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"Quando o mundo estiver


unido na busca do
conhecimento, e não mais
lutando por dinheiro e poder,
então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um
novo nível."
Richard Zimler nasceu em 1956 em Roslyn Heights, um subúrbio de Nova
Iorque. Fez um bacharelato em Religião Comparada na Duke University e um
mestrado em Jornalismo na Stanford University. Trabalhou como jornalista durante
oito anos, principalmente na região de São Francisco. Em 1990 foi viver para o
Porto, onde lecionou Jornalismo, primeiro na Escola Superior de Jornalismo e
depois na Universidade do Porto. Tem atualmente dupla nacionalidade, americana
e portuguesa. Desde 1996, publicou doze romances, uma coletânea de contos e seis
livros para crianças. A sua obra encontra-se traduzida para 23 línguas.
Para mais informações sobre o autor, visite o site www.zimler.com
Insubmissos
Richard Zimler

Publicado por
Porto Editora
Divisão Editorial Literária – Lisboa
Email: dellisboa@portoeditora.pt

Título original:
Unholy Ghosts
© 2020, Richard Zimler e Porto Editora

Tradução: Daniela Carvalhal Garcia

Design da capa: Manuel Pessoa


Imagens da capa: © Shutterstock.com

1.ª edição em papel: outubro de 2020

Rua da Restauração, 365


4099-023 Porto
Portugal

www.portoeditora.pt

ISBN 978-972-0-69068-5
Para todos os milhões de pessoas por esse mundo fora cuja vida foi
cortada cerce pela sida. E para os amigos e familiares que cuidaram deles e
defenderam os seus direitos.
Prefácio

Porque esperámos tantos anos


para publicar este livro?
Escrevi o meu primeiro romance, O Último Cabalista de Lisboa, em
1992 e 1993, depois de completar um ano inteiro de investigação sobre a
vida quotidiana em Portugal no século XVI. Esperava ter criado um romance
cativante e de relevo, mas quando o meu agente literário em Nova Iorque
começou a enviar o manuscrito às editoras, em breve se tornou evidente que
elas consideravam a localização – Lisboa em 1506 – um problema fatal. No
ano seguinte, o livro foi rejeitado por mais de dez editoras americanas.
Todas diziam que estava muito bem escrito, com uma narrativa empolgante,
mas que os americanos não comprariam um livro sobre uma coisa passada
em Portugal quase quinhentos anos antes. Embora o meu agente tenha
prometido continuar a tentar encontrar uma editora, comecei a ficar
extremamente deprimido. Tinha levado mais de três anos a completar o
projeto, e parecia cada vez mais evidente que nunca chegaria às livrarias
nos Estados Unidos, nem na Grã-Bretanha. Foi então que uma escritora
minha amiga me deu um conselho excelente; disse-me que, em vez de me
dedicar à causa pouco provável de encontrar uma editora para O Último
Cabalista de Lisboa, devia começar a escrever um segundo romance.
Dadas as dificuldades que as editoras americanas tinham com um
romance histórico, decidi escrever uma narrativa contemporânea. Nessa
altura, eu estava a fazer o difícil luto pelo meu irmão, morto de sida em
1989. Pareceu-me natural escrever sobre as minhas experiências com ele, e
sobre a forma como a pandemia da sida lançara uma negra sombra sobre a
vida na área da Baía de São Francisco nos anos 80 do século passado,
quando eu vivia em Berkeley com o meu futuro marido, Alexandre
Quintanilha. Ano e meio depois, tinha terminado o livro, dando-lhe o título
de Unholy Ghosts, Insubmissos, na edição portuguesa. Conta a história um
jovem e talentoso guitarrista clássico do Porto – António – que descobre ter
apanhado o vírus VIH. Fica cheio de medo e entra em desespero. Dado que,
à época, a sida equivalia a uma sentença de morte, o seu professor de
guitarra, de nacionalidade americana, apercebe-se de que o jovem poderá
ter apenas alguns anos para desenvolver uma carreira. O professor decide
então desistir do seu próprio desejo de continuar a trabalhar com António, a
quem se sente muito ligado, de maneira a descobrir-lhe um mentor mais
talentoso, que possa ajudá-lo a progredir mais rapidamente. Os dois
decidem fazer uma viagem até Paris, para convencer um virtuoso
mundialmente reconhecido, recomendado por um amigo, a aceitar o jovem
como aluno. Mas em breve surge um problema: o pai de António – que não
consegue aproximar-se do filho por não aprovar a sua homossexualidade –
insiste em acompanhá-los na viagem. Embora o pai – Miguel – torne bem
claro que quer fazer as pazes com o filho, António não confia nele e fica
cada vez mais furioso e perturbado. E, assim, o romance transforma-se na
história de três viajantes vulneráveis e com os nervos à flor da pele, numa
jornada desesperada até Paris, na esperança – cada um à sua maneira – de
encontrar uma qualquer forma de reconciliação e redenção.
Quando acabei Insubmissos, em 1995, O Último Cabalista de Lisboa já
fora rejeitado por 24 editoras norte-americanas, e o meu agente literário
desistira do projeto. Fiquei desorientado e deprimidíssimo, mas uma ideia
«louca» salvou-me: porque não tentar encontrar um editor em Portugal?
Acabei por enviar o manuscrito à Maria da Piedade Ferreira, da Quetzal
Editores, uma editora sugerida por alguns escritores que conhecia. Umas
semanas mais tarde ela respondeu que tinha gostado muito do livro e que
estava entusiasmada com a ideia de uma edição portuguesa.
Enquanto O Último Cabalista de Lisboa estava a ser traduzido, enviei
Insubmissos para uma pequena editora com sede em Londres. O diretor
disse-me – para grande surpresa e alegria minha – que achava o romance
uma leitura empolgante, e queria publicá-lo o mais depressa possível.
Insubmissos saiu no Reino Unido e nos EUA em 1996, pouco depois da
edição portuguesa de O Último Cabalista de Lisboa. Dada a forma como
ele explora o efeito da pandemia da sida sobre as principais personagens,
revelou-se impossível conseguir críticas ou entrevistas e vendeu apenas o
suficiente para dar um pequeno lucro à editora.
Felizmente, o que aconteceu com a edição portuguesa de O Último
Cabalista de Lisboa foi bastante diferente. Duas semanas depois de ter
saído, chegou a número 1 na lista dos best-sellers. E teve críticas
excelentes. Em consequência disso, a Maria da Piedade perguntou-me se eu
tinha outro livro que ela pudesse publicar. Dei-lhe o manuscrito de
Insubmissos. Cerca de uma semana mais tarde, ela telefonou-me a dizer que
o achara muito comovente. Tinha gostado especialmente das personagens.
Disse-me que teria muito gosto em publicá-lo, mas acrescentou que achava
que não devíamos fazê-lo. Porquê? Ela receava que houvesse represálias
contra mim, por explorar temas que nessa altura eram em grande parte tabu
em Portugal. Resumindo, alguns editores de jornais e revistas
conservadores poderiam muito bem esforçar-se ao máximo para nos
destruir, a mim e ao livro.
Embora uma reação negativa por parte da imprensa me intimidasse, em
breve me ocorreu uma possibilidade pior. Nessa altura, eu ainda não tinha
cidadania portuguesa. Podia dar aulas na Escola Superior de Jornalismo do
Porto porque tinha um visto de trabalho. E se o Ministério da
Administração Interna decidisse não o renovar? Se isso acontecesse, não
teria como ganhar a vida e teria de sair do país. E o Alex teria de deixar de
dar aulas e abandonar todos os seus planos de criar um centro de
investigação científica no Porto.
Sim, a possibilidade de me ser negada a renovação do visto de trabalho
pareceu-nos muito real, a mim, ao Alex e à Maria da Piedade em 1996. Não
será necessário lembrar que, nessa altura, a homossexualidade era
considerada um desvio perigoso por muitos políticos portugueses e outras
vozes de peso. De facto, seria necessário esperar mais catorze anos até a
Assembleia da República aprovar o casamento homossexual e conceder a
igualdade de direitos a cidadãos gay. Além disso, nos anos noventa, quase
toda a gente em Portugal – políticos, jornalistas e outros – se recusavam a
discutir a sida de forma séria.
Eu não podia arriscar-me a ser desancado na imprensa e ver-me
recusada a renovação do visto. Por isso, a Maria da Piedade e eu decidimos
não publicar o livro.
Com o passar dos anos, escrevi muitos outros romances e, basicamente,
esqueci-me deste. Mas quando começou a pandemia da Covid-19,
espalhando-se pela Europa e pela América, eis que outra doença
potencialmente fatal volta a ser o principal foco dos meios de comunicação,
bem como tópico das conversas diárias entre amigos. De repente ocorreu-
me que talvez tivesse chegado o momento certo para publicar Insubmissos.
Os meus editores da Porto Editora concordaram de imediato.
Curiosamente, depois de a minha tradutora, a Daniela, ter iniciado o seu
trabalho, voltei a ter medo de sofrer represálias por causa do livro, embora
Portugal tenha evoluído enormemente desde 1996. Decidi que precisava de
ter a certeza de que a qualidade do livro estava à altura dos meus níveis
habituais, antes de permitir que o publicassem. Ao fim e ao cabo, eu tinha-o
escrito quase vinte e cinco anos antes, quando era uma pessoa muito
diferente, e tinha menos experiência como escritor.
Depois de terminada a tradução, comecei a fazer a minha revisão e
descobri, para grande alívio meu, que a narrativa era concisa e inteligente.
Gostei de verificar que a ação do livro era rapidamente impulsionada pelos
conflitos entre as principais personagens. Também achei a figura do
professor tão perspicaz como espirituosa. Mais importante ainda, a narrativa
pareceu-me inteiramente fiel à minha diversidade de sentimentos nessa
altura.
Claro que todos os livros têm falhas, e sem dúvida que Insubmissos terá
os seus. E, contudo, tenho muito orgulho nele. Agora, ao fim destes anos
todos, sinto que, sem o saber, escrevi um livro muito corajoso e honesto. E
estou felicíssimo por ter uma edição portuguesa. Na verdade, parece ser
uma parte da redenção que as minhas três personagens principais desejavam
encontrar durante a sua viagem até Paris, há tantos anos.

Richard Zimler
Lisboa, 1 de setembro de 2020
Parte I
1
Querido Carlos,

No século VII, o bispo Ferreolus de Grenoble excomungou um pão, que


imediatamente ficou preto e duro como um pedaço de carvão.
Que teria o pão feito para merecer tal destino?
A lenda de Ferreolus não nos dá essa resposta. Mas porque qualquer
tipo de pão, seja em que século for, só pode ser ele próprio, o crime deve ter
residido na sua própria natureza – a sua panidade.
Não é preciso fazermos nada para sermos condenados neste mundo. Era
essa a mensagem que o bom do nosso bispo quis passar aos cristãos de
Grenoble. Um homem, tal como um pão, pode ser castigado – até mesmo
condenado à morte – em virtude da sua natureza.
Ou pode ser obrigado a esconder o seu amor até ao fim da vida, como
um leproso em que ninguém ousa tocar.
Estou a falar de ti, Carlos.
Perdoa-me se isto te parece exagerado. Tenho andado a emborcar ouzo o
dia todo. E recordo-me da expressão chocada de um tipo que apunhalei há
umas horas. Não fui a correr atrás dele. Ao fim de algum tempo, a única
coisa que me preocupou foi a mancha de sangue que deixou no fofo tapete
azul onde limpamos os pés assim que transpomos a porta.
Não, não o conheces.
Não creio que vá à Polícia, porque ele é como tu. Mas posso estar
enganado.
Tinhas a certeza de que eu nunca mais te contactaria, não tinhas? Acho
que tenho andado a brincar às escondidas com as palavras. Sei, claro, que
não vais querer nenhuma delas, a menos que te dê alguma coisa em troca.
Por isso, aqui vai… Lembras-te de como andavas sempre a querer saber
quais os segredos íntimos que partilhava com o meu irmão? Ora aqui tens a
tua oportunidade de descobrir; segue em anexo a carta que lhe escrevi há
quase um ano, logo após a minha última ida a Nova Iorque; a mesma carta
que gerou uma discussão tão amarga entre nós, só porque me recusei a
deixar que a lesses. Gostarás de descobrir que nela falo brevemente de ti,
logo no primeiro parágrafo. Por isso, faz-me um pequeno favor e continua a
lê-la. Aqui vai…

Monsaraz, Portugal

Querido Harold,

Acabo de ter um estranho e fascinante encontro que me deixou


verdadeiramente feliz pela primeira vez em vários meses – desde que o
Carlos começou a afastar-se de mim, penso. Tudo começou esta manhã por
volta das dez, quando dei com um velhote na entrada principal de
Monsaraz. Encontras esta vila no mapa que te dei, uns sete a oito
centímetros para a direita de Lisboa, mesmo ao pé da fronteira com
Espanha. Tinha-me levantado pouco depois do cantar do galo, deixando o
Carlos a dormitar na cama, e resolvi ir dar um passeio pelos campos
circundantes. Estava mesmo a regressar à vila quando me deparei com ele.
Era um desses camponeses idosos que inspiram os romances italianos:
minúsculo, peito largo e arqueado, mãos enormes e crestadas pelo sol.
Tinha as unhas sujas, uma barba de vários dias nas faces redondas, e o
cabelo grisalho, cortado rente, espreitava-lhe por trás das orelhas. O casaco
escuro do domingo e as calças de lã apresentavam vestígios de terra. Não
tinha gravata, mas a camisa branca estava abotoada até ao colarinho. Trazia
na mão um chapéu de feltro cinzento com uma larga fita preta, já fora de
moda, e caminhava com movimentos lentos e desajeitados, balançando-se
de um lado para o outro, como se estranhasse a liberdade dos ombros.
Parecia saído de uma fotografia do Portugal profundo do virar do
século.
E os olhos! De um verde-claro, lindos, encovados na pele tisnada, mais
jovens e vivos do que o resto do corpo. Olhos que deviam ser de um santo.
Parecia ter cerca de setenta anos, mas os camponeses envelhecem cedo sob
o peso das charruas medievais que ainda se usam aqui em Portugal. Talvez
tivesse mesmo uns cinquenta e cinco anos, ou à volta disso.
Quando eu ia a passar sob o arco de pedra que guarda a rua principal da
vila, acenou-me com o chapéu. Estava sentado num muro baixo que
delimitava uma casa onde desabrochavam rosas de um vermelho-sangue.
Cumprimentei-o no meu português com sotaque carregado. Ao levantar-se,
apercebi-me de que tinha as calças muito apertadas. Não parecia nada
envergonhado com isso, o que achei bastante comovente. Sabes, é como se
fosse um indício da vida de aldeia – como se as pessoas aqui fossem aceites
com todas as suas excentricidades. Talvez não passe de uma ilusão; talvez
até seja mais difícil ser diferente e vulnerável numa terra do fim do mundo
como esta. Mas o facto é que o seu súbito sorriso desdentado me pareceu
benevolente e generoso. Com um gesto largo de mãos, apontou para o outro
lado da rua, dizendo qualquer coisa que não entendi bem. A sua voz rouca
chegou até mim como uma rajada de vento sobre um monte de pedras.
– Donde é? – perguntou, quando viu que eu não entendera o que tinha
dito.
– Dos Estados Unidos, Nova Iorque – respondi.
– Ah, Ronald Reagan – disse ele, anuindo com ar entendido. Pronunciou
o primeiro nome do nosso ex-Presidente «Runal».
– Exatamente – respondi.
– A minha aldeia – disse o camponês, varrendo o ar com a mão em arco.
Fechou os olhos por um instante, como se uma recordação difícil a isso o
obrigasse, mas a seguir fez que sim com a cabeça e sorriu-me.
Começámos a caminhar juntos, devagar, a minha cabeça pairando bem
acima da sua. Descemos em silêncio a rua, sem olharmos sequer um para o
outro, até que ele parou para oferecer a mão a uma borboleta vermelha e
amarelo-âmbar que abria e fechava as asas no topo de uma erva que se
atrevera a romper por uma fissura entre as pedras da calçada. Ajoelhou-se
lentamente, estendendo a mão devagar e com cuidado. Quando parou junto
à folha onde a borboleta resolvera pousar, o inseto fechou as asas e passou
as patas aguçadas e pretas para o seu novo pedestal. Era como se a criatura
sentisse que ele era uma alma bondosa. Ou como se se conhecessem e
fossem amigos.
O camponês levantou o seu visitante até à altura dos meus olhos.
– Uma borboleta – sussurrou com uma certa gravidade, como se naquele
momento segurasse a réplica minúscula do feiticeiro da aldeia. Lentamente,
estendeu a mão na minha direção. No momento, porém, em que se
aproximou da minha, a borboleta levantou voo. Ficámos a vê-la adejar as
asas até desaparecer no céu. Ele riu-se, baixou a mão e encolheu os ombros.
Foi realmente um grande momento. Eu e ele ali de pé, juntos e em
silêncio, a ver uma borboleta deixar-nos para trás. Mas era apenas o
começo.
Desculpa. Acabo de perceber que me precipitei com o entusiasmo.
Deixa-me descrever-te Monsaraz, para poderes imaginar-me lá junto do
camponês.
Pensa numa aldeia de pedra branca, uma excêntrica coroa de marfim
pousada numa almofada de musgo – a colina mais alta e, em redor,
quilómetros a perder de vista.
Consegues vê-la?
Ou, então, imagina um fresco de Giotto, uma daquelas vilas no cimo de
uma colina da tua tão amada Umbria. Agora pinta todas as casas de branco.
(Sim, parece-me ser uma imagem melhor para ti.)
De longe, ao regressar do meu passeio da madrugada, eu tinha
imaginado miúdos a jogar futebol nas ruas, velhas a conversar à janela.
Mas, depois de entrar na orla da coroa de marfim, caminhando ao lado do
camponês, percebi que a vila estava vazia. Suponho que já todos estivessem
na igreja. Ou, então, ainda a dormir. Afinal, era domingo de manhã, e os
portugueses dormem até tarde ao fim de semana. Não se pode dizer que as
ruas estivessem completamente desertas. Cães hirtos, minúsculos e de
focinho peludo passavam por nós, desconfiados. Um rafeiro castanho com
uns olhos pretos ameaçadores parou e pôs-se a ladrar, até o meu guia o
acalmar com pedidos meigos: «Não ladres… chiu… vá lá… chiu… está
tudo bem. Isso… isso mesmo… vai brincar com os teus amigos.»
Enquanto ele falava, pus-me a espreitar por entre as ameias da muralha
que rodeia a vila. Várias dezenas de metros abaixo de nós estendiam-se
campos verdes e dourados, rumorejantes de oliveiras e sobreiros. Algures
ao longe, sob o halo violeta do horizonte, a fronteira espanhola. O céu era
do azul profundo dos verões sonhados. Uma brisa meiga vinda de leste
trazia até nós um perfume de orvalho e de azeite.
O velho camponês guiou os meus passos pela rua de um branco
ofuscante, ladeada por casas térreas, todas encimadas por telhados de um
laranja-acobreado. Detalhadamente, apontando com um dedo grosso e de
pele curtida, falou da cooperativa das lãs, da igreja, do café, da praça de
touros – todos os pontos de referência construídos com tantos anos de
trabalho e esforço. Levou-me até casa dele, ao fundo da rua, mesmo à
entrada da praça de touros. Junto da fachada, cresciam sardinheiras cor-de-
rosa e ao lado da porta pendia um cesto de verga cheio de papoilas
vermelhas.
– Entre… seja bem-vindo – disse. Ante a minha hesitação, acrescentou:
– Faça favor.
Tive de me curvar para passar por baixo do lintel de granito da entrada.
Lá dentro, ele pendurou o chapéu no gancho de um bengaleiro de madeira
feito com uma canga de boi e recebeu um beijo de uma mulher nova com
um avental escuro. Imaginei que andaria pelos trinta anos; tinha olhos
melancólicos e trazia o cabelo apanhado sob um lenço de linho preto. Não
conseguia vê-la muito bem porque estava escuro, e os meus olhos ainda não
se tinham adaptado à penumbra do interior.
Deu-me as boas-vindas com um sorriso. Encontrávamo-nos num
corredor de teto baixo. Dava a impressão de que tínhamos entrado num
mundo em miniatura, como se o espaço tivesse encolhido. O velho
camponês fez-me sinal para ir atrás dele, abrindo em seguida uma porta
lateral, num gesto que mais parecia uma carícia, e convidando-me a entrar
num quarto ainda mais escuro. Hesitei, mas a jovem assentiu com a cabeça,
como quem diz: «Não há problema. Entre, vá atrás do meu pai.»
No quarto, em cima da cama feita com cuidado, jazia o corpo minúsculo
de uma mulher idosa. Tinha um xaile de malha de lã castanha a cobrir-lhe a
cara e o cabelo, e estava toda vestida de preto, à exceção dos pés nus,
morenos e encarquilhados. Como raízes arrancadas da terra. Três velas
brancas numa pequena mesa de madeira lançavam um jogo de luz e sombra
sobre mim, o velho camponês, as paredes, a mulher morta. Tive a sensação
de que não deveria estar ali. Mas, por outro lado, parecia-me certo. Como se
também a morte fosse uma das razões para eu visitar aquela vila.
A face do camponês era nostálgica enquanto contemplava a mulher, o
tipo de nostalgia que, suponho, advém de meio século de desgostos e
alegrias partilhados. Daí deduzi, claro, que deveria ser a mulher dele –
quero dizer, não uma irmã ou outra parente. Procurei palavras de consolo
em português. Mas o meu anfitrião levou o dedo aos lábios e assentiu com a
cabeça, indicando que não era preciso dizer nada. E deixou-se ficar de pé
junto à cama.
E agora vem a parte que me deixou estupefacto. O camponês juntou os
polegares e, com as mãos, imitou um bater de asas acima do peito da
mulher. O movimento pareceu libertar-se de amarras e depois subir
lentamente no ar até pairar bem acima da cabeça dele. «O corpo é só um
casulo e, ao morrer, a alma volta para Deus como…» Enquanto falava,
aproximou as mãos de mim, pondo-as em concha como se transportassem
uma minúscula oferenda. Sussurrou, como se de um segredo sagrado se
tratasse: «… uma borboleta.»
Depois, sentou-se na cama junto da mulher, de costas vergadas, a rezar.
Enquanto o contemplava, tive a sensação de que a ideia de haver uma alma
era perfeitamente óbvia e indiscutível, tão indiscutível como eu estar
naquele momento numa pequena vila de Portugal. Todos temos uma
borboleta dentro de nós à espera de voar e ser livre, pensava. (Para ti,
cristão praticante, este conceito metafísico pode parecer um lugar-comum e
a metáfora em si soar-te-á a cliché, mas, como te disse, eu nunca penso
nesse tipo de coisas.)
Enquanto o homem rezava em silêncio, fui assaltado por dúvidas,
questionei-me sobre a razão por que me teria ele levado a sua casa e
mostrado a mulher. Sentia-me zangado. Teria ele visto qualquer coisa na
minha expressão que lhe dissesse que precisava de fé? Que direito tinha ele
de interferir comigo, de me fazer ver a morte, ouvir o seu sermão sobre as
almas?
Apetecia-me reaver a distância do turista. Mas sentia-me paralisado ali.
Finalmente, depois de uns dois ou três minutos a vê-lo rezar, senti que o seu
convite era uma dádiva íntima que eu não merecia. Era como se tivesse
atravessado um limiar invisível para uma paisagem mágica, transposto uma
fronteira de que andara à procura sem o saber. E que tanto tu como ele me
tinham levado até lá.
Isto faz-te algum sentido?
Talvez aches que estou louco, mas comecei mesmo a pensar se aquele
homem não seria na verdade uma espécie de santo da aldeia. Olhando para
ele – os pelos grisalhos nas faces, as mãos enormes, as costas curvadas –,
senti um arrepio profundo, como se o calor da minha existência me tivesse
sido roubado.
De repente, a filha dele pegou-me pelo braço e amparou-me até à porta.
Quando ia a sair do quarto, o velho camponês fez-me um aceno e sorriu-me
de novo. «Uma borboleta», repetiu, desta vez apontando para o meu peito.
Era uma espécie de advertência. Aquilo que eu precisava de ouvir há
tanto tempo, desde que soubemos que tinhas sida, talvez mesmo antes – e
também aquilo que tenho tido medo de ouvir. (Será mais difícil deixar de
descrer do que deixar de crer? O que têm a dizer sobre isto os teus filósofos
cristãos?)
Regressado à estalagem, sentia-me prestes a romper em lágrimas,
acabrunhado pelo peso da responsabilidade. Era como se todos os relógios
do mundo tivessem subitamente parado e estivessem à espera de que eu
pronunciasse um encantamento para voltarem a contar o tempo. E, contudo,
era como se regressasse a casa. Como se estivesse na Maplewood Road, a
caminho da casa da mãe e do pai. Como se estivesse prestes a encontrar
segurança e proteção.
Será essa a essência da fé – a certeza irracional de que estamos em
segurança e de que alguém vela por nós?
Qual será a grande responsabilidade que vem com este tipo de fé?
E outra coisa. Sei que vais compreender, porque partilhamos a mesma
atração infantil pelo mundo das cores, mas juro-te que havia outra borboleta
vermelha e amarelo-âmbar pousada nos degraus brancos que conduzem à
entrada da estalagem. Mesmo no degrau mais alto, a abrir e a fechar as asas.
Talvez haja muitas por aqui e nesse caso a coincidência não seja assim tão
extraordinária. Mas antes de levantar voo e desaparecer pareceu-me tão
bonita contra o fundo branco do degrau – uma figurinha de vidro colorido
que tivesse adquirido vida –, que tive vontade de me enfiar naquele corpo
minúsculo.
E é tudo. Não sei quais serão as consequências disto a longo prazo, só
sabia que precisava de te escrever. Sobre a morte e a fé e as borboletas
portuguesas.

P.S. Porque será que me ocorrem os piores pensamentos nos melhores


momentos? Agora mesmo, ao acabar esta carta, cometi o erro de olhar para
o espelho atrás da secretária a que escrevo. A minha própria cara,
especialmente a profundidade translúcida dos olhos, assustou-me. Será que
me atrevo a escrever-te sobre isto? Hesito em fazê-lo, porque não preciso de
mais terror na minha vida. Mas, se quiser cumprir o acordo que fizemos
naquele dia, no teu quarto do Hospital Mount Sinai, de falarmos de tudo o
que é importante, então precisas de saber o que sinto.
Aquilo que sei agora, claro, é que a metáfora da borboleta não serve de
nada, tal como aquelas drogas «promissoras» com que os médicos te
encharcavam. Mas há um medo mais fundo. Porque, mesmo que o
camponês tenha razão, mesmo que todos tenhamos no centro de nós uma
alma-borboleta, a mulher dele era velha. Era tempo de a alma deixar o seu
casulo. Mas não era para ti! Foi simplesmente abusivo da parte d’Ele pedir-
te para te ires embora. Um homem de trinta e nove anos? O meu irmão?
Ainda estavas no princípio da tua metamorfose. As tuas asas ainda não se
haviam formado completamente. Como poderias tu voar até Deus?
«Para com as poesias e não sejas melodramático!», ouço-te dizer. «A
borboleta é apenas uma metáfora. A minha alma não se perdeu no
caminho.»
Tinhas sempre tanta certeza na voz quando falavas destas coisas.
E talvez seja verdade. Não sei. Mas sinto uma dor crescer no estômago
quando me lembro da tua face descarnada no hospital, e que não é metáfora
nenhuma. E quando agora olho para o espelho e vejo o teu reflexo nos meus
olhos cinzentos e cansados, sinto regressar todo o horror dos últimos dois
anos. Meu Deus, como somos parecidos, mesmo que separados por cinco
mil quilómetros e a eternidade!
O mesmo cabelo castanho encaracolado, o mesmo nariz comprido e
direito. O mesmo meio-sorriso quando lutamos contra a tristeza, como se
tivéssemos passado a vida a lutar contra o peso de um inevitável destino de
destruição.
Nunca te contei isto, mas, quando éramos miúdos, às vezes punha-me a
olhar para ti a meio da noite, a ver-te dormir. Enroscado na cama, com a
cabeça pousada na almofada de flanela do Homem-Aranha, não te parecias
nada com o inimigo com quem discutia por causa dos brinquedos, dos
livros de quadradinhos… de praticamente tudo. Não, estavas reduzido
àquilo que era essencial: um rapazinho a sonhar – o meu irmão mais velho.
E desejava que me deixasses amar-te como te amo agora.
Por vezes, imaginava que ficava igual a ti quando deitava a cabeça na
almofada. Éramos dois rapazinhos a fazerem juntos a mesma jornada.
E esse é o terror mais profundo. Ponho-me a pensar até que ponto
seremos parecidos nos anos que aí vêm, agora que já cá não estás e eu
continuo a avançar para os quarenta, cinquenta, sessenta anos… vou deixar-
te para trás, perder mais de ti a cada ano que passar, talvez deixe de te ouvir
na minha voz, de te ver dormir à noite quando pouso a minha própria
cabeça na almofada. E a tua alma também vai voar para longe. O espaço
que ela ocupa em mim vai mirrar. A memória encontrará um recanto seco e
oco. E o espelho refletirá apenas a minha própria face abandonada.
2
Meu bem-amado Carlos,

Agora que acabaste de ler a minha última carta para Harold, já posso
dizer-te que aconteceu uma coisa inesperada e terrível, e que é por isso que
tenho de te escrever. Não, ainda não te posso dizer o que é; as pessoas que
têm medo precisam de se reger por regras bem firmes, senão perdem a
coragem e hesitam; portanto, decidi contar-te tudo por ordem cronológica.
Também tenho de te contar algumas coisas a meu respeito. Em breve,
poderás ser o único que resta, talvez até nos salves a todos, pelo que
precisas de saber tudo.
Imagina um conto de fadas, Carlos: num dia, eu tenho onze anos e estou
a passear de bicicleta com o meu irmão por um bairro que cheira a
churrascos, sombreado por carvalhos. Paramos em Gardener’s Hill, lemos
livros de quadradinhos e jogamos ao «mata» com uma bola de borracha
Spalding. Depois, sentamo-nos no passeio e falamos sobre os nossos
professores.
Agora, imagina um pesadelo: no dia seguinte, Harold está morto. E eu
escrevo-lhe cartas que nunca porei no correio.
Talvez o tempo que decorre entre a infância e a morte seja maior do que
estou a dar a entender, mas foi assim que me pareceu.
Se não é essa a sensação que tens, então, ainda estás a desfrutar da tua
juventude. Ainda bem para ti.
Mas eu não posso continuar à espera de que cresças.
Peço-te apenas que ouças. Mesmo depois dos quase dois anos que
passámos juntos, sei que não me conheces verdadeiramente e não tens
qualquer noção das barreiras existentes entre os vivos e os mortos. Como
poderias então responder à oferta que te vou fazer mesmo no fim desta
carta? Sem compreenderes os perigos que enfrentas, como encontrarás a
coragem para aceitar?
Percebi que tinha de te escrever na segunda-feira, 22 de maio, há cerca
de duas semanas. Está registado no meu diário. Lembras-te do António, o
meu melhor aluno? Ele já estava doente, tinha acabado de dar entrada no
hospital, mas eu ainda não sabia. E, mesmo que soubesse, não teria juntado
logo as peças do puzzle. Eu estava em casa. Na minha casa nova. No
Passeio das Virtudes. Em novembro do ano anterior, tinha saído da casa que
nós partilhávamos para ir viver com uma criatura meio selvagem e de bom
coração chamada Fiama, que tem um apartamento lá, no terceiro andar. Na
noite de 22, descobriu que estava infestada de chatos, pelo que a depilei lá
em baixo e apliquei um líquido de cheiro amargo que comprara na farmácia
da esquina. Logo a seguir, Zero telefonou-me do Pérola Negra. Lembras-te
de Zero, o poeta de barba à Vandyke, aquele que viveu durante uns tempos
em Istambul e está sempre a comer pistáchios? Adiante, quando lhe contei o
acabara de fazer, ergueu as sobrancelhas como um velho lascivo e pôs-se a
puxar o bico da barba. Informou-me em tom doutoral que uma mulher só
deixa um homem depilar-lhe as partes íntimas quando confia realmente
nele. E foi isso que me levou a escrever-te. Sabes, é que Fiama tinha
confiança em mim. E apercebi-me de que, apesar do que eu dizia na altura,
nunca confiei realmente em ti. Não por completo. Desculpa. Quero ter a
certeza de que compreendes. Sou eu que te peço desculpa. Também cometi
erros. Muitos.
Queria escrever e dizer-te isso.
Enquanto eu tratava de Fiama com a minha navalha Wilkinson de lâmina
dupla, ela deitou-se qual Cleópatra, com a cabeça pousada nos braços, os
cotovelos afastados, e os pequenos tufos de pelo das axilas a infundir no
quarto um cheiro ácido. Fiama é uma mulher morena, com uma cabeleira
preta e espessa a descer-lhe desgrenhada pelo pescoço até aos seios grandes
– o tipo de seios que os romancistas descrevem erradamente como firmes.
Tem um rosto um pouco envelhecido para os seus trinta e nove anos e um ar
inteligente. Como sabes, os portugueses sentem-se intimidados por
mulheres inteligentes, e ela acaba relacionando-se com tipos mais
manhosos. Daí os chatos. Mas é uma mulher incrível. Além de tudo o mais,
canta maravilhosamente, com uma voz rouca. Bem merecia que a pintasses,
meu querido, e ainda mais que a levasses para a cama, partindo do princípio
de que estarias disposto a erguer o pincel para uma mulher que descobre
todos os teus segredos só com um olhar. A verdade é que Zero acertou em
cheio; ela sente-se à vontade comigo porque as únicas coisas que quero dela
são uma ocasional massagem nas costas e uma história de embalar. Por isso,
enquanto a rapava, contou-me uma das suas muitas teorias sobre a condição
humana. Acredita que a vida se baseia na visão – quanto melhor vemos,
mais fácil ela se torna. Segundo a sua teoria, à medida que o nervo ótico vai
enfraquecendo com a idade, a vida torna-se invariavelmente mais difícil. A
sua perceção das coisas é um pouco diferente. Por exemplo, diz que com o
passar dos anos cada vez lhe é mais difícil adivinhar a idade dos outros e
que um aluno do secundário, para ela, é exatamente igual a um aluno
universitário. Quando tiver sessenta anos, diz, não será capaz de distinguir
um miúdo de escola ranhoso do presidente de um banco. Resumindo,
segundo Fiama: nascemos, a nossa visão vai piorando progressivamente e,
quando estamos quase cegos, julgamos ser capazes de ver Deus. E depois,
claro, morremos.
Será essa a verdadeira história do meu irmão e da sua conversão ao
cristianismo?
Em geral, vocês, os portugueses, partilham do pessimismo inabalável de
Fiama. É por isso que me tenho dado razoavelmente bem por aqui. E,
contudo, todas as pessoas que conheço no Porto me dizem invariavelmente
que são católicas.
Católicos sem fé – é um conceito interessante.
Quanto a mim, continuo a fazer o melhor que posso para não pensar no
futuro. Tal como nos velhos tempos, quando éramos uma equipa. Antes de
adormecer, enumero as coisas positivas: olhos azul-claros; dedos ágeis;
cabelo castanho encaracolado, quase abundante; um cérebro que por vezes
ainda consegue distinguir um sonho da realidade. E, claro, boa visão.
Talvez já não esteja a cem por cento, mas ainda consigo ler a pauta sobre o
suporte de música sem óculos. E de certeza que não se deteriorou a ponto
de ver Deus. Por isso, talvez Fiama esteja certa; não posso dizer que tenha
tido uma vidinha assim tão má. Tenho algum dinheiro, um emprego, uma
mãe ainda viva. Mais importante ainda, há mais de um ano que não vou a
um funeral, só um dos meus amigos mais queridos parece estar a morrer e
não estou doente.
Pensaste que te escrevia por essa razão? Estavas a fazer figas para que
não fosse?
Imagina, já estamos no fim do meu quarto ano no Porto. Sem ter de
contemplar amigos cuidadosamente aconchegados nas suaves pregas de
veludo dos caixões de pinho, os meses avançam sem nada de especial a
assinalá-los. Parece que só passaram uns dias desde 17 de agosto do ano
passado, quando levaste todos os teus pertences do nosso apartamento
enquanto eu dava aulas, deixando atrás de ti uma carta que começava assim:
«Podias curar-te, mas tens de querer mesmo fazê-lo.» Lembras-te? A
princípio, não entendi. Pensei: Curado de quê, por amor de Deus? Depois
achei que não tinha percebido o teu português. Fui ver a palavra curado, no
meu dicionário Morais. Descobri que – claro – as azeitonas e os doentes
podem ser curados. Mas porque necessitaria de o ser um americano
saudável? Não conseguia perceber. Por ter vivido tanto tempo em cidades
onde qualquer pessoa com a instrução primária tem o bom senso de saber
que as minhas abençoadas perversões não podem ser curadas…
nem com eletrochoques;
nem rezando a Jeová, Alá, Brama, o Grande Espírito ou mesmo a Sean
Connery;
nem com terapia de aversão;
nem com cristais mágicos ou cogumelos psicadélicos;
nem a ver a Oprah Winfrey entrevistar maricas infelizes de todos os
Estados da União, todos os dias, durante uma década;
nem a entoar mandalas machistas escritas por Robert Bly1 num transe
induzido por testosterona, sentado na posição do lótus sobre um morro de
arenito no Deserto Sonora;
nem chutando Prozac, ao mesmo tempo que devoro lata após lata de
atum;
e nem sequer vendo vídeos de adolescentes asiáticas a fumar cigarros
pela vagina num bar de Banguecoque para europeus ricos e snobes (como
certa vez me foi sugerido por um psiquiatra francês que tive o desprazer de
conhecer em Fire Island).
Depois percebi que acreditavas mesmo no que tinhas dito. Soltei uma
gargalhada; até aí não me apercebera de que me apaixonara por um
dinossauro. Diz-me, Carlos, tens pesadelos em que um asteroide embate
outra vez na Terra, destruindo toda a tua microcéfala família de gigantes
monstruosos?
Fui violado e abandonado por homens melhores do que tu, por isso, não
foi por ter ficado assim tão magoado que não te escrevi nem telefonei nestes
últimos nove meses. Não, não tentei contactar-te porque centenas de
milhares de pessoas andam mesmo a tentar encontrar a cura para uma
doença bem pior do que desejar intensamente um beijo de um homem ou
um curto passeio pela cidade de Sodoma. Sabes, desprezei-te mais do que
alguma vez poderás imaginar por teres usado a palavra cura com toda essa
maldita ligeireza.
Em nome de todos os mortos e moribundos que conheci, digo-te (com
toda a compaixão que consigo reunir pelo teu dilema): vai-te foder.
Vamos voltar a recordações mais agradáveis?
Lembras-te de como costumávamos voltar do Pérola Negra à meia-
noite, depois de um chá de verbena, e arrancavas os jeans e te deitavas na
cama com as pernas para cima. Ou será que tudo isso foi cuidadosamente
etiquetado como «Grande Erro», fechado num cofre de aço e escondido
debaixo do soalho do teu estúdio em Lisboa?
Ainda hoje, quando digo o teu nome para mim próprio, a primeira coisa
em que penso é naquele momento, pouco depois de começarmos a dormir
juntos, em que me acariciaste as sobrancelhas com a ponta dos dedos como
se estivesses a afagar as mais frágeis e suaves lagartas, e disseste: «Gostava
de me tornar parte de ti.» Nunca ninguém mo havia dito, e nesse momento
não pensei que fosse apenas uma frase bonita. A ponta dos teus dedos
desceu-me pela testa e pelo nariz, contornou-me o queixo, continuou pelo
pescoço e a clavícula… Os teus olhos negros e sérios disseram-me que
estavas a estudar um corpo – um corpo qualquer – pela primeira vez na
vida. Depois de trinta e três anos a evitar o mundo físico, deve ter sido uma
descoberta enorme. Os teus quadros mudaram depois disso. Puseste de
parte os círculos resinosos, os pontos e rabiscos que andavas sempre a
vender nas ruas, e atreveste-te a pôr figuras nas tuas telas.
Na verdade, decidiste tentar comunicar com outras pessoas pela
primeira vez. Fiquei comovido quando começaste a pintar cenas da vida de
um rapazinho chamado Carlos que…
Nasceu no hospital municipal de Évora no dia 12 de abril de 1961, às 6
e 37 da manhã, filho de António e Graça Mourão;
sempre adorou bacalhau e favas, e qualquer sobremesa à base de ovos;
descobriu Kandinsky e De Kooning aos doze anos, quando começou a
ter aulas de pintura;
era troçado pelos outros rapazes porque preferia ler as vidas dos santos a
jogar futebol;
espetava paus na terra a segurar as dálias do quintal, para que as suas
corolas em forma de pompom não se dobrassem e partissem com o vento
que soprava do planalto espanhol;
estudou durante um ano na Slade School of Art, em Londres, mas teve
tanto medo de viver numa grande cidade onde nunca se sabe o que pode
acontecer que regressou a Portugal com o rabo entre as pernas;
teve a sua primeira relação sexual com um vizinho chamado Maurício
aos dezasseis anos, mas não repetiu a experiência até conhecer um
professor de música americano, aos trinta e três anos. Eu, claro.
Essas tuas primeiras tentativas de pintura figurativa não eram lá muito
boas, penso. Maria achava-as péssimas, se bem me lembro, e recusou-se a
exibi-las na sua galeria. Mas isso não tinha importância; estavas a aprender
a amar-te a ti próprio e a apaixonar-te.
E ser um bom amante é mais importante do que ser um bom pintor.
Se não acreditas em mim, talvez ainda não tenhas visto morrer gente
suficiente; uma lápide funerária não mente sobre a insignificância da
carreira mais brilhante!
Queres ver como me lembro de muito mais coisas a teu respeito?
A pele grossa e calosa da planta dos teus pés.
Os ténis Reebok que chiavam quando tivemos de voltar a pé para casa
do concerto de June Tabor, e estava a chover.
Ensinares-me a comer piza de garfo e faca.
Dois expressos no Pérola Negra todas as manhãs. Chá de verbena antes
de dormir.
Os estudos para quadros que costumavas levar para a cama à noite e
que, de manhã, encontrava debaixo do teu travesseiro. O barulho que
faziam quando, por acidente, se amachucavam entre nós. (Sabes que
guardei na minha cómoda todos os que encontrei. Estão aqui comigo agora,
debaixo das meias.)
Ver-te a pintar, de tronco nu e sujo de tinta nas faces e na testa.
O teu amor pelos cães de outras pessoas, a maneira como costumavas ir
ter com eles na rua, afagar-lhes as orelhas e deixar que eles te lambuzassem.
Tu a trazeres-me as refeições à cama quando tive gripe.
O postal de uma escultura de Jean Arp que me enviaste quando foste a
Nice e que assinaste «Tocando-te para sempre…».
A fotografia que te tirei com o cabelo todo penteado para trás, em que
estavas igual a Tyrone Power.
O cheiro a tabaco nos teus dedos de camponês.
Eu a dar-te a comer quartos de maçã Granny Smith, quando tinhas as
mãos cheias de tinta e não podias tocar na comida.
Tu a acordares assustado a meio da noite, agarrando-me ambas as mãos.
Vês como registei tanta coisa na memória, Carlos? É uma loucura,
suponho, mas gostaria de saber ainda mais sobre ti. Sinto-me enganado por
teres sempre pintado os contornos à tua volta com pinceladas tão grossas.
Agora, enquanto sussurro mais uma vez o teu nome, estamos os dois
deitados naquela praia de areias douradas com mais de um quilómetro,
perto de Tavira. Estamos nus, temos a testa perlada de suor e os corpos
relaxados porque estão quase 38 graus e acabámos de explorar mutuamente
as nossas sombras mais fundas na cabana de colmo com portas azuis que
alugámos, e estamos agora tão cheios de sono que mal conseguimos manter
os olhos abertos. Em voz lenta e arrastada, lês-me poemas. Adormeço, e os
meus sonhos levam-me para uma terra cheia de oliveiras e orvalho. Acordo
e fico a ver-te dormir, e então espalho areia quente sobre o teu braço e
comovo-me com a tua beleza. Então, penso na gratidão que a tua mãe deve
ter sentido ao dar-te à luz.
Será que as boas recordações atraem o contrário?
Usando contra mim a descrição jocosa que fiz da minha própria pessoa
como parte de uma subespécie em risco (Homo frequentemente erectus),
dizias na tua venenosa carta de despedida: «Porque não te deixaste ficar na
América, onde tu e os teus amigos pervertidos estão destinados a extinguir-
se, e não nos deixam a nós em paz, porra?»
Sempre associei essa inspirada pergunta àquele momento em que
indagaste se eu tinha saudades de alguma coisa nos Estados Unidos, como
se isso fosse impossível. E eu respondi: «Tudo, até o metro de Nova Iorque
e as autoestradas de Los Angeles.» Mas agora admito que era uma mentira
destinada a fazer-te sentir culpado, porque já estavas a afastar-te com
desculpas do tipo «muito trabalho e coisas que eu nunca entenderia sobre
Portugal, visto ser um estrangeiro da classe média incapaz de compreender
o que não pudesse ser comprado ou vendido».
A verdade é que a única coisa de que tenho saudades é o basquetebol.
Não de ver, mas de jogar. Aqui não há campos públicos de basquetebol. E,
além dos miúdos da escola, as pessoas só jogam basquete em clubes
privados. Ninguém com mais de vinte e cinco anos faz qualquer tipo de
exercício físico, à exceção de uma geração de velhos que redescobriram a
saúde depois de quarenta anos a fumar dois maços por dia de cigarros sem
filtro, e que agora andam a correr maratonas.
Sem dúvida que daqui a vinte anos vais comprar um fato de treino azul
e branco e juntar-te a eles nas corridas.
Não tens consciência disso, mas aqui em Portugal vocês são abençoados
pelo oceano Atlântico; faz toda a diferença – brisas frescas à noite, praias
de areia fina e quente. Então e a tua amada Riviera Francesa, onde sonhavas
tornar-te famoso e dar entrevistas no terraço do teu palácio junto ao mar?
Esquece. O Mediterrâneo não é um oceano, nem sequer um mar a sério. É
um charco estagnado que fede ao lixo da Europa inteira. Com praias de
lodo e seixos. Faz mergulho em Saint-Tropez e voltas à superfície com
gonorreia apanhada de algum turista alemão de Wuppertal que mijou na
água.
Porque faço eu estas tristes tentativas de ser engraçado?
Não será óbvia a resposta? Tenho medo de que pares de ler se não te
oferecer de vez em quando uns miminhos feitos com ovos e açúcar.
Parece-me absurdo admiti-lo agora, mas, quando vim para a Europa,
tencionava escrever o grande livro de viagens judeu: de Lisboa a Moscovo,
e tudo o que fosse de origem hebraica entre as duas cidades. Falei-te nisso,
mas provavelmente não te recordas porque a minha vida sempre te
entediou. Quando ainda estava em Los Angeles, não parava de pensar nesse
projeto, nem dormia – até cá chegar. Mas, como disse à querida Libby, a
minha agente, antes de cada um seguir o seu caminho, em breve descobri
que se tinham acabado as viagens. Porque se acabara o sexo. Houve um
tempo em que era possível saltar de cama em cama até Istambul, gay ou
hétero, judeu ou gentio. Mas isso agora acabou. Portanto, para quê? Para
ver mais uma catedral barroca construída em cima de uma sinagoga em
ruínas? Outro cemitério com lápides escritas em hebraico? Não conseguia
simplesmente continuar a escrever sobre cultura ou história.
É provável que seja pecado dizer isto, mas a cultura e a história sem
sexo são praticamente inúteis.
Agora, de cada vez que vejo uma igreja ou uma sinagoga, entro em
narcolepsia. Quanto aos castelos, igrejas e casas de campo da Europa, estão
todos assombrados por nazis e estalinistas arrogantes a tentar descobrir o
que hão de fazer com as suas patéticas vidinhas até conseguirem derrotar os
social-democratas. Agora que o sexo está às portas da morte, se quisermos
ver o mundo, temos de alugar um vídeo.
No que diz respeito ao que te está a aparecer nesta página, é apenas um
jogo. Como o basquetebol. Atiro as palavras para o ecrã e espero que tudo
corra pelo melhor. Deixa-me explicar-to de forma mais clara, Carlos: é
tanto por ti como por mim que me rebaixo em prosa. Tu queres vestir um
hábito de freira e rastejar até um canto do teu estúdio e rabiscar em telas
sujas grafitti de partir o coração sobre a solidão. Mas eu decidi finalmente
não deixar que te escondas com tanta facilidade. Não sei se me atrevo a
contar-te o meu plano. Mas é bastante óbvio. Tenho esperança – aquela
esperança louca dos alquimistas medievais – de tropeçar numa sequência
mágica de palavras, numa fórmula, que talvez consiga que a tua vida de
chumbo se transforme em ouro ou, no mínimo, te ressuscite. Talvez eu
descubra por acaso uma oração secreta que possa mesmo transformar-te no
Golem2 de Lisboa. Serás tu a salvar-nos a todos, incluindo a mim, a
defender-nos dos microscópicos cossacos que arremetem contra os nossos
guetos em S. Francisco, Los Angeles, Nova Iorque, Rio de Janeiro,
Londres… Mesmo agora, em Lisboa e no Porto. Como havemos de saber
quem será escolhido para nos salvar? Talvez seja um pintor cobarde de
Évora que, se a luz não for muito forte e lhe pentearmos o cabelo para trás,
lembra um ator bissexual de Hollywood dos anos 40.
Não percebes? Estou a falar de ti, Carlos… de ti.

Hoje é dia 7 de junho. Consegui chegar até aqui, o que, na verdade, é


uma espécie de milagre. Durante muito tempo, era como se a intempérie
assolasse apenas a América e alguns pontos da Europa, poupando sítios
remotos como Portugal. Mas, desde que António adoeceu, já se sente por
estas bandas uma chuva miudinha. Por isso, se continuo a atirar palavras
para o computador, não é por achar que isso vai ajudar. É porque a minha
constituição não é tão forte como dantes e tenho de ficar em casa quando
chove a cântaros. E, na verdade, não há muito para fazer, exceto ver
televisão. Mas o único aparelho aqui em casa, uma Philips antiga a preto e
branco, com botões dourados, está no quarto de Fiama, em cima da
cómoda. Ela adormece a ouvir as notícias, nua e em posição fetal debaixo
do cobertor amarelo. E confesso que prefiro não ver as notícias com ela
porque gostava de morrer a acreditar que há um mundo real algures por aí, à
espera de que o encontremos.
Já passou um ano sobre a morte de Harold e ainda há dias em que
acordo de manhã a sentir as gotas do seu suor frio na minha testa.
E, quando bebo o primeiro café do dia, as lesões arroxeadas que lhe
desfiguravam o rosto vêm dar-me um nó no peito.
Harold é meu inimigo. Tal como António.
Porque o incluo na mesma frase em que falo do meu irmão morto? Vou
buscar o ouzo à despensa de Fiama e já te digo. Ah, assim é melhor; parece
que a verdade nos escorre mais facilmente dos dedos quando o nosso hálito
exala um aroma a funcho e álcool.
Perdoa-me por te dizer isto, mas uma vida a camuflares-te fez de ti uma
pessoa de compreensão lenta, querido Carlos, por isso aqui vai: porque foi
António que chamou o Anjo da Morte para o meu refúgio. Estragou todos
os meus planos de avestruz, de vir enterrar a cabeça nas areias de Portugal.
Por isso, para onde hei de ir agora? Para África? O continente está a
sufocar, prestes a exalar o último suspiro.
E, mesmo que encontrem a cura para os seus males, será demasiado cara
para aqueles pobres diabos poderem pagar. Para a América do Sul?
Demasiado calor, à exceção da Argentina. E os argentinos têm tanto orgulho
em ser brancos que me dá vontade de ser aborígene e cuspir-lhes vermes
para cima. Por isso, talvez deva ir para a Austrália e escavar a terra em
busca de opalas. Ou para a Nova Zelândia e aprender a cantar tirolês de
pernas para o ar. Mas não quero ir para lado nenhum onde falem inglês.
Prefiro viver num sítio onde não consiga entender totalmente o que as
pessoas dizem, porque assim posso fingir que são mesmo criaturas sensíveis
e inteligentes.
Como vês, Carlos, ando esfomeado de realidade, mas vivo num mundo
de fantasia. É um paradoxo, eu sei. Mas, não seja por isso; também a minha
vida é. E a tua – para dizer o mínimo, meu rapazinho escondido no armário.

1
Poeta, ensaísta e ativista norte-americano cujo livro João de Ferro: Um Livro sobre Homens (1990)
constitui o texto-chave do movimento dos homens mitopoéticos. (N. da T.)
2
No folclore judaico, ser animado e antropomórfico criado inteiramente a partir de matéria
inanimada – em geral, barro ou lama. A mais conhecida história de um golem envolve o rabino Judá
Loew ben Betzalel, de Praga, que no século XVI teria criado uma destas criaturas para defender os
judeus do gueto de ataques antissemitas. (N. da T.)
3
Estava combinado António ter uma aula comigo na terça-feira, dia 23 de
maio. Mas na manhã desse dia deixou-me uma mensagem no atendedor
automático dizendo que estava doente e que tinha de cancelar. Pela voz,
pareceu-me bem. Devolvi-lhe a chamada, mas não atendeu. Não fiquei
preocupado.
Na quarta-feira, uma secretária do Conservatório veio ter comigo a meio
de uma aula. Disse-me que o pai de António tinha acabado de telefonar. O
miúdo estava no Hospital de Santo António com sintomas de zona.
– Mas normalmente não se vai para o hospital por causa disso –
respondi.
Ela encolheu os ombros.
– Deve ter sido um ataque muito forte.
Anotei o número do quarto e fui vê-lo à hora da visita, quatro da tarde.
Cruzei-me com o médico dele, um homem baixo com ar desleixado e barba
mal aparada, no hall que levava ao quarto de António. Chamava-se Silva.
Disse-me em tom tranquilizante que António estava com zona e gripe ao
mesmo tempo. Tinha sido hospitalizado para prevenir uma pneumonia. Não
corria qualquer perigo imediato.
Fiquei aliviado.
A seguir confidenciou-me que tinha mandado fazer um teste de VIH e
que dali a uma semana já teria resultados.
Imaginem o coração a despenhar-se e a cair-nos aos pés.
Acordei numa cama de metal. Uma enfermeira de pele pálida e mãos
borrachosas afagava-me o rosto. Trouxe-me um copo de água.
Tinham-me posto uma gaze na testa. Conseguia senti-la.
– Bateu com a testa no chão – informou-me ela. – Não lhe toque.
A ferida foi limpa e desinfetada.
Apanhei um táxi para casa sem ter visto António.
Não conheces o meu amigo Pedro, porque tinhas medo de conhecer
qualquer um dos professores da minha escola, não fossem eles ficar com a
ideia de que tu e eu éramos amantes. Mas deves ter-me ouvido falar dele.
Um metro e cinquenta e oito de altura.
Uruguaio.
Camisolas e jeans coloridos. Sandálias de couro sobre pés nus quando
está calor; sandálias com meias brancas de lã quando está frio.
Um nariz azteca em gancho; narinas dilatadas quando toca guitarra.
Hétero. Quero dizer, hétero mesmo. Não como tu, porque não precisa de
fingir a explosão no cérebro quando o seu desejo vai ao encontro do mundo
antimaterial de uma sombra húmida de mulher.
Incomoda-te a minha linguagem?
Ótimo.
Na quinta à tarde, depois das aulas, Pedro apresentou-me a um brasileiro
chamado Ricardo. Encontrámo-nos na sala de chá do Museu de Arte
Contemporânea do Porto. Mandámos vir scones e Earl Grey. Sentámo-nos
lá fora, ao sol, debaixo do magnífico caramanchão de glicínias que tu
achavas demasiado exuberante porque tens o medo da exposição que assola
todos os que não saem do armário. Rimos à gargalhada como americanos
em férias e brincámos com ditos jocosos o melhor que pudemos. Ricardo
tem olhos verdes amendoados, um rosto magro e astuto, e cabelo preto e
comprido apanhado atrás num rabo de cavalo.
A mãe é japonesa e o pai, brasileiro.
É professor de História num liceu do Bairro Vila Indiana de São Paulo.
Gosta de ir a festas de carnaval com máscaras de nariz comprido e
pontiagudo.
Não consegue dormir se tiver um único mosquito no quarto.
Gosta do silêncio de Portugal.
Quando o vi pela primeira vez, estava sentado a uma das mesas na sala
de chá do museu. Emanava uma confiança e elegância naturais que me
fizeram sentir inveja. Admito que teria gostado de dormir com ele. Talvez
porque ainda tivesse a gaze na testa e me sentisse tão ansioso.
Parei de o desejar mal abriu a boca. Apesar do sotaque brasileiro e o
rabo de cavalo, falava com a gravidade de um intelectual europeu. Disse
que tinha quarenta e um anos e que era a primeira vez que vinha a Portugal.
Quando lhe perguntei porque escolhera ser professor de História, respondeu
que o irmão mais velho fora morto pela polícia de segurança da ditadura
brasileira em 1969.
Desde o assassínio do irmão, Ricardo passara a interessar-se por tudo
aquilo que o recordasse dele, considerando vital não se esquecer de nada,
nem mesmo do seu cheiro.
Foi a expressão que ele usou: nem mesmo do seu cheiro.
Parei de beber o chá. Olhámos fixamente um para o outro. Seria o
reconhecimento de uma alma gémea?
Essa preocupação com a memória levara Ricardo a investigar a História.
– Porque está o cavalo de Troia tão fixo na nossa mente? – perguntou-
me. – Porquê Auschwitz? O que foi que nós esquecemos, e porquê?
– Não sei – respondi. – Qual é a razão?
– Também não sei. Ainda estou buscando a resposta. Essa é uma das
razões por que aqui estou.
Recomecei a beber o chá. Fixei-o de olhos semicerrados, desconfiado,
como se escondesse qualquer coisa.
– Não tenho mesmo uma resposta – repetiu.
– Alguém quer lançar uma hipótese? – perguntou Pedro.
O brasileiro comeu o resto do scone, levou uma mão à cabeça e pôs-se a
puxar o rabo de cavalo. Olhou diretamente para Pedro e disse:
– Acho que tem a ver com a nossa perceção do tempo como uma coisa
através da qual nos movemos. Acredito que nos lembramos, porque, se não
nos lembrássemos, deixaríamos de nos aperceber do tempo dessa maneira.
Seria como uma coisa estática. Por outras palavras – acrescentou, irritado
consigo mesmo por ser tão obscuro –, fazemos um contrato connosco
próprios. – Olhou fixamente para mim. – Dizemos: «Vou-me lembrar do
meu irmão, ou dos meus pais, ou de qualquer acontecimento terrível.» E
porquê? Para podermos continuar a avançar para o futuro. Se não
assumíssemos esse compromisso, ficaríamos presos num mundo em que o
tempo deixou de correr. E os seres humanos não conseguem viver assim.
Agora eu estava mais interessado nele do que nunca, porque conseguia
ver que era tão louco como eu.
– Então, e porquê Portugal? – perguntei. – O Brasil não tem história que
chegue para si?
– Descobri recentemente que o meu pai e os seus antepassados eram
judeus… judeus de Portugal que passaram séculos escondendo suas
crenças.
Seria esta mais uma coincidência a ligar-nos? Com um significado
oculto?
Qual quê?!
Pedro apresentara-nos precisamente por essa razão. Todos os eLivross
políticos da América do Sul são casamenteiros natos sem emenda possível.
Nessa altura, a confissão de Ricardo irritou-me, porque andava farto da
História dos judeus. Por isso, fui um pouco grosseiro e pensando nos nossos
irmãos mortos, atirei:
– Com tudo o que temos vivido, quem se rala com o que aconteceu aos
nossos antepassados há já tantos anos?
Pedro pôs-me a mão no braço, como um progenitor que suplica ao filho
que seja razoável.
– O que sabes tu sobre a Cabala? – perguntou. – Esse é que é o
verdadeiro interesse do Ricardo.
Revirei os olhos.
– Não vale nada. Se queres uma filosofia útil, lê os livros do Stephen
King.
Pedro franziu-me o sobrolho porque é delicado, inteligente e não gosta
de que eu diga palavrões nem coisas estúpidas.
– Achas que os enigmas do Zohar ajudaram os judeus a escapar à
Inquisição? – inquiri. – E os manuais de Joseph Ashkenazi… impediram os
meus tios-avós de ir parar aos campos da morte? Será que um amuleto com
um nome secreto de Deus ajudou verdadeiramente quem estivesse a morrer
de sida?
– A esperança… – respondeu Ricardo. A voz dele era ansiosa. Agarrou
na chávena de chá como se planeasse fechar a mão e esmagá-la. Cheguei-
me atrás na cadeira, esperando que não me atirasse com estilhaços de
porcelana. – Há muito tempo, precisei de uma filosofia qualquer que me
vinculasse à esperança – disse. – E não tinha uma. Essa é outra das razões
por que estou aqui. Não foi só meu irmão. A polícia de segurança me
deteve pouco depois de o deter a ele e me levou para uma casa perto de
Iguape. Queriam que eu lhes dissesse coisas sobre meu irmão. Um
homenzinho de bigode, tão insignificante que nem repararíamos nele se o
víssemos na rua, pôs-me elétrodos em diversas partes do corpo… as partes
mais sensíveis. E a dor foi tal que nunca conseguiria descrevê-la. Foi então
que perdi a esperança. Lembro-me do instante em que ela se evaporou de
mim. Era como se num momento estivesse prenhe e no momento seguinte
tivesse dado à luz um nado-morto. Estava vazio. Não recuperei a esperança,
nem sequer ao fim desses anos todos. Teria preferido mantê-la. Só que não
sei como ressuscitar um nado-morto.
Baixei os olhos por instantes, e ele recostou-se. Quando o encarei de
novo, perguntei:
– Mesmo que a esperança seja uma ilusão?
– Mesmo assim.
– Então diga-me uma coisa… – E foi nessa altura que os meus receios
sobre António saíram em catadupa: – Tenho um aluno no hospital. É um
miúdo lindo. Acabou de fazer vinte e quatro anos. Nasceu para tocar
guitarra clássica. Nada tenho para lhe ensinar, exceto talvez um pouco sobre
música e paixão. Mas provavelmente está a morrer. Dormiu com um
drogado, um colega dele, e agora está de saída. Vai receber o resultado do
teste de VIH daqui por seis dias. Tenho medo de já saber a resposta. Rezo
para estar enganado. Mas talvez não lhe restem mais de cinco anos de vida.
Acha que ele deve ter esperança? Deveríamos dar-lhe esperança?
– Você nunca foi torturado – disse Ricardo.
Tenho-me exercitado para ficar calado quando me sinto furioso. Pedro
começou a falar, mas eu ergui a mão como um polícia sinaleiro a parar o
trânsito. Foi a minha vez de me inclinar para a frente.
– Não, e por isso não posso ser aceite no seu clube – respondi,
agressivo.
– Não se trata de um clube. O que eu ia dizer é que, se tivesse sido
torturado, compreenderia que a esperança é uma espécie de magia.
– Vá-se lixar! – Estou tão farto de gente que acha que a vida tem um
núcleo mágico, que de cada vez que oiço essa conversa sinto os ouvidos a
sangrar.
– Ou talvez seja auto-hipnose – continuou Ricardo. – Não conheço os
mecanismos do cérebro. Mas imagine que você conseguia transformar seu
corpo em esperança… forjar uma armadura de esperança. Seria um objetivo
digno de alcançar, não acha? E talvez não o salvasse de um campo da
morte, ou de um sacana brasileiro a dar-te choques elétricos, nem salvasse a
vida do seu aluno… mas você morreria em paz.
Levantei-me de um salto, e a cadeira caiu com estrondo. No entanto,
falei com a calma de quem conhece o seu argumento de trás para a frente.
– Não me percebeste de todo. Não quero morrer em paz. Quero morrer
zangado. Estás a perceber? Quero esbracejar, e gritar, e dar pontapés. E é
precisamente aí que quero chegar… Quero que também o António morra
zangado. Porque deve. Tem vinte e quatro anos. Percebes? Não quarenta,
como tu e eu. Vinte e quatro anos, porra!
Pedro tapou os ouvidos com as mãos, porque eu começara a gritar.
Disse-me uma vez que já tinha essa sensibilidade antes de ser torturado,
mas acho difícil de acreditar. Todo ele tremia. Por isso, voltei a sentar-me,
cobri as mãos dele com as minhas e olhei-o bem nos olhos negros. Era um
ser tão frágil.
– Desculpa – disse-lhe.
Baixámos as mãos ao mesmo tempo. Levei as dele aos lábios e beijei-
as. Pedro é um bom amigo, e bem sei que sou capaz de ser insuportável.
Encarei Ricardo.
– Vi demasiado em Nova Iorque para poder continuar lá sem chutar
Valium para a veia – disse eu. – Por isso, primeiro fugi para Los Angeles e
depois, quando o meu irmão adoeceu, mudei-me para Portugal. Teve sida e
levou tempo de mais. Morreu cerca de dois anos e meio depois. E agora, ao
fim de um ano da mais abençoada liberdade, de não saber de nenhum amigo
que tivesse de dizer ao mundo o adeus definitivo, o Anjo da Morte
descobriu-me. Se tivesses chegado há duas semanas, terias dado comigo
razoavelmente feliz. Livre. Mas agora, através do António, fui apanhado.
Acabou-se. Estou furioso porque não conheço as palavras secretas que lhe
restaurem a saúde. Tocar guitarra, escrever, até amar… nada serve de nada.
Anos e anos a aprender música, e a escrever, e em busca do beijo de um
amante perfeito, e continuo sem saber qual a palavra que ajude um rapaz
que terá de se despedir de um mundo que mal teve a oportunidade de
conhecer.
Deixámo-nos estar ali em silêncio, porque as confissões têm o efeito de
calar as pessoas com feridas profundas. Pela primeira vez, apercebi-me do
falhanço que eu tinha sido por causa desta minha raiva.
Até me tinha impedido de te escrever. Nesse momento, soube que te
enviaria esta carta e tive um vago pressentimento da forma que ela iria
assumir.
– Desculpem, isto pode parecer pouco coerente depois da minha
explosão – confessei. – Mas agora só quero ser cuidadoso com os outros. O
que nos resta, afinal? Depois de torturas, e hospitais, e doenças do cérebro,
o que nos resta senão tentar aliviar o sofrimento alheio? E nem sequer isso
consigo fazer bem. Como podem ver. – Tirei da carteira um recibo da caixa
automática e escrevi o nome de um velho poeta judeu que um dia conhecera
e que me dissera que queria reunir mil pessoas que tivessem sido abusadas e
torturadas no cimo de uma montanha em Portugal, virá-las para Jerusalém e
a entoar em uníssono o nome de Deus. Ele não sabia o que iria acontecer,
mas estava seguro de que mudaria as coisas para sempre. – Este tipo é
bastante estranho – disse a Ricardo, estendendo-lhe o papel. Orienta-nos
para a Lua e impulsiona-nos para seguir em frente. E diz que há um bando
clandestino de cabalistas a viver perto de Belmonte. Costumam reunir-se e
sabem os nomes secretos de Deus. Segundo me contou, sentam-se virados
para Jerusalém e rezam para que o Messias volte a descer à Terra. Se esse
bando de malucos te aceitar, imagino que te ensinarão a respirar e a dançar
e a comer, talvez até a fazer amor como eles.
Sorriram dos meus disparates. O brasileiro agradeceu-me e voltou a
encher-me a chávena de chá.
– Quero conhecer o seu aluno – disse.
– O António?
– Posso vê-lo? – perguntou.
– Para quê?
– É uma questão de memória. Daqui a uns anos, quero lembrar você e
ele juntos.
Senti de repente a garganta tão seca que nem consegui falar. Pedi
licença e fui à casa de banho, nas traseiras do salão. Postei-me diante do
espelho, procurando em vão sinais do rosto do meu irmão e lavei a cara
com água fria até recuperar a voz. De regresso à mesa, disse a Ricardo:
– Continuas a querer conhecê-lo?
Fez que sim com a cabeça.
Eram quatro e meia da tarde, pelo que as horas de visita já tinham
começado. Levei-os até ao Hospital de Santo António. No carro, aqueles
sul-americanos torturados iam tão calados e reverentes que senti vontade de
parar o carro e fugir.
No hospital, Ricardo, Pedro e eu juntámo-nos aos pés da cama de
António, e o brasileiro fez ao miúdo uma pergunta que mudou tudo. De
repente, deixei de pensar em fugir para a Nova Zelândia, ou a América
Latina, ou África.
Os meus pés ficaram imóveis, enraizando-se no chão de granito.
E havia um rufar de tambor constante no espaço oco deixado pela morte
do meu irmão, que me dizia: Tenho de ficar com o António.
É espantoso como uma pessoa nova que irrompe na nossa vida nos pode
mudar o futuro.

Querido Carlos, perdoa-me por acabar a meio esta parte do jogo; não
quero falar sobre a pergunta de Ricardo, nem a resposta de António neste
momento. Nem sequer consigo descrever o rapaz deitado na cama de
hospital. Por isso, espera só uns minutos e falaremos disso depois de eu
beber um pouco mais de ouzo e estarmos os dois mais calmos.

