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Capa
Folha de rosto
Sumário
Dedicatória
Epígrafe
Sobre Paul Goodman
Conhecendo Artaud
Fascismo fascinante
Sob o signo de Saturno
O Hitler de Syberberg
Recordando Barthes
A mente como paixão
Notas
Sobre a autora
Créditos
para Joseph Brodsky
HAMM: Adoro as velhas perguntas.
(Com fervor.)
Ah, as velhas perguntas, as velhas respostas, não
existe nada como elas!
Descobri que não consigo escrever só seu prenome. Nós nos tratávamos
obviamente de Paul e Susan sempre que nos encontrávamos, porém, tanto
em minha cabeça como em conversas, ele nunca era Paul nem mesmo
Goodman, mas sempre Paul Goodman — o nome completo, com toda a
ambiguidade de sentimento e de familiaridade que essa forma implica.
A dor que sinto com a morte de Paul é mais aguda porque não éramos
amigos, embora coabitássemos alguns dos mesmos mundos. Conhecemo-
nos dezoito anos atrás. Eu tinha 21, era aluna de pós-graduação em
Harvard, com o sonho de morar em Nova York, e, numa viagem de fim de
semana à cidade, um conhecido de Paul levou-me ao apartamento da rua 23
onde Paul e a esposa estavam comemorando o aniversário dele.
Embriagado, esbravejava com voz rouca para que todo mundo ouvisse suas
aventuras sexuais e falou comigo apenas o tempo suficiente para ser
levemente grosseiro. A segunda vez que nos vimos foi quatro anos depois,
numa festa em Riverside Drive, na qual ele parecia mais contido, mas
também frio e fechado.
Em 1959, me mudei para Nova York e, daí em diante, durante os últimos
anos da década de 1960, nos vimos muitas vezes, embora sempre em
público — em festas promovidas por amigos em comum, em mesas-
redondas e seminários sobre o Vietnã, em passeatas e manifestações. Em
geral, eu fazia um esforço tímido para conversar com ele sempre que nos
encontrávamos, na esperança de poder lhe dizer, direta ou indiretamente,
como seus livros eram importantes para mim e como eu havia aprendido
muito com ele. Em todas as vezes, ele me rechaçava e eu me recolhia.
Amigos comuns me disseram que, de fato, ele não gostava de mulheres
como gente — apesar de abrir exceção para umas poucas específicas, é
claro. Resisti o mais que pude a essa hipótese (me parecia vulgar); depois,
enfim, me rendi a ela. Afinal, seus textos me passavam essa mesma
sensação: por exemplo, o principal defeito de Growing Up Absurd
[Amadurecimento absurdo], que pretende abordar os problemas da
juventude dos Estados Unidos, é que trata a juventude como se fosse
formada apenas por meninos adolescentes e homens jovens. Minha atitude,
quando nos encontrávamos, deixou de ser receptiva.
No ano passado, outro amigo em comum, Ivan Illich, me convidou para
ir a Cuernavaca na mesma ocasião em que Paul Goodman estava
participando de um seminário e comentei que eu preferia chegar depois que
Paul Goodman tivesse ido embora. Por conta de muitas outras conversas,
Ivan sabia como eu admirava a obra de Paul Goodman. Porém, o forte
prazer que eu sentia toda vez que pensava que ele estava vivo, saudável e
que escrevia nos Estados Unidos transformava numa verdadeira provação
toda situação em que eu me via na mesma sala que ele e, além disso, era
nítida minha incapacidade de estabelecer o mais leve contato. Nesse sentido
bastante preciso, portanto, Paul Goodman e eu não apenas não éramos
amigos, como, além disso, eu não gostava dele — a razão, como expliquei
muitas vezes, lamentando-me, enquanto ele estava vivo, era que eu tinha a
sensação de que ele não gostava de mim. Eu sempre soube a que ponto esse
desagrado comigo era patético e meramente formal. Não foi a morte de Paul
Goodman que, de uma hora para outra, me convenceu disso.
Ele tinha sido um herói para mim por tanto tempo que não fiquei nem um
pouco surpresa quando se tornou famoso, e sempre me surpreendeu que as
pessoas parecessem não lhe dar valor. O primeiro livro que li de Paul
Goodman — aos dezessete anos — foi uma coletânea de contos intitulada
The Break-Up of Our Camp [O fim do nosso acampamento], publicado pela
editora New Directions. Um ano depois, eu tinha lido tudo o que ele havia
publicado e, daí em diante, acompanhei toda a sua obra. Não existe outro
escritor americano vivo por quem eu tenha sentido essa curiosidade pura e
simples de ler, o mais rápido possível, tudo o que escrevesse, sobre
qualquer assunto. A razão principal não era que eu concordava com a maior
parte do que ele pensava; havia outros escritores com que eu concordava e
aos quais não fui tão fiel. O que me seduzia era aquela voz que ele tinha —
aquela voz direta, raivosa, vaidosa, generosa, americana. Se Norman Mailer
é o mais brilhante escritor de sua geração, certamente isso decorre da força
e da excentricidade de sua voz; no entanto, de certo modo, sempre achei
essa voz demasiado barroca, demasiado fabricada. Admiro Mailer como
escritor, mas não acredito em sua voz. A voz de Paul Goodman é autêntica.
Em nossa língua, desde D. H. Lawrence não havia uma voz tão
convincente, genuína e singular. A voz de Paul Goodman conferia a tudo o
que ele escrevia um toque de intensidade, de interesse, além de sua
estranheza e segurança próprias, aliciantes ao extremo. Seus escritos eram
uma mistura nervosa de tensão sintática e talento verbal; ele era capaz de
escrever frases de uma pureza de estilo esplêndida e linguagem vivaz, e
também podia escrever com tamanha negligência e deselegância que o
leitor chegava a imaginar que estava fazendo aquilo de propósito. Mas isso
não tinha importância. Era a sua voz, ou seja, sua inteligência e a poesia de
sua inteligência encarnada, que me mantinha presa como uma viciada fiel e
fervorosa. Embora com frequência ele não fosse gracioso como escritor, sua
escrita e seu pensamento tinham um toque de graça.
É difícil listar todas as maneiras pelas quais me sinto em dívida com ele.
Por vinte anos, ele foi para mim o mais importante escritor americano. Era
o nosso Sartre, o nosso Cocteau. Não tinha a inteligência teórica requintada
de Sartre; nunca chegou a tocar a fonte louca e opaca da fantasia genuína
que Cocteau tinha, ao praticar tantas formas de arte. No entanto, tinha dons
de que nem Sartre nem Cocteau dispunham: um sentimento intrépido sobre
o que é a vida humana, um fôlego e uma exigência de paixão moral. Sua
voz na página impressa é verdadeira, para mim, como ocorre com a voz de
pouquíssimos escritores — familiar, envolvente, exasperante. Desconfio
que, em seus livros, existia um ser humano mais nobre do que em sua vida,
algo que costuma acontecer com frequência na “literatura”. (Às vezes, é o
contrário, e a pessoa é mais nobre na vida real do que nos livros. Às vezes,
não existe quase nenhuma relação entre a pessoa nos livros e a da vida real.)
A leitura de Paul Goodman me energizava. Ele foi um dos poucos
escritores, vivos e mortos, que definiram para mim o valor de ser escritor e
de cuja obra extraí os critérios com que eu avaliava minha própria obra.
Nesse panteão diversificado e muito pessoal, havia alguns escritores
europeus vivos, mas nenhum escritor americano vivo, exceto ele. Tudo o
que ele fazia no papel me agradava. Eu o admirava quando se mostrava
teimoso, desastrado, melancólico, até equivocado. Seu egoísmo me deixava
mais comovida do que incomodada (como muitas vezes ocorre com Mailer,
quando o leio). Eu admirava sua inteligência, sua disposição de servir.
Tinha em alta conta sua coragem, que se revelava de tantas maneiras —
uma das mais admiráveis era a honestidade a respeito de sua
homossexualidade em Five Years, motivo pelo qual foi muito criticado por
amigos heterossexuais no mundo intelectual de Nova York; isso faz seis
anos, antes de o advento da Libertação Gay transformar a saída do armário
em algo sofisticado. Eu o apreciava quando falava de si mesmo e também
quando misturava seus tristes desejos sexuais com seus desejos sobre o
regime político. A exemplo de André Breton, com quem poderia ser
comparado em vários aspectos, Paul Goodman era um connoisseur de
liberdade, prazer, alegria. Lendo seus textos, aprendi muito sobre esses três
quesitos.
Esta manhã, ao começar a escrever este texto, enfiei a mão embaixo da
mesa junto à janela a fim de pegar papel para a máquina de escrever e vi
que um dos três livros em brochura soterrados pelos manuscritos era New
Reformation [Nova Reforma]. A despeito de eu estar tentando viver um ano
sem livros, um ou outro acabou se infiltrando, não sei como. Parece
conveniente que, mesmo aqui, neste quarto minúsculo em que os livros
estão proibidos, onde eu tento ouvir melhor minha voz e descobrir o que eu
penso de verdade e sinto de verdade, ainda existe pelo menos um livro de
Paul Goodman por perto, pois não houve nenhum apartamento em que
morei nos últimos 22 anos que não contivesse a maioria de seus livros.
Com ou sem seus livros, continuarei marcada por Paul Goodman.
Continuarei a lamentar que não esteja mais vivo para falar, em livros novos,
e que teremos de seguir em frente em nossas tentativas atabalhoadas de nos
ajudar, de dizer o que é verdadeiro, de libertar a poesia que tivermos em
nós, respeitar a loucura uns dos outros e o direito de estar errado, e cultivar
nossa ideia de cidadania, sem as provocações de Paul, sem suas explicações
pacientes e tortuosas de tudo, sem a graça do exemplo de Paul.
(1972)
Conhecendo Artaud
Fechar o abismo entre arte e vida destrói a arte, ao mesmo tempo que a
universaliza. No manifesto que Artaud escreveu para o teatro de Alfred
Jarry, fundado em 1926, dá as boas-vindas ao “descrédito em que todas as
formas de arte estão caindo sucessivamente”. Seu deleite pode ser
fingimento, mas seria incoerente da parte dele lamentar esse estado de
coisas. Uma vez que o critério dominante para uma arte passa a ser sua
fusão com a vida (ou seja, tudo, inclusive as outras artes), a existência de
uma forma de arte separada deixa de ser defensável. Além do mais, Artaud
assume que uma das artes existentes deverá, em breve, recuperar-se de sua
falta de vigor e tornar-se a forma de arte total, que absorverá todas as
outras. A obra da vida de Artaud pode ser descrita como a sequência de
seus esforços para formular e habitar sua arte-mestra, levando até o fim,
com heroísmo, sua convicção de que dificilmente a arte que ele buscava
poderia ser aquela — que envolvia só a língua — em que seu gênio estava
acima de tudo confinado.
Os parâmetros da obra de Artaud em todas as artes são idênticos às
distâncias críticas diferentes que ele mantém da ideia de uma arte que é
apenas língua — com as formas diversas de sua contínua “revolta contra a
poesia” (título de um texto em prosa que escreveu em Rodez, em 1944).
Cronologicamente, a poesia foi a primeira de muitas artes praticadas por
ele. Sobreviveram poemas escritos ainda em 1913, quando estava com
dezessete anos e frequentava o colégio em sua Marselha nativa; seu
primeiro livro, publicado em 1923, três anos depois de mudar-se para Paris,
foi uma coletânea de poemas; e foi a malsucedida submissão de alguns
poemas novos à Nouvelle Revue Française naquele mesmo ano que deu
lugar à sua célebre correspondência com Rivière. Mas Artaud logo
começou a descuidar-se da poesia em favor de outras artes. As dimensões
da poesia que ele era capaz de escrever na década de 1920 eram muito
reduzidas para aquilo que intui ser o parâmetro de uma arte-mestre. Nos
primeiros poemas, seu fôlego é curto; a forma lírica compacta que ele
emprega não oferece saída para sua imaginação discursiva e narrativa. Até
o grande surto de escrita no período entre 1945 e 1948, em seus últimos três
anos de vida, Artaud, naquela altura indiferente à ideia de poesia como
manifestação lírica fechada, encontra uma voz de grande fôlego, adequada
ao alcance de suas necessidades imaginativas — uma voz livre para
estabelecer formas de final aberto, como a poesia de Pound. Tal como
Artaud a concebia na década de 1920, a poesia nada tinha dessas
possibilidades ou adequações. Era pequena, e uma arte total tinha de ser, e
sentir-se, grande; tinha de ser uma performance multivocal, e não um objeto
lírico singular.
Todas as aventuras inspiradas pelo ideal de uma forma de arte total — na
música, na pintura, na escultura, na arquitetura ou na literatura —
conseguem, de um jeito ou de outro, teatralizar. Embora Artaud não
precisasse ser tão literal, faz sentido que, em idade ainda bem precoce, ele
tenha mudado seu foco explicitamente para as artes dramáticas. Entre 1922
e 1924, ele atuou em peças dirigidas por Charles Dullin e pelos Pitoëff e,
em 1924, também começou uma carreira de ator de cinema. Vale dizer que,
em meados da década de 1920, eram dois os candidatos plausíveis de
Artaud para a vaga de arte total: cinema e teatro. No entanto, já que não era
como ator, e sim como diretor, que esperava fomentar a candidatura
daquelas artes, em pouco tempo ele renunciou a uma delas — o cinema.
Artaud nunca obteve os meios para dirigir um filme próprio e viu suas
intenções traídas num filme de 1928, com outro diretor à frente, com base
em um de seus roteiros, A concha e o clérigo [de Germaine Dullac]. Sua
sensação de derrota foi reforçada em 1929 pela chegada do cinema falado,
uma guinada na história da estética dessa arte que Artaud equivocadamente
profetizou — a exemplo da maioria dos poucos espectadores que a haviam
levado a sério na década de 1920 — que poria fim à grandeza do cinema
como forma de arte. Ele continuou a representar em filmes até 1935, mas
com pouca esperança de ter uma chance de dirigir filmes próprios e sem
maiores reflexões acerca das possibilidades do cinema (que, a despeito do
desânimo de Artaud, persiste como o mais provável candidato do século ao
título de arte-mestre).
