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"Quando o mundo estiver


unido na busca do
conhecimento, e não mais
lutando por dinheiro e poder,
então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um
novo nível."
Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
Dedicatória
Epígrafe
Sobre Paul Goodman
Conhecendo Artaud
Fascismo fascinante
Sob o signo de Saturno
O Hitler de Syberberg
Recordando Barthes
A mente como paixão

Notas
Sobre a autora
Créditos
para Joseph Brodsky
HAMM: Adoro as velhas perguntas.
(Com fervor.)
Ah, as velhas perguntas, as velhas respostas, não
existe nada como elas!

Beckett, Fim de partida


Sobre Paul Goodman

Estou escrevendo num quarto pequeno, em Paris, sentada numa cadeira


de palhinha, diante de uma mesa de datilografia, de frente para uma janela
que dá para um jardim; atrás de mim, há uma cama de solteiro e uma
mesinha de cabeceira; no chão e embaixo da mesa, espalham-se
manuscritos, cadernos e dois ou três livros em brochura. O fato de eu morar
e trabalhar, há mais de um ano, em aposentos tão diminutos e despojados,
embora não tenha sido planejado ou previsto, no início, sem dúvida
responde a determinadas necessidades de me desapegar, de me isolar por
um tempo, de buscar um novo ponto de partida, onde eu encontre o mínimo
de proteção possível. Desta Paris em que moro, que tem tão pouco a ver
com a Paris de hoje quanto a Paris de hoje tem a ver com a grande Paris,
capital do século XIX e berço da arte e das ideias até o fim da década de
1960, os Estados Unidos é o mais próximo dentre todos os lugares
distantes. Mesmo durante os períodos em que não saio de casa — e nos
últimos meses houve muitos, e abençoados, dias e noites em que não tive
vontade nenhuma de deixar minha máquina de escrever, senão para dormir
—, toda manhã alguém me traz o Herald Tribune de Paris, que é uma
colagem monstruosa de “notícias” dos Estados Unidos, espremidas,
distorcidas, mais estranhas do que nunca, vistas a essa distância: os aviões
B-52 despejando uma chuva de morte ambiental no Vietnã, o repulsivo
martírio de Thomas Eagleton, a paranoia de Bobby Fischer, a ascensão
irresistível de Woody Allen, excertos do diário de Arthur Bremer — e,
semana passada, a morte de Paul Goodman.

Descobri que não consigo escrever só seu prenome. Nós nos tratávamos
obviamente de Paul e Susan sempre que nos encontrávamos, porém, tanto
em minha cabeça como em conversas, ele nunca era Paul nem mesmo
Goodman, mas sempre Paul Goodman — o nome completo, com toda a
ambiguidade de sentimento e de familiaridade que essa forma implica.
A dor que sinto com a morte de Paul é mais aguda porque não éramos
amigos, embora coabitássemos alguns dos mesmos mundos. Conhecemo-
nos dezoito anos atrás. Eu tinha 21, era aluna de pós-graduação em
Harvard, com o sonho de morar em Nova York, e, numa viagem de fim de
semana à cidade, um conhecido de Paul levou-me ao apartamento da rua 23
onde Paul e a esposa estavam comemorando o aniversário dele.
Embriagado, esbravejava com voz rouca para que todo mundo ouvisse suas
aventuras sexuais e falou comigo apenas o tempo suficiente para ser
levemente grosseiro. A segunda vez que nos vimos foi quatro anos depois,
numa festa em Riverside Drive, na qual ele parecia mais contido, mas
também frio e fechado.
Em 1959, me mudei para Nova York e, daí em diante, durante os últimos
anos da década de 1960, nos vimos muitas vezes, embora sempre em
público — em festas promovidas por amigos em comum, em mesas-
redondas e seminários sobre o Vietnã, em passeatas e manifestações. Em
geral, eu fazia um esforço tímido para conversar com ele sempre que nos
encontrávamos, na esperança de poder lhe dizer, direta ou indiretamente,
como seus livros eram importantes para mim e como eu havia aprendido
muito com ele. Em todas as vezes, ele me rechaçava e eu me recolhia.
Amigos comuns me disseram que, de fato, ele não gostava de mulheres
como gente — apesar de abrir exceção para umas poucas específicas, é
claro. Resisti o mais que pude a essa hipótese (me parecia vulgar); depois,
enfim, me rendi a ela. Afinal, seus textos me passavam essa mesma
sensação: por exemplo, o principal defeito de Growing Up Absurd
[Amadurecimento absurdo], que pretende abordar os problemas da
juventude dos Estados Unidos, é que trata a juventude como se fosse
formada apenas por meninos adolescentes e homens jovens. Minha atitude,
quando nos encontrávamos, deixou de ser receptiva.
No ano passado, outro amigo em comum, Ivan Illich, me convidou para
ir a Cuernavaca na mesma ocasião em que Paul Goodman estava
participando de um seminário e comentei que eu preferia chegar depois que
Paul Goodman tivesse ido embora. Por conta de muitas outras conversas,
Ivan sabia como eu admirava a obra de Paul Goodman. Porém, o forte
prazer que eu sentia toda vez que pensava que ele estava vivo, saudável e
que escrevia nos Estados Unidos transformava numa verdadeira provação
toda situação em que eu me via na mesma sala que ele e, além disso, era
nítida minha incapacidade de estabelecer o mais leve contato. Nesse sentido
bastante preciso, portanto, Paul Goodman e eu não apenas não éramos
amigos, como, além disso, eu não gostava dele — a razão, como expliquei
muitas vezes, lamentando-me, enquanto ele estava vivo, era que eu tinha a
sensação de que ele não gostava de mim. Eu sempre soube a que ponto esse
desagrado comigo era patético e meramente formal. Não foi a morte de Paul
Goodman que, de uma hora para outra, me convenceu disso.
Ele tinha sido um herói para mim por tanto tempo que não fiquei nem um
pouco surpresa quando se tornou famoso, e sempre me surpreendeu que as
pessoas parecessem não lhe dar valor. O primeiro livro que li de Paul
Goodman — aos dezessete anos — foi uma coletânea de contos intitulada
The Break-Up of Our Camp [O fim do nosso acampamento], publicado pela
editora New Directions. Um ano depois, eu tinha lido tudo o que ele havia
publicado e, daí em diante, acompanhei toda a sua obra. Não existe outro
escritor americano vivo por quem eu tenha sentido essa curiosidade pura e
simples de ler, o mais rápido possível, tudo o que escrevesse, sobre
qualquer assunto. A razão principal não era que eu concordava com a maior
parte do que ele pensava; havia outros escritores com que eu concordava e
aos quais não fui tão fiel. O que me seduzia era aquela voz que ele tinha —
aquela voz direta, raivosa, vaidosa, generosa, americana. Se Norman Mailer
é o mais brilhante escritor de sua geração, certamente isso decorre da força
e da excentricidade de sua voz; no entanto, de certo modo, sempre achei
essa voz demasiado barroca, demasiado fabricada. Admiro Mailer como
escritor, mas não acredito em sua voz. A voz de Paul Goodman é autêntica.
Em nossa língua, desde D. H. Lawrence não havia uma voz tão
convincente, genuína e singular. A voz de Paul Goodman conferia a tudo o
que ele escrevia um toque de intensidade, de interesse, além de sua
estranheza e segurança próprias, aliciantes ao extremo. Seus escritos eram
uma mistura nervosa de tensão sintática e talento verbal; ele era capaz de
escrever frases de uma pureza de estilo esplêndida e linguagem vivaz, e
também podia escrever com tamanha negligência e deselegância que o
leitor chegava a imaginar que estava fazendo aquilo de propósito. Mas isso
não tinha importância. Era a sua voz, ou seja, sua inteligência e a poesia de
sua inteligência encarnada, que me mantinha presa como uma viciada fiel e
fervorosa. Embora com frequência ele não fosse gracioso como escritor, sua
escrita e seu pensamento tinham um toque de graça.

Existe um ressentimento americano terrível e maldoso com o escritor que


tenta fazer muitas coisas. O fato de Paul Goodman escrever poemas, peças
e romances, além de crítica social, o fato de escrever livros sobre
especialidades intelectuais reservadas aos monstros sagrados profissionais e
do meio universitário, como planejamento urbano, educação, crítica
literária, psiquiatria, era usado contra ele. Muita gente se escandalizava por
ele ser um parasita acadêmico e um psiquiatra marginalizado, ao mesmo
tempo que era muito sagaz a respeito das universidades e da natureza
humana. Essa ingratidão é, e sempre foi, espantosa para mim. Sei que Paul
Goodman se queixava muito disso. Talvez a manifestação mais pungente
esteja no diário que escreveu entre 1955 e 1960, publicado sob o título Five
Years [Cinco anos], no qual lamenta o fato de não ser famoso, reconhecido
nem recompensado pelo que era.
O diário foi escrito no final de sua longa obscuridade, pois, com a
publicação de Growing Up Absurd, em 1960, ele ficou realmente famoso e,
daí em diante, seus livros tiveram grande circulação e, supõe-se, foram
amplamente lidos — se é que a constância com que as ideias de Paul
Goodman foram repetidas (sem o devido crédito) pode servir de prova de
que isso de fato acontecia. A partir de 1960, ele começou a ganhar dinheiro
e foi levado mais a sério — e recebeu a atenção dos jovens. Tudo isso
parece ter lhe agradado, embora ainda reclamasse de não ser famoso o
bastante, de não ser lido o bastante, de não ser admirado o bastante.
Longe de ser um egomaníaco insaciável, Paul Goodman tinha toda razão
ao pensar que não recebia a atenção merecida. Isso se manifesta claramente
nos obituários que li, desde sua morte, na meia dúzia de jornais e revistas
americanos que consigo obter aqui em Paris. Nesses obituários, ele não
passa de um escritor dissidente interessante, que se dispersou demais, que
publicou Growing Up Absurd, que influenciou a juventude rebelde
americana na década de 1960, que era indiscreto sobre a própria vida
sexual. O comovente obituário escrito por Ned Rorem, o único que li que dá
alguma ideia da importância de Paul Goodman, saiu no Village Voice, um
jornal lido por larga parcela do círculo de Paul Goodman, apenas na página
17. Da maneira como chegam as avaliações, agora, depois de sua morte, vê-
se que é considerado uma figura marginal.
Eu jamais desejaria para Paul Goodman o tipo de estrelato na mídia
concedido a McLuhan ou mesmo a Marcuse — algo que reflete muito
pouco a influência real e que não revela a medida em que um escritor está
sendo lido. A minha queixa diz respeito ao fato de que Paul Goodman foi,
não raro, pouco valorizado até pelos próprios admiradores. Para a maioria
das pessoas, creio, nunca ficou claro que se tratava de uma figura
extraordinária. Ele era capaz de fazer quase tudo e tentava fazer quase tudo
que um escritor pode fazer. Embora sua ficção tenha se tornado cada vez
mais didática e esvaziada de poesia, ele continuou a crescer como um poeta
de uma sensibilidade considerável e inteiramente fora de moda; algum dia,
alguém vai descobrir como é boa a poesia que escreveu. A maior parte do
que Paul Goodman disse em seus ensaios, sobre pessoas, cidades e o
sentimento de vida, é verdadeiro. Seu alegado amadorismo é idêntico a sua
genialidade: esse amadorismo o habilitava a conferir às questões da
educação, da psiquiatria e da cidadania uma extraordinária e mordaz
acuidade de percepção — e liberdade para encarar a mudança prática.

É difícil listar todas as maneiras pelas quais me sinto em dívida com ele.
Por vinte anos, ele foi para mim o mais importante escritor americano. Era
o nosso Sartre, o nosso Cocteau. Não tinha a inteligência teórica requintada
de Sartre; nunca chegou a tocar a fonte louca e opaca da fantasia genuína
que Cocteau tinha, ao praticar tantas formas de arte. No entanto, tinha dons
de que nem Sartre nem Cocteau dispunham: um sentimento intrépido sobre
o que é a vida humana, um fôlego e uma exigência de paixão moral. Sua
voz na página impressa é verdadeira, para mim, como ocorre com a voz de
pouquíssimos escritores — familiar, envolvente, exasperante. Desconfio
que, em seus livros, existia um ser humano mais nobre do que em sua vida,
algo que costuma acontecer com frequência na “literatura”. (Às vezes, é o
contrário, e a pessoa é mais nobre na vida real do que nos livros. Às vezes,
não existe quase nenhuma relação entre a pessoa nos livros e a da vida real.)
A leitura de Paul Goodman me energizava. Ele foi um dos poucos
escritores, vivos e mortos, que definiram para mim o valor de ser escritor e
de cuja obra extraí os critérios com que eu avaliava minha própria obra.
Nesse panteão diversificado e muito pessoal, havia alguns escritores
europeus vivos, mas nenhum escritor americano vivo, exceto ele. Tudo o
que ele fazia no papel me agradava. Eu o admirava quando se mostrava
teimoso, desastrado, melancólico, até equivocado. Seu egoísmo me deixava
mais comovida do que incomodada (como muitas vezes ocorre com Mailer,
quando o leio). Eu admirava sua inteligência, sua disposição de servir.
Tinha em alta conta sua coragem, que se revelava de tantas maneiras —
uma das mais admiráveis era a honestidade a respeito de sua
homossexualidade em Five Years, motivo pelo qual foi muito criticado por
amigos heterossexuais no mundo intelectual de Nova York; isso faz seis
anos, antes de o advento da Libertação Gay transformar a saída do armário
em algo sofisticado. Eu o apreciava quando falava de si mesmo e também
quando misturava seus tristes desejos sexuais com seus desejos sobre o
regime político. A exemplo de André Breton, com quem poderia ser
comparado em vários aspectos, Paul Goodman era um connoisseur de
liberdade, prazer, alegria. Lendo seus textos, aprendi muito sobre esses três
quesitos.
Esta manhã, ao começar a escrever este texto, enfiei a mão embaixo da
mesa junto à janela a fim de pegar papel para a máquina de escrever e vi
que um dos três livros em brochura soterrados pelos manuscritos era New
Reformation [Nova Reforma]. A despeito de eu estar tentando viver um ano
sem livros, um ou outro acabou se infiltrando, não sei como. Parece
conveniente que, mesmo aqui, neste quarto minúsculo em que os livros
estão proibidos, onde eu tento ouvir melhor minha voz e descobrir o que eu
penso de verdade e sinto de verdade, ainda existe pelo menos um livro de
Paul Goodman por perto, pois não houve nenhum apartamento em que
morei nos últimos 22 anos que não contivesse a maioria de seus livros.
Com ou sem seus livros, continuarei marcada por Paul Goodman.
Continuarei a lamentar que não esteja mais vivo para falar, em livros novos,
e que teremos de seguir em frente em nossas tentativas atabalhoadas de nos
ajudar, de dizer o que é verdadeiro, de libertar a poesia que tivermos em
nós, respeitar a loucura uns dos outros e o direito de estar errado, e cultivar
nossa ideia de cidadania, sem as provocações de Paul, sem suas explicações
pacientes e tortuosas de tudo, sem a graça do exemplo de Paul.

(1972)
Conhecendo Artaud

O movimento para desconstituir o “autor” está em curso há mais de cem


anos. Desde o início, o ímpeto era — e ainda é — apocalíptico: fulgurante
de lamento e de júbilo, diante da queda convulsiva das antigas ordens
sociais, sustentado por essa sensação mundial de que se vive um momento
revolucionário, que continua a animar a maior parte da excelência
intelectual e moral. O ataque contra o “autor” persiste a pleno vapor,
embora a revolução ou não tenha ocorrido ou, quando ocorreu, rapidamente
asfixiou o modernismo literário. Gradualmente se transformando, nos
países que não foram remodelados por uma revolução, na tradição
dominante na alta cultura literária, em vez de ser sua subversão, o
modernismo continua a desenvolver códigos para preservar as novas
energias morais, ao mesmo tempo que as mantém em compasso de espera.
O fato de o imperativo histórico que parece desacreditar a própria prática da
literatura ter durado tanto tempo — um período que cobre numerosas
gerações literárias — não significa que foi mal compreendido. Tampouco
significa que o mal-estar do “autor” esteja fora de moda na atualidade ou
seja inadequado, como às vezes se sugere. (As pessoas tendem a se tornar
céticas até mesmo a respeito das crises mais apavorantes, se tais crises
parecem se arrastar por tempo demais, sem conseguir chegar a um
desfecho.) Mas a longevidade do modernismo demonstra o que acontece
quando a resolução profetizada de uma inquietação social e psicológica
drástica é adiada — quantas virtudes insuspeitas de perspicácia e de
angústia, e quanta domesticação da angústia, podem florescer nesse ínterim.
No conceito estabelecido, e sob contestação crônica, a literatura é
modelada com base em uma linguagem racional — ou seja, aceita no
âmbito social —, em uma diversidade de tipos de discurso internamente
coerentes (por exemplo: poema, peça, épico, tratado, ensaio, romance), na
forma de “obras” individuais julgadas por normas como veracidade, poder
emocional, sutileza e relevância. No entanto, mais de um século de
modernismo literário deixou clara a contingência dos gêneros estabelecidos
no passado, minados pela noção de obra autônoma. Os critérios usados para
elogiar obras literárias hoje em dia não parecem nem evidentes nem muito
menos universais. Eles são a confirmação das ideias de racionalidade, ou
seja, da mente e da comunidade, de uma cultura particular.
O papel de ser “autor”, desmascarado como conformista ou não, continua
inexoravelmente subordinado a determinada ordem social. Sem dúvida,
nem todos os autores pré-modernos enalteciam as sociedades em que
estavam inseridos. Um dos papéis mais antigos do autor consiste em
convocar a comunidade para prestar contas de suas hipocrisias e de sua má-
fé, como Juvenal em suas Sátiras castigou as insanidades da aristocracia
romana e Richardson em Clarissa denunciou a instituição burguesa do
casamento-propriedade. Mas o espectro de alienação para os autores pré-
modernos ainda era limitado — soubessem eles disso ou não — para
atacarem os valores de uma classe ou meio em favor dos valores de outrem.
Os autores modernos, em busca de escapar dessa limitação, uniram-se na
tarefa grandiosa apontada por Nietzsche um século atrás, de reavaliar todos
os valores, e redefinida por Antonin Artaud no século XX como a
“desvalorização geral de valores”. Por mais quixotesca que seja, essa tarefa
esboça a poderosa estratégia pela qual os autores modernos declaram que
não são mais responsáveis — no sentido de que tanto autores que celebram
seu tempo como aqueles que o criticam são igualmente cidadãos
cumpridores das normas da sociedade em que atuam. Os autores modernos
podem ser reconhecidos por seu esforço para desconstituírem a si mesmos,
pela vontade de não serem moralmente úteis à comunidade, por sua
inclinação a se apresentarem não como críticos sociais, e sim como
profetas, aventureiros do espírito e párias sociais.
Inevitavelmente, desconstituir o autor acarreta uma redefinição de
“escrita”. Quando esta não mais se define como responsável, a aparente
distinção do senso comum entre a obra e quem a produziu, entre fala
pública e privada, se torna vazia. Toda a literatura pré-moderna se
desenvolve a partir da concepção clássica de escrita como uma realização
impessoal, autossuficiente, autônoma. A literatura moderna projeta uma
ideia muito diferente: a concepção romântica de escrita como um meio no
qual a personalidade singular se expõe heroicamente. Essa referência, na
essência privada do discurso público e literário, não requer que o leitor
saiba, de fato, grande coisa a respeito do autor. Apesar da disponibilidade
de vasta informação biográfica sobre Baudelaire e quase nada sobre a vida
de Lautréamont, As flores do mal e Maldoror são igualmente dependentes,
como obras literárias, da ideia do autor como uma personalidade
atormentada que violenta a própria e singular subjetividade.
Na visão iniciada pela sensibilidade romântica, o que é produzido pelo
artista (ou filósofo) contém, como estrutura reguladora interna, um cômputo
dos esforços da subjetividade. A obra extrai suas credenciais do lugar que
ocupa em uma experiência viva singular; ela supõe uma totalidade pessoal
inesgotável, da qual a “obra” é subproduto, inadequadamente expressivo
daquela totalidade. A arte se torna a afirmação da consciência de si — uma
consciência que pressupõe desarmonia entre o eu do artista e a comunidade.
Com efeito, o esforço do artista é medido pela extensão de sua ruptura com
a voz coletiva (da “razão”). O artista é uma consciência que tenta ser. “Eu
sou aquele que, a fim de ser, precisa fustigar o que tem de inato”, escreve
Artaud — o mais didático e o mais intransigente herói da autoexacerbação
na literatura moderna.
Em princípio, o projeto não pode dar certo. A consciência como dado
jamais pode constituir-se plenamente como arte, mas deve se empenhar
para transformar suas fronteiras e alterar as fronteiras da arte. Assim,
qualquer “obra” singular tem duplo estatuto. É única, específica, e é um
gesto literário já representado, além de uma declaração metaliterária
(muitas vezes estridente, não raro irônica) sobre a insuficiência da literatura
no tocante a uma condição ideal da consciência e da arte. A consciência
concebida como projeto cria um padrão que condena, inevitavelmente, a
“obra” a ser incompleta. No modelo da consciência heroica que visa a nada
menos que a autoapropriação total, a literatura terá como meta o “livro
total”. Medida pela ideia do livro total, toda escrita, na prática, consiste em
fragmentos. O padrão de inícios, meios e fins não se aplica mais. A
incompletude se torna a modalidade reinante da arte e do pensamento,
abrindo espaço para antigêneros — obra que é deliberadamente
fragmentária ou autoanuladora, pensamento que desfaz a si mesmo. Porém
a debacle dos padrões antigos não requer que se negue o fracasso dessa arte.
Como diz Cocteau, “a única obra que dá certo é aquela que fracassa”.

A carreira de Antonin Artaud, um dos últimos grandes exemplares do


período heroico do modernismo literário, resume cabalmente essas
reavaliações. Tanto na obra como na vida, Artaud fracassou. Sua obra inclui
poesia; poemas em prosa; roteiros de cinema; textos sobre cinema, pintura e
literatura; ensaios, diatribes e polêmicas sobre teatro; várias peças e
anotações para numerosos projetos teatrais inacabados, entre eles uma
ópera; um romance histórico; um monólogo dramático em quatro partes,
escrito para o rádio; ensaios sobre o culto ao mescal entre os indígenas
tarahumaras; pontas fulgurantes em dois filmes importantes (Napoleão, de
Gance, e A paixão de Joana d’Arc, de Dreyer) e muitas outras de pequena
relevância; além de centenas de cartas, sua forma dramática mais acabada
— tudo isso redunda num corpus fraturado, automutilado, uma vasta
coleção de fragmentos. O que ele deixou de herança não foram obras de
arte concluídas, mas uma presença singular, uma poética, uma estética de
pensamento, uma teologia da cultura e uma fenomenologia do sofrimento.
Em Artaud, o artista como vidente se cristaliza, pela primeira vez, na
figura do artista como vítima de sua consciência. Aquilo que é prefigurado
na prosa poética do spleen de Baudelaire e no registro de Rimbaud de uma
temporada no inferno se torna a afirmação de Artaud sobre sua consciência
incansável e angustiada da inadequação da própria consciência em relação a
si mesma — os tormentos de uma sensibilidade que se julga
irremediavelmente alheia do pensamento. Pensar a língua e usar a língua se
transforma em um calvário perpétuo.
Nas metáforas que Artaud usa para descrever seu tormento intelectual, a
mente é tratada ou como uma propriedade cujo direito não é tido com
clareza (ou cujo direito perdemos) ou então como uma substância física
intransigente, fugidia, instável, obscenamente mutável. Já em 1921, aos 25
anos de idade, ele define seu problema como o de alguém que nunca
conseguiu ter posse da própria mente “em sua inteireza”. No decorrer da
década de 1920, Artaud se lamenta porque acredita que suas ideias o
“abandonaram”, porque se vê incapaz de “descobri-las”, por não conseguir
“alcançar” sua mente, por ter “perdido” a compreensão das palavras e
“esquecido” as formas do pensamento. Em metáforas mais diretas,
enfurece-se contra a erosão crônica de suas ideias, a maneira como seu
pensamento se despedaça debaixo dele ou escorre para longe; Artaud
descreve sua mente como fissurada, em deterioração, em petrificação, em
liquefação, em coagulação, vazia, impenetravelmente densa: as palavras
apodrecem. Ele sofre não com a dúvida de que seu “eu” pense, mas sim
com a convicção de que o próprio pensamento não lhe pertence. Ele não
afirma ser incapaz de pensar; diz na verdade não “ter” pensamento — o que
ele entende como muito mais do que ter ideias ou juízos corretos. “Ter
pensamento” indica o processo por meio do qual o pensamento se sustenta,
se manifesta para si mesmo e corresponde a “todas as circunstâncias de
sentimento e de vida”. É nesse sentido de pensamento, sentido que toma o
pensamento como sujeito e objeto de si mesmo, que Artaud afirma não
“ter” pensamento. O artista mostra como a consciência hegeliana,
dramática, autocontemplativa, pode alcançar o estado de alienação total (no
lugar de sabedoria desinteressada, abrangente) — porque a mente continua
a ser um objeto.
A linguagem que Artaud usa é profundamente contraditória. Sua
imagística é materialista (transformar a mente numa coisa ou num objeto),
contudo sua demanda redunda no mais puro idealismo filosófico. Ele se
recusa a considerar a consciência senão como um processo. Entretanto, é o
caráter de processo da consciência — seu caráter de fluxo e de algo
inapreensível — que ele vivencia como um inferno. “A dor real”, revela
Artaud, “está em sentir que nosso pensamento se modifica dentro de nós
mesmos.” O cogito, cuja existência evidente em si mesma não parece
demandar prova nenhuma, parte numa busca desesperada, inconsolável, de
um ars cogitandi. A inteligência, Artaud observa horrorizado, é a
contingência mais pura. Nos antípodas do que Descartes e Valéry relatam
em seus grandes épicos otimistas sobre a busca de ideias claras e definidas,
uma Divina Comédia do pensamento, Artaud relata a desgraça interminável
e a perplexidade da consciência em busca de si mesma: “essa tragédia
intelectual em que sempre sou derrotado”, a Divina Tragédia do
pensamento. Ele se descreve como “em busca constante de meu ser
intelectual”.
A consequência do veredicto de Artaud sobre si mesmo — a convicção
de sua alienação crônica da própria consciência — é que sua lacuna mental
se torna, direta ou indiretamente, o tema dominante e inesgotável de seus
escritos. Parte dos relatos de Artaud sobre sua Paixão de pensamento chega
a ser uma leitura quase dolorosa demais. Ele pouco elabora suas emoções
— pânico, confusão, raiva, temor. Seu talento não era o da compreensão
psicológica (por não ser bom nisso, ele a desdenhava como algo banal), e
sim, mediante um modo mais original de descrição, uma espécie de
fenomenologia fisiológica de sua desolação interminável. A afirmação de
Artaud, em O pesa-nervos, de que ninguém jamais mapeou tão
acuradamente seu eu “íntimo” não é exagero. Em nenhuma parte de toda a
história da escrita em primeira pessoa existe uma exposição tão incansável e
minuciosa da microestrutura da dor mental.
Artaud não se limita, no entanto, a registrar sua angústia psíquica. Ela
constitui sua obra, pois, enquanto o ato de escrever — de dar forma à
inteligência — é uma agonia, essa sensação também fornece energia para o
ato de escrever. Embora Artaud tenha ficado muitíssimo frustrado quando
os poemas relativamente bem-compostos que apresentou à Nouvelle Revue
Française em 1923 foram rejeitados por seu editor, Jacques Rivière, que os
julgou carentes de harmonia e coerência, o rigor de Rivière se comprovou
libertador. Daquele momento em diante, Artaud passou a negar que
estivesse criando mais arte, adicionando itens ao armazém da “literatura”. O
desprezo pela literatura — um tema da literatura modernista proclamado
com retumbância primeiro por Rimbaud — tem uma inflexão diferente, no
tocante à maneira como Artaud o exprime, na era em que os futuristas,
dadaístas e surrealistas o haviam transformado num lugar-comum. O
desprezo demonstrado por ele em relação à literatura tem menos a ver com
um niilismo difuso sobre a cultura do que com uma experiência específica
do sofrimento. Para Artaud, a extrema dor mental — e também física —
que nutre (que autentica) o ato da escrita é necessariamente falsificada,
quando essa energia é transformada em labor artístico: quando ela atinge o
estatuto benigno de um produto literário acabado. A humilhação verbal da
literatura (“Toda escrita é lixo”, declara Artaud em O pesa-nervos)
salvaguarda o estatuto perigoso, quase mágico, da escrita como uma nave
digna de transportar a dor do autor. Insultar a arte (como insultar o público)
é uma tentativa de livrar-se da corrupção da arte, da banalização do
sofrimento.
O elo entre sofrimento e escrita é um dos temas principais de Artaud:
ganhamos o direito de falar por termos sofrido, mas a necessidade de usar a
língua é, em si, a ocasião central do sofrimento. Ele se descreve como
devastado por uma “confusão atordoante” da “língua em suas relações com
o pensamento”. A alienação de Artaud em relação à língua apresenta a face
escura das alienações verbais da poesia moderna repletas de êxito — de seu
uso criativo das possibilidades puramente formais da língua, da
ambiguidade das palavras e da artificialidade dos significados fixos. O
problema de Artaud não é o que a língua é, mas a relação que mantém com
o que ele chama de “apreensões intelectuais da carne”. O artista nem se
permite a queixa tradicional de todos os grandes místicos, de que as
palavras tendem a petrificar o pensamento vivo e a transformar o sensorial,
o orgânico, o imediato da experiência em algo inerte, meramente verbal. A
luta de Artaud contra o caráter morto da língua ocorre apenas em segundo
plano; ela é, sobretudo, contra as refrações da sua vida interior. Empregadas
por uma consciência que se autodefine como paroxística, as palavras se
tornam facas. Artaud parece ter sido atormentado por uma vida interior
extraordinária, na qual a complexidade e o diapasão clamoroso de suas
sensações físicas e as intuições convulsivas de seu sistema nervoso
pareciam permanentemente em conflito com sua capacidade de lhes dar
expressão verbal. O choque entre instrumento e impotência, entre dons
verbais extravagantes e uma sensação de paralisia intelectual, constitui a
trama psicodramática de tudo o que ele escreveu; e manter essa disputa
dramaticamente válida requer o exorcismo repetido da respeitabilidade
associada à escrita.
Assim, Artaud menos liberta a escrita do que a põe sob suspeita
permanente, ao tratá-la como o espelho da consciência — de modo que o
espectro do que pode ser escrito é coextensivo à consciência em si mesma,
e a verdade de qualquer afirmação termina por depender da vitalidade e da
completude da consciência em que ela tem origem. Contra todas as teorias
da mente hierárquicas, ou platonizantes, que tomam uma parte da
consciência como superior a outras, Artaud sustenta a democracia das
pretensões mentais, o direito de todo nível, tendência e faculdade da mente
ser ouvido: “Nós podemos fazer tudo na mente, podemos falar com
qualquer tom de voz, mesmo num tom inconveniente”. Artaud se recusa a
excluir qualquer percepção como trivial demais ou crua demais. A arte
deveria ser capaz de falar de qualquer lugar, pensa ele — embora não pelas
razões que justificam a franqueza de Whitman ou a licenciosidade de Joyce.
Para Artaud, barrar quaisquer transações possíveis entre níveis diferentes da
mente e da carne redunda numa despossessão do pensamento, numa perda
da vitalidade, em seu sentido mais puro. Esse alcance tonal estreito que cria
“o assim chamado tom literário” — literatura em suas formas
tradicionalmente aceitáveis — se torna pior do que uma fraude e um
instrumento de repressão intelectual. É uma sentença de morte mental. A
noção de verdade de Artaud estipula uma concordância exata e refinada
entre os impulsos “animais” da mente e as operações mais elevadas do
intelecto. É essa consciência ágil, plenamente unificada, que ele evoca nos
relatos obsessivos da própria insuficiência mental e em sua rejeição da
“literatura”.
O teor da consciência é o critério final de Artaud. O artista vincula, de
maneira infalível, seu utopismo da consciência ao materialismo psicológico:
a mente absoluta é também absolutamente carnal. Desse modo, seu mal-
estar intelectual é ao mesmo tempo o mais agudo mal-estar físico, e toda
afirmação que ele faz acerca de sua consciência é igualmente uma
afirmação a respeito do seu corpo. De fato, o que causa sua incurável dor de
consciência é a recusa de considerar a mente à margem da situação da
carne. Longe de ser desligada do corpo, sua consciência é aquela cujo
martírio resulta de sua relação ininterrupta com o corpo. Em sua luta contra
todas as noções hierárquicas de consciência ou dualistas, Artaud
constantemente trata a própria mente como se fosse uma espécie de corpo
— um corpo que ele não podia “possuir”, porque era ou virginal demais ou
conspurcado demais, e ainda um corpo místico, por cuja desordem ele
estava “possuído”.
Seria um erro, é claro, tomar ao pé da letra a afirmação de Artaud sobre
sua impotência mental. A incapacidade intelectual que ele descreve está
longe de indicar os limites de sua obra (Artaud não demonstra nenhuma
inferioridade em suas faculdades de raciocínio), mas decerto explica seu
projeto: repassar com minúcia os filamentos pesados e emaranhados de seu
corpo-mente. A premissa da escrita de Artaud é sua profunda dificuldade de
conjugar “ser” e hiperlucidez, carne e palavras. Ao lutar para corporificar o
pensamento vivo, o artista compunha febrilmente; por exemplo, entre um
texto explanatório e uma descrição onírica, ele introduz uma carta — uma
carta para um correspondente imaginário ou uma carta real, em que omite o
nome do destinatário. Ao mudar de forma, ele muda de fôlego. A escrita é
concebida como o desencadeamento de um fluxo imprevisível de energia
abrasadora; o conhecimento deve explodir nos nervos do leitor. Os detalhes
da estilística de Artaud decorrem diretamente de sua ideia de consciência
como um emaranhado de dificuldade e sofrimento. Sua determinação de
romper a carapaça da “literatura” — pelo menos, de violar a distância
autoprotetora entre leitor e texto — está longe de ser uma ambição nova na
história do modernismo literário. Mas ele pode ter chegado mais perto do
que qualquer outro autor de realizar isso, de fato — por meio da
descontinuidade violenta de seu discurso, da radicalidade de sua emoção, da
pureza de seu propósito moral, da carnalidade excruciante do registro que
faz de sua vida mental, da autenticidade e da grandeza da provação que
suportou, a fim de simplesmente usar a língua.

As dificuldades de que Artaud se lamenta persistem porque ele está


pensando o impensável — como o corpo é mente e como a mente também é
corpo. Esse paradoxo inesgotável é espelhado em seu desejo de produzir
uma arte que é, ao mesmo tempo, antiarte. Este último paradoxo, porém, é
mais hipotético do que real. Ao ignorar as renúncias de Artaud, os leitores
inevitavelmente assimilarão suas estratégias de discursar para a arte toda
vez que elas alcançarem (como ocorre com frequência) certo timbre de
incandescência triunfante. E três livrinhos publicados entre 1925 e 1929 —
O umbigo do limbo, O pesa-nervos e A arte e a morte — que podem ser
lidos como poemas em prosa, mais esplêndidos do que qualquer outra coisa
que Artaud fez antes como poeta, mostram que se trata do maior poeta em
prosa da língua francesa, desde o Rimbaud das Iluminações e de Uma
temporada no inferno. Contudo, seria incorreto separar de seus outros
escritos aquilo que é mais bem-acabado como literatura.
A obra de Artaud nega a existência de qualquer diferença entre arte e
pensamento, entre poesia e verdade. A despeito das rupturas na exposição e
na variação de “formas” dentro de cada obra, tudo o que ele escreveu
propõe uma linha de argumentação. Artaud é sempre didático. Nunca parou
de insultar, reclamar, exortar, denunciar — mesmo na poesia escrita depois
de ter saído da clínica psiquiátrica em Rodez, em 1946, na qual a língua se
torna parcialmente ininteligível; ou seja, uma presença física imediata. Toda
sua escrita é feita em primeira pessoa e é um modo de falar com as vozes
misturadas do encantamento e da explanação discursiva. Suas atividades
são simultaneamente arte e reflexões sobre arte. Num antigo ensaio sobre
pintura, ele declara que as obras de arte “têm o mesmo valor das
concepções sobre as quais estão apoiadas, cujo valor é aquilo que mais uma
vez estamos pondo em questão”. Da mesma forma que a obra de Artaud
redunda numa ars poetica (da qual sua obra não é mais do que uma
exposição fragmentária), assim também ele toma a criação da arte como um
tropo para o funcionamento de toda a consciência — da vida em si mesma.
Esse tropo foi a base da filiação de Artaud ao movimento surrealista,
entre 1924 e 1926. Da maneira como o autor entendia o surrealismo, ele era
uma “revolução” aplicada a “todos os estados mentais, a todos os tipos de
atividade humana”, e seu estatuto como tendência no âmbito das artes era
secundário e estratégico, apenas. Artaud deu boas-vindas ao surrealismo —
“acima de tudo, um estado mental” — como uma crítica da mente e como
uma técnica para desenvolver o alcance e a qualidade que ela apresenta.
Sensível como era, em sua vida privada, para as ações repressivas da ideia
burguesa da realidade cotidiana (“Nascemos, vivemos, morremos num
ambiente de mentiras”, escreveu em 1923), Artaud foi naturalmente atraído
pelo surrealismo em razão de sua defesa de uma consciência mais sutil,
imaginativa e rebelde. Mas logo descobriu que as fórmulas surrealistas
eram outro tipo de confinamento. Ele se viu expulso, quando a maioria da
irmandade surrealista estava prestes a aderir ao Partido Comunista Francês
— um passo que denunciou como traição. Uma revolução social real não
muda nada, insiste ele, em tom de escárnio, na polêmica que redigiu contra
o “blefe surrealista”, em 1927. A adesão daqueles artistas à Terceira
Internacional, embora tivesse sido de curta duração, era um estímulo
plausível para que ele deixasse o movimento, mas sua insatisfação era mais
profunda, e não somente um desacordo sobre o tipo de revolução que era
desejável e relevante. (Os surrealistas eram dificilmente mais comunistas
que Artaud. Em André Breton, mais do que política, havia um conjunto de
solidariedades morais extremamente atraentes, que em outra fase iriam
colocá-lo no rumo do anarquismo e que, de forma bastante lógica, o levaria,
na década de 1930, a tornar-se partidário e amigo de Trótski.) O que
certamente contrariava Artaud era uma fundamental diferença de
temperamento.
Foi com base num mal-entendido que Artaud aderiu, com fervor, à
contestação surrealista dos limites que a “razão” estabelece para a
consciência, e também à fé dos surrealistas no acesso a uma consciência
mais ampla por meio de sonhos, drogas, arte insolente e comportamento
social. O surrealista, pensava ele, é alguém que “perde a esperança de
alcançar a própria mente”. A referência é feita a si mesmo, é claro. O
desespero está de todo ausente da tendência predominante nas atitudes
surrealistas. Os benefícios que adviriam de destrancar os portões da razão
eram anunciados pelos surrealistas, que ignoravam as abominações. Artaud,
extravagantemente consternado na mesma medida em que os surrealistas
eram otimistas, poderia no máximo conceder, com apreensão, legitimidade
ao irracional. Enquanto os surrealistas propunham jogos refinados com a
consciência, os quais ninguém podia perder, ele estava empenhado numa
luta mortal para se “restaurar”. Breton sancionava o irracional como uma
rota útil rumo a um novo continente mental. Para Artaud, privado da
esperança de estar viajando para onde quer que fosse, o irracional era o
campo de seu martírio.
Ao estender as fronteiras da consciência, os surrealistas esperavam não
só depurar o reinado da razão, como ampliar o rendimento do prazer físico.
Artaud era incapaz de esperar qualquer prazer da colonização de novos
reinos da consciência. Em contraste com a defesa eufórica da paixão física e
do amor romântico pelos surrealistas, o artista encarava o erotismo como
algo ameaçador, demoníaco. Em A arte e a morte, ele descreve “essa
preocupação com o sexo que me petrifica e faz meu sangue gritar”. Em
muitos de seus escritos, os órgãos sexuais se multiplicam numa escala
monstruosa, colossal, e em formas ameaçadoramente hermafroditas; a
virgindade é tratada como um estado de graça e a impotência e a castração
são apresentadas — por exemplo, na imagística gerada pela figura de
Abelardo, em A arte e a morte — antes como libertação do que como
castigo. Os surrealistas pareciam amar a vida, registra Artaud em tom
desdenhoso. Ele sentia “desprezo” por ela. Ao explicar o programa do
Comitê de Pesquisa Surrealista em 1925, Artaud havia definido o
surrealismo, favoravelmente, como “certa ordem de repulsas”, apenas para
concluir, no ano seguinte, que tais repulsas eram muito rasas. Como Marcel
Duchamp disse, num comovente tributo a seu amigo Breton em 1966,
quando da morte deste, “a grande fonte da inspiração surrealista é o amor: a
exaltação do amor eletivo”. O surrealismo é uma política espiritual da
alegria.
A despeito da recusa apaixonada de Artaud ao surrealismo, seu gosto era
surrealista — e assim continuou. Seu desdém do “realismo” como uma
coleção de banalidades burguesas é surrealista, assim como seu entusiasmo
pela arte dos loucos e dos não profissionais, pela arte que vem do Oriente,
por tudo o que é radical, fantástico, gótico. O desprezo de Artaud pelo
repertório dramático de seu tempo e pela peça teatral dedicada a explorar a
psicologia dos personagens individuais — um desprezo básico para o
argumento dos manifestos em O teatro e seu duplo, escritos entre 1931 e
1936 — parte de uma posição idêntica à daquela com que Breton descarta o
romance no primeiro “Manifesto Surrealista”, de 1924. Artaud, porém, faz
usos completamente distintos de seus entusiasmos e dos preconceitos
estéticos que compartilha com Breton. Os surrealistas são connoisseurs da
alegria, da liberdade, do prazer. E ele é um connoisseur do desespero e da
luta moral. Embora os surrealistas explicitamente recusassem conferir à arte
um valor autônomo, não percebiam nenhum conflito entre anseios morais e
anseios estéticos. Nesse sentido, Artaud está muito certo ao dizer que o
programa deles é “estético” — meramente estético, ele quer dizer. O artista
percebe isso como um conflito e exige que a arte se justifique por padrões
de seriedade moral.
Do surrealismo, Artaud deriva a perspectiva que liga sua própria crise
psicológica perene àquilo que Breton (no “Segundo Manifesto Surrealista”,
de 1930) chama de “crise geral da consciência” — uma perspectiva que
Artaud manteve ao longo de todos os seus escritos. Porém, nenhuma noção
de crise, no cânone surrealista, é tão desoladora quanto a de Artaud. Ao
lado das percepções laceradas de Artaud, ao mesmo tempo cósmicas e
intimamente fisiológicas, as jeremiadas surrealistas parecem mais
refrescantes do que aterradoras. (Na verdade, não são dirigidas à mesma
crise. Sem dúvida, Artaud sabia mais do que Breton a respeito do
sofrimento.) Um legado oriundo do surrealismo deu a ele a possibilidade de
continuar, ao longo de toda a sua obra, a aceitar o pressuposto de que a arte
tem uma missão “revolucionária”. Mas a ideia de revolução de Artaud
diverge daquela dos surrealistas tanto quanto sua sensibilidade devastada
diverge da de Breton, essencialmente sadia.
Artaud também manteve, dos surrealistas, o imperativo romântico de
fechar o abismo entre arte (e pensamento) e vida. Ele começa O umbigo do
limbo, escrito em 1925, declarando-se incapaz de conceber uma “obra que
seja desligada da vida”, de “criação desinteressada”. Mas Artaud insiste,
com mais agressividade do que os surrealistas jamais demonstraram,
naquela desvalorização da obra de arte separada, que decorre de estabelecer
vínculos entre arte e vida. Como os surrealistas, ele encara a arte como uma
função da consciência, e cada obra representa apenas uma fração do todo da
consciência do artista. Mas, ao identificar a consciência principalmente com
seus aspectos obscuros, ocultos, excruciantes, ele transforma o
desmembramento da totalidade da consciência em “obras” separadas não
num procedimento arbitrário (que era o que fascinava os surrealistas), e sim
num procedimento que derrota a si mesmo. O estreitamento que Artaud
realiza da visão surrealista torna uma obra de arte inútil, em si mesma; na
medida em que é considerada uma coisa, ela está morta. Em O pesa-nervos,
também de 1925, o autor associa suas obras a “produtos residuais” sem
vida, meras “raspagens da alma”. Esses pedaços desmembrados da
consciência adquirem valor e vitalidade apenas como metáforas para obras
de arte; ou seja, metáforas para a consciência.
Ao desdenhar de toda visão desinteressada da arte, toda visão da arte que
encara as obras de arte como objetos (para serem contemplados, para
encantar os sentidos, para edificar, para distrair), Artaud assimila toda arte à
performance dramática. Em sua poética, a arte (e o pensamento) é uma ação
— que, para ser autêntica, deve ser brutal — e também uma experiência
sofrida e carregada de emoções radicais. Ao ser, ao mesmo tempo, ação e
paixão desse tipo, iconoclástica e evangélica em seu fervor, a arte parece
requerer um cenário mais desafiador, fora dos museus e dos locais de
exposição legitimados, assim como uma forma nova e mais rude de
confrontação com a plateia. A retórica do movimento interior que sustenta a
noção de arte de Artaud é impressionante, mas não altera a maneira como
ele realmente consegue recusar o papel tradicional da obra de arte como
objeto — mediante uma análise dela e uma experiência em relação a ela que
são uma enorme tautologia. Ele vê a arte como ação e, portanto, como uma
paixão da mente. A mente produz arte. O espaço em que a arte é consumida
é também a mente — vista como uma totalidade orgânica de sentimento, de
sensação física, e como a capacidade de atribuir sentido. A poética de
Artaud é uma espécie de hegelianismo supremo, alucinado, em que a arte é
o compêndio da consciência, o reflexo da consciência em si e o espaço
vazio em que ela dá seu perigoso salto de autotranscendência.

