDBEN
no seu artigo 26, § 1°, define que os conteúdos programáticos incluirão aspectos da história e da
cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir de dois grupos étnicos, tais como
o estudo da História da África e dos africanos, além da luta dos negros e dos povos indígenas
brasileiros.
Este artigo aborda afirmativamente as relações étnico-raciais, contribuindo com
trabalhos que possam conscientizar os leitores como os saberes afros descontentes através da
analise do Orixá Ọsanyin. Verger (1999) amplia este campo de influência através de sua obra,
a questão apresentada por este autor é muito mais ampla, a literatura empregada pelo mesmo,
poderá ser implantada como forma de diminuição do preconceito étnico e cultural.
Consideramos este breve texto como apenas uma, entre tantas possibilidades de artigos
voltados para as relações étnico-raciais e possíveis leituras sobre o Orixá Ọsanyin, assim este
breve análise fica em aberto para futuras considerações.

Referências
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ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos mitos: A fabricação do Folclore e
da cultura popular (Nordeste 1920 – 1950). São Paulo: Intermeios, 2013.
BERKENBROCK, V. J. A experiência dos Orixás: Um estudo sobre a experiência religiosa
no candomblé. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
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de 1996.
CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos: Mitos, sonhos, Costumes,
Gestos, Formas, Figuras, Cores, Números. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988.
DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins Fontes,
2002.
ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos: Ensaio sobre o simbolismo Mágico-religioso. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
FARELLI. Maria Helena. Plantas que curam e cortam feitiços. Rio de Janeiro: Pallas, 2002.
NAPOLEÃO, Eduardo. Vocabulário Yorùbá. Rio de Janeiro: Pallas, 2011. PRANDI,
Reginaldo. De africano a afro-brasileiro: etnia, identidade, religião. Revista USP, n. 46, p. 52 – 65,
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PRANDI, R. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
__________. Herdeiras do Axé. São Paulo: Perspectiva, 1997.
__________. Os Candomblés de São Paulo: Velha magia na metrópole nova. São Paulo:
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SACRISTÁN, J. G. Currículo e diversidade cultural. In: SILVA, T. T. da; MOREIRA, A. F.
[orgs.]. Territórios contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais. Petrópolis. Vozes,
1995.

457
VERGER, Pierre Fatumbi. Notas sobre o Culto aos Orixás e Voduns na Bahia de todos os
Santos, no Brasil, e na Antiga Costa dos Escravos, Na África. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 1999.

458
QUANDO O CONHECIMENTO GERA TOLERÂNCIA E/OU
INTOLERÂNCIA

Zuleica do Carmo Garcia de Barcelos1

Resumo
A tolerância e a intolerância religiosa são temas presentes abordadas principalmente, nas Ciências da Religião.
O presente trabalho aborda as religiões de matriz africana visivelmente atacadas por uma parcela considerável da
população brasileira, especialmente pelos denominados cristãos. Partindo do pressuposto que a falta de conhecimento
gera práticas intolerantes e preconceituosas, o referido trabalho tem como objetivo, averiguar quando o conhecimento
pode gerar tolerância e/ou intolerância, destacando as religiões de matriz africana. O respeito à identidade do outro e à
sua religiosidade são elementos importantes para que haja diálogo e um bom convívio entre as comunidades religiosas.
Entretanto, o que se pode observar é a intolerância de uma população que não compreende as religiões de matriz africana
evitando assim, a escuta e o diálogo. Para a construção desse trabalho recorre-se a pesquisa bibliográfica com
contribuições de Cecília Mariz, Hédio Silva Junior, Sidnei Nogueira, entre outros. Espera-se ao final do trabalho
compreender se; o conhecimento é gerador positivo e/ou negativo na promoção para a vida responsável. O mesmo tem
muito a contribuir com grupos que buscam promover o esclarecimento de questões latentes que aparecem na sociedade
envolvendo as religiões de matriz africana buscando exterminar estigmas criados por uma sociedade cheia de pré-
conceitos.
Palavras-chave: Tolerância, Intolerância, Religiões afro-brasileiras, Conhecimento.

Introdução
Partindo da reflexão que as religiões afro-brasileiras sofrem grande resistência da população
que as enxergam como uma religião demoníaca, que não compartilham de uma fé absoluta e cultuam
diversos deuses; a falta de conhecimento acaba gerando práticas intolerantes e preconceituosas. Por
se tratar de uma sociedade culturalmente plural, as religiões afro-brasileiras tornam-se carregadas de
estigmas sociais e culturais que estão enraizados na sociedade sem que essa ao menos conheça a
verdadeira história. Os meios de comunicação social divulgam constantemente, vários ataques e
violências que os adeptos das religiões afro sofrem e precisam aprender o que fazer com os ataques.
Constitucionalmente o Brasil desde 1891 é considerado um Estado não confessional, ou seja,
é laico. Já na Constituição Federal, de 1988, a liberdade de crença e o exercício de culto são garantidos
em seu artigo 5º, inciso VI 3, assim como está presente no Estatuto da Igualdade Racial, Lei
12.288/2010. Porém, o direito religioso não é praticado pela sociedade. Percebe-se que tampouco a
liberdade de culto é assegurada como devia, já que são muitos os casos de intolerância religiosa,
discriminação e racismo contra adeptos e seguidores das religiões afro-brasileiras. As mídias mostram
casos de apedrejamento, destruição de terreiros, ameaça a zeladores e muitos outros ataques que
circulam nas redes sociais.

1
Mestranda em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Pedagoga e
especialista em: Psicopedagogia Clínica e Institucional (UEMG); Alfabetização e Letramentos (UEMG); Transtorno
Global do Desenvolvimento; Neurociências e Aprendizagem; especialista em Psicomotricidade (IPEMIG). E-mail:
zuleicacgbarcelos@gmail.com

459
Entender quando o conhecimento pode gerar tolerância ou intolerância se torna simples
quando se coloca em primeiro plano o indivíduo captador e seus objetivos com o conhecimento
adquirido.
A comunicação aqui mencionada, ainda pode oferecer à sociedade subsídios necessários para
evitar práticas preconceituosas, especialmente em relação às religiões afro-brasileiras. Salienta-se a
necessidade de as religiões afro serem respeitadas em suas formas de culto ao Sagrado assim como,
conscientizar a população a encontrar “semelhanças na diferença”.

Tolerância religiosa
A palavra tolerância foi emprestada do latim e do francês, no século XVI, no âmbito do grande
cisma religiosa. Em seu surgimento, o significado inicial mais restrito era de uma transigência com
outras confissões religiosas. Já no decorrer dos séculos XVI e XVII, a tolerância religiosa passa a ser
um conceito de direito (cf. HABERMAS, 2007, p.279). Documentos são redigidos pelos governos
impondo um comportamento tolerante às minorias religiosas.
Para os dirigentes (zeladores) e adeptos das religiões afro-brasileiras, o termo tolerância teria
como definição o ato de agir com condescendência e aceitação perante algo que não se quer ou que
não se pode impedir. Ouve-se muito que “é preciso tolerar a diversidade”, como se fosse necessário
o consentimento do tolerante para que o tolerado possa existir (cf. NOGUEIRA, 2020, p.31). Quem
tolera não respeita, não quer compreender, não quer conhecer.
Assim, a tolerância é apenas um anestésico, um movimento fantasioso que quer fazer crer que
todos são iguais e que podem suportar sem ao menos compreender uns aos outros, sem haver empatia
pelas diferentes realidades, além de estar fora dos padrões hegemônicos e cristãos. Os mesmos
mencionam que o ideal seria o respeito que difere da tolerância. Respeitar consiste em quebrar
barreiras e superar preconceitos, uma vez que a ação pondera as diferenças existentes, como gostos,
preferências, formas de pensar e agir. Afinal, o respeito não deve existir apenas a alguém que
compartilha dos mesmos interesses que você. O conhecer é essencial para que haja respeito com
aquilo que não se “tolera”.

Intolerância religiosa
O termo intolerância se refere a uma atitude de inflexibilidade e intransigência com relação a
algo, falta de tolerância, de condescendência. Compreende-se que a intolerância religiosa é uma
prática definida pela falta de reconhecimento da veracidade de outras religiões. Ou seja, o indivíduo
é incapaz de reconhecer verdades em outras religiões que não seja a sua.

460
É possível afirmar que a intolerância religiosa não é algo recente no Brasil, muito menos em
sua história e em sua humanidade. Observa-se que suas formas de manifestação têm sido
modificadas de acordo com a organização política, cultural e econômica de cada sociedade em
determinado tempo e espaço.
A intolerância está na raiz das grandes tragédias mundiais. Foi ela que destruiu as culturas
pré-colombianas e promoveu a inquisição e a caça às bruxas. Foi a intolerância religiosa que
levou católicos e protestantes a se matarem mutuamente na Europa, ou hindus e muçulmanos
a fazerem o mesmo na Índia. Foi a intolerância que levou países a construírem um sistema
de apartheid ou a organizarem campos de concentração. Por trás de cada manifestação de
barbárie que a humanidade teve a infelicidade de assistir e testemunhar, o que redundou em
numerosos massacres e extermínios, esconde-se a intolerância como arquétipo e estrutura
fundante. (GUIMARÃES, 2004, p. 28).

A incitação à intolerância, parte de discursos proferidos por pastores, padres e até autoridades
políticas. Lembrando que, a competência será sempre do enunciador, que em nome do poder, produz
um discurso de ódio contra as chamadas minorias sociais.
(...) a intolerância religiosa é uma expressão atitudes fundadas nos preconceitos
caracterizadas pela diferença de credos religiosos praticados por terceiros, podendo resultar
em atos de discriminação violentos dirigidos a indivíduos específicos ou em atos de
perseguição religiosa, cujo alvo é a coletividade (SILVA Jr, 2009, p.128).

São inúmeros os casos divulgados na mídia que demonstram a intolerância contra as religiões
afro. Um exemplo cruel ocorrido em 2015, foi o ataque a uma menina de 11 anos que foi atingida por
uma pedrada na cabeça ao sair de uma cerimônia de Candomblé no Rio de Janeiro. Outros exemplos
se misturam ao vandalismo provocado por fundamentalistas que destroem os terreiros “em nome de
Jesus”.

O conhecimento gera tolerância ou intolerância?


O fato de viver em uma sociedade globalizada e plural sob vários aspectos, principalmente o
religioso, traz grandes problemas em saber lidar com a diferença e respeitar o Outro. Zuleica Dantas
Campos (cf. 2019, p.43) afirma que, “o contexto religioso mundial, configura-se a partir de conflitos
espalhados de forma global. As lutas atuais não surgem sem história ou deslocadas de uma trajetória
maior.”
A “querência” de uma homogeneização da população pela elite religiosa dominante do país,
foi um dos desafios mais importantes com relação à sobrevivência das religiões não-hegemônicas. A
negação ao Outro tem implicações nas formas contemporâneas de dominação social e na sua história
político-econômica.
Pesquisadores e estudiosos da religião consideram a palavra tolerância como um conceito de
direito, mesmo que ainda é carregada pelos praticantes das religiões Afro-brasileiras com um forte
sentido de condescendência. Sentido esse que só pode ser promovido pelo elemento de mais poder

461
na sociedade, o elemento hegemônico. A tolerância é vista como concessões que não são mais
desejadas pelo claro poder de desequilíbrio que muitos apresentam quando interpretam o tolerar como
ato de suportar.
Pastores neopentecostais, são exemplos que utilizam o conhecimento que adquiriram sobre as
religiões Afro-brasileiras de forma negativa. Com o poder adquirido para guiar seu rebanho (a igreja),
esses distorcem a verdadeira história das práticas umbandistas e candomblecistas para ganharem mais
“seguidores”.
Edir Macedo,
(...) o fluminense Edir Bezerra Macedo, seu líder e fundador, tornou-se crente evangélico aos
dezoito anos, ingressando na Igreja de Nova Vida por meio da influência de uma irmã. Antes
era católico e freqüentava a Umbanda. Permaneceu na Nova Vida de 1963 até 1975, quando,
contrariado com seu elitismo de classe média, deixou-a para fundar a Cruzada do Caminho
Eterno. Dois anos depois, nova cisão: saiu para formar, junto com outros crentes, a Universal
do Reino de Deus. (MARIANO, 2004, p.25)

A primeira publicação da Igreja Universal dirigida pelo pastor, foi a revista Plenitude e, desde
o seu primeiro número, o ataque à Umbanda e ao Candomblé imperaram como matérias principais.
Para Cecília Loreto Mariz (cf. 2013, p.39), os grupos pentecostais e neopentecostais apresentam
postura antiecumênica e de isolamento o que dificulta o diálogo não somente com as religiões Afro-
brasileiras. Apesar de toda intolerância demonstrada pela instituição do bispo Macedo, muitos de seus
rituais são semelhantes aos da Umbanda e Candomblé:
Apela deliberadamente para o sincretismo. Para tanto, distribui objetos benzidos, retira
“encostos”, desfaz “mau-olhado” e realiza diversos rituais que, ao menos pelo nome, evocam
os das religiões inimigas. Efetua rituais de “fechamento do corpo”, rito típico dos cultos afro-
brasileiros, visando a proteção espiritual do fiel. Com sua peculiar “corrente da mesa branca”,
alude igualmente ao kardecismo. No dia de Cosme e Damião oferece “balas ungidas” para
as crianças, concorrendo com a prática umbandista de distribuição de doces aos erês. Noutra
referência à umbanda, a Universal, vez ou outra, mas sempre às sextas-feiras, promove ritual
de descarrego, no qual o fiel é aspergido com galhos de arruda, molhados em bacias com
água benta e sal, para que manifeste demônios e deles seja liberto. Às vezes o fiel a leva para
captar os males presentes em sua casa e nos moradores. Transferidos os males para a arruda,
ela é levada de volta à igreja para ser queimada. O pastor e deputado federal Paulo De Velasco
(PSD/SP) justifica o uso da arruda pela Universal como estratégia para “utilizar o que está
arraigado no subconsciente coletivo brasileiro” ou “trabalhar em cima” do que as pessoas
acreditam. Especialistas em marketing não fariam melhor. (MARIANO, 1996, p.130)

Mariz (cf. 2013, p.39), ainda relata que, os grupos pentecostais e neopentecostais são os
maiores antagonistas das religiões afro e não desacreditam no poder de seus rituais reconhecendo-os
como interlocutores competentes, mas, “malignos” ou “diabólicos”. Portanto, as igrejas assimilam
crenças e práticas de seus adversários, constituindo-se assim um sincretismo deliberado, cujo objetivo
é garantir sua expansão. Ou seja, ensina-se a ser intolerante às tradições que não comungam da mesma
fé e utilizam suas práticas forma de “libertação espiritual”. O conhecimento ora adquirido pelo bispo
citado como exemplo nesse artigo, permitiu com que o mesmo utilizasse desse, como forma de ataque
as religiões afro-brasileiras, além da apropriação de seus rituais.

462
Fica claro que o conhecimento pode ser usado para travar um diálogo cordial e gerador da paz
ou para massacrar o que se torna conhecido.