Do final de 1926 em diante, a busca de Artaud por uma forma de arte
total concentrou-se no teatro. Diferentemente da poesia, uma arte feita de
um material (palavras), o teatro usa uma pluralidade deles: palavras, luz,
música, corpos, móveis, roupas. Do mesmo modo, diferentemente do
cinema, uma arte que usa apenas uma pluralidade de linguagens (imagens,
palavras, música), o teatro é carnal, corporal. O teatro reúne os meios mais
diversos — linguagem gestual e verbal, objetos estáticos e movimento no
espaço tridimensional. Entretanto, não se torna uma arte-mestre meramente
pela abundância de meios. A tirania dominante de certos meios sobre outros
tem de ser subvertida criativamente. Assim como Wagner contestou a
convenção de alternar árias e recitativos, que implica uma relação
hierárquica de fala, canção e música orquestral, Artaud denunciou o
costume de todo elemento da encenação estar a serviço, de alguma maneira,
das palavras que os atores dizem uns para os outros. Ao atacar como falsas
as prioridades do teatro de diálogo, que subordinaram o teatro à “literatura”,
Artaud implicitamente eleva ao primeiro plano os meios que caracterizam
outras formas de representação dramática, como dança, oratório, circo,
cabaré, igreja, ginásio, sala de cirurgia hospitalar, tribunal de justiça.
Contudo, anexar os recursos de outras artes e de formas quase teatrais não
fará do teatro uma arte total. Uma arte-mestre não pode ser construída com
acréscimos; Artaud não está insistindo sobretudo em que o teatro incorpore
novos meios. Em vez disso, ele intenta purgar o teatro do que lhe é externo
ou fácil. Ao evocar um teatro em que o ator verbalmente orientado da
Europa seja treinado mais uma vez como se fosse um “atleta” do coração,
Artaud mostra seu gosto inveterado pelo esforço espiritual e físico — pela
arte como provação.
O teatro de Artaud é uma máquina tenaz para transformar as concepções
da mente em eventos inteiramente “materiais”, dentre os quais estão as
próprias paixões. Contra a prioridade multissecular que o teatro europeu
conferiu às palavras como meios de transmitir emoções e ideias, ele quer
mostrar a base orgânica das emoções e a fisicalidade das ideias — no corpo
dos atores. Seu teatro é uma reação contra o estado de subdesenvolvimento
em que os corpos (e as vozes, apartadas da fala) dos atores ocidentais
permaneceram por gerações, assim como ocorreu com as artes do
espetáculo. A fim de reformular o desequilíbrio que favorece a linguagem
verbal, Artaud propõe aproximar o treino dos atores do treino de
dançarinos, atletas, mímicos e cantores e “basear o teatro no espetáculo,
antes de tudo”, como afirma em seu “Segundo Manifesto do Teatro da
Crueldade”, publicado em 1933. Ele não está propondo substituir os
encantos da língua por cenários, figurinos, música, iluminação e efeitos de
palco espetaculares. O critério de espetáculo para Artaud é violência
sensorial em vez de encantamento sensorial; a beleza é uma noção que ele
nunca leva em consideração. Longe de julgar que o espetacular seja
desejável em si mesmo, Artaud submete o palco a uma austeridade radical
— a ponto de excluir tudo o que corresponda a algo diferente. “Objetos,
acessórios, cenários sobre o palco devem ser apreendidos diretamente […]
não por aquilo que representam, mas pelo que são”, escreve num manifesto
de 1926. Mais tarde, em O teatro e seu duplo, ele sugere a eliminação
completa dos cenários. Seu clamor é por um teatro “puro”, dominado pela
“física do gesto absoluto, que é em si mesmo uma ideia”.
Se a linguagem de Artaud soa vagamente platônica, é com razão, pois, a
exemplo de Platão, ele aborda a arte do ponto de vista moralista. Na
verdade, o autor não gosta do teatro — pelo menos do concebido em todo o
Ocidente, pois o considera insuficientemente sério. Seu teatro nada teria a
ver com o objetivo de prover “diversão artificial, supérflua”, entretenimento
simples. O contraste no coração da polêmica de Artaud não reside entre um
teatro meramente literário e um teatro de sensações fortes, mas sim entre
um teatro hedonista e um teatro moralmente rigoroso. Sua proposta é de um
teatro que Savonarola ou Cromwell poderiam aprovar. De fato, O teatro e
seu duplo pode ser lido como um ataque indignado contra o teatro, com um
ânimo reminiscente da Carta a D’Alembert, em que Rousseau, enfurecido
com o personagem Alceste na peça O misantropo — por aquilo que ele
toma como a ridicularização sofisticada que Molière faz da sinceridade e da
pureza moral como um fanatismo tosco —, termina argumentando que é da
natureza do teatro ser moralmente superficial. Como Rousseau, Artaud
revoltou-se contra a vulgaridade moral de grande parte da arte. Como
Platão, achava que a arte, de modo geral, mente. Artaud não vai banir os
artistas de sua República, mas vai apoiar a arte apenas na medida em que
for uma “ação verdadeira”. A arte deve ser cognitiva. “Nenhuma imagem
me satisfaz, a menos que seja ao mesmo tempo conhecimento”, escreve. A
arte deve ter um efeito espiritual benéfico no público — um efeito cujo
poder depende, na visão de Artaud, de um veto a todas as formas de
mediação.
É o moralista em Artaud que o faz insistir em que o teatro seja reduzido,
seja mantido o mais livre possível dos elementos mediadores — inclusive a
mediação do texto escrito. Peças contam mentiras. Mesmo se não for esse o
caso, ao alcançar o estatuto de “obra-prima”, ela se torna mentira. Em
1926, Artaud declara não querer criar um teatro para apresentar peças e,
assim, perpetuar ou ampliar a lista de obras-primas consagradas da cultura.
Para ele, a herança das peças escritas é um obstáculo inútil, e a escrita de
peças teatrais é um intermediário desnecessário entre a plateia e a verdade
que pode ser apresentada nua, no palco. Aqui, porém, seu moralismo dá
uma guinada nitidamente antiplatônica: a verdade nua é completamente
material. Artaud define o teatro como um lugar onde as facetas obscuras do
“espírito” são reveladas numa “projeção material real”.
Para encarnar o pensamento, um teatro estritamente concebido deve abrir
mão da mediação de um texto já escrito, concretizando, desse modo, a
separação entre o autor e o ator. (Isso afasta a mais antiga objeção contra a
profissão de ator — de que se trata de uma forma de corrupção psicológica
na qual a pessoa fala palavras que não são suas e finge sentir emoções que
são funcionalmente insinceras.) A separação entre ator e plateia deve ser
reduzida (mas não extinta) pela violação da fronteira entre a área do palco e
as fileiras fixas de poltronas. Artaud, com sua sensibilidade hierática, nunca
visa a uma forma de teatro na qual a plateia participa de maneira ativa da
performance; o que ele deseja é desfazer-se das regras do decoro teatral que
permitem à plateia desassociar-se da própria experiência. Em resposta
implícita à crítica moralista de que o teatro distrai as pessoas de sua
individualidade autêntica, levando-as a preocupar-se com problemas
imaginários, Artaud quer que o teatro não se dirija à mente dos espectadores
nem a seus sentidos, mas à sua “existência total”. Só os mais apaixonados
moralistas desejariam que as pessoas fossem ao teatro como se fossem ao
cirurgião ou ao dentista. Ainda que com a garantia de que a operação não
vai ser fatal (ao contrário do que seria no caso de um cirurgião), a operação
que a plateia vai sofrer é “séria”, e o público não deve sair do teatro moral
ou emocionalmente “intacto”. Em outra imagem médica, Artaud compara o
teatro a uma peste. Mostrar a verdade significa antes mostrar arquétipos do
que a psicologia individual; isso transforma o teatro num lugar de risco,
pois a “realidade arquetípica” é “perigosa”. Membros da plateia não devem
se identificar com o que se passa no palco. Para Artaud, o teatro
“verdadeiro” é uma experiência perigosa, intimidadora — uma experiência
que exclui emoções serenas, diversão, intimidade apaziguadora.
O valor da violência emocional na arte há muito tempo constitui um
pressuposto central da sensibilidade modernista. Antes de Artaud,
entretanto, a crueldade era exercida sobretudo com um espírito
desinteressado, por sua eficácia estética. Quando Baudelaire estabeleceu a
“experiência de choque” (para tomar emprestada a expressão de Walter
Benjamin) no centro de seu verso e de seus poemas em prosa, não era para
aprimorar nem edificar seus leitores. Mas era exatamente essa a questão da
devoção de Artaud à estética do choque. Mediante a exclusividade de seu
compromisso com a arte paroxísmica, ele demonstra ser tão moralista no
que tange à arte quanto o foi Platão — no entanto, trata-se de um moralista
cujas esperanças na arte negam aquelas distinções em que a visão de Platão
está alicerçada. Como se opõe à separação entre arte e vida, opõe-se a todas
as formas teatrais que implicam uma diferença entre realidade e
representação. Ele não nega a existência dessa diferença. Contudo, ela pode
ser contornada, sugere Artaud, se o espetáculo for suficientemente — ou
seja, excessivamente — violento. A “crueldade” da obra de arte não tem
apenas uma função diretamente moral, mas também uma função cognitiva.
Segundo o critério moralista do autor para o conhecimento, uma imagem
será verdadeira na medida em que for violenta.
A visão de Platão se apoia na suposição da diferença intransponível entre
vida e arte, realidade e representação. Na famosa imagem no Livro VII da
República, Platão vincula a ignorância à vida numa caverna iluminada de
forma engenhosa, para cujos habitantes a vida é um espetáculo — um
espetáculo que consiste apenas em sombras de eventos reais. A caverna é
um teatro. E a verdade (a realidade) se encontra do lado de fora, no sol. Na
imagem platônica de O teatro e seu duplo, Artaud adota uma visão mais
atenuada das sombras e dos espetáculos. Ele supõe que existem sombras (e
espetáculos) verdadeiras e falsas e que podemos aprender a diferenciá-las.
Longe de identificar a sabedoria com uma emergência da caverna para
contemplar a realidade à luz do meio-dia, Artaud acha que a consciência
moderna sofre de falta de sombras. O remédio é permanecer dentro da
caverna, mas inventar espetáculos melhores. O teatro por ele proposto vai
servir à consciência “nomeando e dirigindo sombras” e destruindo
“sombras falsas”, a fim de “preparar o caminho para uma nova geração de
sombras”, em torno das quais será construído o “verdadeiro espetáculo da
vida”.
Sem sustentar uma visão hierárquica da mente, Artaud suprime a
distinção superficial, acalentada pelos surrealistas, entre racional e
irracional. Ele não advoga a visão familiar que louva a paixão em
detrimento da razão, a carne em detrimento da mente, a mente exaltada por
drogas em detrimento da mente prosaica, a vida dos instintos em detrimento
dos raciocínios implacáveis. O que ele defende é uma relação alternativa
com a mente. Essa era a atração, bastante divulgada, que as culturas não
ocidentais exerciam sobre Artaud, mas não foi o que o levou às drogas. (Era
para mitigar as enxaquecas e outras dores neurológicas que sofreu, ao longo
de toda a vida, e não para expandir a consciência, que Artaud usava
opiáceos e acabou se tornando dependente.)
Por um breve tempo, Artaud tomou o estado mental surrealista como um
modelo para a consciência unificada, não dualista, que almejava. Depois de
rejeitar o surrealismo em 1926, ele repropôs a arte — especificamente o
teatro — como um modelo mais rigoroso. A função que ele confere ao
teatro é sanar a cisão entre linguagem e carne. Este era o tema de suas
ideias para a formação de atores: uma formação antitética àquela familiar,
que não os ensina nem a se mexer nem ao que fazer com suas vozes, além
de falar. (Podem berrar, grunhir, cantar, recitar.) É também o tema de sua
dramaturgia ideal. Longe de defender um irracionalismo fácil que
polarizasse razão e sentimento, Artaud imagina o teatro como o lugar onde
o corpo renasceria em pensamento e onde o pensamento renasceria no
corpo. Ele diagnostica sua própria doença como uma cisão dentro da mente
(“Minha consciência agregada está fraturada”, escreve) que internaliza a
cisão entre mente e corpo. Os escritos de Artaud sobre teatro podem ser
lidos como um manual psicológico sobre a reunificação de mente e corpo.
O teatro tornou-se sua metáfora suprema da vida da mente autocorretora,
espontânea, carnal, inteligente.
Na verdade, a imagística de Artaud para o teatro em O teatro e seu duplo,
escrito na década de 1930, ecoa imagens que ele usa nos escritos do início e
de meados da década de 1920 — como em O pesa-nervos, em cartas para
René e Yvonne Allendy e em Fragmentos de um diário do Inferno — para
descrever a própria dor mental. Artaud se queixa de que sua consciência
não tem fronteiras nem posição fixa; privada da língua ou em luta contínua
contra ela; fraturada — de fato, contaminada — por descontinuidades; ou
sem localização física ou em constante mudança de localização (e de
extensão no tempo e no espaço); sexualmente obcecada; num estado de
infestação violenta. O teatro de Artaud é caracterizado pela ausência de
qualquer posicionamento espacial fixo dos atores vis-à-vis uns em face dos
outros, e dos atores em relação ao público; por uma fluidez de movimento e
de alma; pela mutilação da língua e pela transcendência da língua no grito
do ator; pela carnalidade do espetáculo; por seu tom obsessivamente
violento. O artista, é claro, não estava simplesmente reproduzindo sua
angústia interior. Em vez disso, fornecia uma versão sistematizada e
positiva dessa angústia. O teatro é uma imagem projetada (necessariamente,
uma dramatização ideal) da vida interior perigosa, “desumana”, que o
possuía, com que ele lutava tão heroicamente para transcender e para
afirmar. É também uma técnica homeopática para tratar essa vida interior
emaranhada e arrebatada. Por se tratar de uma espécie de cirurgia
emocional e moral na consciência, deve necessariamente, segundo Artaud,
ser “cruel”.
Quando Hume, de forma expressa, vincula a consciência a um teatro, a
imagem é moralmente neutra e inteiramente a-histórica; ele não está
pensando em um tipo específico de teatro, ocidental ou outro, e julgaria
irrelevante qualquer lembrança de que o teatro se desenvolve. Para Artaud,
a parte decisiva da analogia está em que o teatro — e a consciência — pode
mudar. Pois não só a consciência parece um teatro, como, segundo Artaud o
elabora, o teatro parece uma consciência e, portanto, se presta a ser
convertido num teatro-laboratório no qual se fazem pesquisas para
transformar a consciência.