Fechar o abismo entre arte e vida destrói a arte, ao mesmo tempo que a
universaliza. No manifesto que Artaud escreveu para o teatro de Alfred
Jarry, fundado em 1926, dá as boas-vindas ao “descrédito em que todas as
formas de arte estão caindo sucessivamente”. Seu deleite pode ser
fingimento, mas seria incoerente da parte dele lamentar esse estado de
coisas. Uma vez que o critério dominante para uma arte passa a ser sua
fusão com a vida (ou seja, tudo, inclusive as outras artes), a existência de
uma forma de arte separada deixa de ser defensável. Além do mais, Artaud
assume que uma das artes existentes deverá, em breve, recuperar-se de sua
falta de vigor e tornar-se a forma de arte total, que absorverá todas as
outras. A obra da vida de Artaud pode ser descrita como a sequência de
seus esforços para formular e habitar sua arte-mestra, levando até o fim,
com heroísmo, sua convicção de que dificilmente a arte que ele buscava
poderia ser aquela — que envolvia só a língua — em que seu gênio estava
acima de tudo confinado.
Os parâmetros da obra de Artaud em todas as artes são idênticos às
distâncias críticas diferentes que ele mantém da ideia de uma arte que é
apenas língua — com as formas diversas de sua contínua “revolta contra a
poesia” (título de um texto em prosa que escreveu em Rodez, em 1944).
Cronologicamente, a poesia foi a primeira de muitas artes praticadas por
ele. Sobreviveram poemas escritos ainda em 1913, quando estava com
dezessete anos e frequentava o colégio em sua Marselha nativa; seu
primeiro livro, publicado em 1923, três anos depois de mudar-se para Paris,
foi uma coletânea de poemas; e foi a malsucedida submissão de alguns
poemas novos à Nouvelle Revue Française naquele mesmo ano que deu
lugar à sua célebre correspondência com Rivière. Mas Artaud logo
começou a descuidar-se da poesia em favor de outras artes. As dimensões
da poesia que ele era capaz de escrever na década de 1920 eram muito
reduzidas para aquilo que intui ser o parâmetro de uma arte-mestre. Nos
primeiros poemas, seu fôlego é curto; a forma lírica compacta que ele
emprega não oferece saída para sua imaginação discursiva e narrativa. Até
o grande surto de escrita no período entre 1945 e 1948, em seus últimos três
anos de vida, Artaud, naquela altura indiferente à ideia de poesia como
manifestação lírica fechada, encontra uma voz de grande fôlego, adequada
ao alcance de suas necessidades imaginativas — uma voz livre para
estabelecer formas de final aberto, como a poesia de Pound. Tal como
Artaud a concebia na década de 1920, a poesia nada tinha dessas
possibilidades ou adequações. Era pequena, e uma arte total tinha de ser, e
sentir-se, grande; tinha de ser uma performance multivocal, e não um objeto
lírico singular.
Todas as aventuras inspiradas pelo ideal de uma forma de arte total — na
música, na pintura, na escultura, na arquitetura ou na literatura —
conseguem, de um jeito ou de outro, teatralizar. Embora Artaud não
precisasse ser tão literal, faz sentido que, em idade ainda bem precoce, ele
tenha mudado seu foco explicitamente para as artes dramáticas. Entre 1922
e 1924, ele atuou em peças dirigidas por Charles Dullin e pelos Pitoëff e,
em 1924, também começou uma carreira de ator de cinema. Vale dizer que,
em meados da década de 1920, eram dois os candidatos plausíveis de
Artaud para a vaga de arte total: cinema e teatro. No entanto, já que não era
como ator, e sim como diretor, que esperava fomentar a candidatura
daquelas artes, em pouco tempo ele renunciou a uma delas — o cinema.
Artaud nunca obteve os meios para dirigir um filme próprio e viu suas
intenções traídas num filme de 1928, com outro diretor à frente, com base
em um de seus roteiros, A concha e o clérigo [de Germaine Dullac]. Sua
sensação de derrota foi reforçada em 1929 pela chegada do cinema falado,
uma guinada na história da estética dessa arte que Artaud equivocadamente
profetizou — a exemplo da maioria dos poucos espectadores que a haviam
levado a sério na década de 1920 — que poria fim à grandeza do cinema
como forma de arte. Ele continuou a representar em filmes até 1935, mas
com pouca esperança de ter uma chance de dirigir filmes próprios e sem
maiores reflexões acerca das possibilidades do cinema (que, a despeito do
desânimo de Artaud, persiste como o mais provável candidato do século ao
título de arte-mestre).
Do final de 1926 em diante, a busca de Artaud por uma forma de arte
total concentrou-se no teatro. Diferentemente da poesia, uma arte feita de
um material (palavras), o teatro usa uma pluralidade deles: palavras, luz,
música, corpos, móveis, roupas. Do mesmo modo, diferentemente do
cinema, uma arte que usa apenas uma pluralidade de linguagens (imagens,
palavras, música), o teatro é carnal, corporal. O teatro reúne os meios mais
diversos — linguagem gestual e verbal, objetos estáticos e movimento no
espaço tridimensional. Entretanto, não se torna uma arte-mestre meramente
pela abundância de meios. A tirania dominante de certos meios sobre outros
tem de ser subvertida criativamente. Assim como Wagner contestou a
convenção de alternar árias e recitativos, que implica uma relação
hierárquica de fala, canção e música orquestral, Artaud denunciou o
costume de todo elemento da encenação estar a serviço, de alguma maneira,
das palavras que os atores dizem uns para os outros. Ao atacar como falsas
as prioridades do teatro de diálogo, que subordinaram o teatro à “literatura”,
Artaud implicitamente eleva ao primeiro plano os meios que caracterizam
outras formas de representação dramática, como dança, oratório, circo,
cabaré, igreja, ginásio, sala de cirurgia hospitalar, tribunal de justiça.
Contudo, anexar os recursos de outras artes e de formas quase teatrais não
fará do teatro uma arte total. Uma arte-mestre não pode ser construída com
acréscimos; Artaud não está insistindo sobretudo em que o teatro incorpore
novos meios. Em vez disso, ele intenta purgar o teatro do que lhe é externo
ou fácil. Ao evocar um teatro em que o ator verbalmente orientado da
Europa seja treinado mais uma vez como se fosse um “atleta” do coração,
Artaud mostra seu gosto inveterado pelo esforço espiritual e físico — pela
arte como provação.
O teatro de Artaud é uma máquina tenaz para transformar as concepções
da mente em eventos inteiramente “materiais”, dentre os quais estão as
próprias paixões. Contra a prioridade multissecular que o teatro europeu
conferiu às palavras como meios de transmitir emoções e ideias, ele quer
mostrar a base orgânica das emoções e a fisicalidade das ideias — no corpo
dos atores. Seu teatro é uma reação contra o estado de subdesenvolvimento
em que os corpos (e as vozes, apartadas da fala) dos atores ocidentais
permaneceram por gerações, assim como ocorreu com as artes do
espetáculo. A fim de reformular o desequilíbrio que favorece a linguagem
verbal, Artaud propõe aproximar o treino dos atores do treino de
dançarinos, atletas, mímicos e cantores e “basear o teatro no espetáculo,
antes de tudo”, como afirma em seu “Segundo Manifesto do Teatro da
Crueldade”, publicado em 1933. Ele não está propondo substituir os
encantos da língua por cenários, figurinos, música, iluminação e efeitos de
palco espetaculares. O critério de espetáculo para Artaud é violência
sensorial em vez de encantamento sensorial; a beleza é uma noção que ele
nunca leva em consideração. Longe de julgar que o espetacular seja
desejável em si mesmo, Artaud submete o palco a uma austeridade radical
— a ponto de excluir tudo o que corresponda a algo diferente. “Objetos,
acessórios, cenários sobre o palco devem ser apreendidos diretamente […]
não por aquilo que representam, mas pelo que são”, escreve num manifesto
de 1926. Mais tarde, em O teatro e seu duplo, ele sugere a eliminação
completa dos cenários. Seu clamor é por um teatro “puro”, dominado pela
“física do gesto absoluto, que é em si mesmo uma ideia”.
Se a linguagem de Artaud soa vagamente platônica, é com razão, pois, a
exemplo de Platão, ele aborda a arte do ponto de vista moralista. Na
verdade, o autor não gosta do teatro — pelo menos do concebido em todo o
Ocidente, pois o considera insuficientemente sério. Seu teatro nada teria a
ver com o objetivo de prover “diversão artificial, supérflua”, entretenimento
simples. O contraste no coração da polêmica de Artaud não reside entre um
teatro meramente literário e um teatro de sensações fortes, mas sim entre
um teatro hedonista e um teatro moralmente rigoroso. Sua proposta é de um
teatro que Savonarola ou Cromwell poderiam aprovar. De fato, O teatro e
seu duplo pode ser lido como um ataque indignado contra o teatro, com um
ânimo reminiscente da Carta a D’Alembert, em que Rousseau, enfurecido
com o personagem Alceste na peça O misantropo — por aquilo que ele
toma como a ridicularização sofisticada que Molière faz da sinceridade e da
pureza moral como um fanatismo tosco —, termina argumentando que é da
natureza do teatro ser moralmente superficial. Como Rousseau, Artaud
revoltou-se contra a vulgaridade moral de grande parte da arte. Como
Platão, achava que a arte, de modo geral, mente. Artaud não vai banir os
artistas de sua República, mas vai apoiar a arte apenas na medida em que
for uma “ação verdadeira”. A arte deve ser cognitiva. “Nenhuma imagem
me satisfaz, a menos que seja ao mesmo tempo conhecimento”, escreve. A
arte deve ter um efeito espiritual benéfico no público — um efeito cujo
poder depende, na visão de Artaud, de um veto a todas as formas de
mediação.
É o moralista em Artaud que o faz insistir em que o teatro seja reduzido,
seja mantido o mais livre possível dos elementos mediadores — inclusive a
mediação do texto escrito. Peças contam mentiras. Mesmo se não for esse o
caso, ao alcançar o estatuto de “obra-prima”, ela se torna mentira. Em
1926, Artaud declara não querer criar um teatro para apresentar peças e,
assim, perpetuar ou ampliar a lista de obras-primas consagradas da cultura.
Para ele, a herança das peças escritas é um obstáculo inútil, e a escrita de
peças teatrais é um intermediário desnecessário entre a plateia e a verdade
que pode ser apresentada nua, no palco. Aqui, porém, seu moralismo dá
uma guinada nitidamente antiplatônica: a verdade nua é completamente
material. Artaud define o teatro como um lugar onde as facetas obscuras do
“espírito” são reveladas numa “projeção material real”.
Para encarnar o pensamento, um teatro estritamente concebido deve abrir
mão da mediação de um texto já escrito, concretizando, desse modo, a
separação entre o autor e o ator. (Isso afasta a mais antiga objeção contra a
profissão de ator — de que se trata de uma forma de corrupção psicológica
na qual a pessoa fala palavras que não são suas e finge sentir emoções que
são funcionalmente insinceras.) A separação entre ator e plateia deve ser
reduzida (mas não extinta) pela violação da fronteira entre a área do palco e
as fileiras fixas de poltronas. Artaud, com sua sensibilidade hierática, nunca
visa a uma forma de teatro na qual a plateia participa de maneira ativa da
performance; o que ele deseja é desfazer-se das regras do decoro teatral que
permitem à plateia desassociar-se da própria experiência. Em resposta
implícita à crítica moralista de que o teatro distrai as pessoas de sua
individualidade autêntica, levando-as a preocupar-se com problemas
imaginários, Artaud quer que o teatro não se dirija à mente dos espectadores
nem a seus sentidos, mas à sua “existência total”. Só os mais apaixonados
moralistas desejariam que as pessoas fossem ao teatro como se fossem ao
cirurgião ou ao dentista. Ainda que com a garantia de que a operação não
vai ser fatal (ao contrário do que seria no caso de um cirurgião), a operação
que a plateia vai sofrer é “séria”, e o público não deve sair do teatro moral
ou emocionalmente “intacto”. Em outra imagem médica, Artaud compara o
teatro a uma peste. Mostrar a verdade significa antes mostrar arquétipos do
que a psicologia individual; isso transforma o teatro num lugar de risco,
pois a “realidade arquetípica” é “perigosa”. Membros da plateia não devem
se identificar com o que se passa no palco. Para Artaud, o teatro
“verdadeiro” é uma experiência perigosa, intimidadora — uma experiência
que exclui emoções serenas, diversão, intimidade apaziguadora.
O valor da violência emocional na arte há muito tempo constitui um
pressuposto central da sensibilidade modernista. Antes de Artaud,
entretanto, a crueldade era exercida sobretudo com um espírito
desinteressado, por sua eficácia estética. Quando Baudelaire estabeleceu a
“experiência de choque” (para tomar emprestada a expressão de Walter
Benjamin) no centro de seu verso e de seus poemas em prosa, não era para
aprimorar nem edificar seus leitores. Mas era exatamente essa a questão da
devoção de Artaud à estética do choque. Mediante a exclusividade de seu
compromisso com a arte paroxísmica, ele demonstra ser tão moralista no
que tange à arte quanto o foi Platão — no entanto, trata-se de um moralista
cujas esperanças na arte negam aquelas distinções em que a visão de Platão
está alicerçada. Como se opõe à separação entre arte e vida, opõe-se a todas
as formas teatrais que implicam uma diferença entre realidade e
representação. Ele não nega a existência dessa diferença. Contudo, ela pode
ser contornada, sugere Artaud, se o espetáculo for suficientemente — ou
seja, excessivamente — violento. A “crueldade” da obra de arte não tem
apenas uma função diretamente moral, mas também uma função cognitiva.
Segundo o critério moralista do autor para o conhecimento, uma imagem
será verdadeira na medida em que for violenta.
A visão de Platão se apoia na suposição da diferença intransponível entre
vida e arte, realidade e representação. Na famosa imagem no Livro VII da
República, Platão vincula a ignorância à vida numa caverna iluminada de
forma engenhosa, para cujos habitantes a vida é um espetáculo — um
espetáculo que consiste apenas em sombras de eventos reais. A caverna é
um teatro. E a verdade (a realidade) se encontra do lado de fora, no sol. Na
imagem platônica de O teatro e seu duplo, Artaud adota uma visão mais
atenuada das sombras e dos espetáculos. Ele supõe que existem sombras (e
espetáculos) verdadeiras e falsas e que podemos aprender a diferenciá-las.
Longe de identificar a sabedoria com uma emergência da caverna para
contemplar a realidade à luz do meio-dia, Artaud acha que a consciência
moderna sofre de falta de sombras. O remédio é permanecer dentro da
caverna, mas inventar espetáculos melhores. O teatro por ele proposto vai
servir à consciência “nomeando e dirigindo sombras” e destruindo
“sombras falsas”, a fim de “preparar o caminho para uma nova geração de
sombras”, em torno das quais será construído o “verdadeiro espetáculo da
vida”.
Sem sustentar uma visão hierárquica da mente, Artaud suprime a
distinção superficial, acalentada pelos surrealistas, entre racional e
irracional. Ele não advoga a visão familiar que louva a paixão em
detrimento da razão, a carne em detrimento da mente, a mente exaltada por
drogas em detrimento da mente prosaica, a vida dos instintos em detrimento
dos raciocínios implacáveis. O que ele defende é uma relação alternativa
com a mente. Essa era a atração, bastante divulgada, que as culturas não
ocidentais exerciam sobre Artaud, mas não foi o que o levou às drogas. (Era
para mitigar as enxaquecas e outras dores neurológicas que sofreu, ao longo
de toda a vida, e não para expandir a consciência, que Artaud usava
opiáceos e acabou se tornando dependente.)
Por um breve tempo, Artaud tomou o estado mental surrealista como um
modelo para a consciência unificada, não dualista, que almejava. Depois de
rejeitar o surrealismo em 1926, ele repropôs a arte — especificamente o
teatro — como um modelo mais rigoroso. A função que ele confere ao
teatro é sanar a cisão entre linguagem e carne. Este era o tema de suas
ideias para a formação de atores: uma formação antitética àquela familiar,
que não os ensina nem a se mexer nem ao que fazer com suas vozes, além
de falar. (Podem berrar, grunhir, cantar, recitar.) É também o tema de sua
dramaturgia ideal. Longe de defender um irracionalismo fácil que
polarizasse razão e sentimento, Artaud imagina o teatro como o lugar onde
o corpo renasceria em pensamento e onde o pensamento renasceria no
corpo. Ele diagnostica sua própria doença como uma cisão dentro da mente
(“Minha consciência agregada está fraturada”, escreve) que internaliza a
cisão entre mente e corpo. Os escritos de Artaud sobre teatro podem ser
lidos como um manual psicológico sobre a reunificação de mente e corpo.
O teatro tornou-se sua metáfora suprema da vida da mente autocorretora,
espontânea, carnal, inteligente.
Na verdade, a imagística de Artaud para o teatro em O teatro e seu duplo,
escrito na década de 1930, ecoa imagens que ele usa nos escritos do início e
de meados da década de 1920 — como em O pesa-nervos, em cartas para
René e Yvonne Allendy e em Fragmentos de um diário do Inferno — para
descrever a própria dor mental. Artaud se queixa de que sua consciência
não tem fronteiras nem posição fixa; privada da língua ou em luta contínua
contra ela; fraturada — de fato, contaminada — por descontinuidades; ou
sem localização física ou em constante mudança de localização (e de
extensão no tempo e no espaço); sexualmente obcecada; num estado de
infestação violenta. O teatro de Artaud é caracterizado pela ausência de
qualquer posicionamento espacial fixo dos atores vis-à-vis uns em face dos
outros, e dos atores em relação ao público; por uma fluidez de movimento e
de alma; pela mutilação da língua e pela transcendência da língua no grito
do ator; pela carnalidade do espetáculo; por seu tom obsessivamente
violento. O artista, é claro, não estava simplesmente reproduzindo sua
angústia interior. Em vez disso, fornecia uma versão sistematizada e
positiva dessa angústia. O teatro é uma imagem projetada (necessariamente,
uma dramatização ideal) da vida interior perigosa, “desumana”, que o
possuía, com que ele lutava tão heroicamente para transcender e para
afirmar. É também uma técnica homeopática para tratar essa vida interior
emaranhada e arrebatada. Por se tratar de uma espécie de cirurgia
emocional e moral na consciência, deve necessariamente, segundo Artaud,
ser “cruel”.
Quando Hume, de forma expressa, vincula a consciência a um teatro, a
imagem é moralmente neutra e inteiramente a-histórica; ele não está
pensando em um tipo específico de teatro, ocidental ou outro, e julgaria
irrelevante qualquer lembrança de que o teatro se desenvolve. Para Artaud,
a parte decisiva da analogia está em que o teatro — e a consciência — pode
mudar. Pois não só a consciência parece um teatro, como, segundo Artaud o
elabora, o teatro parece uma consciência e, portanto, se presta a ser
convertido num teatro-laboratório no qual se fazem pesquisas para
transformar a consciência.
Os escritos de Artaud sobre teatro são transformações de suas aspirações
em relação à sua própria mente. Ele quer que o teatro (como a mente) seja
libertado de seu confinamento “na linguagem e nas formas”. Um teatro
libertado, supõe ele, liberta. Ao dar vazão a paixões radicais e pesadelos
culturais, o teatro os exorciza. Mas o teatro de Artaud não é, de forma
nenhuma, simplesmente catártico. Pelo menos em sua intenção (a prática de
Artaud nas décadas de 1920 e 1930 é outra história), seu teatro tem pouco
em comum com o antiteatro do ataque jocoso e sádico contra o público,
concebido por Marinetti e pelos artistas dada, pouco antes e depois da
Primeira Guerra Mundial. A agressividade proposta por ele é controlada e
complexamente orquestrada, uma vez que ele supõe que a violência
sensorial pode ser uma forma de inteligência corporificada. Ao insistir na
função cognitiva do teatro (o drama, escreve Artaud em 1923, num ensaio
sobre Maeterlinck, é “a mais elevada forma de atividade mental”), ele
rejeita a aleatoriedade. (Mesmo em seus tempos surrealistas, Artaud não
adota a prática da escrita automática.) O teatro, assinala ele de vez em
quando, deve ser “científico”; com isso, ele quer dizer que o teatro não deve
ser arbitrário, meramente expressivo ou espontâneo ou pessoal ou divertido,
mas deve, sim, abraçar um propósito totalmente sério e, em última
instância, religioso.
A insistência de Artaud na seriedade da situação teatral assinala também
sua diferença em relação aos surrealistas, que pensavam com muito menos
precisão na arte, em sua terapia e na sua missão “revolucionária”. Os
surrealistas, cujos impulsos moralizantes eram consideravelmente menos
intransigentes do que os de Artaud, e que não tinham nenhum sentimento de
premência moral para a criação da arte, não mostravam interesse em buscar
os limites de nenhuma forma de arte singular. Tendiam a ser turistas, não
raro turistas de gênio, no maior número de artes possível, acreditando que o
impulso da arte não se altera onde quer que se manifeste. (Assim, Cocteau,
que teve a carreira surrealista ideal, chamava tudo o que fazia de “poesia”.)
A audácia e a autoridade maior de Artaud como pensador da estética
resultam, em parte, do fato de que, embora também tenha praticado várias
artes, recusando-se, como os surrealistas, a se inibir pela distribuição da arte
em diversos meios, ele não encara as diversas artes como formas
equivalentes do mesmo impulso proteiforme. Suas atividades, entretanto,
por mais dispersas que sejam, sempre refletem a busca de uma forma de
arte total, na qual as outras formas de arte se fundiriam — assim como a
própria arte se fundiria com a vida.
Paradoxalmente, foi essa mesma negação de independência aos
diferentes territórios da arte que levaram Artaud a fazer o que nenhum dos
surrealistas jamais havia tentado: repensar por completo a forma de uma
arte. Sobre essa arte, o teatro, ele teve um impacto tão profundo que se pode
dizer que o curso de todo o teatro sério recente na Europa Ocidental e nas
Américas está dividido em dois períodos — antes e depois de Artaud. Hoje,
ninguém que trabalhe com teatro está alheio ao impacto das ideias
específicas dele sobre o corpo e a voz do ator, o uso da música, o papel do
texto escrito, a reciprocidade entre o espaço ocupado pelo espetáculo e o
espaço do público. Foi ele quem modificou o entendimento do que era
sério, do que valia a pena fazer. Brecht é o outro único escritor de teatro do
século cuja importância e profundidade podem rivalizar com as de Artaud.
Mas este não conseguiu afetar a consciência do teatro moderno sendo um
grande diretor, como foi o caso de Brecht. Sua influência não se apoia nas
evidências de suas produções. Sua obra prática no teatro, entre 1926 e 1935,
era aparentemente tão pouco sedutora que não deixou quase nenhum
vestígio, ao passo que a ideia de teatro, em nome da qual ele impunha suas
produções a um público nada receptivo, tem se tornado cada vez mais forte.

A partir de meados da década de 1920, a obra de Artaud é animada pela


ideia de uma mudança radical na cultura. Sua imagística implica uma visão
antes médica do que histórica da cultura: a sociedade está enferma. A
exemplo de Nietzsche, ele se concebia como um médico da cultura — bem
como seu paciente mais dolorosamente enfermo. O teatro que planejava é
uma operação de combate contra a cultura estabelecida, um ataque contra o
público burguês; ele pretendia mostrar às pessoas que elas estão mortas e as
despertaria de seu estupor. O homem que seria devastado por tratamentos
repetidos de choques elétricos, durante os últimos três dos nove anos
consecutivos que passou em hospitais para doentes mentais, propunha que o
teatro administrasse à cultura uma espécie de terapia de choque. Artaud,
que muitas vezes se queixava de se sentir paralisado, queria que o teatro
renovasse o “sentido da vida”.
Até certo ponto, as prescrições de Artaud se parecem com muitos
programas de renovação cultural que surgiram periodicamente nos últimos
dois séculos da cultura ocidental, em nome da simplicidade, elã vital,
naturalidade, abandono dos artifícios. Seu diagnóstico de que vivemos
numa “cultura petrificada”, inorgânica — cuja falta de vida ele associa à
predominância do mundo da escrita —, pouco tinha de novidade, quando
ele o propôs; entretanto, muitas décadas depois, seu poder ainda não se
esgotou. A argumentação de Artaud em O teatro e seu duplo está
estreitamente relacionada à de Nietzsche, que, em O nascimento da
tragédia, lamenta o definhamento do puro teatro arcaico de Atenas como
efeito da filosofia socrática — com a introdução de personagens que
raciocinam. (Outro paralelo com Artaud: o que fazia do jovem Nietzsche
um wagneriano fervoroso era a ideia que Wagner tinha da ópera como
Gesamtkunstwerk — a mais completa afirmação, antes de Artaud, da ideia
de um teatro total.)
Assim como Nietzsche voltava a atenção para as cerimônias dionisíacas
que precederam a dramaturgia de Atenas, secularizada, racionalizada e
verbal, Artaud buscou seus modelos no teatro mágico e religioso não
ocidental. Sua proposta do Teatro da Crueldade não é uma ideia nova no
âmbito do teatro ocidental. Isso “postulava […] outro tipo de civilização”.
Ele não está se referindo a um tipo específico de civilização, mas à ideia de
civilização que tem inúmeras bases na história — uma síntese de elementos
de sociedades do passado e de sociedades não ocidentais e primitivas do
presente. A preferência por “outra forma de civilização” é essencialmente
eclética. (Ou seja, é um mito gerado por necessidades morais específicas.)
A inspiração das ideias de Artaud sobre o teatro provinha do Sudeste
Asiático: de ver o teatro cambojano em Marselha em 1931. Contudo, o
estímulo pode muito bem ter resultado de sua observação do teatro de uma
tribo de Daomé ou das cerimônias xamanísticas dos indígenas da Patagônia.
O que conta é que a outra cultura seja genuinamente outra; ou seja, não
ocidental e não contemporânea.
Em outras ocasiões, Artaud seguiu as três rotas imaginativas mais
frequentemente trilhadas da alta cultura do Ocidente rumo a “outra forma
de civilização”. Primeiro, veio aquilo que, logo depois da Primeira Guerra
Mundial, ficou conhecido como guinada para o Oriente, nos escritos de
Hesse, de René Daumal e dos surrealistas. Na sequência, surgiu o interesse
por uma parte suprimida do passado ocidental — tradições abertamente
mágicas e espirituais heterodoxas. E, em terceiro lugar, a descoberta da vida
dos chamados povos primitivos. O que une o Oriente, as tradições ocultas e
antinomianas do Ocidente e o comunitarismo exótico de tribos anteriores à
escrita é o fato de estarem distantes não só no espaço como no tempo. Os
três corporificam os valores do passado. Embora os tarahumaras do México
ainda existam, sua sobrevivência em 1936, quando Artaud os visitou, já era
um anacronismo; os valores que eles representam pertencem ao passado
tanto quanto os valores das religiões de mistérios do antigo Oriente Médio,
que ele estudou, enquanto escrevia seu romance histórico Heliogábalo, em
1933. As três versões de “outra forma de civilização” testemunham a
mesma busca de uma sociedade integrada em torno de temas francamente
religiosos e alheios aos seculares. O que interessa ao autor é o Oriente do
budismo (veja-se sua “Carta às escolas budistas”, escrita em 1925) e da
ioga; nunca seria o de Mao Tsé-tung, por mais que Artaud falasse em
revolução. (A Longa Marcha estava em curso na mesma ocasião em que ele
lutava para pôr em cena, em Paris, as produções de seu Teatro da
Crueldade.)
Essa nostalgia de um passado muitas vezes tão eclético a ponto de ser
bastante difícil de situar historicamente é uma faceta da sensibilidade
modernista que, em décadas recentes, tem parecido cada vez mais suspeita.
É um refinamento supremo da visão colonialista: uma exploração
imaginativa de culturas não brancas, cuja vida moral ela simplifica de
maneira drástica, cuja sabedoria saqueia e parodia. Para essa crítica, não
existe nenhuma resposta convincente. Mas, à crítica de que a busca de
“outra forma de civilização” se recusa a submeter-se à desilusão do
conhecimento histórico acurado, é possível dar uma resposta. Ela nunca
buscou esse conhecimento. As outras civilizações são usadas como modelos
e são vantajosas como estímulos para a imaginação porque não são
acessíveis. São, ao mesmo tempo, modelos e mistérios. Tampouco essa
busca pode ser desconsiderada como fraudulenta por ser insensível às
forças políticas que causam sofrimento humano. De forma consciente, ela
se opõe a essa sensibilidade. Tais formas de nostalgia partem de uma visão
que é deliberadamente não política — por maior que seja a frequência com
que empregue a palavra “revolução”.
Um resultado da aspiração a uma arte total que decorre da negação do
abismo entre arte e vida foi fomentar a noção da arte como instrumento de
revolução. O outro resultado foi a identificação tanto da arte como da vida
com diversão pura, desinteressada. Para cada Vertov ou Breton, existem um
Cage ou um Duchamp ou um Rauschenberg. Embora Artaud seja próximo
de Vertov e de Breton, por considerar que suas atividades fazem parte de
uma revolução mais ampla, como autodeclarado revolucionário nas artes,
ele, na realidade, se situa entre os dois campos — sem interesse em
satisfazer o impulso político e o impulso lúdico. Consternado quando
Breton tentou vincular o programa surrealista ao marxismo, Artaud rompeu
com os surrealistas em decorrência do que julgava ser uma traição, nas
mãos da política, de uma revolução essencialmente “espiritual”.
Antiburguês quase que por reflexo (como quase todos os artistas na tradição
modernista), a perspectiva de transferir o poder da burguesia para o
proletariado nunca o atraiu. De seu ponto de vista confessamente
“absoluto”, uma mudança na estrutura social não iria alterar nada. A
revolução que Artaud subscreve nada tem a ver com política; ela é
concebida explicitamente como um esforço para redirecionar a cultura.
Artaud não só compartilha a crença difundida (e equivocada) na
possibilidade de uma revolução cultural desvinculada da mudança política,
como supõe que a única revolução cultural genuína não se relacionaria com
política.
O chamado de Artaud em favor de uma revolução cultural sugere um
programa de regressão heroica semelhante ao formulado por todos os
grandes moralistas antipolíticos de nosso tempo. A bandeira da revolução
cultural não é monopólio da esquerda marxista ou dos maoistas. Ao
contrário, ela atrai em particular pensadores e artistas apolíticos (como
Nietzsche, Spengler, Pirandello, Marinetti, D. H. Lawrence, Pound), os
quais, em geral, se tornaram direitistas entusiasmados. Na esquerda política,
há poucos defensores da revolução cultural. (Tatlin, Gramsci e Godard estão
entre os que importam.) Um radicalismo puramente “cultural” é ou ilusório
ou, no fim, conservador em suas implicações. Os planos de Artaud para
subverter e revitalizar a cultura, seu anseio por um tipo novo de
personalidade humana, ilustram os limites de todo pensamento sobre
revolução que seja antipolítico.
A revolução cultural que se recusa a ser política não pode chegar a lugar
nenhum, a não ser tornar-se uma teologia da cultura — e uma soteriologia.
“Aspiro a outra vida”, declara Artaud em 1927. Toda a sua obra versa sobre
salvação, e o teatro foi o meio de salvar almas sobre o qual ele meditou
mais profundamente. A transformação espiritual é um objetivo para o qual
o teatro foi muitas vezes convocado neste século, pelo menos desde Isadora
Duncan. No exemplo mais recente e solene, o teatro-laboratório de Jerzy
Grotowski, toda a atividade de construir uma companhia de teatro, ensaiar,
montar peças, serve à reeducação espiritual dos atores; a presença de um
público só é necessária para testemunhar as proezas da autotranscendência
representada pelos atores. No Teatro da Crueldade de Artaud, é o público
que nasce duas vezes — uma afirmação não comprovada, já que ele nunca
pôs seu teatro em prática (como fez Grotowski na década de 1960, na
Polônia). Como objetivo, isso parece bem menos viável do que a disciplina
que Grotowski tem em mira. Por mais sensível que seja em relação à
blindagem física e espiritual do ator formado de maneira tradicional, Artaud
nunca examina de perto como a reeducação radical por ele proposta afetará
o ator também como ser humano. Seu pensamento está todo voltado para o
público.
Como talvez fosse fácil de prever, o público se revelou uma decepção. As
produções de Artaud nos dois teatros que fundou, o Teatro Alfred Jarry e o
Teatro da Crueldade, produziram pouco envolvimento. Todavia, mesmo
completamente insatisfeito com a natureza de seu público, Artaud
reclamava muito mais do apoio simbólico que recebeu do teatro sério
dominante de Paris (ele manteve uma correspondência longa e encarniçada
com Louis Jouvet), da dificuldade para produzir seus projetos e da
insignificância de seus êxitos, quando as obras chegavam a ser encenadas.
Artaud estava amargurado, o que é compreensível, porque, apesar do
número de patronos ilustres e de amigos famosos que eram escritores,
pintores, editores, diretores — a quem ele não cansava de atormentar, em
busca de apoio moral e de dinheiro —, sua obra, quando produzida, obtinha
apenas uma pequena parcela da aclamação convencional, reservada a
eventos difíceis, devidamente patrocinados, vistos pelo público de praxe
dos itens de consumo da alta cultura. Sua produção mais ambiciosa e
articulada, no Teatro da Crueldade, foi Os Cenci, peça de sua autoria que foi
encenada durante dezessete dias, na primavera de 1935. Porém, mesmo se
tivesse permanecido em cartaz por um ano, Artaud se mostraria igualmente
convencido de que era um fracasso.
Na cultura moderna, foi armado um poderoso mecanismo segundo o qual
uma obra dissidente, depois de adquirir um estatuto inicial semioficial de
“avant-garde”, é aos poucos absorvida e vista como aceitável. Mas as
atividades práticas de Artaud no teatro se qualificavam muito pouco para
esse tipo de cooptação. Os Cenci não é um texto de qualidade, mesmo pelos
padrões da dramaturgia convulsiva que ele advogava, e o interesse da
produção dessa peça, segundo todos os relatos, repousa em ideias que ela
sugeria, mas não corporificava de fato. O que Artaud fez no palco, como
diretor e ator principal em suas produções, era demasiado idiossincrático,
estreito e histérico para persuadir. Ele exercia influência por meio de suas
ideias sobre o teatro, uma vez que parte constitutiva da autoridade dessas
ideias estava precisamente na sua incapacidade de colocá-las em prática.
Fortalecido por seu apetite insaciável por novos objetos de consumo, o
público educado das cidades grandes se habituou à angústia modernista e
aprendeu muito bem a ludibriá-la: todo negativo pode se tornar um positivo.
Desse modo, Artaud, que insistia em que o repertório das obras-primas
fosse jogado na lixeira, tornou-se extremamente influente como criador de
um repertório alternativo, uma tradição antagônica de peças. Seu grito
acerbo — “Basta de obras-primas!” — foi entendido como algo mais
conciliador — “Basta dessas obras-primas!”. Porém, essa reformulação
positiva de seu ataque contra o repertório tradicional não ocorreu sem a
ajuda da prática de Artaud (como algo distinto de sua retórica). Apesar de
sua insistência reiterada de que o teatro deveria prescindir das peças, sua
própria obra no teatro estava bem longe de não contar com algumas peças.
Ele batizou sua primeira companhia teatral em homenagem ao autor de Ubu
rei. A par de seus próprios projetos — A conquista do México, A captura de
Jerusalém (que não foi montada) e Os Cenci —, houve diversas obras-
primas, fora de moda ou obscuras na época, que Artaud quis reviver. Ele
chegou a montar as duas grandes “peças de sonho” de Calderón e
Strindberg (A vida é sonho e O sonho) e, ao longo dos anos, tinha a
esperança de também dirigir produções de Eurípides (As bacantes); de
Sêneca (Tiestes); Arden of Feversham; de Shakespeare (Macbeth, Ricardo
II, Tito Andrônico); de Tourneur (A tragédia do vingador); de Webster (O
diabo branco, A duquesa de Malfi); de Sade (uma adaptação de Eugénie de
Franval); de Büchner (Woyzeck); e de Hölderlin (A morte de Empédocles).
A seleção de peças delineia uma nova sensibilidade familiar. Com os
dadaístas, Artaud formulou o gosto que, mais cedo ou mais tarde, acabaria
se tornando o gosto sério padrão — fora do âmbito dos grandes teatros, em
teatros universitários. No que se referia ao passado, significava destronar
Sófocles, Corneille e Racine em favor de Eurípides e dos sombrios
elisabetanos; o único escritor francês morto na lista de Artaud é Sade. Nos
últimos quinze anos, esse gosto foi representado nos happenings e no Teatro
do Ridículo; nas peças de Genet, Jean Vauthier, Arrabal, Carmelo Bene e
Sam Shepard; e em produções célebres como o Frankenstein do Living
Theater, As freiras, de Eduardo Manet (dirigida por Roger Blin), A barba,
de Michael McClure, O olhar do surdo, de Robert Wilson, e ac/dc, de
Heathcote Williams. O que quer que Artaud tenha feito para subverter o
teatro e para segregar sua obra de outras correntes meramente estéticas no
interesse de estabelecer sua hegemonia espiritual, isso ainda podia ser
assimilado como uma nova tradição teatral, e no geral foi o que aconteceu.
Se o projeto de Artaud, na realidade, não transcende a arte, pode-se dizer
que ele pressupõe um objetivo que a arte é capaz de sustentar apenas por
um tempo. Todo uso da arte numa sociedade secular para fins de
transformação espiritual, na medida em que isso é tornado público, é
inevitavelmente despojado de seu autêntico poder antagônico. Afirmado em
linguagem religiosa de forma direta, ou mesmo indireta, o projeto é
nitidamente vulnerável. Mas projetos ateístas de transformação espiritual,
como a arte política de Brecht, também se comprovaram cooptáveis. Só
algumas poucas situações na sociedade moderna secular parecem radicais e
incomunicantes o suficiente para ter alguma chance de escapar da
cooptação. A loucura é uma delas. O sofrimento que ultrapassa o
imaginável (como o Holocausto) é outra. Uma terceira, claro, é o silêncio.
Uma forma de deter esse inexorável processo de ingestão é romper a
comunicação (e mesmo a anticomunicação). Um esgotamento do impulso
para usar a arte como meio de transformação espiritual é quase inevitável
— como na tentação sentida por todo autor moderno quando confrontado
com a indiferença ou a mediocridade do público, de um lado, ou com a
facilidade do sucesso, de outro, para parar de escrever de uma vez por
todas. Desse modo, não foi por falta de dinheiro ou de apoio na profissão
que, depois de montar Os Cenci, em 1935, Artaud abandonou o teatro. O
projeto de criar, numa cultura secular, uma instituição capaz de manifestar
uma realidade escura e oculta é uma contradição. Ele nunca foi capaz de
fundar o seu Bayreuth — e bem que gostaria disso —, porque suas ideias
são do tipo que não podem ser institucionalizadas.
No ano seguinte ao fracasso de Os Cenci, Artaud embarcou rumo ao
México para testemunhar que a realidade demoníaca é uma cultura
“primitiva” ainda existente. Malsucedido no esforço de corporificar essa
realidade num espetáculo a ser imposto sobre os demais, ele se tornou um
espectador de si mesmo. De 1935 em diante, perdeu contato com a
promessa de uma forma de arte ideal. Seus escritos, sempre didáticos,
adotaram um tom profético e faziam referências constantes a sistemas
mágicos esotéricos, como a cabala e o tarô. Ao que parece, Artaud passou a
crer que podia exercer diretamente, em si mesmo, o poder emocional (e
alcançar a eficácia política) que havia almejado para o teatro. Em meados
de 1937, ele viajou para as ilhas de Aran, com o plano obscuro de explorar
ou confirmar seus poderes mágicos. O muro entre arte e vida continuava
abolido. Mas, em vez de tudo ser assimilado em arte, o movimento oscilou
para o lado oposto; e Artaud se transportou, sem mediação, para dentro de
sua própria vida — um perigoso objeto galopante, a nave de uma fome
furiosa de transformação total, que jamais conseguiria encontrar sua
nutrição adequada.

