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Publicado por
Porto Editora
Divisão Editorial Literária – Lisboa
Email: dellisboa@portoeditora.pt
Título original:
Unholy Ghosts
© 2020, Richard Zimler e Porto Editora
www.portoeditora.pt
ISBN 978-972-0-69068-5
Para todos os milhões de pessoas por esse mundo fora cuja vida foi
cortada cerce pela sida. E para os amigos e familiares que cuidaram deles e
defenderam os seus direitos.
Prefácio
Richard Zimler
Lisboa, 1 de setembro de 2020
Parte I
1
Querido Carlos,
Monsaraz, Portugal
Querido Harold,
Agora que acabaste de ler a minha última carta para Harold, já posso
dizer-te que aconteceu uma coisa inesperada e terrível, e que é por isso que
tenho de te escrever. Não, ainda não te posso dizer o que é; as pessoas que
têm medo precisam de se reger por regras bem firmes, senão perdem a
coragem e hesitam; portanto, decidi contar-te tudo por ordem cronológica.
Também tenho de te contar algumas coisas a meu respeito. Em breve,
poderás ser o único que resta, talvez até nos salves a todos, pelo que
precisas de saber tudo.
Imagina um conto de fadas, Carlos: num dia, eu tenho onze anos e estou
a passear de bicicleta com o meu irmão por um bairro que cheira a
churrascos, sombreado por carvalhos. Paramos em Gardener’s Hill, lemos
livros de quadradinhos e jogamos ao «mata» com uma bola de borracha
Spalding. Depois, sentamo-nos no passeio e falamos sobre os nossos
professores.
Agora, imagina um pesadelo: no dia seguinte, Harold está morto. E eu
escrevo-lhe cartas que nunca porei no correio.
Talvez o tempo que decorre entre a infância e a morte seja maior do que
estou a dar a entender, mas foi assim que me pareceu.
Se não é essa a sensação que tens, então, ainda estás a desfrutar da tua
juventude. Ainda bem para ti.
Mas eu não posso continuar à espera de que cresças.
Peço-te apenas que ouças. Mesmo depois dos quase dois anos que
passámos juntos, sei que não me conheces verdadeiramente e não tens
qualquer noção das barreiras existentes entre os vivos e os mortos. Como
poderias então responder à oferta que te vou fazer mesmo no fim desta
carta? Sem compreenderes os perigos que enfrentas, como encontrarás a
coragem para aceitar?
Percebi que tinha de te escrever na segunda-feira, 22 de maio, há cerca
de duas semanas. Está registado no meu diário. Lembras-te do António, o
meu melhor aluno? Ele já estava doente, tinha acabado de dar entrada no
hospital, mas eu ainda não sabia. E, mesmo que soubesse, não teria juntado
logo as peças do puzzle. Eu estava em casa. Na minha casa nova. No
Passeio das Virtudes. Em novembro do ano anterior, tinha saído da casa que
nós partilhávamos para ir viver com uma criatura meio selvagem e de bom
coração chamada Fiama, que tem um apartamento lá, no terceiro andar. Na
noite de 22, descobriu que estava infestada de chatos, pelo que a depilei lá
em baixo e apliquei um líquido de cheiro amargo que comprara na farmácia
da esquina. Logo a seguir, Zero telefonou-me do Pérola Negra. Lembras-te
de Zero, o poeta de barba à Vandyke, aquele que viveu durante uns tempos
em Istambul e está sempre a comer pistáchios? Adiante, quando lhe contei o
acabara de fazer, ergueu as sobrancelhas como um velho lascivo e pôs-se a
puxar o bico da barba. Informou-me em tom doutoral que uma mulher só
deixa um homem depilar-lhe as partes íntimas quando confia realmente
nele. E foi isso que me levou a escrever-te. Sabes, é que Fiama tinha
confiança em mim. E apercebi-me de que, apesar do que eu dizia na altura,
nunca confiei realmente em ti. Não por completo. Desculpa. Quero ter a
certeza de que compreendes. Sou eu que te peço desculpa. Também cometi
erros. Muitos.
Queria escrever e dizer-te isso.
Enquanto eu tratava de Fiama com a minha navalha Wilkinson de lâmina
dupla, ela deitou-se qual Cleópatra, com a cabeça pousada nos braços, os
cotovelos afastados, e os pequenos tufos de pelo das axilas a infundir no
quarto um cheiro ácido. Fiama é uma mulher morena, com uma cabeleira
preta e espessa a descer-lhe desgrenhada pelo pescoço até aos seios grandes
– o tipo de seios que os romancistas descrevem erradamente como firmes.
Tem um rosto um pouco envelhecido para os seus trinta e nove anos e um ar
inteligente. Como sabes, os portugueses sentem-se intimidados por
mulheres inteligentes, e ela acaba relacionando-se com tipos mais
manhosos. Daí os chatos. Mas é uma mulher incrível. Além de tudo o mais,
canta maravilhosamente, com uma voz rouca. Bem merecia que a pintasses,
meu querido, e ainda mais que a levasses para a cama, partindo do princípio
de que estarias disposto a erguer o pincel para uma mulher que descobre
todos os teus segredos só com um olhar. A verdade é que Zero acertou em
cheio; ela sente-se à vontade comigo porque as únicas coisas que quero dela
são uma ocasional massagem nas costas e uma história de embalar. Por isso,
enquanto a rapava, contou-me uma das suas muitas teorias sobre a condição
humana. Acredita que a vida se baseia na visão – quanto melhor vemos,
mais fácil ela se torna. Segundo a sua teoria, à medida que o nervo ótico vai
enfraquecendo com a idade, a vida torna-se invariavelmente mais difícil. A
sua perceção das coisas é um pouco diferente. Por exemplo, diz que com o
passar dos anos cada vez lhe é mais difícil adivinhar a idade dos outros e
que um aluno do secundário, para ela, é exatamente igual a um aluno
universitário. Quando tiver sessenta anos, diz, não será capaz de distinguir
um miúdo de escola ranhoso do presidente de um banco. Resumindo,
segundo Fiama: nascemos, a nossa visão vai piorando progressivamente e,
quando estamos quase cegos, julgamos ser capazes de ver Deus. E depois,
claro, morremos.
Será essa a verdadeira história do meu irmão e da sua conversão ao
cristianismo?
Em geral, vocês, os portugueses, partilham do pessimismo inabalável de
Fiama. É por isso que me tenho dado razoavelmente bem por aqui. E,
contudo, todas as pessoas que conheço no Porto me dizem invariavelmente
que são católicas.
Católicos sem fé – é um conceito interessante.
Quanto a mim, continuo a fazer o melhor que posso para não pensar no
futuro. Tal como nos velhos tempos, quando éramos uma equipa. Antes de
adormecer, enumero as coisas positivas: olhos azul-claros; dedos ágeis;
cabelo castanho encaracolado, quase abundante; um cérebro que por vezes
ainda consegue distinguir um sonho da realidade. E, claro, boa visão.
Talvez já não esteja a cem por cento, mas ainda consigo ler a pauta sobre o
suporte de música sem óculos. E de certeza que não se deteriorou a ponto
de ver Deus. Por isso, talvez Fiama esteja certa; não posso dizer que tenha
tido uma vidinha assim tão má. Tenho algum dinheiro, um emprego, uma
mãe ainda viva. Mais importante ainda, há mais de um ano que não vou a
um funeral, só um dos meus amigos mais queridos parece estar a morrer e
não estou doente.
Pensaste que te escrevia por essa razão? Estavas a fazer figas para que
não fosse?
Imagina, já estamos no fim do meu quarto ano no Porto. Sem ter de
contemplar amigos cuidadosamente aconchegados nas suaves pregas de
veludo dos caixões de pinho, os meses avançam sem nada de especial a
assinalá-los. Parece que só passaram uns dias desde 17 de agosto do ano
passado, quando levaste todos os teus pertences do nosso apartamento
enquanto eu dava aulas, deixando atrás de ti uma carta que começava assim:
«Podias curar-te, mas tens de querer mesmo fazê-lo.» Lembras-te? A
princípio, não entendi. Pensei: Curado de quê, por amor de Deus? Depois
achei que não tinha percebido o teu português. Fui ver a palavra curado, no
meu dicionário Morais. Descobri que – claro – as azeitonas e os doentes
podem ser curados. Mas porque necessitaria de o ser um americano
saudável? Não conseguia perceber. Por ter vivido tanto tempo em cidades
onde qualquer pessoa com a instrução primária tem o bom senso de saber
que as minhas abençoadas perversões não podem ser curadas…
nem com eletrochoques;
nem rezando a Jeová, Alá, Brama, o Grande Espírito ou mesmo a Sean
Connery;
nem com terapia de aversão;
nem com cristais mágicos ou cogumelos psicadélicos;
nem a ver a Oprah Winfrey entrevistar maricas infelizes de todos os
Estados da União, todos os dias, durante uma década;
nem a entoar mandalas machistas escritas por Robert Bly1 num transe
induzido por testosterona, sentado na posição do lótus sobre um morro de
arenito no Deserto Sonora;
nem chutando Prozac, ao mesmo tempo que devoro lata após lata de
atum;
e nem sequer vendo vídeos de adolescentes asiáticas a fumar cigarros
pela vagina num bar de Banguecoque para europeus ricos e snobes (como
certa vez me foi sugerido por um psiquiatra francês que tive o desprazer de
conhecer em Fire Island).
Depois percebi que acreditavas mesmo no que tinhas dito. Soltei uma
gargalhada; até aí não me apercebera de que me apaixonara por um
dinossauro. Diz-me, Carlos, tens pesadelos em que um asteroide embate
outra vez na Terra, destruindo toda a tua microcéfala família de gigantes
monstruosos?
Fui violado e abandonado por homens melhores do que tu, por isso, não
foi por ter ficado assim tão magoado que não te escrevi nem telefonei nestes
últimos nove meses. Não, não tentei contactar-te porque centenas de
milhares de pessoas andam mesmo a tentar encontrar a cura para uma
doença bem pior do que desejar intensamente um beijo de um homem ou
um curto passeio pela cidade de Sodoma. Sabes, desprezei-te mais do que
alguma vez poderás imaginar por teres usado a palavra cura com toda essa
maldita ligeireza.
Em nome de todos os mortos e moribundos que conheci, digo-te (com
toda a compaixão que consigo reunir pelo teu dilema): vai-te foder.
Vamos voltar a recordações mais agradáveis?
Lembras-te de como costumávamos voltar do Pérola Negra à meia-
noite, depois de um chá de verbena, e arrancavas os jeans e te deitavas na
cama com as pernas para cima. Ou será que tudo isso foi cuidadosamente
etiquetado como «Grande Erro», fechado num cofre de aço e escondido
debaixo do soalho do teu estúdio em Lisboa?
Ainda hoje, quando digo o teu nome para mim próprio, a primeira coisa
em que penso é naquele momento, pouco depois de começarmos a dormir
juntos, em que me acariciaste as sobrancelhas com a ponta dos dedos como
se estivesses a afagar as mais frágeis e suaves lagartas, e disseste: «Gostava
de me tornar parte de ti.» Nunca ninguém mo havia dito, e nesse momento
não pensei que fosse apenas uma frase bonita. A ponta dos teus dedos
desceu-me pela testa e pelo nariz, contornou-me o queixo, continuou pelo
pescoço e a clavícula… Os teus olhos negros e sérios disseram-me que
estavas a estudar um corpo – um corpo qualquer – pela primeira vez na
vida. Depois de trinta e três anos a evitar o mundo físico, deve ter sido uma
descoberta enorme. Os teus quadros mudaram depois disso. Puseste de
parte os círculos resinosos, os pontos e rabiscos que andavas sempre a
vender nas ruas, e atreveste-te a pôr figuras nas tuas telas.
Na verdade, decidiste tentar comunicar com outras pessoas pela
primeira vez. Fiquei comovido quando começaste a pintar cenas da vida de
um rapazinho chamado Carlos que…
Nasceu no hospital municipal de Évora no dia 12 de abril de 1961, às 6
e 37 da manhã, filho de António e Graça Mourão;
sempre adorou bacalhau e favas, e qualquer sobremesa à base de ovos;
descobriu Kandinsky e De Kooning aos doze anos, quando começou a
ter aulas de pintura;
era troçado pelos outros rapazes porque preferia ler as vidas dos santos a
jogar futebol;
espetava paus na terra a segurar as dálias do quintal, para que as suas
corolas em forma de pompom não se dobrassem e partissem com o vento
que soprava do planalto espanhol;
estudou durante um ano na Slade School of Art, em Londres, mas teve
tanto medo de viver numa grande cidade onde nunca se sabe o que pode
acontecer que regressou a Portugal com o rabo entre as pernas;
teve a sua primeira relação sexual com um vizinho chamado Maurício
aos dezasseis anos, mas não repetiu a experiência até conhecer um
professor de música americano, aos trinta e três anos. Eu, claro.
Essas tuas primeiras tentativas de pintura figurativa não eram lá muito
boas, penso. Maria achava-as péssimas, se bem me lembro, e recusou-se a
exibi-las na sua galeria. Mas isso não tinha importância; estavas a aprender
a amar-te a ti próprio e a apaixonar-te.
E ser um bom amante é mais importante do que ser um bom pintor.
Se não acreditas em mim, talvez ainda não tenhas visto morrer gente
suficiente; uma lápide funerária não mente sobre a insignificância da
carreira mais brilhante!
Queres ver como me lembro de muito mais coisas a teu respeito?
A pele grossa e calosa da planta dos teus pés.
Os ténis Reebok que chiavam quando tivemos de voltar a pé para casa
do concerto de June Tabor, e estava a chover.
Ensinares-me a comer piza de garfo e faca.
Dois expressos no Pérola Negra todas as manhãs. Chá de verbena antes
de dormir.
Os estudos para quadros que costumavas levar para a cama à noite e
que, de manhã, encontrava debaixo do teu travesseiro. O barulho que
faziam quando, por acidente, se amachucavam entre nós. (Sabes que
guardei na minha cómoda todos os que encontrei. Estão aqui comigo agora,
debaixo das meias.)
Ver-te a pintar, de tronco nu e sujo de tinta nas faces e na testa.
O teu amor pelos cães de outras pessoas, a maneira como costumavas ir
ter com eles na rua, afagar-lhes as orelhas e deixar que eles te lambuzassem.
Tu a trazeres-me as refeições à cama quando tive gripe.
O postal de uma escultura de Jean Arp que me enviaste quando foste a
Nice e que assinaste «Tocando-te para sempre…».
A fotografia que te tirei com o cabelo todo penteado para trás, em que
estavas igual a Tyrone Power.
O cheiro a tabaco nos teus dedos de camponês.
Eu a dar-te a comer quartos de maçã Granny Smith, quando tinhas as
mãos cheias de tinta e não podias tocar na comida.
Tu a acordares assustado a meio da noite, agarrando-me ambas as mãos.
Vês como registei tanta coisa na memória, Carlos? É uma loucura,
suponho, mas gostaria de saber ainda mais sobre ti. Sinto-me enganado por
teres sempre pintado os contornos à tua volta com pinceladas tão grossas.
Agora, enquanto sussurro mais uma vez o teu nome, estamos os dois
deitados naquela praia de areias douradas com mais de um quilómetro,
perto de Tavira. Estamos nus, temos a testa perlada de suor e os corpos
relaxados porque estão quase 38 graus e acabámos de explorar mutuamente
as nossas sombras mais fundas na cabana de colmo com portas azuis que
alugámos, e estamos agora tão cheios de sono que mal conseguimos manter
os olhos abertos. Em voz lenta e arrastada, lês-me poemas. Adormeço, e os
meus sonhos levam-me para uma terra cheia de oliveiras e orvalho. Acordo
e fico a ver-te dormir, e então espalho areia quente sobre o teu braço e
comovo-me com a tua beleza. Então, penso na gratidão que a tua mãe deve
ter sentido ao dar-te à luz.
Será que as boas recordações atraem o contrário?
Usando contra mim a descrição jocosa que fiz da minha própria pessoa
como parte de uma subespécie em risco (Homo frequentemente erectus),
dizias na tua venenosa carta de despedida: «Porque não te deixaste ficar na
América, onde tu e os teus amigos pervertidos estão destinados a extinguir-
se, e não nos deixam a nós em paz, porra?»
Sempre associei essa inspirada pergunta àquele momento em que
indagaste se eu tinha saudades de alguma coisa nos Estados Unidos, como
se isso fosse impossível. E eu respondi: «Tudo, até o metro de Nova Iorque
e as autoestradas de Los Angeles.» Mas agora admito que era uma mentira
destinada a fazer-te sentir culpado, porque já estavas a afastar-te com
desculpas do tipo «muito trabalho e coisas que eu nunca entenderia sobre
Portugal, visto ser um estrangeiro da classe média incapaz de compreender
o que não pudesse ser comprado ou vendido».
A verdade é que a única coisa de que tenho saudades é o basquetebol.
Não de ver, mas de jogar. Aqui não há campos públicos de basquetebol. E,
além dos miúdos da escola, as pessoas só jogam basquete em clubes
privados. Ninguém com mais de vinte e cinco anos faz qualquer tipo de
exercício físico, à exceção de uma geração de velhos que redescobriram a
saúde depois de quarenta anos a fumar dois maços por dia de cigarros sem
filtro, e que agora andam a correr maratonas.
Sem dúvida que daqui a vinte anos vais comprar um fato de treino azul
e branco e juntar-te a eles nas corridas.
Não tens consciência disso, mas aqui em Portugal vocês são abençoados
pelo oceano Atlântico; faz toda a diferença – brisas frescas à noite, praias
de areia fina e quente. Então e a tua amada Riviera Francesa, onde sonhavas
tornar-te famoso e dar entrevistas no terraço do teu palácio junto ao mar?
Esquece. O Mediterrâneo não é um oceano, nem sequer um mar a sério. É
um charco estagnado que fede ao lixo da Europa inteira. Com praias de
lodo e seixos. Faz mergulho em Saint-Tropez e voltas à superfície com
gonorreia apanhada de algum turista alemão de Wuppertal que mijou na
água.
Porque faço eu estas tristes tentativas de ser engraçado?
Não será óbvia a resposta? Tenho medo de que pares de ler se não te
oferecer de vez em quando uns miminhos feitos com ovos e açúcar.
Parece-me absurdo admiti-lo agora, mas, quando vim para a Europa,
tencionava escrever o grande livro de viagens judeu: de Lisboa a Moscovo,
e tudo o que fosse de origem hebraica entre as duas cidades. Falei-te nisso,
mas provavelmente não te recordas porque a minha vida sempre te
entediou. Quando ainda estava em Los Angeles, não parava de pensar nesse
projeto, nem dormia – até cá chegar. Mas, como disse à querida Libby, a
minha agente, antes de cada um seguir o seu caminho, em breve descobri
que se tinham acabado as viagens. Porque se acabara o sexo. Houve um
tempo em que era possível saltar de cama em cama até Istambul, gay ou
hétero, judeu ou gentio. Mas isso agora acabou. Portanto, para quê? Para
ver mais uma catedral barroca construída em cima de uma sinagoga em
ruínas? Outro cemitério com lápides escritas em hebraico? Não conseguia
simplesmente continuar a escrever sobre cultura ou história.
É provável que seja pecado dizer isto, mas a cultura e a história sem
sexo são praticamente inúteis.
Agora, de cada vez que vejo uma igreja ou uma sinagoga, entro em
narcolepsia. Quanto aos castelos, igrejas e casas de campo da Europa, estão
todos assombrados por nazis e estalinistas arrogantes a tentar descobrir o
que hão de fazer com as suas patéticas vidinhas até conseguirem derrotar os
social-democratas. Agora que o sexo está às portas da morte, se quisermos
ver o mundo, temos de alugar um vídeo.
No que diz respeito ao que te está a aparecer nesta página, é apenas um
jogo. Como o basquetebol. Atiro as palavras para o ecrã e espero que tudo
corra pelo melhor. Deixa-me explicar-to de forma mais clara, Carlos: é
tanto por ti como por mim que me rebaixo em prosa. Tu queres vestir um
hábito de freira e rastejar até um canto do teu estúdio e rabiscar em telas
sujas grafitti de partir o coração sobre a solidão. Mas eu decidi finalmente
não deixar que te escondas com tanta facilidade. Não sei se me atrevo a
contar-te o meu plano. Mas é bastante óbvio. Tenho esperança – aquela
esperança louca dos alquimistas medievais – de tropeçar numa sequência
mágica de palavras, numa fórmula, que talvez consiga que a tua vida de
chumbo se transforme em ouro ou, no mínimo, te ressuscite. Talvez eu
descubra por acaso uma oração secreta que possa mesmo transformar-te no
Golem2 de Lisboa. Serás tu a salvar-nos a todos, incluindo a mim, a
defender-nos dos microscópicos cossacos que arremetem contra os nossos
guetos em S. Francisco, Los Angeles, Nova Iorque, Rio de Janeiro,
Londres… Mesmo agora, em Lisboa e no Porto. Como havemos de saber
quem será escolhido para nos salvar? Talvez seja um pintor cobarde de
Évora que, se a luz não for muito forte e lhe pentearmos o cabelo para trás,
lembra um ator bissexual de Hollywood dos anos 40.
Não percebes? Estou a falar de ti, Carlos… de ti.
1
Poeta, ensaísta e ativista norte-americano cujo livro João de Ferro: Um Livro sobre Homens (1990)
constitui o texto-chave do movimento dos homens mitopoéticos. (N. da T.)
2
No folclore judaico, ser animado e antropomórfico criado inteiramente a partir de matéria
inanimada – em geral, barro ou lama. A mais conhecida história de um golem envolve o rabino Judá
Loew ben Betzalel, de Praga, que no século XVI teria criado uma destas criaturas para defender os
judeus do gueto de ataques antissemitas. (N. da T.)
3
Estava combinado António ter uma aula comigo na terça-feira, dia 23 de
maio. Mas na manhã desse dia deixou-me uma mensagem no atendedor
automático dizendo que estava doente e que tinha de cancelar. Pela voz,
pareceu-me bem. Devolvi-lhe a chamada, mas não atendeu. Não fiquei
preocupado.
Na quarta-feira, uma secretária do Conservatório veio ter comigo a meio
de uma aula. Disse-me que o pai de António tinha acabado de telefonar. O
miúdo estava no Hospital de Santo António com sintomas de zona.
– Mas normalmente não se vai para o hospital por causa disso –
respondi.
Ela encolheu os ombros.
– Deve ter sido um ataque muito forte.
Anotei o número do quarto e fui vê-lo à hora da visita, quatro da tarde.
Cruzei-me com o médico dele, um homem baixo com ar desleixado e barba
mal aparada, no hall que levava ao quarto de António. Chamava-se Silva.
Disse-me em tom tranquilizante que António estava com zona e gripe ao
mesmo tempo. Tinha sido hospitalizado para prevenir uma pneumonia. Não
corria qualquer perigo imediato.
Fiquei aliviado.
A seguir confidenciou-me que tinha mandado fazer um teste de VIH e
que dali a uma semana já teria resultados.
Imaginem o coração a despenhar-se e a cair-nos aos pés.
Acordei numa cama de metal. Uma enfermeira de pele pálida e mãos
borrachosas afagava-me o rosto. Trouxe-me um copo de água.
Tinham-me posto uma gaze na testa. Conseguia senti-la.
– Bateu com a testa no chão – informou-me ela. – Não lhe toque.
A ferida foi limpa e desinfetada.
Apanhei um táxi para casa sem ter visto António.
Não conheces o meu amigo Pedro, porque tinhas medo de conhecer
qualquer um dos professores da minha escola, não fossem eles ficar com a
ideia de que tu e eu éramos amantes. Mas deves ter-me ouvido falar dele.
Um metro e cinquenta e oito de altura.
Uruguaio.
Camisolas e jeans coloridos. Sandálias de couro sobre pés nus quando
está calor; sandálias com meias brancas de lã quando está frio.
Um nariz azteca em gancho; narinas dilatadas quando toca guitarra.
Hétero. Quero dizer, hétero mesmo. Não como tu, porque não precisa de
fingir a explosão no cérebro quando o seu desejo vai ao encontro do mundo
antimaterial de uma sombra húmida de mulher.
Incomoda-te a minha linguagem?
Ótimo.
Na quinta à tarde, depois das aulas, Pedro apresentou-me a um brasileiro
chamado Ricardo. Encontrámo-nos na sala de chá do Museu de Arte
Contemporânea do Porto. Mandámos vir scones e Earl Grey. Sentámo-nos
lá fora, ao sol, debaixo do magnífico caramanchão de glicínias que tu
achavas demasiado exuberante porque tens o medo da exposição que assola
todos os que não saem do armário. Rimos à gargalhada como americanos
em férias e brincámos com ditos jocosos o melhor que pudemos. Ricardo
tem olhos verdes amendoados, um rosto magro e astuto, e cabelo preto e
comprido apanhado atrás num rabo de cavalo.
A mãe é japonesa e o pai, brasileiro.
É professor de História num liceu do Bairro Vila Indiana de São Paulo.
Gosta de ir a festas de carnaval com máscaras de nariz comprido e
pontiagudo.
Não consegue dormir se tiver um único mosquito no quarto.
Gosta do silêncio de Portugal.
Quando o vi pela primeira vez, estava sentado a uma das mesas na sala
de chá do museu. Emanava uma confiança e elegância naturais que me
fizeram sentir inveja. Admito que teria gostado de dormir com ele. Talvez
porque ainda tivesse a gaze na testa e me sentisse tão ansioso.
Parei de o desejar mal abriu a boca. Apesar do sotaque brasileiro e o
rabo de cavalo, falava com a gravidade de um intelectual europeu. Disse
que tinha quarenta e um anos e que era a primeira vez que vinha a Portugal.
Quando lhe perguntei porque escolhera ser professor de História, respondeu
que o irmão mais velho fora morto pela polícia de segurança da ditadura
brasileira em 1969.
Desde o assassínio do irmão, Ricardo passara a interessar-se por tudo
aquilo que o recordasse dele, considerando vital não se esquecer de nada,
nem mesmo do seu cheiro.
Foi a expressão que ele usou: nem mesmo do seu cheiro.
Parei de beber o chá. Olhámos fixamente um para o outro. Seria o
reconhecimento de uma alma gémea?
Essa preocupação com a memória levara Ricardo a investigar a História.
– Porque está o cavalo de Troia tão fixo na nossa mente? – perguntou-
me. – Porquê Auschwitz? O que foi que nós esquecemos, e porquê?
– Não sei – respondi. – Qual é a razão?
– Também não sei. Ainda estou buscando a resposta. Essa é uma das
razões por que aqui estou.
Recomecei a beber o chá. Fixei-o de olhos semicerrados, desconfiado,
como se escondesse qualquer coisa.
– Não tenho mesmo uma resposta – repetiu.
– Alguém quer lançar uma hipótese? – perguntou Pedro.
O brasileiro comeu o resto do scone, levou uma mão à cabeça e pôs-se a
puxar o rabo de cavalo. Olhou diretamente para Pedro e disse:
– Acho que tem a ver com a nossa perceção do tempo como uma coisa
através da qual nos movemos. Acredito que nos lembramos, porque, se não
nos lembrássemos, deixaríamos de nos aperceber do tempo dessa maneira.
Seria como uma coisa estática. Por outras palavras – acrescentou, irritado
consigo mesmo por ser tão obscuro –, fazemos um contrato connosco
próprios. – Olhou fixamente para mim. – Dizemos: «Vou-me lembrar do
meu irmão, ou dos meus pais, ou de qualquer acontecimento terrível.» E
porquê? Para podermos continuar a avançar para o futuro. Se não
assumíssemos esse compromisso, ficaríamos presos num mundo em que o
tempo deixou de correr. E os seres humanos não conseguem viver assim.
Agora eu estava mais interessado nele do que nunca, porque conseguia
ver que era tão louco como eu.
– Então, e porquê Portugal? – perguntei. – O Brasil não tem história que
chegue para si?
– Descobri recentemente que o meu pai e os seus antepassados eram
judeus… judeus de Portugal que passaram séculos escondendo suas
crenças.
Seria esta mais uma coincidência a ligar-nos? Com um significado
oculto?
Qual quê?!
Pedro apresentara-nos precisamente por essa razão. Todos os eLivross
políticos da América do Sul são casamenteiros natos sem emenda possível.
Nessa altura, a confissão de Ricardo irritou-me, porque andava farto da
História dos judeus. Por isso, fui um pouco grosseiro e pensando nos nossos
irmãos mortos, atirei:
– Com tudo o que temos vivido, quem se rala com o que aconteceu aos
nossos antepassados há já tantos anos?
Pedro pôs-me a mão no braço, como um progenitor que suplica ao filho
que seja razoável.
– O que sabes tu sobre a Cabala? – perguntou. – Esse é que é o
verdadeiro interesse do Ricardo.
Revirei os olhos.
– Não vale nada. Se queres uma filosofia útil, lê os livros do Stephen
King.
Pedro franziu-me o sobrolho porque é delicado, inteligente e não gosta
de que eu diga palavrões nem coisas estúpidas.
– Achas que os enigmas do Zohar ajudaram os judeus a escapar à
Inquisição? – inquiri. – E os manuais de Joseph Ashkenazi… impediram os
meus tios-avós de ir parar aos campos da morte? Será que um amuleto com
um nome secreto de Deus ajudou verdadeiramente quem estivesse a morrer
de sida?
– A esperança… – respondeu Ricardo. A voz dele era ansiosa. Agarrou
na chávena de chá como se planeasse fechar a mão e esmagá-la. Cheguei-
me atrás na cadeira, esperando que não me atirasse com estilhaços de
porcelana. – Há muito tempo, precisei de uma filosofia qualquer que me
vinculasse à esperança – disse. – E não tinha uma. Essa é outra das razões
por que estou aqui. Não foi só meu irmão. A polícia de segurança me
deteve pouco depois de o deter a ele e me levou para uma casa perto de
Iguape. Queriam que eu lhes dissesse coisas sobre meu irmão. Um
homenzinho de bigode, tão insignificante que nem repararíamos nele se o
víssemos na rua, pôs-me elétrodos em diversas partes do corpo… as partes
mais sensíveis. E a dor foi tal que nunca conseguiria descrevê-la. Foi então
que perdi a esperança. Lembro-me do instante em que ela se evaporou de
mim. Era como se num momento estivesse prenhe e no momento seguinte
tivesse dado à luz um nado-morto. Estava vazio. Não recuperei a esperança,
nem sequer ao fim desses anos todos. Teria preferido mantê-la. Só que não
sei como ressuscitar um nado-morto.
Baixei os olhos por instantes, e ele recostou-se. Quando o encarei de
novo, perguntei:
– Mesmo que a esperança seja uma ilusão?
– Mesmo assim.
– Então diga-me uma coisa… – E foi nessa altura que os meus receios
sobre António saíram em catadupa: – Tenho um aluno no hospital. É um
miúdo lindo. Acabou de fazer vinte e quatro anos. Nasceu para tocar
guitarra clássica. Nada tenho para lhe ensinar, exceto talvez um pouco sobre
música e paixão. Mas provavelmente está a morrer. Dormiu com um
drogado, um colega dele, e agora está de saída. Vai receber o resultado do
teste de VIH daqui por seis dias. Tenho medo de já saber a resposta. Rezo
para estar enganado. Mas talvez não lhe restem mais de cinco anos de vida.
Acha que ele deve ter esperança? Deveríamos dar-lhe esperança?
– Você nunca foi torturado – disse Ricardo.
Tenho-me exercitado para ficar calado quando me sinto furioso. Pedro
começou a falar, mas eu ergui a mão como um polícia sinaleiro a parar o
trânsito. Foi a minha vez de me inclinar para a frente.
– Não, e por isso não posso ser aceite no seu clube – respondi,
agressivo.
– Não se trata de um clube. O que eu ia dizer é que, se tivesse sido
torturado, compreenderia que a esperança é uma espécie de magia.
– Vá-se lixar! – Estou tão farto de gente que acha que a vida tem um
núcleo mágico, que de cada vez que oiço essa conversa sinto os ouvidos a
sangrar.
– Ou talvez seja auto-hipnose – continuou Ricardo. – Não conheço os
mecanismos do cérebro. Mas imagine que você conseguia transformar seu
corpo em esperança… forjar uma armadura de esperança. Seria um objetivo
digno de alcançar, não acha? E talvez não o salvasse de um campo da
morte, ou de um sacana brasileiro a dar-te choques elétricos, nem salvasse a
vida do seu aluno… mas você morreria em paz.
Levantei-me de um salto, e a cadeira caiu com estrondo. No entanto,
falei com a calma de quem conhece o seu argumento de trás para a frente.
– Não me percebeste de todo. Não quero morrer em paz. Quero morrer
zangado. Estás a perceber? Quero esbracejar, e gritar, e dar pontapés. E é
precisamente aí que quero chegar… Quero que também o António morra
zangado. Porque deve. Tem vinte e quatro anos. Percebes? Não quarenta,
como tu e eu. Vinte e quatro anos, porra!
Pedro tapou os ouvidos com as mãos, porque eu começara a gritar.