Acabo de perceber que me precipitei um bocadinho. Deve ser porque a


minha cabeça não está a funcionar bem desde que comecei a ouvir o som
das botas microscópicas dos cossacos invisíveis que se escondem debaixo
da minha cama. Esqueci-me de que nunca quiseste ouvir fosse o que fosse
acerca de António por causa daquela tua doença chamada ciúmes que te
roíam quando me disseste: «Deus me livre de ser verdadeiramente gay –
acontece é que, para mim, um buraco é um buraco, mais nada.»
Achaste que estavas a ser muito espertinho?
Apesar do teu desprezo por tudo o que viesse dos Estados Unidos, eras
muito americano nesse teu egoísmo, sabes? Todas as conversas tinham de
girar à volta do teu ego solar de artista. Não conseguias ver para além da
ponta da tua pilinha, e muitas vezes nem tão longe.
Achavas mesmo que eu ia acreditar na tua imitação juvenil de Gertrude
Stein? Mas respeitei os teus desejos e nunca te falei de António, e muito
pouco disse sobre o meu passado. Pelo menos nada que pudesse levar-te a
afastares-te de mim.
Terei cometido um erro?
Talvez na verdade tu quisesses mesmo saber essas coisas.
Talvez te tivessem assustado, mas ter-te-iam levado a apertar-me a mão
com muito mais força debaixo dos lençóis quando acordavas de um
pesadelo.
4
Em retrospetiva, tenho a impressão de ter andado à procura de António
toda a minha vida. Não de alguém por quem me pudesse apaixonar
loucamente, como tu (isso para mim foi sempre demasiado fácil), mas de
um homem cujas ações me ajudassem a preencher o vazio. Consigo ouvir-te
rir disto. Mas tanto melhor; a tua condescendência fará com que continues a
ler.
Quando ainda era um aprendiz cheio de entusiasmo juvenil, bastava que
alguém com quem eu tivesse dormido me passasse o braço pelo ombro
numa sala de cinema, ou me desse um pequeno beliscão na face antes de
adormecermos, ou me escrevesse um bilhete de duas linhas no papel
timbrado do escritório para eu me apaixonar. Um desses simples gestos de
afeição, mais a partilha dos nossos corpos em lençóis de algodão de boa
qualidade, e ficava pronto a entregar o meu coração qual Cyrano de
Bergerac judeu que nunca tivesse ouvido falar em ser cauteloso e ser
magoado por um amigo.
Era uma característica minha. Os meus olhos azuis transbordantes de
confiança deviam lembrar o olhar de corça ferida de Mary Pickford a
pensar no marido aviador, perdido numa tempestade. Mais de um homem
me disse que eu estava mesmo a pedi-las – traição, nódoas negras, sermões
bombásticos sobre a natureza das coisas; coisas essas que eram, entenda-se,
a crueldade do homem para com o próprio homem. O primeiro de todos foi
Vincent, formado em Andover e Harvard, fã de Mozart e sempre a snifar
poppers, que comprou o falso sotaque inglês por $10.95 num outlet da
fábrica BBC da sua vila natal – Lexington, Massachusetts; que conhecia
Jackie Kennedy pessoalmente e que uma vez tomara o pequeno-almoço em
Gray Gardens com cerca de cem mulherengos da família Bouvier a lamber-
lhe as mamas; que, assim que me conheceu, me leu A Vénus das Peles, de
Masoch, às quatro da manhã, depois de me ter comido duas vezes por trás e
devorado todo o sémen armazenado como leite de camela nos meus jovens
tomates de dezoito anos. Ele não acreditou, mas nessa altura eu era virgem.
A Vénus das Peles, claro, tinha por tema as fantasias dele, as fantasias de
um homem vestido apenas com uma pele de marta e de chicote na mão,
dominando o seu escravo. Levei muito a sério as palavras da Vénus: «O
amor… perdoa e sofre tudo, porque tem de o fazer. Não é o nosso
julgamento que nos guia; não são nem as vantagens nem os defeitos que
descobrimos que nos fazem abandonar-nos a nós próprios, ou que nos
repelem. É um poder doce, suave, enigmático, que nos leva a continuar.
Deixamos de pensar, de sentir, de querer; somos levados por ele, e não
perguntamos de onde vem.»
Enquanto estive com Vincent, aprendi a aceitar esta versão do amor
sempre sofrida. Fiz a minha própria cama, acabando por levar com uma
porta do Upper East Side na cara, quando me tornei uma fonte de trabalhos
e embaraço, mas, especialmente, quando deixei de ser divertido. Sabes, é
que divertido é um objetivo fundamental para um certo tipo de americanos,
sejam hétero ou homossexuais, e, se as coisas deixam de ser divertidas,
então preferem crivar-nos o corpo de balas. Da próxima vez que ouvires
sociólogos a especular sobre o motivo que terá levado um americano a
entrar num restaurante com uma metralhadora e matar tudo o que mexesse,
lembra-te de que o fez simplesmente porque não se estava a divertir.
Pelo menos, Carlos, esse não é um dos teus defeitos.
Consigo ver Vincent a ler-me antes de dormir, em tom poético e com
maneiras afetadas, a cabeça apoiada numa almofada de penas da
Bloomingdale’s e os óculos bifocais na ponta do nariz. Era um homem
tenso e nervoso, como um terrier, com um corte de cabelo à escovinha.
Mas tinha os olhos de Sal Mineo, mãos fortes e peludas, e um pénis que
lembrava uma boca de incêndio. Depois de fechar o livro por essa noite,
costumava cair-me em cima como um martelo pneumático, durante dez
minutos de loucura, nunca mais do que isso, porque não havia nada mais
importante para ele do que armar-se em macho e ser aquilo a que chamava
eficiente. Como na velha anedota australiana, a ideia que Vincent tinha de
preliminares consistia em rosnar: «Segura-te!» Mas não importa,
adormecíamos seguros e enroscados um no outro como duas peúgas gastas.
De manhã, ele tirava a mão da minha cintura, entrava em modo de
advogado de divórcios e dirigia-se para o escritório Pierce and Hollbrook
para infernizar a vida a uma qualquer pobre divorciada que nunca esperara
ser feita em fanicos pelo assassino a soldo de fato Armani que o marido
tivera o bom senso e os muitos dólares para contratar. Vincent, que me
levou ao Sign Of The Dove e pediu veado e uma garrafa de Bordeaux de
1957 de 125 dólares; que me fez sexo oral enquanto subíamos de elevador
para o Rainbow Room, e que não se importava de que nos apanhassem a
beijar-nos antes de irmos ver Os Dois Cavalheiros de Verona no Festival
Shakespeare, em Central Park.
Vincent que, quando já não estava assim tão divertido, me pediu para
lhe fazer um broche no salão de chá deserto do Carlisle Hotel à meia-noite,
e que fez uma birra digna da Maria Callas e me entornou chá quente no colo
quando me recusei. Vincent, que deixou de me convidar para o visitar no
seu escritório num 17.° andar da Sixth Avenue para ver a vista, que
começou a fingir que eu não estava na cama quando o telefone tocava, que
deu de caras com Gore Vidal no Rizzoli’s, que conhecia de uma festa na
«pequena e confortável casa de campo» de Edward Albee, em Montauk, e
me apresentou como «um pequeno fura-vidas da Universidade de Nova
Iorque com um belo traseiro». Comentários que, todos juntos, me levaram a
contemplar o suicídio nos seis meses que durou a nossa descida vertiginosa
para a humilhação, mas nenhum dos quais me levou a deixá-lo, porque
estava apaixonado. E porque pensava que o amor significava entregar a
nossa independência e o nosso corpo sem questionar, sem sequer suspeitar
de que há notas de rodapé no contrato.
E depois, certa manhã, vestiu um dos doze fatos da Barney’s, deu o nó
na gravata Hermès e acordou-me com uma navalha de madrepérola que
comprara num bazar israelita encostada à minha garganta. «Conheci uma
pessoa. Pega nos teus ténis malcheirosos e nos teus jeans imundos, e é bom
que não estejas cá quando eu regressar», atirou com desprezo. Ficarás a
saber como eu era ingénuo, querido Carlos, quando te disser o que lhe
respondi: «Mas eu amo-te.» Estás a rir-te à gargalhada? Devias. Que
simplório que eu era! Imagina achar que o amor era uma resposta
adequada! Imagina ser tão estúpido que nem por uma vez sonhei que ele
andasse a vender o seu sotaque inglês a outra pessoa. Fez-me um favor ao
expulsar-me. Meu Deus, quando penso no que tive de aturar… Mas o que
vais achar ainda mais engraçado é que, depois de Vincent veio Pietro,
professor de Literatura Italiana no Hunter College, romântico, cinquenta e
dois anos de idade, cabelo grisalho, molto elegante, que me fazia olhinhos
por cima da espuma do cappuccino, no Café Dante, e que me levou, com o
seu sorriso confiante, ao apartamento onde vivia, na West 11th Street, e que
me cantava baladas napolitanas todo nu, sobre o tapete persa que comprara
«pelo preço de um broche», em Isfahan, e que prometeu «construir uma
vida à volta do nosso… amore». Pietro que costumava amarrar-me à cama
de barriga para baixo com algemas de cetim e que nunca me magoava, mas
que uma noite se embebedou com Fra Angelico e que, depois de muito se
contemplar ao espelho, explorando as rugas mais recentes que lhe
marcavam a cara, resolveu bater-me selvaticamente com o primeiro tomo
de um dicionário italiano-inglês de cinco volumes só porque lhe apeteceu,
enquanto me gritava que eu era «demasiado jovem e bonito, e precisava de
ser destruído!» De Pietro fiquei com uma costela partida que ainda me dói
quando chove. Depois dele, veio Moishe, o motorista de táxi israelita
bissexual, que engendrou Miller, o sósia do James Dean, que engendrou
Steven dos trinta centímetros; que finalmente engendrou o querido Mark,
licenciado em Filosofia pela Columbia. Mark que, durante um mês, me
comprou flores diariamente e que eu achei mesmo que seria o meu parceiro
para a vida, mas que certo dia me pediu para me ir embora, pouco antes de
celebrarmos seis meses juntos, dizendo-me que abrira uma vaga de
professor assistente no Carlton College, no Minnesota, e acrescentando
«Não vou levar-te comigo», como se eu fosse bagagem.
Mas isso curou-me. Depois, satori!3 Para a maior parte das pessoas, o
sexo nada tinha a ver com amor, e para as outras o amor nada tinha a ver
com a verdade. Ponto parágrafo. Entendido! Depois disso experimentei
homens pela América e Europa fora, porque tinha compreendido que desta
vida só poderia esperar a euforia momentânea de um linguado bem dado e o
cheiro de uma noite de sexo. Era a única forma de conseguir preencher o
vazio da ausência de amor. Não te atrevas a sentir pena de mim, Carlos.
Tive sorte, fui um dos mais sortudos. Porquê? Porque toda esta
promiscuidade ocorreu antes de 1980 e da invasão de cossacos invisíveis
que cheiram a pneumonia e te deixam lesões na pele com as suas
minúsculas espadas. Quando apareceram os primeiros, eu já estava exausto
e desistira de encontrar alguém com quem partilhar a minha cama para
sempre. Praticava o sexo mais seguro possível, ou seja, nada de sexo, à
exceção do que a minha mão direita me pudesse dar. As pessoas safam-se
como podem, e eu comecei a dizer que «a amizade é o que realmente
importa».
E foi aí que a minha sorte falhou. Porque, mal tinha acabado de me
render a essa racionalização outrora conveniente, os meus amigos
começaram a ser decapitados pelos cossacos invisíveis. O primeiro a ir foi
Malcolm, o viciado em gelado de hortelã e chips de chocolate, poeta
surrealista de Toronto, que chegou à Village em 1976, com ar de Cary Grant
com uns quilos a mais, e que acabou como uma vítima escanzelada dos
Campos da Morte. Em testamento, deixou-me toda a sua poesia por
publicar, um candelabro inglês de prata do século XVII e a cadela, uma
border collie com doze anos chamada Nancy – em homenagem a Nancy
Drew –, que deixou de reconhecer o dono, o boneco de trapos repleto de
manchas na pele a quem eu dava puré de maçã e papa de brócolos no seu
último mês de vida. Foi Malcolm quem me avisou, logo em 1983: «Isto vai
piorar muito antes de começar a melhorar.» Será que a dor adicional de ser
um dos primeiros a partir lhe permitiu ver que muitos dos nossos amigos
em breve seriam apenas cinzas? Quando fui viver para Los Angeles, em
1990, já todos os meus colegas da equipa de basquetebol de West Village
tinham morrido, assim como uma dúzia de fãs e membros da claque.
Tirando eu, os cinco iniciais partiram muito antes de terminar a primeira
metade do jogo.
Os uniformes de Bob Jenkins, de Henry, o Colosso, Davenport, de Izzy
Epstein e de Carlo Foggia estão todos pendurados num cabide especial no
Madison Square Garden da minha memória.
Bob foi o tipo mais esperto e mais talentoso que conheci; fazia
imitações perfeitas de Patty Duke, Kevin Costner, Cher, do Pato Donald, do
Bullwinkle e de mais uma centena de desenhos animados. Tinha uma pele
negra que ficava dourada ao pôr do sol. Escreveu um musical com cowboys
gays que nunca foi representado – chamado Oklahomo – e trabalhava na
Columbia University, numa vertente qualquer de Álgebra Linear tão
avançada que só havia três pessoas no mundo capazes de falar com ele
sobre isso. O seu maior sonho era lamber o suor dos dedos dos pés do seu
único deus, Julius Erving.
Henry, o Colosso, convenceu-me a escrever artigos de viagens dizendo:
«Tu viajas, és relativamente esperto e reparas em coisas em que mais
ninguém repara, por isso, porque não?» Contactou uns amigos no Dallas
Morning News e conseguiu que me publicassem os primeiros artigos,
embora fossem uma merda. Pretendia atravessar os Estados Unidos, antes
de ficar doente de mais, porque queria morrer no deserto do Novo México e
deixar o corpo entregue aos abutres, fruto de uma ideia romântica que o
levava a pensar que assim iria acabar como um esqueleto de marfim polido
numa tela de Georgia O’ Keeffe.
Izzy fora expulso do Yeshiva College em 1982 por ter tido a compaixão
de alimentar um esfomeado rabi ortodoxo chamado Koppelman na casa de
banho da cave da biblioteca principal com o seu impressionante apontador
do Antigo Testamento. Foi ele quem me iniciou na leitura da Cabala e me
ensinou o alfabeto hebraico, escrevendo-me as letras nas costas da mão e
deixando-me em testamento um exemplar autografado de A History of the
Marranos, de Cecil Roth, e um talismã russo-judaico do século XVII contra
os demónios Lilith e Asmodeus.
Depois havia Carlo, o nosso armador principal, que tinha apenas um
metro e setenta e que teria preferido ser um jogador semiprofissional nos
confins da Dakota do Norte a ser um advogado especializado em Direito
Empresarial com um rendimento de cem mil dólares ao ano. Todos os
domingos às oito da manhã, vinha ter comigo ao campo da esquina da 6th
Avenue com a 4th Street para jogarmos uma hora, antes que os miúdos do
secundário invadissem o campo. Ele driblava como Isaiah Thomas e fazia
os mais incríveis lances de dez metros uns atrás dos outros. No leito de
morte agarrou-me na mão e disse: «Se aprenderes a avançar pelo lado
esquerdo, nunca mais perdes num mano a mano com ninguém.»
Claro que, nas duas semanas seguintes, me levantei às seis da manhã e
fui cedo para o campo, onde aprendi a avançar pela esquerda como Bernard
King, mas Carlo morreu na mesma.
E, contudo, de todas elas, a morte de Henry foi a que mais me abalou; o
seu sonho de se transformar em marfim no deserto do Novo México
parecia-me tão bonito. E acabou de maneira tão feia, impedido pelos pais e
irmãs de sair do hospital e enterrado como qualquer outra pessoa, num
cemitério florido em Croton-on-Hudson. Nessa altura, já eu deixara de ir a
funerais, por isso fizemos uma cerimónia privada em casa – só eu, Nancy e
um altar composto por duas velas brancas e um poster de Georgia O’
Keeffe com uma caveira de animal abandonada no Deserto Sonora.
Depois da morte de Henry, perdi toda a resiliência e comecei a rezar ao
Deus que se aninhava dentro daqueles pequenos comprimidos amarelos a
que a minha mãe me habituara. Ele, o deus do Valium, anestesiava-me a dor,
e era como se a vida fosse uma caminhada sobre dunas de areia quente.
Um psiquiatra que conheci através de Carlo sugeriu uma «change de
locale». Por isso, aluguei uma carrinha Honda e fui para Los Angeles com
Nancy, quando abriu uma vaga como professor de Música na Escola
Montessori onde Phil, o ex-amante de Henry, o Colosso, era diretor.
Contudo, por essa altura já as pessoas andavam a morrer em catadupa em
Los Angeles, pelo que, catorze meses mais tarde, quando Nancy teve cancro
do fígado e foi eutanasiada, resolvi ir para a Europa.
Estávamos em maio de 1991. Harold começou a ficar muito doente
pouco depois, e eu descobri que Ele, o deus do Valium, era volúvel e que
precisava de rezar cada vez mais para conseguir atravessar os dias.
Harold, que partilhou um quarto comigo durante os primeiros quinze
anos da minha vida, que se queixava de que eu tinha sempre a luz acesa,
que estava sempre a fazer troça de mim por eu gostar de desporto e porque
ele se sentia infeliz e desconfortável no seu próprio corpo.
Harold, que era tão precoce que, aos sete anos, usava palavras como
«ostensivo» e que metia medo aos adultos, que achavam demasiado
inteligente a maneira fixa como ele os olhava, como se tivesse acabado de
sair do Children of the Damned4.
Harold, que tinha joelhos ossudos e era relegado para a equipa do
«mata» nos dias de campeonatos interescolas e gozado pelos outros miúdos
por ter orelhas de abano e ser magricela, e que começou a fazer exercício já
muito mais velho, mas perdeu toda a sua recém-descoberta musculatura
quando os cossacos atacaram.
Harold, cuja vingança contra todos nós era a sua maldadezinha cáustica,
que estudou Dante e Psicologia em Swathmore como se alguém o fosse
chicotear caso não tivesse sempre nota máxima em tudo, que passou meses
a trabalhar como voluntário com um miúdo autista chamado Eric até
conseguir que ele tocasse no nariz com o dedo, que fez a sua tese de
doutoramento sobre o ensino para crianças surdas à nascença, que
encontrou Deus e perdeu um pouco da sua causticidade, e que só confiou
em mim seis meses antes de morrer, quando finalmente percebeu que eu
não era um palerma qualquer com sorte em tudo e que alimentava a secreta
esperança de que o irmão mais velho morresse.
Harold, que não conseguia estar na mesma sala com os nossos pais sem
explodir como uma granada gay, que me disse um dia «Se não fosses tu, eu
seria órfão» e que me obrigou a jurar que não o abandonaria.
Mas abandonei. Vim viver para Portugal e só fui a Nova Iorque visitá-lo
cinco vezes nos seus dois últimos anos de vida, e três delas já ele estava tão
mal que podia morrer a qualquer instante.
Quando o sofrimento de Harold finalmente se extinguiu, o meu médico
português disse que eu precisava de me desabituar do Valium, antes que
«chocasse acidentalmente de frente com um autocarro». O que não teria
mal nenhum, pensei, não fosse o trauma que causaria ao pobre do condutor
para o resto da sua vida.
Sabias que tentei chegar até ti através de uma morna neblina de Valium
durante metade do tempo que passámos juntos?
Peço desculpa também por isso, Carlos. Quem sabe quantas das tuas
críticas interpretei como ataques à minha pessoa e quantas vezes te magoei
com a única intenção de me defender?
Entretanto, foram tantos os conhecidos que foram arrastados para o
Submundo que só a lista levar-te-ia a pousar este papel, por isso, não vou
continuar. Porém, recordo-os a todos. Porquê? Para ser capaz de seguir pelo
futuro adentro, como me disse o brasileiro Ricardo? Será que é isso? Ou
para poder passar um qualquer conhecimento sagrado que ainda não
aprendi? Porque é tão importante assim?

Alguém que eu pudesse ensinar… não sabia na altura, mas acho que
aquilo de que estava mesmo à procura quando vim para a Europa era um
homem de coração e espírito abertos que quisesse aprender. E alguém que
me pudesse ensinar também, porque em novo tinha aprendido todas as
coisas erradas e precisava de as desaprender. Não que eu hoje saiba quais as
coisas certas. Só agora começo a ter uma vaga ideia do significado da tua
vida e da minha.
E qual será ele?
Paciência, Carlos, ainda agora iniciámos esta correspondência.
Então, comecei por ensinar a António o funcionamento da guitarra.
António, com os seus olhos de gato cor de avelã, que deixa uma linha
penugenta por baixo do nariz porque tem medo de cortar uma narina.
Com as chaves sempre a tilintar quando desce a rua.
Jeans apertados a contornar umas coxas musculadas, esculpidas pelo
futebol e pela ginástica. As mãos enfiadas nos bolsos da frente.
Meias brancas e grossas que absorvem o suor juvenil até tresandarem a
chulé.
Cabelo louro-escuro encaracolado.
Sentado aos meus pés, a implorar-me que lhe leia qualquer coisa em
inglês «só para ouvir o som».
A roer as peles das unhas.
A ensinar-me palavrões em português como piça, pito, cona, cabra,
enquanto se rebola no chão a rir com a minha pronúncia grotesca.
A perguntar aos empregados qual o ano da Coca-Cola que eu peço ao
jantar, só para eles sorrirem e nós podermos rir juntos.
A saltitar alternadamente do passeio para a rua quando deambulamos
pela Baixa.
Um ninho de pelos castanhos no meio do peito, que é o melhor sítio
para lhe fazer cócegas e obrigá-lo a defender-se e a lutar, e a seguir a dar-
me o beijo mais profundo que se possa dar.
Decorando músicas novas tão depressa que me pergunto se não será um
alienígena metamorfoseado de humano.
Concertos que espera dar em Carnegie Hall e na Ópera de Paris, e até no
Estádio das Antas, no Porto, antes de um desafio de futebol entre a equipa
da casa e um rival lisboeta.
António, que será famoso e homenageado e reconfortado pela bondade
de estranhos se…

Quando entrou na sala de ensaio para ter a audição comigo, eu não sabia
nada disto, claro. Não fazia ideia de que ele iria mudar a minha vida.
Embora tenha percebido imediatamente que era gay. Ele também me topou.
Trocámos um olhar urgente e esperançado, que é o aperto de mão natural da
nossa espécie, e depois ele desviou o olhar, à procura de segurança. Nessa
altura, tinha o cabelo cortado tão rente que parecia um recruta do Exército,
com medo do halo suave que lhe pudesse enquadrar o rosto.
Carlos, conheces o Retrato de um Homem com Barrete Vermelho, de
Ticiano, que está na Frick Collection em Nova Iorque? Claro que sim; a
menos que tenhas deitado para o lixo o livro que te ofereci pelos teus trinta
e quatro anos. O homem do barrete vermelho é igual a António. Vai lá
depressa à estante e vê.
Com ciúmes? Não devias. Ele tem juventude e encanto. Mas tu tens
uma tristeza e uma frustração infinitas nos olhos, e isso é muito mais
sedutor.
Também o pai de António tem um sósia na Frick Collection. Porém,
para já, não nos adiantemos, esse belo malandro ainda não entrou na nossa
história. Se quiseres, dá uma olhadela ao livro todo e tenta adivinhar com
qual dos retratos ele se parece.
O Cavaleiro Polaco, talvez? Espera um pouco, que eu já te digo.
Adiante, António trazia os seus eternos jeans e o blusão de couro
coçado para a audição. Não havia dúvida, nem no meu espírito nem no dele,
de que eu lhe despertara a atenção, mas eu não tinha viajado por nove fusos
horários, de Los Angeles a Portugal, para acabar com um surfista incipiente
à procura de uma desculpa para sair do armário e que depois fugiria
disparado à vista da primeira onda perfeita a enrolar-se na praia. Além
disso, sempre considerara que os alunos estavam fora de questão. Portanto,
nunca imaginei que pudéssemos partilhar a mesma almofada.
A acrescentar a isto, ainda estava com medo de me lançar no mundo
sexual depois de dois anos de abstinência.
Apesar de tudo, não vou mentir-te; tinha uma vontade desesperada de
enfiar a língua na boca dele e tentar chegar-lhe à alma.
Ele fixou os olhos em mim, os olhos de um miúdo doce, mas de arestas
ásperas, imaginando se obteria os favores de um homem mais velho. Num
idioma que se aproximava do inglês, perguntou:
– O que quer para eu tocar, Professor?
– Qualquer coisa – respondi.
– Eu não compreender.
– Toca qualquer coisa de que gostes, que seja breve e não faça muito
barulho. E, por favor, que não seja espanhola. Acabo de chegar de Espanha
e, se ouço outra imitação de tourada para guitarra, ainda fico maldisposto.
Gotas de suor perlavam a testa do meu príncipe. Despiu o blusão,
dobrou-o e pousou-o no chão junto à cadeira. Naqueles gestos, adivinhei os
anos de repreensões da mãe.
Trazia uma camisa branca bem passada. Inclinou-se para tirar a guitarra
do estojo e depois colocou-a sobre os joelhos. Pareceu-me de madeira de
balsa, comprada no ToysRus de Gaia, no outro lado do rio; o aspeto era
horrível; as cordas estavam a um centímetro dos trastes. Imaginei o som de
um cavaquinho. António respirou fundo, como se se preparasse para nadar
cem metros livres, e endireitou as costas.
Ao pôr as mãos em posição, lançou-me um sorriso rápido e
envergonhado, como quem se desculpa.
– Eu nervoso – disse.
– Eu Tarzan, tu Jane – respondi.
– O quê?
Sorri.
– Vai correr tudo bem. Toca lá.
– Eu muito nervoso.
– Vamos só ver o que acontece. Não entres em pânico, força.
Fitou-me longamente, como que à espera de que eu dissesse qualquer
coisa capaz de lhe tirar toda a ansiedade. Quando viu que não, os olhos
ficaram vítreos. Recostei-me na cadeira e cruzei os braços. Desviei o olhar.
É espantoso como não me apercebi da importância que esta audição tinha
para ele.
Limpou o nariz com as costas da mão. Eu tossi.
Finalmente, começou a tocar a primeira Gavotte da Sexta Suite para
Violoncelo, de Bach. Foi medonho; a mão direita dedilhava as cordas
estridentes do cavaquinho do ToysRus como se estivesse a arrancar penas
do rabo de um peru. Fiz-lhe um sinal de aprovação com a cabeça, por
curiosidade perversa e porque precisava de estragar o dia a alguém. Mas
António, Deus o abençoe, acabou mesmo por se acalmar. Tendo em conta a
qualidade do instrumento, tocou com uma técnica admirável. E, mais
importante ainda, juntou as notas em frases reconhecíveis sem nunca perder
o andamento.
– Chega! – gritei de repente.
O rapaz ergueu os olhos para mim. Observei-o de sobrolho carregado.
Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
Fiquei a ver as gotas presas nas pestanas e pensei no meu irmão a
despedir-se de mim.
– Põe essa guitarra no chão! – ordenei, largando o inglês e passando ao
português.
Ele pousou-a em cima do blusão.
Sentia-me livre para dizer o que quisesse, porque ele não iria
compreender as palavras inglesas mais complicadas.
– Agora levanta-te, ó tolinho.
Ele deixou-se ficar sentado, boquiaberto.
– Upa, tolinho. – Ergui as mãos como um domador de leões. – Põe-te de
pé!
Ele ergueu-se. Limpou os olhos e o nariz. Aproximei-me dele, tomei-lhe
as mãos frias nas minhas e apertei-as.
– Sempre pensaste que estas eram apenas as mãos de um rapazinho
português – disse-lhe. – Mas são as varinhas mágicas de um feiticeiro.
Porquê? Porque conseguem fazer chegar até nós, atravessando dois séculos,
a música de Bach. Quando tocam nas cordas de uma guitarra, conseguimos
ouvir o compositor a pensar no seu estúdio em Leipzig e a escrever as notas
tão velozes como coelhinhos a saltar uns por cima dos outros na sua toca.
Consegues visualizá-lo lá, com a sua pena febril?
– Eu não compreender – disse ele.
Desapertei um botão da camisa e pousei-lhe a mão no meu peito, sobre
a penugem castanha mesmo em cima do coração.
– Sentes isto? Sentes o meu metrónomo defeituoso?
Começou a respirar devagar e fundo, como se fosse desmaiar. Assentiu
o melhor que pôde.
Os nossos rostos estavam apenas a uns trinta centímetros de distância.
– Quando sentires o coração de Bach, então, estarás a tocar esta peça
como deve ser. Compreendes?
Claro que tudo aquilo era conversa de chacha, mas o que importava era
a teatralidade com que o dizia.
Assentiu outra vez. Os jovens gay não resistem à afeição de homens
mais velhos, mesmo que moderadamente atraentes, por isso estreitei-o
contra mim, num abraço apertado. O corpo dele ficou hirto, mas depois
devolveu-me o abraço e derreteu-se todo.
Contudo, antes que aquilo fosse mais longe, afastei-o, mantendo-o à
distância de um metro.
– Se vais estudar comigo, tens de saber uma coisa. Sou uma besta5. –
Ele não compreendeu. – Eu besta – disse, apontando para mim.
– Besta?
Nessa altura, desconhecia ainda que «chato» teria sido uma boa
tradução, mas conhecia a expressão para «crazy whore», e achei que isso
chegava. E, na verdade, até era mais adequado.
– Eu puta louca – expliquei.
Ele riu-se, soltando de seguida um grande suspiro.
– Olha… – disse eu, apontando para a sua guitarra de brinquedo. – Isto
não presta, é pura merda! – Saltei a pés juntos sobre o raio da coisa. As
cordas gemeram e soltaram-se, lascas de madeira voaram em todas as
direções. Reduzi-a a fanicos. António reprimiu uma exclamação, depois
ficou boquiaberto. Passei-lhe a minha guitarra para as mãos. – Esta, pelo
contrário, não é merda nenhuma. É uma boa guitarra. Uma boa guitarra. –
Dei umas palmadinhas ternas no braço do instrumento quando ele lhe
pegou, depois levei-lhe a mão a afagar o contorno profundo junto à boca. –
Temos de ser delicados. Vai com calma. – Sentei-me. – Agora, começa a
tocar outra vez. E tenta não arrancar penas de peru com a mão direita.
António lançou-se na Gavotte. Ao fim de uns momentos, interrompi-o
porque me apercebi de que o maior problema com que nos íamos deparar
era a sua incapacidade de ouvir as notas à medida que as tocava. Estava
tudo demasiado desligado, demasiado staccato.
– Canta! – ordenei.
– Canto o quê?
– A Gavotte… a melodia.
– A melodia?
– Faz o que te digo.
Cantou como um maricas lisboeta de boas famílias, com medo de
acordar a avozinha da sesta. Disse-lhe que se calasse. Cantei para ele,
zangado, ligando todas as notas como se estivesse a tentar transformá-las
numa cadeia em volta dos seus pulsos.
Chegado ao fim da primeira frase, disse:
– Agora canta tu assim.
Como a maior parte dos portugueses, o rapaz era incapaz de se
expressar abertamente. Parecia ter a voz presa na garganta, como uma uva-
passa incómoda. Só ao cabo de algum tempo conseguiria levá-lo a ouvir a
música que produzia. Valeria a pena o esforço? Enquanto me fitava, vi-lhe
no olhar a enorme vontade que tinha de aprender. E eu sou um filho da mãe
insensível quando estou zangado e com tusa ao mesmo tempo.
– Onde estudaste até agora? – perguntei-lhe.
– Ensino a mim próprio – respondeu.
– Há quanto tempo começaste?
– Há dois anos. Antes disso, também… também… – Falhou-lhe o inglês
e refugiou-se num silêncio frustrado.
– E consegues ler bem música?
– Eu não sei ler música.
– Que queres dizer?
– Eu não leio música – disse, enfático.
– Então como aprendeste a Gavotte?
– Dos discos. – Apontou para o ouvido. – Toco de ouvido.
– Ouviste todas as notas que tocaste?
– Sim.
A ser verdade, tinha um ouvido ímpar, um num milhão. Percorreu-me
aquele arrepio que sinto sempre que encontro alguém particularmente
talentoso ou bonito.
– Estás a gozar com a minha cara? – perguntei. – Que idade tens tu?
– Vinte e um.
– A maior parte dos alunos tem dezoito anos quando entra para aqui.
Porque é que esperaste tanto tempo?
– Eu trabalho com o meu pai. Não temos dinheiro.
– Então diz-me porque queres estudar música.
Encolheu os ombros.
– Eu quero… eu gosto. – Passou a língua pelos lábios, nervoso, e os
seus olhos assustados seguiram-me quando voltei a meter a guitarra no
estojo. – Posso estudar consigo? – perguntou de repente.
– A audição não acabou – repliquei. – Quero que venhas lá a casa
comigo.
– Lá a casa?
– Pois. Ao meu apartamento.
– Agora?
– Não te preocupes. Não é com segundas intenções. – Com o polegar e
o indicador da mão esquerda formei um círculo e enfiei o indicador direito
dentro dele. Falei em inglês como Boris Badenov6: – Professor e aluno não
tuca-tuca. Só música. – Icei-o até ficar de pé e encostei a mão contra o seu
peito, para lhe sentir o coração a bater. Afaguei-lhe os peitorais e dei-lhe
uma palmada na barriga. – Eu professor louco … tu príncipe… príncipe
louro. Não fazeres nada que não quereres fazer. Eu não ser mau contigo.
Mas eu não prometer porque, quando fico revoltado, perco a cabeça. E tu…
tu tentares nunca me magoar de propósito. OK?
Ele não fazia ideia do que eu estava a dizer, mas respondeu:
– OK.
– E a minha guitarra? – perguntou.
– Tenho outra guitarra em casa. Para já, usas essa. Agora, pisa a tua de
novo, para dar sorte. Esmaga-a de uma vez por todas!
– Agora? – perguntou ele. – Quando confirmei com a cabeça, saltou
para cima dela com uma careta cómica, como quem fez uma coisa
deliciosamente mazinha esperando que ninguém veja.
Apanhámos um táxi para minha casa. Ele sentou-se ao meu lado todo
hirto, como se eu pudesse mordê-lo. Queixei-me do bacalhau, das pessoas
que não inspiram confiança e dos engarrafamentos. Ele ia anuindo com a
cabeça, as mãos bem presas entre as pernas. Uma vez no meu apartamento,
arranjei um lugar para ele no sofá, lançando a roupa de Fiama para cima da
cama dela. Depois, pus a tocar os discos da Edith Piaf, um atrás do outro:
L’Accordioniste, Milord, La Vie en Rose, Les Trois Cloches… Piaf tem um
vibrato que consegue abafar uma orquestra inteira e um legato capaz de
encadear as palavras das suas canções, transformando-as nas mais
encantadoras correntes ferrugentas. António tinha de aprender de imediato
essa técnica e também do legato, caso contrário não iríamos a lado nenhum.
Mas ele continuava sentado com as mãos entre as pernas, sem proferir
palavra, como um rapazinho ansioso, a morrer de frio à porta da casa dos
pais. Eu não queria observá-lo e pus-me a olhar pela janela. Finalmente,
depois de termos ouvido vários exemplos, ajoelhei-me ao lado dele:
– Quero que cantes qualquer canção que conheças, mas canta-a como se
fosses a Piaf. Compreendes? – pedi-lhe e demonstrei o que queria com o
refrão de Like A Prayer, a tua canção preferida da Madonna, Carlos.
Lembras-te? – Agora tu – rematei.
– A mesma canção?
– A que quiseres.
António tirou as mãos de entre as pernas e pousou-as nos joelhos.
Fechou os olhos. Cantou o hino nacional português. Tinha uma voz linda,
uma voz masculina que lhe subia do fundo das entranhas, uma voz muito
para além da idade dele.
– Foi fantástico – exclamei. Acariciei-lhe a face, e ele arregalou os
olhos. – Muito bom. – Sentia-me estranhamente excitado e pensei que isso
se devia ao facto de lhe querer conhecer o cheiro na cama; era óbvio que o
tinha seduzido. Ainda não compreendera que estava a acontecer mais
qualquer coisa. Peguei na guitarra e toquei as primeiras oito notas da
melodia de Les Trois Cloches, com um vibrato exagerado, e a seguir cantei-
as da mesma forma para ele ver a ligação: Village, au fond de la vallée…
Disse-lhe que o vibrato não era um ornamento, que servia para manter o
verdadeiro tom de uma nota. Ele anuiu com a cabeça. – E nada de espaços
entre as notas – sublinhei, com o indicador espetado na direção dele. – Nada
de espaços, porque espaços mucho maus. Agora faz tu. – Passei-lhe a
guitarra.
António só tinha ouvido Les Trois Cloches uma vez, mas conseguiu
tocar todas as notas da melodia com o andamento certo e sem se enganar.
Sabes até que ponto isso é raro, Carlos?
Tem o melhor sentido de afinação que já conheci. É um num milhão.
À medida que ele ia tocando, ensinei-lhe a descontrair o pulso esquerdo
e a abaná-lo para conseguir o melhor vibrato. Lisonjeei-o, gritei com ele,
implorei. Ele respirava fundo para se acalmar. Ao fim de meia hora, tinha-
lhe apanhado o jeito.
Enquanto fui à cozinha buscar vinho para celebrar, ele tocou Les Trois
Cloches, acrescentando notas baixas para fazer a segunda voz. «Isto para
ele é canja. Nunca conheci ninguém com tanto talento. E é um vampiro,
porra, tal como eu!», pensei.
– Agora põe-te de pé e canta outra vez a Gavotte – pedi-lhe, quando
regressei à sala com uma garrafa e duas flutes.
António afastou os pés, como se se estivesse a preparar para levar um
murro. Passei a língua pelos lábios.
O rapaz foi puxar a Gavotte ao fundo da alma e projetou-a pela boca.
Estava tão orgulhoso de si e tão abandonado à melodia, com uma
semiereção tão bonita a avolumar-lhe as calças, que o amei o mais que me
era possível nesse preciso momento e até senti lágrimas de orgulho
embargarem-me a garganta. Fechei os olhos. Por detrás da escuridão das
pálpebras, eu estava numa estação de comboios a ver partir todos aqueles
em cujo leito de morte me sentara, atravessando um ponto de controlo que
não se podia passar. Eu era o único sobrevivente. «Estou vivo», pensava, «e
conheci um rapaz que tem a grandeza nos dedos!» Era o contraste que me
deixava triste e feliz ao mesmo tempo; aqui estava eu, deixado para trás,
mas a escutar a doce voz de um jovem português que ainda não vira morrer
ninguém que amasse e que tinha todo um futuro pela frente. Quando
terminou, disse-lhe que aprendera bem, e depois passei-lhe o copo de
champanhe.
– Ao António, que vai conhecer a grandeza – brindei.
Ele sorriu, envergonhado. Pusemo-nos a beber, de pé, medindo-nos um
ao outro como dois acrobatas antes de um espetáculo. Estávamos a
ponderar se poderíamos confiar um no outro sem rede.
– Se não dou o salto agora, vou explodir – anunciei.
Ele continuou a olhar para mim, bebendo em pequenos goles.
– Temos de o fazer antes que passes a ser oficialmente meu aluno –
expliquei. – Depois, não será possível.
Ele continuava a olhar para mim.
– Dá um gole no vinho, mas fica com o líquido na boca – pedi-lhe.
Ele assim fez. Aproximei-me, encostei o meu peito ao dele e agarrei-lhe
as nádegas. Beijei-o e suguei-lhe o líquido da boca. António gemeu como
se tivesse sido ferido. O seu membro inchou contra a minha perna. Dei um
passo atrás. Ele tinha os olhos abertos e assustados.
– Saíste-me um animalzinho bem musculado – disse eu.
Depois disso, devorámo-nos simplesmente um ao outro. Não há
nenhuma outra palavra que consiga descrever aquele nosso apetite. Ali
mesmo na sala, desapertou-me as calças e caiu de joelhos. Gemeu como se
estivessem a bater-lhe. Lambeu-me, chupou-me e deu-me dentadinhas
como um escravo treinado para aquele tipo de atividade.
«Ele tem um dom natural», pensei novamente.
Acariciei-lhe o cabelo, massajei-lhe os ombros e caí-lhe sobre as costas,
dobrado em dois, quando atingi o clímax.
Sim, Carlos, ele fez aquilo que tu sempre achaste nojento e engoliu a
minha oferta. Com avidez, devo acrescentar.
Libertei-o das roupas e vi que tinha escondido nas calças um
resplendente apontador do Antigo Testamento.
– Lindo – exclamei. – Aonde foste buscar isso?
– É grande de mais? – perguntou.
– É perfeito – respondi – e não há força neste mundo que me impeça de
fazer as rondas que me forem atribuídas.
Fiz o melhor que pude, engasguei-me algumas vezes, mas não desisti;
queria que ele se libertasse na minha boca porque sabia que acabaria
depressa, e da segunda vez queria que me penetrasse e que fosse capaz de
aguentar a ereção durante um bom bocado. O que acontece é que o miúdo
tinha mais semente amarga do que o que seria expectável num par de
tomates normal. Fez uma careta de dor quando ejaculou. Beijei-lhe o
pescoço e disse-lhe que era lindo.
Ao fim de um minuto, começou de novo a gemer e a respirar fundo. E o
latex mágico da alma de um jovem erguia-se entre as minhas mãos.
Doía-lhe ficar ereto outra vez, mas estávamos demasiado excitados para
parar.
Pus-lhe um preservativo.
Fomos devagar porque tinham passado cinco anos desde a minha última
experiência. Ao cabo de dez minutos, o apontador dele estava bem seguro
dentro de mim. A arfar de pânico e de desejo, António não sabia o que
havia de fazer.
Puxei-lhe as nádegas contra mim, para ele saber que tinha de avançar.
Lentamente, começou a aproximar-se das minhas entranhas. Parecia que me
abria ao meio, e a dor deixou-me inerte, mas naquele ponto levar a relação
até ao fim era uma questão de orgulho – como soldados que se apoderam de
uma colina sem qualquer valor estratégico, mas que significa muito para o
moral das tropas. Finalmente, o raio da coisa estava toda dentro de mim.
Deslizei sobre a cama, com ele deitado em cima de mim.
– Não te mexas! – ordenei-lhe.
Ele estava nervoso, com medo de me magoar, e senti-o a perder a
ereção.
– Mato-te se te vais abaixo agora! – disse-lhe. – Avança quando
quiseres.
E, como miúdo amoroso que era, ele fez-me a vontade.
A seguir desatei a chorar. Como não chorava havia anos. O rosto de
António ficou lívido de medo. Fiz-lhe uma festa na face. Beijei-lhe todos os
dedos.
– Não te preocupes – disse-lhe. – Tinha-me esquecido de que o sexo era
assim… Há muito tempo e muito longe daqui, tocar num homem conseguia
ajudar-nos a curar todas as feridas. – Coloquei as mãos dele sobre os meus
olhos fechados. – Não me magoaste – garanti-lhe. – Só me transportaste um
pouco de volta ao passado.

3
Palavra japonesa que exprime o conceito de «caminho para a revelação». (N. da T.)
4
Filme britânico de terror/ficção científica que saiu em 1964, sobre seis crianças identificadas pela
UNESCO, provenientes de várias partes do mundo, que demonstram ter poderes telepáticos
arrepiantes. (N. da T.)
5
«Asshole» no original. (N. da T.)
6
Vilão de desenho animado que fala inglês com sotaque russo e gramática e sintaxe deficientes. (N.
da T.)
5
Está tudo no meu diário. Na sexta-feira, 26 de maio, recebi logo de
manhã uma chamada de um repórter do Público que andava a escrever um
artigo sobre estrangeiros em Portugal. O seu «ponto de partida», como lhe
chamou, assentava na ideia de que os brasileiros, americanos, alemães e
ingleses estavam simultaneamente a enriquecer e a destruir a cultura
portuguesa. Não me dei ao trabalho de pedir uma explicação.
– Então, e o que é que essa teoria tem a ver comigo? – perguntei.
Ele queria uma entrevista. Recusei. Ele insistiu; eu era o único
americano.
– Vai representar o seu país – disse.
Achei a ideia perversamente divertida, pelo que concordei. Fiquei de me
encontrar com ele na sexta-feira seguinte, na redação do Público. Pareceu-
me uma data distante o suficiente para poder cancelar, se precisasse.
Estava apavorado com as aulas que teria de dar nesse dia, porque mal
pregara olho durante a noite, e imediatamente dei de caras com o diretor do
Conservatório, o Ramalho. Em criança, devia lembrar um daqueles órfãos
pintados sobre veludo; tem as pestanas mais compridas que alguma vez vi –
como folhas de feto. Só que agora é barrigudo, com um grande queixo.
Parece um sapo tirado de uma ópera dramática.
Levou-me até à sala dos professores. Estava vazia. Disse-me com um
sorriso orgulhoso que, na noite anterior tinha ido para a cama com uma
rapariga que conhecera numa discoteca. – Ela adorou…
– Se eu deixasse as aulas uma ou duas semanas mais cedo, alguém teria
um ataque cardíaco? – perguntei, interrompendo-o de súbito.
– Então e as últimas aulas? – perguntou ele, irritado. – E os exames
finais, bolas?!
– Não estou a dizer que o vá fazer garantidamente. Mas tenho o meu pai
doente – menti – e posso ter de ir aos Estados Unidos do pé para a mão. Eu
arranjava alguém para me substituir.
O verdadeiro motivo para me querer ir embora mais cedo nada tinha
nada a ver com isto, claro, mas antes com um plano louco que me envolvia
a mim e a António e que começara a delinear-se na minha cabeça.
Ramalho abanou a cabeça, com um ar desolado, mas se tinha de ser…
Sabes, Carlos, na verdade só três coisas me interessam agora, e a
primeira é registar como era a vida antes de o sexo desaparecer inteiramente
do planeta. Porque, um dia, os que nos sobreviverem não saberão. O sexo
tornar-se-á tão perigoso que será declarado moralmente inaceitável em
quaisquer circunstâncias. Os espermatozoides e os óvulos apenas se
encontrarão em tubos de ensaio. E aquela insignificância fertilizada será
transplantada para a barriga de um bicho, o útero de uma porca, por
exemplo, e será a D. Suína que levará a termo os nossos Manelinhos ou
Aninhas.
Sei que não estou em posição de registar todos os aspetos do sexo.
Ninguém está. Mas pelo menos gostaria que os nossos descendentes daqui a
mil anos soubessem que nós…
gostávamos de mergulhar num variado número de orifícios corporais;
nos lambuzávamos, devotávamos, suávamos e ejaculávamos com
perfeitos desconhecidos nos locais mais estranhos;
e mesmo assim nunca era suficiente.
Tenho consciência de que não estou sozinho. Outros tentam escrever
esta mesma história. Talvez uma das nossas obras sobreviva, seja escavada
nas praias de um qualquer mar morto por um velho arménio encarquilhado
e escondida numa gruta até ao momento em que seja seguro revelar esta
informação.
O meu segundo objetivo, e ainda mais importante, passa por fazer tudo
o que for necessário para ajudar o meu querido António.
Neste ponto da história, andava há dois dias a evitar ir vê-lo ao hospital.
Um comportamento cobarde, bem sei, mas tentava buscar forças à caverna
vazia de um corpo que arrastava penosamente desde a soalheira Califórnia.
Precisava ainda de aprender que, se nos imaginarmos de novo preenchidos
com tudo aquilo que fomos, a força pode surgir espontaneamente – pelo
menos, durante um tempo.
Será este um exemplo da magia da esperança de que me falara o
brasileiro Ricardo?
O terceiro objetivo é arrastar-te, meu querido, para fora da nossa
caverna lisboeta, aos gritos e pontapés, se necessário. Porque ainda há uma
oportunidade para nós, se ao menos vestires a armadura e vieres combater
comigo no topo da Torre dos Clérigos.
Mas nunca fui abençoado, e não acredito em nenhum deus que se
preocupe em ajudar-nos. Por isso, receio falhar em todos estes fitos.
Ah, quase me esquecia; há ainda um último objetivo, este só para mim,
um desejo secreto que nunca se realizará: gostaria de tocar guitarra como se
estivesse a fazer amor – conseguir que aquela madeira insensível vibrasse
com o desejo. Seria assim que Paganini tocava violino? Imagina-te
erguendo o teu instrumento com o mesmo arrepio que sentes quando
penetras sombras proibidas. O arco anda para trás e para a frente. O silêncio
é preenchido por sons de fricção. Subsiste apenas movimento, e resina, e
tensão, e uma cadência tão alta e doce que o violino se fende mesmo a meio
e cai na Porta da Compaixão que os cabalistas contemplam, e que tem de
existir, se queremos sobreviver.
Um dia, António poderia vir a tocar guitarra assim; já estava perto. Será
que os deuses ficaram com inveja?
Será que, no fundo, é disso que se trata?
Depois de duas aulas de guitarra nessa manhã, apanhei um táxi para o
hospital. O quarto onde António estava era no segundo andar.
Não sei porque me obriguei a ir visitá-lo. Não creio que fosse culpa,
porque não fora eu quem o fizera adoecer. E não poderia ser lealdade,
porque deixei para trás dois amigos em Nova Iorque em xeque-mate para
me mudar para Los Angeles, e um irmão que já tinha perdido a dama,
ambos os bispos e um cavalo para vir viver para Portugal. Poderia ter que
ver com a força da beleza a ser destruída? Como partir de Sodoma e
Gomorra sem olhar para trás? Sabemos que não o devemos fazer, porque
nos vai partir o coração, mas temos de ser testemunhas.
E, portanto, ali estava eu, aos pés da cama de António como se fosse um
altar, um rabugento de meia-idade a prestar homenagem ao David de
Miguel Ângelo atacado por uma maldição viral.
António, o angélico príncipe do Porto, legítimo herdeiro de Segovia,
que precisa de viver para cumprir o destino que tem na ponta dos dedos.
António, ali deitado com a agulha do soro espetada no braço, a dormir,
os olhos cor de avelã fechados – aqueles olhos que talvez nunca vejam a
alvorada dos trinta anos.
António, com a boca fechada, calado como uma criança que não perdoa
aos pais que lhe bateram. «Que será que ele vê quando está a dormir? As
pirâmides do Egito? O Grand Canyon? Será só sede que o leva a passar a
língua pelos lábios neste momento?», perguntei-me.
O destino. A vida. A morte. Este miúdo devia andar a pinar debaixo de
uma manta na praia de Moledo. Ou a beberricar chá em casa e a comer pão
de ló qual jovem paxá.
Os meus pensamentos deveriam ser o bastante para te curar, António. Se
ao menos, enquanto aqui estou, aos pés da tua cama, conseguisse encontrar
a sequência certa de palavras, a combinação adequada de letras…
Porém, todos os encantamentos se perderam quando os judeus foram
expulsos de Espanha e depois convertidos ao cristianismo em Portugal. Há
quinhentos anos. Era isso que eu deveria ter dito a Ricardo. Nós tínhamo-
las, tínhamos as fórmulas de que precisávamos para salvar o mundo, e
depois o rei D. Fernando e a rainha D. Isabel estragaram tudo com a sua
satânica ordem de expulsão.
António pestaneja.
– Professor – diz.
– Olá – respondo. – Não sabes que é proibido chamar «Professor» a
alguém com quem dormimos?
Estou a tentar ser engraçado. É patético, bem sei, mas este rapaz já está
a ser vestido para o Anjo da Morte, e eu fui um judeu divertido numa vida
passada.
O miúdo senta-se na cama. Tens os olhos pisados, ensombrados por um
futuro sem alegria.
– Onde estão as horas? Sabe onde estão as horas? – perguntou.
Deixa-me explicar-te este discurso sem sentido, querido Carlos. Não se
trata de uma má tradução do que ele disse em português. António teve o
azar de ser acometido por duas doenças ao mesmo tempo: gripe e zona.
Estavam a dar-lhe codeína para as dores, o que lhe causava alguns delírios.
Claro que ainda não tínhamos os resultados do teste de VIH. O meu
cérebro não parava de me repetir: «Até pessoas normais com bons sistemas
imunitários têm zona de vez em quando.»
António falou por algum tempo como um haiku mal traduzido. De vez
em quando, eu anotava o que ele dizia; alguém tinha de escrever essas
coisas para o tal velhinho arménio que vai escavar os vestígios que
deixarmos da nossa civilização.
As infeções deveriam passar por si. António tomava antibióticos apenas
para evitar uma pneumonia.
Calculei que, dentro de dez dias, ou estaria recuperado ou estaria morto.
Achas que exagero, não é?
– Como te sentes? – perguntei-lhe.
– Cansado.
– Queres água?
Passou a língua pelos lábios para ver se tinha sede. Abanou a cabeça.
– Estás com melhor aspeto – menti.
– A comida não presta. – Franziu o sobrolho.
– O que é que te apetece? Eu trago-te às escondidas. – António é louco
por doces. Comecei a desbobinar uma lista de guloseimas: ovos moles,
pastéis de nata, pastéis de coco, pão de ló…
– Não, nada – respondeu, fechando os olhos.
Tentei queijos; também adora lacticínios. Abanou a cabeça.
Deixámo-nos estar em silêncio. A cama de António ficava mesmo por
baixo de uma janela interior que dava para um corredor. Uma luz cinzenta e
suave escoava para dentro da enfermaria. Havia mais nove camas. Em
frente a António, estava um velho esquelético com uma ligadura à volta do
pulso. Ao seu lado, um homem gordo com a testa perlada de suor e uns
óculos que pareciam fundos de garrafa. Lembrava-me o Piggy do Senhor
das Moscas. Senti-me desorientado.
Não sei quanto tempo fiquei naquela enfermaria. A recordação da
primeira vez que António me guiou para dentro de si arrastava-me o olhar
para os mosaicos do chão. Nunca tivera tanto cuidado com nada, nem
sequer com as borboletas que costumava apanhar em criança.
Quem terá selado o destino do meu António numa enfermaria de
hospital? Não temos a certeza. Suspeitamos de que tenha sido o Sardinha.
Trata-se, naturalmente, de uma alcunha, mas, como guardava a cocaína e a
metadona numa lata de sardinhas, o nome pegou. Costumava injetar-se nas
traseiras do Conservatório, no pátio de uma casa abandonada na Rua de
Cedofeita. Era aluno de piano, o pior tipo de músico. Não têm de afinar
cordas. Portanto acham que tudo lhes vai parar às mãos sem esforço.
Quando isso não acontece, têm uma grande desilusão. Essa desilusão leva à
depressão. A seguir vêm os episódios melodramáticos de autodestruição. Se
quiserem experimentar um músico, fujam dos pianistas. Procurem quem
toque oboé. Têm pulmões de cantor de ópera e corações enormes. E sustêm
o fôlego como os pescadores de pérolas. Disseram-me que um broche de
um oboísta é quase sempre um feito digno do Guinness.
Querido Carlos, lembro-me de que Henry, o Colosso, costumava dizer
que o amor na nossa década é como uma madrasta malvada: envenena-nos
e mata-nos. Tenho a certeza de que concordas com ele. Talvez por isso faça
sentido teres medo de mim.
6
Por qualquer razão inexplicável voltei a ter uma sensação de calma no
sábado, 27 de maio, talvez porque não tinha aulas ou simplesmente porque
o céu estava azul, limpo de nuvens. Mesmo agora, quando penso em mim
na varanda de Fiama a olhar para a abóbada turquesa que nesse dia protegia
o Porto, sinto-me invadido por uma tremenda calma.
Por isso, vou arriscar dizer-te agora o que o brasileiro Ricardo sugeriu a
António há duas semanas.
Tal como disse, Ricardo, Pedro e eu estávamos aos pés da cama dele.
Apresentei toda a gente. Naquele momento, o cérebro do miúdo estava
alerta, e ele contou-nos que tinha acabado de acordar de um sonho
agradável.
– Estava lá muito no alto, como um pássaro. E vi uma cidade num vale.
Uma cidade enorme, que se espraiava por vários quilómetros.
– Que cidade era? – perguntei.
– Não sei. Talvez Madrid. Talvez Paris. – Encolheu os ombros. –
Parecia muito grande. Mas, claro, nunca estive nesses sítios e não reconheci
quaisquer monumentos.
– Alguma vez saíste de Portugal? – perguntou Ricardo.
– Nunca.
– Gostavas de viajar? Ver essas cidades?
António sorriu.
– Adorava. Mais do que tudo. Mas como? Há aulas, e exames, e essas
coisas todas.
Ricardo olhou para mim. Percebi o que me estava a dizer: «Podes fazer
alguma coisa por outra pessoa e estar ao lado dela enquanto decide se ainda
há esperança no mundo, ou podes afastar-te. A escolha é tua.»
– Quando saíres do hospital gostavas de ir viajar? Ver Paris? Ver o sítio
onde te comprei as camisas de seda em Madrid? – perguntei.
António mordeu o lábio. Contemplou-me como se não percebesse em
que língua estava eu a falar. O meu coração batia descompassado.
Sabia que ele ia responder sim, mas também que tinha medo de
acalentar essa esperança.
Sei que não vais compreender isto, Carlos, porque nunca conheceste
ninguém a quem tenham dito que tem uma doença terminal. Mas por vezes
o momento mais importante chega logo a seguir a conhecerem o seu
destino. Dois caminhos desdobram-se a partir do que acabam de saber: um
que vai orlando as franjas da vida – se o escolherem, ficam connosco, com
os vivos, lutando para regressar ao nosso território; o outro leva diretamente
à escuridão, e nenhuma das palavras que lhes dirijamos serão
verdadeiramente escutadas.
É verdade que os resultados do teste de António ainda não tinham
chegado. Mas, a dar-se o pior, teria de escolher o seu caminho. E, agora que
eu sabia exatamente como o ajudar a ficar connosco, como poderia sequer
contemplar a ideia de o rejeitar?
Mas contemplei. Cruzei os braços sobre o peito. Pus-me a olhar pela
janela para a parede verde-suja do corredor e pensei: «Talvez já esteja tudo
perdido.»
Disse-lhe que ia alugar um grande carro americano e levar-nos por essa
Europa fora.
O cérebro dele saiu dos carris e perguntou se o carro teria sandálias. Era
a codeína de novo. Continuámos a falar sobre nada e, a meio de uma frase,
ele fechou os olhos e começou a ressonar.
Ricardo aproximou-se de mim.
– Estás com ar de quem vai desmaiar – sussurrou. – O melhor é irmos
sentar-nos num café.
Concordei, mas não conseguia mexer-me. Pus-me a observar António.
Lembrei-me de que Pedro me dissera que conhecia um dos professores de
guitarra do Conservatório de Paris. Seria essa a verdadeira razão para eu
querer levar o miúdo?
Carlos, sabes sempre qual a razão para as coisas arriscadas que fazes?
Será que alguém sabe?
– Como se chama aquele guitarrista que conheces no Conservatório de
Paris? – perguntei a Pedro, encarando-o.
– José Maria Landero.
– É bom?
Pedro inclinou a cabeça.
– A Deutsche Grammophon acha que sim. Vai lançar os discos dele com
a música de Leo Brouwer.
– E aceitaria o António como aluno?
– De que estás tu a falar?
– Não há muito que eu lhe possa ensinar – disse. – Se alguma vez
começar a dar concertos, vai precisar de estudar com alguém melhor do que
eu.
– Mas agora, com isto? E se…?
– Especialmente agora. Especialmente «se».
– E tu? Qual seria o teu papel no meio disso? – perguntou Ricardo.
Era uma boa pergunta. Seria capaz de desistir de António?
– Então achas que esse Landero dava uma oportunidade ao rapaz? –
perguntei a Pedro, determinado a fazer as coisas bem feitas.
Estava assente. António e eu partiríamos para Madrid e Paris. Pedro
telefonaria a José Maria Landero. E eu faria de tudo para entregar António a
outra pessoa – se fosse esse o seu desejo, claro. Mas não tinha a certeza de
que assim fosse.
Porém, não é isso que está a preocupar-te, Carlos. Achas que não vou
conseguir resistir a dormir com ele durante a viagem, e que os cossacos
também me vão apanhar. E, por arrasto, a ti também. Não te preocupes, os
vírus não conseguem atravessar as dobras do tempo – pelo menos, ainda
não.
Ou talvez estejas a desejar a minha morte. Ficarias, sem dúvida, safo,
não?

– Quem é o senhor?
Regressei ao hospital e ao meu lado está um homem muito bem-
parecido. Tem o cabelo grisalho cortado rente, barba de vários dias a
sombrear-lhe as faces, uma boca sensível e uns lindos olhos castanhos,
tristes, com rugas que dão a impressão de que anda há muito tempo a
semicerrá-los para conseguir espreitar o futuro. No rosto, raia-lhe uma
expressão zangada e alerta. Os dentes cerrados, a mandíbula a latejar. Traz
um blusão de couro, camisa branca e jeans.
Levanto-me. Ele é vários centímetros mais baixo do que eu.
– Sou o professor de guitarra do António – digo.
– Ah – exclama. Todo o corpo relaxa. Bate na testa e solta: – Desculpe,
professor. – Aperta-me a mão, grato, segurando-a longamente. Tem calos
espessos na palma. – Obrigado por visitar o meu filho.
Então este era o famoso Miguel do Minho, como António e eu sempre
lhe chamámos. António contou-me muitas histórias a seu respeito e soube
que ele era de Vila Nova de Cerveira, mesmo nas margens do rio Minho,
com a Espanha do outro lado, e…
que tinha uma voz doce e ressoante;
que trabalhava de sol a sol como pedreiro, era fundamentalmente
bondoso e simpático, mas também muitíssimo receoso da
homossexualidade de António;
e que tinha dificuldade em manter o seu amigo dentro das calças,
demasiada para o gosto da mulher. Divorciaram-se quando António tinha
apenas sete anos.
António mostrara-me em tempos uma fotografia do pai aos vinte e tal
anos, e ele e o filho tinham o mesmo cabelo louro-escuro. Algures na árvore
genealógica há pelo menos um celta bem aviado.
Carlos, já consegues adivinhar qual dos retratos da Frick Collection
lembra o Miguel?
Não te dês ao trabalho de ir procurar outra vez. É o retrato de Sir
Thomas More, por Hans Holbein, o Jovem.
Tira-o e vê como é um homem bonito.
Um rosto incrível, não achas? Se António chegar aos quarenta e cinco
anos, vai ser igual a ele. Há tipos cheios de sorte. A julgar pelo meu pai aos
setenta anos, vou acabar igual a um tubarão com um bigode à David Niven.
Extraordinário é que Sir Thomas More e o jovem pintado por Ticiano
têm um ar de família. Será possível que este jovem fosse mesmo familiar de
More? Seria seu filho?
Ou será que a chave para esta parecença assenta na afeição que o pintor
tem pela pessoa que retrata? Sempre achei que ambos os artistas se sentiam
apaixonadamente atraídos pelos homens que posaram para eles.
António ressona. Ficamos a contemplá-lo. Não quero estar ali, porque
me sinto atraído por Miguel. Tenho medo de dizer ou fazer alguma coisa
que possa ser considerada perversa, e os portugueses ofendem-se com
facilidade. Por isso, ofereço-lhe a minha cadeira, mas ele não quer sentar-se
e retribui a gentileza. É uma pequena dança que os homens deste país fazem
sempre que se abre uma porta ou um lugar fica vago. Volto a sentar-me
pensando numa desculpa para me ir embora. Como sou estrangeiro, serei
perdoado por não insistir para que tome o lugar.
Durante muito tempo não dizemos nada. Depois, Miguel murmura:
– Está com melhor aspeto. – Assente gravemente com a cabeça. Tenta
convencer-se a si próprio.
– Está, sim – digo. E depois, não sei o que me deu, pergunto a Miguel se
quer ir beber uma cerveja. – Devíamos deixá-lo dormir. Agora não podemos
fazer nada.
– Tem razão. – Miguel arrasta os pés até à cama, inclina-se e pousa
delicadamente os lábios na testa de António.
Um homem bonito a beijar o filho… uma luz cinzenta a unir-lhes os
rostos… Se fosse Vermeer, seria esta a cena que eu pintaria.
Miguel faz-me sinal para tomar a dianteira, e saímos da enfermaria. Lá
fora, à luz do sol, começa a chorar em silêncio enquanto nos dirigimos para
a Praça de Lisboa. Não quero envergonhá-lo, por isso, finjo que não reparo.
Ele enxuga os olhos e tira um maço de SG Gigante do bolso do casaco.
Oferece-me um cigarro. Não posso recusar nada a um homem que chora.
Puxa uma fumaça ávida enquanto o acende, e fecha os olhos por um
momento. Depois acende o meu.
– Continuo a dizer a mim próprio que isto é apenas um pesadelo. Mas
todas as manhãs acordo, e todas as manhãs ele ainda lá está. – As palavras
saem em catadupa, numa só baforada de fumo.
Sentamo-nos na esplanada do Café da Praça. Está cheia de estudantes
universitários. Quero confessar-lhe que amo o filho, mas provavelmente ele
ia apanhar uma pedra da calçada para me rachar o crânio ao meio. E quem o
poderia censurar? Bebo depressa a minha cerveja, o olhar fixo na linha dos
telhados que contornam a praça afundada na paisagem.
– Se conseguisse descobrir a pessoa que lhe passou esta doença,
matava-a com as minhas próprias mãos – diz Miguel. A voz sai-lhe rouca.
Tremendo, faz o gesto de estrangular alguém.
– Não temos a certeza de que ele esteja seropositivo. Ainda há
esperança.
Miguel afasta essa possibilidade com um gesto carregado de desprezo.
Suspira e abana a cabeça.
– Temos de ter calma para poder ajudá-lo, seja qual for o resultado do
teste. Isso é que é importante – digo.
Odeio-me por recorrer a clichés. Quero afastar-me da vítima cobarde
que tenho dentro de mim, que apanhou com os salpicos da chuva que cai
por todo o lado. Quero ir-me embora de Portugal, tal como me fui embora
da América.
Mas apercebo-me de que estou preso – um inseto americano preso numa
dessas tiras de papel com cola que os portugueses usam para apanhar
moscas. Com o oceano Atlântico pelas costas, sem sítio para onde fugir. Ou
será que não? Será essa a verdadeira razão para querer levar António? Uma
fuga temporária para a fantasia…? Uma última escapada antes que os
cossacos ataquem e incendeiem totalmente o meu último refúgio?
7
É domingo, 28 de maio. Devemos ter o resultado do teste de VIH dentro
de vinte e quatro horas.
Passo a manhã toda no quarto de Fiama a ver televisão. Ao almoço,
como três anonas e seis kiwis.
Faço umas máquinas de roupa. Estou com diarreia.
Ponho-me a observar a rua da janela do quarto. Lá em baixo, uns
miúdos jogam futebol. Uma alvéola pousa no parapeito. Tem a cabeça
branca e o papo preto. Agita a cauda para cima e para baixo. Fica a olhar
para mim. Tento ler. Bebo ouzo.
Miguel e eu encontramo-nos no hospital. Ele trata-me por «professor».
Peço-lhe que não o faça, mas ele insiste. António acorda, fala outra vez em
haiku. Durante uma hora, travamos uma conversa com ele digna de Eugène
Ionesco. Entre o meu português e a sua poesia, parecemos aquela velha
anedota ídiche do tipo que pergunta a um amigo surdo na rua o que leva no
saco de papel pardo. «Pêssegos», responde ele. «Boa. E que tal vai a
família?» O surdo encolhe os ombros e responde: «Em conserva.»
Chega o almoço: peixe frito, legumes demasiado cozidos e uma maçã
assada. Miguel dá de comer ao filho. Abre-se-me uma cratera no peito
enquanto o vejo levar colheradas de ervilhas à boca de António. Lembro-
me de…
pedir a Henry, o Colosso, que engula o iogurte de baunilha que lhe meto
na boca repleta de crostas;
dar a comer uma última maçã assada ao meu irmão;
passar à minha mãe uma lata de Coca-Cola para ela tomar mais um
Valium.
Afasto-me destas memórias e ponho-me a observar os outros doentes da
enfermaria. Uma ervilha cai da boca de António sobre os lençóis. Miguel
pega-lhe com o indicador e o polegar e volta a pô-la na boca do filho.
Apetece-me dizer: «Pare com isso, é perigoso.» Claro que, na realidade, não
é. Mas um abatido como eu, que já não consegue assistir a mais mortes, fica
inevitavelmente paranoico.
As carícias são-me mais intoleráveis do que as piores cenas de
violência, pelo que digo a Miguel que, se quiser, dali a uma hora o espero
no café para bebermos uma cerveja.
Ele é o tipo de homem que acena quando se aproxima da nossa mesa,
depois inclina-se e pergunta se se pode sentar. Faz-me sentir importante, e
eu não gosto disso. Quando temos consciência de que somos uma minhoca
assustada, valorizarem-nos faz-nos sentir profundamente hipócritas. Por
isso, limito-me a assentir com a cabeça. Depois de se sentar, agradece-me
por ter ido ter com ele. Não tem nada que agradecer, digo-lhe. Dá-me um
cigarro e acende-o. Eu peço uma cerveja para ele. Faz uma cara séria. Noto
que os pés de galinha que lhe irradiam dos olhos tristes ficaram mais fundos
durante a noite.
– O António toca mesmo bem guitarra? Tem talento? – pergunta.
– As mãos dele compreendem a guitarra – respondo. – E ele
compreende a música, o que é mais importante.
– Eu sou pedreiro – diz Miguel. – Não sei o que significa «compreender
a música». – Inclina-se para a frente. – Quero saber o que isso significa
porque quero conhecer o meu filho.
– Significa… – Não sei o que dizer depois disso. Falha-me o português,
porque ele está a perguntar-me uma coisa importantíssima para mim e que
por isso mesmo está além das minhas capacidades linguísticas. Atrapalho-
me, falo de forma e de cor e de outros conceitos que as pessoas
normalmente não associam à música. É provável que ele me ache
condescendente. Mas aprova as minhas palavras com um gesto da cabeça,
fuma e bebe a sua cerveja.
– Quero que o meu filho tenha uma vida, quero que continue com a
guitarra depois de sair do hospital. Pode ajudá-lo? – pergunta-me no
momento em que nos despedimos.
Apetece-me dar-lhe um beijo na testa com toda a ternura e dizer-lhe que
serei afetuoso com o seu filho, porque a única alternativa seria ser distante e
cruel, e tenho visto tanta crueldade e tenho sido tão cruel comigo próprio,
que sei que já não é necessário. Contudo, mais cedo ou mais tarde, terei de
lhe dizer que dormi com o filho. E isso deixa-me o coração descompassado.
«Quando o António estiver melhor, digo-lhe», penso. Mas também sou
capaz de deixar pai e filho a lamberem as feridas, assim que António tiver
alta do hospital.
– O seu filho há de ser sempre meu aluno. Nada poderá alterar isso.
Odeio-me porque digo aquilo como se estivesse a jurar o meu amor a
um cisne moribundo. Tudo vai recomeçar – os dramas e os clichés, e os
amigos de preto a juntarem-se à volta dos leitos de morte. Tinha prometido
a mim próprio: nunca mais. E, contudo, eis-me aqui. Quem governa o meu
destino e o meu coração só pode ser um falhado. Mas até esse falhado me
permite fugir de Miguel, porque ele se parece demasiado com o filho, é
demasiado bonito, e porque me apetece tanto beijá-lo que sinto as entranhas
em fogo.

A cadeia velha. Um túmulo barroco de granito. Sessenta metros de


fachada, quatro andares de altura, grades enferrujadas em todas as janelas.
Acaba de ser restaurada pelo governo. Para quê?, não sabem. Aqui em
Portugal põe-se sempre o carro à frente dos bois. A caminho de casa, vindo
do café, cruzo-me com Rui, um operário da construção que lá trabalha, a
quem proporcionei alguns momentos de alívio pouco depois de me ter
mudado para cá. Chamou-me maricas num tom de desprezo enquanto se
vinha, e eu disse a mim próprio que nunca mais lhe faria um favor, porque
há demasiados Antónios em demasiados cemitérios para me permitir ser
insultado com adjetivos condescendentes em qualquer uma das dez mil
línguas vivas que ainda florescem em Babel. Desta vez, convida-me para
subir até à cela da prisão onde tem estado a trabalhar.
– Só para conversar – diz. São horas do almoço. Toda a gente está a
comer. Não sei porque vou. Ansiedade? Apenas pela companhia de um
estranho aparentemente amigável durante uns momentos?
Traz umas calças brancas de pintor, sujíssimas. Quando nos
encontramos sozinhos, tira a camisa. Está descalço. A penugem escura do
peito brilha de suor, e a cabeleira é farta e negra. É mouro, este Rui. Um
Otelo português.
Com uma mão que mais parece uma luva de basebol, coça os tomates. É
o sinal que indica necessidade, como um pássaro recém-nascido que abre a
boca e pia.
– Hoje não – anuncio.
– O maricas não quer o seu petisco? – pergunta.
Abano a cabeça e começo a afastar-me.
– Anda lá, larilas, ajoelha-te que já levas com aquilo de que mais gostas
– diz, a mão em concha no inchaço entre as pernas.
De repente, sinto-me furioso. Afinal, o que leva estes tipos patéticos que
não saem do armário a pensar que nos podem tratar assim? Consegues
compreender, Carlos?
– Tudo bem, mas, antes de fazer o que quer que seja, tenho uma
pergunta para ti – replico, aproximando-me dele.
– O que é?
– Não achas que está na hora de admitires que também és maricas? Já és
crescidinho. E talvez aches a realidade interessante, depois de a conheceres
um pouco melhor.
Franze o sobrolho.
– Sou casado há sete anos. Tenho dois filhos.
Respondo com uma risada.
– Já ouvi essa história uma centena de vezes em dois continentes.
Enfias-te entre as pernas da tua mulher uma vez por mês, fechas os olhos e
rezas para te vires depressa para não teres de lhe sentir as mamas enormes
contra o peito, e pensas que esse grande sacrifício faz de ti um
exploradorzinho português normal. Sai-lhe um miúdo da barriga de dois em
dois anos e achas que és um homem a sério. És maricas, meu Ruizinho.
Pergunta à tua mulher, se achas que estou errado. Ela sabe e diz-to, se tiver
a coragem que tu não tens. – Aproximo-me e sussurro: – Mas, para já, é um
segredinho nosso.
Estendo a mão para apertar a dele, porque os portugueses apertam as
mãos mesmo depois de conversas desagradáveis como esta, e, sem qualquer
tipo de aviso, ele lança-se contra mim e atira-me ao chão com toda a força.
Penso que me terá partido a costela direita que Pietro me partira numa vida
tão distante, enquanto ele se inclina sobre mim, divertido.
– Maricas de merda! – lança. Nesse momento, dois homens aparecem à
entrada da cela, ambos baixos e calvos, um deles com uns lindos olhos
castanhos como tu, Carlos.
Sim, mesmo deitado de costas sem conseguir inspirar, reparo nos olhos
de um homem.
Sabendo que corro certos riscos, trago sempre comigo uma navalha de
ponta e mola feita na Turquia e comprada num bazar coreano da Melrose
Avenue. Está de fora e a brilhar antes que algum deles consiga sequer
aproximar-se de mim. Levanto-me e aponto-a aos homens que estão à porta.
Sorrio porque já estive nesta situação e sei que devemos sempre sorrir
quando estamos a tentar salvar o coiro de homens heterossexuais com trinta
anos de raiva contida enrolada nos tomates como uma mola. Todos os
portugueses acabam por se sentir intimidados por estrangeiros, por isso digo
em inglês:
– You fuck with me, and I’ll cut you open!7 – E faço-lhes sinal para se
afastarem da porta.
– Vou descobrir onde moras e vou matar-te, foda-se! – grita Rui.
– Mexam-se! – Ordeno aos homens à entrada. Eles afastam-se. Passo
por eles, corro escada abaixo e saio da cadeia como um foguete. Ninguém
me segue.
De repente, apetecia-me ter um pouco do sangue de Rui a brilhar na
navalha.
As paredes do apartamento que partilho com Fiama são feitas de papier
mâché, e à noite os bichos-de-prata passeiam-se por elas. Paula, do
apartamento ao lado, está a ver uma telenovela brasileira. A atriz principal
grita à irmã: «Não suporto mais você! Você é um monstro! Uma puta! E não
sou só eu, toda a gente detesta você!» Todas estas imprecações porque a
pobre da irmã se apaixonou perdidamente pelo filho mais velho da
protagonista, seu sobrinho. Aparentemente, os oito milhões de habitantes do
Rio de Janeiro estão profundamente transtornados com isso.
Penso que este tipo de cena nunca aconteceria em Portugal porque –
mesmo nos seus momentos mais dramáticos – os nativos preferem
contornar um assunto a entrar nele diretamente. Provavelmente, levei mais
tempo do que a maioria das pessoas a perceber isso. Quer dizer, a minha
frase de engate nos Estados Unidos sempre fora: «Acho que és mesmo
muito bonito e gostava de dormir contigo.» É um pouco à Jimmy Olsen8,
admito, mas tem a grande vantagem da eficácia americana. Aqui um piropo
nesses moldes nunca pegaria; ir direto ao assunto choca um europeu.
Dependendo do seu nível de cultura, se queremos que um homem português
nos conheça entre lençóis, temos de conversar sobre o tempo, a política, os
resultados do futebol, a última seca no Algarve ou, como me aconteceu
certa vez em Lisboa, a semiótica dos filmes de Alfred Hitchcock.
Tudo isto com pequenos comentários sub-reptícios para que o alvo saiba
que há uma pequena dança do ventre sob a superfície das palavras. Temos
de deixar cair insinuações como: «As noites têm estado muito quentes
nestes últimos tempos, nem tenho conseguido dormir.» Ou então: «Ei, neste
momento, apetecia-me mesmo estar deitado na praia todo nu, a ti não?» Ao
cabo de uma hora deste tipo de código, se o alvo ainda estiver a falar
connosco, já o trabalhámos o suficiente para chegar ao ponto em que
podemos estender a mão e agarrar-lhe o entrepernas. Nessa altura, já perdeu
toda a resistência. Os preliminares verbais minam as forças do homem
português – como a criptonite faz ao Super-Homem.
E é por isso que sei que, se alinhar a sequência correta de palavras nesta
carta, talvez consiga que descontraias um pouco, Carlos.
Lembras-te de como foi difícil levar-te para a cama da primeira vez? As
conversas entediantes que tive contigo e com Mónica só para conseguir
abrir-te a braguilha deveriam garantir-me um lugar no Hall of Fame dos
Idiotas Sexuais. O que eu gostaria de saber ainda hoje é como conseguiste
viver mês após mês com aquele caniche gigante? Quando recordo o
ascendente que ela tinha sobre ti, sinto as entranhas revolverem-se-me.
Depois penso naquele cabelo preto e frisado, naquela eterna careta no rosto
fino como uma bolacha espalmada, naquele riso de fera.
Às vezes pergunto-me com que ator fantasiavas para ficares em meia
haste: James Dean, Marcello Mastroianni, Jean Marais… E pensar que
andaste com ela mais de dois anos! O trabalho a que um não assumido se dá
para provar que a sua masculinidade não tem limites. Suponho que deveria
ficar de queixo caído.
Agora que penso nisso, Mónica é exatamente o oposto de Fiama. Fiama
é lenta, mas inteligente. Bonita. Tem um coração enorme e, acima de tudo,
quer manter a visão. E também quer ser feliz – coisa que nunca será, porque
os homens irão sempre servir-se dela. Já Mónica, essa, só quer dominar os
outros. Caso contrário, porque escolheria um medroso para namorado?
Quantas noites fomos juntos àqueles bares do Porto do tamanho de um
guarda-fatos, repletos de fumo de cigarro, mulheres com calças de látex e
homens de bigode a esforçarem-se ao máximo para parecer sofisticados,
embora não conseguissem alinhavar uma frase que não envolvesse futebol
ou corridas de carros? Devem ter sido duas semanas seguidas. Tinha a picha
a atrofiar e estava a dar em doido. Caramba, foi muito mau. Comecei a ver
telenovelas brasileiras só para esquecer que havia pessoas como tu, que não
sabiam o que queriam e que davam cabo da vida de toda a gente à sua volta
por causa disso.
Se só puder ensinar-te uma coisa, Carlos, que seja esta: «Os maiores
sacanas são os que não conseguem admitir quem são, porque torturam os
outros todos para os impedir de descobrirem.»
Como tu, meu canalha!
E depois, quando já nem sabia se tinha coluna vertebral, tocaste-me à
campainha. Querias falar comigo. Deslizei até à porta. Naquilo que passa
por uma voz de macho neste Lilliput europeu, perguntaste-me se estava a
tentar roubar-te Mónica. Querias partir-me a cara? Pensaste que, por eu ser
um judeu americano, não te dava cabo do canastro? Que mentiroso tu és.
Ou foste mesmo cego a esse ponto, acreditando que a tua namorada me
interessava? Não podias ser tão burro, pois não?
Disse-te então que desprezava aquela cabra com todas as forças.
Claro que te deveria desprezar a ti, não a ela. Ela provavelmente até te
amava.
Disseste-me que eu não tinha categoria suficiente para a desprezar.
– E não uses a palavra cabra quando te referes a ela – avisaste-me.
Disse-te que a respeitava por ser capaz de pisar quem se atravessasse no
seu caminho. E que cabra, para mim, não era um palavrão.
Depois ofereci-te uma bebida. Bebemos uns ouzos juntos e iniciámos a
conversa de sedução. Se bem me lembro, foi sobre Rosa Mota e as suas
vitórias na maratona. Eras um tremendo chato antes de começares a dormir
com homens. Tens consciência disso? Sim, eras bonito: um Tyrone Power
em tamanho terrier, com umas nadegazinhas firmes. Mas eras uma
tremenda seca! Sempre achaste que um homem te ia devorar e nunca mais
te largaria, que não terias força para resistir à sua vontade. Mas não és tão
fraco como pensas. Tens consciência de que as nossas discussões surgiam
sempre depois de eu te possuir? Perdias-te no teu prazer e culpavas-me por
isso. Assustava-te seres penetrado por um homem. Nalgum momento da tua
juventude, um disparate entrou-te no cérebro e estragou-te: um disparate
que defendia que eras um ser inferior por quereres uma picha dentro de ti.
Pobre é aquele que se castiga pelo seu próprio prazer.
Shakespeare não o disse nestes moldes exatos, mas devia tê-lo feito.
Sabes, nem sequer sei porque te desejo; devia desejar António. Ele é
feliz no seu próprio corpo, no sexo. Porque será então que te amo
apaixonadamente, e não a ele? Será demasiado jovem? Será que prefiro dar-
lhe aulas de guitarra a fazer amor com ele? Não seria uma estranha
descoberta nos meus trinta e nove anos de idade?
«Talvez estejas a amadurecer», ouço-te dizer, tentando evitar o teu
reflexo que vês nos meus olhos. «Talvez até tenhas descoberto que não és
gay.»
Não acredites nisso nem por um minuto; uma consequência dos traumas
por que já passei é o facto de me conhecer a mim próprio muitíssimo bem.
Não consegui adormecer na noite de 28. Fiquei sentado à janela, a ouvir
os cães ladrar dentro da escuridão.
7
«Metem-se comigo, e corto-vos ao meio, cabrões!» (N. da T.)
8
Personagem fictício, jovem amigo e colega do Super-Homem e da Lois Lane, que trabalha no Daily
Planet como repórter fotográfico. É conhecido por ser tímido e dizer apenas o estritamente
necessário. (N. da T.)
8
Catorze meses de sol entre a morte de Harold e a presente crise era tudo
o que eu tinha, e não me parecia o bastante. Por vezes, o corpo e o espírito
precisam simplesmente de escapar a um dilema que não conseguem
enfrentar. Ensinaram-nos que fugir é mau. Mas recusaremos um refúgio nas
montanhas quando um tigre abre as fauces e rosna depois de ter comido
toda a nossa equipa de basquetebol e metade do nosso bairro? Não é que
não haja outras maneiras de escapar, que não a de nos camuflarmos de
modo a parecer pessoas sãs num olival imenso como Portugal…
Stevie Rosenthal, o nosso líder de claque, entrou para o Peace Corps e
está a ensinar eletrónica no Sri Lanka;
Pat de Lucca, o ex-amante de Henry, o Colosso, com um metro e
noventa e cinco e detentor do recorde do máximo de batatas fritas alguma
vez comidas em Jones Beach, está na Arábia Saudita, a projetar plataformas
de petróleo offshore para a Shell;
Manuela Pierce, a nossa pastora na Metropolitan Community Church,
brasileira, casou-se com um holandês e fundou um sacerdócio em Saint
Martin. Quando me disse que estava ótima, comentou também que os
brasileiros têm uma molécula de felicidade no ADN que ficou fora da dupla
hélice das restantes pessoas.
Mas já não escrevo a nenhum deles; já dissemos tudo o que tínhamos a
dizer uns aos outros.

Na manhã do dia 29, telefono para a escola a informar que estou doente,
bebo ouzo e vou passear junto ao rio. À tarde, dou cinco voltas ao Hospital
de Santo António, como quem cumpre um ritual místico destinado a salvar
o miúdo. E depois entro. Encontro a enfermeira-chefe antes de ver António.
O meu coração bate loucamente.
– Ainda não chegaram os resultados – diz-me ela.
– Como é possível? Era para ser hoje.
– Amanhã – responde.
É o eterno grito de guerra dos espanhóis e dos portugueses. Amanhã.
Não consigo enfrentar António. Dirijo-me para casa. Sinto-me tão tenso
que peço a Fiama uma massagem nas costas. Tem boas mãos para aquilo,
mas o resultado não é grande coisa. Por isso, aconchega-me na sua cama,
com duas almofadas atrás da cabeça, e fico a beber ouzo enquanto vejo
televisão. Ela faz-me sopa de nabo. À superfície flutuam lindas gotículas de
azeite.
Às onze da noite, recebo uma chamada de Miguel, o pai de António.
– Estou a falar com o professor? – pergunta-me numa voz ansiosa.
– Sou eu, sim.
– Hoje não o vi no hospital.
– Não consegui ir.
– O António perguntou por si. Está melhor. Sente-se com mais forças. E
a zona está a desaparecer.
Não tenho coragem para lhe dizer que essas ligeiras melhoras não
interessam nada se se vier a verificar que ele é seropositivo. Fico calado.
– Professor? Está aí?
– Estou.
– Ouviu o que eu disse? O rapaz está melhor. – Fala como se António
fosse o nosso rapaz. Sinto que me esvaziam os pulmões; não consigo
enfrentar a realidade de ele voltar ao mundo. A verdade é que sei que estou
mais seguro com ele a morrer agora no hospital. Aprendi que se o corpo de
um amigo for para debaixo da terra antes de o sabermos, quase
conseguimos fingir que continua vivo, a escalar para sempre os Himalaias
ou perdido algures no Norte de Nova Iorque. Tudo o que não tenha sido
confirmado como morto pode ser considerado vivo.
– Falo consigo noutra altura – respondo a Miguel. Desligo antes que ele
possa protestar. Não volta a telefonar. Apercebo-me de que me devia sentir
um merdas por não o querer ouvir. Mas sinto-me aliviado. Acabo a garrafa
de ouzo.

