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Revisão:
Roger Campanhari
Preparação de texto:
Gabriel Corrêa
Capa:
Brunortega | Projetos Gráficos
Diagramação:
Pedro Spigolon
Revisão de provas:
Beatriz Mancilha
Flávia Theodoro
Tamara Fraislebem
Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo
Agradecimentos
Introdução
parte i
Beleza: o Cânone irresistível
capítulo i
Precisas mudar de vida
capítulo ii
Há, sim, grandes livros
capítulo iii
Expandindo o Cânone 1: música
capítulo iv
Expandindo o Cânone 2: filmes
capítulo v
Livros, poesia, música e filmes
capítulo vi
Maravilha
parte ii
Verdade: más idéias em movimento
capítulo vii
Engajamento: do desapego à atenção
capítulo viii
Relembrando: saber requer retaguarda
capítulo ix
Encontrando o ponto arquimédico: a batalha pela natureza humana
capítulo x
Expondo inverdades:
capítulo xi
Desmascarando os gurus:
capítulo xii
Jogando a culpa nos outros:
parte iii
Bondade: o amor é a cruz
capítulo xiii
Amor parental
capítulo xiv
Amizade
capítulo xv
Eros
capítulo xvi
Ágape
capítulo xvii
O humano
Bibliografia
Elogios a Como não perder a cabeça
À memória do Dr. Mortimer J. Adler
Pois o único e verdadeiro objetivo da educação é simplesmente este: ensinar os homens a aprender por si
mesmos; e qualquer instrução que falhe em cumprir isso é esforço despendido em vão.
— Dorothy Sayers, The Lost Tools of Learning, 1947
Quanto mais longe você olha para trás, tanto mais longe pode enxergar à frente.
— Winston Churchill
Quando lia contos de fadas, imaginava que aquelas coisas jamais aconteciam, e agora cá estou no meio
de um!
— Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas, 1865
Agradecimentos
T odos nós temos músicas favoritas, músicas que nunca deixam de nos
emocionar, principalmente quando associadas a pessoas especiais e
momentos significativos em nossas vidas. Minha lista de favoritas, no
entanto, se inclina para o clássico. Durante a faculdade, a música pop
perdeu completamente o controle sobre mim quando ouvi Prélude à l’après-
midi d’un faune de Debussy. 1 Como resultado, prefiro que Rhosymedre, 2 de
Ralph Vaughan Williams, seja tocado no meu funeral em vez de Blowing in
the Wind 3 ou, Deus me livre, On Eagles Wings. Se alguém trouxer uma
guitarra, espero que meus amigos peguem o caixão e fujam.
Antes que houvesse livros, havia música. A mais antiga arte visual
conhecida retrata o homem fazendo música. Os arqueólogos descobriram
uma variedade de instrumentos musicais no Egito, Suméria, Babilônia e na
Europa atual que eram utilizados para fins religiosos e sociais. 4 Lemos
sobre música nos poemas épicos de Homero (800–700 a.C.). Nos épicos,
os coros cantados desempenham um papel ritual crucial nos rituais
fúnebres. Depois que um corpo era exposto e preparado para o enterro, o
cortejo fúnebre começava com as mulheres lamentando sua dor enquanto
os músicos tocavam uma canção fúnebre. Nesta passagem da Ilíada,
Andrômaca lamenta a morte de seu marido, Heitor, pelas mãos de Aquiles:
No meio delas, Andrômaca de alvos braços iniciou o lamento,
Embalando entre as mãos a cabeça de Heitor homicida:
“Oh! Marido! Morrestes jovem para a vida e deixas-me viúva
No palácio. Teu filho não passa ainda de pequena criança,
Se você não “se comove pelas harmonias de sons doces”, você não está em
harmonia com o universo, pelo menos, de acordo com Shakespeare. Em
1987, Allan Bloom, um respeitado professor de clássicos, aplicou esta visão
da música — também subscrita por Platão 11 — à música popular. Bloom
argumentou em The Closing of the American Mind que as vidas de seus
alunos estavam sendo diminuídas pela música que consumiam. A resposta
da academia e da mídia foi pura fúria. Como pode um professor de
clássicos, ainda por cima homem e branco, fazer juízos morais sobre música
popular de adolescentes?
Utilizei The Closing of the American Mind em meus cursos de introdução
aos cursos de filosofia, e lembro-me de uma aluna jogando seu livro contra
a parede. Talvez o que enfureceu os alunos e as elites foi sua descrição de
um menino de treze anos ouvindo rock com fones de ouvido ou assistindo
(na época um canal de videoclipes muito influente) mtv: “Em suma, a vida
é transformada em uma ininterrupta e comercialmente pré-embalada
fantasia masturbatória”. 12 Infelizmente, o livro de Bloom se tornou
profético ao invés de medicinal. A música popular só piorou com a política
e a ideologia adicionadas ao clássico “sexo, drogas e rock ‘n’ roll”, tornando
o resultado ainda mais detestável.
COMEÇANDO COM O ORGANUM
O que chamamos de “música clássica” começou com as melodias dos
cantos da Igreja primitiva e medieval, que em si eram iterações da música
do culto judaico. As Escrituras hebraicas estão repletas de canções de
louvor. Durante séculos, os cantos variaram de região para região e foram
cantados sem notação musical. No século v, uma schola cantorum foi
estabelecida em Roma para estudar e executar os cantos. O Papa Gregório
(540–604) reorganizou a schola e começou a codificar o canto: por essa
razão, este canto é freqüentemente chamado “gregoriano”. 13 Muito pouco
se sabe sobre a música popular ocidental até o início do século xii, quando
os poetas trovadores vagavam de corte em corte cantando canções de amor.
14
Durante o mesmo período, os compositores de música sacra começaram a
ser conhecidos pelo nome. Um dos primeiros compositores que
conhecemos é a abadessa beneditina Santa Hildegarda de Bingen (1098–
1179). Grande parte de sua música foi preservada, incluindo o drama
litúrgico Ordo Virtutum sobre a luta de uma alma para resistir à tentação. 15
No século seguinte, os compositores Léonin e Pérotin, na Catedral de
Notre-Dame de Paris, introduziram na música uma segunda linha
melódica, dando à sonoridade coral uma sensação de profundidade. 16 Duas
melodias distintas cantadas juntas eram chamadas de organum e davam à
música o que poderíamos chamar de perspectiva, análoga àquela que surgiu
na pintura de Cimabue (1251–1302) no início do Renascimento italiano.
A música sempre desempenhou um papel essencial em importantes ritos
de passagem — nascimento, morte, casamento, adoração, qualquer passo
dado de uma fase da vida para outra. A música também faz parte da nossa
recreação quando desfrutamos e celebramos nossa vida por si mesma.
Recreação, nesse sentido, é uma espécie de gratidão, um reconhecimento
de que a vida é uma dádiva e não deve ser tratada unicamente como meio
de obtenção de fins materiais. Na recreação, celebramos o momento e a
música é a sua expressão mais viva. A recreação é uma necessidade humana
e não deve ser considerada uma extravagância reservada para “quando
sobrar tempo”.
A música, como a palavra escrita e as artes visuais, é comunicativa. A
música diz algo que o ouvido escuta e traduz através da mente e da emoção
em significado humano. A música tem um poder único a esse respeito. Ao
estudar música, escreve o historiador Paul Henry Lang, “buscamos o ser
humano na plenitude de suas criações, sempre novas, mas tipicamente
relacionadas, porque descobrimos que cada melodia do passado desperta
um eco hoje em nós”. 17
O neurologista e cientista Dr. Oliver Sacks explora o poder da música
começando pelo modo como ela pode nos transportar inesperada e
imediatamente a um estado de consciência intensificada ou prazer
profundo. Em sua Musicophilia, o Dr. Sacks descreve uma experiência que
muitos de nós reconhecemos imediatamente:
Repentinamente, em meu passeio matinal de bicicleta até Battery Park, ouvi música enquanto
me aproximava da ponta de Manhattan. Então me juntei a uma multidão silenciosa que estava
sentada olhando para o mar e ouvindo um jovem tocar a Chaconne em Ré de Bach em seu
violino. Quando a música terminou e a multidão se dispersou silenciosamente, ficou claro que a
música trouxera um consolo profundo, de uma forma que nenhuma palavra poderia ter feito. A
música, única entre as artes, é completamente abstrata e profundamente emocional. Não tem
poder de representar nada particular ou externo, mas tem um poder único de expressar estados
ou sentimentos internos. A música pode perfurar o coração diretamente; não precisa de
mediação. 18
Sacks explora especificamente como esse poder se traduz em benefício
terapêutico para aqueles com problemas mentais — autismo, Parkinson,
demência e síndrome de Williams. Ele atribui esse poder à “mnemônica
proustiana da música, que evoca emoções e associações há muito
esquecidas, dando ao paciente acesso mais uma vez ao humor e às
memórias, pensamentos e mundos que aparentemente haviam sido
completamente perdidos”. 19
Longe de me desculpar por incluir música em nosso currículo, considero
um deleite, como convidar um amigo para se sentar e comer uma refeição
preparada com primor. Se você não está familiarizado com a música
clássica, prevejo que encontrará nela o tipo de alegria que surge na leitura
de uma grande obra literária. Boa música também é medicinal. Aos dez
anos, Pablo Casals, o grande violoncelista, começou a tocar todos os dias os
prelúdios e fugas de Bach ao piano depois de uma caminhada matinal. 20
Quando questionado por um repórter aos 85 anos de idade se seu hábito
diário havia se tornado enfadonho, ele respondeu: “Não”, tocar
diariamente “é uma nova experiência, um ato de descoberta”. 21 Isso me soa
como uma receita para a sanidade.
A música clássica nos aproxima da história; pode revelar a sensibilidade e
as aspirações da época em que foi criada. Os historiadores culturais
normalmente associam o cantochão — música com uma única melodia —
à piedade cristã e às instituições católicas da Idade Média. A história do
canto na liturgia da Igreja Romana está bem documentada, e diferentes
formas de canto permaneceram a principal forma de música litúrgica nas
igrejas que se separaram de Roma no século xii. A polifonia da Renascença
— várias vozes cantando versos equivalentes em harmonia — representa o
salto quântico no aprendizado científico e a aceleração do desenvolvimento
social durante esse período. A era barroca começou no final do século xvii
com as obras de Bach e Händel. Eles transformaram a polifonia em
homofonia: o contraponto foi moldado em uma única voz dominante
apoiada por uma ou mais vozes adicionais. O período barroco coincidiu
com o início do iluminismo, que foi o primeiro passo significativo para a
era moderna na filosofia, literatura e política. A era neoclássica de Mozart e
Haydn aperfeiçoou o uso da homofonia por meio do desenvolvimento da
forma sonata — exibição, desenvolvimento e recapitulação. A segunda
metade do século xviii marcou o ponto alto do iluminismo em obras como
a ópera A flauta mágica (1791) de Mozart, e o oratório A Criação de Haydn
(1797). Com a chegada da era romântica, compositores como Beethoven e
Schubert se voltaram em direção a uma maior expressão emocional e
experimentação musical. A dupla preocupação do romantismo, que era
explorar a si mesmo e celebrar a liberdade humana, foi expressa na música,
literatura e filosofia da época.
A era moderna, com seu protesto contra a tradição e crescente
fragmentação social, começou antes da catastrófica Primeira Guerra
Mundial. O motim ocorrido em 1913 na estréia de A sagração da
primavera, do compositor Igor Stravinsky, em Paris, foi profético sobre o
que estava por vir. 22 Artistas, escritores, filósofos, cientistas e radicais
políticos se voltaram contra todas as idéias e instituições estabelecidas:
realeza, tonalidade na música, narrativa linear na literatura, Sagradas
Escrituras (e a própria fé), bem como as especulações sobre a verdade,
moralidade e o Cânone da beleza.
O historiador da música Paul Henry Lang considera ridículo excluir a
música da escrita histórica: “É difícil entender por que alguns dos
historiadores mais eminentes de nossa era moderna, que, ao contrário de
seus antecessores, que não restringiam sua atenção a guerras, tratados e
dinastias reais, mas consideravam a história das artes e letras, política e
religião, economia e ciência como uma parte integrante, e talvez a mais
importante, da historiografia, ainda estão completamente desinformados
sobre o papel da música na história da civilização”. 23
Lang prossegue criticando um admirado historiador da Renascença que
“considera uma mera página, ou pouco mais, suficiente para lidar com uma
arte que agraciou a vida diária das pessoas, adornou as festividades das
cortes principescas, enobreceu o ritual místico da Igreja antiga e da vigorosa
liturgia da nova”. Para enfatizar seu ponto, Lang acrescenta um trecho
lúdico para lembrar os historiadores sobre um famoso organista da
Renascença italiana: “Quando Merulo tocava, a igreja precisava ser fechada
para evitar que as pessoas se esmagassem em sua ânsia por entrar”. Deixar
tais fatos de fora da história do Renascimento italiano é algo indefensável.
O MAGNUM MYSTERIUM
Assim como a música tem seu lugar na história, ela sempre foi parte
integrante da prática religiosa. Os compositores transformaram os textos
sagrados em obras de tamanha beleza que estas se enraizaram na memória.
A música se infunde em rituais religiosos e liturgias em todo o mundo. Mas
o dom da música para pessoas de fé não se limita aos clássicos, como a
Missa em Si Menor de J. S. Bach, o Messias de Händel e o Réquiem de
Mozart.
Houve uma abundância de música sacra escrita nos séculos xx e xxi. O
Magnum Mysterium, composto em 1994 por Morten Lauridsen (1943–),
tornou-se uma das peças de música coral mais executadas do mundo. 24 Sua
beleza reverente e extática está lado a lado com a música sacra mais
admirada do mundo antigo.
A beleza do Magnum Mysterium de Lauridsen é um grande contraste em
relação a grande parte da música clássica escrita desde a revolta contra a
tonalidade. Essa perversidade começou em 1908 com o Segundo quarteto de
cordas op. 10, 25 do compositor Arnold Schöenberg (1874–1951). 25
Depois da atonalidade, Schöenberg criou a dodecafonia, em que cada nota
tem o mesmo valor musical que outra — o resultado foi uma cacofonia
desumana. 26 Sem dúvida, o ataque à beleza após a devastação da Europa
pela Primeira Guerra Mundial causou desilusões entre artistas e escritores.
Alguns perderam sua fé religiosa e sua fé na civilização ocidental. Os
compositores expressaram seu distanciamento da tradição com uma
rejeição deliberada da tonalidade.