Disse-me uma vez que já tinha essa sensibilidade antes de ser torturado,
mas acho difícil de acreditar. Todo ele tremia. Por isso, voltei a sentar-me,
cobri as mãos dele com as minhas e olhei-o bem nos olhos negros. Era um
ser tão frágil.
– Desculpa – disse-lhe.
Baixámos as mãos ao mesmo tempo. Levei as dele aos lábios e beijei-
as. Pedro é um bom amigo, e bem sei que sou capaz de ser insuportável.
Encarei Ricardo.
– Vi demasiado em Nova Iorque para poder continuar lá sem chutar
Valium para a veia – disse eu. – Por isso, primeiro fugi para Los Angeles e
depois, quando o meu irmão adoeceu, mudei-me para Portugal. Teve sida e
levou tempo de mais. Morreu cerca de dois anos e meio depois. E agora, ao
fim de um ano da mais abençoada liberdade, de não saber de nenhum amigo
que tivesse de dizer ao mundo o adeus definitivo, o Anjo da Morte
descobriu-me. Se tivesses chegado há duas semanas, terias dado comigo
razoavelmente feliz. Livre. Mas agora, através do António, fui apanhado.
Acabou-se. Estou furioso porque não conheço as palavras secretas que lhe
restaurem a saúde. Tocar guitarra, escrever, até amar… nada serve de nada.
Anos e anos a aprender música, e a escrever, e em busca do beijo de um
amante perfeito, e continuo sem saber qual a palavra que ajude um rapaz
que terá de se despedir de um mundo que mal teve a oportunidade de
conhecer.
Deixámo-nos estar ali em silêncio, porque as confissões têm o efeito de
calar as pessoas com feridas profundas. Pela primeira vez, apercebi-me do
falhanço que eu tinha sido por causa desta minha raiva.
Até me tinha impedido de te escrever. Nesse momento, soube que te
enviaria esta carta e tive um vago pressentimento da forma que ela iria
assumir.
– Desculpem, isto pode parecer pouco coerente depois da minha
explosão – confessei. – Mas agora só quero ser cuidadoso com os outros. O
que nos resta, afinal? Depois de torturas, e hospitais, e doenças do cérebro,
o que nos resta senão tentar aliviar o sofrimento alheio? E nem sequer isso
consigo fazer bem. Como podem ver. – Tirei da carteira um recibo da caixa
automática e escrevi o nome de um velho poeta judeu que um dia conhecera
e que me dissera que queria reunir mil pessoas que tivessem sido abusadas e
torturadas no cimo de uma montanha em Portugal, virá-las para Jerusalém e
a entoar em uníssono o nome de Deus. Ele não sabia o que iria acontecer,
mas estava seguro de que mudaria as coisas para sempre. – Este tipo é
bastante estranho – disse a Ricardo, estendendo-lhe o papel. Orienta-nos
para a Lua e impulsiona-nos para seguir em frente. E diz que há um bando
clandestino de cabalistas a viver perto de Belmonte. Costumam reunir-se e
sabem os nomes secretos de Deus. Segundo me contou, sentam-se virados
para Jerusalém e rezam para que o Messias volte a descer à Terra. Se esse
bando de malucos te aceitar, imagino que te ensinarão a respirar e a dançar
e a comer, talvez até a fazer amor como eles.
Sorriram dos meus disparates. O brasileiro agradeceu-me e voltou a
encher-me a chávena de chá.
– Quero conhecer o seu aluno – disse.
– O António?
– Posso vê-lo? – perguntou.
– Para quê?
– É uma questão de memória. Daqui a uns anos, quero lembrar você e
ele juntos.
Senti de repente a garganta tão seca que nem consegui falar. Pedi
licença e fui à casa de banho, nas traseiras do salão. Postei-me diante do
espelho, procurando em vão sinais do rosto do meu irmão e lavei a cara
com água fria até recuperar a voz. De regresso à mesa, disse a Ricardo:
– Continuas a querer conhecê-lo?
Fez que sim com a cabeça.
Eram quatro e meia da tarde, pelo que as horas de visita já tinham
começado. Levei-os até ao Hospital de Santo António. No carro, aqueles
sul-americanos torturados iam tão calados e reverentes que senti vontade de
parar o carro e fugir.
No hospital, Ricardo, Pedro e eu juntámo-nos aos pés da cama de
António, e o brasileiro fez ao miúdo uma pergunta que mudou tudo. De
repente, deixei de pensar em fugir para a Nova Zelândia, ou a América
Latina, ou África.
Os meus pés ficaram imóveis, enraizando-se no chão de granito.
E havia um rufar de tambor constante no espaço oco deixado pela morte
do meu irmão, que me dizia: Tenho de ficar com o António.
É espantoso como uma pessoa nova que irrompe na nossa vida nos pode
mudar o futuro.
Querido Carlos, perdoa-me por acabar a meio esta parte do jogo; não
quero falar sobre a pergunta de Ricardo, nem a resposta de António neste
momento. Nem sequer consigo descrever o rapaz deitado na cama de
hospital. Por isso, espera só uns minutos e falaremos disso depois de eu
beber um pouco mais de ouzo e estarmos os dois mais calmos.
Alguém que eu pudesse ensinar… não sabia na altura, mas acho que
aquilo de que estava mesmo à procura quando vim para a Europa era um
homem de coração e espírito abertos que quisesse aprender. E alguém que
me pudesse ensinar também, porque em novo tinha aprendido todas as
coisas erradas e precisava de as desaprender. Não que eu hoje saiba quais as
coisas certas. Só agora começo a ter uma vaga ideia do significado da tua
vida e da minha.
E qual será ele?
Paciência, Carlos, ainda agora iniciámos esta correspondência.
Então, comecei por ensinar a António o funcionamento da guitarra.
António, com os seus olhos de gato cor de avelã, que deixa uma linha
penugenta por baixo do nariz porque tem medo de cortar uma narina.
Com as chaves sempre a tilintar quando desce a rua.
Jeans apertados a contornar umas coxas musculadas, esculpidas pelo
futebol e pela ginástica. As mãos enfiadas nos bolsos da frente.
Meias brancas e grossas que absorvem o suor juvenil até tresandarem a
chulé.
Cabelo louro-escuro encaracolado.
Sentado aos meus pés, a implorar-me que lhe leia qualquer coisa em
inglês «só para ouvir o som».
A roer as peles das unhas.
A ensinar-me palavrões em português como piça, pito, cona, cabra,
enquanto se rebola no chão a rir com a minha pronúncia grotesca.
A perguntar aos empregados qual o ano da Coca-Cola que eu peço ao
jantar, só para eles sorrirem e nós podermos rir juntos.
A saltitar alternadamente do passeio para a rua quando deambulamos
pela Baixa.
Um ninho de pelos castanhos no meio do peito, que é o melhor sítio
para lhe fazer cócegas e obrigá-lo a defender-se e a lutar, e a seguir a dar-
me o beijo mais profundo que se possa dar.
Decorando músicas novas tão depressa que me pergunto se não será um
alienígena metamorfoseado de humano.
Concertos que espera dar em Carnegie Hall e na Ópera de Paris, e até no
Estádio das Antas, no Porto, antes de um desafio de futebol entre a equipa
da casa e um rival lisboeta.
António, que será famoso e homenageado e reconfortado pela bondade
de estranhos se…
Quando entrou na sala de ensaio para ter a audição comigo, eu não sabia
nada disto, claro. Não fazia ideia de que ele iria mudar a minha vida.
Embora tenha percebido imediatamente que era gay. Ele também me topou.
Trocámos um olhar urgente e esperançado, que é o aperto de mão natural da
nossa espécie, e depois ele desviou o olhar, à procura de segurança. Nessa
altura, tinha o cabelo cortado tão rente que parecia um recruta do Exército,
com medo do halo suave que lhe pudesse enquadrar o rosto.
Carlos, conheces o Retrato de um Homem com Barrete Vermelho, de
Ticiano, que está na Frick Collection em Nova Iorque? Claro que sim; a
menos que tenhas deitado para o lixo o livro que te ofereci pelos teus trinta
e quatro anos. O homem do barrete vermelho é igual a António. Vai lá
depressa à estante e vê.
Com ciúmes? Não devias. Ele tem juventude e encanto. Mas tu tens
uma tristeza e uma frustração infinitas nos olhos, e isso é muito mais
sedutor.
Também o pai de António tem um sósia na Frick Collection. Porém,
para já, não nos adiantemos, esse belo malandro ainda não entrou na nossa
história. Se quiseres, dá uma olhadela ao livro todo e tenta adivinhar com
qual dos retratos ele se parece.
O Cavaleiro Polaco, talvez? Espera um pouco, que eu já te digo.
Adiante, António trazia os seus eternos jeans e o blusão de couro
coçado para a audição. Não havia dúvida, nem no meu espírito nem no dele,
de que eu lhe despertara a atenção, mas eu não tinha viajado por nove fusos
horários, de Los Angeles a Portugal, para acabar com um surfista incipiente
à procura de uma desculpa para sair do armário e que depois fugiria
disparado à vista da primeira onda perfeita a enrolar-se na praia. Além
disso, sempre considerara que os alunos estavam fora de questão. Portanto,
nunca imaginei que pudéssemos partilhar a mesma almofada.
A acrescentar a isto, ainda estava com medo de me lançar no mundo
sexual depois de dois anos de abstinência.
Apesar de tudo, não vou mentir-te; tinha uma vontade desesperada de
enfiar a língua na boca dele e tentar chegar-lhe à alma.
Ele fixou os olhos em mim, os olhos de um miúdo doce, mas de arestas
ásperas, imaginando se obteria os favores de um homem mais velho. Num
idioma que se aproximava do inglês, perguntou:
– O que quer para eu tocar, Professor?
– Qualquer coisa – respondi.
– Eu não compreender.
– Toca qualquer coisa de que gostes, que seja breve e não faça muito
barulho. E, por favor, que não seja espanhola. Acabo de chegar de Espanha
e, se ouço outra imitação de tourada para guitarra, ainda fico maldisposto.
Gotas de suor perlavam a testa do meu príncipe. Despiu o blusão,
dobrou-o e pousou-o no chão junto à cadeira. Naqueles gestos, adivinhei os
anos de repreensões da mãe.
Trazia uma camisa branca bem passada. Inclinou-se para tirar a guitarra
do estojo e depois colocou-a sobre os joelhos. Pareceu-me de madeira de
balsa, comprada no ToysRus de Gaia, no outro lado do rio; o aspeto era
horrível; as cordas estavam a um centímetro dos trastes. Imaginei o som de
um cavaquinho. António respirou fundo, como se se preparasse para nadar
cem metros livres, e endireitou as costas.
Ao pôr as mãos em posição, lançou-me um sorriso rápido e
envergonhado, como quem se desculpa.
– Eu nervoso – disse.
– Eu Tarzan, tu Jane – respondi.
– O quê?
Sorri.
– Vai correr tudo bem. Toca lá.
– Eu muito nervoso.
– Vamos só ver o que acontece. Não entres em pânico, força.
Fitou-me longamente, como que à espera de que eu dissesse qualquer
coisa capaz de lhe tirar toda a ansiedade. Quando viu que não, os olhos
ficaram vítreos. Recostei-me na cadeira e cruzei os braços. Desviei o olhar.
É espantoso como não me apercebi da importância que esta audição tinha
para ele.
Limpou o nariz com as costas da mão. Eu tossi.
Finalmente, começou a tocar a primeira Gavotte da Sexta Suite para
Violoncelo, de Bach. Foi medonho; a mão direita dedilhava as cordas
estridentes do cavaquinho do ToysRus como se estivesse a arrancar penas
do rabo de um peru. Fiz-lhe um sinal de aprovação com a cabeça, por
curiosidade perversa e porque precisava de estragar o dia a alguém. Mas
António, Deus o abençoe, acabou mesmo por se acalmar. Tendo em conta a
qualidade do instrumento, tocou com uma técnica admirável. E, mais
importante ainda, juntou as notas em frases reconhecíveis sem nunca perder
o andamento.
– Chega! – gritei de repente.
O rapaz ergueu os olhos para mim. Observei-o de sobrolho carregado.
Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
Fiquei a ver as gotas presas nas pestanas e pensei no meu irmão a
despedir-se de mim.
– Põe essa guitarra no chão! – ordenei, largando o inglês e passando ao
português.
Ele pousou-a em cima do blusão.
Sentia-me livre para dizer o que quisesse, porque ele não iria
compreender as palavras inglesas mais complicadas.
– Agora levanta-te, ó tolinho.
Ele deixou-se ficar sentado, boquiaberto.
– Upa, tolinho. – Ergui as mãos como um domador de leões. – Põe-te de
pé!
Ele ergueu-se. Limpou os olhos e o nariz. Aproximei-me dele, tomei-lhe
as mãos frias nas minhas e apertei-as.
– Sempre pensaste que estas eram apenas as mãos de um rapazinho
português – disse-lhe. – Mas são as varinhas mágicas de um feiticeiro.
Porquê? Porque conseguem fazer chegar até nós, atravessando dois séculos,
a música de Bach. Quando tocam nas cordas de uma guitarra, conseguimos
ouvir o compositor a pensar no seu estúdio em Leipzig e a escrever as notas
tão velozes como coelhinhos a saltar uns por cima dos outros na sua toca.
Consegues visualizá-lo lá, com a sua pena febril?
– Eu não compreender – disse ele.
Desapertei um botão da camisa e pousei-lhe a mão no meu peito, sobre
a penugem castanha mesmo em cima do coração.
– Sentes isto? Sentes o meu metrónomo defeituoso?
Começou a respirar devagar e fundo, como se fosse desmaiar. Assentiu
o melhor que pôde.
Os nossos rostos estavam apenas a uns trinta centímetros de distância.
– Quando sentires o coração de Bach, então, estarás a tocar esta peça
como deve ser. Compreendes?
Claro que tudo aquilo era conversa de chacha, mas o que importava era
a teatralidade com que o dizia.
Assentiu outra vez. Os jovens gay não resistem à afeição de homens
mais velhos, mesmo que moderadamente atraentes, por isso estreitei-o
contra mim, num abraço apertado. O corpo dele ficou hirto, mas depois
devolveu-me o abraço e derreteu-se todo.
Contudo, antes que aquilo fosse mais longe, afastei-o, mantendo-o à
distância de um metro.
– Se vais estudar comigo, tens de saber uma coisa. Sou uma besta5. –
Ele não compreendeu. – Eu besta – disse, apontando para mim.
– Besta?
Nessa altura, desconhecia ainda que «chato» teria sido uma boa
tradução, mas conhecia a expressão para «crazy whore», e achei que isso
chegava. E, na verdade, até era mais adequado.
– Eu puta louca – expliquei.
Ele riu-se, soltando de seguida um grande suspiro.
– Olha… – disse eu, apontando para a sua guitarra de brinquedo. – Isto
não presta, é pura merda! – Saltei a pés juntos sobre o raio da coisa. As
cordas gemeram e soltaram-se, lascas de madeira voaram em todas as
direções. Reduzi-a a fanicos. António reprimiu uma exclamação, depois
ficou boquiaberto. Passei-lhe a minha guitarra para as mãos. – Esta, pelo
contrário, não é merda nenhuma. É uma boa guitarra. Uma boa guitarra. –
Dei umas palmadinhas ternas no braço do instrumento quando ele lhe
pegou, depois levei-lhe a mão a afagar o contorno profundo junto à boca. –
Temos de ser delicados. Vai com calma. – Sentei-me. – Agora, começa a
tocar outra vez. E tenta não arrancar penas de peru com a mão direita.
António lançou-se na Gavotte. Ao fim de uns momentos, interrompi-o
porque me apercebi de que o maior problema com que nos íamos deparar
era a sua incapacidade de ouvir as notas à medida que as tocava. Estava
tudo demasiado desligado, demasiado staccato.
– Canta! – ordenei.
– Canto o quê?
– A Gavotte… a melodia.
– A melodia?
– Faz o que te digo.
Cantou como um maricas lisboeta de boas famílias, com medo de
acordar a avozinha da sesta. Disse-lhe que se calasse. Cantei para ele,
zangado, ligando todas as notas como se estivesse a tentar transformá-las
numa cadeia em volta dos seus pulsos.
Chegado ao fim da primeira frase, disse:
– Agora canta tu assim.
Como a maior parte dos portugueses, o rapaz era incapaz de se
expressar abertamente. Parecia ter a voz presa na garganta, como uma uva-
passa incómoda. Só ao cabo de algum tempo conseguiria levá-lo a ouvir a
música que produzia. Valeria a pena o esforço? Enquanto me fitava, vi-lhe
no olhar a enorme vontade que tinha de aprender. E eu sou um filho da mãe
insensível quando estou zangado e com tusa ao mesmo tempo.
– Onde estudaste até agora? – perguntei-lhe.
– Ensino a mim próprio – respondeu.
– Há quanto tempo começaste?
– Há dois anos. Antes disso, também… também… – Falhou-lhe o inglês
e refugiou-se num silêncio frustrado.
– E consegues ler bem música?
– Eu não sei ler música.
– Que queres dizer?
– Eu não leio música – disse, enfático.
– Então como aprendeste a Gavotte?
– Dos discos. – Apontou para o ouvido. – Toco de ouvido.
– Ouviste todas as notas que tocaste?
– Sim.
A ser verdade, tinha um ouvido ímpar, um num milhão. Percorreu-me
aquele arrepio que sinto sempre que encontro alguém particularmente
talentoso ou bonito.
– Estás a gozar com a minha cara? – perguntei. – Que idade tens tu?
– Vinte e um.
– A maior parte dos alunos tem dezoito anos quando entra para aqui.
Porque é que esperaste tanto tempo?
– Eu trabalho com o meu pai. Não temos dinheiro.
– Então diz-me porque queres estudar música.
Encolheu os ombros.
– Eu quero… eu gosto. – Passou a língua pelos lábios, nervoso, e os
seus olhos assustados seguiram-me quando voltei a meter a guitarra no
estojo. – Posso estudar consigo? – perguntou de repente.
– A audição não acabou – repliquei. – Quero que venhas lá a casa
comigo.
– Lá a casa?
– Pois. Ao meu apartamento.
– Agora?
– Não te preocupes. Não é com segundas intenções. – Com o polegar e
o indicador da mão esquerda formei um círculo e enfiei o indicador direito
dentro dele. Falei em inglês como Boris Badenov6: – Professor e aluno não
tuca-tuca. Só música. – Icei-o até ficar de pé e encostei a mão contra o seu
peito, para lhe sentir o coração a bater. Afaguei-lhe os peitorais e dei-lhe
uma palmada na barriga. – Eu professor louco … tu príncipe… príncipe
louro. Não fazeres nada que não quereres fazer. Eu não ser mau contigo.
Mas eu não prometer porque, quando fico revoltado, perco a cabeça. E tu…
tu tentares nunca me magoar de propósito. OK?
Ele não fazia ideia do que eu estava a dizer, mas respondeu:
– OK.
– E a minha guitarra? – perguntou.
– Tenho outra guitarra em casa. Para já, usas essa. Agora, pisa a tua de
novo, para dar sorte. Esmaga-a de uma vez por todas!
– Agora? – perguntou ele. – Quando confirmei com a cabeça, saltou
para cima dela com uma careta cómica, como quem fez uma coisa
deliciosamente mazinha esperando que ninguém veja.
Apanhámos um táxi para minha casa. Ele sentou-se ao meu lado todo
hirto, como se eu pudesse mordê-lo. Queixei-me do bacalhau, das pessoas
que não inspiram confiança e dos engarrafamentos. Ele ia anuindo com a
cabeça, as mãos bem presas entre as pernas. Uma vez no meu apartamento,
arranjei um lugar para ele no sofá, lançando a roupa de Fiama para cima da
cama dela. Depois, pus a tocar os discos da Edith Piaf, um atrás do outro:
L’Accordioniste, Milord, La Vie en Rose, Les Trois Cloches… Piaf tem um
vibrato que consegue abafar uma orquestra inteira e um legato capaz de
encadear as palavras das suas canções, transformando-as nas mais
encantadoras correntes ferrugentas. António tinha de aprender de imediato
essa técnica e também do legato, caso contrário não iríamos a lado nenhum.
Mas ele continuava sentado com as mãos entre as pernas, sem proferir
palavra, como um rapazinho ansioso, a morrer de frio à porta da casa dos
pais. Eu não queria observá-lo e pus-me a olhar pela janela. Finalmente,
depois de termos ouvido vários exemplos, ajoelhei-me ao lado dele:
– Quero que cantes qualquer canção que conheças, mas canta-a como se
fosses a Piaf. Compreendes? – pedi-lhe e demonstrei o que queria com o
refrão de Like A Prayer, a tua canção preferida da Madonna, Carlos.
Lembras-te? – Agora tu – rematei.
– A mesma canção?
– A que quiseres.
António tirou as mãos de entre as pernas e pousou-as nos joelhos.
Fechou os olhos. Cantou o hino nacional português. Tinha uma voz linda,
uma voz masculina que lhe subia do fundo das entranhas, uma voz muito
para além da idade dele.
– Foi fantástico – exclamei. Acariciei-lhe a face, e ele arregalou os
olhos. – Muito bom. – Sentia-me estranhamente excitado e pensei que isso
se devia ao facto de lhe querer conhecer o cheiro na cama; era óbvio que o
tinha seduzido. Ainda não compreendera que estava a acontecer mais
qualquer coisa. Peguei na guitarra e toquei as primeiras oito notas da
melodia de Les Trois Cloches, com um vibrato exagerado, e a seguir cantei-
as da mesma forma para ele ver a ligação: Village, au fond de la vallée…
Disse-lhe que o vibrato não era um ornamento, que servia para manter o
verdadeiro tom de uma nota. Ele anuiu com a cabeça. – E nada de espaços
entre as notas – sublinhei, com o indicador espetado na direção dele. – Nada
de espaços, porque espaços mucho maus. Agora faz tu. – Passei-lhe a
guitarra.
António só tinha ouvido Les Trois Cloches uma vez, mas conseguiu
tocar todas as notas da melodia com o andamento certo e sem se enganar.
Sabes até que ponto isso é raro, Carlos?
Tem o melhor sentido de afinação que já conheci. É um num milhão.
À medida que ele ia tocando, ensinei-lhe a descontrair o pulso esquerdo
e a abaná-lo para conseguir o melhor vibrato. Lisonjeei-o, gritei com ele,
implorei. Ele respirava fundo para se acalmar. Ao fim de meia hora, tinha-
lhe apanhado o jeito.
Enquanto fui à cozinha buscar vinho para celebrar, ele tocou Les Trois
Cloches, acrescentando notas baixas para fazer a segunda voz. «Isto para
ele é canja. Nunca conheci ninguém com tanto talento. E é um vampiro,
porra, tal como eu!», pensei.
– Agora põe-te de pé e canta outra vez a Gavotte – pedi-lhe, quando
regressei à sala com uma garrafa e duas flutes.
António afastou os pés, como se se estivesse a preparar para levar um
murro. Passei a língua pelos lábios.
O rapaz foi puxar a Gavotte ao fundo da alma e projetou-a pela boca.
Estava tão orgulhoso de si e tão abandonado à melodia, com uma
semiereção tão bonita a avolumar-lhe as calças, que o amei o mais que me
era possível nesse preciso momento e até senti lágrimas de orgulho
embargarem-me a garganta. Fechei os olhos. Por detrás da escuridão das
pálpebras, eu estava numa estação de comboios a ver partir todos aqueles
em cujo leito de morte me sentara, atravessando um ponto de controlo que
não se podia passar. Eu era o único sobrevivente. «Estou vivo», pensava, «e
conheci um rapaz que tem a grandeza nos dedos!» Era o contraste que me
deixava triste e feliz ao mesmo tempo; aqui estava eu, deixado para trás,
mas a escutar a doce voz de um jovem português que ainda não vira morrer
ninguém que amasse e que tinha todo um futuro pela frente. Quando
terminou, disse-lhe que aprendera bem, e depois passei-lhe o copo de
champanhe.
– Ao António, que vai conhecer a grandeza – brindei.
Ele sorriu, envergonhado. Pusemo-nos a beber, de pé, medindo-nos um
ao outro como dois acrobatas antes de um espetáculo. Estávamos a
ponderar se poderíamos confiar um no outro sem rede.
– Se não dou o salto agora, vou explodir – anunciei.
Ele continuou a olhar para mim, bebendo em pequenos goles.
– Temos de o fazer antes que passes a ser oficialmente meu aluno –
expliquei. – Depois, não será possível.
Ele continuava a olhar para mim.
– Dá um gole no vinho, mas fica com o líquido na boca – pedi-lhe.
Ele assim fez. Aproximei-me, encostei o meu peito ao dele e agarrei-lhe
as nádegas. Beijei-o e suguei-lhe o líquido da boca. António gemeu como
se tivesse sido ferido. O seu membro inchou contra a minha perna. Dei um
passo atrás. Ele tinha os olhos abertos e assustados.
– Saíste-me um animalzinho bem musculado – disse eu.
Depois disso, devorámo-nos simplesmente um ao outro. Não há
nenhuma outra palavra que consiga descrever aquele nosso apetite. Ali
mesmo na sala, desapertou-me as calças e caiu de joelhos. Gemeu como se
estivessem a bater-lhe. Lambeu-me, chupou-me e deu-me dentadinhas
como um escravo treinado para aquele tipo de atividade.
«Ele tem um dom natural», pensei novamente.
Acariciei-lhe o cabelo, massajei-lhe os ombros e caí-lhe sobre as costas,
dobrado em dois, quando atingi o clímax.
Sim, Carlos, ele fez aquilo que tu sempre achaste nojento e engoliu a
minha oferta. Com avidez, devo acrescentar.
Libertei-o das roupas e vi que tinha escondido nas calças um
resplendente apontador do Antigo Testamento.
– Lindo – exclamei. – Aonde foste buscar isso?
– É grande de mais? – perguntou.
– É perfeito – respondi – e não há força neste mundo que me impeça de
fazer as rondas que me forem atribuídas.
Fiz o melhor que pude, engasguei-me algumas vezes, mas não desisti;
queria que ele se libertasse na minha boca porque sabia que acabaria
depressa, e da segunda vez queria que me penetrasse e que fosse capaz de
aguentar a ereção durante um bom bocado. O que acontece é que o miúdo
tinha mais semente amarga do que o que seria expectável num par de
tomates normal. Fez uma careta de dor quando ejaculou. Beijei-lhe o
pescoço e disse-lhe que era lindo.
Ao fim de um minuto, começou de novo a gemer e a respirar fundo. E o
latex mágico da alma de um jovem erguia-se entre as minhas mãos.
Doía-lhe ficar ereto outra vez, mas estávamos demasiado excitados para
parar.
Pus-lhe um preservativo.
Fomos devagar porque tinham passado cinco anos desde a minha última
experiência. Ao cabo de dez minutos, o apontador dele estava bem seguro
dentro de mim. A arfar de pânico e de desejo, António não sabia o que
havia de fazer.
Puxei-lhe as nádegas contra mim, para ele saber que tinha de avançar.
Lentamente, começou a aproximar-se das minhas entranhas. Parecia que me
abria ao meio, e a dor deixou-me inerte, mas naquele ponto levar a relação
até ao fim era uma questão de orgulho – como soldados que se apoderam de
uma colina sem qualquer valor estratégico, mas que significa muito para o
moral das tropas. Finalmente, o raio da coisa estava toda dentro de mim.
Deslizei sobre a cama, com ele deitado em cima de mim.
– Não te mexas! – ordenei-lhe.
Ele estava nervoso, com medo de me magoar, e senti-o a perder a
ereção.
– Mato-te se te vais abaixo agora! – disse-lhe. – Avança quando
quiseres.
E, como miúdo amoroso que era, ele fez-me a vontade.
A seguir desatei a chorar. Como não chorava havia anos. O rosto de
António ficou lívido de medo. Fiz-lhe uma festa na face. Beijei-lhe todos os
dedos.
– Não te preocupes – disse-lhe. – Tinha-me esquecido de que o sexo era
assim… Há muito tempo e muito longe daqui, tocar num homem conseguia
ajudar-nos a curar todas as feridas. – Coloquei as mãos dele sobre os meus
olhos fechados. – Não me magoaste – garanti-lhe. – Só me transportaste um
pouco de volta ao passado.
3
Palavra japonesa que exprime o conceito de «caminho para a revelação». (N. da T.)
4
Filme britânico de terror/ficção científica que saiu em 1964, sobre seis crianças identificadas pela
UNESCO, provenientes de várias partes do mundo, que demonstram ter poderes telepáticos
arrepiantes. (N. da T.)
5
«Asshole» no original. (N. da T.)
6
Vilão de desenho animado que fala inglês com sotaque russo e gramática e sintaxe deficientes. (N.
da T.)
5
Está tudo no meu diário. Na sexta-feira, 26 de maio, recebi logo de
manhã uma chamada de um repórter do Público que andava a escrever um
artigo sobre estrangeiros em Portugal. O seu «ponto de partida», como lhe
chamou, assentava na ideia de que os brasileiros, americanos, alemães e
ingleses estavam simultaneamente a enriquecer e a destruir a cultura
portuguesa. Não me dei ao trabalho de pedir uma explicação.
– Então, e o que é que essa teoria tem a ver comigo? – perguntei.
Ele queria uma entrevista. Recusei. Ele insistiu; eu era o único
americano.
– Vai representar o seu país – disse.
Achei a ideia perversamente divertida, pelo que concordei. Fiquei de me
encontrar com ele na sexta-feira seguinte, na redação do Público. Pareceu-
me uma data distante o suficiente para poder cancelar, se precisasse.
Estava apavorado com as aulas que teria de dar nesse dia, porque mal
pregara olho durante a noite, e imediatamente dei de caras com o diretor do
Conservatório, o Ramalho. Em criança, devia lembrar um daqueles órfãos
pintados sobre veludo; tem as pestanas mais compridas que alguma vez vi –
como folhas de feto. Só que agora é barrigudo, com um grande queixo.
Parece um sapo tirado de uma ópera dramática.
Levou-me até à sala dos professores. Estava vazia. Disse-me com um
sorriso orgulhoso que, na noite anterior tinha ido para a cama com uma
rapariga que conhecera numa discoteca. – Ela adorou…
– Se eu deixasse as aulas uma ou duas semanas mais cedo, alguém teria
um ataque cardíaco? – perguntei, interrompendo-o de súbito.
– Então e as últimas aulas? – perguntou ele, irritado. – E os exames
finais, bolas?!
– Não estou a dizer que o vá fazer garantidamente. Mas tenho o meu pai
doente – menti – e posso ter de ir aos Estados Unidos do pé para a mão. Eu
arranjava alguém para me substituir.
O verdadeiro motivo para me querer ir embora mais cedo nada tinha
nada a ver com isto, claro, mas antes com um plano louco que me envolvia
a mim e a António e que começara a delinear-se na minha cabeça.
Ramalho abanou a cabeça, com um ar desolado, mas se tinha de ser…
Sabes, Carlos, na verdade só três coisas me interessam agora, e a
primeira é registar como era a vida antes de o sexo desaparecer inteiramente
do planeta. Porque, um dia, os que nos sobreviverem não saberão. O sexo
tornar-se-á tão perigoso que será declarado moralmente inaceitável em
quaisquer circunstâncias. Os espermatozoides e os óvulos apenas se
encontrarão em tubos de ensaio. E aquela insignificância fertilizada será
transplantada para a barriga de um bicho, o útero de uma porca, por
exemplo, e será a D. Suína que levará a termo os nossos Manelinhos ou
Aninhas.
Sei que não estou em posição de registar todos os aspetos do sexo.
Ninguém está. Mas pelo menos gostaria que os nossos descendentes daqui a
mil anos soubessem que nós…
gostávamos de mergulhar num variado número de orifícios corporais;
nos lambuzávamos, devotávamos, suávamos e ejaculávamos com
perfeitos desconhecidos nos locais mais estranhos;
e mesmo assim nunca era suficiente.
Tenho consciência de que não estou sozinho. Outros tentam escrever
esta mesma história. Talvez uma das nossas obras sobreviva, seja escavada
nas praias de um qualquer mar morto por um velho arménio encarquilhado
e escondida numa gruta até ao momento em que seja seguro revelar esta
informação.
O meu segundo objetivo, e ainda mais importante, passa por fazer tudo
o que for necessário para ajudar o meu querido António.
Neste ponto da história, andava há dois dias a evitar ir vê-lo ao hospital.
Um comportamento cobarde, bem sei, mas tentava buscar forças à caverna
vazia de um corpo que arrastava penosamente desde a soalheira Califórnia.
Precisava ainda de aprender que, se nos imaginarmos de novo preenchidos
com tudo aquilo que fomos, a força pode surgir espontaneamente – pelo
menos, durante um tempo.
Será este um exemplo da magia da esperança de que me falara o
brasileiro Ricardo?
O terceiro objetivo é arrastar-te, meu querido, para fora da nossa
caverna lisboeta, aos gritos e pontapés, se necessário. Porque ainda há uma
oportunidade para nós, se ao menos vestires a armadura e vieres combater
comigo no topo da Torre dos Clérigos.