Conclusão
Então, quando o conhecimento gera tolerância ou intolerância? Pois, a resposta está no
decorrer do texto. À medida que se conhece o desconhecido, você define o que fará com esse
conhecimento.
O conhecimento precisa ser visto como um convite para a acolhida do Outro, para a construção
da paz e da justiça. Nesse contexto, o conhecimento deveria ser usado apenas para o lado positivo de
qualquer processo. Conhecer é eliminar os pré-conceitos e os preconceitos existentes. O diálogo seria
uma forma positiva de deliberar todo conhecimento adquirido através de estudos, pesquisas dentre
outros. O Diálogo Inter-religioso está na contemporaneidade e é alvo de grandes reflexões, sendo
tema recorrente por parte das Ciências da Religião. Ele instaura a comunicação e o relacionamento
entre fiéis de tradições religiosas diferentes, envolvendo partilha de vida, experiência e conhecimento.
Porém, a luta pelo poder, pela incitação da sua verdade, parte de discursos proferidos por
líderes religiosos cristãos e até de autoridades políticas. As principais causas de perseguição e das
atitudes de intolerância não vêm isoladas, estão sempre acompanhadas de etnocentrismo, racismo,
questões econômicas e manutenção do status. Entretanto, o eurocentrismo, ao criar uma dualidade de
mundo, ou seja, civilização (europeu) versus barbárie (povos colonizados), promoveu como
conhecimento no imaginário social que a religiosidade de origem afro é a estampa da “raça” inferior
e bárbara.
Com vista às consequências, afirma-se que, uma ou outra religião pode ser usada ou
manipulada por seus líderes para determinado propósito. Dessa maneira, a religião torna-se uma arma
que pode servir a este ou àquele objetivo em mãos erradas.
Enquanto houver sentimentos carregados de ódio, agressão, hostilidade e superioridade, além
da pretensão de exclusividade da verdade, qualquer exercício que possibilite conhecer o diferente
será impossível.

Referências Bibliográficas
BRASIL. [Constituição (1988)]. Dos direitos e garantias fundamentais. Brasília: [s. n.], 2021.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em:
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liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos. Brasília, 20 jul. 2010.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm>.
Acesso em: 30 jun. 2021.

463
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Acesso em: 20 jun 2021.

464
O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO NAS MISSÕES PROTESTANTES,
PENTECOSTAIS E NEOPENTECOSTAIS EM ÁREAS INDÍGENAS

Siloeh Cerqueira Lopes Piermatei1


Monique Nogueira Rezende Laroca2

Resumo
Esta comunicação apresenta uma crítica à prática da aculturação nas missões em áreas indígenas realizadas por
igrejas Pentecostais e Neopentecostais e a resistência dessas igrejas em adotar o diálogo inter-religioso como forma de
respeito à alteridade e à cultura dos povos ameríndios. Foi realizado um breve estudo sobre a orientação destas atividades
missionárias e suas estratégias de ação para a inserção do cristianismo nas comunidades indígenas. A hipótese a que
chegamos é de que esse modelo de discurso missionário contesta a plenitude da cultura indígena e sua espiritualidade,
inviabiliza o diálogo inter-religioso e promove o etnocídio dos povos autóctones. A pesquisa foi baseada em trabalhos
etnográficos realizados por outros pesquisadores e referenciados no final do artigo.
Palavras-chave: Missões em áreas indígenas. Pentecostalismo. Neopentecostalíssimo. Inculturação.
Assimilacionismo.

Introdução
Em 1517 um acontecimento transformaria a narrativa religiosa cristã. Martinho Lutero
publicava 95 teses redigidas por ele em oposição à algumas práticas da Igreja Católica. A partir deste
momento surge um novo movimento denominado Protestantismo ou Reforma Protestante. Rodrigues
e Moraes Júnior resumem o contexto Protestante em quatro doutrinas fundamentais, “a) a salvação
somente através da fé em Jesus Cristo; b) a experiência de conversão pessoal, comumente chamada
de “nascer de novo” numa nova espiritualidade; c) a importância das missões e evangelização; e d) a
verdade ou inerrância da Sagrada Escritura”. (RODRIGUES & MORAES JÚNIOR, 2018, p. 903)
Contudo, quando se fala em protestantismo é preciso ter cuidado uma vez que não estamos
falando de uma tradição homogênea, mas de uma doutrina com muitas particularidades temporal e
geograficamente condicionadas. No século XVI as missões evangélicas europeias chegam nos
Estados Unidos impulsionados pelas promessas de expansão colonizadora. Esse panorama contribuiu
para a afirmação do Protestantismo como “construção da identidade cultural-religiosa da sociedade
norte-americana”. E neste contexto de transformações, nasce o Pentecostalismo, um movimento de
grande furor religioso impactado pela experiência conhecida como o batismo de fogo. Esse
movimento arrebatador atraiu muitos fiéis e pastores, incluindo o pastor Durhan, um dos responsáveis
pela entrada do Pentecostalismo no Brasil. (RODRIGUES & MORAES JÚNIOR, 2018, p. 904)
No Brasil, antes da chegada dos missionários pentecostais, alguns protestantes vindos dos
Estados Unidos e da Suécia já havia investido na região amazônica. Esta inserção foi facilitada pelos
diversos problemas sociais associados ao descaso das políticas indigenistas, favorecendo a penetração

1
Graduada em letras pela Faculdade de Ciências e Letras Santa Marcelina, Especialista em Ciência da Religião pela
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Mestra em Ciência da Religião pela mesma instituição.
2
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Especialista em Ciência da Religião
pela mesma instituição.

465
e a expansão dos movimentos religiosos pentecostais entre os povos originários. As missões tinham
o objetivo maior de salvação espiritual do indígena. Para isso, era necessário remodelar tudo o sistema
religioso nativo – mitos, ritos, comportamentos, moral, símbolos e incorporá-los ao modelo religioso
evangélico. (ALMEIDA, 2006).
O objetivo deste artigo é analisar a prática missionária das Igrejas Evangélicas entre os povos
originários no Brasil e investigar se o exercício do diálogo inter-religioso se aplica nestas
experiências.

Salvando os pecadores
A presença de representantes de Igrejas protestantes no Brasil teve início nos séculos XVI e
XVII com a presença dos Huguenotes, da França e dos holandeses Reformados. No entanto, esta
presença ainda era tímida e breve, o que mudaria a partir do século XIX, com as transformações
inspirada pela expansão capitalista e as ideias iluministas. O processo de ocupação do território
brasileiro pelos colonizadores aconteceu sob circunstância extremamente conflituosa e violenta,
apesar de grandes figuras como Bartolomeu de Las Casas, por exemplo, que vislumbrou uma
catequese indígena sem o uso de violência. A chegada das Igrejas protestantes no Brasil abalou a
estrutura da Igreja Católica no que tange as missões em áreas indígenas, levando em conta a política
assistencialista adotada por essas Igrejas protestantes, que levaram para as comunidades ameríndias,
escolas e auxílio à saúde, em contraponto à ineficácia das ações sociais do governo. Na Europa
protestante, a ideia de evangelizar ia para além da cristanização, representava principalmente um
projeto civilizacional. O dever dos missionários era levar sua civilização aos povos bárbaros.
O termo missão pode ser usado em seu sentido religioso, como “qualquer atividade que vise
à salvação do indivíduo”. Contudo, o termo também pode ser usado como “atividade religiosa por
excelência, responsável pela inserção de um conjunto de crenças em outro universo cultural”
(ALMEIDA, 2004) Nesse sentido, trata-se de missões aculturadas com uma postura assimilacionista,
cujo objetivo é salvar os indígenas dos pecados e convertê-los ao Cristianismo. Isso significava
romper com todo sistema religioso originário, seus mitos, ritos, costumes e símbolos (ALMEIDA,
2006). Ou seja, a intenção era desarticular do pensamento indígena para então adaptá-lo ao modelo
proselitista cristão.
Levando em conta que a Evangelização é o objetivo principal da missão indígena, Cecília
Simões traz uma questão medular, “O que significaria então oferecer o mistério da salvação e a vida
aos povos indígenas?” Simões defende que “na leitura da pastoral indigenista, o chamado anúncio do
Reino nas aldeias deve se fazer antes de tudo enquanto luta pela sobrevivência da cultura, pela defesa
do humano, dos direitos indígenas, das terras, das socializações e enquanto incentivo à solidariedade.”
(SIMÕES, 2019, p. 383)

466
A missiologia indigenista reivindica uma nova postura com abertura ao diálogo inter-religioso
e a inculturação. Simões aponta para a necessidade de uma práxis que envolva o exercício da
inculturação da fé como nova perspectiva de missão, aliada à ideia de libertação integral dos povos.
(SIMÕES, 2019)

Salvar ou inculturar?
Para as Igrejas Evangélicas, a Bíblia é portadora do anúncio e é “o único elemento de
mediação entre Deus e o homem.” Por isso adotam sempre que possível como prática fundamental a
tradução da Bíblia para a língua local da comunidade ameríndia em que se inserem. Além disso,
levam para as aldeias assistência médica, escolas e outras comodidades da vida moderna que possam
dar um pouco de conforto e facilitar a vida na aldeia. Com isso, conseguem aos poucos conquistar a
simpatia dos indígenas e envolve-los em seu projeto evangelizador.
Almeida defende que a atividade missionária, “mais do que converter, tem como finalidade
criar condições simbólicas e materiais para que a mensagem cristã se universalize em diferentes
contextos socioculturais” (ALMEIDA, 2004, p. 33/34). A proposta é gerar “um campo simbólico no
qual ideias como as de culpa, amor, eternidade, criação, entre outras, tenham sentido para o grupo
alvo”. Para isso fazem uso de passagens fantásticas da Gênese, como a criação, o dilúvio e outras
tragédias.
Segundo Gedeon Alencar a espiritualidade do xamanismo indígena, o catolicismo popular, os
cultos aos orixás e os movimentos protestantes de missões e imigrações entrelaçaram-se num
sincretismo cultural religioso e formaram o ethos brasileiro. O autor defende que: “O Brasil sincrético
dos indígenas, catolicismo e cultos africanos é marcado por uma religiosidade com muita abertura
para a manifestação do êxtase e suas variantes, onde o pentecostalismo encontra campo fértil”
(ALENCAR, 2013, p.50). Um pastor (branco) da Assembleia de Deus entre os Wayana- Aparal
afirmou que “a pajelança está associada ao espiritismo e à macumbaria. Tudo é coisa do diabo”. Entre
os Galibi-Marworno, o missionário Novas Tribos relacionou o diabo aos rituais do turé, nos quais o
pajé convocaria os espíritos malignos” (ALMEIDA, 2004, p.18). O pensamento era de que, além de
levar a mensagem de Cristo, era fundamental civilizar os povos ameríndios considerados incultos,
fazendo com que os mesmos evoluíssem através da conversão ao protestantismo.
No entanto, nova missiologia convoca a um olhar de respeito e valorização das manifestações
culturais dos povos indígenas, tendo como pano de fundo o diálogo inter-religioso e a prática da
inculturação da fé como forma de libertação. Segundo Cecília Simões, “A inculturação inclui a
participação nas lutas dos povos e na promoção de sua integridade humana, mas passa também pelo
convívio e pela integração do missionário junto ao povo” (SIMÕES, 2019, p. 388)

467
Diálogo e missão
As crenças praticadas pelos povos indígenas desde suas origens eram, e continuam sendo, um
elo de ligação com o transcendente, com o divino. No entanto, conforme Faustino Teixeira, a
religiosidade como busca do homem pelo divino, representa um de seus símbolos fundamentais, por
ser a afirmação de seu significado (TEIXEIRA, 2014, p. 15). A religião ocupa um lugar importante
para o homem na sociedade e constitui uma necessidade e interesse dos seres humanos para que esses
possam suportar e vencer suas dificuldades de existência; buscar os deuses (ou um Deus) que os
salvem um outro mundo; falar, ser ouvido e receber os deuses em seu próprio corpo. É o que Teixeira
chama de uma tessitura social (TEIXEIRA, 2014), ao apresentar o Brasil, na atualidade, como
exemplo, influenciado socialmente, pelos exemplos das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), da
Igreja Católica; das religiões afro-brasileiras, e do pentecostalismo e neopentecostalísmo entre a
formação do campo religioso brasileiro.
Faustino Teixeira defende que “O grande, difícil e arriscado desafio do diálogo inter-
religioso consiste em apontar e demonstrar a possibilidade de um horizonte de conversação
alternativa; de indicar que a violência religiosa não faz parte da essência da religião, mas constitui
um desvio ou traição do dinamismo mais profundo que anima a relação do ser humano com o
Absoluto. (TEIXEIRA, 2002, p. 02) E é nesta direção que Teixeira (2014) destaca a “arte de
compreender” o outro, citando alguns “eixos” desse “diálogo inter-religioso” que instaura uma
comunicação e o relacionamento entre fiéis de tradições religiosas diferentes, envolvendo partilha de
vida, experiência e conhecimento. Esta comunicação propicia um clima de abertura, empatia,
simpatia e acolhimento, removendo preconceitos e suscitando compreensão mútua, enriquecimento
mútuo, comprometimento comum e partilha da experiência religiosa (TEIXEIRA, 2014).

Dessa forma, podemos dizer que todas as pistas sugeridas para o diálogo interreligioso,
propostas por Teixeira são bem-vindas para o pentecostalismo e suas missões indígenas, que deve
seguir o caminho da alteridade, procurando superar as tentações de absolutismo de sua crença
religiosa segmentada. (TEIXEIRA, 2010, p. 30)
Dialogar com outros vieses culturais e religiosos pressupõe também um olhar de acordo com a
cosmovisão de quem o faz, sem necessariamente, se perder nesta iniciativa de diálogo.

Os desafios do encontro
O encontro com o diferente não é fácil, exige respeito e humildade, uma vez que o espaço do
outro é sagrado, particular, íntimo. No entanto, o fundamentalismo nas missões entre os povos
ameríndios vivenciado pelas Igrejas Pentecostais e Neopentecostais não conseguem conceber a
dimensão das religiosidades dos povos originários nem mesmo nas suas semelhanças e analogias de
alguns rituais. Essas missões são denominadas por Ronaldo de Almeida como missões transculturais

468
por inserirem um conjunto de crenças em outro universo cultural. Fazem “um trabalho tecnicamente
especializado que exige a capacitação dos seus profissionais em linguística e antropologia”
(ALMEIDA, 2004), para a tradução da fé evangélica para o indígena. Almeida explica que: “é
necessário capacitar o missionário para a tarefa de tradução do evangelho e de mediação cultural. O
missionário é treinado para adaptar-se ao novo meio e implantar um conjunto de valores, crenças e
comportamentos (ALMEIDA, 2006, p. 6).
Oportuno destacar também que os povos ameríndios têm uma predisposição à alteridade,
como demonstra Lévi-Strauss (1991) a “abertura para o outro” é uma característica fundamental do
pensamento ameríndio, ou seja, aceitam e tentam compreender a presença de “outros”. Em razão
disso, foram, de certo modo, receptivos à chegada dos missionários. Entretanto, cada povo teve uma
história diferente de evangelização com algumas interessantes peculiaridades. O intuito das missões
pentecostais era de que houvesse a assimilação pelos índios da cultura ocidental, principalmente da
religião cristã. (WRIGHT, 1999)
No trabalho missionário pentecostal, na maioria das vezes os pastores incutiam a ideia do
medo para persuadir o indígena a abandonar as coisas do “diabo”, representado em várias de suas
manifestações culturais, o que causaria infortúnios em vida e os impediria de chegar ao reino dos
céus. Pregavam que os indígenas, pecadores, precisavam se livrar da escuridão para chegarem à
salvação. Associavam a pajelança ao espiritismo e à macumbaria. Tudo é coisa do diabo.
(ALMEIDA, 2004, p. 48)

Considerações finais
Mediante o exposto, no que se refere às missões pentecostais, podemos dizer que estas se
revelam altamente fundamentalista impondo transformações nas identidades étnicas, religiosas e
políticas, baseada no pressuposto da universalidade dos valores cristãos. Tais casos demandam uma
atenção especial, pois comprometem seriamente a viabilidade e a existência das culturas indígenas.
Faustino Teixeira defende que “na raiz do fundamentalismo há o sentimento de insegurança,
desorientação ou anomia resultantes de uma dinâmica modernizadora. Torna-se intolerável para os
fundamentalistas a possibilidade de esvaecimento de seus valores tradicionais” (TEIXEIRA, 2014, p.
14). No entanto, é impossível limitar o alcance das diferentes identidades e o sentido de sua presença.
O Assistencialismo das missões protestantes e pentecostais entre os indígenas não exclui a
necessidade de diálogo ou legitima a resistência em dialogar. O fundamentalismo rejeita todos as
formas e tentativas de diálogo. Há que se entender, no entanto, que cada vez mais se faz imperativo
pensar o diálogo inter-religioso com uma forma de aproximação humana e social na construção de
um mundo mais tolerante e fraterno.