Os escritos de Artaud sobre teatro são transformações de suas aspirações
em relação à sua própria mente. Ele quer que o teatro (como a mente) seja
libertado de seu confinamento “na linguagem e nas formas”. Um teatro
libertado, supõe ele, liberta. Ao dar vazão a paixões radicais e pesadelos
culturais, o teatro os exorciza. Mas o teatro de Artaud não é, de forma
nenhuma, simplesmente catártico. Pelo menos em sua intenção (a prática de
Artaud nas décadas de 1920 e 1930 é outra história), seu teatro tem pouco
em comum com o antiteatro do ataque jocoso e sádico contra o público,
concebido por Marinetti e pelos artistas dada, pouco antes e depois da
Primeira Guerra Mundial. A agressividade proposta por ele é controlada e
complexamente orquestrada, uma vez que ele supõe que a violência
sensorial pode ser uma forma de inteligência corporificada. Ao insistir na
função cognitiva do teatro (o drama, escreve Artaud em 1923, num ensaio
sobre Maeterlinck, é “a mais elevada forma de atividade mental”), ele
rejeita a aleatoriedade. (Mesmo em seus tempos surrealistas, Artaud não
adota a prática da escrita automática.) O teatro, assinala ele de vez em
quando, deve ser “científico”; com isso, ele quer dizer que o teatro não deve
ser arbitrário, meramente expressivo ou espontâneo ou pessoal ou divertido,
mas deve, sim, abraçar um propósito totalmente sério e, em última
instância, religioso.
A insistência de Artaud na seriedade da situação teatral assinala também
sua diferença em relação aos surrealistas, que pensavam com muito menos
precisão na arte, em sua terapia e na sua missão “revolucionária”. Os
surrealistas, cujos impulsos moralizantes eram consideravelmente menos
intransigentes do que os de Artaud, e que não tinham nenhum sentimento de
premência moral para a criação da arte, não mostravam interesse em buscar
os limites de nenhuma forma de arte singular. Tendiam a ser turistas, não
raro turistas de gênio, no maior número de artes possível, acreditando que o
impulso da arte não se altera onde quer que se manifeste. (Assim, Cocteau,
que teve a carreira surrealista ideal, chamava tudo o que fazia de “poesia”.)
A audácia e a autoridade maior de Artaud como pensador da estética
resultam, em parte, do fato de que, embora também tenha praticado várias
artes, recusando-se, como os surrealistas, a se inibir pela distribuição da arte
em diversos meios, ele não encara as diversas artes como formas
equivalentes do mesmo impulso proteiforme. Suas atividades, entretanto,
por mais dispersas que sejam, sempre refletem a busca de uma forma de
arte total, na qual as outras formas de arte se fundiriam — assim como a
própria arte se fundiria com a vida.
Paradoxalmente, foi essa mesma negação de independência aos
diferentes territórios da arte que levaram Artaud a fazer o que nenhum dos
surrealistas jamais havia tentado: repensar por completo a forma de uma
arte. Sobre essa arte, o teatro, ele teve um impacto tão profundo que se pode
dizer que o curso de todo o teatro sério recente na Europa Ocidental e nas
Américas está dividido em dois períodos — antes e depois de Artaud. Hoje,
ninguém que trabalhe com teatro está alheio ao impacto das ideias
específicas dele sobre o corpo e a voz do ator, o uso da música, o papel do
texto escrito, a reciprocidade entre o espaço ocupado pelo espetáculo e o
espaço do público. Foi ele quem modificou o entendimento do que era
sério, do que valia a pena fazer. Brecht é o outro único escritor de teatro do
século cuja importância e profundidade podem rivalizar com as de Artaud.
Mas este não conseguiu afetar a consciência do teatro moderno sendo um
grande diretor, como foi o caso de Brecht. Sua influência não se apoia nas
evidências de suas produções. Sua obra prática no teatro, entre 1926 e 1935,
era aparentemente tão pouco sedutora que não deixou quase nenhum
vestígio, ao passo que a ideia de teatro, em nome da qual ele impunha suas
produções a um público nada receptivo, tem se tornado cada vez mais forte.
(1973)
Fascismo fascinante
Prova número um. Aqui está um livro com 126 magníficas fotos
coloridas de Leni Riefenstahl, seguramente o mais impressionante livro de
fotografias publicado nos últimos anos. Nas montanhas inóspitas do sul do
Sudão, vivem isolados, como deuses, 8 mil nativos do povo nuba, símbolos
da perfeição física, com cabeças grandes, bem-feitas, parcialmente
raspadas, rostos expressivos e corpos musculosos, depilados e enfeitados
com cicatrizes; lambuzados com cinzas sagradas esbranquiçadas, os
homens andam de peito erguido, põem-se de cócoras, travam lutas corpo a
corpo em ladeiras áridas. E aqui está um arranjo gráfico fascinante de doze
fotos em preto e branco de Riefenstahl, na quarta capa do livro The Last of
the Nuba [Os últimos nubas], também impressionante, uma sequência
cronológica de expressões (de uma introspecção provocante até o sorriso de
uma matrona texana num safári) subjugando a incontrolável marcha do
envelhecimento. A primeira foto foi tirada em 1927, quando ela estava com
25 anos e já era uma estrela do cinema; as mais recentes são de 1969 (ela
está acariciando um bebê nu africano) e de 1972 (ela está segurando uma
câmera), e todas mostram uma versão de uma presença ideal, uma espécie
de beleza imperecível, como a de Elizabeth Schwarzkopf, que se torna cada
vez mais alegre, mais metálica e de aspecto mais saudável à medida que a
idade avança. E aqui estão uma síntese biográfica de Riefenstahl, na
sobrecapa do volume, e uma introdução (sem assinatura) intitulada “Como
Leni Riefenstahl foi estudar os mesakins de Nuba, em Kordofan” — repleta
de mentiras perturbadoras.
A introdução, que oferece um relato minucioso da peregrinação de
Riefenstahl ao Sudão (inspirada, somos informados, pela leitura de As
verdes colinas da África, de Hemingway, “numa noite insone em meados da
década de 1950”), identifica de maneira lacônica a fotógrafa como “uma
espécie de figura mitológica, como cineasta, antes da guerra, semiesquecida
por uma nação que escolheu varrer da memória uma era da própria
história”. Quem (é o que se espera) senão a própria Riefenstahl poderia
imaginar uma fábula sobre isso que é vagamente chamado de “nação”, que,
por algum motivo não declarado, “escolheu” executar o deplorável ato de
covardia de esquecer “uma era” — delicadamente deixada sem
identificação — “da própria história”? Supõe-se que pelo menos alguns
leitores ficarão chocados com essa alusão enviesada à Alemanha e ao
Terceiro Reich.
Comparada à introdução, a sobrecapa do livro é francamente expansiva
sobre o tema da carreira da fotógrafa, papagueando a desinformação que
Riefenstahl vinha divulgando havia vinte anos.
Foi durante a funesta e grave década de 1930 na Alemanha que Leni Riefenstahl
adquiriu fama internacional como cineasta. Ela nasceu em 1902 e sua primeira
dedicação foi à dança criativa. Isso a levou a participar em filmes mudos e logo ela
mesma passou a dirigir — e a estrelar — os próprios filmes falados, como A montanha
(1929).
Essas produções tensamente românticas foram amplamente admiradas, até mesmo
por Adolf Hitler, que, chegando ao poder em 1933, contratou Riefenstahl para fazer um
documentário sobre o comício de Nuremberg, em 1934.
É preciso certa originalidade para descrever a era nazista como “a funesta
e grave década de 1930 na Alemanha”, resumir os acontecimentos de 1933
como a chegada de Hitler ao poder e afirmar que Riefenstahl, cuja obra, em
sua maior parte, em sua própria época, era corretamente identificada como
propaganda nazista, desfrutava de “fama internacional como cineasta”,
comparada de maneira ostensiva a seus contemporâneos Renoir, Lubitsch e
Flaherty. (Será que os editores deixaram que a própria L. R. escrevesse o
texto da sobrecapa? Hesitamos em admitir uma ideia tão indelicada, embora
“sua primeira dedicação foi à dança criativa” seja uma expressão que
poucos falantes nativos da língua inglesa seriam capazes de usar.)
Os fatos, é claro, são inexatos ou inventados. Riefenstahl não fez — nem
estrelou — um filme falado intitulado A montanha (1929). Tal filme não
existe. Em termos mais gerais: ela não se limitou a participar de filmes
mudos para depois, com a chegada do cinema sonoro, começar a dirigir e
estrelar os próprios filmes. Em todos os nove filmes nos quais representou
um papel, Riefenstahl foi a estrela; e sete deles não foram dirigidos por ela.
Esses sete filmes foram: A montanha sagrada (Der heilige Berg, 1926), O
grande salto (Der grosse Sprung, 1927), O destino da casa dos Habsburgo
(Das Schiksal derer von Habsburg, 1929), O inferno branco do Pitz Palü
(Die weisse Hölle von Piz Palü, 1929) — todos mudos —, seguidos por
Avalanche (Stürme über dem Montblanc, 1930), Frenesi branco (Der
weisse Rausch, 1931) e S.O.S. Iceberg (S.O.S. Eisberg, 1932-3). À exceção
de um, todos os demais foram dirigidos por Arnold Fanck, auteur de épicos
alpinos de amplo sucesso desde 1919, que fez apenas mais dois filmes,
ambos malogrados, depois que Riefenstahl o deixou para passar a dirigir os
próprios filmes, em 1932. (O filme que Fanck não dirigiu é O destino da
casa dos Habsburgo, um drama lacrimejante, partidário da casa real, feito
na Áustria, em que Riefenstahl representou o papel de Marie Vetsera,
companheira do príncipe herdeiro Rudolf, em Mayerling. Nenhuma
imagem do filme parece ter sobrevivido.)
Os veículos wagnerianos-pop de Fanck para Riefenstahl não eram apenas
“tensamente românticos”. Decerto concebidos como apolíticos quando
produzidos, eles parecem hoje, em retrospecto, como apontou Siegfried
Kracauer, uma antologia de sentimentos protonazistas. Escalar montanhas,
nos filmes de Fanck, era uma metáfora irresistível para a aspiração ilimitada
rumo a um objetivo místico elevado, belo e aterrador, que mais tarde iria se
tornar concreto, no culto ao Führer. O personagem em geral representado
por Riefenstahl era o de uma garota selvagem que se atreve a escalar o pico
que outros, os “porcos do vale”, temem. Em seu primeiro papel, no filme
mudo A montanha sagrada (1926), o de uma jovem dançarina chamada
Diotima, ela é cortejada por um alpinista fervoroso que a converte aos
sadios êxtases do alpinismo. Essa personagem é submetida a uma
glorificação inexorável. Em seu primeiro filme sonoro, Avalanche (1930),
Riefenstahl é uma garota fascinada por uma montanha, apaixonada por um
jovem meteorologista, a quem ela resgata, quando uma tempestade o deixa
isolado em seu observatório no Mont Blanc.
A própria Riefenstahl dirigiu seis filmes, e o primeiro deles, A luz azul
(Das blaue Licht, 1932), foi mais um filme de montanha. Também
estrelando a produção, ela representou um papel semelhante àqueles dos
filmes de Fanck, pelos quais foi tão “amplamente admirada, até por Adolf
Hitler”, mas alegorizava os temas sombrios do desejo, da pureza e da morte,
tratados por Fanck de modo muito tateante. Como de hábito, a montanha é
extremamente bela e, ao mesmo tempo, perigosa, aquela força majestosa
que conclama a uma afirmação suprema e que escapa do eu — rumo à
fraternidade da coragem e também à morte. O papel concebido por
Riefenstahl para si mesma é o de uma criatura primitiva que tem uma
relação singular com um poder destrutivo: só Junta, a garota proscrita da
aldeia, vestida em andrajos, é capaz de alcançar a luz azul misteriosa que
irradia do pico de monte Cristallo, ao passo que outros aldeões jovens,
seduzidos pela luz, tentam escalar a montanha e acabam despencando para
a morte. No fim, o que causa a morte da garota não é a impossibilidade do
objetivo simbolizado pela montanha, e sim o espírito materialista, prosaico,
dos aldeões invejosos combinado com o racionalismo cego de seu amante,
um visitante bem-intencionado proveniente da cidade.
O filme que dirigiu depois de A luz azul não foi “um documentário sobre
o comício de Nuremberg em 1934” — Riefenstahl fez quatro filmes de não
ficção, e não dois, como ela declara desde a década de 1950 e como a
maioria dos relatos acobertadores repete —, mas Vitória da fé (Sieg des
Glaubens, 1933), celebrando o primeiro Congresso do Partido Nacional-
Socialista realizado após a chegada de Hitler ao poder. Veio então o
primeiro dos dois trabalhos que de fato a tornaram internacionalmente
famosa, o filme sobre o Congresso do Partido Nacional-Socialista seguinte,
Triunfo da vontade (Triumph des Willens, 1935) — cujo título nunca é
mencionado na sobrecapa de The Last of the Nuba —, seguido por um
curta-metragem (dezoito minutos) para o exército, Dia de liberdade: Nosso
exército (Tag der Freiheit: Unsere Wehrmacht, 1935), que retrata a beleza
da vida militar dos que servem ao Exército para o Führer. (Não surpreende
não encontrar nenhuma referência a esse filme, do qual se encontrou uma
imagem em 1971; durante as décadas de 1950 e 1960, quando Riefenstahl e
todo o mundo acreditavam que Dia de liberdade estava perdido, ela o
apagava de sua filmografia e se recusava a discutir o assunto com seus
entrevistadores.)
O texto da sobrecapa prossegue:
A recusa de Riefenstahl a submeter-se à tentativa de Goebbels de sujeitar sua
visualização a exigências estritamente propagandísticas gerou uma batalha de egos, que
chegou ao auge quando Riefenstahl fez seu filme sobre os Jogos Olímpicos de 1936,
Olympia. Esse filme, Goebbels tentou destruir; e só foi salvo pela intervenção pessoal
de Hitler.