A escala tonal é um arranjo de sete notas construído sobre uma tônica,
usada por compositores desde a Grécia Antiga e, provavelmente, antes. É a
tonalidade que o ouvido humano reconhece instintivamente como
agradável. Em sua crítica do modernismo musical, John Bortslap escreve:
“O fenômeno da tonalidade é uma condição sine qua non para a criação da
música e para dar à música suas qualidades expressivas”. 27 O compositor
Leonard Bernstein fez da defesa da tonalidade o foco de suas conferências
Charles Norton Eliot de 1976 na Universidade de Harvard, The
Unanswered Question. 28 Em suas palestras transformadas em fitas de vídeo,
Bernstein explicou por que a tonalidade é a chave para o significado da
música. 29 Tanto Bortslap quanto Bernstein consideram a ruptura com a
tradição tonal mais do que uma questão estética — foi a manifestação de
uma crise espiritual no Ocidente. A tonalidade é o equivalente musical da
inteligibilidade na filosofia, da gramática na literatura e da estrutura
narrativa no cinema. Em teologia, é equivalente à morte de Deus.
SURPRESOS PELA BELEZA
Robert Reilly e Jens F. Laurson dedicaram um livro a compositores que,
como Morten Lauridsen, serviram à causa da beleza no século passado,
optando por rejeitar tanto a atonalidade quanto a música dodecafônica,
que se tornou moda após Schöenberg em meados do século xx. 30 Em
Surprised by Beauty, 31 Reilly e Laurson reescreveram a história da música
moderna, prestando ao mundo da música um excelente serviço ao expandir
e corrigir o Cânone da grande música do século xx. Entre os compositores
apresentados no livro estão John Adams, Malcolm Arnold, Samuel Barber,
Maurice Duruflé, Frank Martin, Roy Harris, George Rochberg, John
Kinsella, Edmund Rubbra, Gerald Finzi, Erich Korngold e Ralph Vaughan
Williams. São compositores cuja devoção à tonalidade fez com que lhes
fossem negados os elogios concedidos apenas a compositores da moda que
escreviam música inaudível. Tanto a atonalidade quanto a música
dodecafônica eram uma fantasia intelectualista que substituiu a beleza
musical pela teoria musical.
A inclusão em Surprised by Beauty de Erich Korngold, Bernard Herrmann
e Nino Rota, famosos compositores de trilhas sonoras, é um lembrete do
papel que os compositores de filmes desempenharam em manter a música
tonal diante do público entre os anos 1930 e 1980. Espero que a música do
cinema chegue a mais salas de concerto no futuro, como a música de Ennio
Morricone, John Barry, Henry Mancini, Elmer Bernstein, John Williams,
Miklos Rózsa, Franz Waxman, Max Steiner, junto com Herrmann,
Korngold e Rota. Como Reilly e Laurson demonstram, havia muita música
tonal escrita durante aqueles cinqüenta anos, mas os programas das
orquestras incluíam apenas uma pequena parte dela.
O Cânone da música no século xx está longe de ser estabelecido, mas em
relação à música anterior, os especialistas estão em acordo. Em seu livro
recente The Indispensable Composers: A Personal Guide, o crítico do New
York Times Anthony Tommasini escolhe Monteverdi, Bach, Händel,
Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Chopin, Schumann, Verdi, Wagner,
Debussy, Puccini, Schöenberg, Stravinsky e Bartók. 32 Tommasini poderia
facilmente ter incluído compositores como Brahms, Berlioz, Tchaikovsky,
Liszt, Strauss, Rachmaninov, Ravel, Mahler, Bruckner e Dvořák, entre
outros. Após minha descoberta da música clássica, meus primeiros itens
indispensáveis foram Debussy e Ravel. Mas eu não tinha amigos que
soubessem o suficiente para sugerir mais compositores até que eu fizesse a
pós-graduação. Eu segui meus ouvidos na época, mas fui muito ajudado
por The Lives of the Great Composers, de Harold C. Schonberg, que foi
publicado pela primeira vez em 1970. 33 Este livro continua sendo meu
favorito para indicar aos amantes da música iniciantes, embora deva ser
complementado por Surprised by Beauty. 34
Não há uma lista unânime das melhores composições clássicas, e por um
bom motivo: seria irremediavelmente aleatório. Como se escolhe, digamos,
entre as 555 sonatas para teclado de Domenico Scarlatti, as 106 sinfonias
de Haydn, as 216 cantatas de Bach, os 16 quartetos de cordas e 9 sinfonias
de Beethoven ou as obras-primas operísticas de Mozart? Os Prelúdios op. 28
de Chopin contam como uma peça ou vinte e quatro? Eis o problema. Não
é que algum nerd não possa chegar a uma lista plausível de, digamos, os
500 melhores. Mas tentar colocá-los em ordem seria tolice. Como se avalia
a classificação de uma ópera em relação a uma sonata para piano, um
oratório em relação a um trio de piano? Os amantes da música, no entanto,
não têm vergonha de fazer listas das melhores gravações de todos os
tempos. 35
NENHUM TREINAMENTO NECESSÁRIO
Qualquer um pode ouvir a grandeza da música; uma formação musical ou
educação especial não é necessária. O musicólogo vienense Victor
Zuckerkandl descreveu a música como “um aspecto místico da existência
humana” que atravessa todas as culturas. Em The Sense of Music, ele escreve:
Nunca é demais insistir na verdade da afirmação segundo a qual a experiência de uma boa música
não pressupõe um dom ou aprendizado especial. Isso é precisamente o que há de único na
música: ela fala uma linguagem que é compreendida sem aprendizagem, entendida por todos, não
apenas pelas pessoas ditas musicais. Se assim não fosse, a música folclórica não seria o fenômeno
universal que é. Fundamentalmente, Bach e Beethoven não falam outra língua senão a da canção
folclórica… Muitas pessoas sentiram o impacto total de uma grande obra de arte tonal e foram
movidas por ela dos pés à cabeça no primeiro encontro. Se não houvesse algum entendimento,
alguma comunicação, não teriam sentido o impacto, não teriam ficado tão emocionadas. 36
fabliau da flórida 5
Barca de fósforo
Na praia de palmeiras,
Movem-se rumo ao firmamento,
Dentro dos alabastros
E azuis noturnos.
Espuma e nuvem são uma.
Cálidos monstros-lunares
Se dissolvem.
Enche seu casco preto
Com o branco luar.
Nunca mais terá fim
O murmúrio dessa rebentação.
25 — É preciso ter mais virtudes para resistir à boa sorte do que à má. 9
38 — Fazemos promessas de acordo com nossas esperanças e as cumprimos de acordo com
nossos temores. 10
PENSÉES
Blaise Pascal (1623–1662) estava escrevendo aforismos na mesma época.
Seus Pensées (Pensamentos) foram publicados em 1670, oito anos após sua
morte. O trabalho, constituído por fichas distribuídas aleatoriamente em
pilhas, teve de ser ordenado por seus editores. Ao contrário de seu
contemporâneo, usa seus aforismos para trabalhar nas questões perenes.
Polímata e gênio, Pascal desenvolveu uma máquina de calcular mecânica
(mais tarde chamada de “Pascaline”) aos dezenove anos. Ele tinha uma
aptidão de gênio para matemática, geometria, assim como para as ciências
naturais e sociais.
Apesar de suas inúmeras e duradouras contribuições à matemática e à
física atmosférica, Pensées é sua obra mais lembrada. Nascido católico em
uma França católica, Pascal sentiu-se atraído aos vinte e poucos anos pela
seita dos jansenistas, que enfatizava a Queda da raça humana e a
necessidade da graça para qualquer indivíduo agir de maneira meritória.
Cinco doutrinas do jansenismo foram condenadas pelo Papa Inocêncio x
em 1653. Pascal, no entanto, não se intimidou. Um ano depois, uma
experiência religiosa levou Pascal a escrever sobre sua fé nos Pensées. O tom
ali parece agressivo, impaciente, até mesmo zangado. Ele soa como um
homem em uma missão evangélica, um evangelismo que emprega as
ferramentas de sua imensa erudição. A maravilha, para Pascal, não está em
um pôr do sol sobre o mar: a maravilha nos ensina sobre nosso lugar no
universo. No pensée número 199, “A desproporção do homem”, 11 ele
compara o homem ao infinito e ao universo. Pascal pede que olhemos
primeiro para a natureza, depois para além da natureza, permitindo-nos ver
que “todo o mundo visível é apenas um ponto imperceptível no amplo seio
da natureza”. Percebendo sua insignificância, um homem se perguntará: “O
que é um homem perante o infinito?”.
A esta altura Pascal nos surpreende: não se apóia no céu amplo como sua
única metáfora. Ele quer “mostrar-lhe um novo abismo”, ou seja, a
“imensidão da natureza encerrada neste átomo em miniatura”. Isso deixa o
homem preso entre dois absolutos: o nada “de onde ele emerge” e o infinito
“pelo qual ele está envolvido”. Em seguida, Pascal revela a
complementaridade que ele, como cientista, encontra entre a ordem criada
e as verdades de sua fé. A curiosidade científica torna-se admiração,
tornando-o “mais disposto a contemplá-las em silêncio do que investigá-las
com presunção”. Ele conclui confessando: “O autor dessas maravilhas as
entende: ninguém mais”.
Pascal cita Aristóteles em concordância: “Pois é devido ao seu espanto que
os homens começam agora e começaram desde o princípio a filosofar”. 12
Aristóteles teria conhecido a história contada por Platão sobre como o mais
antigo filósofo conhecido, Tales, foi ridicularizado por uma serva trácia por
cair em um poço enquanto olhava as estrelas: “Ele estava ansioso para saber
as coisas do céu, mas o que estava ao redor dele e abaixo de seus pés
escapava de sua atenção”. 13 Essas palavras seriam para vários artistas um
emblema de honra, mas não há registro de como Tales as interpretou. A
maravilha 14 é a resposta humana natural ao que o céu representa, a
aparente vastidão das coisas.
A maravilha pode mudar a vida, como mudou a de Pascal. É a
consciência metafísica que está por trás da ode de Wallace Stevens ao céu
que escurece. Maravilha não é uma emoção, embora muitas vezes chegue
com emoções, provocando reverência, deleite ou até medo. A maravilha
começa quando os sentidos iluminam o intelecto, suscitando poesia,
música, metafísica e questões de interesse último.
MARAVILHA PRIMORDIAL
Denise Levertov mudou-se da Inglaterra para a América em 1947 e se
tornou uma das melhores poetisas da geração do pós-guerra. Ela publicou
vinte livros de poesia, mas seu primeiro, The Double Image (1946), ganhou
seu reconhecimento nacional no Reino Unido quando tinha apenas 21
anos. Sua coleção de 1959, With Eyes at the Back of our Heads, estabeleceu
sua reputação nos Estados Unidos. Durante os anos 50, Levertov foi
influenciada por transcendentalistas americanos, o que ajudou a liberá-la
para canalizar seu romantismo inato. Durante os anos 60, Levertov se
exauriu no ativismo antiguerra e no feminismo, e sua poesia, dizem alguns,
sofreu. Neste poema é Levertov, a romântica, que descreve como em meio a
“uma série de diversões” a mente pode ser inesperadamente visitada pelo
que ela chama de “maravilha primordial”. 15
primary wonder
Days pass when I forget the mystery.
Problems insoluble and problems offering
their own ignored solutions
jostle for my attention, they crowd its antechamber
along with a host of diversions, my courtiers, wearing
their colored clothes; caps and bells.
And then
once more the quiet mystery
is present to me, the throng’s clamor
recedes: the mystery
that there is anything, anything at all,
let alone cosmos, joy, memory, everything,
rather than void: and that, O Lord,
Creator, Hallowed One, You still,
hour by hour sustain it.
maravilha primordial
Os dias passam quando esqueço o mistério.
Problemas insolúveis e problemas que ofertam
suas próprias soluções ignoradas
se acotovelam por minha atenção, lotam sua antecâmara
junto a uma série de diversões, meus cortesãos, vestindo
suas roupas coloridas; bonés e sinos.
E então
mais uma vez o mistério silencioso
está presente para mim, o clamor da multidão
retrocede: o mistério
de que há alguma coisa, qualquer coisa,
para não mencionar o cosmos, alegria, memória, tudo,
ao invés do vazio: e isso, ó Senhor,
Criador, Santíssimo, Vós ainda assim,
hora a hora o sustentais.
Para nós que não vivemos na Grécia Antiga, o significado é claro: para
estudar, precisamos encontrar tempo e protegê-lo — tempo sem ser
perturbado pelas necessidades práticas da vida. De fato, Aristóteles
acreditava que tais exercícios de estudo eram nossa habilidade humana mais
distintiva, que é sua própria recompensa e confere prazer duradouro: “O
que é por natureza próprio a cada coisa será ao mesmo tempo o melhor e
mais agradável para ela. Em outras palavras, uma vida guiada pela
inteligência é a melhor e mais agradável para o homem, pois a inteligência
pertence somente ao homem. Conseqüentemente, esse tipo de vida é o
mais feliz”. 17
Assim, a fome por coisas superiores, provocada pela maravilha, deve levar
à contemplação real dessas coisas superiores. Para Aristóteles, maravilhar-se
é buscar respostas, e a felicidade pertence a quem as encontra. A maravilha
abre a mente e a contemplação focaliza a mente nas verdades possíveis e
reais. Também pode significar despir-nos de algumas pretensões adultas.
DIES NATALIS
O espírito infantil é um aspecto freqüentemente esquecido da admiração.
As crianças olham para o mundo com os olhos da inocência, lembrando os
adultos de sua própria inocência perdida, de maravilhas deixadas para trás.
Mas não precisa ser assim. Os poetas despertam maravilhas com palavras,
que evocam visceralmente maravilhas que conhecemos e maravilhas
invisíveis bem à nossa frente.
O poeta Thomas Traherne (1636–1674) pertence à escola metafísica do
século xvii, embora não seja tão conhecido como Donne, Herbert e
Marvel. Sua obra mais notável é a mística Centuries of Meditation. 18 É um
extenso poema em prosa de notável espiritualidade, profundidade e
misticismo.