469
Referências
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470
O TERREIRO ENQUANTO ESPAÇO DE INCLUSÃO: VIVÊNCIAS DE UM
SACERDOTE SURDO NO TAMBOR DE MINA PARAENSE

Diego Jonata Carvalho Dias1


Sérgio Maurício de Oliveira Júnior2
Resumo
A presente pesquisa tem como objetivo compreender o processo de inclusão de uma pessoa Surda, por meio de
suas vivências na Casa Grande de Mina Jêje Nagô de Toy Lissá e Abê Manjá – Huevy, pertencente ao Tambor de Mina.
Dessa Forma, é imprescindível destacar que a motivação desta pesquisa se estabeleceu pela carência de produções
científicas que aborde sobre temáticas voltadas para o fenômeno religioso de Surdos nas religiões afro-brasileiras. Para o
desenvolvimento do trabalho foi utilizado o método fenomenológico diante da interação e dos saberes de um sacerdote
Surdo nas “giras” (rituais religiosos) do terreiro. Neste sentido, observou-se que o processo de inclusão é constituído de
inúmeros fatores, sendo que as experiências diante dos fenômenos no terreiro e com sagrado, assim como as iniciativas
por estratégias de acessibilidade, são elementos imprescindíveis para construção de sua identidade religiosa, no que tange
ao ethos do âmbito religioso. Por fim, os resultados desta investigação implicam-se como aporte teórico-científico para
campo das ciências humanas e afins acerca de tópicos relacionados à inclusão, a construção de saberes e a religiosidade
de Surdos no Tambor de Mina.
Palavras-chave: Tambor de Mina. Terreiro. Inclusão. Sacerdote Surdo.

Introdução
A inclusão de Surdos nas religiões não é uma prática extraordinária pela grande maioria das
instituições religiosas, principalmente em vertentes cristãs como o catolicismo e o protestantismo
(histórico, pentecostal e neopentecostal), gerando-se maior visibilidade para o Surdo3 no ethos destas
vertentes.
Com a expansão de pesquisas acadêmicas no campo dos Estudos Surdos e Interfaces, sob a
influência Estudos Culturais, evidenciou-se que o fenômeno de inclusão também está associado a
outras instituições religiosas, porém invisibilizado devido à carência de pesquisas científicas. Logo,
o intuito deste artigo é visibilizar e/ou instigar novas pesquisas relacionadas à inclusão e as vivências
de sujeitos Surdos em outros âmbitos religiosos, como também nas comunidades de religiões afro-
brasileiras.
Diante disso, buscou-se compreender o fenômeno religioso de um Sacerdote Surdo adepto da
religião denominada Tambor de Mina, a partir do processo de inclusão no espaço sagrado, por meio
de suas vivências nas giras (rituais públicos) da Casa Grande de Mina Jêje Nagô de Toy Lissá e Abê
Manjá – Huevy, situada na região periférica da cidade de Belém do Pará.
Propõe-se, portanto, uma pesquisa qualitativa, a luz da fenomenologia, com base em dados
obtidos em observações diretas nas giras e em aportes teórico-científicos já desenvolvidos acerca da

1
Mestrando em Educação pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM. E-mail: carvalhodias.dd@gmail.com
2
Especialista em Educação Especial e Inclusiva pelo Centro de Ensino Superior de Vitória – CESV. E-mail:
prof.soliv@gmail.com
3
De acordo com Sacks (1998), os surdos que não são culturalmente surdos – são indicados com s minúsculo, relativa à
surdez auditiva; os “Surdos” com s maiúsculo, portanto, são aqueles formadores de uma entidade linguística e cultural.

471
temática proposta, considerando os aspectos do Tambor de Mina e do Surdo, sendo primordial para
a assimilação dos saberes que emergem pela experiência religiosa.
Apesar de o foco ser o sacerdote Surdo, foi imprescindível coletar informações com um
membro religioso (Axogum do terreiro) que presencia o processo de inclusão no terreiro de Mina.
Elucida-se também que os membros religiosos4 serão citados por nomes fictícios criados a partir de
características funcionais no terreiro.
Por fim, o trabalho está dividido em três momentos: o primeiro momento aborda as principais
considerações sobre o Tambor de Mina na Amazônia; o segundo momento enfoca na apresentação
do lócus de pesquisa (como espaço inclusivo) e do sujeito central; o terceiro capítulo se debruça no
processo de inclusão, por intermédio da interação entre sacerdote Surdo – espaço sagrado (terreiro),
relacionando com as suas experiências religiosas; e por ultimo, a título de conclusão enfatiza-se o
terreiro como um espaço sagrado em processo de inclusão e de alteridade.

Tambor de Mina: origem e significações


A religião Tambor de Mina ou conhecida também por “Mina” em sua essência, é uma religião
de tradição matriarcal e foi construída por princesas africanas que foram escravizadas e trazidas para
o Brasil. Na história dessa religião afro-brasileira tradicional do Maranhão, é possível destacar duas
Casas Mater5 criadas em São Luís, provavelmente, fundadas por africanos em meados do século XIX:
a Casa das Minas Jeje ou Casa Grande das Minas e a Casa de Nagô.
É válido destacar que além dessas duas casas, há também no Maranhão alguns terreiros de
fundação tardia, tais como: o Terreiro da Turquia, cuja fundadora foi a mãe Anastácia; e o Terreiro
do Égito, criado por Massinokô Alapong (cf. FERRETTI, 1996). Outro ponto também acerca da
estrutura do Tambor de Mina, a qual é concebida a partir de nações africanas, cujas denominações
são: jeje, nagô, cambinda, fanti-ashanti, e por meio dessas etnias vieram os Voduns6 e Orixás7.
Além disso, em consequência da junção com as culturas dos europeus e dos indígenas,
nasceram os encantados8, denominados de gentis9 e caboclos10. Sobre o Tambor de Mina no Pará,
abordaremos na linha de raciocínio da antropóloga Taissa de Luca (2010), ao afirmar que:

4
Os sujeitos que serão tratados por nomes fictício são: o sacerdote Surdo, a sacerdotisa de Abê e o sacerdote de Toy Lissá
(dirigentes do terreiro) e o Axogum (sacerdote responsável pelos sacrifícios de animais na tradição Nagô).
5
A partir de Luca (2010), esse termo é usado simbolicamente para tratar das duas primeiras casas de culto afro-brasileiro
em território maranhense, tais como: a Casa das Minas Jeje e a Casa de Nagô.
6
É o nome dado às entidades do panteão jêje que corresponde, hierarquicamente ao Orixá Nagô.
7
Segundo Luca (2010), Orixá é uma divindade yorubana. Muitos deles são antigos reis ou heróis divinizados os quais
representam as vibrações das forças da natureza.
8
Entidades espirituais que tiveram em vida, mas não passaram pela experiência da morte física.
9
Sob a ótica de Luca (2010), denominação maranhense para senhores de toalha. Gentil, segundo Ferretti (2000)
corresponde ao termo francês gentilhommo, usado para classificar os nobres.
10
É a entidade que hierarquicamente é inferior no panteão, que representa o mestiço em suas diversas modalidades. O
caboclo é uma entidade nunca passou pela experiência da morte.

472
Foi do Maranhão que os primeiros mineiros migraram para Belém, em duas etapas: a primeira
composta pelos religiosos maranhenses atraídos pela economia gomífera e a segunda
constituída por paraenses que foram para o Maranhão buscar iniciação durante a década de
70 e 80 do século XX (LUCA, 2010, p. 57).

Podemos também compreender que a história do Tambor de Mina no Pará não é explícita
quanto à maranhense. Talvez nem as memórias dos povos tradicionais de religiões de matrizes afro-
brasileiras sejam bem conservadas, quando relacionadas às origens do Tambor de Mina em território
paraense. Contudo, Luca (2010, p. 58) entende que, “uma única certeza que se tem é que, ‘nas águas
do Pará’, não existe um terreiro de raiz fundado por africanos”.
Para pensar a história afro-paraense do Tambor de Mina, especificamente da Casa Grande de
Mina Jêje Nagô de Toy Lissá e Abê Manjá – Huevy é necessário considerar a memória do conjunto
de paraenses que migraram para o Maranhão em busca dos saberes relacionados aos “cultos
ancestrais” os quais são transmitidos por processos iniciáticos típicos da religião que tem suas origens
africanas. Logo, o terreiro é fruto de uma migração de sua regente, a sacerdotisa de Abê para o
Maranhão, onde teve seu processo iniciático no terreiro Ilê Axé de Iemanjá, de nação Fanti-Ashanti,
entre as décadas de 1970 e 1980 do século XX.
Na mesma linha de compreensão, Anaíza Vergolino (2015) afirma que, os “novos sacerdotes”
com “saberes mineiros” expandiram e inauguraram seus terreiros, principalmente, na periferia do
centro urbano ou nos municípios circum-adjacentes à capital paraense, em que incluíram consigo
novas práticas ancestrais com raízes africanas (VERGOLINO, 2015).

O Terreiro na Perspectiva da Inclusão


A Casa Grande de Mina Jêje Nagô de Toy Lissá e Abê Manjá – Huevy é pertencente às
práticas religiosas do Tambor de Mina, de tradição Jêje e Nagô, cujos seus rituais são voltados aos
Voduns, Orixás, Gentis e Encantarias (matas, ritos, mares, etc.), com influências da religiosidade
local, como a pajelança (cabocla e indígena). O terreiro é uma das principais casas de cultos afro-
religiosos da cidade de Belém, com aproximadamente cinquenta anos de existência, sendo conduzida
pela Sacerdotisa de Abê e pelo sacerdote de Lissá.
Este âmbito religioso está situado na região periferia da capital paraense, mais
especificamente nas proximidades de duas vias importantes da região metropolitana de Belém, a
Avenida Augusto Montenegro e a Rodovia Mário Covas, no bairro do Satélite.
Este terreiro é um espaço que está em processo de inclusão, pois segundo os relatos de um dos
membros religiosos mais antigos, o Axogum, enfatiza que “casa não tinha muitas dificuldades com
relação ao diferente”, devido à sensibilização com os sujeitos que o frequenta. Vale explicitar que
além do sacerdote Surdo, o Axogum menciona a participação de pessoas com outras particularidades:
uma pessoa com deficiência de locomoção e uma pessoa com deficiência visual.

473
Quanto à inserção de Surdos, é importante destacar que o terreiro já proporcionou a presença
de sete sujeitos Surdos, mas atualmente, possui apenas um membro Surdo (sacerdote Surdo), que está
inserido no terreiro de mina desde 2004 e já concluiu o processo iniciático, sendo concretizado em
etapas de feitura dos seus três Orixás regentes (Ogum, Iemanjá e Xangô). É necessário mencionar
que o sacerdote Surdo foi o primeiro Surdo a adentrar no espaço religioso.
Quando o sacerdote Surdo tornou-se afro-religioso, alguns indivíduos da comunidade surda
de Belém passaram a observar o terreiro como um local de respeito à identidade Surda e de inclusão
social, iniciando-se novas perspectivas para outros membros Surdos.
O presente terreiro de Mina, assim como os terreiros numa forma geral, preza pela prática da
inclusão, pretendendo ressignificar a maneira de pensar sobre o indivíduo com “deficiência”, a partir
de suas particularidades (cf. DIAS; SANTIAGO-VIEIRA, 2017).
Para isso ocorrer, os integrantes do terreiro perceberam a necessidade de estabelecer mudanças
na relação com os membros do terreiro, seja filho de santo ou aqueles que frequentam as giras,
atentando-se para novas alternativas de sociabilização, comunicação e de transposição de saberes, de
acordo com a singularidade de cada indivíduo.

Caminhos Silenciosos: a inclusão de um Surdo em um terreiro de Tambor de Mina


Quando as estratégias de mediação entre terreiro e sujeito estão alinhadas a realidade do
contexto, gera-se acessibilidade. Logo, este fator é primordial para se obter interações com o ethos
do terreiro e com o sagrado, diante das dinâmicas de um ritual, com o intuito de se alcançar
finalidades, para que demandas sejam supridas.
A partir das observações de campo, notou-se que a inclusão se fundamenta numa filosofia de
reconhecimento e de respeito à pluralidade e a diversidade no cotidiano em sociedade, o que ocorre
quando os sujeitos se sentem inseridos no universo cultural e simbólico do terreiro, por meio de
estratégias materiais e imateriais (cf. DIAS; SANTIAGO-VIEIRA, 2017). Para Romeu Sassaki
(1997), este evento é relevante, pois:
A inclusão social, portanto, é um processo que contribui para a construção de um novo tipo
de sociedade através de transformações pequenas e grandes, nos ambientes físicos (espaços
internos e externos, equipamentos, aparelhos e utensílios, mobiliários e meios de transportes)
e na mentalidade de todas as pessoas, portanto também do próprio portador de necessidades
especiais (SASSAKI, 1997, p. 42).

Partindo desse ponto de vista, frisa-se que o sacerdote Surdo, assim como os membros
religiosos ouvintes, tem o seu mecanismo lógico de compreensão dos ensinamentos, que possibilitou
a construção da identidade religiosa, através do conjunto de representações simbólicas que constituem
os saberes religiosos “na prática” durante os ritos, os quais expressam “regras de comportamento que
prescrevem como o homem deve comportar-se com as coisas sagradas” (DURKHEIM, 1996, p. 24),

474
tornando o terreiro em um espaço sagrado “no qual os papéis são construídos com base nos mitos, no
figurino, no conjunto de signos rituais, posturas e gestos. Cada papel exige a realização de
comportamentos específicos" (SANTOS, 2005, p. 121). Complementando esse raciocínio, Oliveira
Júnior, Santiago-Vieira e Ribeiro (2018) afirmam:
No terreiro de Mina Jeje Nagô [...] cada membro religioso, médiuns ouvintes e o médium
Surdo, possuem formas distintas de entender o sagrado a partir dos ensinamentos que são
transmitidos. Para os médiuns ouvintes a aprendizagem ocorre nas vivências por meio da
oralidade. Para o médium Surdo, esses ensinamentos adquiridos também são assimilados
pelas vivências no cotidiano do terreiro, mas sucede-se de acordo com a sua percepção visuo-
espacial (OLIVEIRA JUNIOR; SANTIAGO-VIEIRA; RIBEIRO, 2018, p. 104).