António é um espírito de luz e música, um miúdo que nasceu para viver


na era isabelina. Gosta de comer doces, jogar futebol e fazer acrobacias no
meio da rua. Ias detestá-lo, Carlos, porque terias ciúmes da sua liberdade e
da sua vida. Mesmo gravemente doente num mórbido hospital, está bem
mais vivo do que tu alguma vez estarás. Eis a verdadeira tragédia.
Sabes, entre nós tudo desembocava sempre no mesmo tema, tu, como se
fosses uma grande estátua fascista erigida no centro do mundo.
Ah, mas como te entregavas ao amor quando te esquecias do que tinhas
de recordar!
Certa vez, a teu pedido, chicoteei-te. Disso, lembras-te de certeza. Era
apenas uma pequena borla de couro que tinhas comprado numa viela
qualquer no Bairro Alto, em Lisboa. Lamento dizer que não me excitou
nem um bocadinho. Tu gemeste e retorceste-te na cama, mas eu gelava a
cada chicotada. «Dá-me com força!», gritavas. Obedeci porque estava
apaixonado, mas toda aquela cena pareceu teatral e parva. Quando
começaste a sangrar, não consegui continuar. Sim, tenho um estômago
fraco.
Um pouco mais tarde, depois de te ter levado a atravessar as muralhas
de Sodoma, zangaste-te.
– Magoaste-me com aquela merda do chicote.
– Desculpa. Mas a ideia foi tua – respondi.
– Mesmo assim, magoaste-me a sério.
– Disseste-me que era o que querias. Não quis fazer nada que…
– Bom, talvez eu não soubesse o que realmente queria! – interrompeste.
– Talvez. – Acariciei-te a face, e tu afastaste-te. – Não fiques zangado
comigo. Não voltaremos a fazê-lo – disse eu.
Depois dessa noite, só querias foder-me. Era mais seguro, claro. Assim
conseguias agarrar-te aos últimos farrapos do teu velho autorretrato.
Confesso que gostei. Não precisava de te possuir para ser feliz. Mas a dado
momento começaste a ficar preocupado até com a ideia de teres um homem
debaixo de ti. Podias descer de cabeça erguida a Avenida da Boavista?
Iriam as crianças ter contigo a correr e dizer-te que sabiam que eras larilas?
Quão patéticas eram todas essas preocupações provincianas para um artista
que pensa que vai ser o próximo (e espera-se que último!) Andy Warhol.
Que hipócrita! Dás o salto, mas é com um pé no passeio e o outro no ar.
E ainda queres que todos pensemos que és ousado.
Vou pregar-te mais um sermão, meu Picassozinho: ser ousado não é
entornar resina e chumbo derretido em cima de uns rabiscos pintados numa
paleta de madeira. É caminhar pela prancha sem medo. Talvez um dia eu
próprio o aprenda a fazer. Telefono-te nessa altura, se ainda tiveres telefone.

Nessa tarde, recebi uma carta da minha mãe. Dizia-me que continuava a
ter pesadelos com o meu irmão. «O Harold e eu estávamos numa cama
enorme, com lençóis cor de salmão cheios de vincos. Eu sabia que não
tinham sido passados a ferro…» São estes pormenores que me fazem trepar
pelas paredes: os «lençóis cor de salmão cheios de vincos.» Será que outra
pessoa teria reparado numa coisa assim? E continuava: «… E o teu irmão
tinha virado a cara para olhar para um relógio na parede com ponteiros
vermelho-sangue. Quando me fitou, tinha a pele translúcida, e através dele
eu conseguia ver o mar escuro, tal qual ele era na minha infância em
Brooklyn. Senti que estávamos presos numa ilha, os dois juntos. Quando
acordei, tive de ir vomitar. Estava tão maldisposta que…»
Há mais de um ano que recebo cartas destas, desde o dia em que Harold
deixou de respirar, no quarto 602 de Neurologia, naquela fábrica da morte
da 59th Street com a 9th Avenue chamada Hospital Roosevelt. Assim que
acabo de ler as suas epístolas de desgraça e morte, queimo-as. É um
pequeno ritual que desenvolvi; atirá-las para o lixo não seria suficiente;
estão demasiado sobrecarregadas com a doença do meu irmão. Por isso,
depois de ler cada carta, dobro-a calmamente em quatro, pouso-a no
cinzeiro de vidro com a imagem da Torre Eiffel no fundo, e pego-lhe fogo
com um isqueiro Bic que António pôs de parte quando deixou de fumar. Se
soubesse uma oração hebraica contra possessões e assombramentos,
murmurá-la-ia enquanto o fumo sobe. Porquê?
Porque também eu tenho sonhos desses. Com a praga dos lençóis
vincados e tudo. E é por isso que não preciso dos pesadelos dela.
Sinto-me demasiado culpado para não responder à minha mãe. Por isso,
redigo pequenas mensagens, dizendo-lhe que também não o esqueci. No
entanto, eis um segredo: a maior parte das vezes consigo deixar para trás o
que aconteceu. Harold e a mãe estão ali, secos, pálidos e hirtos, dentro de
um passado que nunca será alterado e que consegui varrer para dentro de
um quarto cuja porta só abro por acidente. Exercitei-me para, de cada vez
que me aproximo dela, dar meia-volta e afastar-me. Estão ambos cobertos
de teias de aranha, claro, qual Miss Havisham9 moderna, abandonada junto
ao altar da vida no preciso momento em que as coisas pareciam
promissoras. E, contudo, há dias – quando o sol português brilha
intensamente e os meus dedos estão particularmente ágeis nas cordas da
guitarra – em que as teias de aranha caem da minha mãe o rosto dela se
ilumina, rosado e saudável, e ela se afasta do meu irmão e sai da velha casa
de família para entrar no mundo que eu habito. O problema é que mal me
lembro dos seus traços ou da sensação de lhe dar um beijo. Tudo o que a
animava foi enterrado com Harold; aquela que se afastou da sua campa era
um espectro – um fantasma a sonhar com outros fantasmas.
Depois de queimar a carta, telefono a Salgueiro, o único homem – além
de António – com quem passei uma noite desde que me separei de ti,
Carlos; agora que António está a recuperar, o meu plano de levar o miúdo a
Espanha e a França ganha forma no meu cérebro e vou precisar de um
empréstimo para poder concretizá-lo. Infelizmente, só consegui pôr de lado
mil e duzentos dólares no último ano. Quanto às poupanças que tinha
conseguido fazer nos Estados Unidos, as viagens a Nova Iorque para ir
visitar Harold ao hospital tinham dado cabo da maior parte. O resto foi
gasto na nova guitarra de António, que lhe disse só ter custado novecentos
dólares, que me está a reembolsar a prestações, mas que, na verdade, custou
mil e novecentos.
Provavelmente, perguntar-te-ás quem será este Salgueiro. Conheci-o no
Porto, no bar Moinho de Vento, talvez há cerca de seis meses. Era o tipo
mais velho que lá estava, sessenta e quatro anos na altura, como vim depois
a saber. Tinha uma cabeça grande, olhos verdes encantadores e tristes,
cabelo branco penteado para trás. De perfil, era ligeiramente parecido com
Leonard Bernstein. Estava a beberricar um líquido verde e xaroposo que
parecia desinfetante oral. «Chartreuse», explicou-me, quando me sentei ao
seu lado. Apertámos a mão, e ele segurou a minha durante tanto tempo que
percebi que me desejava. Bebi de um trago o resto da sua chartreuse e
fomos até ao apartamento dele, num edifício moderno, com uma vista
espetacular sobre o rio Douro e as caves de vinho em Gaia. Estava todo
mobilado com antiguidades. Contou-me a sua história. Estava casado há
quarenta e dois anos quando a mulher morreu. Antes disso, nunca tocara
sequer no pénis de um homem. Claro que não acreditei, mas normalmente
não contrario ilusões. Por isso, fartei-me de anuir com a cabeça. Na idade
dele, disse, era impossível arranjar uma mulher – só se fosse prostituta. E, à
noite, precisava desesperadamente de companhia. Entre outras coisas,
ganhara medo do escuro.
A verdade é que só dormimos juntos três vezes. Ele não conseguia pô-lo
de pé, e não me parecia lá muito divertido ou justo ser só eu a ter um
orgasmo. Mas ficámos amigos. Foi Salgueiro que me disse, na minha festa
de aniversário, há dois meses, que tinha a certeza de que António aprendera
a tocar guitarra como um anjo por termos sido amantes. Aquilo deixou-me
realmente feliz. Significava que o meu instrumento tinha servido para
alguma coisa nesta década patética.
Agora, quando lhe digo ao telefone que preciso de um empréstimo para
levar António a Paris, ele pergunta:
– Quanto? – O tom é cauteloso.
– Dois mil dólares – respondo.
Solta uma exclamação abafada.
– Quero fazer as coisas como deve ser e arranjar um grande carro
americano – explico apressadamente. – É uma das fantasias do António.
Conheço um tipo em Lisboa que tem um Thunderbird antigo, mas é um
sacana forreta e vai cobrar-me uma fortuna. Ouve, se dois mil é demasiado,
já te ficava grato com o que me pudesses arranjar.
Silêncio; Salgueiro está a pensar no que poderá obter em troca. Os galos
velhos negoceiam sempre.
– Já passou muito tempo desde que visitámos o nosso pequeno oásis –
anuncia.
– Não me apetece lá muito – respondo.
– Dorme só ao meu lado até de madrugada. Não terás de fazer nada que
não queiras.
– Está bem, mas quero duas almofadas de penas só para mim.
– Negócio fechado.
– Apareço depois do jantar – combino.
– Terei a sobremesa quentinha e pronta.
Diz esta última frase com uma ênfase que pressupõe que, afinal de
contas, está com esperança de que haja um mergulho no lago tépido do
nosso oásis.
«Talvez um saltinho apaixonado para dentro de água também me faça
bem», penso.
Quando entro na cozinha para explicar a Fiama que vou passar a noite
com Salgueiro, dou com ela a picar cebola e a cantar uma velha canção
triste. «Todos nós temos um fado, e quem nasce malfadado melhor fado não
terá», reza o refrão.
A sua voz grave destila melancolia. Talvez seja esta disparidade
andrógina que adoro nela. Ou talvez me sinta livre de a amar porque não a
desejo. Seja como for, sinto o coração encher-se-me de ternura. Aproximo-
me dela pé ante pé e deposito-lhe um beijo no pescoço que noutra altura e
noutro sítio teria dado à minha mãe.
Ela para de cantar e vira-se de repente.
– Ah, és tu – diz, desiludida. – Pensei que tinhas voltado para a cama
para curtir a bebedeira.
Envolvo-a nos braços e mergulho o meu olhar no dela.
– Se ao menos fosses homem – suspiro.
– Se ao menos tu fosses homem! – retruca ela.
E desatamos os dois a rir à gargalhada.
Está a fazer bacalhau para o jantar. Há três dias que tem o raio da coisa a
demolhar numa tigela.
– Se forem bocados grandes, não como. É como tentar engolir um
dicionário.
– Sabes que mais? Tu cansas-me. Pareces um caminho íngreme por um
monte acima.
– Nada de bocados grandes – repito.
– Bocados pequeninos – concorda ela. – Com cebola e ovo. Mesmo
como tu gostas.
– E azeite.
– E azeite. – Aponta a faca na minha direção. – E agora sai-me da
cozinha. Quando estiver pronto, chamo-te.
Se tiver de dar ao Salgueiro alguma coisa que valha nem que seja uma
parte do seu dinheiro tenho de ir de barriga cheia, por isso devoro o jantar
de Fiama e bebo meia garrafa de vinho tinto.

Ele abre a porta com o roupão de cetim da mulher vestido. É azul-


cobalto, debruado a pelo branco. Presenteia-me com um grande sorriso.
Abraçamo-nos. Ele dá-me umas palmadinhas no traseiro.
– «Falando do seu equipamento, ele possuía excelentes cavalos…» –
declara num tom lírico.
Salgueiro recita sempre uma frase antes dos nossos encontros, mas não
conheço esta.
– Desisto – digo.
– Devias conhecer, faz parte da tua herança.
– Faço questão de nunca ler o que quer que seja que tenha a ver com a
minha herança. Para dizer a verdade, tento com todas as forças não ler nada.
– É dos Contos da Cantuária – diz ele.
– Isso é inglês. Eu sou americano.
– É a mesma coisa – observa ele.
– Talvez te lembres de que há um oceano entre nós.
Ele faz com a mão um gesto de quem varre tudo.
Dirigimo-nos até a sala e durante algum tempo falamos do seu passado;
ultimamente, a mulher tem-lhe aparecido em sonhos. Pede-lhe que procure
umas pratas perdidas e castiga-o por haver riscos novos na mobília.
– Toda a gente que foi abandonada vive na mesma paisagem interior –
explica-me ele, quando lhe falo dos pesadelos da minha mãe.
Surpreende-me que não faça quaisquer avanços sexuais. Belisca-me
suavemente a bochecha, depois vira-se para o outro lado e adormece nos
meus braços como um bebé.
Contudo, às três da manhã, desliza entre os lençóis e agarra-se a mim
como um soldado sedento.
Quando começo a perceber onde estou e o que é aquele alto na cama,
pede-me que o penetre.
– Tudo o que quiseres, desde que me soltes por um segundo.
Enfio um preservativo. Estar dentro dele é como estar no mar, e ficamos
deitados como amantes numa jangada. Sinto-lhe o coração bater contra o
meu peito. O corpo dele escorre suor, soltando-se dele o odor a homem
novo.
– Quero deitar-me de lado – diz, por isso eu viro-o. E, surpresa, ele está
com uma ereção a sério.
– Caramba, como foi isto? – pergunto. Ofereço-lhe a minha mão. Uns
minutos mais tarde, quando já se esvaziou completamente, desata a soluçar.
Saio de dentro dele, para o poder encarar e perguntar-lhe o que se passa.
Mas ele lança a mão para trás, para me manter quieto.
– Fica – sussurra.
Acaricio-lhe as ancas. Beijo-lhe as orelhas. «Que maravilha poder dar-
lhe um pouco de felicidade», penso. Quando finalmente saio de dentro dele,
vira-se. Tem a cara vermelha e toda suada. Enxuga os olhos e diz-me:
– É o primeiro orgasmo que tenho em talvez cinco anos. Tinha-me
esquecido… – A voz foge-lhe, e ele começa de novo a chorar.
Beijo-lhe os olhos, enquanto lhe afago a penugem prateada do peito e
brinco com os seus mamilos. Seguro-lhe na mão. Digo-lhe que é
encantador. Ele acaricia-me a barriga.
– Esperei estes últimos meses sem pedir mais nada além da amizade
porque queria ter a certeza… Fiz um teste. Deu negativo. Quero que faças
amor comigo sem preservativo. Quero sentir-te dentro de mim. Só a ti.
– Porquê eu?
– Porque… porque não sei. Só sei que quero. – Percebe o meu terror
súbito e diz: – Não te preocupes. Sem compromissos. – Pega-me no queixo.
Os olhos dele estão sérios. – Ouve, mais importante, o teu António vai ficar
bem? – pergunta. – Tive um sonho com ele, e não foi bom.
– Não sei. Amanhã chega o resultado do teste.
– A juventude é uma coisa preciosa – confidencia, recomeçando a
chorar. E a vida é cruel. Tens de ser muito querido com ele.

De manhã, enquanto me visto, ele passa um cheque com a quantia de


que necessito para alugar o Thunderbird. Todo nu, esconde-o atrás das
costas e aproxima-se de mim com um ar envergonhado.
– Dou-to se me deres um abraço.
– Um amigo bonitão para abraçar e montes de dinheiro… talvez as
coisas estejam a melhorar para mim – respondo, enlaçando-o.
Beijámo-nos longamente.
– No loan. Is a gift10 – anuncia em inglês, no momento em que me passa
o cheque para as mãos. De seguida, pega-me na cabeça como se fosse
minha mãe e diz com cuidado: – Faz o António feliz. – E depois leva o
indicador aos lábios.
Um homem como Salgueiro quase consegue devolver-nos a fé no
mundo. Digo quase, porque quando informo Ramalho na manhã seguinte de
que vou mesmo precisar de faltar às duas últimas semanas de aulas, ele
replica que não pense nisso.
– Eu peço ao Pedro que me substitua – insisto.
– Nem pensar.
– Mas já lhe disse que o meu pai está doente. Podia ir-me simplesmente
embora, sabe, com uma razão dessas, e ninguém me censuraria. Dei trinta
semanas de aulas sem faltar uma única vez.
– Se se for embora, não terá emprego à sua espera quando voltar.
– Pergunte aos alunos se não fiz um bom trabalho este ano. É do seu
interesse não me perder.
– Que se lixem os alunos! E sei que está a mentir sobre o seu pai. Soube
que ele morreu há muito tempo!
Tenho consciência de que Ramalho despreza a minha liberdade e o facto
de ter uma picha americana que não cresceu constrangida pela doutrina
católica e uma boca livre da obrigação de comer todos os legumes para
poder ter uma mulher à sobremesa. Por um momento, pondero dizer-lhe a
verdade, só para o trazer à realidade. Mas a sua mente só compreende
mentiras mesquinhas.
– Se não tem mais nada a dizer-me, pode sair – lança. – Tenho trabalho
para fazer.
– Não posso pensar um minuto? Tenho de decidir se devo ou não dizer-
lhe a verdade. Não sei se posso confiar em si.
Aquele tratava-se, na verdade, do primeiro passo do meu plano:
enfraquecer-lhe as defesas fingindo intimidade.
– Não sabe se pode confiar em mim? Há quatro anos que lhe aturo mais
merdas do que a Madre Teresa teria feito.
– Não me lixe!
– Não me lixe você!
Agora que tinha conseguido pô-lo furioso contra um colega íntimo,
podia apanhá-lo completamente.
– Ouça, é a minha namorada. Está em Lisboa, tem de ser operada. São
os ovários. Estão podres.
– Nunca falou em namorada. – Tira do bolso os Marlboro Lights e o
isqueiro de ouro e acena-me com ar intrigado. – Alguns de nós já
começávamos a pensar que você era maricas, sabe?
– Vá-se lixar – respondo-lhe.
– Está bem, tem direito a ficar zangado. Mas continuo a não perceber
como é que os ovários podres da sua namorada o obrigam a faltar às aulas
durante uns tempos.
– A operação vai ser em Lisboa. Preciso de estar lá com ela. Prometi-
lhe. Ouça, se correr mal, ela corre o risco de nunca mais conseguir fazer
amor com prazer, por isso para nós isto tem bastante importância.
Se o homem tivesse miolos, teria perguntado o que é que os ovários
tinham a ver com prazer, mas eu estava a contar com o facto bem conhecido
de os homens heterossexuais saberem ainda menos sobre a anatomia da
mulher do que qualquer maricas que conheci. Acham pecado olhar para o
sexo da mulher; podem transformar-se em sal, ou algo parecido. Ou então
descobrir que o raio da coisa não tem nada a ver com a fantasia deles.
Ramalho acendeu o cigarro enquanto pesava as opções. Era a altura de
usar a minha vantagem.
– Já falei com o Pedro, e ele não se importa de me substituir –
confidenciei.
– O Pedro já tem aulas que cheguem.
– O problema é dele. Sabe que vão ser duas semanas infernais, mas
concordou.
Era mentira, claro.
– Só há mais um problema – continuei. – Se me ausentar, terei de
desistir da entrevista. Se quiser, posso perguntar se o querem entrevistar a si
no meu lugar.
– Qual entrevista?
– Há um repórter do Público que quer escrever um artigo sobre mim.
Um guitarrista americano no Porto. Estrangeiros que trazem inovações à
Terra Onde o Tempo Parou, esse tipo de parvoíces. Era para ser esta
semana, na sexta-feira. Vou sugerir-lhe que fale consigo sobre professores
de música estrangeiros em geral. Pode falar sobre mim, e o Pedro, e todos
os que tem contratado ao longo dos anos. Falar dos nossos pontos fortes e
fracos.
– Acha que ele vai nisso?
Ramalho é o tipo de fera enjaulada que adora a ordinarice ao serviço do
seu minúsculo ego.
– O jornalismo é como o sexo… – respondi –, o que importa é encher
espaço. Ele tem um buraco enorme que precisa de preencher na secção da
Cultura e, segundo ouvi dizer, você tem o tamanho certo para isso.
Tirou uma longa baforada do cigarro e piscou-me o olho. Que espécime
de ego obsceno! Se fosse possível atar-lhe um saco de papel em volta da
cabeça, era só empacotá-lo e vendê-lo como pornografia barata.

Às quatro da tarde, depois de dar aulas a três alunos com uma falta de
talento satânica, dirijo-me para o hospital. Os resultados ainda não
chegaram.
– Amanhã – diz-me a enfermeira-chefe. Respondo-lhe que isso é
inaceitável.
Ela vira-me as costas e afasta-se.
– Inaceitável! – grito-lhe.
Vou ver António. Está a dormir. À distância, não parece perigoso.
Esgueiro-me dali.

Passo outra noite em claro, o pijama de flanela da Macy’s vestido. Tinha


comprado outra garrafa de ouzo, e bebo-o por uma tigela de sopa de
cerâmica azul. Ponho-me outra vez a ouvir os cães ladrar.
E toda a preocupação, todas as rezas secretas, todo o álcool para nada.
Na quarta-feira de manhã, Miguel deixa uma mensagem no meu atendedor:
«O António testou seropositivo. Está muito deprimido. Recusa-se a falar.
Professor, pode ajudar-me? Está lá? Pode ligar-me de volta? Está lá?»

9
Miss Havisham é uma personagem criada por Charles Dickens no seu romance Grandes
Esperanças. Abandonada no altar, nunca mais tira o vestido de noiva, e assim envelhece e morre
numa casa luxuosa, mas em ruínas e coberta de teias de aranha. (N. da T.)
10
«Não é um empréstimo. É um presente.» (N. da T.)
Parte II
9
Harold, o meu irmão, manifestou sintomas da aproximação da Morte ao
longo dos seis anos que antecederam o inevitável confronto. Primeiro, já em
1987, a zona invadiu-lhe o peito. Depois, os gânglios linfáticos nas virilhas
e axilas incharam até ficarem do tamanho de ovos de codorniz. A seguir, o
cérebro foi atacado por toxoplasmose. Depois de os medicamentos à base
de sulfonamidas o terem libertado daquela invasão de protozoários,
começou a perder a sensibilidade nas mãos, nos pés e nas cordas vocais. Os
médicos chamaram-lhe neuropatia. Admitiram a hipótese de o próprio vírus
VIH se ter depositado nas terminações nervosas e estar a prejudicar as
respetivas transmissões elétricas. Mas nem o nome desta patologia
específica, nem quaisquer teorizações sobre a sua possível causa valiam do
que quer que fosse; não havia cura. Perto do fim, Harold era um corpo
escanzelado e abandonado numa cama de hospital, que usava as mãos como
se fossem barbatanas de foca. Também tinha as cordas vocais entorpecidas,
e falava num sussurro rouco, como Marlon Brando n’O Padrinho. Qualquer
idiota com dois dedos de testa teria percebido que ele chegara à nona e
última entrada do seu jogo de basebol. Contudo, quando o jogo terminou e
todos os espectadores regressaram casa, foi um choque tão grande para mim
que não consegui sair da cama durante duas semanas.
Moral da história? Nunca estamos tão preparados como pensamos.
Duas coisas há contra as quais nos devemos resguardar no momento em
que a primeira onda de incredulidade se abate sobre nós e sabemos que
alguém que amamos tem uma doença grave. A primeira é dos amigos que
fogem mal sentem os nossos pensamentos sobre a morte. Vestidos com as
teias de aranha do medo, estão convencidos de que tudo o que importa na
vida é divertirem-se. A morte não é divertida. Nem a doença.
Lembras-te de como te escondeste no estúdio enquanto eu convalescia,
Carlos?
Ah, mas não esqueçamos aquelas almas amargas que não se limitam a
fugir e ainda tentam magoar-nos. Porquê? Porque sabem que vamos sofrer
muitíssimo mais no estado de fragilidade em que nos encontramos. Deixa-
me contar-te uma história simples e ilustrativa do que acabo de dizer.
Quando Harold morreu, Bernie, meu amigo de infância, estava por acaso
em Salamanca para uma conferência internacional de biofísicos. Nunca te
falei nisto, Carlos. Sentia-me completamente isolado porque já estavas a
afastar-te de mim e queria que Bernie viesse ao Porto visitar-me. Ele tinha
conhecido bem o meu irmão, e eu precisava de alguém próximo com quem
pudesse falar da nossa família. Considerei a sua estada em Salamanca nessa
altura uma dádiva de Deus. A prova, suponho, de que o desgosto me toldara
a visão. Disse-lhe que lhe pagava a viagem até ao Porto e que ele podia
ficar no nosso apartamento ou que lhe arranjava um hotel na cidade, e que
eram só três horas de carro. Sabes o que me respondeu? Que só tinha um
dia livre em Salamanca para fazer compras e não podia vir. Queria comprar
umas «T-shirts malucas» para os miúdos, uma carteira de couro para a
mulher e uma «coisa mesmo bonita» para a irmã mais nova, Sandra, que ia
casar pela segunda vez com um cirurgião dentista «completamente
desmiolado». Ofereci-me para o ajudar a encontrar essas coisas no Porto.
Ou mesmo alugar um carro e ir ter com ele a Salamanca. Ficou calado um
momento e depois, como se eu não tivesse feito sequer uma proposta
desesperada, perguntou-me se fazia ideia do que deveria comprar para
Sandra.
– Não – respondi, atordoado.
– Nunca foste grande coisa a fazer compras – observou, acrescentando
que, se quisesse encontrar-me com ele no aeroporto de Madrid, antes de ele
embarcar, podia fazê-lo. Dirigiu-se-me num tom condescendente, como se
estivesse a ceder de má vontade a um capricho. «Então e o Harold?»,
perguntei-lhe. Ele suspirou e respondeu: «Acontece, pá. A vida continua.»
Usou mesmo aquele «pá». Como se a vida fosse uma sitcom e no
próximo episódio todos descobríssemos que os últimos seis meses tinham
sido um pesadelo, que Harold estava vivo e de boa saúde, a viver num
Holiday Inn em San Juan, com amnésia.
«A vida continua», disse-me. O que é que se responde a isto?
– Vai-te foder, idiota! – Foi um dos meus poucos momentos de
eloquência neste mundo.
Carlos, tu foste moldado do mesmo barro que Bernie, claro. Ao fim e ao
cabo, piraste-te da minha vida três meses depois da morte de Harold,
escrevendo, na tua carta de despedida, que eu era apenas um «larilas
estrangeiro com toda uma família amaldiçoada».
A segunda coisa contra a qual nos devemos resguardar está mais à mão:
o ódio que sentimos por nós próprios. Se dermos ouvidos à culpa, vamos
passar os dias a emborcar licores gregos baratos ou a chutar Valium e a
pregar sermões a toda a gente que conhecemos, como se eles tivessem
convidado o Anjo da Morte para a nossa sala. Ou talvez, se formos mesmo
uns cobardolas de merda, até nos mudemos para um canto remoto na ponta
da Europa. Portanto, se não queremos passar a vida num exílio ébrio, na
Terra Onde o Tempo Parou, então, o melhor é amordaçarmos a culpa e
atarmos-lhe um bloco de cimento aos pés antes de a lançarmos ao mar. Se
ao menos eu conseguisse. Não que agora regressasse à América. Essa fase
acabou. Deus me livrasse de ter de aturar imbecis como Bernie e as suas
sitcoms. No entanto, se conseguisse libertar-me do remorso, pelo menos
esta carta que te escrevo, querido Carlos, seria queimada no cinzeiro
sagrado que recebe as missivas da minha mãe. E depois poderia prosseguir
com a minha vida.
«Mas porque te sentes ainda culpado?», ouço-te perguntar.
Por variadíssimas razões. E talvez a mais importante seja por ter
simplesmente sobrevivido.
Vou contar-te um segredo agora, querido Carlos: o meu amor por ti pode
muito bem ser o reflexo da culpa que senti por não ter ajudado o meu irmão
o suficiente. Deixa-me esclarecer: no seu leito de morte, Harold confessou-
me que só lamentava uma coisa. Claro, pensei que ia dizer que tinha sido
estar com o tipo que ejaculou um milhão de cossacos invisíveis para dentro
dele. Mas não. Esbugalhou os olhos, levou a barbatana direita à minha mão
e rouquejou: «Perdi demasiado tempo encarcerado num mosteiro e a
censurar toda a gente por isso, tu incluído. Porque tu estavas de fora e eras
livre. E agora o tempo já se escoou todo. Nunca me apaixonei.» Adejou as
barbatanas de foca no ar, como um mágico a mostrar ao público que fez
desaparecer o coelho branco. Tremiam-lhe os lábios. Sorriu amargamente e
murmurou: «Já se escoou todo.» Gritou-o o melhor que pôde, naquela sua
voz roufenha que esmorecia…
escoou todo
escoou todo
escoou todo…
até que surgiu, lesta, uma enfermeira de luvas cirúrgicas e máscara que
lhe injetou uma enorme quantidade de qualquer coisa que o fez adormecer.
Nunca mais consegui falar com Harold; regressava a Portugal na manhã
seguinte.
Ele não conseguia falar ao telefone.
Escrevi-lhe mais três cartas. Ele recebeu uma.
Porque não me esforcei mais para o arrancar do armário quando ele
ainda estava bem, quando tive oportunidade? Há muitas respostas para isso.
Ele era um sacana malcriado e egoísta. E, como o próprio admitia, invejava
a minha liberdade. A única coisa que precisas de saber, Carlos, é que todas
as respostas me levam a ti; porque nesse aspeto és igual a ele. Sabes, talvez
a verdadeira razão por que tens esta extensa carta nas mãos se prenda com o
meu complexo salvífico. Todas estas palavras têm por único objetivo
impedir-te de desperdiçares a tua vida.
Se os meus motivos também são egoístas? Claro.
Ao fim e ao cabo, tu és a minha segunda oportunidade.

Depois de Miguel me ter deixado a mensagem no atendedor automático,


voltei a ligar para a escola informando que estava doente e dirigi-me para o
parque por trás do Museu de Arte Moderna. Pensei muito no meu irmão
enquanto passeava em volta do lago, observando os patos a deslizar sobre a
água e admirando o capim-das-pampas. Sentei-me à sombra de uma grande
magnólia. Conseguia ver Harold ali sentado comigo, lívido e hirto,
momentaneamente eLivros daquele quarto do passado, onde com grande
esforço nunca entro. E depois começou a cair uma chuva miúda, que logo
se transformou numa bátega. Deixei-me ficar ali, como se a água me
pudesse ajudar a acordar noutra realidade em que António era apenas um
rapaz preocupado com os resultados do futebol. Com a roupa
completamente encharcada e a chuva a pingar-me da cabeça numa espécie
de cortina, apanhei o 78 e voltei para casa. O odor de lã molhada era
sufocante e ao mesmo tempo exaltante, por me lembrar tão intimamente a
minha infância.
Chegado a casa, despi-me e atirei a roupa para a banheira. Do varão do
chuveiro pendiam três dos sutiãs pretos de Fiama. Ela lava-os à mão e
depois deixa-os ali como morcegos a dormir.
Depois de vestir as calças de fato de treino, telefonei ao americano de
Lisboa que tem o Thunderbird. Chama-se Bob e conheci-o porque arranjava
haxixe para o nosso professor de violoncelo, um australiano. Só falara com
ele uma vez, de passagem. Respondeu com uma voz sonolenta e anunciou
que acabara de regressar de Boise, no Idaho, imaginem.
– Como é que um tipo do Idaho vem parar a Portugal? – perguntei.
– A versão curta? Era um estudante solitário na Universidade Pública de
Idaho, quando conheci uma rapariga portuguesa com os olhos mais bonitos
que alguma vez vira. Casámo-nos. A mãe dela estava a morrer. Viemos para
Portugal. Fim da história.
Eu devia saber que só teria vindo por uma questão de amor ou morte; só
isso nos obriga a mudar de lugar.
Expliquei o motivo pelo qual telefonava. Claro, ele continuava a ter o
Thunderbird. Disse que o comprara quase dez anos antes a um emigrante
português de New Bedford que mandara vir o carro para cá para um verão
divertido em 86 e que depois o vendera quando se rendeu à evidência de
que tanto ele como os filhos detestavam o Velho País.
– Imagine ser um miúdo americano e descobrir que os pais são deste
lugar esquisito onde as pessoas comem lulas! – exclamou Bob com um riso
abafado.
Disse-me que me alugava o Thunderbird por duzentos dólares a cada
setecentos e cinquenta quilómetros, para pagar o desgaste do motor.
Consegui que baixasse para cento e cinquenta. Mas teria de ir buscar o
carro a Lisboa e deixar um depósito de setecentos e cinquenta dólares.
– Só quero avisá-lo de que a geringonça gasta quase quatro litros aos
vinte quilómetros – confidenciou.
– De que cor é?
– Preto.
– Deve parecer um carro funerário.
– Parece mais o Batmóvel.
Pareceu-me perfeita a imagem de um carro de livro de quadradinhos a
levantar poeira pelo planalto de Castela fora até à velha Madrid.
Combinámos que iria ter a casa dele às quatro da tarde do dia seguinte,
quinta-feira, para ir buscar o carro. Quando desliguei, pus-me a andar na
sala para a frente e para trás. «Duas semanas na estrada com o António.»
Emborquei um Cointreau; estava a começar a enjoar-me do ouzo. Levei a
garrafa comigo até ao telefone. Quando peguei nele para ligar a António, as
emoções já se tinham esgueirado de mim. Conseguia ver-me de cima. Tinha
a mão a tremer, as faces lívidas, e a boca sabia-me a terebentina. Quando
Miguel respondeu, entornei sem querer o líquido da garrafa que levava aos
lábios.
– Oh, merda! – exclamei.
– Quem fala?
– Sou eu, o professor de guitarra do António. Desculpe o palavrão, tive
um pequeno acidente.
– Professor, estou farto de lhe telefonar – respondeu, num tom áspero e
seco.
– Recebi as suas mensagens, mas não podia falar.
– Então já sabe do rapaz.
– Pois.
– Vai continuar a dar-lhe aulas?
– Claro – respondi.
Miguel rompeu em soluços. Já tinha ouvido tantas pessoas chorar do
outro lado do fio na última década que não me parecia estranho. Há muito
que deixara de querer que as pessoas parassem de largar num pranto por
minha causa. As lágrimas dele eram-me inúteis. Por isso, pousei o telefone
no colo e bebi um pouco mais.
Os portugueses têm por hábito desculparem-se por mostrarem as suas
emoções, pelo que, quando parou de chorar, ele assim fez.
– Não tem nada de que pedir desculpa – assegurei-lhe.
– Lamento mesmo muito.
– Não faz mal.
– Lamento muito, muito mesmo.
Respondi com um suspiro.
– O António disse-me que não quer continuar com as aulas – explicou
Miguel. – Vai ter de falar com ele. Ele não quer falar comigo.
– Eu falo. Mas, ouça, tenho uma proposta. Sei que ainda faltam duas
semanas de aulas, mas quero levar o António a Madrid e a Paris. Vou pedir
para lhe adiarem os exames finais para setembro. Não há problema.
– Mas como? Quero dizer, vão os dois juntos?
– Importava-se? Acho que lhe vai fazer bem afastar-se daqui e conhecer
outros lugares. No hospital, ele confidenciou-me que queria viajar. Se está
preocupado com as aulas de guitarra, posso continuar a dar-lhas durante a
viagem.
– Mas então e as outras aulas?
– Esqueça.
– Mas porque é que iria fazer isso por ele?
– Porque ele quer ir.
Silêncio.
– Ouça, não tente entender nada para já – continuei. – As coisas vão
ficar mais claras daqui a um tempo. Pense só se o autoriza a ir viajar
durante duas semanas.
– Vou ter de pensar nisso. E terei de discutir o assunto com a mãe dele.
– Pode telefonar-lhe esta noite?
– Sem dúvida.
– Então ligue-me depois de falar com ela. Agora passe-me ao António,
por favor.
– Vou ver se ele quer atender.
Enquanto esperava, percebi que levaria António comigo, mesmo que os
pais não autorizassem, porque ele tinha vinte e quatro anos e o direito de
decidir o seu próprio futuro. Miguel até podia mandar a polícia atrás de nós,
que eu me estava nas tintas. Seria um prazer ainda maior ter a Guardia Civil
no nosso encalço, enquanto passeávamos por Madrid no Batmóvel.
– Ele não quer falar consigo – anunciou Miguel.
– Diga-lhe que, se não vier ao telefone imediatamente, vou aí a casa,
piso-lhe a guitarra toda e obrigo-o a cantar como a Edith Piaf.
– Pisa-lhe a guitarra?
– Ele vai perceber. Diga-lhe.
– Estou a ouvir. O que foi? – disse António, mal pegou no telefone.
Tinha a voz carregada de irritação.
– Então, estás pronto para a nossa pequena excursão? – perguntei num
tom alegre.
– De que estás a falar?
– Da nossa viagem a Madrid e a Paris.
– Porquê?
– No hospital… falaste em visitar as duas cidades. E eu disse que te
levava. – Pensei em contar-lhe da oportunidade de estudar com José Maria
Landero no Conservatório de Paris, mas decidi não o fazer para já. Naquele
momento, só lhe daria mais uma desculpa para se furtar.
– Preferia não ir – respondeu.
– Mas Paris… vamos andar pelas ruas. Ver a Torre Eiffel. Os bolos são
os melhores do mundo. E os queijos, deliciosos. Vai ser bom sair daqui.
– I’d prefer not to – repetiu ele, em inglês.
Uma noite, na cama, cometera o erro de lhe ler Bartleby, o Escrivão, de
Melville, e esta seca expressão de recusa era a sua maneira de me castigar.
– António, ouve – comecei, mas não consegui acabar a frase porque
prometera a mim próprio nunca mais fazer o discurso de incentivo fosse a
quem fosse. – Queres acabar primeiro as aulas e ir depois?
– Não vou regressar às aulas.
– Ouve, daqui a dois dias parto para Paris. Passando por Madrid. Vou
buscar o carro a Lisboa amanhã e arrancamos na manhã seguinte. Tu vens
comigo. Por isso, põe umas coisas na mala. Levamos a minha guitarra. É
melhor do que a tua, e não precisamos das duas.
– A última coisa que me apetece é tocar o raio da guitarra.
– Tu adoras a guitarra.
Silêncio.
– É uma coisa que fazes maravilhosamente bem, é um dom, mas há que
praticar.
Era uma afirmação profundamente estúpida, porque remetia para o
futuro. António ficou calado. Censurei-me por ter perdido a prática de falar
com os condenados. E estava a tornar-se cada vez mais claro que em
português os meus dons oratórios eram totalmente inadequados. Carlos,
talvez não compreendas. Mas é preciso desenvolver todo um vocabulário
para falar com quem se confronta com a própria morte. É obrigatório evitar
certos tempos verbais.
Naquele momento, apetecia-me tanto um Valium que quase conseguia
sentir o pequeno comprimido fantasma a dissolver-se-me na língua. O
Cointreau fá-la-ia deslizar deliciosamente pela goela. E talvez então
conseguisse falar português sem erros, se estivesse bêbado e drogado.
– Queres que eu vá ter contigo? – perguntei.
– Não!
– Ouve, António, não precisas de me excluir da tua vida.
Silêncio de novo. O sacaninha iria dar cabo de mim com um desprezo
silencioso.
– Isto é importante… o que vou dizer-te agora é importante – comecei,
sem a menor ideia do que ia dizer. Benzi-me, como costumava fazer quando
Harold tinha ataques de fúria.
– Então di-lo de uma vez! – gritou António.
– Quero estar contigo… Mais do que tudo, quero estar contigo. Abraçar-
te. Mas tenho medo. Porque não sei como vais reagir. E não sei se vou
conseguir aguentar. Sou fraco, António. Já fui forte outrora. Há uns anos
podia ter-te ajudado. Mas agora sou fraco. Já não me restam alicerces.
Ele desligou sem uma palavra. Bebi uns goles ávidos de Cointreau e
voltei a ligar-lhe. Foi Miguel quem atendeu, dizendo que António tinha
fugido para o quarto e trancado a porta.
– Lamento muito, Professor.
– Não faz mal – respondi –, mas ligue-me mais tarde para me dizer o
que o senhor e a sua mulher decidiram.

Miguel não telefonou nessa noite. Cortei o cabelo de forma frenética e


sentei-me perto da janela. Experimentei uma aguardente, porque o
Cointreau era doce de mais, enjoativo. Fiquei acordado à espera de Fiama
até à uma da manhã porque queria que ela me desse outra massagem nas
costas, mas, quando vi que nunca mais chegava, fui deitar-me, resolvido a
apanhar o comboio no dia seguinte para buscar o T-Bird a Lisboa. Acordei
às duas e meia da manhã com o telefone a tocar. Era Miguel. Parecia
desesperado e bêbedo.
– Posso passar por aí? – perguntou. – Preciso de falar. Não consigo estar
aqui sozinho. Não consigo.
– Onde está o António?
– Foi dormir a casa da mãe.
– Porque quer vir cá agora?
– Aqui está muito escuro.
– Aqui também está escuro. O Sol já se pôs. É o que acontece sempre.
– Estou sozinho.
Agora tinha Fiama de pé, ao meu lado, nua.
– Está tudo bem? – perguntou, formando as palavras só com a boca e
franzindo os olhos ao ver o meu cabelo mal cortado.
Fiz-lhe sinal de que estava tudo controlado.
– Está bem, venha. Sabe onde moro? – disse para o bocal do telefone.
– Sei.
– Que raio se passa? – perguntou Fiama depois de eu ter desligado.
– Era o Miguel, o pai do António.
Expliquei-lhe que tinham chegado os resultados dos testes. Ela sentou-
se na minha cama e pegou-me na mão.
– Isso explica o cabelo… O que é que lhe fizeste? Parece que foste
atacado por um louco de motosserra num filme de terror.
Ergui a mão e passei-lha pelos seios. Ela afastou-a.
– Que estás a fazer?
– Há momentos em que quase consigo imaginar-me a fazer amor
contigo.
Ela tapou os seios com as mãos.
– Tresandas a aguardente.
– Obrigado – agradeci com um movimento de cabeça.
Ela enfiou o roupão e foi buscar a tesoura à casa de banho. Enquanto
esperávamos por Miguel, tentou remediar a desgraça que eu tinha feito ao
cabelo. Diria que é santa, mas é muito mais do que isso. Por isso, pedi-lhe
conselho sobre o que havia de fazer em relação a António.
– O que fizeste pelos outros? – perguntou.
– É sempre diferente. E é sempre igual.
– Então, o que fizeste?
– Não sei. Temos de esperar que eles nos digam. Saber ouvir parece
sempre a coisa mais importante.
– Exatamente o que a maior parte das pessoas não sabe fazer.
Deixei-a continuar a cortar durante um bocado, e depois disse:
– Acabei por ouvir muito nos últimos doze anos. Mas há uma altura em
que deixam de falar. O Henry, o Colosso, ficou sentado numa cadeira, hirto,
durante os últimos três meses de vida. Não falava, nem se mexia. Tinha
feridas no rabo, e um tumor na garganta, e mesmo assim não se mexeu. Era
como uma daquelas feras do jardim zoológico, enfiadas numa jaula e que
ficam tão deprimidas que simplesmente desistem. Desistem de tudo. Entram
em greve. Olham para nós com olhos acusadores. E depois morrem.
– O António não vai fazer isso. – Agarrou na minha cabeça e inclinou-a.
– Olha para baixo, para eu poder cortar melhor no topo.
– Como é que sabes que não se vai fechar?
– Não vai, ponto final. Ainda tenho a visão a cem por cento.

Miguel apareceu meia hora mais tarde. Trazia uma camisa azul
manchada no colarinho e os botões trocados. Tresandava a álcool, tabaco e
suor. A sombra escura da barba por fazer contornava-lhe as faces, e tinha o
cabelo de um grisalho oleoso. Os olhos, meio perdidos, transbordavam de
ansiedade. Fiama ajudou-me a escoltá-lo até ao sofá. A mão dele roçou-me
no rabo enquanto andávamos.
– You’ve got me all wrong, mister11 – declarei com voz de macho,
sabendo que ele não perceberia o meu inglês.
Fiama percebeu, porque trabalha numa agência de viagens. Disse-me
que eu era um idiota.
– O que é que disse? – quis saber Miguel.
– Vá, deite-se lá e pare de se perguntar que tal seria quebrar alguns
tabus.
– Chiu… – fez Fiama.
Ele ergueu a mão como se fosse lançar uma tirada shakespeariana e
depois deixou-a cair.
– Preciso de dormir – explicou. – Mas estou com sede. Cheio de sede. –
Agarrou-me o braço. – Estou mesmo a morrer de sede.
Fiama foi buscar-lhe água. Quando me passou o copo, ergui a cabeça a
Miguel e ajudei-o a beber uns goles valentes antes de entornar o resto na
camisa. Imperturbável, ergueu a mão e fez um sinal na direção de Fiama.
– Quem é? – perguntou num tom surpreendido. – A sua mulher?
Também vim perturbar a sua mulher?
– Sou só uma amiga – respondeu Fiama.
– A sua mulher? – perguntou de novo, perfurando-me com o olhar,
como se eu fosse transparente.
– Uma amiga, meu porquinho. Uma amiga!
– A sua mulher… – suspirou, exausto do esforço de se manter
consciente. Soltou um gemido rouco, passou a língua pelos lábios e a seguir
apagou-se.
Como se tivesse acabado de chegar a essa conclusão depois de várias
décadas a trabalhar nela, Fiama assentiu gravemente com a cabeça.
– Sabes, os homens são a coisa mais encantadora e também mais
repulsiva do mundo – declarou num tom poético. Apontou para Miguel: –
Se ao menos alguém inventasse um vibrador com essa cara.
– Então e as mulheres?
– O que é que têm?
– Não achas as mulheres encantadoras e repulsivas, também?
– São pequenos malmequeres… fáceis de pisar, em que raramente se
repara. Mas os homens… – Atirou uma mão na direção de Miguel. – Os
homens são flores de hibisco enormes. Se nos aproximamos de mais,
descobrimos que as suas pétalas são venenosas ao toque.
– Nem todos os homens – observei.
– Não? – Fiama encolheu os ombros e atirou-me um beijo com a mão,
antes de ir para o quarto.
Fiquei ali sentado a ouvir Miguel ressonar. Bêbedo, mal-amanhado, não
o achei minimamente atraente. Apaguei as luzes.
11
«Estás muito enganado comigo, pá.» (N. da T.)
10
Acordei perto das cinco da manhã, completamente desperto. Vesti as
calças de pijama e fui até à sala. Miguel continuava a dormir, mas algures
durante a noite tirara a camisa e os jeans. Usava boxers brancos, imagine-
se. O ar estava pesado na casa. Enfiei uma camisola e encaminhei-me para a
varanda. Na distância, acima dos plátanos que guardavam o outro lado da
rua, vislumbrava o Palácio de Cristal, uma cúpula gigante verde-lima de
cobre e betão para eventos desportivos. Parecia-me um disco voador que
aterrara no topo de uma ravina. Cinquenta metros abaixo, estendia-se o rio
escuro. Uma brisa arrepiou-me o couro cabeludo.
Subitamente, ouvi passos atrás de mim. Miguel aproximou-se. Trazia os
jeans vestidos, mas estava de tronco nu. Era um homem peludo, pequenino
e musculado.
– Olá – disse, apertando-me a mão. – Acho que adormeci.
– Apagou-se – observei.
– Cortou o cabelo.
Passei a mão pelo pouco cabelo espetado que ainda me restava.
– Devo parecer um recruta – disse eu.
– Não, está ótimo. Não se preocupe. – Coçou a barriga. – Bolas, acho
que bebi de mais.
– A sério? Não dei por isso – sorri.
Ele esboçou um sorriso rápido.
– Ouça, desculpe ter feito isto. Devo estar doido.
– Não há problema. Eu compreendo.
Ficámos a olhar um para o outro. Havia muito a dizer sobre António,
mas nenhum de nós queria começar. Miguel acendeu um cigarro, puxou
uma ou duas passas e depois estendeu-mo. Acercámo-nos da grade da
varanda e ficámos ali a fumar.
– Fui eu que impedi o António de ir para o Conservatório – confessou.
– O que quer dizer com isso?
Deu uma passa ávida no cigarro e depois apontou para a abóbada verde
ao longe.
– Alguma vez viu fotografias do edifício que deitaram abaixo para
construir aquela monstruosidade?
Anuí com a cabeça: era todo feito de ferro e vidro – um verdadeiro
Palácio de Cristal, inspirado num edifício de Londres com o mesmo nome.
– Era lindo, não era? – perguntou.
– Muito.
– As pessoas cometem loucuras, e depois, de repente, uma coisa
lindíssima desaparece para sempre. Só nos restam postais e fotografias.
Enfiou o cigarro na boca e agarrou a balaustrada de metal com ambas as
mãos. Puxou-a, como se estivesse a testar-lhe a resistência.
– Eu dantes fazia ginástica. Houve uma altura em que faria o pino aqui
mesmo com a maior das facilidades.
– Não faça. Não quero ter de o descolar do pavimento lá em baixo.
Pôs-se a esfregar as faces.
– Não, agora estou velho. Há coisas que só são boas quando se é novo.
Depois acabou-se.
Ficámos ali os dois a ver a noite deslizar para o dia.
– O António veio ter comigo quando tinha dezoito anos e perguntou-me
se podia estudar Música – continuou. – Disse-lhe que não. Sabe porquê?
Abanei a cabeça.
– Pensei que era por sermos de uma natureza que não é compatível com
a música. Quero dizer, achava que a música era para outro género de
pessoas, gente snobe, gente que não era como nós. O António estava fadado
para ser um bom pedreiro, como eu. Isso, sim, era trabalho. Trabalho de
homem. Percebe o que quero dizer?
Anuí com a cabeça.
– Mas não foi essa a verdadeira razão. – Miguel voltou a agarrar na
balaustrada como se se preparasse para o tal pino que ameaçara instantes
antes. Encarou-me e, expelindo uma baforada de fumo, disse: – Eis a
verdadeira razão: eu sentia inveja e não queria que ele fosse mais do que eu.
Percebe o que estou a dizer? Impedi-o de fazer o que ele queria por ser um
sacana invejoso. Ele tinha um dom, e eu sabia-o. Mas não queria que ele o
tivesse. – Lançou a beata por cima do corrimão. Caiu no pavimento lá em
baixo numa chuva de faúlhas. – Sou um sacana ciumento.
– O António disse-me que não se tinha inscrito mais cedo na escola
porque o Miguel não tinha dinheiro.
– Ele disse-lhe isso?
Fiz que sim.
– Mas não foi essa a razão! Estava a proteger-me.
– Então o que o fez mudar de ideias?
– Antes de responder a essa pergunta, há outra coisa… – disse. – Não
sei se já descobriu, mas o António é homossexual. – Pronunciou a última
palavra como se pesasse imenso.
Sorri.
– Já sei há muito tempo.
– E não o incomoda?
– Sou a última pessoa a poder ficar incomodada com isso.
– O que quer dizer?
De repente, tive medo, pelo que respondi:
– Sou nova-iorquino. Lá, isso não tem assim tanta importância.
– Suponho que será mais frequente nos Estados Unidos.
– Não, é só menos escondido. É bastante frequente em toda a parte.
– Acho que sempre soube. Coisas pequenas, quando ele era novinho…
E achei que, se o impedisse de fazer o que queria, ele ia acabar por mudar.
Dizer-lhe de caras que não aprovava o que ele queria ser era como dizer-lhe
que tinha de mudar. – Calou-se por uns instantes, ergueu os olhos para as
estrelas e depois virou-se para mim. – Já vê porque é que sou um grande
sacana.
– O António é um miúdo fabuloso. E conseguiu fazer o que queria.
Entrou para a escola. Você não é tão sacana como pensa.
– Ao fim de três anos… fi-lo desperdiçar esses anos. Foram-se. E
agora… – A voz fugiu-lhe. Acendeu outro cigarro. – Eu dantes era muito
próximo dele. É meu filho. Você conhece-o. Sabe como ele é. Quando era
miúdo, eu sentia-me tão abençoado. Todos sentíamos. E depois esta coisa
do Conservatório… as discussões. E a confirmação de que ele era gay. Era
como se alguém estivesse a separar-nos, a pôr grades entre nós. Eu andava
sempre a gritar com ele. Um dia bati-lhe. Bati-lhe a sério. Dei-lhe um murro
na cara quando descobri que tinha dormido com um rapaz em nossa casa
numa altura em que eu e a mãe tínhamos saído. «Na minha casa!», gritei-
lhe. Como se a casa não fosse dele também. Como se ter relações sexuais
não fosse uma coisa natural. Como se tivesse sido melhor que o tivesse
feito na rua, como um animal.
Não sabia o que dizer, por isso encostei-me a ele no corrimão.
Finalmente, apercebi-me de que estava com frio.
– Talvez devêssemos voltar para dentro.
Ele agarrou-me na mão.
– Quero conhecer o meu filho – disse. – Quero conhecer o meu filho. –
As palavras saíam-lhe tensas, disparadas entre os maxilares cerrados. –
Quero conhecê-lo antes… antes que ele morra. – Agarrou-me ambas as
mãos. – Professor, será demasiado pedir para conhecer o meu próprio filho?
– Não.
– Quero ir convosco. Quero conhecer o António como o Professor o
conhece.
Mais uma vez, falou de António com se nos pertencesse aos dois.
Saberia que eu era gay? Estaria apenas a pôr-me à prova?
– Quer ir connosco? – perguntei.
– O senhor vai levar o rapaz a Madrid e a Paris. Quero acompanhar-vos.
Ajuda-me?
– Não tenho a certeza se será boa ideia.
– É a única maneira. Posso não ter outra oportunidade de chegar até ele.
– Encolheu os ombros, envergonhado com a sua própria insistência.
– Se o António estiver de acordo, por mim tudo bem – acedi.
– Ele não vai estar de acordo. Tem de ser o Professor a decidir.
– Não sei. Não me parece que possa.
– Quero conhecê-lo. Percebe?
– Vou falar com ele. Vou ver o que posso fazer. Haveremos de arranjar
maneira.
Mal concordei em interceder, apercebi-me de que tinha cometido um
erro. Voltámos para casa e despedimo-nos. Pensei depois que, se Miguel
viesse connosco, teríamos pelo menos uma vantagem: ele podia informar-se
sobre a medicação que António teria de tomar durante a viagem, se a
houvesse, e certificar-se de que ele o fazia às horas certas. A última coisa
que me apetecia era ficar de novo nesse papel de cuidador.
Não consegui voltar a adormecer; pessoas há muito enterradas vinham
assaltar-me os pensamentos com olhos encovados e de além-mundo. Então,
vesti umas calças de ganga e uma T-shirt, enrolei um cachecol de lã em
volta do pescoço, atirei o casaco dos L. A. Dodgers para cima dos ombros e
saí para apanhar o comboio das sete rumo a Lisboa. O ar estava fresco e
puro, com laivos de um violeta nebuloso. No horizonte, a ponte da Arrábida
era um arco-íris cinzento a proteger o rio negro. O Porto parecia uma cidade
com uma paisagem onírica, metrópole de colinas semelhantes aos flancos
de um corpo humano a cair para um rio cheio de noite;
de pensamentos e desejos envergonhados, sob a forma de becos e pátios
escondidos;
de desejos de morte que se transformam em janelas iluminadas pela
cintilação perigosamente erótica de uma lâmpada vermelha.
Tal como um sonho, o Porto era uma cidade que nunca apresentava um
rosto fácil. Dava as boas-vindas ao turista não com a típica palmada nas
costas lisboeta, mas com um olhar fixo frio e duro. Os campistas suecos, os
ornitófilos britânicos e os intelectuais franceses deixavam todos a cidade
resmungando: «Mas o que é que se passa naquele sítio?»
Bem aconchegado no casaco de basebol, passei pelos velhos ciprestes
que rodeiam o parque do Campo Mártires da Pátria e segui em frente.
Diante de mim erguia-se a Torre dos Clérigos. Iluminada por holofotes cor-
de-laranja, parecia um pagode gigante de granito. Fui sempre a direito até à
Praça da Liberdade, a praça central do Porto. As ruas ensombradas e batidas
pelo vento estavam desertas, e talvez por isso me tenha apercebido
subitamente de que todas as cidades eram feitas de medo – conglomerações
de enjeitados, unidos pelo pânico coletivo. Todas estas pessoas amontoadas
nas suas camas, no Paralelo 41 ao norte de Portugal, haviam-se juntado para
negar o vazio esmagador dos montes selvagens e negros a leste e o vasto
oceano aberto a oeste – os abismos simétricos de um mundo onde homens e
mulheres estão sempre isolados, incapazes de se alcançarem uns aos outros,
e a lutar para fugir ao fim inevitável. Com todo esse medo coletivo
acumulado num único lugar, soube também que as cidades eram feitas de
um potencial quase ilimitado – caixas de Pandora à espera da alvorada para
se abrirem e ejetarem os seus fogos de artifício e estrelinhas. Nas grandes
metrópoles, Londres, São Paulo, Nova Iorque, escondiam-se nessas caixas,
a pernoitar, circos e aldeias inteiras. De manhã, floresciam histórias. Mas o
meu sistema nervoso já não conseguia aguentar a confusão, as produções, a
escolha das estradas a seguir nessas capitais inchadas. Já não tinha a
resiliência necessária para aguentar os vagabundos desenraizados que tudo
esgravatavam à procura de seringas, os fura-vidas a ladrar os preços das
ações aos meus ouvidos, a neve castanha no inverno e os ares
condicionados a suar no verão. Precisava de uma cidade do tamanho do
Porto, uma cidade mais pobre e menos ansiosa, uma cidade disposta a andar
aos tropeções no século XX e a deixar os comboios apressados e as pessoas
ainda mais apressadas passarem-lhe ao lado.
Até o Porto moderno e feericamente iluminado era uma cidade que
observava e apontava para os Estados Unidos, e que depois emulava o que
podia importar, dando-lhe um toque português, pintando-o de roxo ou de
branco, ou perfumando-o com bacalhau e tripas. O velho Porto nem fazia
grandes concessões ao mundo exterior. Sob o brilho dos candeeiros de rua,
para lá das discotecas e bares cheios de espelhos, escondia-se ainda o Porto
do século XIX, com os seus velhos camponeses de faces encovadas e barba
de vários dias, aos tropeções nas calças cinzentas e sujas, com os fechos
partidos, sacando das pichas velhas e calosas para lançar uma urina
castanha e fétida contra a parede de um prédio em ruínas; o Porto das
velhas avozinhas a cacarejar, com as faces engelhadas e tisnadas do sol,
vestidas de preto e a cheirar a cera, com o sexo tão seco e enrugado como a
pele de um elefante. Foi este Porto corcunda, carregado com o peso morto
das casas sombrias de cinco andares todas encostadas umas às outras e uma
população de analfabetos boquiabertos, que primeiro me atraiu na cidade.
Adorava o reboco repleto de fendas e as telhas amarelas esbotenadas,
adorava a ideia de uma cidade que conseguia conter nas suas entranhas as
carcaças de velhas escadarias de madeira lascada, lavatórios partidos e
percevejos. Era esse Porto dos esgotos que davam para as ruas medievais
pavimentadas com pedras escuras, cobertas de líquenes e a escorrer o cuspo
dos tuberculosos que eu via quando fechava os olhos à noite – uma cidade
de montras cobertas de gordura, ostentando carcaças de cabritos de olhos
esbugalhados; de pastelarias e cafés com tabuleiros infindáveis de doces a
cheirar a caramelo e feitos só com gemas e açúcar, tal qual são feitos há
muitos séculos; de engraxadores pernetas a entrar com os seus carrinhos em
cafés densos de fumo, onde as crianças correm umas atrás das outras, e os
gatos coçam as pulgas, e os cães lambem as glândulas de feromonas
debaixo da cauda dos seus amigos caninos. Era uma cidade feita para um
musical de Kurt Weill, um sítio onde Elisa Doolittle teria vendido com todo
o gosto as suas violetas e Artful Dodger se deleitaria a trocar as voltas à
Polícia.
Enquanto admirava os torreões dos edifícios neoclássicos da praça
principal, e passava pelos bairros orientais, e via portas a abrir-se e
mulheres de avental a varrer o passeio dianteiro das lojas, a madrugada
clareou e o relógio da cidade começou a dar as horas. Então, compreendi
que o Porto, como todas as cidades, era uma floresta onde homens e
mulheres se podiam cruzar, e comer como alarves, e queixar-se do tempo, e
construir castelos de cartas debaixo dos cobertores, e lavar-se da sujidade
do mundo, a fim de evitar a única verdade…
que a mortalidade os aguarda mesmo na orla da cidade.
Mas, de vez em quando, pensei, chega até nós aquele súbito silêncio – o
que se instala a seguir a um grito agudo de pássaro, ou o ronco de um farol
de nevoeiro –, e nesse momento pressentimos os passos de um gigante que
ainda vem longe. Então, olhamos para dentro de nós e pensamos: «O Anjo
da Morte anda a passear na vastidão dos campos para além dos bairros mais
periféricos da cidade. E Ele está à minha espera.»
Claro que António era o progenitor de muitos destes pensamentos, e no
comboio para Lisboa comecei a sentir que um torno me apertava o peito.
Precisava tanto de um Valium que me pus a escarafunchar em vão nos
recantos da carteira, não fosse ter sobrado um comprimido para uma
emergência. Fui ao bar, bebi um sumo de laranja com água das pedras, para
as bolhas de ar aliviarem a pressão que começava a acumular-se-me em
volta do peito.
11
Quando cheguei a Lisboa, havia uma grande confusão no Rossio,
porque Julio Iglesias estava na cidade para dar dois concertos no Casino
Estoril e dizia-se que ia almoçar num dos cafés com esplanada da praça
central.
Eu tinha de estar em casa de Bob para ir buscar o T-Bird às quatro e
ainda eram dez da manhã. Por isso, dirigi-me para o bairro de Alfama.
Levantei o cheque de Salgueiro numa agência do Banco Nacional
Ultramarino frente à Igreja da Madalena e tirei mais quinhentos dólares da
minha conta. Levou algum tempo, porque tiveram de verificar a minha
assinatura por fax com a agência no Porto, mas acabei por receber oitenta e
quatro mil e quinhentos escudos em notas, que guardei num envelope no
bolso do peito do casaco. Dali continuei pelo caminho dos elétricos até ao
Bairro da Graça para visitar Barrabás. Tinha vivido vários anos em Paris, e
achei boa ideia informar-me junto dele sobre hotéis. Barrabás é outro dos
meus amigos que te recusaste a conhecer, Carlos. Tem apenas um metro e
vinte e cinco de altura. Ele diz que é anão, e talvez seja, mas é um anão com
pinta. Tem cabelo preto asa de corvo e uma franja à Mr. Spock que lhe
chega às sobrancelhas, um brinco de esmalte vermelho-sangue
representando um elefante de pé sobre as patas traseiras.
Depois de tomarmos um café, perguntei-lhe se aquele brinco tinha
algum significado especial.
– Um elefante nunca esquece.
– E, neste caso, o que é que ele nunca esquece? – perguntei.
Barrabás contou-me algo que me deixou bastante impressionado.
– Quando fizeram escavações nalgumas casas do século XIX junto ao
rio, no Porto, encontraram pequenos esqueletos enterrados no reboco das
paredes. A maior parte era de fetos abortados. Mas outros eram bebés que
tinham nascido vivos. Descobriu-se, depois, a partir dos esqueletos, creio,
que esses bebés tinham nascido com alguma deficiência, ou eram
corcundas, ou anões… Soube então que pertenço a uma raça que tem sido
vítima de genocídio ao longo dos séculos. Por isso não esqueço esses bebés.
«Não são só os gays e os judeus», pensei.
Barrabás ouviu os meus delírios sobre a crueldade do Homem durante
uns momentos e depois disse:
– Foram o meu pai e a minha mãe que me falaram dessas descobertas de
bebés mortos no Porto. Mostraram-me um artigo de jornal sobre o assunto.
O meu pai olhou-me diretamente nos olhos… era um homem forte e calado,
com uns olhos castanhos muito bonitos. Disse-me: «Era o que eu devia ter
feito contigo, filho.»
– E porque disse ele uma coisa dessas?
– Lá para as bandas da minha aldeia, diziam que eu tinha sido trazido
pelo diabo. Os miúdos chamavam-me o anão do diabo. E as pessoas
andavam sempre à procura dos meus chifres. Até aos treze anos, acreditei
que um dia me iam crescer na testa. Estava sempre a olhar-me no espelho. –
De repente, despiu a camisola de gola alta. Tinha as costas marcadas por
cicatrizes profundas. – O meu pai costumava bater-me quando bebia. Para
ele, eu era uma humilhação.
– Que filho da mãe – exclamei. – Ainda é vivo?
– Continua lá pela aldeia. Há anos que não o vejo.
Enquanto Barrabás voltava a enfiar a camisola, perguntei-lhe se
conhecia o mito de Cronos. Abanou a cabeça.
– Era um titã, pai de Zeus, Poseidon, Deméter e Hera. Comeu os
próprios filhos, porque estava destinado a ser destronado por eles. Alguns
escaparam. Incluindo Zeus, que veio a apoderar-se do lugar de Cronos
como rei dos deuses.
– E então?
– Por vezes, as pessoas devoram os filhos por inveja. Como o Miguel e
o António. – Expliquei-lhe em que medida a situação se aplicava a eles.
Barrabás semicerrou os olhos.
– E achas que o meu pai tinha inveja de mim?
– Deve ter percebido que, apesar de tudo, eras inteligente e tinhas
talento, que sairias da aldeia, chegarias a Lisboa e a Paris. Ele nunca chegou
a lado nenhum.
Barrabás encolheu os ombros.
– Talvez – suspirou. Foi fazer chá, e eu disse-lhe que precisava de um
hotel simpático, mas barato em Paris. Escreveu o nome «Jean Floris» e um
número de telefone num bilhete de autocarro usado. – É o dono do Hotel
Greco, na Place Saint-Sulpice – explicou. – E joga na nossa equipa.
Ficámos sentados à mesa da cozinha a falar de livros durante um
bocado. Expliquei-lhe a minha teoria de que os cabalistas judeus outrora
haviam sabido encantamentos mágicos de cura, mas que se tinham perdido
todos. Barrabás não acreditava em magia.
Quando saí do apartamento, ele seguiu-me por um instante e beijou-me
na boca.
Ninguém se pôs a olhar. Ninguém nos chamou nomes. O chão não se
abriu para nos engolir.
Como vês, Carlos, não é uma coisa assim tão chocante.
Depois de o deixar, subi ao cume de uma colina próxima para ver o
centro de Lisboa – dali, descia um vasto vale de telhados cor de laranja que
vinha morrer no Tejo. Dirigi-me para o Castelo mouro, sentei-me num
banco e pus-me a pensar em coisas em que nunca pensamos quando
estamos dentro de casa. Como o céu. E o vento. E as tentativas dos
compositores para capturar o que há de belo na natureza e transformá-lo
numa melodia para flauta…
ou violino;
ou voz;
ou até guitarra.
12
Bob vivia num desses novos bairros de Lisboa perto do aeroporto. Era
um território de prédios de betão utilitários, pintados de rosa-vivo, azul e
amarelo, porque um arquiteto urbanístico qualquer achou que assim as
coisas ficavam mais alegres. Apanhei um táxi. O motorista, um
moçambicano, disse-me que eu estava com um ar infeliz e recomendou-me
umas férias na praia e camarões grelhados.
Quando toquei à campainha de casa de Bob, um tipo alto e magricela
veio abrir. Todo ele era sorrisos. Lembrava-se de mim. Garanti-lhe que
também me lembrava dele, embora não fosse verdade. Usava ténis pretos de
cano, calças de treino e uma T-shirt do Estado do Idaho. Imaginei que se
tivesse vestido para mim, mas ele assegurou que usava sempre aquilo.
Tinha os dentes tão brancos e grandes que pareciam postiços, e borbulhas
minúsculas cobriam-lhe toda a testa. Eu diria que vivia de fast food.
– Entra, pá – disse, apertando-me a mão. – Oferecia-te qualquer coisa,
mas estou de saída. É melhor irmos direitos ao assunto.
Tirei um maço de vinte e cinco notas de cinco mil escudos, o
equivalente a setecentos e cinquenta dólares.
– Então, o que te trouxe a Portugal? – perguntou, enquanto contava o
dinheiro. Era o tipo de pessoa que segurava as notas numa mão, lambia o
polegar e puxava-as uma a uma.
– Sexo e morte – respondi.
– Agora a sério, o que te trouxe até cá? – perguntou, inclinando a cabeça
num gesto condescendente.
– As praias.
– Ah, isso sim – concordou.
Enquanto contava as últimas notas, espreitei o apartamento, uma
autêntica montra dos Estados Unidos, com um galhardete e uma matrícula
do Idaho pendurados na parede, por cima de um sofá branco enxovalhado.
Sobre o tapete roxo no meio da sala, erguia-se uma pirâmide de latas de
Coca-Cola Diet e, por todo o lado, roupa, tralha amontoada, cinzeiros a
transbordar. A casa tresandava.
– Está todo aqui – disse ele. Atirou-me um porta-chaves com duas
chaves. – A mais pequena é da bagageira, a outra é da ignição. O papel do
seguro está no porta-luvas. Se tiveres dificuldade em ligá-lo de manhã,
carrega duas vezes a fundo no acelerador e roda a ignição. Não há perigo de
afogares o motor. Este malandro bebe gasolina aos baldes. Está no parque
de estacionamento à esquerda de quem sai. Dás logo com ele. – Conduziu-
me até à porta e apertou-me a mão vigorosamente. – Só mais uma coisa: há
um interruptor por baixo do assento do condutor. Baixa-te, procura com a
mão, que encontras logo. Quando se põe a palheta para baixo, todo o
sistema elétrico fica desligado. É antirroubo. Basta puxar a palheta para
cima para ligar o motor. Percebeste?
Fiz que sim.
– Quando é que disseste que voltavas?
– Dentro de duas semanas, mais ou menos.
– Vais a Paris?
– Exatamente.
– Já lá estive duas vezes – disse, orgulhoso.
– Mazel tov – repliquei.
– O quê?
– Parabéns.
– Falas português?
– Mais ou menos.
– Já cá estou há dez anos, mas o meu português não é grande coisa.
Acho que devia ter vergonha.
– Não tem importância. Estava apenas a dar-te os parabéns pelo espírito
aventureiro. Não é qualquer americano que se arriscaria a fazer uma viagem
de Lisboa a Paris.
– Agora vê lá se o tratas bem! E boa viagem!
Despedi-me com um aceno, tão grato por não estar na América que
desatei a cantar um velho fado que Fiama me tinha ensinado.