Em uma seção intitulada “Wonder”, ele imagina uma criança entrando
no mundo, “Quando apareci pela primeira vez entre Suas obras”. O
compositor inglês Gerald Finzi (1901–1956) musicou esta seção, uma
cantata em cinco movimentos para voz solo e orquestra, Dies Natalis, que
estreou em 1939. Como Traherne, Finzi não é tão famoso quanto seus
contemporâneos, Gustav Holst e Ralph Vaughan Williams. Mas Finzi
possuía um dom notável para transformar as palavras em música. O crítico
musical e historiador Robert R. Reilly descreve Dies Natalis como uma
obra de arte em que “a alegria imaculada, o sentimento de admiração e a
celebração da criação são transmitidos com uma espontaneidade e êxtase de
tirar o fôlego”. 19
Finzi era por natureza um contemplativo e voltado para a celebração da
experiência da infância. Ele gostava de longas caminhadas pelo interior da
Inglaterra, cuja beleza estimulava sua composição. Ele teve a inspiração
inicial para adaptar o poema em prosa de Traherne em um passeio a pé por
East Anglia em 1927. Finzi viu o telhado de uma igreja do século xvi com
três camadas de anjos com asas abertas e lembrou-se da pintura de
Botticelli, A natividade mística. Depois, Finzi leu mais nos Centuries 20 e
escolheu um trecho para cada um dos quatro movimentos. Aqui está o
texto do segundo. 21
How like an angel came I down!
How bright are all things here!
When first among His works I did appear
O how their glory me did crown!
The world resembled His Eternity
In which my soul did walk;
And every thing that I did see
Did with me talk.
The skies in their magnificence
The lovely, lively air,
O how divine, how soft, how sweet, how fair!
The stars did entertain my sense;
And all the works of God, so bright and pure,
So rich and great, did seem,
As if they ever must endure
In my esteem.
A native health and innocence
Within my bones did grow,
And while my God did all His Glories show,
I felt a vigour in my sense
That was all Spirit. I within did flow
With seas of life, like wine;
I nothing in the world did know
But ’twas Divine.
Tal qual um anjo eu desci!
Quão brilhantes são todas as coisas aqui!
Quando surgi pela primeira vez entre Suas obras
Oh! Como a glória delas me coroou!
O mundo parecia Sua Eternidade
Na qual minha alma andou;
E tudo o que vi
Veio comigo falar.
Os céus em sua magnificência
O ar adorável e animado,
Oh! Quão divino, quão suave, quão doce, quão belo!
As estrelas entretinham meus sentidos;
E todas as obras de Deus, tão brilhantes e puras,
Tão ricas e grandes pareciam,
Como se devessem perdurar
Em minha estima.
Uma inocência e saúde nativa
No interior dos meus ossos cresceu,
E enquanto meu Deus mostrava todas as Suas Glórias,
Eu senti um vigor em meus sentidos
Que era todo Espírito. Por dentro fluí
Com mares de vida, como vinho;
Eu nada do mundo sabia
Mas era Divino.
Por que Pieper afirmaria que o ócio é “a base da cultura”? A cultura, como
já disse, é a escola que freqüentamos todos os dias. Ela nos ensina o
conjunto dominante de valores e o modo de vida em nossa sociedade. Sim,
essas coisas nos são ensinadas mesmo se decidirmos rejeitá-las. Se nossa
cultura iguala o ócio à folga do trabalho, essa atitude será expressa por
vários meios: costumes, modos, estilo de vida e trabalho. Viver em uma
cultura é como respirar o ar. Fazemos isso todos os dias, mas quase não
percebemos. Somente pela reflexão a mensagem de uma cultura se torna
explícita.
Mas também usamos o termo cultura de uma forma normativa.
Chamamos de “culto” aquele que está familiarizado com história, línguas e
o tipo de livros, filmes e música que estamos discutindo aqui. É importante
manter a distinção desses usos. No sentido descritivo, em nossa cultura
atual, o ócio é equiparado ao relaxamento — brincadeiras, esportes,
exercícios, hobbies. Mesmo essas atividades são consideradas como um
desperdício de tempo em relação aos valiosos ou obrigatórios deveres do
trabalho e da família. Agora substitua aquilo que nos afasta do trabalho e
da família pela visão de ócio de Pieper — “Vou passar a tarde no quintal
lendo Guerra e paz”. Seria isso roubar tempo da família ou uma
necessidade para nutrir o seu bem-estar e o de sua família?
Muitas famílias estão tão acostumadas a se empanturrar de séries de tv ou
assistir ao próximo episódio de Star Wars que não percebem quantas velas
queimam de hora em hora nos altares do entretenimento estúpido. Não
precisamos nos preocupar com isso.
PENSAR LIVREMENTE
Você pode escolher o que ler, ouvir e assistir, em vez de se curvar à pressão
do que é popular. Isso também faz parte da formação de sua própria
opinião sobre como você gasta seu tempo e atenção. O recente vício de
olhar para telas está sendo desafiado pelos estudos de “captologia” que
explicam como esta tecnologia é projetada deliberadamente para manipular
e capturar nossa atenção. 18 Eu me pergunto quantas células cerebrais estão
morrendo por causa de horas de ininterrupta observação da tela.
São os “chefes da cultura” que determinam os fatos e valores expressos
pela mídia, entretenimento, políticos e partidos, educação e religião
popular. Eles nos querem amarrados às nossas telas. Esses chefes dominam
os marcadores culturais com suas manchetes, tweets, filmes, programas de
televisão, currículos, palestras e até mesmo sermões e ensino religioso.
Depois de tomar consciência de seu poder manipulador, você pode
“simplesmente dizer não”.
Tudo o que você vê impresso em papel, visualiza em uma tela ou ouve no
rádio, passa por um editor. Pode ser óbvio para a maioria, mas muitas
pessoas não percebem que há um editor entre você e qualquer informação
apresentada. Deixar de pensar criticamente significa que um editor se torna
dono de sua mente. O editor também é responsável pelo que não está
incluído. Os editores decidem qual notícia ou opinião pode ser vista por
seu público. Eles escolhem quem é convidado para o show, o assunto da
conversa e a duração de cada segmento. Resumindo, os editores escolhem o
que você aprenderá ou não em sua plataforma própria.
Torne-se seu próprio editor: pergunte a si mesmo sobre o que lê. Os fatos
e argumentos dão suporte à opinião do editor? Que informações ou
evidências essenciais estão faltando? Quais perguntas não foram feitas? A
apresentação é unilateral, com grande peso para um lado ou para o outro?
BONS LEITORES
Lembre-se da famosa alegoria da caverna de Platão, do livro vii da
República. 19 Os prisioneiros ficam sentados dentro da caverna,
acorrentados, vendo apenas sombras passando ao longo da parede de pedra.
Eles vêem o que está à sua frente e não conseguem virar a cabeça. Uma
chama acima e atrás deles envia a luz que passa por suas cabeças,
projetando-se em uma parede à sua frente. Entre o fogo e os prisioneiros,
há uma passarela. Sócrates pede a Glauco, seu interrogador, que imagine
pessoas carregando vários objetos ao longo da passarela de modo que a luz
projete uma imagem do objeto na parede frontal. Como não vêem mais
nada, os habitantes consideram somente aquilo que enxergam projetado na
parede como real.
Há uma boa razão para essa alegoria permanecer relevante em todas as
épocas. A predominância das telas leva diretamente à questão básica
colocada por Platão sobre o conhecimento. Nossa preocupação com as telas
nos torna prisioneiros voluntários. Segundo Nielsen, em 2016, o
americano médio passou mais de dez horas do dia olhando para uma tela. 20
Não precisamos de correntes ou alguém nos obrigando a assistir. Aceitar
tudo o que se lê na tela o torna um prisioneiro. Seu pensamento está sendo
feito por outra pessoa, um editor em quem você não deve necessariamente
confiar. Esse problema se multiplica de forma alarmante em uma sociedade
onde milhões estão fazendo o mesmo, tendo seus pensamentos e opiniões
formados por outra mente. Tornar-se seu próprio editor não significa
apenas questionar o conteúdo, mas também tomar consciência do meio
pelo qual o conteúdo é transmitido, seu poder de persuadir, criar
dependência, promover o vício ou até mesmo a auto-alienação.
Por exemplo, durante eventos ao vivo é alarmante observar a maioria da
platéia segurando seus telefones celulares para filmá-lo, enquanto seus olhos
se movem intercalando entre a imagem do vídeo e o próprio evento
filmado. Parece que quanto mais importante o evento, mais telefones
celulares são colocados no ar. Estar presente no evento, vivenciá-lo
plenamente, torna-se secundário em relação a registrá-lo. Essa atitude
narcisista, cujo fim é apenas poder dizer aos demais que “eu estava lá!”,
isola a pessoa de seu entorno imediato, tornando o registro do evento mais
importante do que a própria experiência vivida. Os vídeos substituem a
necessidade de memórias, assim como nossa crescente dependência de
dispositivos para lembrar coisas básicas, como números e datas, nos exime
de nossa capacidade de reconhecer essas e inúmeras outras coisas. A maioria
de nós está se tornando voluntariamente prisioneiro, construindo não
apenas nossas próprias correntes, como também a parede sobre a qual uma
versão escurecida da vida real é projetada.
Pergunte a si mesmo quais hábitos mentais você pode ter desenvolvido
em uma cultura dominada pela mídia social e intensa doutrinação cultural.
O uso das redes sociais diminuiu nossa capacidade de atenção, seja lendo,
vendo, falando ou ouvindo. Não é surpreendente a descoberta de um
estudo segundo o qual, entre os anos de 2000 e 2013, a média de atenção
caiu de doze para oito segundos, ou seja, o mesmo que um peixinho
dourado. 21 Outro estudo observa que o trabalhador de escritório médio
verifica e-mail trinta vezes por dia — quase oito vezes a cada hora de
trabalho. 22 A publicação online Slate Magazine fez uma pesquisa de quantos
de seus leitores lêem até o final um artigo. A maioria dos leitores chega ao
meio de um artigo e desiste rapidamente. A Slate concluiu que apenas cerca
de 5% das pessoas que acessam suas páginas estão realmente engajadas de
maneira significativa. 23
Hábitos de leitura online como esse desencorajam a leitura séria. Na
verdade, o tempo gasto em leitura pelos americanos diminuiu
drasticamente, apesar da venda de livros continuar forte. Talvez alguém
deva pesquisar a porcentagem de livros comprados que não foram lidos.
Um estudo de 2014 do us Bureau of Labor Statistics descobriu que os
americanos médios gastam dezenove minutos por dia lendo, enquanto
adultos entre 25 e 34 anos lêem oito minutos por dia nos fins de semana e
feriados e aqueles com idade entre 20 e 24 anos em média cerca de 10
minutos. 24 Qual é o destino da educação neste tipo de cultura? Caberá a
você, leitor, nadar contra a corrente da distração constante.
Um retorno sério aos clássicos requer atenção altamente focada. Em seu
recente e indispensável livro The Novel: A Biography, o crítico literário e
historiador Michael Schmidt repete o apelo de Eliot, Thoreau, Harold
Bloom e outros para “ficarmos quietos”:
Para se tornar um “bom leitor”, é necessário entregar-se a um regime de prazer concentrado. Não
se pretende ler um livro por dia (não há prazer necessário nisso), mas pode-se passar dois ou três
anos em um livro (como fiz com A montanha mágica de Thomas Mann), ler apenas partes de
outro, devorar um terceiro em uma única sessão. A leitura escolar é diferente da leitura que
fazemos para nós mesmos: voltada para os “resultados do curso”, ela implica ler sobre o romance
atordoado como uma criatura em um matadouro, enquanto uma classe rasteja sobre ele,
cutucando, avaliando, fatiando. 25
1 Margaret Macmillan, Paris 1919: Six Months That Changed the World.
Nova York: Random House, 2002.
2 John Cowper Powys é pouco lido atualmente, mas merece ser conhecido
por qualquer um que admire boa escrita e narrativa. Seus romances, muitas
vezes infundidos pela mitologia galesa, são conhecidos por sua escrita
maravilhosa, sensibilidade à natureza e personagens sensuais: um bom lugar
para começar seria um destes: Wolf Solent (1929); A Glastonbury Romance
(1932); Maiden Castle (1936); Owen Glendower (1941); ou Porius (1951).
3 John Cowper Powys, One Hundred Best Books: With Commentary and an
Essay on Books and Reading. Nova York: G. Arnold Shaw, 1916, p. 36.
4 Daisy Christodoulou, Seven Myths About Education. Londres: Routledge,
2013, p. 49.
5 Ibid., 61.
6 Ibid., 64.
7 Provocations, p. 381.
8 Deal W. Hudson, Happiness and the Limits of Satisfaction. Lanham, md:
Rowman & Littlefield Publishers, 1995.
9 Provocation, p. 406.
10 Sol Stern, “E. D. Hirsch’s Curriculum for Democracy”, em City Journal,
outono, 2009, www.city-journal.org/html/e-d-hirsch’s-curriculum-
democracy-13234.html.
11 Ibid.
12 E. D. Hirsch, American Scholar, primavera, 1983: parte do artigo pode
ser encontrado aqui: https://3o83ip44005z3mk17t31679f-
wpengine.netdna-ssl.com/wp-
content/uploads/2018/03/From_Cultural_Literacy_1983.pdf.
13 Id., Cultural Literacy: What Every American Needs to Know. Nova York:
Vintage Books, 1988.
14 Eric Liu, “What Every American Should Know: Defining common
cultural literacy for an increasingly diverse nation”, em The Atlantic, 03 de
julho de 2015, disponível em
https://www.theatlantic.com/politics/archive/2015/07/what-every-
american-should- know/397334/.
15 E. D. Hirsch, Joseph Fand Kett e James Trefell, The Dictionary of
Cultural Literacy: What Every American Needs to Know. Boston: Houghton
Mifflin Harcourt; Revised, Updated edition, 2002. Publicado pela primeira
vez em 1988 e revisado em 1993.
16 Paul Johnson, Modern Times: The World from the 20s to the 90s.
Londres: Weidenfeld & Nicolson, 1983, pp. 413–31.
17 https://www.coreknowledge.org.
18 Greg Lukianoff, Jonathan Haidt, The Coddling of the American Mind:
How Good Intentions and Bad Ideas Are Setting Up a Generation for Failure.
Nova York: Penguin Press, 2018, p. 4.
19 Ibid., p. 237.
20 Ibid., p. 243.
21 Ibid., pp. 243–44.
22 Ibid., p. 244.
23 Provocations, p. 398.
24 Jörn Leonhard, Pandora’s Box: A History of the First World War.
Tradução de Patrick Camiller. Cambridge, Massachusetts: The Belknap
Press of Harvard University, 2018, p. 414.
25 Happiness and the Limits of Satisfaction [Felicidade e os limites da
satisfação]. O que despertou minha curiosidade foi ler como Aristóteles
equiparava a felicidade a uma vida virtuosa e não a um tipo de sentimento.
Procurei as razões pelas quais a felicidade se dissociava de uma vida moral.