Notou-se que a identidade religiosa do sacerdote Surdo se assemelha a dos demais, pois é
constituída de inúmeros valores que são transmitidos pela troca de múltiplos saberes através do
convívio com os demais adeptos e a interação com o sagrado manifestado através das divindades
(Voduns e Orixás) e das entidades espirituais (caboclos, índios, nobres, erês, exus, entre outros).
O terreiro está em constante processo de inclusão, pois se desenvolvem estratégias para
estabelecer a interação com os demais membros religiosos e com o sagrado, buscando-se amenizar
entraves comunicacionais: a língua de sinais, observação contextual, da dinâmica performática,
leitura labial e a utilização de gestos. Para tanto, isto se concretizou em elementos no campo visual-
espacial, utilizando representações imagéticas, performáticas e contextualização de fatos (cf.
OLIVEIRA JUNIOR; SANTIAGO-VIEIRA; RIBEIRO, 2018, p. 118).
A percepção sobre a inclusão parte deve partir dos integrantes dos espaços religiosos, pois
transcorrem as instituições autônomas e esta é fundamental para o acolhimento dos sujeitos com suas
singularidades. Nesta conjuntura, a instituição religiosa tem um papel relevante no contexto
sociocultural religioso, pois o terreiro não é somente um espaço de espiritualidade, religiosidade e
renovação da fé, mas também um local de socialização de saberes e de interação de sujeitos, religioso
ou não, surdos ou não surdos.
Nesse caso, tanto o sacerdote Surdo como os demais indivíduos Surdos que frequentam o
terreiro, interagem e vivenciam o sagrado através do campo gestual-visual, visto a percepção visuo-
espacial, a qual é a principal forma de compreensão de mundo dos Surdos, mesmo que o presente
espaço religioso não tenha a presença do tradutor/interprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras).
De acordo com o autor Silvio Santiago-Vieira (2018), esse fenômeno é denominado de
teofania da alteridade11, na qual “revela-se engendrada pelo campo sagrado gestual-visual não

11
Segundo Santiago-Vieira (2018), este termo é construído a partir dos termos teofania (proposto por Mircea Eliade) e
alteridade (discutido por Martin Buber). Teofania da Alteridade corresponde ao fenômeno que se evidencia em espaços
sagrados e/ou religiosos, ou até mesmo em seus adeptos, quando em algum momento são sensibilizados a desenvolver
ações inovadoras ou de acordo com a proporção do contexto, com a iniciativa de incluir um indivíduo que apresenta
particularidades diferentes aos membros do grupo religioso.

475
linguístico (mímicas, apontações, ensinamentos por meio de práticas) permitindo acessar as
experiências com o sagrado” (SANTIAGO-VIEIRA, 2018, p.56).
Em relação ao sacerdote Surdo, a sua interação com esse campo visual do terreiro
proporciona-o uma ação descrita pela autora Karin Strobel como experiência visual, sendo este um
dos artefatos da cultura Surda (cf. STROBEL, 2016).
A partir das vivências do Surdo com o universo simbólico do terreiro, destacam-se as
“representações imagéticas e performáticas” (OLIVEIRA JUNIOR; SANTIAGO-VIEIRA;
RIBEIRO, 2018), caracterizados como fundamentais na compreensão do terreiro, do sagrado e dos
elementos que o constitui: as entidades, os ritos, os mitos, a hierarquia, assim como os demais saberes.

Considerações Finais
A presente pesquisa demonstrou o terreiro como um espaço para as diferenças desde quando
os seus agentes buscam, não apenas compreender os sujeitos inseridos, mas também conhecer e
interagir com o outro diferente, gerando-se troca de saberes, sendo estes fatores fundamentais para se
iniciar a inclusão em um espaço de interação entre três culturas: o Tambor de Mina, a cultura ouvinte
e surda.
Contudo, é necessário ponderar que as religiões de afro-brasileiras, assim como o terreiro de
Mina pesquisado, podem ser consideradas como religiões ou espaços de “integração ou até mesmo
de inclusão social, mas é preciso dar maiores condições de permanência destes indivíduos nestes
espaços sagrados” (DIAS; SANTIAGO-VIEIRA, 2017, p. 28).
Para tanto, as estratégias de inclusão devem seguir alguns elementos peculiares da cultura
Surda como a Libras, as performances (gestualidade, corporalidade e expressões faciais) e imagens.
Não obstante, as dinâmicas no terreiro por sua essência possuem representações performáticas e
imagéticas (contidas no espaço físico do terreiro), o que facilita o processo de inclusão. A utilização
da Libras dentro do espaço religioso ainda está em processo de desenvolvimento, visto que o
sacerdote Surdo está em processo de construção de sinais-termos para representar os elementos
simbólicos da religião na língua de sinais.
Por fim, destaca-se que nesse terreiro de Mina os saberes religiosos são transmitidos “pela
experiência com as práticas diárias no âmbito religioso no qual ele [sacerdote Surdo] está inserido e,
a ‘expressividade’ se apresenta nas varias representações do sagrado através dos ritos, que ligam o
terreno e o divino” (OLIVEIRA JUNIOR; SANTIAGO-VIEIRA; RIBEIRO, 2018, p. 118).

Referências Bibliográficas
DIAS, Diego Jonata Carvalho; SATIAGO-VIEIRA, Sílvio. Corpo surdo também recebe
Orixás: um estudo de caso. Revista Alpha, Patos de Minas, v.18, n. 18, 2017, p. 27-45.

476
DURKHEIM, Émille. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes,
1996.
FERRETTI, Sergio Figueiredo. Querebentã de Zomadônu: etnografia da casa das Minas. São
Luís: EDUFMA, 1996.
LUCA, Taissa Tavernard de. Tem Branco em Guma: a nobreza europeia montou na corte na
encantaria mineira. Belém: PPGSO – Universidade Federal do Pará (tese de doutorado), 2010.
OLIVEIRA JUNIOR, Sérgio Maurício de; SANTIAGO-VIEIRA, Silvio; RIBEIRO, Jakson
dos Santos. Identidade religiosa do médium Surdo no Terreiro de Mina – Jeje Nagô Huevy em Belém
– Pará. Revista Periferia, Duque de Caxias, v. 10, n. 1, 2018, p. 100-119.
SACKS, Oliver. Vendo vozes: uma jornada pelo mundo dos surdos. Rio de Janeiro: Imago,
1998.
SANTIAGO-VIEIRA, Silvio. Panorama Religioso-cultural para Surdos em Belém/PA.
Vitória: UNIDA/Faculdade Unida de Vitória (dissertação de mestrado), 2018.
SANTOS, Eufrazia Cristina Menezes. Religião e Espetáculo: análise da dimensão espetacular
das festas públicas do candomblé. São Paulo, FFLCH/USP (tese de doutorado), 2005.
SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro:
WVA, 1997.
STROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda. 4ª Ed. Florianópolis: Ed. da
UFSC, 2016.
VERGOLINO, Anaíza. O Tambor das Flores: uma análise da federação espírita umbandista
e dos cultos afro-brasileiros do Pará (1965-1975). Belém: 1. Ed. – Pakatatu, 2015.

477
OS PALIKUR. O CONTEXTO RELIGIOSO NA ALDEIA KUMENÊ

Alexander Protta Ribeiro1

Resumo
A tribo Kumenê de origem Palikur, é uma comunidade indígena do Amapá (Brasil). Esse povo teve o seu
primeiro contato com os não-índios no século XVI. Nasce daí o envolvimento com o universo cristão, através dos
portugueses e dos católicos jesuítas franceses. Essa relação, ora conflituosa, ora pacífica, forja os traços ambíguos dos
mitos na cosmovisão palikur: na vida cotidiana revelam a forte presença da cosmologia tradicional, como as que
conduzem suas relações sociais baseadas no parentesco e no respeito entre gerações. Do universo cosmológico cristão se
assimila categorias, como a pessoa de Jesus Cristo, o purgatório, a vida eterna, entre outros. Mas, é na ação missionária
de evangélicos no século XX, como a da New Tribes Mission, que se estabelece o marco inicial da evangelização e a
conversão dos kumenês ao pentecostalismo evangélico. O presente trabalho tem a intenção de elencar a transformação
dos hábitos culturais e religiosos dos kumenês depois da chegada dos pentecostais, em especial, da ação da igreja
Assembleia de Deus na comunidade. Enfim, analisar a roupagem atual dessa relação, que de uma maneira bem intrigante
influencia tanto jovens que desejam ter uma banda gospel, como líderes que se tornam pastores ao invés de caciques.
Palavras-chave: Palikur. Missão pentecostal.

Introdução
Os Palikur (autodenominação Païkwené), povo indígena falante da língua arawak (Aruak) são
uma das populações presentes há mais tempo na região ao norte da foz do Amazonas, principalmente
no Amapá (Brasil) e no país vizinho, a Guiana Francesa. Há vários documentos e relatos por viajantes
europeus, que datam da primeira década do século XVI. Eles estão há tempos em contato com os não-
índios. Fato este que foi traumático até meados do século XX, custou-lhes muitas vidas e a diminuição
radical de sua população. Nos escritos históricos e em suas narrativas orais, os Palikur são descritos
como bravos guerreiros e navegadores.
A aldeia Kumenê (de etnia Palikur), que é destaque neste artigo, é uma tribo que está localizada às
margens do rio Urukauá na reserva Uaçá, em Oiapoque, a 590 quilômetros de Macapá, sendo uma das
mais isoladas comunidades indígenas no extremo norte do país, em meio a selva amazônica. Para chegar
a tribo da etnia palikur é necessário navegar ao menos 20 horas por três rios do Amapá. Nela estão presentes
quase 2.000 índios, segundo o cacique local Azarias Ioio Iaparrá. Na comunidade brasileira, a língua
materna de dialeto Palikur, é uma das únicas culturas preservada, além do idioma patuá, que também é
usado por índios das etnias Karipuna e Galibi-Marworno.

Cosmologia e mitologia
No plano cosmológico, os palikur afirmam que a criação e a estruturação do universo e de
tudo que faz parte deste é obra do deus cristão. Vários aspectos de sua vida cotidiana revelam a forte
presença da cosmologia tradicional, como as que conduzem suas relações sociais, baseadas no
parentesco e no respeito marcado entre gerações ou no exemplo das nas relações econômicas, regidas

1
Alexander Protta Ribeiro, graduando em Ciência da Religião – UFJF. alexprottatrabalhos@gmail.com

478
pela presença dos wahawkri muwok “avós da chuva” (CAPIBERIBE, Artionka. Rio de Janeiro, 2009,
p. 202), que enchem os rios de peixes e marcam as atividades do ciclo da mandioca brava. Sua
cosmovisão vai estimular um grande repertório de mitos.
Os mitos na cosmovisão palikur possuem uma posição ambígua, o que talvez explica a relação
de convivência da mitologia indígena com a religião cristã, evidenciando a sua relação desde o século
XX com os evangélicos. Ponto que será destacado mais à frente deste artigo.
Há vários relatos míticos, como aqueles das relações de qualquer tipo estabelecidas entre
humanos e Deus ou de humanos com espíritos, as quais se passam num trânsito entre o mundo
terrestre (nosso mundo) e o mundo espiritual, chamado de pahakap, que fica localizado em paralelo
ao nosso mundo, nos planos celeste, sub-terrestre e/ou sub-aquático.
Destaco aqui sobre o plano celeste em que num primeiro momento parece ser um espaço
dominado exclusivamente pelo universo cosmológico cristão: a cosmovisão palikur expõe várias
categorias cristãs em seu universo, como a pessoa de Jesus Cristo, o Éden celeste, o purgatório, a vida
eterna, entre outros, e é claro, a visão de céu, que evidencia uma mistura de cosmologias cristãs e
indígenas. As histórias que se passam nele são geralmente protagonizadas por personagens cristãos.
O éden, por exemplo, seria o lugar habitado pela trindade e reservado aos eleitos, que seriam àqueles
que aceitam uma conversão a Jesus, como numa preparação escatológica cristã, ou seja, uma
preparação para o fim do mundo e a morada definitiva no céu, fruto de um processo salvífico.

A relação com os não-índios: católicos e evangélicos


A história dos contatos vivida pelos Palikur desde o século XVI apresenta uma variedade de
atores: comerciantes e viajantes europeus, funcionários administrativos franceses e portugueses,
jesuítas franceses, tropas militares portuguesas, escravos negros fugidos das Guianas, aduaneiros
brasileiros e franceses, missionários católicos e por fim os evangélicos. Quanto a esse último grupo,
destaca-se a maior influência na estrutura religiosa e social dos Palikur a partir da segunda metade do
século XX até os dias atuais.
Inicialmente houve vários conflitos, em especial com os portugueses. Além desse contato
conflituoso ainda conviviam com as doenças espalhadas no convívio com o branco europeu, como as
epidemias de gripe, sarampo e malária. Já com os franceses, um aliado, principalmente da atração de
missionários jesuítas que tentaram por várias vezes instalar missões entre os palikur. Hoje, a região
do baixo rio Oiapoque temos o desenho desse quadro de influências compartilhadas, o catolicismo
aparece como um pano de fundo geral, cuja presença é antiga na região, como já supracitado.
O contato religioso com os evangélicos ganha destaque em 1965 com a chegada do casal de
missionários linguistas do Summer Institute of Linguistics (SIL), Harold e Diana Green, instalou-se
na aldeia de Kumenê no Urukauá e iniciou o aprendizado da língua aruak (o Palikur). O casal

479
permaneceu no Urukauá durante aproximadamente onze anos. Neste período, além de estudar a
língua, os missionários incentivaram a entrada da escola e auxiliaram quando havia problemas de
saúde. Eles teriam usado, ainda, o argumento de que somente na crença em Jesus poderiam obter salvação
divina.
Anos depois (na década de 1970) recebem a visita de um pastor missionário da Missão Novas
Tribos (New Tribes Mission). A ação deste pastor é considerada pelos palikur como marco inicial da
evangelização. Foram suas pregações religiosas que exortaram os palikur a aceitarem Jesus,
batizando-se nas águas. Após este momento, pastores da Igreja Evangélica Assembleia de Deus de
Macapá, capital do Estado, iniciaram a instalação de uma sede da Igreja na aldeia de Kumenê,
consolidada pela consagração de um pastor indígena responsável por sua direção.
Em contato com missões evangélicas e nos quarenta anos que se seguiram desde o
estabelecimento da primeira missão foi se consolidando entre eles um tipo de religiosidade evangélica
pentecostal. Os Palikur são hoje, em sua maioria, filiados à Igreja Evangélica Assembleia de Deus,
esta Igreja possui duas sedes no Urukauá e duas na Guiana Francesa, todas com pastores nativos e o
Novo Testamento integralmente traduzido para a língua aruak (os Palikur).
Os Palikur, também, empreenderam cruzadas evangelizadoras entre seus vizinhos indígenas.
Nos anos de 1980 saíram em missão às aldeias católicas Karipuna e apoiaram o trabalho da Missão
Novas Tribos do Brasil entre os Galibi-Marworno, encarnando o espírito pentecostal de agir.
A introdução da doutrina evangélica é um marco para essa população. As histórias de vida
são sempre balizadas por um antes de Cristo e um depois de Cristo particulares e coletivos. A
consagração religiosa implicou em uma série de mudanças no comportamento dos índios em razão da nova
doutrina adotada na tribo indígena. Se antes eram atormentadas por brigas conjugais, bebedeiras que
terminavam em agressões ou ameaças de malefícios por feitiçaria, passaram a desfrutar de uma certa
harmonia e de paz nas relações sociais e os xamãs passaram a ser vistos de forma negativa pela
comunidade palikur, fazendo com que esse povo se afastasse e muito de suas origens religiosas.
Outras práticas culturais combatidas pela religião protestante foram extintas, como a circulação de
pessoas nuas na aldeia, danças típicas, feitiçaria de pajés e o caxixi, bebida com teor alcoólico a base de
mandioca fermentada com saliva. Outra mudança refletida na tribo tratou do espaço da comunidade:
as casas dos índios que antes eram afastadas umas das outras, passaram a ser construídas em distâncias
menores entre si. Cada família tinha a própria aldeia, mas depois dos missionários passaram a viver
mais próximos, como se fosse uma única família.
Os índios também aprenderam a língua do branco para melhor comunicação com os missionários,
embora a comunicação entre si, incluindo os cultos, é realizada em dialeto nativo, o palikur. Apenas as
palavras “Jesus”, “Aleluia” e “Amém” não tem tradução para a língua indígena usada na aldeia.
(SANTIAGO, Abinoan. Do G1 AP. 09/06/2014).