Nietzsche assumiu com frieza uma teologia ateísta do espírito, uma


teologia negativa, um misticismo sem Deus. Artaud vagava no labirinto de
um tipo específico de sensibilidade religiosa, a gnóstica. (Centrais para o
mitraísmo, o maniqueísmo, o zoroastrismo e o budismo tântrico, mas
impelidas no sentido das margens heréticas do judaísmo, do cristianismo e
do islamismo, as temáticas gnósticas perenes aparecem em diferentes
religiões em diferentes terminologias, porém com certas linhas em comum.)
As energias predominantes do gnosticismo provêm da angústia metafísica e
do agudo mal-estar psicológico — a sensação de estar abandonado, de ser
alheio, de ser possuído por forças demoníacas que predam o espírito
humano num cosmos do qual o divino se retirou. O cosmos é, em si, um
campo de batalha, e cada vida humana expõe o conflito entre as forças
repressivas e persecutórias exteriores e o espírito individual febril,
martirizado, que busca a redenção. As forças demoníacas do cosmos
existem como matéria física. E também como “leis”, tabus, proibições.
Desse modo, nas metáforas gnósticas, o espírito é abandonado, caído,
aprisionado em um corpo, e o indivíduo é reprimido, tolhido por estar “no
mundo” — o que poderíamos chamar de “sociedade”. (Um traço de todo
pensamento gnóstico é polarizar o espaço interior, a psique, e um vago
espaço exterior, “o mundo” ou “sociedade”, que é identificado com a
repressão — tomando pouco ou nenhum conhecimento da importância dos
níveis de mediação das várias esferas sociais e instituições.) O eu, ou
espírito, se descobre no rompimento com o “mundo”. A única liberdade
possível é inumana, desesperada. Para ser salvo, o espírito precisa ser
removido de seu corpo, removido de sua personalidade, removido do
“mundo”. E a liberdade requer uma preparação ardorosa. Quem procura
isso deve aceitar a humilhação extrema e também ostentar grande orgulho
espiritual. Numa versão, a liberdade acarreta o ceticismo total. Noutra,
acarreta a libertinagem — a prática da arte da transgressão. Para ser livre do
“mundo”, é preciso romper a lei moral (ou social). Para transcender o
corpo, é preciso atravessar um período de depravação física e de blasfêmia
verbal, apoiado no princípio de que só quando a moralidade for
deliberadamente desconsiderada o indivíduo será capaz de sofrer uma
transformação radical: entrar num estado de graça que deixa todas as
categorias morais para trás. Em ambas as versões do drama gnóstico
exemplar, alguém que é salvo está além do bem e do mal. Fundado numa
exacerbação de dualismos (mente-corpo, matéria-espírito, bem-mal,
escuridão-luz), o gnosticismo promete a abolição de todos os dualismos.
O pensamento de Artaud reproduz a maioria dos temas gnósticos. Por
exemplo, esse ataque contra o surrealismo na polêmica escrita em 1927
repousa numa linguagem de drama cósmico, na qual ele se refere à
necessidade de um “deslocamento do centro espiritual do mundo” e à
origem de toda matéria num “desvio espiritual”. Em todos os seus escritos
ele fala em ser perseguido, invadido e conspurcado por poderes alienígenas;
sua obra concentra-se nas vicissitudes do espírito, à medida que descobre
constantemente sua falta de direitos na sua condição de ser “matéria”.
Artaud é obcecado pela matéria física. De O pesa-nervos e A arte e a morte,
escritos na década de 1920, a Aqui jaz e a peça radiofônica Para dar um fim
no juízo de Deus, escritos em 1947-8, a prosa e a poesia de Artaud retratam
um universo atulhado de matéria (excremento, sangue, esperma), um
mundo conspurcado. Os poderes demoníacos que governam o mundo estão
encarnados na matéria, e a matéria é “escura”. Essencial ao teatro
concebido por Artaud — um teatro dedicado ao mito e à magia — é sua
crença de que todos os grandes mitos são “escuros” e de que toda magia é
negra. Mesmo quando a vida está ossificada pela linguagem petrificada,
degradada, verbal em sua essência, insiste Artaud, a realidade repousa logo
abaixo — ou um pouco além. A arte pode canalizar esses poderes, pois eles
fervilham em todas as psiques. Foi a busca desses poderes escuros que o
levou para o México em 1936 para testemunhar os ritos de mescal dos
tarahumaras. A salvação individual requer travar contato com os poderes
malignos, submetendo-se a eles e sofrendo em suas mãos, a fim de sobre
eles triunfar.
O que Artaud admira no teatro balinês, escreve em 1931, é o fato de nada
ter a ver com “entretenimento”, mas, acima de tudo, revelar “algo do teor
cerimonial de um rito religioso”. Ele foi um dos muitos diretores deste
século que procuraram recriar o teatro como um ritual, conferir às
apresentações teatrais a solenidade dos procedimentos religiosos, no
entanto, de modo geral, o que se encontra é apenas a ideia mais vaga e
promíscua de religião e de rito, que imputa o mesmo valor artístico à missa
católica e à dança da chuva dos hopi. A visão de Artaud, embora não mais
viável do que as demais, na sociedade secular moderna, pelo menos é mais
específica quanto ao tipo de rito envolvido. Seu teatro objetiva criar um rito
gnóstico secularizado. Não é uma expiação. Não é um sacrifício, ou, se é,
os sacrifícios são, todos eles, metáforas. Trata-se de um rito de
transformação — a performance comunitária de um ato violento de
alquimia espiritual. Artaud conclama o teatro a renunciar ao “homem
psicológico, com seu caráter e seus sentimentos bem dissecados, e ao
homem social, submisso às leis e desfigurado pelas religiões e preceitos”, e
dedicar-se apenas ao “homem total” — uma ideia completamente gnóstica.
O que quer que Artaud almeje como “cultura”, seu pensamento, em
última instância, exclui tudo, a não ser a vida privada. A exemplo dos
gnósticos, ele é um individualista radical. Desde seus primeiros escritos, sua
preocupação recai sobre a metamorfose do estado “interior” da alma. (O eu
é, por definição, um “eu interior”.) Relações mundanas, supõe Artaud, não
tocam o cerne do indivíduo; a busca de redenção solapa todas as soluções
sociais.
O único instrumento de redenção de caráter possivelmente social que
Artaud considera é a arte. Seu desinteresse por um teatro humanístico, um
teatro sobre indivíduos, se deve ao fato de acreditar que tal teatro não pode
efetivar nenhuma transformação radical. Para ser espiritualmente libertador,
pensa Artaud, o teatro precisa expressar impulsos que são mais amplos do
que a vida. Mas isso demonstra apenas que sua ideia de liberdade é, em si,
gnóstica. O teatro serve como uma “individualidade” inumana, uma
liberdade “inumana”, como diz ele em O teatro e seu duplo — o oposto
exato da ideia liberal e sociável de liberdade. (Artaud achava o pensamento
de Breton raso — ou seja, otimista, estético — porque este não tem nem um
estilo gnóstico nem uma sensibilidade gnóstica. Breton era atraído pela
esperança de reconciliar as demandas da liberdade individual com a
necessidade de expandir e equilibrar a personalidade, mediante emoções
generosas, compartilhadas; a visão anarquista, formulada neste século com
sutileza e grande autoridade por Breton e Paul Goodman, é uma forma de
pensamento conservador humanístico — obstinadamente sensível a tudo o
que é repressivo e torpe, ao mesmo tempo que permanece fiel aos limites
que protegem o crescimento humano e o prazer. A marca do pensamento
gnóstico é enfurecer-se contra todos os limites. Mesmo aqueles que
salvam.) “Toda liberdade verdadeira é escura”, afirma Artaud em O teatro e
seu duplo, “e é infalivelmente identificada com a liberdade sexual, que
também é escura, embora não saibamos com exatidão por quê.”
Para ele, tanto o obstáculo para a liberdade como o lugar da liberdade
repousam no corpo. Sua atitude compreende o alcance temático gnóstico
familiar: a afirmação do corpo, a revulsão do corpo, o desejo de transcender
o corpo, a busca do corpo redimido. “Nada me toca, nada me interessa”,
escreve, “exceto aquilo que se dirige diretamente à minha carne.” O corpo,
porém, é sempre um problema; Artaud nunca o define com base em sua
aptidão para o prazer sensual, mas sempre o faz em termos de sua aptidão
elétrica para a inteligência e a dor. Da mesma forma que lamenta, em A arte
e a morte, que sua mente ignora seu corpo, que ele carece de ideias
condizentes com sua “condição de animal físico”, assim também ele se
queixa de que seu corpo ignora sua mente. Na imagística do mal-estar de
Artaud, corpo e espírito impedem um ao outro de serem inteligentes. Ele
fala dos “gritos intelectuais” que sobem de sua carne, fonte do único saber
em que confia. O corpo tem uma mente. “Existe uma mente na carne”,
escreve, “uma mente rápida como um raio.”
É aquilo que Artaud espera intelectualmente do corpo que leva a esse
afastamento em relação ao corpo — o corpo ignorante. De fato, uma atitude
implica a outra. Muitos poemas exprimem uma repulsa ao corpo e
acumulam evocações repugnantes do sexo. “Um homem de verdade não
tem sexo”, escreve Artaud, num texto publicado em dezembro de 1947.
“Ele ignora esse pecado abominável, estupefaciente.” A arte e a morte
talvez seja, entre suas obras, a mais obcecada por sexo, mas Artaud
demonizava a sexualidade em tudo o que escrevia. A presença mais comum
é um corpo obsceno e monstruoso — “esse corpo imprestável, feito de
carne e esperma louco”, clama ele em Aqui jaz. Contra esse corpo caído,
conspurcado pela matéria, ele opõe a conquista fantasiosa de um corpo puro
— despojado de órgãos e de desejos vertiginosos. Mesmo quando insiste
em que não é nada mais que seu corpo, Artaud exprime um anseio
fervoroso de transcendê-lo por completo, de abandonar sua sexualidade. Em
outra imagem, o corpo deve se tornar inteligente, deve se reespiritualizar.
Ao afastar-se do corpo conspurcado, ele apela ao corpo redimido, no qual
pensamento e carne serão unificados: “É por meio da pele que a metafísica
será levada a entrar de novo em nossas mentes”; só a carne pode suprir
“uma compreensão definitiva da Vida”. A tarefa gnóstica do teatro por ele
concebida consiste em nada menos do que criar seu corpo redimido — um
projeto mítico que ele explica ao se referir à última das grandes sistemáticas
gnósticas, a alquimia renascentista. A exemplo dos alquimistas, obcecados
pelo problema da matéria, em termos classicamente gnósticos, que
buscavam métodos de transformar um tipo de matéria em outro tipo de
matéria (mais elevada, espiritualizada), Artaud pretende criar uma arena
alquímica que opera na carne tanto quanto no espírito. O teatro é o
exercício de um “ato terrível e perigoso”, diz ele em “Teatro e Ciência” —
“A REAL TRANSFORMAÇÃO ORGÂNICA E FÍSICA DO CORPO HUMANO”.
As principais metáforas de Artaud são classicamente gnósticas. Corpo é
mente feita “matéria”. Assim como o corpo oprime e deforma a alma, a
linguagem também o faz, por ser pensada como “matéria”. O problema da
linguagem, como o artista o apresenta para si mesmo, é idêntico ao da
matéria. A repugnância em relação ao corpo e a repulsa das palavras são
duas formas do mesmo sentimento. Nas equivalências estabelecidas pela
imagística de Artaud, a sexualidade é a atividade corrupta, decaída, do
corpo, e a “literatura” é a atividade corrupta, decaída, das palavras. Embora
Artaud nunca tenha cessado de usar a atividade nas artes como meio de
libertação espiritual, a arte sempre foi suspeita — assim como o corpo. E a
esperança dele na arte também é gnóstica, como sua esperança no corpo. A
visão de uma arte total tem a mesma forma da visão da redenção do corpo.
(“O corpo é o corpo/ sozinho/ não precisa de órgãos”, escreve num de seus
últimos poemas.) A arte será redentora quando, a exemplo do corpo
redimido, transcender a si mesma — quando não tiver mais órgãos
(gêneros) nem partes distintas. Na arte redimida que Artaud imagina, não
existem obras de arte separadas — apenas um ambiente de arte total, que é
mágico, paroxístico, purgativo e, por fim, opaco.
O gnosticismo, uma sensibilidade organizada antes em torno da ideia do
conhecimento (gnose) do que em torno da fé, diferencia marcadamente o
conhecimento exotérico do esotérico. O adepto deve passar por vários
níveis de instrução para ser digno de ser iniciado na doutrina verdadeira. O
conhecimento, que é identificado com a capacidade de autotransformação,
está reservado a poucos. É natural que Artaud, com sua sensibilidade
gnóstica, tenha sido atraído por numerosas doutrinas secretas, como
alternativa e também como modelo para a arte. Durante a década de 1930,
ele, como estudioso amador de vários assuntos e dotado de grande energia,
lia cada vez mais sobre sistemas esotéricos — alquimia, tarô, cabala,
astrologia, rosacrucianismo. O que essas doutrinas têm em comum é o fato
de serem todas relativamente transformações tardias, decadentes, das
temáticas gnósticas. Da alquimia do Renascimento, Artaud extraiu um
modelo para seu teatro: assim como os símbolos da alquimia, o teatro
descreve “os estados filosóficos da matéria” e as tentativas de transformá-
los. O tarô, para dar outro exemplo, forneceu a base para As novas
revelações do ser, escrito em 1937, pouco antes de sua viagem de sete
semanas à Irlanda; foi também a última obra que escreveu, antes do surto
mental que acarretou seu confinamento, ao retornar para a França. Mas
nenhuma dessas doutrinas secretas já formuladas, esquemáticas,
historicamente fossilizadas, podia conter as convulsões da imaginação
gnóstica viva na cabeça de Artaud.
Só o exaustivo é realmente interessante. As ideias básicas de Artaud são
cruas; o que lhes dá poder são a complexidade e a eloquência de sua
autoanálise, sem paralelo na história da imaginação gnóstica. E, pela
primeira vez, os temas gnósticos podem ser vistos em evolução. A obra dele
é particularmente preciosa como a primeira documentação completa de
alguém que percorre a trajetória do pensamento gnóstico. O resultado,
claro, é uma terrível debacle.
O último refúgio (historicamente, psicologicamente) do pensamento
gnóstico se encontra nas construções da esquizofrenia. Depois de seu
regresso da Irlanda, começam nove anos de confinamento em hospitais para
doentes mentais. Provas oriundas, sobretudo, das cartas que escreveu para
seus dois psiquiatras principais em Rodez, o dr. Gaston Ferdière e o dr.
Jacques Latrémolière, mostram como seu pensamento seguia ao pé da letra
as fórmulas gnósticas. Nas fantasias extasiantes desse período, o mundo é
um redemoinho de substâncias e forças mágicas; sua consciência se torna
um teatro de combate clamoroso entre anjos e demônios, virgens e
prostitutas. Seu horror do corpo deixa de ter modulação, e Artaud identifica
explicitamente salvação e virgindade, pecado e sexo. Assim como as
especulações religiosas elaboradas por ele em seu período de Rodez podem
ser lidas como metáforas da paranoia, também a paranoia pode ser
considerada metáfora de uma sensibilidade religiosa exacerbada, de tipo
gnóstico. A literatura dos loucos neste século é uma literatura religiosa rica
— talvez a última zona original da especulação gnóstica genuína.
Quando deixaram Artaud sair do manicômio, em 1946, ele ainda se
considerava vítima de uma conspiração de forças demoníacas, alvo de um
ato extravagante de perseguição da “sociedade”. Apesar de a onda de
esquizofrenia ter retrocedido a ponto de não mais engolfá-lo, suas metáforas
básicas continuavam intactas. Nos dois anos de vida que lhe restavam,
Artaud forçou-os no sentido de sua conclusão lógica.
Em 1944, ainda em Rodez, ele recapitulou sua queixa gnóstica contra a
língua num texto curto, Revolta contra a poesia. Ao retornar para Paris em
1946, ele desejava voltar a trabalhar no teatro, recuperar o vocabulário de
gesto e espetáculo; porém, no curto tempo que lhe restava, teve de se
resignar a falar só com a língua. Os escritos de Artaud desse último período
— quase inclassificáveis quanto ao gênero: há “cartas” que são “poemas”
que são “ensaios” que são “monólogos dramáticos” — dão a impressão de
um homem tentando sair de dentro da própria pele. Passagens de
argumentação clara, ainda que agitada, se alternam com outras em que as
palavras são tratadas, sobretudo, como materiais (sons): elas têm um valor
mágico. (Atenção ao som e à forma das palavras, como algo distinto de seu
sentido, é um elemento do ensinamento cabalístico do Zohar, que Artaud
havia estudado em meados da década de 1930.) Seu compromisso com o
valor mágico das palavras explica sua rejeição da metáfora como o
principal modo de transmitir significação, em seus últimos poemas. Ele
exige que a língua exprima diretamente o ser humano físico. A pessoa do
poeta aparece num estado além da nudez: esfolada.
Quando Artaud se move rumo ao indizível, sua imaginação se torna
grosseira. Entretanto, suas últimas obras, com sua obsessão crescente com o
corpo e em sua cada vez mais explícita repugnância do sexo, ainda se
mantêm em linha direta com seus primeiros escritos, porque, em paralelo à
mentalização do corpo, existe uma sexualização correspondente da
consciência. Seus escritos entre 1946 e 1948 apenas ampliam metáforas que
ele usou ao longo da década de 1920 — a mente como um corpo que nunca
permite ser “possuído”, o corpo como um tipo de mente demoníaca,
tortuosa, genial. Mas, em sua feroz batalha para transcender o corpo, tudo
acaba se transformando em linguagem. Ao descrever a vida dos
tarahumaras, Artaud traduz a própria natureza em linguagem. Nos últimos
escritos, a identidade obscena entre a carne e a palavra alcança um extremo
de abominação — especialmente na peça Para dar um fim no juízo de
Deus, encomendada pela rádio francesa, e que acabou vetada na véspera de
sua transmissão, em fevereiro de 1948. (Artaud ainda estava revisando o
texto, um mês depois, quando morreu.) Falando, falando e falando, Artaud
exprime a mais ardorosa repulsa contra a fala — e o corpo.
A passagem gnóstica pelos estágios de transcendência pressupõe um
movimento do convencionalmente inteligível para o convencionalmente
ininteligível. Uma característica do pensamento gnóstico é buscar uma fala
em êxtase que prescinde de palavras distinguíveis. (Foi a adoção de uma
forma gnóstica de pregação — “a fala em línguas” — pela Igreja cristã em
Corinto que provocou os protestos de Paulo na Primeira Epístola aos
Coríntios.) A linguagem que Artaud usava no fim da vida, em passagens de
Artaud le Mômo, Aqui jaz e Para dar um fim no juízo de Deus, beirava um
discurso inflamado para além do sentido. “Toda linguagem verdadeira é
incompreensível”, diz em Aqui jaz. Ele não está em busca de uma língua
universal, como fez Joyce. A visão de Joyce da linguagem era histórica,
irônica, ao passo que a de Artaud é médica, trágica. O ininteligível
Finnegans Wake não só é decifrável, com esforço, como é concebido para
ser decifrado. As partes ininteligíveis dos últimos escritos de Artaud são
projetadas para se manterem obscuras — para serem apreendidas
diretamente como som.
O projeto gnóstico é uma busca de sabedoria, mas uma sabedoria que se
cancela pela ininteligibilidade, loquacidade e silêncio. Como sugere a vida
de Artaud, todos os esquemas para pôr fim ao dualismo, para alcançar uma
consciência unificada no nível gnóstico de intensidade, no fim estão
fadados ao fracasso — ou seja, seus praticantes desmoronam no que a
sociedade chama de loucura ou no silêncio ou no suicídio. (Outro exemplo:
a visão da consciência totalmente unificada expressa nas mensagens
aforísticas que Nietzsche mandava para os amigos, nas semanas anteriores
ao seu completo colapso mental, em Turim, em 1889.) O projeto transcende
os limites da mente. Desse modo, enquanto Artaud ainda reafirma, em
desespero, seu esforço de unificar sua carne e sua mente, os termos de seu
pensamento implicam a aniquilação da consciência, e seu corpo martirizado
alcança um timbre desumano de intensidade e raiva.

Artaud oferece a maior quantidade de sofrimento na história da literatura.


Tão drásticas e tão lastimáveis são as numerosas descrições que ele
apresenta de sua dor que os leitores, esmagados, podem ficar tentados a
distanciar-se, lembrando que o artista estava insano.
Em qualquer sentido que se diga que ele acabou louco, Artaud sempre foi
louco, a vida toda. Seu histórico de internações em hospitais psiquiátricos
iniciou-se em meados da adolescência — bem antes de sair de Marselha e ir
para Paris, em 1920, aos 24 anos de idade, para começar sua carreira nas
artes; sua dependência permanente de opiáceos, que podem ter agravado
sua perturbação mental, provavelmente começou antes daquela data. Na
falta do conhecimento protetor que permite que a maioria das pessoas seja
consciente ao sentir relativamente pouca dor — o conhecimento que
Rivière chama de “abençoada opacidade da experiência” e “inocência dos
fatos” —, Artaud nunca em sua vida conseguiu escapar por completo da
fustigação da loucura. Mas apenas julgá-lo louco — restabelecer a redutora
sabedoria psiquiátrica — significa rejeitar sua argumentação.
A psiquiatria traça uma fronteira clara entre arte (um fenômeno
psicológico “normal”, que manifesta limites estéticos objetivos) e
sintomatologia: exatamente a fronteira que Artaud contesta. Escrevendo
para Rivière em 1923, ele insiste em levantar a questão da autonomia de sua
arte — ou seja, apesar de sua suposta deterioração mental, apesar dessa
“falha fundamental” em sua psique, que o coloca à parte dos demais, seus
poemas, não obstante, existem como poemas e não como documentos
psicológicos. Rivière retruca expressando a confiança de que, a despeito de
seu problema mental, Artaud um dia será um bom poeta. Este responde com
impaciência, mudando de posição: ele quer fechar o abismo entre vida e
arte, implícito na questão original e no incentivo bem-intencionado mas
obtuso de Rivière. Artaud decide defender seus poemas como são — pelo
mérito que possuem justamente por não terem êxito como arte.
A tarefa do leitor de Artaud não é reagir com a distância de Rivière —
como se loucura e sanidade pudessem se comunicar apenas no terreno da
sanidade, na linguagem da razão. Os valores da sanidade não são eternos ou
“naturais” na medida em que existe um sentido evidente e aceito por todos
da condição de ser louco. A percepção de que algumas pessoas são loucas
faz parte da história do pensamento e a loucura requer uma definição
histórica. Loucura significa não fazer sentido — significa dizer o que não
tem de ser levado a sério. Mas isso depende grandemente de como
determinada cultura define “sentido” e “seriedade”; as definições variaram
muito ao longo da história. O louco denota aquilo que, na determinação de
uma sociedade particular, não deve ser pensado. Loucura é um conceito que
estabelece limites; suas fronteiras definem o que é o “outro”. Uma pessoa
louca é alguém cuja voz a sociedade não deseja ouvir, cuja conduta é
intolerável, alguém que deve ser suprimido. Sociedades diferentes usam
definições diferentes do que constitui a loucura (ou seja, o que não faz
sentido). No entanto, nenhuma definição é menos provinciana do que outra.
Parte do escândalo do costume corrente na União Soviética de trancar
dissidentes políticos em hospitais psiquiátricos é inapropriado, pois sustenta
não só que fazer isso é ruim (o que é verdade), mas também que é um uso
fraudulento do conceito de doença mental; supõe-se que exista um padrão
correto, universal, científico, de sanidade (aquele aplicado pelas políticas de
saúde mental, digamos, dos Estados Unidos, da Inglaterra e da Suécia, e
não de países como o Marrocos). Isso é falso. Em toda sociedade, as
definições de sanidade e loucura são arbitrárias — em sentido amplo, são
políticas.
Artaud era extremamente sensível à função repressiva do conceito de
loucura. Via os loucos como heróis ou mártires do pensamento, seres que se
extraviaram, do ponto de vista privilegiado da alienação social radical (e
não meramente psicológica). Ele os via como voluntários da loucura —
como aqueles que, mediante um conceito superior de honra, preferem
enlouquecer a fingir certa lucidez, um fervor radical na exposição de suas
convicções. Numa carta para Jacqueline Breton, escrita no hospital em
Ville-Evrard, em abril de 1939, após um ano e meio do que seriam nove
anos de confinamento, ele escreveu: “Eu sou um fanático, não sou louco”.
Mas qualquer fanatismo que não é um fanatismo de grupo é exatamente
aquilo que a sociedade entende como loucura.
Loucura é a conclusão lógica do compromisso com a individualidade,
quando esse compromisso é levado longe demais. Como diz Artaud na
Carta aos diretores médicos dos manicômios, em 1925, “todos os atos
individuais são antissociais”. É uma verdade nada palatável, talvez muito
irreconciliável com a ideologia humanista da democracia capitalista ou da
democracia social ou do socialismo liberal — mas Artaud tem razão.
Sempre que um comportamento se torna suficientemente individual, torna-
se também objetivamente antissocial e, para as outras pessoas, vai parecer
insano. Todas as sociedades humanas concordam nesse ponto. Elas diferem
apenas na maneira de aplicar o padrão de loucura e também no tocante a
quem é protegido e quem é em parte isento (por razões de privilégio
econômico, sexual, social ou cultural) da penalidade da prisão, reservada
àqueles cujo ato antissocial básico consiste em não fazer sentido.
A pessoa louca tem dupla identidade nas obras de Artaud: a vítima
suprema e o portador de uma sabedoria subversiva. No prefácio escrito em
1946 para a projetada coletânea de seus escritos, ele se define como um dos
mentalmente desfavorecidos, que abarcam loucos, afásicos e analfabetos.
Em outra passagem de seus escritos dos dois últimos anos, Artaud se situa
de maneira reiterada em companhia de pessoas mentalmente superdotadas
que acabaram enlouquecendo — Hölderlin, Nerval, Nietzsche e Van Gogh.
Na medida em que o gênio é uma extensão e uma intensificação do
indivíduo, ele sugere a existência de uma afinidade natural entre gênio e
loucura, num sentido muito mais preciso do que o estabelecido pelos
românticos. Porém, ao mesmo tempo que denuncia a sociedade que
aprisiona o louco e que afirma que a loucura era o sinal exterior de um
exílio espiritual profundo, ele nunca sugere haver algo de libertador em
perder a razão.
Alguns de seus escritos, em particular os primeiros textos surrealistas,
mostram uma atitude mais positiva com relação à loucura. Em Segurança
pública/ A liquidação do ópio, por exemplo, ele parece defender a prática
da perturbação proposital da mente e dos sentidos (como Rimbaud, certa
vez, definiu a vocação do poeta). Mas Artaud nunca cessa de dizer — nas
cartas para Rivière, para o dr. Allendy e para George Soulié de Morant, nas
décadas de 1920 e 1930, nas cartas escritas entre 1943 e 1945, em Rodez, e
no ensaio sobre Van Gogh, escrito em 1947, alguns meses depois de ter sido
liberado de Rodez — que a loucura é confinadora, destruidora. Pessoas
loucas podem saber a verdade — e tanta verdade, que a sociedade se vinga
desses profetas infelizes marginalizando-os. Mas ser louco é também uma
dor interminável, um estado que deve ser transcendido — e é essa dor que
Artaud retrata e impõe a seus leitores.
Ler Artaud é nada menos do que uma provação. É compreensível: os
leitores parecem proteger-se com reduções e adaptações de sua obra. Para
lê-lo de forma apropriada, são necessários um ânimo especial, uma
sensibilidade especial e um tato especial. Não é uma questão de concordar
com ele — isso seria raso — nem mesmo de “compreendê-lo” e a sua
relevância com neutralidade. O que há ali com que concordar? Como
poderia alguém concordar com as ideias de Artaud, a menos que já
estivesse no estado de sítio demoníaco em que ele se encontrava? Aquelas
ideias foram declaradas sob a pressão intolerável da situação vivenciada por
ele. Artaud não está apenas numa posição insustentável; na verdade, nem
chega a ser uma “posição”.
O pensamento de Artaud faz parte, organicamente, de sua consciência
singular, assombrada, impotente, brutalmente inteligente. É um dos grandes
e audaciosos mapeadores da consciência in extremis. Para lê-lo de forma
adequada, não é preciso acreditar que a única verdade que a arte pode
fornecer é aquela que é singular e autenticada pelo sofrimento radical.
Quanto à arte que descreve outros estados de consciência — menos
idiossincráticos, menos exaltados, talvez não menos profundos —, é correto
pedir que ela forneça verdades gerais. Porém os casos excepcionais no
limite da “escrita” — Sade é um caso, Artaud é outro — demandam uma
abordagem distinta. Artaud deixou uma obra que se anula, um pensamento
que sobrepuja o pensamento, recomendações que não podem ser
concretizadas. Aonde isso leva o leitor? Embora sua obra constitua um
conjunto, o pensamento de Artaud proíbe que suas obras sejam tratadas
simplesmente como “literatura”. Embora seu pensamento constitua um
conjunto, o pensamento de Artaud proíbe a concordância — assim como
sua personalidade agressivamente autoimoladora proíbe identificação.
Artaud choca e, à diferença dos surrealistas, permanece chocante. (Longe
de ser subversivo, o espírito dos surrealistas é basicamente construtivo e se
encaixa muito bem na tradição humanista, e suas violações encenadas das
propriedades burguesas não são atos perigosos, verdadeiramente
antissociais. Comparem isso com o comportamento de Artaud, que era de
fato impraticável no âmbito social.) Isolar seu pensamento como um bem
de consumo intelectual portátil é, com efeito, o que esse pensamento proíbe,
e explicitamente. Ele é antes um evento do que um objeto.
Proibido de concordar ou de identificar-se ou de apropriar-se ou de
imitar, ao leitor só resta retroceder à categoria da inspiração. “A INSPIRAÇÃO

COM CERTEZA EXISTE”, afirma Artaud em letras maiúsculas em O pesa-


nervos. Uma pessoa pode se inspirar em Artaud. Pode ser repreendida e
modificada por Artaud. Mas não existe nenhuma maneira de adotar Artaud.
Mesmo no domínio do teatro, onde sua presença pode ser depurada em
um programa e uma teoria, a obra daqueles diretores que mais se
beneficiaram de suas ideias mostra que não há maneira de usar Artaud sem
deixar de ser fiel a ele. Nem mesmo o próprio Artaud conseguiu encontrar
essa maneira; segundo todos os relatos, suas encenações teatrais estavam
longe de alcançar o nível de suas ideias. E, para muita gente que não tinha
ligação com o teatro — sobretudo os de orientação anarquista, para quem
Artaud tinha especial importância —, a experiência de sua obra permanece
como algo profundamente privado. Artaud é alguém que fez uma viagem
espiritual por nós — um xamã. Seria presunçoso reduzir a geografia de sua
viagem ao que pode ser colonizado. Sua autoridade repousa nas partes que
não cedem nada em relação ao leitor, a não ser um desconforto profundo da
imaginação.
A obra de Artaud se torna utilizável conforme nossas necessidades, mas
ela desaparece por trás do uso que fazemos dela. Quando nos cansamos de
usar Artaud, podemos voltar a seus escritos. “Inspiração nos palcos”, diz
ele. “Não se deve admitir literatura demais.”
Toda arte que exprime um descontentamento radical e almeja despedaçar
complacências de sentimento se arrisca a ser desarmada, neutralizada,
drenada de seu poder de perturbar — ao ser admirada, ao ser (ou parecer
ser) muito bem compreendida, ao tornar-se relevante. Os temas outrora
exóticos da obra de Artaud tornaram-se, em sua maioria, na última década,
clamorosamente temas da moda: a sabedoria (ou a falta dela) encontrada
nas drogas, as religiões orientais, a magia, a vida dos indígenas da América
do Norte, a linguagem corporal, a viagem da loucura; a revolta contra a
“literatura” e o beligerante prestígio das artes não verbais; a apreciação da
esquizofrenia; o uso da arte como violência contra o público; a necessidade
da obscenidade. Na década de 1920, Artaud tinha quase todos os gostos
(exceto o entusiasmo por histórias em quadrinhos, ficção científica e
marxismo) que se tornariam proeminentes na contracultura americana da
década de 1960, e o que ele lia naqueles anos iniciais do século — O livro
tibetano dos mortos, livros de misticismo, psiquiatria, antropologia, tarô,
astrologia, ioga, acupuntura — parece uma antologia profética da literatura
que recentemente emergiu como leitura popular entre os jovens avançados.
Mas a relevância atual de Artaud pode ser tão enganosa quanto é a
obscuridade em que sua obra repousa até hoje.
Desconhecido dez anos atrás fora de um pequeno círculo de admiradores,
Artaud é hoje um clássico. É um exemplo de um clássico forçado — um
autor que a cultura tenta assimilar, mas que permanece profundamente
indigerível. Um uso da respeitabilidade literária em nosso tempo — e parte
importante da complexa carreira do modernismo literário — consiste em
tornar aceitável um autor escandaloso e hostil em sua essência, que se torna
um clássico como resultado das numerosas afirmações interessantes que
podem ser feitas sobre uma obra, mas que mal conseguem transmitir (e
talvez nem mesmo esconder) a natureza real da própria obra, que pode ser,
entre outras coisas, extremamente maçante ou moralmente monstruosa ou
terrivelmente penosa de ler. Certos autores se tornam clássicos intelectuais
ou literários porque não são lidos, pois, em certo sentido fundamental, são
ilegíveis. Sade, Artaud e Wilhelm Reich pertencem a esse grupo: autores
que foram enjaulados ou trancados em hospícios, porque estavam berrando,
porque estavam fora de controle; autores destemperados, obcecados,
estridentes, que se repetem interminavelmente, que vale a pena citar e ler
um pouquinho, mas que exaurem e desalentam, se lidos em grandes
porções.
Como Sade e Reich, Artaud é relevante e compreensível, um monumento
cultural, contanto que se faça referência a suas ideias sem ler muito de sua
obra. Para qualquer um que leia os escritos de Artaud, ele continua fora de
alcance, uma voz e uma presença inassimiláveis.

(1973)
Fascismo fascinante

Prova número um. Aqui está um livro com 126 magníficas fotos
coloridas de Leni Riefenstahl, seguramente o mais impressionante livro de
fotografias publicado nos últimos anos. Nas montanhas inóspitas do sul do
Sudão, vivem isolados, como deuses, 8 mil nativos do povo nuba, símbolos
da perfeição física, com cabeças grandes, bem-feitas, parcialmente
raspadas, rostos expressivos e corpos musculosos, depilados e enfeitados
com cicatrizes; lambuzados com cinzas sagradas esbranquiçadas, os
homens andam de peito erguido, põem-se de cócoras, travam lutas corpo a
corpo em ladeiras áridas. E aqui está um arranjo gráfico fascinante de doze
fotos em preto e branco de Riefenstahl, na quarta capa do livro The Last of
the Nuba [Os últimos nubas], também impressionante, uma sequência
cronológica de expressões (de uma introspecção provocante até o sorriso de
uma matrona texana num safári) subjugando a incontrolável marcha do
envelhecimento. A primeira foto foi tirada em 1927, quando ela estava com
25 anos e já era uma estrela do cinema; as mais recentes são de 1969 (ela
está acariciando um bebê nu africano) e de 1972 (ela está segurando uma
câmera), e todas mostram uma versão de uma presença ideal, uma espécie
de beleza imperecível, como a de Elizabeth Schwarzkopf, que se torna cada
vez mais alegre, mais metálica e de aspecto mais saudável à medida que a
idade avança. E aqui estão uma síntese biográfica de Riefenstahl, na
sobrecapa do volume, e uma introdução (sem assinatura) intitulada “Como
Leni Riefenstahl foi estudar os mesakins de Nuba, em Kordofan” — repleta
de mentiras perturbadoras.
A introdução, que oferece um relato minucioso da peregrinação de
Riefenstahl ao Sudão (inspirada, somos informados, pela leitura de As
verdes colinas da África, de Hemingway, “numa noite insone em meados da
década de 1950”), identifica de maneira lacônica a fotógrafa como “uma
espécie de figura mitológica, como cineasta, antes da guerra, semiesquecida
por uma nação que escolheu varrer da memória uma era da própria
história”. Quem (é o que se espera) senão a própria Riefenstahl poderia
imaginar uma fábula sobre isso que é vagamente chamado de “nação”, que,
por algum motivo não declarado, “escolheu” executar o deplorável ato de
covardia de esquecer “uma era” — delicadamente deixada sem
identificação — “da própria história”? Supõe-se que pelo menos alguns
leitores ficarão chocados com essa alusão enviesada à Alemanha e ao
Terceiro Reich.
Comparada à introdução, a sobrecapa do livro é francamente expansiva
sobre o tema da carreira da fotógrafa, papagueando a desinformação que
Riefenstahl vinha divulgando havia vinte anos.

Foi durante a funesta e grave década de 1930 na Alemanha que Leni Riefenstahl
adquiriu fama internacional como cineasta. Ela nasceu em 1902 e sua primeira
dedicação foi à dança criativa. Isso a levou a participar em filmes mudos e logo ela
mesma passou a dirigir — e a estrelar — os próprios filmes falados, como A montanha
(1929).
Essas produções tensamente românticas foram amplamente admiradas, até mesmo
por Adolf Hitler, que, chegando ao poder em 1933, contratou Riefenstahl para fazer um
documentário sobre o comício de Nuremberg, em 1934.
É preciso certa originalidade para descrever a era nazista como “a funesta
e grave década de 1930 na Alemanha”, resumir os acontecimentos de 1933
como a chegada de Hitler ao poder e afirmar que Riefenstahl, cuja obra, em
sua maior parte, em sua própria época, era corretamente identificada como
propaganda nazista, desfrutava de “fama internacional como cineasta”,
comparada de maneira ostensiva a seus contemporâneos Renoir, Lubitsch e
Flaherty. (Será que os editores deixaram que a própria L. R. escrevesse o
texto da sobrecapa? Hesitamos em admitir uma ideia tão indelicada, embora
“sua primeira dedicação foi à dança criativa” seja uma expressão que
poucos falantes nativos da língua inglesa seriam capazes de usar.)
Os fatos, é claro, são inexatos ou inventados. Riefenstahl não fez — nem
estrelou — um filme falado intitulado A montanha (1929). Tal filme não
existe. Em termos mais gerais: ela não se limitou a participar de filmes
mudos para depois, com a chegada do cinema sonoro, começar a dirigir e
estrelar os próprios filmes. Em todos os nove filmes nos quais representou
um papel, Riefenstahl foi a estrela; e sete deles não foram dirigidos por ela.
Esses sete filmes foram: A montanha sagrada (Der heilige Berg, 1926), O
grande salto (Der grosse Sprung, 1927), O destino da casa dos Habsburgo
(Das Schiksal derer von Habsburg, 1929), O inferno branco do Pitz Palü
(Die weisse Hölle von Piz Palü, 1929) — todos mudos —, seguidos por
Avalanche (Stürme über dem Montblanc, 1930), Frenesi branco (Der
weisse Rausch, 1931) e S.O.S. Iceberg (S.O.S. Eisberg, 1932-3). À exceção
de um, todos os demais foram dirigidos por Arnold Fanck, auteur de épicos
alpinos de amplo sucesso desde 1919, que fez apenas mais dois filmes,
ambos malogrados, depois que Riefenstahl o deixou para passar a dirigir os
próprios filmes, em 1932. (O filme que Fanck não dirigiu é O destino da
casa dos Habsburgo, um drama lacrimejante, partidário da casa real, feito
na Áustria, em que Riefenstahl representou o papel de Marie Vetsera,
companheira do príncipe herdeiro Rudolf, em Mayerling. Nenhuma
imagem do filme parece ter sobrevivido.)
Os veículos wagnerianos-pop de Fanck para Riefenstahl não eram apenas
“tensamente românticos”. Decerto concebidos como apolíticos quando
produzidos, eles parecem hoje, em retrospecto, como apontou Siegfried
Kracauer, uma antologia de sentimentos protonazistas. Escalar montanhas,
nos filmes de Fanck, era uma metáfora irresistível para a aspiração ilimitada
rumo a um objetivo místico elevado, belo e aterrador, que mais tarde iria se
tornar concreto, no culto ao Führer. O personagem em geral representado
por Riefenstahl era o de uma garota selvagem que se atreve a escalar o pico
que outros, os “porcos do vale”, temem. Em seu primeiro papel, no filme
mudo A montanha sagrada (1926), o de uma jovem dançarina chamada
Diotima, ela é cortejada por um alpinista fervoroso que a converte aos
sadios êxtases do alpinismo. Essa personagem é submetida a uma
glorificação inexorável. Em seu primeiro filme sonoro, Avalanche (1930),
Riefenstahl é uma garota fascinada por uma montanha, apaixonada por um
jovem meteorologista, a quem ela resgata, quando uma tempestade o deixa
isolado em seu observatório no Mont Blanc.
A própria Riefenstahl dirigiu seis filmes, e o primeiro deles, A luz azul
(Das blaue Licht, 1932), foi mais um filme de montanha. Também
estrelando a produção, ela representou um papel semelhante àqueles dos
filmes de Fanck, pelos quais foi tão “amplamente admirada, até por Adolf
Hitler”, mas alegorizava os temas sombrios do desejo, da pureza e da morte,
tratados por Fanck de modo muito tateante. Como de hábito, a montanha é
extremamente bela e, ao mesmo tempo, perigosa, aquela força majestosa
que conclama a uma afirmação suprema e que escapa do eu — rumo à
fraternidade da coragem e também à morte. O papel concebido por
Riefenstahl para si mesma é o de uma criatura primitiva que tem uma
relação singular com um poder destrutivo: só Junta, a garota proscrita da
aldeia, vestida em andrajos, é capaz de alcançar a luz azul misteriosa que
irradia do pico de monte Cristallo, ao passo que outros aldeões jovens,
seduzidos pela luz, tentam escalar a montanha e acabam despencando para
a morte. No fim, o que causa a morte da garota não é a impossibilidade do
objetivo simbolizado pela montanha, e sim o espírito materialista, prosaico,
dos aldeões invejosos combinado com o racionalismo cego de seu amante,
um visitante bem-intencionado proveniente da cidade.
O filme que dirigiu depois de A luz azul não foi “um documentário sobre
o comício de Nuremberg em 1934” — Riefenstahl fez quatro filmes de não
ficção, e não dois, como ela declara desde a década de 1950 e como a
maioria dos relatos acobertadores repete —, mas Vitória da fé (Sieg des
Glaubens, 1933), celebrando o primeiro Congresso do Partido Nacional-
Socialista realizado após a chegada de Hitler ao poder. Veio então o
primeiro dos dois trabalhos que de fato a tornaram internacionalmente
famosa, o filme sobre o Congresso do Partido Nacional-Socialista seguinte,
Triunfo da vontade (Triumph des Willens, 1935) — cujo título nunca é
mencionado na sobrecapa de The Last of the Nuba —, seguido por um
curta-metragem (dezoito minutos) para o exército, Dia de liberdade: Nosso
exército (Tag der Freiheit: Unsere Wehrmacht, 1935), que retrata a beleza
da vida militar dos que servem ao Exército para o Führer. (Não surpreende
não encontrar nenhuma referência a esse filme, do qual se encontrou uma
imagem em 1971; durante as décadas de 1950 e 1960, quando Riefenstahl e
todo o mundo acreditavam que Dia de liberdade estava perdido, ela o
apagava de sua filmografia e se recusava a discutir o assunto com seus
entrevistadores.)
O texto da sobrecapa prossegue:
A recusa de Riefenstahl a submeter-se à tentativa de Goebbels de sujeitar sua
visualização a exigências estritamente propagandísticas gerou uma batalha de egos, que
chegou ao auge quando Riefenstahl fez seu filme sobre os Jogos Olímpicos de 1936,
Olympia. Esse filme, Goebbels tentou destruir; e só foi salvo pela intervenção pessoal
de Hitler.
Com dois dos mais notáveis documentários da década de 1930 creditados a ela,
Riefenstahl continuou a fazer filmes segundo seus planos, sem relação com a ascensão
da Alemanha Nazista, até 1941, quando as condições da guerra tornaram impossível
continuar.
Sua relação com o líder nazista acarretou sua prisão ao fim da Segunda Guerra
Mundial: ela foi duas vezes processada e duas vezes absolvida. Sua reputação estava em
ocaso e ela estava semiesquecida — embora seu nome tivesse sido uma palavra familiar
para toda uma geração de alemães.