Mas nunca fui abençoado, e não acredito em nenhum deus que se
preocupe em ajudar-nos. Por isso, receio falhar em todos estes fitos.
Ah, quase me esquecia; há ainda um último objetivo, este só para mim,
um desejo secreto que nunca se realizará: gostaria de tocar guitarra como se
estivesse a fazer amor – conseguir que aquela madeira insensível vibrasse
com o desejo. Seria assim que Paganini tocava violino? Imagina-te
erguendo o teu instrumento com o mesmo arrepio que sentes quando
penetras sombras proibidas. O arco anda para trás e para a frente. O silêncio
é preenchido por sons de fricção. Subsiste apenas movimento, e resina, e
tensão, e uma cadência tão alta e doce que o violino se fende mesmo a meio
e cai na Porta da Compaixão que os cabalistas contemplam, e que tem de
existir, se queremos sobreviver.
Um dia, António poderia vir a tocar guitarra assim; já estava perto. Será
que os deuses ficaram com inveja?
Será que, no fundo, é disso que se trata?
Depois de duas aulas de guitarra nessa manhã, apanhei um táxi para o
hospital. O quarto onde António estava era no segundo andar.
Não sei porque me obriguei a ir visitá-lo. Não creio que fosse culpa,
porque não fora eu quem o fizera adoecer. E não poderia ser lealdade,
porque deixei para trás dois amigos em Nova Iorque em xeque-mate para
me mudar para Los Angeles, e um irmão que já tinha perdido a dama,
ambos os bispos e um cavalo para vir viver para Portugal. Poderia ter que
ver com a força da beleza a ser destruída? Como partir de Sodoma e
Gomorra sem olhar para trás? Sabemos que não o devemos fazer, porque
nos vai partir o coração, mas temos de ser testemunhas.
E, portanto, ali estava eu, aos pés da cama de António como se fosse um
altar, um rabugento de meia-idade a prestar homenagem ao David de
Miguel Ângelo atacado por uma maldição viral.
António, o angélico príncipe do Porto, legítimo herdeiro de Segovia,
que precisa de viver para cumprir o destino que tem na ponta dos dedos.
António, ali deitado com a agulha do soro espetada no braço, a dormir,
os olhos cor de avelã fechados – aqueles olhos que talvez nunca vejam a
alvorada dos trinta anos.
António, com a boca fechada, calado como uma criança que não perdoa
aos pais que lhe bateram. «Que será que ele vê quando está a dormir? As
pirâmides do Egito? O Grand Canyon? Será só sede que o leva a passar a
língua pelos lábios neste momento?», perguntei-me.
O destino. A vida. A morte. Este miúdo devia andar a pinar debaixo de
uma manta na praia de Moledo. Ou a beberricar chá em casa e a comer pão
de ló qual jovem paxá.
Os meus pensamentos deveriam ser o bastante para te curar, António. Se
ao menos, enquanto aqui estou, aos pés da tua cama, conseguisse encontrar
a sequência certa de palavras, a combinação adequada de letras…
Porém, todos os encantamentos se perderam quando os judeus foram
expulsos de Espanha e depois convertidos ao cristianismo em Portugal. Há
quinhentos anos. Era isso que eu deveria ter dito a Ricardo. Nós tínhamo-
las, tínhamos as fórmulas de que precisávamos para salvar o mundo, e
depois o rei D. Fernando e a rainha D. Isabel estragaram tudo com a sua
satânica ordem de expulsão.
António pestaneja.
– Professor – diz.
– Olá – respondo. – Não sabes que é proibido chamar «Professor» a
alguém com quem dormimos?
Estou a tentar ser engraçado. É patético, bem sei, mas este rapaz já está
a ser vestido para o Anjo da Morte, e eu fui um judeu divertido numa vida
passada.
O miúdo senta-se na cama. Tens os olhos pisados, ensombrados por um
futuro sem alegria.
– Onde estão as horas? Sabe onde estão as horas? – perguntou.
Deixa-me explicar-te este discurso sem sentido, querido Carlos. Não se
trata de uma má tradução do que ele disse em português. António teve o
azar de ser acometido por duas doenças ao mesmo tempo: gripe e zona.
Estavam a dar-lhe codeína para as dores, o que lhe causava alguns delírios.
Claro que ainda não tínhamos os resultados do teste de VIH. O meu
cérebro não parava de me repetir: «Até pessoas normais com bons sistemas
imunitários têm zona de vez em quando.»
António falou por algum tempo como um haiku mal traduzido. De vez
em quando, eu anotava o que ele dizia; alguém tinha de escrever essas
coisas para o tal velhinho arménio que vai escavar os vestígios que
deixarmos da nossa civilização.
As infeções deveriam passar por si. António tomava antibióticos apenas
para evitar uma pneumonia.
Calculei que, dentro de dez dias, ou estaria recuperado ou estaria morto.
Achas que exagero, não é?
– Como te sentes? – perguntei-lhe.
– Cansado.
– Queres água?
Passou a língua pelos lábios para ver se tinha sede. Abanou a cabeça.
– Estás com melhor aspeto – menti.
– A comida não presta. – Franziu o sobrolho.
– O que é que te apetece? Eu trago-te às escondidas. – António é louco
por doces. Comecei a desbobinar uma lista de guloseimas: ovos moles,
pastéis de nata, pastéis de coco, pão de ló…
– Não, nada – respondeu, fechando os olhos.
Tentei queijos; também adora lacticínios. Abanou a cabeça.
Deixámo-nos estar em silêncio. A cama de António ficava mesmo por
baixo de uma janela interior que dava para um corredor. Uma luz cinzenta e
suave escoava para dentro da enfermaria. Havia mais nove camas. Em
frente a António, estava um velho esquelético com uma ligadura à volta do
pulso. Ao seu lado, um homem gordo com a testa perlada de suor e uns
óculos que pareciam fundos de garrafa. Lembrava-me o Piggy do Senhor
das Moscas. Senti-me desorientado.
Não sei quanto tempo fiquei naquela enfermaria. A recordação da
primeira vez que António me guiou para dentro de si arrastava-me o olhar
para os mosaicos do chão. Nunca tivera tanto cuidado com nada, nem
sequer com as borboletas que costumava apanhar em criança.
Quem terá selado o destino do meu António numa enfermaria de
hospital? Não temos a certeza. Suspeitamos de que tenha sido o Sardinha.
Trata-se, naturalmente, de uma alcunha, mas, como guardava a cocaína e a
metadona numa lata de sardinhas, o nome pegou. Costumava injetar-se nas
traseiras do Conservatório, no pátio de uma casa abandonada na Rua de
Cedofeita. Era aluno de piano, o pior tipo de músico. Não têm de afinar
cordas. Portanto acham que tudo lhes vai parar às mãos sem esforço.
Quando isso não acontece, têm uma grande desilusão. Essa desilusão leva à
depressão. A seguir vêm os episódios melodramáticos de autodestruição. Se
quiserem experimentar um músico, fujam dos pianistas. Procurem quem
toque oboé. Têm pulmões de cantor de ópera e corações enormes. E sustêm
o fôlego como os pescadores de pérolas. Disseram-me que um broche de
um oboísta é quase sempre um feito digno do Guinness.
Querido Carlos, lembro-me de que Henry, o Colosso, costumava dizer
que o amor na nossa década é como uma madrasta malvada: envenena-nos
e mata-nos. Tenho a certeza de que concordas com ele. Talvez por isso faça
sentido teres medo de mim.
6
Por qualquer razão inexplicável voltei a ter uma sensação de calma no
sábado, 27 de maio, talvez porque não tinha aulas ou simplesmente porque
o céu estava azul, limpo de nuvens. Mesmo agora, quando penso em mim
na varanda de Fiama a olhar para a abóbada turquesa que nesse dia protegia
o Porto, sinto-me invadido por uma tremenda calma.
Por isso, vou arriscar dizer-te agora o que o brasileiro Ricardo sugeriu a
António há duas semanas.
Tal como disse, Ricardo, Pedro e eu estávamos aos pés da cama dele.
Apresentei toda a gente. Naquele momento, o cérebro do miúdo estava
alerta, e ele contou-nos que tinha acabado de acordar de um sonho
agradável.
– Estava lá muito no alto, como um pássaro. E vi uma cidade num vale.
Uma cidade enorme, que se espraiava por vários quilómetros.
– Que cidade era? – perguntei.
– Não sei. Talvez Madrid. Talvez Paris. – Encolheu os ombros. –
Parecia muito grande. Mas, claro, nunca estive nesses sítios e não reconheci
quaisquer monumentos.
– Alguma vez saíste de Portugal? – perguntou Ricardo.
– Nunca.
– Gostavas de viajar? Ver essas cidades?
António sorriu.
– Adorava. Mais do que tudo. Mas como? Há aulas, e exames, e essas
coisas todas.
Ricardo olhou para mim. Percebi o que me estava a dizer: «Podes fazer
alguma coisa por outra pessoa e estar ao lado dela enquanto decide se ainda
há esperança no mundo, ou podes afastar-te. A escolha é tua.»
– Quando saíres do hospital gostavas de ir viajar? Ver Paris? Ver o sítio
onde te comprei as camisas de seda em Madrid? – perguntei.
António mordeu o lábio. Contemplou-me como se não percebesse em
que língua estava eu a falar. O meu coração batia descompassado.
Sabia que ele ia responder sim, mas também que tinha medo de
acalentar essa esperança.
Sei que não vais compreender isto, Carlos, porque nunca conheceste
ninguém a quem tenham dito que tem uma doença terminal. Mas por vezes
o momento mais importante chega logo a seguir a conhecerem o seu
destino. Dois caminhos desdobram-se a partir do que acabam de saber: um
que vai orlando as franjas da vida – se o escolherem, ficam connosco, com
os vivos, lutando para regressar ao nosso território; o outro leva diretamente
à escuridão, e nenhuma das palavras que lhes dirijamos serão
verdadeiramente escutadas.
É verdade que os resultados do teste de António ainda não tinham
chegado. Mas, a dar-se o pior, teria de escolher o seu caminho. E, agora que
eu sabia exatamente como o ajudar a ficar connosco, como poderia sequer
contemplar a ideia de o rejeitar?
Mas contemplei. Cruzei os braços sobre o peito. Pus-me a olhar pela
janela para a parede verde-suja do corredor e pensei: «Talvez já esteja tudo
perdido.»
Disse-lhe que ia alugar um grande carro americano e levar-nos por essa
Europa fora.
O cérebro dele saiu dos carris e perguntou se o carro teria sandálias. Era
a codeína de novo. Continuámos a falar sobre nada e, a meio de uma frase,
ele fechou os olhos e começou a ressonar.
Ricardo aproximou-se de mim.
– Estás com ar de quem vai desmaiar – sussurrou. – O melhor é irmos
sentar-nos num café.
Concordei, mas não conseguia mexer-me. Pus-me a observar António.
Lembrei-me de que Pedro me dissera que conhecia um dos professores de
guitarra do Conservatório de Paris. Seria essa a verdadeira razão para eu
querer levar o miúdo?
Carlos, sabes sempre qual a razão para as coisas arriscadas que fazes?
Será que alguém sabe?
– Como se chama aquele guitarrista que conheces no Conservatório de
Paris? – perguntei a Pedro, encarando-o.
– José Maria Landero.
– É bom?
Pedro inclinou a cabeça.
– A Deutsche Grammophon acha que sim. Vai lançar os discos dele com
a música de Leo Brouwer.
– E aceitaria o António como aluno?
– De que estás tu a falar?
– Não há muito que eu lhe possa ensinar – disse. – Se alguma vez
começar a dar concertos, vai precisar de estudar com alguém melhor do que
eu.
– Mas agora, com isto? E se…?
– Especialmente agora. Especialmente «se».
– E tu? Qual seria o teu papel no meio disso? – perguntou Ricardo.
Era uma boa pergunta. Seria capaz de desistir de António?
– Então achas que esse Landero dava uma oportunidade ao rapaz? –
perguntei a Pedro, determinado a fazer as coisas bem feitas.
Estava assente. António e eu partiríamos para Madrid e Paris. Pedro
telefonaria a José Maria Landero. E eu faria de tudo para entregar António a
outra pessoa – se fosse esse o seu desejo, claro. Mas não tinha a certeza de
que assim fosse.
Porém, não é isso que está a preocupar-te, Carlos. Achas que não vou
conseguir resistir a dormir com ele durante a viagem, e que os cossacos
também me vão apanhar. E, por arrasto, a ti também. Não te preocupes, os
vírus não conseguem atravessar as dobras do tempo – pelo menos, ainda
não.
Ou talvez estejas a desejar a minha morte. Ficarias, sem dúvida, safo,
não?
– Quem é o senhor?
Regressei ao hospital e ao meu lado está um homem muito bem-
parecido. Tem o cabelo grisalho cortado rente, barba de vários dias a
sombrear-lhe as faces, uma boca sensível e uns lindos olhos castanhos,
tristes, com rugas que dão a impressão de que anda há muito tempo a
semicerrá-los para conseguir espreitar o futuro. No rosto, raia-lhe uma
expressão zangada e alerta. Os dentes cerrados, a mandíbula a latejar. Traz
um blusão de couro, camisa branca e jeans.
Levanto-me. Ele é vários centímetros mais baixo do que eu.
– Sou o professor de guitarra do António – digo.
– Ah – exclama. Todo o corpo relaxa. Bate na testa e solta: – Desculpe,
professor. – Aperta-me a mão, grato, segurando-a longamente. Tem calos
espessos na palma. – Obrigado por visitar o meu filho.
Então este era o famoso Miguel do Minho, como António e eu sempre
lhe chamámos. António contou-me muitas histórias a seu respeito e soube
que ele era de Vila Nova de Cerveira, mesmo nas margens do rio Minho,
com a Espanha do outro lado, e…
que tinha uma voz doce e ressoante;
que trabalhava de sol a sol como pedreiro, era fundamentalmente
bondoso e simpático, mas também muitíssimo receoso da
homossexualidade de António;
e que tinha dificuldade em manter o seu amigo dentro das calças,
demasiada para o gosto da mulher. Divorciaram-se quando António tinha
apenas sete anos.
António mostrara-me em tempos uma fotografia do pai aos vinte e tal
anos, e ele e o filho tinham o mesmo cabelo louro-escuro. Algures na árvore
genealógica há pelo menos um celta bem aviado.
Carlos, já consegues adivinhar qual dos retratos da Frick Collection
lembra o Miguel?
Não te dês ao trabalho de ir procurar outra vez. É o retrato de Sir
Thomas More, por Hans Holbein, o Jovem.
Tira-o e vê como é um homem bonito.
Um rosto incrível, não achas? Se António chegar aos quarenta e cinco
anos, vai ser igual a ele. Há tipos cheios de sorte. A julgar pelo meu pai aos
setenta anos, vou acabar igual a um tubarão com um bigode à David Niven.
Extraordinário é que Sir Thomas More e o jovem pintado por Ticiano
têm um ar de família. Será possível que este jovem fosse mesmo familiar de
More? Seria seu filho?
Ou será que a chave para esta parecença assenta na afeição que o pintor
tem pela pessoa que retrata? Sempre achei que ambos os artistas se sentiam
apaixonadamente atraídos pelos homens que posaram para eles.
António ressona. Ficamos a contemplá-lo. Não quero estar ali, porque
me sinto atraído por Miguel. Tenho medo de dizer ou fazer alguma coisa
que possa ser considerada perversa, e os portugueses ofendem-se com
facilidade. Por isso, ofereço-lhe a minha cadeira, mas ele não quer sentar-se
e retribui a gentileza. É uma pequena dança que os homens deste país fazem
sempre que se abre uma porta ou um lugar fica vago. Volto a sentar-me
pensando numa desculpa para me ir embora. Como sou estrangeiro, serei
perdoado por não insistir para que tome o lugar.
Durante muito tempo não dizemos nada. Depois, Miguel murmura:
– Está com melhor aspeto. – Assente gravemente com a cabeça. Tenta
convencer-se a si próprio.
– Está, sim – digo. E depois, não sei o que me deu, pergunto a Miguel se
quer ir beber uma cerveja. – Devíamos deixá-lo dormir. Agora não podemos
fazer nada.
– Tem razão. – Miguel arrasta os pés até à cama, inclina-se e pousa
delicadamente os lábios na testa de António.
Um homem bonito a beijar o filho… uma luz cinzenta a unir-lhes os
rostos… Se fosse Vermeer, seria esta a cena que eu pintaria.
Miguel faz-me sinal para tomar a dianteira, e saímos da enfermaria. Lá
fora, à luz do sol, começa a chorar em silêncio enquanto nos dirigimos para
a Praça de Lisboa. Não quero envergonhá-lo, por isso, finjo que não reparo.
Ele enxuga os olhos e tira um maço de SG Gigante do bolso do casaco.
Oferece-me um cigarro. Não posso recusar nada a um homem que chora.
Puxa uma fumaça ávida enquanto o acende, e fecha os olhos por um
momento. Depois acende o meu.
– Continuo a dizer a mim próprio que isto é apenas um pesadelo. Mas
todas as manhãs acordo, e todas as manhãs ele ainda lá está. – As palavras
saem em catadupa, numa só baforada de fumo.
Sentamo-nos na esplanada do Café da Praça. Está cheia de estudantes
universitários. Quero confessar-lhe que amo o filho, mas provavelmente ele
ia apanhar uma pedra da calçada para me rachar o crânio ao meio. E quem o
poderia censurar? Bebo depressa a minha cerveja, o olhar fixo na linha dos
telhados que contornam a praça afundada na paisagem.
– Se conseguisse descobrir a pessoa que lhe passou esta doença,
matava-a com as minhas próprias mãos – diz Miguel. A voz sai-lhe rouca.
Tremendo, faz o gesto de estrangular alguém.
– Não temos a certeza de que ele esteja seropositivo. Ainda há
esperança.
Miguel afasta essa possibilidade com um gesto carregado de desprezo.
Suspira e abana a cabeça.
– Temos de ter calma para poder ajudá-lo, seja qual for o resultado do
teste. Isso é que é importante – digo.
Odeio-me por recorrer a clichés. Quero afastar-me da vítima cobarde
que tenho dentro de mim, que apanhou com os salpicos da chuva que cai
por todo o lado. Quero ir-me embora de Portugal, tal como me fui embora
da América.
Mas apercebo-me de que estou preso – um inseto americano preso numa
dessas tiras de papel com cola que os portugueses usam para apanhar
moscas. Com o oceano Atlântico pelas costas, sem sítio para onde fugir. Ou
será que não? Será essa a verdadeira razão para querer levar António? Uma
fuga temporária para a fantasia…? Uma última escapada antes que os
cossacos ataquem e incendeiem totalmente o meu último refúgio?
7
É domingo, 28 de maio. Devemos ter o resultado do teste de VIH dentro
de vinte e quatro horas.
Passo a manhã toda no quarto de Fiama a ver televisão. Ao almoço,
como três anonas e seis kiwis.
Faço umas máquinas de roupa. Estou com diarreia.
Ponho-me a observar a rua da janela do quarto. Lá em baixo, uns
miúdos jogam futebol. Uma alvéola pousa no parapeito. Tem a cabeça
branca e o papo preto. Agita a cauda para cima e para baixo. Fica a olhar
para mim. Tento ler. Bebo ouzo.
Miguel e eu encontramo-nos no hospital. Ele trata-me por «professor».
Peço-lhe que não o faça, mas ele insiste. António acorda, fala outra vez em
haiku. Durante uma hora, travamos uma conversa com ele digna de Eugène
Ionesco. Entre o meu português e a sua poesia, parecemos aquela velha
anedota ídiche do tipo que pergunta a um amigo surdo na rua o que leva no
saco de papel pardo. «Pêssegos», responde ele. «Boa. E que tal vai a
família?» O surdo encolhe os ombros e responde: «Em conserva.»
Chega o almoço: peixe frito, legumes demasiado cozidos e uma maçã
assada. Miguel dá de comer ao filho. Abre-se-me uma cratera no peito
enquanto o vejo levar colheradas de ervilhas à boca de António. Lembro-
me de…
pedir a Henry, o Colosso, que engula o iogurte de baunilha que lhe meto
na boca repleta de crostas;
dar a comer uma última maçã assada ao meu irmão;
passar à minha mãe uma lata de Coca-Cola para ela tomar mais um
Valium.
Afasto-me destas memórias e ponho-me a observar os outros doentes da
enfermaria. Uma ervilha cai da boca de António sobre os lençóis. Miguel
pega-lhe com o indicador e o polegar e volta a pô-la na boca do filho.
Apetece-me dizer: «Pare com isso, é perigoso.» Claro que, na realidade, não
é. Mas um abatido como eu, que já não consegue assistir a mais mortes, fica
inevitavelmente paranoico.
As carícias são-me mais intoleráveis do que as piores cenas de
violência, pelo que digo a Miguel que, se quiser, dali a uma hora o espero
no café para bebermos uma cerveja.
Ele é o tipo de homem que acena quando se aproxima da nossa mesa,
depois inclina-se e pergunta se se pode sentar. Faz-me sentir importante, e
eu não gosto disso. Quando temos consciência de que somos uma minhoca
assustada, valorizarem-nos faz-nos sentir profundamente hipócritas. Por
isso, limito-me a assentir com a cabeça. Depois de se sentar, agradece-me
por ter ido ter com ele. Não tem nada que agradecer, digo-lhe. Dá-me um
cigarro e acende-o. Eu peço uma cerveja para ele. Faz uma cara séria. Noto
que os pés de galinha que lhe irradiam dos olhos tristes ficaram mais fundos
durante a noite.
– O António toca mesmo bem guitarra? Tem talento? – pergunta.
– As mãos dele compreendem a guitarra – respondo. – E ele
compreende a música, o que é mais importante.
– Eu sou pedreiro – diz Miguel. – Não sei o que significa «compreender
a música». – Inclina-se para a frente. – Quero saber o que isso significa
porque quero conhecer o meu filho.
– Significa… – Não sei o que dizer depois disso. Falha-me o português,
porque ele está a perguntar-me uma coisa importantíssima para mim e que
por isso mesmo está além das minhas capacidades linguísticas. Atrapalho-
me, falo de forma e de cor e de outros conceitos que as pessoas
normalmente não associam à música. É provável que ele me ache
condescendente. Mas aprova as minhas palavras com um gesto da cabeça,
fuma e bebe a sua cerveja.
– Quero que o meu filho tenha uma vida, quero que continue com a
guitarra depois de sair do hospital. Pode ajudá-lo? – pergunta-me no
momento em que nos despedimos.
Apetece-me dar-lhe um beijo na testa com toda a ternura e dizer-lhe que
serei afetuoso com o seu filho, porque a única alternativa seria ser distante e
cruel, e tenho visto tanta crueldade e tenho sido tão cruel comigo próprio,
que sei que já não é necessário. Contudo, mais cedo ou mais tarde, terei de
lhe dizer que dormi com o filho. E isso deixa-me o coração descompassado.
«Quando o António estiver melhor, digo-lhe», penso. Mas também sou
capaz de deixar pai e filho a lamberem as feridas, assim que António tiver
alta do hospital.
– O seu filho há de ser sempre meu aluno. Nada poderá alterar isso.
Odeio-me porque digo aquilo como se estivesse a jurar o meu amor a
um cisne moribundo. Tudo vai recomeçar – os dramas e os clichés, e os
amigos de preto a juntarem-se à volta dos leitos de morte. Tinha prometido
a mim próprio: nunca mais. E, contudo, eis-me aqui. Quem governa o meu
destino e o meu coração só pode ser um falhado. Mas até esse falhado me
permite fugir de Miguel, porque ele se parece demasiado com o filho, é
demasiado bonito, e porque me apetece tanto beijá-lo que sinto as entranhas
em fogo.
Na manhã do dia 29, telefono para a escola a informar que estou doente,
bebo ouzo e vou passear junto ao rio. À tarde, dou cinco voltas ao Hospital
de Santo António, como quem cumpre um ritual místico destinado a salvar
o miúdo. E depois entro. Encontro a enfermeira-chefe antes de ver António.
O meu coração bate loucamente.
– Ainda não chegaram os resultados – diz-me ela.
– Como é possível? Era para ser hoje.
– Amanhã – responde.
É o eterno grito de guerra dos espanhóis e dos portugueses. Amanhã.
Não consigo enfrentar António. Dirijo-me para casa. Sinto-me tão tenso
que peço a Fiama uma massagem nas costas. Tem boas mãos para aquilo,
mas o resultado não é grande coisa. Por isso, aconchega-me na sua cama,
com duas almofadas atrás da cabeça, e fico a beber ouzo enquanto vejo
televisão. Ela faz-me sopa de nabo. À superfície flutuam lindas gotículas de
azeite.
Às onze da noite, recebo uma chamada de Miguel, o pai de António.
– Estou a falar com o professor? – pergunta-me numa voz ansiosa.
– Sou eu, sim.
– Hoje não o vi no hospital.
– Não consegui ir.
– O António perguntou por si. Está melhor. Sente-se com mais forças. E
a zona está a desaparecer.
Não tenho coragem para lhe dizer que essas ligeiras melhoras não
interessam nada se se vier a verificar que ele é seropositivo. Fico calado.
– Professor? Está aí?
– Estou.
– Ouviu o que eu disse? O rapaz está melhor. – Fala como se António
fosse o nosso rapaz. Sinto que me esvaziam os pulmões; não consigo
enfrentar a realidade de ele voltar ao mundo. A verdade é que sei que estou
mais seguro com ele a morrer agora no hospital. Aprendi que se o corpo de
um amigo for para debaixo da terra antes de o sabermos, quase
conseguimos fingir que continua vivo, a escalar para sempre os Himalaias
ou perdido algures no Norte de Nova Iorque. Tudo o que não tenha sido
confirmado como morto pode ser considerado vivo.
– Falo consigo noutra altura – respondo a Miguel. Desligo antes que ele
possa protestar. Não volta a telefonar. Apercebo-me de que me devia sentir
um merdas por não o querer ouvir. Mas sinto-me aliviado. Acabo a garrafa
de ouzo.
Nessa tarde, recebi uma carta da minha mãe. Dizia-me que continuava a
ter pesadelos com o meu irmão. «O Harold e eu estávamos numa cama
enorme, com lençóis cor de salmão cheios de vincos. Eu sabia que não
tinham sido passados a ferro…» São estes pormenores que me fazem trepar
pelas paredes: os «lençóis cor de salmão cheios de vincos.» Será que outra
pessoa teria reparado numa coisa assim? E continuava: «… E o teu irmão
tinha virado a cara para olhar para um relógio na parede com ponteiros
vermelho-sangue. Quando me fitou, tinha a pele translúcida, e através dele
eu conseguia ver o mar escuro, tal qual ele era na minha infância em
Brooklyn. Senti que estávamos presos numa ilha, os dois juntos. Quando
acordei, tive de ir vomitar. Estava tão maldisposta que…»
Há mais de um ano que recebo cartas destas, desde o dia em que Harold
deixou de respirar, no quarto 602 de Neurologia, naquela fábrica da morte
da 59th Street com a 9th Avenue chamada Hospital Roosevelt. Assim que
acabo de ler as suas epístolas de desgraça e morte, queimo-as. É um
pequeno ritual que desenvolvi; atirá-las para o lixo não seria suficiente;
estão demasiado sobrecarregadas com a doença do meu irmão. Por isso,
depois de ler cada carta, dobro-a calmamente em quatro, pouso-a no
cinzeiro de vidro com a imagem da Torre Eiffel no fundo, e pego-lhe fogo
com um isqueiro Bic que António pôs de parte quando deixou de fumar. Se
soubesse uma oração hebraica contra possessões e assombramentos,
murmurá-la-ia enquanto o fumo sobe. Porquê?
Porque também eu tenho sonhos desses. Com a praga dos lençóis
vincados e tudo. E é por isso que não preciso dos pesadelos dela.
Sinto-me demasiado culpado para não responder à minha mãe. Por isso,
redigo pequenas mensagens, dizendo-lhe que também não o esqueci. No
entanto, eis um segredo: a maior parte das vezes consigo deixar para trás o
que aconteceu. Harold e a mãe estão ali, secos, pálidos e hirtos, dentro de
um passado que nunca será alterado e que consegui varrer para dentro de
um quarto cuja porta só abro por acidente. Exercitei-me para, de cada vez
que me aproximo dela, dar meia-volta e afastar-me. Estão ambos cobertos
de teias de aranha, claro, qual Miss Havisham9 moderna, abandonada junto
ao altar da vida no preciso momento em que as coisas pareciam
promissoras. E, contudo, há dias – quando o sol português brilha
intensamente e os meus dedos estão particularmente ágeis nas cordas da
guitarra – em que as teias de aranha caem da minha mãe o rosto dela se
ilumina, rosado e saudável, e ela se afasta do meu irmão e sai da velha casa
de família para entrar no mundo que eu habito. O problema é que mal me
lembro dos seus traços ou da sensação de lhe dar um beijo. Tudo o que a
animava foi enterrado com Harold; aquela que se afastou da sua campa era
um espectro – um fantasma a sonhar com outros fantasmas.
Depois de queimar a carta, telefono a Salgueiro, o único homem – além
de António – com quem passei uma noite desde que me separei de ti,
Carlos; agora que António está a recuperar, o meu plano de levar o miúdo a
Espanha e a França ganha forma no meu cérebro e vou precisar de um
empréstimo para poder concretizá-lo. Infelizmente, só consegui pôr de lado
mil e duzentos dólares no último ano. Quanto às poupanças que tinha
conseguido fazer nos Estados Unidos, as viagens a Nova Iorque para ir
visitar Harold ao hospital tinham dado cabo da maior parte. O resto foi
gasto na nova guitarra de António, que lhe disse só ter custado novecentos
dólares, que me está a reembolsar a prestações, mas que, na verdade, custou
mil e novecentos.
Provavelmente, perguntar-te-ás quem será este Salgueiro. Conheci-o no
Porto, no bar Moinho de Vento, talvez há cerca de seis meses. Era o tipo
mais velho que lá estava, sessenta e quatro anos na altura, como vim depois
a saber. Tinha uma cabeça grande, olhos verdes encantadores e tristes,
cabelo branco penteado para trás. De perfil, era ligeiramente parecido com
Leonard Bernstein. Estava a beberricar um líquido verde e xaroposo que
parecia desinfetante oral. «Chartreuse», explicou-me, quando me sentei ao
seu lado. Apertámos a mão, e ele segurou a minha durante tanto tempo que
percebi que me desejava. Bebi de um trago o resto da sua chartreuse e
fomos até ao apartamento dele, num edifício moderno, com uma vista
espetacular sobre o rio Douro e as caves de vinho em Gaia. Estava todo
mobilado com antiguidades. Contou-me a sua história. Estava casado há
quarenta e dois anos quando a mulher morreu. Antes disso, nunca tocara
sequer no pénis de um homem. Claro que não acreditei, mas normalmente
não contrario ilusões. Por isso, fartei-me de anuir com a cabeça. Na idade
dele, disse, era impossível arranjar uma mulher – só se fosse prostituta. E, à
noite, precisava desesperadamente de companhia. Entre outras coisas,
ganhara medo do escuro.
A verdade é que só dormimos juntos três vezes. Ele não conseguia pô-lo
de pé, e não me parecia lá muito divertido ou justo ser só eu a ter um
orgasmo. Mas ficámos amigos. Foi Salgueiro que me disse, na minha festa
de aniversário, há dois meses, que tinha a certeza de que António aprendera
a tocar guitarra como um anjo por termos sido amantes. Aquilo deixou-me
realmente feliz. Significava que o meu instrumento tinha servido para
alguma coisa nesta década patética.
Agora, quando lhe digo ao telefone que preciso de um empréstimo para
levar António a Paris, ele pergunta:
– Quanto? – O tom é cauteloso.
– Dois mil dólares – respondo.
Solta uma exclamação abafada.
– Quero fazer as coisas como deve ser e arranjar um grande carro
americano – explico apressadamente. – É uma das fantasias do António.
Conheço um tipo em Lisboa que tem um Thunderbird antigo, mas é um
sacana forreta e vai cobrar-me uma fortuna. Ouve, se dois mil é demasiado,
já te ficava grato com o que me pudesses arranjar.
Silêncio; Salgueiro está a pensar no que poderá obter em troca. Os galos
velhos negoceiam sempre.
– Já passou muito tempo desde que visitámos o nosso pequeno oásis –
anuncia.
– Não me apetece lá muito – respondo.
– Dorme só ao meu lado até de madrugada. Não terás de fazer nada que
não queiras.
– Está bem, mas quero duas almofadas de penas só para mim.
– Negócio fechado.
– Apareço depois do jantar – combino.
– Terei a sobremesa quentinha e pronta.
Diz esta última frase com uma ênfase que pressupõe que, afinal de
contas, está com esperança de que haja um mergulho no lago tépido do
nosso oásis.
«Talvez um saltinho apaixonado para dentro de água também me faça
bem», penso.