480
O rito do batismo com o Espírito Santo é um destaque entre os palikur convertidos. É uma
experiência de êxtase, um transe religioso, onde Deus toma conta do corpo do fiel religioso, é descrito
como um momento de grande prazer no qual as pessoas sentem uma vontade irrepreensível de chorar
e de se alegrar. É o ponto de similitude entre os pentecostais e as tradições religiosas dos índios
amazônicos. Numa sociedade indígena o paralelo desse tipo de experiência de contato com um plano
espiritual é encontrado no xamanismo. Os meios de comunicação de Deus com os homens que
aparecem nas narrativas de conversão, como este transe religioso, a manifestação em seres da
natureza, os sonhos e o canto, assemelham-se a um universo de conhecimento xamânico. Por meio
do batismo com o Espírito Santo operou-se uma aproximação entre a religião que acabava de chegar
e um referencial de contato com o mundo dos espíritos previamente conhecido pelos palikur. Além
disso, o batismo com o Espírito Santo é visto como uma prova da existência concreta de Deus. A
experiência de êxtase religioso é, não só a força de atração, mas a mantenedora dos laços com a Igreja,
porque é considerada como um caso particular daquilo que se vai vivenciar na vida eterna: gozo,
alegria, vida sem intempéries. O perdão é a chave para essa vida eterna, pois permite a todo aquele
que se arrepende de seus pecados reaproximar-se da Igreja e estar novamente apto ao éden celestial.
Ainda segundo o cacique Kumenê Azarias Ioio Iaparrá, foi a incorporação do protestantismo, que
determina a identidade religiosa e social atual: “Somos evangélicos. A maioria da aldeia é crente”, resumiu
o líder indígena. Antes adeptos da cultura em que o Deus era a natureza, os índios da aldeia Kumenê
passaram a acreditar em Jesus Cristo. (SANTIAGO, Abinoan. Do G1 AP. 09/06/2014).
Não há nesta região do extremo Norte Amazônico uma pluralidade religiosa. Tem uma aldeia
adventista, a Irimwewni, e duas aldeias que recebem a visita do padre responsável pela paróquia de
Oiapoque: a Amomni e a Isuwvinwa. Já o xamanismo foi lançado para um plano social discreto, com
seus xamãs (ihamwi) banidos da região do Urukauá.
Mas, é a influência pentecostal na aldeia que se mostra tão forte e sólida. Prova maior dessa
influência na vida religiosa dessa comunidade, é que os cultos são animados por jovens com as suas bandas
golpel. Várias bandas participam durante a celebração, sendo a maioria delas, formada apenas por
indígenas. É o caso da banda Missão de Gideão que existe há mais de vinte anos e é uma das mais antigas
na comunidade da tribo Kumenê, segundo um dos seus membros Sofonias Hipólito. Em uma entrevista ao
G1 Sofonias disse que o grupo musical é composto por quase dez pessoas, a maioria jovens. Ao longo de
duas décadas, centenas de músicas gospel foram compostas na língua materna da aldeia, informa Hipólito,
deixando claro a identidade linguística ainda presente entre os kumenês.
Apesar do abandono às origens em muitos aspectos de suas tradições, um ponto relevante da
manutenção das tradições palikur se faz presente durante este período pandêmico: o uso de ervas
tradicionais para a “cura” da Covid. Os matos amargos, como são chamadas as ervas pelos índios, são
consumidas via oral, através o chá, mas também são usadas em banhos, com horários bem definidos, como

481
num rito de purificação e lavagem dos males. Tal prática é estimulada e praticada até mesmo entre os
pastores evangélicos indígenas. De certa forma, essa tradição indígena palikur revive de maneira palpável
às ações xamânicas no auxílio de curas das doenças, não causando desconforto ou um sentimento de
abominação por parte da comunidade kumenê, hoje evangélica.

Considerações finais
Os Palikur, da aldeia Kumenê, tiveram ao longo de sua história a inserção do branco colonizador e
missionário. É inegável que a cultura religiosa cristã forjou a comunidade Kumenê ao longo dos anos e os
afastou, pelo menos em tese, de suas origens religiosas e de suas relações sociais tradicionais.
Como em muitas comunidades urbanas da periferia dos grandes centros no Brasil, os povos da
floresta Amazônica também encarnaram o espírito pentecostal em seus hábitos e nas práticas do dia a dia.
O xamanismo tradicional viu-se distante e marginalizado na tribo palikur dos kumenês, e o índio, por mais
que mantenha em sua vivência algumas características de origem, como a língua, inclusive nas celebrações
evangélicas, está longe da essência de sua identidade original.
A relação com a natureza, o respeito a mãe terra, ainda existe, como vimos nas citações dos usos
das ervas amargas durante a pandemia da Covid, mas ainda são norteadas pela cosmologia cristã
pentecostal dos novos tempos. Os líderes indígenas Kumenês parecem que não se tornam mais caciques,
mas pastores empenhados na construção de um reino espiritual cristão, da esperança de um novo mundo
após a morte, do novo éden, como citado no início deste artigo.

Referências Bibliográficas
CAPIBERIBE, Artionka. Nas duas margens do rio. Alteridade e transformações entre os
Palikur na fronteira Brasil/Guiana francesa. PPGAS-MN/UFRJ, Rio de Janeiro, 2009. Tese de
doutorado – Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPGAS - Museu Nacional.
CAPIBERIBE, Artionka. Batismo de fogo: os Palikur e o cristianismo. São Paulo:
Annablume; Fapesp, 2007.
CAPIBERIBE, Artionka. A fragilidade de um sistema de conhecimento: o cristianismo entre
os índios Palikur. Com Ciência. [LABJOR/UNICAMP/SBPC]. Campinas, 64, 2005. Disponível em:
http://www.comciencia.br/reportagens/2005/04/13.shtml. Acesso em 25 fev de 2021.
COSTA, Marco Antônio P. Indígenas do Amapá dizem superar a covid-19 com remédios do
mato. Seles Nafes AP. 27/07/2020. Disponível em: https://selesnafes.com/2020/07/indigenas-do-
amapa-dizem-superar-a-covid-19-com-remedios-do-mato/ Acesso em 02 mar de 2021.
SANTIAGO, Abinoan. Índios deixam costumes tradicionais e viram evangélicos em aldeia, no AP. G1 AP.
09/06/2014. Disponível em: http://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2014/06/indios-deixam-costumes-
tradicionais-e-viram-evangelicos-em-aldeia-no-ap.html Acesso em 01 mar de 2021.

482
A MÚSICA COMO EXPRESSÃO DA RELIGIÃO NO COTIDIANO: O
DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO ENTRE O CRISTIANISMO E A UMBANDA
TRATADAS NA MÚSICA DO GRUPO O RAPPA, “CRISTO E OXALÁ”

Edgar Francisco da Silva Júnior1

Resumo
O presente artigo visa trabalhar especificamente o diálogo inter-religioso entre duas religiões – o cristianismo e
a umbanda –, com seus personagens principais – Jesus Cristo e Oxalá –, tratados na música “Cristo e Oxalá”, do grupo
“O Rappa”. Evidenciando o que se passa no cotidiano das pessoas e em sua prática religiosa, a letra da canção, a partir
do diálogo inter-religioso, demonstra a pluralidade religiosa do nosso país. Poeticamente, o autor manifestou este
fenômeno que perpassa os meandros da sociedade: o desejo de satisfazer seus anseios e o auxílio para suas tribulações na
junção de duas matrizes religiosas de relevante expressão na cultura brasileira: afro e cristã.
Palavras-chave: Diálogo inter-religioso; cristianismo e umbanda; linguagem religiosa; práticas religiosas.

O cristianismo e a umbanda
Desde 64 a. C., na região da Judéia, sob o domínio romano, a tradição judaica difundia a
crença na vinda de um Messias, o redentor, o salvador, o filho de Deus, que seria a redenção para
todos aqueles que nele acreditassem. Todavia, surgiu na Palestina um homem que, aos 30 anos, dizia
ser “O Cristo filho de Deus”. Seus seguidores passaram a ser chamados de “cristãos”, denominação
esta utilizada pela primeira vez em Antioquia, uma colônia militar grega. Sendo assim, da mesma
forma que o islamismo e o judaísmo, o cristianismo é uma religião abraâmica. Com efeito, a Bíblia
Sagrada, composta pelo Antigo e pelo Novo Testamento, é o fundamento dos cristãos
(ARMSTRONG 2007, p. 121).
Abarcando cerca de 2,13 bilhões de fiéis no mundo, o que representa 33% da população
mundial, o cristianismo, que se divide em três ramos principais – católicos, protestantes e ortodoxos
– é uma das maiores influências religiosas. Apesar do esforço por parte das lideranças da Igreja, no
decorrer do processo histórico, para manter a unicidade, o cristianismo sempre foi marcado por
reações, que acabaram desembocando em seu caráter diverso, plural e multifacetado (ARMSTRONG
2007, p. 110).
Uma grande reação ocorreu no período da Reforma, que foi implantada por Martinho Lutero,
em 1517 (ARMSTRONG 2007, p. 102). A partir de então, o cristianismo foi ramificando-se em todo
o mundo, dialogando com ensinamentos e doutrinas de outros pensadores ou de outras religiões, de
forma que, onde ele chegava e se estabelecia, ocorriam adaptações aos contextos sócio-histórico-
culturais. Hoje, fazendo parte da vida cotidiana, está presente em vários países, sincretizando e
bricolando, sendo ressignificado a partir de várias religiões.

1
Bacharel em Teologia pela Unicesumar. Especialista em Ciência da Religião pela UFJF. Licenciando em Ciência da
Religião pela UFJF. E-mail: junioredgar501@yahoo.com.br.

483
Um exemplo disso é a umbanda, termo do vocabulário quimbundo, de Angola, que significa
“arte de curar”. Vale retomar seu surgimento no Brasil: por volta de 1908, Zélio Fernandino de
Morais, sintetizando elementos das religiões africanas, como o Candomblé, do Catolicismo e do
Espiritismo, fundou a umbanda, baseando-se em três conceitos fundamentais: Luz, Caridade e Amor.
Conta-se que, num dia de ritual, mesmo tendo sido alertado pelo chefe do terreiro para não manifestar
determinados espíritos de índios e negros, pelo fato de eles serem considerados espíritos atrasados,
Zélio incorporou o “Caboclo das sete encruzilhadas”, que lhe determinou fundar uma nova religião
em que seriam incorporados não só todos os deuses das religiões afros, mas também os espíritos de
negros e índios. Essas entidades iriam auxiliar e orientar seus irmãos na vida cotidiana. Terminada a
incorporação, ele fundou o primeiro terreiro de umbanda chamado de Tenda Espírita Nossa Senhora
da Piedade. Desse modo, surge a umbanda: uma religião a partir da qual os espíritos dos velhos e dos
negros escravos e índios de nossa terra poderiam trabalhar em auxílio dos seus irmãos encarnados,
não importando cor, raça ou posição social.

A pluralidade religiosa e o diálogo inter-religioso


Religiosamente falando, o Brasil é plural e diversificado, já que foi formado a partir do
encontro de três povos: portugueses, índios e negros, o que foi responsável por um choque de culturas
e de religião (CAMURÇA 2009, p. 174). Como o modelo predominante era o branco europeu cristão,
homem evoluído e civilizado, a religião predominante foi a cristã. Segundo Pierre Sanchi, embora
exista um substrato religioso católico no Brasil, ao longo dos anos, as religiões africanas trazidas
pelos escravos negros e as indígenas não foram eliminadas completamente, mas se adaptaram e
assumiram novos traços ressignificando a realidade e a cultura brasileira. Dessa forma, podemos
afirmar que há o surgimento de uma religiosidade popular, que nada mais é do que sincretismo entre
as religiões afro, as indígenas, a cristã católica e a protestante. Contudo, as religiões cristãs são plurais
em si mesmas, dentro de seus variados ramos, podendo-se falar em catolicismos, protestantismos e
evangélicos, dadas as várias correntes teológicas e doutrinarias dentro dos mais variados grupos
cristãos. Da mesma forma que podemos falar em espiritismos ou de religiões afro-brasileiras
(CAMURÇA 2009, p. 175).
Entretanto, durante anos, o diálogo entre essas religiões, institucionalmente, não era nada
amistoso. Pelo contrário, sempre houve disputas pela hegemonia ou pela busca de legitimação no
campo religioso brasileiro. Nas religiosidades populares, era comum certo trânsito ou troca de práticas
e de elementos na busca de orientação ou solução para os infortúnios vivenciados na vida terrena ou
na busca por respostas para além da vida. Ou seja, na prática, os fiéis, não raro, optaram por praticar
ou misturar mais de uma prática ou costume religioso (CAMURÇA 2009, p. 178).

484
Essa tensão ainda persiste entre grupos religiosos, motivo pelo qual acadêmicos, líderes
religiosos e até mesmo entidades governamentais têm buscado aproximar os grupos a partir do que
denominam diálogo inter-religioso. Trata-se da troca de elementos, como doutrinas, ensinamentos,
práticas religiosas (orações e rezas) ou até mesmo realização de trabalhos em prol do bem comum,
como projetos sociais, trabalhos voluntários, etc. Quando ocorre o diálogo de forma harmoniosa e
respeitosa, todos os envolvidos acabam sendo beneficiados, pois, a partir da troca de elementos, cada
indivíduo passa a conhecer e a valorizar ainda mais sua própria tradição religiosa, acrescentando,
inclusive, elementos diferentes e que completam seu próprio culto religioso (TEIXEIRA 2012, p.
189).