Com dois dos mais notáveis documentários da década de 1930 creditados a ela,
Riefenstahl continuou a fazer filmes segundo seus planos, sem relação com a ascensão
da Alemanha Nazista, até 1941, quando as condições da guerra tornaram impossível
continuar.
Sua relação com o líder nazista acarretou sua prisão ao fim da Segunda Guerra
Mundial: ela foi duas vezes processada e duas vezes absolvida. Sua reputação estava em
ocaso e ela estava semiesquecida — embora seu nome tivesse sido uma palavra familiar
para toda uma geração de alemães.
Exceto pelo trecho em que se afirma que seu nome era uma palavra
familiar na Alemanha Nazista, nenhuma frase do texto é verdadeira.
Apresentar Riefenstahl no papel de uma artista individualista que desafiava
burocratas filisteus e a censura do Estado patrocinador (“a tentativa de
Goebbels de sujeitar sua visualização a exigências estritamente
propagandísticas”) deveria soar como um absurdo para qualquer pessoa que
tivesse visto Triunfo da vontade — filme cuja própria concepção nega a
possibilidade de a cineasta ter uma concepção estética independente da
propaganda. Embora isso tenha sido negado por Riefenstahl desde o fim da
guerra, ela fez Triunfo da vontade com recursos ilimitados e cooperação
oficial abundante (nunca houve nenhum conflito entre a cineasta e o
ministro alemão da Propaganda). Na verdade, Riefenstahl, como ela relata
no curto livro sobre a produção de Triunfo da vontade, fez parte do
planejamento do comício — desde o início concebido como cenário de um
filme-espetáculo.1 Olympia — um filme de três horas e meia, em duas
partes, Festival do povo (Fest der Völker) e Festival da beleza (Fest der
Schönheit) — era nada menos do que um filme oficial. Riefenstahl afirma
em entrevistas, desde a década de 1950, que Olympia foi encomendado pelo
Comitê Olímpico Internacional, produzido por sua própria empresa e
realizado sob os protestos de Goebbels. A verdade é que a película foi
patrocinada e inteiramente financiada pelo governo nazista (uma empresa
fantasma foi montada em nome de Riefenstahl, porque julgaram imprudente
que o governo figurasse como produtor) e viabilizado pelo ministério de
Goebbels em todas as etapas da filmagem;2 mesmo a lenda plausível de que
Goebbels teria reclamado do trecho sobre os triunfos do astro do atletismo
Jesse Owens, um negro americano, é falsa. Riefenstahl trabalhou dezoito
meses na edição do filme, terminando-o a tempo para que o filme estreasse
no dia 29 de abril de 1938, em Berlim, como parte das festividades do 49o
aniversário de Hitler; mais tarde, naquele ano, Olympia foi a principal
atração alemã no Festival de Cinema de Veneza, no qual ganhou a medalha
de ouro.
Mais mentiras: dizer que Riefenstahl “continuou a fazer filmes segundo
seus planos, sem relação com a ascensão da Alemanha Nazista, até 1941”.
Em 1939 (depois de voltar de uma visita a Hollywood, a convite de Walt
Disney), ela acompanhou a Wehrmacht [Forças Armadas da Alemanha] à
Polônia, como correspondente de guerra uniformizada, com uma equipe
própria de filmagem; mas não há nenhum registro disso nos materiais que
sobreviveram à guerra. Depois de Olympia, Riefenstahl fez exatamente
mais um filme, Tiefland (Planície), iniciado em 1941 — e, depois de uma
interrupção, retomado em 1944 (nos Estúdios de Cinema Barrandov, na
Praga ocupada pelos nazistas), e finalizado em 1954. A exemplo de A luz
azul, Tiefland contrapõe a corrupção da planície ou do vale à pureza da
montanha e, mais uma vez, a protagonista (representada por Riefenstahl) é
uma linda proscrita. Riefenstahl prefere dar a impressão de que só havia
dois documentários numa carreira longa de diretora de filmes de ficção,
porém a verdade é que quatro dos seis filmes que ela dirigiu eram
documentários feitos para o governo nazista e por ele financiados.
Não é exato descrever a relação profissional de Riefenstahl com Hitler e
Goebbels e sua intimidade com ambos como “sua relação com o líder
nazista”. Riefenstahl era amiga íntima e companheira de Hitler desde bem
antes de 1932; era também amiga de Goebbels: não existem provas da
afirmação repetida por Riefenstahl, desde a década de 1950, de que
Goebbels a odiava ou mesmo que ele tivesse o poder de interferir em sua
obra. Em virtude de seu ilimitado acesso a Hitler, Riefenstahl era
justamente a única cineasta alemã que não prestava contas à Secretaria de
Cinema (Reichsfilmkammer) do Ministério da Propaganda de Goebbels. Por
fim, é enganadora a afirmação de que Riefenstahl foi “duas vezes
processada e duas vezes absolvida” depois da guerra. O que aconteceu foi
que ela ficou presa por curto tempo pelos Aliados em 1945 e duas de suas
casas (em Berlim e em Munique) foram tomadas. As investigações e os
comparecimentos em juízo começaram em 1948 e prosseguiram, de forma
intermitente, até 1952, quando ela foi, afinal, “desnazificada” com o
veredicto: “Nenhuma atividade política para defender o regime nazista que
justifique punição”. Mais importante: merecesse ou não uma sentença de
prisão, o que estava em questão não era a “relação” de Riefenstahl com o
líder nazista, mas suas atividades como propagandista de ponta em favor do
Terceiro Reich.
A sobrecapa do livro The Last of the Nuba resume fielmente a linha-
mestra da autodefesa que Riefenstahl fabricou na década de 1950 e que está
exposta de modo mais completo na entrevista que deu à revista Cahiers du
Cinéma, em setembro de 1965. Ali, ela negou que qualquer parte de sua
obra fosse propaganda — chamando-a de cinema verité. “Nenhuma cena é
montada”, revelou Riefenstahl sobre Triunfo da vontade. “Tudo é genuíno.
Não há comentários tendenciosos pela simples razão de que não há
comentário nenhum. O filme é história — história pura.” Estamos muito
longe do desdém veemente pelos “filmes-crônicas”, de meras “reportagens”
ou de “fatos filmados”, como algo indigno do “estilo heroico” do evento,
que está expresso em seu livro sobre o cinema.3
Embora não tenha nenhuma voz narradora, Triunfo da vontade começa
com um texto escrito, que proclama o comício como a culminância
redentora da história alemã. Mas, entre as diversas maneiras como o filme
se mostra tendencioso, essa declaração de abertura é a menos original. Não
há nenhum comentário, porque nenhum é necessário, uma vez que Triunfo
da vontade é uma transformação radical da realidade já levada a efeito:
história se torna teatro. A forma como se encenou a convenção do Partido
em 1934 foi em parte determinada pela decisão de produzir Triunfo da
vontade — o fato histórico serviu de cenário para um filme que, em
seguida, assumiu o caráter de um documentário autêntico. De fato, quando,
antecipadamente, foram divulgados alguns trechos que mostravam líderes
do Partido na tribuna dos oradores, Hitler deu ordem para que as cenas
fossem refilmadas; e Streicher, Rosenberg, Hess e Frank, teatralmente,
juraram de novo sua fidelidade ao Führer, semanas depois, sem Hitler e sem
plateia, num estúdio montado por Speer. (É absolutamente correto que
Speer, responsável pela construção do gigantesco cenário do comício nos
arredores de Nuremberg, figure na lista de créditos de Triunfo da vontade
como o arquiteto do filme.) Qualquer um que defenda os filmes de
Riefenstahl como documentários, se documentário for entendido como algo
distinto de propaganda, está sendo ingênuo. Em Triunfo da vontade, o
documento (a imagem) é não só o registro da realidade, como também uma
razão pela qual a realidade foi montada e deve, por fim, suplantá-la.
A reabilitação de figuras proscritas nas sociedades liberais não acontece
com o propósito burocrático abrangente da Enciclopédia soviética, que a
cada nova edição acrescenta figuras, até então impronunciáveis, e rebaixa
um número igual ou maior pela porta dos fundos da inexistência. Nossas
reabilitações são mais brandas, mais insinuadas. Não que o passado nazista
de Riefenstahl tenha de repente se tornado aceitável. Ocorre simplesmente
que, com o giro da roda cultural, isso deixou de ter importância. Em vez de
apresentar uma versão gelada e seca da história vinda de cima, uma
sociedade liberal formula tais questões à espera de que os ciclos do gosto
depurem a controvérsia.
A purificação da reputação de Leni Riefenstahl da mancha nazista tomou
impulso durante algum tempo, mas neste ano [1974] alcançou uma espécie
de clímax, quando ela foi a convidada de honra de um novo festival de
cinema, controlado por cinéfilos, ocorrido no verão, em Colorado, e foi
tema de uma série de reportagens e entrevistas respeitosas em jornais e na
televisão, e agora com a publicação de The Last of the Nuba. Parte do
ímpeto que sustenta a recente promoção de Riefenstahl à condição de
monumento cultural com certeza se deve ao fato de ser mulher. O cartaz do
Festival de Cinema de Nova York de 1973, feito por uma artista bastante
conhecida também como feminista, mostrava uma mulher loira, com cara
de boneca, cujo seio direito está rodeado por três nomes: Agnès Leni
Shirley. (Ou seja, Varda, Riefenstahl, Clarke.) As feministas sentiriam
grande dor por ter de sacrificar a única mulher que fez filmes reconhecidos
por todos como obras de primeira grandeza. Mas o impulso mais forte por
trás da mudança de atitude em relação a Riefenstahl repousa na nova e mais
ampla fortuna da ideia do belo.
A linha adotada pelos defensores de Riefenstahl, que incluem as vozes
mais influentes do cinema de vanguarda, é de que ela sempre foi dedicada à
beleza. Essa, é claro, foi a argumentação da própria Riefenstahl durante
alguns anos. Desse modo, o entrevistador de Cahiers du Cinéma a exaltou,
observando tolamente que aquilo que Triunfo da vontade e Olympia “têm
em comum é que ambos dão forma a certa realidade, baseada ela mesma em
uma ideia de forma. Você enxerga algo peculiarmente alemão nessa
preocupação com a forma?”. A isso, Riefenstahl respondeu:
O que posso dizer é que me sinto espontaneamente atraída por tudo o que é belo. Sim:
beleza, harmonia. E talvez esse cuidado com a composição, essa aspiração pela forma,
seja, de fato, algo muito alemão. Mas eu mesma não conheço essas coisas de fato. Isso
vem do inconsciente e não de meu conhecimento… O que você quer que eu acrescente?
Tudo o que for puramente realista, extraído da vida, aquilo que é mediano, cotidiano,
não me interessa… Sou fascinada pelo que é belo, forte, saudável, pelo que é vivo. Eu
busco a harmonia. Quando a harmonia se produz, fico feliz. Creio, com isso, que
respondi sua pergunta.
É por isso que The Last of the Nuba é o último passo necessário na
reabilitação de Leni Riefenstahl. É a reescrita final do passado; ou, para
seus adeptos, a confirmação definitiva de que ela sempre foi uma adoradora
do belo e não uma propagandista medonha.4 Dentro do livro, tão
lindamente produzido, fotografias da tribo nobre, perfeita. E, na sobrecapa,
fotografias de “minha perfeita mulher alemã” (como Hitler a chamava),
toda sorrisos, derrotando as afrontas da história.
Com efeito, se o livro não fosse assinado por Riefenstahl, não teríamos
necessariamente de suspeitar que as fotos foram tiradas pela artista mais
interessante, talentosa e eficiente da era nazista. A maioria das pessoas que
folheiam o livro The Last of the Nuba provavelmente o verá como mais um
lamento pelo desaparecimento de povos primitivos — o maior exemplo
continua a ser Tristes trópicos, de Lévi-Strauss, sobre os bororos, do Brasil
—; no entanto, se examinarmos as fotos com cuidado, em combinação com
o extenso texto escrito por Riefenstahl, fica claro que há continuidade entre
o livro e a sua obra nazista. O pendor particular de Riefenstahl se revela na
escolha dessa tribo e não de outra: um povo que ela define como
agudamente artístico (todos têm uma lira) e belo (os homens nubas, observa
Riefenstahl, têm uma “compleição atlética rara em qualquer outra tribo
africana”); dotados de “um sentido muito mais forte das relações espirituais
do que dos assuntos mundanos e materiais”, sua atividade principal, insiste
ela, é cerimonial. The Last of the Nuba trata de um ideal primitivista: o
retrato de um povo que subsiste em pura harmonia com seu ambiente,
intocado pela “civilização”.
Os quatro filmes nazistas de Riefenstahl feitos por encomenda — sobre
os congressos do Partido, sobre a Wehrmacht ou sobre atletas — celebram o
renascimento do corpo e da comunidade, mediado pelo culto de um líder
irresistível. São herdeiros diretos dos filmes de Fanck, nos quais ela
representou o papel principal, e do seu próprio filme A luz azul. As ficções
alpinas são contos sobre o anseio de alcançar locais elevados, sobre o
desafio e a provação do elementar, do primitivo; tratam da vertigem em face
do poder, simbolizado pela majestade e pela beleza das montanhas. Os
filmes nazistas são épicos de uma comunidade concretizada, nos quais se
transcende a realidade cotidiana por meio do autocontrole extasiado e da
submissão; eles tratam do triunfo do poder. E The Last of the Nuba, uma
elegia à beleza prestes a desaparecer e aos poderes místicos dos primitivos a
quem Riefenstahl chama de “meu povo adotivo”, é a terceira peça de seu
tríptico de criações visuais fascistas.
No primeiro painel, os filmes de montanhas, pessoas em trajes pesados se
esforçam em escaladas para se pôr à prova na pureza do frio; a vitalidade é
identificada com a provação física. No painel do meio, os filmes feitos para
o governo nazista; Triunfo da vontade usa planos gerais superpovoados com
imagens de massa que se alternam com closes que isolam uma paixão
individual, uma submissão singular e perfeita: numa região temperada,
pessoas limpas e distintas, em uniformes, se agrupam e se reagrupam, como
se estivessem à procura da coreografia perfeita para expressar sua lealdade.
