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Como não perder a cabeça:

auto-educação clássica contra a doutrinação cultural


Deal Wyatt Hudson
1ª edição — agosto de 2021 — CEDET
Título original:
How to Keep From Losing Your Mind:
Educating Yourself Classically to Resist Cultural Indoctrination
Copyright © Deal W. Hudson 2019
Reservados todos os direitos desta obra.
Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou
mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do
editor.
Sob responsabilidade do editor,
não foi adotado o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
Editor:
Felipe Denardi
Tradução:
Ricardo Harada

Revisão:
Roger Campanhari
Preparação de texto:
Gabriel Corrêa
Capa:
Brunortega | Projetos Gráficos
Diagramação:
Pedro Spigolon

Revisão de provas:
Beatriz Mancilha
Flávia Theodoro
Tamara Fraislebem

Os direitos desta edição pertencem ao


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Av. Comendador Aladino Selmi, 4630
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Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

Hudson, Deal Wyatt.


Como não perder a cabeça: auto-educação clássica
contra a doutrinação cultural / Deal Wyatt Hudson;
tradução de Ricardo Harada –
Campinas, SP: Kírion, 2021.
Título original:
How to Keep From Losing Your Mind:
Educating Yourself Classically to
Resist Cultural Indoctrination
isbn 978-65-87404-25-7

1. Educação 2. Educação humanística 3. Aconselhamento pessoal


I. Autor II. Título

cdd 370 / 370-112 / 371-46

Índices para catálogo sistemático:


1. Educação – 370
2. Educação humanística – 370-112
3. Aconselhamento pessoal – 371-46
Sumário

Agradecimentos
Introdução
parte i
Beleza: o Cânone irresistível
capítulo i
Precisas mudar de vida
capítulo ii
Há, sim, grandes livros
capítulo iii
Expandindo o Cânone 1: música
capítulo iv
Expandindo o Cânone 2: filmes
capítulo v
Livros, poesia, música e filmes
capítulo vi
Maravilha
parte ii
Verdade: más idéias em movimento
capítulo vii
Engajamento: do desapego à atenção
capítulo viii
Relembrando: saber requer retaguarda
capítulo ix
Encontrando o ponto arquimédico: a batalha pela natureza humana
capítulo x
Expondo inverdades:
capítulo xi
Desmascarando os gurus:
capítulo xii
Jogando a culpa nos outros:
parte iii
Bondade: o amor é a cruz
capítulo xiii
Amor parental
capítulo xiv
Amizade
capítulo xv
Eros
capítulo xvi
Ágape
capítulo xvii
O humano
Bibliografia
Elogios a Como não perder a cabeça
À memória do Dr. Mortimer J. Adler
Pois o único e verdadeiro objetivo da educação é simplesmente este: ensinar os homens a aprender por si
mesmos; e qualquer instrução que falhe em cumprir isso é esforço despendido em vão.
— Dorothy Sayers, The Lost Tools of Learning, 1947

Quanto mais longe você olha para trás, tanto mais longe pode enxergar à frente.
— Winston Churchill

Quando lia contos de fadas, imaginava que aquelas coisas jamais aconteciam, e agora cá estou no meio
de um!
— Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas, 1865
Agradecimentos