Quando entro na cozinha para explicar a Fiama que vou passar a noite
com Salgueiro, dou com ela a picar cebola e a cantar uma velha canção
triste. «Todos nós temos um fado, e quem nasce malfadado melhor fado não
terá», reza o refrão.
A sua voz grave destila melancolia. Talvez seja esta disparidade
andrógina que adoro nela. Ou talvez me sinta livre de a amar porque não a
desejo. Seja como for, sinto o coração encher-se-me de ternura. Aproximo-
me dela pé ante pé e deposito-lhe um beijo no pescoço que noutra altura e
noutro sítio teria dado à minha mãe.
Ela para de cantar e vira-se de repente.
– Ah, és tu – diz, desiludida. – Pensei que tinhas voltado para a cama
para curtir a bebedeira.
Envolvo-a nos braços e mergulho o meu olhar no dela.
– Se ao menos fosses homem – suspiro.
– Se ao menos tu fosses homem! – retruca ela.
E desatamos os dois a rir à gargalhada.
Está a fazer bacalhau para o jantar. Há três dias que tem o raio da coisa a
demolhar numa tigela.
– Se forem bocados grandes, não como. É como tentar engolir um
dicionário.
– Sabes que mais? Tu cansas-me. Pareces um caminho íngreme por um
monte acima.
– Nada de bocados grandes – repito.
– Bocados pequeninos – concorda ela. – Com cebola e ovo. Mesmo
como tu gostas.
– E azeite.
– E azeite. – Aponta a faca na minha direção. – E agora sai-me da
cozinha. Quando estiver pronto, chamo-te.
Se tiver de dar ao Salgueiro alguma coisa que valha nem que seja uma
parte do seu dinheiro tenho de ir de barriga cheia, por isso devoro o jantar
de Fiama e bebo meia garrafa de vinho tinto.
Às quatro da tarde, depois de dar aulas a três alunos com uma falta de
talento satânica, dirijo-me para o hospital. Os resultados ainda não
chegaram.
– Amanhã – diz-me a enfermeira-chefe. Respondo-lhe que isso é
inaceitável.
Ela vira-me as costas e afasta-se.
– Inaceitável! – grito-lhe.
Vou ver António. Está a dormir. À distância, não parece perigoso.
Esgueiro-me dali.
9
Miss Havisham é uma personagem criada por Charles Dickens no seu romance Grandes
Esperanças. Abandonada no altar, nunca mais tira o vestido de noiva, e assim envelhece e morre
numa casa luxuosa, mas em ruínas e coberta de teias de aranha. (N. da T.)
10
«Não é um empréstimo. É um presente.» (N. da T.)
Parte II
9
Harold, o meu irmão, manifestou sintomas da aproximação da Morte ao
longo dos seis anos que antecederam o inevitável confronto. Primeiro, já em
1987, a zona invadiu-lhe o peito. Depois, os gânglios linfáticos nas virilhas
e axilas incharam até ficarem do tamanho de ovos de codorniz. A seguir, o
cérebro foi atacado por toxoplasmose. Depois de os medicamentos à base
de sulfonamidas o terem libertado daquela invasão de protozoários,
começou a perder a sensibilidade nas mãos, nos pés e nas cordas vocais. Os
médicos chamaram-lhe neuropatia. Admitiram a hipótese de o próprio vírus
VIH se ter depositado nas terminações nervosas e estar a prejudicar as
respetivas transmissões elétricas. Mas nem o nome desta patologia
específica, nem quaisquer teorizações sobre a sua possível causa valiam do
que quer que fosse; não havia cura. Perto do fim, Harold era um corpo
escanzelado e abandonado numa cama de hospital, que usava as mãos como
se fossem barbatanas de foca. Também tinha as cordas vocais entorpecidas,
e falava num sussurro rouco, como Marlon Brando n’O Padrinho. Qualquer
idiota com dois dedos de testa teria percebido que ele chegara à nona e
última entrada do seu jogo de basebol. Contudo, quando o jogo terminou e
todos os espectadores regressaram casa, foi um choque tão grande para mim
que não consegui sair da cama durante duas semanas.
Moral da história? Nunca estamos tão preparados como pensamos.
Duas coisas há contra as quais nos devemos resguardar no momento em
que a primeira onda de incredulidade se abate sobre nós e sabemos que
alguém que amamos tem uma doença grave. A primeira é dos amigos que
fogem mal sentem os nossos pensamentos sobre a morte. Vestidos com as
teias de aranha do medo, estão convencidos de que tudo o que importa na
vida é divertirem-se. A morte não é divertida. Nem a doença.
Lembras-te de como te escondeste no estúdio enquanto eu convalescia,
Carlos?
Ah, mas não esqueçamos aquelas almas amargas que não se limitam a
fugir e ainda tentam magoar-nos. Porquê? Porque sabem que vamos sofrer
muitíssimo mais no estado de fragilidade em que nos encontramos. Deixa-
me contar-te uma história simples e ilustrativa do que acabo de dizer.
Quando Harold morreu, Bernie, meu amigo de infância, estava por acaso
em Salamanca para uma conferência internacional de biofísicos. Nunca te
falei nisto, Carlos. Sentia-me completamente isolado porque já estavas a
afastar-te de mim e queria que Bernie viesse ao Porto visitar-me. Ele tinha
conhecido bem o meu irmão, e eu precisava de alguém próximo com quem
pudesse falar da nossa família. Considerei a sua estada em Salamanca nessa
altura uma dádiva de Deus. A prova, suponho, de que o desgosto me toldara
a visão. Disse-lhe que lhe pagava a viagem até ao Porto e que ele podia
ficar no nosso apartamento ou que lhe arranjava um hotel na cidade, e que
eram só três horas de carro. Sabes o que me respondeu? Que só tinha um
dia livre em Salamanca para fazer compras e não podia vir. Queria comprar
umas «T-shirts malucas» para os miúdos, uma carteira de couro para a
mulher e uma «coisa mesmo bonita» para a irmã mais nova, Sandra, que ia
casar pela segunda vez com um cirurgião dentista «completamente
desmiolado». Ofereci-me para o ajudar a encontrar essas coisas no Porto.
Ou mesmo alugar um carro e ir ter com ele a Salamanca. Ficou calado um
momento e depois, como se eu não tivesse feito sequer uma proposta
desesperada, perguntou-me se fazia ideia do que deveria comprar para
Sandra.
– Não – respondi, atordoado.
– Nunca foste grande coisa a fazer compras – observou, acrescentando
que, se quisesse encontrar-me com ele no aeroporto de Madrid, antes de ele
embarcar, podia fazê-lo. Dirigiu-se-me num tom condescendente, como se
estivesse a ceder de má vontade a um capricho. «Então e o Harold?»,
perguntei-lhe. Ele suspirou e respondeu: «Acontece, pá. A vida continua.»
Usou mesmo aquele «pá». Como se a vida fosse uma sitcom e no
próximo episódio todos descobríssemos que os últimos seis meses tinham
sido um pesadelo, que Harold estava vivo e de boa saúde, a viver num
Holiday Inn em San Juan, com amnésia.
«A vida continua», disse-me. O que é que se responde a isto?
– Vai-te foder, idiota! – Foi um dos meus poucos momentos de
eloquência neste mundo.
Carlos, tu foste moldado do mesmo barro que Bernie, claro. Ao fim e ao
cabo, piraste-te da minha vida três meses depois da morte de Harold,
escrevendo, na tua carta de despedida, que eu era apenas um «larilas
estrangeiro com toda uma família amaldiçoada».
A segunda coisa contra a qual nos devemos resguardar está mais à mão:
o ódio que sentimos por nós próprios. Se dermos ouvidos à culpa, vamos
passar os dias a emborcar licores gregos baratos ou a chutar Valium e a
pregar sermões a toda a gente que conhecemos, como se eles tivessem
convidado o Anjo da Morte para a nossa sala. Ou talvez, se formos mesmo
uns cobardolas de merda, até nos mudemos para um canto remoto na ponta
da Europa. Portanto, se não queremos passar a vida num exílio ébrio, na
Terra Onde o Tempo Parou, então, o melhor é amordaçarmos a culpa e
atarmos-lhe um bloco de cimento aos pés antes de a lançarmos ao mar. Se
ao menos eu conseguisse. Não que agora regressasse à América. Essa fase
acabou. Deus me livrasse de ter de aturar imbecis como Bernie e as suas
sitcoms. No entanto, se conseguisse libertar-me do remorso, pelo menos
esta carta que te escrevo, querido Carlos, seria queimada no cinzeiro
sagrado que recebe as missivas da minha mãe. E depois poderia prosseguir
com a minha vida.
«Mas porque te sentes ainda culpado?», ouço-te perguntar.
Por variadíssimas razões. E talvez a mais importante seja por ter
simplesmente sobrevivido.
Vou contar-te um segredo agora, querido Carlos: o meu amor por ti pode
muito bem ser o reflexo da culpa que senti por não ter ajudado o meu irmão
o suficiente. Deixa-me esclarecer: no seu leito de morte, Harold confessou-
me que só lamentava uma coisa. Claro, pensei que ia dizer que tinha sido
estar com o tipo que ejaculou um milhão de cossacos invisíveis para dentro
dele. Mas não. Esbugalhou os olhos, levou a barbatana direita à minha mão
e rouquejou: «Perdi demasiado tempo encarcerado num mosteiro e a
censurar toda a gente por isso, tu incluído. Porque tu estavas de fora e eras
livre. E agora o tempo já se escoou todo. Nunca me apaixonei.» Adejou as
barbatanas de foca no ar, como um mágico a mostrar ao público que fez
desaparecer o coelho branco. Tremiam-lhe os lábios. Sorriu amargamente e
murmurou: «Já se escoou todo.» Gritou-o o melhor que pôde, naquela sua
voz roufenha que esmorecia…
escoou todo
escoou todo
escoou todo…
até que surgiu, lesta, uma enfermeira de luvas cirúrgicas e máscara que
lhe injetou uma enorme quantidade de qualquer coisa que o fez adormecer.
Nunca mais consegui falar com Harold; regressava a Portugal na manhã
seguinte.
Ele não conseguia falar ao telefone.
Escrevi-lhe mais três cartas. Ele recebeu uma.
Porque não me esforcei mais para o arrancar do armário quando ele
ainda estava bem, quando tive oportunidade? Há muitas respostas para isso.
Ele era um sacana malcriado e egoísta. E, como o próprio admitia, invejava
a minha liberdade. A única coisa que precisas de saber, Carlos, é que todas
as respostas me levam a ti; porque nesse aspeto és igual a ele. Sabes, talvez
a verdadeira razão por que tens esta extensa carta nas mãos se prenda com o
meu complexo salvífico. Todas estas palavras têm por único objetivo
impedir-te de desperdiçares a tua vida.
Se os meus motivos também são egoístas? Claro.
Ao fim e ao cabo, tu és a minha segunda oportunidade.
Miguel apareceu meia hora mais tarde. Trazia uma camisa azul
manchada no colarinho e os botões trocados. Tresandava a álcool, tabaco e
suor. A sombra escura da barba por fazer contornava-lhe as faces, e tinha o
cabelo de um grisalho oleoso. Os olhos, meio perdidos, transbordavam de
ansiedade. Fiama ajudou-me a escoltá-lo até ao sofá. A mão dele roçou-me
no rabo enquanto andávamos.
– You’ve got me all wrong, mister11 – declarei com voz de macho,
sabendo que ele não perceberia o meu inglês.
Fiama percebeu, porque trabalha numa agência de viagens. Disse-me
que eu era um idiota.
– O que é que disse? – quis saber Miguel.
– Vá, deite-se lá e pare de se perguntar que tal seria quebrar alguns
tabus.
– Chiu… – fez Fiama.
Ele ergueu a mão como se fosse lançar uma tirada shakespeariana e
depois deixou-a cair.
– Preciso de dormir – explicou. – Mas estou com sede. Cheio de sede. –
Agarrou-me o braço. – Estou mesmo a morrer de sede.
Fiama foi buscar-lhe água. Quando me passou o copo, ergui a cabeça a
Miguel e ajudei-o a beber uns goles valentes antes de entornar o resto na
camisa. Imperturbável, ergueu a mão e fez um sinal na direção de Fiama.
– Quem é? – perguntou num tom surpreendido. – A sua mulher?
Também vim perturbar a sua mulher?
– Sou só uma amiga – respondeu Fiama.
– A sua mulher? – perguntou de novo, perfurando-me com o olhar,
como se eu fosse transparente.
– Uma amiga, meu porquinho. Uma amiga!
– A sua mulher… – suspirou, exausto do esforço de se manter
consciente. Soltou um gemido rouco, passou a língua pelos lábios e a seguir
apagou-se.
Como se tivesse acabado de chegar a essa conclusão depois de várias
décadas a trabalhar nela, Fiama assentiu gravemente com a cabeça.
– Sabes, os homens são a coisa mais encantadora e também mais
repulsiva do mundo – declarou num tom poético. Apontou para Miguel: –
Se ao menos alguém inventasse um vibrador com essa cara.
– Então e as mulheres?
– O que é que têm?
– Não achas as mulheres encantadoras e repulsivas, também?
– São pequenos malmequeres… fáceis de pisar, em que raramente se
repara. Mas os homens… – Atirou uma mão na direção de Miguel. – Os
homens são flores de hibisco enormes. Se nos aproximamos de mais,
descobrimos que as suas pétalas são venenosas ao toque.
– Nem todos os homens – observei.
– Não? – Fiama encolheu os ombros e atirou-me um beijo com a mão,
antes de ir para o quarto.
Fiquei ali sentado a ouvir Miguel ressonar. Bêbedo, mal-amanhado, não
o achei minimamente atraente. Apaguei as luzes.
11
«Estás muito enganado comigo, pá.» (N. da T.)
10
Acordei perto das cinco da manhã, completamente desperto. Vesti as
calças de pijama e fui até à sala. Miguel continuava a dormir, mas algures
durante a noite tirara a camisa e os jeans. Usava boxers brancos, imagine-
se. O ar estava pesado na casa. Enfiei uma camisola e encaminhei-me para a
varanda. Na distância, acima dos plátanos que guardavam o outro lado da
rua, vislumbrava o Palácio de Cristal, uma cúpula gigante verde-lima de
cobre e betão para eventos desportivos. Parecia-me um disco voador que
aterrara no topo de uma ravina. Cinquenta metros abaixo, estendia-se o rio
escuro. Uma brisa arrepiou-me o couro cabeludo.
Subitamente, ouvi passos atrás de mim. Miguel aproximou-se. Trazia os
jeans vestidos, mas estava de tronco nu. Era um homem peludo, pequenino
e musculado.
– Olá – disse, apertando-me a mão. – Acho que adormeci.
– Apagou-se – observei.
– Cortou o cabelo.
Passei a mão pelo pouco cabelo espetado que ainda me restava.
– Devo parecer um recruta – disse eu.
– Não, está ótimo. Não se preocupe. – Coçou a barriga. – Bolas, acho
que bebi de mais.
– A sério? Não dei por isso – sorri.
Ele esboçou um sorriso rápido.
– Ouça, desculpe ter feito isto. Devo estar doido.
– Não há problema. Eu compreendo.
Ficámos a olhar um para o outro. Havia muito a dizer sobre António,
mas nenhum de nós queria começar. Miguel acendeu um cigarro, puxou
uma ou duas passas e depois estendeu-mo. Acercámo-nos da grade da
varanda e ficámos ali a fumar.
– Fui eu que impedi o António de ir para o Conservatório – confessou.
– O que quer dizer com isso?
Deu uma passa ávida no cigarro e depois apontou para a abóbada verde
ao longe.
– Alguma vez viu fotografias do edifício que deitaram abaixo para
construir aquela monstruosidade?
Anuí com a cabeça: era todo feito de ferro e vidro – um verdadeiro
Palácio de Cristal, inspirado num edifício de Londres com o mesmo nome.
– Era lindo, não era? – perguntou.
– Muito.
– As pessoas cometem loucuras, e depois, de repente, uma coisa
lindíssima desaparece para sempre. Só nos restam postais e fotografias.
Enfiou o cigarro na boca e agarrou a balaustrada de metal com ambas as
mãos. Puxou-a, como se estivesse a testar-lhe a resistência.
– Eu dantes fazia ginástica. Houve uma altura em que faria o pino aqui
mesmo com a maior das facilidades.
– Não faça. Não quero ter de o descolar do pavimento lá em baixo.
Pôs-se a esfregar as faces.
– Não, agora estou velho. Há coisas que só são boas quando se é novo.
Depois acabou-se.
Ficámos ali os dois a ver a noite deslizar para o dia.
– O António veio ter comigo quando tinha dezoito anos e perguntou-me
se podia estudar Música – continuou. – Disse-lhe que não. Sabe porquê?
Abanei a cabeça.
– Pensei que era por sermos de uma natureza que não é compatível com
a música. Quero dizer, achava que a música era para outro género de
pessoas, gente snobe, gente que não era como nós. O António estava fadado
para ser um bom pedreiro, como eu. Isso, sim, era trabalho. Trabalho de
homem. Percebe o que quero dizer?
Anuí com a cabeça.
– Mas não foi essa a verdadeira razão. – Miguel voltou a agarrar na
balaustrada como se se preparasse para o tal pino que ameaçara instantes
antes. Encarou-me e, expelindo uma baforada de fumo, disse: – Eis a
verdadeira razão: eu sentia inveja e não queria que ele fosse mais do que eu.
Percebe o que estou a dizer? Impedi-o de fazer o que ele queria por ser um
sacana invejoso. Ele tinha um dom, e eu sabia-o. Mas não queria que ele o
tivesse. – Lançou a beata por cima do corrimão. Caiu no pavimento lá em
baixo numa chuva de faúlhas. – Sou um sacana ciumento.
– O António disse-me que não se tinha inscrito mais cedo na escola
porque o Miguel não tinha dinheiro.
– Ele disse-lhe isso?
Fiz que sim.
– Mas não foi essa a razão! Estava a proteger-me.
– Então o que o fez mudar de ideias?
– Antes de responder a essa pergunta, há outra coisa… – disse. – Não
sei se já descobriu, mas o António é homossexual. – Pronunciou a última
palavra como se pesasse imenso.
Sorri.
– Já sei há muito tempo.
– E não o incomoda?
– Sou a última pessoa a poder ficar incomodada com isso.
– O que quer dizer?
De repente, tive medo, pelo que respondi:
– Sou nova-iorquino. Lá, isso não tem assim tanta importância.
– Suponho que será mais frequente nos Estados Unidos.
– Não, é só menos escondido. É bastante frequente em toda a parte.
– Acho que sempre soube. Coisas pequenas, quando ele era novinho…
E achei que, se o impedisse de fazer o que queria, ele ia acabar por mudar.
Dizer-lhe de caras que não aprovava o que ele queria ser era como dizer-lhe
que tinha de mudar. – Calou-se por uns instantes, ergueu os olhos para as
estrelas e depois virou-se para mim. – Já vê porque é que sou um grande
sacana.
– O António é um miúdo fabuloso. E conseguiu fazer o que queria.
Entrou para a escola. Você não é tão sacana como pensa.
– Ao fim de três anos… fi-lo desperdiçar esses anos. Foram-se. E
agora… – A voz fugiu-lhe. Acendeu outro cigarro. – Eu dantes era muito
próximo dele. É meu filho. Você conhece-o. Sabe como ele é. Quando era
miúdo, eu sentia-me tão abençoado. Todos sentíamos. E depois esta coisa
do Conservatório… as discussões. E a confirmação de que ele era gay. Era
como se alguém estivesse a separar-nos, a pôr grades entre nós. Eu andava
sempre a gritar com ele. Um dia bati-lhe. Bati-lhe a sério. Dei-lhe um murro
na cara quando descobri que tinha dormido com um rapaz em nossa casa
numa altura em que eu e a mãe tínhamos saído. «Na minha casa!», gritei-
lhe. Como se a casa não fosse dele também. Como se ter relações sexuais
não fosse uma coisa natural. Como se tivesse sido melhor que o tivesse
feito na rua, como um animal.
Não sabia o que dizer, por isso encostei-me a ele no corrimão.
Finalmente, apercebi-me de que estava com frio.
– Talvez devêssemos voltar para dentro.
Ele agarrou-me na mão.
– Quero conhecer o meu filho – disse. – Quero conhecer o meu filho. –
As palavras saíam-lhe tensas, disparadas entre os maxilares cerrados. –
Quero conhecê-lo antes… antes que ele morra. – Agarrou-me ambas as
mãos. – Professor, será demasiado pedir para conhecer o meu próprio filho?
– Não.
– Quero ir convosco. Quero conhecer o António como o Professor o
conhece.
Mais uma vez, falou de António com se nos pertencesse aos dois.
Saberia que eu era gay? Estaria apenas a pôr-me à prova?
– Quer ir connosco? – perguntei.
– O senhor vai levar o rapaz a Madrid e a Paris. Quero acompanhar-vos.
Ajuda-me?
– Não tenho a certeza se será boa ideia.
– É a única maneira. Posso não ter outra oportunidade de chegar até ele.
– Encolheu os ombros, envergonhado com a sua própria insistência.
– Se o António estiver de acordo, por mim tudo bem – acedi.
– Ele não vai estar de acordo. Tem de ser o Professor a decidir.
– Não sei. Não me parece que possa.
– Quero conhecê-lo. Percebe?
– Vou falar com ele. Vou ver o que posso fazer. Haveremos de arranjar
maneira.
Mal concordei em interceder, apercebi-me de que tinha cometido um
erro. Voltámos para casa e despedimo-nos. Pensei depois que, se Miguel
viesse connosco, teríamos pelo menos uma vantagem: ele podia informar-se
sobre a medicação que António teria de tomar durante a viagem, se a
houvesse, e certificar-se de que ele o fazia às horas certas. A última coisa
que me apetecia era ficar de novo nesse papel de cuidador.
Não consegui voltar a adormecer; pessoas há muito enterradas vinham
assaltar-me os pensamentos com olhos encovados e de além-mundo. Então,
vesti umas calças de ganga e uma T-shirt, enrolei um cachecol de lã em
volta do pescoço, atirei o casaco dos L. A. Dodgers para cima dos ombros e
saí para apanhar o comboio das sete rumo a Lisboa. O ar estava fresco e
puro, com laivos de um violeta nebuloso. No horizonte, a ponte da Arrábida
era um arco-íris cinzento a proteger o rio negro. O Porto parecia uma cidade
com uma paisagem onírica, metrópole de colinas semelhantes aos flancos
de um corpo humano a cair para um rio cheio de noite;
de pensamentos e desejos envergonhados, sob a forma de becos e pátios
escondidos;
de desejos de morte que se transformam em janelas iluminadas pela
cintilação perigosamente erótica de uma lâmpada vermelha.
Tal como um sonho, o Porto era uma cidade que nunca apresentava um
rosto fácil. Dava as boas-vindas ao turista não com a típica palmada nas
costas lisboeta, mas com um olhar fixo frio e duro. Os campistas suecos, os
ornitófilos britânicos e os intelectuais franceses deixavam todos a cidade
resmungando: «Mas o que é que se passa naquele sítio?»
Bem aconchegado no casaco de basebol, passei pelos velhos ciprestes
que rodeiam o parque do Campo Mártires da Pátria e segui em frente.
Diante de mim erguia-se a Torre dos Clérigos. Iluminada por holofotes cor-
de-laranja, parecia um pagode gigante de granito. Fui sempre a direito até à
Praça da Liberdade, a praça central do Porto. As ruas ensombradas e batidas
pelo vento estavam desertas, e talvez por isso me tenha apercebido
subitamente de que todas as cidades eram feitas de medo – conglomerações
de enjeitados, unidos pelo pânico coletivo. Todas estas pessoas amontoadas
nas suas camas, no Paralelo 41 ao norte de Portugal, haviam-se juntado para
negar o vazio esmagador dos montes selvagens e negros a leste e o vasto
oceano aberto a oeste – os abismos simétricos de um mundo onde homens e
mulheres estão sempre isolados, incapazes de se alcançarem uns aos outros,
e a lutar para fugir ao fim inevitável. Com todo esse medo coletivo
acumulado num único lugar, soube também que as cidades eram feitas de
um potencial quase ilimitado – caixas de Pandora à espera da alvorada para
se abrirem e ejetarem os seus fogos de artifício e estrelinhas. Nas grandes
metrópoles, Londres, São Paulo, Nova Iorque, escondiam-se nessas caixas,
a pernoitar, circos e aldeias inteiras. De manhã, floresciam histórias. Mas o
meu sistema nervoso já não conseguia aguentar a confusão, as produções, a
escolha das estradas a seguir nessas capitais inchadas. Já não tinha a
resiliência necessária para aguentar os vagabundos desenraizados que tudo
esgravatavam à procura de seringas, os fura-vidas a ladrar os preços das
ações aos meus ouvidos, a neve castanha no inverno e os ares
condicionados a suar no verão. Precisava de uma cidade do tamanho do
Porto, uma cidade mais pobre e menos ansiosa, uma cidade disposta a andar
aos tropeções no século XX e a deixar os comboios apressados e as pessoas
ainda mais apressadas passarem-lhe ao lado.
Até o Porto moderno e feericamente iluminado era uma cidade que
observava e apontava para os Estados Unidos, e que depois emulava o que
podia importar, dando-lhe um toque português, pintando-o de roxo ou de
branco, ou perfumando-o com bacalhau e tripas. O velho Porto nem fazia
grandes concessões ao mundo exterior. Sob o brilho dos candeeiros de rua,
para lá das discotecas e bares cheios de espelhos, escondia-se ainda o Porto
do século XIX, com os seus velhos camponeses de faces encovadas e barba
de vários dias, aos tropeções nas calças cinzentas e sujas, com os fechos
partidos, sacando das pichas velhas e calosas para lançar uma urina
castanha e fétida contra a parede de um prédio em ruínas; o Porto das
velhas avozinhas a cacarejar, com as faces engelhadas e tisnadas do sol,
vestidas de preto e a cheirar a cera, com o sexo tão seco e enrugado como a
pele de um elefante. Foi este Porto corcunda, carregado com o peso morto
das casas sombrias de cinco andares todas encostadas umas às outras e uma
população de analfabetos boquiabertos, que primeiro me atraiu na cidade.
Adorava o reboco repleto de fendas e as telhas amarelas esbotenadas,
adorava a ideia de uma cidade que conseguia conter nas suas entranhas as
carcaças de velhas escadarias de madeira lascada, lavatórios partidos e
percevejos. Era esse Porto dos esgotos que davam para as ruas medievais
pavimentadas com pedras escuras, cobertas de líquenes e a escorrer o cuspo
dos tuberculosos que eu via quando fechava os olhos à noite – uma cidade
de montras cobertas de gordura, ostentando carcaças de cabritos de olhos
esbugalhados; de pastelarias e cafés com tabuleiros infindáveis de doces a
cheirar a caramelo e feitos só com gemas e açúcar, tal qual são feitos há
muitos séculos; de engraxadores pernetas a entrar com os seus carrinhos em
cafés densos de fumo, onde as crianças correm umas atrás das outras, e os
gatos coçam as pulgas, e os cães lambem as glândulas de feromonas
debaixo da cauda dos seus amigos caninos. Era uma cidade feita para um
musical de Kurt Weill, um sítio onde Elisa Doolittle teria vendido com todo
o gosto as suas violetas e Artful Dodger se deleitaria a trocar as voltas à
Polícia.
Enquanto admirava os torreões dos edifícios neoclássicos da praça
principal, e passava pelos bairros orientais, e via portas a abrir-se e
mulheres de avental a varrer o passeio dianteiro das lojas, a madrugada
clareou e o relógio da cidade começou a dar as horas. Então, compreendi
que o Porto, como todas as cidades, era uma floresta onde homens e
mulheres se podiam cruzar, e comer como alarves, e queixar-se do tempo, e
construir castelos de cartas debaixo dos cobertores, e lavar-se da sujidade
do mundo, a fim de evitar a única verdade…
que a mortalidade os aguarda mesmo na orla da cidade.
Mas, de vez em quando, pensei, chega até nós aquele súbito silêncio – o
que se instala a seguir a um grito agudo de pássaro, ou o ronco de um farol
de nevoeiro –, e nesse momento pressentimos os passos de um gigante que
ainda vem longe. Então, olhamos para dentro de nós e pensamos: «O Anjo
da Morte anda a passear na vastidão dos campos para além dos bairros mais
periféricos da cidade. E Ele está à minha espera.»
Claro que António era o progenitor de muitos destes pensamentos, e no
comboio para Lisboa comecei a sentir que um torno me apertava o peito.
Precisava tanto de um Valium que me pus a escarafunchar em vão nos
recantos da carteira, não fosse ter sobrado um comprimido para uma
emergência. Fui ao bar, bebi um sumo de laranja com água das pedras, para
as bolhas de ar aliviarem a pressão que começava a acumular-se-me em
volta do peito.
11
Quando cheguei a Lisboa, havia uma grande confusão no Rossio,
porque Julio Iglesias estava na cidade para dar dois concertos no Casino
Estoril e dizia-se que ia almoçar num dos cafés com esplanada da praça
central.
Eu tinha de estar em casa de Bob para ir buscar o T-Bird às quatro e
ainda eram dez da manhã. Por isso, dirigi-me para o bairro de Alfama.
Levantei o cheque de Salgueiro numa agência do Banco Nacional
Ultramarino frente à Igreja da Madalena e tirei mais quinhentos dólares da
minha conta. Levou algum tempo, porque tiveram de verificar a minha
assinatura por fax com a agência no Porto, mas acabei por receber oitenta e
quatro mil e quinhentos escudos em notas, que guardei num envelope no
bolso do peito do casaco. Dali continuei pelo caminho dos elétricos até ao
Bairro da Graça para visitar Barrabás. Tinha vivido vários anos em Paris, e
achei boa ideia informar-me junto dele sobre hotéis. Barrabás é outro dos
meus amigos que te recusaste a conhecer, Carlos. Tem apenas um metro e
vinte e cinco de altura. Ele diz que é anão, e talvez seja, mas é um anão com
pinta. Tem cabelo preto asa de corvo e uma franja à Mr. Spock que lhe
chega às sobrancelhas, um brinco de esmalte vermelho-sangue
representando um elefante de pé sobre as patas traseiras.
Depois de tomarmos um café, perguntei-lhe se aquele brinco tinha
algum significado especial.
– Um elefante nunca esquece.
– E, neste caso, o que é que ele nunca esquece? – perguntei.
Barrabás contou-me algo que me deixou bastante impressionado.
– Quando fizeram escavações nalgumas casas do século XIX junto ao
rio, no Porto, encontraram pequenos esqueletos enterrados no reboco das
paredes. A maior parte era de fetos abortados. Mas outros eram bebés que
tinham nascido vivos. Descobriu-se, depois, a partir dos esqueletos, creio,
que esses bebés tinham nascido com alguma deficiência, ou eram
corcundas, ou anões… Soube então que pertenço a uma raça que tem sido
vítima de genocídio ao longo dos séculos. Por isso não esqueço esses bebés.
«Não são só os gays e os judeus», pensei.
Barrabás ouviu os meus delírios sobre a crueldade do Homem durante
uns momentos e depois disse:
– Foram o meu pai e a minha mãe que me falaram dessas descobertas de
bebés mortos no Porto. Mostraram-me um artigo de jornal sobre o assunto.
O meu pai olhou-me diretamente nos olhos… era um homem forte e calado,
com uns olhos castanhos muito bonitos. Disse-me: «Era o que eu devia ter
feito contigo, filho.»
– E porque disse ele uma coisa dessas?
– Lá para as bandas da minha aldeia, diziam que eu tinha sido trazido
pelo diabo. Os miúdos chamavam-me o anão do diabo. E as pessoas
andavam sempre à procura dos meus chifres. Até aos treze anos, acreditei
que um dia me iam crescer na testa. Estava sempre a olhar-me no espelho. –
De repente, despiu a camisola de gola alta. Tinha as costas marcadas por
cicatrizes profundas. – O meu pai costumava bater-me quando bebia. Para
ele, eu era uma humilhação.
– Que filho da mãe – exclamei. – Ainda é vivo?
– Continua lá pela aldeia. Há anos que não o vejo.
Enquanto Barrabás voltava a enfiar a camisola, perguntei-lhe se
conhecia o mito de Cronos. Abanou a cabeça.
– Era um titã, pai de Zeus, Poseidon, Deméter e Hera. Comeu os
próprios filhos, porque estava destinado a ser destronado por eles. Alguns
escaparam. Incluindo Zeus, que veio a apoderar-se do lugar de Cronos
como rei dos deuses.
– E então?
– Por vezes, as pessoas devoram os filhos por inveja. Como o Miguel e
o António. – Expliquei-lhe em que medida a situação se aplicava a eles.
Barrabás semicerrou os olhos.
– E achas que o meu pai tinha inveja de mim?
– Deve ter percebido que, apesar de tudo, eras inteligente e tinhas
talento, que sairias da aldeia, chegarias a Lisboa e a Paris. Ele nunca chegou
a lado nenhum.
Barrabás encolheu os ombros.