A música como expressão da religião no cotidiano


Quando se fala em religião, as pessoas logo pensam em templos e igrejas institucionais. É
preciso ressaltar o que os teóricos chamam de espiritualidades individuais e religiosidades populares
da vida cotidiana, em que as pessoas vivem e praticam suas religiosidades. Experiências individuais
estão na vida social da população; consistem nas expressões culturais (culinária, simpatias, etc.) e
artísticas (música, dança, etc.), muitas das quais presentes no folclore brasileiro.
Rubem Alves (teólogo, filósofo, educador e escritor) desenvolveu várias teorias sobre a
religião. Em sua tese de doutorado, Alves chega à conclusão de que a comunidade de fé (religião)
deveria produzir uma linguagem que fosse capaz de nomear as coisas que estão ausentes no ser
humano. Em uma de suas obras mais recentes, O que é religião (ALVES, 2014), seguindo as pegadas
de Albert Camus, fornece algumas definições do que é religião: o homem é a única criatura que se
reusa a ser o que ela é (p. 16). Por esse motivo, segundo o autor, o homem, um ser de desejo, faz a
cultura a fim de criar os objetos do seu desejo (ALVES 2014, p. 22). Em outras palavras, toda a
construção de mundo, jardins, prédios, cidades, artes, quadros, pinturas, músicas, dança, entre tantas
outras proezas, fazem parte da criação dos objetos para satisfazer os prazeres e anseios do homem.
E onde está a religião? Para o autor, ela está exatamente onde o homem fracassa, onde ele não
consegue controlar, ou fazer, ou construir. Nesse vão nasce a religião para substituir os objetos
desejados. Dessa forma, o homem faz religião para criar seus objetos de desejo: onde ele falha,
nascem os símbolos. A religião é uma visão encantada do mundo como ele deveria ser. O autor
conclui que a religião são os “símbolos da ausência”, ou seja, é uma linguagem capaz de nomear as
coisas ausentes (ALVES 2012, p. 307). Isso só é possível por meio da imaginação: “Aqui surge a
religião, teia de símbolos, rede de desejos, confissão da espera, horizonte dos horizontes, a mais
fantástica e pretenciosa tentativa de transubstanciar a natureza” (ALVES 2014, p. 24).
Nesse sentido, a religião expressa-se de várias formas, seja nas artes, seja nas práticas culturais
e cotidianas. Apesar disso, sob a argumentação de serem elas as detentoras do dever de ensinar e

485
transmitir as práticas religiosas e doutrinárias, as instituições deslegitimam certas práticas e
experiências religiosas do cotidiano. Em virtude disso, as instituições religiosas hegemônicas tendem
a condenar as práticas de outros grupos religiosos. A despeito disso, o religioso sempre vai buscar
aquilo que irá suprir seus anseios e suas necessidades, de forma que, em constante movimento, ele
transita entre diversas tradições religiosas, entre práticas e espiritualidades.

O Rappa e a religiosidade popular brasileira


O presente texto visa apresentar, a partir da letra da canção “Cristo e Oxalá”, do grupo “O
Rappa”, um dos grupos de maior expressão cultural da música brasileira, o diálogo inter-religioso
entre a umbanda e o cristianismo.
Oxalá se mostrou assim tão grande
Como um espelho colorido
A mostrar pro próprio Cristo como ele era mulato
Já que Deus é uma espécie de mulato
Salve, em nome de qualquer deus, salve
Salve, em nome de qualquer deus, salve
Se eu me salvei
Se eu me salvei
Foi pela fé, minha fé é minha cultura
Minha fé
Minha fé é meu jogo de cintura
Minha fé, minha fé é é é é
O Cristo partiu do alto do morro que nós somos
Rodeado de helicópteros que caçavam marginais
A mostrar, mais uma vez, o seu lado herói
Se transformando em Oxalá, vice-versa, tanto faz
A rodar, todo de branco, na mais linda procissão
Abençoando a fuga numa nova direção
Minha fé é meu jogo de cintura
Minha fé
Minha fé é meu jogo de cintura
Minha fé, minha fé é é é
O Cristo partiu do alto do morro que nós somos…

Formada em 1993, no Rio de Janeiro, “O Rappa”, num ousado estilo de mistura de reggae,
rock e rapper, foi uma banda notável por suas letras de cunho social, com fortes traços da sociedade
e da cultura brasileira, além de expressão da religiosidade popular, promovendo diálogo entre as
religiões e religiosidades. Na letra da música analisada, nota-se a troca de elementos religiosos:
Cristo, apresentado pela imagem do alto do Corcovado, para o qual todos levantam seu olhar a fim
de se encherem de forças para enfrentarem suas lutas diárias, é transformado em Oxalá.
Diferentemente da imagem do Cristo de etnia branca, do catolicismo oficial europeu, o poeta
apresenta o Cristo mulato. Vale ressaltar que, na Umbanda, Cristo é representado como Oxalá, o
guerreiro heroico que vem para socorrer seus irmãos de etnia.
Dessa forma, vemos a manifestação e a valorização da cultura negra brasileira nessa
transmutação de Jesus Cristo em Oxalá. Outra questão importante são as espiritualidades

486
apresentadas, ou seja, “Cristo rodando todo de branco”. Trata-se de uma referência aos terreiros de
umbanda e candomblé, onde os pais de santos, quando estão no processo de incorporação, dançam,
todos de branco, trazendo, no fim do ritual, uma mensagem de fé e esperança para os fiéis. Também
há referências às procissões católicas pelas ruas das cidades, onde se reúnem pessoas das mais
variadas tradições religiosas, das mais variadas raças e etnias, das mais variadas classes sociais e dos
mais variados gêneros. Nessas procissões, todos reciprocamente se fortalecem na caminhada em
direção à superação de seus infortúnios da vida terrena.
O autor ressalta que “a fé é a cultura dele”, e o seu “jogo de cintura”, ou seja, a fé produz a
diversidade e a pluralidade religiosa, como se confirma pelo verso “salve em nome de qualquer
Deus”. O poeta valoriza a diversidade religiosa brasileira e entende que o universo religioso é repleto
de um panteão de santos e deuses de variadas culturas e variados povos. Isso é sintetizado e assimilado
na religiosidade popular do Brasil.
O grupo “O Rappa” expressa em sua música a cultura popular brasileira, sendo que sua fonte
de inspiração foi tanto a observação da vida cotidiana das pessoas e dos relatos e testemunhos
espalhados por todo o nosso país, quanto suas próprias experiências vivenciais de fé e espiritualidade.
O fato é que, embora as instituições tentem manter seus fiéis enclausurados dentro de seus limites e
sistemas doutrinários, a criatividade e a imaginação das pessoas forçam a busca por novas formas de
espiritualidades para saciar os anseios, os desejos e as necessidades, sejam elas materiais ou
espirituais, de forma objetiva ou subjetiva.

Conclusão
A canção “Cristo e Oxalá”, do grupo “O Rappa”, uma das maiores bandas da música popular
brasileira, traz à tona o sincretismo religioso brasileiro. A letra da música é uma expressão da crença
sincrética do autor, que pode encontrar eco em todos que a ouvem. Por fim, é importante ressaltar
que os traços da diversidade étnica e cultural não estão presentes apenas na letra da música, mas
também nos instrumentos e no ritmo.
À guisa de conclusão, retomando Rubem Alves, se as artes, a música e a dança são expressões
humanas da religião, o sincretismo e o pluralismo religioso são as marcas fundamentais da cultura e
das espiritualidades brasileiras.

Referências Bibliográficas
ALVES, Rubem. Por Uma Teologia da Libertação. Fonte editorial LTDA. 2012.
ALVES, Rubem. O que é Religião. São Paulo. Edições Loyola. 2014.
ALVES, Rubem. O Enigma da religião. Papirus LTDA. 2006.
ARMSTRONG, Karen. A Bíblia. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor Ltda, 2008.

487
CAMURÇA, Marcelo. Entre sincretismo e “guerras santas”: dinâmicas e linhas de força do
campo religioso brasileiro. In: Revista USP, São Paulo, n.81, p. 173-185, março/maio 2009.
Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/13740/15558
DA MATA, Sérgio. História & Religião. Kindle. 2013.
FALCÃO. Cristo e Oxalá. In: Lado B Lado A. O Rappa. Estúdio 304, Rio de Janeiro, 1999.
GEBARA, Ivone. O que é Teologia. São Paulo: Brasiliense, 2006.
RIBEIRO, Claudio de Oliveira. O Princípio Pluralista. In: Cadernos de Teologia Pública-
IHU. XVI, vol. 14, n. 128, 2017.
SHEDD, Russell. Bíblia Sagrada; Tradução João Ferreira de Almeida. Edições Vida Nova.
São Paulo. 2011.
TEIXEIRA, Faustino. O imprescindível desafio da diferença religiosa. In: Revista
Interdisciplinar da Mobilidade Humana, Brasília, Ano XX, Nº 38, p. 181-194, jan./jun. 2012.
Disponível em: http://www.csem.org.br/remhu/index.php/remhu/article/view/306/281

488
A DAMA DO PASSO DO MARACATU: O SAGRADO VIVIDO PELA YABÁ
GUARDIÃ DA CALUNGA

Valdenice José Raimundo1


Maria Lúcia Gomes dos Prazeres2
Resumo
O artigo se propõe a analisar experiências místicas, narradas por uma Yabá, Dama do Passo do Maracatu Leão
Coroado, guardiã da Calunga de Dona Isabel, entidade sagrada que integra a agremiação desde 1863 e desfila nas ruas de
Recife até a atualidade. Neste sentido, ouvimos Dona Janete e resgatamos as histórias contadas/vividas por ela nos
momentos em que pedia orientação à Calunga, como deveria proceder para colocar o cortejo do Maracatu nas ruas. Para
(LUZ. 2013. p.201) “A oralidade resguarda a tradição africana e afro-brasileira que fortalece o indivíduo, seu
pertencimento e os valores vivenciados na coletividade”. Desta forma, a coleta e análise de sua narrativa seguiram a
orientação de (INOCÊNCIO. 2006. p.55) quando afirma que o “Sagrado é todo objeto ou pessoa, tempo ou espaço, que
ganha caráter simbólico ou abre um portal para a experiência de transcendência”. Experiências essas que segundo
(MEIHY. 2005. p. 175.), “Quando vividas, gravadas, transcritas e analisadas são consideradas documentos orais que
podem favorecer o aflorar da memória ancestral, de histórias de resistência, de construção e reconhecimento de
identidades negras e da formação da consciência comunitária”. Como produto desse trabalho, apresentamos histórias de
resistência e vivência com o sagrado.
Palavras-chave: Sagrado; Dama do Passo; Transcendência.

A Yabá e Suas Experiências com o Sagrado


Yabá é um orixá feminino cultuado em Casa de Religião de Matriz Africana. Nome que, no
candomblé, também é dado às filhas desse orixá por expressarem compromisso com a preservação
dos valores civilizatórios africanos na comunidade de terreiro, candomblé.
As Yabás possuem o poder de encantar-se para atuarem, principalmente, na gestação, no parto,
no acompanhamento às mães de crianças recém nascidas. As divindades femininas Yemanjá e Oxum
foram as primeiras a ser chamado de Yabá por usarem filá, véu que cobre o rosto representado
nobreza. Atualmente, no candomblé brasileiro, em cerimônia de celebração ao dia das Yabás são
cultuados às seis orixás femininas (Yemanjá, Oxum, Nanan, Obá, Ewa, Oyá) que (BERKENBROCK
2012, p. 228) descreve algumas de suas característica:
Yemanjá é cultuada na Nigeria pelo povo Egba em Abeokuta. É a Yabás que resguarda o
poder da mulher e possuis as virtudes de mãe pacificadora, conselheira, inteligente. m – reina
em Ijexá, grupo étnico Yoruba. Yabá da sabedoria, fertilidade, maternidade, equilíbrio. É a
deusa da alegria, riqueza e harmonia.
Obá - Yabá da sociedade Elekoo do cultua aos eguns. Forta, guerreira, ousada, digna, luta
pelos direitos da mulher.
Nanã - Yabá carinhosa, valoriza a família, a amizade, o respeito ao próximo, a fidelidade.
Ligada ao barro, elemento da criação, responsável pelo começo e fim da existência.
Ewá – Yabá caçadora habilidosa e valente, domina a vidência e poder de ficar invisível, tudo
que é inexplorado: a mata virgem, os rios e os lagos onde não se pode navegar.

1
Pró-reitora de Pesquisa, Pós-graduação e Inovação da UNICAP-PE; Dra. em Serviço Social pela UFPE; Líder do Grupo
de Estudos e Pesquisas em Raça, Gênero e Políticas Públicas; Membra do Coletivo de Acadêmicas Negras Luiza
Bairros. valdenice.raimundo@unicape.br
2
Doutoranda em Ciências da Religião pela UNICAP –PE; Membro do NEABI - Núcleo de Estudos Áfro-Brasileiro e
Indígena –/UNICAP;, do Laboratório Transdisciplinar das Religiões do Recife - UNICAP. Membro do Laboratório de
Educação das Relações Étnico-Raciais – LABERER/UFPE. E-mail: luciaprazeres@hotmail.com

489
Oyá - Yabá destemida encanta-se ora em leopardo, ora em búfalo. É ao mesmo tempo brisa
e tempestade. Suas palavras, força e ação serão sempre levadas pelos ventos aos quatro cantos
do mundo. Mão do Céu Rosado que significa Yansã.

Dona Janete, Yabá e Dama do Passo do Maracatu Leão Coroado, possui a orixá Oyá
divinizada em seu Orí/cabeça, atributo necessário para que ela pudesse assumir a incumbência de
conduzir e dançar com Calunga nas apresentações do Maracatu durante o carnaval.
A Calunga, figura central que vai a frente do cortejo do Maracatu, é uma boneca feita de cera
e madeira, que representa um egun, ancestral falecido que foi membro da agremiação, ou uma
personalidade, também já falecida, e que assumiu papel de grande relevância para a nação. Essa
personagem é escolhida para ser a protetora da entidade, de todos seus integrantes e do cortejo do
Maracatu quando ele sai as ruas durante o carnaval.
No caso do Maracatu Leão Coroado, eles escolheram Dona Isabel para ser a Calunga do
Maracatu, em reverência a Princesa Isabel, que segundo os dirigentes, foi responsável pela libertação
dos negros africanos escravizados. Existe uma segunda Calunga, Dona Emilia que dança com uma
Yabá filha da Oxum. Os dirigentes da agremiação mantêm em segredo a sua origem e o porquê de
ter lhe escolhido como objeto segredo da agremiação. Seguindo a tradição, elas resguardam a emergia
espiritual dos ancestrais mortos, mistério que as tornam sagrada.

VIVÊNCIA COM O SAGRADO


Lúcia dos Prazeres

O sagrado se revela Não pense que está longe


Em momento especial Preste muita atenção
Um fato que nos atinge Sempre está a nossa frente
Que nos causa algum mal Exigindo uma ação
Ou por uma coisa boa Conhecimento e saber
Que nos deixa rindo ato Compromisso, transformação
E nos chama pra real São vivências do sagrado
Vindas por revelação
Mesmo que não imagines
Um dia vais encontrar Dona Janete encontrou
Situação que lhe envolva Uma grande solução
Que lhe bote a pensar Optou por abraçar
Possa construir histórias Dona Isabel vida em ação
Ter muitos anos de glória Pessoa negra, guerreira
Quando esse feito abraçar Coragem, determinação
Que passou a militar
Na trilha de uma NAÇÃO

Seguindo os preceitos de todos os Maracatus, as duas Calungas, foram submetidas ao ritual


de consagração, conforme explicação de (INOCÊNCIO. 2006. p.55) “Sagrado é todo objeto ou
pessoa, tempo ou espaço, que ganha caráter simbólico ou abre um portal para a experiência de
transcendência”. Partindo desse princípio, as Calungas são elementos sagrados do Maracatu e
enquanto objeto sagrado, passaram a receber um trato semelhante aos das Orixás, portadoras dos
mistérios e segredos do Maracatu.