Q uero agradecer ao meu editor-chefe, Steven Phelan, por sua ajuda


especializada e oportuna. Minha assistente Claire Smith e a ex-aluna
Lisa Gaye Waddell, que tiveram a gentileza de ler o manuscrito
inteiro e sugerir cortes importantes.
Meus amigos Robert R. Reilly, Jens F. Laurson, Francis O’Gorman, John
Kinsella, Frank Buckley, Jeffrey D. Wallin e Dana Gioia me deram
conselhos valiosos durante minha pesquisa e redação.
Os anos de apoio de Steve Clarke, meu produtor de rádio, tornaram
possível o amplo escopo deste livro. E é um prazer trabalhar com John
Moorehouse da tan Books.
Também quero agradecer a Alan Carson, presidente do Morley
Publishing Group, e sua esposa Alyssa, que ajudaram e incentivaram meu
trabalho por mais de duas décadas. Marjorie Murphy Campbell e Bill
Campbell, também apoiadores de longa data, possibilitaram que eu
encontrasse o tempo necessário para escrever este livro.
Minha esposa, Theresa C. Hudson, que ajudou na preparação final do
manuscrito, pacientemente permitiu que eu trabalhasse por meses com
pouca interrupção. Meu filho, Cyprian Hudson, graciosamente manteve-
me abastecido com chá gelado e corrigiu vários pontos da história. Minha
filha, Hannah Hudson, embora a quilômetros de distância, me lembrava
repetidamente de seu amor e apoio.
Finalmente, gostaria de expressar minha gratidão a Frank Hanna iii e
David Hanna por sua lealdade e generosidade para comigo e minha
família.
Introdução

