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Patrícia Lino

Antilógica
Leitura concêntrica de “Código”
(1973) de Augusto de Campos

camafeu 1
© Patrícia Lino, 2018

Este livro está de acordo com as normas


ortográficas vigentes em Portugal

coleção camafeu

Produção editorial
Anelise Freitas
Fernanda Vivacqua
Fred Spada
Otávio Campos

Projeto gráfico
Otávio Campos

Revisão
Fred Spada

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

L758a Lino, Patrícia, 1990 - .


Antilógica: leitura concêntrica de “Código” (1973)
de Augusto de Campos / Patrícia Lino
– Juiz de Fora: Edições Macondo, 2018.

isbn 978-85-93715-07-5

1. Ensaio I. Título
cdd: B869.4

[2018]
edições macondo
Rua Barbosa Lima, 259/305
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36010-050
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a leitura dos primeiros poemas concretos, incluí-
dos regularmente em edições de baixa tiragem, foi mui-
tas vezes ofuscada pelo discurso crítico que orientava
os debates, quando os havia, sobre o possível definha-
mento de um movimento sem corpus poético. A tradi-
ção samizdat1, fomentada pela ausência dos poemas e,
ao mesmo tempo, pela presença constante dos poetas
concretos no círculo literário brasileiro, assinou, entre
outros textos não-literários, Metalinguagem, a versão
em português d’Antologia Poética de Ezra Pound, a edi-
ção brasileira de Poesia Russa Moderna, as introduções
às Obras Completas de Oswald de Andrade ou Teoria da
Poesia Concreta (1965 & 1975)2.
Sucederia à entrada paradoxal da poesia concreta na
vida cultural a tão esperada aparição do seu corpus com
Xadrez de Estrelas (1976) de Haroldo de Campos, Poe-
sia pois é poesia (1977) de Décio Pignatari, Poesia 1949-
1979 de Augusto de Campos e, consequentemente, o
reconhecimento do quão novos e irreversíveis eram os
princípios concretos no contexto da poesia contempo-
rânea brasileira e internacional3.
A explicação das práticas concretas (marcadas pe-
las vanguardas do início do século: futurismo italiano,
suprematismo, dada internacional, surrealismo, cubo-
futurismo russos) resumiu-se, contudo e quase sempre,
pela falta de comunicabilidade do movimento, à única
possível: pouco detalhada e generalista. Associado à
metade da década de 50, o poema concreto foi descrito
como um tipo de produção poética focada na distribui-
ção espacial e poupada dos elementos a dispor no papel
e preocupada com a tipografia, os fonemas e as pala-
vras4. Já a ideia de poesia concreta como estrutura con-

5
sistiu, regra geral, na descrição do movimento estético
e político que faz os poemas concretos.
Definir tais estratégias e estrutura comporta vá-
rias dificuldades, porque, ainda que ambas as tenta-
tivas reúnam em si os dados comuns à grande maio-
ria da produção concretista, elas não incluem, por
exemplo, os poemas visuais (sem palavras) de Décio
Pignatari nem os Poemóbiles (1968-1974), a Caixa
Preta (1975), os Hologramas (1985-1987) de Augus-
to de Campos, Júlio Plaza e Moysés Baumstein ou os
mais recentes Clip-poemas (Não, 2003) de Augusto
de Campos. Estão também longe de fazer justiça a al-
guns dos projetos averbais ou extra-verbais concebi-
dos, pro et contra, a partir dos princípios concretos.
A instabilidade epistemológica carregada pelo ter-
mo poesia concreta é, ao mesmo tempo, resultado do
caráter grandioso do projeto do grupo Noigandres que,
sem ignorar o contexto da poesia nacional, o projetou,
desde o início, internacionalmente. A empreitada am-
biciosa dos irmãos Campos, de Décio Pignatari e, num
segundo momento, de Ronaldo Azeredo e de José Lino
Grünewald, aconteceu dentro e fora do contexto bra-
sileiro. Dividiu, a nível interno, opiniões e conquistou
inimigos pela sua produção poética e, paralelamente,
pela sua radicalidade teórico-crítica. A nível externo,
influenciou incontáveis autores latino-americanos; en-
tre eles, por exemplo, o próprio Octavio Paz (com os
seus 6 topoemas)5, Luis Pazos (La Corneta, 1967), Ed-
gardo Antonio Vigo (Poemas Matemáticos Incomes-
tibles, 1968), Edgar Bailey (“Introducción al arte con-
creto”, 1946 & “Poesía concreta: un testimonio y un
manifiesto”, 1980), Nicanor Parra (Artefactos, 1972),
Ulises Carrión (The New Art of Making Books, 1975),
Guillermo Deisler (HABITAT, 1978), ou, em plena ati-
vidade, o Grupo Escombros (e.g., Pizza de Poesia Con-
creta, 2002).