O T-Bird era preto, enorme e fabuloso. Mas estava imundo. E


tresandava a tabaco. Portanto, a primeira coisa que fiz foi levá-lo a uma
lavagem automática na Avenida dos Estados Unidos da América. O tipo que
aspirou o carro, muito magro e com uns grandes olhos negros e uma farda
verde, parecia saído de um filme do Scorsese. Descobriu três cassetes de
oito pistas no porta-luvas – John Denver Live, o September of my Years, de
Frank Sinatra, e o By the Time I Get to Phoenix, de Glen Campbell. Uma
vez terminado o trabalho, ofereceu-me sete dólares por cada cassete.
– Quer mesmo comprá-las? – perguntei.
– Está a brincar? São artigos de coleção.
– Desculpe – disse –, o carro não é meu.
– Então dez dólares.
Decidi vender-lhe uma para pagar a lavagem e o acabamento. Ele
escolheu a de John Denver.
– Estou num dia sim – disse, contentíssimo.
O T-Bird tinha assentos envolventes pretos, cintos de segurança azuis e
um painel de instrumentos que parecia o de um avião – mostradores
redondos por todo o lado. Um ponteiro que ia dos 0 aos 180 km por hora
registava a velocidade. O leitor de cassetes não trabalhava, mas o rádio AM
tinha boa receção.
Guiei a 140 km na autoestrada porque era essa a velocidade cruzeiro do
carro. Tinha tanta inércia que parecia capaz de continuar sozinho por cinco
quilómetros. Levei três horas a chegar ao Porto, apenas porque parei meia
hora na estação de serviço da Mealhada para jantar leitão assado com puré.
Estar ali à beira da autoestrada, com o T-Bird à minha espera no parque de
estacionamento, abriu-me o apetite. Sentia-me numa quinta dimensão. E,
durante o resto do caminho, dei por mim a entoar melodias de John Denver.
Foi difícil encontrar um sítio onde estacionar no Porto, porque na
Europa não há lugares pensados para Batmóveis. Acabei por improvisar,
subindo a calçada no Passeio das Virtudes e deixando-o simplesmente ali.
Chegado a casa, dei com um graffiti na porta da rua: VOU MATAR O
PANELEIRO QUE VIVE AQUI. Por um momento, fiquei atónito a olhar para
aquilo, mas logo me ocorreu: «O meu pequeno larilas mouro, o Rui, veio
fazer-me uma visita.» Pelos vistos, tinha descoberto onde eu vivia.
– Que imbecil – murmurei.
Lá dentro, dei com Fiama de camisa de noite azul-clara com manchas de
tinta nas mangas.
– O regresso do filho pródigo – disse. Demos um beijo nas faces. –
Sabes alguma coisa sobre a mensagem lá em baixo? – perguntou.
– É um mouro algarvio que eu subestimei completamente. Não gosta de
ser gay. Desculpa. Não sei como é que descobriu onde eu vivia. Que
chatice.
– Deve ter-te seguido. Seja como for, meio mundo tem estado a
telefonar cá para casa e a deixar-te mensagens no atendedor. Aquele tipo
lindíssimo e bêbedo que esteve cá ontem à noite pediu desculpa durante
cerca de cinco minutos; o Salgueiro telefonou a desejar-te aventuras
interessantes durante a viagem. O Ramalho quer que lhe telefones por causa
das aulas de substituição do Pedro; e o Pedro quer saber porque não lhe
disseste que querias que ele te substituísse. O António também ligou. Só
deixou o nome e pediu para lhe telefonares.
– Só disse isso?
Fiama anuiu.
– Guardaste a mensagem?
Ela abanou negativamente a cabeça.
– Só disse que queria falar contigo.
– Que tal te pareceu?
– Cansado. Seco. Como se tivesse engolido areia.
– Há quanto tempo foi isso?
– Há umas horas, talvez. – Encolheu os ombros. – Comeste alguma
coisa?
– Parei numa estação de serviço a caminho de cá.
– Onde foste tu?
– A Lisboa, buscar o carro para a nossa viagem.
Fiama franziu o sobrolho.
– Podia ter-te feito qualquer coisa, sabes?
Um dia, Fiama vai ser uma mãe e peras.
– És uma querida.
– Queres chá?
– Não, obrigado.
Estava nervoso por António ter telefonado e, percebendo-o, Fiama
agarrou-me nos ombros enquanto eu discava o número. Foi Miguel quem
atendeu.
– Sou eu – anunciei.
– Professor, o António desapareceu.
– Desapareceu?
– Sim, desapareceu. Tive de sair para comprar umas coisas na farmácia.
Para ele. E ele simplesmente desapareceu. Quero dizer, não estava cá
quando regressei.
António ocultava uma faceta melodramática, e imaginei-o a saltar da
Ponte de D. Luís, setenta metros de uma queda fatal. Percebi que estava a
exagerar, mas o meu coração batia descompassado.
– Vai voltar – tranquilizei-o.
– Estou a dar em doido – confessou Miguel. Ouvi-o chorar. Passei o
telefone a Fiama: – Tenta consolar o Miguel, tenho de sair.
Apanhei um táxi para o Conservatório, imaginando que António estaria
numa das salas de ensaio com a sua guitarra, tentando talvez manter a
depressão à distância. Quando vi que não, fiquei desvairado. Sentia cãibras
nos músculos das pernas de puro desespero. Tinha vontade de me sentar no
chão e desatar a chorar. Fui a pé até à praça principal da cidade. Se tivesse
passado por uma farmácia, teria entrado para comprar uma embalagem de
Valium e tomado meia dúzia de comprimidos sem hesitar. Em vez disso,
bebi um café e um whisky no Majestic e cravei um cigarro a um homem que
lia A Bola.
A noite descia sobre o Porto. Decidi ir a pé até à Ponte de D. Luís; tanta
experiência com a morte não me deu fé em Deus, mas fez-me confiar na
intuição. Passando pela Sé e pelo Palácio Episcopal, decidi espreitar
também.
Nem sinal dele. Não estava na ponte. Arrastei-me até casa, e qual não
foi o meu espanto ao vê-lo sentado diante do meu prédio, num dos bancos
que dão para a grande caverna sob o Passeio das Virtudes. Estava de costas
para mim. Aproximei-me e comecei a cantar Les Trois Cloches.
Não se virou.
Dei-lhe um beijo no cocuruto e pus-lhe a mão nos ombros.
– Vou morrer muito em breve – murmurou.
Contornei o banco, pus-me de cócoras diante dele e segurei-lhe a
cabeça.
– Continua em frente, um dia de cada vez – disse.
Encarou-me. Tinha o rosto macilento e tenso. Examinou o meu corte de
cabelo e a seguir suspirou.
– Agora, já nada disso interessa.
– Porquê?
– Tudo acaba em nada. Nada.
Sentei-me ao seu lado no banco.
– Como posso ajudar-te? – perguntei, ao cabo de uns minutos de
silêncio.
Ele encolheu os ombros.
É espantoso como o amor nos serena os medos. Fitando António, com
vontade de lhe beijar os olhos, não sentia medo de morrer. Só não queria
que ele morresse. Se pudesse ter ficado com a doença, libertando-o, tê-lo-ia
feito sem hesitação. Pus-lhe a mão no colo e obriguei-o a olhar para mim.
– Vou ajudar-te de todas as formas que me for possível – disse. – Se
precisares que te ouça, ficarei sentado em silêncio enquanto falas. Se
precisares de ouvir a voz de outra pessoa, contar-te-ei histórias, ou lerei
para ti. Se precisares que te abrace, abraçar-te-ei. E se precisares que faça
amor contigo, ter-me-ás sempre que quiseres.
Ele assentiu com a cabeça. Mas via nele uma parede opaca que as
minhas palavras não conseguiam atravessar.
– O meu irmão também teve zona – expliquei-lhe. – E depois disso
ainda viveu seis anos. Anos bons. O Henry, o Colosso, viveu oito anos
depois da primeira infeção. Com sorte, ainda viveremos o suficiente para
ver chegar o ano 2000. E, nessa altura, talvez já haja medicamentos
melhores. Entretanto, temos trabalho para fazer. A tua Suite para Violoncelo
está uma desgraça. Se vai…
– Nada de música – sussurrou António.
Pus-me a observar o céu, tentando distanciar-me das emoções para não
derreter como uma escultura de gelo à frente dele.
– Porque não te vais embora? – atirou de repente. – Não me apetece
falar.
– Prefiro ficar, se não te importares.
O silêncio abateu-se novamente, até que ele o quebrou:
– Ouve. Vou ser um monstro nas próximas semanas. Sinto-o. Vou gritar
contigo, e chamar-te nomes, e dizer-te que não te quero na minha vida. Vou
ser diabólico com o meu pai. Não sei porquê, mas é como se tivesse um
demónio dentro de mim que em breve vai sair cá para fora. Porque te odeio.
Odeio a ideia de que vás viver e eu vá morrer. E também o odeio a ele por
isso.
Fiz menção de protestar, mas ele zangou-se.
– Cala-te! – exclamou, violento. – Odeio-vos a ambos. E não consigo
perdoar-vos, nem a mim nem a ele – hesitou por instantes. – Não, não é isso
que eu quero dizer… Ou é, mas não é tão simples assim. Claro que não
quero que te vás embora. Quero tocar guitarra mais do que nunca, mas não
consigo falar disso agora, portanto não me forces. Deixa-me odiar-te.
Assenti com a cabeça. Pensava no meu irmão e no desprezo que ele
sentia por mim. Como tinha aguentado esse furacão, sentia-me confiante
para lidar com as tempestades de António.
– Mas talvez esta não seja a melhor altura para viajarmos – disse.
– Pelo contrário, acho que agora é a altura certa. Agora, enquanto isto
tudo é ainda recente.
– Talvez.
– Sabes, o teu pai também quer ir.
– Ele já me disse.
– Queres que ele venha também?
António encolheu os ombros e desviou o olhar por uns momentos.
– Não tens medo de mim? – perguntou. – Podia violar-te e passar-te
sida.
– Não deixaria que me violasses. Poderia deixar-te fazer amor comigo,
mas nunca violar-me.
– Não há diferença entre violar e fazer amor quando se tem o que eu
tenho.
– Por vezes, meu querido, és demasiado ingénuo. Tu não sabes violar
um homem, porque não odeias nada o suficiente. Fui violado mais do que
uma vez e posso garantir-te que não é como pensas.
– Nunca me falaste disso!
Então, falei-lhe de ti, Carlos. De quando estavas bêbedo e me vieste
visitar a meio da noite, logo a seguir à morte do meu irmão.
«Ah, és tu», disse eu, meio a dormir. Lembras-te? Nessa altura ainda
tinhas a chave e entraste sem bater à porta. Meteste-te na cama comigo. E
eu aconcheguei-me contra ti. Tresandavas a álcool e eu devia ter percebido
que se passava qualquer coisa. Então, sacaste de uma navalha e espetaste-
ma no lóbulo da orelha.
Mostrei a cicatriz a António e ele apalpou-a entre o polegar e o
indicador.
– Então ninguém te arrancou um brinco? – perguntou.
– Não, foi o Carlos. «Nunca mais te quero dentro de mim», disse. Tu é
que és o paneleiro. Eu não. Eu sou o homem e tu a mulher. A seguir, entrou
dentro de mim com tanta violência que parecia querer matar-me, enquanto
sussurrava coisas obscenas como: «Toma lá na rata, minha putazinha» e
«Tu és a mulher, eu sou o homem». Deixei-o continuar, embora me pudesse
ter soltado, porque sabia que assim iria libertar-me definitivamente dele. A
nossa relação já era um desastre. Mas precisava daquilo para me libertar.
Porque sou o género de pessoa que fica deprimida e acaba por acatar de
mais. Preciso de ficar mesmo furioso para cortar as amarras.
– Devias tê-lo matado.
– Se me pusesse a despachar gente para o outro mundo, era capaz de
nunca mais parar. Ainda hoje, quando vejo uma fotografia de Ronald
Reagan, penso que era capaz de ser divertido ser um assassino em série em
Washington DC; pelo menos, é o tipo de emprego de que nos poderíamos
orgulhar.
António revirou os olhos.
– Então foi essa a gota de água?
– Mais ou menos. Eu disse ao Carlos que se fosse embora. Ele pediu-me
imensas desculpas. Trouxe-me flores. Ofereceu-me uma aliança de
casamento, feita de veneno, como vim a perceber depois. Continuámos
juntos mais umas semanas. O estranho é que eu ainda gostava dele. Aliás,
ainda gosto. Mas sei que não posso estar com ele até ele aceitar que gosta
de homens. Parece uma coisa insignificante, mas para ele é demasiado.
– Strange guy12 – disse António em inglês.
– Ele ou eu?
– Ele. Tu, tu não és estranho. – Voltou ao português. – És um bocado
palerma, claro, mas não és estranho. És a pessoa mais normal que eu
conheço.
Ri-me. António esboçou um sorriso ténue. Abraçámo-nos. Apertei-o
contra mim e beijei-lhe as faces. Rezei tanto para ele não morrer antes de
mim que comecei a sentir arrepios. Depois fiz-lhe uma pergunta para a qual
nunca tive uma resposta satisfatória da tua parte, Carlos:
– Porque é que os homens portugueses têm tanto medo de amar um
homem?
– Porque lhes disseram que era pecado.
– Mas a ti isso não te incomoda. Nunca achaste pecado, pois não?
– O que eu acho é que uma coisa que dá tanto prazer não pode ser
errada.
– Confesso que estou perplexo.
– É como diz o Carlos, acham que amar um homem faz deles mulheres.
– Nunca hei de perceber isso.
António encolheu os ombros.
– Há coisas que são culturais. Nunca as compreenderás se não tiveres
nascido aqui. Como aquelas postas de bacalhau que tu detestas e nós
adoramos.
– Mas pelos vistos tu também não percebes.
– Eu não sou totalmente português.
– Não?
– Não.
– Então, o que és?
– Não sei. Nem me interessa. Um extraterrestre a viver temporariamente
no Porto.
Ficámos ali sentados de mãos dadas, a olhar para as estrelas. Comecei à
procura do planeta de onde vinha António.
– Sabes, dizem que há trezentas e cinquenta maneiras de fazer bacalhau
em Portugal – observei. – Não consigo imaginar maior prova da
maravilhosa perversidade humana.
Enquanto pensava naquilo do bacalhau, António atirou, sem aviso:
– A minha mãe disse-me que nunca mais me queria ver. – Falou com
secura, sem emoção.
– Quando?
– Ontem à noite fiquei em casa dela. Hoje de manhã contei-lhe sobre
mim. Ela passou-se.
– Vai mudar de ideias.
– Não me parece. Ficou muito desnorteada e agressiva. Disse coisas
estranhas.
– Tais como?
– Que eu tinha de confessar os meus pecados a um padre. Que só assim
conseguiria sobreviver.
– Nunca me mencionaste que ela era religiosa.
– Não é. – Encolheu os ombros. – Pelo menos não era. Foi isso que me
confundiu tanto.
– Bom, um desgosto profundo pode mudar-nos… pode fazer com que
procuremos conforto em velhas crenças. Já vi isso várias vezes. E há
pessoas que pensam que a nossa maneira de amar é escura e sinistra. Como
se fôssemos uma espécie à parte… um pouco como vampiros.
– Quem me dera, pois os vampiros vivem para sempre!
Ficámos novamente algum tempo em silêncio e mais uma vez foi
António quem o quebrou:
– A mãe falou-me da necessidade de confessar os pecados, mas tenho
quase a certeza de que ela tinha uma vida sexual ativa antes de conhecer o
meu pai. Sabes, uma vez, quando tinha bebido conhaque de mais, falou-me
do namorado do liceu… e de como gostava imenso dos beijos dele.
– Bom, dá-lhe algum tempo para recuperar do choque.
António olhou para baixo. Conseguia vê-lo pensar que tempo era a
única coisa de que não dispunha.
– Podemos telefonar ao teu pai? – perguntei. – Ele está mesmo
preocupado contigo.
– O meu pai que vá aborrecer-se de morte com os seus próprios
sermões. Não contes comigo.
– Então podemos ir para dentro? Tive um dia muito longo. Eu faço um
chá. Talvez a Fiama nos cante uns fados. Se quiseres, podes passar lá a
noite.
– Não tens medo de dormir com alguém como eu?
– Continuas a ser o António. E eu continuo a ser eu. Nada mudará isso.
– Tudo mudou. Até o meu nome.
Encolhi os ombros com ligeireza, mas um súbito aperto no peito fez-me
tossir.
– Tudo, é verdade – assenti. – E eu… queria desesperadamente que nada
tivesse mudado. É estranho como às vezes as nossas esperanças têm tão
pouco a ver com a realidade. Ouve, António, há bocado fizeste-me um
aviso. Agora é a minha vez. E tenho dois alertas para ti. O primeiro é que
costumo dar conselhos sensatos e encorajadores em alturas destas. Diz-me
só que volte para Nova Iorque se começares a ver a orla do meu yarmulke.
– Do teu quê?
– O chapéu que os judeus usam. Deixa lá. Não interessa. O outro é que
às vezes finjo que as coisas não são como são. Chama-me à razão. Com
calma, se puderes. Se não puderes, então à bruta. Na verdade, não interessa.
Eu quero desesperadamente viver no mundo real. Por isso, não me deixes
fugir dele.
Não sei se ele percebeu o que lhe disse, mas assentiu.
– Então e o que te levou a cortar o cabelo assim? – perguntou-me
enquanto entrávamos em casa.
– Fiquei farto.
António encolheu os ombros.
– É apenas cabelo. Vai crescer outra vez.
Leu o graffiti deixado por Rui na entrada do prédio.
– Que raio é aquilo? – perguntou.
– Uma besta qualquer que quer vingança por eu ter sido o passarinho
que lhe disse ao ouvido que ele era gay. Nada que nos deva preocupar.
– É melhor teres cuidado. Os homens portugueses são um pouco
violentos. É bem capaz de te aparecer aqui um dia.
– Se aparecer, apareceu. Não vou andar à pancada com ele. – Entrámos.
– Vou deixar a Fiama estrangulá-lo com um dos seus sutiãs franceses.
– Não estou a brincar – insistiu António, agarrando-me pelo braço e
travando-me.
– Nem eu. Ela tornou-se muito protetora em relação a mim.
Pousei-lhe as mãos nos ombros e guiei-o escada acima até ao meu
apartamento. Fiama estava a ler a edição portuguesa da Cosmopolitan,
deitada no sofá. Os dois beijaram-se na face. Fiama ofereceu-se para fazer
chá. Entretanto, levei António para o meu quarto. Ele sentou-se aos pés da
cama, pegou num exemplar do suplemento de domingo do Independent,
folheou-o, e depois, como quem não quer a coisa, atirou:
– Sabes, se não fosses tu, eu não teria sida.
O espanto emudeceu-me. Olhei-o perplexo.
António ergueu os olhos da revista com o desprezo estampado no rosto.
– Não tens nada a dizer? – desafiou-me.
– António, eu não te passei sida. Aliás, tu nem sequer tens sida, és
apenas seropositivo.
– Bom, tenha lá o que tiver, só podes ter sido tu a passar-me – declarou.
– O que estás para aí a dizer?
– Antes de te conhecer, nem sequer tinha dormido com homens.
– Não mintas! Já tinhas dormido com rapazes antes de mim. Tu próprio
me disseste. De virgem não tinhas nada.
– Eu disse com homens! Não falei em rapazes! – gritou ele.
– Rapazes, homens, que diferença faz?
– A diferença é que eu não tinha a certeza de ser gay até te conhecer.
Talvez nem seja. Talvez fazer amor contigo me tenha mudado.
De repente, senti as mãos a tremer. Tinha preso no peito um grito de
fazer gelar o sangue e que precisava de sair. Fui até à cozinha e vomitei no
lava-louça.
– Que se passa? – perguntou Fiama.
– Água! – pedi, engasgado.
Ela deu-me um copo. Enquanto bebia, ouvi passos. Cheguei à sala a
tempo de ver a porta fechar-se. Corri para a varanda e, quando o vi sair do
prédio, chamei-o. Não olhou para cima e continuou a afastar-se.
«Este rapaz tem uma pontaria ainda mais mortal do que o meu irmão»,
pensei.
12
Tipo estranho. (N. da T.)
13
Nessa noite bebi até ficar anestesiado e perdi a consciência pouco
depois de os sinos da Igreja de S. Bento anunciarem a meia-noite. Bem
cedo na manhã seguinte, passei por casa de Pedro na rua Dom Carlos de
Castro para lhe pedir desculpa por não lhe ter falado sobre a necessidade de
me substituir no Conservatório. Havia luz a mais no apartamento e eu não
parava de proteger os olhos com a mão em pala. Ele serviu-me várias
chávenas de chá mate amargo e pregou-me um sermão por estar «a
envenenar o meu corpo com álcool». Detestei a infusão, mas as palavras de
Pedro, afiadas e maternais, reconfortaram-me. Sentámo-nos frente a frente
no tapete aos quadrados pretos e brancos da sala. Ele assumiu a posição de
lótus como um sábio hindu. Eu encostei-me ao sofá com as pernas abertas,
como um miúdo que brinca com blocos de construção.
– Não é o trabalho adicional que me chateia, mas devias ter-me avisado
com mais antecedência – disse ele.
– Eu sei. Desculpa. Aconteceu tudo muito depressa. Pareço ter perdido a
capacidade de prever o meu próprio comportamento. As coisas acontecem-
me… como costumavam acontecer às personagens dos mitos gregos. Talvez
esteja a enlouquecer.
– Não estás a enlouquecer – garantiu-me. – Estás é descontrolado.
– É a mesma coisa – respondi.
– É completamente diferente.
– Então, substituis-me?
Ele franziu o sobrolho.
– A questão nunca foi essa.
Tirei da pasta as pautas que os meus alunos andavam a ensaiar e
expliquei-lhe as dificuldades de cada um.
– Pronto, agora que já arrumámos esse assunto, diz-me como vais
sobreviver duas semanas na estrada, no estado em que estás? – perguntou-
me com gentileza, quando demos por encerrados os assuntos práticos.
– Não sei. – Olhei pela janela. Pedro tem uma vista linda sobre os
jardins do Museu de Arte Contemporânea. Os limoeiros explodiam de
frutos amarelos. – Já telefonaste ao Landero do Conservatório de Paris? –
perguntei.
– Não. Estou à espera de ver se vais mesmo.
– Diz-lhe que chegaremos daqui a uma semana, no máximo dez dias.
Usa o teu charme uruguaio.
Pedro riu-se.
– E se não conseguir falar com ele? Ou se ele não estiver lá? Tenho a
certeza de que tem concertos fora.
Encolhi os ombros.
– Acho que ficamos à espera dele. Não vale a pena regressar enquanto
não soubermos.
Pedro bateu com o pé no meu.
– Cuida-te – disse.
– És um anjinho – repliquei. De manhã tendo a recorrer à lisonja da
minha mãe. Pedro riu-se e serviu-nos mais chá.
Mais tarde, enquanto me acompanhava à porta, lembrei-me do tom
maldoso de António quando me acusou de lhe passar sida. A minha
expressão deve ter denunciado essa mágoa, pois Pedro perguntou o que se
passava.
– Queres um conselho? – replicou, depois de lhe ter contado.
– Desde que não seja outro discurso sobre a maneira como estou a dar
cabo do fígado com ouzo.
– Acho que deves passar um tempo sozinho, para te fortaleceres e
preparares para o acompanhar.
Fiquei surpreendido e grato.
– Ei, lembras-te do meu amigo brasileiro, o Ricardo? – perguntou,
mudando de assunto.
– Claro que sim.
– Telefonou-me de Belmonte. Encontrou-se com aquele poeta que tu
conheces, o que quer reunir mil pessoas que tenham sido torturadas no topo
de uma montanha, a entoar cânticos, virados para Jerusalém. Está muito
entusiasmado. Diz que o tipo não faz sentido nenhum, mas que talvez seja
esse mesmo o objetivo. Também me pediu para te dizer que tem estado a
aprender a beijar como um cabalista com uma aluna de Direito meio judia
chamada Maria Teresa. O segredo está na língua13.
A tradução inglesa para língua pode ser language ou tongue, pelo que
lhe perguntei a qual das aceções se referia.
Ele encolheu os ombros.
– Não sei. Estou apenas a repetir o que ele disse. Talvez queira manter a
interpretação em aberto.
Abraçámo-nos em jeito de despedida.
– Queres alguma coisa de Espanha ou França? – perguntei-lhe.
Ele abanou a cabeça.
– Roupa? Vinho? Deve haver alguma coisa… uns discos do Julio
Iglesias? Está em Lisboa, não sei se sabes.
Fez um som de quem se engasga.
– Talvez uns livros. Já não consigo ler nada em espanhol. Vê se há
alguns romances novos de escritores uruguaios.
– Pensava que não querias mais nada com o Uruguai.
– Quero que os dirigentes se afoguem todos no Río de la Plata –
ripostou com desprezo. Ergueu a mão e agarrou-me no queixo. Os seus
olhos negros cravaram-se nos meus. – Mas não posso desistir da minha
língua, pois não?
De regresso a casa, fiz as malas, fui buscar lixa à caixa de ferramentas
de Fiama e apaguei o graffiti odioso da porta do nosso prédio. Depois,
tomei um duche quente. Às cinco para as onze, telefonei a Miguel e disse-
lhe que os ia buscar, a ele e a António. Ele respondeu que nem ele nem o
filho estavam prontos.
– Ouça, Professor – anunciou –, não sei se isto vai resultar. O António…
o rapaz… – Fugia-lhe a voz, e eu pensei que fosse chorar novamente.
– Tenha calma – tentei tranquilizá-lo.
– Parece que o coração me quer saltar do peito.
– Confie em mim. Vai correr tudo bem.
– Não vai, não.
– Vai, pois. Confie em mim.
Não sei o que disse em seguida, mas consegui que Miguel desligasse o
telefone antes de se desfazer em lágrimas. Deixei um bilhete a Fiama,
borrifei-o com o aftershave Polo de contrabando que ela me oferecera e
deixei-lhe vinte mil escudos para o caso de haver necessidade de pagar
contas.
Levei meia hora a chegar a casa de Miguel e de António, numa ruela no
lado oriental da cidade, perto da estação de Campanhã, a Rua Ferreira
Cardoso, n.° 57. O edifício era quadrangular e sombrio, e parecia
assombrado por fantasmas do século XIX. Azulejos verde-escuros talhados
em forma de tijolo decoravam a fachada. Tinha duas portadas no primeiro
andar, unidas por uma estreita varanda de betão com corrimão de metal
preto. Estacionei em segunda fila e toquei à campainha. A porta de madeira
fora pintada de azul-cobalto e uma grade de metal cobria o janelo de vidro
translúcido.
Foi Miguel quem veio abrir. Estava de calças de ganga e T-shirt amarela
e tinha a barba por fazer.
– Entre – convidou, apertando-me a mão.
– Estou em segunda fila – observei. – Vamos andando, se puder ser.
– Eu estou pronto, mas o António… entrincheirou-se no quarto. – Disse-
o como se contasse comigo para convencer o rapaz a sair. Entrei para o átrio
de paredes caiadas. À minha direita, uma escadaria de madeira levava a
uma galeria no segundo andar. Fiquei a olhar para ela, como se significasse
alguma coisa. – Ele recusa-se a descer – repetiu Miguel.
– Se quiser, vou buscá-lo.
– Quando chegar ao cimo, vire à direita. A porta dele é a última. É a
feia… esborratou-a toda com várias cores, para fingir que tinha sido um
artista a pintá-la.
Soltei uma risadinha ao ver a expressão de Miguel. Era evidente que se
queria rir, mas estava naquela fase em que o humor parecia uma traição ao
próprio filho. Ainda passaria um tempo antes de se permitir descontrair.
Anos, talvez. E depois, se António morresse… Carlos, conheci pais que
perderam os filhos e que só o corpo lhes sobreviveu: pais zombies de
homossexuais amaldiçoados, enterrados na juventude. A vida começa a
parecer-se com um mau filme de terror dos anos cinquenta, não é? Na
última cena, só vemos pais e mães pálidos deambulando como sonâmbulos
através dos dias, e de pé à janela, noite alta, aproveitando a ténue luz do
luar para olhar para as fotografias dos filhos mortos.
Miguel parecia um bom candidato a um futuro assim.
De facto, a porta de António estava salpicada de teias de aranha de tinta
cor-de-rosa, amarela e preta – uma experiência que fizera havia dois anos,
depois de descobrir Jackson Pollock no meu catálogo do Museum of
Modern Art em Nova Iorque. Benzi-me duas vezes em jeito de proteção,
depois olhei para cima, na direção do céu, e bati à porta. Nada. Voltei a
bater, imitando uma voz áspera:
– Abre, é a polícia do pensamento. – Ante a ausência de resposta,
entreabri ligeiramente a porta; lá dentro estava escuro, os estores descidos e
as cortinas fechadas. Vi António deitado na cama, a cara para baixo e com a
cabeça enterrada na almofada. Na mesinha de cabeceira, repousava um
minúsculo frasco de vidro verde-escuro, e por um instante pensei:
«Emborcou uma dúzia de comprimidos para dormir e matou-se.»
Custava-me admitir, mas uma pequena parte de mim ter-se-ia sentido
aliviada.
– Confúcio dizer que chegar momento de Marco Polo partir para
Oriente – brinquei.
Nada.
Olhei distraidamente para o quarto, imaginando que um beijo ou
qualquer outra demonstração de afeto iria desencadear outra explosão de
vingança da sua parte.
Bati com o pé na perna da cama.
– Ei, ó tu, está na hora de irmos embora. Temos encontro marcado com
alguns cafés da moda em Madrid.
António não parecia querer levantar-se, pelo que me encaminhei até à
janela e abri as cortinas. A luz inundou o quarto.
Imagina ver um sonho recorrente materializar-se diante dos teus olhos.
As paredes estavam pintadas de verde-azeitona e o teto de rosa-vivo,
exatamente como António vira num livro de design mexicano de Pedro. Ele
estava deitado sobre o edredão às riscas pretas e brancas que tínhamos
comprado um ano antes numa loja de importações chinesas e japonesas, na
Rua de Santa Catarina, e sob a secretária, o cesto de verga que
compráramos na feira da ladra em Espinho. Na estante por cima da
secretária viam-se algumas traduções de livros americanos e ingleses que
tínhamos encontrado na Livraria Bertrand: Luz em Agosto, O complexo de
Portnoy, Canto nómada, Trópico de Câncer…
De repente, senti a cabeça latejar e transformar-se numa ânfora cheia de
poalha multicolor. Senti vertigens, como se o mundo girasse lentamente à
minha volta. António virou-se e tudo ficou bem. Tinha os olhos vítreos e
distantes.
– Não quero ir com o meu pai – anunciou, a voz embargada de
desespero.
– Porquê?
– Odeio-o.
Olhou para mim, como se esperasse que eu lhe exigisse explicações
para aquela resposta. Fechei a porta, tendo cuidado de que Miguel não
ouvisse:
– É uma razão bastante boa. Mas vamos só experimentar, que diabo –
insisti.
– Não.
– Está bem, então diz-lhe que não queres que ele venha.
– Diz-lhe tu. Isto foi ideia tua.
– Mas eu quero que ele venha – declarei.
– Porquê?
– Porque ele quer vir. Está desesperado por isso. E, nos dias que correm,
eu tento dar às pessoas o que elas querem.
– O que ele quer é controlar-me! – António ergueu-se sobre os
cotovelos e arregalou os olhos. – E quer controlar-te a ti também. Não
confia em ti o suficiente para me deixar sozinho contigo. É só por esse
motivo que quer vir. Não tenhas ilusões.
– Falaste-lhe de nós?
António esboçou um sorriso zombeteiro.
– Preocupado, Professor?
– Falaste-lhe?
– Não, pensei que tu lhe fosses dizer. O americano na Terra Onde o
Tempo Parou, e essa treta toda.
– Tencionava, mas acobardei-me no último instante.
– Tu? Acobardaste-te? O tipo que não tem vergonha de jogar como
extremo na equipa nacional de basquete de Sodoma? Olha que engraçado. –
Voltou a deitar-se, contemplando o teto.
– Ouve, António, toda e qualquer vergonha que pudesse sentir foi-me
arrancada a pontapé há muito tempo, desde que os cossacos atacaram. Mas
não sou estúpido. A princípio, achei que o teu pai me fosse esmagar a
cabeça com a primeira pedra da calçada que apanhasse. E depois… ouve,
ele está fragilizado neste momento. Eu não queria…
– Não quiseste correr riscos. Não tem nada a ver com o meu pai. Sê
sincero.
– Ah, então agora conheces-me melhor do que eu próprio?
– Alguém terá de o fazer – declarou.
– E aonde foste tu recolher todo esse tesouro de sabedoria?
Ele voltou a erguer-se e encostou-se à parede.
– A ti, Dr. Frankenstein.
– Não tens nada de monstro, nem eu de cientista louco.
– Espera só até veres no que me transformo – anunciou, erguendo as
sobrancelhas com uma expressão ameaçadora. – Até conseguiste pôr-me a
falar como tu.
– Se não queres que ele venha, diz-lho frontalmente. Deves-lhe isso, no
mínimo.
– Tu não sabes nada! – gritou. – Não lhe devo nada!
– Quem pagou as tuas aulas de guitarra?
– O dinheiro! – zombou ele. – Para os judeus, tudo se resume a isso.
– Que golpe baixo. Armares-te em esperto e insultar-me estupidamente
não te vai levar longe.
– «Longe» é sítio aonde nunca vou chegar. Por isso, vai dizer-lhe que
não queremos que ele venha. Foste tu que começaste isto tudo.
– Já te disse, se quiseres cravar esse punhal, terás de o fazer sozinho.
– Achas que não consigo dizer-lhe, não achas?
– Pelo contrário, aprendi recentemente que és capaz de dizer tudo. Por
muito contundente ou falso que seja.
António voltou a cabeça e humedeceu os lábios, como se a conversa o
cansasse.
– Tu alertaste-me – observei. – E estás a cumprir. Mas vamos fazer uma
pequena pausa neste jogo. Precisarás da ajuda do teu pai para superar isto…
– Não há nada para superar. Acabou-se.
Sentei-me aos pés da cama.
– Aí é que te enganas, meu príncipe. Ainda agora começou. E esta é
uma guerra longa e lenta. Será mais fácil com o teu pai ao teu lado. Talvez
mais do que me teres contigo. E, quer queiras, quer não, ele ama-te.
António inflou as bochechas de ar como um peixe-balão e abanou a
cabeça.
– E também sei… porque mo disseste… que o amas, muito.
– Disse-te isso há um ano!
– E depois?
– E depois… os sentimentos mudam.
Foi a minha vez de abanar a cabeça.
– Não sou estúpido.
Fez-se um silêncio. António lançou os pés para fora da cama, dirigiu-me
o seu olhar mais feroz e marchou dali para fora. Os seus passos ressoaram,
irados, pela escada de madeira.
– Foste tu que me mataste, sabes? Foste tu! Se não fosses tu, agora não
estava assim! – gritou ao pai, uma vez lá em baixo.
Há silêncios que esperamos nunca acabem. Mas António voltou a subir
as escadas com estrondo. Entrou no quarto, bateu a porta e, evitando o meu
olhar, deitou-se na cama. Cruzou as mãos atrás da cabeça como depois de
fazermos amor e ficou a olhar para o teto.
– Vá, diz-me lá que estás desiludido comigo.
– Não estou desiludido. Estou zangado e tenho uma coisa para te dizer.
– Prometeste que não me vinhas com conversas de chacha, nem
sermões, ó idiota – exclamou, num tom carregado de desprezo. Parecia
estar a tentar assumir uma nova personalidade. – Por isso, cala-te e prepara
o carro. Desço daqui a uns minutos.
Ergui-me e dei um pontapé na lateral da cama.
– As pessoas são frágeis, meu sacaninha. Especialmente eu. Se lhes
bates demasiado, elas vão-se abaixo. E depois não podes apanhar os cacos.
Por isso, cuidadinho. Já vi morrer muita gente… gente tão boa, tão
encantadora e talentosa como tu… para ficar aqui a aturar esses ataques!
António atirou com os braços para cima dos olhos. Fiquei ali de pé a
ouvi-lo soluçar por uns momentos, ausente do meu próprio corpo. Depois,
sentei-me na cama e agarrei-lhe no braço. Todo ele tremia.
– Não me toques! – exclamou, num grito dorido.
– Cala-te! – gritei.
Aninhei-me na cama atrás dele. A princípio, resistiu, mas abracei-o e
segurei-o com força.
– Se me tocas, vais apanhar o vírus – gemeu.
– Chiu… Vamos esquecer tudo por uns minutos. Às vezes, esquecer é o
melhor. – Estreitei-o contra mim. Ele aconchegou-se e o seu corpo ficou
inerte. A cama transformou-se no nosso ninho.
Ao fim de algum tempo, fui assaltado pela urgência de fugir do Porto e
nunca mais dar uma aula de guitarra, e agarrei António com toda a minha
força. Queria desaparecer nele, deixar de existir.
– Pensa em Madrid – incentivei. – Pensa em Paris. Vamos ter uma
aventura.
Estava a falar de mim para comigo, claro.
Quando o choro dele acalmou, encarou-me. A sua respiração, tépida,
chegava-me aos olhos enquanto me dizia que estava com medo. Acariciei-
lhe o cabelo, e ele contou-me a sua história de «quando-percebi-pela-
primeira-vez-que-era-gay».
– Eu estava com o meu pai na vila onde nasceu. Em Vila Nova de
Cerveira. Íamos apanhar o ferry para Espanha, do outro lado do rio. Eu não
teria mais de seis ou sete anos. Ele pegou em mim e pousou-me no
corrimão do convés para que eu visse a paisagem, e depois às cavalitas
sobre os ombros dele. O rio era lindo, escuro, cheio de reflexos… como um
espelho feito de noite. Mas acima de tudo lembro-me das suas mãos fortes a
segurar-me os tornozelos, a sensação do seu cabelo a roçar-me a barriga.
Quando me pôs no chão, olhei para ele como se estivesse a olhar para a
Torre dos Clérigos. Lembro-me de pensar: «É tão alto, e bonito, e forte, e
gostava tanto de dormir com ele à noite.» Acho que foi em parte porque os
meus pais já andavam a ter problemas nessa altura. Quero dizer, eu andava
sempre com medo e precisava da proteção dele. Mas foi nessa altura que
soube que havia qualquer coisa diferente em mim, que me sentia atraído
para o desenho da boca dele, das suíças… acima de tudo, das suas mãos.
– Alguma vez lhe disseste?
– Tentei, logo a seguir às minhas primeiras experiências com rapazes.
Mas ele assustou-se e disse-me que eu tinha de encontrar o caminho certo
na vida. Nem conseguiu dizer a palavra homossexualidade. Disse-me que o
caminho errado é como um vício e, quanto mais o trilhasse, mais difícil me
seria regressar. Deve ter repetido a palavra caminho umas cem vezes
durante aquele longuíssimo sermão. Parecia uma fórmula de encantamento.
Foi estranho.
Contei a António outra das frases venenosas da tua carta de despedida,
Carlos, quando me disseste que tinhas a certeza de que eu entenderia o que
era um «verdadeiro homem» se ao menos experimentasse uma mulher.
Sabes o que disse o meu pequeno Segóvia? «Parece um dos cães de
Pavlov a tentar convencer um amigo a salivar com ele quando a campainha
toca.» Não quer dizer que ele seja mais esperto do que tu, Carlos, embora o
seja de certeza, mas simplesmente muito mais sincero.
De seguida, contei ao miúdo como descobri que era gay no Zoológico
do Bronx. Tinha doze anos, porque foi durante uma visita que a escola fez
no sétimo ano. E lembro-me de que Karen Roberts foi mandada para casa
por estar a usar calças e a escola ainda ter um código de indumentária
redigido por um qualquer machista puritano dos anos cinquenta,
estipulando que as raparigas tinham de usar vestido. Seja como for, a
responsável foi uma girafa. Era um macho com as pernas mais fortes e
elegantes que eu alguma vez vira. O que me atraiu foi o músculo da perna
direita, que volta e meia tinha um espasmo. E toda a perna dele vibrava.
Não sei como aquilo acionou um gatilho no meu cérebro, o facto é que no
instante a seguir eu estava a olhar para as pernas de todos os rapazes da
minha turma, em especial para as coxas de um guarda do zoo de cabelo
grisalho, calções e T-shirt justa, que olhava para o fosso que separava as
girafas do público como se tivesse perdido alguma coisa.
Apercebi-me de repente que havia qualquer íman em mim que toda a
vida estivera apontado para aquele homem.
– Então, que vamos fazer com o teu pai? – perguntei a António,
terminada a história.
Ele limitou-se a fungar com desprezo.
– Só vai atrapalhar.
– É por esse motivo ou estás com medo de que ele te veja vinte e quatro
horas por dia? Medo do que lhe possas mostrar?
– Não sei.
António pareceu-me tão vulnerável e belo, que dei por mim a pentear-
lhe o cabelo com os dedos, enquanto me imaginava a levá-lo ao barbeiro
em miúdo. Estava tudo bem, mas de súbito, sem aviso nem razão aparente,
o meu coração disparou. Sentei-me e comecei a respirar fundo, tentando
encher os pulmões de oxigénio.
– Que foi? – gritou António.
Era um ataque de ansiedade. Grau 7.0 na Escala de Richter, o primeiro
realmente grande desde a morte do meu irmão. Tinha-me esquecido de
como aquilo me abalava por inteiro.
«Valium», pensei. «Tenho de tomar um Valium!»
António trouxe-me água e ficou a segurar-me na mão. Deitei-me de
barriga para baixo, com a cabeça enterrada na almofada para me refugiar no
escuro. Quando já estava suficientemente calmo para me voltar ao
contrário, ele trouxe-me uma toalha morna e limpou-me o suor da cara e do
pescoço. Sentei-me na cama.
– Que aconteceu? Pregaste-me cá um susto – exclamou.
– Não é nada de grave. É um sintoma de fadiga de guerra. O meu
coração convence-se de que é um címbalo. Não importa, vinte minutos
depois estou outra vez pronto para entrar em ação.
Mentia. Importava, sim. Porquê? Porque me apercebi de que o que
causara aquele terramoto em especial fora a ideia de que António era um
miúdo a precisar de um corte de cabelo. E de que eu o via como meu filho,
percebes? E isso parecia mudar tudo.
– Então, que havemos de fazer em relação ao meu pai? – perguntou.
– A minha intuição diz-me que ele deveria vir connosco.
Será que eu queria que Miguel viesse para poder manter aquela
realidade de o António ser simplesmente meu aluno?
O miúdo fechou os olhos.
– Tenho medo dele – sussurrou.
Fiz-lhe uma festa na face.
– Porquê?
– Tenho medo de que ele expluda, e eu não consiga aguentar. Não aturo
mais os sermões dele. Agora não. Não fazes ideia de como eles são.
– Tenho a certeza de que não te vai pregar nenhum sermão nos
próximos tempos. Ele disse-me na outra noite que tinha sido um erro
impedir-te de entrar para o Conservatório, que ele teve simplesmente inveja
de ti.
– Inveja?
– Por tu poderes ser muito mais do que ele, por teres talento, por não
teres de ser só mais um pedreiro. Não sei como é que ele era dantes, mas
acho que mudou bastante nestes últimos tempos. – Pousei-lhe um beijo na
testa. – Às vezes, os pais têm de evoluir para conseguir acompanhar os
filhos, sabes? Se não evoluem, perdem-nos. E ele não quer perder-te. Mais
do que qualquer outra coisa, ele quer conhecer-te. E é por isso que quer vir
connosco.
– Não tenho tanta certeza. Ele não é tão simples como dá a entender. –
António piscou o olho, como por norma faz quando descobre um esquema
ou um segredo, a pálpebra direita treme-lhe como um toldo ao vento e a
sobrancelha esquerda ergue-se em acento circunflexo. – Ele é ladino. Sabes
como é que a minha mãe lhe chama? «O lobo disfarçado de ovelha.» Pode
estar a enganar-te. Sabes bem que tens um ponto fraco, acreditas em tudo o
que um homem bonito te disser. Se o Papa fosse o Sean Connery, ias a
correr direitinho para a pia batismal.
Ri-me.
– Está bem, pronto, é possível que também queira controlar-nos. Mas
isso é natural. Preferias que ele não quisesse tomar conta de ti neste
momento?
– Não, mas é tudo tão complicado. Tu não entendes.
– Claro que não. Só tu podes entender.
António abanou a cabeça e suspirou.
– Acho que devia ir lá abaixo pedir-lhe desculpa.
– Se quiseres. Ou diz-lhe só que queres que ele venha. Ele perceberá o
resto.
António levantou-se, contornou a cama em passos lentos e arrastados
como um miúdo obrigado a cumprir uma tarefa, depois apoiou ambas as
mãos na moldura da porta e encarou-me. A sua expressão era grave.
– Não quero morrer, sabes? É por isso que eu… eu…
– Eu sei.
– Não me vais abandonar?
– Vou estar contigo. – Aproximei-me dele e estendi-lhe a mão, que
António agarrou com força. Ficámos a olhar um para o outro. Havia
demasiadas coisas a dizer. – Quando o meu irmão adoeceu, disse-me uma
coisa que nunca mais esqueci e que talvez ajude. Ele era religioso, tinha-se
convertido ao catolicismo. Um dia, quando estava com ele no quarto do
hospital, citou-me um versículo do Salmo 23: «Ainda que eu andasse pelo
vale da sombra da morte, não temeria mal algum…» Conheces?
António abanou a cabeça.
– Nunca li a Bíblia – disse. – Prefiro a não ficção.
Sorri.
– Não tem importância. Sempre achei que a parte da «sombra da morte»
era a imagem mais significativa do versículo. Quando o ouvi pela primeira
vez, imaginei uma figura embuçada, de pé, no deserto, projetando uma
sombra frígida. Mas o Harold confessou-me que para ele a parte importante
era o simples ato de andar. «Se vamos a caminho da morte, não interessa
correr», disse-me. «Mas também não queremos parar. Apesar do que temos
pela frente, andamos… andamos simplesmente.» Não sei porque é que isso
foi tão importante para mim, mas foi.
António encolheu os ombros e largou-me a mão.
– Não significa nada para mim.
– Pois. – Tinha-me esquecido de que para ele a descrença era mais forte
do que o medo naquele momento. Mais tarde, talvez, o simples facto de ter
mais um dia para andar significasse alguma coisa. Ou talvez não. As
pessoas são diferentes e precisam de coisas diferentes. A única coisa que
têm em comum, descobri, é a necessidade de serem ouvidas. Por isso, disse:
– Prometo ouvir-te. – Ele assentiu com a cabeça e deixou-me sozinho no
quarto.

13
Em português no original. (N. da T.)
14
Foi a minha mãe, filha de camponeses judeus que imigraram para os
Estados Unidos vindos de Łódź, quem me disse que se consegue saber
muito acerca de uma pessoa pela bagagem. Anunciou-mo instantes antes de
me oferecer uma enorme mala de couro Gucci, em setembro de 1971, uma
semana antes de eu partir para a Universidade de Nova Iorque. Revirei os
olhos. «Muito obrigado, mãe. Com isto, o meu colega de quarto vai
perceber logo que sou um palerma.» A minha mãe já encolheu desde então,
mas nessa altura media uns intrépidos 1,55m. Endireitou-se, apontou-me
um dedo ao nariz e exclamou: «Espera só para veres… o teu colega de
quarto vai roer-se de inveja.» Como golpe de misericórdia, acrescentou,
como que casualmente: «Ah, e o teu pai e eu decidimos acompanhar-te ao
dormitório da universidade.» Era a última coisa que eu queria, pelo que
consegui negociar com ela: «Uso a mala que me compraste se me deixares
ir de comboio até Manhattan e entrar pelo quarto adentro como se fosse
órfão.» Moral da história: chego ao dormitório e o meu primeiro colega de
quarto, caloiro como eu, Bob «Jerkoff»14 Birkoff, de Princeton, Nova
Jérsia, que colecionava selos e era fanático dos Grand Funk Railroad, tira os
óculos de sol espelhados e fica a olhar para a minha mala Gucci, fascinado,
como se tivesse chegado de uma dobra no tempo. Sobre a sua cama
repousava uma daquelas malas indestrutíveis American Tourister, com
rebordo metálico, que costumavam oferecer em jogos televisivos como o
Let’s Make a Deal15. Aberta, lembrava uma amêijoa gigante. Dela saíam em
cascata os primeiros polos e jeans Jordache que eu alguma vez tinha visto.
Bob confessou-me imediatamente que estava cheio de inveja da minha
mala. Era o heterossexual mais amaneirado que conheci, e desde essa altura
tive de aceitar o facto de a minha mãe estar mais sintonizada do que eu em
termos de psicologia moderna.
Miguel arrastou para a rua uma grande mala de xadrez vermelha com ar
de ter sido recém-aspirada, ao cabo de trinta anos no fundo de um armário.
Claro, enquanto observava Miguel a enfiar a bagagem no T-Bird, imaginava
a minha mãe batendo o seu pé crítico ao meu lado e dizendo-me na sua voz
inconfundível: «Pobre desgraçado – é a mesma mala que trouxe da sua vila
natal para o Porto, há trinta anos. Provavelmente ainda cheira aos chouriços
e queijos que a sua santa mãe fez o favor de meter lá dentro.» António
trazia um daqueles sacos utilitários de nylon, mas tinha enfiado uns quantos
haveres numa fronha de almofada amarelecida, que fechara com um cordel.
Deixou-a cair no espaço ainda livre na mala do carro com um baque surdo.
– Mais um par de ténis – explicou.
«Sê bonzinho e compra-lhe uns sapatos italianos em Madrid»,
murmurava-me a minha mãe.
António ainda não tinha tecido quaisquer comentários sobre o T-Bird,
por isso perguntei-lhe:
– Então, que me dizes?
– Não está mal – respondeu.
– Não está mal?
– Pois, não está mal.
Dei umas palmadinhas no tampo da bagageira.
– Parece o Batmóvel. Não reparaste?
– E daí?
– Esquece. Trouxeste as pautas?
– Já te disse que não quero tocar o raio da guitarra!
– Não faz mal, eu trouxe as de Bach – disse, com um gesto displicente
da mão, como quem se está nas tintas. – Vamos trabalhar nessas. – Achei
que ele poderia tocar a Suite para Violoncelo em Dó na audição em Paris.
O segredo da nossa missão deu-me alento.
– Tu não desistes – replicou António, abanando a cabeça.
– Não. Nunca. É uma das minhas maiores qualidades.
Franziu o sobrolho como se eu fosse um peso morto em volta do seu
pescoço, o que era exatamente a minha intenção, sentando-se de seguida no
lugar do passageiro.
– A porta deste carro deve pesar uma tonelada – soltou, com ar de frete.
Encarei Miguel.
– Está pronto?
Ele anuiu, enquanto dava uma última passa no cigarro. Abriu a porta de
trás e entrou, enfiando primeiro a cabeça. Tive a sensação de estar numa
peça de Eugene O’Neill que ele nunca escreveu, embora devesse tê-lo feito,
e cujas deixas me esquecera de decorar. O meu coração batia como um
metrónomo em scherzo e parecia que as molas lhe iam saltar a qualquer
momento.
– Onde fica a farmácia mais próxima? – perguntei.
– Diga-me do que precisa, Professor, talvez eu tenha – respondeu
Miguel, prestável.
Naquele momento, a última coisa de que precisava era um pai
heterossexual cortês a espiar o professor gay do filho. Fixei-o pelo espelho
retrovisor e respondi «Valium», sem sequer me dar ao trabalho de o
pronunciar à portuguesa.
António apontou em frente.
– Eu mostro-lhe. É ali em cima.
Liguei o Batmóvel.
– O que é Valium? – perguntou Miguel.
Voltei-me para trás. Devia ter ficado encantado por ainda existir quem
nunca tivesse ouvido falar nesses comprimidos milagrosos, mas o facto é
que aquilo me irritou. Miguel estava sentado com as mãos entre as pernas,
como se sentisse imenso frio. Tinha o cabelo desgrenhado, a barba por
fazer, e a pele em volta dos olhos enrugada, como se não dormisse havia
semanas. E, ao olhar para ele, apercebi-me de que talvez António tivesse
razão. Talvez ele me tivesse enganado com as suas heroicas confissões
sobre a inveja e a culpa. No fundo, só queria controlar o americano
degenerado e o seu protegido enquanto se lançavam em direção à Velha
Castela e ao coração da Europa Gálica. Eu devia estar completamente
desorientado para me ter deixado enganar daquela maneira.
– Pode tomar um e constatar por si – disse, com um desejo súbito de o
corromper. Meti a primeira, e de repente imaginei Miguel inconsciente no
banco de trás do Batmóvel à medida que atravessávamos a planície da
Extremadura: dois terroristas gay e o seu refém heterossexual.
Chegados à farmácia, disse a mim próprio que iria guardar os
comprimidos no bolso, «só por precaução».
A típica desculpa do agarrado, claro.
A farmácia era um desses sítios vetustos com pequenas gavetas de
madeira a forrar as paredes e uma balança a um canto para as pessoas se
pesarem. Quando entrámos, três mulheres minúsculas de bata branca
sorriram a António e a mim. O balcão de mármore cheirava a Vicks
Vaporub. Pronunciei o nome mágico da única divindade em que acredito e
pensei: «Talvez desta vez Ele me faça descer docemente até ao Submundo e
eu possa desistir de lutar.»
Por trás do balcão repousavam cinco potes de cerâmica branca com
nomes vidrados a azul: Nux Vomica, Flor Cinae, Belladonna, Ung.
Populeum e Arnica Montana. Enquanto esperávamos que uma farmacêutica
de cabelo oxigenado me trouxesse os comprimidos, perguntei a António se
as pessoas ainda compravam coisas daquelas.
– Antes dos calmantes, as pessoas encontravam outras formas de
escapar à realidade – respondeu.
Deus continuava a habitar a velha caixa familiar verde e branca. Victan.
Lembrava-me bem da marca; fora a minha primeira compra depois de me
mudar para Portugal. Como velho agarrado que sou, verifiquei
imediatamente o número de comprimidos – continuava a ser sessenta, um
mês inteiro nas doses de que eu precisava.
Miguel esperava por nós no T-Bird estacionado em segunda fila, as
pernas fora do carro, a dar passas sucessivas, como se a sua vida
dependesse da nicotina. António saltou-lhe em cima:
– Já te disse que não te quero a fumar no carro. Vê se mostras um pouco
mais de respeito. – Como a maior parte dos ex-fumadores, o rapaz era
veemente no seu desprezo pelo tabaco.
– Desculpa – pediu Miguel, lançando o vício para longe.
António aproximou-se da beata em passos largos e apagou-a com o
sapato.
– Achas que as pessoas querem fumar esse nojo na rua?
Miguel tinha os olhos vítreos. «Dois masoquistas de meia-idade e um
miúdo enraivecido; vai ser uma viagem divertida», pensei.
– Tudo no carro e nem mais uma palavra! – exclamei.
Seguimos até à autoestrada num silêncio zangado, eu com o Victan bem
guardado no bolso. Fiquei contente por conseguir levar o Batmóvel aos 140
quilómetros por hora, ponto em que ele entrou em velocidade de cruzeiro.
– Deixando agora o Porto, fator Warp 7.5 – anunciei alegremente.
Ninguém respondeu. Talvez nunca tivessem visto o Star Trek, embora isso
me parecesse impossível. Miguel lia os resultados do futebol n’ A Bola.
António, com as mãos entre as pernas, tal como o pai, observava a
paisagem com uma expressão hirta. Tinha um ar tão pálido e duro que nos
imaginei a «trabalhar para o bronze» no Retiro Park de Madrid, qual casal
de homossexuais em Central Park. Ao cabo de algum tempo, notei que as
giestas ao longo das bermas da autoestrada e nos separadores centrais
estavam todas em flor, selvagens, duras, lembrando milho torrado. – Que
bonitas – disse a António, apontando-as. Ele concordou com um aceno
tímido de cabeça. – Se quiseres música, temos rádio. – Liguei-o. Phil
Collins cantava algo que eu nunca tinha ouvido. – Este tipo está em todo o
lado – exclamei, inocentemente. António desligou o rádio com um gesto
brusco e irritado e encostou a cabeça ao vidro como um alienígena
abandonado que sonha com o seu planeta, a mil anos-luz dali.
Pelo retrovisor, vi Miguel com o jornal aberto em cima da cara. Com
muito cuidado, levei a mão até à coxa de António e apertei-a. Ele não olhou
para mim. Ao fim de algum tempo, retirei a mão.
Entrámos na IP 5 em Aveiro e virámos para leste. O Sol ia alto no céu
azul, e tudo tinha um ar maravilhosamente transparente. Há um troço da
estrada em que se sobem umas colinas desalinhadas e lá do cimo se tem
uma vista panorâmica sobre a costa atrás, mesmo antes de se desaparecer
nas montanhas do Caramulo. Encostei o carro na berma. Nessa altura, tinha
as pernas tão tensas que me doíam e precisava de as esticar. António já me
vira naquele meu ritual, pelo que não se riu, nem ficou a olhar para mim.
Mas Miguel parecia fascinado. Deixou o fumo sair-lhe pelo nariz enquanto
me observava. Como talvez te lembres, Carlos, o ritual processa-se da
seguinte maneira: primeiro sento-me e descalço os sapatos. Depois, com a
mão direita, agarro no calcanhar do pé direito, estico a perna por cima da
cabeça e mantenho-a esticada, enquanto conto até sessenta. Sinto os
músculos todos desatarem-se. De seguida, faço o mesmo com a perna
esquerda. Nestas coisas, a simetria é essencial. Aprendi-o com um bailarino
de dança clássica com quem fiz amor uma vez no seu dormitório na North
Carolina School of Arts em Winston-Salem, e que tinha músculos em sítios
onde as outras pessoas só têm pele e tendões. Digo isto porque Miguel me
perguntou onde aprendera aqueles exercícios, e eu não lhe menti.
António ora me observava, ora contemplava o pai, como se estivesse à
espera de que uma bomba rebentasse. Nessa altura pensei que se Miguel
tivesse algum problema com a minha sexualidade podia…
a) ir-se lixar,
b) voltar para o Porto a pé antes que nos afastássemos demasiado.
Miguel limitou-se a dar uma passa ávida no cigarro e a assentir com a
cabeça.
– Na ginástica, costumávamos fazer exercícios parecidos – disse depois.
– Conseguia fazer a espargata, sabe?
– Está na altura de nos pormos outra vez a andar – atalhei, imaginado a
agilidade de Miguel e sentindo um calor subir por mim.
«Pronto, agora o Miguel já sabe. Ou será que pensa que falhei um
feminino no português e que queria dizer “bailarina”? Estará a ganhar
tempo? Talvez me apanhe desprevenido esta noite, no quarto de hotel, e me
estrangule, enquanto me amaldiçoa por lhe ter pervertido o filho.»
A violência que senti nele era real, sem dúvida, como mais tarde vim a
descobrir. Contudo, na altura, achei que estava a dramatizar; desde o eclipse
viral sobre a homossexualidade, tenho a tendência para acreditar que os
piores cenários são os únicos que se concretizam.
Na minha perspetiva, uma Cassandra dos tempos modernos não precisa
de poderes especiais para ver o futuro; só metade de um cérebro e a boa
visão que Fiama tanto preza.

António afundou-se no assento do carro e começou a comer as peles em


redor das unhas. Para quem toca guitarra clássica, as unhas estão interditas,
por isso aquelas meias-luas de pele deliciosa são a melhor alternativa.
Miguel estava sentado sobre as mãos. Agora sei que era para se impedir
de puxar de um cigarro. Pelos vistos, todos tínhamos as nossas restrições
naquela viagem. Eu, por exemplo, não podia usar certas palavras – verbos
que exprimissem carências, como querer, precisar, ter esperança e desejar.
Por isso, pus-me a observar a giesta que agora crescia nas bermas da
estrada, deslumbrante como milhares de candelabros amarelos subindo
pelas encostas que primeiro vimos à nossa frente e depois deixámos para
trás, entregues ao som do vento. Estávamos nas montanhas do Caramulo,
latitude 40.39 norte, longitude 8.24 oeste. Aqui, era fácil esquecer o Porto,
o Conservatório, a minha mãe, o passado, tu, querido Carlos, até a doença
de António. A tensão que me invadia o corpo abrandou. Era como se as
ligaduras invisíveis que há muito me cingiam começassem a soltar-se. Ali,
o passado e o presente eram apenas sombras, nada mais do que perfumes
distantes de um futuro incapaz de assombrar a paisagem daquele junho
inundado de sol que Van Gogh teria pintado se tivesse guardado na paleta as
cores dos seus famosos girassóis: laranja, amarelo, o rosa das flores da
macieira, um verde orvalhado e o verde prateado das vetustas oliveiras.
Vai buscar uma tela em branco, Carlos, pinta uma paisagem com essas
cores e talvez consigas ver onde estamos. Tenta imaginar que pintas por
números e não deixes de fora…
os eucaliptos gigantes a guardar o caminho;
os pinheiros a erguer os olhos para eles;
E os fetos a brotar do chão da floresta;
Também há um cão preto e branco acorrentado a um espigueiro. Qual é
a palavra para isso em inglês? Um granary, é isso mesmo. Pinta o rafeiro
preto e branco preso ao espigueiro, com o focinho furioso escancarado, um
latido preso no tempo e abafado pelo vidro da minha janela.
Aqui, no Portugal profundo, onde as casas de telhas cor-de-laranja se
espalham como peças abandonadas de um monopólio pelos vales revestidos
de vinhas, a sida não existe. Como poderia? Como poderia um vírus com
apenas mil ångströms de comprimento – pouco mais de meia dúzia de
moléculas tipo Lego, siamesas minúsculas e mal encaixadas umas nas
outras – surgir do nada no último quartel do século XX?
Como pintarias esta doença, Carlos? De que cor é o vírus da sida?
Nunca to perguntaram? Nunca pensaste nisso? É porque nunca conheceste
nenhuma vítima, e invejo-te por isso. Mas seria heroico representares na tua
tela: «A Cor da Sida.»
Talvez os teus antepassados sejam destas montanhas, Carlos, daquele
lugarejo de casinhotos tristes, aninhado na encosta que vejo à minha frente
e cujos contornos, lembrando um nariz azteca, não se alteraram desde que
os druidas enviaram os seus barcos para sul, para Portugal, à procura de…
de quê? Do sol das latitudes mais baixas? De Deus? Da última esquina fatal
que levaria a um mundo plano? Basta-me franzir um pouco os olhos e
consigo vê-los distintamente a erguer um acampamento ali, na curva
acentuada de uma ribeira. Sim, até os velhos druidas loucos, com túnicas de
linho branco, um pouco encurvados sob o peso das suas joias de ferro, estão
mais vivos nestas terras do fim do mundo do que a sida. Aqui, na
extremidade da Europa, numa Appalachia onde ninguém fala inglês, as
calamidades nunca mudaram e nenhuma delas é um vírus. Aqui, são as
cinzentas tempestades de inverno enviadas por Zeus… e, pior ainda, o Sol
estival de Hera, que olha para baixo, para os campos, e se põe no mar onde,
séculos antes, filhos partiram com Vasco da Gama para a Índia e nunca
regressaram. A terra coze ao sol, reverbera calor. Os rebordos das folhas
ficam castanhos e encaracolam-se como manuscritos antigos. As flores,
cansadas da luta, mirram e caem. Nas cidades, os cafés têm as paredes
cobertas de cartazes de touradas que tiveram lugar quarenta anos antes, com
avós toureiros há muito enterrados, e homens que nunca viram a pele
curtida trespassada por raios X emborcam copos de vinho verde ácido e
falam da seca como se falassem de um tio parasita que volta todos os anos
para lhes tirar a comida e o abrigo. Aqui, quase faz sentido acreditar nas
divindades antigas, até no Grande Velho Tirano da Tora. É fácil imaginar
que Deus afinal de contas não morreu, que foi eLivros das capitais do nosso
mundo para estes campos longínquos, qual primo distante que nunca
deveria ter saído da quinta onde nasceu, pois é o único sítio onde consegue
ter alguma utilidade.
E, portanto, António não está doente. Está seguro aqui. Estamos
seguros. E vamos até Madrid para beber horchata de chufa16 com rum e
sumo de ananás, e assim celebrar a entrada num novo século.
É nisto que estou a pensar, porque nem António nem Miguel falam, e as
minhas mãos estão presas na posição dez-para-as-duas sobre o volante
preto, e a minha mente recusa-se a aceitar que me estou a afundar num
pesedelo. Podes chamar a esta negação uma recaída, se quiseres. O
americano descontrolado deu dois passos à frente e agora um atrás. Ou
talvez seja simples cobardia. Tu, que sempre foste criativo ao serviço do
desprezo, arranjarás certamente uma palavra melhor em português para
descrever isto.

14
Em inglês, punheteiro, alcunha insultuosa sem dúvida inspirada no apelido do rapaz. (N. da T.)
15
Show televisivo norte-americano (1963-2014), eventualmente comparável a O Preço Certo em
Portugal. (N. da T.)
16
Bebida refrescante preparada com água, limão, açúcar e sumo de chufas; típica de Espanha,
especialmente da região de Valencia. (N. da T.)
15
Ao passar ao largo de Viseu, entrámos numa estação de serviço da BP,
com tudo pintado de verde e amarelo. Tínhamos feito duas horas de estrada.
António não parecia querer sair do carro e lembrava um miúdo amuado a
quem lhe houvessem negado a única coisa que ele realmente queria. Mas há
muito tempo que não era miúdo, claro, e eu não lhe podia dar a única coisa
que ele queria.
– Horas de almoçar – anunciei com ligeireza, como se fosse a minha
mãe e tivesse acabado de fazer sanduíches de atum e alface.
– Não me apetece – respondeu.
– Queres alguma coisa lá de dentro… iogurte, doces, qualquer coisa
para ler…?
– Só se venderem cocaína – ripostou, com uma expressão esperançosa.
Olhei de relance para Miguel. Saberia ele que o pingo no nariz do filho,
constante de há três anos a esta parte, não era apenas uma constipação que
teimava em não o largar? Pelos vistos, sabia. Saiu do carro prontamente.
Acendeu um cigarro.
Claro que António tinha falado em cocaína para provocar outra
discussão.
– Então não queres nada? – limitei-me eu a dizer.
– Nã.
– Não vamos demorar – garanti-lhe.
– Demorem o tempo que quiserem – respondeu, virando a cara.
Miguel e eu dirigimo-nos para o restaurante.
– Quer um cigarro? – Estava calmo. Começaria a habituar-se ao feitio
irascível do filho?
– Não, obrigado – respondi.
Miguel estacou de repente e pôs-se a olhar em volta, como quem
procura alguma coisa. Acabou por me fixar nos olhos, e pareceu-me que
tentava perceber quem eu era.
– Ele continua agarrado?
O maxilar tremia-lhe, e percebi que ele rangia os dentes, como o meu
irmão.
– Está a falar de drogas? – perguntei, como se não soubesse a que se
referia.
– Ele acabou de falar em cocaína.
– Ah, isso… ele nunca esteve realmente agarrado. Foi antes de eu o
conhecer. Tenho a certeza de que já não consome nada.
– Tal como tinha a certeza de que ele não andava a dormir com rapazes
perigosos… e desta coisa da sida que ele tem no corpo.
– Eu nunca disse isso.
– Pois não, não disse. Mas deve ter pensado, senão teria feito alguma
coisa, certo?
Era para esta faceta de Miguel que António me tinha alertado.
– O que quer dizer com isso?
– Nada. – Passou a língua pelos lábios, e recomeçámos a andar. Eu
conseguia ouvir-lhe os pensamentos: «Não só é maricas, como também se
mete na coca.» Imaginei-o a repetir aquelas palavras para si mesmo, como
orações desfiadas num terço, cada repetição fazendo-o ranger os dentes com
mais força.
– Recomendei-lhe muitas vezes que praticasse sexo seguro – disse-lhe à
porta do restaurante. – Tirei da carteira um recorte de jornal com uns anos.
O título rezava: «Preservativos: 60% sem qualidade.» Li o artigo a Miguel.
Catorze marcas de preservativos disponíveis em Portugal tinham sido
submetidas a testes de resistência. Oito haviam sido classificados como
totalmente impróprios para uso. E Harmony Normal era o único
classificado como Muito Bom.
– E de que serve isso agora? – perguntou, impaciente.
– Li este mesmo artigo ao António quando soube que ele dormia com
outros rapazes, e fomos juntos à farmácia para lhe comprar os seus
primeiros Harmony Normal. Eu costumava dar uma olhadela à carteira dele
para ter a certeza de que só usava esta marca. Não podia tomar conta dele a
cada instante, mas isso tranquilizava-me.
Miguel fez que sim, como se estivesse demasiado cansado para discutir
fosse o que fosse.
– Talvez devesse ter sido o Miguel a falar-lhe mais sobre o sexo e a vida
e a morte, antes que fosse tarde de mais – aventei.
Vi que o maxilar lhe tremia outra vez.
– Primeiro o senhor, Professor – disse, segurando a porta e dando-me
passagem.
Sentámo-nos a um balcão. Parecia uma área de serviço para camionistas
nos Estados Unidos. Um empregado com uma careca incipiente e camisa
branca toda suja veio tomar nota do pedido. Miguel quis sardinhas fritas. Eu
pedi uma sopa e uma salada. Ficámos em silêncio. Miguel acendeu outro
cigarro e deixou o fumo sair-lhe pelo nariz, como sempre faz.
– Podemos recomeçar? – perguntei.
– Recomeçar?
– Se é para nos darmos bem durante esta viagem, teremos de confiar um
no outro.
– Não o conheço bem – confessou ele.
– É verdade. E, contudo, acabou de me dar a entender que não fiz o
suficiente pelo António.
Ele começou a brincar com o botão superior da camisa e deu meia-volta
no banco, ficando de frente para o parque de estacionamento. Depois,
encarou-me de novo.
– Quando eu era novo – disse –, costumava olhar-me muito ao espelho.
As pessoas achavam-me vaidoso. O meu pai chamava-me idiota peneirento.
Mas eles não percebiam. Eu achava-me feio e escanzelado. Não queria
acreditar que estava condenado a viver uma vida inteira com aquela cara e
aquele corpo. Antes da trombose, o meu pai era muito forte, sabe… um
homem a sério. E bonito, também. Essa foi uma das razões por que comecei
a fazer ginástica. Para ganhar músculos. Para me defender, eu costumava
ofender os outros, tentando convencer-me de que eles é que eram feios. Só
mais velho, quando saí de casa do meu pai, percebi que o meu
comportamento era errado. De repente, as mulheres pareciam-me bonitas.
Dentro da casa dele, eu era uma coisa, fora dela outra. Era como um passe
de mágica. – Pôs-me a mão no ombro. – Há pouco, quando disse o que
disse, não era a si que me referia. Era a mim próprio. – Pôs-se a brincar
outra vez com o botão da camisa, que acabou por saltar e rolar pelo chão de
tijoleira. Fiz menção de o apanhar, mas ele agarrou-me o braço, e os nossos
olhares cruzaram-se durante uns instantes. Na ponta do seu cigarro, a cinza
começava a enrolar-se, e ele agarrava-me como se me quisesse puxar para
si. O meu coração batia descompassado, como se me pedisse em código:
«Dá o salto e vai ao encontro dele.» – Esqueça o botão – pediu. – Quando
acabei com a minha última namorada, parei de comprar roupa. Tudo o que
tenho está a desintegrar-se. Espero que acabe por se desfazer em pó. – A
cinza do cigarro caiu-lhe em cima dos jeans. – Merda! – exclamou, tirando-
me a mão do ombro e sacudindo a cinza com força. – Estes jeans, esta
camisa, comprei-os numa viagem a Lisboa. Numa velha loja, na Baixa.
Lembro-me tão bem. Foi há que anos. Mas nestes últimos dias, parece que
não me consigo lembrar de nada. Nem sequer sei quem sou. – Tornou a
olhar para mim. – Sabe, consigo perdoar tudo ao António, exceto o facto de
fazer mal a si próprio.
– Ele gosta muito de si.
– Acha?
– Sempre gostou muito de si. Orgulhava-se da sua beleza. Olhe, tenho
uma coisa importante para lhe dizer. Quero ser frontal consigo. Sou gay.
– Já tinha percebido há algum tempo.
– Então, daquela vez na varanda, quando me confessou que o António
era gay, estava a pôr-me à prova.
– Estava a ver como reagia.
– E sabe, claro, que dormi com ele durante cerca de um ano. Logo
depois de nos conhecermos.
– Não sou professor, mas também não sou estúpido.
– Não, lá isso não é. E não o incomoda?
Encolheu os ombros.
– Não posso fazer nada para o evitar.
– E se pudesse fazer alguma coisa, fazia?
– Não posso dizer que não desejava que o António não fosse gay. Mas
não é por eu o desejar que isso acontece.
– O António sente-se bem com a sua sexualidade – comentei.
– Sente? Sente mesmo? – Inclinou-se para mim e sussurrou com
violência: – Diga-me lá o que é assim tão bom em estar doente com sida?!
– Isso é consequência de um vírus, não de se ser gay – respondi.
Miguel franziu o sobrolho, como se aquela não fosse a resposta certa.
Fiquei uns instantes a ver uma mulher arrastar o filho pelo parque de
estacionamento.
– Fale-me mais do seu pai e da sua mãe. Conte-me a sua infância – pedi,
quebrando o silêncio que se interpusera.
– O que quer saber sobre os meus pais?
– Quando eu era pequeno, o meu pai e a minha mãe costumavam ler-me
os livros do Dr. Dolittle. Desde então, fiquei a gostar de ouvir histórias –
expliquei, incentivando-o.
– Não há muito que contar. O meu pai era pedreiro. A minha mãe… A
minha mãe… não a conheço bem. Cresci mais com o meu pai. – Ergueu
ambas as mãos. – Foi dele que herdei estas manápulas. São tudo o que
tenho. Perto do fim da vida vendeu a quinta ao meu irmão mais velho por
mil escudos para que eu não herdasse a minha metade.
– Mas do que se lembra dele? – perguntei, enquanto comia a sopa, que
entretanto chegara.
– Gostava de se sentar diante da lareira, a beber aguardente e a dormitar.
Tinha as pernas arqueadas e um andar gingão. Era forte. O homem mais
forte que conheci. Gostava de cães, mas era bruto a brincar com eles e
nunca os levava ao veterinário. Quando adoeciam, deixava-os morrer num
telheiro que nós tínhamos. Eles não paravam de uivar. Tinha uma cara dura
e escura como carvão. Não conseguia ler-lhe os pensamentos. Estava
sempre a julgar as pessoas, como se fosse Deus. Um dia, disse-me que
queria ir para o Brasil para ver peixes tropicais, que a nossa vida em
Portugal não tinha cor. Depois, deu-me uma bofetada e rematou: «Nunca
contes a ninguém que eu te disse isto.»
Continuei a comer a sopa.
– Que tal? – perguntou Miguel.
– Saborosa, mas um pouco salgada – respondi.
– Não, quero dizer, que tal é?
– Que tal é o quê?
– Ser gay.
Senti-me tentado a dizer uma piada, mas Miguel estava com um ar
grave e sério.
– É como ser heterossexual. Não há diferença. Nunca pensou em dormir
com um homem?
– Não. Bem, quer dizer, um amigo da nossa equipa de ginástica
convidou-me uma vez. Estávamos os dois bêbedos. Por um momento,
questionei-me como seria. Mas sabia que era errado. Para mim, pelo menos.
Parecia-me simplesmente que…
Não o encarei para não o intimidar, mas ele não prosseguiu a
explicação.
– Quero compreender o António. Quero perceber porque é que para ele
está certo. O que ele sente. Quero que me ajude a entendê-lo.
– Está bem. Mas a minha maior preocupação é ele.
– Eu percebo porque é que o António gosta tanto de si. – Encarou-me,
franzindo os olhos.
– É por ser bonito ou pela minha personalidade? – Sorri.
Ele encolheu os ombros:
– Os médicos dizem que os valores no sangue dele ainda são bons –
continuou.
Era um assunto que eu queria evitar. Assenti com um grunhido e
confirmei se o Valium continuava no bolso.
– O Professor está bem, não está? Quero dizer… estou a falar do
sangue, com o…
– Os meus testes estão todos negativos. Estou ótimo.
Ficámos um momento em silêncio. Chegaram as sardinhas e a minha
salada. Pedi uma tosta de queijo e fiambre para levar a António.
– De certeza que ele vai ter fome, mais tarde ou mais cedo.
– Ele confia em si, sabe? – observou Miguel.
– Fico feliz por isso.
– É em mim que ele não confia.
– Não sei. Não sei nada. Já não tenho certezas.
Miguel enfiou o resto da comida na boca como se tivesse de ganhar uma
corrida, após o que emborcou dois cafés e fumou dois cigarros. Fomos
juntos à casa de banho.
– Ufa, que alívio – exclamou enquanto urinava. Apetecia-me espiá-lo,
mas não o fiz. – Encontramo-nos lá fora – anunciou, mal apertou o fecho
das calças, e dando-me uma palmadinha no ombro.
Estava à minha espera mesmo à saída do restaurante, as mãos enterradas
nos bolsos das calças. Fomos andando juntos até ao carro, dois condenados
a ganhar coragem para enfrentar a forca. Sentei-me ao volante e passei a
António o saco de papel com a tosta mista. Ele contemplou-a, perplexo.
– O que é? – perguntou. Quando lhe disse, atirou o saco para o banco de
trás. – Trouxeste-me alguma coisa para beber?
– Não… disseste que não querias nada.
– Mas compraste-me comida. Esperavas que eu a empurrasse com quê?
– Eu vou lá buscar-lhe qualquer coisa – atalhou Miguel.
– Não vai, não!
– Se ele quer ir, que vá! – exclamou António.
Saí do carro. Estava furioso. Tinha as mãos a tremer e sentia o peito tão
apertado, que tive de me ajoelhar para respirar. Tirei um comprimido do
blister e engoli-o. Depois, avancei até ao talude de gravilha junto do parque
de estacionamento e sentei-me, como um miúdo que se instala numa caixa
de areia. Escondi a cabeça nas mãos. A escuridão ofereceu-me refúgio.
Quando abri de novo os olhos, Miguel dirigia-se para o restaurante e
António continuava sentado no carro. Jurei a mim próprio não sair dali até
sentir os efeitos da droga, incapaz de me imaginar a fazer fosse o que fosse
sem estar sedado. Com a navalha de bolso, desenhei linhas numa pedra, fiz
figuras com pauzinhos e dei por mim a falar sozinho, imaginando-me a
fazer uma incisão no braço de António com a navalha para lhe sugar o
veneno do sangue.
Fantasias sangrentas vêm-me à cabeça quando estou perturbado e
furioso. Falei com muitos amigos sobre isto e é muito mais comum do que
seria expectável.
Miguel veio ter comigo depois de passar a António pela janela uma lata
de Lipton Ice Tea. Postou-se à minha frente com as mãos nos bolsos.
– Apesar do que me disse lá dentro, de achar que era feio, por esta altura
já saberá decerto que é um homem muito bonito – disse eu.
Ele assentiu com a cabeça.
– Porque não volta para o carro?
– Normalmente, obedeço às vontades de um homem bonito, mas só
volto lá para dentro quando o Valium começar a fazer efeito – repliquei,
para minha grande surpresa.
– Tomou um comprimido?
– Pode crer.
– O que é que ele faz? – quis saber.
– Desata as faixas que me estreitam o peito até eu conseguir respirar de
novo. – Passei-lhe a caixa. – Tome um. Vai ajudá-lo a deixar de fumar.
– Não quero deixar de fumar – respondeu Miguel.
– O que quero dizer é que vai ajudá-lo quando estiver dentro do carro.
– A sério?
Eu não sabia se era verdade, mas disse-lhe que sim porque me apetecia
corrompê-lo. Além disso não me parecia assim tão importante e ele também
merecia descontrair-se. Miguel engoliu um comprimido.
– Dê outro ao António, se quiser.
– Será boa ideia?
– É apenas um calmante. Todos merecemos uma pausa. Senão ainda nos
matamos uns aos outros. Três cadáveres numa estação de serviço perto de
Viseu… dava um belo policial. Mas em Portugal escrevem-se poucos
policiais, e ninguém se ia interessar.
Miguel voltou para o carro e ofereceu os comprimidos a António.
Depois abriu A Bola sobre o tejadilho do T-Bird e pôs-se a ler. Quando o
Valium começou a fazer efeito, pensei: «Bolas, se me tivesse lembrado de
como é bom estar sentado numa duna de areia quente, nunca teria parado de
tomar estes lindos bombons cor-de-rosa.» Porque era sem dúvida o maior
alívio do mundo sentir os pulmões a encherem-se de um ar perfumado pela
primeira vez em muito tempo e poder contemplar o céu azul e sem nuvens,
como se tivesse sido destilado de uma turquesa. Era como regressar a casa
depois de anos de exílio. Comecei a cantar Penny Lane enquanto me dirigia
para o carro. Nessa altura, Miguel já estava enrolado no banco de trás, a
dormir profundamente. António lançou-me um olhar estranho.
– Que foi? – perguntei.
– Nada – respondeu, vago.
– E que tal encorajares-me? Aluguei um Batmóvel, um carro que achei
que ias adorar. Estamos a caminho de Espanha. Não podemos ter uma
aventura?
– Que queres que diga?
– Diz que estás contente.
– Estou contente – replicou ele num tom monótono.
– Vejo que não tomaste o comprimido.
– Pois não.
Devolveu-me a caixa de Victan. Guardei-a no bolso da camisa.
– Ouve, porque não cantas? – propus. – Canta qualquer coisa. Piaf, o
hino nacional… qualquer coisa.
– Não me apetece.
– Está bem, então não cantes. Dá-me só a mão. – Estendi-lha, mas ele
enfiou as dele entre as pernas e pôs-se a olhar pela janela. Encolhi os
ombros e liguei o motor, saindo devagar do parque de estacionamento.
Guiar parecia-me um jogo. Estava tão pouco habituado ao Valium que me
senti numa espécie de transe. Claro que não devia estar a conduzir, mas
tinha as mãos bem firmes no volante e não fazia a menor intenção de as
tirar dali.
Ao cabo de algum tempo, António pôs-me a mão na perna:
– Olá – disse baixinho.
– Olá – respondi.
Ele suspirou.
– Eu também estou com medo – disse-lhe em inglês. – Porque não
tomas o comprimido, para ficarmos calmos os três ao mesmo tempo?
Ele fez o que eu lhe pedia.
Ao fim de meia hora, estava a dormir. Ele e o pai ficariam fora de
combate durante umas duas horas, ao longo de todo o percurso pelas
encostas da Serra da Estrela. Miguel até ressonava. Era um cenário
encantador, mas ri-me ante a incongruência daqueles dois a dormir sob o
efeito da minha poção mágica e da paisagem que nos rodeava. As
montanhas eram rochosas, ásperas, nascidas de um clima severo;
lembravam um pouco as Black Hills da Dakota do Sul, onde eu fora uma
vez com o meu irmão. Aqui, as giestas eram tão exuberantes que nem
sequer tinham folhas, só grinaldas de um amarelo-canário. Nos sítios onde
os penedos e as escarpas deixavam espaço para raízes, rompiam laivos
roxos de lavanda salpicados de papoilas vermelhas. Parecia que as próprias
rochas tinham as orlas em flor. Muito ao longe, nos vales cavados,
escondiam-se aglomerados de casas de pedra abraçadas umas às outras.
Sentia-me feliz.
Quando as montanhas desapareceram, dando lugar ao planalto semeado
de penhascos que se estende dos distritos mais orientais de Portugal a
Espanha, já eu não conseguia manter os olhos abertos e, vendo um sinal a
indicar uma pousada em Almeida junto a outro rezando «ESPANHA 3 KM»,
parei o carro.
A fronteira também parecia pressagiar perigo. Aqui, em Portugal,
estávamos em casa. Lá, em Espanha, as pessoas nem sequer saberiam
pronunciar os nossos nomes.
Decidi seguir a indicação da pousada. Eram três e um quarto da tarde.
No momento em que entrava no parque de estacionamento, António sentou-
se e bocejou; deve ter sentido o carro abrandar.
– Onde estamos? – perguntou.
– Vou entrar aqui e ver se têm quartos. Acorda o teu pai.
Atrás do balcão da receção estava uma jovem pálida com uma púdica
blusa branca abotoada até ao pescoço. Tinha cabelo arruivado com risca ao
meio e uma cruz de ouro em volta do pescoço.
Informou-me de que havia quartos disponíveis.
– Somos três – anunciei. – Tem algum com três camas?
– Receio que não. Mas os nossos quartos duplos têm todos duas camas
de casal.
– E qual é o preço?
– Dezasseis mil escudos.
Eram cem dólares, mais caro do que eu tinha pensado. Não me pareceu
muito lógico reservar dois quartos só porque Miguel e António andavam às
turras. Era óbvio que o Valium me comprometia o raciocínio. Passei à
jovem o meu passaporte.
– Vou buscar os meus amigos – disse-lhe.
António e Miguel já tinham tirado as malas da bagageira. O céu estava
agora nublado e fazia um pouco de frio. Miguel tinha os braços arrepiados.
– Então, têm quartos? – perguntou António.
Só nesse momento percebi que cometera um erro. Já estava a prever a
relutância de António em ficar no mesmo quarto que o pai. Quando
insistíssemos, ia queixar-se de que fumava. E foi exatamente o que
aconteceu.
– Não suporto aqueles malditos cigarros – disse-me em inglês.
Pensei que não teria problemas em dormir na mesma cama que Miguel
porque a minha libido tinha desaparecido.
– Não vais ter de aturar o fumo do teu pai – repliquei, então. – Eu
durmo com ele. E mantemos uma janela aberta.
António abanou a cabeça.
– É um erro terrível – disse, ainda em inglês.
– O que é que estão para aí a discutir? – perguntou Miguel, que não
entendia uma palavra.
– O António acha que o Miguel e eu não devíamos partilhar a cama –
respondi.
– Então durmo eu com ele.
– Não, ele quer dormir sozinho.
– Então arranjamos dois quartos. – Olhou para António, que concordou
com um sinal de cabeça.
– É muito caro – respondi.
– Eu pago – disse Miguel, pegando na sua mala.
– É ridículo. Pagar cem dólares por um quarto. – Olhei para os dois. –
Qual é o problema? Estamos juntos nisto, não estamos? Não é este o país
dos exploradores e aventureiros?
António revirou os olhos.
– É um país de merda, é o que é.
– O que diria o primeiro-ministro se te ouvisse?
– O primeiro-ministro é um robô bronzeado, com um armário cheio de
fatos italianos.
– António!… – exclamou Miguel, como se ele não devesse proferir
frases daquelas.
– Não faz mal. O rapaz tem razão.
António pegou na mala dele e entrou na pousada. Miguel, sempre
cavalheiro, esperou por mim. Tranquei o carro e fomos juntos até ao quarto,
no segundo andar. Era muito bonito, com madeira escura por todo o lado e
casa de banho de mármore branco polido. Senti-me inexplicavelmente feliz.
António apoderou-se da cama mais perto da janela. Enquanto Miguel ia à
casa de banho, eu aproveitei para vestir o pijama de flanela azul.
– Que estás a fazer? – perguntou António, olhando, pasmado, para o
meu pijama.
– Vieste a dormir as últimas duas horas. Agora é a minha vez.
– Mas esse…?
– Nunca ouviste falar em discrição?
– Tu?
– Eu!
– Ninguém usa pijama nos dias de hoje – declarou.
Puxei o instrumento para fora das calças.
– Queres ver o meu equipamento? Pronto, já viste! Agora deixa-me em
paz.
– Às vezes és mesmo grosseiro – comentou.
Meti-me debaixo dos lençóis.
– Dá-me um beijo de boa-noite – pedi.
– E que hei de eu fazer enquanto tu dormes?
– Vai praticar guitarra lá para fora. Lê um livro. Vai passear com o teu
pai. Ou cheirar a roupa interior da rececionista. Quero lá saber. Não sou tua
mãe.
Pôs-se a olhar o quarto.
– Não consigo acreditar que estamos aqui.
– Nem eu. Agora dá-me um beijo de boa-noite.
Beijámo-nos na face, e eu puxei-o contra mim e sussurrei-lhe que o
amava. Antes que ele pudesse refilar, virei-me e encolhi-me na posição
fetal.
António murmurou qualquer coisa ao pai que não percebi e foi-se
embora.
– Também vou sair, Professor – anunciou Miguel, ao cabo de um
minuto.
Adormeci quase instantaneamente. Ao fim de uma hora, acordei e
deixei-me ficar na cama a recordar o sonho que tivera. Estava de volta a
Nova Iorque e o meu irmão ainda era vivo e tocava uma peça de Beethoven
no piano, que me ficou gravada na mente, mesmo depois de abrir os olhos.
Levei uma eternidade a conseguir mexer os membros, uma das
desvantagens do Valium, e o meu corpo parecia um saco de batatas. A
custo, arrastei-me até à casa de banho e tomei um duche. A água quente
penetrou-me nos ossos e fez-me sentir melhor. Depois, voltei para a cama e
comecei a ler um romance que tinha levado, Life with a Star, sobre um
judeu de Praga a tentar escapar aos fornos nazis.
Miguel regressou um pouco mais tarde. Estava todo suado. Sentou-se
aos pés da outra cama. Tinha os olhos mais tristes e sinceros que eu alguma
vez vira. Mas a minha libido ainda andava foragida, por isso não me senti
excitado.
– O que andou a fazer? – perguntei.
– Dei um grande passeio. Há muito tempo que não passeava no campo.
Foi como quando era miúdo, em Vila Nova de Cerveira.
Pousei o livro.
– Gostou de viver lá?
– Gostei muito. Mesmo muito.
– Então porque foi para o Porto?
Miguel esfregou a ponta do indicador no polegar, o que em língua
gestual portuguesa significa «dinheiro».
– Onde está o António?
Miguel encolheu os ombros.
– Deve andar a passear também.
Regressei ao meu livro e Miguel foi tomar um banho. Quando voltou,
trazia uma toalha branca enrolada à cintura. Olhando para o remoinho de
pelos no peito dele, apercebi-me de que o Valium estava a perder o efeito e
que se não tomasse outro nessa noite não seria capaz de ficar na mesma
cama que ele. Portanto, levantei-me, vesti-me à pressa e fugi lá para fora
com uma desculpa esfarrapada, do género: «Adoro o cheiro do fim da tarde
no campo.» O céu estava limpo outra vez, e o Sol ia alto a oeste. Junto dos
meus pés rompiam flores tubulares roxas de caules compridos e hirtos.
Muralhas medievais de pedra de um cinza-escuro formavam uma estrela
de doze pontas em volta da vila. Andando ao longo deste perímetro, senti-
me cativado pela sensação do vasto espaço livre, das terras de lavoura
semeadas de rochas a perderem-se de vista, em direção a um horizonte
esfumado em neblina. Quase acreditei que estava na América, nas planícies
da Dakota do Sul. Lembrei-me dos cães da pradaria de focinho erguido a
cheirar o vento, dos búfalos a pastar nas ervas altas, dos turistas de óculos
escuros a tirar fotografias. Pensei naqueles lugares felizes que visitara com
Harold no verão do meu segundo ano de faculdade, quando ele propôs que
fôssemos conhecer a América. Acabou com uma discussão terrível, mas
vivemos experiências incríveis. Agora, o ar estava seco e calmo. Imaginei
Harold ali sentado a ler. «Não teria sido melhor morrer ao sol, rodeado de
flores?»
Ao fim de algum tempo, dei com António numa das guaritas em forma
de torre que sobressaem dos cantos da muralha. Entrei no seu espaço de
sombra, e ele esboçou um meio sorriso, como se lutasse contra as lágrimas.
Encontrávamo-nos cerca de quinze metros acima das planícies que
rodeavam a vila.
– O problema da Europa é que estamos sempre uns em cima dos outros
– disse eu. – Se ao menos fosse toda feita de pequenas vilas construídas
com pedras cobertas de líquen. – Ele olhava a distância, o horizonte. À
procura de qualquer coisa. Apertei-lhe a mão que repousava na minha. –
Como estás?
– Estou bem.
Perguntei-lhe no que estava a pensar, mas ele não parecia disposto a
contar-me. Por isso, atravessámos a vila e detivemo-nos junto a uma
pequena casa térrea, caiada por fora. Entre a porta e a janela erguia-se uma
trepadeira entrelaçada de rosas cor-de-marfim. Os filamentos exteriores
enrolavam-se em volta da goteira azul ao lado da casa como dedos à
procura de um sítio para agarrar. Na base da goteira via-se uma vaidosa
sardinheira vermelha. A porta da casa estava aberta, e o sol fazia com que
os primeiros quatro degraus de uma escadaria de madeira encerada
brilhassem como ouro. O contraste do dourado das escadas com a escuridão
interior e as rosas era comovente. Senti-me assoberbado, invadido por uma
sensação de transcendência. Gostava tanto que lá tivesses estado, Carlos.
Comecei a tremer. António foi muito gentil. Abraçou-me e disse-me vezes
sem conta que ia ficar bem.
Da casa, saiu um cão pequeno de orelhas compridas, que se pôs a
contemplar-nos. Tinha olhos castanhos e sonolentos e uma mancha branca
em forma de coração no peito negro. Duas presas do maxilar inferior
vinham assentar-lhe no beiço superior, como uma barracuda malévola.
Rimo-nos, e António observou que era melhor irmos andando antes que ele
desatasse a ladrar.
– Encontrei o cemitério, sabes – disse-me enquanto nos afastámos.
– Porreiro.
– Quero mostrar-te uma coisa – anunciou.
O cemitério parecia o cenário de um filme de Vincent Price, com o
portão enferrujado, ciprestes, sebes por aparar e lápides derrubadas. Mas eu
já tinha ido a tantos funerais que o medo de almas penadas há muito fora
substituído por terrores verdadeiros.
– Olha para esta lápide – disse António, batendo com a mão numa
coluna dórica de mármore com cerca de um metro e vinte de altura,
encimada por um cordeiro de granito com uma cruz de metal em volta do
pescoço.
– Surrealismo caseiro – observei.
– Olha para baixo – pediu.
Aquilo que a princípio me tinham parecido ervas daninhas eram na
verdade tomateiros. De uma folhagem esfarrapada pendiam, prontos a
colher, frutos laranja e vermelhos, que lembravam as pequenas bolas que
usávamos no jogo da bugalha que eu e Harold adorávamos em crianças.
António apontou para a lápide. Dizia:

Manuel Correia Pinto Bastos


1902-1974
Bom pai e jardineiro

Li a inscrição para dentro, para lhe ouvir o som: «Bom pai e jardineiro.”
– Achas que os filhos plantaram os tomateiros em honra dele? –
perguntou António.
– Não me admirava nada.
– Há uma semana, teria ficado comovido – observou.
– E agora?
– Tenho algo a confessar.
– O que é?
Encolheu os ombros.
– Talvez eu tenha feito isto de propósito.
– Isto o quê?
– Apanhar esta doença.
– E porque haverias de fazer isso?
– Por vingança.
– Contra quem?
– Contra o meu pai. Contra os meus pais. Contra ti. Contra mim.
– Tu não tens esse tipo de personalidade. Podes ter querido correr riscos,
mas não quiseste adoecer. Eu conheço-te.
– Tens a certeza? Dizes que me conheces, mas será que me conheces
mesmo? Aparece um novo facto, e tudo muda. Já nem consigo lembrar-me
da sensação de tocar guitarra sem que esta treta que me envenena o sangue
me estrague tudo no subconsciente. E tu… não me lembro da sensação de
olhar para ti sem sentir inveja por não estares doente. – Os olhos dele
humedeceram-se. Virou-se para o outro lado.
– Ainda é tudo muito recente – disse eu. – Essas dúvidas hão de
desaparecer. Hás de lembrar-te de quem és. Acredita em mim. Está tudo aí,
apenas coberto por uma realidade tão avassaladora e opaca que não
consegues ver através dela.
António baixou-se, apanhou um dos tomates-cereja e ergueu-o à altura
dos olhos.
– Mas nem sequer me lembro de coisas simples – disse –, como por
exemplo se alguma vez gostei mesmo destas coisas. – Atirou-o fora, depois
cruzou as mãos atrás do pescoço e olhou para mim, desesperado. – Que raio
de pessoa não se lembra do sabor do tomate?
Parte III
16
Estava escuro no quarto, e António chorava, um choro magoado de
criança. Sentei-me na cama. Fechei os olhos para organizar as ideias.
Chamei-o num sussurro, mas ele não respondeu. O vento fustigava as
janelas. Puxei os cobertores até ao queixo e virei-me para olhar para
Miguel. De costas para mim, respirava brandamente. Levantei-me e fui
sentar-me ao lado de António. Estava todo enrolado na beira do colchão e
agarrava os lençóis. Quando lhe acariciei o cabelo, virou-se de barriga para
baixo e enterrou a cabeça na almofada. Contornei a cama em bicos de pés,
ergui os cobertores e enfiei-me ao lado dele. Tinha as costas e o traseiro
gelados, a pele áspera e arrepiada. Para o aquecer, despi as calças do pijama
e encostei-me a ele. Agarrei-lhe no ombro direito e ajudei-o a deitar-se
sobre o lado esquerdo, de maneira a ficarmos bem encaixados. Ele pôs uma
das almofadas sobre a cabeça e desatou a soluçar em silêncio. Encostei os
lábios ao pescoço dele e mantive-me assim. Ao fim de algum tempo, ele
deitou-se de costas:
– Não devias tocar-me, tenho sida – sussurrou.
Tirei-lhe a mão que tinha pousada sobre a coxa e levei-a aos lábios.
Beijei-a e com ela cobri a cara, como se fosse uma máscara. O cheiro dele a
misturar-se com a minha respiração era reconfortante.
– Não devias… – repetiu.
Pousei a mão dele sobre a barriga e delicadamente tornei a virá-lo de
lado.
– Adormece comigo a abraçar-te. Precisas de dormir.
– Por favor, não faças isso – exclamou, sentando-se bruscamente.
– Chiu, eu conto-te uma história para adormeceres.
– Não, volta para a tua cama.
Todo chegado a ele como uma criança, puxei os joelhos para cima e
encostei-me à anca dele. Pus-me a brincar com os seus pelos do peito.
Fechou os olhos. Quando fui à procura do pénis, percebi que estava
semiereto.
– Por favor não faças isso – implorou-me.
– Não faz mal – respondi.
– Não, posso contagiar-te.
– Terei cuidado.
– Não há cuidados que cheguem.
– Há, pois.
– Está ali o meu pai, na cama ao lado.
Miguel continuava a respirar suavemente.
– Deixa-me só aliviar-te – sussurrei. – Depois adormeces logo.
– És tão idiota – disse ele, afastando-me a mão.
Virei-me para o outro lado. As cortinas estavam ligeiramente abertas.
Um raio de luz atravessava a escuridão do quarto e vinha descansar sobre os
meus olhos. Imaginei uma quinta solitária com camponeses que nunca
falavam uns com os outros. Ao fim de algum tempo, António virou-se de
costas. Eu voltei-me para ele e abracei-o.
– Desculpa – disse-lhe.
Finalmente adormeceu.
Acordou e chorou três vezes durante a noite.
De uma vez, agarrou-se a mim com tanta força, que a minha costela há
tanto tempo partida começou a doer-me.
Miguel não chegou a despertar. Ou pelo menos assim achei.

Quando acordei na manhã seguinte, um sábado, António tinha a perna


direita pousada sobre a minha anca esquerda e o braço debaixo da minha
cabeça. O sol brilhava pelos intervalos das cortinas escuras. Libertei-me
dele e sentei-me na cama. Estava morto de cansaço e doíam-me as pernas
como se tivesse corrido toda a noite. Estiquei-as por cima da cabeça.
Miguel estava deitado de barriga para baixo, com as costas nuas à mostra. A
coluna vertebral era um rio cortado de sombras a correr entre paliçadas de
puro músculo. Imaginei como seria tocar-lhe. António continuava a dormir
profundamente, os olhos inchados do sono.
Será que as lágrimas chamam Hipnos? Ficará ele sentado horas a fio
junto dos condenados, salpicando-lhes os olhos para lhes obscurecer a visão
do futuro?
Pela fenda das cortinas, planícies verdes e douradas brilhavam na luz
oblíqua. Vesti-me em silêncio, tirei o mapa de Espanha da mala, fui à casa
de banho e depois desci para tomar o pequeno-almoço.
Durante a noite, um incêndio tinha lavrado vinte hectares perto de
Évora. Os jornais estavam repletos de avisos para os perigos nas florestas
do país, porque maio fora um mês muito seco. Enquanto bebia chá e comia
uns pãezinhos, li um pouco do Life With a Star. A personagem central, um
jovem judeu que vivia numa barraca em ruínas durante a ocupação nazi,
tinha conversas imaginárias com a namorada, que desaparecera e muito
provavelmente estaria morta.
Miguel juntou-se a mim cerca de vinte minutos depois. Trazia um
daqueles blusões de aviador de seda escovada que ultimamente se tinham
tornado moda, verde-esmeralda. Os jeans desbotados estavam
impecavelmente limpos e passados a ferro, mas os ténis outrora brancos
encontravam-se sujíssimos. Tinha o cabelo molhado penteado para trás e
não fizera a barba. O rosto, pálido, parecia exausto.
– Bom dia – disse. Acendeu um cigarro com gestos precisos. – Preciso
de fumar antes que o António desça. Quer um, Professor?
Abanei a cabeça. A empregada, uma jovem forte de sobrancelhas
espessas, tratou do pedido.
– Dormiu bem? – perguntou-me.
– Nem por isso.
– Então porquê?
– O António passou a maior parte da noite acordado – suspirei.
– Pois, eu ouvi. Quando ele era bebé e chorava, eu acordava sempre.
São coisas que não se esquecem.
Miguel barrou a manteiga no pão e a seguir espalhou-lhe uma dose
generosa de doce de alperce.
– Foi a si que o António foi buscar o lado guloso – comentei.
Ele esboçou um sorriso e pôs-se a ler o Público, enquanto bebia dois
cafés. Era um homem de grandes apetites e longos silêncios. Afastou o
prato de si e acendeu outro cigarro.
– Sabe, eu vi o que aconteceu ontem à noite – disse. – Só quero que
saiba.
– Fico contente que esteja atento.
Pôs-se de pé abruptamente.
– Acho que vou dar um passeio.
– Não gostou que eu me deitasse na cama com ele, pois não? –
perguntei, então.
– Uma coisa é ajudar o rapaz, outra é estragá-lo com mimos de cada vez
que chora.
– Estragá-lo com mimos?!
– Exatamente.
– Não me parece que abraçá-lo quando precisa de ajuda seja estragá-lo
com mimos.
Miguel desviou o olhar e puxou uma baforada.
– Estender a mão a uma pessoa que está a cair de uma falésia não é
estragá-la com mimos.
Assentiu como se eu lhe estivesse a fazer um discurso retórico.
– Vou dar um passeio – repetiu.
Fez menção de se afastar, mas eu levantei-me de um salto.
– Que aconteceu ao homem que só queria conhecer o filho? – perguntei.
Ele ergueu as sobrancelhas, surpreendido, e virou costas sem uma
palavra. Voltei a sentar-me e abri o livro, mas não conseguia ler, e o olhar
acabou vagueando pelos telhados cor-de-laranja de Almeida que se
vislumbravam pela janela. Tomei um Valium.
António desceu para o pequeno-almoço com uma camisa larga de seda
cor-de-rosa que eu lhe comprara. Tinha o cabelo desalinhado, os olhos
encovados e pisados. Achei-o macilento, como se o medo lhe roubasse as
cores do rosto. Estava parecido com o pai.
Chamei a empregada. Ele pediu café, e eu chá. Ficou a olhar para a
beata pousada no cinzeiro.
– Por onde anda a chaminé cá do bairro? – perguntou, franzindo o
sobrolho.
– Foi dar um passeio.
– Pois, sempre foi um homem de passeios. Quando eu era miúdo,
costumava andar quilómetros, a mostrar-me a toda a gente do bairro.
– Parece que os tempos mudaram.
António fez que sim.
– Eu tenho sido uma desilusão.
– Pelo contrário. És demasiado para ele. Ele gostava de ser como tu.
– Não me parece. E agora é que não, de certeza.
– O teu pai é um mistério – repliquei, encolhendo os ombros. – Bom,
que tal te sentes?
– Melhor. E tu?
– Bem.
Pôs manteiga num pãozinho e barrou-o com doce de alperce.
– Hoje parece que está encoberto – observou.
Olhei pela janela. O céu agora estava branco, sem vento.
– Vem aí chuva, parece-me.
Ele comia com voracidade. Empurrei a cadeira para trás e fiquei a
observá-lo.
– Para onde estás a olhar? – perguntou.
– Gosto de te contemplar quando estás a ser genuíno. Hás de perceber
quando fores mais velho.
Grande erro, claro; estava destreinado daquela regra de eliminar o futuro
da gramática.
António engoliu o café de um só trago.
– Talvez devêssemos voltar para o Porto – disse. – Isto não vai resultar.
– Se o Jasão tivesse dito isso, nunca teria conseguido o Velo de Ouro.
– Se bem me lembro, as coisas não correram muito bem para o Jasão –
observou António.
– Tu não vais cometer o erro de te casar e depois enganares a tua
mulher.
– Não – respondeu, limpando a boca ao guardanapo –, claro que não. Eu
cometi um erro muito maior. – Virou-se e ficou a contemplar Almeida com
um olhar vazio, como se fosse feito de gesso. De vez em quando, movia-se
para passar a língua pelos lábios. Tinha desistido do presente e estava a
focar-se no passado ou no futuro. – Sabes – disse, virando-se de novo para
mim –, na verdade, achei que não podia apanhá-la. – Passou a mão à frente
da cara, como que a bloquear a vista. – Estava louco. E incrivelmente cego.
Se me fosse concedido um desejo por cada vez que ouvi alguém dizer
precisamente aquilo, todos os amigos que enterrara, todos eles, estariam
vivos.
Levantei-me e estendi o mapa de Espanha sobre a mesa, mesmo à frente
dele. Segurei-lhe no ombro e apontei para a estrada que íamos seguir.
– Hoje vai ser uma viagem agradável – disse-lhe. – Atravessamos a
fronteira e seguimos para Salamanca. Vais adorar a praça principal.
Podemos ficar lá, se estivermos para aí virados. Se não, arrancamos para
Avila.
– O meu pai viu-nos, sabes. – Ergueu os olhos para mim e esboçou um
trejeito com a boca como quem diz: «Estamos a correr um risco…»
– Como é que sabes? – perguntei.
– Consigo ver-lhe os olhos no escuro. Emitem luz, como os de um
mocho.
Voltei a sentar-me ao lado dele, onde Miguel tinha estado.
– A ideia de ele nos ver na cama juntos não te dá arrepios? – António
fez uma careta.
– Não. Se não gostar, o problema é dele.
– Isso é fácil para ti de dizer.
– Ouve, tu não podes resolver os problemas do teu pai. – Estendi a mão
por cima da mesa e segurei na dele. António olhou em volta, certificando-se
de que ninguém nos observava. – Se ele criar problemas, ponho-o fora do
carro e obrigo-o a descobrir sozinho o caminho de regresso para o Porto.
Mas não me parece que o vá fazer. Ele sabe até onde pode ir.
António retirou a mão e cruzou os braços.
– Se for preciso, dá-te uma sova que ficas de gatas. – Havia um orgulho
perverso na sua voz.
Nessa altura, pensei que estava a brincar.
Porque será que acho que os homens que conheço são incapazes de
violência física? Ainda hoje, quando penso na forma como me violaste,
Carlos, com a navalha junto ao pescoço, me pergunto se a memória me
estará a pregar partidas. Depois vejo no espelho a cicatriz na orelha… Serei
alguma vez capaz de te perdoar?
Foi por isso que respondi a António com um pouco de gabarolice:
– O teu pai pode bater-me até me deixar estendido no chão, mas nem
assim permitirei que venha connosco no Batmóvel se não me apetecer.
– Veremos – respondeu ele.
– Quando chegarmos a Salamanca, quero que te sentes num sítio
qualquer durante uma hora a ensaiar a Suite para Violoncelo em Dó, de
Bach – pedi, mal acabei o chá, adotando o tom didático que sempre uso
quando quero dar a entender que estou a falar mesmo a sério.
– Nem pensar.
– Podes fazê-lo sentado no quarto do hotel, ou no parque de
estacionamento, ou descobrir um sítio qualquer à sombra de uma árvore.
Não me interessa. Mas vais ensaiar mesmo.
Começou a protestar. Tapei os ouvidos com as mãos.

Miguel insistiu em dividir a conta.


– Não vou deixar que seja o Professor a pagar por mim ou pelo meu
filho – protestou, fixando-me com um olhar zangado.
Era uma questão de orgulho, claro. Rangia os dentes outra vez. Talvez
eu devesse ter percebido pela ênfase que pôs naquelas palavras que estava à
beira de cometer uma loucura. Atravessámos a fronteira em Vilar Formoso.
Um guarda espanhol gordo e de testa franzida lançou um olhar guloso ao
Batmóvel.
– De que ano é? – perguntou.
– Sessenta e cinco.
Assobiou e tirou o boné para coçar a cabeça suada.
– E ainda funciona?
– Na perfeição.
Devolveu-me o passaporte.
– Se quiser vendê-lo, entre em contacto comigo.
Tapetes de papoilas desenrolavam-se na berma da estrada. Em Ciudad
Rodrigo, o céu clareou. No cimo de uma igreja de tijolo, via-se uma
cegonha branca sentada no ninho. Ninguém quis saber, só eu.
– Viram aquilo? – perguntei várias vezes, mas nenhum dos dois se deu
ao trabalho de olhar para trás. Ninguém falava. Era como se tivéssemos
atravessado um nevoeiro de trevas sem que eu houvesse dado por isso. Não
me ralei e pus-me a cantar baladas irlandesas revolucionárias, porque o
Valium já estava a fazer efeito e estava-me nas tintas para o que eles
pudessem pensar. De vez em quando, olhava pelo espelho retrovisor. Dava
com os olhos de Miguel pousados em mim.
Olhos escuros e carregados de tristeza.
Pés de galinha.
Barba por fazer, agressiva.
Levámos hora e meia a chegar a Salamanca. Sentia as pernas pesadas e
percebi que depois do almoço precisaria de uma sesta, pelo que nos
dirigimos para o Gran Hotel. No átrio, tivemos uma discussão sobre
quantos quartos iríamos reservar. Tudo começou porque António queria
ficar sozinho. Eu não achei que fosse grande ideia, e disse-o.
– Eu fico no quarto com ele – declarou Miguel. – De qualquer das
formas, o Professor devia ter um quarto só para si.
– Quero ficar sozinho – insistiu António.
– E se tens outra crise de choro?
– Vou ter de dormir sozinho, mais cedo ou mais tarde.
– Antes mais tarde do que mais cedo.
– Então o que é que propõem? – perguntou, revirando os olhos.
– Nós partilhamos um quarto, e o teu pai fica sozinho no dele.
– Nem pensar – disse Miguel. – Não posso consentir que vocês os dois
fiquem no mesmo quarto.
– Porque não? – perguntei.
– Professor, já falámos sobre este assunto.
– Ai já? Não me lembro.
– Eu fico com o rapaz – declarou ele.
António arregalou os olhos e cruzou os braços sobre o peito. Era a sua
postura de guerra.
– Não ficas, não – protestou António.
Nessa altura, já eu estava pelos cabelos, pelo que anunciei à menina da
receção que queríamos uma suite.
O quarto tinha três camas – duas de casal e uma de solteiro. Miguel
atirou com a mala de xadrez para cima da cama de solteiro, como se
quisesse assassinar a pobre da almofada. Eu estava bem-disposto e
tranquilo, por isso não me importei.
– Quem quer almoçar?
António ergueu a mão. Miguel foi para a casa de banho sem responder.
– Não te rales com ele, vamos embora – disse António, com um gesto
displicente da mão.
Passei-lhe o estojo com a minha guitarra.
– Depois do almoço, vais tocar. A Suite para Violoncelo está lá dentro.
Dirigimo-nos para a praça central. Eu avançava com passos ligeiros,
contemplando o céu azul e os edifícios de uma linda pedra cor-de-areia.
Quando parámos a ver a catedral, notei que António roía as peles das unhas
como um esquilo de Central Park.
– Ontem à noite, parecia que me estava a afogar – disse, quando nos
pusemos de novo a caminho. – O medo invadia-me os pulmões. Vinha em
ondas, como uma maré. – Parou e olhou em volta, pousando o estojo da
guitarra à sua frente, na vertical, como um escudo. Então, abraçou a coluna
de pedra de um arco que se erguia em frente a uma banca de jornais. – E
agora, aqui estou eu. Em Espanha. As paredes são sólidas. – Inspirou fundo.
– Custa-me crer que sou eu. Custa-me crer que estou doente. – Olhou
fixamente para mim. – Não há qualquer prova, a não ser um pedaço de
papel.
«As provas chegarão mais tarde», pensei. «Vão irromper-te na pele e
sair-te a ferver das entranhas.»
– Vamos ter montes de aventuras. Vou ser o teu Sancho Pança –
anunciei-lhe.
– De que é que estás a falar?
O miúdo nunca lera Dom Quixote. Fiquei chocado e pus os olhos em
alvo. Ele chamou-me snobe, enquanto nos sentávamos num café ao ar livre,
na praça central. Decidi então armar-me em professor careta e cota; para
variar, era agradável ter um papel seguro a desempenhar.
– Sou snobe porquê? – perguntei. – Por achar que devias ler? Ou a
leitura é apenas para certa aristocracia intelectual?
– Porque achas que sabes o que é que eu devo ler – respondeu,
indignado.
– O Dom Quixote é um clássico.
Respondeu-me com uma gargalhada franca.
– O que é que tem tanta graça?
– Chamar-lhe clássico não faz dele um bom livro. Vi montes de filmes
portugueses clássicos e são todos uma merda.
– Então agora o Dom Quixote não presta para nada? É isso que estás a
dizer?
– Não sei. Nem me interessa.
– É esse o teu problema. Não só és ignorante, como isso não te
incomoda.
A ironia disto tudo é que também eu nunca acabara o Dom Quixote,
embora o tivesse começado por três vezes.
Chegou o empregado para anotar o nosso pedido. Andaria pelos
cinquenta anos, o cabelo rareava-lhe e tinha maus dentes.
– Este jovem aqui nunca leu o Dom Quixote – declarei no meu espanhol
de trazer por casa.
– É uma obra-prima, una obra maestra – respondeu. Endireitou as
costas e ergueu o bico da caneta. Os olhos procuraram a grandiosidade da
praça e, parecendo encontrá-la, declarou num espanhol ressoante: – «Mui
felizes e afortunados foram aqueles tempos em que o mais ousado dos
cavaleiros, D. Quixote de La Mancha, veio a este mundo…» – Continuou a
citar Cervantes por uns momentos. Registei dentro de mim apenas uma
frase: «uma era desprovida de alegre entretenimento.»
Compreendi essa descrição da era do autor com toda a facilidade, quase
intuitivamente.
A posição do empregado, de braço erguido, descontraiu de repente, e
inclinou-se para mim. Era de novo um humilde serviçal. Partilhámos um
sorriso. Ele murmurou:
– Sabe, há pessoas que acham que o livro nacional espanhol é a Bíblia.
Mas é o Dom Quixote – murmurou, após o que encarou António: – Tem
mesmo de o ler.
– Se conseguir descobri-lo lá na minha terra – respondeu ele em
português.
– Consegue encontrá-lo em qualquer cidade, em qualquer língua. Na
China, na Rússia, na Grécia. – Piscou o olho. – Até em Portugal, onde
vocês nos detestam.
– Não se preocupe – repliquei. – Eu tenho um exemplar. Ele não tem
saída.
Rimo-nos. Mas eu fiquei a contemplar durante demasiado tempo o
sorriso de António e estraguei tudo.
Pedimos duas sopas de legumes e uma salada mista grande. Numa das
folhas de alface jazia uma pequena mosca morta, esborrachada. Na
América, isso teria sido o suficiente para provocar grandes manifestações
de indignação – até mesmo um ataque cardíaco.
António limitou-se a retirar a folha da travessa e a pousá-la no seu prato
do pão.
Carlos, dou graças a Deus por vocês, portugueses, existirem; continuam
convencidos de que comida é apenas comida, e não uma espécie de via
sagrada para atingir a saúde perfeita.
Ficámos sentados a beber o café, após o que deixei António para ir fazer
uma sesta.
– Então e eu, o que hei de fazer?
– Estamos em Espanha. Sempre quiseste vir cá. O Segovia é daqui.
Explora. Descobre uma árvore com montes de sombra, senta-te na posição
do Buda e entoa vezes sem conta a palavra Salamanca. Quando não mais se
referir a uma cidade e perder o seu significado, começa a ensaiar a Suite
para Violoncelo.
– Preciso de ti para me dizeres quando estou a fazer alguma coisa mal.
Revirei os olhos.
– Tens melhor ouvido do que eu. Eu só sirvo para te ralhar quando ficas
preguiçoso. – Ergui as sobrancelhas como um velho lascivo e disse: – Gosto
mesmo muito de te ralhar, sabes.
Deixei-o no café. Ficou a ver-me afastar-me com os olhos tão cheios de
pânico que quase voltei atrás.
O medo chega em ondas.
17
Acordei da sesta com a sensação de que viajava sozinho e me esquecera
de telefonar ao meu irmão a dizer que estava bem.
Depois lembrei-me de onde ele estava.
Enquanto tomava banho, recordei-me do sonho:
O meu irmão era mantido vivo em casa da minha mãe. Tubos de
plástico saíam-lhe da boca e do nariz e ligavam-no a umas máquinas com os
mostradores metálicos do painel de bordo do Thunderbird. A cabeça, que
lembrava a de um abutre, assentava, qual natureza-morta, na sua almofada
do Homem-Aranha. Eu encontrava-me ao lado dele.
Os lençóis eram brancos e estavam amarrotados.
A água escaldou-me a pele antes que conseguisse aperceber-me de que
estava demasiado quente. Saltei da banheira e fiquei a olhar-me fixamente
no espelho durante muito tempo. Não consegui encontrar Harold – nem no
nariz, nem nos olhos, nem mesmo no cabelo. Tomei outro calmante. Sentei-
me na retrete e pus-me a contar os azulejos do chão. Quando a droga
começou a puxar-me para longe de mim, limpei as gotas de suor do rosto,
vesti-me e saí para andar um bocado. A tarde chegava ao fim e fazia muito
calor. As ruas estavam cheias de espanhóis a comer aperitivos, a mascar
pastilha elástica e a fumar.
«Um homem que não tenha qualquer coisa na boca não pode ser
espanhol.» Cervantes nunca disse isso, mas devia tê-lo feito, porque toda
esta cultura nunca deixou a fase oral.
Passeei calmamente, parei para beber um chá e depois encetei o
caminho de regresso ao hotel. Foi então que vi António. Estava a tocar
guitarra na Praça de Santa Justa. Era um largo gradeado em três dos lados e,
ao centro, tinha um círculo cortado por dois caminhos de gravilha que se
intercetavam ao meio, formando uma cruz. Em cada um dos quadrantes se
viam pequenos canteiros de malmequeres e amores-perfeitos roxos. Os
caminhos eram ladeados por bancos vermelhos. António estava sentado
num balde azul virado ao contrário no perímetro do círculo. A luz batia-lhe
na guitarra, emitindo reflexos.
Quando o vi, vinte e três pessoas se postavam em frente dele, a ouvi-lo.
Contei-as.
Deixei-me ficar na única rua transitável, escondido atrás do tronco
grosso de um velho castanheiro. Para provocar boa impressão nos
espanhóis, estava a oferecer-lhes os seus compositores. Tocou…
Rumores de la Caleta, de Albéniz;
Variações sobre um tema d’A Flauta Mágica, de Sor;
Recuerdos de la Alhambra, de Tárrega.
Sentados aos pés dele viam-se dois rapazinhos de uns doze anos, com
bonés de basebol dos New York Yankees ao contrário.
Uma velha de xaile preto, desdentada, que mastigava as gengivas como
se tivesse acabado de comer uma coisa saborosa, contemplava a cena de
uma janela alta; na cabeça, para se proteger do sol, um pano quadrado
vermelho.
As pessoas batiam palmas ao fim de cada música. Porém, a verdade é
que, quando se trata de futebol, sexo e guitarra, os espanhóis são difíceis de
agradar. Tinham razão na apreciação que fizeram do artista, mas a forma
como António tocou os Recuerdos foi particularmente inspirada. Porque
tem o melhor tremolo que ouvi na vida, faz com que a melodia pareça estar
a sair de um bandolim.
Já ouvi ao vivo Narciso Yepes quatro vezes, Andrés Segovia três e
Julian Bream duas. Já assisti a concertos de Christopher Parkening, John
Williams e Pepe Romero… Ouvi os melhores guitarristas do mundo tocar
Recuerdos. António encadeou as notas, pegando-lhes uma a uma, e fez
delas um colar mais cintilante do que qualquer um deles. Pus-me a pensar
que talvez devesse tocar aquela peça na sua audição em Paris. «O único
perigo», pensei «é que, se ficar nervoso, vai parecer uma máquina de cortar
trigo».
Tive de me ajoelhar na terra batida junto ao castanheiro, porque as
pernas começaram a tremer-me. Virei-me na direção oposta à de António e
respirei fundo. Considerei a questão do que ele deveria ensaiar para tocar
em Paris como se fosse um enigma lançado por uma esfinge malévola que
detestava homossexuais, como se ele tivesse de escolher a música certa para
uma guitarra, senão…
Senão morria.
De repente, senti-me aterrorizado. Apetecia-me correr até um ponto tão
longínquo que ninguém me pudesse chamar de volta. Levantei-me e
encostei-me à árvore. Escondi a cabeça nas mãos. Imaginei-me a jogar
basquetebol. A receber um passe na linha dos lances livres. A dar voltas
sobre mim mesmo. A fingir uma direita e a romper pela esquerda. A parar
na linha final para um lançamento em suspensão. A bola a bater na frente
do aro e a carenar até ao chão, onde embateria com um baque surdo. E ali
ficaria. Sem ar. Esmagada pelo próprio peso.
António tinha começado a tocar o Prelúdio n.° 1 de Villa-Lobos. Ergui
os olhos e algo do outro lado da rua bloqueou o som. Foi como se
mergulhasse a cabeça em água.
Miguel estava do outro lado, na esquina de um prédio de três andares, a
observar o filho, lavado em lágrimas. Tinha os braços esticados e as mãos
agarravam o rebordo de pedra cor de areia. Os tendões do pescoço,
inchados, sobressaíam perigosamente.
Ele, António e eu formávamos um triângulo no espaço.
Contudo, na geografia dos nossos corações, o miúdo estava entre nós.
Ao fim de um minuto, Miguel viu-me. Baixou os braços e atirou a
cabeça para trás, assustado, como um cavalo chicoteado. Deu meia-volta e
afastou-se.
Atravessei a rua e corri para o apanhar. Chamei-o. Ele estacou e
suspirou, contristado. Depois, enxugou os olhos.
– Não devia ver-me neste estado – disse.
– Deixe-me pagar-lhe um copo.
Miguel olhou para mim com um ar triste e desnorteado.
– Não consigo decidir se o odeio ou não. – Dirigiu-se-me num tom
desapaixonado, como uma confissão de todos os dias.
– Venha lá, deixe-me pagar-lhe um copo.
– Odeio-o – exclamou ele. – Não percebe?
– Percebo. O que quer que lhe diga?
– Vá-se lixar! – Com a mão, fez-me sinal para me afastar. – Vá-se lixar
mas é, seu filho da mãe americano! – gritou. Cerrou os punhos e sacudiu-os
na minha direção. Formara-se-lhe espuma aos cantos da boca. – Odeio-o! –
repetiu. Recomeçou a andar, tenso, como se perseguisse alguém. Segui-o a
uns vinte metros de distância. Chegámos ao hotel, gritei-lhe: – Venha tomar
um copo comigo e conversamos.
– Quer falar? Fale! Fale comigo! – exclamou, virando-se para trás e
soltando uma risada cáustica, o riso de um vilão de comédia.
– Quero falar sobre o António.
– Não tenho nada a dizer-lhe. Você! Você podia ter evitado isto!
– Precisamos de falar.
– Sobre o quê? Não quero falar consigo sobre o rapaz.
– Sobre outras coisas. Seja lá o que for.
– Que outra coisas há? Você é que é o professor. Que mais haverá para
um rapaz de vinte e quatro anos, que não a vida dele? Diga-me! Filosofia?
Psicologia? Música? É isso que há? Música clássica? Vá-se lixar, mais a
merda da sua guitarra!
Sacudia na minha direção o punho cerrado.
Fiquei calado um instante.
– Oiça – disse, ao cabo de uns momentos –, conheço um bar mesmo
aqui ao fundo da rua. É de noite. Ninguém nos vai incomodar.
Ele olhou na direção para onde eu apontava.
– Venha daí. – Passei ao seu lado e continuei a subir a rua. Os passos
dele seguiram-me.
O Churchill’s era um bar gay na Gran Vía onde eu estivera em tempos,
numa vida anterior – aquela que gozara antes de os cossacos invisíveis
lançarem a sua primeira ofensiva. Não estava lá ninguém, só os fetos nos
vasos. Pedi um uísque duplo para Miguel e um ouzo para mim. Ele bebeu
em grandes goles e acendeu um cigarro.
– Dá-me um? – perguntei.
– Quer um dos meus cigarros?
Assenti com a cabeça. Ele atirou-me com o maço ao peito.
– Fique com todos.
Tirei um e pousei o maço ao lado da bebida dele. Sem que lhe pedisse,
acendeu-me o cigarro e voltou a virar-me a cara. Os maxilares latejavam-
lhe. Chamei o empregado e pedi outro uísque duplo e outro ouzo. Mais uma
vez, Miguel emborcou o uísque em dois goles.
– Há casa de banho aqui? – perguntou depois.
– Não sei.
– Os larilas não precisam de ir à casa de banho? Ou limitam-se a beber o
mijo uns dos outros?
Revirei os olhos.
Miguel perguntou ao empregado e a seguir voltou para a mesa. Apagou
o cigarro no cinzeiro, tirou-me o meu da mão e apagou-o também.
– Venha comigo, Professor.
– Porquê?
– Já lhe disse para vir comigo. Quero que veja uma coisa.
Levantei-me.
– Vá à minha frente – disse. Seguimos por um corredor nas traseiras do
bar. As paredes estavam pintadas de verde, e cheirava a cerveja. Chegámos
diante de uma porta de madeira com letras pretas rezando: CABALLEROS.
Virei-me para trás. – Entre – pediu, com um gesto aprovador da cabeça.
Entrei. Dois urinóis brancos, duas cabinas sem portas.
De repente, dei por mim a voar. Evitei a queda amparando-me contra os
azulejos pretos e amarelos das paredes. Miguel tinha-me empurrado.
– Então?!
Ele chegou-se a mim. Achei que fosse desatar a gritar, mas não tive essa
sorte. Antes que eu pudesse reagir, deu-me um soco tão violento no
estômago, que fiquei sem ar.
Caí, dobrado em dois. Achei que nunca mais conseguiria respirar.
Parecia que alguém me apertara uma corda com tanta força em volta das
costelas que os meus pulmões não conseguiam expandir-se.
Arquejava, tentando respirar. A custo, consegui erguer-me sobre os
joelhos.
Sentia o sangue pingar-me do nariz.
Debatia-me para respirar. De súbito, abriu-se-me uma fenda de ar nos
pulmões. Assim que entrou a primeira baforada, borrei-me nas calças. E a
seguir tive um arranco. Fui de gatas até à retrete e vomitei ouzo e salada.
Miguel começou a dar-me palmadinhas nas costas.
– Água – implorei.
Ele saiu da casa de banho e voltou com um copo de água mineral com
uma palhinha azul e uma rodela de limão. Tive vontade de rir do ridículo,
mas estava coberto de baba e vómito. Sentei-me no chão, enquanto as
lágrimas me subiam aos olhos. Limpei-as com força, mas depois acabei por
deixá-las cair. Não estava triste; sentia-me vazio, como se tivesse o
estômago em carne viva, como se alguém me tivesse raspado o peito por
dentro com lixa. Doíam-me as entranhas, e só quando apalpei o rabo me
apercebi do que acontecera. Praguejei.
Esquecera-me do que um belo murro no plexo solar consegue fazer.
Nunca me tinham batido com tanta força na vida, nem sequer o
professor italiano que me partira a costela com o dicionário.
Miguel deu um passo atrás e ficou a olhar para mim, boquiaberto. Como
um miúdo que vê um rasgão de luz atravessar o céu.
– Vá-se embora – ordenei.
– Não posso deixá-lo aqui – respondeu.
– Já levei sovas noutras casas de banho. Ponha-se a andar. – Com a
fralda da camisa, limpei um resto de vómito da boca.
– Não consigo.
Atirei-lhe à cara a água que me restava no copo. A rodela de limão
bateu-lhe nos jeans e caiu.
– Vá-se embora – suspirei. – Isto não é nada de mais.
Mas ele não saía dali.
– Não é nada de novo – repeti, impaciente. – Não me está a ouvir? Não
há gay no mundo que não tenha sido espancado por uma besta qualquer
numa casa de banho. Você não é especial. É só um palerma que não sabe o
que quer. Vá-se embora.
– Quer mais água? – perguntou.
Fechei os olhos, suspirei e baixei a cabeça.
– Precisa de se levantar – disse ele.
Eu não tinha força nas pernas. Apalpei a testa. Estava gelada. Percebi
que ia desmaiar. Teria sido um alívio, mas pedi que molhasse umas folhas
de papel no lavatório.
Ele passou-mas. Limpei a testa e deitei-me no chão do cubículo.
Ao cabo de algum tempo, ele pegou-me pelo cotovelo e tentou erguer-
me. Não me mexi. Não me lembro do que aconteceu a seguir. Afinal,
sempre devo ter desmaiado.
De repente, estava sentado. Sentia a mão dele no meu ombro.
– Acorde.
Recostei-me e descansei contra a bacia da retrete.
– Deixe-me aqui – disse. – Vá para o hotel e deixe-me em paz.
O empregado entrou na casa de banho. Olhou-me especado.
– Caramba – exclamou. – O que lhe aconteceu?
Sentado no chão de uma casa de banho a olhar para cima, uma pessoa
sente-se minúscula e idiota. «Uma criança deve ter constantemente esta
sensação de impotência», lembro-me de ter pensado, enquanto era invadido
por uma grande ternura pela criança abusada que quase todos nós,
homossexuais, fomos outrora.
– Qualquer coisa que comi – sussurrei.
– Marisco estragado, aposto – aventou o homem, pousando as mãos nas
ancas e espetando um dedo sapiente. – Nem numa amêijoa eu confio.
Tentei rir, mas só consegui fazer que sim com a cabeça.
Ele crispou os lábios e ergueu as sobrancelhas na direção de Miguel.
– E eu para aqui a pensar que vocês andavam a brincar com os pepinos
um do outro. Bom, vamos mas é daqui para fora. – Agarrou-me num braço,
e Miguel no outro, e ampararam-me até à mesa. – Vocês têm quarto nalgum
hotel? – perguntou.
– Mesmo ali abaixo – disse Miguel em português.
– Hã?? – fez o barman, engelhando o nariz como um coelho que cheira
a presença de predadores.
– El Gran Hotel – expliquei.
Fiquei um bocado sentado a beber pequenos goles de chá de camomila
que o nosso anfitrião tivera a bondade de me preparar.
– Comigo resulta sempre – observou.
O barman e Miguel acompanharam-me de volta ao hotel. Uma vez no
quarto, despi-me e entrei na cabina do duche. Sentei-me e deixei a água
escorrer por mim abaixo como uma chuva quente.
Depois, meti-me na cama.
Miguel ficou uns momentos a meu lado, olhando para mim com o ar
apreensivo de um cão castigado. Coçou a barba por fazer, passou
nervosamente as mãos pelo cabelo, penteando-o para trás, e pôs-se a andar
de um lado para o outro. Eu não estava disposto a facilitar-lhe as coisas e
fechei os olhos. Depois, enchendo-se de coragem, sentou-se. Senti o
cuidado com que o fez na forma suave como a cama afundou. Levou a mão
à minha testa.
– Lamento – sussurrou. – Fiquei calado. Estava exausto e quase
adormeci com a mão dele a proteger-me. Foi então que ele disse: – Lamento
mesmo muito.
– Foi a última vez – sussurrei. – Não há segundas oportunidades para
quem espanca outro ser humano.
– Não volto a fazê-lo.
Ergui a mão. Ele agarrou-a.
Adormeci envolto naquele aperto.

Quando acordei já era de noite. Miguel estava sentado à janela, olhando


para a rua lá fora. Eu pensava em ti, Carlos, perguntava-me o que estarias a
fazer naquele preciso momento:
A atirar tinta para cima de uma tela?
A dormir pacificamente debaixo do teu edredão chinês?
A abraçar outra pessoa? Uma mulher?
Para minha surpresa, apercebi-me de que teria preferido que estivesses
com um homem; significava que algo permanecera contigo das experiências
que tínhamos tido juntos.
– Onde está o António? – perguntei a Miguel.
Ele aproximou-se e sentou-se ao meu lado.
– Está acordado. Sente-se bem?
– Cansado. Onde está o miúdo?
Ele deu-me um copo de água que repousava sobre a mesinha de
cabeceira.
– Saiu agora mesmo para jantar. Podemos ir ter com ele, se quiser. Sei
aonde foi.
– Não consigo comer – disse, bebendo a água de um só trago.
– Está enjoado?
– Não, simplesmente não tenho fome.
– Talvez café, ou uma sobremesa?
– Talvez café. Ou chá.
Saí da cama e espreguicei-me. Tinha o corpo quente e sentia os braços e
as pernas doridos, como se estivesse com gripe. Estava nu. Miguel olhou-
me de alto a baixo.
– Eu sei, tenho as carnes moles – disse. – Aconteceu uma noite, há uns
anos, em Los Angeles. Enquanto eu dormia, alguém me substituiu todos os
músculos da barriga e do peito por gelatina. A única pista que a Polícia
encontrou? As saquetas atiradas para o lixo. O mais estranho é que todas
tinham as minhas impressões digitais. Por isso, desconfio que tenha sido um
trabalho infiltrado.
– Estava só a confirmar se tinha nódoas negras. Mas não vejo nenhuma
– replicou, depois de me deixar levar a cabo a tentativa falhada de humor.
– Não se preocupe, não me partiu nada que não estivesse já
parcialmente fraturado.
– Sou mesmo um sacana! – Virou a cabeça. Depois, enrugou a testa e
disse: – Tenho estado a pensar.
– Chegou a alguma conclusão?
– O que eu disse é verdade… quero conhecer o meu filho. Mas… –
Encolheu os ombros e, levando um cigarro à boca, acendeu-o.
– Mas o quê?
– Mas também tenho medo. – Inspirou profundamente e passou a língua
pelos lábios.
– De quê?
– Dele.
Ficámos um momento em silêncio. Pus-me a contemplar a paisagem
pela janela, mas, de cada vez que olhava para trás, dava com os olhos
raiados de Miguel fixos em mim. Apontei para a mala, pousada junto à
porta.
– Importa-se de ma trazer? Preciso de umas calças.
– Espere. – Esmagou o cigarro no cinzeiro e, ato contínuo, despiu a
camisa, desapertou as calças e tirou-as. Não trazia cuecas. Estava
parcialmente ereto, e era muito bem apetrechado.
Ficámos a olhar-nos em silêncio. Ao fim de algum tempo, aproximei-
me.
Os nossos rostos estavam a dois centímetros um do outro. Os meus
pelos do peito tocavam nos dele. Miguel correu os dedos pelas minhas
ancas, acariciando-as e mergulhando as falanges nas sombras das minhas
nádegas. Encostou a palma da mão à minha barriga, no sítio onde me
esmurrara.
– Tenho medo – confessou. Estava inclinado para a frente, a cheirar-me
o peito.
– Meu Deus, o Miguel é um homem lindo – sussurrei, massajando-lhe
os ombros poderosos e passando-lhe os dedos pelas costas.
Ele ajoelhou. Quando me pôs na boca, senti-me capaz de desmaiar.
Engasgou-se algumas vezes, mas engoliu com determinação e foi gargarejar
para a casa de banho. Sentou-se na sanita com a cabeça entre as pernas.
– Sinto-me zonzo – explicou. Estendeu a mão, que eu agarrei. Ao fim de
algum tempo, disse: – Tem um sabor amargo. Nunca pensei.
– Acabamos por gostar – disse eu.
Ele encolheu os ombros e baixou novamente a cabeça.
Pensei que depois disso se fosse afastar de mim, mas, quando saiu da
casa de banho, aproximou-se e beijou-me na boca.
– Obrigado por isto – disse.
Abraçámo-nos, e o meu queixo repousou sobre o seu ombro. Ele pôs as
mãos nas minhas nádegas, e os dois lançámo-nos numa dança lenta e
ondulada pelo quarto fora. O desejo dele inchava, duro, contra a minha
perna. Começámos a beijar-nos como se quiséssemos desvendar segredos
mútuos. O queixo dele, por barbear, arranhava-me o pescoço.
De repente, afastou-se de mim à distância de um braço.
– Eu beijo bem? – perguntou, ansioso.
Inclinei a cabeça.
– Vá lá. Não faça perguntas dessas.
Baixou os olhos, como quem organiza as ideias.
– Mas eu quero aprender a beijar um homem – disse. – É… É uma coisa
que quero mesmo aprender a fazer.
Levei a mão ao peito dele.
– Basta fechar os olhos. Se ajudar, imagine que sou uma mulher. Pode
fantasiar aquilo que lhe apetecer.
– Não, quero pensar em si. Quero estar aqui. Neste quarto. É importante.
Beijámo-nos durante algum tempo, e ele segurou-me na face. Guiou-me
até à cama. Ficámos deitados lado a lado, beijando-nos, os nossos desejos
inchando, duros, entre nós. Quando ele pousou de novo a mão entre as
minhas nádegas, percebi o que queria. Pus-lhe um preservativo, virei-me
para o outro lado e encolhi os joelhos, pressionando-me contra o seu sexo.
Uma mão agarrou-me a anca, a outra o ombro.
– Eu quero-o, Professor, mas como vamos fazer isto? – perguntou.
Posicionei-me novamente para ficarmos encaixados.
– Devagar – pedi.
– Já fiz isto com a minha mulher.
– Então sabe como é.
– Mas com ela era diferente. A forma era diferente.
– Por causa de um único cromossoma. Pense nisso.
– Penso em quê?
Não respondi; ele já entrara em mim. Torci-me e fugi, porque me ardeu.
– Estou a magoá-lo – disse ele, com uma expressão angustiada. –
Devíamos parar.
– Espere um pouco. Assim deve ser mais fácil. – Deitei-me de costas e
pus as pernas sobre os ombros dele.
– Está bem assim? – perguntou Miguel, quando já tinha as ancas bem
pressionadas contra mim.
Assenti com a cabeça.
– Sabe, há quem diga que isto é contra a natureza – observou ele.
– Quer discutir filosofia, numa altura destas?
– Mas talvez seja.
– Pode escolher. Pode perguntar à Igreja o que pensa sobre o assunto, ou
ao seu próprio pénis. Pessoalmente, acho que o que tenho dentro de mim é
um porta-voz muito mais eloquente e brilhante de Deus e da Natureza. –
Dei-lhe pequenos beliscões nos mamilos. – Vá lá, pergunte-lhe o que ele
acha.
Ele inclinou-se sobre mim e mergulhou o mais fundo que pôde.
– Merda! – gritou, saindo de repente. O preservativo, pendurado,
soltara-se. Arrancou-o e ejaculou sobre os lençóis, salpicando-os todos. –
Há meses que não tinha relações – explicou. – Que grande porcaria.
Acariciei-lhe a face para o animar e permanecemos num silêncio grato
durante algum tempo.
– Quantas vezes fez isto? – perguntou finalmente.
– O quê?
– Ir para a cama com um homem.
– Não faço ideia. Parei de contar ao fim de algum tempo, quando
percebi que não ia encontrar o meu Príncipe Encantado. Sou masoquista, é
verdade. Mas manter um registo pareceu-me demasiado indulgente.
Sentei-me ao lado dele. Passei-lhe a mão pela penugem que lhe revestia
o interior das coxas. Enganchámos os pés. Ele pousou-me o braço por cima
do ombro.
– Obrigado – repetiu.
– Pare de dizer isso. Até parece que lhe estou a fazer um favor.
– E está.
– Não estou nada. Nem sequer sei o que fizemos ao certo.
– Acha-me bonito? O Professor disse isso.
Encarei-o e peguei-lhe na flor em botão do seu sexo. Beijei-lhe o
ombro. Tinha o mesmo cheiro que o filho. Seria por isso que me via a
avançar tão descuidadamente por aquele beco sem saída? Ou seria apenas
uma acumulação de testosterona?
– Acha-me bonito? – repetiu.
– A sua mulher também teve de responder a essas perguntas todas?
– Também.
– Certo, então, é muito bem-parecido.
– Quantas vezes, com o meu filho?
– Já lhe disse que não costumo contar.
– Mas dormiram juntos durante um ano?
– Sim.
– Uma vez por semana? Duas?
– Talvez quatro vezes. Mas não assinámos contrato. Ele não é a Jackie
Kennedy, e eu sou demasiado alto e pobre para ser o Aristóteles Onassis.
– Quatro vezes cinquenta e dois… Duzentas e oito.
– Mas nem sempre tínhamos relações – fiz-lhe notar.
– Que mais faziam?
– Tudo. Menos cunnilingus, claro. Quer uma lista alfabética? Em latim,
português ou inglês?
Recostou-se, ponderando aquela informação. Ao fim de algum tempo, o
pénis dele começou a inchar-me na mão. Chupei-o. Ele pôs-se a brincar
com as minhas orelhas. Empurrei-o para trás na cama e afastei-lhe as mãos
para o lado, como uma vítima de crucificação. Baixei-me sobre ele. Ele
atirou a cabeça para trás e fechou os olhos. Só voltou a abri-los depois de
ter atingido o clímax.
18
Pensei que, mesmo que Miguel e eu não comentássemos o nosso
encontro desajeitado, mas estranhamente terno, ele limaria todas as arestas
daquele nosso pequeno triângulo; Miguel aproximar-se-ia do filho e o rapaz
descobriria no abraço do pai que era genuinamente amado. Ao fim de mais
uns dias, seguindo a rota que levava desse amor ao coração de um novo
país, António descobriria que ainda tinha um futuro pela frente.
O amor ensina; talvez seja esse o seu maior dom.
Então, e a esperança? Será que o caminho entre o amor e o futuro de
António está pavimentado com a esperança que todos fomos perdendo
numa década desapaixonada?
A questão agora parecia ser a seguinte: «Como se consegue recuperar a
esperança, quando a própria palavra se despojou do seu significado?»
No entanto, era a esperança que alimentava os meus devaneios mais
secretos, porque de repente imaginei-nos aos três como uma família feliz,
com as nossas inter-relações todas agradavelmente baralhadas. Porém, e por
muito que o desejasse, a minha vida não era um filme datado de
Hollywood, com atores de segunda categoria como Miguel, António, eu, o
fantasma travesso do meu irmão e até tu, Carlos. Portanto, não foi isso que
aconteceu.
António saltou da cama no domingo de manhã e foi tomar um banho.
Quando voltou ao quarto, Miguel já estava acordado. Em tom zangado, o
miúdo disse-lhe que não achara graça nenhuma ao fedor a tabaco, quando
voltara do jantar na noite anterior. Começou a vestir-se, apressado.
– Desculpa – pediu Miguel. Estava sentado na cama a espreguiçar-se.
Com as calças do pijama, junto à janela, eu observava as pessoas irem
para o trabalho, lá em baixo, na rua. A voz de António deixava-me exausto.
Sentei-me aos pés da cama, com vontade de lhe dizer qualquer coisa, mas
sem saber o quê. Ele arregalou os olhos, zangado.
– A partir de agora, quero um quarto só para mim – anunciou.
Como estratégia, optei por uma atitude alegre.
– E que tal se discutirmos tudo isto ao pequeno-almoço? Não estás com
fome?
– Não vou comer convosco. Conheci uma pessoa – declarou.
– Quem? – perguntei.
– Uma pessoa.
– António, tens de ter cuidado. Tens de… – alertou Miguel.
– Quem disse que dormi com ele? Quem disse sequer que é um ele?
Mete-te na tua vida. – Encarou-me. – Ah. E decidi que hoje ficamos em
Salamanca. Podemos ir para Ávila amanhã. – Agarrou no estojo da guitarra
e foi-se embora. Estava à espera de que batesse com a porta, mas,
provavelmente para me desiludir, não o fez.
Miguel tapou a cara com o lençol e não espreitou.
Desci para tomar o pequeno-almoço sozinho e fui dar um passeio. A
manhã estava quente e o céu, azul. Pairava no ar aquela vaga sensação de
poeira que prenuncia um calor dos diabos. Tomei um cappuccino na praça
principal e fui servido pelo empregado da véspera.
– Então, onde está o seu filho? – perguntou.
– É assim tão evidente que somos familiares?
Apontou para os próprios olhos com dois dedos.
– Percebo logo quando as pessoas são da mesma família. – Voltou a
palma da mão para cima. – Têm as mesmas expressões. O senhor e ele
sorriem da mesma maneira. É a boca.
– O meu hijo foi dar um passeio – disse-lhe. – Estava a precisar de se
mexer.
Tratar António por filho silenciou-me o coração. Era só uma palavra em
espanhol, mas não me parecia inócua.
O empregado assentiu e juntou as mãos como quem reza.
– Voltar a ser novo – suspirou.
Atravessei a praça onde António estivera a tocar guitarra e segui em
frente. Entre o encontro secreto de António e as muitas fragilidades de
Miguel, que só agora me deixava vislumbrar, tinha muito em que refletir.
Porém, a verdade é que não pensava em nada disso. Enquanto deambulava
pelas ruas, sem destino, desligado de tudo, só me ocorria que, quando
morresse, não deixaria qualquer legado:
nem quadros dos meus amantes;
nem manuscritos por publicar, que a minha ex-agente Libby descobriria
e enviaria para uma editora pequena, mas de grande prestígio;
nem cachecóis feitos à mão a aconchegar o pescoço dos meus amigos;
nem cinzeiros de louça que podia ter feito numa roda de oleiro para a
minha mãe;
nem cartas recheadas de humor de amigos, atores e escritores famosos;
nada.
A única coisa que me restava, e que parecia ter algum valor, era a
guitarra. Se eu morresse antes de António, deixar-lha-ia.
Acabei por ir parar à estrada para Valladolid. Uma faixa de asfalto em
cada sentido. Passei alguns blocos de apartamentos sociais em betão e
depois uns casebres com o reboco a cair e cães a ladrar cá fora. As cidades
espanholas terminam abruptamente e, em pouco tempo, dei comigo no
campo. Levava um casaco de lã azul que a minha mãe me comprara nuns
saldos no Macy’s da Roosevelt Field e que era demasiado quente, pelo que
o despi e enrolei em volta de um poste de sinalização que indicava o limite
de velocidade: 80 quilómetros por hora. Achei que poderia recuperá-lo no
regresso. Muito ao longe vislumbrava-se o horizonte envolto numa neblina
acastanhada e fui caminhando nessa direção, seguindo a berma da estrada
coberta de gravilha. A meu lado, deslizavam carros a toda a velocidade e,
na faixa contrária, passaram dois autocarros cheios de velhotas. Um gavião
observou-me, desconfiado, pousado no poste de uma cerca. Brisas mornas
afagavam-me o rosto, como que tentando acalmar-me.
Pouco depois, cheguei a uma aldeia miserável, que nem passeios tinha e
que lembrava um pueblo do México profundo. Num café escuro, com o
chão de linóleo coberto de beatas de cigarros e pacotes de açúcar vazios,
pedi uma água. Dois velhos de barba grisalha jogavam dominó a um canto
e, por cima deles, uma televisão assente numa prateleira transmitia em altos
berros um jogo qualquer. No balcão, em redor de sanduíches de presunto
empilhadas num prato branco de porcelana, esvoaçavam moscas. O
presunto espreitava por entre as fatias de pão como uma língua sangrenta. A
mulher que me atendera olhava para a televisão de braços cruzados e de vez
em quando escarafunchava o nariz com o mindinho gordo.
– Há quanto tempo vive aqui? – perguntei-lhe enquanto passava um
anúncio.
– Aqui?
– Sí.
Mostrou-me os dedos todos quatro vezes, como se eu fosse um idiota.
– Quarenta anos – disse.
Coçou o rabo e continuou a escarafunchar o nariz.
Aquele sítio cheirava a decadência, pelo que me fui embora. Cerca de
um quilómetro e meio mais adiante, na estrada, um Toyota branco encostou
à berma e uma rapariga com os lábios pintados de vermelho desceu o vidro
e perguntou-me se sabia o caminho para Cañizal.
– Nunca ouvi falar – repliquei em português, porque me esquecera de
como se dizia ouvir em espanhol.
– Lisboa? – perguntou-me ela.
– Porto – corrigi.
– Viva o Porto! – exclamou, arrancando a toda a velocidade, com os
pneus a chiar.
Topei com um caminho à direita, que levava a um olival. A terra
castanha e seca em volta das árvores fora lavrada havia pouco tempo e
estava cheia de torrões. O caminho propriamente dito, com muitas pedras,
era ornamentado de flores campestres roxas, de caule comprido e hirto.
Andei cerca de meia hora até chegar a uma casa retangular caiada de
branco, com telhado de telha vermelha. Estacionado à porta, repousava um
velho Mercedes a diesel e, por trás da casa, espreitava um prato de satélite
amarelo com as letras Astra. Num pátio rodeado por uma cerca, um grande
cão castanho ladrava-me, furioso. Um homem alto e magro apareceu à
porta. Comia uma maçã e tinha uma faca na mão.
– Pode dar-me um copo de água? – perguntei no meu melhor espanhol.
– Americano? – indagou.
– Sim.
Fez-me sinal para me aproximar. Era alto, tinha olhos castanhos e
enérgicos, e o cabelo rareava-lhe. Vestia umas calças cinzentas e uma T-
shirt branca a que cortara as mangas. Nos pés, compridos e ossudos, trazia
umas sandálias de couro. Apertámos a mão e fiquei a saber que se chamava
Ángel Llorca.
– Não, não sou da família do dramaturgo – disse-me, sem que eu lho
perguntasse.
– Fala inglês? – estranhei.
– Estudei uns tempos em Edimburgo.
Convidou-me a entrar. Todas as paredes interiores tinham sido
derrubadas, abrindo um amplo open space. O teto em abóbada, cruzado por
duas vigas de madeira reforçadas, tinha uns bons seis metros de altura no
eixo central, e duas janelas de vitral triangulares, uma em cada extremidade,
deixavam passar a luz. Numa, via-se um arlequim azul e verde, com o nariz
vermelho, a dançar uma jiga; na outra, uma cobra laranja e escarlate subia
por uma árvore azul e roxa.
Aquele espaço cheio de luz deixou-me sem palavras.
– Tem muitas vezes esse efeito – explicou-me Ángel mais tarde.
Um kilim castanho-claro e vermelho-vivo cobria o chão de tijoleira cor
de areia. «Quem concebeu esta casa socorreu-se da cor para o ajudar com
qualquer coisa», pensei.
Sentámo-nos a uma mesa de jantar em madeira. Ele deu-me água da
torneira numa caneca de louça. Bebi quase tudo e depois salpiquei o cabelo
e a cara. Ele perguntou-me o que estava a fazer em Espanha, e contei-lhe
quase tudo, à exceção da doença de António. Quando lhe perguntei o que
fazia, disse-me que era professor de Psicologia na Universidade de
Salamanca. O cão continuava a ladrar lá fora, e ele foi buscá-lo. Afinal, era
uma cadela.
– É para lhe mostrar que você não é perigoso – declarou, sorrindo.
Ela veio ter comigo a bambolear-se, o focinho baixo, uma orelha
erguida. Tinha pelo castanho hirsuto e olhos azul-claros. Dei-lhe
palmadinhas no cachaço e ela virou-se de costas para mim. Quando lhe
cocei a garupa, o rabo comprido ergueu-se, enquanto ela se aninhava na
minha perna.
– Está com o cio – explicou. – Basta que lhe toquem, e ela expõe-se
logo. – Assobiou, para a afastar de mim. Chamava-se Limosa, lamacenta,
explicou, porque nascera em dezembro e adorava espolinhar-se nas poças
de água no inverno, como se fosse um hipopótamo. Limosa deitou-se no
chão, pousou a cabeça no pé dele e fitou-me com curiosidade.
Ángel tinha um piano vertical ao lado da cama desfeita.
– Posso? – perguntei.
Ele assentiu com um gesto da cabeça.
Toquei os primeiros acordes de Quadros de Uma Exposição, de
Mussorgsky. O piano precisava de ser afinado, mas não disse nada.
– Toca bem – comentou ele.
– O suficiente para dar aulas de harmonia. Mas nunca gostei do piano.
Gosto dos instrumentos que podemos transportar connosco.
– Era da minha mulher. – Levantou-se e tirou uma moldura de uma
prateleira de livros. Nela, via-se uma fotografia com uma mulher de cabelo
curto, o braço em volta da cintura de Ángel. Vestia um top de alças azul e
tinha um sorriso lindo. – Foi tirada um ano antes de morrer – disse ele. –
Estivemos os dois em Itália. Eu tive uma conferência em Bolonha.
– Há quanto tempo está sozinho?
– Dois anos. – Voltámos a sentar-nos e permanecemos em silêncio
durante algum tempo. Com um corta-papéis, Ángel tentava raspar qualquer
coisa colada no tampo da mesa. Foi buscar-me outra caneca de água. – Dois
anos – repetiu, afundando-se novamente na cadeira e afagando o lombo de
Limosa. – Às vezes, parecem cinco minutos, outras, uma vida inteira. –
Olhou em volta. – Esta era a casa da Isa. Foi ela que a projetou. Ensinava
História de Arte na universidade. Era de Salamanca. Os pais ainda lá vivem.
Almoçamos juntos de quinze em quinze dias, ao domingo. Eles não gostam
de mim, mas sou a ligação que lhes resta à Isa. Eu também não gosto deles,
mas de outra maneira nunca estou com ninguém, a não ser com os meus
alunos.
Bebi uns goles de água. Todas as pessoas que eu conhecia pareciam ter
sido deixadas para trás.
– O tema entristeceu-o?
– Não. A culpa não é sua. – Expliquei-lhe o que se passava com
António.
– Perdi o meu melhor amigo cinco anos antes de a Isa morrer – disse
ele. – Crescemos juntos. Era médico em Madrid. Cirurgião. Para o fim da
vida, falávamos todos os dias ao telefone. – A voz ia-lhe fugindo
gradualmente, até que por fim desapareceu. – E eu perpetuava aquelas
chamadas que, no fundo, eram apenas monólogos: eu a falar, ele a ouvir.
Finalmente, tive a ideia de lhe ler histórias. Acabei por lhe ler os Cem Anos
de Solidão… Dez páginas todos os sábados à tarde, ao longo de meio ano.
As contas de telefone… meu Deus. Ele dizia que a minha voz o acalmava.
Durante uns tempos, já depois da sua morte, tinha uma necessidade súbita
de pegar no telefone e fingir que ele estava do outro lado. Falava sozinho. A
Isa chamava-lhes «conversas-fantasma», dizia que eu era como aquelas
pessoas que perdem um membro e que, no ano seguinte, ainda sentem
comichão ou dores. – Abanou a cabeça. – Sem que eu tivesse a menor ideia
disso, ela adaptou esses meus monólogos e fez uma peça. Antes de morrer,
tentou levá-la à cena na universidade, mas o diretor da secção dramática
não gostou. – Encolheu os ombros – Há pessoas que conseguem
transformar a morte em arte. Ou, pelo menos, modelar de alguma forma
esse espaço vazio. E há outras que não conseguem. Eu sou das que não
conseguem.
– Então o que faz aqui sozinho?
– Leio. Agora, para mim próprio. – Apontou para as prateleiras de
livros. – Atualmente, só quero ler. Não quero fazer mais nada.
– Lê sobre alguma coisa em especial?
– Não. Essencialmente, romances. Prefiro a vida dos outros à minha. –
Riu-se. – Meu Deus, espero que isto não pareça ridículo. Não pense que
tenho pena de mim. Estou contente por estar aqui, contente por ter a
liberdade de ler. Não há nada que preferisse fazer nos dias que correm.
Tenho sorte. – Levantou-se. – Deixe-me mostrar-lhe uma coisa.
Encaminhou-me até às traseiras da casa. Havia cinco roseiras em flor:
duas com flores brancas, uma cor-de-rosa e duas cor-de-laranja com pontas
vermelhas.
– O meu amigo, aquele que morreu em Madrid, deu-me uma ideia.
Disse que, quando alguém que amamos parte, devemos plantar uma árvore
ou um arbusto. Cinco roseiras até agora. – Apontou para as cor-de-laranja. –
Essas são o Coriolano, era o nome do meu amigo, e o amante dele,
Bernardo. E a cor-de-rosa é a Isa. – Arrancou uma e deu-ma. – Não ajuda
nada… mas as flores são lindas, não acha?
Ángel fechou Limosa dentro de casa e deu-me boleia até Salamanca no
seu velho Mercedes.
– Foi oferta do pai da Isa – explicou. – Originalmente era um táxi. Ele
guiou-o durante doze anos. Agora está reformado. Vê futebol na televisão e
pensa em coisas maldosas para me dizer domingo sim, domingo não. –
Encolheu os ombros. – As pessoas precisam de estar zangadas com alguma
coisa. – Parámos no caminho para eu ir buscar o casaco. – Às vezes,
gostava de ter nascido na Idade Média. Nessa altura, não se sabia o que
causava as doenças. Acreditava-se em Deus.
– Mas os médicos dessangravam os pacientes com sanguessugas, e toda
a gente tinha dentes podres – observei.
Ele sorriu.
– Isso para mim não teria importância.
– Além disso, cheiravam mal. Não se usava sabão e aquecer a água
levava tempo. Quem podia, tinha de se encharcar em perfume só para
aguentar o fedor do próprio corpo.
– Se isso me ajudasse a acreditar num Criador, não me importaria de
cheirar a alho.
– Eu não. Gosto de estar limpo. Além disso, sou judeu e homossexual.
Na Idade Média, Deus não gostava de gente como eu.
– Continua a não gostar.
– Talvez, mas agora Ele já não tem tanta importância. As pessoas
preferem televisão. Não é uma grande melhoria, mas sempre é um começo.
Ángel riu-se.
– Sabe mesmo bem voltar a falar inglês – disse. – Penso que tenho
demasiadas opções em espanhol e que a literatura espanhola me influenciou
de mais. Às vezes, sinto-me preso num romance picaresco. Será esta terra?
Acontecem-me as coisas mais absurdas aqui. Como ser encontrado por si
durante um passeio num olival, e acontecer isto de ambos sermos pessoas
que ficaram para trás. Em Espanha, essas coisas são normais. Há linhas que
não se deveriam encontrar, mas que se encontram. Há histórias que se
cruzam. E começamos a pensar nestes caminhos longos e tortuosos. Gosto
mais do inglês. O inglês é muito mais direto e sensato. O inglês é um
caminho bem cuidado que atravessa um jardim ajuizado. O espanhol é um
talude de videiras em redor de um pântano.
Deixou-me no hotel. Apertámos as mãos.
– Ouça, se quiser jantar connosco esta noite…
– Não – replicou ele. – O melhor é cada um seguir o seu caminho
enquanto ainda gostamos um do outro. Em breve, constataria que em mim
só restam frases tiradas de romances alheios.

Comi uma deliciosa sopa de batata no Café Sillín, um pequeno


restaurante em voga, na rua Zamora, após o que me pus em busca de
António e de Miguel. Estava a admirar os frisos esculpidos e roídos pelo
tempo que encimavam a entrada principal de uma pequena igreja românica,
logo acima do rio Tormes, quando ouvi os baques de uma bola de
basquetebol a embater no chão. Nas traseiras da igreja havia um pequeno
pátio. Três adolescentes jogavam por ali. Fiquei a observá-los durante uns
minutos. Eles repararam em mim e trocaram umas frases. Riram-se. Tremi,
pensando que me gozavam, e estava quase a ir-me embora, quando um
deles gritou:
– Quier jugar?
– No hablo español – respondi.
– No importa.
– Soy viejo – disse eu.
O miúdo riu-se com um ar bem-disposto.
– No importa. – Fez-me sinal para me aproximar. Tinha o cabelo
comprido atado num rabo de cavalo, e os olhos amendoados pareciam
quase asiáticos. Nas faces despontavam os pelos esparsos de uma primeira
barba. Chamava-se Paco. Ele e os amigos andavam no penúltimo ano do
secundário. Os outros respondiam pelo nome de Robert e René.
– A mãe do René é francesa – explicou Paco.
Cumprimentámo-nos com um aperto de mão. Eu jogaria na equipa de
Paco, porque ele era o melhor. Roberto, que só tinha cerca de um metro e
sessenta e cinco e era magricela, seria o meu defesa. Achei que seria
facílimo, mas ele roubava-me a bola de cada vez que eu driblava. Parecia
um furão. Por isso, Paco, que era um colega generoso, estava sempre a
oferecer-me bloqueios. Para minha grande surpresa, vi que ainda conseguia
um bom lançamento até mais ou menos cinco metros, e Paco penetrava
firmemente por ambos os lados e fazia suaves lançamentos em suspensão.
Ganhámos o jogo por três bolas, mas sentia-me desanimado por ter tido
uma prestação tão fraca. Que teriam pensado os meus antigos colegas de
equipa do West Village? Roberto e René quiseram uma desforra, mas
expliquei-lhes que estava demasiado cansado.
– Muy viejo y muy malo.
– No, no – mentiram. Apertámos as mãos.