Exceto pelo trecho em que se afirma que seu nome era uma palavra
familiar na Alemanha Nazista, nenhuma frase do texto é verdadeira.
Apresentar Riefenstahl no papel de uma artista individualista que desafiava
burocratas filisteus e a censura do Estado patrocinador (“a tentativa de
Goebbels de sujeitar sua visualização a exigências estritamente
propagandísticas”) deveria soar como um absurdo para qualquer pessoa que
tivesse visto Triunfo da vontade — filme cuja própria concepção nega a
possibilidade de a cineasta ter uma concepção estética independente da
propaganda. Embora isso tenha sido negado por Riefenstahl desde o fim da
guerra, ela fez Triunfo da vontade com recursos ilimitados e cooperação
oficial abundante (nunca houve nenhum conflito entre a cineasta e o
ministro alemão da Propaganda). Na verdade, Riefenstahl, como ela relata
no curto livro sobre a produção de Triunfo da vontade, fez parte do
planejamento do comício — desde o início concebido como cenário de um
filme-espetáculo.1 Olympia — um filme de três horas e meia, em duas
partes, Festival do povo (Fest der Völker) e Festival da beleza (Fest der
Schönheit) — era nada menos do que um filme oficial. Riefenstahl afirma
em entrevistas, desde a década de 1950, que Olympia foi encomendado pelo
Comitê Olímpico Internacional, produzido por sua própria empresa e
realizado sob os protestos de Goebbels. A verdade é que a película foi
patrocinada e inteiramente financiada pelo governo nazista (uma empresa
fantasma foi montada em nome de Riefenstahl, porque julgaram imprudente
que o governo figurasse como produtor) e viabilizado pelo ministério de
Goebbels em todas as etapas da filmagem;2 mesmo a lenda plausível de que
Goebbels teria reclamado do trecho sobre os triunfos do astro do atletismo
Jesse Owens, um negro americano, é falsa. Riefenstahl trabalhou dezoito
meses na edição do filme, terminando-o a tempo para que o filme estreasse
no dia 29 de abril de 1938, em Berlim, como parte das festividades do 49o
aniversário de Hitler; mais tarde, naquele ano, Olympia foi a principal
atração alemã no Festival de Cinema de Veneza, no qual ganhou a medalha
de ouro.
Mais mentiras: dizer que Riefenstahl “continuou a fazer filmes segundo
seus planos, sem relação com a ascensão da Alemanha Nazista, até 1941”.
Em 1939 (depois de voltar de uma visita a Hollywood, a convite de Walt
Disney), ela acompanhou a Wehrmacht [Forças Armadas da Alemanha] à
Polônia, como correspondente de guerra uniformizada, com uma equipe
própria de filmagem; mas não há nenhum registro disso nos materiais que
sobreviveram à guerra. Depois de Olympia, Riefenstahl fez exatamente
mais um filme, Tiefland (Planície), iniciado em 1941 — e, depois de uma
interrupção, retomado em 1944 (nos Estúdios de Cinema Barrandov, na
Praga ocupada pelos nazistas), e finalizado em 1954. A exemplo de A luz
azul, Tiefland contrapõe a corrupção da planície ou do vale à pureza da
montanha e, mais uma vez, a protagonista (representada por Riefenstahl) é
uma linda proscrita. Riefenstahl prefere dar a impressão de que só havia
dois documentários numa carreira longa de diretora de filmes de ficção,
porém a verdade é que quatro dos seis filmes que ela dirigiu eram
documentários feitos para o governo nazista e por ele financiados.
Não é exato descrever a relação profissional de Riefenstahl com Hitler e
Goebbels e sua intimidade com ambos como “sua relação com o líder
nazista”. Riefenstahl era amiga íntima e companheira de Hitler desde bem
antes de 1932; era também amiga de Goebbels: não existem provas da
afirmação repetida por Riefenstahl, desde a década de 1950, de que
Goebbels a odiava ou mesmo que ele tivesse o poder de interferir em sua
obra. Em virtude de seu ilimitado acesso a Hitler, Riefenstahl era
justamente a única cineasta alemã que não prestava contas à Secretaria de
Cinema (Reichsfilmkammer) do Ministério da Propaganda de Goebbels. Por
fim, é enganadora a afirmação de que Riefenstahl foi “duas vezes
processada e duas vezes absolvida” depois da guerra. O que aconteceu foi
que ela ficou presa por curto tempo pelos Aliados em 1945 e duas de suas
casas (em Berlim e em Munique) foram tomadas. As investigações e os
comparecimentos em juízo começaram em 1948 e prosseguiram, de forma
intermitente, até 1952, quando ela foi, afinal, “desnazificada” com o
veredicto: “Nenhuma atividade política para defender o regime nazista que
justifique punição”. Mais importante: merecesse ou não uma sentença de
prisão, o que estava em questão não era a “relação” de Riefenstahl com o
líder nazista, mas suas atividades como propagandista de ponta em favor do
Terceiro Reich.
A sobrecapa do livro The Last of the Nuba resume fielmente a linha-
mestra da autodefesa que Riefenstahl fabricou na década de 1950 e que está
exposta de modo mais completo na entrevista que deu à revista Cahiers du
Cinéma, em setembro de 1965. Ali, ela negou que qualquer parte de sua
obra fosse propaganda — chamando-a de cinema verité. “Nenhuma cena é
montada”, revelou Riefenstahl sobre Triunfo da vontade. “Tudo é genuíno.
Não há comentários tendenciosos pela simples razão de que não há
comentário nenhum. O filme é história — história pura.” Estamos muito
longe do desdém veemente pelos “filmes-crônicas”, de meras “reportagens”
ou de “fatos filmados”, como algo indigno do “estilo heroico” do evento,
que está expresso em seu livro sobre o cinema.3
Embora não tenha nenhuma voz narradora, Triunfo da vontade começa
com um texto escrito, que proclama o comício como a culminância
redentora da história alemã. Mas, entre as diversas maneiras como o filme
se mostra tendencioso, essa declaração de abertura é a menos original. Não
há nenhum comentário, porque nenhum é necessário, uma vez que Triunfo
da vontade é uma transformação radical da realidade já levada a efeito:
história se torna teatro. A forma como se encenou a convenção do Partido
em 1934 foi em parte determinada pela decisão de produzir Triunfo da
vontade — o fato histórico serviu de cenário para um filme que, em
seguida, assumiu o caráter de um documentário autêntico. De fato, quando,
antecipadamente, foram divulgados alguns trechos que mostravam líderes
do Partido na tribuna dos oradores, Hitler deu ordem para que as cenas
fossem refilmadas; e Streicher, Rosenberg, Hess e Frank, teatralmente,
juraram de novo sua fidelidade ao Führer, semanas depois, sem Hitler e sem
plateia, num estúdio montado por Speer. (É absolutamente correto que
Speer, responsável pela construção do gigantesco cenário do comício nos
arredores de Nuremberg, figure na lista de créditos de Triunfo da vontade
como o arquiteto do filme.) Qualquer um que defenda os filmes de
Riefenstahl como documentários, se documentário for entendido como algo
distinto de propaganda, está sendo ingênuo. Em Triunfo da vontade, o
documento (a imagem) é não só o registro da realidade, como também uma
razão pela qual a realidade foi montada e deve, por fim, suplantá-la.
A reabilitação de figuras proscritas nas sociedades liberais não acontece
com o propósito burocrático abrangente da Enciclopédia soviética, que a
cada nova edição acrescenta figuras, até então impronunciáveis, e rebaixa
um número igual ou maior pela porta dos fundos da inexistência. Nossas
reabilitações são mais brandas, mais insinuadas. Não que o passado nazista
de Riefenstahl tenha de repente se tornado aceitável. Ocorre simplesmente
que, com o giro da roda cultural, isso deixou de ter importância. Em vez de
apresentar uma versão gelada e seca da história vinda de cima, uma
sociedade liberal formula tais questões à espera de que os ciclos do gosto
depurem a controvérsia.
A purificação da reputação de Leni Riefenstahl da mancha nazista tomou
impulso durante algum tempo, mas neste ano [1974] alcançou uma espécie
de clímax, quando ela foi a convidada de honra de um novo festival de
cinema, controlado por cinéfilos, ocorrido no verão, em Colorado, e foi
tema de uma série de reportagens e entrevistas respeitosas em jornais e na
televisão, e agora com a publicação de The Last of the Nuba. Parte do
ímpeto que sustenta a recente promoção de Riefenstahl à condição de
monumento cultural com certeza se deve ao fato de ser mulher. O cartaz do
Festival de Cinema de Nova York de 1973, feito por uma artista bastante
conhecida também como feminista, mostrava uma mulher loira, com cara
de boneca, cujo seio direito está rodeado por três nomes: Agnès Leni
Shirley. (Ou seja, Varda, Riefenstahl, Clarke.) As feministas sentiriam
grande dor por ter de sacrificar a única mulher que fez filmes reconhecidos
por todos como obras de primeira grandeza. Mas o impulso mais forte por
trás da mudança de atitude em relação a Riefenstahl repousa na nova e mais
ampla fortuna da ideia do belo.
A linha adotada pelos defensores de Riefenstahl, que incluem as vozes
mais influentes do cinema de vanguarda, é de que ela sempre foi dedicada à
beleza. Essa, é claro, foi a argumentação da própria Riefenstahl durante
alguns anos. Desse modo, o entrevistador de Cahiers du Cinéma a exaltou,
observando tolamente que aquilo que Triunfo da vontade e Olympia “têm
em comum é que ambos dão forma a certa realidade, baseada ela mesma em
uma ideia de forma. Você enxerga algo peculiarmente alemão nessa
preocupação com a forma?”. A isso, Riefenstahl respondeu:

O que posso dizer é que me sinto espontaneamente atraída por tudo o que é belo. Sim:
beleza, harmonia. E talvez esse cuidado com a composição, essa aspiração pela forma,
seja, de fato, algo muito alemão. Mas eu mesma não conheço essas coisas de fato. Isso
vem do inconsciente e não de meu conhecimento… O que você quer que eu acrescente?
Tudo o que for puramente realista, extraído da vida, aquilo que é mediano, cotidiano,
não me interessa… Sou fascinada pelo que é belo, forte, saudável, pelo que é vivo. Eu
busco a harmonia. Quando a harmonia se produz, fico feliz. Creio, com isso, que
respondi sua pergunta.

É por isso que The Last of the Nuba é o último passo necessário na
reabilitação de Leni Riefenstahl. É a reescrita final do passado; ou, para
seus adeptos, a confirmação definitiva de que ela sempre foi uma adoradora
do belo e não uma propagandista medonha.4 Dentro do livro, tão
lindamente produzido, fotografias da tribo nobre, perfeita. E, na sobrecapa,
fotografias de “minha perfeita mulher alemã” (como Hitler a chamava),
toda sorrisos, derrotando as afrontas da história.
Com efeito, se o livro não fosse assinado por Riefenstahl, não teríamos
necessariamente de suspeitar que as fotos foram tiradas pela artista mais
interessante, talentosa e eficiente da era nazista. A maioria das pessoas que
folheiam o livro The Last of the Nuba provavelmente o verá como mais um
lamento pelo desaparecimento de povos primitivos — o maior exemplo
continua a ser Tristes trópicos, de Lévi-Strauss, sobre os bororos, do Brasil
—; no entanto, se examinarmos as fotos com cuidado, em combinação com
o extenso texto escrito por Riefenstahl, fica claro que há continuidade entre
o livro e a sua obra nazista. O pendor particular de Riefenstahl se revela na
escolha dessa tribo e não de outra: um povo que ela define como
agudamente artístico (todos têm uma lira) e belo (os homens nubas, observa
Riefenstahl, têm uma “compleição atlética rara em qualquer outra tribo
africana”); dotados de “um sentido muito mais forte das relações espirituais
do que dos assuntos mundanos e materiais”, sua atividade principal, insiste
ela, é cerimonial. The Last of the Nuba trata de um ideal primitivista: o
retrato de um povo que subsiste em pura harmonia com seu ambiente,
intocado pela “civilização”.
Os quatro filmes nazistas de Riefenstahl feitos por encomenda — sobre
os congressos do Partido, sobre a Wehrmacht ou sobre atletas — celebram o
renascimento do corpo e da comunidade, mediado pelo culto de um líder
irresistível. São herdeiros diretos dos filmes de Fanck, nos quais ela
representou o papel principal, e do seu próprio filme A luz azul. As ficções
alpinas são contos sobre o anseio de alcançar locais elevados, sobre o
desafio e a provação do elementar, do primitivo; tratam da vertigem em face
do poder, simbolizado pela majestade e pela beleza das montanhas. Os
filmes nazistas são épicos de uma comunidade concretizada, nos quais se
transcende a realidade cotidiana por meio do autocontrole extasiado e da
submissão; eles tratam do triunfo do poder. E The Last of the Nuba, uma
elegia à beleza prestes a desaparecer e aos poderes místicos dos primitivos a
quem Riefenstahl chama de “meu povo adotivo”, é a terceira peça de seu
tríptico de criações visuais fascistas.
No primeiro painel, os filmes de montanhas, pessoas em trajes pesados se
esforçam em escaladas para se pôr à prova na pureza do frio; a vitalidade é
identificada com a provação física. No painel do meio, os filmes feitos para
o governo nazista; Triunfo da vontade usa planos gerais superpovoados com
imagens de massa que se alternam com closes que isolam uma paixão
individual, uma submissão singular e perfeita: numa região temperada,
pessoas limpas e distintas, em uniformes, se agrupam e se reagrupam, como
se estivessem à procura da coreografia perfeita para expressar sua lealdade.
Em Olympia, visualmente o mais rico de todos os seus filmes (que usa os
movimentos verticais dos filmes de montanha e os horizontais,
característicos de Triunfo da vontade), uma depois da outra, figuras tensas,
com roupas escassas, procuram o êxtase da vitória, comemorada nas
arquibancadas por fileiras de compatriotas, todos debaixo do olhar parado
do benévolo Super-Espectador, Hitler, cuja presença no estádio consagra
esse esforço. (Olympia, que poderia muito bem se intitular Triunfo da
vontade, enfatiza que não existem vitórias fáceis.) No terceiro painel, The
Last of the Nuba, os primitivos quase nus, à espera da provação final de sua
comunidade heroica e orgulhosa, sua iminente extinção, saltitam e fazem
pose debaixo de um sol abrasador.
É tempo de Götterdämmerung [crepúsculo dos deuses]. Os eventos
centrais na sociedade nuba são lutas corpo a corpo e enterros: encontros
animados de belos corpos masculinos e de morte. Os nubas, como
Riefenstahl os interpreta, são uma tribo de estetas. A exemplo dos massais,
besuntados de hena, e dos chamados homens-lama da Nova Guiné, os nubas
se pintam para todas as ocasiões religiosas e sociais importantes,
lambuzando-se com uma cinza esbranquiçada que inequivocamente sugere
a morte. Riefenstahl afirma ter chegado “em cima da hora”, pois, nos
poucos anos seguintes à tomada das fotos, os gloriosos nubas foram
corrompidos por dinheiro, empregos e roupas. (E é bem provável que
também o tenham sido pela guerra — que Riefenstahl não menciona, uma
vez que ela se interessa por mito, e não por história. A guerra civil que
vinha grassando naquela parte do Sudão havia uma dúzia de anos deve ter
disseminado novas tecnologias e uma porção de detritos.)
Embora os nubas sejam negros e não arianos, o retrato que Riefenstahl
faz deles evoca alguns dos temas principais da ideologia nazista: o contraste
entre o limpo e o impuro, o incorruptível e o conspurcado, o físico e o
mental, o alegre e o crítico. Uma das principais acusações contra os judeus
na Alemanha nazista foi de que eram urbanos, intelectuais, portadores de
um “espírito crítico” destruidor e corruptor. A fogueira de livros de 1933 foi
acesa com o grito de Goebbels: “A idade do intelectualismo judeu radical
terminou e o sucesso da revolução alemã mais uma vez abriu caminho para
o espírito germânico”. E quando Goebbels oficialmente proibiu a crítica de
arte em novembro de 1936, foi por ter “traços tipicamente judeus em seu
caráter”: pôr a cabeça acima do coração, o indivíduo acima da comunidade,
o intelecto acima do sentimento. Nas temáticas transformadas do fascismo
tardio, os judeus não desempenham mais o papel de conspurcadores. Esse
papel passou a ser atribuição da própria “civilização”.
O que é distintivo na versão fascista da antiga ideia do Bom Selvagem é
o desprezo por tudo o que comporta reflexão, crítica e pluralidade. No
catálogo de Riefenstahl das virtudes primitivas, aquilo que é enaltecido não
é — como em Lévi-Strauss — a complexidade e a sutileza do mito
primitivo, da organização social ou do pensamento primitivos. Ela recorda
com força a retórica fascista quando celebra as maneiras como os nubas são
exaltados e unificados pelas provações físicas das lutas corpo a corpo, nas
quais os homens nubas, “ofegantes e tensos”, com os “enormes músculos
inchados”, derrubam por terra uns aos outros — lutando não por prêmios
materiais, e sim “pela renovação da vitalidade sagrada da tribo”. As lutas
corpo a corpo e os rituais que as acompanham, no relato de Riefenstahl,
amarram os nubas uns aos outros. Lutar

é a expressão de tudo o que distingue o modo de vida dos nubas… A luta engendra a
lealdade mais apaixonada e a participação emocional dos torcedores das equipes, que
são, na verdade, toda a população da aldeia que está “fora do jogo”… Sua importância
como expressão da percepção total dos mesakins e dos korongos não pode ser
exagerada; é a expressão, no mundo visível e social, do mundo invisível da mente e do
espírito.

Ao celebrar uma sociedade em que a exibição de habilidade física, assim


como de coragem, e a vitória do mais forte sobre o mais fraco são, da
maneira como ela vê, os símbolos unificadores da cultura comunal — na
qual o sucesso na luta é “a principal aspiração da vida de um homem” —,
Riefenstahl parece não ter modificado em nada as ideias de seus filmes
nazistas. E seu retrato dos nubas vai muito além de seus filmes, ao evocar
um aspecto do ideal fascista: uma sociedade na qual as mulheres são
meramente procriadoras e auxiliares, excluídas de todas as funções
cerimoniais, e na qual representam uma ameaça à integridade e à força dos
homens. Do ponto de vista “espiritual” dos nubas (Riefenstahl se refere aos
homens, é claro), o contato com mulheres é uma profanação; contudo, por
mais ideal que essa sociedade pretenda ser, as mulheres sabem qual é seu
lugar:

As noivas ou esposas dos lutadores têm a mesma preocupação dos homens em evitar
qualquer contato íntimo… seu orgulho de ser noiva ou esposa de um lutador forte
suplanta o sentimento amoroso.

Por fim, Riefenstahl acerta em cheio na escolha de seu tema fotográfico,


ao buscar um povo que “encara a morte como uma simples questão de
destino — ao qual eles não resistem ou contra o qual não lutam”, uma
sociedade cuja cerimônia mais entusiasmada e exuberante é o enterro. Viva
la muerte.
Pode parecer um sinal de ingratidão e rancor não admitir que se separe
The Last of the Nuba do passado de Riefenstahl, mas existem lições
salutares para aprender com a continuidade de sua obra, e também com esse
evento recente, inexorável e curioso — a reabilitação de Riefenstahl. As
carreiras de outros artistas que se tornaram fascistas, como Céline, Benn,
Marinetti e Pound (para não mencionar Pabst, Pirandello e Hamsun, que
abraçaram o fascismo no declínio de suas forças), não são instrutivas em
termos comparativos. Pois Riefenstahl é a única grande artista que se
identificou completamente com a era nazista e cuja obra, não só durante o
Terceiro Reich, como ainda trinta anos depois de sua queda, ilustrou com
coerência muitos temas da estética fascista.
Essa estética inclui, e supera em muito, uma celebração bastante especial
dos primitivos, tal como encontramos em The Last of the Nuba. Em termos
mais gerais, ela decorre da preocupação (e a justifica) com situações de
controle, de comportamento submisso, de esforço extravagante e
capacidade de suportar dor, e endossa dois estados aparentemente opostos:
egomania e servidão. As relações de dominação e escravização tomam a
forma de uma ostentação característica: a aglomeração em massa de grupos
de pessoas; a transformação de pessoas em coisas; a multiplicação ou a
replicação das coisas; e o agrupamento de pessoas/coisas em torno da
figura-força todo-poderosa e hipnótica do líder. A dramaturgia fascista está
centrada nas transações orgiásticas entre forças poderosas e seus fantoches,
fardados de maneira uniforme e expostos em números cada vez mais
inflados. Sua coreografia alterna movimento incessante e pose estática,
congelada, “viril”. A arte fascista glorifica a rendição, exalta a falta de
pensamento, glamoriza a morte.
Uma arte como essa está longe de se confinar a obras rotuladas como
fascistas ou produzidas sob governos fascistas. (Para citar apenas filmes:
Fantasia, de Walt Disney, Entre a loura e a morena, de Busby Berkeley,
2001, de Kubrick, exemplificam de modo chocante certas estruturas e temas
formais da arte fascista.) E, é claro, traços da arte fascista proliferam na arte
oficial de países comunistas — que sempre se apresenta sob a bandeira do
realismo, ao passo que a arte fascista desdenha do realismo em nome do
“idealismo”. O gosto do monumental e da obediência em massa ao herói é
elemento comum à arte fascista e à comunista, refletindo a visão de todos
os regimes totalitários de que a arte tem a função de “imortalizar” seus
líderes e suas doutrinas. A representação de movimento em padrões
grandiosos e rígidos é outro elemento em comum, visto que essa
coreografia ensaia a própria unidade do regime. As massas são feitas para
assumirem formas, para serem desenhadas. Isso explica as demonstrações
atléticas em massa, a exibição coreografada de corpos, a valorização de tal
atividade em todos os países totalitários; daí porque a arte do ginasta, tão
popular hoje em dia na Europa Oriental, também evoca traços recorrentes
da estética fascista, em nome da contenção ou da delimitação da força, da
precisão militar.
Na política fascista e comunista, a vontade é encenada publicamente, no
drama do líder e do coro. O que é interessante na relação entre política e
arte sob o Nacional-Socialismo não é que a arte seja subordinada às
necessidades políticas, tendo em vista que isso se aplica a ditaduras de
esquerda e de direita, e sim que a política tenha se apropriado da retórica da
arte — a arte em sua derradeira fase romântica. (A política é “a arte mais
elevada e mais abrangente que existe”, disse Goebbels em 1933, “e nós que
plasmamos a moderna política alemã sentimos que somos artistas… a tarefa
da arte e do artista [é] formar, dar forma, remover os doentes e criar
liberdade para os saudáveis”.) E o que é interessante na arte sob o Nacional-
Socialismo são aqueles traços que a tornavam uma variante especial da arte
totalitária. A arte oficial de países como União Soviética e China almeja
expor e reforçar a moralidade utópica. A arte fascista exibe uma estética
utópica — a da perfeição física. Pintores e escultores, sob o nazismo,
muitas vezes retratavam nus, mas eram proibidos de mostrar imperfeições.
Seus nus parecem fotos em revistas de fisiculturismo: modelos que são ao
mesmo tempo hipocritamente assexuais e (num sentido técnico)
pornográficos, pois têm a perfeição da fantasia. A promoção do belo e do
saudável feita por Riefenstahl, cumpre dizer, é muito mais sofisticada do
que isso; e nunca é desprovida de inteligência, como ocorre em outras artes
visuais nazistas. Ela preza uma vasta gama de tipos corporais — em termos
de beleza, Riefenstahl não é racista — e em Olympia ela mostra, de fato,
algum esforço e tensão, com suas imperfeições concomitantes, além de
aplicação e afinco estilizados, aparentemente sem esforço (como o
mergulho, na sequência mais admirada do filme).
Em contraste com a castidade assexuada da arte comunista oficial, a arte
nazista é, ao mesmo tempo, lasciva e idealizadora. Uma estética utópica
(perfeição física; identidade como um dado da biologia) implica um
erotismo ideal: a sexualidade convertida no magnetismo dos líderes e na
alegria dos adeptos. O ideal fascista consiste em transformar a energia
sexual em uma força “espiritual”, em benefício da comunidade. O erótico
(ou seja, mulheres) está sempre presente como uma tentação, e a reação
mais admirável é a repressão heroica do impulso sexual. Desse modo,
Riefenstahl explica por que os casamentos dos nubas, em contraste com
seus enterros esplêndidos, não envolvem cerimônias nem festas:

O maior desejo de um homem nuba não é unir-se com uma mulher, mas ser bom
lutador, ratificando, desse modo, o princípio da abstinência. As danças cerimoniais dos
nubas não são ocasiões sensuais, e sim “festivais da castidade” — da contenção da força
da vida.
A estética fascista se baseia na contenção das forças vitais; os
movimentos são confinados, presos, refreados.
A arte nazista é reacionária, desafiadoramente apartada da tendência
dominante das conquistas das artes do século. Esse é, porém, o motivo pelo
qual ela vem ganhando espaço no gosto contemporâneo. Os organizadores
esquerdistas de uma exposição de pinturas e esculturas nazistas em cartaz (a
primeira desde a guerra) em Frankfurt descobriram, para seu desgosto, que
a exposição atraiu um público grande demais e sem a seriedade esperada.
Mesmo quando acompanhada de advertências didáticas de Brecht e de fotos
de campos de concentração, o que a arte nazista recorda para essas
multidões é outra arte da década de 1930, qual seja, a art déco. (A art
nouveau não poderia ser um estilo fascista; ela constitui, ao contrário, o
protótipo daquela arte que o fascismo define como decadente. O estilo
fascista, em seu ponto culminante, é art déco, com suas linhas bem
marcadas e a brusca acumulação de material, e com seu erotismo
petrificado.) A mesma estética responsável pelos colossos de bronze de
Arno Breker — o escultor favorito de Hitler (e de Cocteau, por um breve
tempo) — e de Josef Thorak também produziu o Atlas musculoso, na frente
do Rockefeller Center, em Manhattan, e o monumento ligeiramente lúbrico
em homenagem aos soldados americanos da Primeira Guerra Mundial, na
estação ferroviária da rua 30, na cidade de Filadélfia.
Para um público sem sofisticação na Alemanha, o apelo da arte nazista
pode residir no fato de ser simples, figurativa, emocional; não intelectual;
um alívio para as complexidades exigentes da arte modernista. Para um
público mais sofisticado, o apelo reside, em parte, na avidez que hoje tende
a recuperar todos os estilos do passado, em especial aqueles mais
espezinhados. Porém é muito improvável um renascimento da arte nazista,
depois do renascimento da art nouveau, da pintura pré-rafaelita e da art
déco. A pintura e a escultura não são apenas pomposas; são espantosamente
pobres como arte. No entanto, são essas as características que levam as
pessoas a olhar para a arte nazista com um distanciamento astuto e jocoso,
como uma forma de pop art.
A obra de Riefenstahl é isenta do amadorismo e da ingenuidade que
encontramos em outras artes produzidas na era nazista, ainda que promova
muitos dos mesmos valores. E a mesma sensibilidade moderna também
pode apreciá-la. As ironias da sofisticação pop abrem caminho para uma
forma de encarar a obra de Riefenstahl na qual não só sua beleza formal,
como igualmente seu fervor político, são vistos como uma forma de
excesso estético. E com essa apreciação distanciada de Riefenstahl há uma
receptividade, consciente ou não, ao próprio tema que confere poder à sua
obra.
Triunfo da vontade e Olympia são filmes soberbos, indiscutivelmente
(talvez sejam os dois maiores documentários jamais realizados), entretanto
não são de fato importantes na história do cinema, como forma de arte.
Ninguém que faça filmes hoje em dia alude a Riefenstahl, ao passo que
muitos cineastas (entre os quais me incluo) encaram Dziga Vertov como
uma provocação e fonte de ideias inesgotável a respeito da linguagem
cinematográfica. Pode-se argumentar, contudo, que Vertov — a figura mais
importante do cinema-documentário — nunca fez um filme tão puramente
eficiente e eletrizante como Triunfo da vontade ou Olympia. (É claro que
ele nunca teve à sua disposição os recursos com que Riefenstahl pôde
contar. O orçamento soviético para os filmes de propaganda na década de
1920 e no início dos anos 1930 nada tinha de abundante.)
Ao tratar da arte propagandística de esquerda e de direita, prevalece um
critério duplo. Poucas pessoas admitiriam que a manipulação das emoções
nos últimos filmes de Vertov e nos filmes de Riefenstahl produz o mesmo
tipo de entusiasmo. Ao explicar por que se sentem comovidas, as pessoas
em geral são sentimentais, no caso de Vertov, e desonestas, no de
Riefenstahl. Assim, a obra dele evoca boa dose de simpatia moral da parte
das plateias de cinéfilos em todo o mundo; as pessoas admitem que se
sentem comovidas. Com a obra de Riefenstahl, o truque consiste em filtrar
a ideologia política nociva dos filmes, deixando apenas os méritos
“estéticos”. Elogiar os filmes realizados por ele sempre pressupõe o
conhecimento de que o cineasta era uma pessoa atraente e um pensador-
artista inteligente e original, que acabou esmagado pela ditadura a que
serviu. A maior parte do público contemporâneo de Vertov (como de
Eisenstein e Pudóvkin) supõe que os propagandistas do cinema nos
primeiros anos da União Soviética estavam ilustrando um ideal nobre, por
mais que este tenha sido traído na prática. Mas o elogio para Riefenstahl
não conta com o mesmo recurso, pois ninguém, nem os reabilitadores,
conseguiram torná-la afável; e ela nada tem de pensadora.
E, o que é mais importante, em geral se pensa que o Nacional-Socialismo
representa apenas brutalidade e terror. Mas isso não é verdade. Ele — assim
como o fascismo, em termos mais amplos — também significa um ideal, ou
melhor, ideais que persistem na atualidade sob outras bandeiras: o ideal da
vida como arte, o culto da beleza, o fetichismo da coragem, a dissolução da
alienação em sentimentos de êxtase de comunidade; o repúdio do intelecto;
a família do homem (sob a paternidade dos líderes). Esses ideais estão vivos
e permanecem atuantes para muita gente, e é desonesto, bem como
tautológico, dizer que uma pessoa é afetada por Triunfo da vontade e
Olympia apenas porque foram feitos por uma cineasta de gênio. Os filmes
de Riefenstahl ainda são eficazes porque, entre outras coisas, seus anseios
continuam a ser sentidos, porque seu conteúdo é um ideal romântico ao qual
muitos seguem ligados e que é expresso em modos diversos de dissidência
e propaganda cultural para novas formas de comunidade, como a cultura
jovem/rock, a terapia primal, a antipsiquiatria, o terceiro-mundismo, a
crença no oculto. A exaltação da comunidade não elimina a busca da
liderança absoluta; ao contrário, pode inevitavelmente levar a ela. (Não é de
admirar que um bom número de jovens que hoje se prostram diante de
gurus e se submetem a uma disciplina mais grotescamente autocrática são
ex-antiautoritários e ex-antielitistas da década de 1960.)
A atual desnazificação de Riefenstahl e sua defesa como a sacerdotisa
indômita do belo — como cineasta e, agora, como fotógrafa — não
auguram nada de bom sobre a agudeza da capacidade presente de detectar
anseios fascistas em nosso meio. Riefenstahl não é o tipo comum de esteta
nem de romântica antropológica. Como a força de sua obra reside
justamente na continuidade de suas ideias políticas e estéticas, o que é
interessante é que isso foi visto, no passado, com muito mais clareza do que
parece ser visto hoje em dia, quando as pessoas afirmam ser atraídas pelas
imagens por ela produzidas por conta de sua beleza e composição. Sem
perspectiva histórica, esse conhecimento especializado prepara o caminho
para uma aceitação curiosamente desatenta da propaganda de todos os tipos
de sentimentos destrutivos — sentimentos cujas implicações as pessoas se
recusam a levar a sério. Em algum lugar, é claro, todos sabem que há mais
do que beleza em jogo, numa arte como a de Riefenstahl. E assim suas
posições estão protegidas — as pessoas admiram essa arte por sua beleza
indiscutível e a defendem pela promoção hipócrita do belo. Por trás das
apreciações formalistas solenes e seletivas, existe uma reserva de
apreciação mais ampla, a sensibilidade vulgar, que não é tolhida pelos
escrúpulos da seriedade elevada: e a moderna sensibilidade se apoia nos
acordos contínuos entre a abordagem formalista e o gosto vulgar.
A arte que evoca os temas da estética fascista é popular hoje em dia, e
para a maioria das pessoas nada mais é do que uma variedade do vulgar. O
fascismo pode ser chique e talvez a moda, com sua promiscuidade
irreprimível de gosto, acabe nos salvando. Mas os juízos de gosto, em si,
parecem menos inocentes. A arte que parecia claramente digna de ser
defendida, há dez anos, como um gosto minoritário ou questionador, não
parece mais defensável porque as questões éticas e culturais que levanta se
tornaram sérias, até perigosas, de uma forma que não eram antes. A dura
verdade é que aquilo que pode ser aceitável numa cultura de elite pode não
ser numa cultura de massa e que os gostos que propõem questões éticas
inócuas como propriedade de uma minoria se tornam corruptores, quando
estão mais estabelecidos. Gosto é contexto, e o contexto mudou.
II

Prova número dois. Aqui está um livro para ser comprado numa banca de
aeroporto e em livrarias de “adultos”, um volume em brochura
relativamente barato — não se trata de um item para ser exposto na mesa de
centro da sala, ao gosto dos amantes da arte e dos bien-pensant, como The
Last of the Nuba. Sim, os dois compartilham certa semelhança de origem
moral, uma preocupação de raiz: a mesma preocupação em estágios
diferentes de evolução — as ideias que animam The Last of the Nuba estão
menos fora do armário moral do que a ideia mais crua, mais eficiente, que
sustenta SS Regalia [Emblemas da SS]. Embora o livro seja uma compilação
respeitável feita na Grã-Bretanha (com um prefácio histórico de três
páginas e notas no fim do volume), sabemos que seu apelo não é científico,
mas sexual. A capa já deixa isso claro. Por cima da grande suástica preta de
uma braçadeira da SS, há uma faixa diagonal em que está escrito: “Mais de
cem extraordinárias fotografias coloridas por apenas 2,95 dólares”,
exatamente como se colava uma etiqueta com o preço — em parte, um
chamariz, em parte, por consideração à censura — na capa das revistas
pornográficas, em cima da genitália.
Há uma fantasia generalizada em torno de uniformes. Eles sugerem
comunidade, ordem, identidade (por meio de divisas, distintivos, medalhas,
objetos que declaram quem é o portador e o que ele fez: seu valor é
reconhecido), competência, autoridade legitimada, exercício da violência
legitimado. Mas há uma diferença entre uniformes e fotografias de
uniformes — que são materiais eróticos —, e fotos de uniformes da SS são
itens de uma fantasia sexual especialmente poderosa e amplamente
disseminada. Por que a SS? Porque a SS era a encarnação ideal da afirmação
franca do fascismo do direito à violência, o direito de ter poder total sobre
os outros e tratá-los como inferiores. Era na SS que essa afirmação parecia
mais cabal, porque eles a executavam de modo singularmente brutal e
eficiente; e porque eles dramatizavam isso ao se ligarem a determinados
padrões estéticos. A SS era tida como uma comunidade militar de elite que
não só seria supremamente violenta, como também supremamente bela.
(Não é provável que topemos com um livro intitulado Emblemas da S.A. A
SA, que foi substituída pela SS, não era conhecida por ser nem um pouco

menos brutal do que sua sucessora, porém seus membros entraram para a
história como homens do tipo bebedores de cerveja, parrudos e atarracados;
meros camisas-marrons.)
Os uniformes da SS eram elegantes, bem talhados, com um toque de
excentricidade (mas não em excesso). Comparem-nos com o uniforme do
Exército americano, maçante e não muito bem cortado: casaco, camisa,
gravata, calça, meias e sapatos de cadarço — basicamente roupas civis, por
mais que estivessem cobertas de medalhas e insígnias. Os uniformes da SS
eram justos, pesados, rígidos e incluíam luvas, para isolar as mãos, e botas,
que deixavam as pernas e os pés pesados, encaixotados, obrigando seu
portador a se manter ereto. Como explica a quarta-capa de SS Regalia:

O uniforme era preto, cor que tinha nuances importantes na Alemanha. Sobre o
uniforme, os membros da SS usavam uma variedade enorme de condecorações,
símbolos, insígnias, para distinguir a patente, desde as runas no colarinho até a imagem
da caveira. A aparência era dramática e também ameaçadora.

O chamariz quase espirituoso da capa não prepara o leitor para a


banalidade da maioria das fotos. Com os famosos uniformes pretos,
soldados da SS foram vestidos em uniformes cáqui, quase com um aspecto
de soldados americanos, ponchos e casacos de camuflagem. Além das fotos
de uniformes, há páginas com detalhes de colarinhos, pulseiras, divisas em
forma de V na manga, fivelas de cinto, insígnias comemorativas,
estandartes de regimento, flâmulas de clarins, quepes de campanha,
medalhas por serviços prestados, dragonas, autorizações, passes — poucos
trazem as famigeradas runas ou a caveira; tudo é meticulosamente
identificado pela patente, unidade, ano e estação do ano em que foi feito. É
o caráter inócuo de quase todas as fotos que atesta o poder da imagem:
estamos manuseando o breviário de uma fantasia sexual. Porque a fantasia,
para ter profundidade, deve ter detalhes. Por exemplo, qual era a cor da
autorização de viagem necessária para um sargento da SS que quisesse ir de
Tréveris para Lübeck na primavera de 1944? É preciso dispor de todas as
provas documentais.
Se a mensagem de fascismo foi neutralizada por uma visão estética da
vida, seus ornamentos foram sexualizados. Essa erotização do fascismo
pode ser notada em manifestações cativantes e piedosas como os livros
Confissões de uma máscara e Sol e aço, de Mishima, e em filmes como
Scorpio Rising, de Kenneth Anger, e mais recentemente, e sem despertar o
mesmo interesse, no filme de Visconti intitulado Os deuses malditos e no
filme de Cavani, O porteiro da noite. A solene erotização do fascismo deve
ser distinguida de uma brincadeira sofisticada com o horror cultural, em que
se verifica um elemento de dissimulação. O cartaz que Robert Morris fez
para sua recente exibição na galeria Castelli é uma foto do artista nu da
cintura para cima, de óculos escuros, com o que parece ser um capacete
nazista e um colarinho de aço com espetos, preso a uma corrente grossa que
ele segura nas mãos erguidas e algemadas. Os rumores são de que Morris
julgou ser essa a única imagem que ainda tem alguma força para chocar:
uma honestidade singular para aqueles segundo os quais é óbvio que a arte
é uma decorrência de gestos de provocação sempre renovados. Mas o
propósito do cartaz é sua própria negação. Chocar as pessoas no contexto
significa também habituá-las, à medida que o material nazista vai entrando
no vasto repertório da iconografia utilizável para os comentários irônicos da
pop art. Todavia, o nazismo exerce maior fascínio que outras iconografias
adotadas pela sensibilidade pop (de Mao Tsé-tung a Marilyn Monroe). Sem
dúvida, parte da ascensão generalizada do interesse pelo fascismo pode ser
entendida como produto da curiosidade. Para quem nasceu depois do início
da década de 1940, massacrado por um falatório incessante, pró e contra,
sobre o comunismo, é o fascismo — o grande tema de conversa da geração
de seus pais — que representa o exótico, o desconhecido. Ademais, existe
esse fascínio geral entre os jovens com o horror, com o irracional. Cursos
sobre a história do fascismo, assim como cursos sobre o oculto (incluindo
vampirismo), figuram entre os mais concorridos nas universidades hoje em
dia. E, além disso, o chamariz francamente sexual do fascismo, que o livro
SS Regalia comprova com desavergonhada clareza, parece impermeável a
um esvaziamento por efeito da ironia ou da familiaridade excessiva.
Na literatura pornográfica, além dos filmes e dos apetrechos
disseminados por todo o mundo, sobretudo nos Estados Unidos, na
Inglaterra, na França, no Japão, na Escandinávia, na Holanda e na
Alemanha, a SS tornou-se um referente da aventura sexual. Boa parte da
imagística do sexo exótico foi colocada sob o signo do nazismo. Botas,
couro, correntes, cruzes de ferro sobre peitos lustrosos, suásticas,
acompanhados de ganchos de açougue e motocicletas pesadas, se tornaram
a parafernália secreta e extremamente lucrativa do erotismo. Nas lojas de
artigos sexuais, nas saunas, nos bares gays, nos bordéis, as pessoas
carregam seus acessórios. Mas por quê? Por que a Alemanha nazista, que
era uma sociedade sexualmente repressiva, se tornou erótica? Como um
regime que perseguiu homossexuais pôde tornar-se excitante para os gays?
Encontra-se uma pista nas predileções dos próprios líderes fascistas por
metáforas sexuais. Como Nietzsche e Wagner, Hitler encarava a liderança
como uma dominação sexual das massas “femininas”, como um estupro. (A
expressão das massas em Triunfo da vontade é de êxtase; o líder faz a
multidão gozar.) Movimentos esquerdistas tendiam a ser unissex e
assexuais em sua imagística. Os movimentos direitistas, por mais puritanas
e repressivas que sejam as realidades impostas por eles, têm uma superfície
erótica. Certamente, o nazismo é mais “sexy” do que o comunismo (o que
não conta como crédito a favor do nazismo, apenas mostra algo da natureza
e dos limites da imaginação sexual).
Sem dúvida, a maioria das pessoas que se excitam com uniformes da SS

não está exprimindo aprovação ao que os nazistas fizeram, se é que elas têm
uma ideia um pouco mais do que esquemática sobre o que foi isso que eles
fizeram. Contudo, correntes fortes e crescentes de sentimento sexual, que
costumam atender pelo nome de sadomasoquismo, fazem as brincadeiras
com o nazismo parecerem algo erótico. Fantasias e práticas
sadomasoquistas são encontradas entre heterossexuais e também entre
homossexuais, embora a erotização do nazismo seja mais visível entre
homens homossexuais. O SM, e não o swinging, é o grande segredo sexual
dos últimos anos.
Existe um vínculo natural entre sadomasoquismo e fascismo. “Fascismo
é teatro”, como disse Genet.5 Assim como a sexualidade sadomasoquista:
envolver-se no sadomasoquismo é tomar parte no teatro sexual, uma
encenação da sexualidade. Os adeptos do sexo sadomasoquista são exímios
figurinistas, além de coreógrafos e atores, num drama que é tanto mais
excitante porquanto é proibido para pessoas comuns. O sadomasoquismo é
para o sexo aquilo que a guerra é para a vida civil: a experiência magnífica.
(Riefenstahl explica: “O que é puramente realista, uma fatia da vida, o que é
mediano, cotidiano, não me interessa”.) Do mesmo modo que o contraste
social parece manso em comparação com a guerra, os atos de trepar e
chupar acabam parecendo apenas bons e, portanto, não excitam. O fim para
o qual tendem todas as experiências sexuais, como Bataille insistiu em seus
escritos de toda uma vida, é a conspurcação, a blasfêmia. Ser “bom”, como
ser civilizado, significa ser alienado dessa experiência selvagem — que é
completamente encenada.
O sadomasoquismo, obviamente, não consiste apenas em pessoas
machucando seus parceiros sexuais, o que sempre ocorreu — e em geral se
pensa num homem batendo em uma mulher. O eterno camponês russo
embriagado que espanca a esposa está apenas fazendo algo que tem vontade
(porque é infeliz, oprimido, atordoado; e porque as mulheres são as vítimas
mais próximas). Mas o eterno inglês que leva chicotadas no bordel está
recriando uma experiência. Ele paga uma prostituta para representar uma
peça teatral com ele, para reencenar ou evocar o passado — experiências
dos seus tempos de escola ou do jardim de infância, que agora representam
para ele uma enorme reserva de energia sexual. Hoje, pode ser o passado
nazista que as pessoas invocam na teatralização da sexualidade, porque são
naquelas imagens (mais do que nas memórias) que elas esperam encontrar
uma reserva de energia sexual que pode ser canalizada. O que os franceses
denominam “vício inglês” poderia, no entanto, ser chamado de uma espécie
de afirmação engenhosa de individualidade; a pequena peça teatral remetia,
afinal, ao histórico do caso do próprio tema. A mania de emblemas nazistas
indica algo bem diferente: uma reação a uma liberdade opressiva de escolha
no sexo (e em outras questões), a um grau de individualidade intolerável; o
ensaio da escravização, em vez de sua encenação.
Os rituais de dominação e escravização cada vez mais praticados e a arte
cada vez mais dedicada a expressar seus temas talvez sejam apenas a
extensão lógica de uma tendência da sociedade afluente a transformar todas
as partes da vida das pessoas em um gosto, uma escolha; convidá-las a
encarar a própria vida como um estilo (de vida). Em todas as sociedades até
hoje, o sexo é considerado sobretudo uma atividade (algo para fazer, sem
pensar no assunto). Mas, quando se torna um gosto, pode ser que já esteja a
caminho de se tornar uma maneira consciente de teatro, e este é exatamente
o significado do sadomasoquismo: uma forma de satisfação ao mesmo
tempo violenta e indireta, muito mental.
O sadomasoquismo sempre foi o ponto extremo da experiência sexual:
quando o sexo se torna mais puramente sexual, ou seja, separado da
personalidade, dos relacionamentos, do amor. Não deveria ser
surpreendente o fato de ter se vinculado ao simbolismo nazista, nos últimos
anos. Nunca antes a relação de mestres e escravos foi tão conscientemente
estetizada. Sade teve de inventar seu teatro de punição e deleite a partir do
zero, improvisando o cenário, os figurinos e os ritos blasfemos. Agora,
existe um cenário básico disponível para todos. A cor é o preto, o tecido é o
couro, a sedução é a beleza, a justificação é a honestidade, o objetivo é o
êxtase, a fantasia é a morte.