490
A Dama do Passo é uma das principais guardiãs do Axé do Maracatu e a única integrante que
pode tocar na Calunga. Para assumir essa incumbência e necessário que, tanto ela quanto a Calunga
passem por rituais religiosos, cujos preceitos se iniciam no dia três de novembro e se estende até a
quarta feira de cinzas, após o carnaval. Nesse período, Dona Janete e as Calungas são submetidas a
vários processos ritualísticos para renovação do Axé, energia vital. Axé que possibilita que elas se
conectem com uma dimensão mais profunda de sua espiritualidade, purificando seu campo energético
e magnético com o propósito de protegê-las e blindá-las contra qualquer malefício que possam
encontra nas ruas. Esse processo transforma Dona Janete e a Calunga em principais beneficiárias do
Axé emanado na ritualística do candomblé. Momento em que, a Dama do Passo passa a ser uma das
figuras mais importantes do Maracatu, protetora de toda a agremiação. No momento da saída do
Maracatu ela abençoa o cortejo e assume a dianteira abrindo caminho e disseminando axé por onde
passa.
Em seu depoimento Dona Janete narra que, a partir do momento em que ela, Dona Isabel e
Dona Emilia passam pelos preceitos, no dia 03 de novembro, elas ficam resguardadas, purificam-se
diariamente com amassi /banho com ervas cheirosa. Dona Janete não sai de casa, pouco fala,
dedicasse exclusivamente a produzir as vestimentas do maracatu. De acordo com seu depoimento:
Dona Isabel me orienta em tudo, no tipo de fazenda que devo comprar, nas cores, nos modelos
e até como devo fazer suas novas roupas. Qualquer duvida que eu tenha peso esclarecimento
a ela e logo vem a resposta. Às vezes eu sonho, outras vezes eu escuto, tem momento que a
orientação vem em minha cabeça e eu tenho certeza que é ela falando. Nesse momento eu
sinto uma emoção diferente, uma energia que invade meu peito e me manda agir. Então eu
agradeço e imediatamente vou fazer do jeitinho que ela orientou.

Dona Janete fez uma pequena pausa em sua narrativa e respirou profundamente, parecia que
o fato estava acontecendo naquele momento e depois concluiu, “Eu converso tudo com Dona Isabel
e sinto que eu e ela somos duas grandes amigas.” Referente a esse fato (LODY. 2006, p.63) explica
que: “Tudo é ou pode ser fonte de conhecimento, saber e aprendizagem. O conhecimento pode ser
encontrado nos livros, no cotidiano, na vida. Podemos aprender com música, mito, culinária, oração,
dança, escrita, vivências”. Essa fala foi confirmada por Dona Janete quando disse que as Calungas se
utilizavam de varias linguagens para repassar mensagens para ela. Orientações apontando formas
como ela deveria realizar seu papal de Dama do Passo. Seguindo essa mesma linha de raciocínio,
(LUZ. 2013, p.201) cita que “A oralidade resguarda a tradição africana e afro-brasileira que fortalece
o indivíduo, seu pertencimento e os valores vivenciados na coletividade”. Coletividade essa que
preservou a linhagem africana que deu origem aos cortejos de Maracatu.
Neste sentido, o diálogo existente entre Dona Janete e a Calunga, tanto demonstra a relação
estabelecida entre elas, como os efeitos das experiências com o sagrado vivenciada no Maracatu Leão
Coroado, que se respalda na colocação de (MOURA. 2015, p.23): “O ser humano vive a necessidade

491
de projetar-se para além, direcionando as suas construções sociais e culturais, que inclui o sagrado e
a sua dimensão transcendental e espiritual”.
Em outro momento, Dona Janete externou a grande emoção de ter sido escolhida para ser a
Dama do Passo, guardiã da Calunga. Segundo sua narrativa, quando ela se veste e fica posicionada à
frente do Maracatu, com a Calunga erguida para o alto, seu peito é tomado por uma grande alegria.
Alegria essa que se multiplica quando ela escuta os aplausos e o rufar dos tambores. Para (SODRÉ.
2002. p.163) “A alegria está próxima ao sagrado, ao êxtase, a saída de si para encontrar-se com a
força integradora de realização.” Essa alegria que Dona Janete sentiu no momento da saída do
Maracatu, era semelhante à emoção descrita por ela durante as vivências que tinha com a Calunga
de Dona Isabel.
Neste sentido, seu depoimento também comunga com o pensamento de (MOURA. 2015, p.10)
“Ao produzir culturas, conhecimentos, linguagens e simbologias são estabelecidas relações
permanentes com a construção e a manutenção da vida em sociedade”, principalmente quando essas
produções apontam para a religiosidade e as vivências místicas que vem inspirando o fazer da Dama
do Passo e, ao mesmo tempo, justificando a integração entre os participantes do Maracatu, o
crescimento constante da agremiação e sua permanência durante esses 158 anos de existência.
Desta forma, a escuta, gravação e registro fotográfico da experiência apresentada por Dona
Janete, se transformaram no material transcrito que deu origem a esse artigo. Para isso, seguimos a
orientação de (MEIHY. 2005. p. 175.), quando coloca que, “As experiências vividas, quando
gravadas, transcritas e analisadas são consideradas documentos orais que podem favorecer o aflorar
da memória ancestral, de histórias de resistência, de reconhecimento de identidades e da formação da
consciência comunitária”. No conjunto das informações apresentadas nesse artigo, poderemos
observar elementos que confirmam a citação anterior, a exemplo de histórias de resistência,
reconhecimento de identidades, formação da consciência comunitária, fatores que são vivenciados na
o conjunto do Maracatu.

Cortejo do Rei e da Rainha de Congo


Para alguns pesquisadores, a exemplo de (SILVA. 2017. p.20), “Foram os Cortejos do Rei e
da Rainha de Congo, também chamados de Festa do Rei Negro, realizados durante a comemoração
de Nossa Senhora do Rosário, que provavelmente deram origem aos Maracatus.” De acordo com seus
escritos, a celebração era formada por: “[...] um cortejo, com a presença da guarda real, coroação do
rei e rainha da festa, dramatização de lutas, presença de bonecas conduzidas como damas, tradição
da celebração de santos negros, como São Benedito, Santa Efigênia, Santo Elesbão, São Gaspar”.
(IDEM. 2017. p.20),

492
À proporção que Dona Janete falava ia tirando conclusões que pareciam novidade para ela. A
primeira foi sobre a Dama do Passo, que segundo ela, nunca tinha se perguntado sobre sua origem
nem o tão pouco porque eram chamadas dessa forma. Quando ela própria falou sobre as bonecas
conduzidas por damas, na festa do Rei Negro, exclamou que havia compreendi que a Dama do Passo
do Maracatu estava relacionada com aquele evento. Outra conclusão tirada por ela referiu-se à relação
de seu Luiz de França com a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e de Santo
Benedito. Segundo ela, a vivência de Seu Luiz com a irmandade, estava relacionada ao local ser um
foco de resistência, onde se trocava informações, saberes, plano de melhoria social dos grupos e
principalmente dar continuidade as suas ações culturais e religiosas.
Depois de suas conclusões, ela continuou falando. Disse que Seu Luiz de França era um dos
dirigentes mais antigos do Maracatu, como todo preto velho, ele guardava muitos segredos,
conhecimentos e saberes, que eram repassados aos poucos e em ocasiões especiais. Próximo a
completar 100 anos de idade, ele entregou a direção da agremiação a Mestre Afonso, o companheiro
dela e a designou como Dama do Passo do Maracatu, em uma Cerimônia simples realizada na cozinha
de sua casa, após ter repassado muitos ensinamentos para o casal.
Conversaram a noite toda e quando os primeiros raios de sol apontaram entre as nuvens, ele
cantou uma toada e batucou na mesa, acompanhado pelo casal. Quando terminou o canto, ele fez
declaração que a partir daquele dia eles eram responsáveis pelo Maracatu. Ela se surpreendeu e disse
que nunca tinha brincado/dançado Maracatu e que não sabia o que fazer enquanto Dama do Passo.
Ele respondeu que a Calunga iria ensinar tudo a ela. Pouco tempo depois Seu Luiz faleceu e, conforme
seu ensinamento, ela foi perguntar a Calunga o que fazer, e se surpreendeu quando ela respostas as
suas perguntas. Continuando a sua narrativa, Dona Janete disse que naquele dia compreenderá o
porquê dos Maracatus estarem vinculados às Casas de Religião de Matriz Africana.
Em uma conversa com Elza Maria Torres, uma respeitada Yalorixá, filha de Yemanjá, que
participou da fundação e é a atual coordenadora do cortejo anual, “Caminhada de Terreiros de
Pernambuco”. Cortejo esse que já chegou a congregara 30.000 integrantes de Casas de Religiões de
Matriz, de todo o Estado. Tratando do tema levantado por essa pesquisa, ela me falou que:
O Rei e Rainha do Maracatu representam a força político e cultural da Nação. Compreendo
que a cultura popular é oriunda da cultura tradicional de terreiro, aquela cultura que tem no
conhecimento e aprendizado repassado pelos ancestrais, todos os tambores, rituais, cânticos,
sons, danças, culinária com um sabor que transcende a lógica humana. É algo que penetra
nos olhos, ouvido, boca, mente e emoção. Algo que invade o ser humano de um amor tão
intenso que muitos não conseguem compreender nem dimensiona.

Tal afirmação se dá, em virtude das relações sigilosas que circundam essas irmandades e as
Religiões de Matriz Africana. Essa suposição é confirmada com a afirmação de (SILVA. 2017, p.20)

493
“Grande número de africanos e seus descendentes buscaram recriar, na clandestinidade, as suas
religiões de origem, formando grupos para a prática de rituais e para a transmissão dessa tradição”.
O cortejo do Maracatu é formado por personagens que ocupam espaços políticos, religiosos e
culturais que são respeitados por todos/as da agremiação. O carro alegórico com Leão de Coroa e o
porta estandarte vão a frente do maracatu, anunciando a sua chegada. Em seguida vem a Damas do
Passo, distribuindo seu Axé, energia que ira assegurar a harmonia durante todo o percurso do
Maracatu. Na sequência vê a Dama do Boque, o Rei, a Rainha, o conjunto dos integrantes do cortejo
e por ultimo os Batuqueiros.
O baque é a batida e o batuque é o instrumental que produz a batida. As toadas são todas
tocadas da mesma forma e isso é uma das grandes características do maracatu. De acordo com a
religiosidade do Maracatu, a primeira toada deve ser para a Calunga, que puxará todo o cortejo. As
toadas são sempre curtas e muito repetidas e em seu final os batuqueiros viram o baque e a Dama do
Passo dança girando a Calunga, em movimento de limpeza energética de todo o cortejo. Esse é um
momento onde ela mostra a sua força, poder, vigor, alegria. É um movimento que remete ao respeito
à vida, ao outro, ao comprometimento com o bem estar do próprio grupo e da comunidade como um
todo. A espiritualidade do Maracatu estimula a capacidade de transcendência, a força de realização
interior, que para alguns é chamada de fé. E de acordo com o pensamento de (MESLIN. 2014. p. 69),
“A fé religiosa age como um fator constante de renovação das culturas”. Essa fé é vinculada ao
fortalecimento da existência. De acordo com a linha de raciocínio de (BRANDÃO. 2006. p.15) “A
fé é percebida como energia vital que remete ao princípio do axé”.
NO BAQUE VIRADO
Lúcia dos Prazeres

Leão Coroado Nação Na avenida emocionar


Baque virado, vibração Quando gritarem das arquibancadas
Estandarte levantar Salve o Leão centenário
Calunga com AXÉ dançar Raiz que se expandiu
O cortejo acompanhar Luiz de França, Mestre Afonso
Dessa autentica manifestação Esse feito conseguiu

A negritude pernambucana Quem conviveu com os dois mestres


Reverencia Dona Isabel Bebeu pura tradição
Que protege todos os irmãos Vinda da grande Mãe África
Mestra Afonso, Dona Janete Que fundamenta a Nação
Comandam no dia-a-dia E até hoje todos repassam
Dando VIDA a agremiação Para formar os que virão

Um apito para o ensaio Quem quiser se engajar


Outras bordam as fantasias Levante a mão, bata palma
Para que todos durante o desfile O baque do Leão Corado
Distribuam energia Mexe no fundo da alma
Com muita animação
Força, carisma e magia

494
Em caráter de finalização, entramos em concordância com o pensamento de (MOURA. 2015.
p. 22) “O mundo material social, por si só, não é capaz de garantir a totalidade do ser, o
reconhecimento do sagrado presente no universo e o comprometimento com o mundo social que eles
mesmos criaram”. Em síntese, a energia emanada por todos os elementos que integram o Maracatu
soma-se para potencializar a unidade entre corpo e espírito em uma experiência que ultrapassa os
limites dos sentidos, favorecendo o preenchimento interior e a entrega às vibrações provocadas pelo
conjunto de todos os elementos que compõem as apresentações.

Referências Bibliográficas
BRANDÃO, Ana Paula (Coord.). A Cor da Cultura - Saberes e Fazeres, v.3.: modos de
Interagir. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho, 2006, p15.
BERKENBROCK, Volney J. A Experiência dos Orixás – Um Estudo sobre a Experiência
Religiosa no Candomblé. Petropolis, Rj: Vozes, 2012. p.228
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divino. Rio de Janeiro: Vozes, 2014. p.69
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na contemporaneidade. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião, Centro de Teologia e Ciências da Religião, Universidade Católica de Pernambuco. Recife:
2015. p.10-23
SILVA, José Fernando de Souza. Leão Coroado: maracatu nação, maracatu de baque virado,
maracatu de folguedo, de música, de dança. In: Maracatu Leão Coroado: Tradição, Cultura e
Religião/Maracatu Carnavalesco Misto Leão Coroado. Recife: Instituto Cooperação Econômica
Internacional, 2017.P.20
SODRÉ, Muniz. O Terreiro e a Cidade: a formação social negra-brasileira. Rio de Janeiro: Ima
Ed.; Salvador , BA: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 2002, p.163

495
A TRADIÇÃO RELIGIOSA DOS REINADOS NEGROS BELO-
HORIZONTINOS NA DIFERENÇA COLONIAL

Glaydson de Oliveira Souza1

Resumo
Planejada e construída no final do século XIX no afã de superar a experiência escravocrata de Ouro Preto, Belo
Horizonte, capital de Minas Gerais, se projetou como uma cidade moderna, mas também higienista, excludente e branca.
A cidade foi concebida sem observar a realidade da população negra e suas religiosidades, preexistentes no local que
antigamente se chamava Arraial do Curral Del Rei. Os Reinados negros, constituídos por grupos devocionais em honra
Nossa Senhora do Rosário, são tradições afro-diaspóricas proibidas de existir dentro cidade oficial. Os reinadeiros, ou
seja, os negros do Rosário, foram relegados ás periferias, onde seus Reinados resistem até a atualidade. Este trabalho
pretende, por meio de pesquisa bibliográfica e documental e a partir de uma abordagem decolonial, evidenciar como os
Reinados em Belo Horizonte se situam na diferença colonial e como as colonialidades incidem no epistemicídio dessa
tradição de natureza pós-abissal, desvelando os estigmas, as proibições, a demonização e a criminalização que visam o
seu silenciamento.
Palavras-chave: Reinados. Epistemicídio. Diferença colonial.