6
A partir da exploração de todas as dimensões da
palavra, que acompanhava a transformação do mun-
do, o projeto verbivocovisual (verbi-voco-visual) am-
pliou grandemente o horizonte das possibilidades da
poesia brasileira. Dispunham, os poetas concretos, de
um enorme leque de faculdades técnicas, tecnológicas
— que se impunham também a nível da forma — e da
utilização de materiais e processos oriundos de várias
áreas expressivas. E foi este, ironicamente, o calcanhar
de Aquiles do projeto didático da poesia concreta, pois
quem espera de autores tão eruditos e sofisticados
como os de Noigandres um(a) leitor(a) tão risonho(a) e
gracejador(a) como o(a) que maneja a Caixa Preta?
Com efeito, o encontro desarmónico entre didatis-
mo e seriedade estética acabou por aclarar as aparentes
contradições do movimento: o que começou por que-
rer chegar à cultura de massas exigiu, num segundo
momento, justificações teóricas elaboradas. As justifi-
cações — pelas quais a cultura de massas jamais nutri-
ria curiosidade alguma —, conduziu a uma poesia fei-
ta para poetas (por quem se interessaram aqueles que
criticavam de modo veemente a distância abissal entre
cultura industrial e cultura erudita)6.
A ampliação técnico-formal introduzida pelo grupo
Noigandres no contexto da poesia mundial trouxe tam-
bém consigo a ideia de um emissor elidido, porque, ao
existir como lugar único e autónomo, o poema concreto
descarta, em certa medida, o agente da representação e
o próprio ato de representar. Em alguns casos, de modo
absoluto. E por isso, ainda que polémico e polemiza-
do, mal recebido ou ostracizado, o caráter autónomo
do poema concreto antecipa, além do poema praxis, o
livro-poema ou o poema espacial7.
“Código” (1973) de Augusto de Campos, publicado
respetivamente 20 e 15 anos mais tarde do que o Ma-
nifesto de Gomringer (1953) e o Plano Piloto da Poesia

7
Concreta (1958)8, abre o espaço para a reflexão sobre
a tradição literária estritamente ligada à visualidade.
Criado depois do boom concretista3 , reúne e resume, a
nível teórico, grande partes das questões propostas pela
nova área linguística verbivocovisual. Expõe, igualmen-
te, as dificuldades ou limitações, no sentido de definir
a verdadeira função da poesia, e por acréscimo a verda-
deira função da crítica da poesia, geradas pela extensão
visual do código verbal, fonético e averbal.

8
“Código” (Campos, 1979 [1973])

9
Os ensaios ou artigos escritos sobre “Código” fa-
lham a análise etimológica do título10 e, por consequên-
cia, parte essencial da análise do poema.
Limitada, e no entanto intrigante, é a leitura verbal
que parece ser, segundo os críticos, opção única diante
de um poema semiótico. A atenção, centrada unica-
mente na disposição e organização das letras contidas
em “Código”, parece ignorar a dimensão visual que Au-
gusto, de modo absolutamente polifónico, imprime ao
objeto.
A análise detalhada de “Código” apresenta-se, tam-
bém por isto, como um exercício de reflexão sobre al-
gumas das mais importantes questões levantadas pelo
movimento concreto e pela recepção persistentemente
errónea dos poemas concretos. Claro está, do mesmo
modo, que um dos maiores problemas reavivados pela
poesia concreta, a propósito da sua recepção, é a ausên-
cia de um sistema teórico-crítico de interpretação que
garanta, em lugar de uma leitura unicamente analítico-
discursiva, a tão-só leitura verbivocovisual ou “sintético
-ideogramática” (Pignatari apud Aguilar, 2005: 21) do
objeto verbivocovisual.
A tendência fonocêntrica (não a preferência pelo
significante linguístico — palavra escrita ou falada —
em detrimento do significado; mas a preferência pelo
significante linguístico em detrimento da significância
visual) com que os críticos parecem encarar “Código”
revela-se insuficiente.
“Código” concentra todas as letras contidas no seu
título. A disposição de cada uma das letras num qua-
dro paralisante dialoga, obviamente, com o significado
da própria palavra código. E, assim sendo, a ideia do
processo de decifração contida em código (significante
34 significado) determina a forma do poema:

10
Esse caminho de leitura, devido à confi-
guração geométrica das letras, começa em
um semicírculo que forma a letra “c”, e ter-
mina em um círculo que forma a última le-
tra “o” da palavra. Nesse percurso, o olhar
passa por mais dois círculos, um formado
pela primeira letra “o” e outro formado pe-
las curvas das letras “g” e “d”. (Pietroforte,
1983: 147)

O “caminho da leitura” é interrompido pela única


forma rectilínea do poema que, como categoria plástica
distinta — uma reta ante quatro círculos concêntricos11
—, intervém na construção da relação semi-simbólica
das formas. Sugere, aliás, em conjunto com “g” e “d”, a
forma da labrys (λάβρυς, machado de dois gumes) e as-
segura, por extensão, a dimensão labiríntica e o caráter
lúdico-formalista do texto12.
A forma circular e não-linear da composição abre
portas à relação recreativa entre receptor e labirinto.
Constitui, além disso, uma das maiores conquistas do
movimento da poesia concreta: a deslocação do inte-
resse receptivo da mensagem (como sistema objetivo
de informação) para a decisão interpretativa (como o
valor dominante da informação)13.
O processo anti-arbitrário do mágico, científico e
intrincado “Código” constrói-se a partir de um conjun-
to de referências culturais com vista ao conjunto de re-
sultados fruitivos que, “rigidamente prefixados e condi-
cionados” (Eco, 1976: 43), jamais escapam do controlo
do autor elidido.
“Código” encarna, em simultâneo, signo e significante,
o signo material e o alargamento visual do significante a
partir do significado (a leitura de “Código” corresponde
à decifração do código — ele mesmo). Nele, negociação e
manipulação minimalista, visual e sonora do signo poéti-
co, convergem todos os gestos e níveis da leitura.

11
Patrícia Lino. Representação isométrica de CÓDIGO

Patrícia Lino. A organização visual de “Código” respeita


os três diferentes níveis fonéticos de kó/di/gu (1. “c”; 2.
“o”; 3. Semi-círculo, “di”; 4. “go”) do mais alto (kó) para
o mais baixo (gu), ou seja, de perto (kó) para longe (gu)

12
Os vários passos exigidos à interpretação não depen-
dem exclusivamente do título. São, porém, na presença
do título, conduzidos por ele. O título também invalida
outras opções em que descontextualizadamente se po-
deriam ler, em “Código”, “god”, “dog” ou, por exem-
plo, “good”. Urge, por outras palavras, lê-lo em detalhe.
E, de facto, o referido estudo de Miriam Brenner fá-lo
brevemente ao propor a equivalência entre “código” e
“conjunto de leis”. Mas por aí se fica, ignorando que a
leitura etimológica de “código” é quase tão enigmática
quanto a leitura semi-simbólica do poema-ideograma.
“Conjunto de leis” está, além do mais, entre os signifi-
cados mais tardios adquiridos pelo significante.
“Código”, do latim caudex, significa originalmente
tronco de árvore. O “tronco de árvore”, mais tarde as-
sociado ao “papel”, aproxima lexicalmente “código” e
“livro”; “livro” passa a corresponder àquilo que contém
o “código”.
O passo seguinte também é lógico.
A forma exterior do poema assemelha-se ao corte
transversal de um tronco. Os círculos concêntricos de
“Código” lembram, por sua vez, os anéis anuais das ár-
vores. São, também, os anéis anuais de outra forma de
código.