– Talvez – suspirou. Foi fazer chá, e eu disse-lhe que precisava de um
hotel simpático, mas barato em Paris. Escreveu o nome «Jean Floris» e um
número de telefone num bilhete de autocarro usado. – É o dono do Hotel
Greco, na Place Saint-Sulpice – explicou. – E joga na nossa equipa.
Ficámos sentados à mesa da cozinha a falar de livros durante um
bocado. Expliquei-lhe a minha teoria de que os cabalistas judeus outrora
haviam sabido encantamentos mágicos de cura, mas que se tinham perdido
todos. Barrabás não acreditava em magia.
Quando saí do apartamento, ele seguiu-me por um instante e beijou-me
na boca.
Ninguém se pôs a olhar. Ninguém nos chamou nomes. O chão não se
abriu para nos engolir.
Como vês, Carlos, não é uma coisa assim tão chocante.
Depois de o deixar, subi ao cume de uma colina próxima para ver o
centro de Lisboa – dali, descia um vasto vale de telhados cor de laranja que
vinha morrer no Tejo. Dirigi-me para o Castelo mouro, sentei-me num
banco e pus-me a pensar em coisas em que nunca pensamos quando
estamos dentro de casa. Como o céu. E o vento. E as tentativas dos
compositores para capturar o que há de belo na natureza e transformá-lo
numa melodia para flauta…
ou violino;
ou voz;
ou até guitarra.
12
Bob vivia num desses novos bairros de Lisboa perto do aeroporto. Era
um território de prédios de betão utilitários, pintados de rosa-vivo, azul e
amarelo, porque um arquiteto urbanístico qualquer achou que assim as
coisas ficavam mais alegres. Apanhei um táxi. O motorista, um
moçambicano, disse-me que eu estava com um ar infeliz e recomendou-me
umas férias na praia e camarões grelhados.
Quando toquei à campainha de casa de Bob, um tipo alto e magricela
veio abrir. Todo ele era sorrisos. Lembrava-se de mim. Garanti-lhe que
também me lembrava dele, embora não fosse verdade. Usava ténis pretos de
cano, calças de treino e uma T-shirt do Estado do Idaho. Imaginei que se
tivesse vestido para mim, mas ele assegurou que usava sempre aquilo.
Tinha os dentes tão brancos e grandes que pareciam postiços, e borbulhas
minúsculas cobriam-lhe toda a testa. Eu diria que vivia de fast food.
– Entra, pá – disse, apertando-me a mão. – Oferecia-te qualquer coisa,
mas estou de saída. É melhor irmos direitos ao assunto.
Tirei um maço de vinte e cinco notas de cinco mil escudos, o
equivalente a setecentos e cinquenta dólares.
– Então, o que te trouxe a Portugal? – perguntou, enquanto contava o
dinheiro. Era o tipo de pessoa que segurava as notas numa mão, lambia o
polegar e puxava-as uma a uma.
– Sexo e morte – respondi.
– Agora a sério, o que te trouxe até cá? – perguntou, inclinando a cabeça
num gesto condescendente.
– As praias.
– Ah, isso sim – concordou.
Enquanto contava as últimas notas, espreitei o apartamento, uma
autêntica montra dos Estados Unidos, com um galhardete e uma matrícula
do Idaho pendurados na parede, por cima de um sofá branco enxovalhado.
Sobre o tapete roxo no meio da sala, erguia-se uma pirâmide de latas de
Coca-Cola Diet e, por todo o lado, roupa, tralha amontoada, cinzeiros a
transbordar. A casa tresandava.
– Está todo aqui – disse ele. Atirou-me um porta-chaves com duas
chaves. – A mais pequena é da bagageira, a outra é da ignição. O papel do
seguro está no porta-luvas. Se tiveres dificuldade em ligá-lo de manhã,
carrega duas vezes a fundo no acelerador e roda a ignição. Não há perigo de
afogares o motor. Este malandro bebe gasolina aos baldes. Está no parque
de estacionamento à esquerda de quem sai. Dás logo com ele. – Conduziu-
me até à porta e apertou-me a mão vigorosamente. – Só mais uma coisa: há
um interruptor por baixo do assento do condutor. Baixa-te, procura com a
mão, que encontras logo. Quando se põe a palheta para baixo, todo o
sistema elétrico fica desligado. É antirroubo. Basta puxar a palheta para
cima para ligar o motor. Percebeste?
Fiz que sim.
– Quando é que disseste que voltavas?
– Dentro de duas semanas, mais ou menos.
– Vais a Paris?
– Exatamente.
– Já lá estive duas vezes – disse, orgulhoso.
– Mazel tov – repliquei.
– O quê?
– Parabéns.
– Falas português?
– Mais ou menos.
– Já cá estou há dez anos, mas o meu português não é grande coisa.
Acho que devia ter vergonha.
– Não tem importância. Estava apenas a dar-te os parabéns pelo espírito
aventureiro. Não é qualquer americano que se arriscaria a fazer uma viagem
de Lisboa a Paris.
– Agora vê lá se o tratas bem! E boa viagem!
Despedi-me com um aceno, tão grato por não estar na América que
desatei a cantar um velho fado que Fiama me tinha ensinado.
13
Em português no original. (N. da T.)
14
Foi a minha mãe, filha de camponeses judeus que imigraram para os
Estados Unidos vindos de Łódź, quem me disse que se consegue saber
muito acerca de uma pessoa pela bagagem. Anunciou-mo instantes antes de
me oferecer uma enorme mala de couro Gucci, em setembro de 1971, uma
semana antes de eu partir para a Universidade de Nova Iorque. Revirei os
olhos. «Muito obrigado, mãe. Com isto, o meu colega de quarto vai
perceber logo que sou um palerma.» A minha mãe já encolheu desde então,
mas nessa altura media uns intrépidos 1,55m. Endireitou-se, apontou-me
um dedo ao nariz e exclamou: «Espera só para veres… o teu colega de
quarto vai roer-se de inveja.» Como golpe de misericórdia, acrescentou,
como que casualmente: «Ah, e o teu pai e eu decidimos acompanhar-te ao
dormitório da universidade.» Era a última coisa que eu queria, pelo que
consegui negociar com ela: «Uso a mala que me compraste se me deixares
ir de comboio até Manhattan e entrar pelo quarto adentro como se fosse
órfão.» Moral da história: chego ao dormitório e o meu primeiro colega de
quarto, caloiro como eu, Bob «Jerkoff»14 Birkoff, de Princeton, Nova
Jérsia, que colecionava selos e era fanático dos Grand Funk Railroad, tira os
óculos de sol espelhados e fica a olhar para a minha mala Gucci, fascinado,
como se tivesse chegado de uma dobra no tempo. Sobre a sua cama
repousava uma daquelas malas indestrutíveis American Tourister, com
rebordo metálico, que costumavam oferecer em jogos televisivos como o
Let’s Make a Deal15. Aberta, lembrava uma amêijoa gigante. Dela saíam em
cascata os primeiros polos e jeans Jordache que eu alguma vez tinha visto.
Bob confessou-me imediatamente que estava cheio de inveja da minha
mala. Era o heterossexual mais amaneirado que conheci, e desde essa altura
tive de aceitar o facto de a minha mãe estar mais sintonizada do que eu em
termos de psicologia moderna.
Miguel arrastou para a rua uma grande mala de xadrez vermelha com ar
de ter sido recém-aspirada, ao cabo de trinta anos no fundo de um armário.
Claro, enquanto observava Miguel a enfiar a bagagem no T-Bird, imaginava
a minha mãe batendo o seu pé crítico ao meu lado e dizendo-me na sua voz
inconfundível: «Pobre desgraçado – é a mesma mala que trouxe da sua vila
natal para o Porto, há trinta anos. Provavelmente ainda cheira aos chouriços
e queijos que a sua santa mãe fez o favor de meter lá dentro.» António
trazia um daqueles sacos utilitários de nylon, mas tinha enfiado uns quantos
haveres numa fronha de almofada amarelecida, que fechara com um cordel.
Deixou-a cair no espaço ainda livre na mala do carro com um baque surdo.
– Mais um par de ténis – explicou.
«Sê bonzinho e compra-lhe uns sapatos italianos em Madrid»,
murmurava-me a minha mãe.
António ainda não tinha tecido quaisquer comentários sobre o T-Bird,
por isso perguntei-lhe:
– Então, que me dizes?
– Não está mal – respondeu.
– Não está mal?
– Pois, não está mal.
Dei umas palmadinhas no tampo da bagageira.
– Parece o Batmóvel. Não reparaste?
– E daí?
– Esquece. Trouxeste as pautas?
– Já te disse que não quero tocar o raio da guitarra!
– Não faz mal, eu trouxe as de Bach – disse, com um gesto displicente
da mão, como quem se está nas tintas. – Vamos trabalhar nessas. – Achei
que ele poderia tocar a Suite para Violoncelo em Dó na audição em Paris.
O segredo da nossa missão deu-me alento.
– Tu não desistes – replicou António, abanando a cabeça.
– Não. Nunca. É uma das minhas maiores qualidades.
Franziu o sobrolho como se eu fosse um peso morto em volta do seu
pescoço, o que era exatamente a minha intenção, sentando-se de seguida no
lugar do passageiro.
– A porta deste carro deve pesar uma tonelada – soltou, com ar de frete.
Encarei Miguel.
– Está pronto?
Ele anuiu, enquanto dava uma última passa no cigarro. Abriu a porta de
trás e entrou, enfiando primeiro a cabeça. Tive a sensação de estar numa
peça de Eugene O’Neill que ele nunca escreveu, embora devesse tê-lo feito,
e cujas deixas me esquecera de decorar. O meu coração batia como um
metrónomo em scherzo e parecia que as molas lhe iam saltar a qualquer
momento.
– Onde fica a farmácia mais próxima? – perguntei.
– Diga-me do que precisa, Professor, talvez eu tenha – respondeu
Miguel, prestável.
Naquele momento, a última coisa de que precisava era um pai
heterossexual cortês a espiar o professor gay do filho. Fixei-o pelo espelho
retrovisor e respondi «Valium», sem sequer me dar ao trabalho de o
pronunciar à portuguesa.
António apontou em frente.
– Eu mostro-lhe. É ali em cima.
Liguei o Batmóvel.
– O que é Valium? – perguntou Miguel.
Voltei-me para trás. Devia ter ficado encantado por ainda existir quem
nunca tivesse ouvido falar nesses comprimidos milagrosos, mas o facto é
que aquilo me irritou. Miguel estava sentado com as mãos entre as pernas,
como se sentisse imenso frio. Tinha o cabelo desgrenhado, a barba por
fazer, e a pele em volta dos olhos enrugada, como se não dormisse havia
semanas. E, ao olhar para ele, apercebi-me de que talvez António tivesse
razão. Talvez ele me tivesse enganado com as suas heroicas confissões
sobre a inveja e a culpa. No fundo, só queria controlar o americano
degenerado e o seu protegido enquanto se lançavam em direção à Velha
Castela e ao coração da Europa Gálica. Eu devia estar completamente
desorientado para me ter deixado enganar daquela maneira.
– Pode tomar um e constatar por si – disse, com um desejo súbito de o
corromper. Meti a primeira, e de repente imaginei Miguel inconsciente no
banco de trás do Batmóvel à medida que atravessávamos a planície da
Extremadura: dois terroristas gay e o seu refém heterossexual.
Chegados à farmácia, disse a mim próprio que iria guardar os
comprimidos no bolso, «só por precaução».
A típica desculpa do agarrado, claro.
A farmácia era um desses sítios vetustos com pequenas gavetas de
madeira a forrar as paredes e uma balança a um canto para as pessoas se
pesarem. Quando entrámos, três mulheres minúsculas de bata branca
sorriram a António e a mim. O balcão de mármore cheirava a Vicks
Vaporub. Pronunciei o nome mágico da única divindade em que acredito e
pensei: «Talvez desta vez Ele me faça descer docemente até ao Submundo e
eu possa desistir de lutar.»
Por trás do balcão repousavam cinco potes de cerâmica branca com
nomes vidrados a azul: Nux Vomica, Flor Cinae, Belladonna, Ung.
Populeum e Arnica Montana. Enquanto esperávamos que uma farmacêutica
de cabelo oxigenado me trouxesse os comprimidos, perguntei a António se
as pessoas ainda compravam coisas daquelas.
– Antes dos calmantes, as pessoas encontravam outras formas de
escapar à realidade – respondeu.
Deus continuava a habitar a velha caixa familiar verde e branca. Victan.
Lembrava-me bem da marca; fora a minha primeira compra depois de me
mudar para Portugal. Como velho agarrado que sou, verifiquei
imediatamente o número de comprimidos – continuava a ser sessenta, um
mês inteiro nas doses de que eu precisava.
Miguel esperava por nós no T-Bird estacionado em segunda fila, as
pernas fora do carro, a dar passas sucessivas, como se a sua vida
dependesse da nicotina. António saltou-lhe em cima:
– Já te disse que não te quero a fumar no carro. Vê se mostras um pouco
mais de respeito. – Como a maior parte dos ex-fumadores, o rapaz era
veemente no seu desprezo pelo tabaco.
– Desculpa – pediu Miguel, lançando o vício para longe.
António aproximou-se da beata em passos largos e apagou-a com o
sapato.
– Achas que as pessoas querem fumar esse nojo na rua?
Miguel tinha os olhos vítreos. «Dois masoquistas de meia-idade e um
miúdo enraivecido; vai ser uma viagem divertida», pensei.
– Tudo no carro e nem mais uma palavra! – exclamei.
Seguimos até à autoestrada num silêncio zangado, eu com o Victan bem
guardado no bolso. Fiquei contente por conseguir levar o Batmóvel aos 140
quilómetros por hora, ponto em que ele entrou em velocidade de cruzeiro.
– Deixando agora o Porto, fator Warp 7.5 – anunciei alegremente.
Ninguém respondeu. Talvez nunca tivessem visto o Star Trek, embora isso
me parecesse impossível. Miguel lia os resultados do futebol n’ A Bola.
António, com as mãos entre as pernas, tal como o pai, observava a
paisagem com uma expressão hirta. Tinha um ar tão pálido e duro que nos
imaginei a «trabalhar para o bronze» no Retiro Park de Madrid, qual casal
de homossexuais em Central Park. Ao cabo de algum tempo, notei que as
giestas ao longo das bermas da autoestrada e nos separadores centrais
estavam todas em flor, selvagens, duras, lembrando milho torrado. – Que
bonitas – disse a António, apontando-as. Ele concordou com um aceno
tímido de cabeça. – Se quiseres música, temos rádio. – Liguei-o. Phil
Collins cantava algo que eu nunca tinha ouvido. – Este tipo está em todo o
lado – exclamei, inocentemente. António desligou o rádio com um gesto
brusco e irritado e encostou a cabeça ao vidro como um alienígena
abandonado que sonha com o seu planeta, a mil anos-luz dali.
Pelo retrovisor, vi Miguel com o jornal aberto em cima da cara. Com
muito cuidado, levei a mão até à coxa de António e apertei-a. Ele não olhou
para mim. Ao fim de algum tempo, retirei a mão.
Entrámos na IP 5 em Aveiro e virámos para leste. O Sol ia alto no céu
azul, e tudo tinha um ar maravilhosamente transparente. Há um troço da
estrada em que se sobem umas colinas desalinhadas e lá do cimo se tem
uma vista panorâmica sobre a costa atrás, mesmo antes de se desaparecer
nas montanhas do Caramulo. Encostei o carro na berma. Nessa altura, tinha
as pernas tão tensas que me doíam e precisava de as esticar. António já me
vira naquele meu ritual, pelo que não se riu, nem ficou a olhar para mim.
Mas Miguel parecia fascinado. Deixou o fumo sair-lhe pelo nariz enquanto
me observava. Como talvez te lembres, Carlos, o ritual processa-se da
seguinte maneira: primeiro sento-me e descalço os sapatos. Depois, com a
mão direita, agarro no calcanhar do pé direito, estico a perna por cima da
cabeça e mantenho-a esticada, enquanto conto até sessenta. Sinto os
músculos todos desatarem-se. De seguida, faço o mesmo com a perna
esquerda. Nestas coisas, a simetria é essencial. Aprendi-o com um bailarino
de dança clássica com quem fiz amor uma vez no seu dormitório na North
Carolina School of Arts em Winston-Salem, e que tinha músculos em sítios
onde as outras pessoas só têm pele e tendões. Digo isto porque Miguel me
perguntou onde aprendera aqueles exercícios, e eu não lhe menti.
António ora me observava, ora contemplava o pai, como se estivesse à
espera de que uma bomba rebentasse. Nessa altura pensei que se Miguel
tivesse algum problema com a minha sexualidade podia…
a) ir-se lixar,
b) voltar para o Porto a pé antes que nos afastássemos demasiado.
Miguel limitou-se a dar uma passa ávida no cigarro e a assentir com a
cabeça.
– Na ginástica, costumávamos fazer exercícios parecidos – disse depois.
– Conseguia fazer a espargata, sabe?
– Está na altura de nos pormos outra vez a andar – atalhei, imaginado a
agilidade de Miguel e sentindo um calor subir por mim.
«Pronto, agora o Miguel já sabe. Ou será que pensa que falhei um
feminino no português e que queria dizer “bailarina”? Estará a ganhar
tempo? Talvez me apanhe desprevenido esta noite, no quarto de hotel, e me
estrangule, enquanto me amaldiçoa por lhe ter pervertido o filho.»
A violência que senti nele era real, sem dúvida, como mais tarde vim a
descobrir. Contudo, na altura, achei que estava a dramatizar; desde o eclipse
viral sobre a homossexualidade, tenho a tendência para acreditar que os
piores cenários são os únicos que se concretizam.
Na minha perspetiva, uma Cassandra dos tempos modernos não precisa
de poderes especiais para ver o futuro; só metade de um cérebro e a boa
visão que Fiama tanto preza.
14
Em inglês, punheteiro, alcunha insultuosa sem dúvida inspirada no apelido do rapaz. (N. da T.)
15
Show televisivo norte-americano (1963-2014), eventualmente comparável a O Preço Certo em
Portugal. (N. da T.)
16
Bebida refrescante preparada com água, limão, açúcar e sumo de chufas; típica de Espanha,
especialmente da região de Valencia. (N. da T.)
15
Ao passar ao largo de Viseu, entrámos numa estação de serviço da BP,
com tudo pintado de verde e amarelo. Tínhamos feito duas horas de estrada.
António não parecia querer sair do carro e lembrava um miúdo amuado a
quem lhe houvessem negado a única coisa que ele realmente queria. Mas há
muito tempo que não era miúdo, claro, e eu não lhe podia dar a única coisa
que ele queria.
– Horas de almoçar – anunciei com ligeireza, como se fosse a minha
mãe e tivesse acabado de fazer sanduíches de atum e alface.
– Não me apetece – respondeu.
– Queres alguma coisa lá de dentro… iogurte, doces, qualquer coisa
para ler…?
– Só se venderem cocaína – ripostou, com uma expressão esperançosa.
Olhei de relance para Miguel. Saberia ele que o pingo no nariz do filho,
constante de há três anos a esta parte, não era apenas uma constipação que
teimava em não o largar? Pelos vistos, sabia. Saiu do carro prontamente.
Acendeu um cigarro.
Claro que António tinha falado em cocaína para provocar outra
discussão.
– Então não queres nada? – limitei-me eu a dizer.
– Nã.
– Não vamos demorar – garanti-lhe.
– Demorem o tempo que quiserem – respondeu, virando a cara.
Miguel e eu dirigimo-nos para o restaurante.
– Quer um cigarro? – Estava calmo. Começaria a habituar-se ao feitio
irascível do filho?
– Não, obrigado – respondi.
Miguel estacou de repente e pôs-se a olhar em volta, como quem
procura alguma coisa. Acabou por me fixar nos olhos, e pareceu-me que
tentava perceber quem eu era.
– Ele continua agarrado?
O maxilar tremia-lhe, e percebi que ele rangia os dentes, como o meu
irmão.
– Está a falar de drogas? – perguntei, como se não soubesse a que se
referia.
– Ele acabou de falar em cocaína.
– Ah, isso… ele nunca esteve realmente agarrado. Foi antes de eu o
conhecer. Tenho a certeza de que já não consome nada.
– Tal como tinha a certeza de que ele não andava a dormir com rapazes
perigosos… e desta coisa da sida que ele tem no corpo.
– Eu nunca disse isso.
– Pois não, não disse. Mas deve ter pensado, senão teria feito alguma
coisa, certo?
Era para esta faceta de Miguel que António me tinha alertado.
– O que quer dizer com isso?
– Nada. – Passou a língua pelos lábios, e recomeçámos a andar. Eu
conseguia ouvir-lhe os pensamentos: «Não só é maricas, como também se
mete na coca.» Imaginei-o a repetir aquelas palavras para si mesmo, como
orações desfiadas num terço, cada repetição fazendo-o ranger os dentes com
mais força.
– Recomendei-lhe muitas vezes que praticasse sexo seguro – disse-lhe à
porta do restaurante. – Tirei da carteira um recorte de jornal com uns anos.
O título rezava: «Preservativos: 60% sem qualidade.» Li o artigo a Miguel.
Catorze marcas de preservativos disponíveis em Portugal tinham sido
submetidas a testes de resistência. Oito haviam sido classificados como
totalmente impróprios para uso. E Harmony Normal era o único
classificado como Muito Bom.
– E de que serve isso agora? – perguntou, impaciente.
– Li este mesmo artigo ao António quando soube que ele dormia com
outros rapazes, e fomos juntos à farmácia para lhe comprar os seus
primeiros Harmony Normal. Eu costumava dar uma olhadela à carteira dele
para ter a certeza de que só usava esta marca. Não podia tomar conta dele a
cada instante, mas isso tranquilizava-me.
Miguel fez que sim, como se estivesse demasiado cansado para discutir
fosse o que fosse.
– Talvez devesse ter sido o Miguel a falar-lhe mais sobre o sexo e a vida
e a morte, antes que fosse tarde de mais – aventei.
Vi que o maxilar lhe tremia outra vez.
– Primeiro o senhor, Professor – disse, segurando a porta e dando-me
passagem.
Sentámo-nos a um balcão. Parecia uma área de serviço para camionistas
nos Estados Unidos. Um empregado com uma careca incipiente e camisa
branca toda suja veio tomar nota do pedido. Miguel quis sardinhas fritas. Eu
pedi uma sopa e uma salada. Ficámos em silêncio. Miguel acendeu outro
cigarro e deixou o fumo sair-lhe pelo nariz, como sempre faz.
– Podemos recomeçar? – perguntei.
– Recomeçar?
– Se é para nos darmos bem durante esta viagem, teremos de confiar um
no outro.
– Não o conheço bem – confessou ele.
– É verdade. E, contudo, acabou de me dar a entender que não fiz o
suficiente pelo António.
Ele começou a brincar com o botão superior da camisa e deu meia-volta
no banco, ficando de frente para o parque de estacionamento. Depois,
encarou-me de novo.
– Quando eu era novo – disse –, costumava olhar-me muito ao espelho.
As pessoas achavam-me vaidoso. O meu pai chamava-me idiota peneirento.
Mas eles não percebiam. Eu achava-me feio e escanzelado. Não queria
acreditar que estava condenado a viver uma vida inteira com aquela cara e
aquele corpo. Antes da trombose, o meu pai era muito forte, sabe… um
homem a sério. E bonito, também. Essa foi uma das razões por que comecei
a fazer ginástica. Para ganhar músculos. Para me defender, eu costumava
ofender os outros, tentando convencer-me de que eles é que eram feios. Só
mais velho, quando saí de casa do meu pai, percebi que o meu
comportamento era errado. De repente, as mulheres pareciam-me bonitas.
Dentro da casa dele, eu era uma coisa, fora dela outra. Era como um passe
de mágica. – Pôs-me a mão no ombro. – Há pouco, quando disse o que
disse, não era a si que me referia. Era a mim próprio. – Pôs-se a brincar
outra vez com o botão da camisa, que acabou por saltar e rolar pelo chão de
tijoleira. Fiz menção de o apanhar, mas ele agarrou-me o braço, e os nossos
olhares cruzaram-se durante uns instantes. Na ponta do seu cigarro, a cinza
começava a enrolar-se, e ele agarrava-me como se me quisesse puxar para
si. O meu coração batia descompassado, como se me pedisse em código:
«Dá o salto e vai ao encontro dele.» – Esqueça o botão – pediu. – Quando
acabei com a minha última namorada, parei de comprar roupa. Tudo o que
tenho está a desintegrar-se. Espero que acabe por se desfazer em pó. – A
cinza do cigarro caiu-lhe em cima dos jeans. – Merda! – exclamou, tirando-
me a mão do ombro e sacudindo a cinza com força. – Estes jeans, esta
camisa, comprei-os numa viagem a Lisboa. Numa velha loja, na Baixa.
Lembro-me tão bem. Foi há que anos. Mas nestes últimos dias, parece que
não me consigo lembrar de nada. Nem sequer sei quem sou. – Tornou a
olhar para mim. – Sabe, consigo perdoar tudo ao António, exceto o facto de
fazer mal a si próprio.
– Ele gosta muito de si.
– Acha?
– Sempre gostou muito de si. Orgulhava-se da sua beleza. Olhe, tenho
uma coisa importante para lhe dizer. Quero ser frontal consigo. Sou gay.
– Já tinha percebido há algum tempo.
– Então, daquela vez na varanda, quando me confessou que o António
era gay, estava a pôr-me à prova.
– Estava a ver como reagia.
– E sabe, claro, que dormi com ele durante cerca de um ano. Logo
depois de nos conhecermos.
– Não sou professor, mas também não sou estúpido.
– Não, lá isso não é. E não o incomoda?
Encolheu os ombros.
– Não posso fazer nada para o evitar.
– E se pudesse fazer alguma coisa, fazia?
– Não posso dizer que não desejava que o António não fosse gay. Mas
não é por eu o desejar que isso acontece.
– O António sente-se bem com a sua sexualidade – comentei.
– Sente? Sente mesmo? – Inclinou-se para mim e sussurrou com
violência: – Diga-me lá o que é assim tão bom em estar doente com sida?!
– Isso é consequência de um vírus, não de se ser gay – respondi.
Miguel franziu o sobrolho, como se aquela não fosse a resposta certa.
Fiquei uns instantes a ver uma mulher arrastar o filho pelo parque de
estacionamento.
– Fale-me mais do seu pai e da sua mãe. Conte-me a sua infância – pedi,
quebrando o silêncio que se interpusera.
– O que quer saber sobre os meus pais?
– Quando eu era pequeno, o meu pai e a minha mãe costumavam ler-me
os livros do Dr. Dolittle. Desde então, fiquei a gostar de ouvir histórias –
expliquei, incentivando-o.
– Não há muito que contar. O meu pai era pedreiro. A minha mãe… A
minha mãe… não a conheço bem. Cresci mais com o meu pai. – Ergueu
ambas as mãos. – Foi dele que herdei estas manápulas. São tudo o que
tenho. Perto do fim da vida vendeu a quinta ao meu irmão mais velho por
mil escudos para que eu não herdasse a minha metade.
– Mas do que se lembra dele? – perguntei, enquanto comia a sopa, que
entretanto chegara.
– Gostava de se sentar diante da lareira, a beber aguardente e a dormitar.
Tinha as pernas arqueadas e um andar gingão. Era forte. O homem mais
forte que conheci. Gostava de cães, mas era bruto a brincar com eles e
nunca os levava ao veterinário. Quando adoeciam, deixava-os morrer num
telheiro que nós tínhamos. Eles não paravam de uivar. Tinha uma cara dura
e escura como carvão. Não conseguia ler-lhe os pensamentos. Estava
sempre a julgar as pessoas, como se fosse Deus. Um dia, disse-me que
queria ir para o Brasil para ver peixes tropicais, que a nossa vida em
Portugal não tinha cor. Depois, deu-me uma bofetada e rematou: «Nunca
contes a ninguém que eu te disse isto.»
Continuei a comer a sopa.
– Que tal? – perguntou Miguel.
– Saborosa, mas um pouco salgada – respondi.
– Não, quero dizer, que tal é?
– Que tal é o quê?
– Ser gay.
Senti-me tentado a dizer uma piada, mas Miguel estava com um ar
grave e sério.
– É como ser heterossexual. Não há diferença. Nunca pensou em dormir
com um homem?
– Não. Bem, quer dizer, um amigo da nossa equipa de ginástica
convidou-me uma vez. Estávamos os dois bêbedos. Por um momento,
questionei-me como seria. Mas sabia que era errado. Para mim, pelo menos.
Parecia-me simplesmente que…
Não o encarei para não o intimidar, mas ele não prosseguiu a
explicação.
– Quero compreender o António. Quero perceber porque é que para ele
está certo. O que ele sente. Quero que me ajude a entendê-lo.
– Está bem. Mas a minha maior preocupação é ele.
– Eu percebo porque é que o António gosta tanto de si. – Encarou-me,
franzindo os olhos.
– É por ser bonito ou pela minha personalidade? – Sorri.
Ele encolheu os ombros:
– Os médicos dizem que os valores no sangue dele ainda são bons –
continuou.
Era um assunto que eu queria evitar. Assenti com um grunhido e
confirmei se o Valium continuava no bolso.
– O Professor está bem, não está? Quero dizer… estou a falar do
sangue, com o…
– Os meus testes estão todos negativos. Estou ótimo.
Ficámos um momento em silêncio. Chegaram as sardinhas e a minha
salada. Pedi uma tosta de queijo e fiambre para levar a António.
– De certeza que ele vai ter fome, mais tarde ou mais cedo.
– Ele confia em si, sabe? – observou Miguel.
– Fico feliz por isso.
– É em mim que ele não confia.
– Não sei. Não sei nada. Já não tenho certezas.
Miguel enfiou o resto da comida na boca como se tivesse de ganhar uma
corrida, após o que emborcou dois cafés e fumou dois cigarros. Fomos
juntos à casa de banho.
– Ufa, que alívio – exclamou enquanto urinava. Apetecia-me espiá-lo,
mas não o fiz. – Encontramo-nos lá fora – anunciou, mal apertou o fecho
das calças, e dando-me uma palmadinha no ombro.
Estava à minha espera mesmo à saída do restaurante, as mãos enterradas
nos bolsos das calças. Fomos andando juntos até ao carro, dois condenados
a ganhar coragem para enfrentar a forca. Sentei-me ao volante e passei a
António o saco de papel com a tosta mista. Ele contemplou-a, perplexo.
– O que é? – perguntou. Quando lhe disse, atirou o saco para o banco de
trás. – Trouxeste-me alguma coisa para beber?
– Não… disseste que não querias nada.
– Mas compraste-me comida. Esperavas que eu a empurrasse com quê?
– Eu vou lá buscar-lhe qualquer coisa – atalhou Miguel.
– Não vai, não!
– Se ele quer ir, que vá! – exclamou António.
Saí do carro. Estava furioso. Tinha as mãos a tremer e sentia o peito tão
apertado, que tive de me ajoelhar para respirar. Tirei um comprimido do
blister e engoli-o. Depois, avancei até ao talude de gravilha junto do parque
de estacionamento e sentei-me, como um miúdo que se instala numa caixa
de areia. Escondi a cabeça nas mãos. A escuridão ofereceu-me refúgio.
Quando abri de novo os olhos, Miguel dirigia-se para o restaurante e
António continuava sentado no carro. Jurei a mim próprio não sair dali até
sentir os efeitos da droga, incapaz de me imaginar a fazer fosse o que fosse
sem estar sedado. Com a navalha de bolso, desenhei linhas numa pedra, fiz
figuras com pauzinhos e dei por mim a falar sozinho, imaginando-me a
fazer uma incisão no braço de António com a navalha para lhe sugar o
veneno do sangue.
Fantasias sangrentas vêm-me à cabeça quando estou perturbado e
furioso. Falei com muitos amigos sobre isto e é muito mais comum do que
seria expectável.
Miguel veio ter comigo depois de passar a António pela janela uma lata
de Lipton Ice Tea. Postou-se à minha frente com as mãos nos bolsos.
– Apesar do que me disse lá dentro, de achar que era feio, por esta altura
já saberá decerto que é um homem muito bonito – disse eu.
Ele assentiu com a cabeça.
– Porque não volta para o carro?
– Normalmente, obedeço às vontades de um homem bonito, mas só
volto lá para dentro quando o Valium começar a fazer efeito – repliquei,
para minha grande surpresa.
– Tomou um comprimido?
– Pode crer.
– O que é que ele faz? – quis saber.
– Desata as faixas que me estreitam o peito até eu conseguir respirar de
novo. – Passei-lhe a caixa. – Tome um. Vai ajudá-lo a deixar de fumar.
– Não quero deixar de fumar – respondeu Miguel.
– O que quero dizer é que vai ajudá-lo quando estiver dentro do carro.
– A sério?
Eu não sabia se era verdade, mas disse-lhe que sim porque me apetecia
corrompê-lo. Além disso não me parecia assim tão importante e ele também
merecia descontrair-se. Miguel engoliu um comprimido.