26 Deal W. Hudson, Onward Christian Soldiers: The Growing Political
Power of Catholics and Evangelicals in the United States. Nova York:
Threshold Editions, 2010.
27 The Coddling of the American Mind, p. 9.
capítulo ix
Encontrando o ponto arquimédico:
a batalha pela natureza humana
O s pais, nas últimas décadas, estão cada vez mais preocupados com o
efeito da educação pós-secundária sobre as crenças centrais de seus
filhos. Quando seu filho ou filha chega em casa para as férias
repetindo o jargão de seus professores sobre multiculturalismo,
desconstrução e teoria feminista, proclamando a falta de uma ordem
inteligível na realidade e rejeitando quaisquer verdades ou fatos derivados
de autores brancos do sexo masculino, os pais ficam compreensivelmente
alarmados. Isso vem acontecendo há tempo suficiente, no entanto, para
que os pais mais jovens reconheçam o que lhes foi ensinado.
Agora todos os clássicos são triturados nos moinhos da crítica motivada
pela preocupação com raça, gênero, etnia e classe social — diferentes
formas de política identitária. O termo foi cunhado na década de 1970 para
identificar grupos que, segundo afirmam, foram vítimas de opressão
deliberada, bem como de desigualdade social e econômica. Agora é mais
comum, porém, usar o conceito como uma espécie de “clube” intelectual
para derrotar os adversários, como um argumento no qual se invoca uma
determinada raça ou gênero para resolver uma disputa: “Você diz isso
porque você é uma mulher branca rica”, e assim por diante. A forma como
se usa a “política identitária” depende do quanto se acredita que esses
fatores, como raça, determinam nossos valores e opiniões.
Essa ideologia se tornou a vanguarda da doutrinação cultural. O que
muitas vezes é apresentado como uma espécie de relativismo — a idéia de
que valores e moralidade não têm status objetivo, mas são meramente
relativos a várias situações — rapidamente se torna absolutista: os valores
de certos grupos são irrelevantes ou, o que é pior, dependem da raça ou
sexo daquele que os está defendendo. Esses pressupostos extremamente
nocivos a respeito de nossas idéias mais básicas, incluindo a natureza
humana, moralidade, justiça etc., foram adotados e promulgados pela
maioria das instituições educacionais a tal ponto que a própria alegação de
que oferecem “educação” se tornou duvidosa. Ao escolher uma faculdade, é
aconselhável saber o que os professores dos cursos básicos obrigatórios (se
houver) ensinam aos seus alunos. As discussões em sala de aula são
dominadas pela política identitária? Cinqüenta anos atrás, um aluno ainda
podia assistir a uma aula sobre a República de Platão sem ser doutrinado a
respeito de seu “falocentrismo”.
A política identitária serve apenas para reforçar os chavões de um ou
outro lado do debate. O uso de rótulos é apenas outra forma de “pregar aos
convertidos”, de atribuir insidiosamente erros mentais e morais à pessoa do
outro lado do debate. A política identitária, ironicamente, é uma espécie de
imagem espelhada das caricaturas racistas do passado, que retratavam certos
grupos com base na cor da pele, sexo ou inferioridade moral atribuída,
igualmente sem base alguma.
No entanto, a promoção de políticas identitárias encoraja explicitamente o
uso do poder em vez da razão. Em outras palavras, deu origem ao
despotismo na educação, cultura e política. Como se costuma dizer, uma
cidadania educada é necessária para evitar o totalitarismo. No plano
cultural, não provamos a primeira nem evitamos este último. Esses abusos
de poder são geralmente mantidos ocultos tanto pelo perpetrador quanto
pela vítima; o primeiro não quer manchar sua posição moral e a última não
quer sofrer mais por sua desobediência. O abuso desse poder espalhou o
medo por toda a nação de que a eventual recusa em ceder a essas premissas
colocaria carreiras, reputações e finanças em perigo.
Esse poder resultou na aceitação do argumento ad hominem. Significando
literalmente “contra o homem”, os ataques ad hominem se tornaram tão
comuns que não são mais reconhecidos como a falácia lógica que são. Um
argumento ad hominem é um argumento “dirigido contra o argumentador
e não contra seu argumento ou conclusão de seu argumento”, afirma a
descrição do livro que usei para ensinar lógica informal. 1 Há uma distinção
importante a ser feita aqui. Por exemplo, se estivéssemos assistindo a um
programa com duas pessoas debatendo a segurança do tráfego aéreo e uma
pedisse à outra que explicasse seus conhecimentos sobre o assunto, isso
seria razoável. Agora, se no mesmo programa um dos interlocutores
apontasse que o outro já caiu com seu avião particular, isso seria um
argumento ad hominem — uma estratégia retórica com o objetivo de
constranger e silenciar o oponente. A maioria dos ataques ad hominem hoje
em dia se baseia em fatores muito caros aos pós-modernistas: gênero, raça,
nacionalidade, filiação a partidos políticos, riqueza, religião e até mesmo
localização residencial.
Os déspotas culturais podem não ser capazes de controlá-lo com
intimidação pessoal ou ameaça de notas ruins, mas podem criar um clima
social em que opiniões e atitudes específicas são moralmente inaceitáveis. O
poder da rejeição e da vergonha afeta até mesmo nossas sensibilidades mais
endurecidas. Pode causar uma perda dolorosa de amizades e exclusão de
comunidades que antes eram acolhedoras. O mesmo clima pode criar
divisões onde trabalhamos, oramos e nos divertimos. Os déspotas não
discordam, eles condenam. Argumentos ad hominem são eficazes, mas por
razões que nada têm a ver com as questões em si.
Devo fazer uma pausa para dizer que reconheço que o sexo, a raça, a etnia
e outras características de uma pessoa sem dúvida influenciaram como ela
pensa e age, mas não determinam seus pensamentos e ações no grau e
medida que os adeptos da política identitária insistem.
Ataques ad hominem muitas vezes não são contestados em público porque
aqueles que dominam a opinião pública acusam alguém de ódio e
ignorância se ele se opõe, digamos, ao ensino do transgenerismo (a idéia de
que uma pessoa pode ter uma “identidade de gênero” diferente de seu sexo
biológico, e pode escolher qualquer forma dessa identidade) para crianças
em idade escolar. Se a raça está envolvida, o racismo pode ser imputado,
mesmo que a raça não seja um problema.
Nessa visão perversa, apenas alguém carente de sensibilidade moral
esclarecida e compassiva desafiaria a sapientíssima exigência segundo a qual
crianças de oito anos da escola pública devem questionar seu gênero. Tal
criador de problemas deve ter uma deficiência de caráter e precisa ser
reeducado, talvez obrigado a participar de algum “treinamento”. Existem
poucas coisas mais poderosas em uma comunidade do que envergonhar
publicamente um de seus membros — lembre-se do “A” escarlate de Hester
Prynne em A letra escarlate de Nathaniel Hawthorne. A ameaça de
vergonha moral deve manter todos nós quietos ou obedientes.
Uma educação verdadeira prepara e permite que os alunos,
principalmente as crianças, pensem com liberdade, sem o constrangimento
da ideologia ou o medo do preconceito do professor. Por mais que as
faculdades e universidades imponham o pós-modernismo e a política
identitária a seus alunos, elas mutilam a liberdade de pensamento. A busca
do conhecimento por si mesmo é negada completamente. Nada tem
significado fora das categorias empregadas pelos pós-modernistas, e estas
provavelmente mudam mensalmente. Seus julgamentos apenas reforçam
suas suposições sobre os fatores decisivos de gênero, etnia e assim por
diante, exigindo obediência de todos — e ai de quem não obedecer. Não
existe o conhecimento per se, que é um valor em si mesmo.
Uma coisa é rejeitar essas ideologias de imediato, outra é entendê-las
criticamente. Como eu disse antes, o multiculturalismo — definido como
uma apreciação geral por culturas diferentes das nossas — deveria ter
enriquecido o aprendizado, expandindo a gama de culturas estudadas em
sala de aula. Esse tipo de educação esclarecida não é o que o
multiculturalismo oferece: nós agora vivemos em uma cultura onde todas
as divergências são imediatamente atribuídas à raça, etnia e classe de uma
pessoa, e daí à sua suposta posição moral.
Se essa discussão deixa você atordoado, saiba que ela é inevitável em uma
cultura como a nossa. Afinal, como Alice no País das Maravilhas, demos à
luz uma cultura que está de pernas para o ar e na qual o que passa por
discurso intelectual é, na maioria das vezes, um absurdo completo e
absoluto. As mudanças em nossa cultura parecem ter aparecido
repentinamente, mas se desenvolveram lentamente sob o manto de falsas
promessas. O controle intelectual da universidade e de outras instituições
por pós-modernistas nas últimas cinco décadas foi amplamente escondido
de doadores e ex-alunos até que seu domínio tornou as objeções obsoletas.
Assim que esses acadêmicos e administradores escolares tomassem o poder,
eles poderiam contratar quem quisessem, mudar o currículo como
desejassem e nomear membros do conselho que não os contestassem.
HISTÓRIA E VERDADE
A história ensina que as convicções das pessoas podem mudar rapidamente.
A aristocracia e a burguesia russas foram surpreendidas pelo que aconteceu
após o retorno de Lenin do exílio em 16 de abril de 1917. Elas se sentiram
compelidas a apoiar a formação da primeira República Russa em 1 de
setembro de 1917, sob Alexander Kerensky. Os partidários do czar
presumiram que a criação de uma república seria o suficiente para acalmar
a agitação social. Lenin imediatamente desafiou o governo liberal e apelou
a uma ação mais radical para devolver o governo ao “povo”. Em seis
semanas, a Revolução de Outubro começou, a República terminou, os
bolcheviques assumiram o comando e, por ordem de Lenin, a família
Romanov foi assassinada por camponeses armados.
Essa destruição completa de uma nação poderosa pela revolução ocorreu
há apenas um século. Retrocedendo um pouco mais, imagine ser um padre
católico francês em 7 de julho de 1790, quando a Assembléia Nacional
ratificou a Constituição Civil do Clero, declarando a Igreja subordinada ao
Estado. Todas as propriedades da Igreja foram confiscadas no ano anterior.
No mês de dezembro seguinte, a assembléia declarou que todos os padres e
bispos deveriam prestar juramento de lealdade perante o altar à república ou
sofreriam demissão, deportação ou morte. 2 Apenas alguns bispos fizeram o
juramento, mas metade do clero ativo o cumpriu. 3 Pouco mais de um ano
após a queda da Bastilha, o clero católico deixou de ser considerado uma
figura de autoridade e sabedoria para se tornar um funcionário de um
Estado sem Deus. No caos que se seguiu, milhares de padres e freiras foram
mortos, outros milhares foram forçados a se casar ou fugiram do país.
Quando o “Culto ao Ser Supremo” foi anunciado em maio de 1794,
apenas algumas paróquias permaneciam abertas.
Quem poderia prever que isso aconteceria em uma nação com uma
monarquia e antigas raízes católicas? Por que a Igreja francesa não estava
preparada para isso? E nós? Podemos vislumbrar o que está por vir?
O filósofo francês Bernard-Henri Levy nos lembra como pequenos e
insignificantes grupos de descontentes podem se tornar muito poderosos.
Levy se lembra de como a multidão que freqüentava as cervejarias de
Munique na década de 1920 ficava hipnotizada pelos delírios de um artista
fracassado chamado Hitler. “Começa com um grupo, uma seita e, dentro
dessa seita, uma aberração local, uma pequena novidade, que a princípio
ninguém imagina que passará do estágio de acidente, ou de anormalidade
aberrante, ou ambos — e que graças a um reforço rápido, por causa de
uma atração estranha, porém irresistível, logo afeta toda a história
mundial”. 4
Tanto a Revolução Francesa quanto a Russa têm uma proveniência
semelhante. Levy nos assegura que nós, nos Estados Unidos, não vamos
experimentar uma tomada de poder semelhante por aqueles que
anteriormente foram marginalizados. Sua cautela implica levar as idéias a
sério, não importa o quão tolas ou perturbadas elas pareçam.
Em qual momento judeus alemães perceberam o que os nazistas tinham
em mente? Entre eles estavam artistas, intelectuais, professores, artesãos,
famílias e instituições que floresceram por séculos. A ascensão dos nazistas
ocorreu lentamente no início. Hitler foi preso em 1924 pelo fracassado
“Putsch da Cervejaria” — uma tentativa fracassada de derrubar o governo
alemão. Mas ele usou sabiamente aquele ano para escrever Mein Kampf,
que lhe trouxe maior notoriedade e riqueza. Menos de dez anos depois,
Hitler se tornou chanceler da Alemanha. Dachau, o primeiro campo de
concentração, foi inaugurado no mesmo ano. Hitler tornou-se muito mais
que um chanceler; tornou-se ditador. Ao aprovar a Lei de Habilitação de
1933, 5 o Reichstag deu a Hitler e ao Partido Nazista o poder de promulgar
leis sem a aprovação do Reichstag.
Um dos principais escritores da Alemanha do período anterior a 1933 foi
Joseph Roth. Seu romance de 1932, Marcha Radetzky, é considerado o
melhor retrato fictício do Império Habsburgo em declínio sob o Imperador
Franz Joseph. 6 Ele escreveu vários romances de sucesso antes desse — Hotel
Savoy (1924), Die Flucht ohne Ende (1927) e Hiob (1930) —, todos
enquanto trabalhava como jornalista. A família de Roth era judia e ele
interrompeu sua educação para lutar na frente oriental na Primeira Guerra
Mundial. Seu trabalho no jornal começou quando voltou a Viena. De
acordo com seu tradutor inglês, Michael Hoffmann, trabalhou como
jornalista enquanto vivia entre Berlim e Paris. 7 Foi desde esta perspectiva
privilegiada que Roth viu a Europa marchar em direção à próxima guerra
mundial. Roth foi o primeiro jornalista a mencionar Adolph Hitler na
imprensa, em 1924, ano em que passou na prisão.
Em 1933, Roth escreveu um ensaio em Paris, “The Auto-da-Fé of the
Mind”. 8 As queimas de livros pelos nazistas começaram em Berlim 43 dias
após a Lei de Habilitação, em 6 de maio, com 20.000 livros queimados, e
cinco dias depois com outros 25.000. Livros de autores judeus eram a
maior prioridade. Roth chamou de auto-da-fé, fazendo referência a uma
queima pública geralmente reservada a criminosos e hereges, um
instrumento da Inquisição Espanhola. Aqueles que resistiram à ascensão de
Hitler assistiram a como a mentalidade da nação se tornava “a primeira
derrota”. Roth rastreia a causa da queima de livros na mentalidade
prussiana, representada por Otto von Bismarck, que dava primazia a tudo o
que é material sobre a vida do intelecto. Os militares, engenheiros,
químicos e professores também participam, mas entre eles o professor “é de
fato o inimigo mais perigoso (o mais dogmático) da civilização européia, o
inventor do equivalente filológico do gás venenoso”. 9 A condenação de
Roth aos professores foi baseada em sua experiência de como tantos foram
absorvidos, voluntariamente ou não, pela máquina de matar nazista. Roth
está se referindo à extraordinária capacidade que os intelectuais possuem de
racionalização, especialmente com base em servir a ideais abstratos como os
do Reich alemão.