13
Patrícia Lino (ilustração explicativa de “Código”, 2017)

14
A associação entre o código visual labiríntico e o có-
digo da dendrocronologia não parece coincidência. É a
chamada de atenção para outros modos de ler e com-
põe uma das maiores críticas trazidas pelos concretistas
para um debate em que a primeira e última perguntas
interrogam o poema a partir da sua recriatividade, for-
ma e interdisciplinaridade.
Parece-me, além disso, que a discussão se alarga
quando para o centro dela se traz o que os estudos lite-
rários depreciaram até hoje: se o poema concreto aposta
na união dos registos verbal, visual e sonoro para fazer
o poema, o sistema fonocêntrico da crítica cai perante
ele, pois como escrever sobre um poema como “Códi-
go”, sem recorrer às linguagens a que “Código” recorre
em primeiro lugar?
O poema concreto pede a reelaboração dos instru-
mentos analíticos da crítica literária.
Criticada pelos poetas concretos a propósito dos cal-
ligrammes de Apollinaire, outra das questões levanta-
das por “Código”, e uma das grandes problemáticas do
próprio movimento concreto, diz respeito à linha ténue
entre o poético e o não-poético. Quando todos os ele-
mentos do poema que, em “Código”, constituem parte
considerável da forma, se independentizam das suas
funções pragmáticas (transmitir redutoramente uma
mensagem), a linguagem verbal (c-ó-d-i-g-o) adqui-
re, em simultâneo, outro tipo de proporções literárias e
interpretativas. O risco desta linha ténue entre poético
e não-poético decorre precisamente da possibilidade de
a subtileza, tão frágil como qualquer tentativa de defi-
nir o poético e o não-poético, não se sustentar a longo
prazo. E o que começa por ser um poema concreto, ra-
pidamente se transforma ou num objeto gráfico, cuja
natureza não difere muito da natureza de um anúncio
publicitário, ou na ilustração trivial da expressão se-
mântica (código).

15
A colocação ou deslocação de “Código” em relação
ao espaço poético-intermédio depende inteiramente da
leitura interdisciplinar que dele pode fazer-se. Reco-
nhecer, em “Código”, uma dimensão labiríntico-inter-
textual garante e afirma a sua permanência no contexto
do espaço poético-intermédio.
De resto, poder-se-ia dizer de qualquer outro poema
que a sua interpretação é aberta; porque espera-se de
um poema que molde, de modo criativo, um ou mais
signos. No caso do poema concreto, a interpretação
— tal qual como ela é para o poema — alarga-se; não
porque o poema concreto atinja conexões inteiramente
originais entre um ou mais signos, mas porque ele exige
à interpretação que se estenda aos campos gráfico e so-
noro e à relação entre os dois.
Há que estabelecer, porém, a diferença entre o que
a teoria concreta afirmou sobre a composição do poe-
ma (antes de mais, objeto útil e funcional) e o que o
poema atinge, depois de visto, em si e por si. A defesa
da utilidade objetificada do poema não corresponde à
utilidade do objeto-poema, tampouco à transformação
do poema concreto em objeto de consumo — ainda que
possa assemelhar-se a um anúncio publicitário.
O movimento concreto carregou o peso de intro-
duzir, no contexto da poesia mundial, algo no mínimo
desafiador; que começou por ser o peso de justificar
o sentido do desafio e, mais tarde, a adaptação às cir-
cunstâncias perante a resistência feroz da crítica. Como
qualquer movimento de vanguarda, apresentou incoe-
rências, mas não deixou de ser ele a catapulta teórica
e prática de grande parte dos movimentos nacionais
(simpatizantes ou contrários) que surgiriam logo de-
pois. A prova irrefutável da sua importância é, mais do
que estas manifestações imediatamente posteriores, a
existência de uma margem atual e interdisciplinar em

16
que novos(as) poetas brasileiros(as) e internacionais
vêm reagindo aos limites tradicionais da expressão do
signo poético e ao dilema ideogramático que, desen-
volvido a partir da premissa concreta, constitui um dos
diálogos mais promissores da literatura.

17
notas

1
Escreveu Décio Pignatari, na contracapa de Poesia pois é poe-
sia (1977), que a reedição de Teoria da Poesia Concreta (1975)
e a publicação de volumes como Xadrez das Estrelas (1976) ou
do próprio Poesia pois é poesia interrompiam a “tradição sa-
mizdat” (edição ou circulação clandestina de textos literários)
a que, por anos, os poetas concretos estiveram associados.