– Dê outro ao António, se quiser.
– Será boa ideia?
– É apenas um calmante. Todos merecemos uma pausa. Senão ainda nos
matamos uns aos outros. Três cadáveres numa estação de serviço perto de
Viseu… dava um belo policial. Mas em Portugal escrevem-se poucos
policiais, e ninguém se ia interessar.
Miguel voltou para o carro e ofereceu os comprimidos a António.
Depois abriu A Bola sobre o tejadilho do T-Bird e pôs-se a ler. Quando o
Valium começou a fazer efeito, pensei: «Bolas, se me tivesse lembrado de
como é bom estar sentado numa duna de areia quente, nunca teria parado de
tomar estes lindos bombons cor-de-rosa.» Porque era sem dúvida o maior
alívio do mundo sentir os pulmões a encherem-se de um ar perfumado pela
primeira vez em muito tempo e poder contemplar o céu azul e sem nuvens,
como se tivesse sido destilado de uma turquesa. Era como regressar a casa
depois de anos de exílio. Comecei a cantar Penny Lane enquanto me dirigia
para o carro. Nessa altura, Miguel já estava enrolado no banco de trás, a
dormir profundamente. António lançou-me um olhar estranho.
– Que foi? – perguntei.
– Nada – respondeu, vago.
– E que tal encorajares-me? Aluguei um Batmóvel, um carro que achei
que ias adorar. Estamos a caminho de Espanha. Não podemos ter uma
aventura?
– Que queres que diga?
– Diz que estás contente.
– Estou contente – replicou ele num tom monótono.
– Vejo que não tomaste o comprimido.
– Pois não.
Devolveu-me a caixa de Victan. Guardei-a no bolso da camisa.
– Ouve, porque não cantas? – propus. – Canta qualquer coisa. Piaf, o
hino nacional… qualquer coisa.
– Não me apetece.
– Está bem, então não cantes. Dá-me só a mão. – Estendi-lha, mas ele
enfiou as dele entre as pernas e pôs-se a olhar pela janela. Encolhi os
ombros e liguei o motor, saindo devagar do parque de estacionamento.
Guiar parecia-me um jogo. Estava tão pouco habituado ao Valium que me
senti numa espécie de transe. Claro que não devia estar a conduzir, mas
tinha as mãos bem firmes no volante e não fazia a menor intenção de as
tirar dali.
Ao cabo de algum tempo, António pôs-me a mão na perna:
– Olá – disse baixinho.
– Olá – respondi.
Ele suspirou.
– Eu também estou com medo – disse-lhe em inglês. – Porque não
tomas o comprimido, para ficarmos calmos os três ao mesmo tempo?
Ele fez o que eu lhe pedia.
Ao fim de meia hora, estava a dormir. Ele e o pai ficariam fora de
combate durante umas duas horas, ao longo de todo o percurso pelas
encostas da Serra da Estrela. Miguel até ressonava. Era um cenário
encantador, mas ri-me ante a incongruência daqueles dois a dormir sob o
efeito da minha poção mágica e da paisagem que nos rodeava. As
montanhas eram rochosas, ásperas, nascidas de um clima severo;
lembravam um pouco as Black Hills da Dakota do Sul, onde eu fora uma
vez com o meu irmão. Aqui, as giestas eram tão exuberantes que nem
sequer tinham folhas, só grinaldas de um amarelo-canário. Nos sítios onde
os penedos e as escarpas deixavam espaço para raízes, rompiam laivos
roxos de lavanda salpicados de papoilas vermelhas. Parecia que as próprias
rochas tinham as orlas em flor. Muito ao longe, nos vales cavados,
escondiam-se aglomerados de casas de pedra abraçadas umas às outras.
Sentia-me feliz.
Quando as montanhas desapareceram, dando lugar ao planalto semeado
de penhascos que se estende dos distritos mais orientais de Portugal a
Espanha, já eu não conseguia manter os olhos abertos e, vendo um sinal a
indicar uma pousada em Almeida junto a outro rezando «ESPANHA 3 KM»,
parei o carro.
A fronteira também parecia pressagiar perigo. Aqui, em Portugal,
estávamos em casa. Lá, em Espanha, as pessoas nem sequer saberiam
pronunciar os nossos nomes.
Decidi seguir a indicação da pousada. Eram três e um quarto da tarde.
No momento em que entrava no parque de estacionamento, António sentou-
se e bocejou; deve ter sentido o carro abrandar.
– Onde estamos? – perguntou.
– Vou entrar aqui e ver se têm quartos. Acorda o teu pai.
Atrás do balcão da receção estava uma jovem pálida com uma púdica
blusa branca abotoada até ao pescoço. Tinha cabelo arruivado com risca ao
meio e uma cruz de ouro em volta do pescoço.
Informou-me de que havia quartos disponíveis.
– Somos três – anunciei. – Tem algum com três camas?
– Receio que não. Mas os nossos quartos duplos têm todos duas camas
de casal.
– E qual é o preço?
– Dezasseis mil escudos.
Eram cem dólares, mais caro do que eu tinha pensado. Não me pareceu
muito lógico reservar dois quartos só porque Miguel e António andavam às
turras. Era óbvio que o Valium me comprometia o raciocínio. Passei à
jovem o meu passaporte.
– Vou buscar os meus amigos – disse-lhe.
António e Miguel já tinham tirado as malas da bagageira. O céu estava
agora nublado e fazia um pouco de frio. Miguel tinha os braços arrepiados.
– Então, têm quartos? – perguntou António.
Só nesse momento percebi que cometera um erro. Já estava a prever a
relutância de António em ficar no mesmo quarto que o pai. Quando
insistíssemos, ia queixar-se de que fumava. E foi exatamente o que
aconteceu.
– Não suporto aqueles malditos cigarros – disse-me em inglês.
Pensei que não teria problemas em dormir na mesma cama que Miguel
porque a minha libido tinha desaparecido.
– Não vais ter de aturar o fumo do teu pai – repliquei, então. – Eu
durmo com ele. E mantemos uma janela aberta.
António abanou a cabeça.
– É um erro terrível – disse, ainda em inglês.
– O que é que estão para aí a discutir? – perguntou Miguel, que não
entendia uma palavra.
– O António acha que o Miguel e eu não devíamos partilhar a cama –
respondi.
– Então durmo eu com ele.
– Não, ele quer dormir sozinho.
– Então arranjamos dois quartos. – Olhou para António, que concordou
com um sinal de cabeça.
– É muito caro – respondi.
– Eu pago – disse Miguel, pegando na sua mala.
– É ridículo. Pagar cem dólares por um quarto. – Olhei para os dois. –
Qual é o problema? Estamos juntos nisto, não estamos? Não é este o país
dos exploradores e aventureiros?
António revirou os olhos.
– É um país de merda, é o que é.
– O que diria o primeiro-ministro se te ouvisse?
– O primeiro-ministro é um robô bronzeado, com um armário cheio de
fatos italianos.
– António!… – exclamou Miguel, como se ele não devesse proferir
frases daquelas.
– Não faz mal. O rapaz tem razão.
António pegou na mala dele e entrou na pousada. Miguel, sempre
cavalheiro, esperou por mim. Tranquei o carro e fomos juntos até ao quarto,
no segundo andar. Era muito bonito, com madeira escura por todo o lado e
casa de banho de mármore branco polido. Senti-me inexplicavelmente feliz.
António apoderou-se da cama mais perto da janela. Enquanto Miguel ia à
casa de banho, eu aproveitei para vestir o pijama de flanela azul.
– Que estás a fazer? – perguntou António, olhando, pasmado, para o
meu pijama.
– Vieste a dormir as últimas duas horas. Agora é a minha vez.
– Mas esse…?
– Nunca ouviste falar em discrição?
– Tu?
– Eu!
– Ninguém usa pijama nos dias de hoje – declarou.
Puxei o instrumento para fora das calças.
– Queres ver o meu equipamento? Pronto, já viste! Agora deixa-me em
paz.
– Às vezes és mesmo grosseiro – comentou.
Meti-me debaixo dos lençóis.
– Dá-me um beijo de boa-noite – pedi.
– E que hei de eu fazer enquanto tu dormes?
– Vai praticar guitarra lá para fora. Lê um livro. Vai passear com o teu
pai. Ou cheirar a roupa interior da rececionista. Quero lá saber. Não sou tua
mãe.
Pôs-se a olhar o quarto.
– Não consigo acreditar que estamos aqui.
– Nem eu. Agora dá-me um beijo de boa-noite.
Beijámo-nos na face, e eu puxei-o contra mim e sussurrei-lhe que o
amava. Antes que ele pudesse refilar, virei-me e encolhi-me na posição
fetal.
António murmurou qualquer coisa ao pai que não percebi e foi-se
embora.
– Também vou sair, Professor – anunciou Miguel, ao cabo de um
minuto.
Adormeci quase instantaneamente. Ao fim de uma hora, acordei e
deixei-me ficar na cama a recordar o sonho que tivera. Estava de volta a
Nova Iorque e o meu irmão ainda era vivo e tocava uma peça de Beethoven
no piano, que me ficou gravada na mente, mesmo depois de abrir os olhos.
Levei uma eternidade a conseguir mexer os membros, uma das
desvantagens do Valium, e o meu corpo parecia um saco de batatas. A
custo, arrastei-me até à casa de banho e tomei um duche. A água quente
penetrou-me nos ossos e fez-me sentir melhor. Depois, voltei para a cama e
comecei a ler um romance que tinha levado, Life with a Star, sobre um
judeu de Praga a tentar escapar aos fornos nazis.
Miguel regressou um pouco mais tarde. Estava todo suado. Sentou-se
aos pés da outra cama. Tinha os olhos mais tristes e sinceros que eu alguma
vez vira. Mas a minha libido ainda andava foragida, por isso não me senti
excitado.
– O que andou a fazer? – perguntei.
– Dei um grande passeio. Há muito tempo que não passeava no campo.
Foi como quando era miúdo, em Vila Nova de Cerveira.
Pousei o livro.
– Gostou de viver lá?
– Gostei muito. Mesmo muito.
– Então porque foi para o Porto?
Miguel esfregou a ponta do indicador no polegar, o que em língua
gestual portuguesa significa «dinheiro».
– Onde está o António?
Miguel encolheu os ombros.
– Deve andar a passear também.
Regressei ao meu livro e Miguel foi tomar um banho. Quando voltou,
trazia uma toalha branca enrolada à cintura. Olhando para o remoinho de
pelos no peito dele, apercebi-me de que o Valium estava a perder o efeito e
que se não tomasse outro nessa noite não seria capaz de ficar na mesma
cama que ele. Portanto, levantei-me, vesti-me à pressa e fugi lá para fora
com uma desculpa esfarrapada, do género: «Adoro o cheiro do fim da tarde
no campo.» O céu estava limpo outra vez, e o Sol ia alto a oeste. Junto dos
meus pés rompiam flores tubulares roxas de caules compridos e hirtos.
Muralhas medievais de pedra de um cinza-escuro formavam uma estrela
de doze pontas em volta da vila. Andando ao longo deste perímetro, senti-
me cativado pela sensação do vasto espaço livre, das terras de lavoura
semeadas de rochas a perderem-se de vista, em direção a um horizonte
esfumado em neblina. Quase acreditei que estava na América, nas planícies
da Dakota do Sul. Lembrei-me dos cães da pradaria de focinho erguido a
cheirar o vento, dos búfalos a pastar nas ervas altas, dos turistas de óculos
escuros a tirar fotografias. Pensei naqueles lugares felizes que visitara com
Harold no verão do meu segundo ano de faculdade, quando ele propôs que
fôssemos conhecer a América. Acabou com uma discussão terrível, mas
vivemos experiências incríveis. Agora, o ar estava seco e calmo. Imaginei
Harold ali sentado a ler. «Não teria sido melhor morrer ao sol, rodeado de
flores?»
Ao fim de algum tempo, dei com António numa das guaritas em forma
de torre que sobressaem dos cantos da muralha. Entrei no seu espaço de
sombra, e ele esboçou um meio sorriso, como se lutasse contra as lágrimas.
Encontrávamo-nos cerca de quinze metros acima das planícies que
rodeavam a vila.
– O problema da Europa é que estamos sempre uns em cima dos outros
– disse eu. – Se ao menos fosse toda feita de pequenas vilas construídas
com pedras cobertas de líquen. – Ele olhava a distância, o horizonte. À
procura de qualquer coisa. Apertei-lhe a mão que repousava na minha. –
Como estás?
– Estou bem.
Perguntei-lhe no que estava a pensar, mas ele não parecia disposto a
contar-me. Por isso, atravessámos a vila e detivemo-nos junto a uma
pequena casa térrea, caiada por fora. Entre a porta e a janela erguia-se uma
trepadeira entrelaçada de rosas cor-de-marfim. Os filamentos exteriores
enrolavam-se em volta da goteira azul ao lado da casa como dedos à
procura de um sítio para agarrar. Na base da goteira via-se uma vaidosa
sardinheira vermelha. A porta da casa estava aberta, e o sol fazia com que
os primeiros quatro degraus de uma escadaria de madeira encerada
brilhassem como ouro. O contraste do dourado das escadas com a escuridão
interior e as rosas era comovente. Senti-me assoberbado, invadido por uma
sensação de transcendência. Gostava tanto que lá tivesses estado, Carlos.
Comecei a tremer. António foi muito gentil. Abraçou-me e disse-me vezes
sem conta que ia ficar bem.
Da casa, saiu um cão pequeno de orelhas compridas, que se pôs a
contemplar-nos. Tinha olhos castanhos e sonolentos e uma mancha branca
em forma de coração no peito negro. Duas presas do maxilar inferior
vinham assentar-lhe no beiço superior, como uma barracuda malévola.
Rimo-nos, e António observou que era melhor irmos andando antes que ele
desatasse a ladrar.
– Encontrei o cemitério, sabes – disse-me enquanto nos afastámos.
– Porreiro.
– Quero mostrar-te uma coisa – anunciou.
O cemitério parecia o cenário de um filme de Vincent Price, com o
portão enferrujado, ciprestes, sebes por aparar e lápides derrubadas. Mas eu
já tinha ido a tantos funerais que o medo de almas penadas há muito fora
substituído por terrores verdadeiros.
– Olha para esta lápide – disse António, batendo com a mão numa
coluna dórica de mármore com cerca de um metro e vinte de altura,
encimada por um cordeiro de granito com uma cruz de metal em volta do
pescoço.
– Surrealismo caseiro – observei.
– Olha para baixo – pediu.
Aquilo que a princípio me tinham parecido ervas daninhas eram na
verdade tomateiros. De uma folhagem esfarrapada pendiam, prontos a
colher, frutos laranja e vermelhos, que lembravam as pequenas bolas que
usávamos no jogo da bugalha que eu e Harold adorávamos em crianças.
António apontou para a lápide. Dizia:
Li a inscrição para dentro, para lhe ouvir o som: «Bom pai e jardineiro.”
– Achas que os filhos plantaram os tomateiros em honra dele? –
perguntou António.
– Não me admirava nada.
– Há uma semana, teria ficado comovido – observou.
– E agora?
– Tenho algo a confessar.
– O que é?
Encolheu os ombros.
– Talvez eu tenha feito isto de propósito.
– Isto o quê?
– Apanhar esta doença.
– E porque haverias de fazer isso?
– Por vingança.
– Contra quem?
– Contra o meu pai. Contra os meus pais. Contra ti. Contra mim.
– Tu não tens esse tipo de personalidade. Podes ter querido correr riscos,
mas não quiseste adoecer. Eu conheço-te.
– Tens a certeza? Dizes que me conheces, mas será que me conheces
mesmo? Aparece um novo facto, e tudo muda. Já nem consigo lembrar-me
da sensação de tocar guitarra sem que esta treta que me envenena o sangue
me estrague tudo no subconsciente. E tu… não me lembro da sensação de
olhar para ti sem sentir inveja por não estares doente. – Os olhos dele
humedeceram-se. Virou-se para o outro lado.
– Ainda é tudo muito recente – disse eu. – Essas dúvidas hão de
desaparecer. Hás de lembrar-te de quem és. Acredita em mim. Está tudo aí,
apenas coberto por uma realidade tão avassaladora e opaca que não
consegues ver através dela.
António baixou-se, apanhou um dos tomates-cereja e ergueu-o à altura
dos olhos.
– Mas nem sequer me lembro de coisas simples – disse –, como por
exemplo se alguma vez gostei mesmo destas coisas. – Atirou-o fora, depois
cruzou as mãos atrás do pescoço e olhou para mim, desesperado. – Que raio
de pessoa não se lembra do sabor do tomate?
Parte III
16
Estava escuro no quarto, e António chorava, um choro magoado de
criança. Sentei-me na cama. Fechei os olhos para organizar as ideias.
Chamei-o num sussurro, mas ele não respondeu. O vento fustigava as
janelas. Puxei os cobertores até ao queixo e virei-me para olhar para
Miguel. De costas para mim, respirava brandamente. Levantei-me e fui
sentar-me ao lado de António. Estava todo enrolado na beira do colchão e
agarrava os lençóis. Quando lhe acariciei o cabelo, virou-se de barriga para
baixo e enterrou a cabeça na almofada. Contornei a cama em bicos de pés,
ergui os cobertores e enfiei-me ao lado dele. Tinha as costas e o traseiro
gelados, a pele áspera e arrepiada. Para o aquecer, despi as calças do pijama
e encostei-me a ele. Agarrei-lhe no ombro direito e ajudei-o a deitar-se
sobre o lado esquerdo, de maneira a ficarmos bem encaixados. Ele pôs uma
das almofadas sobre a cabeça e desatou a soluçar em silêncio. Encostei os
lábios ao pescoço dele e mantive-me assim. Ao fim de algum tempo, ele
deitou-se de costas:
– Não devias tocar-me, tenho sida – sussurrou.
Tirei-lhe a mão que tinha pousada sobre a coxa e levei-a aos lábios.
Beijei-a e com ela cobri a cara, como se fosse uma máscara. O cheiro dele a
misturar-se com a minha respiração era reconfortante.
– Não devias… – repetiu.
Pousei a mão dele sobre a barriga e delicadamente tornei a virá-lo de
lado.
– Adormece comigo a abraçar-te. Precisas de dormir.
– Por favor, não faças isso – exclamou, sentando-se bruscamente.
– Chiu, eu conto-te uma história para adormeceres.
– Não, volta para a tua cama.
Todo chegado a ele como uma criança, puxei os joelhos para cima e
encostei-me à anca dele. Pus-me a brincar com os seus pelos do peito.
Fechou os olhos. Quando fui à procura do pénis, percebi que estava
semiereto.
– Por favor não faças isso – implorou-me.
– Não faz mal – respondi.
– Não, posso contagiar-te.
– Terei cuidado.
– Não há cuidados que cheguem.
– Há, pois.
– Está ali o meu pai, na cama ao lado.
Miguel continuava a respirar suavemente.
– Deixa-me só aliviar-te – sussurrei. – Depois adormeces logo.
– És tão idiota – disse ele, afastando-me a mão.
Virei-me para o outro lado. As cortinas estavam ligeiramente abertas.
Um raio de luz atravessava a escuridão do quarto e vinha descansar sobre os
meus olhos. Imaginei uma quinta solitária com camponeses que nunca
falavam uns com os outros. Ao fim de algum tempo, António virou-se de
costas. Eu voltei-me para ele e abracei-o.
– Desculpa – disse-lhe.
Finalmente adormeceu.
Acordou e chorou três vezes durante a noite.
De uma vez, agarrou-se a mim com tanta força, que a minha costela há
tanto tempo partida começou a doer-me.
Miguel não chegou a despertar. Ou pelo menos assim achei.
Miguel acabou por levar o carro até Ávila, porque eu me sentia incapaz
de conduzir, todos os meus pensamentos focados numa escura paisagem de
culpa. Enrosquei-me no assento de trás, tentando aninhar-me contra o vinil
preto, até chegarmos ao parador logo à entrada das altas muralhas da
cidade. Enquanto Miguel e António tiravam as respetivas malas do porta-
bagagens, eu fui dar uma volta. Precisava de ficar sozinho, de arejar as
ideias. Se conseguisse pensar, talvez percebesse o que haveria de fazer. Mas
não consegui. As ideias formavam-se-me na mente, para logo se dissiparem
como fumo.
António ficou com um quarto só para si. A rececionista deu-me o
número do meu quarto e informou-me de que o meu cunhado já lá estava.
Pediu-me o passaporte.
Quando entrei, Miguel estava sentado aos pés de uma das camas, a
cabeça baixa, a esfregar o queixo.
– O rapaz não estava a falar a sério – disse, erguendo o olhar e
encarando-me.
Pousei a bagagem no chão e sentei-me na cama vazia.
– Tenho de me deitar. E gostava de ficar sozinho.
Ele fixou-me com aqueles seus olhos perdidos.
Devolvi-lhe o olhar, tão vazio que nem me importei que ele visse
através de mim e descobrisse que não havia nada.
– Vai ficar bem? – perguntou.
– Não se preocupe, não sou melodramático – respondi. – Nem tentativas
de suicídio, nem vidros partidos. Vá lá descobrir Ávila, divirta-se.
– Precisa que lhe compre alguma coisa? – perguntou, a mão já na
maçaneta da porta.
– As famílias são quebra-cabeças com peças de encaixar – respondi.
– O quê?
– Quebra-cabeças. Sempre que pensamos que a imagem está completa,
apercebemo-nos de que deixámos áreas inteiras de fora. É como um
universo que não para de se expandir. Não conseguimos acompanhar-lhe o
ritmo.
– Confesso que não o estou a perceber, Professor – respondeu ele.
– Nem eu me percebo a mim próprio. Não interessa. São só disparates.
Acontece-me quando o cérebro não está a funcionar.
– Quer alguma coisa do mundo lá fora?
– Se encontrar o espectro de Santa Teresa, pergunte-lhe pela esperança.
Pergunte-lhe como a recuperamos. Sendo a resposta razoavelmente
perspicaz, venha a correr contar-me. Caso contrário, demore o tempo que
quiser e traga-me uma Coca-Cola.
Dormi um sono sem sonhos. Talvez por isso, ao despertar, tenha entrado
em devaneios elaborados. Henry, o Colosso, dizia que os nossos devaneios
acordados são pássaros tropicais opalescentes que mantemos dentro de
sacos com medo de os deixar sair, não vão eles voar para longe e perder-se.
Henry não viveu o suficiente para aprender que nesta década de terror
lembram mais cascavéis para as quais tememos olhar durante muito tempo,
não vão elas sentir-se tentadas a devorar-nos vivos.
Comecei a imaginar-me no Batmóvel, a guiar como um louco por Ávila
adentro, deixando António e Miguel bem para trás, numa nuvem de poeira
medieval. Passei como um relâmpago por Madrid, em direção a Barcelona,
entrei num cargueiro ferrugento com a bandeira da Libéria, bebi ouzo até
perder os sentidos nos braços de um marinheiro grego barbudo e acabei em
Izmir. Comi figos frescos na praia e atirei as cascas roxas às gaivotas. Era
de novo jovem e bonito, com uma farta cabeleira encaracolada soltando
uma fragrância a mar quente, e ganhava dinheiro a vender o corpo na praça
do mercado, mesmo ao lado dos vendedores de pepinos. E porque é que
conseguia fazer tudo isto com tamanha liberdade? Porque não havia
cossacos invisíveis para me cortarem a cabeça, claro. Tudo pode acontecer
quando se sonha acordado.
Até te imaginei lá, Carlos, a chegar à praça do mercado com túnicas
árabes brancas, a fazer-me olhinhos e a oferecer-me uma pequena fortuna
para ir para casa contigo. «Se me beijares aqui mesmo à frente de toda a
gente, nem sequer terás de pagar», disse-te.
E que beijo, aquele! Os vendedores de pepinos, e os barbeiros, e os
vendedores de especiarias, e os adivinhos, todos se levantaram e
aplaudiram.
A seguir, imaginei-me muito doente, numa enfermaria imunda, repleta
de vítimas da peste, com os lençóis manchados de cuspo e sangue. Escrevi
cartas de despedida dilacerantes a Fiama e à minha mãe. E, embora
estivesse numa tremenda agonia, ainda consegui alinhavar: «Não fiquem
tristes por mim; tive uma vida boa.»
Prosa heroica. Que coisa ridícula.
A chave rodou na porta.
– Vou levá-lo a jantar – anunciou Miguel, entrando no quarto. Tinha os
olhos brilhantes e gesticulava com entusiasmo. – Vamos comer caviar e
beber champanhe! Por isso, vista-se, Professor.
– Há alguma razão especial para o champanhe? – quis saber.
– Há: porque me apetece!
– Mas porquê?
– Apetece-me e pronto! – Bateu palmas. – Vá lá, toca a andar.
Às vezes, é bom fazer o que nos mandam. Escolhi uma roupa especial:
uma camisa de seda cor-de-rosa Giorgio Armani de contrabando e calças
cinzentas de lã. Pus o meu casaco de linho azul sobre os ombros, como
Marcello Mastroianni.
Dirigimo-nos para a igreja sem falar. Estava à espera de um elogio que
nunca chegou.
– Tenho de lhe pedir que faça uma coisa por mim – anunciou Miguel.
– O quê?
– Explico-lhe esta noite.
– Outro segredo? Mas o que se passa consigo e com o seu filho?
Parecem esquilos.
– Esquilos?
– A armazenar comida para o inverno.
– Gostamos de sentir a temperatura da água antes de saltarmos lá para
dentro – respondeu.
– Tenha cuidado, os esquilos não são grandes nadadores – observei.
– Não estou a perceber.
– Não importa. Sabe onde está o rapaz?
– Provavelmente a tocar guitarra por aí.
Miguel estacou, olhou pensativamente para mim e depois contou-me
uma história sobre o pai. Certa vez em que esteve doente mais de um mês,
teve de vender o pequeno barco que usava no rio Minho todos os fins de
semana. Nunca mais comprou outro. Tinha dinheiro suficiente para isso,
mas nunca o fez. Quando Miguel lhe perguntou porquê, não respondeu.
Durante um ano, não lhe deu resposta. E depois, certo dia, a despropósito,
chamou o rapaz à parte e disse: «Não comprei outro barco, porque, para ser
sincero, nunca gostei de pescar.»
A história parecia importante para Miguel:
– O António é tal qual o meu pai.
– Em que sentido?
– Não sei, é. Não sei explicar. Esperam. Gritam. Depois, esperam um
pouco mais. Não confiam nas pessoas. Querem fazer tudo sozinhos, porque
acham que não podem contar com os outros.
– E a sua mãe?
– A minha mãe… ainda é viva. É como um castelo. Fria, mas poderosa.
Com salas secretas, e masmorras, e grandes fogos acesos que nunca são
suficientes. E depois, outras vezes, é como uma menina. Não faz sentido.
Ela deixa-me confuso. – Encolheu os ombros. – Desculpe. Estou a falar de
mais.
– Gosto de o ouvir falar – confessei. – Embora também goste quando
fica calado.
– O Professor diz coisas que as outras pessoas não dizem – observou.
– Livrei-me do meu censor durante a guerra – respondi.
– Qual guerra?
– Há sempre uma guerra. Em abono da verdade, há uma a decorrer neste
momento. Mas é uma guerra estranha, porque nem o inimigo sabe que está
a lutar. É uma coisa que só um louco seria capaz de inventar.
Miguel encolheu os ombros. Decerto achar-me-ia doido, mas não creio
que se importasse. No fundo, julgo que até gostava de mim por causa disso.
O restaurante que Miguel descobrira, La Coruña, ficava na Calle de la
Dama, mesmo em frente do Convento de Santa Teresa, uma fortaleza de
pedra a brilhar como ouro na luz noturna. Lembrou-me outro dos sonhos
que costumava ter acordado.
– Sansão derrubou o edifício que o aprisionava – disse a Miguel. –
Deitou-o completamente por terra.
Miguel anuiu, enquanto abria a porta do restaurante, dando-me
passagem. Não fazia a menor ideia do que eu estava a dizer.
– A questão – continuei – é que ele conseguia ver a sua prisão. É
possível destruir aquilo que vemos. Mas eu não vejo nada. Está
disseminado pelo meu corpo, por todos os nossos corpos.
– Dos personas – anunciou Miguel ao chefe de mesa no seu espanhol
com sotaque português.
Ele levou-nos até uma mesa junto a duas janelas que davam para um
jardim. Diante de uma palmeira alta via-se um renque de oleandros. Atrás
da palmeira, trepando por uma parede ao fundo, uma buganvília vermelha
começava a florescer.
Eu estava num daqueles estados de espírito em que não se consegue
deixar passar nada que pareça significativo.
– Invisíveis – expliquei a Miguel.
– O quê?
– Todos os meus inimigos.
– Exceto o meu filho – disse ele, assentindo com a cabeça.
Concordei. Mas, de repente, senti uma tristeza indizível, como se tivesse
saudades de um país fora do meu alcance. Apetecia-me desaparecer outra
vez.
– Peça o vinho – disse eu.
– Champanhe – corrigiu ele. – Estamos a celebrar.
– Mas que diabo temos nós para celebrar?
– Para começar, fugimos de Portugal. E depois… – Estendeu a mão e
segurou na minha.
O coração sobressaltou-se-me no peito, mas a nossa ligação acabou por
me deixar ainda mais triste; era temporária e nunca seria suficiente.
– Por outro lado – continuou –, conhecemo-nos. Eu sempre o quis
conhecer. Todas as histórias que o António me contava… – Apertou-me a
mão uma vez, depois recostou-se e começou a barrar o pão com manteiga. –
O mais importante de tudo é que estamos a beber champanhe porque o
António berrou comigo… berrou mesmo, com toda a força. É a primeira
vez que o faz desde que começámos a viagem.
– E isso é bom?
– Muito bom. Não o conhece como eu. Ele tem de cuspir aquela raiva
toda cá para fora. Nessa altura, poderei tentar falar com ele. Terei outra
oportunidade. É tal qual o meu pai.
– Está a esquecer-se de uma coisa – fiz-lhe notar. – Pessoas novas com
uma sentença de morte ficam tão enraivecidas que, por vezes, não a
conseguem cuspir toda. São poços sem fundo.
20
Voltámos para o hotel por volta das onze da noite, embriagados.
Perguntámos na receção se António já tinha voltado e informaram-nos de
que se encontrava no quarto.
Parei diante da porta. N.° 17. Tinha as luzes apagadas.
Miguel abanou a cabeça.
– E se ele acordar durante a noite? – perguntei.
Miguel abriu a porta do nosso quarto e fez-me sinal para entrar.
De duche tomado, meteu-se na cama comigo. Eu estava quase a dormir
e senti-lhe o corpo quente e os pelos das pernas suaves. Era bom estar na
cama com um homem. Enrosquei-me nele como num ninho. Quando estava
quase a regressar à terra dos sonhos, ele meteu-me na boca e, uns minutos
depois, pôs-me um preservativo e encostou-se contra o meu sexo.
– Era este o favor que lhe queria pedir… faça-o com muito jeito.
Passei-lhe o braço em volta da anca e senti-lhe o coração a bater com
força contra o meu peito. Mas o pénis dele estava do tamanho de uma
bolota.
Ainda um pouco bêbedo, eu não conseguia falar. Portanto, descansei um
momento.
– Porque é que estamos a fazer isto? – murmurei, ao cabo de uns
instantes.
– Porque eu quero.
– Mas eu só quero fazer o que lhe der prazer. – Passei a mão sobre o
peito dele, dei-lhe um beijo no alto da cabeça e cheirei-lhe o perfume.
– Eu quero mesmo – repetiu.
No momento em que eu já estava completamente dentro dele, atirou a
cabeça para trás e respirou profundamente. Achei que ele fosse desmaiar de
dor e tive medo de me mexer.
– Deixe-me sair de dentro de si – pedi-lhe, acrescentando, como se me
dirigisse a todos os homens que conheci e que gostavam de expressar as
suas frustrações na cama: – O sexo não é para provocar sofrimento.
Fui à casa de banho e abri a torneira de água quente. Deixei correr um
pouco sobre uma toalha de mãos. Olhei-me fixamente ao espelho. Teria tido
sempre este ar de velho? O cabelo rareava mesmo no meio da cabeça.
«Drogado, deprimido, praticamente impotente e com um corte à frei Tuck»,
murmurei para mim próprio. «Os últimos cinco anos deste século vão ser do
caraças!»
Voltei a trepar para a cama e pressionei a toalha contra o ânus de
Miguel. Ele sobressaltou-se, fugindo à toalha, mas depois reaproximou-se
lentamente, absorvendo aquele calor húmido. Esfreguei-lhe as pernas com a
mão livre.
– Nunca mais faça aquilo que não o excita realmente – pedi-lhe. – O seu
corpo é sagrado. Aquilo que para uns é uma bênção, para outros é um
crime. As pessoas têm naturezas diferentes.
Ele pôs-se a chorar como um bebé.
17
Trata-se de um jogo de palavras baseado no sotaque do desconhecido. Ele pergunta em inglês: You
need money?, mas com o sotaque espanhol, o americano pensa que ele diz: O judeu precisa de
dinheiro? (N. da T.)