Ao mesmo tempo, contudo, Roth reconhece o problema oposto da pura
ignorância, o resultado do materialismo representado por Bismark. Paul
von Hindenburg, o presidente que assinou o Ato de Capacitação e
entregou o poder a Hitler, confessou publicamente que “nunca tinha lido
um livro em sua vida”. 10 Roth previu isso em 1925: “Estaria um povo que
elege como seu presidente um ícone que nunca leu um livro tão longe de
queimar livros?”. 11 Roth comenta ainda que Hitler não teria sido tão
generoso em seus elogios a Benito Mussolini se tivesse “estudado história
romana mais de perto!”. 12
Roth termina seu ensaio com gratidão por ser judeu: mesmo que tentasse
colaborar — se a fraqueza moral o tivesse vencido —, ainda assim a repulsa
dos nazistas em relação aos judeus teria encerrado esse esforço. Joseph Roth
morreu aos quarenta e quatro anos, uma morte prematura provocada pela
devastação da bebida e pela vigília da morte da civilização, tal como ele a
conhecia.
LIÇÕES DO PASSADO
Déspotas surgem em muitas variedades. Eles podem assumir a forma de
manifestantes violentos que conseguem manter alguns oradores fora dos
campi universitários, como se tornou comum na última década. A violência
física tornou-se comum nesses protestos, e essa atividade criminosa não foi
desencorajada por políticos e comissários de polícia que ordenaram a
retirada da polícia. Mais recentemente, senadores de esquerda diante de
câmeras de tv humilharam cruelmente um indicado à Suprema Corte por
acusações infundadas de agressões sexuais para evitar que um juiz,
considerado conservador, ocupasse uma cadeira na corte.
Por enquanto, o leitor pode ter uma idéia geral observando como o uso
do poder é justificado por aqueles que afirmam ter maior esclarecimento e
propósito moral do que o resto de nós. Um exemplo é como os programas
lgbtq na educação pública são implementados apesar das objeções de pais
e grupos religiosos. 13 A pesquisa fornece os números para justificar esses
programas: de acordo com uma pesquisa de 2013 da glsen, uma
organização sem fins lucrativos nacional focada em fornecer espaços
educacionais seguros para alunos lgbtq, apenas 5% dos alunos lgbtq
relataram ter aulas de saúde que incluíam representações positivas de
tópicos relacionados a lgbtq. 14
Não importa se os pais não querem “representações positivas” dos
relacionamentos lbgtq porque isso contradiz seus valores religiosos. O que
quer que aconteça no topo da sociedade entre os líderes na academia,
mídia, política e negócios pode acontecer em qualquer nível abaixo, até na
família e em vários relacionamentos. A tentação de ditar como os outros
devem pensar e agir é promovida por formas de educação que tentam
destruir nossa liberdade de espírito.
Em 1953, o dramaturgo Arthur Miller (1915–2005) escreveu As bruxas
de Salém (The Crucible) em reação às audiências de McCarthy, o assédio do
governo a pessoas acusadas de serem membros do Partido Comunista. As
audiências levaram a uma “Lista Negra de Hollywood”, um acordo entre os
grandes estúdios de não empregar conscientemente um comunista ou
qualquer pessoa associada a um grupo que tentasse “derrubar o governo dos
Estados Unidos”. Como resultado, atores, diretores e roteiristas
proeminentes perderam sua renda e seu futuro. O reverenciado Charlie
Chaplin foi forçado a deixar os Estados Unidos em 1952 e jurou nunca
mais voltar. Em retrospecto, podemos ver que McCarthy estava certo sobre
a infiltração de espiões soviéticos no governo dos Estados Unidos, mesmo
que suas táticas extrapolassem o necessário e pessoas fossem
desnecessariamente prejudicadas. 15
A peça de Miller compara os anticomunistas aos envolvidos nos
julgamentos das bruxas de Salém em 1692. A simpatia de Miller na época
era com os comunistas. Independentemente das ideologias de Miller ou
McCarthy, As bruxas de Salém retrata como a histeria pode varrer uma
comunidade alimentada pela inveja ou ambição do ser humano. Os
personagens de Miller são modelados em figuras retiradas dos relatos
históricos de Salém: um clérigo frustrado e solitário tenta descobrir por que
sua filha não come e se depara com um incidente que irá desencadear a
caça às bruxas: quatro adolescentes dançando na floresta escura, cada uma
tentando negar, encobrir e culpar os outros por estarem lá. No final dos
anos 1600, a população de Salém acreditava em bruxas, e era nos bosques
que cercavam suas cidades e vilas que elas viviam. Assim, a linha das
árvores era literalmente uma linha de fronteira entre os cristãos e as forças
pagãs. À medida que a investigação se aproxima de expô-las, as jovens
começam a fazer vagas acusações de bruxaria, até mesmo alterando sua
aparência e comportamento para sugerir uma influência maligna.
Rapidamente, essas acusações são acatadas com veemência pelos habitantes
locais que, em nome de Deus, buscam a fonte do mal que atormenta os
aflitos.
Um clérigo é chamado para examinar os adolescentes acusados, para ver
se um exorcismo será necessário. Ele não percebe o que vários cidadãos
importantes perceberam imediatamente, que a epidemia está sendo usada
para acertar contas antigas, vingança e aquisição de terras, tudo motivado
pela inveja e ressentimento. As detenções são feitas e o representante do
governo chega para presidir o julgamento. Ele tenta realizar um inquérito
equilibrado, mas uma vez desafiado, seu orgulho o leva a cair na conversa
dos falsos acusadores. Vários dos cidadãos proeminentes cuja integridade
permaneceu intacta são executados porque eram eles que os acusadores
queriam roubar.
Esta peça é impressionante de ler e mais ainda de assistir. Miller é mais
conhecido por seu clássico A morte do caixeiro viajante de 1949, mas As
bruxas de Salém cresceu em relevância para a cultura americana —
regularmente vemos episódios de histeria em grupos, motivados por razões
insignificantes e nada razoáveis, mas capazes de arruinar vidas pelo simples
fato de gritarem mais alto.
SHOAH
Quem quiser saber aonde leva o despotismo, fará bem em assistir Shoah,
um documentário de nove horas sobre o Holocausto. O diretor Claude
Lanzmann levou onze anos para fazer este filme notável, filmando 350
horas de entrevistas com testemunhas, sobreviventes e até mesmo
perpetradores, além de visitas a campos de extermínio. Lanzmann criou
uma obra-prima, mas mais do que isso, ele criou a coisa mais próxima que
temos de um registro definitivo de um dos maiores males da história
humana. O leitor pode se perguntar como consegui assistir a este filme por
nove horas; respondo que não conseguia parar de assistir Shoah, pois o
filme não deixava. A Criterion Collection publicou uma versão
completamente restaurada do filme. 16 Assisti-lo é, em certo sentido, como
ler Os miseráveis — o leitor sente fome de justiça. Ao contrário do romance
de Hugo que inspirou a famosa peça musical, em Shoah a justiça nunca
vem, não há alívio. A única satisfação vem quando alguém reserva um
tempo para se lembrar e contar a história, como Lanzmann, sem piscar ou
desviar o olhar.
Um filme como este não é feito sem riscos. A Alemanha não gostou de ver
seu passado nazista apresentado de forma tão reveladora. Muito de seu
material foi coletado por meio de câmeras ocultas. Houve ameaças de
morte e um entrevistado atacou Lanzmann depois de descobrir um
microfone escondido. Lanzmann passou um mês no hospital se
recuperando.
Há uma cena que ainda me assombra: um judeu tcheco, Filip Müller, foi
designado para trabalhar nas portas das câmaras de gás. Em troca de seu
trabalho, Müller sobreviveu. Lanzmann pediu que ele descrevesse o que
viu:
Müller: Veja, uma vez que o gás foi despejado, funcionou assim: subiu do solo para cima. E na
terrível luta que se seguiu — porque era uma luta — as luzes foram apagadas nas câmaras de gás.
Estava escuro, ninguém podia ver, então as pessoas mais fortes tentaram subir mais alto. Porque
provavelmente perceberam que quanto mais alto ficavam, mais ar havia. Eles poderiam respirar
melhor. Isso causou a luta. Em segundo lugar, a maioria das pessoas tentou abrir caminho até a
porta. Foi psicológico; eles sabiam onde estava a porta; talvez eles pudessem forçar a saída. Foi
instintivo, uma luta mortal. É por isso que as crianças, os mais fracos e os idosos sempre acabam
ficando para trás. Os mais fortes estavam no topo. Porque na luta de morte, um pai não percebeu
que seu filho estava embaixo dele.
Lanzmann: E quando as portas foram abertas?
Müller: Eles caíram. As pessoas caíram como blocos de pedra, como pedras caindo de um
caminhão. 17
“Porque na luta de morte, um pai não percebeu que seu filho estava
embaixo dele”: nunca esqueci essa frase desde a primeira vez que a ouvi.
Sou obrigado a me perguntar o que se passava dentro de um homem como
Filip Müller, depois da guerra, que tem consciência suficiente para fazer
essa observação. A maioria dos entrevistados de Lanzmann confessou saber
o que estava acontecendo, mas continuou “fazendo seu trabalho”. Essa foi a
mesma desculpa usada pelos criminosos de guerra nazistas nos Julgamentos
de Nuremberg 18 e pelo arquiteto de Hitler, Albert Speer, 19 em suas
memórias.
Shoah foi chamado, merecidamente, de o melhor documentário de todos
os tempos e só pode ser comparado a The Sorrow and the Pity, de Marcel
Ophüls, de 1969. 20 O documentário de quatro horas e duas partes de
Ophüls sobre a colaboração do governo de Vichy na França com o Terceiro
Reich foi um avanço na produção de documentários, e é evidente que The
Sorrow and the Pity serviu de modelo para Lanzmann. Mas Shoah é um
filme diferente em tipo, não em grau, de The Sorrow and the Pity.
É ISTO UM HOMEM?
Existem muitos livros notáveis sobre o Holocausto. Entre eles, um tem um
lugar especial — as memórias de Auschwitz de Primo Levi, É isto um
homem? (1947). É uma exposição tão horrível da condição humana que
também é incomparável. 21 Nascido em 1919 em Turim, na Itália, Levi foi
criado em uma família judia culta. Sua juventude esteve ligada ao crescente
movimento fascista, do qual participou de forma nominal, preferindo
esquiar a praticar tiro ao alvo. Ele se tornou um químico após se formar na
Universidade de Turim.
Quando Benito Mussolini caiu do poder, a Itália alinhou-se com os
Aliados. O exército alemão avançou rapidamente para ocupar o norte da
Itália. Levi, apesar de sua aversão à guerra, juntou-se à resistência italiana,
mas foi capturado pela milícia fascista que trabalhava com os nazistas. Ele
seria baleado como guerrilheiro, mas quando Levi disse aos seus captores
que era judeu, eles o enviaram para um campo de internamento italiano.
Quando os nazistas ocuparam o campo, eles enviaram Levi e outros
prisioneiros judeus em caminhões para Auschwitz. Ele ficou preso em
Auschwitz por um ano, até que os soviéticos libertaram o campo em 1945.
Dos 650 judeus que chegaram com ele, apenas vinte sobreviveram. Como
um dos vinte sobreviventes, Primo Levi passou a contar a história.
Seu relato enfoca os próprios prisioneiros, como eles lutaram para se
adaptar ao cativeiro, à fome, ao trabalho escravo, aos espancamentos
constantes e ao medo da morte. Ele calmamente guarda suas palavras de
condenação apenas para os atos mais flagrantes de desumanidade. O relato
de Levi é distanciado em alguns lugares, falando como um cientista que
descreve um espécime, até o instante no qual aquilo que ele vê dissolve
toda a distância e sua voz grita em lamento.
O trem do campo de internamento pára; Levi é colocado em um
caminhão carregado com outros prisioneiros italianos e levado para
Auschwitz, onde são conduzidos a uma grande sala vazia. Ordenam que
formem fileiras de cinco e se desnudem. Seus sapatos são empilhados,
depois os prisioneiros são arrastados por uma porta aberta e o vento gelado
enche a sala. Quatro homens com navalhas entram vestindo calças listradas
e jaquetas com números costurados nelas. Depois de barbeados, os recém-
chegados são colocados em um banheiro com chuveiro sem lugar para se
sentar. Eles não recebem água para beber depois de viajarem por cinco dias.
Eles ficam de pé e tremendo. Outro homem de vestimenta listrada entra
falando italiano, dizendo que precisam ser desinfetados. Um sino toca
acordando o acampamento, depois cinco minutos de uma ducha quente.
Ainda molhados, eles recebem roupas e sapatos. Sem tempo para se vestir,
eles são conduzidos em meio ao gelo e à neve, de onde correm para um
quartel. Vestem-se e ficam em pé nas paredes — ninguém se olha. Levi
escreve:
Então, pela primeira vez, percebemos que faltam em nossa língua palavras para expressar essa
ofensa, a demolição de um homem. Em um momento, com intuição quase profética, a realidade
nos foi revelada: havíamos chegado ao fundo. Não é possível afundar mais baixo do que isso;
nenhuma condição humana é mais miserável do que esta, nem poderia ser concebivelmente
assim. Nada mais nos pertence; eles tiraram nossas roupas, nossos sapatos, até mesmo nosso
cabelo; se falarmos, eles não nos ouvirão, e se ouvirem, não compreenderão. Eles até tirarão o
nosso nome: e se quisermos mantê-lo, teremos que encontrar forças para fazê-lo, para administrar
de alguma forma que por trás do nome algo de nós, de nós como éramos, ainda permaneça. 22
Isso pode parecer para alguns leitores uma espécie de relativismo violento,
uma forma de dizer: “Eu sou tão mau que você também deve ser!”.
Olhando a passagem de perto, pode-se ver a franqueza agostiniana de
Baudelaire sobre a fraqueza da vontade humana. Mesmo que o poema seja
dirigido “ao leitor”, a quem, precisamente, ele está falando? E aqueles que
pensam que o poeta está apenas “rapsodeando” metaforicamente sobre o
Maligno, só precisam seguir a leitura:
C’est le Diable qui tient les fils qui nous remuent!