(1974)
Sob o signo de Saturno

Na maioria dos retratos, ele aparece olhando para baixo, a mão direita no
rosto. A foto mais antiga que conheço o mostra em 1927 — aos 35 anos —,
cabelo escuro e crespo sobre a testa alta, bigode acima do lábio inferior
carnudo: jovem, quase bonito. De cabeça baixa, seus ombros cobertos por
um paletó parecem começar logo abaixo das orelhas; o polegar repousa no
maxilar; um cigarro entre o indicador curvado e o dedo médio e o resto da
mão cobre o queixo; o olhar voltado para baixo, através dos óculos — o
olhar manso, sonhador, do míope —, parece flutuar para além da margem
esquerda da foto.
Num retrato do final da década de 1930, o cabelo crespo pouco
retrocedeu, porém não existe mais nenhum traço de juventude ou de beleza;
o rosto está alargado e a parte superior do tronco parece não só um pouco
alta como também maciça, volumosa. O bigode está mais espesso e a mão
fechada e gorducha, com o polegar dobrado para dentro, recobre a boca. O
olhar é opaco ou apenas mais introspectivo: ele podia estar pensando — ou
escutando. (“Quem escuta muito não vê”, escreveu Benjamin em seu ensaio
sobre Kafka.) Há livros atrás de sua cabeça.
Numa fotografia tirada no verão de 1938, na última de várias visitas que
fez a Brecht no exílio na Dinamarca depois de 1933, ele está de pé na frente
da casa de Brecht, um velho de 46 anos, de camisa branca, gravata, calça
com correntinha de relógio: uma figura descuidada, corpulenta, que olha
com truculência para a câmera.
Outra fotografia, esta de 1937, mostra Benjamin na Bibliothèque
Nationale em Paris. Dois homens, cujos rostos não estão visíveis, dividem
uma mesa a certa distância atrás dele. Benjamin está sentado à direita, no
primeiro plano, provavelmente fazendo anotações para o livro sobre
Baudelaire e a Paris do século XIX que vem escrevendo já faz uma década.
Consulta um volume aberto sobre a mesa, com a mão esquerda — seus
olhos não estão visíveis —, e olha, por assim dizer, para o canto inferior
direito da fotografia.
Seu amigo íntimo Gershom Scholem descreveu seu primeiro encontro
com Benjamin, em Berlim, em 1913, numa reunião de um grupo da
juventude sionista e de membros judeus da Associação Livre de Estudantes
Alemães, da qual Benjamin, aos 21 anos, era um dos líderes. Ele falou “de
improviso, sem lançar um único olhar para a plateia; olhava fixamente para
um canto distante do teto, que ele admoestava com muita veemência, num
estilo que, por acaso, até onde me lembro, já estava pronto para a letra
impressa”.

Ele era o que os franceses chamam de un triste. Em sua juventude,


parecia marcado por uma “tristeza profunda”, escreveu Scholem.
Considerava-se um melancólico, desdenhando os rótulos psicológicos
modernos e invocando a tradição astrológica: “Vim ao mundo sob o signo
de Saturno — a estrela da revolução mais baixa, o planeta de desvios e
atrasos…”. Seus principais projetos, o livro publicado em 1928 sobre o
drama barroco alemão (sobre o Trauerspiel; literalmente, peça do luto) e o
jamais concluído Paris, capital do século XIX, não podem ser plenamente
compreendidos a menos que se entenda a que ponto se alicerçam numa
teoria da melancolia.
Benjamin projetou a si mesmo, seu temperamento, em todos os seus
temas principais, e seu temperamento determinava a escolha dos assuntos
sobre os quais escrevia. Era o que ele via nos temas, como as peças
barrocas do século XVII (que dramatizam diferentes facetas da “acédia
saturnina”) e nos escritores sobre cuja obra escreveu com maior
brilhantismo — Baudelaire, Proust, Kafka, Karl Kraus. Benjamin chegou a
encontrar um elemento saturnino em Goethe. Pois a despeito da polêmica
em seu importante ensaio (ainda não traduzido) sobre As afinidades
eletivas, de Goethe, contra a tentativa de interpretar a obra de um escritor
por meio de sua vida, ele fez, de fato, um uso seletivo da vida em suas
meditações mais profundas sobre textos: informação que revelava o
melancólico, o solitário. (Assim, a solidão de Proust é descrita como uma
“solidão que empurra o mundo para dentro de seu redemoinho”; ele explica
como Kafka, a exemplo de Klee, era “essencialmente solitário”; cita o
“horror do sucesso na vida” de Robert Walser.) Não se pode usar a vida
para interpretar a obra. Mas se pode usar a obra para interpretar a vida.
Dois livros curtos de memórias da Berlim de sua infância e dos anos de
estudante, escritos no início da década de 1930 e nunca publicados em vida,
contêm o mais explícito autorretrato de Benjamin. Para o melancólico
nascente, na escola e em caminhadas com a mãe, “a solidão me parecia o
único estado próprio para o homem”. Benjamin não se refere à solidão num
quarto — ele foi uma criança frequentemente doente —, mas sim à solidão
numa grande metrópole, à vida agitada de um caminhante sem
compromisso, livre para devanear, observar, ponderar, vagar. A mente que
havia de associar boa parte da sensibilidade do século XIX à figura do
flâneur, personificado pelo melancólico maravilhoso e consciente que foi
Baudelaire, teceu boa parte da própria sensibilidade com base na relação
sutil, perspicaz, fantasmagórica que mantinha com as cidades. A rua, a
passagem, os arcos, o labirinto são termos recorrentes em seus ensaios
literários e, notavelmente, no livro projetado sobre a Paris do século XIX,
bem como em seus textos de memórias e de viagens. (Robert Walser, para
quem caminhar era o centro de sua vida reclusa e de seus livros
maravilhosos, é um escritor sobre o qual gostaríamos que Benjamin tivesse
escrito um ensaio mais extenso.) O único livro de natureza ligeiramente
autobiográfica publicado em vida se intitulou Rua de mão única. Memórias
pessoais são memórias de um lugar e de como o sujeito lá se posiciona, de
como navega por esse local.
“Não encontrar o caminho numa cidade é algo que desperta pouco
interesse”, começa seu ainda não traduzido A infância em Berlim por volta
de 1900. “Mas perder-se numa cidade, como perder-se numa floresta,
requer prática… Aprendi essa arte já tarde na vida: ela enchia os sonhos
cujos primeiros vestígios foram os labirintos nas folhas de papel mata-
borrão em meus cadernos de exercícios.” Essa passagem também é
encontrada em Crônica berlinense, na qual Benjamin sugere que, para se
perder, foi necessária muita prática, tendo em vista a sensação original de
“impotência diante da cidade”. Seu objetivo é ser um leitor competente de
mapas de ruas que sabe como se perder. E como se localizar, com mapas
imaginários. Em outra passagem de Crônica berlinense, Benjamin relata
que, durante anos, brincou com a ideia de mapear sua vida. Para esse mapa,
que ele imaginava em cor cinzenta, concebeu um sistema colorido de sinais
que “indicavam claramente as casas dos meus amigos e amigas, a sala de
reuniões de vários coletivos, desde a ‘câmara de debate’ do Movimento da
Juventude até os locais de reunião da Juventude Comunista, os quartos do
hotel e do bordel onde estive por uma noite, os bancos decisivos no
Tiergarten, os caminhos para diversas escolas e para as sepulturas que vi
serem ocupadas, o local de cafés afamados cujos nomes, há muito tempo
esquecidos, passam todos os dias por nossos lábios”. Certa vez, à espera de
alguém no Café des Deux Magots, em Paris, conta ele, conseguiu traçar um
diagrama de sua vida: era como um labirinto no qual todos os
relacionamentos importantes figuravam como “uma entrada para o dédalo”.
As metáforas recorrentes de mapas e diagramas, memórias e sonhos,
labirintos e arcadas, mirantes e paisagens evocam certa visão das cidades e
certo tipo de vida. Paris, escreve Benjamin, “me ensinou a arte de me
perder”. A revelação da verdadeira natureza da cidade não veio em Berlim,
mas em Paris, onde ele esteve com frequência durante os anos de Weimar e
onde morou como refugiado de 1933 até seu suicídio, quando tentava fugir
da França, em 1940 — mais exatamente, a Paris reimaginada nas narrativas
surrealistas (Nadja, de Breton, O camponês de Paris, de Aragon). Com tais
metáforas, ele está indicando um problema geral de orientação e
construindo um padrão de dificuldade e de complexidade. (Um labirinto é
um lugar onde a pessoa se perde.) Está sugerindo também uma ideia sobre o
proibido e sobre como ter acesso a ele: por meio de um ato da mente que é
igual a um ato físico. “Redes completas de ruas foram abertas sob o
auspício da prostituição”, escreve em Crônica berlinense, que começa
invocando uma Ariadne, a prostituta que, pela primeira vez, guia esse filho
de pais ricos em meio ao “limiar de classe”. A metáfora do labirinto sugere
ainda a ideia de Benjamin a respeito de obstáculos erguidos por seu próprio
temperamento.
A influência de Saturno deixa as pessoas “apáticas, indecisas, lentas”,
escreve ele em Origem do drama barroco alemão (1928). Lentidão é uma
das características do temperamento melancólico. A falta de jeito é outra,
decorrente da percepção de que há possibilidades demais, de que não temos
senso prático. E também a teimosia, que resulta do anseio de ser superior —
em seus próprios termos. Benjamin recorda sua teimosia durante as
caminhadas na infância, com a mãe, que transformava aspectos
insignificantes de conduta em testes da aptidão do filho para a vida prática,
reforçando desse modo o que havia de inepto (“minha incapacidade, até
hoje, de preparar uma xícara de café”) e de sonhadoramente recalcitrante
em sua natureza. “Meu hábito de me mostrar mais lento, mais desajeitado,
mais burro do que sou, teve sua origem naquelas caminhadas e traz consigo
o importante risco de me fazer pensar que sou mais rápido, mais hábil e
mais astuto do que sou.” E dessa teimosia decorre, “acima de tudo, um
olhar que parece enxergar menos de um terço daquilo que abarca”.
Rua de mão única destila as experiências do escritor e do amante (é
dedicado a Asja Lacis, que “marcou fundo o autor”),6 as quais podemos
deduzir pelas palavras de abertura sobre a situação do autor, que ecoam o
tema do moralismo revolucionário, e pelo “Ao planetário” final, um
panegírico ao flerte tecnológico da natureza e ao êxtase sexual. Benjamin
podia escrever sobre si mesmo mais diretamente quando partia das
memórias e não das experiências contemporâneas; quando escrevia sobre si
mesmo, como criança. A essa distância, deslocando-se para a infância, ele
consegue avaliar sua vida como um espaço que pode ser mapeado. A
candura e a onda de sentimentos dolorosos em Infância em Berlim e em
Crônica berlinense se tornam possíveis porque Benjamin adotou uma forma
plenamente digerida e analítica de relatar o passado. Ele evoca fatos por
meio das reações aos fatos, lugares por meio das emoções depositadas nos
lugares, outras pessoas por meio do encontro com elas mesmas, sentimentos
e comportamentos por intermédio das sugestões de paixões e fracassos
futuros, contidos neles. Fantasias de monstros à solta no apartamento
grande, enquanto os pais distraem os amigos, prefiguram sua aversão à
própria classe; o sonho de que vão deixá-lo dormir quanto tempo quiser, em
vez de ser obrigado a acordar cedo para ir à escola, será satisfeito quando
ele, afinal — depois que seu livro sobre o Trauerspiel não foi aprovado
num concurso para um cargo de professor universitário —, se dá conta de
que suas “esperanças de ter uma posição e um meio seguro de ganhar a vida
sempre foram vãs”; sua maneira de caminhar com a mãe, “com um cuidado
pedante”, mantendo-se um passo atrás dela, prefigura sua “sabotagem da
existência social real”.
Benjamin encara tudo o que escolhe para recordar no passado como
profético do futuro porque o trabalho da memória (ler a si mesmo de trás
para a frente, como ele chamou) desmonta o tempo. Não existe nenhuma
ordem cronológica de suas reminiscências, razão por que desautoriza o
nome de autobiografia, pois o tempo é irrelevante. (“Autobiografia tem a
ver com o tempo, com sequência e com o que cria o fluxo contínuo da
vida”, escreve ele em Crônica berlinense. “Aqui, estou falando de espaço,
de momentos e descontinuidades.”) Benjamin, tradutor de Proust, escreveu
fragmentos de uma obra que poderia ser chamada de À la Recherche des
espaces perdus. A memória, a encenação do passado, transforma o fluxo
dos eventos em quadros. Benjamin não está tentando recuperar seu passado,
mas compreendê-lo: condensá-lo em suas formas espaciais, em suas
estruturas premonitórias.
Para os dramaturgos barrocos, escreve ele em Origem do drama barroco
alemão, “o movimento cronológico é captado e analisado numa imagem
espacial”. O livro sobre o Trauerspiel não é apenas o primeiro relato de
Benjamin sobre o que significa converter tempo em espaço; é onde ele
explica com mais clareza quais sentimentos subjazem a esse movimento.
Levado pela consciência melancólica da “crônica desoladora da história do
mundo”, um processo de decadência incessante, os dramaturgos barrocos
parecem fugir da história e restaurar a “atemporalidade” do paraíso. A
sensibilidade barroca do século XVII tinha uma concepção “panorâmica” da
história: “a história se funde ao cenário”. Em Infância em Berlim e Crônica
berlinense, o autor funde sua vida a um cenário. O sucessor do cenário
barroco é a cidade surrealista: a paisagem metafísica em cujos espaços, à
maneira de um sonho, as pessoas têm “uma existência breve, vaga”, a
exemplo do poeta de dezenove anos cujo suicídio, grande dor dos tempos
de estudante de Benjamin, se condensa na memória dos quartos em que o
amigo morto morou.
Os temas recorrentes de Benjamin são, caracteristicamente, modos de
espacializar o mundo: por exemplo, sua noção de ideias e experiências
como ruínas. Compreender algo é compreender sua topografia, saber como
mapear. E saber como se perder.
Para a personalidade nascida sob o signo de Saturno, o tempo é um meio
de coerção, inadequação, repetição, mera realização. No tempo, somos
apenas o que somos: aquilo que sempre fomos. No espaço, podemos ser
outra pessoa. O fraco senso de direção de Benjamin e sua capacidade
limitada de ler um mapa de ruas se transformam em seu amor por viagens e
em sua maestria na arte de vagar sem rumo. O tempo não nos proporciona
muitos desvios: ele nos empurra adiante, nos sopra através do túnel estreito
do presente rumo ao futuro. Mas o espaço é amplo, fervilhante de
possibilidades, posições, interseções, passagens, desvios, curvas de 180
graus, becos sem saída, ruas de mão única. Possibilidades demais, de fato.
Como o temperamento saturnino é vagaroso, propenso à indecisão, às vezes
é preciso cortar caminho com um golpe de faca. Às vezes, acabamos por
voltar a faca contra nós mesmos.
A marca do temperamento saturnino é a autoconsciência e a relação
implacável com o eu, que nunca pode ser tido como algo óbvio. O eu é um
texto — precisa ser decifrado. (Portanto, trata-se de um temperamento
apropriado para intelectuais.) O eu é um projeto, algo a ser construído.
(Portanto, trata-se de um temperamento apropriado para artistas e mártires,
aqueles que cortejam “a pureza e a beleza de um fracasso”, como disse
Benjamin acerca de Kafka.) E o processo de construir um eu e suas obras é
sempre muito vagaroso. Estamos constantemente defasados em relação a
nós mesmos.
As coisas aparecem ao longe, aproximam-se devagar. Em Infância em
Berlim, o autor fala de sua “propensão para ver de muito longe tudo aquilo
que me interessa que se aproxime de mim” — a maneira como, quando
criança, com frequência enfermo, ele imaginava as horas se aproximando
do seu leito de doente. “Talvez seja essa a origem daquilo que os outros
chamam de paciência, em mim, mas que na verdade não parece ser virtude
nenhuma.” (Claro, os outros, com efeito, experimentavam isso como
paciência, como uma virtude. Scholem descreveu-o como “o ser humano
mais paciente que jamais conheci”.)
Mas algo semelhante à paciência é necessário para os esforços de
decifração do melancólico. Proust, como observa Benjamin, era estimulado
pela “linguagem secreta dos salões”; Benjamin era atraído por códigos mais
compactos. Colecionava livros de emblemas, gostava de fazer anagramas,
brincava com pseudônimos. Seu gosto por pseudônimos antecede em muito
sua necessidade como refugiado judeu alemão que, de 1933 a 1936,
continuou a publicar resenhas em revistas alemãs sob o nome de Detlev
Holz, que usou para assinar o último livro publicado em vida, Deutsche
Menschen [Gente alemã], lançado na Suíça, em 1936. No admirável texto
escrito em Ibiza em 1933, “Agesilaus Santander”, Benjamin fala de sua
fantasia de ter um nome secreto; o título do texto — que se converte na
figura do desenho de Klee de que era dono, Angelus novus — é, como
Scholem apontou, quase um anagrama de Der Angelus Satanas. Ele era um
grafólogo “enigmático”, relata Scholem, embora “mais tarde tenda a
esconder seu talento”.
Dissimulação e mistério parecem constituir uma necessidade para o
melancólico, cujas relações com as outras pessoas são complexas, não raro
veladas. Esses sentimentos de superioridade, de inadequação, de frustração,
de não ser capaz de obter o que deseja ou de nem sequer nomear o que
deseja corretamente (ou com coerência) para si mesmo — esses
sentimentos podem ser, a sensação é até de que deveriam ser, mascarados
pela amizade ou pela manipulação mais escrupulosa. Para usar uma palavra
também aplicada a Kafka por aqueles que o conheceram, Scholem fala da
“cortesia quase chinesa” que caracterizava as relações de Benjamin com as
pessoas. Mas, sobre esse homem que era capaz de justificar as “invectivas
de Proust contra a amizade”, não nos surpreende saber que Benjamin
também era capaz de abandonar amizades brutalmente, como fez com seus
camaradas do Movimento da Juventude, quando estes já não o interessavam
mais. Tampouco ficamos surpresos ao saber que esse homem meticuloso,
intransigente, ferrenhamente sério também era capaz de bajular pessoas
que, é muito provável, ele não tinha como iguais e também de “se deixar
fisgar” (suas próprias palavras) e se rebaixar diante de Brecht, em suas
visitas à Dinamarca. Esse príncipe da vida intelectual era capaz de ser um
cortesão.
Benjamin analisou os dois papéis, em Origem do drama barroco alemão,
segundo a teoria da melancolia. Uma característica do temperamento
saturnino é a lentidão: “o tirano cai em virtude da morosidade de suas
emoções”. “Outro traço predominante de Saturno”, revela Benjamin, é a
“infidelidade.” Isso é representado pelo personagem do cortesão, no drama
barroco, cuja mente é “a flutuação em pessoa”. A capacidade de
manipulação do cortesão é, em parte, “falta de caráter”; e, em parte, “reflete
uma rendição inconsolável e desalentadora a uma conjunção impenetrável
de constelações malignas [que] parecem fundidas numa liga maciça, quase
inanimada”. Só uma pessoa identificada com esse sentido de catástrofe
histórica, esse grau de desolação, poderia explicar por que o cortesão não
deve ser desprezado. Sua infidelidade diante de seus semelhantes, diz
Benjamin, corresponde à “fé mais contemplativa, mais profunda” que ele
tem em seus emblemas materiais.
O que Benjamin descreve pode ser entendido como uma patologia
simples: a tendência do temperamento melancólico de projetar para fora seu
torpor interior, como a imutabilidade de seu infortúnio, experimentado
como “maciço, quase inanimado”. Porém, sua argumentação é mais
audaciosa: ele percebe que as transações profundas entre o melancólico e o
mundo sempre ocorrem com coisas (mais do que com pessoas); e que se
trata de transações autênticas, reveladoras de um significado. Justamente
porque a personalidade melancólica é assombrada pela morte, são os
melancólicos que sabem melhor como ler o mundo. Ou melhor, é o mundo
que se rende ao escrutínio do melancólico mais do que ao de qualquer outro
ser. Quanto mais sem vida são as coisas, mais potente e engenhosa pode ser
a mente que as contempla.
Se esse temperamento melancólico é infiel às pessoas, tem bons motivos
para ser fiel às coisas. A fidelidade repousa em acumulá-las — o que
aparece, sobretudo, na forma de fragmentos ou ruínas. (“É prática comum,
na literatura barroca, empilhar fragmentos de modo incessante”, escreve
Benjamin.) O barroco e o surrealismo, sensibilidades com que ele sentia
forte afinidade, veem a realidade como coisas. Benjamin descreve o barroco
como um mundo de coisas (emblemas, ruínas) e ideias especializadas
(“Alegorias são, no reino do pensamento, aquilo que são as ruínas, no reino
das coisas”). O gênio do surrealismo consistiu em generalizar, com exaltada
candura, o culto barroco às ruínas; perceber que as energias niilistas da era
moderna transformam tudo em ruína ou fragmento — algo colecionável,
portanto. Um mundo cujo passado se tornou (por definição) obsoleto e cujo
presente produz antiguidades instantâneas sem parar é um convite para
curadores, decifradores e colecionadores.
Sendo ele mesmo uma espécie de colecionador, Benjamin permaneceu
fiel às coisas — enquanto coisas. Segundo Scholem, construir sua
biblioteca, que incluía muitas obras em primeira edição e livros raros, era
“sua paixão pessoal mais duradoura”. Inerte em face da calamidade
inanimada, o temperamento melancólico é galvanizado por paixões
suscitadas por objetos privilegiados. Os livros de Benjamin não eram só
para uso, ferramentas profissionais; eram objetos de contemplação,
estímulos ao devaneio. Sua biblioteca evoca “memórias das cidades onde
descobri tantas coisas: Riga, Nápoles, Munique, Danzig, Moscou, Florença,
Basileia, Paris… memórias dos quartos onde esses livros foram
abrigados…”. A caça de livros, como a caça de sexo, amplia a geografia do
prazer — outra razão para vagar sem rumo pelo mundo. Ao colecionar,
Benjamin experimentava aquilo que havia, nele mesmo, de hábil, exitoso,
astuto, desinibidamente apaixonado. “Os colecionadores são pessoas
dotadas de um instinto tático”, como os cortesãos.
Além das primeiras edições e dos livros de emblemas barrocos, Benjamin
se especializou em livros infantis e em livros escritos por loucos. “As
grandes obras que tinham tão grande importância para ele”, relata Scholem,
“eram colocadas em posições bizarras, junto aos textos e às esquisitices
mais descabidas.” A organização estranha da biblioteca é semelhante à
estratégia da obra de Benjamin, na qual o olho treinado no surrealismo para
descobrir tesouros de significados no efêmero, no desacreditado e no
relegado, trabalhava de mãos dadas com sua lealdade ao cânone tradicional
do gosto culto.
Ele gostava de descobrir coisas onde ninguém estava procurando. Do
obscuro e desdenhado drama barroco alemão, ele extraiu elementos da
sensibilidade moderna (ou seja, de sua própria sensibilidade): o gosto pela
alegoria, os efeitos de choque do surrealismo, o discurso descontínuo, o
sentido de uma catástrofe histórica. “Aquelas pedras eram o pão da minha
imaginação”, escreveu ele sobre Marselha — a cidade mais recalcitrante
para aquela imaginação, mesmo com a ajuda de uma dose de haxixe.
Muitas referências esperadas estão ausentes na obra de Benjamin — ele não
gostava de ler o que todo mundo andava lendo. Preferia, como teoria
psicológica, a doutrina dos quatro temperamentos à teoria de Freud.
Preferia ser comunista, ou tentar ser comunista, sem ler Marx. Esse homem,
que lera quase tudo e gastara quinze anos se mantendo solidário ao
comunismo revolucionário, mal havia posto os olhos em Marx, até o fim da
década de 1930. (Estava lendo O 18 de Brumário na época de sua visita a
Brecht, na Dinamarca, no verão de 1938.)
Seu sentido de estratégia era um dos pontos de identificação com Kafka,
um aspirante a tático muito afim a ele, que “tomava precauções contra as
interpretações de seus escritos”. Todo o problema das narrativas de Kafka,
argumenta Benjamin, reside no fato de elas não terem nenhum sentido
definido, simbólico. E Benjamin era fascinado pelo sentido muito diferente,
não judeu, do artifício praticado por Brecht, o anti-Kafka de sua
imaginação. (Brecht, como se podia prever, não gostou nada do grande
ensaio de Benjamin sobre Kafka.) Brecht, sempre com o burrinho de
madeira em sua escrivaninha, de cujo pescoço pendia a tabuleta em que se
lia “eu também preciso entender”, representava, para Benjamin, um
admirador dos textos religiosos esotéricos, o artifício, talvez mais poderoso,
que consiste em reduzir a complexidade, tornar tudo claro. A relação
“masoquista” (a palavra é de Siegfried Kracauer) de Benjamin com Brecht,
deplorada pela maioria de seus amigos, mostra a que ponto ele era
fascinado por essa possibilidade.
A propensão de Benjamin é de ir contra a interpretação usual. “Todos os
golpes decisivos são desferidos com a mão esquerda”, diz ele em Rua de
mão única. Exatamente por ver que “todo conhecimento humano toma a
forma de interpretação”, ele compreendia a importância de ser contra a
interpretação, sempre que ela se mostrava óbvia. Sua estratégia mais
comum consiste em drenar o simbolismo de certas coisas, como das
narrativas de Kafka ou de As afinidades eletivas de Goethe (sobre os quais
todos concordam haver simbolismo), e vertê-lo em outros textos, nos quais
ninguém desconfia de sua existência (como as peças barrocas alemãs, que
ele lê como alegorias do pessimismo histórico). “Cada livro é uma tática”,
escreveu. Numa carta a um amigo, reivindicou para seus escritos, e apenas
parcialmente como brincadeira, 49 níveis de significação. Para os
modernos, assim como para os cabalistas, nada é óbvio. Tudo é — pelo
menos — difícil. “A ambiguidade toma o lugar da autenticidade em tudo”,
escreveu ele em Rua de mão única. Nada há de mais alheio a Benjamin do
que tudo aquilo que se pareça com ingenuidade: “o olho ‘desanuviado’,
‘inocente’ se transformou numa mentira”.
Boa parte da originalidade dos argumentos de Benjamin se deve a seu
olhar microscópico (como assinalou seu amigo e discípulo Theodor
Adorno), combinado com seu infatigável domínio das perspectivas teóricas.
“Eram as pequenas coisas que mais o atraíam”, escreve Scholem. Ele
adorava brinquedos velhos, selos de correio, cartões-postais e
miniaturizações jocosas da realidade, como o mundo de inverno no interior
de um globo de vidro, que faz nevar quando o sacudimos. Sua letra era
quase microscópica e sua ambição jamais realizada, relata Scholem, era
escrever cem linhas numa folha de papel. (A ambição foi realizada por
Robert Walser, que costumava transcrever os manuscritos de seus contos e
romances como microgramas, numa caligrafia realmente microscópica.)
Scholem revela que, quando foi visitar Benjamin em Paris, em agosto de
1927 (a primeira vez que os dois amigos se viam, desde que Scholem
emigrara para a Palestina, em 1923), Benjamin o arrastou para uma
exposição de objetos rituais judeus no Musée Cluny, para lhe mostrar “dois
grãos de trigo nos quais uma alma irmã havia inscrito o Shema Israel
completo”.7
Miniaturizar é tornar portátil — a forma ideal de possuir coisas, para um
errante ou um refugiado. Benjamin, é claro, era tanto um errante, em
trânsito, como um colecionador, sobrecarregado de coisas; ou seja, de
paixões. Miniaturizar é esconder. Ele era atraído pelo extremamente
pequeno, assim como por tudo o que havia decifrado: emblemas,
anagramas, caligrafia. Miniaturizar significa inutilizar. Pois aquilo que é
reduzido de modo tão grotesco é, em certo sentido, liberado de seu
significado — seu tamanho diminuto é o que o torna especial. É tanto um
todo (ou seja, completo) quanto um fragmento (reduzido demais, em escala
errada). Um objeto de contemplação desinteressada ou devaneio. O amor
pelo pequeno é uma emoção de criança, algo colonizado pelo surrealismo.
A Paris dos surrealistas é “um mundo pequeno”, observa Benjamin; da
mesma maneira como é a fotografia, que o gosto surrealista descobriu como
algo enigmático, ou mesmo despropositado, e não como um objeto
simplesmente inteligível ou belo, e sobre a qual o autor escreveu com tanta
originalidade. O melancólico sempre se sente ameaçado pelo domínio do
inanimado, mas o gosto surrealista escarnece de tais terrores. A grande
dádiva do surrealismo para a sensibilidade foi tornar a melancolia alegre.
“O único prazer que o melancólico se permite, e é um prazer bem
poderoso, é a alegoria”, escreveu Benjamin em A origem do drama barroco
alemão. De fato, afirmou ele, a alegoria é a maneira típica de ler o mundo
dos melancólicos, e citou Baudelaire: “Tudo para mim se torna alegoria”. O
processo que extrai sentido do petrificado e do insignificante, a alegoria, é o
método característico do drama barroco alemão e de Baudelaire, os temas
principais de Benjamin; transposto em argumento filosófico e em análise
micrológica das coisas, era esse o método que o próprio Benjamin aplicava.
O melancólico vê o próprio mundo transformar-se em uma coisa: refúgio,
consolo, encantamento. Pouco antes de sua morte, Benjamin estava
planejando um ensaio sobre a miniaturização como artifício da fantasia.
Parece ser a continuação do antigo projeto de escrever sobre “A nova
Melusina”, de Goethe (em Wilhelm Meister), cuja história é a de um homem
apaixonado por uma mulher que, na verdade, é uma pessoa minúscula, que
apenas temporariamente assumiu o tamanho normal; esse homem, sem
saber, leva consigo uma caixinha que contém, em miniatura, o reino do qual
ela é a princesa. No conto de Goethe, o mundo é reduzido a uma coisa
colecionável, um objeto no sentido mais literal da palavra.
A exemplo da caixa no conto de Goethe, um livro não é apenas um
fragmento do mundo — é também ele mesmo um pequeno mundo. O livro
é uma miniaturização do mundo que o leitor habita. Em Crônica berlinense,
Benjamin evoca seu entusiasmo de infância: “Eu não lia os livros: morava
nos livros, me abrigava entre suas linhas”. À leitura, o delírio da criança,
acabou se somando a escrita, a obsessão do adulto. A maneira mais
louvável de adquirir livros consiste em escrevê-los, comenta Benjamin no
ensaio “Desembalando minha biblioteca”. E o melhor jeito de compreender
os livros consiste, também, em entrar no espaço dos livros: nunca chegamos
a entender realmente um livro, a menos que o copiemos, registra em Rua de
mão única, assim como nunca entendemos uma paisagem vista de um
avião, senão quando caminhamos por ela.
“A quantidade de sentido guarda proporção exata com a presença da
morte e com o poder da decadência”, escreve Benjamin no livro sobre o
Trauerspiel. É isso que permite descobrir sentido em nossa própria vida, nas
“ocorrências mortas do passado eufemisticamente conhecidas como
experiência”. O passado só pode ser lido porque está morto. A história só
pode ser compreendida porque está fetichizada em objetos físicos. Só
podemos entrar num livro porque ele é um mundo. Para Benjamin, o livro
era mais um espaço no qual caminhar sem rumo. Para a personalidade
nascida sob o signo de Saturno, o verdadeiro impulso quando uma coisa
está sendo examinada é o de baixar os olhos, olhar para o lado. Melhor
ainda, baixar a cabeça para o caderno de anotações. Ou pôr a cabeça atrás
da parede de um livro.

É característico do temperamento saturnino culpar a vontade pela


contracorrente que o empurra rumo à interiorização. Convicto de que sua
vontade é fraca, o melancólico pode fazer esforços extravagantes para
desenvolvê-la. Se tais esforços são malsucedidos, a resultante hipertrofia da
vontade costuma tomar a forma de dedicação compulsiva ao trabalho.
Assim, Baudelaire, que sofreu constantemente de “acédia, a doença dos
monges”, terminou muitas cartas de seus Diários íntimos com as promessas
mais apaixonadas de trabalhar mais, de trabalhar ininterruptamente, de não
fazer mais nada, senão trabalhar. (O desespero diante de “cada derrota da
vontade” — de novo, expressão de Baudelaire — é uma queixa
característica de artistas e intelectuais modernos, sobretudo daqueles que
são as duas coisas.) Estamos condenados a trabalhar; do contrário, podemos
não fazer mais nada. Mesmo os devaneios do temperamento melancólico
estão atrelados ao trabalho, ainda que o melancólico tente cultivar estados
fantasmagóricos, como sonhos, ou busque acessar estados concentrados de
atenção proporcionados pelas drogas. O surrealismo simplesmente põe
ênfase positiva naquilo que Baudelaire vivenciou de modo tão negativo:
não deplora o esgotamento da volição, mas o eleva a um ideal, propondo
que os estados oníricos sejam utilizados para fornecer todo o material
necessário para o trabalho.
Benjamin, sempre trabalhando, sempre tentando trabalhar mais,
especulava bastante sobre a vida cotidiana do escritor. Rua de mão única
apresenta várias seções que oferecem dicas para o trabalho: as melhores
condições, o momento, os utensílios. Uma parte do ímpeto da vasta
correspondência que ele produziu provinha da crônica, do relato e da
confirmação da existência do trabalho. Seus instintos como colecionador
lhe serviam muito bem. Aprender era uma forma de colecionar, como nas
citações e excertos da leitura diária que Benjamin acumulava em cadernos
que levava consigo por toda parte e que lia em voz alta para os amigos.
Pensar também era uma forma de colecionar, pelo menos em seus estágios
preliminares. Conscientemente, ele abrigava ideias recolhidas a esmo;
desenvolvia miniensaios em cartas para amigos; reescrevia planos para
projetos futuros; anotava seus sonhos (vários estão contados em Rua de
mão única); fazia listas numeradas de todos os livros que lia. (Scholem se
lembra de ver, em sua segunda e última visita a Benjamin em Paris, em
1938, um caderno de leituras em andamento no qual O 18 de Brumário de
Marx está listado sob o número 1649.)
Como um melancólico se torna um herói da vontade? Graças ao fato de
que o trabalho pode se tornar semelhante a uma droga, uma compulsão.
(“Pensar […] é um narcótico excelente”, escreveu ele no ensaio sobre o
surrealismo.) De fato, os melancólicos são os melhores viciados, porque a
verdadeira experiência viciante é sempre solitária. As sessões de haxixe no
fim da década de 1920, supervisionadas por um médico seu amigo, foram
proezas cautelosas, e não atos de autoabandono; material para o escritor, e
não uma fuga das cobranças da vontade. (Benjamin considerava o livro que
ele pretendia escrever sobre o haxixe um de seus projetos mais
importantes.)
A necessidade de ser solitário — a par da amargura com a própria solidão
— é elemento característico do melancólico. Para realizar um trabalho, é
preciso ser solitário — ou, pelo menos, não estar preso a nenhum
relacionamento permanente. Os sentimentos negativos de Benjamin sobre o
casamento estão claros no ensaio sobre As afinidades eletivas, de Goethe.
Seus heróis — Kierkegaard, Baudelaire, Proust, Kafka, Kraus — nunca se
casaram; e Scholem relata que Benjamin chegou a encarar o próprio
casamento (ele se casou em 1917, desentendeu-se com a esposa depois de
1921 e se divorciou em 1930) “como fatal para ele”. O mundo da natureza,
e dos relacionamentos naturais, é percebido pelo temperamento melancólico
como menos do que sedutor. O autorretrato em Infância em Berlim e em
Crônica berlinense é o de um filho completamente alienado; como marido e
como pai (seu filho, nascido em 1918, emigrou para a Inglaterra com a mãe,
a ex-esposa de Benjamin, em meados da década de 1930), ele parece
simplesmente não saber o que fazer com esses relacionamentos. Para o
melancólico, o natural, na forma de laços familiares, introduz o falsamente
subjetivo, o sentimental; é uma drenagem da vontade, da independência; da
liberdade para se concentrar no trabalho. Também representa um desafio
para sua própria humanidade, um que o melancólico sabe, de antemão, que
não poderá enfrentar.
O estilo de trabalho do melancólico é a imersão, a concentração total. Ou
ele está imerso ou a atenção flutua para longe. Como escritor, Benjamin era
capaz de uma concentração extraordinária. Foi capaz de pesquisar e
escrever A origem do drama barroco alemão em dois anos; parte da obra,
assim ele se vangloria em Crônica berlinense, foi escrita em longas noites
passadas num café, perto de uma banda de jazz. Porém, embora escrevesse
em profusão — em certos períodos, Benjamin produzia textos todas as
semanas para jornais e revistas literárias alemãs —, comprovou-se que lhe
era impossível escrever novamente um livro de tamanho normal. Numa
carta de 1935, Benjamin fala da “paz saturnina” de escrever Paris, capital
do século XIX, que havia começado em 1927 e que achou que poderia
terminar em dois anos. Sua forma característica continuou a ser o ensaio. A
intensidade e a atenção exaustivas do melancólico estabeleceram limites
naturais para a extensão que ele podia dar ao desenvolvimento de suas
ideias. Seus principais ensaios parecem terminar na hora exata, antes que
pudessem se autodestruir.
Suas frases não parecem ser geradas da forma usual; elas não se
concatenam. Cada frase é escrita como se fosse a primeira, ou a última.
(“Um escritor deve parar e recomeçar a cada nova frase”, revela ele no
prólogo de Origem do drama barroco alemão.) Os processos históricos e
mentais são apresentados como quadros conceituais; as ideias são
transcritas in extremis e as perspectivas intelectuais são vertiginosas. Seu
estilo de pensar e escrever, incorretamente chamado de aforístico, seria
mais bem denominado barroco em fotogramas. Pôr em prática esse estilo
era uma tortura. Era como se cada frase tivesse de dizer tudo, antes que o
olhar interior da concentração total dissolvesse o objeto diante dos próprios
olhos. Benjamin provavelmente não estava exagerando quando disse para
Adorno que cada ideia em seu livro sobre Baudelaire e a Paris do século XIX
“tinha de ser arrancada à força de um reino no qual habita a loucura”.8
Algo como o horror de ser interrompido prematuramente subjaz a essas
frases, tão saturadas de ideias quanto a superfície de uma pintura barroca é
impregnada de movimento. Numa carta para Adorno datada de 1935,
Benjamin descreve seu entusiasmo quando leu, pela primeira vez, O
camponês de Paris, de Aragon, livro que inspirou Paris, capital do século
XIX: “Eu não conseguia ler mais do que duas ou três páginas na cama, à
noite, porque meu coração começava a bater tão forte que eu tinha de deixar
o livro cair das mãos. Que advertência!”. A insuficiência cardíaca é o limite
metafórico dos esforços e das paixões de Benjamin. (Ele sofria de uma
doença cardíaca.) E a suficiência cardíaca é a metáfora que ele propõe para
a realização do escritor. No ensaio em louvor a Karl Kraus, Benjamin
escreve:

Se o estilo é a força para mover-se livremente na extensão e no fôlego do pensamento


linguístico, sem cair na banalidade, isso é alcançado sobretudo mediante o esforço
cardíaco de grandes pensamentos, que impele o sangue da linguagem através dos vasos
capilares da sintaxe até os membros mais remotos.