21
Quando regressei ao hotel, dei com Miguel deitado de barriga para
baixo, o nariz esborrachado na almofada. Ressonava. Descalcei os sapatos e
fiquei um minuto sentado, à espera de que me passasse uma tontura súbita.
A seguir, apaguei e dormi até à manhã do dia seguinte.
– Ontem deixou-me aqui completamente sozinho – disse-me Miguel,
estava eu deitado, a fingir que ainda não acordara.
Mantive os olhos fechados. Era mais seguro.
– Fiquei à espera. Julguei que tinha saído por uns minutos só para ir
buscar qualquer coisa. Enfim, sabonete, cigarros, qualquer coisa.
– Eu não fumo – murmurei.
– O quê?
– Não fumo. Não poderia ter ido comprar tabaco.
Silêncio.
– Não percebo porque é que me deixou – disse, com uma nota de
infelicidade na voz.
– Você é mesmo teimoso – repliquei, soltando um suspiro teatral. Ele
permaneceu calado. Abri um olho. Miguel estava de pé diante da minha
cama, com uma expressão triste, fechada. – Não tente culpabilizar-me.
Miguel não estava habituado a psicologias baratas.
– De que raio está a falar? – perguntou.
Bati com a mão na cama, convidando-o a sentar-se.
Ele obedeceu e ficou a olhar-me fixamente, como uma criança magoada.
«Não me posso esquecer de que ainda o habita um miúdo humilhado por
um pai incolor.»
– Onde está o nosso rapaz? – perguntei.
– Saiu. De manhã cedo já estava a tocar guitarra. Aquela melodia que
nos ensinou. E depois…
– Que lhe ensinou – interrompi.
– O quê?
– Ele esteve a ensinar-lhe a si, não a nós.
– Ou isso. Não o ouviu tocar esta manhã?
– Não.
– Acho que o melhor que tem a fazer é tomar um banho – avançou ele.
– Cheiro mal?
– Sim e parece coberto de poeira.
Quando me levantei, o quarto pôs-se a rodar. Agarrei-me à parede,
nauseado. Calmantes a mais, claro.
– Que se passa? – perguntou.
– Nada. Será que pode ficar aqui enquanto eu tomo um banho?
Fez que sim com a cabeça.
– Não vai fugir por vingança?
– Não.
Abri a torneira e esperei que saísse água quente. Aproximei-me de novo
de Miguel. Gostava de que ele me visse nu.
– Esta viagem não está a ser nada daquilo que eu esperava – atrevi-me a
confessar, protegido pelo modo como me contemplou.
– Nada é aquilo que se espera – observou.
– Também não é preciso ser tão radical.
– Dê-me um exemplo em contrário.
Tentei refletir. Fiquei imenso tempo ali, de pé na moldura da porta.
Percebi que o único exemplo possível era a morte. «A morte de quem
amamos assemelha-se em muito àquilo que imaginamos», pensei.
Encaminhei-me para a casa de banho sem uma palavra.
A notícia de que mais gostei no El País do dia seguinte foi uma breve
nota acerca da boa saúde gastrointestinal do rei Juan Carlos, depois de uma
crise aguda de disenteria, em França. Eis as palavras exatas: «Un
excremento bien normal.» Teríamos progredido alguma coisa desde a Idade
Média? Estávamos na última década do século XX, e a saúde da nação
espanhola ainda dependia de o seu monarca ter ou não dificuldades na
retrete.
António confessou ao pequeno-almoço que, afinal, não tinha visitado o
Prado dois dias antes e, como tal, resolvemos acompanhá-lo nessa manhã.
Subi rapidamente ao quarto para escovar os dentes e emborcar dois
calmantes não fosse o Diabo tecê-las… Estava outro glorioso dia de sol e
segui pela rua cantando baladas irlandesas revolucionárias como se
marchássemos para Emerald City.
No museu, Miguel ficou fascinado com a pintura clássica espanhola e
holandesa. António passou pelos quadros sem dizer palavra. Fi-lo parar
diante dos Riberas e Goyas e El Grecos, mas ele não mostrou qualquer
interesse.
Deixei a obra de Bosch para o fim. O rapaz limitou-se a baixar a cabeça,
como se cumprimentasse conhecidos na rua.
– António, não tens nenhum comentário a fazer?
– Ainda não.
Enfiou o braço no meu e arrastou-me para uma sala circular com
esculturas, pelo que não insisti mais. Miguel ia ficando para trás, estudando
cada quadro como fosse uma pista para qualquer coisa que tivesse perdido.
O rés-do-chão do Prado é dedicado à pintura flamenga e espanhola.
– Agora quero voltar ao princípio e tornar a ver tudo sozinho – anunciou
António, terminada a visita. – Desculpa, mas não consigo concentrar-me
contigo a olhar para mim, à espera de que eu me manifeste.
Com um baque no peito, apercebi-me de que as minhas expectativas lhe
pesavam demasiado.
– Ouve – disse ele, sorrindo –, à terceira volta, digo-te quais são as que
adorei e as que detestei.
– Parece-me bem.
Sentei-me num banco de madeira, à espera de Miguel.
– E então? – perguntei, quando ele se sentou pesadamente ao meu lado.
– Viu o Cristo Abraçando São Bernardo?
– Passámos diante dele – respondi. – O António não quis parar para ver.
Miguel anuiu pensativamente. Pareceu-me que queria dizer alguma
coisa, mas calou-se.
– Agora compreendo que é simbólico – disse, quebrando o silêncio que
se instalara. – Ele não está realmente com Cristo. A ideia de Cristo é o seu
apoio.
– Como a água no deserto – concordei.
– Não. Como a certeza que se tem, ao atravessar o deserto, de que há
água à nossa espera.
– Sim, é uma imagem melhor.
Olhei com admiração para aquele ser bonito e inteligente ao meu lado.
António tinha razão – havia uma ligação genética. Se Miguel tivesse tido
uma oportunidade, por pequena que fosse, que coisas magníficas não teria
criado com as suas poderosas mãos ou a sua voz de barítono! Por outro
lado, ele tinha criado algo transcendentemente belo com a sua semente, se
não tivesse…
– Não acredito nele – disse Miguel.
– Nele quem?
– Em Deus.
– Porquê?
– Não me parece que haja um Deus a velar pelo meu filho. – Deu-me
uma palmadinha na perna. – Mas não censuro o artista pela sua fé. É um
belo quadro. Faz-nos pensar. – Anunciou que iria continuar a visita e que
nos encontraríamos na cafetaria dali por duas horas.
António acercou-se de mim pouco depois.
– Pronto para o meu tour?
– Ele conseguiu fazer tanto com tão poucas linhas, e quase sem cor. É
espantoso – declarou, diante do desenho da Anunciação, de Cano.
O desenho não me dizia grande coisa. Apercebi-me de que não podemos
prever o que comoverá aqueles que amamos.
Agarrou-me na mão e levou-me, como uma criança leva o pai ou a mãe
a ver um tesouro, até junto de um desenho de Goya: um homem com um
chapéu de burro numa sala de tribunal, escarnecido por uma multidão.
– Estás a ver? – perguntou. – Estás a ver como ele criou uma cena de
humilhação e injustiça sem excesso de detalhes?
Comecei a perceber que o que comovia António era a economia de
expressão – o gesto único que representa toda uma história. Mais tarde, por
simples curiosidade, levei-o a ver o Cristo Abraçando São Bernardo.
– Não suporto este quadro – declarou.
– Não?
– É horrível. Tão falso. Tão inventado. Como se quisesse convencer o
artista e todos os outros de uma mentira. Ao fim e ao cabo, todos sabemos
que os santos eram uns intolerantes. Isto é propaganda do século XVII. O
equivalente a um anúncio que nos promete saúde se comprarmos
determinadas multivitaminas. Cristo era o suplemento vitamínico daqueles
tempos.
Disse-lhe que achava que estava a ser demasiado crítico em relação ao
artista.
– Nem por sombras – respondeu, sublinhando as palavras e abanando
fervorosamente a cabeça.
Quando somos novos, temos tantas certezas.
Subimos para ver as salas da pintura da Renascença italiana e
permanecemos durante muito tempo diante do quadro de Rafael Retrato de
Um Cardeal. Trata-se de um jovem com vestes vermelhas, olhos tristes e a
expressão de quem quer estar em qualquer lado menos ali – a posar para um
pintor perfecionista.
– Acho que ele era gay – disse António de repente. – Qualquer coisa
nele nos diz que está prisioneiro de um mundo que não deseja.
Depois disto, inventámos um jogo que consistia em descobrir gays e
lésbicas nos quadros. António fixou-se na Virgem Maria da Imaculada
Conceição, de Tiepolo. Vestia uma túnica parda de mangas compridas,
nitidamente concebida para esconder todos os contornos femininos. Alvitrei
que talvez sugerisse apenas pudor e castidade, mas o rapaz insistiu em que
a sua teoria estava certa.
Caranguejei pelo quarto e corri na casa de banho sem sair do lugar. Dei
voltas e voltas na cama. Antigas humilhações vieram-me à memória,
imobilizando-me dentro de vários intrincados planos de vingança contra ex-
colegas de escola.
Às quatro da manhã enfiei o gorro, para ver se ajudava.
Cinco.
Seis.
Ergueu-se o Sol de sexta-feira. Eu não tinha pregado olho, mas estava
contente porque me iria esgueirar do quarto e plantar-me diante da primeira
farmácia que encontrasse. Os calmantes espanhóis seriam grandes, azuis e
fantásticos. Esconderia alguns na tampa da pasta de dentes, não fosse
Miguel descobri-los no estojo dos remédios, mas agiria normalmente na sua
presença, e ele nem desconfiaria. Era nisto que pensava enquanto me
ajoelhava junto à mala, em busca de um par de cuecas limpas.
Miguel dormira a noite toda e acordou nesse preciso momento. Talvez a
minha mãe estivesse a comunicar telepaticamente com ele.
– Que se passa? – perguntou.
– Desculpe. Volte a dormir.
Sentou-se na cama, esfregou as faces e olhou para o relógio.
– É tão cedo que nem as padarias abriram. Que está a fazer?
– Vou sair só um bocadinho – anunciei, levantando-me e tapando o sexo
com as cuecas que encontrara.
Ele levantou-se. Estava nu. Aproximou-se de mim, tirou-me as cuecas e
voltou a lançá-las para dentro da mala. De seguida, envolveu-me os tomates
com a mão e ajoelhou-se.
– Estou a safar-me melhor do que da última vez? – perguntou uns
minutos mais tarde, numa pausa no assalto.
Eu tinha a respiração acelerada e limitei-me a acenar com a cabeça.
– Agora diga-me: que mais gostaria que eu lhe fizesse? – perguntou e
respondi com toda a verdade, pois precisava tanto do seu carinho nesse
momento que não conseguia mentir.
Acormeci com o braço dele sobre as minhas costas e o seu rosto
encostado ao meu ombro. A respiração dele lembrava ondas a morrer na
areia. «Mais uns dias disto e talvez todos os meus fantasmas comecem a
dar-me paz», pensei.
Acordei às dez da manhã, com uma forte dor de cabeça.
– Já lhe voltaram as cores – disse Miguel.
– Isso é bom ou mau? – perguntei.
– É bom. Está a sentir-se melhor, não está?
– Tenho a cabeça a latejar.
– Quer uma aspirina?
– Continue, não pare.
– Aspirina é a única coisa que vai conseguir de mim. – Trouxe-me duas
e um copo de água. – Às vezes, o sexo faz-nos sentir pior – observou.
– Não, foi bom. E foi importante para mim.
– Acho mesmo que estou a melhorar – comentou.
– Sempre que quiser praticar, esteja à vontade.
Enfiou um cigarro na boca e fixou-me com olhos graves.
– Acha que tem uma alma? – quis saber.
– A que propósito vem isso?
– Quero só saber.
– Se tenho alma? Duvido. Mas haverá quem tenha. Talvez a minha
tenha ficado simplesmente de fora ou me tenha sido tirada quando visitei
Sodoma pela primeira vez. Como se tivesse deixado o passaporte com o
guarda fronteiriço. Mas deixe-me que lhe diga também não me tem feito
falta.
– Eu também acho que não tenho – disse ele. – Ou talvez esteja no sítio
errado e não consiga encontrá-la.
– Uma alma que não se consegue encontrar… Não me parece bem.
Quero dizer, não se pode pôr uma alma fora do sítio. Ou está lá ou não está.
– Pode estar escondida. Sabe, gosto de estar deitado ao lado de um
homem – disse, como se só naquele momento, ao cabo de trinta anos de luta
árdua, houvesse chegado a essa conclusão. – Mas também gosto de estar
com mulheres – acrescentou.
– Suponho que haja pessoas com pouca sorte e que não conseguem
decidir-se – observei.
– Não, já me decidi. Gosto de tudo. Fico muito excitado ao lado de um
homem bonito, mas também gosto muito do sabor… e da suavidade de uma
mulher. Se calhar, não sou muito normal.
– Normal… Já não faço ideia do que isso é. Mas uma coisa lhe digo: o
Miguel é um homem sortudo. Tantas opções para encontrar consolo…
Invejo-o.
A igreja ficava mesmo do outro lado da rua. Acendi uma série de velas
aos pés de uma grande estátua de pedra da Virgem, com uma jarra de cristal
repleta de gladíolos cor-de-salmão a enfeitar-lhe o pedestal. Quando
pousava a última no suporte, uma jovem de cabelo preto e curto aproximou-
se de mim.
– Tantas? – perguntou em espanhol.
Encolhi os ombros como quem pede desculpa.
– Soy de una isla de muertos. – Não sabia se aquilo se poderia dizer em
espanhol, mas decerto não andaria longe.
– E onde fica essa ilha dos mortos? Na América? – perguntou-me em
inglês.
– Sim.
– Meu inglês não muito bom – desculpou-se, esboçando um sorriso de
menina tímida.
– Se falar devagar, eu percebo – respondi em espanhol.
– Também vi desaparecer muitos amigos – disse ela.
Saímos juntos.
– Chamo-me Claudia – apresentou-se, estendendo-me uma mão
minúscula e fria. – Dantes, pintava cenários no Ballet Nacional –
acrescentou.
– E agora?
– Agora cozinho para o meu marido e para o meu filho. – Sorriu. – E
vou à igreja todos os dias. Uma pessoa não esquece. – Apertou o casaco de
couro. – Gostei de o conhecer. Tenha uma boa estadia aqui na vila. Se ainda
andar por cá amanhã, vemo-nos na igreja. À mesma hora. Estou com
pressa, senão ficava a falar mais um pouco.
Claudia lembrou-me de que fazemos parte de uma seita mundial, pelo
menos todos os que transpõem as portas do hospital para visitar um amigo a
morrer de sida.
Não há lugar de peregrinação, não há um centro sagrado.
O eixo dessa seita fica onde quer que encontremos outro membro.
Claudia atravessou a praça a passos largos. Mal desapareceu de vista,
passeei pela vila à procura de António, porque de repente senti que tinha
algo para lhe dizer. Quando vi que não conseguia encontrá-lo, fiquei
desesperado. Arrastei-me de volta à igreja, deixando-me ali ficar durante
algum tempo, derrotado e vazio. Depois regressei ao hotel.
No átrio da entrada, ouvi-o tocar no seu quarto o Prelúdio da Suite para
Violoncelo de Bach. Bati à porta. Ele deixou-me entrar e sentámo-nos
ambos aos pés da cama, dois guerreiros cansados. Segurei-lhe na mão.
– Em que estás a pensar?
– Que aquilo que escrevi não presta para nada.
– É por isso que vim falar contigo. O que escreveste é demasiado bom.
E tu deixaste-te assustar por isso.
– Não era aquilo de que estava à espera – repetiu.
– Porque não era apenas música. Era uma coisa diferente. Uma coisa
que tu querias encenar. Estavas à procura de uma forma de vos juntar, a ti e
ao teu pai. E conseguiste. Encontraste-a. Foi isso que te assustou. Quanto
mais te aproximas dele, mais medo sentes. Só tens de continuar a avançar
na direção certa, aconteça o que acontecer. Estás quase lá.
Ficou calado. A dúvida começou a invadir-me o espírito; talvez
estivesse completamente errado.
– Sabes, tu e o teu pai cantam mesmo bem. Foi muito bonito ouvir as
vossas vozes juntas. – Silêncio. – Eu falhei algumas notas. Estou
enferrujado na leitura da pauta.
Ele retirou a mão.
– Não tens qualquer culpa de aquilo não ser música. Para de te
responsabilizares por tudo.
– Ainda no outro dia me dizias que eu era responsável por tudo – fiz-lhe
notar.
– E agora não digo!
– Não estava a criticar. Apenas a constatar como as coisas mudam.
– Bom, para.
– Sê simpático quando falas comigo. Estou frágil. Tu estás frágil.
Ele levantou-se e cruzou os braços.
– Eu sabia que podia acontecer – disse. – Mas achei que não. Fui
estúpido. – Pegou numa almofada e cobriu a cabeça. Pôs-se a andar para
trás e para a frente.
– Vamos dar um passeio – sugeri.
– Não.
– Às vezes obedecer ajuda. Não interessa ao quê. É o simples facto de
ceder ao desejo do outro.
– Sabes, quem eu quero que me encontre és tu – disse ele. – Do poema
do Whitman. Depois de eu ter morrido. Vou querer que me encontres.
– Eu sou incapaz de encontrar seja o que for – repliquei. – Referes-te a
outra pessoa. E acho que queres que ele te encontre muito antes de ires para
debaixo da terra.
– Quem? – perguntou António.
Encolhi os ombros; não precisava de lho dizer.
– Anda daí dar um passeio – rematei.
24
Avançámos rumo a leste, na estrada que leva a Ezcaray. No mapa, era
um ponto minúsculo no fim de uma fina linha branca. Acabou por ser um
destino bem escolhido, caso contrário nunca teria tido a oportunidade de
conhecer Doña Margarita.
O céu estava azul e o sol queimava. Minúsculas uvas verdes do tamanho
de groselhas pendiam das vinhas que orlavam a estrada. O cheiro da
gravilha quente sob os nossos pés era reconfortante.
– De que haveremos de falar? – perguntei a António.
– De qualquer coisa menos música, o meu pai, eu, tu ou doenças.
Fizemos em silêncio todo o trajeto até Ezcaray. Os campos estavam
bonitos, e isso bastava para que me sentisse preenchido. Reparei que ele me
observava, mas não me apeteceu perguntar-lhe porquê.
O ponto no mapa revelou-se uma confusão de ruas desalinhadas e uma
igreja de pedra. Contudo, encontrámos o Café Carlito – uma única sala
sombria e suja, com seis mesas de madeira e um balcão de linóleo azul. Na
parede por trás do balcão, haviam sido colados com fita-cola amarelecida
uns vinte postais. Reconheci a Torre de Pisa e o Coliseu. Éramos as únicas
pessoas ali. Doña Margarita, uma mulher roliça, com o cabelo crespo e
seco, pintado com hena, e os olhos excessivamente maquilhados, serviu-nos
Coca-Colas, que despejou das latas para copos altos com o logótipo da
Pepsi. De tempos a tempos, agitava um leque com rosas vermelhas por
baixo do pescoço flácido.
– Parece uma Tartaruga Gigante – sussurrou António em português.
Eu sabia que se chamava Margarita porque, sob as fotografias antigas a
preto e branco coladas desordenadamente pelas paredes verdes e bolorentas
do café, as legendas tinham sido escritas numa máquina cujos «ós» e
«erres» minúsculos ficavam acima da linha:
Doña Margarita com Rafael Ochoa.
Doña Margarita com Comadreja.
Doña Margarita com Miguel Quimon.
António observou-as e depois fez uma careta como se tivesse comido
alguma coisa estragada.
– Que monte de lixo! – disse em inglês.
Sorri.
– É isto que adoro em Espanha.
Ele pôs os olhos em alvo e levou a Coca-Cola à boca.
A julgar pelas fotografias, Doña Margarita sempre fora roliça. Mas em
tempos brilhara como uma boneca de porcelana. Mostrava um certo estilo
antiquado – saltos altos, pendentes de filigrana nas orelhas e meias de renda
escura. Na fotografia com Comadreja, usava uma estola de raposa, com a
cabeça do bicho e tudo. O pobre animal parecia uma planária peluda.
Quanto aos homens, eram jovens e magros, com o cabelo cheio de
brilhantina, penteado para trás. Usavam fatos de risca finíssima com colete
a condizer. Alguns ostentavam bigodes tão finos como lápis. Pareciam
gangsters.
– Quem seriam estes homens? – perguntei a António.
– Celebridades cá da terra. Toureiros pouco conhecidos, esse tipo de
coisa.
– Amantes?
– Talvez.
Doña Margarita limpava o balcão com o esfregão da louça. Pusemo-nos
a contemplá-la do nosso canto do café, tentando imaginar quantos daqueles
homens teriam enrolado nos dedos o seu cabelo colorido com hena. Ela
começou a marcar um número no telefone preto ao fundo do balcão.
– Deve ter sido a meretriz cá do sítio – sussurrou António, indicando as
unhas vermelhas e compridas. – E um dos clientes deixou-lhe o café.
– Ou pode tê-lo comprado com o dinheiro que ganhou.
Ele sorriu.
– Se tivesses cobrado quando eras novo… podias comprar metade de
Espanha.
– Não quero metade de Espanha. Só a tal ilha deserta com o Sean
Connery e os coqueiros.
Acabámos as Coca-Colas ao balcão.
– Gostam das fotografias? – perguntou Doña Margarita a certa altura.
– Mucho! La señora era muy hermosa.
– Gracias. – Abanou o leque e baixou graciosamente a cabeça.
– Quem são os homens? – perguntei. – Los hombres?
– Quase todos toureiros – respondeu.
António fez uma pequena vénia por ter adivinhado.
– Espere aqui. Tenho uma coisa para lhes mostrar, a si e ao seu filho –
anunciou Doña Margarita. Lá estava outra vez aquela palavra traiçoeira,
hijo.
Nas traseiras, havia um compartimento oculto por um cortinado de
contas rosas e castanhas. A nossa anfitriã dirigiu-se para lá e de repente
estacou, apontando na nossa direção.
– American? – perguntou.
– Sí.
– No Comunistas?
Doña Margarita decerto não tivera conhecimento de que os únicos onze
comunistas nos Estados Unidos eram donos de livrarias revolucionárias e
não tinham tempo para visitar a Europa. Abanei a cabeça.
– Partido Sodomita Internacional – respondi em inglês.
Ela assentiu, como se o que eu dissera lhe fizesse sentido.
– OK. Só um momento.
– Acho que ela empalhou um daqueles pobres toureiros – especulou
António, alegre. – Vai trazê-lo hirto que nem uma tábua.
Ela regressou com uma fotografia numa moldura dourada. Era um
retrato seu, e não poderia ter mais de vinte anos. Reluzia orgulhosamente na
sua estola de raposa, chapéu redondo sem aba e saltos altos. Estava ao lado
de um homem pequeno e engelhado, envergando um uniforme militar.
Não havia legenda.
– Sabe quem é? – perguntou, o hálito tresandando a cerveja.
– O toureiro reformado mais baixo do mundo – replicou António em
inglês.
Ela esboçou uma expressão perplexa. Eu inclinei a cabeça e estudei a
fotografia mais de perto. Não queria acreditar.
– El Caudillo – anunciou com um sorriso rasgado.
– O general Franco?
Ergueu um dedo, corrigindo-me.
– Generalisimo Franco. – Estudou a fotografia. – Em Burgos. O meu pai
lutou com ele na batalha por Madrid. – Ofereceu-nos uma expressão
orgulhosa e satisfeita.
– Muy bonita – repliquei.
– Ah, como o mundo muda – suspirou ela, admirando-se. Encolhendo
os ombros, levou a foto para a restituir ao seu secreto lugar de honra no
armazém do café.
António pousou duas moedas de cem pesetas no balcão.
– Vamo-nos embora antes que ela volte – sussurrou.
Mas aqueles braços apresuntados já apartavam as tiras de contas.
Acercou-se de nós, no seu passo balançado, agitando o leque e assumindo
uma expressão séria e honrada.
– Spain no good no more. Communists. Socialists. Corrupt. – Com o
leque, fez um gesto zangado, como quem varre aquela gente toda.
Eu assenti com um gesto de cabeça.
– Demasiados maricones.
Ela agarrou-me no braço, concordando entusiasticamente.
– Agora são juízes – exclamou num tom escandalizado. – E ministros!
– Pois, no tempo do Franco eram só toureiros – replicou António,
assentindo com a cabeça.
– Os meus toureiros eram homens a sério. Tinham tomates. − Cerrou o
punho. – Cojones! – Fechou bruscamente o leque, aprumou-o e pôs-se em
sentido.
– Com quantos milhares dormiu? – atirou António na sua voz mais
inocente.
– Como? – perguntou ela, como se não conseguisse acreditar no que
ouvia.
Ele repetiu a pergunta, mas, dessa volta, rematou com a expressão: Mi
pequeña puta fascista. Em Espanha, não se chama puta seja a quem for sem
que haja consequências – mesmo que se trate, de facto, de uma prostituta.
Mas, quando somos novos, não nos importamos com confrontos.
Doña Margarita cuspiu os piores insultos e ainda lhe ouvimos as injúrias
a uns bons cem metros do café. Os ataques de riso descontrolados de
António deixavam-me pouco à vontade e só ousei descontrair quando
estávamos já sãos e salvos, longe da vila. Fazia muito calor, no mínimo 30
graus, pelo que, ao fim de três quilómetros, me sentei na berma da estrada,
recusando-me a continuar.
Desintoxicar do Valium é como sofrer de jet-lag; de repente, sentimo-
nos cansados e desidratados. Só nos apetece dormir, até nos sítios mais
impróprios. Deitei-me com a cabeça apoiada no braço. Ervas daninhas e
proletárias, sem flores, cresciam a toda a volta. Era surpreendentemente
confortável.
António pôs-se a chamar-me nomes na brincadeira…
porco;
mariconso;
preguiçoso inútil;
capitalista americano;
pastel de nata judeu.
– Estás bem-disposto – declarei.
– Quando consigo esquecer, sinto-me melhor – observou. – Volto a ser
eu. Recupero o meu nome e tudo.
Espetou o polegar para pedir boleia. Uma centena de carros passou sem
abrandar. Para minha grande surpresa, ao cabo de uns vinte minutos, estava
eu prestes a virar-me e grelhar a outra parte do corpo, um BMW azul parou
junto de nós. A explicação era simples; mesmo naquela estrada dos confins
do mundo, que liga Ezcaray a Santo Domingo de la Calzada, de vez em
quando, teria de passar um vampiro.
Este vampiro em particular desceu o vidro, revelando um grande nariz
adunco. Tinha olhos escuros e sombrios. Se a vida fosse uma peça de
Shakespeare, ter-lhe-ia sido atribuído o papel de Shylock. Mas a vida é a
vida, claro, e ele era apenas um homossexual solitário e rico a passear no
meio do nada, julgando ter talvez encontrado o seu Príncipe Encantado.
Infelizmente, o Príncipe Encantado Português trazia às costas um pau de
cabeleira americano e exausto.
– Ele está bem? – perguntou ao rapaz, apontando para mim como se eu
não conseguisse responder.
Naquele momento já eu estava sentado, a passar a língua pelos lábios
secos.
– Apenas cansado – replicou António. – Estamos a andar há algum
tempo.
– Portugueses?
– Eu sou. Ele é americano.
– Querem boleia? – perguntou.
– Não, somos só Testemunhas de Jeová e queremos saber se já recebeu
a Palavra – respondi em inglês.
– O quê? – perguntou ele.
– Uma boleia seria ótima – admiti.
– Ah! – exclamou, erguendo as sobrancelhas – Também fala espanhol!
António sentou-se à frente com ele. Eu estiquei-me no assento de couro
do banco traseiro. Notei que ele olhava para António muito mais
intensamente do que a maior parte dos homens consideraria adequado e foi
assim que tive a certeza de que jogava na nossa equipa.
Ligou o rádio.
– Música – anunciou, como se não fôssemos capazes de o perceber
sozinhos.
– Sim – sorriu António.
Era uma áspera melodia árabe gritada por um grupo de homens. Não
pareciam satisfeitos.
– Gostas de sevilhanas? – perguntou ao rapaz. A sua mão ia oscilando
para cima e para baixo na manete preta das mudanças.
– Não são más – respondeu António.
– Chamo-me Ramón. – António apresentou-se e trocaram um passou-
bem. Ele ficou a segurar na mão do meu pupilo durante demasiado tempo. –
Pai e filho? – perguntou, encarando-me.
– Mais ou menos – respondi, abanando a mão de maneira dúbia.
– Sí – afirmou António com ar definitivo. – Ele é tímido. – Trocámos
um olhar divertido, tipo «tirem-nos deste filme».
– Estão hospedados em Santo Domingo? – inquiriu.
– Não – apressei-me a responder. – Temos amigos lá. Estamos só de
visita.
A última coisa de que precisávamos era um pilha-galinhas castelhano
com o endereço das galinhas no bolso.
Ele e o rapaz continuaram a conversar. Ramón era advogado e
trabalhava em Burgos. Ia visitar a irmã mais velha, que tinha uma vinha uns
quilómetros a leste de Ezcaray e que estava com dificuldades em arranjar
bons trabalhadores.
Nessa altura, o desemprego em Espanha era superior a vinte por cento e
por isso não percebi porque é que a irmã não encontrava pessoal.
– Ninguém quer trabalhar numa quinta – explicou Ramón. – É trabalho
de camponeses. Alguma vez leu Cervantes?
– Dom Quixote, duas vezes – menti.
– Então, sabe que todos os espanhóis querem parecer fidalgos.
– Ah, sim?
– Sí. Está no livro.
– Conhece a Doña Margarita? – perguntou António.
Ele abanou a cabeça.
– Quem é?
– A senhora do Café Carlito – explicou o rapaz.
– Ah, essa, sim, claro. Já lá fui umas vezes.
– Conhece a história dela?
– Consta que pertence à aristocracia arruinada. Filha de um exportador
de citrinos de Valência que fugiu com um toureiro chamado Comadreja.
Dizem que ele a abandonou em Burgos. – Piscou o olho. – Mas acho que
foi ela que inventou essa história. Acredita, viejas solitarias contan grandes
mentiras.
– Saiu-me cá uma bruxa velha e bolorenta, aquela Doña Margarita –
disse António, abanando a cabeça, já em segurança e fora do carro de
Ramón.
Foi então que percebi o que me deixara pouco à vontade.
– Ouve, à medida que envelhecemos, tentamos dar um sentido às nossas
vidas. Tentamos perceber porque fomos por um caminho e não por outro.
Lembramo-nos de coisas. Sentamo-nos muito a recordar. Se eu conseguisse
afixar na parede fotografias de alguns dos homens que amei, talvez o
fizesse. Mas não tenho fotografias. Deitei-as fora quando vim para a
Europa. Por isso, sê amável com ela. É tola, gorda e talvez tenha feito
algum mal na vida, mas não lhe resta nada. Está para ali sentada num velho
café e quer mostrar às pessoas que já existiu. Não a censures por isso.
Quando regressámos ao hotel, fui fazer uma sesta. Acordei com gritos.
Uns dias mais tarde, soube o que provocara a discussão. Na verdade, ouvi
duas versões.
– Achas que eu consegui o que queria? – gritava Miguel. – É isso que
achas? Porque, se é isso que achas, estás muito enganado!
– Não me venhas com essa treta! – respondeu António também aos
gritos. – Estás-te nas tintas para o que eu penso. Nunca quiseste saber! Só
queres saber de ti. Foi sempre assim! Acho que nem sequer me vias. Nem à
mãe. Para ti, fazíamos parte da paisagem. Lembras-te dos presentes que me
costumavas dar? Bolas de futebol e ténis. Canas de pesca. Canas de pesca,
porra! Tudo coisas para ti. Não para mim. Estavas a brindar-te a ti próprio.
– Não me venhas com sermões sobre a tua mãe! A tua mãe e eu… tu
não fazes ideia do que se passou entre nós.
– Ouve, não te quero ver! Não te quero ouvir! Não quero sentir o teu
cheiro! Tresandas a cigarros velhos e a mentiras velhas. Só queres que eu
não faça nada que te possa envergonhar. Deus nos livre disso. Ou de te
mostrares como realmente és.
– Como realmente sou? E o que é que eu sou? Vá, diz-me!
– Tu? Não sei. Só sei que não és o que pareces. És um fantasma. Um
impostor. Uma alucinação. Nem sei, mas gostava que desaparecesses pura e
simplesmente!
Houve um breve silêncio, que Miguel quebrou:
– Tornaste-te um ser sem compaixão. Nunca pensei ver este dia.
Agora já não gritava, mas as paredes eram finas, e eu tinha o ouvido
colado ao estuque.
– Se sou cruel, foi porque tu assim me fizeste – respondeu António. E,
como uma ideia que lhe viesse subitamente à cabeça, acrescentou: – A
culpa é tua, sabes? Se tivesses sido um pai quando precisei de ti…
Miguel não respondeu. Imaginei-o sentado com a cabeça entre as mãos.