Em Olympia, visualmente o mais rico de todos os seus filmes (que usa os
movimentos verticais dos filmes de montanha e os horizontais,
característicos de Triunfo da vontade), uma depois da outra, figuras tensas,
com roupas escassas, procuram o êxtase da vitória, comemorada nas
arquibancadas por fileiras de compatriotas, todos debaixo do olhar parado
do benévolo Super-Espectador, Hitler, cuja presença no estádio consagra
esse esforço. (Olympia, que poderia muito bem se intitular Triunfo da
vontade, enfatiza que não existem vitórias fáceis.) No terceiro painel, The
Last of the Nuba, os primitivos quase nus, à espera da provação final de sua
comunidade heroica e orgulhosa, sua iminente extinção, saltitam e fazem
pose debaixo de um sol abrasador.
É tempo de Götterdämmerung [crepúsculo dos deuses]. Os eventos
centrais na sociedade nuba são lutas corpo a corpo e enterros: encontros
animados de belos corpos masculinos e de morte. Os nubas, como
Riefenstahl os interpreta, são uma tribo de estetas. A exemplo dos massais,
besuntados de hena, e dos chamados homens-lama da Nova Guiné, os nubas
se pintam para todas as ocasiões religiosas e sociais importantes,
lambuzando-se com uma cinza esbranquiçada que inequivocamente sugere
a morte. Riefenstahl afirma ter chegado “em cima da hora”, pois, nos
poucos anos seguintes à tomada das fotos, os gloriosos nubas foram
corrompidos por dinheiro, empregos e roupas. (E é bem provável que
também o tenham sido pela guerra — que Riefenstahl não menciona, uma
vez que ela se interessa por mito, e não por história. A guerra civil que
vinha grassando naquela parte do Sudão havia uma dúzia de anos deve ter
disseminado novas tecnologias e uma porção de detritos.)
Embora os nubas sejam negros e não arianos, o retrato que Riefenstahl
faz deles evoca alguns dos temas principais da ideologia nazista: o contraste
entre o limpo e o impuro, o incorruptível e o conspurcado, o físico e o
mental, o alegre e o crítico. Uma das principais acusações contra os judeus
na Alemanha nazista foi de que eram urbanos, intelectuais, portadores de
um “espírito crítico” destruidor e corruptor. A fogueira de livros de 1933 foi
acesa com o grito de Goebbels: “A idade do intelectualismo judeu radical
terminou e o sucesso da revolução alemã mais uma vez abriu caminho para
o espírito germânico”. E quando Goebbels oficialmente proibiu a crítica de
arte em novembro de 1936, foi por ter “traços tipicamente judeus em seu
caráter”: pôr a cabeça acima do coração, o indivíduo acima da comunidade,
o intelecto acima do sentimento. Nas temáticas transformadas do fascismo
tardio, os judeus não desempenham mais o papel de conspurcadores. Esse
papel passou a ser atribuição da própria “civilização”.
O que é distintivo na versão fascista da antiga ideia do Bom Selvagem é
o desprezo por tudo o que comporta reflexão, crítica e pluralidade. No
catálogo de Riefenstahl das virtudes primitivas, aquilo que é enaltecido não
é — como em Lévi-Strauss — a complexidade e a sutileza do mito
primitivo, da organização social ou do pensamento primitivos. Ela recorda
com força a retórica fascista quando celebra as maneiras como os nubas são
exaltados e unificados pelas provações físicas das lutas corpo a corpo, nas
quais os homens nubas, “ofegantes e tensos”, com os “enormes músculos
inchados”, derrubam por terra uns aos outros — lutando não por prêmios
materiais, e sim “pela renovação da vitalidade sagrada da tribo”. As lutas
corpo a corpo e os rituais que as acompanham, no relato de Riefenstahl,
amarram os nubas uns aos outros. Lutar
é a expressão de tudo o que distingue o modo de vida dos nubas… A luta engendra a
lealdade mais apaixonada e a participação emocional dos torcedores das equipes, que
são, na verdade, toda a população da aldeia que está “fora do jogo”… Sua importância
como expressão da percepção total dos mesakins e dos korongos não pode ser
exagerada; é a expressão, no mundo visível e social, do mundo invisível da mente e do
espírito.
As noivas ou esposas dos lutadores têm a mesma preocupação dos homens em evitar
qualquer contato íntimo… seu orgulho de ser noiva ou esposa de um lutador forte
suplanta o sentimento amoroso.
O maior desejo de um homem nuba não é unir-se com uma mulher, mas ser bom
lutador, ratificando, desse modo, o princípio da abstinência. As danças cerimoniais dos
nubas não são ocasiões sensuais, e sim “festivais da castidade” — da contenção da força
da vida.
A estética fascista se baseia na contenção das forças vitais; os
movimentos são confinados, presos, refreados.
A arte nazista é reacionária, desafiadoramente apartada da tendência
dominante das conquistas das artes do século. Esse é, porém, o motivo pelo
qual ela vem ganhando espaço no gosto contemporâneo. Os organizadores
esquerdistas de uma exposição de pinturas e esculturas nazistas em cartaz (a
primeira desde a guerra) em Frankfurt descobriram, para seu desgosto, que
a exposição atraiu um público grande demais e sem a seriedade esperada.
Mesmo quando acompanhada de advertências didáticas de Brecht e de fotos
de campos de concentração, o que a arte nazista recorda para essas
multidões é outra arte da década de 1930, qual seja, a art déco. (A art
nouveau não poderia ser um estilo fascista; ela constitui, ao contrário, o
protótipo daquela arte que o fascismo define como decadente. O estilo
fascista, em seu ponto culminante, é art déco, com suas linhas bem
marcadas e a brusca acumulação de material, e com seu erotismo
petrificado.) A mesma estética responsável pelos colossos de bronze de
Arno Breker — o escultor favorito de Hitler (e de Cocteau, por um breve
tempo) — e de Josef Thorak também produziu o Atlas musculoso, na frente
do Rockefeller Center, em Manhattan, e o monumento ligeiramente lúbrico
em homenagem aos soldados americanos da Primeira Guerra Mundial, na
estação ferroviária da rua 30, na cidade de Filadélfia.
Para um público sem sofisticação na Alemanha, o apelo da arte nazista
pode residir no fato de ser simples, figurativa, emocional; não intelectual;
um alívio para as complexidades exigentes da arte modernista. Para um
público mais sofisticado, o apelo reside, em parte, na avidez que hoje tende
a recuperar todos os estilos do passado, em especial aqueles mais
espezinhados. Porém é muito improvável um renascimento da arte nazista,
depois do renascimento da art nouveau, da pintura pré-rafaelita e da art
déco. A pintura e a escultura não são apenas pomposas; são espantosamente
pobres como arte. No entanto, são essas as características que levam as
pessoas a olhar para a arte nazista com um distanciamento astuto e jocoso,
como uma forma de pop art.
A obra de Riefenstahl é isenta do amadorismo e da ingenuidade que
encontramos em outras artes produzidas na era nazista, ainda que promova
muitos dos mesmos valores. E a mesma sensibilidade moderna também
pode apreciá-la. As ironias da sofisticação pop abrem caminho para uma
forma de encarar a obra de Riefenstahl na qual não só sua beleza formal,
como igualmente seu fervor político, são vistos como uma forma de
excesso estético. E com essa apreciação distanciada de Riefenstahl há uma
receptividade, consciente ou não, ao próprio tema que confere poder à sua
obra.
Triunfo da vontade e Olympia são filmes soberbos, indiscutivelmente
(talvez sejam os dois maiores documentários jamais realizados), entretanto
não são de fato importantes na história do cinema, como forma de arte.
Ninguém que faça filmes hoje em dia alude a Riefenstahl, ao passo que
muitos cineastas (entre os quais me incluo) encaram Dziga Vertov como
uma provocação e fonte de ideias inesgotável a respeito da linguagem
cinematográfica. Pode-se argumentar, contudo, que Vertov — a figura mais
importante do cinema-documentário — nunca fez um filme tão puramente
eficiente e eletrizante como Triunfo da vontade ou Olympia. (É claro que
ele nunca teve à sua disposição os recursos com que Riefenstahl pôde
contar. O orçamento soviético para os filmes de propaganda na década de
1920 e no início dos anos 1930 nada tinha de abundante.)
Ao tratar da arte propagandística de esquerda e de direita, prevalece um
critério duplo. Poucas pessoas admitiriam que a manipulação das emoções
nos últimos filmes de Vertov e nos filmes de Riefenstahl produz o mesmo
tipo de entusiasmo. Ao explicar por que se sentem comovidas, as pessoas
em geral são sentimentais, no caso de Vertov, e desonestas, no de
Riefenstahl. Assim, a obra dele evoca boa dose de simpatia moral da parte
das plateias de cinéfilos em todo o mundo; as pessoas admitem que se
sentem comovidas. Com a obra de Riefenstahl, o truque consiste em filtrar
a ideologia política nociva dos filmes, deixando apenas os méritos
“estéticos”. Elogiar os filmes realizados por ele sempre pressupõe o
conhecimento de que o cineasta era uma pessoa atraente e um pensador-
artista inteligente e original, que acabou esmagado pela ditadura a que
serviu. A maior parte do público contemporâneo de Vertov (como de
Eisenstein e Pudóvkin) supõe que os propagandistas do cinema nos
primeiros anos da União Soviética estavam ilustrando um ideal nobre, por
mais que este tenha sido traído na prática. Mas o elogio para Riefenstahl
não conta com o mesmo recurso, pois ninguém, nem os reabilitadores,
conseguiram torná-la afável; e ela nada tem de pensadora.
E, o que é mais importante, em geral se pensa que o Nacional-Socialismo
representa apenas brutalidade e terror. Mas isso não é verdade. Ele — assim
como o fascismo, em termos mais amplos — também significa um ideal, ou
melhor, ideais que persistem na atualidade sob outras bandeiras: o ideal da
vida como arte, o culto da beleza, o fetichismo da coragem, a dissolução da
alienação em sentimentos de êxtase de comunidade; o repúdio do intelecto;
a família do homem (sob a paternidade dos líderes). Esses ideais estão vivos
e permanecem atuantes para muita gente, e é desonesto, bem como
tautológico, dizer que uma pessoa é afetada por Triunfo da vontade e
Olympia apenas porque foram feitos por uma cineasta de gênio. Os filmes
de Riefenstahl ainda são eficazes porque, entre outras coisas, seus anseios
continuam a ser sentidos, porque seu conteúdo é um ideal romântico ao qual
muitos seguem ligados e que é expresso em modos diversos de dissidência
e propaganda cultural para novas formas de comunidade, como a cultura
jovem/rock, a terapia primal, a antipsiquiatria, o terceiro-mundismo, a
crença no oculto. A exaltação da comunidade não elimina a busca da
liderança absoluta; ao contrário, pode inevitavelmente levar a ela. (Não é de
admirar que um bom número de jovens que hoje se prostram diante de
gurus e se submetem a uma disciplina mais grotescamente autocrática são
ex-antiautoritários e ex-antielitistas da década de 1960.)
A atual desnazificação de Riefenstahl e sua defesa como a sacerdotisa
indômita do belo — como cineasta e, agora, como fotógrafa — não
auguram nada de bom sobre a agudeza da capacidade presente de detectar
anseios fascistas em nosso meio. Riefenstahl não é o tipo comum de esteta
nem de romântica antropológica. Como a força de sua obra reside
justamente na continuidade de suas ideias políticas e estéticas, o que é
interessante é que isso foi visto, no passado, com muito mais clareza do que
parece ser visto hoje em dia, quando as pessoas afirmam ser atraídas pelas
imagens por ela produzidas por conta de sua beleza e composição. Sem
perspectiva histórica, esse conhecimento especializado prepara o caminho
para uma aceitação curiosamente desatenta da propaganda de todos os tipos
de sentimentos destrutivos — sentimentos cujas implicações as pessoas se
recusam a levar a sério. Em algum lugar, é claro, todos sabem que há mais
do que beleza em jogo, numa arte como a de Riefenstahl. E assim suas
posições estão protegidas — as pessoas admiram essa arte por sua beleza
indiscutível e a defendem pela promoção hipócrita do belo. Por trás das
apreciações formalistas solenes e seletivas, existe uma reserva de
apreciação mais ampla, a sensibilidade vulgar, que não é tolhida pelos
escrúpulos da seriedade elevada: e a moderna sensibilidade se apoia nos
acordos contínuos entre a abordagem formalista e o gosto vulgar.
A arte que evoca os temas da estética fascista é popular hoje em dia, e
para a maioria das pessoas nada mais é do que uma variedade do vulgar. O
fascismo pode ser chique e talvez a moda, com sua promiscuidade
irreprimível de gosto, acabe nos salvando. Mas os juízos de gosto, em si,
parecem menos inocentes. A arte que parecia claramente digna de ser
defendida, há dez anos, como um gosto minoritário ou questionador, não
parece mais defensável porque as questões éticas e culturais que levanta se
tornaram sérias, até perigosas, de uma forma que não eram antes. A dura
verdade é que aquilo que pode ser aceitável numa cultura de elite pode não
ser numa cultura de massa e que os gostos que propõem questões éticas
inócuas como propriedade de uma minoria se tornam corruptores, quando
estão mais estabelecidos. Gosto é contexto, e o contexto mudou.
II
Prova número dois. Aqui está um livro para ser comprado numa banca de
aeroporto e em livrarias de “adultos”, um volume em brochura
relativamente barato — não se trata de um item para ser exposto na mesa de
centro da sala, ao gosto dos amantes da arte e dos bien-pensant, como The
Last of the Nuba. Sim, os dois compartilham certa semelhança de origem
moral, uma preocupação de raiz: a mesma preocupação em estágios
diferentes de evolução — as ideias que animam The Last of the Nuba estão
menos fora do armário moral do que a ideia mais crua, mais eficiente, que
sustenta SS Regalia [Emblemas da SS]. Embora o livro seja uma compilação
respeitável feita na Grã-Bretanha (com um prefácio histórico de três
páginas e notas no fim do volume), sabemos que seu apelo não é científico,
mas sexual. A capa já deixa isso claro. Por cima da grande suástica preta de
uma braçadeira da SS, há uma faixa diagonal em que está escrito: “Mais de
cem extraordinárias fotografias coloridas por apenas 2,95 dólares”,
exatamente como se colava uma etiqueta com o preço — em parte, um
chamariz, em parte, por consideração à censura — na capa das revistas
pornográficas, em cima da genitália.