Aux objets répugnants nous trouvons des appas;
Chaque jour vers l’Enfer nous descendons d’un pas,
Sans horreur, à travers des ténèbres qui puent.
Ainsi qu’un débauché pauvre qui baise et mange
Le sein martyrisé d’une antique catin,
Nous volons au passage un plaisir clandestin
Que nous pressons bien fort comme une vieille orange.
É o Diabo que nos move e até nos manuseia!
Em tudo o que repugna uma jóia encontramos;
Dia após dia, para o Inferno caminhamos,
Sem medo algum dentro da treva que nauseia.
Assim como um voraz devasso beija e suga
O seio murcho que lhe oferta uma vadia,
Furtamos ao acaso uma carícia esguia
Para espremê-la qual laranja que se enruga.
Sim, o leitor teve desejos violentos, impulsos para quebrar regras, anular
leis e viver imoralmente. O poeta incita o leitor que está se perguntando:
“Eu sou tão mau assim?”. É isso que o poeta espera suscitar com suas
palavras. Mas então Baudelaire surpreende o leitor: ainda pior do que toda
essa miséria, há um mal que “em um bocejo imenso engoliria o mundo”.
Mais parmi les chacals, les panthères, les lices,
Les singes, les scorpions, les vautours, les serpents,
Les monstres glapissants, hurlants, grognants, rampants,
Dans la ménagerie infâme de nos vices,
Il en est un plus laid, plus méchant, plus immonde!
Quoiqu’il ne pousse ni grands gestes ni grands cris,
Il ferait volontiers de la terre un débris
Et dans un bâillement avalerait le monde;
C’est l’Ennui! — l’œil chargé d’un pleur involontaire,
Il rêve d’échafauds en fumant son houka.
Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat,
— Hypocrite lecteur, — mon semblable, — mon frère!
Em meio às hienas, às serpentes, aos chacais,
Aos símios, escorpiões, abutres e panteras,
Aos monstros ululantes e às viscosas feras,
No lodaçal de nossos vícios imortais,
Um há mais feito, mais iníquo, mais imundo!
Sem grandes gestos ou sequer lançar um grito,
Da Terra, por prazer, faria um só detrito
E num bocejo imenso engoliria o mundo;
É o Tédio! — O olhar esquivo à mínima emoção,
Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado.
Tu conheces, leitor, o monstro delicado
— Hipócrita leitor, — meu igual, — meu irmão!
Existem duas surpresas nas linhas finais deste poema. O leitor não
antecipa que o “tédio” está na raiz do alvoroço moral, nem espera o abraço
fraterno do poeta:
— Hypocrite lecteur, — mon semblable, — mon frère!
— Hipócrita leitor, — meu igual, — meu irmão!
O poeta não fala ex-cathedra como Papa, mas como uma pessoa que
compartilha plenamente, talvez mais, da pecaminosidade do leitor. Mas
este poema acusatório adiciona uma espécie de contexto, de um credo para
tudo o que se segue. Escritor e leitor habitam o mesmo círculo do Inferno,
por assim dizer. O que quer que seja dito a respeito de bárbaros, déspotas
ou fraudes, nenhum de nós pode presumir que vive em uma base moral
mais elevada. No final, queremos ver e isso inclui olhar para nós mesmos.
CÃES DE PALHA
O filósofo John Gray usa o evocativo descritivo “Straw Dogs” para
representar o fracasso da educação em criar uma sociedade melhor e mais
moral. 17 “Qualquer pessoa que busque pensadores liberais clássicos para
livrar o Ocidente de suas dificuldades atuais está fixada em um passado
irrecuperável”. 18 Os humanos, argumenta Gray, não são muito diferentes
dos outros animais. Ele relata que os humanos agora estão menos abastados
nutricionalmente do que na Idade da Pedra. 19 A crença predominante no
progresso humano é um mito — a história apenas conta a mesma história
repetidamente. Viver livremente em uma nação ordenada pelo império da
lei é o que Gray chama de “liberalismo” (que não tem nada a ver com o uso
contemporâneo da palavra em um contexto político americano). 20 O que
ele quer dizer é que nosso atual modo de vida algum dia será considerado
apenas uma era na história mundial, uma era criada pela crença
monoteísta, os Dez Mandamentos e o Sermão da Montanha. Os filósofos
do iluminismo tentaram encontrar uma base não-religiosa para a
moralidade em um mundo cada vez mais secular, mas desde então os
valores liberais lentamente perderam seu domínio nas nações ocidentais.
Com pleno conhecimento da carnificina dos últimos cem anos, Gray
observa sombriamente: “Muito provavelmente olharemos para o século xx
como uma época de paz”. 21 Impérios jamais duram para sempre.
Dada a realidade de uma civilização em declínio, Gray sugere que a
educação deve servir à contemplação, um objetivo mais modesto do que
uma busca por absolutos: “Simplesmente enxergar” deve ser a tarefa. 22 Já
enfrentei esse argumento antes. Quando jovem, presumi que uma boa
educação era necessária para estabelecer o caráter moral e continuar a
construir nossa civilização. Então, na pós-graduação, li um ensaio, “Para
civilizar nossos cavalheiros”, do crítico literário George Steiner, que me
assombra desde então. 23 Steiner aponta que os oficiais da ss nazista eram
produtos do ginásio alemão, sem dúvida um dos sistemas educacionais
mais rigorosos do mundo, a educação liberal por excelência. Observando a
aparente contradição, Steiner coloca a questão: “Certamente devemos nos
perguntar: as humanidades são humanas e, se sim, por que falharam antes
do Holocausto?”. 24 Steiner, um dos homens mais eruditos de nosso tempo,
ainda pergunta “se o estudo e o prazer que um homem tem em ler
Shakespeare o tornam menos capaz de organizar um campo de
concentração”. 25
Os fornos de Auschwitz foram projetados e freqüentemente
administrados por homens altamente educados que liam Goethe e ouviam
Bach à noite, após um dia de trabalho. Homens e mulheres altamente
educados cometeram alguns dos maiores crimes da história. Não seria
difícil compilar uma longa lista de homens e mulheres que leram os antigos
em grego e latim, mas se tornaram traidores, sádicos, torturadores, ladrões
e assassinos. Lenin e Stalin tiveram educação clássica. Lenin estudou como
filho de um inspetor escolar, e Stalin, que gostava especialmente de Victor
Hugo, foi educado pelos jesuítas. 26
Precisamos ter sempre em mente que tantos homens e mulheres
primorosamente educados colaboraram de boa vontade com o Holocausto,
até mesmo com entusiasmo.
Apesar disso, Steiner resistiu ao caminho percorrido por muitos
intelectuais contemporâneos, que optaram pela visão pós-moderna de que
por trás de qualquer reivindicação de uma hierarquia de valores está um
opressor voluntário. Em seu apelo pela afirmação de um significado que
transcende o relativismo das fronteiras culturais e pontos de vista
interpretativos, Steiner se apega ao princípio iluminista segundo o qual a
comunicação significativa sobre a existência é possível: “Estou apostando,
tanto na veia cartesiana quanto pascaliana, na pressão informativa de uma
presença real nos marcadores semânticos”. 27 Steiner usa a frase “presença
real” para emprestar o significado católico da presença de Cristo na
Eucaristia. A aposta de Steiner, como ele diz, é que a linguagem possui
significado.
Sem uma linguagem da “presença real”, como Steiner coloca, as
reivindicações morais e éticas básicas perdem sua base ontológica (realidade
essencial) e se tornam pragmáticas (uma questão de mera escolha). A
menos que haja uma compreensão compartilhada da própria realidade e da
realidade das reivindicações morais a partir das quais surge a indignação
moral legítima, a indignação contra a injustiça ou atrocidade pode ser
recebida com uma rejeição jovial: “Não é da sua conta”. Mais do que
Descartes ou Pascal, Steiner argumenta com um viés tomista. Assim como
Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles, ele afirma que há verdades sobre a
pessoa humana que ignoramos por nossa conta e risco, verdades
subjacentes a qualquer argumento moral.
A cooperação entre as nações não pode ser realizada sem algum acordo
filosófico sobre a natureza humana, mesmo que seja apenas um consenso
prático sobre uma lista de direitos humanos. Tal abordagem para o diálogo
e a organização transcultural tornou-se necessária para eliminar o ceticismo
cada vez maior sobre uma natureza humana universal que se desenvolveu
desde os séculos xviii e xix. Durante este período de “progresso” além das
visões “antiquadas” de uma natureza humana universal, vimos os maiores
genocídios da história. Agora, a natureza humana é negada e a pessoa é
reduzida a sua raça, sexo, etnia e contexto cultural. Com a ascensão do
nacionalismo, as nações lideradas por ditadores procuraram justificar seu
desejo de dominação, distinguindo-se como um povo [Volk] daqueles
menos humanos. Dos bárbaros.
O que torna a educação clássica tão importante se ela não nos torna
pessoas melhores? As respostas são relativamente simples e, penso eu,
persuasivas: primeiro, devemos reformular a questão com a qualificação
adequada: uma educação clássica não garante por si mesma a posse de
virtude e bom senso. Para quem deseja engajar-se na cultura e passar
cultura autêntica para a próxima geração, o estudo dos clássicos é essencial.
Dito isso, esse tipo de educação é necessário, mas não suficiente para
derrotar as idéias destrutivas desta ou de qualquer época.
Em segundo lugar, a educação clássica também é inestimável para libertar
a mente dos preconceitos de uma época ou ideologia. Sem liberdade de
espírito, o pensamento permanece servil, alimentado por quaisquer
mensagens que estão moldando os pensamentos de uma pessoa e
estimulando suas paixões. Na maioria das vezes, as pessoas não pensam por
si mesmas — seus pensamentos dependem dos pensamentos dos outros,
elas assumem as paixões do momento, elas se tornam o que Søren
Kierkegaard chamou de parte da “multidão”. 28
Terceiro, a virtude não é um aplicativo que pode ser baixado, para usar
uma metáfora moderna. Cada indivíduo que constantemente escolher agir
corretamente desenvolverá as virtudes. O conceito de virtude pode ser
ensinado estudando os clássicos, mas não vejo muitas evidências de que
conhecê-lo, ou qualquer outro sistema moral, necessariamente leva a uma
vida virtuosa.
Se seguirmos John Gray, um estudo dos clássicos permite enxergar. E,
pode-se argumentar por sua vez, ao enxergar, a justificativa para as virtudes
se torna aparente e um modelo pode tomar forma na mente. Quando
vemos vários tipos de vida, somos apresentados a escolhas, se devemos
preferir um tipo de vida a outro. Também temos a opção de não fazer nada.
Os vícios também são encontrados na literatura, no cinema, na tv e em
outras mídias. Em nosso mundo pós-verdade, o que tradicionalmente tem
sido considerado vício passa despercebido. Eu qualifico esta observação pela
seguinte razão: luxúria, avareza e, até certo ponto, a gula são reconhecidas,
mas aquelas mais facilmente ocultas — preguiça, ira, inveja e orgulho —
vagam livremente por nosso mundo. Outra aspiração possível surge, e é
perversa. Os clássicos como um todo retratam os atos humanos em um
mundo moralmente ordenado, mas sujeito à tragédia. Em outras palavras,
coisas ruins acontecem a pessoas boas. Alternativamente, a boa sorte vem
para aqueles que não merecem. Mas pelo menos sabemos quem eles são.
Os clássicos nos apresentam diferentes modos de vida, mas permanecem
baseados na mesma cosmovisão ocidental clássica gerada pelo encontro
histórico do cristianismo com Grécia e Roma.
Então, o que podemos dizer sobre o benefício da educação clássica? Um
resultado, pelo menos, é plausível: liberdade de espírito. Aqueles que
possuem liberdade de espírito não são servis. Mas a liberdade de espírito
requer que o mundo seja fundamentalmente inteligível, o que, como vimos,
é negado pela forma dominante de filosofia, o pós-modernismo.
(2: 1–5) 5
Nenhum pai ou amigo quer estar no lugar onde os filhos “vêm para
morrer”. A Ala de tratamentos especiais está “escondida” no último andar:
escondida talvez por causa de um desejo inconsciente de proteger o resto
do hospital da dor dilacerante dos pais e seus filhos. É um horror
intensamente privado — a morte de uma criança amada. Os pais que
precisam falar, mas são frustrados pela equipe, que permanece em seus
personagens. Os médicos performam o conceito, eles “vêm e vão como
oráculos,/ suas maneiras são frias, oniscientes e oblíquas”. E para completar
o fingimento, a palavra “morte” nunca é pronunciada. Mas a morte é a
razão pela qual todos estão aqui. A pretensão é destruída por imagens de
crianças em “luzentes pijamas” que “puxam seus dispositivos iv ao longo do
corredor”.
Raramente o amor de uma mãe por seu filho foi retratado com tal
imediatismo, “Instintivamente sentem que um amor tão forte/ protege
uma criança”. Aqui está o amor dos pais em sua forma mais nítida e
vulnerável. As mães dormem em cadeiras, nunca vão embora. Cada mãe
inevitavelmente se embrenha na cama ao lado de seu filho adormecido. Ela
quer dar a vida novamente como antes, mas pela manhã, tudo foi em vão.
Doze anos se passam antes que Gioia conclua as últimas seções do poema.
ii
I put this poem aside twelve years ago
because I could not bear remembering
the faces it evoked, and every line
seemed — still seems — so inadequate and grim.
What right had I, whose son had walked away
to speak for those who died? And I’ll admit
I wanted to forget. I’d lost one child
and couldn’t bear to watch another die.
Not just the silent boy who shared our room,
but even the bird-thin figures dimly glimpsed
shuffling deliberately, disjointedly
like ancient soldiers after a parade.
Whatever strength the task required I lacked.
No well-stitched words could suture shut these wounds.
And so I stopped…
But there are poems we do not choose to write.
ii
Coloquei este poema de lado há doze anos
porque não suportava relembrar
os rostos que evocava, e cada verso
parecia — ainda parece — tão inadequado e sombrio.
Que direito tinha eu, cujo filho partira,
de falar pelos que morreram? E admitirei,
queria esquecer. Perdi um filho
e não suportaria assistir outro morrer.
Não só o menino silencioso que compartilhava nosso quarto,
mas mesmo os vultos esguios espiavam vagamente
misturando-se deliberadamente, deslocados
como soldados antigos após um desfile.
De qualquer força que a tarefa exige eu carecia.