Pensar e escrever são, em última análise, questões de energia. O


melancólico, que sente falta de vontade, pode ter a sensação de que precisa
de todas as energias destrutivas que puder reunir.
“A verdade resiste a ser projetada no reino do conhecimento”, escreve
Benjamin em Origem do drama barroco alemão. Sua prosa densa registra
essa resistência e não deixa espaço para atacar aqueles que distribuem
mentiras. Benjamin considerava a polêmica abaixo da dignidade de um
estilo verdadeiramente profissional e, em troca, procurava o que chamava
de “a plenitude da positividade concentrada” — o ensaio sobre As
afinidades eletivas, com seu ataque devastador a Friedriech Gundolf, crítico
e biógrafo de Goethe, constitui a única exceção a essa regra entre seus
textos principais. Mas sua consciência da utilidade ética da polêmica o
levou a apreciar aquela instituição pública vienense, encarnada num único
homem, que era Karl Kraus, escritor cuja facilidade, virulência, amor ao
aforismo e inesgotáveis energias polêmicas o tornaram muito útil para
Benjamin.
O ensaio sobre Kraus é a defesa mais apaixonada e tenaz da vida mental.
“A pérfida acusação de ser ‘inteligente demais’ o assombrou durante toda
sua vida”, escreveu Adorno. Benjamin se defendia contra essa difamação
grosseira erguendo com destemor a bandeira da “desumanidade” do
intelecto, quando é adequadamente — ou seja, eticamente — empregado.
“A vida das letras é a existência sob a égide apenas da mente, assim como a
prostituição é a existência sob a égide da mera sexualidade”, assinalou ele.
Celebra-se assim tanto a prostituição (como fazia Kraus, porque a mera
sexualidade era a sexualidade num estado puro) como a vida das letras,
como fazia Benjamin, usando a imagem improvável de Kraus, por causa da
“função autêntica e demoníaca da mente em si mesma, que é a de ser
perturbadora da paz”. A tarefa ética do escritor moderno não é ser um
criador, mas um destruidor — um destruidor da interioridade rasa, da noção
consoladora do universalmente humano, da criatividade diletante e das
frases vazias.
O escritor como flagelador e destruidor, retratado na figura de Kraus, foi
esboçado concisamente, e até com maior audácia, no alegórico “A
personalidade destrutiva”, escrito também em 1931. Scholem destacou que
a primeira das muitas vezes em que Benjamin pensou no suicídio foi no
verão de 1931. A segunda foi no verão seguinte, quando escreveu
“Agesilaus Santander”. O flagelo de Apolônio, que Benjamin chama de
personalidade destrutiva, “está sempre trabalhando com alegria… tem
poucas necessidades… não tem nenhum interesse em ser compreendido… é
jovem e animado… e não sente que a vida seja digna de se viver, embora
tampouco ache que o suicídio vale todo o transtorno”.
É uma espécie de conjuração, uma tentativa de trazer para fora os
elementos destrutivos de sua personalidade saturnina — para que não se
tornem autodestrutivos.
Benjamin não está se referindo apenas à própria destrutividade. Na sua
opinião, existia no suicídio uma tentação peculiarmente moderna. Em “A
Paris do Segundo Império em Baudelaire”, ele escreveu:

A resistência que a modernidade oferece ao elã produtivo natural de uma pessoa é


desproporcional à sua força. É compreensível que uma pessoa se canse e procure
refúgio na morte. A modernidade precisa ficar sob o signo do suicídio, um ato que sela
uma vontade heroica… Ele é a realização da modernidade no reino das paixões…

O suicídio é entendido como uma reação da vontade heroica à derrota da


vontade. A única forma de evitá-lo, sugere Benjamin, é colocando-se além
do heroísmo, além dos esforços da vontade. A personalidade destrutiva não
pode sentir-se presa porque “enxerga caminhos em toda parte”.
Alegremente empenhada em reduzir a escombros aquilo que existe, “ela se
posiciona nas encruzilhadas”.
O retrato de Benjamin da personalidade destrutiva poderia evocar uma
espécie de Siegfried da mente — um animal selvagem, bem-disposto,
animado e infantil, sob a proteção dos deuses —, caso esse pessimismo
apocalíptico não tivesse sido amenizado pela ironia, sempre ao alcance do
temperamento saturnino. Ironia é o nome positivo que o melancólico atribui
à sua solidão, a suas escolhas associais. Em Rua de mão única, Benjamin
louvou a ironia que permite aos indivíduos reivindicar o direito de levar
vidas independentes da comunidade como “a mais europeia de todas as
realizações”, e enfatizou que isso havia desaparecido completamente da
Alemanha. O gosto de Benjamin pela ironia e pela consciência de si o
situava à margem de boa parte da cultura alemã recente: ele detestava
Wagner, desprezava Heidegger e zombava dos movimentos frenéticos de
vanguarda da Alemanha de Weimar, como o expressionismo.
Apaixonadamente, mas também ironicamente, Benjamin se situava nas
encruzilhadas. Para ele, era importante manter em aberto suas muitas
“posições”: a teológica, a surrealista/estética, a comunista. Uma posição
corrige a outra; ele precisava de todas. Decisões, é claro, tendiam a estragar
o equilíbrio de tais posições; a hesitação mantinha tudo no lugar. A
justificativa que ele dava para sua demora em partir da França, quando
esteve com Adorno pela última vez no início de 1938, foi que “ainda
existem aqui posições para defender”.
Benjamin achava que o intelectual freelance era, afinal, uma espécie em
extinção, transformada em algo obsoleto tanto pela sociedade capitalista
como pelo comunismo revolucionário; de fato, acreditava viver um tempo
em que tudo revestido com algum valor era o último de sua espécie. Assim,
o surrealismo era o último movimento inteligente da intelligentsia europeia,
um tipo devidamente destrutivo e niilista de inteligência. Em seu ensaio
sobre Kraus, Benjamin indaga de maneira retórica: será que Kraus se situa
na fronteira de uma nova era? “Infelizmente, não. Pois ele se situa no limiar
do Juízo Final.” Benjamin está pensando em si mesmo. No Juízo Final, o
Último Intelectual — esse herói saturnino da cultura moderna, com suas
ruínas, suas visões provocadoras, seus devaneios, sua desolação insaciável,
seus olhos voltados para baixo — explicará que ele tomou muitas
“posições” e defendeu a vida da mente até o fim, da forma mais íntegra e
desumana que pôde.

(1978)
O Hitler de Syberberg

Wer nicht von dreitausend Jahren


Sich Weiss Rechenschaft zu geben
Bleib im Dunkeln, unerfahren,
Mag von Tag zu Tage leben

[Qualquer pessoa que não possa recontar para si


mesma os últimos três milênios permanecerá nas
trevas, sem experiência, vivendo um dia após o
outro.]

Goethe

Os românticos tomavam a grande arte como uma espécie de heroísmo,


ruptura ou superação. Seguindo seus passos, os adeptos dos modernos
cobravam das obras-primas que fossem, em todos os casos, um caso
extremo — terminal ou profético, ou ambos. Walter Benjamin fez um
julgamento modernista característico quando observou (ao escrever sobre
Proust): “Todas as grandes obras da literatura fundam ou dissolvem um
gênero”. Por mais abundantes que sejam seus precursores, uma obra que
verdadeiramente apresenta essa característica deve dar a impressão de
romper com uma ordem antiga e ser um passo devastador, embora salutar.
Essa obra amplia o alcance da arte, mas também complica e estorva o
empreendimento artístico, com critérios novos e rigorosos. Ao mesmo
tempo, estimula e paralisa a imaginação.
Nos últimos tempos, o apetite para as obras verdadeiramente grandes se
tornou menos vigoroso. Assim, Hitler, um filme da Alemanha, de Hans-
Jürgen Syberberg, é não só assombroso pelo caráter arrojado daquilo que
alcança, como também embaraçoso, como um bebê indesejado na era do
crescimento populacional zero. O modernismo, que reconheceu a
concretização dos objetivos grandiosos da arte dos românticos (como
sabedoria/ como salvação/ como subversão ou revolução cultural), foi
sobrepujado por uma versão impertinente de si mesmo, que habilitou os
gostos modernistas a se difundirem numa escala jamais sonhada. Despido
de sua estatura heroica, de suas pretensões a uma sensibilidade
contestadora, o modernismo revelou-se agudamente compatível com o
éthos de uma sociedade de consumo avançada. Arte, agora, é o nome de
uma variedade enorme de satisfações — da proliferação e da desvalorização
ilimitadas da própria satisfação. Onde florescem tantas lisonjas, gerar uma
obra-prima parece um gesto retrógrado, uma forma ingênua de realização.
Sempre implausível (tanto quanto a megalomania justificada), a Grande
Obra é, no presente, um ser estranho. Propõe satisfações imensas, solenes e
restritivas. Insiste em que arte deve ser verdadeira e não apenas
interessante; uma necessidade, não apenas um experimento. Reduz a
estatura de outras obras, contesta o ecletismo fácil do gosto contemporâneo.
Lança o público num estado de crise.

Syberberg ganha relevância por sua arte (a arte do século XX: o cinema) e
também por seu tema (o tema do século XX: Hitler). Os pressupostos são
familiares, crus, plausíveis. Mas nem de longe nos preparam para a escala e
o virtuosismo com que ele põe em cena os temas supremos: inferno, paraíso
perdido, apocalipse, os últimos dias da humanidade. Temperando a
grandiosidade romântica com ironias modernistas, Syberberg oferece um
espetáculo sobre o espetáculo: evoca “o grande espetáculo” chamado
História numa variedade de gêneros — conto de fadas, circo, peça de
moralidade, cortejo alegórico, cerimônia mágica, diálogo filosófico,
Totentanz [dança macabra] — com um elenco imaginário de dezenas de
milhões de atores e tendo como protagonista o Diabo em pessoa.
As ideias românticas maximalistas tão afins a Syberberg, como a do
talento ilimitado, a do tema supremo e a da arte mais inclusiva — tais ideias
impõem uma sensação lancinante de possibilidades. A confiança de
Syberberg de que sua arte é apropriada a seus grandes temas deriva de sua
noção do cinema como meio de conhecimento que estimula a especulação a
dar uma guinada autorreflexiva. Hitler é retratado por meio do exame de
nossa relação com ele (o tema é o “nosso Hitler” e “Hitler em nós”), pois os
horrores inassimiláveis da era nazista são representados no filme de
Syberberg como imagens ou signos. (Seu título não é Hitler, mas
justamente Hitler, um filme…)
Simular a atrocidade de modo convincente é correr o risco de deixar o
público passivo, reforçando os estereótipos do obtuso, confirmando a
distância e criando fascínio. Convicto de que existe uma maneira
moralmente (e esteticamente) correta de um cineasta enfrentar o nazismo,
Syberberg não pode fazer uso de nenhuma das convenções estilísticas da
ficção tidas como realismo. Tampouco pode confiar em documentos para
mostrar como foi que aconteceu “realmente”. A exemplo da simulação em
forma de ficção, a exposição da atrocidade em forma de documento
fotográfico corre o risco de ser tacitamente pornográfica. Mais ainda, as
verdades sem mediação que transmite sobre o passado são pobres. Trechos
de filmes do período nazista não podem falar por si; requerem uma voz —
que explique, comente, interprete. No entanto, a relação entre a narração
sobreposta e o filme documental, como a relação entre a legenda e uma
fotografia, é tão somente adesiva. Em contraste com o estilo pseudo-
objetivo da narração na maioria dos documentários, as duas vozes que
ruminam pensamentos e recobrem o filme de Syberberg expressam
constantemente dor, mágoa, desalento.
Mais do que conceber um espetáculo no tempo verbal passado, tentando
simular a “realidade irrepetível” (expressão de Syberberg) ou mostrando-a
em documentos fotográficos, ele propõe um espetáculo no tempo verbal
presente — “aventuras na cabeça”. É claro, uma vez que essa realidade
histórica estética ferrenhamente antirrealista é, por definição, irrepetível. A
realidade só pode ser apreendida de modo indireto — vista no reflexo de
um espelho, encenada no teatro da mente. O drama sinóptico de Syberberg
é radicalmente subjetivo, sem ser solipsista. É um filme fantasmagórico —
assombrado por seus grandes modelos cinematográficos (Méliès,
Eisenstein) e por seus antimodelos (Riefenstahl, Hollywood); pelo
romantismo alemão; e, acima de tudo, pela música de Wagner e pelo caso
de Wagner. Um filme póstumo, na era da mediocridade sem precedentes do
cinema — repleto de mitos de cinéfilo, sobre o cinema como o espaço ideal
para a imaginação e a história do cinema como uma história exemplar do
século XX (o martírio de Eisenstein por Stálin, a excomunhão de Von
Stroheim por Hollywood); e de hipérboles de cinéfilo; ele designa Triunfo
da vontade, de Riefenstahl, como o “último monumento duradouro para
Hitler, além dos noticiários de cinema sobre sua guerra”. Uma das
extravagâncias do filme é que Hitler era um tipo de cineasta, quando na
verdade ele nunca visitou o front e via a guerra toda noite pelo cinejornal. A
Alemanha como um filme de Hitler.
Syberberg cunhou seu filme como uma fantasmagoria: a forma sensual-
meditativa preferida por Wagner, que distende o tempo e resulta em obras
que, na opinião do desapaixonado, são longas demais. Sua extensão é
devidamente exaustiva — sete horas; e, a exemplo de O Anel de Nibelungo,
é uma tetralogia. Os títulos das quatro partes são: Hitler, um filme da
Alemanha; Um sonho alemão; O fim do conto de inverno; Nós, filhos do
inferno. Um filme, um sonho, um conto. Inferno.
Em contraste com os cenários suntuosos, à maneira de Cecil B. DeMille,
que Wagner projetou para sua tetralogia, o filme de Syberberg é uma
fantasia barata. O grande estúdio de som em Munique onde o filme foi
realizado em 1977 (em vinte dias — após quatro anos de preparação) é
decorado como uma paisagem surreal. O plano geral do cenário no início da
película expõe muitos dos modestos adereços recorrentes em diferentes
sequências e sugere os múltiplos usos que Syberberg fará desse espaço:
como espaço de ruminação (a cadeira de vime, a mesa comum, os
candelabros); um espaço de afirmação teatral (a cadeira de lona do diretor, o
enorme megafone preto, as máscaras viradas para cima); um espaço de
emblemas (modelos do poliedro na pintura Melencolia I, de Dürer, e do
freixo do cenário da primeira produção de A valquíria); um espaço de
julgamento moral (um grande globo, uma boneca sexual de borracha em
tamanho natural); um espaço de melancolia (as folhas mortas espalhadas
pelo chão).
Essa terra devastada, coalhada de alegorias (como o limbo, como a Lua),
tem o propósito de reter as multidões em sua forma contemporânea, ou seja,
póstuma. É na verdade a terra dos mortos, uma Valhalla cinematográfica.
Uma vez que todos os personagens do melodrama-catástrofe do nazismo
estão mortos, o que vemos são seus fantasmas — como fantoches, como
espíritos, como caricaturas de si mesmos. Esquetes carnavalescos alternam-
se com árias e solilóquios, narrativas, devaneios. As duas presenças
ruminantes (André Heller, Harry Baer), em cena ou fora dela, mantêm uma
melodia intelectual interminável — listas, julgamentos, perguntas, anedotas
históricas bem como múltiplas caracterizações do filme e da consciência
que está por trás dele.
A musa do épico histórico de Syberberg é o próprio cinema (“o mundo
de nossas projeções interiores”), representado no cenário da terra devastada
por Black Maria, o galpão de papel alcatroado construído para Thomas
Edison em 1893 como o primeiro estúdio de cinema. Ao evocar o cinema
como Black Maria, ou seja, ao recordar a simplicidade artesanal de suas
origens, Syberberg também aponta para seu feito. Usando uma equipe
reduzida, com tempo para uma única tomada de cenas muito longas e
complexas, esse inventor de fantasia tecnicamente engenhoso conseguiu
filmar quase tudo como tinha concebido; e tudo isso está na tela. (Talvez
apenas um espetáculo com orçamento tão baixo como esse — o custo foi de
500 mil dólares — possa se conservar integralmente fiel às intenções e
improvisações de um criador individual.) Por meio dessa forma ascética de
filmar, com seus códigos de ingenuidade intencional, Syberberg fez um
filme que é, ao mesmo tempo, despojado e suntuoso, discursivo e
espetacular.
Syberberg proporciona um espetáculo resultante de meios modestos,
replicando e reutilizando os elementos-chave tantas vezes quanto possível.
Fazer cada ator representar vários papéis, convenção inspirada em Brecht, é
um aspecto dessa estética do uso múltiplo. Muitas coisas aparecem pelo
menos duas vezes no filme, uma vez em tamanho natural e outra,
miniaturizadas — por exemplo, um objeto e sua fotografia; e todos os
nazistas notáveis aparecem representados por atores e por fantoches. A
Black Maria de Edison, o estúdio do primeiro cinema, é apresentada de
quatro maneiras: como uma grande estrutura, na verdade o item principal
do cenário, do qual os atores saem e no qual entram; como estruturas de
brinquedo em dois tamanhos: a menor, numa paisagem de neve dentro de
um globo de vidro, que pode ser segurado na mão de um ator, sacudido e
questionado por ruminações mentais; e como ampliação fotográfica do
globo.
O cineasta utiliza abordagens múltiplas, vozes múltiplas. O libreto é a
mistura de um discurso imaginário com palavras literais de Hitler, Himmler,
Goebbels, Speer, e de personagens secundários, como o massagista
finlandês de Himmler, Felix Kersten, e o camareiro de Hitler, Karl-Wilhelm
Krause. A complexa trilha sonora muitas vezes oferece dois textos ao
mesmo tempo. Entremeados e intermitentemente sobrepostos ao discurso
dos atores — uma espécie de variedade acústica da técnica em que imagens
são projetadas ao fundo do cenário — aparecem documentos sonoros
históricos, como fragmentos de discursos de Hitler e Goebbels, noticiários
da rádio alemã e da BBC. O fluxo de palavras inclui referências culturais em
forma de citações (não raro sem referência da autoria), como Einstein
falando de guerra e paz, uma passagem do “Manifesto Futurista” de
Marinetti — e toda essa polifonia verbal, inflada por excertos do panteão da
música alemã, sobretudo Wagner. Trechos de, digamos, Tristão e Isolda ou
do coro da Nona Sinfonia de Beethoven são usados como outro tipo de
citação histórica que complementa ou comenta o que está sendo dito,
simultaneamente, por um ator.
Na tela, um sortimento diversificado de adereços e de imagens
emblemáticas fornece mais associações. Gravuras de Doré para o Inferno e
para a Bíblia, o retrato de Frederico, o Grande, feito por Graff, o célebre
fotograma do filme de Méliès Viagem à Lua, A manhã, de Runge, O mar de
gelo, de Caspar David Friedrich, estão entre as referências visuais que
aparecem (mediante uma técnica sagaz de projeção de slide) por trás dos
atores. A imagem é construída segundo o mesmo princípio de colagem
adotado para a trilha sonora, salvo pelo fato de que, enquanto ouvimos
muitos documentos históricos sonoros, Syberberg faz uso escasso de
documentos visuais da era nazista.
Méliès em primeiro plano, Lumière bastante em segundo plano. O
metaespetáculo de Syberberg quase engole o documento fotográfico:
quando vemos a realidade nazista no filme, ela é um filme. Por trás de um
ator sentado, que remói pensamentos (Heller), o que se vê é um filme
doméstico em 8 mm ou 16 mm, uma filmagem de Hitler — vago, bastante
irreal. Esses pedaços de filme não têm a função de mostrar como algo era
“realmente”: fragmentos de filme, slides de pinturas, fotogramas, tudo tem
o mesmo estatuto. Os atores representam na frente de ampliações
fotográficas que mostram locais lendários despovoados: aquelas paisagens
desertas, quase abstratas, numa escala estranha, da Gruta de Vênus, de
Ludovico II, em Linderhof, da casa de campo de Wagner, em Bayreuth, da
sala de conferências na Chancelaria do Reich, em Berlim, da varanda da
casa de campo de Hitler, em Berchtesgaden, dos fornos de Auschwitz, são
um tipo de alusão mais estilizada. São também um cenário antes
fantasmagórico do que “real”, com o qual Syberberg pode executar truques
de ilusionista que recordam Méliès: o ator parece estar andando dentro de
uma fotografia de grande profundidade de campo e a cena termina com ele
se virando e desaparecendo por trás da uma abertura num pano de fundo
que parecia inteiriço.
O nazismo é conhecido por alusão, por intermédio da fantasia, em forma
de citação. Citações são literais, como no testemunho de um sobrevivente
de Auschwitz e também, o que é mais comum, em referências cruzadas
extravagantes — como é o caso do histérico homem da SS que recita o apelo
do assassino de uma criança do filme M, de Lang; ou no de Hitler, numa
autojustificação, que, ao se erguer do túmulo de Richard Wagner numa toga
coberta de teias de aranha, cita Shylock: “Se nos picarem, nós sangramos?”.
A exemplo das imagens fotográficas e dos adereços, os atores são também
substitutos do real. A maior parte das falas tem o formato de um monólogo
ou monodrama, em que um ator sozinho fala diretamente para a câmera, ou
seja, para o público, ou com atores falando para si mesmos (como na cena
de Himmler e seu massagista) ou declamando numa fila (os fantoches que
apodrecem no inferno). Tal como num tableau surrealista, a presença do
inanimado faz seu comentário irônico sobre aquilo que supostamente está
vivo. Os atores falam com fantoches de Hitler, de Goebbels, de Göring, de
Himmler, de Eva Braun, de Speer, ou em nome deles. Várias cenas mostram
atores entre manequins de uma loja de departamentos ou entre recortes
fotográficos de fantasmas lendários do cinema mudo alemão (Mabuse,
Alraune, Caligari, Nosferatu) e dos alemães arquetípicos fotografados por
August Sander. Hitler é uma presença multiforme recorrente, retratada na
memória, por via burlesca, numa paródia histórica.
Citações no filme; o filme como um mosaico de citações estilísticas. Para
apresentar Hitler em múltiplos disfarces e sob muitas perspectivas,
Syberberg recorre a fontes estilísticas díspares: Wagner, Méliès, técnicas de
distanciamento brechtianas, barroco homossexual, teatro de fantoches. Esse
ecletismo é a marca de um erudito extremamente cioso de si, um artista
ávido, cuja escolha de materiais estilísticos (a mistura de alta arte com
kitsch) não é tão arbitrária como pode parecer. O filme de Syberberg é,
precisamente, surrealista em seu ecletismo. O surrealismo é a variante
tardia do gosto romântico, um romantismo que supõe um mundo fraturado
ou póstumo. É o gosto romântico com tendência para o pastiche. As obras
surrealistas operam por meio de convenções de desmembramento e
reagregação, no espírito do páthos e da ironia; tais convenções incluem o
inventário (ou a lista aberta); a técnica de duplicação mediante a
miniaturização; o hiperdesenvolvimento da arte da citação. Por intermédio
dessas convenções, em particular a circulação e a reciclagem de citações
visuais e acústicas, o filme de Syberberg habita, com frequência, muitos
lugares simultaneamente — seu principal artifício de ironia dramática e
visual.
Sua maior ironia consiste em zombar de toda essa complexidade,
apresentando sua meditação sobre Hitler como algo simples: uma história
contada diante de uma criança. Sua filha de nove anos de idade é a
testemunha muda e sonâmbula, coroada por lacinhos de celuloide, que fica
vagando pela paisagem do inferno, repleta de fumaça, que abre e fecha as
quatro partes do filme. Alice no País das Maravilhas, o espírito do cinema
— ela é, certamente, concebida com esse fim. E Syberberg também evoca o
simbolismo da melancolia, identificando a criança com a Melencolia de
Dürer: no fim do filme, ela é inserida no interior de uma lágrima bojuda, o
olhar fixo na frente das estrelas. Quaisquer que sejam as explicações, a
imagem deve muito ao gosto surrealista. O estado de sonambulismo é uma
convenção da narrativa surrealista. A pessoa que se movimenta numa
paisagem com essa característica está, tipicamente, num estado sonhador,
sereno. A obra que nos conduz em meio a uma paisagem surrealista é
sempre quixotesca — sem esperança, obsessiva; e, por fim, autocentrada.
Uma imagem emblemática no filme, muito admirada pelos surrealistas, é O
olho refletindo o interior do Teatro de Besançon (1804), de Ledoux. O olho
de Ledoux aparece primeiro na cena como uma imagem bidimensional.
Segue-se uma construção tridimensional, um olho como teatro, no qual um
dos narradores (Baer) vê a si mesmo projetado no fundo — em um filme
anterior feito por Syberberg, Ludwig: Réquiem para um rei virgem, em que
representou o papel principal. Assim como Ledoux situa seu teatro dentro
do olho, Syberberg situa seu cinema dentro da mente, onde todas as
associações são possíveis.
O repertório de artifícios e imagens teatrais de Syberberg parece
inconcebível sem as liberdades e as ironias introduzidas pelo gosto
surrealista e reflete muitas de suas afeições distintivas. O Grand Guignol, o
teatro de fantoches, o circo e os filmes de Méliès eram paixões surrealistas.
O gosto pelo teatro ingênuo e pelo cinema primitivo, bem como por objetos
que miniaturizam a realidade, pela arte do romantismo setentrional (Dürer,
Blake, Friedrich, Runge), pela arquitetura como fantasia utópica (Ledoux) e
como delírio privado (Ludovico II) — a sensibilidade que abarca tudo isso é
o surrealismo. Porém existe um aspecto do gosto surrealista que é alheio a
Syberberg — a rendição ao acaso, ao arbitrário; o fascínio pelo opaco, pelo
sem sentido, pelo mudo. Nada existe de arbitrário ou aleatório em seu
cenário, nenhuma imagem ou objeto desperdiçado, sem peso emocional; de
fato, certas relíquias e imagens em seu filme têm a força de talismãs
pessoais. Tudo significa, tudo fala. Uma presença muda, a filha de
Syberberg, apenas ressalta a verbosidade implacável e a intensidade do
filme. Tudo no filme é apresentado como algo que foi consumido por uma
mente.
Quando a história se passa dentro da cabeça, as mitologias públicas e
privadas ganham estatutos iguais. Ao contrário de outros megafilmes com
cujas ambições épicas ele pode ser comparado — Intolerância; Ivan, o
Terrível, Partes I e II; 2001 —, o filme de Syberberg é aberto a referências
pessoais, e também públicas. Os mitos públicos do diabo são emoldurados
pelas mitologias privadas da inocência, desenvolvidas em dois filmes
anteriores, Ludwig (1972, duas horas e vinte minutos) e Karl May — À
procura do paraíso perdido (1974, três horas), que Syberberg trata como as
primeiras duas partes de uma trilogia sobre a Alemanha, concluída com
Hitler, um filme da Alemanha. Ludovico II, mecenas e vítima de Wagner, é
uma imagem recorrente da inocência. Uma das imagens talismânicas de
Syberberg — a imagem que fecha Ludwig e é reutilizada em Hitler —
mostra Ludovico como uma criança barbada e chorosa. A imagem que abre
o filme de Hitler é a do Jardim de Inverno de Ludovico, em Munique —
uma paisagem paradisíaca da cordilheira do Himalaia (na verdade, um
grande pano preto), palmeiras, lago, tenda, gôndola, que figuraram em
Ludwig.
Cada um dos três filmes vale por si só, mas, na medida em que são
encarados como partes de uma trilogia, vale a pena sublinhar que Ludwig
fornece mais imagens a Hitler, um filme da Alemanha do que o segundo
filme, Karl May. Partes de Karl May, com seu “cenário” real e seus atores,
está mais próximo da dramaturgia linear, mimética, do que qualquer coisa
em Ludwig ou no filme sobre Hitler, incomparavelmente mais ambicioso e
profundo. Mas, como todos os artistas com gosto para o pastiche, Syberberg
só tem um sentido limitado para aquilo que se entende por realismo. O
estilo de pastiche é essencialmente um estilo de fantasia.

Syberberg concebeu uma variedade de espetáculo particularmente alemã:


o show de horror moralizado. Nas banalidades dilacerantes da narrativa do
camareiro, numa paródia da personificação por Chaplin de Hitler em O
grande ditador, num esquete ao estilo de Grand Guignol sobre o esperma
de Hitler — o diabo é um espírito familiar. A Hitler foi concedido até
compartilhar o páthos da miniaturização: o Hitler fantoche (vestido,
despido, persuadido), acomodado sobre os joelhos de um ventríloquo, o
cachorro de pano com a cara de Hitler, levado pela criança com ar desolado.
O espetáculo adquire familiaridade com os incidentes e os personagens
da história e da cultura alemãs, o regime nazista, a Segunda Guerra
Mundial; alude livremente a acontecimentos nas três décadas desde a morte
de Hitler. Enquanto o presente é reduzido a ser o legado do passado, o
passado é adornado com o conhecimento de seu futuro. Em Ludwig, esse
itinerário histórico de final aberto parece uma ironia fria (brechtiana?) —
como no momento em que Ludovico I cita Brecht. Em Hitler, um filme da
Alemanha, a ironia do anacronismo é mais pesada. Syberberg nega que os
acontecimentos do nazismo sejam parte do andamento e da conduta
normais da história. (“Disseram que era o fim do mundo”, reflete um dos
manipuladores de fantoches. “E era mesmo.”) Seu filme toma o nazismo ao
pé da letra (as palavras literais de Hitler, de Goebbels), como uma aventura
no apocalipse, como uma cosmologia numa Nova Era do Gelo — em outras
palavras, como uma escatologia do mal; e ele mesmo se passa numa espécie
de fim dos tempos, uma era messiânica (para usar o termo de Benjamin)
que impõe o dever de tentar fazer justiça aos mortos. Vem daí a lista longa e
solene dos cúmplices do nazismo (“aqueles que não devemos esquecer”), e
depois algumas vítimas exemplares — um dos vários pontos em que o filme
parece que vai terminar.
Syberberg cunhou seu filme em primeira pessoa: como a ação de um
artista que assume o dever alemão de enfrentar integralmente o horror do
nazismo. Como muitos intelectuais alemães do passado, Syberberg trata sua
germanidade como uma vocação moral e encara a Alemanha como o campo
de batalha dos conflitos europeus. (“O século XX […] um filme da
Alemanha”, diz um dos ruminadores de pensamentos.) Syberberg nasceu
em 1935 na região que viria a ser a Alemanha Oriental e mudou-se para o
outro lado do país em 1953, e lá viveu desde então; mas a origem
verdadeira de seu filme é a Alemanha extraterritorial do espírito, cujo
primeiro grande cidadão foi Heine, aquele romantique défroqué
autoestilizado, e cujo último grande cidadão foi Thomas Mann. “Ser o
campo de batalha espiritual dos antagonistas europeus — eis aí o
significado de ser alemão”, declarou Mann em suas Considerações de um
apolítico, escritas durante a Primeira Guerra Mundial, sentimentos que não
mudaram quando escreveu Doutor Fausto, já idoso, no exílio, no fim da
década de 1940. A visão de Syberberg do nazismo como a explosão do
demônio alemão recorda Mann, assim como sua insistência datada na culpa
coletiva da Alemanha (o tema do “Hitler em nós”). O repetido desafio do
narrador, “Quem seria Hitler sem nós?”, também ecoa Mann, que escreveu
um ensaio em 1939 intitulado “Irmão Hitler”, no qual afirma que “tudo não
passa de um aspecto distorcido do wagnerismo”. Assim como Mann,
Syberberg encara o nazismo como a realização grotesca — e a traição — do
romantismo alemão. Pode parecer estranho que o cineasta, que era criança
durante a era nazista, compartilhe tantos temas com alguém que é tão
ancien régime. Porém há muito de antiquado na sensibilidade de Syberberg
(consequência, talvez, de ter sido educado num país comunista) —
inclusive a nitidez com que se identifica com aquela Alemanha cujos
maiores cidadãos partiram para o exílio.
Embora recorra a inúmeras versões e impressões de Hitler, o filme
oferece pouquíssimas ideias sobre Hitler. Na maioria, são as teses
formuladas nas ruínas: a tese de que a “obra de Hitler” foi “a erupção do
princípio satânico na história do mundo” (A catástrofe alemã, de Meinecke,
escrito dois anos antes de Doutor Fausto); a tese, expressa por Horkheimer
em Eclipse da razão, de que Auschwitz foi o auge lógico do progresso
ocidental. A partir de 1950, quando as ruínas da Europa foram
reconstruídas, prevaleceram teses mais complexas — políticas,
sociológicas, econômicas — sobre o nazismo. (Mais tarde, Horkheimer
repudiou sua argumentação de 1946.) Ao reviver aquelas visões
desajustadas de trinta anos antes, sua indignação, seu pessimismo, o filme
de Syberberg defende com vigor sua adequação moral.
Syberberg propõe que escutemos de fato aquilo que Hitler disse — o tipo
de revolução cultural que o nazismo era, ou dizia ser; a catástrofe espiritual
que ele foi, e ainda é. Por Hitler, Syberberg não se refere apenas ao monstro
histórico real, responsável pela morte de dezenas de milhões de pessoas. O
cineasta evoca uma espécie de substância de Hitler que sobrevive a Hitler,
uma presença fantasma na cultura moderna, um princípio proteiforme do
mal que satura o presente e reformula o passado. O filme de Syberberg
alude a genealogias familiares, reais e simbólicas: do romantismo a Hitler,
de Wagner a Hitler, de Caligari a Hitler, do kitsch a Hitler. E, na hipérbole
da desgraça, ele insiste em algumas novas filiações: de Hitler à pornografia,
de Hitler à sociedade de consumo desalmada da República Federal Alemã,
de Hitler às coerções rudes da República Democrática Alemã. Existe certa
verdade, certas atribuições pouco convincentes, em usá-lo desse modo. É
verdade que Hitler contaminou o romantismo e Wagner, e que boa parte da
cultura alemã do século XIX é, retroativamente, assombrada por ele. (Ao
passo que a cultura russa do século XIX não é assombrada por Stálin.) Mas
não é verdade que Hitler tenha engendrado a sociedade plástica de consumo
moderna pós-hitleriana. Isso já estava bem adiantado, quando os nazistas
tomaram o poder. Pode-se mesmo argumentar — contra Syberberg — que
Hitler, a longo prazo, era uma irrelevância, uma tentativa de deter o relógio
da história; e que o comunismo, não o fascismo, era o que importava na
Europa. Syberberg é mais plausível quando afirma que a República
Democrática Alemã parece o Estado nazista, opinião pela qual foi
denunciado pela esquerda da Alemanha Ocidental; como muitos
intelectuais que cresceram sob um regime comunista e se mudaram para um
regime burguês democrático, ele é singularmente isento de crenças
esquerdistas. Também se pode argumentar que Syberberg simplificou de
maneira indevida sua tarefa moralista, ao identificar em excesso, a exemplo
de Mann, a história interna da Alemanha com a história do romantismo.
Em Syberberg, a noção de história como catástrofe recorda a longa
tradição alemã de encarar a história de modo escatológico, como história do
espírito. Visões comparáveis, hoje em dia, são mais encontradas na Europa
Oriental do que na Alemanha. Syberberg tem a intransigência moral, a falta
de respeito pela história literal, a seriedade pungente dos grandes artistas
iliberais do Império Russo — com suas convicções ferrenhas acerca da
primazia da causalidade espiritual sobre a material (econômica, política), da
irrelevância dos conceitos de “esquerda” e de “direita”, da existência do
mal absoluto. Assombrado com a dimensão do apoio alemão a Hitler,
Syberberg chama os alemães de “povo satânico”.
A história do diabo que Mann imaginou para sintetizar o demoníaco
nazista foi narrada por alguém sem a devida compreensão. Portanto, Mann
sugeria que um mal tão absoluto pode estar, afinal, além da compreensão ou
da apreensão da arte. Mas a estupidez do narrador de Doutor Fausto é
enfatizada em demasia. A ironia de Mann acaba por se constituir em um
tiro pela culatra: a modéstia vaidosa de entendimento de Serenus Zeitblom
parece a confissão da incapacidade de Mann, sua incompetência para dar
plena voz ao sofrimento. O filme de Syberberg sobre o diabo, embora
envolto em ironias, afirma nossa incapacidade para compreender e nossa
obrigação de sofrer. Dedicado, como é, ao sofrimento, o filme começa e
termina com as palavras dilacerantes de Heine: “Penso na Alemanha à noite
e o sono me abandona, não consigo mais fechar os olhos, choro lágrimas
ardentes”. O sofrimento é o fardo dos solilóquios calmos, deploráveis,
musicais de Baer e de Heller; nem recitação nem declamação, eles são
apenas falas, e ouvir aquelas vozes graves, inteligentes, fervilhantes de
sofrimento é, em si, uma experiência civilizadora.
O filme carrega, sem nenhuma condescendência, um vasto legado de
informação sobre o período nazista. A informação, porém, é subentendida.
O filme não se destina a atender a um critério de informação, mas afirma ter
em vista um (hipotético) ideal terapêutico. Repetidamente, Syberberg
assinala que seu filme é dirigido à “incapacidade de a Alemanha viver o
luto”, que o filme assume “o trabalho do luto” (Trauerbeit). Essas
expressões recordam o famoso ensaio escrito por Freud em plena Primeira
Guerra Mundial, “Luto e melancolia”, que associa a melancolia à
incapacidade de viver o luto; e recordam a aplicação dessa fórmula num
estudo psicanalítico influente do pós-guerra alemão, de autoria de
Alexander e Margarete Mitscherlich, A incapacidade de viver o luto,
publicado na Alemanha em 1967, que apresenta o diagnóstico de
melancolia de massa por parte dos alemães, resultante da negação contínua
de sua responsabilidade coletiva pelo passado nazista e de sua persistente
recusa de fazer o luto. Syberberg se apropriou da conhecida tese dos
Mitscherlich (sem sequer mencionar o livro), mas deve-se duvidar de que
seu filme tenha se inspirado por ela. Parece mais provável que o cineasta
tenha achado que a ideia do Trauerarbeit era uma justificativa psicológica e
moral para sua estética da repetição e da reciclagem. É preciso muito tempo
— e muita hipérbole — para trabalhar o luto.
Na medida em que o filme pode ser considerado um gesto de luto, o
interessante é que ele é conduzido no estilo do luto — por meio do exagero,
da repetição. Há um fluxo abundante de informação: o método da saturação.
Syberberg é um artista do excesso: o pensamento é uma espécie de excesso,
a produção, excedente de contemplações, imagens, associações, emoções
ligadas a Hitler ou evocadas por ele. Isso explica a extensão do filme, seus
argumentos circulares, seus diversos começos, seus quatro ou cinco finais,
seus muitos títulos, sua pluralidade de estilos, suas mudanças vertiginosas
de perspectiva sobre Hitler, abaixo ou além. A mudança mais admirável
ocorre na Parte II, quando o monólogo do camareiro, de quarenta minutos,
com suas banalidades hipnotizantes sobre as preferências de Hitler no
terreno das roupas íntimas, do creme de barbear e dos alimentos
consumidos no café da manhã, é seguido por meditações de Heller sobre a
irrealidade da ideia das galáxias. (É o equivalente verbal do corte que
vemos no filme 2001, do osso jogado para o ar por um primata na direção
de uma nave espacial — certamente o corte mais espetacular na história do
cinema.) A ideia de Syberberg é exaurir, esvaziar seu tema.