Introdução
A modernidade é sempre colonial. Não se pode perceber a modernidade unicamente pelo
cânone europeu, porquanto esse pensamento inexiste sem o encontro com os povos colonizados2. Isso
implica - no campo das Ciências da Religião - reconhecer que o debate acerca da colonização terá
como consectário lógico a crítica ao cristianismo, em seu caráter missionário e proselitista.
A existência dos Reinados negros em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, é tão fascinante
e controvertida quanto suas origens africanas, que remontam a adoção do cristianismo pelo reino do
Congo e suas elites, no séc. XV. Teriam os negros centro-africanos sucumbido perante o cristianismo,
exercendo o papel de meros depositários do imaginário dos portugueses? Ou souberam interpretar a
nova religião à partir da suas percepções de mundo? Se a primeira opção fosse verdadeira, não haveria
motivo para que a igreja católica proibisse os Reinados em Belo Horizonte no início do século XX e
muito menos se efetivasse a constante produção de epistemicídios no afã de silenciar aquela tradição
afro-diaspórica, na constância do séc. XXI.
Ao ocupar, na cidade moderna, o entremeio da disputa epistêmica - dominado pela
colonialidade do poder - os Reinados são postos à margem territorial, religiosa, política e epistêmica.
É sobre esse espaço de diferença colonial que cuida este trabalho.

1
Mestrando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membro do Grupo de
Pesquisa Religião, Educação, Ecologia, Libertação e Diálogo - REDECLID, da PUC Minas. Membro da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC. Bolsista CAPES. E-mail: advogado.bh@hotmail.com
2
A esse respeito, sugerimos a leitura de DUSSEL (1993), GILROY (2012), WALLERSTEIN (2007), SANTOS E
MENEZES (2010).

496
Belo Horizonte, a cidade branca nascida no final do séc. XIX
Os ideais racionalistas e higienistas que, em 1897, nortearam a construção de Belo Horizonte,
acabaram por criar, segundo IGLESIAS, RIBEIRO, ASSIS E CARVALHO (1990, p. 167) uma
cidade oficialmente delimitada: no interior da ‘Avenida do Contorno’, de população majoritariamente
branca, não se cogitou a permanência das manifestações religiosas negras, sejam aquelas transladadas
de Ouro Preto, seja, aquelas que já existiam no local onde a cidade de projetou.
No local escolhido para a construção da capital havia um povoado chamado Arraial do Curral
Del Rei, pertencente à freguesia da Comarca de Sabará. Segundo VILARINO (2007) Esse povoado
servia como parada de tropeiros e viajantes e possuía uma população majoritariamente negra, formada
por escravizados que trabalhavam nas fazendas da região.
No centro do povoado existia a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que
consistia numa estrutura robusta construída em adobe. A edificação não possuía torre do sino nem
demais riquezas materiais, tinha anexo um cemitério e ficava num imenso largo onde se realizavam
os festejos dos Reinados. Com a construção da nova capital, a igreja foi demolida. Os corpos negros
sepultados no cemitério no entorno da igreja (como era comum á época) não foram sequer trasladados
para o cemitério do Bonfim, inaugurado em 1897, como ocorreu com os sepultados nos cemitérios
das demais igrejas existentes do povoado, frequentadas pela população branca.
Com isso, esses corpos negros ficaram debaixo do asfalto que cobre as modernas avenidas da
cidade: era o “progresso”.
Em substituição à Igreja do Rosário, ainda em 1897 foi construída uma Capela Curial de Nossa
Senhora do Rosário, minúscula, numa intersecção da Avenida Amazonas entre ruas São Paulo e
Tamoios, no centro da cidade. Ao contrário da antiga igreja demolida, essa edificação possui
arquitetura eclética, com traços góticos e barrocos. Insta salientar que um sistema curial não permite
a realização de casamentos, batizados, crismas nem demais ministérios na capela, por não ser
vinculada, propositalmente, a nenhuma paróquia.
Ao tornar impraticável a devoção reinadeira e das irmandades negras na cidade oficial bem
como ao descontinuar os atos litúrgicos e ministeriais antigamente realizados na igreja do Rosário, a
figura da capelinha simbolizou que a população negra e sua religiosidade não eram necessárias. Era
um modo de dizer que os reinadeiros não pertenciam à nova cidade e, por isso, até a atualidade, não
ocorrem manifestações dos Reinados e não existem Guardas de Reinado dentro dos limites da cidade
oficial de Belo Horizonte (exceto para fins culturais e folclóricos).
Desde então, o muro invisível da segregação foi erguido.
Apartados da cidade oficial, os negros do Rosário – os devotos que celebravam sua fé em
grandes festas de Reinado - foram relegados às periferias da cidade (AGUIAR, 2006, p.39), onde
estabeleceram seus reinos, juntando-se àqueles mais antigos, já fixados.

497
Atualmente, de acordo com GIBRAN E MOYSÉS (2014) na publicação ‘Percursos do
Sagrado’, em 2014, existiam 36 Guardas de Reinado catalogadas nos arredores da cidade, mas esse
número é maior: conforme informação dos próprios reinadeiros, em 2021, o número exato de Guardas
de Reinado é 42, formando uma espécie de “cinturão devocional” em torno da cidade.

Os Reinados negros e a religiosidade afro-diaspórica na cidade moderna e higienista


Os Reinados podem ser entendidos como sistemas religiosos autônomos e independentes, pois
possuem rituais, mística, objetos sagrados próprios. Neles, há realização de grandes festejos públicos
que transformam o lugar profano (rua) em sagrado, através da apropriação desse espaço para
manifestar a devoção a Nossa Senhora do Rosário (e outros santos) e também a seus ancestrais
africanos, por meio de danças, músicas, rituais e procissões, numa profusão de cores e mística
singulares. Popularmente designado como Congado, Congada ou Reisado, o Reinado se difere dessas
denominações por ser “a parte da festa em que a ancestralidade é reverenciada a partir da coroação
dos reis, que retomam as origens nos reis africanos”. (DE SÁ, 2019, p. 26).
Religiosidade afro-diaspórica, os Reinados têm sua matriz ou origem possivelmente formada
durante os primeiros contatos dos portugueses com a população centro-africana, no Congo, ainda no
século XV, e em Matamba (atual Angola) no século XVI, ou seja, antes dos processos de colonização,
escravização e tráfico do povo negro daquela região. Ainda em 1491, o mani Congo aceitou a
conversão do seu reino ao cristianismo3. Contudo, a nova religião não foi substituta das crenças
autóctones, pelo contrário: o cristianismo foi assimilado como mais uma possibilidade de poder junto
ao panteão africano e foi lido e interpretado a partir das crenças locais.
Conforme nos informa Eduardo Possidônio, “o catolicismo se propagou rapidamente dentro
do Congo e, por uma “ironia”, muitas das práticas cristãs assimilavam-se em vários aspectos com o
fetichismo animista dos povos centro-africanos (POSSIDÔNIO, 2018, p.38)”. A africanista Anne
Hilton explica que “os reis interpretavam o cristianismo como uma extensão dos seus poderes
tradicionais e temporais e o povo do Congo com frequência encarava os ritos e talismãs cristãos como
novas proteções contra a feitiçaria (HILTON, 1985, p. 98)
A historiadora Marina de Mello e Souza esclarece esse processo, ao aduzir que:
Deu-se uma intensa reinterpretação de crenças, mitologias, símbolos e costumes que levaram,
de um lado, missionários a acreditarem que catequizavam com êxito o povo e, do outro, um
povo que entendia continuar com suas antigas crenças religiosas recebendo novos valores
católicos aos seus tradicionais costumes. As igrejas ganhavam o nome de nzo nkisi, a bíblia
era apresentada pelo clero católico como mukanda nkisi e os próprios padres se intitulavam
em diversos momentos, como ngangas (SOUZA, 2002, p.66).

3
Acerca do batismo do mani Congo Nzinga a Kuwu e da conversão do seu reino, ver: SOUZA, 2002.

498
Nesse contexto de assimilação da nova religião, onde “imagens católicas, crucifixos e rosários
ocuparam o lugar de antigos objetos de culto” (SOUZA, 2018, p. 41) nasceu a devoção a Nossa
Senhora do Rosário e outros santos negros, integrada ás crenças já existentes.
A assimilação de elementos do catolicismo às crenças autóctones dos povos da África centro
ocidental foi o embrião do fenômeno religioso dos Reinados Negros, que se mantem em Belo
Horizonte no século XXI. Podemos inferir que os Reinados seriam repositórios ou arcabouços da
memória religiosa cento africana, reproduzida, reinterpretada e mantida no Brasil, mesmo após o
violento processo de escravização pelo qual aqueles povos foram acometidos por quase três séculos.
Nessa perspectiva, ao representar “o triunfo de uma estratégia contínua de preservar a ligação
com a África” (KIDDY, 2019, p. 191), e ao coroar reis e rainhas negros em grandes festas públicas,
os Reinados reivindicam sua agência civilizatória na cultura brasileira e talvez, por isso, incomodem
tanto pelo espaço que ocupam: o espaço da diferença colonial.

Os Reinados na diferença colonial


Na introdução deste trabalho foi apontado um oximoro: o universalismo europeu não seria
universal: se universal, não poderia ser europeu; e se europeu, não poderia ser universal. Assim, a
idéia de universalismo se quebra quando há o apagamento da diversidade.
O cristianismo missionário, enquanto mecanismo político, de dominação e de controle social
de grande espectro durante o colonialismo (tanto africano quanto americano) colocou todos os
saberes, experiências e religiosidades que não se adequavam à norma hegemônica na diferença
colonial e assim os sustenta. Segundo Mignolo:
A diferença colonial é o espaço onde emerge a colonialidade do poder. A diferença colonial
é o espaço onde as histórias locais que estão inventando e implementando os projetos globais
encontram aquelas histórias locais que os recebem; é o espaço onde os projetos globais são
forçados a adaptar-se, integrar-se ou onde são adotados, rejeitados ou ignorados. A diferença
colonial é, finalmente, o local ao mesmo tempo físico e imaginário onde atua a colonialidade
do poder, no confronto de duas espécies de histórias locais visíveis em diferentes espaços e
tempos do planeta (2003, p. 10).

Ao operar a colonialidade do poder, o cristianismo envidou a grande queima de Minkise4, no


Congo, em 1507, destruindo os objetos de adoração dos povos locais para que fossem substituídos
por objetos católicos; naquele período histórico, houve a intenção dos missionários de que os objetos
católicos fossem incorporados nas crenças locais (SOUZA, 2018).

4
O episódio é retratado na Monumenta Missionária Africana sob o título: “Rei de Congo manda queimar os ídolos”.

499
Contudo, controvertida, essa colonialidade do poder prossegue, quando, já no início do séc.
XX, em Belo Horizonte (não bastasse a segregação forçada da população negra do núcleo oficial da
cidade), o mesmo cristianismo exigiu que essa incorporação de elementos se desfizesse: o Bispo
Antônio dos Santos Cabral, ordenou, na ‘Carta Pastoral de 1927’ 5que se “suprimisse a festa
conhecida como Reinado”, com a justificativa de que “os chamados Reinados ou Congados põem
quase sempre uma nota humilhante nas festas religiosas” e “são praticamente dignos de reprovação”.
Com isso, ocorreram reações de toda ordem, como perseguições e prisões de reinadeiros 6 para que
deixassem de praticar suas devoções africanizadas, fechamento de irmandades, imposição de que as
procissões tivessem que se submeter à autorização policial exarada pela delegacia de jogos, costumes
e diversões para que pudessem sair às ruas, entre outras.
Mesmo que partilhe, em parte, do mesmo panteão hagiológico do catolicismo, o Reinado
encontra no próprio catolicismo uma ação marginalizadora, como o não reconhecimento da forma
peculiar da devoção reinadeira. Essa posição coloca o Reinado como coadjuvante diante do
protagonismo católico, que tem na hiperdulia7 o culto “oficial”.
Mas o epistemicídio não se produz apenas pelo cristianismo: há toda uma estrutura racista na
sociedade brasileira, pautada nas linhas abissais propostas por SANTOS e MENEZES (2010) que
veiculam o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado à colonialidade do poder e que, portanto,
participa do processo de exclusão, marginalização e demonização das tradições afro-diaspóricas; e há
ainda outros fatores como o espaço urbano gentrificado.
Aníbal Quijano (2005) entende que o epistemicídio é um dos elementos ideológicos fundantes
da colonialidade do poder, que compreende a intrincada estrutura de dominação a que se submeteu a
África, a América Latina e a Ásia a partir das grandes navegações. Nesse sentido, não se fala de
conquista, mas de saque, de invasão, de roubo e de repressão de todo o modo de vida diferente do
europeu.
Logo, temos um conflito: de um lado, a colonialidade do poder que pretende manter a
hegemonia do sistema, que subalterniza e marginaliza o Reinado enquanto manifestação afro-
diaspórica, evidenciando o epistemicídio; e de outro, a resistência da tradição que nasceu da

5
O documento está disponível na cúria metropolitana de Belo Horizonte/MG, em formato físico apenas.
6
Nas primeiras décadas do século XX, Dom Cabral, bispo de Belo Horizonte, decretou a supressão do Reinado em
toda a diocese. Essa proibição empreendida por Dom Cabral situa-se no contexto da chamada Reforma
Ultramontana, que começou a ser implementada no Brasil em meados do século XIX e atingiu a primeira metade
do século XX (OLIVEIRA, 2011, p 47).
7
Hiperdulia (do grego υπερδουλεια; «alta veneração») é um termo teológico utilizado pelas Igrejas Católica e
Ortodoxa que significa a honra e o culto de veneração especial devotados a Nossa Senhora. Este culto à Nossa
Senhora é feito através da liturgia, que é o culto oficial e obrigatório da Igreja Católica, e também, em maior
intensidade, através da piedade popular, que é o culto católico privado. No campo da piedade popular, destacam-se
as devoções feitas à Virgem Maria, como por exemplo o Santo Rosário, o Angelus, o Imaculado Coração de Maria,
a peregrinação aos lugares onde Maria apareceu, as procissões, etc. Nesse sentido: BITTENCOURT, 1997.

500
imposição missionária colonizadora e que contraria o sistema hegemônico ao se identificar com uma
cosmovisão centro-africana que contraria o sistema hegemônico e que agora está inserida no contexto
urbano da Belo Horizonte do início do século XXI. A resposta para esse conflito virá do próprio
fenômeno religioso, que, situado na diferença colonial, ou se adaptará as realidades locais afetadas
pelos projetos globais, ou desaparecerá. Considerando que o Reinado narra “um saber que traduz o
negro como signo de conhecimento e como agente de transformações ” (MARTINS, 1997, P.41) e
considerando que nem o processo de escravização teve o condão de mitigar a devoção reinadeira, as
perspectivas para essa religiosidade são positivas.

Considerações finais
Sem pretender encerrar o assunto, o presente trabalho apresentou uma breve reflexão acerca
da tradição religiosa afro-brasileira dos Reinados Negros em Belo Horizonte, cotejando sobre sua
origem, sua dificuldade em permanecer na cidade e sua resiliência ao se firmar nas periferias,
demonstrando que o espaço da diferença colonial é controvertido como a própria tradição, ressaltando
que há boas perspectivas em razão do caráter poroso dessa religiosidade tão peculiar.

Referências Bibliográficas
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de Ingrid de Castro Vompeam Fregonez, Thaís Cristina Casson, Vera Lúcia Benedito. 2ª Ed. São
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502

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