Saí do quarto e fiquei no corredor, a pensar. Depois, bati ao de leve na porta
do quarto de António.
– Sou eu.
Abriu-se uma fenda hesitante, e, vendo-me, António revirou os olhos
como se eu fosse mais um fardo. Miguel espreitava pela janela. Afastei
ligeiramente António para passar e entrepus-me entre eles.
– Há uma coisa que tenho de vos dizer a ambos.
Miguel encarou-me. Parecia um náufrago. A minha coragem esmoreceu.
Olhei para António e vi-lhe a raiva na expressão.
– Ouve… este vírus que tu tens… não sabe o teu nome. Não sabe que
tocas guitarra. Não sabe que és português. Não conhece o teu pai, nem a tua
mãe, nem me conhece a mim. Não sabe como cortas o cabelo, nem que róis
as peles das unhas quando estás ansioso, nem que cruzas os braços quando
estás zangado, como agora. Não sabe nada. Percebes o que te estou a dizer?
Mostrou-me o silêncio de um miúdo assustado a tentar parecer
enfastiado.
– António, achas que não terias levado a vida que levaste, mesmo que o
Miguel tivesse sido o pai dos teus sonhos?
– Não sei. Talvez.
– Ouve, se pensas que és homossexual devido à falta de coragem do teu
pai, ou à distância, ou aos ciúmes, ou a qualquer outra coisa, estás
enganado. Não acredito nisso. E tu também não.
– Acredito, sim – replicou ele, desafiante.
Miguel abriu a janela de par em par e debruçou-se.
Estávamos naquele ponto em que as pessoas testam os limites no seu
próprio deserto de crueldade, tentando não se perder para sempre, aquele
ponto árido em que testam também até onde podem ferir os inimigos.
Sentei-me aos pés da cama e baixei a cabeça, porque percebi que ao entrar
naquele quarto tinha cometido um grave erro.
– É isso, olhem para o lado. Vocês os dois. Porque podem. Eu não
posso. E sabem porquê? Porque está dentro de mim! Não lhe posso virar as
costas, porra!
25
Miguel foi o primeiro a sair do quarto. Disse que precisava de um
cigarro. Não fui à procura dele. Sentei-me no bar do hotel a beber um Porto.
Não é que seja grande apreciador, mas tinha saudades de casa e a cor rubi
ficava linda contra a luz do candelabro de cristal que pendia, ameaçador,
sobre a minha cabeça.
Mal saí, António trancou a porta do quarto. Não me importei que ficasse
sozinho. Ou que sentisse medo. Pensei no conselho que Pedro me dera
antes da viagem e apercebi-me de que precisava de me salvar a mim.
Fui ao quarto buscar o Life With a Star e li cerca de trinta páginas.
Depois, embebedei-me.
De manhã, não recordava uma única frase.
Miguel não regressou ao hotel nessa noite.
No sábado, tinha já tomado o pequeno-almoço, quando me apercebi de
que ele me tirara as chaves do carro. O Batmóvel desaparecera. «Boa»,
pensei. «Deixou-me apeado no meio do nada. Vou acabar os dias colado
numa parede do café de Doña Margarita.»
António não saíra, mas também não se ouviam as notas da guitarra.
Imaginei-o deitado numa poça de sangue na casa de banho, mas sentia-me
sem coragem para nada, até para ir confirmar.
Não havia o que fazer em Santo Domingo de la Calzada, pelo que
regressei à igreja e tentei ler as páginas que perdera na véspera. Estava
fresco e não se via vivalma. A luz que se coava pelas janelas gradeadas da
nave mal chegava para decifrar as palavras, mas era reconfortante ter um
livro nas mãos. Existe uma ilusão de controlo no facto de se saber que é
possível evadirmo-nos na história de outrem. O meu espírito, porém,
divagava e pus-me a pensar em quantas igrejas e sinagogas estivera na
última década. Uma única mesquita. Em Brooklyn, ainda por cima, mesmo
à saída da Avenida J.
Cerca de uma hora depois, Claudia apareceu. Cheirava a lavanda. A
mãe de Carlo Foggia cheirava sempre a lavanda. E Carlo usava aftershave
Polo. Costumava inundar o campo de basquetebol com aquele odor
enjoativo.
– Não pensei que o fosse encontrar aqui hoje – disse Claudia com um
sorriso. – Fico profundamente feliz de o ver.
– Os meus companheiros de viagem estão a discutir – repliquei, em jeito
de confissão, e dei por mim a falar-lhe de António e de Miguel.
– Não devia ter vindo – disse ela.
A última coisa de que precisava era a opinião de um estranho sobre algo
irremediável.
– Desculpe – pediu ela, apercebendo-se do meu incómodo. – Que coisa
estúpida de se dizer! Quer vir a minha casa?
Apetecia-me pedir-lhe para falar com António. Quem sabe a voz de uma
mulher o ajudasse. Em alturas de desespero, imagino que a magia – se ela
existir – reside na voz do feminino.
– Não terá um Valium, por acaso?
– Não.
– Conhece alguma farmácia aqui perto?
– Claro.
– Leva-me lá?
A farmácia da vila era também a barbearia. Em cima de um pé de metal
repousava uma grande cadeira de couro. Claudia explicou a uma senhora de
bata branca o que eu pretendia. Ela regressou com uma caixa verde onde se
lia: TRACTAN. Fiquei a olhar para a caixa, uma voz dentro de mim pedindo:
«Dá meia-volta e vai-te embora.» Comprei duas embalagens de trinta
comprimidos, não fosse Miguel descobrir uma.
Ou seja, cem dólares por um quarto individual. Merci, disse. Pedi três
individuais; não me apetecia correr riscos.
Claro que tivemos de ser nós a carregar a bagagem.
– Pequeno-almoço das sete até às dez – tossiu o rececionista enquanto
nos encaminhávamos para o elevador.
Nada indicava que estivesse disposto a informar-nos por iniciativa
própria onde era a sala do pequeno-almoço.
– C’est où? – decidi perguntar.
– Où quoi? Onde é o quê? – replicou ele, ofendido.
– Onde é a sala de pequeno-almoço? – insisti.
Franziu o sobrolho e apontou para baixo.
«Que hotel de merda», pensei.
Os quartos eram pouco maiores do que armários, com a mesma tinta a
descascar que decorava a fachada. Só havia espaço para uma esponjosa
cama individual, com uma colcha cor-de-rosa, uma secretária e um armário.
A minúscula casa de banho fora forrada a azulejos azul-turquesa. Nem
televisão, nem cesta de fruta. Mas estava tudo limpo, pelo que fiquei
contente. António tinha vista para as grandes colunas de Saint-Sulpice,
mesmo do lado oposto da rua. Miguel e eu contentávamo-nos com um pátio
sombrio, onde um carrinho de bebé todo torcido e deitado de lado ficara
esquecido, ao fundo. Debrucei-me da janela e tentei em vão descobrir o
esqueleto abandonado da criança.
Uma vez instalados, cada qual no seu quarto, telefonei para a receção e
pedi linha.
– Um momento – respondeu o rececionista.
O momento transformou-se em dez minutos, que passaram a sessenta.
Quando me questionava já se ele estaria a torturar-me de propósito, obtive,
por fim, linha. Telefonei a Pedro, que estava no Porto.
– Que tal vai isso? – perguntou ele.
– Não te conseguiria explicar nem que quisesse.
– Bem, mal…?
– Ambos. E mais… Mas estou ótimo.
– Estás com uma voz cansada – observou.
– É das drogas.
– Espero que não tenhas caído de novo nos calmantes.
– Põe um freio nas tuas esperanças e não ficarás desiludido.
– Suponho que saibas o que estás a fazer.
– Nem pensar.
– És mais forte do que pensas – comentou.
– Pedro, és um amor, mas achas que as pessoas são melhores e mais
fortes do que realmente são.
– Não acho nada. Mas…
– Achas, sim – interrompi-o. – Olhas para um cogumelo e achas que
estás a ver um feto gigante.
Ele soltou uma gargalhada.
– Bom, mas sempre falaste com o Landero sobre a audição do António?
– inquiri.
– Está tudo tratado. Só há uma complicação. Ele não vai estar no
Conservatório de Paris esta semana. Está à espera que tu lhe telefones para
casa.
Pedro ditou-me o número. Eu repeti-o.
– Que devo dizer quando lhe telefonar? – perguntei.
– Com que então queres fazer isto e não sabes?
– Pedro, não discutas comigo. Neste momento, todos os pensamentos se
me evadem da cabeça, a menos que eu faça um grande esforço para os
aprisionar. O que é que lhe digo?
– Que o António é o melhor aluno que tivemos e que merece tê-lo como
professor.
– O que devo pedir ao miúdo para tocar? – perguntei.
– Tu sabes melhor do que eu.
– Não sei nada!
– Sabes, pois!
– E digo alguma coisa sobre o facto de ele ser gay e estar doente?
– Isso é totalmente irrelevante – garantiu-me Pedro.
– Achas?
Ele suspirou.
– Claro que é. Livra, estás mesmo estranho…
– Estou nervoso. Cansado. Confuso.
– Suponho que sejam razões válidas. Ouve, aguenta-te mais uns dias e
vem para casa assim que puderes. Terei um chá mate pronto para ti.
– Oh, meu Deus, que raio de ideia! Valium com chá mate!
Mal desliguei, telefonei a Landero. Não queria ter oportunidade para
entrar em pânico. Não estava em casa. Respondeu uma voz gravada num
francês com forte sotaque espanhol. António bateu-me à porta enquanto eu
esperava pelo bip. Abri, o telefone na mão. Deixei uma mensagem bem
pormenorizada em inglês, com o nome e o número do telefone do nosso
hotel.
Não há dúvida de que estava com a cabeça nas nuvens, porque nem por
um instante ponderei que António descobriria o meu plano.
– Que história é essa de audição? – quis ele saber.
– Senta-te – pedi-lhe.
Sentou-se à minha esquerda. Eu queria-o do lado direito.
Pedi-lhe que me fizesse o favor. Ele revirou os olhos. Levantou-se e
deixou-se cair do outro lado.
– Agora dá cá a mão.
– Não me apetece.
– Mas eu quero tocar-te.
Pespegou a mão esquerda na minha coxa. Peguei nela e comecei a
massajar-lhe os dedos.
– Que estás a fazer? – perguntou.
– Ouve, tudo se resume a isto. Estou a tentar que tenhas uma audição
com o José Maria Landero. Sabes quem é?
– Sei.
Fiquei calado. Não me lembrava de mais nada para dizer.
– Mas que audição é essa? – quis ele saber.
– Uma das razões por que quis vir a Paris foi porque, enquanto estavas
no hospital, pensei que merecias um professor melhor. Que poderias chegar
mais longe. Tal como disseste. Parece que afinal estávamos em sintonia.
Daqui a uns dois anos, quero que estejas a tocar em concertos, sabes.
Ele retirou a mão e levantou-se.
– Queres que eu estude em Paris?
– Ele ainda não te aceitou. Tens de tocar muito bem na audição. Ele
aceita os melhores alunos do mundo inteiro. Vais competir com prodígios
israelitas de oito anos, cegos de Minsk, que conseguiram aprender a tocar
guitarra graças a estudos da Tora em braille e magia negra cabalística.
– Isto é de loucos – disse. Começou a roer as peles das unhas do polegar
direito.
– Deixa os dedos em paz! – ordenei. – Porque é que é de loucos? –
perguntei.
Ele encarou-me e abriu os braços.
– Não posso sair de Portugal assim sem mais nem menos.
– Porquê? – quis saber.
– Para começar, não tenho dinheiro. O meu pai não é rico. Não temos
dinheiro para essas cenas.
– Podes arranjar aqui um trabalho a tempo parcial. Como empregado de
mesa, ou coisa parecida. Vai fazer-te bem. Ou podes tocar num cafezinho
romântico, onde os namorados se beijam às escondidas.
– Não quero tocar num café.
– Pode ser um café gay – tentei-o.
Revirou novamente os olhos.
– Ouve, não estou a dizer-te o que deves fazer. Estou só a dizer-te que
tens todas as qualificações necessárias para conseguir um emprego como
qualquer outra pessoa.
– Mas, mesmo assim, não conseguirei pagar tudo: aulas, um
apartamento, comida…
– Eu ajudo-te com o resto.
Ele suspirou.
– E por que raio haverias de querer desperdiçar o teu dinheiro com as
minhas aulas, nesta fase do campeonato?
– Ao fim deste tempo todo, não é óbvio?
– Não quero o teu dinheiro. Não quero ficar a dever-te mais do que
aquilo que já devo.
– Não me deves nada.
– Sabes que te vou reembolsar o dinheiro que me deste ao longo desta
viagem… certo?
– Esquece isso.
– Não, vou pagar-te mesmo.
– Está bem. Podes considerar todo o dinheiro que te dou como um
empréstimo.
– Não.
– António, para que raio vou eu poupar dinheiro? Não me resta nada.
Não vou fazer trekking nos Himalaias, nem mergulho no Brasil. Não vou ter
filhos. Por isso, para que é que serve?
– Aí é que está a questão, não é?
– Onde?
– Em mim, o teu filho adotivo. Não sou teu filho!
Começava a sentir falta de ar outra vez. Fui percorrido por uma tontura.
Sentei-me direito e procurei respirar profundamente.
– Que se passa? – perguntou ele.
– Nada. Ouve, confesso que gosto que as pessoas nos tomem por pai e
filho. Mas isso não quer dizer…
– Não quero o teu dinheiro – interrompeu ele.
– Pensei que já tínhamos ultrapassado essa cena.
– Não ultrapassámos.
– Bom, vamos fingir que sim. Que mais problemas há?
– Eu não posso pegar pura e simplesmente nos meus tarecos e mudar-
me.
– As pessoas fazem-no constantemente.
– Eu não sou as pessoas. Além disso, agora… agora que tenho isto
dentro de mim…
– Isso não faz diferença nenhuma.
Ficou calado. Estava de pé, as costas apoiadas na janela. Tinha as mãos
cruzadas sobre o peito.
– Não quero vir para Paris só para que um dia possas dizer que me
conheceste quando eu era um estudantezeco de merda − disse. − Tocar em
concertos, isso é o teu sonho, não o meu. Estás a viver através de mim.
– Isso não é justo. Contaste-me muitas vezes que sonhavas acordado
com tocar no Carnegie Hall e na Ópera de Paris.
– Sonhar acordado… isso não é a realidade.
– Ouve, esta discussão é absurda. Vou combinar a audição. Se quiseres
ir, vais. Se não quiseres, não vais.
– Não vou! – declarou.
Fui à casa de banho buscar a minha navalha turca com o punho de
âmbar; ia pô-la no estojo de medicamentos, para ficar bem guardada. Voltei
para trás e pus-me de pé à frente dele. Estava muito calmo. Virei a mão para
cima. Fiz saltar a lâmina. Fiz um corte de uns dois centímetros no pulso.
Só doeu um pouco. Acho que o Valium me tinha deixado vagamente
anestesiado.
– O que estás a fazer? – gritou António.
– É para não teres de pôr os nós dos dedos a sangrar outra vez. Ou fazer
outra coisa pior. Não quero que dês cabo das tuas oportunidades.
– És doido!
– É possível. Mas aposto que agora não vais mutilar-te.
Fiquei a ver o sangue a pingar sobre a alcatifa cinzenta. Era uma
imagem bonita. Ergui a mão na direção dele.
– Agora vai ensaiar – disse-lhe.
António tinha medo de que um vírus saltasse da boca dele direto para a
minha ferida. Não me disse nem mais uma palavra. Correu a ir buscar o pai,
e depois desapareceu. Na casa de banho, enquanto tratava de mim, Miguel
repetia vezes sem conta:
– Que coisa tão estúpida de se fazer!
Levou imenso tempo até o sangue começar a estancar. Não cheguei a
sentir-me fraco, nem sequer perturbado. Estava convencido de que tinha
feito a coisa certa, e que não era uma pequena cicatriz que me ia atrapalhar
a vida. Miguel exigiu que eu fosse ao hospital para levar pontos. Mas não
me apetecia nem um pouco ir para uma urgência e ficar à espera com todas
aquelas pessoas gravemente doentes e deprimidas. Implorou. Recusei.
Nessa altura, já tinha as calças e a camisa manchadas de sangue. Ele pôs
água quente a correr por cima da ferida. De minuto a minuto, durante meia
hora, dizia-me numa voz furiosa e vagamente histérica:
– Se isto continua, vai sangrar até à morte! O que acha que vai
conseguir com isto? – gritou, quando finalmente me largou o braço.
Eu tinha meio rolo de papel higiénico embrulhado à volta do pulso
naquele momento, e estava encharcado em sangue.
Bati três vezes no lado da banheira com a minha outra mão.
– Não entendo – disse ele.
– As palavras – respondi – às vezes não se encaixam. Elefantes numa
loja de porcelanas.
– Está a dizer coisas sem nexo. São esses calmantes. É o que é! É essa
merda dos calmantes.
– Teria feito a mesma coisa sem eles. Eles só me deixaram a mão mais
firme, e fizeram com que doesse menos. São úteis. Lembra-se daquele
quadro do Francis Bacon em que o tipo se estava a desfazer num espaço
esborratado?
Ele assentiu.
– Pense em como ele se sentiria bem melhor se estivesse drogado.
Sentámo-nos lado a lado na borda da banheira.
– Posso fumar? – perguntou ele.
Disse que sim com a cabeça.
Acendeu um cigarro. Suspirou. Estava suado e coberto de sangue.
Fomos envolvidos por uma nuvem malcheirosa de tabaco, mas não me
importei.
– Estamos em Paris – disse ele. – E não consigo pensar numa única
coisa que me apeteça fazer.
– Nem eu.
– Estava-me destinado – disse ele.
– Paris?
– Não. Este inferno. Este inferno da sida.
– Não estava destinado a ninguém.
– Eu é que devia pagar, não o miúdo. É por minha causa. Ele recebeu os
meus desejos secretos. Foram eles que o tornaram o que é.
– Primeiro que tudo, é apenas um vírus. Quantas vezes preciso de lho
dizer? Ele não sabe quem você é. Pensa que consegue vê-lo a si? Que diz
para si próprio, como uma leoa que ronda a vítima, «Acho que vou atirar-
me àquele velho ginasta musculado ali ao fundo chamado Miguel», e
depois comete um erro qualquer de navegação e salta para dentro do
António por engano? É isso que acha? Não é assim que funciona.
Ele virou-se para mim. Estava pálido.
– A mãe do António não acredita em mim. Mas se pudesse transferir
para mim essa coisa da sida, era o que fazia.
Assenti.
– Fazia-o mesmo. Libertava-o. Já vivi o suficiente. – Abanou a cabeça.
– O resto… não interessa. Libertava-o.
Ficámos sentados em silêncio. Miguel acabou o cigarro e deitou-o para
a retrete. Pôs-me a mão na coxa.
– Como é que se apanha o vírus? – perguntou.
– Tenho a certeza de que sabe.
– Pode apanhar-se com um beijo?
– Não.
Miguel começou a invocar todos aqueles cenários intrincados e
hipotéticos que as pessoas invocam quando sentem pela primeira vez o
medo de ser infetadas. Coisas como: Se eu beijasse um tipo que tenha o
vírus e depois cortasse o pulso meia hora mais tarde e sugasse o sangue
com a boca, podia apanhá-lo?
Ouvi-o com paciência, porque ele estava assustado. O problema é que
nunca conseguimos obter informação suficiente quando estamos em pânico.
Há sempre outro cenário: Se eu bebesse de um copo que já tivesse sido
usado por uma pessoa com o vírus, e se o copo se partisse de repente e me
cortasse o lábio…
– Não há perigo para si – garanti-lhe.
Ele olhou para mim com ceticismo e acendeu outro cigarro.
Tocou o telefone. Corri para o atender. Era o José Maria Landero. Eu
apresentei-me. O inglês dele era uma nódoa. Falámos em francês. Ele disse
que recebia António no seu apartamento no dia seguinte.
– Tem de ser já tão cedo? – perguntei, na esperança de que o rapaz
conseguisse ensaiar bastante mais.
– Tenho de ir a Deauville depois de amanhã – explicou Landero.
Combinámos uma hora. Escrevi o endereço num talão de multibanco, e
a seguir sublinhei-o com tanta força que furei o papel.
27
Fiquei contente por António ter desaparecido; precisava de paz. E
explorar Paris sozinho seria uma boa experiência para ele. Miguel e eu
fomos a pé até aos Deux Magots. Sentámo-nos cá fora na área do café
guardada pelo campanário da Igreja de Saint-Germain. Senti-me feliz com:
as mesas redondas de mármore com bordas de metal;
os guarda-sóis e toldos verdes;
o cheiro do tabaco Gauloises.
Um empregado com ar empertigado, de casaco preto e laço, veio tomar
nota do nosso pedido. Do outro lado da rua, a cruz verde da Le Drugstore
acendia e apagava. O ar era tépido e reconfortante.
Quando o meu chá chegou, descobri que custava vinte e quatro francos,
mais de quatro dólares. O que por si não teria mal nenhum, exceto que era
uma infusão amarga feita com uma saqueta Sir Tea e água da torneira
carregada de cloro. Miguel bebeu um café duplo.
Estávamos entretidos a falar de basquetebol e a observar os nossos
vizinhos de mesa, quando um homem de tronco nu, com um bigode de
pontas arrebitadas, começou a cuspir fogo mesmo à nossa frente. Enchia a
boca de gasolina e a seguir cuspia-a para uma tocha flamejante, criando
uma explosão de fogo. Miguel e eu apressámo-nos a pagar a conta e
refugiámo-nos num restaurante de grelhados coreano na rue du Dragon.
Via-se um minúsculo hibachi elétrico em cada mesa. Nele grelhámos finas
lâminas de carne, que eu comi, com o arroz e o kimchi19, com pauzinhos.
Miguel usou o garfo. Sem razão aparente, sentia-me delirantemente feliz.
Miguel evocava episódios da infância de António.
– Que miúdo aquele! – exclamou. – Eu ficava entusiasmado só de o ver
a correr pela rua fora. Não conseguia parar de o abraçar e cobrir de beijos. –
Esfregou a face. – Talvez lhe tenha dado beijos a mais.
– Coma a sua carne – disse eu.
– Acha que lhe dei beijos a mais? – perguntou.
– Não.
– Éramos tão próximos – disse ele. – Depois, quando me começou a
assustar, afastei-me demasiado. O erro foi a inconsistência.
Fiquei em silêncio.
– A inconsistência. Tenho de dizer isso à mãe do António. Foi a
inconsistência. Ela vai gostar de saber.
19
Couve em salmoura picante, o prato nacional da Coreia. (N. da T.)
28
É a última coisa de que me lembro. Quando acordei, António, sentado
junto à janela aberta, olhava lá para fora, para a Place Saint-Sulpice. Estava
a fumar.
Eu tinha uma forte dor de cabeça e sentia-me desidratado.
– Parece que estou sempre a fazer isto – disse. Bebi água de um copo
que estava na mesinha de cabeceira.
Ele virou-se para mim e sorriu. Apagou o cigarro num cinzeiro pousado
no parapeito e que já tinha um monte de beatas. Sentou-se ao meu lado. As
mãos dele cheiravam a tabaco. Sentei-me na cama e cobri a cara com elas.
– Cheiravas assim da primeira vez que nos conhecemos – disse eu.
– Chamámos um médico – disse António.
– E o que é que ele disse?
– Que te deixássemos dormir. Quantos tomaste?
– Acho que sete.
Deu-me uma palmada no cocuruto.
– Mas que raio te passou pela cabeça?
– Estava nervoso – respondi.
Olhei pela janela. Pus-me à procura de um relógio para ver as horas.
– Oh, merda – exclamei.
António leu-me o pensamento no olhar que lhe lancei.
– Perdeste-a, pois. São três e meia da tarde. Já voltei há uma hora.
– Não, não pode ser. Que horas são, a sério?
Ele fez um sorriso aberto.
– São três e meia.
– Mas isto não pode ter acontecido na vida real. Isto acontece nos
filmes. O professor não pode estar a dormir quando o aluno tem uma
audição.
– Não faz mal. Podíamos ter-te acordado, se achássemos que era
necessário.
Comecei a praguejar. António levantou-se e desfiou uma torrente de
palavras. Fiz-lhe sinal com a mão para se calar.
– Não, cala-te tu! – disse ele. Fiquei atónito. Pensei que me fosse dizer
coisas cruéis, mas limitou-se a observar: – Ouve, o meu pai acabou de sair
para ir buscar qualquer coisa para comer. Ficou o dia todo sentado à tua
cabeceira. Nunca vi uma dedicação destas nele. Foi incrível.
– Diz-me só o que aconteceu na audição.
– Não fiques chateado, mas não me parece que tenha corrido muito
bem. – Encolheu os ombros. – Ele só quis que eu tocasse cinco minutos.
– Não estás a mentir-me, pois não? Foste mesmo?
– Fui.
– Como encontraste a morada?
– Na tua carteira, onde costumas guardar essas coisas – observou ele.
– E?
– E já te disse. Ele mandou-me tocar durante cinco minutos.
– O que tocaste?
– O Prelúdio da Suite para Violoncelo em Dó, de Bach.
– Só isso?
Ele fez que sim.
– E os Recuerdos, não?
– Não.
– Mas tu tocas isso melhor do que qualquer pessoa no mundo.
– Toquei uma coisa onde ainda preciso de ajuda. Não valia a pena tocar
uma coisa onde já cheguei aonde queria.
– Isso não faz sentido – disse eu. Mas fazia.
António encolheu os ombros.
– Não tem importância. Como te sentes?
Fiz um gesto com a mão, como quem diz que não interessa.
– Como era o Landero?
Ele riu-se da minha insistência.
– Bonito e novo. Talvez uns trinta anos. Falava um espanhol muito
esquisito. É mexicano, não espanhol, sabes? Ainda por cima de Tijuana.
Não sabia que havia pessoas verdadeiras de Tijuana. Sabias?
– Gay?
– Não me parece.
– Ótimo – disse eu.
– Porquê?
– Já temos complicações que cheguem.
António riu-se outra vez.
– O que é que tem tanta graça?
– Tu.
– Agora tenho graça? – perguntei, ressentido.
– Não leves a mal. De qualquer forma, não tem assim tanta importância.
– Claro que tem assim tanta importância! Ele disse-te se ia aceitar-te?
– Não.
– O que é que ele disse?
– Perguntou-me se eu gostava de Paris.
– Só isso? Se gostavas de Paris? Mas quem é esse idiota mexicano?
– E como é que eu pagaria as lições, se me aceitasse.
– E tu que respondeste?
– Disse-lhe que não sabia.
– Idiota! – gritei-lhe em inglês. – Porque não lhe disseste em dinheiro. E
que tinhas montes dele. – Apontei para o telefone. – Traz-mo cá!
– Para quê?
– Vou telefonar-lhe.
– Não, não faças isso.
– Traz-me a merda do telefone ou mato-te!
Ele obedeceu.
– E a minha carteira… tornaste a pôr lá o contacto dele?
– Não, sou eu que o tenho. – Tirou do bolso de trás das calças o talão do
multibanco. Leu-me o número, depois voltou para o seu lugar à janela e
pôs-se a roer as peles das unhas. Liguei o número.
– Deixa os dedos em paz! – gritei ao miúdo.
Ele revirou os olhos.
Do outro lado da linha, respondeu uma voz de homem.
– Estou a falar com José Maria Landero? – perguntei.
– Sim… Ah, olá. É você – respondeu ele em francês. – Acabei de
receber o António. Lamento não nos termos encontrado. Sente-se melhor?
Em Paris, deve-se evitar o marisco.
– Estou ótimo. Diga-me, como é que correu?
– Ele é bom. É muito bom. Mas não me parece que tenha lugar para ele
agora. Se esperar mais seis meses, tenho a certeza de que haverá uma vaga.
– Ele só começou a tocar a sério há quatro anos, sabia?
– O seu colega Pedro contou-me. É óbvio que tem um talento
extraordinário.
– Os Recuerdos dele são os melhores que já ouvi. Era o que ele devia ter
tocado para si.
– Ouça, ambos sabemos que ele tem uma carreira à sua frente, se assim
o quiser. Mas neste momento não tenho tempo. Na semana que vem tenho
gravações em Londres. Depois, uma tournée por Espanha e França. Vou
andar para cá e para lá como um louco durante uns tempos. Não posso
aceitar mais um aluno neste momento. Mas posso recomendar outro
professor. Ou, então, ele pode esperar seis meses.
– Ele paga em dinheiro.
– O quê?
– Em dinheiro vivo. Não terá de declarar essas receitas. E podia
encaixá-lo a qualquer hora. Quando alguém cancelar uma lição, telefona-
lhe, e ele vai.
Landero desatou a rir.
Era óbvio que toda a gente me achava engraçadíssimo. É assim que os
seres humanos demonstram empatia na última década do século XX.
– Não se ria, estou a falar a sério – disse eu, zangado.
– Desculpe. É só porque não se trata de uma questão financeira. Há três
anos, sim, agora não. Porque é que isto é tão importante para si?
– Porque esperei demasiado tempo para lhe arranjar um professor
melhor do que eu. Fui egoísta.
De repente, António arrancou-me o telefone da mão e atirou-o com
violência para o recetor.
– Porque fizeste isso? – gritei. – Agora estragaste tudo!
Ele sentou-se ao meu lado e segurou-me nas mãos.
– Não vês o que estás a fazer? Estás a implorar. Para com isso. – Deu-
me um beijo na testa. – Acalma-te. Não aconteceu nada de terrível. Estou
vivo, como disseste. E continuo aqui. Tu continuas aqui. Está tudo bem.
Está tudo bem.
Apertou-me as mãos na suas e continuou a repetir a frase até eu quase
acreditar nele.
Eu não sabia o que dizer. Parecia-me que tudo se tinha perdido e
encontrado. Deixei descair os ombros.
– Sinto-me confuso – admiti.
– Vai correr tudo bem – respondeu o miúdo. – Foi o que tu me disseste
quando tive aquela audição contigo no Conservatório. Lembras-te?
Anuí.
– Sabes, enquanto esperava para tocar para o Landero, pensei no nosso
primeiro dia juntos e de repente apercebi-me de que o meu andamento
estava todo errado. E não só em Bach. Em tudo.
– Que queres dizer com isso?
Ele encolheu os ombros.
– Não estou a explicar-me bem. É como aquilo que o teu irmão disse
sobre o Vale da Sombra da Morte. Tenho de pensar na minha vida como se
fosse música. Como se fosse alguma coisa que precisa de ser tocada no
andamento certo. – Os seus olhos brilharam. – Foi isso que percebi quando
estava ali sentado diante do Landero. A partir de agora, a minha vida tem de
ser música. Compreendes? Não pode ser como era dantes. Tenho de ter
cuidado com ela, estar mais consciente dela do que estava até aqui. – Deu-
me um beijo na testa. – Achas que faz algum sentido?
Anuí com a cabeça e depois comecei a chorar – não só pelas palavras
dele, mas pelo esforço que fazia para que eu o entendesse.
Abracei-o, e fiquei a inspirar o seu perfume. Quando finalmente o
larguei, ele ergueu a mão e começou a pentear a zona onde o meu cabelo
começava a rarear. Limpei os olhos e disse:
– Deixa lá isso, não há nada a fazer. Daqui por um ano, por esta altura,
estarei careca. – Mas os dedos dele eram tão reconfortantes que não me
afastei.
– Não, se o pentearmos como deve ser, ninguém vai notar – respondeu
ele.
– Obrigado, mas não quero o meu cabelo arranjado como deve ser.
– Devias comer mais gelatina.
Arreganhei-lhe o lábio com ar ameaçador.
Enquanto baixava a cabeça para admirar o seu trabalho, disse:
– Eu e o meu pai tivemos uma longa conversa ontem à noite. Foi muito
importante. E abraçou-me como nunca me tinha abraçado. Não estava a
mimetizar. Percebes? Eu estava com ele, com o homem que ele podia ter
sido. E durante alguns minutos, era como se fôssemos a mesma pessoa. As
fronteiras entre nós desapareceram. Mas não tive medo. Nem ele. Pela
primeira vez em muitos anos, tive a certeza de que não tinha medo de mim.
Depois, chorou nos meus braços e agradeceu-me por lhe ter dado a
oportunidade de nos acompanhar nesta viagem. Foi estranho e maravilhoso.
– E há uma última coisa que te quero confessar – acrescentou. – Eu
sempre soube que era gay. Sempre. Tu não tiveste nada a ver com isso.
Teria sido muito infeliz, se não te tivesse conhecido.
Abanei a cabeça.
– Não terias, não. Terias estado ótimo.
– Porque não me deixas desabafar? Teria sido um falhado. Nunca teria
sabido que havia gente gay que era normal, feliz e bondosa. Teria estado
completamente sozinho e passado todo este tempo sem me assumir, à
espera, a bater com a cabeça nas paredes.