Syberberg mede suas ambições pelos parâmetros de Wagner, se bem que


atender às expectativas legendárias de um gênio alemão não seja tarefa nada
fácil na sociedade de consumo da República Federal Alemã. Ele considera
que Hitler, um filme da Alemanha não é apenas um filme, assim como
Wagner não queria que O Anel de Nibelungo e Parsifal fossem
consideradas óperas ou fizessem parte do repertório normal dos teatros de
ópera. Sua extensão desafiadora, sedutora, que impede a distribuição
convencional do filme, é uma característica muito wagneriana, bem como a
relutância de Syberberg (até recentemente) de permitir a exibição do filme
senão em circunstâncias especiais que fomentassem a seriedade. Também é
wagneriano o ideal de Syberberg de exaustividade e profundidade; seu
sentido de missão; sua crença na arte como ato radical; seu gosto pelo
escândalo; suas energias polêmicas (ele é incapaz de escrever um ensaio
que não seja um manifesto); seu gosto pela grandiosidade. Esta é, sem
dúvida, o principal tema de Syberberg. Os protagonistas de sua trilogia
sobre a Alemanha — Ludovico II, Karl May, Hitler — são todos
megalomaníacos, mentirosos, sonhadores incautos, virtuoses da
grandiosidade. (Os documentários muito diferentes que Syberberg fez para
a televisão alemã, entre 1967 e 1975, exprimem igualmente seu fascínio
pela confiança em si mesmo e pela obsessão consigo mesmo: Die Grafen
Pocci [Os condes Pocci], sobre uma família aristocrática alemã; retratos de
astros do cinema alemão; e um filme-entrevista de cinco horas com a nora
de Wagner e amiga de Hitler, A confissão de Winifred Wagner.)
O cineasta é um grande wagneriano, o maior desde Thomas Mann, porém
sua atitude em relação a Wagner e aos tesouros do romantismo alemão não
é apenas de devoção. Contém mais do que uma pitada de malícia, o toque
do vândalo cultural. Para evocar o esplendor e o fracasso do
wagnerianismo, Hitler, um filme da Alemanha usa, recicla e parodia
elementos de Wagner. Syberberg deseja que seu filme seja um anti-Parsifal
e a hostilidade a Wagner é um de seus leitmotiven: a filiação espiritual entre
Wagner e Hitler. O filme inteiro poderia ser considerado uma profanação de
Wagner, levada a efeito com o pleno sentido da ambiguidade do gesto, pois
Syberberg tenta manter-se tanto dentro quanto fora de suas fontes mais
profundas como artista. (Os túmulos de Wagner e de Cosima, atrás da Villa
Wahnfried, são imagens recorrentes; e uma cena satiriza a mais gratuita de
todas as profanações, quando recrutas negros americanos dançaram o
jitterbug em cima dos túmulos, depois da guerra.) Pois é de Wagner que o
filme de Syberberg recebe o maior impulso — sua aspiração intrínseca e
imediata ao sublime. Quando o filme começa, ouvimos o início do prelúdio
de Parsifal e vemos a palavra CÁLICE em letras maiúsculas partidas.
Syberberg afirma que sua estética é wagneriana, ou seja, musical. Mas
talvez seja mais correto dizer que seu filme mantém uma relação mimética
com Wagner e, em parte, uma relação parasitária — como Ulysses tem uma
relação parasitária com a história da literatura inglesa.
Syberberg toma de modo muito literal, mais literal do que o próprio
Eisenstein, a promessa de um filme como síntese de artes plásticas, música,
literatura e teatro — a realização moderna da ideia de Wagner da obra de
arte total. (Já se afirmou não poucas vezes que Wagner, caso vivesse no
século XX, seria um cineasta.) Mas a moderna Gesamtkunstwerk [obra de
arte total] tende a ser um agregado de elementos aparentemente
disparatados, no lugar de uma síntese. Para Syberberg, existe sempre algo
mais e diferente a dizer — como atestam os dois filmes sobre Ludovico II
que ele realizou em 1972. Ludwig: Réquiem para um rei virgem, o primeiro
filme de sua trilogia sobre a Alemanha, presta uma homenagem delirante ao
páthos teatralmente irônico e demasiado maduro de cineastas como
Cocteau, Carmelo Bene e Werner Schroeter. Theodor Hirneis, o outro filme,
é um monodrama brechtiano austero de noventa minutos, que tem o
cozinheiro de Ludovico como um de seus personagens — antecipando
desse modo a narrativa do camareiro em Hitler, um filme da Alemanha — e
foi inspirado pelo romance inacabado de Brecht sobre a vida de Júlio César,
narrado por seu escravo. Syberberg se vê como discípulo de Brecht e, em
1952 e 1953, filmou várias produções do dramaturgo alemão na Berlim
Oriental.
Segundo Syberberg, sua obra provém da “dualidade Wagner/Brecht”;
esse é o “escândalo estético” que ele afirma ter “procurado”. Em
entrevistas, o cineasta invariavelmente cita ambos como seus pais artísticos,
em parte (podemos supor) para neutralizar a política de um com a política
do outro e situar-se além de questões de direita e esquerda; em parte para
aparecer mais imparcial do que é. Contudo, inevitavelmente ele é mais
wagneriano do que brechtiano, por causa da maneira como a inclusiva
estética wagneriana abarca sentimentos opostos (inclusive sentimentos
éticos e inclinações políticas). Baudelaire ouviu na música de Wagner “o
grito supremo de uma alma levada a seus limites extremos”, ao passo que
Nietzsche, mesmo depois de desistir de Wagner, ainda o elogiava como um
grande “miniaturista” e “nosso maior melancólico na música” — e ambos
tinham razão. Os opostos de Wagner ressurgem em Syberberg: o democrata
radical e o elitista de direita, o esteta e o moralista, o bombástico e o
pesaroso.
A genealogia polêmica de Syberberg, Brecht/Wagner, obscurece outras
influências sobre o filme; em particular, o que ele deve às ironias e às
imagens surrealistas. Mesmo o papel de Wagner parece um caso mais
complexo do que parece indicar o encantamento de Syberberg com a arte e
a vida do compositor. A par do Wagner de que o cineasta se apropriou,
embora fiquemos tentados a dizer expropriou, esse wagnerianismo é,
propriamente falando, um caso atenuado — um exemplo fascinantemente
tardio da arte que nasceu e cresceu da estética wagneriana: o simbolismo.
(Simbolismo e surrealismo podem ser considerados desenvolvimentos
tardios da sensibilidade romântica.) O simbolismo foi a estética wagneriana
transformada em processo de criação para todas as artes; mais subjetivado,
impelido para a abstração. O que Wagner queria era um teatro ideal. Um
teatro de emoções maximalistas, purgado de distrações e irrelevâncias.
Assim, ele optou por esconder a orquestra do Bayreuth Festpielhaus por trás
de uma concha de madeira preta, e, uma vez feito esse gracejo, o de
inventar a orquestra invisível, ele almejava ainda inventar o palco invisível.
Os eventos deviam ser retirados da realidade, por assim dizer, e reinseridos
em cena no teatro ideal da mente.9 E a fantasia do palco invisível de
Wagner foi realizada mais literalmente nesse palco imaterial que é o
cinema.
O filme de Syberberg é uma interpretação magistral das potencialidades
simbolistas do cinema e, provavelmente, a obra simbolista mais ambiciosa
deste século. Ele constrói o cinema como uma espécie de atividade mental
ideal, ao mesmo tempo sensível e reflexivo, que toma a frente quando a
realidade sai de cena: cinema não como fabricação da realidade, e sim como
“continuação da realidade por outros meios”. Na meditação de Syberberg
sobre a história num estúdio de som, os eventos são visualizados (com a
ajuda de convenções surrealistas) e simultaneamente permanecem
invisíveis, num sentido mais profundo (o ideal simbolista). Porém, como
carece da homogeneidade estilística típica das obras simbolistas, Hitler, um
filme da Alemanha tem um vigor a que os simbolistas renunciariam por
considerá-lo vulgar. Suas impurezas resgatam o filme do que era mais
rarefeito no simbolismo, sem que isso torne seu alcance menos
indeterminado e abrangente.

O artista simbolista é, acima de tudo, uma mente, uma mente criadora


que (destilando a grandiosidade e a intensidade wagnerianas) tudo vê e que
é capaz de permear seu tema; e que o eclipsa. A meditação de Syberberg
sobre Hitler tem a arrogância costumeira de sua mente e a porosidade
característica das estruturas mentais simbolistas superestendidas:
argumentos atenuados que começam assim: “Acho que…”, sentenças sem
verbos, que mais evocam do que explicam. Há conclusões por todo lado,
mas nada se conclui. Todas as partes de uma narrativa simbolista são
simultâneas; ou seja, todas coexistem concomitantemente nessa mente
superior, dominadora.
A função dessa mente não é contar uma história (no início, a história já
ficou para trás, como assinalou Rivière), e sim conferir significado em
quantidades ilimitadas. Ações, imagens, pedaços individuais do cenário
podem ter, idealmente têm de fato, significados múltiplos — por exemplo, a
carga de significados que Syberberg associa à figura da criança. Ele parece
procurar, de um ponto de vista mais subjetivo, aquilo que Eisenstein
prescreve com sua teoria da “montagem atonal”. (Eisenstein se via na
tradição de Wagner e da Gesamtkunstwerk e, em seus textos, se refere de
maneira copiosa à estética simbolista no cinema.) O filme transborda de
significados de acessibilidade variada, e existem outros significados que
advêm de relíquias e talismãs presentes no cenário, sobre os quais o público
não tem a menor possibilidade de saber.10 O artista simbolista não está
prioritariamente interessado em exposição, explanação, comunicação.
Parece adequado que a dramaturgia de Syberberg consista em um discurso
direcionado para aqueles que não podem responder: os mortos (em cuja
boca podemos pôr palavras) e para a própria filha (que não tem falas). A
narrativa simbolista é sempre uma questão póstuma; seu tema é algo
subentendido. Portanto, a arte simbolista é caracteristicamente densa,
difícil. Syberberg apela (de forma intermitente) a outro processo de
conhecimento, conforme indicado em um dos principais emblemas do
filme, o teatro ideal de Ledoux, na forma de um olho — o olho maçônico; o
olho da inteligência, do conhecimento esotérico. Mas Syberberg quer, e
quer com fervor, que seu filme seja compreendido; e este, em certos
trechos, é superexplícito, ao passo que, em outros, é cifrado.
A relação simbolista da mente com seu tema se consuma quando o tema
é subjugado, cancelado, exaurido. Assim, a suprema presunção de
Syberberg é de que, com seu filme, ele se torne capaz de “derrotar” Hitler
— exorcizá-lo. Essa hipérbole, magnificamente exorbitante, coroa a
compreensão profunda que Syberberg tem de Hitler como imagem. (Se de
O gabinete do dr. Caligari chegamos a Hitler, por que não ir de Hitler até
Hitler, um filme da Alemanha? Fim.) Disso decorrem também a visão
romântica de Syberberg sobre a supremacia da imaginação e seu flerte com
noções esotéricas de conhecimento, com ideias da arte como uma alquimia
mágica ou espiritual e da imaginação como provedora dos poderes das
trevas.
O monólogo de Heller na Parte IV conduz a uma lista de presença de
mitos que podem ser vistos como metáforas dos poderes esotéricos do
cinema — começando pelo Black Maria, de Edison (“o estúdio negro de
nossa imaginação”); evocando pedras pretas (da Caaba; da Melencolia de
Dürer, a imagem que preside a complexa iconografia do filme); e
terminando com uma imagem moderna: o cinema como o buraco negro da
imaginação. A exemplo do buraco negro, ou da nossa fantasia sobre ele, o
cinema faz desmoronar o espaço e o tempo. A imagem descreve à perfeição
a fluência lancinante do filme de Syberberg: sua insistência em ocupar
diferentes espaços e tempos simultaneamente. Parece adequado que a
mitologia pessoal de Syberberg sobre o cinema subjetivo seja concluída
com uma imagem extraída da ficção científica. Um cinema subjetivo com
tais ambições e tal energia moral logicamente se transforma em ficção
científica. Assim, o filme desse cineasta começa com as estrelas e termina,
como 2001, com as estrelas e uma estrela-bebê.
Ao evocar Hitler por meio do mito e da farsa, dos contos de fadas e da
ficção científica, Syberberg cumpre seus ritos de desconsagração: o Cálice
foi destruído (o anti-Parsifal de Syberberg se abre e se fecha com a palavra
CÁLICE, o verdadeiro título do filme); já não é mais aceitável sonhar com a
redenção. Ele defende seu gesto de mitologizar a história como uma tarefa
cética: o mito como “mãe da ironia e do páthos”, e não como estímulo de
novos sistemas de crença. Mas alguém que acredita que Hitler era a “sina”
da Alemanha dificilmente pode ser chamado de cético. Syberberg é o tipo
de artista que quer ter os dois lados — todos os lados. O método de seu
filme é a contradição, a ironia. E, ao exercer seu talento engenhoso para a
ingenuidade, também pretende transcender essa complexidade. Ele aprecia
ideias de inocência e de páthos — as tradições do idealismo romântico;
algum nonsense em torno da figura de uma criança (sua filha, o bebê em A
manhã, de Runge, Ludovico como uma criança barbada e chorosa); sonhos
de um mundo ideal depurado de sua complexidade e mediocridade.
As partes anteriores da trilogia de Syberberg são retratos elegíacos dos
últimos sonhadores do paraíso: Ludovico II, que construía castelos que eram
palcos e financiava a fábrica de sonhos de Wagner em Bayreuth; Karl May,
que romantizava os indígenas americanos, os árabes e outros povos
exóticos, em seus romances imensamente populares, entre os quais o mais
famoso, Winnetou, relata a destruição da beleza e da bravura pelo avanço da
civilização tecnológica moderna. Ludovico e Karl May atraem Syberberg
como praticantes corajosos e condenados da Grande Recusa, a rejeição da
civilização industrial moderna. Aquilo que mais detesta, coisas como
pornografia e a comercialização da cultura, Syberberg identifica com o
moderno. (Nessa postura de superioridade absoluta sobre o moderno, ele
recorda o autor de Arte em crise, Hans Sedlmayr, com quem estudou
história da arte na Universidade de Munique nos anos 1950.) O filme é um
trabalho de luto para o moderno e para aquilo que o antecede e a ele se
opõe. Se Hitler é também um “utópico”, como o cineasta o chama, então
Syberberg está condenado a ser um pós-utópico, um utópico que reconhece
que sentimentos utópicos têm sido implacavelmente conspurcados.
Syberberg não acredita em um “novo ser humano” — tema perene da
revolução cultural tanto da esquerda como da direita. A despeito de toda a
sua atração pelo credo do gênio romântico, aquilo em que acredita é Goethe
e um ensino secundário completo.
Decerto podem ser encontradas as contradições de costume no filme de
Syberberg — a poesia da utopia, a futilidade da utopia; racionalismo e
magia. E isso apenas confirma que tipo de filme é, na realidade, Hitler, um
filme da Alemanha. Ficção científica é exatamente o gênero que dramatiza a
mistura de nostalgia da utopia com fantasias distópicas e horror; a
convicção dúplice de que o mundo está chegando ao fim e de que ele está à
beira de um novo começo. O filme de Syberberg sobre história é também
uma ficção científica moral e cultural. A nave espacial Goethe-Haus.
Syberberg consegue perpetuar, de forma melancólica e atenuada, uma
parte das ideias de Wagner sobre arte como terapia, como redenção e
catarse. Ele chama o cinema de “a mais bela compensação” para as
devastações da história moderna, uma espécie de “redenção” para “nossos
sentidos, oprimidos pelo progresso”. Essa arte, em certo sentido, redime a
realidade ao ser melhor do que ela — eis a crença simbolista suprema.
Syberberg faz do cinema o paraíso derradeiro, mais inclusivo, mais
espectral. É uma visão que recorda Godard. Sua cinefilia é outra parte do
enorme páthos de seu filme; talvez seu único páthos involuntário. Pois, a
despeito do que ele diga, o cinema é hoje outro paraíso perdido. Na era da
inaudita mediocridade do cinema, sua obra-prima se reveste de algo do
caráter de um evento póstumo.

Ao desdenhar o naturalismo, os românticos desenvolveram um estilo


melancólico: intensamente pessoal, a expansão de seu “eu” torturado,
centrado no ágon entre o artista e a sociedade. Mann formulou a última
expressão profunda dessa ideia romântica do dilema do eu. Os pós-
românticos, como Syberberg, fazem uso de um estilo melancólico
impessoal. Central agora é a relação entre a memória e o passado: o choque
entre a possibilidade de recordar, de ir em frente, e a sedução do
esquecimento. Beckett apresenta uma versão a-histórica desse ágon. Outra
versão, obcecada pela história, é a de Syberberg.
Compreender o passado, e, portanto, exorcizá-lo, constitui a maior
ambição moral do cineasta alemão. Seu problema repousa no fato de não
conseguir abrir mão de nada. Seu tema é tão vasto — e tudo o que
Syberberg faz o torna ainda maior — que foi necessário tomar muitas
posições para além dele. Podemos encontrar quase qualquer coisa no filme
apaixonadamente volúvel de Syberberg (menos uma análise marxista ou um
fragmento de consciência feminista). Embora tente ser silencioso (a criança,
as estrelas), não consegue parar de falar; é ardoroso e ávido demais.
Quando o filme está perto de terminar, Syberberg quer produzir mais uma
imagem arrebatadora. E mesmo quando afinal chega ao fim, ele ainda quer
dizer mais e acrescenta pós-escritos: a epígrafe de Heine, a citação de
Mogadíscio-Stammheim, uma frase oracular final de Syberberg, uma
derradeira evocação do Cálice. O filme é, em si mesmo, a criação de um
mundo, e a sensação é de que seu criador tem a maior dificuldade de dele se
desvencilhar — bem como o espectador admirado; esse exercício na arte da
empatia produz uma angústia voluptuosa, uma inquietação com a
conclusão. Perdido no buraco negro da imaginação, o cineasta tem de fazer
tudo passar diante dele; identifica-se com cada coisa e com nenhuma.
Benjamin sugere que a melancolia é a origem da compreensão histórica
verdadeira — ou seja, justa. A verdadeira compreensão da história, disse ele
no último texto que escreveu, é “um processo de empatia cuja origem é a
indolência do coração, a acédia”. Syberberg compartilha algo da visão
positiva e instrumental da melancolia e usa símbolos relacionados a ela para
pontuar seu filme. Mas Syberberg não tem a ambivalência, a morosidade, a
complexidade, a tensão do temperamento saturnino. Ele não é um
melancólico verdadeiro, mas um exalté. No entanto, emprega as
ferramentas características do melancólico — os adereços alegóricos, os
talismãs, as autorreferências secretas; e, com esse talento irrepreensível para
a indignação e o entusiasmo, está realizando o “trabalho do luto”. A
expressão aparece primeiro no filme que fez sobre Winifred Wagner em
1975, em que se lê: “Este filme é parte do Trauerarbeit de Hans-Jürgen
Syberberg”. O que vemos é o cineasta sorrindo.
Syberberg é um elegíaco autêntico. Mas seu filme é revigorante. A
verbosidade poética, acanhada, de voz rouca, dos últimos filmes de Godard
revela uma convicção incontrolável de que falar nunca exorcizará nada; em
contraste com as meditações fora de cena que ouvimos nos filmes de
Godard, as reflexões das personas de Syberberg (Heller e Baer)
transbordam calma e segurança. Syberberg, cujo temperamento parece o
oposto ao de Godard, tem suprema confiança na língua, no discurso, na
eloquência em si mesma. O filme tenta dizer tudo. Ele pertence à raça dos
criadores como Wagner, Artaud, Céline, o último Joyce, cujas obras
aniquilam outras obras. Todos são artistas de fala interminável, de melodia
interminável — uma voz que continua sem cessar. Beckett também
pertenceria a essa raça, não fosse uma força inibidora — sanidade?
Elegância? Boas maneiras? Falta de energia? Desespero mais profundo? O
mesmo vale para Godard, não fossem as dúvidas que ele deixa patentes
quanto à fala e a inibição do sentimento (tanto de simpatia quanto de
repulsa) que resulta do seu senso de impotência da fala. Syberberg
conseguiu se manter livre das dúvidas de praxe — dúvidas cuja função
principal parece ser, na atualidade, a de inibir. O resultado é um filme
completamente excepcional, em sua expressividade emocional, sua grande
beleza visual, sua sinceridade, sua paixão moral, sua preocupação com
valores contemplativos.
O filme tenta ser tudo. A ambição inaudita de Syberberg em Hitler, um
filme da Alemanha se situa em uma escala alheia a tudo o que já se viu no
cinema. É uma obra que requer um tipo especial de atenção e de
partidarismo; e pede para ser objeto de reflexão e para ser revisto. Quanto
mais reconhecemos suas referências estilísticas e sua erudição, mais o filme
vibra. (A grande arte na modalidade do pastiche invariavelmente compensa
seu estudo, como afirmou Joyce quando se atreveu a observar que o leitor
ideal de sua obra seria alguém que pudesse dedicar sua vida a ela.) O filme
do realizador alemão pertence à categoria das nobres obras-primas que
pedem fidelidade e são capazes de compelir a isso. Depois de ver Hitler, um
filme da Alemanha, existe o filme de Syberberg — e, logo atrás, existem os
outros filmes que admiramos. (Não muitos, hoje em dia, infelizmente.)
Como foi dito, de forma ríspida, sobre Wagner, ele reduz nossa tolerância
ante os demais.

(1979)
Recordando Barthes

Roland Barthes tinha 64 anos quando morreu semana passada [em 26 de


março de 1980], mas sua carreira era mais jovem do que sua idade sugere,
pois ele tinha 37 anos quando publicou seu primeiro livro. Depois do início
tardio, vieram muitas obras, muitos assuntos. A sensação era de que ele
podia gerar ideias sobre qualquer coisa. Se o pusessem na frente de uma
caixa de charutos, ele teria uma, duas, muitas ideias — um pequeno ensaio.
Não era uma questão de conhecimento (ele não podia saber tanto acerca de
certos temas sobre os quais escreveu), mas sim de agilidade, uma
transcrição meticulosa de tudo aquilo que poderia ser pensado sobre algo,
uma vez que esse objeto fosse arrastado pela correnteza da atenção. Sempre
existia uma rede refinada de classificação na qual o fenômeno podia ser
apanhado.
Na juventude, fundou um grupo teatral universitário, resenhou peças de
teatro. E algo do teatro, um amor profundo pelas aparências, dá cor à sua
obra, quando ele começa a exercer a pleno vapor sua vocação de escritor.
Seu sentido das ideias era dramatúrgico: uma ideia estava sempre em
competição com outra. Ao subir ao palco intelectual francês inato, ele se
pôs em armas contra o inimigo tradicional: aquilo que Flaubert chamou de
“ideias feitas”, e tornou-se conhecido como a mentalidade “burguesa”; o
que os marxistas condenavam com a ideia de falsa consciência e os
sartrianos, com a ideia de má-fé; o que Barthes, que era formado em letras
clássicas, denominaria doxa (opinião corrente).
Foi ele quem deu a largada nos anos do pós-guerra, à sombra das
questões moralistas de Sartre, com manifestos sobre o que é literatura (O
grau zero da escrita) e retratos argutos dos ídolos da tribo burguesa (artigos
coligidos em Mitologias). Todos os seus escritos são polêmicos. Porém o
impulso mais profundo de seu temperamento não era combativo. Era
celebratório. Suas investidas desmistificadoras — que pressupunham a
pronta disposição para se mostrar indignado com a inanidade, a obtusidade,
a hipocrisia — aos poucos se atenuaram. Ele estava mais interessado em
disparar elogios, compartilhar suas paixões. Era um taxonomista do júbilo e
do rigoroso jogo da mente.
O que o fascinava era a classificação mental. Assim, seu livro
escandaloso Sade, Fourier, Loyola, que ao justapor os três como campeões
intrépidos da fantasia, classificadores obcecados das próprias obsessões,
oblitera todas as questões de substância que fazem deles não comparáveis.
Barthes não era modernista em seus gostos (a despeito de seu patrocínio
tendencioso de avatares do modernismo literário em Paris, como Robbe-
Grillet e Philippe Sollers), mas, em sua prática, era um modernista. Ou seja,
era irresponsável, divertido, formalista — fazia literatura no ato de falar
sobre literatura. O que o estimulava numa obra era aquilo que ela defendia e
seus sistemas de afronta. Ele conscientemente se interessava pelo perverso
(defendia a opinião antiquada de que isso era libertador).
Tudo o que escrevia era interessante — vivaz, ágil, denso, afiado. A
maior parte de seus livros são coletâneas de ensaios. (Entre as exceções,
figura um livro precoce e polêmico sobre Racine. Um livro de extensão
incomum, e de uma linguagem explícita também incomum, sobre a
semiologia da publicidade da moda, que escreveu para satisfazer as
exigências universitárias e que continha material para vários ensaios
virtuosísticos.) Barthes não produziu nada que possa ser chamado de
juvenilia; a voz elegante, exigente, esteve presente desde o início. Mas o
ritmo se acelerou na última década, com um livro novo a cada um ou dois
anos. O pensamento havia adquirido maior velocidade. Em seus livros
recentes, a própria forma do ensaio havia se estilhaçado — perfurando a
reticência do ensaísta com relação ao emprego do pronome “eu”. A escrita
adotou liberdades e riscos de um caderno de anotações. Em S/Z, ele
reinventou um romance de Balzac na forma de uma glosa textual
tenazmente engenhosa. Houve os deslumbrantes apêndices borgianos em
Sade, Fourier, Loyola; as pirotecnias paraficcionais das trocas entre texto e
fotografias, entre texto e referências semiobscurecidas, em seus escritos
autobiográficos; as celebrações da ilusão, em seu último livro, sobre
fotografia, publicado dois meses atrás.
Ele era especialmente sensível ao fascínio exercido por esse registro
pungente, a fotografia. Entre as que escolheu para Roland Barthes por
Roland Barthes, talvez a mais comovente seja a que mostra uma criança
muito grande, Barthes aos dez anos de idade, levado pela jovem mãe e
agarrado a ela (Barthes intitulou a foto de “Pedindo amor”). Tinha uma
relação amorosa com a realidade — e com a escrita, que eram para ele a
mesma coisa. Escreveu sobre tudo; assediado por pedidos para escrever
artigos eventuais, aceitava o máximo que podia; queria ser, e muitas vezes
era, seduzido por um tema. (Seu tema se tornava, cada vez mais, a
sedução.) Como todos os escritores, queixava-se de viver sobrecarregado de
trabalho, de aceitar encomendas demais, de estar atrasado — mas, na
verdade, era um dos escritores mais disciplinados, seguros e famintos que
conheci. Encontrava tempo para dar muitas entrevistas eloquentes e
intelectualmente inventivas.
Como leitor, era meticuloso, mas não voraz. Acabava escrevendo sobre
quase tudo o que lia, portanto podemos supor que, se não escrevia sobre
algo, provavelmente era porque não tinha lido a respeito. Tinha tão pouco
de cosmopolita quanto a maioria dos intelectuais franceses (uma exceção
era seu amado Gide). Não conhecia bem nenhuma língua estrangeira e lia
pouca literatura além da francesa, mesmo em tradução. A única literatura
estrangeira em que parece ter tocado foi a alemã: Brecht era um entusiasmo
precoce e vigoroso; nos últimos tempos, o sofrimento discretamente
recontado em Fragmentos de um discurso amoroso levou-o ao livro Os
sofrimentos do jovem Werther e aos lieder. Não tinha curiosidade suficiente
para permitir que suas leituras interferissem em sua escrita.
Gostava de ser famoso, com um prazer inocente e sempre renovado: na
França, ultimamente, era possível vê-lo muitas vezes na televisão, e
Fragmentos de um discurso amoroso entrou na lista dos livros mais
vendidos. No entanto, ele falava da estranheza de ver seu nome toda vez
que folheava uma revista ou um jornal. Seu senso de privacidade era
expresso de maneira exibicionista. Ao escrever sobre si, muitas vezes
empregava a terceira pessoa, como se tratasse a si mesmo como uma ficção.
As obras derradeiras contêm muitas e detalhadas revelações pessoais, mas
sempre sob a forma de especulação (não há nenhuma anedota sobre o eu
que, presa entre os dentes, não apresente uma ideia), e meditações
saborosas sobre o pessoal; o último artigo que publicou dizia respeito à
escrita de um diário. Toda a sua obra é um trabalho de autodescrição
imensamente complexo.
Nada escapava à atenção desse estudante dedicado e engenhoso de si
mesmo: a comida, as cores, os cheiros de que gostava; como lia. Certa vez,
numa palestra em Paris, ele observou que leitores estudiosos se dividem em
dois grupos: os que sublinham os livros e os que não sublinham. Disse
pertencer ao segundo grupo: nunca marcava o livro sobre o qual planejava
escrever, mas transcrevia em fichas os trechos-chave. Esqueci a teoria que,
na ocasião, ele cunhou sobre essa preferência, portanto vou improvisar
minha própria teoria. Relaciono sua aversão a marcar os livros com o fato
de que ele desenhava e de que seu desenho, a que se dedicava seriamente,
era uma forma de escrita. A arte visual que o atraía provinha da língua: era,
a rigor, uma variante da escrita; Barthes escreveu ensaios sobre o alfabeto
de Erté, formado por figuras humanas, sobre a pintura caligráfica de
Réquichot, de Twombly. Sua preferência recorda a metáfora morta do
“corpo” da obra — em geral, não se escreve sobre a superfície de um corpo
amado.
Sua aversão temperamental ao moralismo tornou-se mais declarada em
anos recentes. Após algumas décadas de adesão dócil aos padrões de
pensamento correto (ou seja, esquerdista), o esteta saiu do armário em
1974, quando, com alguns amigos mais próximos e aliados literários,
maoistas de ocasião, foi para a China; mas, nas três páginas escassas que
escreveu em seu regresso, disse ter ficado pouco impressionado com o
moralismo e entediado com a assexualidade e a uniformidade cultural. A
obra de Barthes, assim como a de Wilde e a de Valéry, confere boa
reputação a quem opta por ser um esteta. Boa parte de seus escritos recentes
é uma celebração da inteligência dos sentidos e dos textos de sensação. Ao
defender os primeiros, ele nunca traiu a mente. Barthes não alimenta
nenhum clichê romântico sobre a oposição entre a vigilância sensual e
mental.
A obra trata da tristeza superada ou negada. Barthes decidiu que tudo
podia ser tratado como um sistema — um discurso, um quadro de
classificações. Como tudo era um sistema, tudo podia ser dominado. Porém,
no final, ele ficou farto de sistemas. Sua mente era sagaz demais, ambiciosa
demais, atraída demais pelo risco. Parecia mais inquieto e vulnerável em
anos recentes, à medida que se tornou mais produtivo do que nunca. Como
observou, falando acerca de si mesmo, sempre “trabalhou excessivamente
sob a égide de um grande sistema (Marx, Sartre, Brecht, a semiologia, o
Texto). Hoje, tem a impressão de que escreve de maneira mais aberta, mais
desprotegida…”. Depurou-se dos mestres e das ideias-mestras das quais
extraía sustento (“para falar, é preciso buscar apoio em outros textos”,
explicou), para se manter apenas à sombra de si mesmo. Tornou-se seu
próprio Grande Escritor. Foi espectador assíduo nas sessões da conferência
de sete dias dedicada à sua obra, em 1977 — comentando, intrometendo-se
delicadamente, divertindo-se. Publicou uma resenha sobre o livro
especulativo de sua autoria sobre ele mesmo (Barthes sobre Barthes sobre
Barthes). Tornou-se o pastor do rebanho de si próprio.
Tormentos vagos, uma sensação de insegurança, foram admitidos — com
a implicação consoladora de que ele estava à beira de uma grande aventura.
Quando esteve em Nova York, há um ano e meio, declarou em público, com
um destemor quase trêmulo, sua intenção de escrever um romance. Não o
romance que se pode esperar de um crítico que, por um tempo, fez Robbe-
Grillet parecer uma figura central nas letras contemporâneas; do escritor
cujos livros mais maravilhosos — Roland Barthes por Roland Barthes e
Fragmentos de um discurso amoroso — são triunfos da ficção modernista,
na tradição inaugurada por Rilke em Os cadernos de Malte Laurids Brigge,
que engendra um cruzamento dos gêneros ficção, ensaio, especulação e
autobiografia num caderno de anotações linear, em vez de adotar a forma de
uma narrativa linear. Não, não é um romance modernista, mas um romance
“de verdade”, disse ele. Como Proust.
Em caráter privado, Barthes falava de sua almejada descida da cúpula
universitária — ele ocupava uma cátedra no Collège de France desde 1977
— a fim de se dedicar a seu romance, e de sua aflição (sem razão de ser, em
face das circunstâncias) envolvendo sua segurança material, caso
renunciasse ao cargo de professor. A morte da mãe, dois anos antes, foi um
grande baque. Ele recordava ter sido somente depois da morte da mãe que
Proust foi capaz de começar À la Recherche du temps perdu. Era
característico dele esperar encontrar uma fonte de energia em seu
sofrimento devastador.
Como às vezes escrevia sobre si mesmo na terceira pessoa, em geral
falava de si como uma pessoa sem idade e aludia a seu futuro como se fosse
muito mais jovem, o que de certo modo era. Almejava a grandeza, contudo
(como diz em Roland Barthes por Roland Barthes) sentia estar sempre em
risco de sofrer uma “recaída para o menor, para o velho que ele é, quando
‘se abandona a si mesmo’”. Em seu temperamento e na infatigável sutileza
de sua mente, havia algo que recordava Henry James. A dramaturgia das
ideias se rendia à dramaturgia do sentimento; seus interesses mais
profundos eram coisas quase inefáveis. Sua ambição tinha algo do páthos
jamesiano, assim como suas dúvidas sobre si mesmo. Se pudesse escrever
um grande romance, era de imaginar algo mais semelhante a Henry James
do que a Proust.
Era difícil adivinhar sua idade. Melhor dizendo, Barthes parecia não ter
idade — apropriadamente, a cronologia de sua vida era enviesada. Embora
passasse muito tempo com jovens, nunca afetava as informalidades
contemporâneas da juventude. Mas não parecia ser velho, conquanto seus
movimentos fossem lentos e seu modo de se vestir fosse professoral. Era
um corpo que sabia como descansar: como observou García Márquez, um
escritor precisa saber descansar. Era muito industrioso, se bem que bastante
sibarita. Tinha uma preocupação intensa, mas organizada, de receber uma
ração regular de prazer. Foi doente (tuberculose) por muitos anos, quando
jovem, e dava a impressão de ter entrado de posse de seu corpo numa data
relativamente tardia — o mesmo se pode dizer de sua mente e de sua
produtividade. Tinha revelações sensuais no exterior (Marrocos, Japão); aos
poucos, e de forma um tanto tardia, assumiu os consideráveis privilégios
sexuais de que um homem com seus gostos sexuais e com sua enorme
celebridade pode dispor. Havia nele algo de infantil, na ansiedade, no corpo
gorducho, na voz suave, na pele linda, na concentração em si mesmo.
Gostava de se demorar em cafés, na companhia de estudantes; queria ser
levado a bares e discotecas — mas, à parte as transações sexuais, seu
interesse por alguém tendia a ser o interesse que esse alguém tinha por ele.
(“Ah, Susan. Toujours fidèle” foram as palavras com que me cumprimentou,
afetuosamente, quando nos vimos pela última vez. Eu era, eu sou.)
Barthes deixava claro haver algo de infantil em sua insistência, que
compartilhava com Borges, em dizer que ler era uma forma de felicidade,
uma forma de alegria. Havia também algo bem pouco inocente na
exigência, na contundência do clamor sexual do adulto. Com sua
capacidade ilimitada de autorreferência, ele inscrevia a invenção do sentido
na busca do prazer. As duas eram identificadas: ler como jouissance (a
palavra francesa para “alegria”, que também significa “gozar”); o prazer do
texto. Isso é típico demais. Como um voluptuoso da mente, era um grande
conciliador. Tinha pouca sensibilidade para o trágico. Também sempre
encontrava uma vantagem na desvantagem. Embora ecoe muitos temas
perenes da crítica cultural moderna, era tudo menos uma pessoa de mente
catastrofista. Sua obra não apresenta nenhuma visão de juízos finais, de fim
da civilização, da inevitabilidade do barbarismo. Nem mesmo é elegíaca.
Antiquado em muitos de seus gostos, sentia-se nostálgico em relação ao
decoro e à cultura literária da antiga ordem burguesa. Mas encontrava muita
coisa que o reconciliava com a ordem moderna.
Extremamente cortês, um pouco desinteressado das coisas mundanas,
adaptável — detestava violência. Tinha olhos lindos, sempre tristes. Havia
algo de melancólico em toda conversa sua sobre prazer; Fragmentos de um
discurso amoroso é um livro muito triste. Mas conheceu o êxtase e queria
celebrá-lo. Era grande amante da vida (e negador da morte); o propósito de
seu romance não escrito, disse ele, era louvar a vida, exprimir gratidão por
estar vivo. Na grave atividade do prazer, no jogo esplêndido de sua mente,
havia sempre aquela contracorrente profunda de páthos — que se tornou
mais aguda, com sua morte prematura, atormentadora.

(1980)
A mente como paixão

Não posso me tornar modesto: coisas demais queimam


dentro de mim; as velhas soluções estão se desintegrando;
nada se fez ainda com as novas. Portanto, eu começo em
toda parte ao mesmo tempo, como se eu tivesse um século à
minha frente.

Canetti, 1943

O discurso que Elias Canetti fez em Viena, por ocasião do


quinquagésimo aniversário de Hermann Broch, em novembro de 1936,
formula intrepidamente alguns dos temas característicos de Canetti e é um
dos mais belos tributos que um escritor jamais prestou a outro. Esse tributo
cria os termos de uma sucessão. Quando encontra em Broch os atributos
necessários de um grande escritor — é original, sintetiza sua época, opõe-se
a ela —, Canetti delineia os parâmetros com os quais ele mesmo se
comprometeu. Quando saúda Broch por chegar aos cinquenta anos (Canetti
tinha 31) e afirma que isso devia corresponder apenas à metade do que
devia ser a vida humana, ele confessa que detesta a morte e almeja a
longevidade, que é a marca registrada de sua obra. Quando exalta a
insaciabilidade intelectual de Broch, invocando sua visão de algum estado
da mente livre de grilhões, Canetti atesta os próprios apetites igualmente
fervorosos. E, com a magnanimidade de sua homenagem, adiciona mais um
elemento a esse retrato do escritor como nobre adversário de sua época: o
escritor como um nobre admirador.
Seu elogio a Broch revela muito sobre a pureza da posição moral e a
intransigência a que Canetti aspira, assim como sobre seu desejo de
modelos fortes e até avassaladores. Ao escrever em 1965, ele evoca os
paroxismos de admiração que sentia por Karl Kraus na década de 1920,
quando estudante em Viena, a fim de defender o valor, para um escritor
sério, de viver, pelo menos por um tempo, sob o domínio da autoridade de
outro: o ensaio sobre Kraus é, na verdade, sobre a ética da admiração. Ele
aprecia ser desafiado por inimigos valorosos (Canetti aponta alguns
“inimigos” — Hobbes e Maistre — entre seus escritores prediletos); gosta
de ser revigorado por um padrão inalcançável, humilhante. Sobre Kafka, a
mais insistente de suas admirações, ele observa: “Nós nos tornamos bons ao
ler Kafka, sem nos orgulharmos disso”.
Tão dedicada é a relação de Canetti com o dever e o prazer de admirar os
outros, tão meticuloso é seu senso da vocação de escritor, que a humildade
— e o orgulho — o tornam extremamente autocentrado, porém de forma
caracteristicamente impessoal. Sua preocupação repousa em ser alguém que
ele mesmo seja capaz de admirar. Essa é uma preocupação primordial em A
província do homem, seleção de suas anotações feitas em cadernos entre
1942 e 1972, tempo durante o qual, em sua maior parte, esteve preparando e
escrevendo seu reconhecido Massa e poder (1960). Nessas notas ligeiras,
Canetti constantemente instiga a si mesmo com o exemplo dos grandes
mortos, identificando a necessidade intelectual daquilo que ele empreende,
verificando sua temperatura mental, tremendo de pavor à medida que o
calendário vai deixando suas folhas caírem.
Outros traços acompanham o fato de ser um admirador seguro de si e
generoso: o medo de não ser insolente ou ambicioso o bastante, a
impaciência com o meramente pessoal (sinal de uma personalidade forte,
como afirma Canetti, é o amor pelo impessoal) e a aversão à autopiedade.
No primeiro volume de sua autobiografia, A língua absolvida (1977), para
contar sobre sua vida, Canetti escolhe retratar as pessoas que admirou, as
pessoas com quem aprendeu. E relata com fervor como as coisas agiam a
favor dele e não contra ele; sua história é a de uma libertação: uma mente
— uma linguagem — uma língua “absolvida” para vagar pelo mundo.

Esse mundo tem uma geografia mental complexa. Nascido em 1905,


numa família sefardita dispersa, depois reagrupada na Bulgária (seu pai e
seus avós paternos provinham da Turquia), Canetti teve uma infância rica
em deslocamentos. Viena, onde o pai e a mãe frequentaram a escola, era a
capital mental de todos os lugares, inclusive a Inglaterra, para onde sua
família se mudou quando ele tinha seis anos; Lausanne e Zurique, onde fez
uma parte de seus estudos; e temporadas em Berlim, no fim da década de
1920. Foi para Viena que a mãe o levou, assim como os dois irmãos
menores, depois que o pai morreu em Manchester, em 1912; e foi de lá que
emigrou em 1938, após passar um ano em Paris e mais tarde mudar-se para
Londres, onde vive, desde então. Só no exílio, notou ele, nos damos conta
de como “o mundo sempre foi um mundo de exílios” — observação
característica, uma vez que retira da condição de Canetti parte de sua
particularidade.
Quase por direito de nascença, ele tem a relação facilmente generalizada
do escritor eLivros com o lugar: um lugar é uma língua. E saber muitas
línguas é uma forma de reivindicar muitos lugares como seu território. Um
exemplo da família (seu avô paterno se vangloriava de saber dezessete
idiomas), a mistura local (na cidade portuária do Danúbio onde nasceu, diz
Canetti, era possível ouvir sete ou oito línguas todos os dias) e a velocidade
de sua infância facilitaram ainda mais essa relação de avidez com a
linguagem. Viver era aprender línguas — as suas eram o ladino, o búlgaro,
o alemão (línguas que seus pais usavam para falar um com o outro), inglês,
francês — e estar em “toda parte”.
O fato de o alemão ter se tornado a língua de sua mente confirma a falta
de lugar de Canetti. Os tributos piedosos à inspiração de Goethe, escritos
em seus cadernos enquanto as bombas da Luftwaffe caíam em Londres
(“Se, apesar de tudo, eu sobreviver, deverei isso a Goethe”), atestam essa
lealdade à cultura alemã que o manteria para sempre como um estrangeiro
na Inglaterra — ele já passou mais da metade de sua vida no país —,
“porque sou judeu”, anotou em 1944. Com essa decisão, diferente daquela
tomada pela maioria dos intelectuais judeus refugiados de Hitler, Canetti
optou por manter-se sem a mancha do ódio, um filho agradecido da cultura
alemã, que desejava fazer dela algo que pudesse continuar admirando. E
conseguiu.
Canetti é tido como o modelo de um personagem filósofo que surge em
alguns dos primeiros romances de Iris Murdoch, como Mischa Fox em
Mischa, o encantador (dedicado a ele), personagem cuja audácia e
superioridade, manifestadas sem esforço, constituem um enigma para seus
amigos intimidados.11 Tomado exteriormente, esse retrato sugere a que
ponto Canetti devia parecer exótico a seus admiradores ingleses. O artista
que é também um erudito (ou vice-versa), e cuja vocação é a sabedoria, não
constitui uma tradição que tenha abrigo na Inglaterra, apesar dos numerosos
intelectuais eLivross das tiranias mais implacáveis deste século que
carregaram sua cultura sem par, seus projetos imperturbáveis de grandeza,
para as ilhas de língua inglesa, pequenas e grandes, de cultura mais
modesta, situadas à margem da catástrofe europeia.
Retratos extraídos do interior, com ou sem as pungentes inflexões do
exílio, tornaram familiar o modelo do intelectual itinerante. Ele (pois o tipo
é masculino, é claro) é judeu, ou semelhante a um judeu; policultural,
inquieto, misógino; um colecionador; dedicado à autotranscendência, com
desprezo pelos instintos; sobrecarregado de livros e animado pela euforia
do conhecimento. Sua verdadeira tarefa não é exercer seu talento para a
explicação, e sim, como testemunha de uma época, estabelecer padrões de
desespero mais amplos e mais edificantes. Como excêntrico recluso,
constitui uma das maiores realizações na vida e nas letras na imaginação do
século XX, um autêntico herói sob o disfarce de um mártir. Embora retratos
dessa figura tenham surgido em todas as literaturas europeias, algumas
figuras alemãs alcançaram autoridade notável — O lobo da estepe, certos
ensaios de Benjamin; ou uma desolação notável — o único romance de
Canetti, Auto de fé, e, recentemente, dois romances de Thomas Bernhard,
Korrektur (Correção) e Der Weltverbesserer (O aperfeiçoador do mundo).
Auto de fé — o título em alemão é Die Blendung (A cegueira) — retrata
o homem recluso como um ingênuo intoxicado por livros, que precisa
passar por uma humilhação épica. O sereno e celibatário professor Kien,
renomado sinólogo, vive escondido em seu apartamento do último andar, na
companhia de seus 25 mil livros — livros sobre todos os assuntos, que
alimentam uma mente de avidez insaciável. Ele ignora como a vida é
horrível; continuará a fazê-lo, até separar-se de seus livros. O apego aos
bens materiais e a hipocrisia surgem na forma de uma mulher, o eterno
princípio da antimente, nessa mitologia do intelectual: o estudioso, recluso
no céu, casa-se com sua arrumadeira, personagem tão monstruoso quanto as
pinturas de George Grosz ou Otto Dix — e vê-se arremessado para dentro
do mundo.
Canetti conta que, inicialmente, concebeu Auto de fé — quando tinha 24
anos — como um livro de uma série de oito, nos quais o personagem
principal seria sempre um monomaníaco, e o ciclo inteiro teria o título de
“A comédia humana dos loucos”. Mas apenas foi escrito o romance sobre o
“homem-livro” (como Kien é chamado nos primeiros rascunhos), e não
aqueles sobre, digamos, o fanático religioso, o colecionador, o visionário da
tecnologia. Sob o disfarce de um livro a respeito de um maluco — ou seja,
uma hipérbole —, Auto de fé apresenta clichês familiares sobre intelectuais
pouco afeitos às coisas mundanas, pessoas fáceis de enganar, e é animado
por um ódio às mulheres excepcionalmente inventivo. É impossível não
encarar a perturbação de Kien como variações dos exageros mais
apreciados por seu autor. “A limitação a um particular, como se fosse tudo,
é desprezível demais”, escreveu Canetti — A província do homem é repleto
de declarações ao estilo de Kien. O autor dos comentários condescendentes
a respeito das mulheres preservados nesses cadernos deve ter apreciado
fabular os detalhes da misoginia delirante de Kien. E não podemos deixar
de supor que alguns métodos de trabalho de Canetti sejam evocados no
relato do romance sobre um estudioso fenomenal no exercício de seu ofício
obsessivo, à deriva num oceano de manias e de esquemas de organização.
De fato, ficaríamos surpresos ao saber que Canetti não tem uma biblioteca
grande, erudita, mas sem especialização, com a abrangência da apresentada
pela de Kien. Esse tipo de construção de biblioteca nada tem a ver com a
coleção de livros que Benjamin descreveu, memoravelmente, que é uma
paixão pelos livros como objetos materiais (livros raros, primeiras edições).
É, antes, a materialização de uma obsessão cujo ideal é pôr os livros no
interior da cabeça; a biblioteca verdadeira não passa de um sistema
mnemônico. Assim, Canetti põe Kien sentado em sua escrivaninha,
redigindo um artigo erudito, sem virar uma única página de seus livros,
exceto dentro da cabeça.
Auto de fé retrata os estágios da loucura de Kien como três relações entre
a “cabeça” e o “mundo” — Kien, recluso com seus livros, é “a cabeça sem
o mundo”; à deriva na cidade selvagem, que é “um mundo sem cabeça”; e
levado ao suicídio “pelo mundo na cabeça”. E tal linguagem não era
adequada apenas para o louco homem-livro; Canetti usou-a, mais tarde, em
seus cadernos, para descrever a si mesmo, como ao designar a própria vida
como nada mais do que uma tentativa desesperada de pensar sobre tudo,
“de modo que tudo se junte dentro da cabeça e assim se torne, novamente,
uma unidade” — e por isso, conta ele em A língua absolvida, sua mãe o
acusava de ser egoísta e irresponsável. Cobiçar, ansiar, desejar — são
relações apaixonadas, mas também aquisitivas, com o conhecimento e com
a verdade; Canetti recorda um tempo em que, nunca sem escrúpulos, ele
“chegava a inventar desculpas e raciocínios complicados para possuir
livros”. Quanto mais imatura é a avidez, mais radicais são as fantasias de
livrar-se do fardo dos livros e do estudo. Auto de fé, que termina com o
homem-livro imolando a si mesmo com seus livros, é a mais precoce e mais
crua dessas fantasias. Os escritos posteriores de Canetti projetam fantasias
de perturbações mais nostálgicas e cautelosas. Uma anotação de 1951: “Seu
sonho: saber tudo o que sabe e, ainda assim, não saber”.