A caminho de casa, pus-me a pensar que me devias ter conhecido em


novo, Carlos, quando me era fácil sorrir, quando ainda não sabia que as
nossas vidas estariam cheias de partidas, a que se sucedem silêncios ocos.
Talvez já não sobre de mim o suficiente para uma relação seja com quem
for. Talvez eu devesse desistir de tentar encontrar um homem que me segure
a mão até que a morte nos separe, limitando-me a ensinar dedilhados em
concertos para guitarra.
Certa vez, se bem me lembro, deste a entender que a minha capacidade
de amar estava diminuída. «Às vezes, sinto que é inútil tentar chamar a
atenção de um homem que tem o ouvido atento a sinais que lhe possam
chegar de além-túmulo», disseste.
Na altura, fiquei furioso. Mas momentos houve em que estiveste com a
razão. Talvez eu tenha sido muito mais responsável pelo nosso falhanço do
que a princípio pensei. Quanto mais ponho nesta carta, mais me convenço
de que realmente te devo ter magoado. Peço que me desculpes por isso. A
prova de que ainda não deixei os fantasmas partir, Carlos, é que antes de
regressar ao hotel parei na igreja e acendi umas velas pelos meus amigos e
por Nancy. Lá dentro, fazia frio, a iluminação era fraca e a atmosfera,
deprimente. Apressei-me a sair.
Ainda ninguém regressara ao quarto. Senti medo de estar sozinho e
tomei um Valium. Só depois me meti no duche. Quando saí da divisão, dei
com Miguel sentado aos pés da cama. Tinha feito a barba.
– Livrou-se da barba de uma semana – comentei, reparando que, tal
como António, não rapara um bocado debaixo do nariz.
Ele fez que sim, e eu pensei: «Agora vai dizer-me que o que aconteceu
entre nós foi um erro terrível que jamais se poderá repetir ou ser revelado.»
Esfregou a face com a palma da mão.
– Não quero arranhá-lo quando nos beijarmos. – Levantou-se e ficou de
frente para mim.
Questionei-me sobre se teria usado corretamente os tempos verbais.
– Há algum sinal do seu filho?
– Nenhum. Não faço ideia do que anda ele a tramar. – Aproximou-se e
tirou-me a toalha. Pôs-me a mão em concha sobre os testículos e com a
outra agarrou-me o rabo. Beijámo-nos. Ele sabia deliciosamente a vinho e
tabaco. E a mais qualquer coisa. Falta de sono?
É fácil dizer agora que devia ter adivinhado que havia um motivo oculto
por detrás destas seduções, mas na altura não lhe senti qualquer odor menos
habitual no pescoço, nas orelhas e nas pontas dos dedos, tão-só necessidade
de um pouco de compaixão.
Talvez a minha aceitação cega se devesse ao efeito dos calmantes.
Ou talvez fosse o facto de sentir que homens como Miguel, que
avançam pela vida num trilho sempre reto, podem fazer um desvio súbito,
se sofrerem um grande trauma.
Era Henry, o Colosso, quem o dizia: «Quando lhes atinge uma tragédia,
as pessoas ou saem disparadas do armário, ou trancam a porta com uma
fechadura de segurança extra.» Já eu pensava secretamente que qualquer
homem cujos cromossomas tivessem ajudado a gerar António tinha de ser
pelo menos um bocadinho gay.
Claro que só depois equacionei todas estas razões, uma vez que a
sensação da minha pele nua contra os jeans e a T-shirt de Miguel pareciam
impedir todo e qualquer pensamento, à exceção de um:
– Deixe-me ir buscar um preservativo.
– Mas o professor é seronegativo, não é?
Assenti com a cabeça.
– E eu fiz uma análise ao sangue há um ano, depois de uma rapariga que
conheço ter tido hepatite. Sou negativo. Por isso, não precisamos de um. –
Fez uma ligeira pausa, mordendo o lábio.
– Embora, se usa sempre com os seus amantes…
– Sim – repliquei. – Já se tornou um hábito. É como pôr o cinto no
carro.
– Vamos fazer uma coisa – anunciou ele, depois de ambos nos
protegermos. – Diga-me só o que é que lhe dá prazer. – Ajoelhou-se à
minha frente e olhou para cima, à espera de resposta.
Nos seus olhos, percebi que uma das razões por que queria fazer amor
com ele se prendia com o facto de eu ser um pouco como Ángel Llorca.
Queria agarrar-me à história de Miguel, à vida dele – fazer do seu passado o
meu passado também.
Miguel fez-me tantas perguntas, que era difícil desfrutar dos seus
esforços, e acabei por lhe pedir para se calar e fazer o que bem entendesse,
seguindo a teoria de que nesses momentos a excitação tudo supera.
E tinha razão.
Por qualquer motivo, Miguel insistiu em tirar o preservativo no preciso
momento em que eu me estava a vir. Depois, foi à casa de banho gargarejar
e de seguida bebeu uma lata de Coca-Cola.
– Se isto não lhe dá prazer, não devia fazê-lo – disse, vendo-o sentar-se
na sanita, com a cabeça entre as pernas. – Nem sequer sei porque o estamos
a fazer. Se eu não gostasse tanto…
– Tenho prazer nisso. Mas deve ser um gosto adquirido. Como a
cerveja. Não se preocupe, a Coca-Cola tira-lhe quase todo o sabor amargo.
Dei-lhe um beijo na testa e deixei-o sentado na casa de banho. No
momento em que pegava no Life With a Star, bateram à porta.
– Sou eu – disse António. Miguel fechou-se na casa de banho, enquanto
eu atendia. – O que é que se passa? – perguntou ele, olhando-me de alto a
baixo.
– Ora vejamos… acabei de tomar um duche. E hoje é o teu pai que está
mal da barriga.
Pousou o estojo da guitarra em cima da cama dele.
– Preciso de tomar banho – disse.
– Saio já, é só um minuto – gritou Miguel lá de dentro.
O rapaz começou a despir-se.
– Foi bom, o teu dia? – perguntei.
– Foi. Cada vez gosto mais de Espanha.
– O que fizeste?
– Já te conto ao jantar. Agora preciso de tomar um banho.
As roupas dele estavam alagadas em suor. Cheiravam a rapaz que
estivera a usar o corpo.
– Tens estado a fazer exercício? – perguntei.
– Não.
– E a espancar velhinhas para te darem dinheiro?
Revirou os olhos.
– A fazer bungee-jumping do cimo da catedral?
Ele ignorou-me e foi bater à porta da casa de banho.
– Posso?
Miguel abriu e saiu, com o cabelo molhado penteado para trás.
Tresandava a aftershave.
– Estás pálido – disse António.
– Está pálido porque fez a barba – comentei. – Há uma semana que o sol
não lhe vê o rosto.
– Não, está com um ar doente – insistiu António. – Sentes-te enjoado?
Terá sido marisco?
– Estou ótimo – replicou Miguel.
– Esse perfume que ele pôs também não ajuda nada – observei. – É
demasiado doce. Deve ser espanhol.
– Por acaso, é um aftershave americano – observou Miguel num tom
seco.
– Devias beber leite morno – sugeriu António. – Precisas de ter qualquer
coisa no estômago.
Miguel e eu cruzámos um olhar.

Quando andamos na estrada, o tempo mede-se em refeições, não em


horas. Jantámos num restaurante com cravos em vasos de cristal. Tinha
vista para a igreja e, nas paredes cor de salmão, fotografias assinadas de
paisagens do Norte de África – camelos, dunas, beduínos, esse tipo de
coisas. Eu vestira o meu casaco de linho azul e uma T-shirt amarela.
Esperava ter um ar elegante, tipo Miami Vice, mas António disse-me que eu
parecia um peluche. Depois, apertou-me a mão na sua e sorriu.
– Estás bonito.
Miguel concordou.
Agradeci aos dois por mentirem tão gentilmente.
O rapaz não queria dizer-nos o que fizera durante o dia, mas estava de
bom humor, por isso não me importei.
– Quero que seja surpresa – declarou. No entanto, durante o jantar,
António não olhou para o pai, nem lhe dirigiu a palavra. Acabámos os dois
a falar da Suite para Violoncelo de Bach, enquanto Miguel brincava com as
azeitonas e depois com o garfo. Já à sobremesa, devorou o pudim flan e
saiu sem beber café, alegando que precisava de se deitar, embora eu tivesse
quase a certeza de que queria ir para um café e fumar em paz.
António inclinou-se para mim.
– Ele já te disse o que realmente acha de ti?
– Não consegue decidir se me odeia ou não.
– A sério?
– Foi o que me disse.
O miúdo franziu o sobrolho.
– Tenho a certeza de que ele não gostou que te tivesses metido na minha
cama na outra noite.
– Pois, também acho que não.
– O que é que ele disse?
Suspirei.
– O que é que ele disse? – insistiu António.
– Isso mesmo: que não tinha gostado.
– Ameaçou-te?
– Não.
– Talvez esteja a crescer.
Aproximei-me, com um ar conspirativo.
– Ouve, ele tem medo de ti.
– Medo de mim…? Ah, queres dizer que tem medo de apanhar sida.
– Não, não é isso. Sabes, acho que devias falar com ele sobre tudo isto.
Não quero ficar no meio.
– Eu em cima, o meu pai em baixo e tu no meio. Porque haverias de te
queixar?
Suspirei de novo. Apercebi-me de que não achava assim tanta graça ao
facto de o miúdo me imitar nas graçolas.
– Não negues – disse-me ele. – Bem vejo como olhas para o rabo dele.
– É um homem atraente. E depois?
– Caías de joelhos e fazias-lhe um broche sempre que ele te pedisse.
– Porque não falas um pouco mais alto, para toda a gente te ouvir? –
sussurrei.
– Não é crime. Além disso, agora estamos em Espanha. Atravessámos
uma fronteira e presto, estamos livres das restrições de Portugal. É como
viajar no tempo.
– António, antes de baixares o nível desta conversa, eu estava a dizer-te
que devias falar com ele.
– Acabaram-se os sermões. Esse tempo já era.
– Muito bem. Faz como quiseres.
– Reparaste que ele nos espia?
– Ele não nos espia.
– Oh, não brinques comigo. Não vês a maneira como ele olha para ti e
para mim? Como se quisesse apanhar-nos desprevenidos. Provavelmente,
anda a seguir-te pela cidade.
– Talvez estejas a interpretá-lo mal.
– Não, ele está a esconder qualquer coisa – disse, num tom assertivo. –
Um dia destes, ataca-te. Ou a mim. E aí teremos a certeza. Se
sobrevivermos.
– Da maneira como falas, até parece que é um inimigo esperto e
perigoso.
António ergueu as sobrancelhas, como se isso fosse óbvio, e bebeu o
café de um trago.
19
Na segunda-feira, António acordou-me às duas da manhã. Dei com ele
ao lado da minha cama. Sentei-me.
– Que se passa? – sussurrei.
– Aparece em ondas – respondeu.
Acompanhei-o à cama dele e meti-o entre os lençóis.
– Por favor, ficas aqui sentado ao pé de mim? – pediu, numa voz
pequenina, como se tivesse medo até de esperar que eu fosse bondoso.
Adormeceu com a mão na minha. Voltei para a cama. Quando acordei,
uma hora mais tarde, ei-lo de novo junto da minha cama, desta vez com
uma almofada no peito. Tinha a testa perlada de suor e a roupa húmida.
«Suores noturnos? Tão cedo? Não pode ser.»
– Tive um pesadelo – explicou.
– Despe-te.
Não se mexeu. Todo ele tremia, os dentes batiam-lhe.
Tirei-lhe a almofada das mãos, levei-o para a casa de banho e despi-o.
Cobri-o com uma toalha e esfreguei-lhe o cabelo. Sentou-se na borda da
banheira e disse-me que sonhara que estava a ser enterrado vivo. Começou
a chorar. Abracei-o. Fechei a porta, para não lhe acordar o pai, mas ao fim
de algum tempo Miguel espreitou.
– Sai! – gritou-lhe António.
Miguel avançou um passo e estendeu a mão para lhe tocar, mas António
afastou-a. Miguel recuou e fechou a porta suavemente. Uns minutos mais
tarde, ouvi a porta do quarto abrir-se e fechar-se. Regressados ao quarto,
António e eu constatámos que Miguel já lá não estava.
Na manhã seguinte, quando me virei na cama, dei com António a ler
uma revista espanhola sobre guitarras.
– Olá – cumprimentou, olhando-me nos olhos. Virei-lhe costas porque
pressenti que me fosse dizer uma bestialidade qualquer, mas estava
enganado. Deu-me uma palmada brincalhona no rabo e pulou da cama, a rir,
antes que eu lhe fizesse o mesmo. Foi para a casa de banho. Miguel ainda
não tinha voltado.
Ouvi o rapaz fazer a barba, mas a minha bexiga não aguentava mais.
– Não entres! – gritou ele.
– Preciso de ir à casa de banho.
– Vai-te embora.
Abri a porta. António cortara-se no queixo e estava a limpá-lo com
papel higiénico.
– Não te aproximes! – gritou.
– É só um corte.
– Não é só um corte. É o que está lá dentro. Afasta-te!
– António, não vais explodir e salpicar-me todo de sangue. Fica aí, trata
da tua cara, enquanto eu trato da minha bexiga. Se não entrarmos em
pânico, as duas nunca se cruzarão e tudo vai correr bem.
– Agora vai-te embora – pediu, ainda eu não tinha puxado o autoclismo.
Saí, mas, ao cabo de um minuto, entreabri a porta.
– Quando estiveres despachado, desce para o pequeno-almoço. Partimos
para Ávila ainda esta manhã… antes do meio-dia.
– E se o meu pai não tiver regressado?

Nem Miguel nem António apareceram para o pequeno-almoço. Fui


fazer umas compras na parte nova da cidade e regressei ao hotel eram já
onze horas. Miguel fizera as malas e estava sentado junto à janela a
espreitar a rua. De António, nem sinal.
– Aonde foi ontem à noite?
– Dar uma volta.
– A noite toda?
– A noite toda.
– Não pode deixar que ele o trate assim – disse eu.
Encolheu os ombros.
– Não o ajuda a ele, nem a si.
– Não pode ter a certeza disso. Não pode ter mesmo certeza nenhuma.
– Precisa de falar com ele.
– Daqui por uns dias – respondeu. – Talvez em Madrid eu já saiba o
suficiente.
– Saiba o suficiente?
– Pois.
– Sobre o quê?
– Sobre tudo.
Comecei a fazer a mala.
– Já esteve em Ávila? – perguntei.
– Não. Não gosto de Espanha. É bonito, mas não é como deve ser.
– Não é como deve ser?
– Está de pernas para o ar. Deixa-me nervoso. É como se me fosse
entornar.
Puxei o fecho-éclair da mala. Miguel aproximou-se e apertou-me a coxa
entre as pernas, como um cão. Em menos de nada, tinha-me desapertado as
calças e posto um preservativo. Foi tudo muito rápido.
Depois, beijou-me o pescoço longamente, como se me quisesse
sussurrar a todos os poros do corpo. Quando foi para a casa de banho, senti
lágrimas nos olhos. Por duas razões:
O simples poder sexual daquele homem invocava de novo recordações
de um tempo há muito desaparecido, quando o amor sensual não se revestia
da armadura ferrugenta da doença e da morte;
e porque, no momento em que fiquei mesmo excitado, imaginei que eras
tu, Carlos.
Compreendes a extensão do que te estou a dizer? Provavelmente não,
por isso, escuta…
Podia ter imaginado qualquer pessoa, desde Sam Shepard a Sholom
Aleichem, e escolhi um pintorzinho assustado que me acha um pervertido!
Isso mostrou-me que ainda estava um pouco desorientado. E
apaixonado.
E sabia que não poderia avançar para o meu futuro sem to dizer nesta
carta.
Será que esta confissão te fará temeres-me outra vez? Ou estarás ainda a
cobrir aquela emoção demasiado colorida com camadas alternadas de
branca indiferença e negro escárnio?

O dia estava quente, sentia o calmante correr-me nas veias e a felicidade


que sobrevém depois da união de dois corpos. Era como se tivesse sido
abençoado.
– Canta esta melodia – pediu-me António, o entusiasmo espelhado no
rosto, enquanto eu tirava o Batmóvel do estacionamento, e cantarolando ele
mesmo para mim. Mas eu não conseguia reproduzi-la, porque:
era em compasso cinco por quatro;
alternava entre uma escala maior e uma escala hexafónica;
tinha um par de escalas cromáticas triplas mesmo a meio, como dois
grandes redutores de velocidade na estrada.
Além disso, tentava avançar por cruzamentos congestionados,
contornando carros estacionados em segunda fila.
– Conduzir e manter-me acordado já é proeza bastante. Quanto mais
cantar em compasso cinco por quatro.
– Faz tu a segunda voz – pediu. E cantou outra melodia que não era
mais fácil.
– Não consigo – exclamei.
– Nem sequer estás a tentar, porra!
– Tens razão. Não tenho o teu talento. Não consigo.
– És um idiota, um burro.
Não me senti minimamente ofendido com a metáfora. Sempre me
agradaram os animais, mas achei que não devia ignorar a farpa.
– Não fales assim comigo.
– Falo-te como eu quiser. Tu é que me obrigaste a vir nesta viagem.
– Ninguém te obrigou – respondi.
Do banco traseiro, Miguel cantou as primeiras sete notas da melodia
original. Tinha uma bela voz de barítono. Inclinou-se entre os nossos dois
assentos.
– Ensina-me o resto – pediu ao filho.
– Não fazia ideia de que sabia cantar – disse eu a Miguel.
Encolheu os ombros. Ele suava em bica e a T-shirt azul-clara estava
manchada nas axilas.
– Quando foi a última vez que cantou?
– Costumo cantar no duche – respondeu. – E às vezes na cama. Mas só
quando estou sozinho. Em novo, queria ser cantor. Vai rir-se. Queria estudar
ópera.
Ninguém se riu.
– E isso interessa a quem? – perguntou António, voltando-se para a
frente e cruzando os braços sobre o peito.
– Ensina-lhe a melodia – pedi a António, dando-lhe uma festa na perna
para o encorajar. – Anda lá, ensina-lhe. Que tens tu a perder?
– Está bem – acedeu ele, ajoelhando-se, de forma a ficar virado para o
pai. – Recua, estás demasiado perto – ordenou com tanto azedume, que lhe
dei um murro no ombro. Miguel recostou-se. – É assim – explicou,
cantando novamente a primeira melodia.
Miguel atrapalhou-se um pouco com o ritmo das escalas cromáticas
triplas, mas cantou-a nota por nota. Era um milagre.
– Ensina-lhe a segunda voz – pedi.
Miguel repetiu a melodia sem uma falha. Olhei para António. Não
estava espantado.
– O que foi? – perguntou, com uma expressão surpreendida. − Achas
que nasci do nada, assim sem mais nem menos? É a genética. Não estudam
ciência naquele vosso deserto capitalista? Ervilhas? O Mendel? Isto diz-te
alguma coisa? – Encarou o pai. – Pronto, agora fazes a segunda voz, a
segunda que te ensinei, enquanto eu faço a primeira.
Exibia orgulhosamente o pai, da mesma forma que um treinador exibe
um terrier a dançar sobre as patas traseiras com um chapéu de festa na
cabeça. Pus-me a observar Miguel pelo espelho retrovisor. Tinha as mãos
debaixo das pernas, para não se sentir tentado a puxar de um cigarro.
Endireitou-se no assento, ávido de seguir as ordens do filho.
– Um, dois, três… – disse o rapaz, marcando o ritmo.
Cantaram.
Um T-Bird de 1965 a atravessar a paisagem castelhana a cento e vinte
quilómetros por hora, embalado pela voz de dois bonitos homens a cantar
uma melodia dissonante. Dificilmente, a vida atingiria este nível de
beleza… e estranheza.
António bateu-me na perna.
– Então? – perguntou.
– Então o quê?
– Que achas?
– Não conheço a música.
– Diz-me só o que achas – insistiu ele.
– Não sei o que hei de achar porque não faço ideia de qual o propósito
ou o contexto da música. O Messias é ótimo para coro e orquestra, mas não
me parece que nenhuma das melodias fosse adequada a um anúncio de
cerveja.
– Não queres dizer que detestaste – declarou, zangado.
– É só um pouco estranho para quem ouve pela primeira vez. O que é?
Algo que ouviste em Salamanca? Uma transcrição?
– Vais ver. É surpresa. Para mim próprio, mesmo que mais ninguém
goste.
– Eu gostei – disse Miguel numa voz cantada.
António virou-se para ele e franziu o sobrolho, com desprezo.
– Faz essa cara muitas vezes e acabas por não ter outra! – dei comigo a
exclamar. A minha mãe sai-me, de facto, pela boca nos momentos mais
estranhos, já to disse?
Felizmente, António já estava habituado e ignorou-me.
– Lembras-te de quando costumávamos cantar juntos? – perguntou
Miguel, quebrando o silêncio que se instalara.
– Cantavam juntos? – quis eu saber.
– Quem é que achas que me ensinou música? – atirou o rapaz. – Não
foste só tu. Tu entraste em cena mais tarde. Não me ensinaste tudo, fica
desde já sabendo.
– Nunca tive semelhante pretensão.
– Claro que sim! Achaste que eu era uma criação tua. Que eras um
professor talentoso, ou não? – Soltou uma risada digna de um mau ator.
Piscou-me o olho.
«De repente transformou-se num Iago incompetente a alcovitar para o
seu público», pensei. «Por que outra razão me piscaria o olho de forma tão
cruel? Isto é tudo uma grande fita que está a representar para o Miguel.»
O pavor alastrou dentro de mim como tinta preta. Fiquei calado.
– Provavelmente até me atrasaste os progressos – continuou. – Poderia
ter avançado mais velozmente sem todas aquelas escalas e aqueles estudos
parvos do Sor. Lembras-te? Dia após dia, aquela coisa para crianças que me
obrigaste a aprender. Se fosses melhor guitarrista, teria aprendido muito
mais depressa… Imagina que eras o Leo Brouwer ou o Christopher
Parkening? Pensa só onde não estaria eu? Mesmo alguém que não fosse
assim tão bom, mas que tivesse experiência em palco. Eu já estaria a dar
concertos, em vez de me passear contigo e com o meu pai num deserto onde
o Diabo perdeu as botas.
Agarrei o volante com força. Disse de mim para comigo que aquilo era
um pesadelo e que em breve acordaria.
– Cala-te, António! – gritou Miguel. – Cala-te imediatamente!
– Não, cala-te tu! – ripostou o rapaz. – Não fosses tu, e nenhum de nós
estaria aqui! És o maior cobarde de todos! Por isso, não me dês ordens!
Nem te atrevas!
Gritaram um com o outro durante uns minutos. Eu lutei em vão para
desaprender português. Quando ambos se silenciaram e se puseram a olhar
pela janela, levei a mão ao bolso. Engolindo outro calmante, pensei: «Tenho
de lhe tirar o chapéu; disparou dois tiros direitos ao meu coração, sem
hesitar. Quantos faltarão ainda?»

Miguel acabou por levar o carro até Ávila, porque eu me sentia incapaz
de conduzir, todos os meus pensamentos focados numa escura paisagem de
culpa. Enrosquei-me no assento de trás, tentando aninhar-me contra o vinil
preto, até chegarmos ao parador logo à entrada das altas muralhas da
cidade. Enquanto Miguel e António tiravam as respetivas malas do porta-
bagagens, eu fui dar uma volta. Precisava de ficar sozinho, de arejar as
ideias. Se conseguisse pensar, talvez percebesse o que haveria de fazer. Mas
não consegui. As ideias formavam-se-me na mente, para logo se dissiparem
como fumo.
António ficou com um quarto só para si. A rececionista deu-me o
número do meu quarto e informou-me de que o meu cunhado já lá estava.
Pediu-me o passaporte.
Quando entrei, Miguel estava sentado aos pés de uma das camas, a
cabeça baixa, a esfregar o queixo.
– O rapaz não estava a falar a sério – disse, erguendo o olhar e
encarando-me.
Pousei a bagagem no chão e sentei-me na cama vazia.
– Tenho de me deitar. E gostava de ficar sozinho.
Ele fixou-me com aqueles seus olhos perdidos.
Devolvi-lhe o olhar, tão vazio que nem me importei que ele visse
através de mim e descobrisse que não havia nada.
– Vai ficar bem? – perguntou.
– Não se preocupe, não sou melodramático – respondi. – Nem tentativas
de suicídio, nem vidros partidos. Vá lá descobrir Ávila, divirta-se.
– Precisa que lhe compre alguma coisa? – perguntou, a mão já na
maçaneta da porta.
– As famílias são quebra-cabeças com peças de encaixar – respondi.
– O quê?
– Quebra-cabeças. Sempre que pensamos que a imagem está completa,
apercebemo-nos de que deixámos áreas inteiras de fora. É como um
universo que não para de se expandir. Não conseguimos acompanhar-lhe o
ritmo.
– Confesso que não o estou a perceber, Professor – respondeu ele.
– Nem eu me percebo a mim próprio. Não interessa. São só disparates.
Acontece-me quando o cérebro não está a funcionar.
– Quer alguma coisa do mundo lá fora?
– Se encontrar o espectro de Santa Teresa, pergunte-lhe pela esperança.
Pergunte-lhe como a recuperamos. Sendo a resposta razoavelmente
perspicaz, venha a correr contar-me. Caso contrário, demore o tempo que
quiser e traga-me uma Coca-Cola.

Dormi um sono sem sonhos. Talvez por isso, ao despertar, tenha entrado
em devaneios elaborados. Henry, o Colosso, dizia que os nossos devaneios
acordados são pássaros tropicais opalescentes que mantemos dentro de
sacos com medo de os deixar sair, não vão eles voar para longe e perder-se.
Henry não viveu o suficiente para aprender que nesta década de terror
lembram mais cascavéis para as quais tememos olhar durante muito tempo,
não vão elas sentir-se tentadas a devorar-nos vivos.
Comecei a imaginar-me no Batmóvel, a guiar como um louco por Ávila
adentro, deixando António e Miguel bem para trás, numa nuvem de poeira
medieval. Passei como um relâmpago por Madrid, em direção a Barcelona,
entrei num cargueiro ferrugento com a bandeira da Libéria, bebi ouzo até
perder os sentidos nos braços de um marinheiro grego barbudo e acabei em
Izmir. Comi figos frescos na praia e atirei as cascas roxas às gaivotas. Era
de novo jovem e bonito, com uma farta cabeleira encaracolada soltando
uma fragrância a mar quente, e ganhava dinheiro a vender o corpo na praça
do mercado, mesmo ao lado dos vendedores de pepinos. E porque é que
conseguia fazer tudo isto com tamanha liberdade? Porque não havia
cossacos invisíveis para me cortarem a cabeça, claro. Tudo pode acontecer
quando se sonha acordado.
Até te imaginei lá, Carlos, a chegar à praça do mercado com túnicas
árabes brancas, a fazer-me olhinhos e a oferecer-me uma pequena fortuna
para ir para casa contigo. «Se me beijares aqui mesmo à frente de toda a
gente, nem sequer terás de pagar», disse-te.
E que beijo, aquele! Os vendedores de pepinos, e os barbeiros, e os
vendedores de especiarias, e os adivinhos, todos se levantaram e
aplaudiram.
A seguir, imaginei-me muito doente, numa enfermaria imunda, repleta
de vítimas da peste, com os lençóis manchados de cuspo e sangue. Escrevi
cartas de despedida dilacerantes a Fiama e à minha mãe. E, embora
estivesse numa tremenda agonia, ainda consegui alinhavar: «Não fiquem
tristes por mim; tive uma vida boa.»
Prosa heroica. Que coisa ridícula.
A chave rodou na porta.
– Vou levá-lo a jantar – anunciou Miguel, entrando no quarto. Tinha os
olhos brilhantes e gesticulava com entusiasmo. – Vamos comer caviar e
beber champanhe! Por isso, vista-se, Professor.
– Há alguma razão especial para o champanhe? – quis saber.
– Há: porque me apetece!
– Mas porquê?
– Apetece-me e pronto! – Bateu palmas. – Vá lá, toca a andar.
Às vezes, é bom fazer o que nos mandam. Escolhi uma roupa especial:
uma camisa de seda cor-de-rosa Giorgio Armani de contrabando e calças
cinzentas de lã. Pus o meu casaco de linho azul sobre os ombros, como
Marcello Mastroianni.
Dirigimo-nos para a igreja sem falar. Estava à espera de um elogio que
nunca chegou.
– Tenho de lhe pedir que faça uma coisa por mim – anunciou Miguel.
– O quê?
– Explico-lhe esta noite.
– Outro segredo? Mas o que se passa consigo e com o seu filho?
Parecem esquilos.
– Esquilos?
– A armazenar comida para o inverno.
– Gostamos de sentir a temperatura da água antes de saltarmos lá para
dentro – respondeu.
– Tenha cuidado, os esquilos não são grandes nadadores – observei.
– Não estou a perceber.
– Não importa. Sabe onde está o rapaz?
– Provavelmente a tocar guitarra por aí.
Miguel estacou, olhou pensativamente para mim e depois contou-me
uma história sobre o pai. Certa vez em que esteve doente mais de um mês,
teve de vender o pequeno barco que usava no rio Minho todos os fins de
semana. Nunca mais comprou outro. Tinha dinheiro suficiente para isso,
mas nunca o fez. Quando Miguel lhe perguntou porquê, não respondeu.
Durante um ano, não lhe deu resposta. E depois, certo dia, a despropósito,
chamou o rapaz à parte e disse: «Não comprei outro barco, porque, para ser
sincero, nunca gostei de pescar.»
A história parecia importante para Miguel:
– O António é tal qual o meu pai.
– Em que sentido?
– Não sei, é. Não sei explicar. Esperam. Gritam. Depois, esperam um
pouco mais. Não confiam nas pessoas. Querem fazer tudo sozinhos, porque
acham que não podem contar com os outros.
– E a sua mãe?
– A minha mãe… ainda é viva. É como um castelo. Fria, mas poderosa.
Com salas secretas, e masmorras, e grandes fogos acesos que nunca são
suficientes. E depois, outras vezes, é como uma menina. Não faz sentido.
Ela deixa-me confuso. – Encolheu os ombros. – Desculpe. Estou a falar de
mais.
– Gosto de o ouvir falar – confessei. – Embora também goste quando
fica calado.
– O Professor diz coisas que as outras pessoas não dizem – observou.
– Livrei-me do meu censor durante a guerra – respondi.
– Qual guerra?
– Há sempre uma guerra. Em abono da verdade, há uma a decorrer neste
momento. Mas é uma guerra estranha, porque nem o inimigo sabe que está
a lutar. É uma coisa que só um louco seria capaz de inventar.
Miguel encolheu os ombros. Decerto achar-me-ia doido, mas não creio
que se importasse. No fundo, julgo que até gostava de mim por causa disso.
O restaurante que Miguel descobrira, La Coruña, ficava na Calle de la
Dama, mesmo em frente do Convento de Santa Teresa, uma fortaleza de
pedra a brilhar como ouro na luz noturna. Lembrou-me outro dos sonhos
que costumava ter acordado.
– Sansão derrubou o edifício que o aprisionava – disse a Miguel. –
Deitou-o completamente por terra.
Miguel anuiu, enquanto abria a porta do restaurante, dando-me
passagem. Não fazia a menor ideia do que eu estava a dizer.
– A questão – continuei – é que ele conseguia ver a sua prisão. É
possível destruir aquilo que vemos. Mas eu não vejo nada. Está
disseminado pelo meu corpo, por todos os nossos corpos.
– Dos personas – anunciou Miguel ao chefe de mesa no seu espanhol
com sotaque português.
Ele levou-nos até uma mesa junto a duas janelas que davam para um
jardim. Diante de uma palmeira alta via-se um renque de oleandros. Atrás
da palmeira, trepando por uma parede ao fundo, uma buganvília vermelha
começava a florescer.
Eu estava num daqueles estados de espírito em que não se consegue
deixar passar nada que pareça significativo.
– Invisíveis – expliquei a Miguel.
– O quê?
– Todos os meus inimigos.
– Exceto o meu filho – disse ele, assentindo com a cabeça.
Concordei. Mas, de repente, senti uma tristeza indizível, como se tivesse
saudades de um país fora do meu alcance. Apetecia-me desaparecer outra
vez.
– Peça o vinho – disse eu.
– Champanhe – corrigiu ele. – Estamos a celebrar.
– Mas que diabo temos nós para celebrar?
– Para começar, fugimos de Portugal. E depois… – Estendeu a mão e
segurou na minha.
O coração sobressaltou-se-me no peito, mas a nossa ligação acabou por
me deixar ainda mais triste; era temporária e nunca seria suficiente.
– Por outro lado – continuou –, conhecemo-nos. Eu sempre o quis
conhecer. Todas as histórias que o António me contava… – Apertou-me a
mão uma vez, depois recostou-se e começou a barrar o pão com manteiga. –
O mais importante de tudo é que estamos a beber champanhe porque o
António berrou comigo… berrou mesmo, com toda a força. É a primeira
vez que o faz desde que começámos a viagem.
– E isso é bom?
– Muito bom. Não o conhece como eu. Ele tem de cuspir aquela raiva
toda cá para fora. Nessa altura, poderei tentar falar com ele. Terei outra
oportunidade. É tal qual o meu pai.
– Está a esquecer-se de uma coisa – fiz-lhe notar. – Pessoas novas com
uma sentença de morte ficam tão enraivecidas que, por vezes, não a
conseguem cuspir toda. São poços sem fundo.
20
Voltámos para o hotel por volta das onze da noite, embriagados.
Perguntámos na receção se António já tinha voltado e informaram-nos de
que se encontrava no quarto.
Parei diante da porta. N.° 17. Tinha as luzes apagadas.
Miguel abanou a cabeça.
– E se ele acordar durante a noite? – perguntei.
Miguel abriu a porta do nosso quarto e fez-me sinal para entrar.
De duche tomado, meteu-se na cama comigo. Eu estava quase a dormir
e senti-lhe o corpo quente e os pelos das pernas suaves. Era bom estar na
cama com um homem. Enrosquei-me nele como num ninho. Quando estava
quase a regressar à terra dos sonhos, ele meteu-me na boca e, uns minutos
depois, pôs-me um preservativo e encostou-se contra o meu sexo.
– Era este o favor que lhe queria pedir… faça-o com muito jeito.
Passei-lhe o braço em volta da anca e senti-lhe o coração a bater com
força contra o meu peito. Mas o pénis dele estava do tamanho de uma
bolota.
Ainda um pouco bêbedo, eu não conseguia falar. Portanto, descansei um
momento.
– Porque é que estamos a fazer isto? – murmurei, ao cabo de uns
instantes.
– Porque eu quero.
– Mas eu só quero fazer o que lhe der prazer. – Passei a mão sobre o
peito dele, dei-lhe um beijo no alto da cabeça e cheirei-lhe o perfume.
– Eu quero mesmo – repetiu.
No momento em que eu já estava completamente dentro dele, atirou a
cabeça para trás e respirou profundamente. Achei que ele fosse desmaiar de
dor e tive medo de me mexer.
– Deixe-me sair de dentro de si – pedi-lhe, acrescentando, como se me
dirigisse a todos os homens que conheci e que gostavam de expressar as
suas frustrações na cama: – O sexo não é para provocar sofrimento.
Fui à casa de banho e abri a torneira de água quente. Deixei correr um
pouco sobre uma toalha de mãos. Olhei-me fixamente ao espelho. Teria tido
sempre este ar de velho? O cabelo rareava mesmo no meio da cabeça.
«Drogado, deprimido, praticamente impotente e com um corte à frei Tuck»,
murmurei para mim próprio. «Os últimos cinco anos deste século vão ser do
caraças!»
Voltei a trepar para a cama e pressionei a toalha contra o ânus de
Miguel. Ele sobressaltou-se, fugindo à toalha, mas depois reaproximou-se
lentamente, absorvendo aquele calor húmido. Esfreguei-lhe as pernas com a
mão livre.
– Nunca mais faça aquilo que não o excita realmente – pedi-lhe. – O seu
corpo é sagrado. Aquilo que para uns é uma bênção, para outros é um
crime. As pessoas têm naturezas diferentes.
Ele pôs-se a chorar como um bebé.

– Mas o que lhe passou pela cabeça? – perguntei na manhã seguinte,


vendo-o erguer-se a custo.
– Estava bêbedo – respondeu. – O champanhe tem um efeito estranho
em mim.
– Não, não foi isso. O Miguel tem tantos segredos.
Ele encolheu os ombros e descemos para o pequeno-almoço. António já
tinha comido e acercou-se de nós no átrio de entrada, já com as malas
feitas.
– Esta cidade é uma merda – disse em inglês.
– Então?
– Importam-se se formos indo já?
– Acho que não. – Olhei para Miguel.
– Por mim tudo bem – assentiu ele.
– Vamos só tomar o pequeno-almoço. Acompanha-nos.
O rececionista ficou a tomar conta da mala dele e dirigimo-nos para a
sala de jantar. António sentou-se voltado para a janela e pôs-se a contemplar
a paisagem.
– Tens ensaiado? – perguntei-lhe.
Fez que sim com a cabeça.
Miguel emborcou o café e devorou o pão com manteiga e doce de fruta.
– Vou fazer a mala – anunciou, levando um cigarro aos lábios e
levantando-se.
O rapaz inclinou-se para mim.
– Conseguiste arrancar-lhe mais alguma coisa?
– Não estou a tentar arrancar-lhe nada – respondi.
– Mas o que é que ele disse?
– Nada.
– Alguma coisa deve ter dito.
– Disse que o pai dele se parecia bastante contigo.
António fez uma expressão incrédula.
– O avô Zé?
– Parece que sim.
– Esse velho rabugento tinha um parafuso a menos.
– Porquê?
– Porque sim. – Desviou o olhar durante uns momentos. – Era originário
da Galiza. É daí que vem o nosso sangue celta. Até sabia tocar gaita de
foles galega. Mas, depois da trombose, ficou disforme, com um olho
descaído e constantemente vermelho. O outro estava sempre parcialmente
fechado. Parecia o Corcunda de Notre Dame.
Fiz menção de lhe dizer «Não sejas mau, António. A doença faz-nos
coisas terríveis», mas calei-me a tempo e assenti com a cabeça.
– Nem sequer falava português. Falava em galego comigo. Eu não
percebia uma palavra. Que doido!
– Eu também não falo português. Isso faz de mim louco?
– Tu falas português. Dás erros, claro, mas falas.
– Bom, deixa. Ouve, quero falar-te sobre aquilo que me disseste ontem.
Sobre conseguires avançar mais depressa com um professor especializado.
Queria só dizer…
Ia dizer-lhe que íamos a Paris para lhe conseguir uma audição com José
Luis Landero, o famoso professor e virtuoso que ele merecia, mas ele
interrompeu-me.
– Não quero falar sobre isso − replicou.
– Mas temos de falar.
– Não quero. – Levantou-se. – Dá-me as chaves do carro, que eu vou
começando a meter as malas no porta-bagagens. – Estendeu a mão, como
quem se está nas tintas.
– O que disseste era verdade.
– Não era, não.
– Era, pois. A forma como o disseste é que foi desnecessariamente
cruel. Falaremos sobre isso noutra altura, se for necessário, mas o que tu
disseste é verdade. Tenho sido egoísta. Já sei há algum tempo que não tenho
mais nada para te ensinar, mas, ainda assim, continuei a ter-te como aluno.
E isso não está certo.
– Mas o Pedro também não conseguia ensinar-me mais nada – declarou.
– Pois não, mas há outras pessoas.
– No Porto, não.
– Não, no Porto não. Mas…
– Nem em Lisboa.
– O mundo é maior do que Portugal – observei.
– Não quero sair de Portugal.
– Já saíste. Estamos em Espanha.

Não cheguei a ver nenhuma das relíquias de Santa Teresa. Às nove e


meia, estávamos numa estrada poeirenta, em direção ao Sol nascente e, às
dez, já acelerávamos a cento e vinte quilómetros à hora na autoestrada para
Madrid. Pensei que guiar manteria António ocupado, por isso passei-lhe o
volante. Via-se que estava entusiasmado, mas não me deu a satisfação de o
admitir.
A meio caminho de Madrid, a paisagem muda, transfigurando-se em
montanhas cobertas de corpos verdes e ancas largas reclinadas ao sol. A
cidade surge logo depois. Descemos os flancos das montanhas,
atravessamos uns quilómetros de arbustos rasteiros, passamos uns subúrbios
que lembram Phoenix ou Santa Fe e entramos no tráfego que se escoa
cidade adentro. Depois de um grande parque com o jardim zoológico,
erguem-se, à nossa frente, no horizonte, as torres de tijolo.
Passei para o volante e pedi a António que me fosse dando indicações
até ao Hotel Cortezo, que escolhera por ter garagem.
Direita, esquerda, direita, outra vez direita, não, aí não, ali, ali!!!
Já dá para perceber a conversa, Carlos. O tipo que deixa toda a gente
stressada. Eu lá ia manobrando, fugindo e de novo mergulhando no trânsito,
esperando por camiões estacionados em segunda fila, acelerando pelo
Alcalá acima, passando sob a Puerta del Sol, até que encontrei o nosso
hotel. Um táxi teria levado dez minutos; eu demorei quarenta e cinco. Tinha
a camisa manchada nas axilas, e as costas coladas ao assento, mas sentia-
me entusiasmado por estar numa grande cidade. Apetecia-me caminhar
depressa, ir às compras em lojas caras, percorrer os largos boulevards
orlados de árvores. Apetecia-me comer polvo grelhado e beber horchata de
chufa em cafés apinhados.
António anunciou que ia ao Prado. De repente, apetecia-me mostrar-lhe
tanta coisa. Queria estar a seu lado a apreciar as pinturas de Ribera. Passaria
o braço sobre o ombro dele e observaríamos as pinceladas que formavam a
cavidade ensombrada sob as clavículas de S. Jerónimo, aproximar-nos-
íamos para ver de perto o reflexo do verniz do século XVII sobre os seus
olhos repassados de fé. O rapaz esboçaria o sorriso da descoberta.
«Incrível», murmuraria. «Simplesmente incrível.» Queria vê-lo pasmado
perante a brancura de marfim de Jesus no Cristo Morto Amparado por Um
Anjo, de Cano. E espreitar por cima do seu ombro enquanto estudasse o
Autorretrato de Ticiano.
Sentindo por certo todos aqueles devaneios a fazer ricochete dentro de
mim, entrou a matar.
– Quero ver o museu sozinho – disse.
Aterrou a pés juntos na última palavra.
Fui para o meu quarto e tentei soltar as ligaduras que me cingiam o
peito com dois calmantes. Não o deveria ter feito, mas desculpei-me
socorrendo-me do velho reduto do drogado: «É só desta vez.» Ainda pensei
em regressar ao Porto de avião. «Não, quando conseguir respirar de novo,
sentar-me-ei junto ao lago artificial do Parque do Retiro a sentir pena de
mim próprio. Dormirei na relva e, se alguém me roubar, melhor.»
Propus a Miguel uma ida ao Parque. Ele passou-me a mão pelo ombro e
foi tomar um duche.
Tinha-me esquecido até que ponto os calmantes me tornavam esquivo.
Esgueirei-me do quarto como um ladrão profissional. Ele nada ouviu.
Dirigindo-me para leste em Atocha, imaginei António no Prado, entre as
obras de El Greco. Um miúdo aterrorizado rodeado por uma hagiologia em
azul e preto.
Lembro-me de o meu irmão me dizer que, em Madrid, quando El Greco
estava no auge, os cemitérios transbordavam de vítimas de peste. Morreu
meio milhão de pessoas, só no surto entre 1596 e 1602. Contou-me que os
críticos achavam que a brancura esquálida das figuras de El Greco e as suas
feições pálidas simbolizavam o enfraquecimento que se instalara na
aristocracia espanhola. Talvez fosse verdade. Certo é que El Greco estava
rodeado de uma miséria que tudo destruía. Quem são as esqueléticas figuras
iluminadas pelo fogo que se veem nos quadros senão os seus vizinhos de
Toledo? E o seu S. Francisco? Não será ele uma vítima da peste
encapuçada?
Chegado à Praça Imperador Carlos V, perguntava a mim próprio em
quem trabalharia hoje o velho mestre.
Não estaria a pintar o meu António?

Tal como previra, adormeci no parque – num relvado fresco, ao lado de


uma lata vazia de 7-Up e à sombra de um castanheiro onde alguém gravara
as iniciais AQ e RZ. Ninguém me roubou. Ninguém olhou sequer para
mim. Conseguira desaparecer de vista.
Acordei com uma grande dor de cabeça. O sol, que já ia alto no céu a
ocidente, toldou-me os olhos de lágrimas. Bebi duas horchatas num café
com cadeiras metalizadas, enquanto via uns miúdos de brincos a andar de
patins em linha frente ao lago. Pedi ao empregado que me trouxesse uma
aspirina. Tinha um caroço com mau aspeto debaixo da orelha e coxeava.
Trouxe-me duas e um sorriso. Comi um pacote de batatas fritas
manufaturadas em Bilbao, mas soube-me a pouco, pelo que pedi outro.
Uma pedinte aproximou-se e espetou-me a mão imunda debaixo do nariz.
Dei-lhe uma moeda de 100 pesetas. Ela continuou com a mão esticada e
acabei deixando-lhe o resto do pacote de batatas fritas. Resmungou
qualquer coisa sobre Deus, mas não percebi. O empregado escorraçou-a.
Disse-me qualquer coisa. Também não percebi.
Era um alívio não entender tudo o que os outros diziam. Esquecera-me
de como era bom manter a distância, já to tinha dito?
No caminho de regresso ao hotel, parei num restaurante para comer
decentemente. Fiquei de pé ao balcão, enquanto dois homens ao meu lado
falavam:
ou de uma queda grave no mercado de ações;
ou de uma senhora a quem tinham roubado a carteira de couro;
ou de um bolso esburacado.
O meu espanhol parecia desintegrar-se. Comi polvo grelhado com
pimentos, cogumelos salteados com dentes de alho inteiros e uma sanduíche
de presunto. O empregado, de camisa branca, laço preto e bigode, estava
admirado com o meu apetite. Parecia o retrato de Marte, de Velásquez. Ou
talvez não se parecesse nada com ele. Olhei em volta pela primeira vez.
Candelabros de cristal pendiam de um teto com a tinta a descascar. Lírios
murchos cor-de-laranja marcavam o centro das mesas de madeira. O chão
era de mosaico preto.
Regressei à minha sanduíche. Pedi chá.
– Chá? – pasmou-se o empregado.
Apontei para mim.
– Inglês – expliquei. – Yo soy inglés.
Sorriu. Tinha um dente de ouro.
Enquanto esguichava água a ferver da máquina expresso para um
pequeno bule branco, perguntei-lhe se, por acaso, não teria água inglesa
para fazer o chá.
– Sempre sabe melhor com água inglesa – expliquei. – Siempre sabe
mejor con agua inglesa.
Ele riu-se.
A refeição ficou-me em 32 dólares. Pouco importava, era reconfortante
armar-me em idiota numa grande cidade onde não tinha a certeza de nada.
Passei o resto do dia a socializar com os donos das lojas, falando pelos
cotovelos com o meu sotaque americano. Numa pequena loja no bairro
Chueca, comprei uma camisa de pirata azul-turquesa, do Equador; um
colete às riscas vermelho, amarelo, laranja e cor-de-rosa, da Guatemala; e
um chapéu de lã castanha com lamas brancos a toda a volta, tricotado à mão
na Bolívia. Na porta ao lado, comprei uma T-shirt que dizia Viva El Rey!
Viva El Preservativo! em letras rosa-choque sobre um fundo azul.
Sim, estava a fazer compras na zona gay da cidade. E sim, Madrid tem
vindo a ficar mais gay nos últimos anos. O cabelo louro parecia estar na
moda. Contei cinco membros da congregação de cabelo louro com raízes
pretas ao longo de um percurso de três quarteirões na Hortaleza. Pelos
vistos, mal saíam, disparados, de um armário espanhol viravam
escandinavos.
Na Casa del Libro, na Gran Vía, comprei para Pedro um livro de contos
do escritor uruguaio Horacio Quiroga, La Gallina Degollada. «Histórias
psicológicas de suspense», lia-se na sinopse. Mesmo do outro lado da rua
havia uma loja de artigos desportivos, onde comprei para Salgueiro umas
calças de fato de treino azuis, a condizer com o roupão da mulher. E, numa
ourivesaria mesmo ao lado da Plaza Mayor, comprei uns brincos compridos
de filigrana para Fiama.
Ao fim da tarde, sentei-me de novo no Parque do Retiro e bebi mais
horchata. Começava a ser capaz de pensar e até descobri que conseguia
fazer cálculos de cabeça, pelo que engoli mais dois calmantes. Saí do
parque pelo lado norte e fui dar a uma rua com vários restaurantes escuros e
bafientos, com presuntos a pender do teto. Não havia dúvida de que
choviam carcaças de porcos em Madrid.
Toda a gente menos eu estava a petiscar, porque já eram oito e meia. De
pé junto ao balcão, comi…
polvo com a consistência de borracha;
espinafres cozidos que sabiam a papel higiénico molhado;
batatas e pepinos que pareciam couro mole e oleoso a passear na minha
boca.
Havia demasiado barulho no restaurante. Eu ia apontando para aquilo
que queria, enquanto me questionava sobre o que se passaria para a comida
estar tão insípida e borrachosa. Ao cabo de algum tempo, apercebi-me de
que não sentia o sabor de nada. O chá era água quente, e nem quando lhe
juntei dois pacotes de açúcar a sensação desapareceu.
Arrastei-me até um café com esplanada no Paseo de la Castellana, com
cadeiras metálicas vermelhas e amarelas. Tinha-se levantado um vento frio
sabe Deus donde. Vesti a camisa de pirata e o colete.
O Sol pôs-se no horizonte, continuei a beber chá, as mãos no meu gorro
boliviano de lã.
Sentia-me feliz.
Dei comigo a pensar outra vez por que diabo tinha eu deixado as drogas.
Um cavalheiro idoso, alto e com ar distinto, vestindo um colete cinzento
de tecido espinhado e uma camisa amarelo-clara aproximou-se. Trazia o
cabelo penteado numa espécie de remoinho de prata. Tinha um queixo
severo e olhar firme. Fez-me lembrar o retrato do Doge Leonardo Loredan,
de Bellini.
– Precisa de um sítio para se hospedar? – perguntou em espanhol.
– Não, estou bem – respondi.
– Americano?
Assenti.
– Posso sentar-me? – Falava um inglês carregado.
De todas as vezes que visitara Madrid, esta era a primeira em que
alguém se convidava a sentar-se ao pé de mim. Perguntei-me se estaria
enfeitiçado.
– Precisa de dinheiro? – sussurrou, inclinando-se sobre a mesa.
Eis o que ouvi: «Jew neet môunei.»17 Portanto, ri-me.
– Não, este judeu está mesmo bem – repliquei. Ele ergueu as
sobrancelhas e contemplou-me com gravidade, por isso acrescentei,
delicadamente: – Tenho um bom quarto de hotel. Obrigado.
– Desculpe – pediu. – Percebi mal. Você está com um aspeto de… – Fez
um gracioso gesto europeu com a mão, que poderia ser interpretado de mil
maneiras.
Deduzi que queria dizer que estava com um aspeto deplorável. Mas
precisava de ter a certeza.
– Estou com aspeto de quê? – perguntei.
– Jew está com aspeto de… de não dormiu lá muito bem.
Achei que era capaz de ser divertido ver-me.
– Por acaso não tem consigo um espelho? – perguntei.
– Desculpe…
– Tiene espejo?
– Não, lamento.
Olhou-me fixamente. O pé bateu no meu.
– Vai ficar uns dias em Madrid? – perguntou-me.
– Talvez, não sei.
Voltou a bater-me no pé.
Pelos vistos, era uma técnica de engate à espanhola, porque a seguir
acrescentou:
– Se não se importar, gostava de lhe mostrar a cidade. É uma cidade
demasiado grande para uma pessoa sozinha.
Arrastei os pés para trás de modo a ficarem debaixo da cadeira e
inclinei-me para ele.
– Você parece-me um homem muito decente. E gostaria de pensar que
eu também sou. Mas tenho de lhe dizer que não posso dormir consigo.
– Eu só quero olhar para si – sussurrou. – Ouça, sem lhe tocar.
– O que quer dizer com isso?
Apontou para os olhos e sorriu com doçura. Tinha dentes tortos e
amarelos. Os homens americanos já não têm dentes manchados. É uma
coisa que admiro nos europeus.
– Podemos ficar só aqui a conversar? – perguntou. – E eu deixo que os
meus olhos se passeiem sobre si.
Assenti. Chamava-se Juan. Emigrara para Inglaterra nos anos cinquenta,
fora carpinteiro numa grande empresa e agora estava reformado. Tinha uma
filha, artista, que vivia em Barcelona. Falava com serenidade e elegância
sobre ela, e eu gostava do seu sotaque. Que grande prazer ouvir um homem
falar de outro ser humano como se fosse a melhor prenda que recebera!

17
Trata-se de um jogo de palavras baseado no sotaque do desconhecido. Ele pergunta em inglês: You
need money?, mas com o sotaque espanhol, o americano pensa que ele diz: O judeu precisa de
dinheiro? (N. da T.)
21
Quando regressei ao hotel, dei com Miguel deitado de barriga para
baixo, o nariz esborrachado na almofada. Ressonava. Descalcei os sapatos e
fiquei um minuto sentado, à espera de que me passasse uma tontura súbita.
A seguir, apaguei e dormi até à manhã do dia seguinte.
– Ontem deixou-me aqui completamente sozinho – disse-me Miguel,
estava eu deitado, a fingir que ainda não acordara.
Mantive os olhos fechados. Era mais seguro.
– Fiquei à espera. Julguei que tinha saído por uns minutos só para ir
buscar qualquer coisa. Enfim, sabonete, cigarros, qualquer coisa.
– Eu não fumo – murmurei.
– O quê?
– Não fumo. Não poderia ter ido comprar tabaco.
Silêncio.
– Não percebo porque é que me deixou – disse, com uma nota de
infelicidade na voz.
– Você é mesmo teimoso – repliquei, soltando um suspiro teatral. Ele
permaneceu calado. Abri um olho. Miguel estava de pé diante da minha
cama, com uma expressão triste, fechada. – Não tente culpabilizar-me.
Miguel não estava habituado a psicologias baratas.
– De que raio está a falar? – perguntou.
Bati com a mão na cama, convidando-o a sentar-se.
Ele obedeceu e ficou a olhar-me fixamente, como uma criança magoada.
«Não me posso esquecer de que ainda o habita um miúdo humilhado por
um pai incolor.»
– Onde está o nosso rapaz? – perguntei.
– Saiu. De manhã cedo já estava a tocar guitarra. Aquela melodia que
nos ensinou. E depois…
– Que lhe ensinou – interrompi.
– O quê?
– Ele esteve a ensinar-lhe a si, não a nós.
– Ou isso. Não o ouviu tocar esta manhã?
– Não.
– Acho que o melhor que tem a fazer é tomar um banho – avançou ele.
– Cheiro mal?
– Sim e parece coberto de poeira.
Quando me levantei, o quarto pôs-se a rodar. Agarrei-me à parede,
nauseado. Calmantes a mais, claro.
– Que se passa? – perguntou.
– Nada. Será que pode ficar aqui enquanto eu tomo um banho?
Fez que sim com a cabeça.
– Não vai fugir por vingança?
– Não.
Abri a torneira e esperei que saísse água quente. Aproximei-me de novo
de Miguel. Gostava de que ele me visse nu.
– Esta viagem não está a ser nada daquilo que eu esperava – atrevi-me a
confessar, protegido pelo modo como me contemplou.
– Nada é aquilo que se espera – observou.
– Também não é preciso ser tão radical.
– Dê-me um exemplo em contrário.
Tentei refletir. Fiquei imenso tempo ali, de pé na moldura da porta.
Percebi que o único exemplo possível era a morte. «A morte de quem
amamos assemelha-se em muito àquilo que imaginamos», pensei.
Encaminhei-me para a casa de banho sem uma palavra.

Enquanto me enxugava, Miguel quis saber o que me apetecia fazer, e eu


disse-lhe que gostava de ir a um museu.
– Não vai querer que eu o acompanhe – declarou. – Nunca fui a um
museu na vida.
– Não quer ir, é isso?
– Não, quero, sim, mas… mas talvez não me sinta à vontade.
– Não há qualquer razão para que não se sinta à vontade. Entramos.
Vemos arte. Troçamos de alguns quadros. Admiramos outros. De vez em
quando, tentamos perceber porque é que gostamos daquilo de que
gostamos. Lembramo-nos de vivências que tivemos. Olhamos para os
outros visitantes. Depois, vamos para casa.
Ele aceitou a minha explicação com um aceno de cabeça. Fomos visitar
o Museu Thyssen-Bornemisza. Nunca lá tinha estado.
Quando passámos as palmeiras à frente da entrada, comecei a desejar
que estivesses lá connosco, Carlos. Não te parece uma pena nunca termos
feito as peregrinações artísticas que havíamos planeado? Ou já as apagaste
da memória? Será que as minhas palavras te chegam sequer às mãos?
Talvez esta carta já tenha ido para o caixote do lixo e esta página esteja
coberta de borras de café.
Num qualquer momento da sua vida, Miguel ficara com a ideia de que a
arte deveria ser uma tentativa de registar a aparência das coisas vistas a olho
nu. Passeou pelo museu por um tempo, sem nada dizer. Depois, diante do
Retrato de George Dyer num Espelho, de Francis Bacon, deixou escapar:
– Não percebo, pronto. – Abanou a cabeça, olhando-me. – Bem lhe
disse que não ia gostar de que eu o acompanhasse… não percebo nada de
nada do que aqui está.
– O que há para perceber? – perguntei, qual velho rabi. – É como lhe
disse… Olha. Vê coisas de que gosta. Faz troça de outras…
– Isto! Não percebo isto – exclamou, apontando para a tela, zangado.
Estudei o quadro com mais atenção. No quadro de Bacon, parece que o
próprio espaço foi esborratado. O corpo do retratado tenta reencontrar os
contornos, para se encaixar numa realidade distorcida. A face no espelho
está partida em dois.
– Porque é que é importante percebê-lo? – quis saber.
– Quero perceber o que representa. Quero compreender, raios!
– George Dyer. É um retrato dele. Pode ler no título. – Apontei para a
legenda.
Ele franziu o sobrolho e esfregou as faces, passando de seguida as mãos
pelo cabelo e penteando-o para trás num movimento brusco.
– Mas ninguém é assim – declarou.
No meu melhor português, expliquei-lhe a minha teoria sobre o espaço
distorcido, porque não sabia como traduzir to smudge. Miguel ouviu
atentamente, depois fitou-me, os olhos franzidos, como quem diz: «Não vou
nessa.»
Enquanto caminhávamos pelo museu, ia apontando quadros e ouvindo
as minhas teorias.
Diante de um Klee, pedi-lhe para imaginar uma casa de papel a ser
desdobrada.
– É sobre a simplicidade com que uma criança constrói uma casa com
papel amarelo e cor-de-laranja. Lembra-se de como era fazer isso? Lembra-
se do cheiro e da textura pegajosa da cola? Daquelas tesouras minúsculas
que os professores nos davam e que eram tão pouco afiadas que mal
conseguiam cortar papel?
Miguel esfregou as faces e encolheu os ombros.
– Não tinha a sensação de que tudo era bonito, alegre e cheio de cor?
– Talvez – respondeu, cético, mas dessa volta senti que me estava a
fazer entender. Parou diante do Delicada Tensão, de Kandinsky.
– E este? – perguntou.
– Diga-me o que vê – respondi.
– Riscas vermelhas e verdes.
Abanei a cabeça.
– Não, isso não chega. Diga-me o que imagina estar ali.
– Não sei.
– Tente.
– No lado direito, vejo uma bruxa a apontar com o braço esquerdo para
um coelho de pernas para o ar. Vê os olhos? – Aproximou-se do quadro e
indicou uma forma do lado esquerdo com braços e pernas esticados para
cima.
– Estou a vê-los – concordei. – O que está a bruxa a fazer… ao coelho?
– A envenená-lo. – Voltou a olhar fixamente para o Kandinsky,
humedecendo os lábios. – Está a disparar veneno contra ele. – Olhou para
mim com uma expressão assustada. – E a passar-lhe uma doença de que ele
nunca se vai conseguir curar.
Depois disso não falámos muito, mas alongámo-nos mais duas horas no
museu e acabei por ter de esperar por ele na cafetaria. Comprei um postal
com o autorretrato de Lucien Freud e enderecei-o à minha mãe, porque era
um dos seus pintores preferidos. Escrevi: «Estou a descansar bastante em
Madrid. A comida é deliciosa. Espero que em Nova Iorque o tempo não
esteja muito quente e húmido.» Delicioso e húmido eram os adjetivos
preferidos da minha mãe. Queria ter a certeza de que ela sabia que não me
esquecera da cadência do seu discurso.
Mal se sentou à mesa, Miguel fumou um cigarro e emborcou um café
duplo. Também ele comprara alguns postais. Nas costas de um alegre
quadro de Klee, começou a escrever à ex-mulher.
– Vocês estão divorciados e mesmo assim ainda lhe escreve quando
viaja? – perguntei.
– Bom, numa viagem destas… Ela está preocupada com o António.
Também já lhe telefonei duas vezes.
– Aposto que foi um marido obediente. Quero dizer, apesar dos «casos».
Ou talvez por causa deles. E um filho obediente.
– Obediente? – perguntou ele.
– Fez o que o seu pai e a sua mãe lhe pediram. E o mesmo se passou
com a sua mulher. É provável que não tenha mostrado grande entusiasmo,
mas cumpriu: as tarefas domésticas, os trabalhos de casa, os deveres
maritais. Sempre calou o seu ressentimento e esforçou-se por esconder os
casos e tudo aquilo que pudesse dar azo a vergonha ou dúvida.
– Tentei ser bem-educado e consciencioso, se é isso que quer dizer. É
crime?
– Não, mas nunca lhe apeteceu livrar-se desse fardo de ser tão certinho?
Quero dizer, quando é que achou que poderia fazer aquilo que queria? Na
próxima encarnação? Ouça, Miguel, não há próxima encarnação.
– Acho que o meu pai tinha vergonha de mim – disse, ao cabo de uns
momentos de reflexão, durante os quais acendera outro cigarro.
– Como assim?
– Eu não era como ele.
– Não?
– Não. – Abanou a cabeça e reprimiu um sorriso. – Uma vez andámos
ao soco. Parti-lhe o nariz.
Voltou a concentrar-se no postal. Terminada a tarefa, pôs-se a olhar para
mim como quem quer dizer qualquer coisa importante, mas sem se atrever.
– O que foi? – perguntei.
– Acho que estou a deitar tudo a perder. Quero dizer, estando aqui.
Tinha de escolher. E escolhi vir convosco. O António é mais importante do
que qualquer outra coisa.
– Mais importante até do que o seu medo? – perguntei.
– Sim – anuiu, pegando-me na mão. – Importa-se de esperar só mais um
pouco? Há alguns quadros que quero voltar a ver.
– Não queria que o Professor confortasse o António porque tinha ciúmes
do seu à-vontade com ele – explicou-me cerca de uma hora depois, a
caminho do hotel. − Percebi que era isso que tinha sentido diante daquele
quadro do Francis Bacon, o esborratado. Aquele quadro é sobre o ciúme…
um homem que se destrói por causa dele.
– Talvez seja.
– Não, é mesmo – insistiu ele.
Assenti.
Miguel queria confessar-se, mas, ao cabo de alguns minutos a tentar
traduzir sentimentos em palavras, abanou a cabeça e disse que não tinha
importância. Enfiou as mãos nos bolsos e foi a dar pontapés nas pedras
durante quase um quilómetro pelo Alcalá acima em direção à Puerta del
Sol. Diante da estação de metropolitano Sevilla, onde tínhamos de virar à
esquerda para seguir para o hotel, deu-me o braço. As pessoas passavam
por nós como se estivessem cheias de pressa.
– Não consigo suportar a ideia de que ele vai morrer antes de mim. Não
sei o que farei se isso acontecer.
Que podia eu responder?
Deveria dizer-lhe que já ouvira tantas vezes aquela confissão
aterrorizada que deixara de me doer? Que os pais que sobreviviam aos
filhos se limitavam a arrastar-se pela vida, em direção ao próximo ano do
calendário, e depois ao próximo, e depois ao próximo, numa metamorfose
inversa, como borboletas que se transformassem em lagartas, rastejando
pelos dias?
Acabei por lhe dizer que compreendia. Ele aceitou generosamente essa
declaração com um assentimento de cabeça solidário, mas quem sabe se
interpretei bem o gesto? Ao fim e ao cabo, António não era realmente meu
filho. Não lhe mudara as fraldas, não lhe ensinara a apertar os atacadores
dos sapatos, não lhe falara dos grandes mistérios da vida.
Miguel disse que ainda não podia correr o risco de se encontrar com
António no hotel. Levei-o à Pastelaria de Cebada, na esquina da Sevilha
com a Arlabán. Cheirava a levedura quente. Ao lado da gigantesca caixa
registadora de metal via-se uma vitrina com tartes de fruta e bolos com
coberturas coloridas e, atrás do balcão, senhoras de rosto ansioso e aventais
cor-de-rosa com rendas brancas serviam os clientes. Sentámo-nos a uma
mesa redonda de madeira, de frente para a montra, enquanto ambos
observávamos as pessoas passarem apressadas. Por momentos, desejei
ardentemente ser uma delas.
– Estou no limite – confessou Miguel, segurando a cabeça entre as
mãos.
Uma jovem empregada com um laço vermelho na cabeça acercou-se de
nós. Pedi um brandy para Miguel e uma horchata para mim.
– Não vendemos bebidas alcoólicas – anunciou.
– O dono deve ter whisky ou outra coisa qualquer. – Estendi-lhe uma
nota de mil pesetas. – O que conseguir encontrar. Es la hora de la
desesperación – tentei dizer.
Ela encolheu os ombros.
– Vou ver o que há.
Miguel começou a chorar em silêncio. Todo ele tremia.
De repente, fez um som de quem se engasga e limpou a boca e o nariz à
manga do casaco. Tinha os olhos tão vermelhos que pareciam sangrar.
Tornou a pôr a cabeça entre as mãos. Nesse momento, a empregada voltou
com a minha horchata e um líquido cor de âmbar num copo alto.
– Whisky – disse.
Dei-o a beber a Miguel. Por baixo da mesa, ele pôs-me a mão no joelho
como se estivesse em risco de cair. Pousei a minha mão sobre a dele e
apertei-lha.
O toque faz-nos recordar. Deixei o presente esgueirar-se devagarinho
dali para fora e senti os meus dedos…
a massajar as costas da irmã de Henry, o Colosso, fora do seu quarto de
hospital;
a pentear o meu irmão, para que, quando a enfermeira lhe viesse mudar
o plasma, ele não se sentir envergonhado;
a agarrar a minha mãe pelo braço da gabardina enquanto a guiava por
Central Park West em direção ao apartamento do meu irmão, para fazermos
um inventário dos seus bens e distribuí-los por amigos.
Quando já se viveu o suficiente, perdem-se as fronteiras. Estamos todos
ligados pela memória.

Batemos à porta do quarto de António, mas ele não estava. Sentei-me na


minha cama e Miguel deixou-se ficar de pé, à janela. Pus-me a ver as
notícias na televisão:
corrupção aos mais altos níveis no governo de Madrid;
guerra na Bósnia;
boutiques de Barbra Streisand a abrir em Los Angeles e Nova Iorque.
Deixei-me adormecer. De súbito, dei por mim deitado de lado e, uns
momentos depois, senti Miguel aninhar-se a mim e a sua respiração quente
no meu pescoço. Pensei que tinha adormecido.
– O sexo é uma coisa estranha – murmurou ele.
– Porquê? – perguntei.
Ele sentou-se na cama e massajou-me os ombros, como se me quisesse
aquecer.
– O Professor passou por muito, não foi?
Assenti. Pegou-me nas mãos e levou-as aos lábios.
– Quanto mais envelheço, mais preciso de carinho – disse ele. – Será
possível?
– Acho que vamos precisando de coisas diferentes à medida que
envelhecemos.
Beijou-me as pontas dos dedos, uma por uma.
– Sinto-me estranho quando estou consigo – murmurou.
– Porquê?
– Frágil – respondeu. – Como se tivesse deixado uma janela aberta e
não soubesse o que por lá entrará.
Levantou-se e foi fumar para perto da janela. Deixei-me ficar deitado
contemplando-o por momentos, sentindo-me liberto do tempo, como se só
aquele quarto restasse no planeta. Depois abri o Life With a Star, apoiei-o
no peito e pus-me a ler.
Um pouco mais tarde, quando a porta de António se abriu e fechou,
Miguel olhou para mim, alarmado, um bicho apanhado pelos faróis de um
carro a alta velocidade. Depois, tornou a espiar a rua.
– Quero tentar falar outra vez com o seu filho – anunciei, levantando-me
e vestindo-me.
Ele encolheu os ombros, fingindo indiferença.
– Sou só eu – disse, enquanto batia à porta de António.
A porta abriu-se. O miúdo estava com um ar abatido e exausto.
– Posso entrar?
– Para quê?
– Só quero sentar-me ao pé de ti e pegar-te na mão.
– Prefiro que não o faças. Não neste momento.
– António – expliquei –, tenho a sensação de que não consigo trepar a
cerca que construíste à tua volta. Já não tenho a agilidade que em tempos
tive.
– Tenho de me proteger – disse ele.
– Tens? De mim? Porquê?
– Tenho e pronto.
– Mas porquê?
– Porque, se não o fizer, acabo por me zangar contigo. Acabo por te
dizer coisas cruéis.
– Posso só sentar-me, sem falar?
– Não.
Afastei-o e deixei-me cair aos pés da cama. Fechou a porta. Sorri-lhe.
– Agora já cá estou. Tarde de mais.
Estava a tentar ser engraçadinho. António castigou-me logo.
– Devias ter previsto – acusou.
– Previsto o quê?
– Que eu ia apanhar isto. É essa a razão por que estou tão zangado.
– Eu nem sequer sabia que andavas a dormir com alguém. Fiz questão
de te informar acerca do sexo seguro. Li-te a minha famosa lista de
preservativos vezes sem conta. Fiz-te uma cópia. Aposto que ainda a tens
na carteira!
– Não chega. Tinhas uma responsabilidade e não a cumpriste. De certa
maneira, isto é culpa tua.
– Disse-te uma vez que vi morrer demasiadas pessoas… pessoas boas…
para ser agora maltratado por ti. E estava a falar a sério – repliquei, em tom
de alerta.
– Então vai-te embora. Se não posso dizer o que quero, vai-te embora.
Mas eu não fui. Ele acercou-se da janela e pôs-se a olhar lá para fora.
– Quero que me prometas uma coisa – disse, olhando-me de súbito. – Se
chegar a esse ponto, envenenas-me.
– Se chegar a que ponto?
– Não te armes em parvo. Sabes muitíssimo bem do que estou a falar.
– Acho que sim. Mas quero ter a certeza de que nos entendemos.
Quando se envenena alguém, não há segundas oportunidades. Não vais
voltar da tumba com a guitarra elétrica do Jimi Hendrix pendurada ao
pescoço.
– Se estiver no hospital cheio dores e não houver qualquer hipótese, se
eu não aguentar mais, envenena-me. Quero que me prometas.
– Está bem.
– Preciso que me prometas. Preciso de ouvir uma promessa.
– Prometo que te enveneno.
Ele lançou as mãos ao ar e soltou um suspiro.
– Não acredito em ti. Não me estás a levar a sério.
– António, estou a levar-te muitíssimo a sério.
– Estás tão calmo.
– Queres que grite? Achas que ajuda?
– Talvez.
– António, ando a tomar doses cavalares de Valium à conta disto. Não
consigo gritar. Não consigo ter uma ereção. Não consigo sentir o sabor da
comida. Estou sob uma espessa armadura de químicos. Metade do tempo
nem consigo pensar.
– Então, digas o que disseres, não posso acreditar em ti. Não és tu. É só
uma droga a falar.
– Sou eu. Estou aqui. Camuflado, mas aqui.
Ele tornou a olhar pela janela. Eu contei-lhe uma história que nunca
ousara contar a ninguém.
– Tive um amigo chamado Carlo Foggia. Era o outro base da equipa de
basquetebol de que te falei. Pediu-me que lhe prometesse que o
envenenaria, se necessário. Recusei. Por isso, pediu a outro dos nossos
amigos, o Bob Jenkins, o tipo negro que era o nosso poste. Adiante. Facto é
que o Carlo adoeceu. Estava no Hospital Mount Sinai. Já não conseguia
engolir porque tinha feridas no esófago, e era demasiado doloroso.
Gargarejava uns batidos de leite viscosos com xilocaína para anestesiar a
garganta. O Percodan aliviava-lhe um pouco as dores, mas não o suficiente.
Não conseguia andar. Não conseguia ler. Portanto, queria partir. O Bob, que
prometera matá-lo, acobardou-se. Pensou que fosse capaz, mas à última
hora recuou. É mais difícil do que possas imaginar. Por isso, fi-lo eu.
– Fizeste?
– Fiz.
– Como?
– Certo dia, na pior fase, o Carlo pediu um calmante, mas não o
deixaram tomar porque a respiração estava já muito fraca. O médico
confessara-me que um Valium poderia matá-lo e sempre me questionei se o
teria dito de propósito, porque sabia que eu os tomava. Seja como for, nesse
dia, quando mais ninguém estava no quarto, segurei-lhe a cabeça entre as
mãos e perguntei-lhe se queria morrer. Ele disse que sim. Perguntei-lhe se
tinha a certeza, se era mesmo aquilo que desejava. «Por favor», respondeu-
me, cerrando os punhos. Ele não queria entrar em delírio, sabes. Era o que
mais o assustava. Por isso, dei-lhe quatro pastilhas de Valium à colher, uma
atrás da outra. Ele comeu-as com um sorriso na cara, como se fossem
chocolates. Quando acabou, pousou a cabeça na almofada e soltou um
suspiro. Agarrou-me na mão. Olhou-me bem nos olhos, como quem precisa
de se despedir, e disse: «Obrigado, salvaste-me a vida.» Era algo estranho
de se dizer, pensei na altura. Ainda não tinha grande experiência com o
sofrimento. Ficámos de mãos dadas.
»Entretanto, o pai e a mãe chegaram. Nesse momento, percebi porque
tinha de ser então. O pai precisava de regressar a Santa Fe porque sofria dos
pulmões e mal conseguia respirar em Nova Iorque. Os pais seguraram-lhe
ambos numa mão, eu segurei-lhe na outra. Queria pedir-lhes que se
despedissem. Queria gritar-lhes desesperadamente: «Digam-lhe agora que o
amam e que se hão de lembrar sempre dele.» Mas o Carlo e eu trocámos um
olhar, e ele abanou a cabeça. Disse-lhes que estava bem. O pai prometeu
voltar na semana seguinte, que não se preocupasse. O Carlo adormeceu. E
foi isso. Continuámos a segurar-lhe as mãos. Depois largámo-las e trocámos
umas frases sobre a viagem até ao Kennedy Airport de táxi e quanto poderia
custar. O Carlo parou de respirar. A mãe foi a primeira a dar por isso.
Entreolhámo-nos. O peito estava imóvel, sem subir nem descer. Ela levou
as costas da mão à boca do filho. Abanou a cabeça e fechou os olhos.
Ninguém gritou por uma enfermeira. Ninguém falou. Sabes, ele adormeceu
para sempre. Foram buscar o corpo e pediram autorização para uma
autópsia, alegando que qualquer descoberta poderia vir a ajudar outros
pacientes. Os pais acederam. Claro que um dos muitos testes que lhe
fizeram revelou que ele se conseguira apossar de Valium. Um tipo da
administração do Mount Sinai telefonou-me certo dia e acusou-me de ter
assassinado o Carlo. «O senhor era o único presente», declarou, dizendo
que iria enviar o caso para o Gabinete do Promotor de Justiça de Nova
Iorque. A princípio, pensei que fosse apenas uma ameaça para me assustar.
Mas depois recebi uma chamada do Gabinete do Promotor pedindo-me o
nome do meu advogado. Fiquei borrado de medo. A mãe do Carlo salvou a
situação. Disse a toda a gente que tinha sido ela a dar os comprimidos ao
filho. Não se atreveram a acusá-la. Ao amigo gay, que agira por amor, a
esse, estavam dispostos a levar a tribunal. Mas não a uma mãe. Ela
telefonou-me depois de tudo estar resolvido. Temia que gritasse comigo.
«Deus o abençoe», foram as suas palavras. Uma semana depois, recebi pelo
correio uma fotografia de 20 por 25 centímetros: eu e o Carlo, de braço
dado, no campo de basquetebol da 6th Avenue, onde costumávamos jogar. O
pai escreveu no cartão: «O meu filho sempre disse que você era o melhor
jogador defensivo de toda a equipa.»
António voltou a cara para o outro lado, para que eu não lhe visse a
expressão.
– Portanto, quando chegar a altura, se mo pedires, eu mato-te – declarei.
Ele encarou-me novamente e franziu o sobrolho.
– Não podes usar outro verbo?
– Se me disseres que verbo preferes, eu uso-o.
– E se, chegada a altura, não conseguir falar?
– Não te deixarei sofrer.
– Prometes?
Fiz sinal que sim. Ele veio sentar-se junto de mim. Perguntei-lhe se lhe
podia segurar na mão. Ele anuiu. Acariciei-lhe os dedos durante muito,
muito tempo, depois pu-los sobre a minha cara e respirei fundo.
Ao cabo de um longo momento, ele tirou uma pauta de música de uma
pasta e pediu-me para tocar a melodia que compusera. Eu não me sentia
capaz de tocar nada, mas os meus dedos tinham vida própria. Pus-me a ver
a minha mão esquerda a atacar os trastes como nos desenhos animados.
Comecei a rir.
– Estás a perder o jeito – disse António.
Voltei a tocar a melodia. Era semelhante à que ele nos pedira para cantar
no carro – apressada, dissonante, eternamente a cair e de repente erguendo-
se de novo.
– Transcreveste isto?
– Mais ou menos.
– Bartok?
– Digo-te quando acabar.
– Porque não agora?
– Não tens paciência nenhuma – replicou, revirando os olhos.
Senti-me irracionalmente zangado.
– Pelo contrário, para as coisas importantes, tenho mais paciência do
que ninguém.
– Desculpa.
– Desculpas aceites. Esta noite podemos jantar os três?
Fez que sim.
– O que tens andado a comer? – perguntei, notando-lhe subitamente a
palidez.
– Nada. – Encolheu os ombros. – Não tenho apetite.
– Mas tens de te alimentar.
– Não consigo.
– Um aviso… vou obrigar-te a comer pelo menos uma sopa.
– Quando eu morrer, volto para te assombrar – anunciou, enquanto
saíamos do quarto. − Vou fazer questão disso, mas não serei cruel, apenas
um chato simpático.
Abracei-o por trás.
– Com um pouco de sorte, meu príncipe, nessa altura, já estarei morto e
bem fora do teu alcance.

O jantar correu bem. A bonança antes da tempestade?


Comemos shish kebab numa esplanada na Plaza de Santa Ana, uma das
minhas praças preferidas em Madrid, e trocámos impressões acerca da
cidade. Miguel achava-a suja, mas gostava das árvores que sombreavam as
ruas, assim como dos cafés. Em geral, achava os homens espanhóis
demasiado escuros, gordos e peludos.
– E as mulheres? – perguntei.
– Arranjam-se demasiado e usam muita maquilhagem.
– E que mal tem isso? – perguntei.
– Pai, tens de perceber – interrompeu António alegremente – que os
melhores amigos dele sempre foram personagens extravagantes.
Miguel sorriu. O primeiro sorriso genuíno que julguei ter visto nele.
Estendeu a mão para tocar nas do filho. António não o repeliu, mas
encurtou o gesto e, ao fim de um minuto, retirou as mãos e entalou-as entre
as pernas, bem seguras.
– Todos os meus amigos foram extravagantes, à exceção dos aqui
presentes – observei.
– Não vejo que mal há em ser-se extravagante, suponho. Mas não acho
atraente – declarou Miguel.
– Eu acho os madrilenos muito generosos – aventou o miúdo.
Pensei que aquela era uma observação estranha, até que ele tirou cinco
notas de mil pesetas que nem eu nem Miguel lhe tínhamos dado – o
equivalente a quarenta dólares.
– Nada mau, hã? – exclamou, com um sorriso.
– Aonde foste buscar isso? – perguntou Miguel, desconfiado.
Achei que o fosse acusar de vender o corpo.
– Chiu – pedi, talvez com uma ponta excessiva de agressividade. –
Deixe-o explicar.
– Quatro horas no Parque Retiro – disse António. – À frente do lago.
Estive a tocar.
– Boa! – exclamei.
– Não fazia ideia de que tocar guitarra fosse tão lucrativo – acrescentou
Miguel.
– Nem eu – sorriu António.
Era a primeira vez que concordavam em alguma coisa desde o início da
viagem. Teria proposto um brinde, mas não quis chamar a atenção para
aquele pequeno milagre. Descobri que é melhor não testar Deus.
22
A última década já me ensinou que os milagres acontecem, mas não são
nada daquilo que sempre nos levaram a acreditar. Esperamos que nos
tragam esperança, ressurreição e união – que nos ergam num tapete mágico
e nos ponham frente a frente com o sagrado. Em vez disso, revelam a nossa
extrema desesperança e afastamento da transcendência. Pegam-nos pela
mão e guiam a nossa descida por lúgubres escadas até ao Mundo Inferior.
Um exemplo, Carlos, um dos muitos que nunca ousei referir:
Certo dia, Henry, o Colosso, falou-me de uma amiga chamada Anny,
uma jovem de Düsseldorf que tinha sida. Há um ano que estava acamada no
apartamento dos pais e não tinha forças para…
ir sozinha à casa de banho;
plantar os seus bolbos de tulipas;
pegar numa revista de jardinagem;
segurar um garfo.
Um dia, os pais tiveram de sair de casa por um motivo qualquer. Era a
primeira vez em meses que ela ficava sozinha. Foi então que aconteceu o
milagre:
Anny arranjou forças para sair da cama, escrever um bilhete de
despedida, abrir a janela do apartamento num oitavo andar, pôr-se de pé no
peitoril e saltar.