Nenhuma palavra bem costurada poderia suturar essas feridas.
E então eu parei…
Mas existem poemas que não escolhemos escrever.
Gioia sente o peso da sobrevivência: “Que direito tinha eu, cujo filho
partira/ De falar pelos que morreram?”. Mas ele não consegue se livrar das
memórias do menino que dividia o quarto com seu próprio filho e de
“vultos esguios” que “vislumbravam vagamente” caminhando pelos
corredores. Ele duvidou de sua capacidade de escrever este poema e sabia
que suas palavras não curariam ninguém, “Mas há poemas que não
escolhemos escrever”.
iii
The children visit me, not just in dream,
appearing suddenly, silently —
insistent, unprovoked, unwelcome.
They’ve taken off their milky bandages
to show the raw, red lesions they still bear.
Risen they are healed but not made whole.
A few I recognize, untouched by years.
I cannot name them — their faces pale and gray
like ashes fallen from a distant fire.
What use am I to them, almost a stranger?
I cannot wake them from their satin beds.
Why do they seek me? They never speak.
And vagrant sorrow cannot bless the dead.
iii
As crianças me visitam, não apenas em sonho,
aparecendo subitamente, silenciosamente —
insistentes, incausadas, indesejadas.
Tiraram as bandagens leitosas e mostram
as lesões vermelhas e cruas que inda padecem.
Ressuscitadas estão curadas, mas não plenas.
Algumas eu reconheço, intocadas pelos anos.
Não posso nomeá-las — seus rostos pálidos e cinzentos
como cinzas caídas de um fogo distante.
Que uso tenho eu para elas, quase um estranho?
Não consigo acordá-las de suas camas de cetim.
Por que elas me procuram? Elas nunca falam.
E a errante tristeza não pode abençoar os mortos.
Ele ainda vê as crianças que faleceram, “não apenas em sonho”. Estas não
são visões noturnas obscurecidas pela noite; ele vê “as lesões vermelhas e
cruas que ainda apresentam”. Elas vêm ao poeta “incausadas, indesejadas”
porque não há nada que possa fazer por elas; ele vê que elas “estão curadas,
mas não plenas”. Ele não pode curá-las: “Que uso eu tenho para elas (?)”.
Como poeta e pai, que também perdeu um filho, sua “errante tristeza não
pode abençoar os mortos”.
Storge é o amor humano mais próximo de Ágape. É o mais confiável, o
mais sacrificial, o mais vulnerável. Ao contrário de amantes e amigos, pais e
filhos se conhecem muito bem para se safar usando uma máscara. Não
importa a idade de cada um, há um conhecimento intuitivo entre eles que
não pode ser enganado, e o mesmo acontece entre irmãos que cresceram
juntos. É um amor que pode ser quebrado, mas nunca totalmente
amputado. Entre os membros da família, seu sangue gritará (Gn 4, 10).
Recomendações
Livros
Sophocles, Antígona, 441 a. C.
William Shakespeare, Rei Lear, 1623.
Jane Austen, Razão e sensibilidade, 1811.
Mary Shelley, Frankenstein, 1818.
Gustave Flaubert, Madame Bovary, 1856.
Liev Tolstói, Guerra e paz, 1867.
Giovanni Verga, Os Malavoglia, 1881.
Thomas Hardy, O Prefeito de Casterbridge, 1886.
Junichiro Tanizaki, As irmãs Makioka, 1936.
Arthur Miller, Morte do caixeiro viajante, 1949.
Jean Guitton, Ensaios sobre o amor humano, 1951.
Eugene O’Neill, Longa jornada noite adentro, 1956.
Han Urs von Balthasar, Love Alone: The Way of Revelation, 1970.
Joseph Pieper, About Love, 1974.
P. D. James, Os filhos dos homens, 1992.
Músicas
G. W. F. Händel, Messiah, 1741.
Robert Schumann, Kinderszenen, 1838.
Hector Berlioz, L’Enfance du Christ, 1854.
Carl Nielsen, Saul og David, 1901.
Gustav Mahler, Kindertotenlieder, 1905.
Herbert Howells, Hymnus Paradisi, 1951.
George Rochberg, Symphony No. 5, 1986.
Filmes
Charlie Chaplin, The Kid, 1921.
Buster Keaton, Steamboat Bill, Jr, 1928.
King Vidor, The Champ, 1931.
Leo McCarey, A cruz dos anos, 1937.
Yasujirō Ozu, Pai e filha, 1949.
Yasujirō Ozu, Era uma vez em Tóquio, 1953.
John Ford, Rastros de ódio, 1956.
Ingmar Bergman, Morangos silvestres, 1957.
Piero Pasolini, Mamma Roma, 1962.
Francis Ford Coppola, O poderoso chefão ii, 1974.
Robert Redford, Gente como a gente, 1980.
Jean-Pierre and Luc Dardenne, O filho, 2002.
Durante a maior parte da viagem, Huck e Jim são, sem dúvida, amigos
ligados pela utilidade mútua, embora cada vez mais encontrem prazer na
companhia um do outro. A amizade deles está em constante evolução
durante suas aventuras flutuando no Mississippi, e eles são forçados a fazer
escolhas, cada uma de grande importância, como a decisão de Huck de
entregar Jim ou não.
No final do capítulo onze, fica bastante claro que Huck e Jim são amigos
de verdade. Por exemplo, assim que Huck ouve que Jim é suspeito de
assassinato, rapidamente o avisa. Ele também se identifica intimamente
com Jim, porque ambos estão na mesma situação: são fugitivos.
E comecei a pensar sobre nossa viagem rio abaixo; e vejo Jim diante de mim, o tempo todo: de
dia e de noite, às vezes ao luar, às vezes em meio às tempestades, e nós flutuando, conversando,
cantando e rindo. Mas não sei como, não conseguia encontrar nenhum lugar para endurecer meu
coração contra ele, só em coisas de outro tipo. Eu o via fazendo o meu turno de vigia depois de
completar o dele em vez de me chamar para que eu continuasse dormindo; e via como ele ficou
feliz quando voltei do nevoeiro; e quando eu voltei pra balsa no pântano, lá onde tinha aquela
rixa; e outros tempos semelhantes; e sempre me chamava de “meu fio” e me mimava, e fazia tudo
o que pudesse imaginar por mim, e como ele era sempre bom; e finalmente lembrei-me daquela
vez que consegui salvá-lo contando pros homens que a gente tinha varíola a bordo, e ele ficou
muito agradecido e disse que eu era melhor amigo que o velho Jim já teve no mundo, e o único
que ele tinha agora. 27
juliet:
O que o leitor deve fazer com isso? Whitman deu meia-volta? Não, o
poeta e sua alma não fogem da Terra, mas procuram seu centro. A jornada
não transcendeu os limites da natureza, dentro do mundo que Whitman
celebrou sua vida inteira. Whitman propôs uma espiritualidade do
naturalismo, que um século depois foi empregada e banalizada pelos gurus
da Nova Era.
UMA SINFONIA MARÍTIMA
O que acontece quando um compositor da mesma sensibilidade coloca as
palavras de Whitman acima em música? Em Uma sinfonia marítima, o
compositor inglês Ralph Vaughan Williams (1872–1958) multiplica o
poder das palavras de Whitman, interpretando-as de uma forma que revela
mais significado do que simplesmente lê-las.
Esta obra não é familiar para a maioria dos leitores, mas merece fazer
parte do repertório regular de orquestras de concerto em todo o mundo. É
uma obra-prima e, em seu contexto histórico, é altamente inovadora. A Sea
Symphony foi executada pela primeira vez em 1910 com o próprio Williams
regendo. É um trabalho longo, com duração de setenta minutos na maioria
das gravações, para grande orquestra, coro e dois solistas — um barítono e
uma soprano. Todos os textos são retirados de Folhas de relva. Ele foi
apresentado a Whitman em 1892 por um colega de graduação, Bertrand
Russell, que se tornaria um filósofo mundialmente famoso. Williams se
importava tanto com Folhas de relva que manteve o livro no bolso
enquanto servia na Primeira Guerra Mundial. 26
Sobrinho-neto de Charles Darwin, Williams era um cético religioso. Seu
pai, um pastor anglicano, morreu quando ele tinha dois anos e meio de
idade, praticamente eliminando a possibilidade de uma direção religiosa
firme. Em suas memórias, sua segunda esposa, Ursula, descreve Williams
como “um agnóstico alegre, embora nunca tenha sido um cristão professo”.
27
Assim, ele compartilha algo com Whitman: ambos foram criados como
cristãos, se distanciaram da religião institucional e procuraram expressar
uma espiritualidade sem dogma, apenas um anseio por um princípio
universal, independentemente do nome usado para descrevê-lo. Essa
espiritualidade não-religiosa ou imanente mais tarde se tornaria comum no
Ocidente, à medida que a fé cristã tradicional recuava.
Uma sinfonia marítima consiste em quatro movimentos. 28 O quarto, “Os
exploradores”, tem trinta minutos de duração. A princípio, “Os
exploradores” parecem estar subindo a escada do amor descrita no
Banquete. A visão de Whitman e Williams, ao contrário de Platão, não é
dualista. Seus exploradores não querem deixar o mundo; querem ver mais
profundamente nele. Há um panteísmo escondido logo abaixo da
superfície do poema de Whitman e do cenário orquestral de Vaughan
William. Alguns estudiosos de Whitman se referem a isso como
“misticismo invertido”. 29 Os três primeiros movimentos da sinfonia são
sobre a terra, o físico; com o quarto, o poeta de Whitman e sua alma foram
transportados, “agora é o próprio planeta e seu contexto cósmico que são
abordados”. 30
O coro, a orquestra, o barítono e a soprano combinam-se em uma
melodia contínua e desdobrando-se com uma sensação de movimento
ascendente impulsionado por todos. Quase no meio do quarto movimento,
o barítono e a soprano se lançam em um dueto arrebatador, cheio de uma
sensação de admiração com o que está no final da jornada, com o barítono
Ó
declamando: “Ó não podemos mais esperar,/ Nós também tomamos
navios, ó alma,/ Joviais, nós também nos lançamos nos mares abertos”. A
soprano entra aqui cantando a mesma linha assim que o barítono termina.
Essa estrutura de sobreposição em Cânone é usada em toda parte, como as
ondas que rebentam contra a encosta, como os movimentos dos amantes.
Quando o barítono canta “Ó alma, tu me satisfazes e eu a ti”, a música
começa a crescer em intensidade, aumentando a tensão lentamente, uma
antecipação da visão que está por vir. “Despertando durante a noite”
intensifica nossa expectativa, mas as vozes nos frustram, vagando
sonhadoramente, como se flutuando, até chegarem ao verso: “Suporta-me
realmente como por regiões infinitas”. Então, com uma grande inspiração,
eles cantam em uníssono: “Cujo ares eu respiro, cujas ondulações eu ouço,
lava-me todo”, como se a represa estivesse prestes a estourar, e isso
acontece, com a soprano entrando em “Banha-me, ó Deus, em ti”, unindo-
se em alguns compassos ao barítono, com um apelo extático a Deus para
que os permitisse em Sua presença. Após um momento de descanso, o
barítono entra com grande nobreza, e está claro que foi permitido que
subissem a um nível mais alto, “ascendendo para ti”. De repente, outra
explosão de emoção é liberada quando o barítono se junta à soprano
subindo uma escada de notas em um tom agudo, cantando “e minha alma
para subir nas tuas alturas”.
O que se segue é um daqueles momentos na música que deixa o ouvinte
sem palavras, deslumbrado por uma beleza aparentemente além do poder
de um artista humano criar. Em “Ó Tu, transcendente”, as duas vozes
sobem e se fundem em uma das passagens mais sublimes da música, até o
final da estrofe, “Luz das luzes, derramando universos, Tu, o centro de
todos eles”. A música é climática, devastadora e consegue transmitir o
poder único da voz poética de Whitman.
O que o poeta de Whitman e sua alma encontraram em sua visão
representada por Vaughan Williams? A beleza de Platão ou a pessoa do
Deus revelado vista “face a face”? Eles não encontraram nenhum. Whitman
tem um entendimento do ser no qual o físico e o espiritual podem ser
distinguidos na linguagem, mas não na realidade. 31 Eu diria que Whitman,
ajudado por Vaughan Williams, vai tão longe quanto Eros pode ir sem
ajuda, mas ambos devem recuar porque sem fé não há pessoa para recebê-
los.
O que torna Eros tão poderoso? Por um lado, é parte integrante de nossa
natureza humana e não pode ser removido. Eros é a existência nos
empurrando para frente. Negue Eros e você permanecerá no escuro sobre o
que e quem você é. Eros naturalmente move nossa vontade em direção a
qualquer coisa considerada bela e boa. Deliciar-se com cada flor da
primavera é revigorante e inofensivo. Encantar-se com a beleza dos rostos
que passam na rua também, a menos que você seja um Scottie procurando
uma substituta para um amor perdido. Neste mundo, povoado por pessoas
como nós, de natureza decaída, muitos homens e mulheres tratam o Eros
como uma espécie de droga, e a pessoa a quem se dirige como um objeto
útil.
AMOR ROMÂNTICO
O amor romântico foi inventado no século xii, de acordo com Denis de
Rougemont em seu clássico O amor e o Ocidente. 32 Os poetas trovadores
que atuavam nas cortes francesas compunham e cantavam canções de amor
sobre mulheres inatingíveis. Suas canções representavam o que é chamado
de “Mito de Tristão”, um amor caracterizado pelo desejo por alguém que
não pode ser possuído. A intensidade do amor romântico cresce à medida
que o objeto de desejo é negado. A maioria concordaria que isso é o oposto
de como o amor cresce em um relacionamento ordenado. Mas no amor
romântico, as emoções inflamadas são valorizadas como um tipo ideal de
amor e paixão. Aqui, De Rougemont descreve a relação entre Tristão e
Isolda contada pelo escritor medieval do século xii Béroul: “Tristão e Isolda
não se amam. Eles dizem que não, e tudo ocorre de um modo que
comprova isso. O que eles amam é amar e estar apaixonados”. 33
É a ferocidade do amor sentido e do desejo que é admirada, em vez do
amor “monótono” diário de, digamos, um casamento maduro. Esse amor
não foi deixado para trás no século xii — ele permanece tanto na vida
quanto na ficção. Os escritores preferem o amor infeliz porque “o amor
feliz não tem história”, observa Rougemont. 34 Ele explica: “O romance só
existe onde o amor é fatal, malvisto e condenado pela própria vida. O que
leva os poetas líricos aos seus melhores vôos não é o deleite dos sentidos
nem o contentamento fecundo do casal estabelecido; não a satisfação do
amor, mas sua paixão. E paixão significa sofrimento”. 35
Aqui, Rougemont exagera em seu caso, embora sua análise da doença da
paixão permaneça verdadeira. Vimos isso nitidamente em Um corpo que
cai. Uma comparação pode ser feita com Folhas de relva: o desejo erótico de
Whitman floresce na própria jornada — chegar ao destino não importa.