Publicado em 1935 sob os elogios de Broch, Thomas Mann e outros,


Auto de fé foi o primeiro livro de Canetti (se não contarmos uma peça
escrita em 1932) e seu único romance, fruto de um gosto duradouro pela
hipérbole e do fascínio com o grotesco, que se tornou mais estático em
livros posteriores, consideravelmente menos apocalípticos. O todo-ouvidos
(1974) assemelha-se a uma destilação abstrata do ciclo de romances sobre
loucos que Canetti concebeu, antes dos trinta anos de idade. Esse livro
breve consiste em esquetes curtos de cinquenta formas de monomania, de
“personagens”, como o Cadáver-Esquivo, o Corredor-Divertido, o
Cheirador-Estreito, o Fala-Errado, o Administra-Desgraça; cinquenta
personagens e nenhum enredo. Os nomes toscos sugerem um grau de
autoconsciência exacerbado da invenção literária — visto que Canetti é um
escritor que questiona sem parar, do ponto de vista privilegiado do
moralista, a própria possibilidade de fazer arte. “Se conhecemos muita
gente”, escreveu ele anos antes, “parece quase uma blasfêmia inventar mais
gente.”
Um ano depois da publicação de Auto de fé, em sua homenagem a Broch,
Canetti cita a fórmula rigorosa desse autor: “A literatura é sempre uma
impaciência do conhecimento”. Entretanto, os dons de Broch para a
paciência eram abundantes o suficiente para ele produzir estes grandes
romances pacientes que são A morte de Virgílio e Os sonâmbulos e inspirar
uma inteligência esplendidamente especulativa. Canetti se preocupava com
o que podia ser feito com o romance, o que indica o teor de sua
impaciência. Para o autor, pensar é insistir; ele está sempre se propondo
opções, afirmando e reafirmando seu direito de fazer o que está fazendo.
Optou por embarcar no que chamou de “obra da vida” e desapareceu por 25
anos para incubá-la; não publicou nada, depois de 1938, quando partiu de
Viena (exceto uma segunda peça de teatro), até 1960, quando surgiu Massa
e poder. “Tudo” entrou em seu livro, diz ele.
Os ideais de paciência de Canetti e seu senso irrepreensível do grotesco
estão unidos em suas impressões de uma viagem a Marrocos, As vozes de
Marrakech (1967). As vinhetas de sobrevivência mínima do livro
apresentam o grotesco como uma forma de heroísmo: um patético burro
esquelético, com uma ereção enorme; o mais miserável dos mendigos,
crianças cegas pedindo esmola e, terrível de imaginar, uma trouxa marrom
que emite um único som (ê-ê-ê-ê-ê) e que todo dia é levada a uma praça em
Marrakech para pedir esmolas e à qual o autor presta um tributo comovente
e característico: “Fiquei orgulhoso daquela trouxa, porque estava viva”.
A humildade é o tema de outra obra desse período, “Kafka, o outro
processo”, escrita em 1969, em que Canetti retrata a vida de Kafka como
uma ficção exemplar e oferece um comentário a respeito. Ele relata o
desastre prolongado do noivado de Kafka e Felice Bauer (as cartas de
Kafka para Felice tinham acabado de ser publicadas) como uma parábola da
vitória secreta de quem opta pelo fracasso, de quem “se afasta do poder, sob
todas as formas em que ele possa se manifestar”. Registra com satisfação
que Kafka muitas vezes se identifica com animais fracos e pequenos, e nele
encontra seus próprios sentimentos sobre a renúncia ao poder. A rigor, na
força de seu testemunho sobre o imperativo ético de tomar o lado dos
humilhados e dos impotentes, ele parece mais próximo de Simone Weil,
outra grande especialista em poder, a quem jamais se refere. Sua
identificação com os fracos, no entanto, se situa fora da história; o exemplo
típico da falta de poder para Canetti não é, digamos, o povo oprimido, mas
os animais. Como não é cristão, não concebe nenhuma intervenção ou
partidarismo militante. Tampouco é um resignado. Incapaz de indiferença
ou saciedade, Canetti propõe o modelo de uma mente que sempre reage,
registra os choques e tenta levar a melhor sobre eles.
A escrita aforística de seus cadernos é o conhecimento rápido — em
contraste com o conhecimento vagaroso destilado em Massa e poder.
“Minha tarefa”, escreveu ele em 1949, um ano depois de começar a redigir
o livro, “é mostrar como o egoísmo é complexo.” Trata-se de um livro
muito tenso para um volume tão longo. Sua rapidez está em conflito com
sua tenacidade. O escritor laborioso e assertivo que toma a iniciativa de
escrever um volume que vai “agarrar este século pela garganta” interfere
em um escritor conciso — e dele sofre interferências — que é mais jocoso,
mais insolente, mais desconcertado, mais mordaz.
O caderno é o suporte literário perfeito para um eterno estudante, alguém
que não tem assunto ou, melhor dizendo, cujo assunto é “tudo”. Permite
anotações de qualquer extensão, formato, grau de impaciência e rudeza,
mas sua forma ideal é a do aforismo. A maioria das anotações de Canetti
adota os temas tradicionais dos aforistas: as hipocrisias da sociedade, a
vaidade dos desejos humanos, a farsa do amor, as ironias da morte, o prazer
e a necessidade da solidão e as complexidades dos próprios processos de
pensamento. A maioria dos grandes aforistas é composta de pessimistas,
escarnecedores da insensatez humana. (“Os grandes escritores de aforismos
dão a impressão de que se conheciam muito bem”, anotou Canetti.) O
pensamento aforístico é informal, insociável, contestador, orgulhosamente
egoísta. “Precisamos ter amigos sobretudo para sermos insolentes — ou
seja, para sermos nós mesmos”, registra ele: aí está o autêntico tom do
aforista. O caderno retém esse eu idealmente insolente, eficaz, que
construímos para lidar com o mundo. Por meio da disjunção de ideias e
observações, por meio da brevidade de sua expressão, por meio da ausência
de explicações úteis, o caderno faz do pensamento algo leve.
Apesar de ter muito do temperamento do aforista, Canetti pode ser tudo,
menos um intelectual dândi. (É o oposto, digamos, de Gottfried Benn.) De
fato, a grande limitação de sua sensibilidade é a ausência do mais leve traço
do esteta. Canetti não demonstra nenhum amor à arte como tal. Apesar de
sua lista de Grandes Escritores, em sua obra não constam pintura, teatro,
cinema, dança nem outras figuras familiares da cultura humanista. Ele
parece se posicionar solenemente bem acima das ideias impostas de
“cultura” ou “arte”. Não ama nada que a mente fabrique para si mesma.
Portanto, sua escrita contém pouca ironia. Ninguém afetado pela
sensibilidade estética teria escrito, com severidade, “o que muitas vezes me
aborrece em Montaigne é a gordura nas citações”. Não há nada no
temperamento de Canetti que permita alguma receptividade ao surrealismo,
e isso para mencionar apenas a opção moderna mais persuasiva para o
esteta. Tampouco, ao que parece, foi ele alguma vez afetado pela tentação
da esquerda.
Esclarecedor dedicado, ele descreve o alvo de sua luta como a única fé
que restou intacta após o Iluminismo, “a mais absurda de todas, a religião
do poder”. Aqui está o lado de Canetti que recorda Karl Kraus, para quem a
vocação ética consiste em um protesto interminável. Mas nenhum escritor é
menos jornalista do que Canetti. Protestar contra o poder, o poder como tal;
protestar contra a morte (ele foi um dos que mais odiaram a morte, na
literatura) — esses são alvos grandes, inimigos em geral invencíveis. A
obra de Kafka é descrita por ele como uma “refutação” do poder, e esse é
mesmo seu objetivo no livro Massa e poder. Toda a sua obra, no entanto,
tem por objetivo uma refutação da morte. Uma refutação parece significar,
para Canetti, uma insistência exagerada. Ele insiste em que a morte é
inaceitável; inassimilável, porque é aquilo que se situa fora da vida; injusta,
porque limita a ambição e a insulta. E se recusa a compreender a morte,
como Hegel sugeriu, como algo que está dentro da vida — como a
consciência da morte, da finitude, da mortalidade. Em matéria de morte,
Canetti é um materialista incorrigível, horrorizado, ferrenhamente
quixotesco. “Ainda não consegui nenhum sucesso contra a morte”, escreveu
em 1960.
Em A língua absolvida, Canetti se mostra ansioso para fazer justiça a
todos que admira, e isso pode ser considerado uma forma de manter as
pessoas vivas. Como é típico, ele entende isso literalmente. Ao expor sua
relutância costumeira de se reconciliar com a extinção, recorda um
professor do colégio interno e conclui: “Caso ele ainda esteja no mundo,
hoje, aos noventa ou cem anos de idade, eu gostaria que soubesse como o
reverencio”.
O primeiro volume de sua autobiografia é dominado pela história de uma
admiração profunda: a de Canetti pela mãe. É o retrato de uma daquelas
grandes mães professoras, uma fanática da alta cultura europeia, atuante e
segura de si, antes da época que transformaria a mãe numa tirana egoísta e o
filho num “superdotado”, para usar o rótulo grosseiro que transmite o
desdém contemporâneo pela precocidade e pelo ardor intelectual.
“A mãe, cuja veneração suprema voltava-se aos grandes escritores”, foi a
admiradora primal; e uma promotora apaixonada, implacável, dos objetos
de suas admirações. A educação de Canetti consistiu numa imersão em
livros e na sua amplificação, por meio de conversas. Havia leituras em voz
alta à noite, conversas tempestuosas sobre tudo o que liam, sobre escritores
que os dois concordavam em venerar. Muitas descobertas foram feitas
separadamente, mas eles tinham de admirar em uníssono, e qualquer
divergência era decidida por meio de debates dilacerantes, até que um ou
outro cedesse. Os critérios de admiração da mãe criavam um mundo tenso,
definido por lealdades e traições. Cada nova admiração poderia pôr a vida
de um dos dois em questão. Canetti descreve a mãe perturbada e exaltada
durante uma semana, depois de ouvir A paixão segundo são Mateus e, por
fim, em lágrimas, porque temia que Bach a tivesse levado a desejar apenas
ouvir música e mais nada e que, assim, “não haveria mais lugar para
livros”. Canetti, aos treze anos, a consola e anima, dizendo que ela ainda vai
querer ler.
Ao testemunhar, “com assombro e admiração”, os sobressaltos e as
contradições ferozes da personalidade da mãe, Canetti não subestima sua
crueldade. Fatidicamente, o escritor moderno favorito dela foi, por muito
tempo, Strindberg; em outra geração, provavelmente teria sido D. H.
Lawrence. A ênfase da mãe na “construção do personagem” não raro levava
essa leitora fervorosa a repreender o filho estudioso por perseguir o
“conhecimento morto”, por evitar a “dura” realidade, por deixar que os
livros e as conversas o tornassem “efeminado”. (Ela desprezava as
mulheres, relata Canetti.) Ele conta como, às vezes, se sentia aniquilado
pela mãe, para depois transformar isso numa libertação. À medida que
afirmava em si mesmo a capacidade de comprometimento fervoroso da
mãe, Canetti optava por revoltar-se com o caráter febril dos entusiasmos
dela e com a exclusividade exacerbada de sua voracidade. A paciência
(“paciência monumental”), a firmeza e a universidade de interesse
tornaram-se seus objetivos. O mundo da mãe não tinha animais — só
grandes homens; o de Canetti terá ambos. A mãe só se interessa por
literatura e desdenha a ciência; a partir de 1924, ele vai estudar química na
Universidade de Viena e obtém o doutorado em 1929. A mãe zomba de seu
interesse por povos primitivos; quando se prepara para escrever Massa e
poder, Canetti confessa: “Um objetivo sério de minha vida é conhecer todos
os mitos de todos os povos”.
Canetti rejeita o papel de vítima. Há muita nobreza no retrato que traça
da mãe. Esse retrato também reflete algo como uma política do triunfalismo
— uma firme rejeição da tragédia, do sofrimento irremediável, que parece
relacionar-se com sua recusa da finitude, da morte, e do qual provém boa
parte da energia do escritor: sua capacidade insaciável de admiração e de
entusiasmo e seu desprezo civilizado pela atitude queixosa.
A mãe de Canetti era retraída — a carícia mais ligeira era um
acontecimento. Mas sua conversa — debater, intimidar, refletir, recontar sua
vida — era copiosa, torrencial. A língua era o veículo da paixão de ambos:
palavras e mais palavras. Com a língua, Canetti fez seu “primeiro
movimento independente” da mãe: aprender o alemão suíço (ela detestava
dialetos “vulgares”) quando ele partiu para o colégio interno aos catorze
anos. E, por meio da língua, mantinha-se ligado a ela: escrevendo uma
tragédia em latim, em versos, em cinco atos (com uma tradução para o
alemão nas entrelinhas, para ajudar a mãe, em um texto que encheu 121
páginas), dedicada a ela, para quem enviou o texto e de quem cobrou um
comentário minucioso.
Canetti parece ávido para enumerar as muitas habilidades que deve ao
exemplo e aos ensinamentos da mãe — inclusive aqueles que desenvolveu
para se opor a ela, generosamente computados como dons maternos:
obstinação, independência intelectual, rapidez de pensamento. Canetti
também especula que a vivacidade do idioma ladino, que ele falava quando
criança, o ajudava a pensar depressa. (Para o precoce, pensar é uma forma
de rapidez.) O escritor apresenta um relato complexo do processo
extraordinário que é o aprendizado para uma criança intelectualmente
precoce — mais completo e mais instrutivo do que os relatos que
encontramos, digamos, na Autobiografia de Mill ou em As palavras de
Sartre. Pois as aptidões de Canetti como admirador refletem destrezas
incansáveis como aprendiz; o primeiro não pode ser profundo sem o
segundo. Como um aprendiz excepcional, sua lealdade para com os
professores é irrepreensível, com aquilo que eles fazem de bom, ainda que
(ou sobretudo quando) o fazem inadvertidamente. O professor do colégio
interno a quem ele “reverencia” ganhou sua lealdade ao se mostrar brutal
durante a visita escolar a um matadouro. Forçado por ele a encarar uma
visão especialmente horripilante, Canetti aprendeu que o assassinato de
animais era algo que “eu não estava destinado a admitir”. Sua mãe, mesmo
quando se comportava de maneira brutal, estava alimentando, com suas
palavras, o espírito alerta do filho. Canetti diz, com orgulho: “Acho
perigoso o conhecimento mudo”.

Canetti afirma que sua aptidão se volta mais para o ato de ouvir do que
para o de ver. Em Auto de fé, Kien exercita a cegueira, pois descobriu que
ela “é uma arma contra o tempo e o espaço; nosso ser é uma vasta
cegueira”. Em particular nas obras posteriores a Massa e poder — como
aquelas didaticamente intituladas As vozes de Marrakech, O todo-ouvidos,
A língua absolvida —, Canetti sublinha o órgão moralista, o ouvido, e
atenua o olho (enquanto continua a reverberar variações do tema da
cegueira). Ouvir, falar e respirar são elogiados toda vez que algo importante
está em jogo, ainda que na forma de metáforas do ouvido, da boca (ou da
língua) e da garganta. Em sua observação de que “a mais ruidosa passagem
na obra de Kafka fala dessa culpa a respeito dos animais”, o adjetivo em si
é uma forma de reiteração.
O que ouvimos são vozes — das quais o ouvido é a testemunha. (Canetti
não fala de música nem, a rigor, de nenhuma arte que não seja verbal.) O
ouvido é o sentido atento, mais humilde, mais passivo, mais imediato,
menos discriminador do que o olho. A desaprovação do olho por Canetti é
um aspecto de seu afastamento da sensibilidade do esteta, que afirma,
tipicamente, os prazeres e a sabedoria do visual, ou seja, das superfícies.
Em suas últimas obras, dar supremacia ao ouvido é um tema impertinente,
conscientemente arcaizante. De modo implícito, ele reitera o abismo arcaico
entre a cultura hebraica em oposição à grega, a cultura do ouvido em
oposição à do olho, e a moral em contrapartida à estética.
Canetti equipara conhecer e ouvir, ouvir e ouvir tudo e, ainda assim, ser
capaz de reagir. As impressões exóticas armazenadas durante sua estada em
Marrakech são unificadas pelo teor de atenção às “vozes” que o autor tenta
evocar em si mesmo. A atenção é o tema formal do livro. Ao encontrar a
pobreza, a miséria, a deformidade, dedica-se a ouvir, ou seja, a prestar
atenção às palavras, gritos e sons inarticulados “no limiar da vida”. Seu
ensaio sobre Kraus retrata alguém que ele considera ideal como ouvinte e
também como voz. Canetti afirma que Kraus vivia assombrado por vozes;
que seu ouvido estava constantemente aberto; que o “verdadeiro Karl Kraus
era o falante”. Descrever um escritor como uma voz se tornou um clichê tão
grande que é possível não perceber a força — e a literalidade característica
— do que Canetti quer dizer. Segundo seus critérios, a voz equivale a uma
presença irrefutável. Tratar alguém como uma voz é lhe garantir autoridade;
afirmar que alguém ouve significa que a pessoa ouve o que deve ser ouvido.

A exemplo de um estudioso num conto de Borges que mistura erudição


real e imaginária, Canetti tem um fraco por mesclas extravagantes de
conhecimento, classificações excêntricas e mudanças impetuosas de tom.
Desse modo, Massa e poder — em alemão, Masse und Macht — propõe
analogias entre fisiologia e zoologia para explicar o comando e a
obediência; e mostra-se original ao máximo quando amplia a noção de
multidão para incluir unidades coletivas, não compostas de seres humanos,
que “recordam” a multidão, dão “a impressão de ser uma multidão” e que
“constituem um símbolo para ela, no mito, no sonho, no discurso e na
canção”. (Entre tais unidades — no engenhoso catálogo de Canetti — estão
o fogo, a chuva, os dedos da mão, o enxame de abelhas, os dentes, a
floresta, as serpentes de um delirium tremens.) Boa parte de Massa e poder
se apoia, de forma latente ou inadvertida, em imagens da ficção científica
de coisas e de partes de coisas que se tornam misteriosamente autônomas;
de movimentos, ritmos e volumes imprevisíveis. Canetti transforma o
tempo (história) em espaço, com o que uma série bizarra de entidades
biomórficas — as várias formas da Grande Besta, a Multidão — se
entretém. A multidão se move, emite, cresce, se expande, se contrai. Suas
opções vêm em pares: as multidões, aponta Canetti, são rápidas e lentas,
rítmicas e estagnadas, fechadas e abertas. O bando (outra versão da
multidão) lamenta, preda, é tranquilo, é exterior ou interior.
Como explicação da psicologia e da estrutura da autoridade, Massa e
poder remete à discussão do século XIX sobre multidões e massas, com o
propósito de expor sua poética de pesadelo político. A condenação da
Revolução Francesa e, mais tarde, da Comuna era a mensagem dos livros
daquele século sobre multidões (eles eram tão comuns, na época, quanto
estão fora de moda hoje), de A história das ilusões e loucura das multidões
(1841), de Charles Mackay, até A multidão (1895), livro que Freud
admirava, e A psicologia das revoluções (1912), de Le Bon. No entanto, se
os escritores anteriores se contentavam em afirmar a patologia da multidão
e tecer moralizações a respeito, Canetti tem a intenção de explicar, e
exaustivamente, por exemplo, a destrutividade da multidão (“muitas vezes
mencionada como sua qualidade mais saliente”, diz ele) por meio de seus
paradigmas biomórficos. E, à diferença de Le Bon, que atacava a revolução
e defendia o status quo (considerado por esse autor uma ditadura menos
opressiva), Canetti apresenta um dossiê contra o poder em si.
Compreender o poder analisando a multidão, em detrimento das noções
de “classe” ou “nação”, consiste precisamente em insistir numa
compreensão a-histórica. Hegel e Marx não são mencionados, não porque
Canetti seja tão autoconfiante que não se digne a citar os nomes de
costume, mas sim porque as implicações de sua argumentação são
agudamente anti-hegelianas e antimarxistas. Seu método a-histórico e seu
temperamento político conservador o levam antes para perto de Freud —
embora ele não seja um freudiano. Canetti é aquilo que Freud poderia ter
sido, se não fosse psicólogo: usando muitas fontes que eram importantes
para Freud — a autobiografia do psicótico juiz Schreber, estudos de
antropologia e de história das religiões antigas, a teoria das multidões de Le
Bon —, ele chega a conclusões muito diferentes sobre a psicologia de grupo
e a formação do ego. De maneira similar a Freud, Canetti tende a encontrar
na religião o protótipo do comportamento da multidão (ou seja, irracional),
e boa parte de Massa e poder é, na verdade, um discurso racionalista sobre
religião. Por exemplo, o que Canetti chama de bando queixoso não passa de
outro nome para as religiões do lamento, das quais faz uma análise
deslumbrante, contrastando os andamentos vagarosos da piedade e do ritual
católicos (que expressam o eterno temor da Igreja diante da multidão) com
as lamentações frenéticas do ramo xiita do islã.
Assim como Freud, Canetti também dilui a política na patologia, tratando
a sociedade como uma atividade mental — bárbara, é claro — que deve ser
decodificada. Desse modo, ele se move, sem alargar os passos, da ideia de
multidão para o “símbolo da multidão” e analisa o agrupamento social e as
formas de comunidade como transações de símbolos que a representam. O
toque final dessa análise parece ter sido alcançado quando Canetti posiciona
a Revolução Francesa em seu lugar, com a opinião de que é menos
interessante como erupção do destrutivo do que como “símbolo da multidão
nacional” para os franceses.
Para Hegel e seus sucessores, o histórico (o lar da ironia) e o natural são
dois processos radicalmente distintos. Em Massa e poder, a história é
“natural”. Canetti discute para chegar a ela, e não com base nela. Primeiro,
vem a análise da multidão; depois, como ilustração, a seção intitulada “A
multidão na história”. A história é usada apenas como fonte de exemplos —
um uso rápido. Canetti é parcial com as evidências dos povos sem história
(no sentido hegeliano), tratando as anedotas antropológicas como se
tivessem o mesmo valor ilustrativo de um evento ocorrido numa sociedade
histórica avançada.
Massa e poder é um livro excêntrico — literalmente excêntrico por conta
de seu ideal de “universalidade”, que leva seu autor a evitar a referência
óbvia: Hitler. Ele aparece de modo indireto, na importância central que
Canetti atribui ao caso do juiz Schreber. (Essa é a única referência que faz a
Freud — numa discreta nota de rodapé, na qual afirma que, se Freud tivesse
vivido um pouco mais, veria as ilusões paranoicas de Schreber com mais
pertinência: como um protótipo da mentalidade política especificamente
nazista.) Mas Canetti é genuinamente não eurocêntrico — uma de suas
maiores realizações como intelectual. Dialogando com o pensamento chinês
e também com o europeu, com o budismo e o islã e com o cristianismo, ele
desfruta de uma liberdade notável dos hábitos reducionistas de pensamento.
Parece incapaz de empregar o conhecimento psicológico de forma redutora;
o autor da homenagem a Broch não poderia estar pensando em nada tão
trivial como motivos pessoais. E combate, ademais, a redução ao histórico,
que seria o mais plausível. “Eu faria tudo para me livrar de meu hábito de
ver o mundo historicamente”, escreveu ele em 1950, dois anos depois de
começar a escrever Massa e poder.
Seu protesto contra ver historicamente não se direciona de maneira
contrária apenas ao mais plausível dos reducionismos. É também um
protesto contra a morte. Pensar sobre a história é pensar sobre a morte; e ser
lembrado, sem cessar, de que somos mortais. O pensamento de Canetti é
conservador no sentido mais literal. O pensamento — Canetti — não quer
morrer.

“Quero sentir antes dentro de mim tudo aquilo em que depois vou
pensar”, escreveu Canetti em 1943 e, para isso, ele precisa de uma vida
longa. Morrer precocemente significa não ter se assimilado por completo e,
portanto, não ter usado a mente como poderia. É quase como se tivesse de
manter sua consciência em permanente estado de avidez, para continuar
inconciliável com a morte. “É maravilhoso como nada se perde na mente”,
escreveu ele em seu caderno, no que deve ter sido um dos seus momentos
frequentes de euforia, “e só isso não bastaria como motivo para viver por
muito tempo ou para sempre?” Imagens recorrentes da necessidade de
sentir tudo dentro de si, de unificar tudo no interior da cabeça, ilustram as
tentativas de Canetti de “refutar” a morte, por meio do pensamento mágico
e do clamor moral.
O autor propõe um acordo com a morte. “Um século? Míseros cem anos!
Será isso demais para um intuito fervoroso?” Mas por que cem anos? Por
que não trezentos? — como a heroína de 337 anos de O caso Makropulos
(1922), de Karel Čapek. Nessa peça, uma personagem (uma socialista
“progressista”) descreve as desvantagens de um tempo normal de vida.

O que um homem pode fazer durante seus sessenta anos de vida? Que diversão ele tem?
O que pode aprender? Não vivemos o bastante para colher o fruto da árvore que
plantamos; nunca aprendemos todas as coisas que a humanidade descobriu antes de nós;
não completamos nosso trabalho nem deixamos nosso exemplo para o futuro; morremos
sem termos sequer vivido. Por outro lado, uma vida de trezentos anos permitiria que
uma pessoa de cinquenta anos fosse uma criança ou um aluno do primário; cinquenta
anos para conhecer o mundo e ver tudo o que nele existe; cem anos para trabalhar pelo
bem de todos; e depois, quando alcançarmos toda a experiência humana, mais cem anos
para viver na sabedoria, governar, ensinar e dar o exemplo. Ah, como a vida humana
seria valiosa, se durasse trezentos anos.

Isso soa como Canetti — exceto pelo fato de que ele não justifica seu
desejo de longevidade com nenhum apelo por um prazo maior a fim de
realizar boas ações. Tão vasto é o valor da mente que só ela é usada para se
opor à morte. Como a mente é tão real para Canetti, ele se atreve a desafiar
a morte e, como o corpo é tão irreal, ele nada percebe de desolador na
longevidade extrema. O escritor está mais do que disposto a viver como um
centenário; enquanto elabora fantasias, não pede aquilo que Fausto
desejava, a volta da juventude, nem aquilo que Emilia Makropulos recebeu
do pai alquimista, o prolongamento mágico da juventude. A juventude não
tem nenhum papel na fantasia de imortalidade de Canetti. Essa fantasia é a
longevidade pura, a longevidade da mente. Supõe-se simplesmente que, na
longevidade, o caráter tem tanto a ganhar quanto a mente: para Canetti, “a
brevidade da vida nos torna maus”. Emilia Makropulos sugere que a
longevidade nos tornaria piores:

Não se pode continuar amando por trezentos anos. E não se pode continuar tendo
esperança, criando, olhando para as coisas por trezentos anos. Não dá para suportar.
Tudo se torna maçante. É maçante ser bom e é maçante ser mau… E aí nos damos conta
de que, na verdade, nada existe… Estamos perto demais de tudo. Podemos ver algum
sentido em tudo. Pois tudo tem valor, já que aqueles nossos poucos anos de vida não
serão suficientes para satisfazer nossa diversão… É repulsivo pensar em como somos
felizes. E isso se deve simplesmente à ridícula coincidência de que vamos morrer em
breve. Adquirimos um interesse de mentira por tudo…

Mas essa condenação plausível é exatamente o que Canetti não pode


admitir. Ele não se perturba com a possibilidade do esgotamento do apetite,
a satisfação do desejo, a desvalorização da paixão. Nem dedica à
decomposição dos sentimentos um pensamento a mais do que o que destina
à decomposição do corpo: ele pensa apenas na persistência da mente.
Raramente alguém se sentiu tão à vontade na mente, com tão pouca
ambivalência.

Canetti sentiu, profundamente, a responsabilidade das palavras e grande


parte de sua obra faz o esforço de comunicar algo daquilo que aprendeu
sobre como prestar atenção ao mundo. Não existe nenhuma doutrina, mas
há uma boa dose de escárnio, premência, dor e euforia. A mensagem das
paixões da mente é a paixão. “Tento imaginar alguém dizendo para
Shakespeare: relaxe!”, diz o autor. Sua obra defende, com eloquência, a
tensão, o empenho, a seriedade moral e amoral.
Contudo, Canetti não é só mais um herói da vontade. Daí vem o atributo
inesperado e derradeiro ao grande escritor que ele encontra em Broch: e
esse escritor, nos diz ele, nos ensina a respirar. Canetti enaltece os escritos
de Broch por seu “rico lastro de experiência respiratória”. Foi o mais
profundo e mais estranho elogio feito por ele e, portanto, o elogio que
destinou também a Goethe (a mais previsível de suas admirações). Canetti
também lia Goethe como se dissesse: “Respire!”. Respirar pode ser a mais
radical de todas as ocupações, quando elaborada como libertação de outras
necessidades, como ter uma carreira, construir uma reputação, acumular
conhecimento. O que Canetti diz no fim desse ímpeto de admiração, sua
homenagem a Broch, sugere o que se deve admirar mais. A realização final
do admirador compenetrado é parar imediatamente de pôr em uso as
energias despertadas pelo admirado, cessar de preencher o espaço aberto
pelo admirado. Por meio disso, os admiradores talentosos se permitem
respirar, respirar mais profundamente. No entanto, para isso é necessário ir
além da avidez; identificar-se com algo além da realização, além do
acúmulo de poder.
(1980)
Notas

1. Leni Riefenstahl, Hinter der Kullissen des Reichparteitag-Films (Munique, 1935). Uma
fotografia na página 31 mostra Hitler e Riefenstahl debruçados sobre alguns projetos, com
a legenda: “Os preparativos para o Congresso do Partido foram feitos lado a lado com os
preparativos do trabalho de filmagem”. O comício ocorreu entre os dias 4 e 10 de
setembro; Riefenstahl relata que começou a trabalhar em maio, planejando sequência por
sequência e supervisionando a construção de complexas pontes, torres e trilhos para as
câmeras. No fim de agosto, Hitler foi a Nuremberg com Viktor Lutze, chefe da SA
[Sturmabteilung], “para uma inspeção e para dar as instruções finais”. Os 32 operadores de
câmera de Riefenstahl usavam uniformes da SA durante toda a filmagem, “sugestão do
chefe da equipe [Lutze], para que ninguém perturbasse a solenidade das imagens com
trajes civis”. A SS forneceu uma equipe de guardas.

2. Ver Hans Barkhausen, “Footnote to the History os Riefenstahl’s ‘Olympia’”, Film


Quarterly, outono de 1974 — um raro gesto de dissidência fundamentada, em meio ao
grande número de homenagens a Riefenstahl que, durante os últimos anos, surgiram em
revistas ocidentais sobre cinema.

3. Se quiserem outra fonte — pois hoje Riefenstahl afirma (numa entrevista para a revista
alemã Filmkritik, de agosto de 1972) que ela não escreveu nenhuma palavra de Hinter den
Kulissen des Reich-parteitag-Films e que nem sequer leu o texto, na ocasião —, há uma
entrevista em Völkischer Beobachter, datada de 23 de agosto de 1933, sobre sua filmagem
no comício de Nuremberg em 1933, na qual faz declarações semelhantes.
Riefenstahl e seus apologistas sempre falam de Triunfo da vontade como se fosse um
“documentário” independente e muitas vezes chamam a atenção para os problemas
técnicos que surgiram durante a filmagem para provar que a diretora tinha inimigos entre
as lideranças do Partido (o ódio de Goebbels), como se tais dificuldades não fossem parte
normal de qualquer filmagem. Uma das mais dóceis repaginações do mito de Riefenstahl
como mera documentarista — e inocente política — é o Filmguide to “Triumph of the
Will”, publicado pela Indiana University Press Filmguide Series, cujo autor, Richard
Meram Barsam, conclui seu prefácio exprimindo a “gratidão pela própria Leni Riefenstahl,
que cooperou com muitas horas de entrevistas, abriu seu arquivo para minha pesquisa e
mostrou um interesse genuíno por este livro”. Ela deve mesmo ter se interessado por um
livro cujo primeiro capítulo é “Leni Riefenstahl e o fardo da independência” e que tem
como tema “a crença de Riefenstahl de que o artista deve, a todo custo, permanecer
independente do mundo material. Em sua própria vida, ela alcançou a liberdade artística,
mas pagou um alto preço”. Etc.
Como antídoto, permitam-me citar uma fonte incontestável (pelo menos, ele não está
aqui para dizer que não escreveu isto) — Adolf Hitler. Em seu breve prefácio a Hinter den
Kulissen, Hitler descreve Triunfo da vontade como uma “glorificação absolutamente única
e incomparável do poder e da beleza de nosso Movimento”. E é mesmo.

4. É assim que Jonas Mekas (The Village Voice, 31 out. 1974) saúda a publicação de The
Last of the Nuba: “Riefenstahl continua sua celebração — ou será uma busca? — da beleza
clássica do corpo humano, a busca que começou em seus filmes. Ela está interessada no
ideal, no monumental”. Mekas, na mesma publicação, em 7 de novembro de 1974: “E aqui
está meu veredicto final sobre os filmes de Riefenstahl: se você for um idealista, verá
idealismo em seus filmes; se for um classicista, verá em seus filmes uma ode ao
classicismo; se for um nazista, verá em seus filmes o nazismo”.

5. Foi Genet, em seu romance Pompas fúnebres, que ofereceu um dos primeiros textos que
mostram a sedução erótica que o fascismo exercia numa pessoa não fascista. Outra
descrição veio de Sartre, um candidato bastante improvável para tais sentimentos e que
deve ter ouvido Genet falar do assunto. Em Com a morte na alma (1949), o terceiro
romance de sua obra em quatro partes Os caminhos da liberdade, Sartre descreve um de
seus protagonistas testemunhando a entrada do Exército alemão em Paris, em 1940:
“[Daniel] não tinha medo, ele se rendia confiante àqueles milhares de olhos, ele pensava:
‘Nossos conquistadores!’, e estava extremamente feliz. Fitava-os nos olhos, se deleitava
com seus cabelos perfeitos, seus rostos bronzeados com olhos que pareciam lagos de gelo,
seus corpos esbeltos, suas coxas incrivelmente compridas e musculosas. Ele murmurou:
‘Como são bonitos!’… Algo havia caído do céu: era a lei ancestral. A sociedade dos juízes
havia desmoronado, a sentença tinha sido apagada: aqueles espectrais soldadinhos cáqui,
os defensores dos direitos do homem, tinham sido derrotados… Uma sensação insuportável
e deliciosa se espalhou pelo seu corpo; ele mal conseguia enxergar direito; repetia,
ofegante: ‘Como se fosse de manteiga… eles estão entrando em Paris como se fosse de
manteiga’… Ele gostaria de ser mulher para jogar flores para eles”.

6. Asja Lacis e Benjamin se conheceram em Capri no verão de 1924. Ela era uma
revolucionária comunista da Letônia e diretora teatral, assistente de Brecht e de Piscator,
com quem Benjamin escreveu Nápoles em 1925 e para quem escreveu o Programa de um
teatro infantil proletário em 1928. Foi Lacis quem conseguiu um convite para Benjamin ir
a Moscou no inverno de 1926-7 e que o apresentou a Brecht, em 1929. Benjamin esperava
casar-se com ela, quando ele, afinal, se divorciou em 1930. Mas ela voltou para Riga e,
mais tarde, passou dez anos num campo de prisioneiros soviético.

7. Scholem afirma que o amor de Benjamin por miniaturas é subjacente a seu gosto por
manifestações literárias breves, patente em Rua de mão única. Pode ser; mas livros desse
tipo eram comuns na década de 1920, e aqueles textos curtos e independentes foram
apresentados num estilo de colagem especificamente surrealista. Rua de mão única foi
publicado por Ernst Rowohlt, em Berlim, em forma de folheto, com uma tipografia
destinada a evocar efeitos de choque publicitário; a capa era uma colagem fotográfica de
expressões agressivas em letras maiúsculas recortadas de anúncios de jornal, letreiros
oficiais e curiosidades. O trecho de abertura, em que Benjamin saúda a “linguagem de
prontidão” e denuncia “o pretensioso gesto universal do livro”, não faz muito sentido, a
menos que saibamos que tipo de livro Rua de mão única pretendia ser.

8. Carta de Adorno para Benjamin, escrita de Nova York no dia 10 de novembro de 1938.
Benjamin e Adorno se conheceram em 1923 (Adorno tinha vinte anos) e, em 1935,
Benjamin começou a receber uma pequena bolsa do Institut für Sozialforschung de Max
Horkheimer, do qual Adorno era membro.

9. “Em lugar de tentar apresentar a maior realidade possível fora de si mesmo”, escreveu
Jacques Rivière, o artista simbolista “tenta consumir tanto quanto possível dentro de si
mesmo […] oferece a mente como um tipo de teatro ideal, onde [os eventos] podem ser
representados sem se tornarem visíveis.” O ensaio de Rivière sobre o simbolismo, “Le
Roman d’aventure” (1913), é a melhor análise a esse respeito que conheço.

10. Por exemplo, na mesa de Baer, Syberberg coloca um pedaço de madeira da


Hundinghütte de Ludovico, sua cabana de madeira em Linderhof (que pegou fogo em
1945), inspirada nos projetos para o Ato I de A valquíria, em suas duas primeiras
montagens; em outros locais do cenário, há uma pedra de Bayreuth, uma relíquia da casa
de campo de Hitler em Berchtesgaden e outros tesouros. Numa ocasião, talismãs foram
fornecidos pelo ator: Syberberg pediu a Heller que trouxesse objetos preciosos para ele, e a
foto de Joseph Roth e um pequeno Buda levados pelo ator podem ser vistos apenas de
relance (caso alguém saiba que os objetos estão ali) sobre sua mesa, enquanto ele
pronuncia o monólogo do cosmos no fim da Parte II e o longo monólogo da Parte IV.

11.“O que é estranho nele?”, perguntou.


“Ah, não sei”, respondeu Annette. “Ele é tão…”
“Não o acho estranho”, disse Rainborough, depois de esperar em vão o adjetivo. “Só há
uma coisa de excepcional em Mischa, afora seus olhos: sua paciência. Tem sempre um
monte de esquemas à mão e é o único homem que conheço capaz de esperar anos.
Literalmente, para que um plano trivial amadureça.” Rainborough olhou para Annette com
hostilidade.
“É verdade que ele chega a gritar com as coisas que lê nos jornais?”, perguntou Annette.
“Eu diria que isso é muito improvável!”, respondeu Rainborough. Os olhos de Annette
estavam muito arregalados… (The Flight from the Enchanter. Nova York: Viking, 1956, p.
134.)
JIM CARTIER/ SCIENCE SOURCE/ FOTOARENA

SUSAN SONTAG nasceu em Nova York, em 1933, e morreu em 2004.


Cursou filosofia na Universidade de Chicago e fez pós-graduação em
Harvard. Seus livros foram traduzidos para mais de trinta línguas.
Escreveu ensaios e romances, além de dirigir filmes e peças. Dela, a
Companhia das Letras já publicou Sobre fotografia, Questão de ênfase e
A vontade radical, entre outros.
Copyright © 1972, 1973, 1975, 1976, 1978, 1980 by Susan Sontag
Todos os direitos reservados.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que


entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
Under the Sign of Saturn

Capa
Claudia Warrak

Preparação
Cláudia Cantarin

Revisão
Huendel Viana
Aminah Haman

Versão digital
Rafael Alt

ISBN 978-65-5782-470-2

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA SCHWARCZ S.A.

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