A notícia de que mais gostei no El País do dia seguinte foi uma breve
nota acerca da boa saúde gastrointestinal do rei Juan Carlos, depois de uma
crise aguda de disenteria, em França. Eis as palavras exatas: «Un
excremento bien normal.» Teríamos progredido alguma coisa desde a Idade
Média? Estávamos na última década do século XX, e a saúde da nação
espanhola ainda dependia de o seu monarca ter ou não dificuldades na
retrete.
António confessou ao pequeno-almoço que, afinal, não tinha visitado o
Prado dois dias antes e, como tal, resolvemos acompanhá-lo nessa manhã.
Subi rapidamente ao quarto para escovar os dentes e emborcar dois
calmantes não fosse o Diabo tecê-las… Estava outro glorioso dia de sol e
segui pela rua cantando baladas irlandesas revolucionárias como se
marchássemos para Emerald City.
No museu, Miguel ficou fascinado com a pintura clássica espanhola e
holandesa. António passou pelos quadros sem dizer palavra. Fi-lo parar
diante dos Riberas e Goyas e El Grecos, mas ele não mostrou qualquer
interesse.
Deixei a obra de Bosch para o fim. O rapaz limitou-se a baixar a cabeça,
como se cumprimentasse conhecidos na rua.
– António, não tens nenhum comentário a fazer?
– Ainda não.
Enfiou o braço no meu e arrastou-me para uma sala circular com
esculturas, pelo que não insisti mais. Miguel ia ficando para trás, estudando
cada quadro como fosse uma pista para qualquer coisa que tivesse perdido.
O rés-do-chão do Prado é dedicado à pintura flamenga e espanhola.
– Agora quero voltar ao princípio e tornar a ver tudo sozinho – anunciou
António, terminada a visita. – Desculpa, mas não consigo concentrar-me
contigo a olhar para mim, à espera de que eu me manifeste.
Com um baque no peito, apercebi-me de que as minhas expectativas lhe
pesavam demasiado.
– Ouve – disse ele, sorrindo –, à terceira volta, digo-te quais são as que
adorei e as que detestei.
– Parece-me bem.
Sentei-me num banco de madeira, à espera de Miguel.
– E então? – perguntei, quando ele se sentou pesadamente ao meu lado.
– Viu o Cristo Abraçando São Bernardo?
– Passámos diante dele – respondi. – O António não quis parar para ver.
Miguel anuiu pensativamente. Pareceu-me que queria dizer alguma
coisa, mas calou-se.
– Agora compreendo que é simbólico – disse, quebrando o silêncio que
se instalara. – Ele não está realmente com Cristo. A ideia de Cristo é o seu
apoio.
– Como a água no deserto – concordei.
– Não. Como a certeza que se tem, ao atravessar o deserto, de que há
água à nossa espera.
– Sim, é uma imagem melhor.
Olhei com admiração para aquele ser bonito e inteligente ao meu lado.
António tinha razão – havia uma ligação genética. Se Miguel tivesse tido
uma oportunidade, por pequena que fosse, que coisas magníficas não teria
criado com as suas poderosas mãos ou a sua voz de barítono! Por outro
lado, ele tinha criado algo transcendentemente belo com a sua semente, se
não tivesse…
– Não acredito nele – disse Miguel.
– Nele quem?
– Em Deus.
– Porquê?
– Não me parece que haja um Deus a velar pelo meu filho. – Deu-me
uma palmadinha na perna. – Mas não censuro o artista pela sua fé. É um
belo quadro. Faz-nos pensar. – Anunciou que iria continuar a visita e que
nos encontraríamos na cafetaria dali por duas horas.
António acercou-se de mim pouco depois.
– Pronto para o meu tour?
– Ele conseguiu fazer tanto com tão poucas linhas, e quase sem cor. É
espantoso – declarou, diante do desenho da Anunciação, de Cano.
O desenho não me dizia grande coisa. Apercebi-me de que não podemos
prever o que comoverá aqueles que amamos.
Agarrou-me na mão e levou-me, como uma criança leva o pai ou a mãe
a ver um tesouro, até junto de um desenho de Goya: um homem com um
chapéu de burro numa sala de tribunal, escarnecido por uma multidão.
– Estás a ver? – perguntou. – Estás a ver como ele criou uma cena de
humilhação e injustiça sem excesso de detalhes?
Comecei a perceber que o que comovia António era a economia de
expressão – o gesto único que representa toda uma história. Mais tarde, por
simples curiosidade, levei-o a ver o Cristo Abraçando São Bernardo.
– Não suporto este quadro – declarou.
– Não?
– É horrível. Tão falso. Tão inventado. Como se quisesse convencer o
artista e todos os outros de uma mentira. Ao fim e ao cabo, todos sabemos
que os santos eram uns intolerantes. Isto é propaganda do século XVII. O
equivalente a um anúncio que nos promete saúde se comprarmos
determinadas multivitaminas. Cristo era o suplemento vitamínico daqueles
tempos.
Disse-lhe que achava que estava a ser demasiado crítico em relação ao
artista.
– Nem por sombras – respondeu, sublinhando as palavras e abanando
fervorosamente a cabeça.
Quando somos novos, temos tantas certezas.
Subimos para ver as salas da pintura da Renascença italiana e
permanecemos durante muito tempo diante do quadro de Rafael Retrato de
Um Cardeal. Trata-se de um jovem com vestes vermelhas, olhos tristes e a
expressão de quem quer estar em qualquer lado menos ali – a posar para um
pintor perfecionista.
– Acho que ele era gay – disse António de repente. – Qualquer coisa
nele nos diz que está prisioneiro de um mundo que não deseja.
Depois disto, inventámos um jogo que consistia em descobrir gays e
lésbicas nos quadros. António fixou-se na Virgem Maria da Imaculada
Conceição, de Tiepolo. Vestia uma túnica parda de mangas compridas,
nitidamente concebida para esconder todos os contornos femininos. Alvitrei
que talvez sugerisse apenas pudor e castidade, mas o rapaz insistiu em que
a sua teoria estava certa.

Depois de petiscarmos umas batatas fritas e bebermos uma Coca-Cola


na cafetaria do museu, iniciámos o caminho de regresso ao hotel. Dei
comigo a ver retratos renascentistas nos rostos dos transeuntes. Entre
outros, vi o Homem de Turbante, de Van Eyck, com uma pasta preta na
mão, à espera de um autocarro no lado norte da Plaza de Cánovas del
Castillo. Tinha exatamente o mesmo rosto, pálido, irritado, feminino. Topei
com um dos Cobradores de Impostos, de Reymerswaele, a coxear mesmo
atrás de nós, na San Jerónimo; aquelas rugas de preocupação que lhe
atravessavam a testa eram inconfundíveis. E quem mais poderia ter um
lábio superior arrepanhado num rosnar permanente, revelando uma ruína de
dentes orlados de castanho? Acenei cumplicemente ao homem, para lhe
mostrar que lhe conhecia a verdadeira identidade. O tipo franziu o sobrolho;
não queria revelar o disfarce.
Ao cabo de alguns minutos, comecei a suspeitar de que estava a ter
alucinações. Já me acontecera, pelo que não fiquei muito preocupado.
Perguntei a António e a Miguel se podíamos parar por um instante e, num
café por detrás do Teatro Español, bebi dois copos de água, tentando
expulsar a droga do corpo, e comi uma tosta de queijo e presunto, só porque
sim.
Nem a comida nem a bebida fizeram grande coisa; o empregado
parecia-me o Doge Veneziano Niccolò Marcello, pintado por Ticiano.
– Tem o mesmo nariz bolboso e a papada – confidenciei aos meus dois
companheiros.
– Está bem, Professor? – perguntou Miguel.
– Estou ótimo – respondi. Não via razão para preocupar mais ninguém.
De regresso ao hotel, a jovem que tirou a chave do meu quarto de trás
da secretária e ma passou mostrou-me o sorriso sem escrúpulos de Beatrix
van der Laen, de Hals.
– Acho melhor deitar-me. Julgo estar a ter um ligeiro episódio psicótico
– disse a António e ao pai, que me olharam com estranheza.
Eles dirigiram-se-me numa voz branda enquanto subíamos de elevador
até aos nossos quartos, mas eu pensava com quem me pareceria.
Miguel ajudou-me a vestir o pijama, e enfiei-me na cama. Quando
António me trouxe um copo de água, perguntei-lhe com quem era eu
parecido.
– Que queres dizer com isso?
– Com quem é que eu me pareço?
Sentou-se ao meu lado e pousou-me a mão na testa. Depois, dirigiu-se
ao pai:
– Não tem febre.
– Talvez o melhor fosse pedir ao gerente do hotel para chamar um
médico – propôs Miguel.
– Tenho de ser parecido com alguém – insisti. – Toda a gente se parece
com alguém. Se me disserem com quem sou parecido, vai correr tudo bem.
– É melhor telefonar para a receção – lançou Miguel.
– Nada de médicos! – ordenei.
Acabaram por fazer turnos para me vigiar enquanto dormia. Quando
acordei, escurecia lá fora, tinha uma dor de cabeça atroz e estava cheio de
sede.
– Sumo de maçã – murmurei. Disse-o de mim para comigo, porque não
sabia se tinha voz e nesta altura estava convencido de que me encontrava
sozinho em Los Angeles.
Uma luz acendeu-se. Miguel afastou-se da janela e veio ter comigo.
Pareceu-me normal que ele estivesse em Los Angeles.
– Sente-se melhor? – perguntou.
– Sim. Pode trazer-me qualquer coisa para beber?
Ele foi à casa de banho, trouxe um copo cheio de água e passou-mo para
a mão.
– Sente-se melhor?
– Miguel?
– Sim? O que foi?
De repente, tornou-se-me claro que não estava nos Estados Unidos.
Estaria no Porto? Em Lisboa? A água parecia-me mais importante. Bebi-a
toda de um só trago.
Madrid, ocorreu-me. De súbito, tudo me voltou à memória, como ar a
entrar numa caverna que tivesse estado selada.
– Ainda estamos em Madrid?
– Sim.
Senti qualquer coisa peluda na cabeça. Era o gorro de lã com as lamas.
Tirei-o.
– Não queria que apanhasse uma constipação – explicou. – Dantes, as
pessoas usavam sempre gorros para dormir, sabe? A minha mãe e o meu pai
usavam.
De súbito, recordei estar sentado com ele num banco do Prado e
lembrei-me de como fora bom descobrir nele tantas semelhanças com
António.
– Onde está o seu filho? – perguntei.
– No quarto dele. Vou chamá-lo.
Ele saiu e regressou com António, que se sentou do meu lado esquerdo,
e Miguel do direito. Senti-me Dorothy na última cena d’O Feiticeiro de Oz.
Tu estiveste lá, e tu, e tu…
Não disse, porém, qualquer graçola porque sentia um terrível aperto no
peito e me custava respirar.
– Precisa de alguma coisa?
– Sim, um calmante. Não sei onde estão. Veja no bolso da camisa.
– Nem pense nisso! – exclamou Miguel, com ar ameaçador. Olhou o
filho: – Fazem-lhe mal. E tu não lhe podes comprar mais.
Esbocei um gesto com a mão, tentando chamar a atenção do miúdo.
– Estão no bolso da minha camisa. Não ligues ao teu pai.
O rapaz aproximou-se da cadeira para onde tinha atirado a camisa e
inspecionou os bolsos.
– Não estão cá.
– Você tirou-os – rosnei a Miguel.
– Tirei sim, Professor.
– Quero-os de volta. Não são seus.
– Tarde de mais. Deitei-os fora.
– Asshole – cuspi em inglês.
– Vamos comer – disse Miguel. – O Professor precisa de comer.
– Vá, nós vestimos-te – prontificou-se António.
– Não quero vestir-me. Não veem que estou prestes a ter um ataque
cardíaco? Quero um calmante!
– Não – declarou Miguel.
Pensei em implorar, mas ainda me restava algum orgulho e não queria
fazer figuras ridículas diante de António.
– Não faz mal – ripostei alegremente. – Vou à farmácia comprar mais.
– Esta noite não vai de certeza – declarou Miguel. – Estão todas
fechadas.
– Estamos numa grande cidade, com quatro milhões de habitantes. Acha
mesmo que sou a única pessoa a precisar de uma farmácia ou a ter um
ataque de ansiedade neste preciso momento? Há sempre uma farmácia de
serviço e, em última instância, vou para um hospital. O Hospital
Americano. Os americanos compreendem o Valium.
António trouxe-me a roupa, enquanto eu me sentava a custo na cama.
Tinha um corcel desenfreado dentro do peito e não conseguia meter
oxigénio suficiente nos pulmões. O quarto rodava lentamente.
– Não me queres ajudar? – pedi a António.
– Vou arranjar-lhe um calmante. Provavelmente até têm lá em baixo, na
receção – disse ele ao pai.
– Não sais daqui! – ordenou Miguel.
– Porque estás a ser tão autoritário? – perguntou António.
– Não estou a ser autoritário. Esses comprimidos fazem-lhe mal. E vão
fazer-lhe ainda pior, se lhe deres mais.
Se eu tivesse uma lâmina, teria oferecido a Miguel o espetáculo
operático que o seu heroico esforço merecia, apesar de lhe ter declarado
uma fraca inclinação para o melodrama. Cortaria os pulsos e salpicá-lo-ia
de sangue, até lhe cair aos pés num monte informe de autocompaixão. Não
tinha, contudo, nada afiado por perto. Apetecia-me dar-lhe uma resposta
carregada de sarcasmo. Apetecia-me chorar. Mas não fiz nem uma coisa
nem outra.
– António, põe o banho a correr – ordenou Miguel.
O rapaz não se mexeu e pousou a mão trémula sobre os olhos.
– Não ouviste? – gritou-lhe o pai. – Põe-lhe o banho a correr. Já!
– Não sou a Blanche DuBois18 – observei. – Não é um banho quente
que me vai poupar o colapso nervoso. Só mais um – implorei.
O rapaz entrou na casa de banho. Abriu a torneira. O barulho da água
era tal que tive de tapar os ouvidos. Miguel sentou-se ao meu lado. Com
António fora do quarto, eu estava livre para suplicar.
– Só um. Depois paro. Prometo.
Ele abanou a cabeça.
– Go away, you asshole – resmunguei em inglês.
Ele estendeu-me a mão, mas afastei-o.
– Asshole! – exclamei. – Asshole, asshole, asshole!
Miguel franziu o sobrolho. Os olhos dardejavam-lhe.
– O que vai fazer, bater-me outra vez? – murmurei.
Ele fechou os olhos, encheu as bochechas de ar, ajoelhou no chão, pôs-
me uma mão sobre cada perna e deixou cair a cabeça no meu colo.
Era como se eu fosse um carrasco e ele me estivesse a oferecer a sua
vida. Ou como se fosse São Bernardo entregando-se a Cristo. Fiquei
arrepiado ao vê-lo e senti-lo. Foi a primeira vez que percebi que ele imitava
aquilo que via – tanto na arte, como nas pessoas. Talvez tivesse ignorado
tanto tempo os seus instintos que precisasse dos outros para lhe darem as
deixas corretas para atuar. Ou talvez não se conseguisse expressar
suficientemente bem por palavras e procurasse outra forma de o fazer.
Querido Carlos, foi por isso que te dedicaste à pintura? Que tentavas tu
dizer-me com todos aqueles arabescos e manchas de cor? Houve mesmo
muitas coisas a teu respeito que me escaparam por completo.
De qualquer forma, fiquei perplexo, porque me pareceu que a arte
poderia mudar Miguel. Na verdade, mudara-o – pelo menos, dera-lhe uma
forma de expressar essa alteração. Apercebi-me de que não sabia quem ele
era. Tão-pouco António. E que tínhamos de ser brandos com ele. Porque
começava a acreditar que ele era mais recetivo do que qualquer um de nós
os dois. Talvez sejam os seres mais frágeis quem precisa de uma armadura
mais forte? Será possível?
Comecei a massajar-lhe a cabeça. O cabelo era suave. Não sabia o que
fazer.
Miguel levantou-se e estendeu-me as mãos. Ainda sentado, abracei-o e
escondi a cara no ventre dele.
– Vem cá, ajuda-me a pô-lo no banho – ouvi-o dizer a António, ao cabo
de alguns segundos.
Levantei-me. O quarto parecia inclinado num ângulo estranho, como
que prestes a cair a qualquer momento. Achei que fosse desmaiar. Senti que
me tiravam o pijama e me mergulhavam com cuidado na água quente.
Fechei os olhos e deixei que o vapor me toldasse o raciocínio. Miguel
sentou-se na borda da banheira. António ficou de pé, à porta da casa de
banho. Acenei-lhe um adeus. Ele respondeu-me com um sorriso.
Depois, Miguel deitou-me nu sobre a cama, de barriga para baixo.
Sentou-se em cima de mim e começou a massajar-me as costas.
– Na equipa de ginástica, costumávamos massajar-nos uns aos outros
depois dos treinos – explicou. – Para relaxar.
Os meus músculos dos ombros estavam tão tensos que a pressão dos
dedos de Miguel era deliciosamente dolorosa. Fez-me pensar que o sexo é
apenas uma forma extrema de massagem.
Quando me pôs as mãos sob a barriga e me levantou a caixa torácica
uns centímetros acima do colchão, comecei a chorar. Não me sentia triste.
Não fazia ideia do motivo por que chorava. Ele continuou a erguer-me, e as
lágrimas continuaram a correr. Era como se deitasse qualquer coisa fora.
«Pedras orvalhadas de manhã cedo. Pedras a chorar por terem perdido a
noite»: eis o que me ocorreu. E também me ocorreu que talvez ele tivesse
tocado num ponto de mim nunca antes tocado. Mas isso parecia-me
impossível.
18
Protagonista feminina do romance Um elétrico chamado desejo, de Tennessee Williams. Blanche é
uma mulher conturbada e psicologicamente frágil. (N. da T.)
23
Já vestido para jantar, olhei para Miguel como se o estivesse a ver pela
primeira vez.
– Que foi? – perguntou-me.
– Você não é quem eu pensava que era.
– Suponho que isso seja bom.
– É um camaleão – observei. – Ou um papagaio. Ou um camaleão com
cabeça de papagaio.
– Que quer dizer com isso?
Encolhi os ombros e sorri.
– De qualquer forma, seja o que for, ou quem for, estou-lhe grato.
António encontrava-se junto da vidraça e olhava o pai com ternura. Por
momentos, pensei que fosse revelar o seu lado mais delicado, mas, no
instante em que o pai se virou, a expressão do rapaz endureceu. «Barro a
cozer muito tempo numa mufla zangada não regressa à sua forma flexível»,
pensei.
Não se pode dizer que um ou outro me tivesse resgatado do desejo de
me drogar até à inconsciência. Na verdade, nessa noite, ao jantar, estava a
precisar tanto de um comprimido que pedi licença para ir à casa de banho e
em vez disso fui perguntar no bar se havia alguma farmácia aberta ali perto.
– Aqui perto, não – replicou o empregado, um homem alto, aprumado,
com risca ao meio no cabelo.
– Por acaso não terá por aí um calmante? – tentei.
– Que tal uma aspirina?
Abanei a cabeça.
– Parece-me que em Madrid as pessoas não tomam calmantes.
– Mas bebem – ripostou ele. – Tome um whiskey.
– Não, obrigado.
– É por conta da casa – sorriu ele. Assenti. Pôs-me na mão um copo de
Jack Daniel’s. – Acabado de chegar da sua terra.
Aquilo acalmou-me durante o jantar e por mais algum tempo. Mesmo
assim, nessa noite, não transpus a fronteira para a terra dos sonhos. Não se
pode fazer o desmame do Valium e dormir. É uma lei da Natureza.
Estava nervoso e cheio de calor. Sentia-me noutro cortejo fúnebre ou a
tocar uma melodia para guitarra, muito além das minhas capacidades.
Vasculhei o estojo dos medicamentos, à cata de uma migalhinha cor-de-
rosa. Nada. Miguel confessara ao jantar que lançara os comprimidos pela
retrete e puxara o autoclismo, pelo que, de gatas, andei a ver se algum teria
caído no chão.
Nem um vestígio de ajuda à vista.
As horas passavam no mostrador iluminado do relógio de Miguel.
Uma da manhã.
Duas.
Três.
Odiava-o por me fazer passar por isto. Pensei em matá-lo enquanto
dormia, enrolando-lhe o fio do telefone em volta do pescoço. Fantasiava
com as parangonas dos jornais na manhã seguinte: «PEDREIRO PORTUGUÊS
ESTRANGULADO POR AMANTE AMERICANO – FILHO HORRORIZADO DESCOBRE

CORPO ESCONDIDO NO ARMÁRIO.»

Caranguejei pelo quarto e corri na casa de banho sem sair do lugar. Dei
voltas e voltas na cama. Antigas humilhações vieram-me à memória,
imobilizando-me dentro de vários intrincados planos de vingança contra ex-
colegas de escola.
Às quatro da manhã enfiei o gorro, para ver se ajudava.
Cinco.
Seis.
Ergueu-se o Sol de sexta-feira. Eu não tinha pregado olho, mas estava
contente porque me iria esgueirar do quarto e plantar-me diante da primeira
farmácia que encontrasse. Os calmantes espanhóis seriam grandes, azuis e
fantásticos. Esconderia alguns na tampa da pasta de dentes, não fosse
Miguel descobri-los no estojo dos remédios, mas agiria normalmente na sua
presença, e ele nem desconfiaria. Era nisto que pensava enquanto me
ajoelhava junto à mala, em busca de um par de cuecas limpas.
Miguel dormira a noite toda e acordou nesse preciso momento. Talvez a
minha mãe estivesse a comunicar telepaticamente com ele.
– Que se passa? – perguntou.
– Desculpe. Volte a dormir.
Sentou-se na cama, esfregou as faces e olhou para o relógio.
– É tão cedo que nem as padarias abriram. Que está a fazer?
– Vou sair só um bocadinho – anunciei, levantando-me e tapando o sexo
com as cuecas que encontrara.
Ele levantou-se. Estava nu. Aproximou-se de mim, tirou-me as cuecas e
voltou a lançá-las para dentro da mala. De seguida, envolveu-me os tomates
com a mão e ajoelhou-se.
– Estou a safar-me melhor do que da última vez? – perguntou uns
minutos mais tarde, numa pausa no assalto.
Eu tinha a respiração acelerada e limitei-me a acenar com a cabeça.
– Agora diga-me: que mais gostaria que eu lhe fizesse? – perguntou e
respondi com toda a verdade, pois precisava tanto do seu carinho nesse
momento que não conseguia mentir.
Acormeci com o braço dele sobre as minhas costas e o seu rosto
encostado ao meu ombro. A respiração dele lembrava ondas a morrer na
areia. «Mais uns dias disto e talvez todos os meus fantasmas comecem a
dar-me paz», pensei.
Acordei às dez da manhã, com uma forte dor de cabeça.
– Já lhe voltaram as cores – disse Miguel.
– Isso é bom ou mau? – perguntei.
– É bom. Está a sentir-se melhor, não está?
– Tenho a cabeça a latejar.
– Quer uma aspirina?
– Continue, não pare.
– Aspirina é a única coisa que vai conseguir de mim. – Trouxe-me duas
e um copo de água. – Às vezes, o sexo faz-nos sentir pior – observou.
– Não, foi bom. E foi importante para mim.
– Acho mesmo que estou a melhorar – comentou.
– Sempre que quiser praticar, esteja à vontade.
Enfiou um cigarro na boca e fixou-me com olhos graves.
– Acha que tem uma alma? – quis saber.
– A que propósito vem isso?
– Quero só saber.
– Se tenho alma? Duvido. Mas haverá quem tenha. Talvez a minha
tenha ficado simplesmente de fora ou me tenha sido tirada quando visitei
Sodoma pela primeira vez. Como se tivesse deixado o passaporte com o
guarda fronteiriço. Mas deixe-me que lhe diga também não me tem feito
falta.
– Eu também acho que não tenho – disse ele. – Ou talvez esteja no sítio
errado e não consiga encontrá-la.
– Uma alma que não se consegue encontrar… Não me parece bem.
Quero dizer, não se pode pôr uma alma fora do sítio. Ou está lá ou não está.
– Pode estar escondida. Sabe, gosto de estar deitado ao lado de um
homem – disse, como se só naquele momento, ao cabo de trinta anos de luta
árdua, houvesse chegado a essa conclusão. – Mas também gosto de estar
com mulheres – acrescentou.
– Suponho que haja pessoas com pouca sorte e que não conseguem
decidir-se – observei.
– Não, já me decidi. Gosto de tudo. Fico muito excitado ao lado de um
homem bonito, mas também gosto muito do sabor… e da suavidade de uma
mulher. Se calhar, não sou muito normal.
– Normal… Já não faço ideia do que isso é. Mas uma coisa lhe digo: o
Miguel é um homem sortudo. Tantas opções para encontrar consolo…
Invejo-o.

Ele e António já tinham tomado o pequeno-almoço no hotel, e a sala de


jantar estava fechada até ao almoço. Miguel propôs um café na Plaza
Mayor. Fomos buscar António, que me deu dois beijos de bom-dia.
Aparentemente, algo o animava. Miguel trouxe os mapas, pelo que
percebi que também com ele se passava alguma coisa. António ia
cantarolando enquanto saltitava entre o passeio e a rua; quase me atreveria a
dizer que estava feliz, mas não quis arriscar semelhante otimismo.
Estava uma manhã quente. Grandes nuvens inchadas flutuavam,
indolentes, no céu azul.
– O meu filho e eu estivemos a pensar que hoje devíamos ir ao campo –
anunciou Miguel, depois de um cappuccino e de umas dentadas nas partes
mais frescas de um croissant da véspera. − Não muito longe, porque o
Professor está de certeza cansado.
Massajei as têmporas.
– Têm estado a conspirar contra mim.
– Não me vais perguntar de novo com quem és parecido, pois não? –
inquiriu António.
– Nunca chegaste a responder. E continuo a querer saber.
O rapaz revirou os olhos.
– O campo – repetiu Miguel.
– Deixem ver se adivinho, vocês acham que a cidade é uma má
influência para mim.
– Demasiados museus com quadros antigos. Precisa de ar fresco.
Miguel estava uma vez mais a comunicar telepaticamente com a minha
mãe.
– Do que eu preciso é uma ilha deserta com cheesecake de abóbora a
crescer nas árvores e o Sean Connery de tanga a trepá-las para me ir buscar
cocos – sussurrei, como que para a chocar lá longe, no seu retiro de Long
Island, e também para lhe arrancar uma gargalhada.
– E que tal desejares algo dentro dos limites do razoável? – riu António.
– Madrid não tem só museus antigos – observei. – Podíamos comprar
uns cordões de ouro e irmos a uma discoteca esta noite. – Imitei John
Travolta no Saturday Night Fever. Ninguém sorriu. – Ou a um concerto de
zarzuelas – propus –, e ver quanto tempo aguentávamos sem cair para o
lado.
– Campo – repetiu Miguel.
– Você é um autêntico jerico.
– Primeiro era camaleão, depois papagaio, agora jerico.
– A arca de Noé num só corpo.
– Não percebo.
– Quero dizer que você é teimoso como um jerico.
– Um ginasta tem de treinar mil vezes até conseguir fazer um
determinado exercício bem. Há que haver persistência, não é só talento.
– Esse tem sido sem dúvida o meu lema. E veja aonde ele me levou.
Estou encalhado na planície espanhola com dois treinadores de animais
portugueses.
Miguel tirou do bolso o mapa Michelin que trouxera consigo.
– Proponho que paremos num sítio qualquer perto de Burgos. Quando
nos aborrecermos, podemos ir à cidade ver um filme ou coisa parecida.
Lancei uma risada trocista.
– Um filme espanhol? Alguma vez viu um filme espanhol de que
gostasse?
– Imensas vezes – respondeu.
– Diz lá um – pediu António.
– Todos aqueles filmes com a María Félix. Era fantástica.
– Quem é a Maria Félix? – perguntou António.
– Uma sex-bomb mexicana – respondi.
– Então, não era espanhola – declarou.
– É verdade – admitiu Miguel. – Mas penso que fez alguns filmes em
Espanha. Era linda. E tinha umas mamas… – Mostrou-nos o que queria
dizer pondo as mãos em concha sobre o peito.
– Já são mais dois talentos do que o Anthony Quinn – fiz notar.
Ninguém me deu resposta.
– Então, Burgos – concluiu Miguel, encarando-me.
Olhei para António. Ele anuiu.
– Um de vocês vai ter de conduzir – alertei.
– Chaves, Batman – declarou António, estendendo a mão.

E foi assim que acabámos num parador em Santo Domingo de la


Calzada, uma vila degradada com casas de pedra e estuque a cair, rodeada
de vinhas, trinta e tal quilómetros a leste de Burgos. E foi aí que as coisas
começaram a descambar.
Os problemas surgiram pelas duas da tarde. António chamou-nos ao seu
quarto, porque tinha uma surpresa nós. Pôs-se a erguer e a baixar as
sobrancelhas, como Groucho Marx.
Uma vez no quarto, passou-me para a mão a guitarra e a pauta da
música que eu tocara havia um tempo.
– Fiz algumas alterações. Ensaia um bocadinho. – Olhou para Miguel. –
Pai, vem daí comigo.
Levou o pai para a casa de banho.
Enquanto eu ensaiava, António ensinou ao pai a segunda das melodias
que nos cantara no carro. Agora, já tinha letra, tirada dos últimos versos da
Canção de Mim Mesmo, de Walt Whitman. Pouco depois de nos termos
conhecido, António e eu lêramos juntos a edição bilingue publicada pela
Assírio & Alvim em 1992. Ele decorara a tradução portuguesa e repetia-a a
Miguel:

Entrego-me ao húmus para crescer da erva que amo,


Se me queres ter de novo, procura-me debaixo da sola das tuas
botas.

Dificilmente saberás quem sou eu ou o que significo,


Todavia dar-te-ei saúde,
E filtrando o teu sangue dar-te-ei vigor.

Se à primeira não me encontrares, não desanimes,


Se não estiver num lugar, procura-me noutro,
Algures estarei à tua espera.

Sempre me comovera a ideia de os mortos desejarem bem aos vivos. E a


ideia de que estavam à nossa espera…
– Pronto? – perguntou o rapaz, quando ele e o pai regressaram ao
quarto. Nos olhos brilhava-lhe expectativa.
– Diz-me o que tenho de fazer.
– O ritmo é este – explicou, batendo com o pé no chão. – Tocas os três
primeiros compassos sozinho, depois entramos nós. – Virou-se para o pai. –
Percebeste?
– Posso fumar meio cigarro antes?
António esboçou uma careta e voltou a bater o pé no chão. Comecei a
tocar. Dezasseis notas descendo a correr por umas escadas abaixo.
Eles juntaram-se a mim.
Não ouvi com muita atenção as suas harmonias porque estava
concentrado na minha parte. Mas não gostei do que ouvi. Era um moteto
inexorável, e as vozes abafavam a guitarra, reduzindo-a quase ao silêncio.
António deixou descair os ombros.
– Não saiu como imaginava – suspirou.
– Foi interessante – tentou Miguel. – Quem escreveu a música?
António revirou os olhos.
– Tem de ser tudo o mesmo instrumento – observei. – Três violinos, ou
assim. Se queres manter a letra, tem de ser três vozes.
– Acha que consegue cantar a sua parte? – perguntou Miguel.
– Talvez, se abrandarmos muito o ritmo, até ficar um adagio.
– Se o abrandarmos, não vai funcionar! – atirou António num tom
agressivo.
– Deixa-o tentar – atreveu-se Miguel.
– Escreve-me a letra em português – pedi a António.
Ele escreveu-a na última página em branco do meu Life With a Star,
como quem cumpre uma tarefa aborrecida, e preparava-se para a arrancar
quando eu soltei um berro:
– É pecado rasgar um livro.
Ele estendeu-mo.
– Começa quando quiseres.
Levantei-me e cantei ao ritmo que me pareceu mais adequado. A
melodia desceu uma escadaria suave, ergueu-se num ascendente de júbilo e
depois foi ao encontro das outras duas vozes. Juntos descemos aos saltos
uma encosta irregular, galgámos três cercas, tropeçámos numa pedra,
erguemo-nos outra vez, corremos mais um bocadinho e por fim abrandámos
e rolámos até parar.
Enganei-me quando ambos estavam a cantar Mi, e eu tinha de cantar o
Ré logo abaixo. Claro que me queria juntar a eles, mas acabei a flutuar
algures em volta do Mi bemol.
«Três viajantes lado a lado, afastando-se, juntando-se, parando e
olhando uns para os outros. Não sabem o que hão de fazer. Têm medo de
uma consonância, mas ainda têm mais medo de se separar para sempre.»
Eis o que me ocorria ao ouvir as melodias. Miguel deve ter pensado o
mesmo, porque se sentou com a cabeça entre as mãos.
De súbito, senti um nó formar-se-me na garganta e fiz um sinal de
aprovação com a cabeça. Estava orgulhoso de António.
– É uma coisinha de nada – disse, encolhendo os ombros. – Não é de
todo aquilo que eu pretendia.
– Não, nunca é – murmurei.
António contou-nos então que começara a compor em Salamanca. No
dia em que se sentara na Plaza Mayor, conhecera uma jovem guitarrista de
nome Monica, que o convidara para ir a casa dos pais e, nesse domingo,
tocaram duetos durante cinco horas. Entretanto, chegou um amigo catalão
que andava a estudar canto e que os acompanhou, cantando músicas
populares. António teve a ideia de escrever uma série de três melodias para
duas guitarras e uma voz, uma baseada numa canção popular portuguesa,
outra numa canção popular de Salamanca e a última da Catalunha. A
melodia original era de uma canção popular da província natal de Miguel,
chamada O Marinheiro Noivo, que o pai lhe ensinara quando ele era ainda
um miúdo.
– Ah, sim – assentiu Miguel –, estou a reconhecê-la agora. Foi lindo,
filho. Estou orgulhoso de ti.
«Boa», pensei. «Agora, diz-lhe que o amas.»
O rapaz não respondeu ao pai. Pegou na guitarra e guardou-a no estojo,
trancando os fechos com brusquidão.
– Vou sair para ensaiar – anunciou.
– Não fiques desiludido – pedi-lhe. – É normal que uma coisa que desce
da tua cabeça até uma folha de papel e depois te sobe para a voz mude ao
longo do percurso. Não podes esperar que saia exatamente igual àquilo que
concebeste.
– Deixa-me em paz.
– Porque estás desiludido? – perguntou Miguel.
– Esqueça. Deixe-o – pedi.
– Não, quero saber porquê – insistiu ele.
António arregalou os olhos para o pai.
– Queres saber porquê? Por tua causa. Não quero cantar contigo. Não
quero ter nada a ver contigo. Tudo isto é uma mentira. O que escrevi é uma
mentira! Percebi isso mesmo quando ouvi. Que tinha escrito uma mentira!
Marchou dali para fora. Desta vez, não se esqueceu de bater a porta com
toda a força.
Miguel secundou-o.
– Vou beber um café e talvez um brandy, quer vir? – perguntou, mais
por educação do que por qualquer outra coisa.
– Tenho que fazer – respondi, abanando a cabeça.

A igreja ficava mesmo do outro lado da rua. Acendi uma série de velas
aos pés de uma grande estátua de pedra da Virgem, com uma jarra de cristal
repleta de gladíolos cor-de-salmão a enfeitar-lhe o pedestal. Quando
pousava a última no suporte, uma jovem de cabelo preto e curto aproximou-
se de mim.
– Tantas? – perguntou em espanhol.
Encolhi os ombros como quem pede desculpa.
– Soy de una isla de muertos. – Não sabia se aquilo se poderia dizer em
espanhol, mas decerto não andaria longe.
– E onde fica essa ilha dos mortos? Na América? – perguntou-me em
inglês.
– Sim.
– Meu inglês não muito bom – desculpou-se, esboçando um sorriso de
menina tímida.
– Se falar devagar, eu percebo – respondi em espanhol.
– Também vi desaparecer muitos amigos – disse ela.
Saímos juntos.
– Chamo-me Claudia – apresentou-se, estendendo-me uma mão
minúscula e fria. – Dantes, pintava cenários no Ballet Nacional –
acrescentou.
– E agora?
– Agora cozinho para o meu marido e para o meu filho. – Sorriu. – E
vou à igreja todos os dias. Uma pessoa não esquece. – Apertou o casaco de
couro. – Gostei de o conhecer. Tenha uma boa estadia aqui na vila. Se ainda
andar por cá amanhã, vemo-nos na igreja. À mesma hora. Estou com
pressa, senão ficava a falar mais um pouco.
Claudia lembrou-me de que fazemos parte de uma seita mundial, pelo
menos todos os que transpõem as portas do hospital para visitar um amigo a
morrer de sida.
Não há lugar de peregrinação, não há um centro sagrado.
O eixo dessa seita fica onde quer que encontremos outro membro.
Claudia atravessou a praça a passos largos. Mal desapareceu de vista,
passeei pela vila à procura de António, porque de repente senti que tinha
algo para lhe dizer. Quando vi que não conseguia encontrá-lo, fiquei
desesperado. Arrastei-me de volta à igreja, deixando-me ali ficar durante
algum tempo, derrotado e vazio. Depois regressei ao hotel.
No átrio da entrada, ouvi-o tocar no seu quarto o Prelúdio da Suite para
Violoncelo de Bach. Bati à porta. Ele deixou-me entrar e sentámo-nos
ambos aos pés da cama, dois guerreiros cansados. Segurei-lhe na mão.
– Em que estás a pensar?
– Que aquilo que escrevi não presta para nada.
– É por isso que vim falar contigo. O que escreveste é demasiado bom.
E tu deixaste-te assustar por isso.
– Não era aquilo de que estava à espera – repetiu.
– Porque não era apenas música. Era uma coisa diferente. Uma coisa
que tu querias encenar. Estavas à procura de uma forma de vos juntar, a ti e
ao teu pai. E conseguiste. Encontraste-a. Foi isso que te assustou. Quanto
mais te aproximas dele, mais medo sentes. Só tens de continuar a avançar
na direção certa, aconteça o que acontecer. Estás quase lá.
Ficou calado. A dúvida começou a invadir-me o espírito; talvez
estivesse completamente errado.
– Sabes, tu e o teu pai cantam mesmo bem. Foi muito bonito ouvir as
vossas vozes juntas. – Silêncio. – Eu falhei algumas notas. Estou
enferrujado na leitura da pauta.
Ele retirou a mão.
– Não tens qualquer culpa de aquilo não ser música. Para de te
responsabilizares por tudo.
– Ainda no outro dia me dizias que eu era responsável por tudo – fiz-lhe
notar.
– E agora não digo!
– Não estava a criticar. Apenas a constatar como as coisas mudam.
– Bom, para.
– Sê simpático quando falas comigo. Estou frágil. Tu estás frágil.
Ele levantou-se e cruzou os braços.
– Eu sabia que podia acontecer – disse. – Mas achei que não. Fui
estúpido. – Pegou numa almofada e cobriu a cabeça. Pôs-se a andar para
trás e para a frente.
– Vamos dar um passeio – sugeri.
– Não.
– Às vezes obedecer ajuda. Não interessa ao quê. É o simples facto de
ceder ao desejo do outro.
– Sabes, quem eu quero que me encontre és tu – disse ele. – Do poema
do Whitman. Depois de eu ter morrido. Vou querer que me encontres.
– Eu sou incapaz de encontrar seja o que for – repliquei. – Referes-te a
outra pessoa. E acho que queres que ele te encontre muito antes de ires para
debaixo da terra.
– Quem? – perguntou António.
Encolhi os ombros; não precisava de lho dizer.
– Anda daí dar um passeio – rematei.
24
Avançámos rumo a leste, na estrada que leva a Ezcaray. No mapa, era
um ponto minúsculo no fim de uma fina linha branca. Acabou por ser um
destino bem escolhido, caso contrário nunca teria tido a oportunidade de
conhecer Doña Margarita.
O céu estava azul e o sol queimava. Minúsculas uvas verdes do tamanho
de groselhas pendiam das vinhas que orlavam a estrada. O cheiro da
gravilha quente sob os nossos pés era reconfortante.
– De que haveremos de falar? – perguntei a António.
– De qualquer coisa menos música, o meu pai, eu, tu ou doenças.
Fizemos em silêncio todo o trajeto até Ezcaray. Os campos estavam
bonitos, e isso bastava para que me sentisse preenchido. Reparei que ele me
observava, mas não me apeteceu perguntar-lhe porquê.
O ponto no mapa revelou-se uma confusão de ruas desalinhadas e uma
igreja de pedra. Contudo, encontrámos o Café Carlito – uma única sala
sombria e suja, com seis mesas de madeira e um balcão de linóleo azul. Na
parede por trás do balcão, haviam sido colados com fita-cola amarelecida
uns vinte postais. Reconheci a Torre de Pisa e o Coliseu. Éramos as únicas
pessoas ali. Doña Margarita, uma mulher roliça, com o cabelo crespo e
seco, pintado com hena, e os olhos excessivamente maquilhados, serviu-nos
Coca-Colas, que despejou das latas para copos altos com o logótipo da
Pepsi. De tempos a tempos, agitava um leque com rosas vermelhas por
baixo do pescoço flácido.
– Parece uma Tartaruga Gigante – sussurrou António em português.
Eu sabia que se chamava Margarita porque, sob as fotografias antigas a
preto e branco coladas desordenadamente pelas paredes verdes e bolorentas
do café, as legendas tinham sido escritas numa máquina cujos «ós» e
«erres» minúsculos ficavam acima da linha:
Doña Margarita com Rafael Ochoa.
Doña Margarita com Comadreja.
Doña Margarita com Miguel Quimon.
António observou-as e depois fez uma careta como se tivesse comido
alguma coisa estragada.
– Que monte de lixo! – disse em inglês.
Sorri.
– É isto que adoro em Espanha.
Ele pôs os olhos em alvo e levou a Coca-Cola à boca.
A julgar pelas fotografias, Doña Margarita sempre fora roliça. Mas em
tempos brilhara como uma boneca de porcelana. Mostrava um certo estilo
antiquado – saltos altos, pendentes de filigrana nas orelhas e meias de renda
escura. Na fotografia com Comadreja, usava uma estola de raposa, com a
cabeça do bicho e tudo. O pobre animal parecia uma planária peluda.
Quanto aos homens, eram jovens e magros, com o cabelo cheio de
brilhantina, penteado para trás. Usavam fatos de risca finíssima com colete
a condizer. Alguns ostentavam bigodes tão finos como lápis. Pareciam
gangsters.
– Quem seriam estes homens? – perguntei a António.
– Celebridades cá da terra. Toureiros pouco conhecidos, esse tipo de
coisa.
– Amantes?
– Talvez.
Doña Margarita limpava o balcão com o esfregão da louça. Pusemo-nos
a contemplá-la do nosso canto do café, tentando imaginar quantos daqueles
homens teriam enrolado nos dedos o seu cabelo colorido com hena. Ela
começou a marcar um número no telefone preto ao fundo do balcão.
– Deve ter sido a meretriz cá do sítio – sussurrou António, indicando as
unhas vermelhas e compridas. – E um dos clientes deixou-lhe o café.
– Ou pode tê-lo comprado com o dinheiro que ganhou.
Ele sorriu.
– Se tivesses cobrado quando eras novo… podias comprar metade de
Espanha.
– Não quero metade de Espanha. Só a tal ilha deserta com o Sean
Connery e os coqueiros.
Acabámos as Coca-Colas ao balcão.
– Gostam das fotografias? – perguntou Doña Margarita a certa altura.
– Mucho! La señora era muy hermosa.
– Gracias. – Abanou o leque e baixou graciosamente a cabeça.
– Quem são os homens? – perguntei. – Los hombres?
– Quase todos toureiros – respondeu.
António fez uma pequena vénia por ter adivinhado.
– Espere aqui. Tenho uma coisa para lhes mostrar, a si e ao seu filho –
anunciou Doña Margarita. Lá estava outra vez aquela palavra traiçoeira,
hijo.
Nas traseiras, havia um compartimento oculto por um cortinado de
contas rosas e castanhas. A nossa anfitriã dirigiu-se para lá e de repente
estacou, apontando na nossa direção.
– American? – perguntou.
– Sí.
– No Comunistas?
Doña Margarita decerto não tivera conhecimento de que os únicos onze
comunistas nos Estados Unidos eram donos de livrarias revolucionárias e
não tinham tempo para visitar a Europa. Abanei a cabeça.
– Partido Sodomita Internacional – respondi em inglês.
Ela assentiu, como se o que eu dissera lhe fizesse sentido.
– OK. Só um momento.
– Acho que ela empalhou um daqueles pobres toureiros – especulou
António, alegre. – Vai trazê-lo hirto que nem uma tábua.
Ela regressou com uma fotografia numa moldura dourada. Era um
retrato seu, e não poderia ter mais de vinte anos. Reluzia orgulhosamente na
sua estola de raposa, chapéu redondo sem aba e saltos altos. Estava ao lado
de um homem pequeno e engelhado, envergando um uniforme militar.
Não havia legenda.
– Sabe quem é? – perguntou, o hálito tresandando a cerveja.
– O toureiro reformado mais baixo do mundo – replicou António em
inglês.
Ela esboçou uma expressão perplexa. Eu inclinei a cabeça e estudei a
fotografia mais de perto. Não queria acreditar.
– El Caudillo – anunciou com um sorriso rasgado.
– O general Franco?
Ergueu um dedo, corrigindo-me.
– Generalisimo Franco. – Estudou a fotografia. – Em Burgos. O meu pai
lutou com ele na batalha por Madrid. – Ofereceu-nos uma expressão
orgulhosa e satisfeita.
– Muy bonita – repliquei.
– Ah, como o mundo muda – suspirou ela, admirando-se. Encolhendo
os ombros, levou a foto para a restituir ao seu secreto lugar de honra no
armazém do café.
António pousou duas moedas de cem pesetas no balcão.
– Vamo-nos embora antes que ela volte – sussurrou.
Mas aqueles braços apresuntados já apartavam as tiras de contas.
Acercou-se de nós, no seu passo balançado, agitando o leque e assumindo
uma expressão séria e honrada.
– Spain no good no more. Communists. Socialists. Corrupt. – Com o
leque, fez um gesto zangado, como quem varre aquela gente toda.
Eu assenti com um gesto de cabeça.
– Demasiados maricones.
Ela agarrou-me no braço, concordando entusiasticamente.
– Agora são juízes – exclamou num tom escandalizado. – E ministros!
– Pois, no tempo do Franco eram só toureiros – replicou António,
assentindo com a cabeça.
– Os meus toureiros eram homens a sério. Tinham tomates. − Cerrou o
punho. – Cojones! – Fechou bruscamente o leque, aprumou-o e pôs-se em
sentido.
– Com quantos milhares dormiu? – atirou António na sua voz mais
inocente.
– Como? – perguntou ela, como se não conseguisse acreditar no que
ouvia.
Ele repetiu a pergunta, mas, dessa volta, rematou com a expressão: Mi
pequeña puta fascista. Em Espanha, não se chama puta seja a quem for sem
que haja consequências – mesmo que se trate, de facto, de uma prostituta.
Mas, quando somos novos, não nos importamos com confrontos.
Doña Margarita cuspiu os piores insultos e ainda lhe ouvimos as injúrias
a uns bons cem metros do café. Os ataques de riso descontrolados de
António deixavam-me pouco à vontade e só ousei descontrair quando
estávamos já sãos e salvos, longe da vila. Fazia muito calor, no mínimo 30
graus, pelo que, ao fim de três quilómetros, me sentei na berma da estrada,
recusando-me a continuar.
Desintoxicar do Valium é como sofrer de jet-lag; de repente, sentimo-
nos cansados e desidratados. Só nos apetece dormir, até nos sítios mais
impróprios. Deitei-me com a cabeça apoiada no braço. Ervas daninhas e
proletárias, sem flores, cresciam a toda a volta. Era surpreendentemente
confortável.
António pôs-se a chamar-me nomes na brincadeira…
porco;
mariconso;
preguiçoso inútil;
capitalista americano;
pastel de nata judeu.
– Estás bem-disposto – declarei.
– Quando consigo esquecer, sinto-me melhor – observou. – Volto a ser
eu. Recupero o meu nome e tudo.
Espetou o polegar para pedir boleia. Uma centena de carros passou sem
abrandar. Para minha grande surpresa, ao cabo de uns vinte minutos, estava
eu prestes a virar-me e grelhar a outra parte do corpo, um BMW azul parou
junto de nós. A explicação era simples; mesmo naquela estrada dos confins
do mundo, que liga Ezcaray a Santo Domingo de la Calzada, de vez em
quando, teria de passar um vampiro.
Este vampiro em particular desceu o vidro, revelando um grande nariz
adunco. Tinha olhos escuros e sombrios. Se a vida fosse uma peça de
Shakespeare, ter-lhe-ia sido atribuído o papel de Shylock. Mas a vida é a
vida, claro, e ele era apenas um homossexual solitário e rico a passear no
meio do nada, julgando ter talvez encontrado o seu Príncipe Encantado.
Infelizmente, o Príncipe Encantado Português trazia às costas um pau de
cabeleira americano e exausto.
– Ele está bem? – perguntou ao rapaz, apontando para mim como se eu
não conseguisse responder.
Naquele momento já eu estava sentado, a passar a língua pelos lábios
secos.
– Apenas cansado – replicou António. – Estamos a andar há algum
tempo.
– Portugueses?
– Eu sou. Ele é americano.
– Querem boleia? – perguntou.
– Não, somos só Testemunhas de Jeová e queremos saber se já recebeu
a Palavra – respondi em inglês.
– O quê? – perguntou ele.
– Uma boleia seria ótima – admiti.
– Ah! – exclamou, erguendo as sobrancelhas – Também fala espanhol!
António sentou-se à frente com ele. Eu estiquei-me no assento de couro
do banco traseiro. Notei que ele olhava para António muito mais
intensamente do que a maior parte dos homens consideraria adequado e foi
assim que tive a certeza de que jogava na nossa equipa.
Ligou o rádio.
– Música – anunciou, como se não fôssemos capazes de o perceber
sozinhos.
– Sim – sorriu António.
Era uma áspera melodia árabe gritada por um grupo de homens. Não
pareciam satisfeitos.
– Gostas de sevilhanas? – perguntou ao rapaz. A sua mão ia oscilando
para cima e para baixo na manete preta das mudanças.
– Não são más – respondeu António.
– Chamo-me Ramón. – António apresentou-se e trocaram um passou-
bem. Ele ficou a segurar na mão do meu pupilo durante demasiado tempo. –
Pai e filho? – perguntou, encarando-me.
– Mais ou menos – respondi, abanando a mão de maneira dúbia.
– Sí – afirmou António com ar definitivo. – Ele é tímido. – Trocámos
um olhar divertido, tipo «tirem-nos deste filme».
– Estão hospedados em Santo Domingo? – inquiriu.
– Não – apressei-me a responder. – Temos amigos lá. Estamos só de
visita.
A última coisa de que precisávamos era um pilha-galinhas castelhano
com o endereço das galinhas no bolso.
Ele e o rapaz continuaram a conversar. Ramón era advogado e
trabalhava em Burgos. Ia visitar a irmã mais velha, que tinha uma vinha uns
quilómetros a leste de Ezcaray e que estava com dificuldades em arranjar
bons trabalhadores.
Nessa altura, o desemprego em Espanha era superior a vinte por cento e
por isso não percebi porque é que a irmã não encontrava pessoal.
– Ninguém quer trabalhar numa quinta – explicou Ramón. – É trabalho
de camponeses. Alguma vez leu Cervantes?
– Dom Quixote, duas vezes – menti.
– Então, sabe que todos os espanhóis querem parecer fidalgos.
– Ah, sim?
– Sí. Está no livro.
– Conhece a Doña Margarita? – perguntou António.
Ele abanou a cabeça.
– Quem é?
– A senhora do Café Carlito – explicou o rapaz.
– Ah, essa, sim, claro. Já lá fui umas vezes.
– Conhece a história dela?
– Consta que pertence à aristocracia arruinada. Filha de um exportador
de citrinos de Valência que fugiu com um toureiro chamado Comadreja.
Dizem que ele a abandonou em Burgos. – Piscou o olho. – Mas acho que
foi ela que inventou essa história. Acredita, viejas solitarias contan grandes
mentiras.
– Saiu-me cá uma bruxa velha e bolorenta, aquela Doña Margarita –
disse António, abanando a cabeça, já em segurança e fora do carro de
Ramón.
Foi então que percebi o que me deixara pouco à vontade.
– Ouve, à medida que envelhecemos, tentamos dar um sentido às nossas
vidas. Tentamos perceber porque fomos por um caminho e não por outro.
Lembramo-nos de coisas. Sentamo-nos muito a recordar. Se eu conseguisse
afixar na parede fotografias de alguns dos homens que amei, talvez o
fizesse. Mas não tenho fotografias. Deitei-as fora quando vim para a
Europa. Por isso, sê amável com ela. É tola, gorda e talvez tenha feito
algum mal na vida, mas não lhe resta nada. Está para ali sentada num velho
café e quer mostrar às pessoas que já existiu. Não a censures por isso.

Quando regressámos ao hotel, fui fazer uma sesta. Acordei com gritos.
Uns dias mais tarde, soube o que provocara a discussão. Na verdade, ouvi
duas versões.
– Achas que eu consegui o que queria? – gritava Miguel. – É isso que
achas? Porque, se é isso que achas, estás muito enganado!
– Não me venhas com essa treta! – respondeu António também aos
gritos. – Estás-te nas tintas para o que eu penso. Nunca quiseste saber! Só
queres saber de ti. Foi sempre assim! Acho que nem sequer me vias. Nem à
mãe. Para ti, fazíamos parte da paisagem. Lembras-te dos presentes que me
costumavas dar? Bolas de futebol e ténis. Canas de pesca. Canas de pesca,
porra! Tudo coisas para ti. Não para mim. Estavas a brindar-te a ti próprio.
– Não me venhas com sermões sobre a tua mãe! A tua mãe e eu… tu
não fazes ideia do que se passou entre nós.
– Ouve, não te quero ver! Não te quero ouvir! Não quero sentir o teu
cheiro! Tresandas a cigarros velhos e a mentiras velhas. Só queres que eu
não faça nada que te possa envergonhar. Deus nos livre disso. Ou de te
mostrares como realmente és.
– Como realmente sou? E o que é que eu sou? Vá, diz-me!
– Tu? Não sei. Só sei que não és o que pareces. És um fantasma. Um
impostor. Uma alucinação. Nem sei, mas gostava que desaparecesses pura e
simplesmente!
Houve um breve silêncio, que Miguel quebrou:
– Tornaste-te um ser sem compaixão. Nunca pensei ver este dia.
Agora já não gritava, mas as paredes eram finas, e eu tinha o ouvido
colado ao estuque.
– Se sou cruel, foi porque tu assim me fizeste – respondeu António. E,
como uma ideia que lhe viesse subitamente à cabeça, acrescentou: – A
culpa é tua, sabes? Se tivesses sido um pai quando precisei de ti…
Miguel não respondeu. Imaginei-o sentado com a cabeça entre as mãos.
Saí do quarto e fiquei no corredor, a pensar. Depois, bati ao de leve na porta
do quarto de António.
– Sou eu.
Abriu-se uma fenda hesitante, e, vendo-me, António revirou os olhos
como se eu fosse mais um fardo. Miguel espreitava pela janela. Afastei
ligeiramente António para passar e entrepus-me entre eles.
– Há uma coisa que tenho de vos dizer a ambos.
Miguel encarou-me. Parecia um náufrago. A minha coragem esmoreceu.
Olhei para António e vi-lhe a raiva na expressão.
– Ouve… este vírus que tu tens… não sabe o teu nome. Não sabe que
tocas guitarra. Não sabe que és português. Não conhece o teu pai, nem a tua
mãe, nem me conhece a mim. Não sabe como cortas o cabelo, nem que róis
as peles das unhas quando estás ansioso, nem que cruzas os braços quando
estás zangado, como agora. Não sabe nada. Percebes o que te estou a dizer?
Mostrou-me o silêncio de um miúdo assustado a tentar parecer
enfastiado.
– António, achas que não terias levado a vida que levaste, mesmo que o
Miguel tivesse sido o pai dos teus sonhos?
– Não sei. Talvez.
– Ouve, se pensas que és homossexual devido à falta de coragem do teu
pai, ou à distância, ou aos ciúmes, ou a qualquer outra coisa, estás
enganado. Não acredito nisso. E tu também não.
– Acredito, sim – replicou ele, desafiante.
Miguel abriu a janela de par em par e debruçou-se.
Estávamos naquele ponto em que as pessoas testam os limites no seu
próprio deserto de crueldade, tentando não se perder para sempre, aquele
ponto árido em que testam também até onde podem ferir os inimigos.
Sentei-me aos pés da cama e baixei a cabeça, porque percebi que ao entrar
naquele quarto tinha cometido um grave erro.
– É isso, olhem para o lado. Vocês os dois. Porque podem. Eu não
posso. E sabem porquê? Porque está dentro de mim! Não lhe posso virar as
costas, porra!
25
Miguel foi o primeiro a sair do quarto. Disse que precisava de um
cigarro. Não fui à procura dele. Sentei-me no bar do hotel a beber um Porto.
Não é que seja grande apreciador, mas tinha saudades de casa e a cor rubi
ficava linda contra a luz do candelabro de cristal que pendia, ameaçador,
sobre a minha cabeça.
Mal saí, António trancou a porta do quarto. Não me importei que ficasse
sozinho. Ou que sentisse medo. Pensei no conselho que Pedro me dera
antes da viagem e apercebi-me de que precisava de me salvar a mim.
Fui ao quarto buscar o Life With a Star e li cerca de trinta páginas.
Depois, embebedei-me.
De manhã, não recordava uma única frase.
Miguel não regressou ao hotel nessa noite.
No sábado, tinha já tomado o pequeno-almoço, quando me apercebi de
que ele me tirara as chaves do carro. O Batmóvel desaparecera. «Boa»,
pensei. «Deixou-me apeado no meio do nada. Vou acabar os dias colado
numa parede do café de Doña Margarita.»
António não saíra, mas também não se ouviam as notas da guitarra.
Imaginei-o deitado numa poça de sangue na casa de banho, mas sentia-me
sem coragem para nada, até para ir confirmar.
Não havia o que fazer em Santo Domingo de la Calzada, pelo que
regressei à igreja e tentei ler as páginas que perdera na véspera. Estava
fresco e não se via vivalma. A luz que se coava pelas janelas gradeadas da
nave mal chegava para decifrar as palavras, mas era reconfortante ter um
livro nas mãos. Existe uma ilusão de controlo no facto de se saber que é
possível evadirmo-nos na história de outrem. O meu espírito, porém,
divagava e pus-me a pensar em quantas igrejas e sinagogas estivera na
última década. Uma única mesquita. Em Brooklyn, ainda por cima, mesmo
à saída da Avenida J.
Cerca de uma hora depois, Claudia apareceu. Cheirava a lavanda. A
mãe de Carlo Foggia cheirava sempre a lavanda. E Carlo usava aftershave
Polo. Costumava inundar o campo de basquetebol com aquele odor
enjoativo.
– Não pensei que o fosse encontrar aqui hoje – disse Claudia com um
sorriso. – Fico profundamente feliz de o ver.
– Os meus companheiros de viagem estão a discutir – repliquei, em jeito
de confissão, e dei por mim a falar-lhe de António e de Miguel.
– Não devia ter vindo – disse ela.
A última coisa de que precisava era a opinião de um estranho sobre algo
irremediável.
– Desculpe – pediu ela, apercebendo-se do meu incómodo. – Que coisa
estúpida de se dizer! Quer vir a minha casa?
Apetecia-me pedir-lhe para falar com António. Quem sabe a voz de uma
mulher o ajudasse. Em alturas de desespero, imagino que a magia – se ela
existir – reside na voz do feminino.
– Não terá um Valium, por acaso?
– Não.
– Conhece alguma farmácia aqui perto?
– Claro.
– Leva-me lá?
A farmácia da vila era também a barbearia. Em cima de um pé de metal
repousava uma grande cadeira de couro. Claudia explicou a uma senhora de
bata branca o que eu pretendia. Ela regressou com uma caixa verde onde se
lia: TRACTAN. Fiquei a olhar para a caixa, uma voz dentro de mim pedindo:
«Dá meia-volta e vai-te embora.» Comprei duas embalagens de trinta
comprimidos, não fosse Miguel descobrir uma.

Miguel regressou nessa tarde.


– Que aconteceu? – perguntei, vendo-o com a roupa imunda e carregado
de olheiras.
Não respondeu. Despiu-se e foi tomar banho. Quando saiu, enfiou-se
debaixo dos cobertores e voltou-me costas, evitando o meu olhar.
Nada disto me pareceu perturbante, porque os calmantes já estavam a
fazer efeito. Tinha guardado um dos blisters no compartimento inferior do
estojo de medicamentos e o outro no bolso das calças. Escondera ainda seis
comprimidos no tubo da pasta dos dentes e três na carteira.
«Ele que me tente impedir», disse de mim para comigo, desafiador.
Enquanto Miguel dormia, fui passear pela vila. Sentia as pernas
agradavelmente pesadas, e os pensamentos evaporavam-se-me à medida
que os formava. Estava calor, sentia-me feliz.
Regressei antes do jantar. Miguel e António discutiam novamente, desta
volta no meu quarto. Deixei-me ficar no corredor. Estavam a maltratar-se,
com aquela vileza de quem sente que foi traído durante anos. De súbito, eis
que o miúdo me surpreendeu.
– Tu é que devias ter isto, não eu! Isso é que seria justo!
– Talvez – respondeu Miguel. – Mas nunca te perdoarei teres feito isto a
ti próprio. Nunca! Como foste capaz?
– Tu! Foste tu! Foste tu!
Miguel saiu do quarto. Não proferimos palavra, enquanto ele fazia
deslizar a mão pelo cabelo num gesto brusco. A meio do corredor, estacou
para se ver num espelho pendurado por cima de uma consola de madeira.
Olhou de novo para mim e cruzou as mãos sobre o peito formando um X.
Tinha os dedos afastados, como um leque a tentar cortar-lhe o pescoço.
Foi-se embora.
Nunca percebi bem aquele gesto, mas suspeitei de que significasse que
estava a ser confrontado com uma coisa que não compreendia e não
conseguia controlar. Talvez fosse um escudo.
Enquanto Miguel atravessava o corredor, António deu um soco na porta
do armário, ferindo a madeira.
Jantei sozinho, o que para mim estava ótimo. Era um homem sem:
libido;
preocupações;
papilas gustativas.
Sentia-me oco. Quente. Como uma abóbora esculpida, duas velas acesas
atrás dos buracos dos olhos. Dormi tranquilamente.

No domingo de manhã, ao acordar, topei com Miguel sentado na cama.


– Talvez deva voltar para o Porto – anunciou.
– Porquê?
– Um de nós tem de o fazer. Ou eu ou o António.
– Hoje partimos para França. – Ainda estava semiadormecido e convicto
de que atravessar uma fronteira seria bom para todos.
Miguel franziu o sobrolho e começou a vestir-se.
– A comida em França é melhor – defendi.
– Não me está a perceber.
– É verdade, não estou. É uma nova política que adotei. Decidi não
perceber o que quer que seja que me possa chatear.
– Não há de ir muito longe com o meu filho.
– Compro uns auscultadores.
– Ele arranca-lhos.
– Sei que já voltou aos calmantes.
– Não gostaria que houvesse segredos entre nós – respondi alegremente.
– Não lhe fazem nenhum bem.
– Pelo contrário, e seriam excelentes para si.
– Não, obrigado.
– Não estava a oferecer. Vai ter os comprar. Não tenciono ser generoso
com quem atirou a minha última reserva pela retrete.
– É sempre tão chico-esperto quando está drogado?
– Já que não consigo ficar com tusa, ao menos que fique espertinho. É
um bom substituto.
– Porreiro.
– Não é muito civilizado censurar um aleijado por usar muletas – fiz-lhe
notar.
– Pare de sentir pena de si próprio.
– Não sinto tal coisa. Tenho tido sorte. Mais sorte do que você possa
imaginar!
– Não se pode dizer que seja um aleijado.
– Porquê? Por não coxear? Olhe para mim como se eu fosse um quadro.
O que vê?
– Essa outra vez, não. Você é louco!
– Olhe para mim! – Levantei-me. Estava nu. Segurei o pneu da barriga e
sorri. Sorri. Parecia o Lucien Freud nos seus autorretratos. – Se eu fosse um
quadro, que diria de mim?
– Não sei – respondeu ele, enfiando a fralda da camisa dentro das
calças.
– Pelo menos diga-me que título teria o quadro! Bobo velho? Estou a
falar consigo – exclamei. – Olhe para mim! Chupou-me a pila, o mínimo
que pode fazer é olhar para mim quando falo consigo.
Miguel pôs as mãos nas ancas e mostrou-me uma expressão irritada.
– Sei que não me acha assim tão atraente e que só tem relações comigo
por pena. Ou pura perversão – lancei.
Não disse, porém, o que pensava de verdade: que andava a dormir
comigo para se aproximar de António.
Talvez tudo o que pensava fosse a prova acabada de quão grande pode
ser o nosso engano quando procuramos um desenho intrincado sob um
simples padrão!
– Não tenho pena de si – respondeu, zangado.
– Então, nesse caso, qual é o título? – perguntei.
Ele parecia querer bater-me.
– Mercadoria usada – cuspiu. – O homem com demasiadas impressões
digitais no corpo.
Senti-me ruborescer. «Mais uma semelhança… tanto ele quanto o
António são excelentes marcadores!»

Carlos, meu velho amigo, a tua imagem veio perseguir-me quando


fiquei sozinho no quarto. Até me pus a contemplar uns instantes a cicatriz
que me deixaste. Devia ter percebido que estava a enlouquecer quando
pensei que seria bom ter o corpo marcado por cada pessoa que amara –
tatuagens que testemunhassem a minha lealdade, o meu masoquismo ou
pura e simplesmente a minha idiotice.
Também comecei a acreditar que haveria um sentido oculto no facto de
só tu me teres deixado uma recordação visível.
Claro que as drogas também galvanizam. Por isso, meia hora depois, já
me sentia pronto para enfrentar Miguel. Ele estava a fumar a uma mesa
junto à janela. Duas beatas apagadas no cinzeiro.
– Vamos hoje para França – anunciei. – Por isso, faça a mala.
Não esperei pela resposta. Girei nos calcanhares, segui corredor fora e
bati à porta do quarto de António. Nada. Bati com mais força e chamei-o.
Ele abriu ligeiramente. Estava em cuecas. Tinha o cabelo desgrenhado e
uma prega na cara.
– Estava a dormir – protestou ele.
Disse-lhe para fazer as malas.
– O meu pai também vai?
– Recuso-me terminantemente a deixá-lo aqui sozinho, nesta terra atrás
do sol-posto – respondi.
– Não, eu quero que ele venha – ripostou o rapaz. – Estou pronto dentro
de meia hora.
Do lado de fora da porta fechada, não conseguia perceber, mas também
não me apetecia. Só queria aproximar-me de Paris, uma cidade tão grande
que decerto me seria fácil encontrar um canto escuro onde me refugiar.
Metemos as malas no carro e só nesse momento reparei nas feridas que
António ostentava nos nós dos dedos. Mão direita. Aquela que teria de fazer
o dedilhado tremolo quando tocasse os Recuerdos. Não lhe perguntei o que
acontecera. Miguel tão-pouco.
«Se ele não conseguir fazer a audição, deixo-os lá e sigo sozinho até
Praga. Deve ser linda nesta altura do ano, e eu sempre quis conhecer o
Bairro Judeu.»
Dirigi-me para norte para apanharmos a autoestrada, seguindo depois
para leste. Sob o efeito de drogas e ao volante de um velho T-Bird, o mundo
parece-nos surpreendentemente compassivo. Ninguém falava. Miguel roía
as unhas, o olhar errando pela paisagem. António tinha as mãos debaixo das
pernas e o corpo encostado à janela.
Dei por mim a cantarolar quase sempre A Marselhesa, mas também
algumas baladas inglesas.
Atravessámos a fronteira em Hendaia e continuámos pela N10 a
caminho de Bordéus. Formava palavras com as letras das matrículas, as
mãos bem firmes no volante. De repente, a ideia obsessiva de que precisava
de parar em Saintes, uma vila onde estivera talvez uns vinte anos antes,
tomou conta de mim. Temia que alguma coisa de horrível acontecesse se
não pernoitássemos lá.
Parámos para almoçar à entrada de Labouheyre, num restaurante de
beira da estrada, um chalé suíço no meio de um pinhal. Tinha a sensação de
ter entrado num conto de fadas alemão.
– Os Irmãos Grimm – anunciei a António, enquanto nos
encaminhávamos para a porta.
Ele anuiu, dando-me passagem, como se já só a cordialidade restasse
entre nós.
O empregado que nos atendeu usava franja e tinha o ar de um miúdo
aplicado. Descreveu a sopa do dia com expressão alegre: batata com alho-
francês e um cheirinho de aneto.
Traduzi para Miguel, que não falava francês. É difícil esperar por
comida, sem dizer uma única palavra. A tensão começou a subir como uma
maré. Portanto, fui até à casa de banho e emborquei o meu segundo Valium
do dia. Por puro instinto de autopreservação, uma vez de volta à mesa,
decidi encetar conversa.
– Em que modalidade era melhor na ginástica?
– Nas barras paralelas.
– E qual foi a melhor pontuação que obteve?
– Oito ponto setenta e cinco.
– Isso é muito bom. E tu, António?
– Eu o quê?
– Qual foi a tua melhor modalidade?
– Não tive «melhor modalidade». Só entrei para a equipa para agradar a
outras pessoas.
– Referes-te a mim – observou Miguel.
– Quem mais poderia ser? A rainha de Inglaterra?
Silêncio. Decidi esconder-me uma vez mais na casa de banho, onde me
contemplei longamente ao espelho. Tinha os lábios secos e gretados, a linha
do cabelo cada vez mais rala. Aproximei-me e tentei contar o número de
cabelos por centímetro quadrado. Perdia, porém, constantemente a conta.
Quando saí, deixei-me ficar encostado à porta, observando a nossa mesa.
Ninguém me viu senão quando me sentei.
A sopa chegou, quente e reconfortante. Permanecemos o resto do
almoço em silêncio, enquanto, mentalmente, eu ia fazendo jogos de
basquetebol. Era jovem e conseguia fazer um afundanço.
Tinha-me esquecido de trocar dinheiro. Paguei com cartão de crédito.
Miguel começou a listar o que me devia.
Uma vez lá fora, perguntei se um dos dois se importava de conduzir.
Miguel estendeu a mão, e eu atirei-lhe as chaves.
– Agora é você quem comanda – anunciei. Sentei-me ao lado dele.
Mostrei-lhe a estrada que levava de Bordeaux a Saintes. – Tem uma vista
lindíssima dos Alpes – expliquei. Os Alpes ficavam a setecentos e tal
quilómetros dali, mas nem ele nem António me puseram em causa.
Enquanto ele conduzia, pus-me a olhar para as palavras do Life With a
Star. De vez em quando, cantava ao som do rádio. Tinha a sensação de que
no banco de trás repousava a caixa de Pandora, pelo que não me virei uma
única vez.
Chegámos às seis da tarde. Entrámos no parque de estacionamento do
Hotel Cognac, o casarão de quatro andares com a fachada coberta de hera
na margem esquerda do Charente, onde já me alojara em tempos. Mesmo ao
lado, havia uma loja de vestuário para homem. Na alegre vitrina expunham-
se tacos de golfe e meias de padrão escocês. Sentia-me tão aliviado por
estar em Saintes, que me apeteceu ajoelhar e beijar o chão.
– Não sei porque não nos limitamos a dar meia-volta e regressar a casa
– disse António, pressentindo o meu alívio.
Atrevi-me a encará-lo e esbocei um sorriso amarelo.
– Já estás a gostar de França?
– Não. E não vou gostar!
– Então, o mínimo que podes fazer é calar o bico.
– Vai-te lixar! – gritou o rapaz.
Não sei como consegui encontrar raiva no estado em que me
encontrava, mas consegui.
– Não, vai-te lixar tu. Vai-te lixar! – exclamei, voltando-me no assento.
De súbito, dei comigo a gritar em altos berros. – Estás a fazer todos os
possíveis para estragar esta viagem! E talvez consigas. Mas eu atingi o meu
limite!
– E eu o meu! – gritou ele.
– Não – ripostei. – Ainda te faltam alguns anos. Já vi pessoas atingirem
o limite, e tu não estás sequer perto disso. Ainda não vomitas para cima dos
livros que lês. Não tens a cara roxa. Nem os olhos salientes como os de um
inseto. As roupas ainda te servem, porra! Estás a ouvir? Não estás nem
perto! Eu aviso-te quando te aproximares! Vais saber, foda-se, porque nem
vais conseguir lembrar-te de quando ainda tinhas saúde e conseguias berrar
como um ser humano! Vais saber que estás perto quando os teus ossos
ficarem tão salientes que terás medo que um deles te perfure quando te
sentares. Aí, sim, porra, vais estar perto! E aí, sim, terás atingido o teu
limite.
António ficou completamente vermelho do choque. Estendeu a mão
para o manípulo da porta.
– Ainda não acabei! – exclamei. – Não saias daí! Não te atrevas a sair
daí!
Ele revirou os olhos e cruzou os braços.
– Diz tudo o que me tens a dizer agora! Porque, depois disto, recuso-me
a ouvir mais uma queixa, uma só palavra de culpabilização. Se o fizeres,
abandono-te pura e simplesmente. Por isso, diz lá que mais te fiz.
Silêncio.
– Diz-me que mais te fiz! Deves-me pelo menos isso.
– Não fizeste nada – respondeu ele, franzindo o sobrolho.
– Isso não chega. Queres que me cale. – Baixei a voz. – Que mal te fiz
eu? Que injustiça?
– Não fizeste nada.
– Não, não. Tentei ensinar-te. Nenhum professor faz tudo certo. E dormi
contigo. Nenhum amante faz tudo certo. Por isso, que fiz eu de errado?
Foram escalas a mais? Com menos escalas, nunca terias tido sexo com o
Sardinha? É isso? Qual foi a escala? Dó Maior? Ré Maior? Não, deve ter
sido uma escala menor. Qual? Mi Menor? Diz-me qual foi!
Baixou a cabeça.
Miguel tocou-me no ombro.
– Já chega – pediu. – Deixe o miúdo em paz.
Afastei-lhe a mão num gesto brusco.
– E que vai fazer se eu não parar? Bater-me outra vez? Força! –
Empurrei-lhe o peito com violência. – Força, bata-me!
– Bateste-lhe? – perguntou António ao pai.
– Cala-te! – gritei-lhe. – Não é da tua conta. – Encarei Miguel. – Então,
vai dar-me um murro? Porque, se não vai, o melhor é calar a boca!
– Não – disse ele. – Não lhe vou bater. – Pousou novamente as mãos no
volante e baixou os olhos.
– Então, quero saber… se não foi uma escala, o que foi? Os Estudos do
Sor? Foi isso que te levou a teres sexo com um drogado? Foi isso te fez
colidir com o vírus? Foi isso? Um estudo para guitarra de um catalão do
século XVIII disse a um vírus do século XX para te penetrar? Foi isso?
Rastejou da pauta até ti? Diz-me!
– Para – murmurou ele. Estava quase em lágrimas.
– Não. Não te ponhas a chorar! Foi por eu ter dormido contigo? Foi por
isso? Foi a minha pila ou o meu cu? Qual deles?
Esfregou os olhos húmidos e respirou fundo.
– Ou talvez a minha boca? Um beijo? Isso é o mais difícil de tudo, não
é? Foi isso? Se não te tivesse amado como amei… se eu não te amasse,
estarias a salvo? Diz-me! Diz-me! O culpado é o amor? É essa
precisamente a questão… tu culpares o amor?
– Não sei. – Apoiou a cabeça nas mãos, as palmas cobrindo-lhe os
olhos. Todo ele tremia. – Já não sei nada – sussurrou. – Tudo o que sabia se
foi.
Saí do carro e reentrei, sentando-me ao lado dele. Não lhe toquei.
– Desculpa-me qualquer mal que te possa ter feito – pedi no tom mais
brando que alguma vez usei.
Ele assentiu com a cabeça.
– Não me fizeste mal nenhum. Deixa-me sozinho por uns instantes.
Preciso de pensar.
Abracei-o. Ele devolveu-me o abraço, o corpo sacudido pelos soluços.
– Estava a mentir há pouco. Nunca te abandonarei – prometi.
Estreitou-me nos braços com força e chorou durante muito tempo.
– Está dentro de mim. Não consigo habituar-me à ideia. Quero-o fora do
meu corpo – disse, quando conseguiu falar. Arrepiou-se e contorceu-se nos
meus braços. – Quero tanto tirá-lo de mim que me apetece arrancar a pele.
26
Saintes estava linda nesse fim de tarde. É um lugarejo de igrejas
cinzentas e espirais douradas, com um rio pacífico a desdobrar-se como
uma fita de prata entre atentas casas enfileiradas. Banhada na luz, a vila
parece levitar acima da paisagem.
Fomos abençoados com a chegada do solstício de verão, e o Sol
acompanhou-nos até quase às nove da noite. Andámos de igreja em igreja,
admirando os vitrais e as torres de pedra. Éramos três andarilhos
contemplando metafóricas aeronaves do século XIV que levavam até Deus.
Sentámo-nos nuns bancos públicos verdes diante da igreja. Atrás de nós,
um velho carvalho montava guarda.
A exaustão é uma bênção; não conseguíamos discutir mais.
Num pequeno restaurante com teto em abóbada sustentado por grandes
traves de madeira, comemos carne de veado e bebemos vinho tinto local de
um jarro de louça.
Miguel foi-se deitar.
– Adoro-te, meu filho – disse, quando se despedia.
António anuiu, em reconhecimento, mas esquivou-se à festa que o pai
lhe quis fazer na face.
Incluído numa série de concertos de sábado à noite, ia haver um
concerto para órgão à meia-noite.
«Então era por isso que eu tinha de vir a Saintes!»
Uma mulher pequena, de cabelo cinzento-azulado e postura rígida, fez
chover uma cascata de notas na igreja de pedra.
Tocou:
Ricercar dopo il Credo, de Frescobaldi;
Toccata em Mi Menor, de Pachelbel;
E o prelúdio coral de Cristo Jazia nos Laços da Morte, de Bach.
Os guitarristas têm sempre ciúmes dos organistas porque, com um único
toque, conseguem fazer-nos ressoar a caixa torácica. António e eu sorrimos
à custa disso. Demos as mãos, fechámos os olhos e deixámo-nos embalar
juntos.
Nessa noite, de regresso ao hotel na margem do rio, ele perguntou-me
quando é que o pai me tinha batido.
– Em Salamanca – respondi. – Não foi nada do outro mundo.
Pediu-me que passasse a noite no quarto dele.
– Tenho medo do meu pai. Não quero dormir sozinho.
– Porque tens medo dele?
– Acho que me quer matar.
– Matar-te? Porquê?
– Não de forma consciente. Mas sou aquilo de que tem mais medo.
Matar-me seria um alívio para ele.
– António, ele adora-te.
– Ele quer adorar-me – corrigiu António. – É diferente. Ele não sabe o
que é o amor. Nunca soube.
– Então de que é achas que ele tem mais medo?
– De ceder… quero dizer, de se entregar. Tem medo de que as
consequências sejam terríveis. E eu sou a prova disso. O que me aconteceu
poderia acontecer-lhe a ele.
– O que queres dizer exatamente com isso de «se entregar»?
– Sabes o que eu quero dizer.
– Referes-te a ter sexo com um homem?
António parou e pôs-se a olhar a água escura que atravessava a vila.
– Isso, entre outras coisas. Não tenho bem a certeza. Mas tudo o que
implique amar outra pessoa. Beijar alguém no rosto e fazê-lo com
consciência. Não por ter visto outras pessoas fazerem-no e por querer ser
como elas. Ele imita os outros. E isso para mim não chega. É por essa razão
que me afasto. Sabes o que me lembra? Alguém que quer aprender inglês
decorando uma página. Ele consegue repetir a página e enganar-nos,
fazendo-nos crer que domina a língua. Mas nem sequer sabe o que está a
dizer. É assim que ama. Imita o que vê, sem saber realmente do que se trata.
Na verdade, não está a aprender, limita-se a mimetizar. E isso não serve de
nada. Não agora.
Aquilo fazia sentido.
– Mas pode ser que desta vez ele esteja mesmo a aprender a amar –
arrisquei.
– Seria uma mudança imensa. E duvido muito de que ele seja capaz.
– Quando é fundamental, as pessoas mudam.
– Então, depois de tudo o que aconteceu, continuas otimista?
– Não, realista. Já vi acontecer. Às vezes é preciso um trauma. Mas
acontece.
Da água erguia-se uma brisa fresca. António encolheu os ombros e
abraçou-se.
– Talvez – disse, embora o tom sugerisse que não acreditava muito no
que dizia.
– Anda daí, vamos para o hotel. Está a ficar frio. – Tornámos a dar as
mãos. Queria dizer-lhe que tinha feito amor com o pai dele, mas estava
demasiado nervoso. Finalmente, junto do hotel, saiu-me de repente, como
uma confissão.
– Eu sei – disse ele, assentindo com a cabeça.
– Como?
– Ele disse-me.
– Disse-te?
– Sim, disse-me ontem.
– Como disse ele?
– Disse: «Deixei que o teu professor me chupasse.» Gabou-se disso,
como se te tivesse feito um grande favor. O maricas humilha-se diante do
machão. – Encolheu os ombros. – É o costume.
– Custa-me a crer.
– Acredita! Já te disse, ele é um lobo disfarçado de ovelha. Contou-me
que não paravas de lhe implorar. E também disse que não gostou assim
tanto, porque, logo depois, se sentiu imundo.
– Parece impossível. Porque não mo contaste antes?
– Ele só me disse ontem. Foi um dos motivos por que discutimos.
Talvez devesse ter falado contigo. Mas avisei-te desde o princípio. E hoje,
no carro, disseste-me para não me meter na tua relação com ele. Portanto,
achei que tinha feito bem em ficar calado.
Já no hotel, concordei em passar a noite com ele. Emborquei dois dos
três calmantes que tinha escondidos na carteira.
– Amo-te muito – disse António num tom reconfortante, dando-me a
mão na cama.
Virei-me.
– Mas também me detestas um bocadinho.
Ele deu-me uma palmada na barriga.
– Pois detesto.
«Ambivalente… tal como o pai», pensei. Mas já não sabia como definir
Miguel, o que me deixava nervoso. Sentia as pernas a doer. Estiquei-as por
cima da cabeça, enquanto António dormia, e depois pus-me a passear pelo
quarto. Sentei-me de novo e só então apaguei.
Nessa noite, sonhei com aranhas. Foi um sonho reconfortante.
Sugavam-me sangue da planta dos pés, enquanto eu descansava numa teia,
purgando-me de venenos. Embora me fizessem um pouco de cócegas,
sabia-me bem, era um curativo.
Depois disso, começou-me a fazer sentido toda a investigação que
levara a cabo sobre a Judiaria medieval. Percebi que a caraterização dos
vampiros como seres do Mal estava errada. Temiam-nos por serem
diferentes, tal como os judeus.
Fiquei tão entusiasmado que acordei António.
– Que foi? – perguntou ele, sentando-se na cama. – Estás bem?
– Estou ótimo. Ouve… Quem eram os vampiros? Seriam um povo real?
Em que acreditavam?
– Do que estás tu a falar?
– Ouve… só nos restam os retratos que deles fizeram, e as
características que lhes atribuíram são idênticas às que deram aos judeus.
Não percebes? Durante a Idade Média, por exemplo, os médicos cristãos
atestavam que os judeus tinham chifres e caudas, e que os homens judeus
tinham menstruação. Os clérigos diziam que as mulheres judias tinham
poderes sedutores sobrenaturais. Meu Deus, os cristãos defendem há
séculos que os judeus são criaturas das trevas, semelhantes a roedores, que
dos mais distantes cantos do globo conspiram juntos, a coberto da noite,
tentando formar uma nação invisível do Mal. Na Polónia, ainda acham que
os judeus são parasitas sugadores de sangue.
Ele suspirou a esfregou a cara.
– E acordaste-me para me dizer isso?
Eu estava demasiado entusiasmado para me travar.
– Se os judeus tivessem sido completamente aniquilados nos campos da
morte, ou assimilados a ponto de se tornarem invisíveis, ainda leríamos
semelhantes mentiras a seu respeito. É isso que estou a dizer. Dir-nos-iam
hoje que, no tempo em que existiam judeus, era possível distingui-los dos
seres humanos porque não suportavam a luz do sol e só conseguiam dormir
no solo da sua terra, Israel. Alertar-nos-iam para a possibilidade de ainda
restarem alguns, que até nos podiam transformar em judeus com a sua
magia, se não tivéssemos cuidado.
– Vou dormir mais um bocadinho – disse ele. Afofou a almofada e
tornou a deitar-se, não sem antes me lançar um olhar compassivo. – Só mais
uns minutos. Podes contar-me o que quiseres ao pequeno-almoço.
– António – insisti, antes que ele pudesse fechar os olhos −, se
substituirmos judeu por vampiro, percebes que todas as lendas sobre
monstros noturnos sugadores de sangue mais não são do que propaganda ao
estilo nazi. A história é sempre contada pelos vencedores. E todos sabemos
que o vampiro, ao contrário do judeu, perde sempre. No fim, o orgulhoso
herói com físico nórdico consegue sempre cravar-lhe uma estaca de
madeira. No coração, claro. Resumindo, as nossas lendas sobre vampiros
são descrições de um povo cuja história se perdeu, escrita pelos homens
assustados e impiedosos que os tentaram destruir.
– Então onde está a verdade?
– A verdade? A verdade é que as lendas são o resultado do medo
coletivo. Trata-se de algo tão assustador que tem de ser destruído. Não
percebes? Têm medo de nós! Somos os seus descendentes e têm medo de
nós.
António deu-me umas palmadinhas na mão e fechou os olhos. Em
poucos minutos, já estava a dormir.