Seu Eros é como o dos poetas dos trovadores, cujo ardor se intensifica ao ser
negado à mulher cujos elogios ele canta. Essa mudança de atenção do
objeto amado para o sujeito que ama se tornou central durante o
Renascimento e, especialmente, na era romântica. A virada para o sujeito
tornou-se um tema presente em toda a filosofia moderna, à medida que
mais e mais dúvidas eram lançadas sobre o conhecimento que temos do
mundo exterior. O próprio conceito de felicidade lentamente mudou para
se tornar um estado psicológico, o prazer da caça, mas não a captura. 36
O autor existencialista francês Albert Camus descreveu o desfecho nada
feliz dessa jornada em seu Mito de Sísifo (1942). Usando um personagem
da mitologia grega, Camus conta a história de Sísifo, que passa a vida
rolando uma pedra colina acima para vê-la rolar novamente. Mas Sísifo
nunca pára de empurrá-la montanha acima. No entanto, Camus conclui
que “está tudo bem” e, de fato, que “deve-se imaginar Sísifo feliz”. 37 O
Sísifo de Camus representa o niilismo que resulta de perseguir a
perseguição, de seguir em frente após cada captura, porque após a captura
vem a diminuição imediata do desejo; o ar escapa e desinfla do balão.
Podemos discordar do retrato severo de Camus da existência humana ao
ver seu ponto: isso é o que acontece quando o amor humano busca apenas
o Ser. Camus nos faz pensar nas conseqüências daquilo em que acreditamos
e nas maneiras como nossas crenças afetam o modo como vivemos e
amamos. O Eros humano nos coloca em um caminho específico de vida.
Em algum momento, espero que cada um de nós pare, se olhe no espelho e
pergunte: “O que é isso que estou buscando?”. Esse momento é o início da
sabedoria.
Recomendações
Livros
Antigo Testamento, Cântico dos Cânticos.
Platão, Fedro, 370 a.C.
Andreas Capellanus, A arte do amor cortês, 1184.
São Tomás de Aquino, “Tratado das Paixões da Alma”, Suma teológica,
1265–1274.
William Shakespeare, Sonetos, 1609.
Johann Wolfgang von Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther, 1774.
Stendhal, Do amor, 1822.
Søren Kierkegaard, As obras do amor, 1847.
Martin Buber, Eu e tu, 1923.
Anders Nygren, Agape e Eros, 1930–1936.
Jose Ortega y Gasset, Estudos sobre o amor, 1940.
M. C. D’Arcy, The Mind and Heart of Love: Lion And Unicorn, A Study In
Eros And Agape, 1945.
Hans Urs von Balthasar, Só o amor é digno de fé, 1966.
Robert G. Hazo, The Idea of Love, 1967.
Dietrich von Hildebrand, The Nature of Love, 1971.
Músicas
Giovanni Pierluigi da Palestrina, Canticum Canticorum (coro do Cântico
dos Cânticos), 1584.
W. A. Mozart, Le Nozze di Figaro, 1786.
Franz Schubert, Die Schöne Müllerin, 1823.
Frédéric Chopin, Concerto para Piano nº 1, 1830.
Hector Berlioz, Symphonie Fantastique, 1830.
Richard Wagner, Prelude and Liebestod, de Tristão e Isolda, 1859.
Georges Bizet, Carmen, 1875.
Giacomo Puccini, La Boheme, 1895.
Arnold Schöenberg, Transfigured Night, 1899.
Richard Strauss, Der Rosenkavalier, 1910.
Leoš Janáček, Quarteto de Cordas No. 2 (“Intimate Letters”), 1928.
Frederick Delius, Idyll (com texto de Walt Whitman), 1933.
Leonard Bernstein e Stephen Sondheim, West Side Story, 1957.
Filmes
F. W. Murnau, Aurora, 1927.
Kenji Mizoguchi, The Story of Last Chrysanthemums, 1939.
Marcel Carné, O Boulevard do crime, 1945.
David Lean, Breve encontro, 1945.
William Wyler, Os melhores anos de nossas vidas, 1946.
Douglas Sirk, All That Heaven Allows, 1955.
Billy Wilder, O apartamento, 1960.
Ken Russell, Mulheres apaixonadas, 1969.
Krzysztof Kieślowski, Não amarás, 1988.
Krzysztof Kieślowski, O Decálogo, 1989–1990.
Martin Scorsese, A época da inocência, 1993.
Wong Kar-wai, Amor à flor da pele, 2000.
O verso “Mas não tinha o meu vôo um tal poder” lembra a escada
platônica do amor pela qual a vontade humana sobe, puxada para o alto
pela beleza que vem de cima. Há mais aqui do que a atração da Beleza; este
é um ato de ser dominado pelo amor de Deus.
Essa visão extática, como um encontro e envolvimento no amor divino,
ancora a cosmovisão dos cristãos. Outras religiões monoteístas têm visões
semelhantes da eternidade. Mas generalizar sobre a cosmovisão do não-
crente é algo perigoso, pelo fato de que alguns abraçaram uma
espiritualidade que contém resquícios de várias religiões, incluindo aquelas
que são animistas, politeístas e pagãs. Essas espiritualidades ecléticas
oferecem suas próprias formas de consolo, capacitação e auto-realização.
Quer concordemos com elas ou não, essas crenças são expressões da
preocupação fundamental. Essas crenças podem consternar os cristãos
ortodoxos, mas é um erro esquecer o desejo natural por Deus em sua raiz.
Nenhum de nós tem o ponto de vista vantajoso a partir do qual possa
julgar em termos absolutos onde o amor de Deus está agindo e onde não
está.
Aqueles que não têm nenhuma crença religiosa reconhecem, no mínimo,
que alguns fatores são mais benéficos para a vida humana do que outros.
Quando as crianças crescem e se tornam adultos autodestrutivos, a
primeira pergunta que se faz é a respeito de sua educação. A que tipo de
pais, família, educação, nutrição, saúde e comunidade eles pertenciam?
Esses fatores externos tão determinantes do futuro de uma criança podem
ser vistos como análogos à graça cristã, significando aquele fator que molda
e direciona uma vida para o bem-estar. Na verdade, é comum que homens
e mulheres adultos expressem sua gratidão por terem essas vantagens —
esses fatores externos são vistos como presentes.
Assim, a tensão entre o poder da natureza e a criação adquirida repete a
questão da natureza e da graça em outro nível. Em vez de perguntar qual
parte de uma boa vida atribuímos à graça de Deus, o descrente pergunta
que tipo de fatores na educação inclinam uma pessoa a viver bem. Uma
boa educação se torna uma espécie de graça natural que traz ordem à
natureza.
Para um cristão, no entanto, a graça de Deus é o principal fator
considerado e abrange todos os fatores de criação adquirida mencionados
acima. Os cristãos também são gratos, mas não apenas por terem sorte, mas
pelo Deus cujo próprio Ser é Amor.
Cada criança nasce com um desejo natural por tudo o que é bom, pelo
próprio Deus. Mas cada criança nasce em circunstâncias incertas. É
impossível saber com antecedência se o desejo natural de uma criança será
respeitado e nutrido. O futuro de qualquer criança depende antes de tudo
de Storge, o amor de uma família. Em seguida, vêm as experiências de
Philia, que são centrais para a formação do caráter em jovens adultos,
muitas vezes determinando como uma pessoa lida com os impulsos de Eros.
Se Ágape desempenhará um papel nesses amores, cumprindo todos os três
amores em si mesmo, eis o mistério mais decisivo da vida.
Recomendações
Livros
Bernardo de Clairvaux, Sobre o amor de Deus, 1128.
São Tomás de Aquino, “Tratado sobre a caridade”, Suma teológica, 1265–
1274.
William Shakespeare, Conto de inverno, 1623.
Victor Hugo, Les Misérables, 1862.
C. S. Lewis, Alegoria do amor: um estudo da tradição medieval, 1936.
Georges Bernanos, Diário de um pároco de aldeia, 1936.
Harper Lee, O sol é para todos, 1960.
Shūsaku Endō, Silêncio, 1966.
Dietrich von Hildebrand, A natureza do amor, 1971.
Bento xvi, Deus Caritas Est, 2006.
Músicas
Tomás Luis de Victoria, O magnum mysterium, 1572.
William Byrd, Ave verum corpus, 1605.
Johann Sebastian Bach, Paixão segundo São Mateus, 1727.
George Frideric Händel, Messiah, 1741.
Wolfgang Amadeus Mozart, Réquiem, 1791.
Joseph Haydn, Criação, 1798.
Gabriel Fauré, Réquiem, 1890.
Edward Elgar, The Dream of Gerontius, 1900.
Ralph Vaughan Williams, Five Mystical Songs, 1911.
Maurice Duruflé, Réquiem, 1948.
Stephen Edwards, Requiem for My Mother, 2017.
Filmes
Marcel Carné, Boulevard do crime, 1945.
Frank Capra, A felicidade não se compra, 1947.
Yasujirö Ozu, Ikiru, 1953.
Robert Bresson, A grande testemunha, 1966.
Krzysztof Kieślowski, A igualdade é branca, 1994.
Paul Thomas Anderson, Magnolia, 1999.
Xavier Beauvois, Des hommes et des dieux, 2010.
Terrence Malick, A árvore da vida, 2011.
Existe um limite para o que um leitor de uma peça pode entender de seu
significado apenas com o texto — essas são palavras destinadas a serem
encenadas. Por exemplo, o que Leontes faz no palco neste momento é
crucial para acompanhar a progressão de sua loucura. Leontes, interpretado
pelo ator Anthony Sher, não se afasta de Hermione até este momento. 15 O
rosto de Sher se torna uma máscara, com sua boca aberta sem dizer uma só
palavra; sua cólera aumenta. Após um longo silêncio, solta a mão de
Hermione, vira-lhe as costas e caminha em direção ao público. Ele olha
para trás para ver Hermione e Polixenes dançando. O dramaturgo não
prescreve isso, mas, ao fazê-los dançar, o diretor Robin Lough adiciona um
ponto de referência visual para a imaginação desequilibrada de Leontes e
sua raiva. Agora, todas as brincadeiras amigáveis entre sua esposa e
Polixenes corroboram seu julgamento precipitado. Leontes diz em um
aparte:
Muito quente! Muito quente! Unir as afeições de tal maneira é unir, também, o sangue. Estou
sentindo “tremor cordis”; o coração me dança, mas não é de alegria. O acolhimento pode ficar de
rosto descoberto, condescender, até, em liberdade, por generosidade e exuberância, mesmo, do
coração. Até aí, concedo. Mas baterem palminhas, beliscarem-se os dedos, como o fazem neste
instante, permutarem sorrisos estudados, como em frente do espelho e, após, suspiros soltarem,
como toque de buzina que a morte propalasse do veadinho… Oh! Tal acolhimento é-me
contrário, visceralmente, ao peito e ao sobrecenho. Vem Mamillius; és meu filho? (1.2.108–17)
O jovem príncipe Mamillius está por perto, mas não percebeu a mudança
em seu pai quando o ouve perguntar: “És meu filho?”. Afinal, Polixenes
está com eles há nove meses. Mamillius não sabe que seu pai agora duvida
de que ele seja seu filho. Pelas próximas vinte e seis linhas, Leontes
continua na mesma veia raivosa com seu filho ainda por perto. “Então és
meu novilho?”. Ele pergunta, e seu filho responde: “Se vos agrada tal coisa,
meu senhor”. 16
Ao longo do ato i, a loucura de Leontes aumenta enquanto sua esposa,
Polixenes, seu filho e sua corte, desnorteados, temem o que ele fará a seguir.
Teríamos alguma pista da causa mais profunda de sua mente quebrantada?
Anteriormente, Polixenes havia falado com Hermione sobre sua amizade de
infância com Leontes:
Pois não, formosa soberana, moços que criam sempre ter diante de si dias em tudo iguais e que
haveriam de ser sempre rapazes. (1.2.62–64)
É
É em parte a empatia de Sancho Pança por Dom Quixote que nos
convence a continuar virando as páginas do livro. Ele transforma o que
poderia ter sido um esquete de Monty Python em uma história que
investiga o que significa ser humano, servir a um ideal, falhar nesse serviço.
Egginton escreve: “Essa capacidade de experimentar realidades diferentes e
às vezes contraditórias sem rejeitar uma ou outra é uma das principais
razões pelas quais somos tão atraídos pela ficção, em todas as suas formas”.
27
Na criação da relação entre Dom Quixote e Sancho Pança, Cervantes
criou um espaço imaginativo onde nós, leitores, podemos experimentar
diferentes identidades, perspectivas e moralidades com total segurança.
Egginton se refere a isso como usar uma máscara 28 para dizer a verdade,
“verdades sobre quem somos, que podemos descobrir apenas imaginando-
nos de outra forma”. 29
Outro motivo pelo qual continuamos lendo é o próprio Sancho Pança.
Nós o conhecemos quando Dom Quixote cavalga até uma fazenda próxima
à procura de um escudeiro. Sancho é um fazendeiro pobre com mulher e
filhos, mas é persuadido por Dom Quixote a servir como seu escudeiro.
“Dizia-lhe entre outras coisas Dom Quixote, que se dispusesse a
acompanhá-lo de boa vontade, porque bem podia dar o acaso que do pé
para a mão ganhasse alguma ilha, e o deixasse por governador dela. Com
estas promessas e outras quejandas, Sancho Pança (que assim se chamava o
lavrador) deixou mulher e filhos, e se assoldadou por escudeiro do fidalgo”.
30
O que ansiamos está bem diante de nós, não importa nossa idade ou
posição na vida. O livro de Deal Hudson é um convite para alimentar o
coração, a mente e a alma. Como podemos esquecer de algo assim? Adiar o
que há de mais satisfatório na vida? No entanto, é exatamente isso que nós,
humanos, tendemos a fazer. O livro de Deal Hudson é um convite para
viver plenamente, para se apaixonar pelo que é verdadeiro e belo, para
saciar nossa fome espiritual, física e emocional. Como benefício
secundário, trata-se da melhor lista de leitura, música e filmes que se possa
imaginar.
— Marjorie Dannenfelser, Presidente da Susan B. Anthony List