Há uma fantasia generalizada em torno de uniformes. Eles sugerem
comunidade, ordem, identidade (por meio de divisas, distintivos, medalhas,
objetos que declaram quem é o portador e o que ele fez: seu valor é
reconhecido), competência, autoridade legitimada, exercício da violência
legitimado. Mas há uma diferença entre uniformes e fotografias de
uniformes — que são materiais eróticos —, e fotos de uniformes da SS são
itens de uma fantasia sexual especialmente poderosa e amplamente
disseminada. Por que a SS? Porque a SS era a encarnação ideal da afirmação
franca do fascismo do direito à violência, o direito de ter poder total sobre
os outros e tratá-los como inferiores. Era na SS que essa afirmação parecia
mais cabal, porque eles a executavam de modo singularmente brutal e
eficiente; e porque eles dramatizavam isso ao se ligarem a determinados
padrões estéticos. A SS era tida como uma comunidade militar de elite que
não só seria supremamente violenta, como também supremamente bela.
(Não é provável que topemos com um livro intitulado Emblemas da S.A. A
SA, que foi substituída pela SS, não era conhecida por ser nem um pouco
menos brutal do que sua sucessora, porém seus membros entraram para a
história como homens do tipo bebedores de cerveja, parrudos e atarracados;
meros camisas-marrons.)
Os uniformes da SS eram elegantes, bem talhados, com um toque de
excentricidade (mas não em excesso). Comparem-nos com o uniforme do
Exército americano, maçante e não muito bem cortado: casaco, camisa,
gravata, calça, meias e sapatos de cadarço — basicamente roupas civis, por
mais que estivessem cobertas de medalhas e insígnias. Os uniformes da SS
eram justos, pesados, rígidos e incluíam luvas, para isolar as mãos, e botas,
que deixavam as pernas e os pés pesados, encaixotados, obrigando seu
portador a se manter ereto. Como explica a quarta-capa de SS Regalia:
O uniforme era preto, cor que tinha nuances importantes na Alemanha. Sobre o
uniforme, os membros da SS usavam uma variedade enorme de condecorações,
símbolos, insígnias, para distinguir a patente, desde as runas no colarinho até a imagem
da caveira. A aparência era dramática e também ameaçadora.
não está exprimindo aprovação ao que os nazistas fizeram, se é que elas têm
uma ideia um pouco mais do que esquemática sobre o que foi isso que eles
fizeram. Contudo, correntes fortes e crescentes de sentimento sexual, que
costumam atender pelo nome de sadomasoquismo, fazem as brincadeiras
com o nazismo parecerem algo erótico. Fantasias e práticas
sadomasoquistas são encontradas entre heterossexuais e também entre
homossexuais, embora a erotização do nazismo seja mais visível entre
homens homossexuais. O SM, e não o swinging, é o grande segredo sexual
dos últimos anos.
Existe um vínculo natural entre sadomasoquismo e fascismo. “Fascismo
é teatro”, como disse Genet.5 Assim como a sexualidade sadomasoquista:
envolver-se no sadomasoquismo é tomar parte no teatro sexual, uma
encenação da sexualidade. Os adeptos do sexo sadomasoquista são exímios
figurinistas, além de coreógrafos e atores, num drama que é tanto mais
excitante porquanto é proibido para pessoas comuns. O sadomasoquismo é
para o sexo aquilo que a guerra é para a vida civil: a experiência magnífica.
(Riefenstahl explica: “O que é puramente realista, uma fatia da vida, o que é
mediano, cotidiano, não me interessa”.) Do mesmo modo que o contraste
social parece manso em comparação com a guerra, os atos de trepar e
chupar acabam parecendo apenas bons e, portanto, não excitam. O fim para
o qual tendem todas as experiências sexuais, como Bataille insistiu em seus
escritos de toda uma vida, é a conspurcação, a blasfêmia. Ser “bom”, como
ser civilizado, significa ser alienado dessa experiência selvagem — que é
completamente encenada.
O sadomasoquismo, obviamente, não consiste apenas em pessoas
machucando seus parceiros sexuais, o que sempre ocorreu — e em geral se
pensa num homem batendo em uma mulher. O eterno camponês russo
embriagado que espanca a esposa está apenas fazendo algo que tem vontade
(porque é infeliz, oprimido, atordoado; e porque as mulheres são as vítimas
mais próximas). Mas o eterno inglês que leva chicotadas no bordel está
recriando uma experiência. Ele paga uma prostituta para representar uma
peça teatral com ele, para reencenar ou evocar o passado — experiências
dos seus tempos de escola ou do jardim de infância, que agora representam
para ele uma enorme reserva de energia sexual. Hoje, pode ser o passado
nazista que as pessoas invocam na teatralização da sexualidade, porque são
naquelas imagens (mais do que nas memórias) que elas esperam encontrar
uma reserva de energia sexual que pode ser canalizada. O que os franceses
denominam “vício inglês” poderia, no entanto, ser chamado de uma espécie
de afirmação engenhosa de individualidade; a pequena peça teatral remetia,
afinal, ao histórico do caso do próprio tema. A mania de emblemas nazistas
indica algo bem diferente: uma reação a uma liberdade opressiva de escolha
no sexo (e em outras questões), a um grau de individualidade intolerável; o
ensaio da escravização, em vez de sua encenação.
Os rituais de dominação e escravização cada vez mais praticados e a arte
cada vez mais dedicada a expressar seus temas talvez sejam apenas a
extensão lógica de uma tendência da sociedade afluente a transformar todas
as partes da vida das pessoas em um gosto, uma escolha; convidá-las a
encarar a própria vida como um estilo (de vida). Em todas as sociedades até
hoje, o sexo é considerado sobretudo uma atividade (algo para fazer, sem
pensar no assunto). Mas, quando se torna um gosto, pode ser que já esteja a
caminho de se tornar uma maneira consciente de teatro, e este é exatamente
o significado do sadomasoquismo: uma forma de satisfação ao mesmo
tempo violenta e indireta, muito mental.
O sadomasoquismo sempre foi o ponto extremo da experiência sexual:
quando o sexo se torna mais puramente sexual, ou seja, separado da
personalidade, dos relacionamentos, do amor. Não deveria ser
surpreendente o fato de ter se vinculado ao simbolismo nazista, nos últimos
anos. Nunca antes a relação de mestres e escravos foi tão conscientemente
estetizada. Sade teve de inventar seu teatro de punição e deleite a partir do
zero, improvisando o cenário, os figurinos e os ritos blasfemos. Agora,
existe um cenário básico disponível para todos. A cor é o preto, o tecido é o
couro, a sedução é a beleza, a justificação é a honestidade, o objetivo é o
êxtase, a fantasia é a morte.
(1974)
Sob o signo de Saturno
Na maioria dos retratos, ele aparece olhando para baixo, a mão direita no
rosto. A foto mais antiga que conheço o mostra em 1927 — aos 35 anos —,
cabelo escuro e crespo sobre a testa alta, bigode acima do lábio inferior
carnudo: jovem, quase bonito. De cabeça baixa, seus ombros cobertos por
um paletó parecem começar logo abaixo das orelhas; o polegar repousa no
maxilar; um cigarro entre o indicador curvado e o dedo médio e o resto da
mão cobre o queixo; o olhar voltado para baixo, através dos óculos — o
olhar manso, sonhador, do míope —, parece flutuar para além da margem
esquerda da foto.
Num retrato do final da década de 1930, o cabelo crespo pouco
retrocedeu, porém não existe mais nenhum traço de juventude ou de beleza;
o rosto está alargado e a parte superior do tronco parece não só um pouco
alta como também maciça, volumosa. O bigode está mais espesso e a mão
fechada e gorducha, com o polegar dobrado para dentro, recobre a boca. O
olhar é opaco ou apenas mais introspectivo: ele podia estar pensando — ou
escutando. (“Quem escuta muito não vê”, escreveu Benjamin em seu ensaio
sobre Kafka.) Há livros atrás de sua cabeça.
Numa fotografia tirada no verão de 1938, na última de várias visitas que
fez a Brecht no exílio na Dinamarca depois de 1933, ele está de pé na frente
da casa de Brecht, um velho de 46 anos, de camisa branca, gravata, calça
com correntinha de relógio: uma figura descuidada, corpulenta, que olha
com truculência para a câmera.
Outra fotografia, esta de 1937, mostra Benjamin na Bibliothèque
Nationale em Paris. Dois homens, cujos rostos não estão visíveis, dividem
uma mesa a certa distância atrás dele. Benjamin está sentado à direita, no
primeiro plano, provavelmente fazendo anotações para o livro sobre
Baudelaire e a Paris do século XIX que vem escrevendo já faz uma década.
Consulta um volume aberto sobre a mesa, com a mão esquerda — seus
olhos não estão visíveis —, e olha, por assim dizer, para o canto inferior
direito da fotografia.
Seu amigo íntimo Gershom Scholem descreveu seu primeiro encontro
com Benjamin, em Berlim, em 1913, numa reunião de um grupo da
juventude sionista e de membros judeus da Associação Livre de Estudantes
Alemães, da qual Benjamin, aos 21 anos, era um dos líderes. Ele falou “de
improviso, sem lançar um único olhar para a plateia; olhava fixamente para
um canto distante do teto, que ele admoestava com muita veemência, num
estilo que, por acaso, até onde me lembro, já estava pronto para a letra
impressa”.
(1978)
O Hitler de Syberberg
Goethe
Syberberg ganha relevância por sua arte (a arte do século XX: o cinema) e
também por seu tema (o tema do século XX: Hitler). Os pressupostos são
familiares, crus, plausíveis. Mas nem de longe nos preparam para a escala e
o virtuosismo com que ele põe em cena os temas supremos: inferno, paraíso
perdido, apocalipse, os últimos dias da humanidade. Temperando a
grandiosidade romântica com ironias modernistas, Syberberg oferece um
espetáculo sobre o espetáculo: evoca “o grande espetáculo” chamado
História numa variedade de gêneros — conto de fadas, circo, peça de
moralidade, cortejo alegórico, cerimônia mágica, diálogo filosófico,
Totentanz [dança macabra] — com um elenco imaginário de dezenas de
milhões de atores e tendo como protagonista o Diabo em pessoa.
As ideias românticas maximalistas tão afins a Syberberg, como a do
talento ilimitado, a do tema supremo e a da arte mais inclusiva — tais ideias
impõem uma sensação lancinante de possibilidades. A confiança de
Syberberg de que sua arte é apropriada a seus grandes temas deriva de sua
noção do cinema como meio de conhecimento que estimula a especulação a
dar uma guinada autorreflexiva. Hitler é retratado por meio do exame de
nossa relação com ele (o tema é o “nosso Hitler” e “Hitler em nós”), pois os
horrores inassimiláveis da era nazista são representados no filme de
Syberberg como imagens ou signos. (Seu título não é Hitler, mas
justamente Hitler, um filme…)
Simular a atrocidade de modo convincente é correr o risco de deixar o
público passivo, reforçando os estereótipos do obtuso, confirmando a
distância e criando fascínio. Convicto de que existe uma maneira
moralmente (e esteticamente) correta de um cineasta enfrentar o nazismo,
Syberberg não pode fazer uso de nenhuma das convenções estilísticas da
ficção tidas como realismo. Tampouco pode confiar em documentos para
mostrar como foi que aconteceu “realmente”. A exemplo da simulação em
forma de ficção, a exposição da atrocidade em forma de documento
fotográfico corre o risco de ser tacitamente pornográfica. Mais ainda, as
verdades sem mediação que transmite sobre o passado são pobres. Trechos
de filmes do período nazista não podem falar por si; requerem uma voz —
que explique, comente, interprete. No entanto, a relação entre a narração
sobreposta e o filme documental, como a relação entre a legenda e uma
fotografia, é tão somente adesiva. Em contraste com o estilo pseudo-
objetivo da narração na maioria dos documentários, as duas vozes que
ruminam pensamentos e recobrem o filme de Syberberg expressam
constantemente dor, mágoa, desalento.
Mais do que conceber um espetáculo no tempo verbal passado, tentando
simular a “realidade irrepetível” (expressão de Syberberg) ou mostrando-a
em documentos fotográficos, ele propõe um espetáculo no tempo verbal
presente — “aventuras na cabeça”. É claro, uma vez que essa realidade
histórica estética ferrenhamente antirrealista é, por definição, irrepetível. A
realidade só pode ser apreendida de modo indireto — vista no reflexo de
um espelho, encenada no teatro da mente. O drama sinóptico de Syberberg
é radicalmente subjetivo, sem ser solipsista. É um filme fantasmagórico —
assombrado por seus grandes modelos cinematográficos (Méliès,
Eisenstein) e por seus antimodelos (Riefenstahl, Hollywood); pelo
romantismo alemão; e, acima de tudo, pela música de Wagner e pelo caso
de Wagner. Um filme póstumo, na era da mediocridade sem precedentes do
cinema — repleto de mitos de cinéfilo, sobre o cinema como o espaço ideal
para a imaginação e a história do cinema como uma história exemplar do
século XX (o martírio de Eisenstein por Stálin, a excomunhão de Von
Stroheim por Hollywood); e de hipérboles de cinéfilo; ele designa Triunfo
da vontade, de Riefenstahl, como o “último monumento duradouro para
Hitler, além dos noticiários de cinema sobre sua guerra”. Uma das
extravagâncias do filme é que Hitler era um tipo de cineasta, quando na
verdade ele nunca visitou o front e via a guerra toda noite pelo cinejornal. A
Alemanha como um filme de Hitler.
Syberberg cunhou seu filme como uma fantasmagoria: a forma sensual-
meditativa preferida por Wagner, que distende o tempo e resulta em obras
que, na opinião do desapaixonado, são longas demais. Sua extensão é
devidamente exaustiva — sete horas; e, a exemplo de O Anel de Nibelungo,
é uma tetralogia. Os títulos das quatro partes são: Hitler, um filme da
Alemanha; Um sonho alemão; O fim do conto de inverno; Nós, filhos do
inferno. Um filme, um sonho, um conto. Inferno.