2
Em detalhe, o trio concreto (irmãos Campos e Pignatari)
opõe-se oficialmente, em 1950, ao programa formalista do
Clube da Poesia (comunidade de poetas e críticos da Geração
de 45). Em 1952, lança a revista Noigandres (termo inspirado
por uma das personagens de Ezra Pound, Emil Lévy, quem
primeiro lê a palavra “noigandres” — por sinal, obscura —
num dos poemas do trovador Arnaut Daniel e a define como
um antídoto contra o tédio). O lançamento da revista coin-
cide, em São Paulo, com a formação do grupo Noigandres.
Seguem-se a publicação de “Poesia Concreta” de Augusto
de Campos, em 1955, e, imediatamente a seguir, em 1956,
a abertura da bem conhecida Exposição Nacional de Arte
Concreta (Museu de Arte Moderna – São Paulo).

3
A raiz controversa da poesia concreta explica, porém, o ca-
ráter quase exclusivo com que foi pensada, pois, quando em
análise, parece continuar a fazer referência a dois momentos
no tempo. O mais instantâneo tem em conta as estratégias
usadas em vários exemplos de poema concreto quando, ao
olhar um poema concreto, o reconhece como concreto. O
menos instantâneo, no qual poesia concreta significa concre-
tismo, diz respeito à estrutura da qual o concreto faz parte.

4
Foram já ultrapassadas as leituras que descreviam, além dis-
so, o poema concreto como um — parafraseando Augusto de
Campos — “combate contra o verso” (Campos, 2009 [1978]: 264).
5
Paz entendeu, como poucos da sua época entenderiam, que
a poesia concreta respondia às necessidades do tempo e que
tal resposta não propunha a destruição do logos, mas a sua
apropriação interdisciplinar: “A retórica da poesia concreta
não é discursiva — mas é retórica: a linguagem é nossa con-
dição, nosso constituinte. [...] A relação entre poesia e crítica
que define a poesia concreta não a separa da tradição da poe-
sia ocidental, converte-se em sua contradição suplementar.
[...] Pelo seu carácter imediato e total, o poema concreto é
uma crítica do pensar discursivo. Negação do curso — do
transcuro e do discurso. [...] A poesia moderna é a dis-per-
são do curso: um novo dis-curso. A poesia concreta é o fim
desse curso e o grande re-curso contra esse fim...” (Paz apud
Haroldo de Campos, 2000: 29).

6
Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto ou Mário Faus-
tino. Ao contrário de Lêdo Ivo ou José Lins do Rego, cujas
incursões agressivas a propósito do movimento concreto se
reduziram ao insulto fácil, Manuel Bandeira reconheceu, em
vários artigos e crónicas, o valor e a necessidade da feitura
dos poemas concretos. Além disso, Bandeira não cingiu a
curiosidade à teoria: fez ele mesmo poemas concretos.
O interesse que João Cabral, autor muito admirado pelo
grupo Noigandres, teve por outros métodos inventivos resul-
tou do que o próprio considerava ser um auto-cerramento da
poesia brasileira. É, aliás, conhecida a leitura do movimento
concreto a partir Da Função Moderna da Poesia (1954), tese
apresentada no Congresso Internacional de Escritores, em
São Paulo. Cf. Franchetti, Paulo. Alguns Aspectos da Teoria
da Poesia Concreta. Editora da Unicamp, 1989.
Dos três, Faustino foi o que menos se pronunciou sobre a
validade da poesia concreta na vida cultural brasileira. Pro-
nunciou-se, contudo, de modo franco: descartou os nomes
de Drummond, Cecília Meireles, João Cabral, Murilo Men-
des e outros na busca de um “safanão” literário (“‘A Poesia
Concreta’ e o Momento Poético Brasileiro”, 1957) e acolheu,
com agrado, as transformações propostas pelo movimento
concreto.
7
Criado e difundido por Mário Chamie, o poema praxis —
consequência direta da “perspectiva socializada da composi-
ção” (Mendonça e Sá, 1987: 192) —, mais teorizado do que
praticado, conduz, como resultado do seu fracasso estético
-prático, à pergunta que, em primeiro lugar, fundamentou a
crítica acesa de Chamie às práticas concretas: pode o poema
conciliar, ao mesmo tempo, dois propósitos? Estético e, mais
do que prático, político?
Contudo, ao contrário de Chamie — cujo projeto, pouco
mais do que um triste e aparente beco sem saída, não acres-
centou nada de relevantemente estético à novidade ou incoe-
rência da teoria da poesia concreta —, Ferreira Gullar encon-
trou espaço para auto-criticar-se. O gesto de auto-criticar-se,
acompanhado da análise profunda do trabalho que publicara
até então (1958), conduziu Gullar a um conjunto de ideias
singulares. Entre elas, os livros-poema — dos quais destaco
Fruta (1959) — ou o poema espacial (vide “O Poema Enter-
rado”, 1959). Importa também ressaltar o nome de Wlademir
Dias-Pino que, primeiramente associado ao movimento con-
creto, faz, já no contexto do Poema-processo, o mais antigo
livro-poema brasileiro, A Ave (1953-56); que, em qualidade
estética, ultrapassa os “não-objetos” gullarianos.