Era domingo, e os bancos estavam todos fechados. Depois do pequeno-


almoço, eu e Miguel trocámos algumas pesetas no hotel. António ficou com
os trocos.
Pusemo-nos a caminho. Tranquilo, António seguia no lugar do copiloto,
com vários mapas abertos sobre os joelhos, nomeando cada cidade francesa
por que passávamos e lendo os cartazes à beira da estrada no seu melhor
sotaque gaulês. Desisti de vampiros e falámos um pouco sobre teoria
musical. Ouvimos rádio e ele pôs-se a tamborilar com os dedos no porta-
luvas e a cantar ao som dos Queen e dos Aerosmith. Sorria. Eu quase
acreditava que ele era o António que conhecera. Mas estudava Miguel pelo
retrovisor. Fazia-me caretas, como quem pergunta: «Então o que se passa?»
Almoçámos numa estação de serviço na autoestrada. Na casa de banho
tomei mais um calmante, porque os olhos atentos de Miguel me estavam a
deixar nervoso. Agora era ele quem me tirava o ar. Entrou atrás de mim,
postou-se ao meu lado no urinol e abriu o fecho das calças. Estávamos
sozinhos.
– Quero chupar-lhe a pila – sussurrou-me ao ouvido. – Entre numa
cabina.
– Deixe-me em paz – pedi.
Fez-me uma festa na face, mas afastei-o, puxei o fecho das calças e fui
lavar as mãos.
– Que se passa? – perguntou, ligeiramente irritado.
– Deixe-me em paz.
– Quero uma explicação. Que fiz eu?
Encarei-o.
– Contou ao António que estávamos a ter relações?
– O quê?
– Ouviu-me bem.
– Ouvi-o, sim, mas não lhe contei nada.
– Ele diz que sim.
– Então, está a mentir.
– Ou talvez seja você quem está a mentir, não?
– Porque haveria eu de o fazer?
– E porque haveria ele de me mentir?
– Porque tem ciúmes – respondeu Miguel, levando um cigarro à boca.
– Primeiro era você quem tinha ciúmes dele, agora é ele que tem ciúmes
de si. Não goze comigo!
– Não está com ciúmes de mim, Professor. Está com ciúmes de si, de
um homem que consegue confiar no seu pai, que não tem medo dele! –
sussurrou.
As palavras de Miguel fizeram-me compreender que estávamos os três
tão entrelaçados que jamais nos conseguiria deslindar. Não me apetecia
ouvir mais nada. Por isso, dei-lhe umas palmadinhas nas costas e garanti-
lhe, assentindo com ar sincero, que acreditava nele; era mais simples. Por
insistência minha, prometeu que não traria o assunto à baila com António.
Apalpou-me através dos jeans e disse-me que queria, ainda assim, fazer-me
um broche.
– Serei rápido – anunciou.
– Acredito, mas eu não consigo uma ereção. Neste momento, tem um
eunuco à sua frente.
– Eu não lhe contei nada, sabe? – insistiu ele, pousando-me as mãos no
peito.
Agora, só pretendia chegar a Paris, para que António tivesse a audição.
Achei que depois disso conseguiríamos chegar ao Porto, numa fuga de vinte
e quatro horas até à segurança. Daí a dois dias, nenhuma daquelas
complicações entre pai e filho importaria. Eu estaria em casa. Fiama far-
me-ia bacalhau com batatas e cebolas. Até me imaginava a ver televisão no
seu quarto, sentado na cama ao lado dela.
Talvez ligasse à minha mãe e falássemos dos esquilos marotos do seu
jardim e outros assuntos superficiais e agradáveis.
E talvez o fantasma da border collie Nancy estivesse à minha espera e
me indicasse o que havia a fazer para readquirir esperança.
Comprei o The International Herald Tribune para me dar sono e pedi a
António para guiar. Miguel concordou em sentar-se à frente, para que eu
ficasse com o banco de trás todo para mim.
Li sobre:
os combates na Bósnia;
as greves dos enfermeiros na Bélgica;
a mais recente tentativa de fazer aprovar no Congresso dos Estados
Unidos um rigoroso decreto-lei sobre o controlo de armas de fogo.
Só acordei a doze quilómetros a sul de Paris. Miguel abanava-me.
Troquei de lugar com ele e fiz a navegação até à Place Saint-Sulpice. Levou
um tempão, porque os carros pareciam ter-se reproduzido que nem coelhos
desde a última vez que lá estivera. Nunca vira um tráfego daqueles, exceto
em Los Angeles e Nova Iorque.
– Oh, céus – não parava de dizer António. – Paris… nem posso
acreditar.
Ia batendo na coxa e roendo as peles das unhas.
O Hotel Greco não tinha um ar muito promissor: era uma casa com duas
frentes e quatro andares, uma fachada branca com a tinta a descascar, entre
dois plátanos farfalhudos. Entre o segundo e o terceiro andar via-se um
letreiro vertical com letras douradas e duas estrelas, do género dos que se
veem nos motéis americanos. Estacionámos à porta, em cima do passeio.
Entrei e, como Barrabás me tinha indicado, perguntei por Jean Floris. Atrás
do balcão, um homem de cabelo ralo e olhos sonolentos anunciou que Jean
estava de férias, em Nice. O átrio era todo forrado a papel de parede a
imitar madeira, e a alcatifa ostentava um tom castanho-escuro acobreado.
Uma jarra azul com tulipas vermelhas já murchas enfeitava o balcão.
Cheirava a poeira e amoníaco. No meu francês macarrónico, falei de
Barrabás e da possibilidade de termos um desconto. Fui simpático e
humilde, um pouco à moda americana. O homem apontou para um painel
de borracha atrás de si com letras brancas.
– Os nossos preços estão aí indicados – replicou num tom enfadado.
Tinha-me esquecido da hospitalidade parisiense. Eis o que o painel
rezava:
CHAMBRE DOUBLE: 700 FRANCS

CHAMBRE SIMPLE: 550 FRANCS

Ou seja, cem dólares por um quarto individual. Merci, disse. Pedi três
individuais; não me apetecia correr riscos.
Claro que tivemos de ser nós a carregar a bagagem.
– Pequeno-almoço das sete até às dez – tossiu o rececionista enquanto
nos encaminhávamos para o elevador.
Nada indicava que estivesse disposto a informar-nos por iniciativa
própria onde era a sala do pequeno-almoço.
– C’est où? – decidi perguntar.
– Où quoi? Onde é o quê? – replicou ele, ofendido.
– Onde é a sala de pequeno-almoço? – insisti.
Franziu o sobrolho e apontou para baixo.
«Que hotel de merda», pensei.
Os quartos eram pouco maiores do que armários, com a mesma tinta a
descascar que decorava a fachada. Só havia espaço para uma esponjosa
cama individual, com uma colcha cor-de-rosa, uma secretária e um armário.
A minúscula casa de banho fora forrada a azulejos azul-turquesa. Nem
televisão, nem cesta de fruta. Mas estava tudo limpo, pelo que fiquei
contente. António tinha vista para as grandes colunas de Saint-Sulpice,
mesmo do lado oposto da rua. Miguel e eu contentávamo-nos com um pátio
sombrio, onde um carrinho de bebé todo torcido e deitado de lado ficara
esquecido, ao fundo. Debrucei-me da janela e tentei em vão descobrir o
esqueleto abandonado da criança.
Uma vez instalados, cada qual no seu quarto, telefonei para a receção e
pedi linha.
– Um momento – respondeu o rececionista.
O momento transformou-se em dez minutos, que passaram a sessenta.
Quando me questionava já se ele estaria a torturar-me de propósito, obtive,
por fim, linha. Telefonei a Pedro, que estava no Porto.
– Que tal vai isso? – perguntou ele.
– Não te conseguiria explicar nem que quisesse.
– Bem, mal…?
– Ambos. E mais… Mas estou ótimo.
– Estás com uma voz cansada – observou.
– É das drogas.
– Espero que não tenhas caído de novo nos calmantes.
– Põe um freio nas tuas esperanças e não ficarás desiludido.
– Suponho que saibas o que estás a fazer.
– Nem pensar.
– És mais forte do que pensas – comentou.
– Pedro, és um amor, mas achas que as pessoas são melhores e mais
fortes do que realmente são.
– Não acho nada. Mas…
– Achas, sim – interrompi-o. – Olhas para um cogumelo e achas que
estás a ver um feto gigante.
Ele soltou uma gargalhada.
– Bom, mas sempre falaste com o Landero sobre a audição do António?
– inquiri.
– Está tudo tratado. Só há uma complicação. Ele não vai estar no
Conservatório de Paris esta semana. Está à espera que tu lhe telefones para
casa.
Pedro ditou-me o número. Eu repeti-o.
– Que devo dizer quando lhe telefonar? – perguntei.
– Com que então queres fazer isto e não sabes?
– Pedro, não discutas comigo. Neste momento, todos os pensamentos se
me evadem da cabeça, a menos que eu faça um grande esforço para os
aprisionar. O que é que lhe digo?
– Que o António é o melhor aluno que tivemos e que merece tê-lo como
professor.
– O que devo pedir ao miúdo para tocar? – perguntei.
– Tu sabes melhor do que eu.
– Não sei nada!
– Sabes, pois!
– E digo alguma coisa sobre o facto de ele ser gay e estar doente?
– Isso é totalmente irrelevante – garantiu-me Pedro.
– Achas?
Ele suspirou.
– Claro que é. Livra, estás mesmo estranho…
– Estou nervoso. Cansado. Confuso.
– Suponho que sejam razões válidas. Ouve, aguenta-te mais uns dias e
vem para casa assim que puderes. Terei um chá mate pronto para ti.
– Oh, meu Deus, que raio de ideia! Valium com chá mate!
Mal desliguei, telefonei a Landero. Não queria ter oportunidade para
entrar em pânico. Não estava em casa. Respondeu uma voz gravada num
francês com forte sotaque espanhol. António bateu-me à porta enquanto eu
esperava pelo bip. Abri, o telefone na mão. Deixei uma mensagem bem
pormenorizada em inglês, com o nome e o número do telefone do nosso
hotel.
Não há dúvida de que estava com a cabeça nas nuvens, porque nem por
um instante ponderei que António descobriria o meu plano.
– Que história é essa de audição? – quis ele saber.
– Senta-te – pedi-lhe.
Sentou-se à minha esquerda. Eu queria-o do lado direito.
Pedi-lhe que me fizesse o favor. Ele revirou os olhos. Levantou-se e
deixou-se cair do outro lado.
– Agora dá cá a mão.
– Não me apetece.
– Mas eu quero tocar-te.
Pespegou a mão esquerda na minha coxa. Peguei nela e comecei a
massajar-lhe os dedos.
– Que estás a fazer? – perguntou.
– Ouve, tudo se resume a isto. Estou a tentar que tenhas uma audição
com o José Maria Landero. Sabes quem é?
– Sei.
Fiquei calado. Não me lembrava de mais nada para dizer.
– Mas que audição é essa? – quis ele saber.
– Uma das razões por que quis vir a Paris foi porque, enquanto estavas
no hospital, pensei que merecias um professor melhor. Que poderias chegar
mais longe. Tal como disseste. Parece que afinal estávamos em sintonia.
Daqui a uns dois anos, quero que estejas a tocar em concertos, sabes.
Ele retirou a mão e levantou-se.
– Queres que eu estude em Paris?
– Ele ainda não te aceitou. Tens de tocar muito bem na audição. Ele
aceita os melhores alunos do mundo inteiro. Vais competir com prodígios
israelitas de oito anos, cegos de Minsk, que conseguiram aprender a tocar
guitarra graças a estudos da Tora em braille e magia negra cabalística.
– Isto é de loucos – disse. Começou a roer as peles das unhas do polegar
direito.
– Deixa os dedos em paz! – ordenei. – Porque é que é de loucos? –
perguntei.
Ele encarou-me e abriu os braços.
– Não posso sair de Portugal assim sem mais nem menos.
– Porquê? – quis saber.
– Para começar, não tenho dinheiro. O meu pai não é rico. Não temos
dinheiro para essas cenas.
– Podes arranjar aqui um trabalho a tempo parcial. Como empregado de
mesa, ou coisa parecida. Vai fazer-te bem. Ou podes tocar num cafezinho
romântico, onde os namorados se beijam às escondidas.
– Não quero tocar num café.
– Pode ser um café gay – tentei-o.
Revirou novamente os olhos.
– Ouve, não estou a dizer-te o que deves fazer. Estou só a dizer-te que
tens todas as qualificações necessárias para conseguir um emprego como
qualquer outra pessoa.
– Mas, mesmo assim, não conseguirei pagar tudo: aulas, um
apartamento, comida…
– Eu ajudo-te com o resto.
Ele suspirou.
– E por que raio haverias de querer desperdiçar o teu dinheiro com as
minhas aulas, nesta fase do campeonato?
– Ao fim deste tempo todo, não é óbvio?
– Não quero o teu dinheiro. Não quero ficar a dever-te mais do que
aquilo que já devo.
– Não me deves nada.
– Sabes que te vou reembolsar o dinheiro que me deste ao longo desta
viagem… certo?
– Esquece isso.
– Não, vou pagar-te mesmo.
– Está bem. Podes considerar todo o dinheiro que te dou como um
empréstimo.
– Não.
– António, para que raio vou eu poupar dinheiro? Não me resta nada.
Não vou fazer trekking nos Himalaias, nem mergulho no Brasil. Não vou ter
filhos. Por isso, para que é que serve?
– Aí é que está a questão, não é?
– Onde?
– Em mim, o teu filho adotivo. Não sou teu filho!
Começava a sentir falta de ar outra vez. Fui percorrido por uma tontura.
Sentei-me direito e procurei respirar profundamente.
– Que se passa? – perguntou ele.
– Nada. Ouve, confesso que gosto que as pessoas nos tomem por pai e
filho. Mas isso não quer dizer…
– Não quero o teu dinheiro – interrompeu ele.
– Pensei que já tínhamos ultrapassado essa cena.
– Não ultrapassámos.
– Bom, vamos fingir que sim. Que mais problemas há?
– Eu não posso pegar pura e simplesmente nos meus tarecos e mudar-
me.
– As pessoas fazem-no constantemente.
– Eu não sou as pessoas. Além disso, agora… agora que tenho isto
dentro de mim…
– Isso não faz diferença nenhuma.
Ficou calado. Estava de pé, as costas apoiadas na janela. Tinha as mãos
cruzadas sobre o peito.
– Não quero vir para Paris só para que um dia possas dizer que me
conheceste quando eu era um estudantezeco de merda − disse. − Tocar em
concertos, isso é o teu sonho, não o meu. Estás a viver através de mim.
– Isso não é justo. Contaste-me muitas vezes que sonhavas acordado
com tocar no Carnegie Hall e na Ópera de Paris.
– Sonhar acordado… isso não é a realidade.
– Ouve, esta discussão é absurda. Vou combinar a audição. Se quiseres
ir, vais. Se não quiseres, não vais.
– Não vou! – declarou.
Fui à casa de banho buscar a minha navalha turca com o punho de
âmbar; ia pô-la no estojo de medicamentos, para ficar bem guardada. Voltei
para trás e pus-me de pé à frente dele. Estava muito calmo. Virei a mão para
cima. Fiz saltar a lâmina. Fiz um corte de uns dois centímetros no pulso.
Só doeu um pouco. Acho que o Valium me tinha deixado vagamente
anestesiado.
– O que estás a fazer? – gritou António.
– É para não teres de pôr os nós dos dedos a sangrar outra vez. Ou fazer
outra coisa pior. Não quero que dês cabo das tuas oportunidades.
– És doido!
– É possível. Mas aposto que agora não vais mutilar-te.
Fiquei a ver o sangue a pingar sobre a alcatifa cinzenta. Era uma
imagem bonita. Ergui a mão na direção dele.
– Agora vai ensaiar – disse-lhe.
António tinha medo de que um vírus saltasse da boca dele direto para a
minha ferida. Não me disse nem mais uma palavra. Correu a ir buscar o pai,
e depois desapareceu. Na casa de banho, enquanto tratava de mim, Miguel
repetia vezes sem conta:
– Que coisa tão estúpida de se fazer!
Levou imenso tempo até o sangue começar a estancar. Não cheguei a
sentir-me fraco, nem sequer perturbado. Estava convencido de que tinha
feito a coisa certa, e que não era uma pequena cicatriz que me ia atrapalhar
a vida. Miguel exigiu que eu fosse ao hospital para levar pontos. Mas não
me apetecia nem um pouco ir para uma urgência e ficar à espera com todas
aquelas pessoas gravemente doentes e deprimidas. Implorou. Recusei.
Nessa altura, já tinha as calças e a camisa manchadas de sangue. Ele pôs
água quente a correr por cima da ferida. De minuto a minuto, durante meia
hora, dizia-me numa voz furiosa e vagamente histérica:
– Se isto continua, vai sangrar até à morte! O que acha que vai
conseguir com isto? – gritou, quando finalmente me largou o braço.
Eu tinha meio rolo de papel higiénico embrulhado à volta do pulso
naquele momento, e estava encharcado em sangue.
Bati três vezes no lado da banheira com a minha outra mão.
– Não entendo – disse ele.
– As palavras – respondi – às vezes não se encaixam. Elefantes numa
loja de porcelanas.
– Está a dizer coisas sem nexo. São esses calmantes. É o que é! É essa
merda dos calmantes.
– Teria feito a mesma coisa sem eles. Eles só me deixaram a mão mais
firme, e fizeram com que doesse menos. São úteis. Lembra-se daquele
quadro do Francis Bacon em que o tipo se estava a desfazer num espaço
esborratado?
Ele assentiu.
– Pense em como ele se sentiria bem melhor se estivesse drogado.
Sentámo-nos lado a lado na borda da banheira.
– Posso fumar? – perguntou ele.
Disse que sim com a cabeça.
Acendeu um cigarro. Suspirou. Estava suado e coberto de sangue.
Fomos envolvidos por uma nuvem malcheirosa de tabaco, mas não me
importei.
– Estamos em Paris – disse ele. – E não consigo pensar numa única
coisa que me apeteça fazer.
– Nem eu.
– Estava-me destinado – disse ele.
– Paris?
– Não. Este inferno. Este inferno da sida.
– Não estava destinado a ninguém.
– Eu é que devia pagar, não o miúdo. É por minha causa. Ele recebeu os
meus desejos secretos. Foram eles que o tornaram o que é.
– Primeiro que tudo, é apenas um vírus. Quantas vezes preciso de lho
dizer? Ele não sabe quem você é. Pensa que consegue vê-lo a si? Que diz
para si próprio, como uma leoa que ronda a vítima, «Acho que vou atirar-
me àquele velho ginasta musculado ali ao fundo chamado Miguel», e
depois comete um erro qualquer de navegação e salta para dentro do
António por engano? É isso que acha? Não é assim que funciona.
Ele virou-se para mim. Estava pálido.
– A mãe do António não acredita em mim. Mas se pudesse transferir
para mim essa coisa da sida, era o que fazia.
Assenti.
– Fazia-o mesmo. Libertava-o. Já vivi o suficiente. – Abanou a cabeça.
– O resto… não interessa. Libertava-o.
Ficámos sentados em silêncio. Miguel acabou o cigarro e deitou-o para
a retrete. Pôs-me a mão na coxa.
– Como é que se apanha o vírus? – perguntou.
– Tenho a certeza de que sabe.
– Pode apanhar-se com um beijo?
– Não.
Miguel começou a invocar todos aqueles cenários intrincados e
hipotéticos que as pessoas invocam quando sentem pela primeira vez o
medo de ser infetadas. Coisas como: Se eu beijasse um tipo que tenha o
vírus e depois cortasse o pulso meia hora mais tarde e sugasse o sangue
com a boca, podia apanhá-lo?
Ouvi-o com paciência, porque ele estava assustado. O problema é que
nunca conseguimos obter informação suficiente quando estamos em pânico.
Há sempre outro cenário: Se eu bebesse de um copo que já tivesse sido
usado por uma pessoa com o vírus, e se o copo se partisse de repente e me
cortasse o lábio…
– Não há perigo para si – garanti-lhe.
Ele olhou para mim com ceticismo e acendeu outro cigarro.
Tocou o telefone. Corri para o atender. Era o José Maria Landero. Eu
apresentei-me. O inglês dele era uma nódoa. Falámos em francês. Ele disse
que recebia António no seu apartamento no dia seguinte.
– Tem de ser já tão cedo? – perguntei, na esperança de que o rapaz
conseguisse ensaiar bastante mais.
– Tenho de ir a Deauville depois de amanhã – explicou Landero.
Combinámos uma hora. Escrevi o endereço num talão de multibanco, e
a seguir sublinhei-o com tanta força que furei o papel.
27
Fiquei contente por António ter desaparecido; precisava de paz. E
explorar Paris sozinho seria uma boa experiência para ele. Miguel e eu
fomos a pé até aos Deux Magots. Sentámo-nos cá fora na área do café
guardada pelo campanário da Igreja de Saint-Germain. Senti-me feliz com:
as mesas redondas de mármore com bordas de metal;
os guarda-sóis e toldos verdes;
o cheiro do tabaco Gauloises.
Um empregado com ar empertigado, de casaco preto e laço, veio tomar
nota do nosso pedido. Do outro lado da rua, a cruz verde da Le Drugstore
acendia e apagava. O ar era tépido e reconfortante.
Quando o meu chá chegou, descobri que custava vinte e quatro francos,
mais de quatro dólares. O que por si não teria mal nenhum, exceto que era
uma infusão amarga feita com uma saqueta Sir Tea e água da torneira
carregada de cloro. Miguel bebeu um café duplo.
Estávamos entretidos a falar de basquetebol e a observar os nossos
vizinhos de mesa, quando um homem de tronco nu, com um bigode de
pontas arrebitadas, começou a cuspir fogo mesmo à nossa frente. Enchia a
boca de gasolina e a seguir cuspia-a para uma tocha flamejante, criando
uma explosão de fogo. Miguel e eu apressámo-nos a pagar a conta e
refugiámo-nos num restaurante de grelhados coreano na rue du Dragon.
Via-se um minúsculo hibachi elétrico em cada mesa. Nele grelhámos finas
lâminas de carne, que eu comi, com o arroz e o kimchi19, com pauzinhos.
Miguel usou o garfo. Sem razão aparente, sentia-me delirantemente feliz.
Miguel evocava episódios da infância de António.
– Que miúdo aquele! – exclamou. – Eu ficava entusiasmado só de o ver
a correr pela rua fora. Não conseguia parar de o abraçar e cobrir de beijos. –
Esfregou a face. – Talvez lhe tenha dado beijos a mais.
– Coma a sua carne – disse eu.
– Acha que lhe dei beijos a mais? – perguntou.
– Não.
– Éramos tão próximos – disse ele. – Depois, quando me começou a
assustar, afastei-me demasiado. O erro foi a inconsistência.
Fiquei em silêncio.
– A inconsistência. Tenho de dizer isso à mãe do António. Foi a
inconsistência. Ela vai gostar de saber.

Quando regressámos ao hotel, já era quase meia-noite. António tinha a


luz do quarto acesa. Meti-lhe um bilhete por baixo da porta, dizendo-lhe
para ir ter comigo ao átrio de entrada à uma da tarde do dia seguinte, para
podermos estar na audição às duas. Não me arrisquei a escrever mais nada.
De pé no corredor, ouvi-o pegar no papel e amachucá-lo numa bola que
atirou contra a porta.
– Sei que ainda aí estás – disse ele.
Fiz uma figa para me proteger dos demónios e fechei-me no quarto,
sentindo-me invadido por pensamentos desesperantes e uma sensação de
peso no peito. Liguei a água quente do banho para poder inspirar
profundamente o vapor e desobstruir os pulmões. Mas a vontade de tomar
outro calmante não desapareceu. Além disso, não conseguia relaxar os
músculos das pernas. Sentei-me no chão e estiquei-as por cima da cabeça,
mas sentia os nós do tamanho de bolas de ténis, que não cediam de maneira
nenhuma aos meus esforços.
Pus-me a pesar os argumentos a favor e contra tomar mais drogas. Não
me apetecia nada ter alucinações e já tomara dois Valiums antes do jantar.
Abri o tubo de pasta dos dentes e tirei um comprimido. Passei-o por água e
engoli-o. E tomei outro, só para ter a certeza de que dormia sem acordar
várias vezes.
Arrependi-me no minuto a seguir, e tentei em vão forçar-me a vomitar.
Depois, bebi quatro copos de água, imaginando que isso ajudaria a diluir os
princípios ativos na corrente sanguínea.
Mas continuava sem conseguir dormir e agora estava a entrar em
pânico, com medo de ter tomado uma overdose. Excluí a possibilidade de
ligar para o Centro de Informação Antivenenos. Não parava de me virar na
cama.
Recordei-me de alguns filmes em que obrigavam as pessoas que tinham
tomado demasiados comprimidos a andar. Subitamente, veio-me à memória
Susan Hayward vestida com um roupão. Pus-me a andar de um lado para o
outro.
Uma depressão persistente começou a pesar-me. Andasse por onde
andasse, parecia arrastar comigo, enrolada à volta do pescoço, uma criança
morta, com o rosto do meu irmão.
Imaginei-me como um gorila, os nós dos dedos a assentar sobre a
alcatifa, enquanto sentia o sabor ácido do suor que me escorria pelas faces.
Depois, imaginei-me no convés de um navio que oscilava. Durante uns
minutos, senti-me aliviado, mas depois começou a inclinar-se demasiado
para um lado. Sentei-me na cama, mas custava-me respirar naquela posição.
Obriguei-me a pôr-me de pé. Vi-me no espelho por cima da secretária.
Agarrei o pneu da barriga com ambas as mãos. Arranquei a crosta do pulso
e pintei a cara com sangue, para parecer um Apache. Sentei-me e olhei para
o meu reflexo no espelho. «O António vai ficar bem. Tens de ter fé. Só
precisas de mais um comprimido para ver isso com clareza», disse de mim
para comigo.
Por isso, tomei mais um.
Depois pensei: «Vais substituí-lo. Deus vai levar-te em vez dele. E só
vai aperceber-Se do engano quando for demasiado tarde.»
Por isso tomei mais dois. O que perfazia cinco. Para além dos dois que
já tomara ao princípio da noite.
Ao fim de meia hora, sentia-me tão vazio e magro que imaginei que era
feito de papel de arroz preto – um origami gigante vindo das trevas.
Aquilo divertiu-me durante uns momentos. Acho mesmo que cheguei a
rir.
Contudo, fechei a janela, porque o vento era feroz, e tive medo de andar
a voar à volta do quarto como um avião de madeira de balsa, e partir uma
asa.
Pus-me a ouvir os barulhos do tráfego durante algum tempo.
Depois senti-me muito pesado, um biscoito comprido feito de chumbo.
No espelho, os meus olhos flutuavam num mar cor-de-rosa. Fui à casa
de banho e entornei álcool na ferida para me manter acordado. Sentei-me à
secretária e pus-me de novo a olhar para o meu reflexo.
Pareceu-me que o coração parou de bater durante uns instantes. Não
estava a respirar.
«Estou morto», pensei. «E, contudo, há uma coisa parecida comigo ali
no espelho.»
Tive mais alucinações e sonhos semiacordado. Levei a noite inteira
nisso, mas finalmente, quando rompeu a madrugada de segunda-feira,
encontrei António dentro de mim. Tínhamos o mesmo sorriso. Ele era meu
filho, como tinha dito o empregado em Salamanca: Mi hijo.
Queria dizer a Miguel o que descobrira e que não havia razão para estar
triste.
Por isso, arrastei-me até à porta ao lado e bati com força.
Nada.
Sentia as pernas duras e finas como agulhas. Não conseguiam suster-me,
por isso sentei-me no corredor. Soube-me bem estar sentado na alcatifa do
hotel; era como estar em casa no mundo, como ser criança de novo.
Voltei a bater.
Miguel veio à porta. Tinha o cabelo desgrenhado. Olhou para baixo, e
quando me viu franziu o sobrolho.
– Está bem? – perguntou. Depois reparou que eu tinha o pulso a sangrar,
e passou-se.
Agarrou-me pelo braço e tentou erguer-me.
– Estou ótimo – disse eu, armado em forte. – Só queria dizer que
encontrei o António no meu rosto. Ele não nos abandonou por completo.
– Do que raio está a falar?
– Encontrei-o. É verdade. Ele não morreu.
Ergueu-me e levou-me para dentro. António estava sentado na cama.
Fiquei em choque por o ver vivo. Escorreguei por entre as mãos de Miguel
e caí no chão.
Bati com o cotovelo com tanta força contra a estrutura de metal da cama
que pensei que o tinha partido.
– Voltou a fazê-lo – disse o miúdo ao pai.
– A fazer o quê?
– O António está vivo – disse eu a Miguel. – Então quem era? Quem
poderá ter sido?
– Valium – respondeu o rapaz.
– Não estás a perceber – disse-lhe eu. – Tu estavas morto e eu estava à
procura da tua cara no espelho, e levou-me a noite inteira…
– Vamos levá-lo para o duche – disse Miguel.
Os dois seguraram-me com força. Acariciei a face de António.
– Estás vivo. E isso é a única coisa que conta.

19
Couve em salmoura picante, o prato nacional da Coreia. (N. da T.)
28
É a última coisa de que me lembro. Quando acordei, António, sentado
junto à janela aberta, olhava lá para fora, para a Place Saint-Sulpice. Estava
a fumar.
Eu tinha uma forte dor de cabeça e sentia-me desidratado.
– Parece que estou sempre a fazer isto – disse. Bebi água de um copo
que estava na mesinha de cabeceira.
Ele virou-se para mim e sorriu. Apagou o cigarro num cinzeiro pousado
no parapeito e que já tinha um monte de beatas. Sentou-se ao meu lado. As
mãos dele cheiravam a tabaco. Sentei-me na cama e cobri a cara com elas.
– Cheiravas assim da primeira vez que nos conhecemos – disse eu.
– Chamámos um médico – disse António.
– E o que é que ele disse?
– Que te deixássemos dormir. Quantos tomaste?
– Acho que sete.
Deu-me uma palmada no cocuruto.
– Mas que raio te passou pela cabeça?
– Estava nervoso – respondi.
Olhei pela janela. Pus-me à procura de um relógio para ver as horas.
– Oh, merda – exclamei.
António leu-me o pensamento no olhar que lhe lancei.
– Perdeste-a, pois. São três e meia da tarde. Já voltei há uma hora.
– Não, não pode ser. Que horas são, a sério?
Ele fez um sorriso aberto.
– São três e meia.
– Mas isto não pode ter acontecido na vida real. Isto acontece nos
filmes. O professor não pode estar a dormir quando o aluno tem uma
audição.
– Não faz mal. Podíamos ter-te acordado, se achássemos que era
necessário.
Comecei a praguejar. António levantou-se e desfiou uma torrente de
palavras. Fiz-lhe sinal com a mão para se calar.
– Não, cala-te tu! – disse ele. Fiquei atónito. Pensei que me fosse dizer
coisas cruéis, mas limitou-se a observar: – Ouve, o meu pai acabou de sair
para ir buscar qualquer coisa para comer. Ficou o dia todo sentado à tua
cabeceira. Nunca vi uma dedicação destas nele. Foi incrível.
– Diz-me só o que aconteceu na audição.
– Não fiques chateado, mas não me parece que tenha corrido muito
bem. – Encolheu os ombros. – Ele só quis que eu tocasse cinco minutos.
– Não estás a mentir-me, pois não? Foste mesmo?
– Fui.
– Como encontraste a morada?
– Na tua carteira, onde costumas guardar essas coisas – observou ele.
– E?
– E já te disse. Ele mandou-me tocar durante cinco minutos.
– O que tocaste?
– O Prelúdio da Suite para Violoncelo em Dó, de Bach.
– Só isso?
Ele fez que sim.
– E os Recuerdos, não?
– Não.
– Mas tu tocas isso melhor do que qualquer pessoa no mundo.
– Toquei uma coisa onde ainda preciso de ajuda. Não valia a pena tocar
uma coisa onde já cheguei aonde queria.
– Isso não faz sentido – disse eu. Mas fazia.
António encolheu os ombros.
– Não tem importância. Como te sentes?
Fiz um gesto com a mão, como quem diz que não interessa.
– Como era o Landero?
Ele riu-se da minha insistência.
– Bonito e novo. Talvez uns trinta anos. Falava um espanhol muito
esquisito. É mexicano, não espanhol, sabes? Ainda por cima de Tijuana.
Não sabia que havia pessoas verdadeiras de Tijuana. Sabias?
– Gay?
– Não me parece.
– Ótimo – disse eu.
– Porquê?
– Já temos complicações que cheguem.
António riu-se outra vez.
– O que é que tem tanta graça?
– Tu.
– Agora tenho graça? – perguntei, ressentido.
– Não leves a mal. De qualquer forma, não tem assim tanta importância.
– Claro que tem assim tanta importância! Ele disse-te se ia aceitar-te?
– Não.
– O que é que ele disse?
– Perguntou-me se eu gostava de Paris.
– Só isso? Se gostavas de Paris? Mas quem é esse idiota mexicano?
– E como é que eu pagaria as lições, se me aceitasse.
– E tu que respondeste?
– Disse-lhe que não sabia.
– Idiota! – gritei-lhe em inglês. – Porque não lhe disseste em dinheiro. E
que tinhas montes dele. – Apontei para o telefone. – Traz-mo cá!
– Para quê?
– Vou telefonar-lhe.
– Não, não faças isso.
– Traz-me a merda do telefone ou mato-te!
Ele obedeceu.
– E a minha carteira… tornaste a pôr lá o contacto dele?
– Não, sou eu que o tenho. – Tirou do bolso de trás das calças o talão do
multibanco. Leu-me o número, depois voltou para o seu lugar à janela e
pôs-se a roer as peles das unhas. Liguei o número.
– Deixa os dedos em paz! – gritei ao miúdo.
Ele revirou os olhos.
Do outro lado da linha, respondeu uma voz de homem.
– Estou a falar com José Maria Landero? – perguntei.
– Sim… Ah, olá. É você – respondeu ele em francês. – Acabei de
receber o António. Lamento não nos termos encontrado. Sente-se melhor?
Em Paris, deve-se evitar o marisco.
– Estou ótimo. Diga-me, como é que correu?
– Ele é bom. É muito bom. Mas não me parece que tenha lugar para ele
agora. Se esperar mais seis meses, tenho a certeza de que haverá uma vaga.
– Ele só começou a tocar a sério há quatro anos, sabia?
– O seu colega Pedro contou-me. É óbvio que tem um talento
extraordinário.
– Os Recuerdos dele são os melhores que já ouvi. Era o que ele devia ter
tocado para si.
– Ouça, ambos sabemos que ele tem uma carreira à sua frente, se assim
o quiser. Mas neste momento não tenho tempo. Na semana que vem tenho
gravações em Londres. Depois, uma tournée por Espanha e França. Vou
andar para cá e para lá como um louco durante uns tempos. Não posso
aceitar mais um aluno neste momento. Mas posso recomendar outro
professor. Ou, então, ele pode esperar seis meses.
– Ele paga em dinheiro.
– O quê?
– Em dinheiro vivo. Não terá de declarar essas receitas. E podia
encaixá-lo a qualquer hora. Quando alguém cancelar uma lição, telefona-
lhe, e ele vai.
Landero desatou a rir.
Era óbvio que toda a gente me achava engraçadíssimo. É assim que os
seres humanos demonstram empatia na última década do século XX.
– Não se ria, estou a falar a sério – disse eu, zangado.
– Desculpe. É só porque não se trata de uma questão financeira. Há três
anos, sim, agora não. Porque é que isto é tão importante para si?
– Porque esperei demasiado tempo para lhe arranjar um professor
melhor do que eu. Fui egoísta.
De repente, António arrancou-me o telefone da mão e atirou-o com
violência para o recetor.
– Porque fizeste isso? – gritei. – Agora estragaste tudo!
Ele sentou-se ao meu lado e segurou-me nas mãos.
– Não vês o que estás a fazer? Estás a implorar. Para com isso. – Deu-
me um beijo na testa. – Acalma-te. Não aconteceu nada de terrível. Estou
vivo, como disseste. E continuo aqui. Tu continuas aqui. Está tudo bem.
Está tudo bem.
Apertou-me as mãos na suas e continuou a repetir a frase até eu quase
acreditar nele.
Eu não sabia o que dizer. Parecia-me que tudo se tinha perdido e
encontrado. Deixei descair os ombros.
– Sinto-me confuso – admiti.
– Vai correr tudo bem – respondeu o miúdo. – Foi o que tu me disseste
quando tive aquela audição contigo no Conservatório. Lembras-te?
Anuí.
– Sabes, enquanto esperava para tocar para o Landero, pensei no nosso
primeiro dia juntos e de repente apercebi-me de que o meu andamento
estava todo errado. E não só em Bach. Em tudo.
– Que queres dizer com isso?
Ele encolheu os ombros.
– Não estou a explicar-me bem. É como aquilo que o teu irmão disse
sobre o Vale da Sombra da Morte. Tenho de pensar na minha vida como se
fosse música. Como se fosse alguma coisa que precisa de ser tocada no
andamento certo. – Os seus olhos brilharam. – Foi isso que percebi quando
estava ali sentado diante do Landero. A partir de agora, a minha vida tem de
ser música. Compreendes? Não pode ser como era dantes. Tenho de ter
cuidado com ela, estar mais consciente dela do que estava até aqui. – Deu-
me um beijo na testa. – Achas que faz algum sentido?
Anuí com a cabeça e depois comecei a chorar – não só pelas palavras
dele, mas pelo esforço que fazia para que eu o entendesse.
Abracei-o, e fiquei a inspirar o seu perfume. Quando finalmente o
larguei, ele ergueu a mão e começou a pentear a zona onde o meu cabelo
começava a rarear. Limpei os olhos e disse:
– Deixa lá isso, não há nada a fazer. Daqui por um ano, por esta altura,
estarei careca. – Mas os dedos dele eram tão reconfortantes que não me
afastei.
– Não, se o pentearmos como deve ser, ninguém vai notar – respondeu
ele.
– Obrigado, mas não quero o meu cabelo arranjado como deve ser.
– Devias comer mais gelatina.
Arreganhei-lhe o lábio com ar ameaçador.
Enquanto baixava a cabeça para admirar o seu trabalho, disse:
– Eu e o meu pai tivemos uma longa conversa ontem à noite. Foi muito
importante. E abraçou-me como nunca me tinha abraçado. Não estava a
mimetizar. Percebes? Eu estava com ele, com o homem que ele podia ter
sido. E durante alguns minutos, era como se fôssemos a mesma pessoa. As
fronteiras entre nós desapareceram. Mas não tive medo. Nem ele. Pela
primeira vez em muitos anos, tive a certeza de que não tinha medo de mim.
Depois, chorou nos meus braços e agradeceu-me por lhe ter dado a
oportunidade de nos acompanhar nesta viagem. Foi estranho e maravilhoso.
– E há uma última coisa que te quero confessar – acrescentou. – Eu
sempre soube que era gay. Sempre. Tu não tiveste nada a ver com isso.
Teria sido muito infeliz, se não te tivesse conhecido.
Abanei a cabeça.
– Não terias, não. Terias estado ótimo.
– Porque não me deixas desabafar? Teria sido um falhado. Nunca teria
sabido que havia gente gay que era normal, feliz e bondosa. Teria estado
completamente sozinho e passado todo este tempo sem me assumir, à
espera, a bater com a cabeça nas paredes.

Ao fim de um certo ponto, a vida passa a ser uma enorme repetição;


quando Miguel regressou do lanche, despejou todos os meus comprimidos
pela retrete e puxou o autoclismo.
Confessei que também tinha na pasta dos dentes. Pegou nela, pôs-ma
diante dos olhos e espremeu-a toda, fazendo surgir um gigantesco verme
branco. Ele e o filho desataram-se a rir.
– E onde mais? – perguntou com um sorriso.
Estavam tão divertidos, que lhes passei a minha carteira.
– Ao lado da carta de condução.
– Não há mais? – perguntou.
Confirmei.
Ele saltou para a cama e deitou-se ao meu lado. Cobriu a cara com as
minhas mãos. Inspirou.
– Cheiras a ti próprio pela primeira vez há muito, muito tempo – disse.
– E isso é bom ou mau?
– Muito bom – respondeu.
– Não foi o meu cheiro que mudou, sabes. Foi o teu nariz.
– Aonde querem ir comer? – perguntou Miguel, sentando-se ao lado de
António e dando-lhe um beijo na face.
O rapaz pegou nos braços do pai e pô-los à sua volta.
– A qualquer sítio – disse eu. – Talvez outra vez o restaurante coreano
de grelhados. É bom cozinharmos a nossa própria comida.
Miguel deu um beijo no cocuruto de filho e perguntou com orgulho:
– Não é bonito o meu rapaz, Professor?
Apanhámos um táxi para o Marais e comemos comida judaica no Jo
Goldberg’s, na rue des Rosiers. Eles nunca tinham comido especialidades
judaicas.
Fiz o pedido para os três. Comemos…
sopa de almôndegas matzá
couve recheada;
pastrami picante;
e cheesecake.
Ainda pensei pedir peixe recheado, mas só alguém educado no judaísmo
lhe consegue suportar a vista ou o sabor. Henry, o Colosso, dissera-me certo
dia que parecia uma coisa que os Klingons comeriam no Star Trek.
O pastrami foi o grande sucesso da noite.
Depois da sobremesa, António foi à casa de banho. Miguel ficou a ver o
filho a passar pelas mesas em direção às traseiras do restaurante. Acendeu o
cigarro.
– Tem sido uma longa viagem – disse, suspirando.
– Satisfeito por ter vindo?
Ele coçou as faces por barbear.
– Aconteça o que acontecer, ficarei a conhecê-lo. – Rolou a ponta do
cigarro contra a borda do cinzeiro, modelando-lhe a cinza.
Vi nos olhos dele que havia ainda uma preocupação a que não se atrevia
a dar voz, por isso desviei o olhar para lhe dar espaço. Depois de várias
passas no cigarro, disse:
– Perdoa-me?
– O quê?
– Sabe bem o quê.
– Miguel, não há nada a perdoar. Adorei estar consigo. E sabia que não
ia durar.
Ele pegou-me na mão. E sorrimos um ao outro. Não sei exatamente o
que significava para ele, mas era a minha maneira de lhe comunicar que não
havia quaisquer remorsos da minha parte. E que gostava muito dele.

Na terça de manhã, fui acordado pelo telefone. Percebi que se tratava de


uma chamada internacional pelo crepitar da ligação. «Passa-se qualquer
coisa com a minha mãe!», pensei.
– Chamo-me Victoria Atxaga – disse uma mulher num inglês carregado
de sotaque. – Recebi ontem uma chamada do José Maria Landero. Disse-me
que há um aluno seu que merece o melhor professor que conseguirmos
encontrar. – A voz dela era sonora e firme.
– Conseguirmos?
– A culpa é do meu inglês – disse ela. – Você é americano, não é?
– Sou.
– De onde?
– De Nova Iorque.
– Ah, Nova Iorque. O meu lugar preferido em Nova Iorque é o pátio do
Museu de Arte Moderna. Conhece?
– Claro.
– E a Weiser’s. Costumava comprar lá livros usados. É um lugar
encantador. Passei dois anos em Nova Iorque a ler e a tocar guitarra. O meu
marido estava no corpo diplomático.
– Há quanto tempo foi isso?
– Durante a Idade Média. Não me lembro das datas exatas, mas sei que
havia dois Papas, um em Roma e outro em Avignon.
Ri-me.
– Ótimo, já o pus à vontade. Isso é importante… Sou professora de
guitarra. Fui professora do José Maria durante anos. Dantes, dava aulas no
Conservatório de Música de Madrid, mas estou demasiado velha para as
reuniões do corpo docente. Ao fim de algum tempo só apetece encher a cara
dos outros professores de bofetadas. E o barulho! Dou tudo e mais alguma
coisa para não ter de ouvir o som de mais um trombone. Mas, adiante, o
José Maria disse-me que o seu aluno é muito bom e garantiu-me que eu ia
gostar dele. Isso a mim basta-me. O José Maria não é um guitarrista tão
bom como ele pensa, mas é um excelente avaliador de carácter. Excetuando
o seu próprio, claro. Podemos começar assim que o seu aluno quiser.
– Acho que estou confuso – disse eu. – Recue um pouco. O José Maria
falou-lhe em nós?
– Falou. Telefonou-me ontem. Ele queria mandar-me um fax, mas não
tenho máquina. Já reparou que hoje em dia toda a gente envia faxes? É pura
falta de educação, não lhe parece?
– É possível. O que lhe disse o José Maria?
– Só que o seu aluno tem muito talento, e que achou que eu o poderia
ajudar. Ele neste momento está demasiado ocupado… é um erro, creio eu,
perder o contacto com os mais novos. Mas a vida é dele.
Fiquei calado, a pensar no que havia de perguntar.
– Ouça, para dizer a verdade é muito simples – disse ela. – O António
vem ao meu apartamento uma vez por semana para uma aula de duas horas.
– Onde?
– Ah, esqueci-me de dizer. Moro mesmo à saída de Toledo. Não
acontece nada aqui, mas é tão bonito… Alguma vez esteve cá?
– Não.
– Tem de vir!
– Vou, sim. Mas quanto vão custar as lições?
– Se ele for mesmo muito, muito bom, peço-lhe que me pague um
almoço no meu restaurante preferido. Era essa a combinação que tinha com
o José Maria, depois de eu sair do Conservatório. Se for só muito bom,
custa dez mil pesetas por aula. Mas devo avisá-lo de que não ser assim tão
bom lhe pode sair mais barato. O almoço é a minha única refeição, e como
imenso. – Fez uma pequena pausa e acrescentou: – Estou a brincar.
– Porque está a ser tão simpática connosco? Não entendo.
– Simpática? Não estou a ser simpática.
– Então porque o quer como aluno?
– Não é óbvio?
– Não, mesmo nada.
– Ouça, sou professora. É esse o meu trabalho. E se tenho a
oportunidade de dar aulas a um jovem cheio de talento que, segundo me
disseram, é também muito educado, vou tentar ficar com o emprego, não?
– Educado?
– Foi o que disse o José Maria. Porquê, não é?
– É, é. Normalmente.
– E anormalmente?
– Anormalmente, pode ser impossível de aturar.
– Isso também é bom.
Fiquei calado. Não conseguia compreender como é que tinha recebido
de repente uma chamada vinda do nada, sem mais nem menos. Quando o
disse a Victoria, ela respondeu:
– Às vezes também acontecem coisas boas, sabe.
– Suponho que sim.
– Não quero dizer que aconteçam muitas vezes, nem com regularidade,
mas acontecem. Eu própria tive muita sorte.
Qual seria a contrapartida?
– Compreendo a sua hesitação – disse ela. – Você não me conhece. Sou
uma entidade desconhecida. E estou a dizer patetices porque não entendo os
telefones. A tecnologia deixa-me perplexa.
– Está a lidar com ela muito melhor do que eu – confessei.
– Pois, parece que também se atrapalha com os telefones.
– Atrapalho-me com tudo.
– Tenho a certeza de que não.
– Estou só confuso. Tenho andado tanto tempo sem… – ia dizer
esperança, mas não quis usar essa palavra.
– Sem o quê? – perguntou ela.
– Sem a expectativa de encontrar qualquer coisa boa. E, de repente, esta
chamada vinda do nada.
– É simples, e lógico, até. Estudei com muitas pessoas, algumas das
quais já morreram e há muito me assombram a casa. Vai vê-las, se alguma
vez cá ficar. Há vinte e cinco anos que não dou um concerto. Só fiz uma
gravação. Fiquei horrorizada com a falta de qualidade e mandei o meu
marido comprar todos os discos que conseguisse encontrar, até ter sido
retirada do mercado, exceto em Cuba. Ao que parece, ainda lá tenho fãs.
Criei uma família e comecei a ensinar. Gosto muito de ensinar. Mas não
tenho paciência para a falta de talento. É uma falha minha. Peça
informações a meu respeito ao José Maria, se quiser. Mas não acredite em
tudo o que ele diz. É um exagerado.
Deu-me o seu número de telefone e a morada.
Ao escrever o apelido, lembrei-me de uma vez um antigo professor meu
na Manhattan School of Music ter falado numa mulher chamada Atxaga.
– Você estudou com o Alexandre Lagoya? – perguntei.
– Estudei, sim.
– E conheceu o Ida Presti?
– Muito bem.
– E uma vez tocou o Concierto de Aranjuez sob a direção do Leonard
Bernstein, em Jerusalém. Acho que teve qualquer coisa a ver com um
aniversário da fundação do Estado de Israel.
– Como sabe isso tudo?
– O meu professor em Nova Iorque foi o Juan Barrios. Ele costumava
chamar-lhe Bibi.
– Ah, lembro-me do Juanito. Sempre a dar nas vistas. O Juanito e eu
passámos juntos um verão em Buenos Aires.
– Ele disse-nos que você tocava o Concierto de Aranjuez melhor do que
ninguém.
– É bom ouvir isso ao fim de tanto tempo. Ah, que bom, é ótimo termos
o Juanito como amigo comum.
– Bibi Atxaga – disse eu. Não conseguia acreditar. – Você é famosa!
Ela riu-se.
– Ouça, telefono-lhe ainda hoje com uma resposta – disse eu.
– Não há pressa. Não vou a lado nenhum.
– E não vai retirar a sua oferta, pois não?
– Céus, claro que não.
Fiquei calado, porque não sabia como terminar a chamada.
– Anime-se – disse ela. – Não sei como está aí em Paris, mas aqui em
Toledo faz um tempo lindo.
Paris, Toledo, Porto… não estava a perceber nada. Olhei pela janela.
Não conseguia ver o céu, só as paredes de cimento do pátio.
– Acho que aqui também vai fazer um dia lindo – disse.
– Ótimo. Vá dar um passeio. Vá até à Torre Eiffel. Dantes adorava ir até
ao topo. Vá lá por mim!

Eram oito da manhã. Desci para o pequeno-almoço. António e Miguel


ainda não se tinham levantado. Eu estava muito entusiasmado, mas tentei
refrear-me porque não queria telefonar a José Maria Landero antes das
nove. Mas no sítio que dava pelo nome de sala de jantar, uma caverna na
cave, com paredes cor-de-rosa e sem janelas, fazia um calor insuportável e
o café era intragável, pelo que acabei por ir à pastelaria do lado, o Café
Carillon, onde pedi dois croissants e um cappuccino. Um jovem ao meu
lado, de longo cabelo preto, estava a ler Une Vie Avec une Étoile. Quais as
probabilidades de encontrarmos alguém que esteja a ler o mesmo livro que
nós noutra língua?
Apercebi-me nessa altura de que só as histórias de infelicidade,
memória e morte faziam qualquer sentido – não só para mim, como para
muitas outras pessoas. Será que algum de nós iria ler outra vez um simples
policial?
Voltei ao quarto e telefonei a José Maria. Respondeu-me uma mulher.
Expliquei-lhe quem era e a razão do meu telefonema. Disse-me que era a
mulher dele, Clara. José Maria já tinha saído para um concerto privado num
casamento em Deauville. Só regressaria no dia seguinte, e estaria pouco
tempo na cidade, pois tinha outro concerto em Lyon. O francês dela era pior
do que o meu. Falámos em espanhol.
– Oiça, não me compete a mim dizer isto, mas a Victoria é uma mulher
maravilhosa. Se o António puder estudar com ela, tem muita sorte. Como
hei de explicar? Es luz. Ela é luz.
Depois de desligar, não parei de repetir para mim próprio es luz. Achei
que seria bom para o miúdo estudar com uma mulher que era luz.
Deitado na cama, comecei a sonhar acordado com uma fada-madrinha
espanhola. Alguém bateu à porta.
– Está aberta – gritei.
Miguel e António surgiram no limiar.
– Pronto, Professor? – perguntou Miguel.
– Para quê?
– Paris. Tencionamos ver tudo o que há para ver na cidade até ao meio-
dia.
– Podemos ir até ao topo da Torre Eiffel? – perguntei.
Falei-lhes da chamada de Victoria Atxaga enquanto estudávamos a
fachada de Notre-Dame.
– Vai ser mais fácil ir a Toledo – disse Miguel.
– Ainda não decidi nada – respondeu António. – Dêem-me tempo para
pensar.
– Só tens de ir uma vez por semana – sublinhei. – Não vai custar nada.
O miúdo encolheu os ombros.
– Ouve – disse eu –, a vida começa num minuto e acaba no minuto
seguinte. Enquanto paras para pensar, já passaram trinta segundos.
Ele fez que sim.
– Estou só com um bocadinho de medo.
– Mas mesmo assim…
– Pede-lhe para te dar uns duetos – disse eu. – Praticamos os dois
juntos. Não sou velho de mais para aprender.
– Está bem, está bem, está bem…
Caminhámos ao longo do Sena cor de jade até ao Champ de Mars.
Estávamos rodeados de prédios de apartamentos em pedra de um amarelo
deslavado. Acima de nós, viam-se os respetivos telhados inclinados de
xisto; e os cones das chaminés de terracota pareciam canecas de cerveja
gigantes.
Parámos num mercado de rua logo a seguir ao Museu d’Orsay para
admirar a fruta e os legumes. António viu uns tomates-cereja bem
gordinhos e comprou uma caixa deles. Meteu dois na boca. De repente pôs-
se a olhar para mim com ar nervoso.
– Tinha razão – disse, aliviado, limpando a boca com as costas da mão e
oferecendo-me a caixa. – Gosto mesmo do saber do tomate. Finalmente
lembrei-me!
A Torre Eiffel erguia-se diante de nós como um jogo de peças gigante
feito de aço. Tinha aquele ar imponente, porque era um sonho que qualquer
criança poderia ter.
No elevador a caminho do topo, Miguel abraçou António. O miúdo
olhou para mim e acenou-me. Apercebi-me de que tinha estado bem-
disposto durante toda a manhã e dei por mim a esperar que o pior já tivesse
passado, que pelo menos ele já encontrara o andamento correto. Parecia
possível.
Também queria ter esperança numa cura para a sida, mas não consegui.
A trezentos metros do solo, Paris parece um postal pop-up. Os pontos de
referência estão lá todos, emergindo de uma placa de circuito feita de
chaminés: Notre-Dame, o Centro Pompidou, o Arco do Triunfo, a Torre
Montparnasse, os arranha-céus de La Défense, o Sena. Passei a maior parte
do tempo a olhar para La Défense, pensando em Nova Iorque e Los
Angeles, perguntando-me se alguma vez voltaria para casa.
António não se cansava de ver aquilo tudo. Sorria, ria… O vento forte
fazia-lhe esvoaçar o cabelo. Pôs-se a fazer um moon-walk à minha volta.
De novo em terra firme, Miguel anunciou que queriam ir ver o Arco do
Triunfo e depois descer a pé os Champs-Elysées. Disse-lhes que estava com
sono e que nos encontraríamos depois no hotel.
– Não, vem também – implorou António.
– Quando chegarem ao hotel, batam-me à porta – respondi. – E vamos
comer outra vez iguarias judaicas.
Mas eu já sabia que não estaria lá.
Foi difícil dizer adeus. A palavra formou-me um nó na garganta. Agi de
forma natural e disse-lhes que nos veríamos mais tarde no hotel.
Depois virei-me e pus-me a caminho. Tinha o coração a bater
descompassadamente. Acenei-lhes um adeus à distância, mas eles já
estavam perdidos no fundo.
A coragem do próprio António inspirou-me para andar com calma, e fiz
o caminho todo de volta ao hotel como um cavalheiro que vai dar um
passeio. Obriguei-me a fazer a mala como se estivesse a preparar um
piquenique. Achei que não podia contar com a adolescente deslavada da
receção para entregar o meu bilhete a Miguel, por isso convenci-a a dar-me
a chave do quarto dele. Sentei-me à minúscula secretária de madeira e
comecei a escrever. De vez em quando, olhava o meu reflexo no espelho.
Fechei o bilhete num envelope e pu-lo em cima da almofada dele,
juntamente com as chaves para o Batmóvel. Escrevi:

Meus dois companheiros de viagem bonitões:


Compreendo agora que já fiz o meu papel. Vocês precisam de tempo
para estar juntos. Vemo-nos outra vez no Porto. Quando lá chegarem,
telefonem-me, para arranjarmos maneira de ir a Toledo uma vez por
semana. Não se esqueçam de parar em casa da Victoria Atxaga no caminho
de regresso. Vou telefonar-lhe a dizer que passam por lá daqui a mais ou
menos uma semana. Tratem bem do Batmóvel. Amo-vos a ambos.

Por baixo escrevi o nome e o endereço de Victoria. Depois telefonei-lhe


e disse-lhe que ia receber uma visita de António e do pai.
– E você?
– Vou na semana a seguir, para a primeira aula.
– Havemos de ir almoçar – disse ela. – Quero falar sobre Nova Iorque.
Tem de me contar o que mudou por lá. Aposto que muitas coisas!
«Demasiadas», pensei eu. Fiz a mala. António tinha deixado a guitarra
no meu quarto depois da audição. Peguei nela e comecei a tocar Recuerdos
del Alhambra.
Era como se a guitarra estivesse a falar comigo na sua própria língua.
E sabes o que me dizia, Carlos? Eu próprio fiquei surpreendido com a
mensagem.
No seu tenor trémulo, a guitarra garantia-me: «Nunca mais vais sair de
Portugal.»
Sabes, Carlos, ela estava a dizer-me, acredites ou não, que a minha
família era António. E Miguel também.
Na receção, paguei mais três dias de alojamento para os meus
companheiros de viagem. O único autocarro para o aeroporto que conhecia
partia da Gare de Montparnasse. Fui a pé até lá. Às três da tarde havia um
voo da TAP de Orly para o Porto. Cheguei ao aeroporto com duas horas de
antecedência e comprei um bilhete. No avião, fiquei sentado ao lado de uma
mulher de idade vestida de preto, que desembrulhou uma sanduíche de
queijo sobre o golfo da Biscaia. Ofereceu-me uma parte. Recusei.
– Por muitas outras coisas de que necessitemos, sem comida é que não
passamos – insistiu ela.
Tirei um bocado da sua sanduíche. Enquanto comia, pensei na minha
carta para ti, Carlos, e em tudo o que te contaria sobre isto.
Não sou ingénuo, e sei que António vai enfrentar dificuldades
tremendas nos próximos anos. Haverá dias de medo e sofrimento
profundos. E o pior ainda podia acontecer. Mas estarei sempre ao seu lado.
Ele aprendeu isso na viagem. Eu também. E estou convencido de que
Miguel encontrou a coragem de nos acompanhar.
Lembro-me de o meu irmão me dizer que a coisa mais importante que
alguma vez fiz por ele foi chorar a sua morte iminente. Miguel derramou
lágrimas pelo filho, e talvez tenha sido isso que finalmente convenceu
António de que o pai aprendera a amar. Quem poderá saber ao certo? Talvez
António se tenha cansado de lutar.
Será que ser capaz de amar o pai fará diferença na sua vida? Quanto
tempo terá, antes de ouvir os passos da Morte a aproximar-se?
Tantas coisas que jamais saberemos. Temos tendência para transformar
o conhecimento em fetiches, mas, na verdade, de que nos serve?
Passaremos todo o nosso tempo caminhando penosamente para a incerteza.
Mas sabes uma coisa, Carlos, essa incerteza já não me assusta. Será
magia?
Ou simplesmente esperança?
29
Portanto, eis-me de volta ao Porto, ainda com a dor desta carta que
nunca mais termina – uma carta que podes recusar-te a ler. Mas não vale a
pena parar agora.
Regressei há três dias. A Fiama está ótima. Adorou os brincos que lhe
trouxe. O Pedro também está bem. Diz que espera que o livro que lhe
comprei não o impeça de dormir à noite. E até o Salgueiro gostou das calças
de fato de treino que lhe comprei, na sua cor preferida. ´
Sabes, Carlos, se rejeitares a minha proposta, sou bem capaz de aceitar a
oferta do velhote. De certa forma, seria bom ter um namorado avô, e que
vai morrer de velhice quando chegar a sua hora.
A Fiama insistiu para eu que eu fosse ao médico por causa do corte no
pulso e estou a antibióticos, para ter a certeza de que não infeta.
O correio só me trouxe duas coisas interessantes durante a minha
ausência: uma carta da minha ex-agente Libby a dizer que continuava
interessada em tudo o que eu escrevesse sobre judeus e viagens. Pelos
vistos, alguém na Beacon Press lhe escreveu uma carta, assim sem mais
nem menos, a dizer que continuavam muito interessados no projeto.
Já lhe respondi, recusando o convite. Mas talvez lhe envie estas
confissões, mudando o teu nome, e o meu, e o de todos os outros. Pergunto-
me o que pensará disto tudo. Claro que sou o único judeu aqui, mas tem
homossexuais que…
jogam basquetebol e tocam guitarra clássica;
andam à luta e fornicam em três países europeus diferentes;
e ficam viciados em calmantes e crueldade.
Bolas, até há um potencial amante que não consegue decidir em que
equipa prefere jogar!
Tenho quase a certeza de que estas personagens poderiam interessar a
alguém. Outros membros da nossa subespécie, talvez.
Também havia uma carta da minha mãe. Continua a ter pesadelos com o
meu irmão deitado e indefeso nos seus lençóis salmão. Meteu no envelope
duas pétalas de gardénia achatadas, esperando, escreveu, que retivessem um
pouco do seu perfume durante o percurso sobre o Atlântico. Não aconteceu,
mas fiquei sensibilizado com o gesto.
Tenho andado principalmente a dormir e a escrever-te estas palavras,
querido Carlos. Não aconteceu nada digno de registo até às dez desta
manhã, quando regressei do Pérola Negra, onde fui tomar café, e dei com a
porta do apartamento aberta, embora Fiama não estivesse em casa.
Chamei-a. Não houve resposta.
«Estranho», pensei. Mas, como é óbvio, não me ocorreu que Rui, o meu
mouro não assumido tivesse conseguido arrombar a porta e estivesse
escondido no meu quarto. Depois de beber um copo de sumo de líchia na
cozinha, decidi que estava na altura de acabar esta carta, pelo que me dirigi
para o computador, no meu quarto. Assim que transpus a porta, começaram
os murros e, antes que eu percebesse o que se estava a passar, dei comigo de
costas no chão, com um louco em cima de mim. Tinha-me agarrado pelas
orelhas e batia-me com a cabeça contra o chão de madeira, gritando:
– Vou matar-te, bicha de merda!
Felizmente, a adrenalina começou a correr, fazendo-me reagir. Tirei-o
de cima de mim e consegui levantar-me. Foi então que percebi que era Rui.
– Tu! Mas estás louco, ou quê? – gritei. Apalpei a nuca. Por sorte não
estava a sangrar.
Ele arquejava.
– Vou matar-te!
Mas não tinha nenhuma arma à vista. Tirei a navalha do bolso de trás
das calças.
– Vai-te embora, senão espeto-te isto! – gritei.
Ele pôs-se de cócoras, com os braços e as pernas afastados, como se
fôssemos fazer uma luta de sumo. Eu não conseguia acreditar na estupidez
daquele tipo. Estaria eu a preencher-lhe simplesmente alguma fantasia
autodestrutiva?
Quando me tentou agarrar os braços, espetei-lhe a navalha na parte de
cima da coxa.
– Merda, cortaste-me, cabrão. – Não gritou. A sua voz exprimia
perplexidade, como se tivesse acabado de reparar que tinha as meias
desirmanadas. Caiu no chão, e pôs a mão em cima do golpe para estancar o
sangue.
– Oh, céus! Vou chamar uma ambulância – disse eu.
– Não – respondeu ele calmamente.
Fez um esgar de dor, levantou-se e cambaleou até à porta. O sangue
escorria-lhe pela perna das calças.
– Estás louco? – gritei. – Esse corte está bem feio.
A julgar pelo sangue que tinha na navalha, imaginei que teria penetrado
uns bons cinco centímetros na carne.
Não respondeu. Desceu as escadas ao pé coxinho, deixando atrás de si
um rasto de sangue.
Telefonei para o 112 e disse à operadora que havia um homem a sangrar
a sair do meu prédio. Dei-lhe o endereço. Fui à janela procurar o Rui, mas
ele já tinha desaparecido. Não ouvi sirenes.
Comecei a recear que ele pudesse morrer, e imaginei a Polícia a vir no
meu encalço.
Como um rapazinho de escola a fazer aplicadamente o seu trabalho de
casa, enfiei a navalha num saco e guardei-a no congelador, para a guardar
como prova.
«Foi autodefesa», pensei. «Vou arranjar um advogado.»
Depois lembrei-me de que o Rui era como tu, Carlos, por isso não
quereria que ninguém soubesse como aquilo acontecera. Diria aos médicos
nas urgências que tinha tido um acidente de trabalho, que lhe caíra um vidro
em cima da anca, ou outra coisa qualquer.
Fosse como fosse, não ia morrer por causa de um golpe na perna,
pensei, já depois de um duche quente, e enquanto bebia um copo de ouzo, à
espera que Fiama viesse para casa almoçar.
Já tinha dado limpo o meu quarto e a sala, mas Fiama deu pela ausência
do tapete de entrada, e viu as riscas castanhas no chão de madeira. Quando
lhe expliquei o que acontecera, disse:
– Os homens têm andado a chatear-me desde os meus dez anos. Só me
espanta ainda não ter assassinado nenhum.
Tirou o saco do congelador e assobiou, aprovadora. Por insistência
minha, telefonou para o 112 e falou com um supervisor. Descobriu que Rui
tinha sido recolhido em frente da cadeia velha e levado para o Hospital de
Santo António.
Falar com ela clarificou algumas coisas. Apercebi-me de que almas
frustradas como o Rui acreditam que as pessoas como eu e o António
merecem morrer, não tanto por serem homossexuais, mas por serem livres.
Agora que a excitação já passou, a louça está lavada e estou sozinho em
casa, chegou o momento da minha proposta:
Queres tentar resolver as coisas? Aposto que nunca pensaste que te
fizesse esta pergunta. Mas a verdade é que todos nos aproximamos do
túmulo em passos constantes, mesmo tu e eu, e só temos esta vida. E eu
ainda te amo. E sei que há um Carlos dentro de ti – escondido – que vale a
pena amar.
Depois de leres esta carta, terás uma ideia muito melhor de quem é este
homem que te quer. Será que vale os riscos que vais correr? Só tu o poderás
dizer.
Penso que também me amas. Acho que foi isso que te assustou tanto.
Embora talvez esteja a tresler os teus atos. Talvez não me suportes.
Vou manter-me limpo das drogas.
Faremos amor com ternura. E só quando ambos quisermos mesmo.
Não falaremos mais do que o necessário sobre o nosso passado. Talvez
ainda haja tempo para fazermos algumas viagens juntos.
Não tenho quaisquer compromissos que não possam ser cancelados –
exceto, claro, o que tenho com o António. Como disse, ele e o Miguel são a
minha família agora. Irei uma vez por semana a Toledo com o miúdo,
aconteça o que acontecer.
Se isso te provocar ciúmes, terás de lidar com eles; há certas coisas de
que não posso prescindir, nem mesmo pelo teu amor.
És um homem inteligente, e sabes que tem de haver uma contrapartida:
não aguentaremos a pressão, se continuares fechado no teu armário escuro.
Isso envenenará tudo o que dissermos, fizermos e pensarmos, tal como
aconteceu da última vez. Por isso, tens de entreabrir uma porta e espreitar
cá para fora.
A terra não vai abrir-se e engolir-nos.
Não vais transformar-te numa coluna de sal.
Nenhum herói nórdico te vai cravar uma estaca no coração.
Prometo.
Não estou a dizer que temos de pôr um anúncio no jornal a declarar ao
mundo que és gay, nem atravessar a praça principal do Porto vestidos de
couro preto. No entanto, se não admitires as tuas preferências – pelo menos
para ti próprio –, ficaremos separados para sempre.
Nunca poderemos falar das nossas vidas.
Nunca teremos amigos que nos amem.
Nunca aprenderemos a dar prazer um ao outro.
E nunca seremos capazes de confiar um no outro.
Sabes, nos quase dois anos que estivemos juntos, não me lembro de
termos falado de outra coisa que não fosse a tua arte? Não foi o suficiente.
Não vai ser suficiente.
Não gostavas de viver com um amigo? Não gostavas que alguém te
conhecesse? Não gostarias de andar na rua sem teres de te preocupar com o
que os outros pensam de ti?
Porque serias livre.
Há muitos anos que viajo, entre países e relações. Essa experiência
permitiu-me escrever-te esta carta. Estou cheio de medos e de
arrependimentos, como já deve ser claro para ti neste momento. Sinto-me
assombrado pelo passado. E terei certamente mais fantasmas no meu futuro.
Sou frágil. E tu também és, claro.
Por isso… Vem até ao Porto num fim de semana destes. Ou então vou
eu a Lisboa. Vamos explorar-nos mutuamente. Perdoar-nos mutuamente.
Veremos o que acontece. Que me dizes?
Agradecimentos
Estou muito grato a todos os que leram o manuscrito deste romance e
partilharam comigo os seus preciosos comentários: Alexandre Quintanilha,
Ruth G. Zimler e Dorothy Bryant. Um agradecimento especial à minha
brilhante e incansável editora, Sofia Fraga, e a todos os que trabalham na
Porto Editora. Estou também muito reconhecido à minha maravilhosa
tradutora, Daniela Garcia, à Professora Doutora Maria Helena Anacleto-
Matias, à Maria da Piedade Ferreira, à Inês Fraga e aos meus fiéis leitores
portugueses.

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