Em contraste com os cenários suntuosos, à maneira de Cecil B. DeMille,
que Wagner projetou para sua tetralogia, o filme de Syberberg é uma
fantasia barata. O grande estúdio de som em Munique onde o filme foi
realizado em 1977 (em vinte dias — após quatro anos de preparação) é
decorado como uma paisagem surreal. O plano geral do cenário no início da
película expõe muitos dos modestos adereços recorrentes em diferentes
sequências e sugere os múltiplos usos que Syberberg fará desse espaço:
como espaço de ruminação (a cadeira de vime, a mesa comum, os
candelabros); um espaço de afirmação teatral (a cadeira de lona do diretor, o
enorme megafone preto, as máscaras viradas para cima); um espaço de
emblemas (modelos do poliedro na pintura Melencolia I, de Dürer, e do
freixo do cenário da primeira produção de A valquíria); um espaço de
julgamento moral (um grande globo, uma boneca sexual de borracha em
tamanho natural); um espaço de melancolia (as folhas mortas espalhadas
pelo chão).
Essa terra devastada, coalhada de alegorias (como o limbo, como a Lua),
tem o propósito de reter as multidões em sua forma contemporânea, ou seja,
póstuma. É na verdade a terra dos mortos, uma Valhalla cinematográfica.
Uma vez que todos os personagens do melodrama-catástrofe do nazismo
estão mortos, o que vemos são seus fantasmas — como fantoches, como
espíritos, como caricaturas de si mesmos. Esquetes carnavalescos alternam-
se com árias e solilóquios, narrativas, devaneios. As duas presenças
ruminantes (André Heller, Harry Baer), em cena ou fora dela, mantêm uma
melodia intelectual interminável — listas, julgamentos, perguntas, anedotas
históricas bem como múltiplas caracterizações do filme e da consciência
que está por trás dele.
A musa do épico histórico de Syberberg é o próprio cinema (“o mundo
de nossas projeções interiores”), representado no cenário da terra devastada
por Black Maria, o galpão de papel alcatroado construído para Thomas
Edison em 1893 como o primeiro estúdio de cinema. Ao evocar o cinema
como Black Maria, ou seja, ao recordar a simplicidade artesanal de suas
origens, Syberberg também aponta para seu feito. Usando uma equipe
reduzida, com tempo para uma única tomada de cenas muito longas e
complexas, esse inventor de fantasia tecnicamente engenhoso conseguiu
filmar quase tudo como tinha concebido; e tudo isso está na tela. (Talvez
apenas um espetáculo com orçamento tão baixo como esse — o custo foi de
500 mil dólares — possa se conservar integralmente fiel às intenções e
improvisações de um criador individual.) Por meio dessa forma ascética de
filmar, com seus códigos de ingenuidade intencional, Syberberg fez um
filme que é, ao mesmo tempo, despojado e suntuoso, discursivo e
espetacular.
Syberberg proporciona um espetáculo resultante de meios modestos,
replicando e reutilizando os elementos-chave tantas vezes quanto possível.
Fazer cada ator representar vários papéis, convenção inspirada em Brecht, é
um aspecto dessa estética do uso múltiplo. Muitas coisas aparecem pelo
menos duas vezes no filme, uma vez em tamanho natural e outra,
miniaturizadas — por exemplo, um objeto e sua fotografia; e todos os
nazistas notáveis aparecem representados por atores e por fantoches. A
Black Maria de Edison, o estúdio do primeiro cinema, é apresentada de
quatro maneiras: como uma grande estrutura, na verdade o item principal
do cenário, do qual os atores saem e no qual entram; como estruturas de
brinquedo em dois tamanhos: a menor, numa paisagem de neve dentro de
um globo de vidro, que pode ser segurado na mão de um ator, sacudido e
questionado por ruminações mentais; e como ampliação fotográfica do
globo.
O cineasta utiliza abordagens múltiplas, vozes múltiplas. O libreto é a
mistura de um discurso imaginário com palavras literais de Hitler, Himmler,
Goebbels, Speer, e de personagens secundários, como o massagista
finlandês de Himmler, Felix Kersten, e o camareiro de Hitler, Karl-Wilhelm
Krause. A complexa trilha sonora muitas vezes oferece dois textos ao
mesmo tempo. Entremeados e intermitentemente sobrepostos ao discurso
dos atores — uma espécie de variedade acústica da técnica em que imagens
são projetadas ao fundo do cenário — aparecem documentos sonoros
históricos, como fragmentos de discursos de Hitler e Goebbels, noticiários
da rádio alemã e da BBC. O fluxo de palavras inclui referências culturais em
forma de citações (não raro sem referência da autoria), como Einstein
falando de guerra e paz, uma passagem do “Manifesto Futurista” de
Marinetti — e toda essa polifonia verbal, inflada por excertos do panteão da
música alemã, sobretudo Wagner. Trechos de, digamos, Tristão e Isolda ou
do coro da Nona Sinfonia de Beethoven são usados como outro tipo de
citação histórica que complementa ou comenta o que está sendo dito,
simultaneamente, por um ator.
Na tela, um sortimento diversificado de adereços e de imagens
emblemáticas fornece mais associações. Gravuras de Doré para o Inferno e
para a Bíblia, o retrato de Frederico, o Grande, feito por Graff, o célebre
fotograma do filme de Méliès Viagem à Lua, A manhã, de Runge, O mar de
gelo, de Caspar David Friedrich, estão entre as referências visuais que
aparecem (mediante uma técnica sagaz de projeção de slide) por trás dos
atores. A imagem é construída segundo o mesmo princípio de colagem
adotado para a trilha sonora, salvo pelo fato de que, enquanto ouvimos
muitos documentos históricos sonoros, Syberberg faz uso escasso de
documentos visuais da era nazista.
Méliès em primeiro plano, Lumière bastante em segundo plano. O
metaespetáculo de Syberberg quase engole o documento fotográfico:
quando vemos a realidade nazista no filme, ela é um filme. Por trás de um
ator sentado, que remói pensamentos (Heller), o que se vê é um filme
doméstico em 8 mm ou 16 mm, uma filmagem de Hitler — vago, bastante
irreal. Esses pedaços de filme não têm a função de mostrar como algo era
“realmente”: fragmentos de filme, slides de pinturas, fotogramas, tudo tem
o mesmo estatuto. Os atores representam na frente de ampliações
fotográficas que mostram locais lendários despovoados: aquelas paisagens
desertas, quase abstratas, numa escala estranha, da Gruta de Vênus, de
Ludovico II, em Linderhof, da casa de campo de Wagner, em Bayreuth, da
sala de conferências na Chancelaria do Reich, em Berlim, da varanda da
casa de campo de Hitler, em Berchtesgaden, dos fornos de Auschwitz, são
um tipo de alusão mais estilizada. São também um cenário antes
fantasmagórico do que “real”, com o qual Syberberg pode executar truques
de ilusionista que recordam Méliès: o ator parece estar andando dentro de
uma fotografia de grande profundidade de campo e a cena termina com ele
se virando e desaparecendo por trás da uma abertura num pano de fundo
que parecia inteiriço.
O nazismo é conhecido por alusão, por intermédio da fantasia, em forma
de citação. Citações são literais, como no testemunho de um sobrevivente
de Auschwitz e também, o que é mais comum, em referências cruzadas
extravagantes — como é o caso do histérico homem da SS que recita o apelo
do assassino de uma criança do filme M, de Lang; ou no de Hitler, numa
autojustificação, que, ao se erguer do túmulo de Richard Wagner numa toga
coberta de teias de aranha, cita Shylock: “Se nos picarem, nós sangramos?”.
A exemplo das imagens fotográficas e dos adereços, os atores são também
substitutos do real. A maior parte das falas tem o formato de um monólogo
ou monodrama, em que um ator sozinho fala diretamente para a câmera, ou
seja, para o público, ou com atores falando para si mesmos (como na cena
de Himmler e seu massagista) ou declamando numa fila (os fantoches que
apodrecem no inferno). Tal como num tableau surrealista, a presença do
inanimado faz seu comentário irônico sobre aquilo que supostamente está
vivo. Os atores falam com fantoches de Hitler, de Goebbels, de Göring, de
Himmler, de Eva Braun, de Speer, ou em nome deles. Várias cenas mostram
atores entre manequins de uma loja de departamentos ou entre recortes
fotográficos de fantasmas lendários do cinema mudo alemão (Mabuse,
Alraune, Caligari, Nosferatu) e dos alemães arquetípicos fotografados por
August Sander. Hitler é uma presença multiforme recorrente, retratada na
memória, por via burlesca, numa paródia histórica.
Citações no filme; o filme como um mosaico de citações estilísticas. Para
apresentar Hitler em múltiplos disfarces e sob muitas perspectivas,
Syberberg recorre a fontes estilísticas díspares: Wagner, Méliès, técnicas de
distanciamento brechtianas, barroco homossexual, teatro de fantoches. Esse
ecletismo é a marca de um erudito extremamente cioso de si, um artista
ávido, cuja escolha de materiais estilísticos (a mistura de alta arte com
kitsch) não é tão arbitrária como pode parecer. O filme de Syberberg é,
precisamente, surrealista em seu ecletismo. O surrealismo é a variante
tardia do gosto romântico, um romantismo que supõe um mundo fraturado
ou póstumo. É o gosto romântico com tendência para o pastiche. As obras
surrealistas operam por meio de convenções de desmembramento e
reagregação, no espírito do páthos e da ironia; tais convenções incluem o
inventário (ou a lista aberta); a técnica de duplicação mediante a
miniaturização; o hiperdesenvolvimento da arte da citação. Por intermédio
dessas convenções, em particular a circulação e a reciclagem de citações
visuais e acústicas, o filme de Syberberg habita, com frequência, muitos
lugares simultaneamente — seu principal artifício de ironia dramática e
visual.
Sua maior ironia consiste em zombar de toda essa complexidade,
apresentando sua meditação sobre Hitler como algo simples: uma história
contada diante de uma criança. Sua filha de nove anos de idade é a
testemunha muda e sonâmbula, coroada por lacinhos de celuloide, que fica
vagando pela paisagem do inferno, repleta de fumaça, que abre e fecha as
quatro partes do filme. Alice no País das Maravilhas, o espírito do cinema
— ela é, certamente, concebida com esse fim. E Syberberg também evoca o
simbolismo da melancolia, identificando a criança com a Melencolia de
Dürer: no fim do filme, ela é inserida no interior de uma lágrima bojuda, o
olhar fixo na frente das estrelas. Quaisquer que sejam as explicações, a
imagem deve muito ao gosto surrealista. O estado de sonambulismo é uma
convenção da narrativa surrealista. A pessoa que se movimenta numa
paisagem com essa característica está, tipicamente, num estado sonhador,
sereno. A obra que nos conduz em meio a uma paisagem surrealista é
sempre quixotesca — sem esperança, obsessiva; e, por fim, autocentrada.
Uma imagem emblemática no filme, muito admirada pelos surrealistas, é O
olho refletindo o interior do Teatro de Besançon (1804), de Ledoux. O olho
de Ledoux aparece primeiro na cena como uma imagem bidimensional.
Segue-se uma construção tridimensional, um olho como teatro, no qual um
dos narradores (Baer) vê a si mesmo projetado no fundo — em um filme
anterior feito por Syberberg, Ludwig: Réquiem para um rei virgem, em que
representou o papel principal. Assim como Ledoux situa seu teatro dentro
do olho, Syberberg situa seu cinema dentro da mente, onde todas as
associações são possíveis.
O repertório de artifícios e imagens teatrais de Syberberg parece
inconcebível sem as liberdades e as ironias introduzidas pelo gosto
surrealista e reflete muitas de suas afeições distintivas. O Grand Guignol, o
teatro de fantoches, o circo e os filmes de Méliès eram paixões surrealistas.
O gosto pelo teatro ingênuo e pelo cinema primitivo, bem como por objetos
que miniaturizam a realidade, pela arte do romantismo setentrional (Dürer,
Blake, Friedrich, Runge), pela arquitetura como fantasia utópica (Ledoux) e
como delírio privado (Ludovico II) — a sensibilidade que abarca tudo isso é
o surrealismo. Porém existe um aspecto do gosto surrealista que é alheio a
Syberberg — a rendição ao acaso, ao arbitrário; o fascínio pelo opaco, pelo
sem sentido, pelo mudo. Nada existe de arbitrário ou aleatório em seu
cenário, nenhuma imagem ou objeto desperdiçado, sem peso emocional; de
fato, certas relíquias e imagens em seu filme têm a força de talismãs
pessoais. Tudo significa, tudo fala. Uma presença muda, a filha de
Syberberg, apenas ressalta a verbosidade implacável e a intensidade do
filme. Tudo no filme é apresentado como algo que foi consumido por uma
mente.
Quando a história se passa dentro da cabeça, as mitologias públicas e
privadas ganham estatutos iguais. Ao contrário de outros megafilmes com
cujas ambições épicas ele pode ser comparado — Intolerância; Ivan, o
Terrível, Partes I e II; 2001 —, o filme de Syberberg é aberto a referências
pessoais, e também públicas. Os mitos públicos do diabo são emoldurados
pelas mitologias privadas da inocência, desenvolvidas em dois filmes
anteriores, Ludwig (1972, duas horas e vinte minutos) e Karl May — À
procura do paraíso perdido (1974, três horas), que Syberberg trata como as
primeiras duas partes de uma trilogia sobre a Alemanha, concluída com
Hitler, um filme da Alemanha. Ludovico II, mecenas e vítima de Wagner, é
uma imagem recorrente da inocência. Uma das imagens talismânicas de
Syberberg — a imagem que fecha Ludwig e é reutilizada em Hitler —
mostra Ludovico como uma criança barbada e chorosa. A imagem que abre
o filme de Hitler é a do Jardim de Inverno de Ludovico, em Munique —
uma paisagem paradisíaca da cordilheira do Himalaia (na verdade, um
grande pano preto), palmeiras, lago, tenda, gôndola, que figuraram em
Ludwig.
Cada um dos três filmes vale por si só, mas, na medida em que são
encarados como partes de uma trilogia, vale a pena sublinhar que Ludwig
fornece mais imagens a Hitler, um filme da Alemanha do que o segundo
filme, Karl May. Partes de Karl May, com seu “cenário” real e seus atores,
está mais próximo da dramaturgia linear, mimética, do que qualquer coisa
em Ludwig ou no filme sobre Hitler, incomparavelmente mais ambicioso e
profundo. Mas, como todos os artistas com gosto para o pastiche, Syberberg
só tem um sentido limitado para aquilo que se entende por realismo. O
estilo de pastiche é essencialmente um estilo de fantasia.