8
Não ignoramos, porém, os primeiros cinco textos de 1955,
entre os quais, quatro foram publicados no Diário de São
Paulo: “Poesia, estrutura” (20 de março) e “Poema, ideogra-
ma” (7 dias depois) de Augusto de Campos; “Poesia e paraíso
perdido” (5 de junho) e “Obra de arte aberta” (3 de julho)
de Haroldo de Campos; e o já referido “Poesia Concreta” de
Augusto de Campos, publicado na revista Fórum do mês de
outubro.

9
“Código” insere-se na última e já delimitada fase dos “poe-
mas semióticos”.

10
Vide “Os enigmas das imagens” de Antonio Vicente Pietro-
forte (Semiótica Visual — Percursos do Olhar, 1983, pp. 142-
149), “‘Código’: Leitura de um poema de Augusto de Cam-
pos” de Miriam Silvia Shwartz Brenner (Magma, n. 2, 1995,
pp. 52-59) ou ainda “Código: Uma Apresentação” (Boletim de
Pesquisa nelic, v. 1, n. 2, 1997, pp. 63-66) de Eduardo Mar-
quardt.

11
A leitura de Pietroforte, que associa as figuras circulares à
ideia de identidade e a figura rectilínea à ideia de alteridade,
é claramente, na sequência dos estudos haroldianos, (neo)
barroca. Num sentido prático, a reta (“i”) é o que aclara a
circularidade da união de “g” com “d”.

12
São incontáveis as associações estabelecidas pela crítica
entre as etimologias de labrys e labyrinthos. E, embora não
sejam unânimes — pois há os que afirmam que, em grego, pe-
leky e não labrys designaria o machado de dois gumes (Car-
los Rehermann, El hacha de dos filos, 1999) —, a liberdade
poética (comodista ou conveniente) garante, até aos nossos
dias, a prevalência desta interpretação sobre qualquer outra.
O machado de dois gumes recorda-nos, além disso, de um dos
primeiros poemas visuais da cultura ocidental — o famoso
“Machado” de Símias de Rodes (III a. c.).

13
Questão desenvolvida por Umberto Eco em Opera Aperta
(1962).
bibliografia

Aguilar, Gonzalo Moisés. Poesia Concreta Brasileira: As Van-


guardas na Encruzilhada Modernista. EDUSP, 2005.

Campos, Augusto de. Poesia (1949-1979). Duas Cidades,


1979.

_________________. Verso, reverso, controverso. Perspecti-


va, 2009.

Campos, Haroldo de.“Os «poetas concretos» e João Cabral


de Melo Neto. Um testemunho”, in Colóquio/Letras. Ensaio,
n. 157/158, jul. 2000, pp. 27-32.

Eco, Umberto. Obra aberta. Perspectiva, 1976.

Mendonça, Antônio Sérgio, e Sá, Álvaro. Poesia de vanguarda


no Brasil: de Oswald de Andrade ao Poema Visual. Antares,
1983.

Pietroforte, Antonio Vicente. “Os enigmas das imagens”, Se-


miótica Visual — Percursos do Olhar, 1983, pp. 142-149.
Foram impressos 50 exemplares de
Antilógica para as Edições Macon-
do em Abril de 2018. Uma cópia
desta publicação está disponível em
www.edicoesmacondo.com.br

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