(1979)
Recordando Barthes
(1980)
A mente como paixão
Canetti, 1943
Canetti afirma que sua aptidão se volta mais para o ato de ouvir do que
para o de ver. Em Auto de fé, Kien exercita a cegueira, pois descobriu que
ela “é uma arma contra o tempo e o espaço; nosso ser é uma vasta
cegueira”. Em particular nas obras posteriores a Massa e poder — como
aquelas didaticamente intituladas As vozes de Marrakech, O todo-ouvidos,
A língua absolvida —, Canetti sublinha o órgão moralista, o ouvido, e
atenua o olho (enquanto continua a reverberar variações do tema da
cegueira). Ouvir, falar e respirar são elogiados toda vez que algo importante
está em jogo, ainda que na forma de metáforas do ouvido, da boca (ou da
língua) e da garganta. Em sua observação de que “a mais ruidosa passagem
na obra de Kafka fala dessa culpa a respeito dos animais”, o adjetivo em si
é uma forma de reiteração.
O que ouvimos são vozes — das quais o ouvido é a testemunha. (Canetti
não fala de música nem, a rigor, de nenhuma arte que não seja verbal.) O
ouvido é o sentido atento, mais humilde, mais passivo, mais imediato,
menos discriminador do que o olho. A desaprovação do olho por Canetti é
um aspecto de seu afastamento da sensibilidade do esteta, que afirma,
tipicamente, os prazeres e a sabedoria do visual, ou seja, das superfícies.
Em suas últimas obras, dar supremacia ao ouvido é um tema impertinente,
conscientemente arcaizante. De modo implícito, ele reitera o abismo arcaico
entre a cultura hebraica em oposição à grega, a cultura do ouvido em
oposição à do olho, e a moral em contrapartida à estética.
Canetti equipara conhecer e ouvir, ouvir e ouvir tudo e, ainda assim, ser
capaz de reagir. As impressões exóticas armazenadas durante sua estada em
Marrakech são unificadas pelo teor de atenção às “vozes” que o autor tenta
evocar em si mesmo. A atenção é o tema formal do livro. Ao encontrar a
pobreza, a miséria, a deformidade, dedica-se a ouvir, ou seja, a prestar
atenção às palavras, gritos e sons inarticulados “no limiar da vida”. Seu
ensaio sobre Kraus retrata alguém que ele considera ideal como ouvinte e
também como voz. Canetti afirma que Kraus vivia assombrado por vozes;
que seu ouvido estava constantemente aberto; que o “verdadeiro Karl Kraus
era o falante”. Descrever um escritor como uma voz se tornou um clichê tão
grande que é possível não perceber a força — e a literalidade característica
— do que Canetti quer dizer. Segundo seus critérios, a voz equivale a uma
presença irrefutável. Tratar alguém como uma voz é lhe garantir autoridade;
afirmar que alguém ouve significa que a pessoa ouve o que deve ser ouvido.
“Quero sentir antes dentro de mim tudo aquilo em que depois vou
pensar”, escreveu Canetti em 1943 e, para isso, ele precisa de uma vida
longa. Morrer precocemente significa não ter se assimilado por completo e,
portanto, não ter usado a mente como poderia. É quase como se tivesse de
manter sua consciência em permanente estado de avidez, para continuar
inconciliável com a morte. “É maravilhoso como nada se perde na mente”,
escreveu ele em seu caderno, no que deve ter sido um dos seus momentos
frequentes de euforia, “e só isso não bastaria como motivo para viver por
muito tempo ou para sempre?” Imagens recorrentes da necessidade de
sentir tudo dentro de si, de unificar tudo no interior da cabeça, ilustram as
tentativas de Canetti de “refutar” a morte, por meio do pensamento mágico
e do clamor moral.
O autor propõe um acordo com a morte. “Um século? Míseros cem anos!
Será isso demais para um intuito fervoroso?” Mas por que cem anos? Por
que não trezentos? — como a heroína de 337 anos de O caso Makropulos
(1922), de Karel Čapek. Nessa peça, uma personagem (uma socialista
“progressista”) descreve as desvantagens de um tempo normal de vida.
O que um homem pode fazer durante seus sessenta anos de vida? Que diversão ele tem?
O que pode aprender? Não vivemos o bastante para colher o fruto da árvore que
plantamos; nunca aprendemos todas as coisas que a humanidade descobriu antes de nós;
não completamos nosso trabalho nem deixamos nosso exemplo para o futuro; morremos
sem termos sequer vivido. Por outro lado, uma vida de trezentos anos permitiria que
uma pessoa de cinquenta anos fosse uma criança ou um aluno do primário; cinquenta
anos para conhecer o mundo e ver tudo o que nele existe; cem anos para trabalhar pelo
bem de todos; e depois, quando alcançarmos toda a experiência humana, mais cem anos
para viver na sabedoria, governar, ensinar e dar o exemplo. Ah, como a vida humana
seria valiosa, se durasse trezentos anos.
Isso soa como Canetti — exceto pelo fato de que ele não justifica seu
desejo de longevidade com nenhum apelo por um prazo maior a fim de
realizar boas ações. Tão vasto é o valor da mente que só ela é usada para se
opor à morte. Como a mente é tão real para Canetti, ele se atreve a desafiar
a morte e, como o corpo é tão irreal, ele nada percebe de desolador na
longevidade extrema. O escritor está mais do que disposto a viver como um
centenário; enquanto elabora fantasias, não pede aquilo que Fausto
desejava, a volta da juventude, nem aquilo que Emilia Makropulos recebeu
do pai alquimista, o prolongamento mágico da juventude. A juventude não
tem nenhum papel na fantasia de imortalidade de Canetti. Essa fantasia é a
longevidade pura, a longevidade da mente. Supõe-se simplesmente que, na
longevidade, o caráter tem tanto a ganhar quanto a mente: para Canetti, “a
brevidade da vida nos torna maus”. Emilia Makropulos sugere que a
longevidade nos tornaria piores:
Não se pode continuar amando por trezentos anos. E não se pode continuar tendo
esperança, criando, olhando para as coisas por trezentos anos. Não dá para suportar.
Tudo se torna maçante. É maçante ser bom e é maçante ser mau… E aí nos damos conta
de que, na verdade, nada existe… Estamos perto demais de tudo. Podemos ver algum
sentido em tudo. Pois tudo tem valor, já que aqueles nossos poucos anos de vida não
serão suficientes para satisfazer nossa diversão… É repulsivo pensar em como somos
felizes. E isso se deve simplesmente à ridícula coincidência de que vamos morrer em
breve. Adquirimos um interesse de mentira por tudo…
1. Leni Riefenstahl, Hinter der Kullissen des Reichparteitag-Films (Munique, 1935). Uma
fotografia na página 31 mostra Hitler e Riefenstahl debruçados sobre alguns projetos, com
a legenda: “Os preparativos para o Congresso do Partido foram feitos lado a lado com os
preparativos do trabalho de filmagem”. O comício ocorreu entre os dias 4 e 10 de
setembro; Riefenstahl relata que começou a trabalhar em maio, planejando sequência por
sequência e supervisionando a construção de complexas pontes, torres e trilhos para as
câmeras. No fim de agosto, Hitler foi a Nuremberg com Viktor Lutze, chefe da SA
[Sturmabteilung], “para uma inspeção e para dar as instruções finais”. Os 32 operadores de
câmera de Riefenstahl usavam uniformes da SA durante toda a filmagem, “sugestão do
chefe da equipe [Lutze], para que ninguém perturbasse a solenidade das imagens com
trajes civis”. A SS forneceu uma equipe de guardas.
3. Se quiserem outra fonte — pois hoje Riefenstahl afirma (numa entrevista para a revista
alemã Filmkritik, de agosto de 1972) que ela não escreveu nenhuma palavra de Hinter den
Kulissen des Reich-parteitag-Films e que nem sequer leu o texto, na ocasião —, há uma
entrevista em Völkischer Beobachter, datada de 23 de agosto de 1933, sobre sua filmagem
no comício de Nuremberg em 1933, na qual faz declarações semelhantes.
Riefenstahl e seus apologistas sempre falam de Triunfo da vontade como se fosse um
“documentário” independente e muitas vezes chamam a atenção para os problemas
técnicos que surgiram durante a filmagem para provar que a diretora tinha inimigos entre
as lideranças do Partido (o ódio de Goebbels), como se tais dificuldades não fossem parte
normal de qualquer filmagem. Uma das mais dóceis repaginações do mito de Riefenstahl
como mera documentarista — e inocente política — é o Filmguide to “Triumph of the
Will”, publicado pela Indiana University Press Filmguide Series, cujo autor, Richard
Meram Barsam, conclui seu prefácio exprimindo a “gratidão pela própria Leni Riefenstahl,
que cooperou com muitas horas de entrevistas, abriu seu arquivo para minha pesquisa e
mostrou um interesse genuíno por este livro”. Ela deve mesmo ter se interessado por um
livro cujo primeiro capítulo é “Leni Riefenstahl e o fardo da independência” e que tem
como tema “a crença de Riefenstahl de que o artista deve, a todo custo, permanecer
independente do mundo material. Em sua própria vida, ela alcançou a liberdade artística,
mas pagou um alto preço”. Etc.
Como antídoto, permitam-me citar uma fonte incontestável (pelo menos, ele não está
aqui para dizer que não escreveu isto) — Adolf Hitler. Em seu breve prefácio a Hinter den
Kulissen, Hitler descreve Triunfo da vontade como uma “glorificação absolutamente única
e incomparável do poder e da beleza de nosso Movimento”. E é mesmo.
4. É assim que Jonas Mekas (The Village Voice, 31 out. 1974) saúda a publicação de The
Last of the Nuba: “Riefenstahl continua sua celebração — ou será uma busca? — da beleza
clássica do corpo humano, a busca que começou em seus filmes. Ela está interessada no
ideal, no monumental”. Mekas, na mesma publicação, em 7 de novembro de 1974: “E aqui
está meu veredicto final sobre os filmes de Riefenstahl: se você for um idealista, verá
idealismo em seus filmes; se for um classicista, verá em seus filmes uma ode ao
classicismo; se for um nazista, verá em seus filmes o nazismo”.
5. Foi Genet, em seu romance Pompas fúnebres, que ofereceu um dos primeiros textos que
mostram a sedução erótica que o fascismo exercia numa pessoa não fascista. Outra
descrição veio de Sartre, um candidato bastante improvável para tais sentimentos e que
deve ter ouvido Genet falar do assunto. Em Com a morte na alma (1949), o terceiro
romance de sua obra em quatro partes Os caminhos da liberdade, Sartre descreve um de
seus protagonistas testemunhando a entrada do Exército alemão em Paris, em 1940:
“[Daniel] não tinha medo, ele se rendia confiante àqueles milhares de olhos, ele pensava:
‘Nossos conquistadores!’, e estava extremamente feliz. Fitava-os nos olhos, se deleitava
com seus cabelos perfeitos, seus rostos bronzeados com olhos que pareciam lagos de gelo,
seus corpos esbeltos, suas coxas incrivelmente compridas e musculosas. Ele murmurou:
‘Como são bonitos!’… Algo havia caído do céu: era a lei ancestral. A sociedade dos juízes
havia desmoronado, a sentença tinha sido apagada: aqueles espectrais soldadinhos cáqui,
os defensores dos direitos do homem, tinham sido derrotados… Uma sensação insuportável
e deliciosa se espalhou pelo seu corpo; ele mal conseguia enxergar direito; repetia,
ofegante: ‘Como se fosse de manteiga… eles estão entrando em Paris como se fosse de
manteiga’… Ele gostaria de ser mulher para jogar flores para eles”.
6. Asja Lacis e Benjamin se conheceram em Capri no verão de 1924. Ela era uma
revolucionária comunista da Letônia e diretora teatral, assistente de Brecht e de Piscator,
com quem Benjamin escreveu Nápoles em 1925 e para quem escreveu o Programa de um
teatro infantil proletário em 1928. Foi Lacis quem conseguiu um convite para Benjamin ir
a Moscou no inverno de 1926-7 e que o apresentou a Brecht, em 1929. Benjamin esperava
casar-se com ela, quando ele, afinal, se divorciou em 1930. Mas ela voltou para Riga e,
mais tarde, passou dez anos num campo de prisioneiros soviético.
7. Scholem afirma que o amor de Benjamin por miniaturas é subjacente a seu gosto por
manifestações literárias breves, patente em Rua de mão única. Pode ser; mas livros desse
tipo eram comuns na década de 1920, e aqueles textos curtos e independentes foram
apresentados num estilo de colagem especificamente surrealista. Rua de mão única foi
publicado por Ernst Rowohlt, em Berlim, em forma de folheto, com uma tipografia
destinada a evocar efeitos de choque publicitário; a capa era uma colagem fotográfica de
expressões agressivas em letras maiúsculas recortadas de anúncios de jornal, letreiros
oficiais e curiosidades. O trecho de abertura, em que Benjamin saúda a “linguagem de
prontidão” e denuncia “o pretensioso gesto universal do livro”, não faz muito sentido, a
menos que saibamos que tipo de livro Rua de mão única pretendia ser.
8. Carta de Adorno para Benjamin, escrita de Nova York no dia 10 de novembro de 1938.
Benjamin e Adorno se conheceram em 1923 (Adorno tinha vinte anos) e, em 1935,
Benjamin começou a receber uma pequena bolsa do Institut für Sozialforschung de Max
Horkheimer, do qual Adorno era membro.
9. “Em lugar de tentar apresentar a maior realidade possível fora de si mesmo”, escreveu
Jacques Rivière, o artista simbolista “tenta consumir tanto quanto possível dentro de si
mesmo […] oferece a mente como um tipo de teatro ideal, onde [os eventos] podem ser
representados sem se tornarem visíveis.” O ensaio de Rivière sobre o simbolismo, “Le
Roman d’aventure” (1913), é a melhor análise a esse respeito que conheço.
Título original
Under the Sign of Saturn
Capa
Claudia Warrak
Preparação
Cláudia Cantarin
Revisão
Huendel Viana
Aminah Haman
Versão digital
Rafael Alt
ISBN 978-65-5782-470-2