A os dezessete anos, tive a sorte de conhecer um professor que


transformou minha mentalidade e, conseqüentemente, toda a minha
vida. Ele era o zelador da minha escola em Fort Worth, Texas. No
último ano do colegial eu estava atuando na peça O diário de Anne Frank e,
todas as noites, após o ensaio, ele nos ajudava a limpar o palco para o dia
seguinte.
Conversávamos casualmente sobre o que eu estava estudando, de que
gostava e por quê. Um dia me perguntou se eu sabia alguma coisa sobre
Sócrates e Platão. Disse a ele que sabia os nomes, é claro, mas nada além
disso. No dia seguinte, ele me trouxe o livro mais lindo que eu já havia
visto — Os diálogos completos de Platão — em uma caixa com uma fita de
seda pendurada para fora das páginas. Exatamente como a Bíblia!
O zelador, cujo rosto permaneceu comigo, embora eu tenha
lamentavelmente esquecido seu nome, sugeriu que eu lesse a Apologia e o
Críton para que pudéssemos conversar sobre eles na noite seguinte.
Segurando um livro tão magnífico, eu dificilmente poderia recusar.
Naquela noite, li os dois diálogos e me preparei para encontrá-lo após o
ensaio na noite seguinte.
Quando nos sentamos sobre alguns adereços de palco, ele me
surpreendeu. Não me questionou sobre os diálogos, mas fez a seguinte
pergunta: “O que vem primeiro, existência ou essência?”. Fiquei
instantaneamente intrigado e um pouco receoso de dar uma resposta errada
(ainda não sabia que os filósofos haviam debatido a questão por milênios).
Depois de pedir-lhe para explicar melhor a questão, concluí: “Deve ser
existência!”. Ele sorriu, insistindo para que eu ficasse com o livro precioso.
Procurei por ele nos dias seguintes às apresentações, mas nunca mais o vi.
Só anos depois percebi que ele havia me induzido a refletir sobre os
mistérios da existência. O que é existência? Por que as coisas existem? A
existência é boa? Em que minha existência humana difere de outras coisas
existentes — animais, plantas, minerais, ar e água? Deus existe do modo
como fui ensinado a crer? E os anjos? A pergunta simples do meu professor
tinha me abalado, e parecia que o fundo da minha mente se abrira,
permitindo uma enxurrada de novas perguntas. Foi realmente uma
mudança de vida.
Meu objetivo com este livro é transmitir essa experiência.
Obras clássicas, como os diálogos de Platão, são agentes do maravilhoso
— elas incendeiam a mente e as emoções. Os clássicos conduzem a mente a
uma nova direção, seja a grande obra em questão um livro, um filme ou o
clímax do movimento final da Nona sinfonia de Beethoven.
O que eu chamo de “perder a cabeça” não se refere àqueles momentos em
que você, enfurecido, perde as estribeiras; trata-se de perder a cabeça para
uma mentira. Todas as grandes mentiras do século xx — as de Hitler,
Lenin e Mao — prometem um Estado que atenderá a todas as necessidades
humanas. Uma vez que você entrega essa responsabilidade ao Estado, você
habilita a tirania.
“A sabedoria começa na maravilha” disse Sócrates. O desejo intenso de
entender um magnífico pôr do sol ou uma passagem de música
excruciantemente bela é uma resposta natural a algo inexplicável, algo bom,
verdadeiro ou belo.
Sou daqueles que acreditam, entretanto, que a tecnologia digital diminuiu
a capacidade de nos maravilharmos. Muitos de nós ficam presos a nossos
dispositivos eletrônicos, por meio dos quais temos acesso quase irrestrito à
“world wide web” e a todas as informações, intrigas e enganos nela
contidos. A facilidade de encontrar quase tudo nos estraga. O que
costumava ser distante e difícil de encontrar, agora está próximo, ao alcance
de nossas mãos. Não é de todo ruim; na verdade, traz muitos benefícios
óbvios: vastas bibliotecas e belas performances estão disponíveis em nossos
múltiplos dispositivos. O mundo, ou pelo menos uma impressão particular
dele, está a apenas a um clique de distância. Nossos filhos podem jamais vir
a conhecer a paciência necessária para encontrar os livros, revistas e jornais
certos para um projeto de pesquisa ou o júbilo de encontrar aquela obra
rara, fora de catálogo, perdida há muito tempo.
Uma vez que planos de três etapas estão na moda, permitam-me oferecer
o meu — este, como o título do livro sugere, destina-se a manter nossa
sanidade e liberdade. Primeiro, façamos bom uso da tecnologia, para voltar
aos clássicos. Muitos clássicos estão agora disponíveis online gratuitamente
ou por um preço módico. Em segundo lugar, reservemos algum tempo para
o lazer e a contemplação. Vamos ajustar nossos hábitos de atenção para que
possamos ler, ouvir e assistir sem distrações. O uso de mídias sociais e
entretenimento onipresente reduziu a capacidade de atenção. Terceiro,
reunamos as idéias que criaram nossa civilização antes que sejam
completamente expelidas da existência à força pelos iconoclastas e
queimadores de livros de hoje. Várias gerações de alunos aprenderam
mentiras sobre nossa civilização e não leram os clássicos por si próprios.
Esta jornada, por si mesma, será sua própria recompensa. Podemos buscar
a auto-educação porque vivemos em uma sociedade livre, pelo menos por
enquanto. Ninguém está queimando livros ainda, embora muitos dos
clássicos tenham sido eliminados dos currículos universitários por
professores “progressistas”. Portanto, não descarto a possibilidade de
testemunhar, ainda em vida, a queima de livros ou algo equivalente. Os
incêndios são desnecessários quando a robusta mídia social e os
mecanismos de pesquisa podem priorizar informações online e apagar
virtualmente aqueles de quem discordam.
Por favor, não se sinta incomodado quando menciono textos clássicos,
filmes ou músicas que você talvez não conheça. O que destaco é para seu
deleite e descoberta. Começaremos discutindo em que consiste o Cânone
das grandes obras e por que tais coleções se tornaram objeto de tanto
esforço e discussão no último século. Argumentarei que as listas
amplamente aceitas de grandes livros se beneficiariam com a inclusão de
filmes e obras musicais já clássicos em sua perene conversação, pois acredito
que tal diálogo abrirá possibilidades para novos públicos e descobertas. A
seguir, revisitarei os movimentos do século xx que, juntos, se tornaram um
ataque total aos clássicos e, na realidade, à memória civilizacional do
Ocidente. Finalmente, vou oferecer uma série de diálogos entre grandes
obras dentro da estrutura dos “quatro amores”, conforme determinado na
Antigüidade e notoriamente discutido pelo grande classicista, apologista e
romancista C. S. Lewis.
Ao longo do caminho, expurgaremos os jargões, preconceitos e idéias pós-
modernas específicas que a cultura contemporânea impôs a todos nós.
O objetivo não é apenas a fruição das obras mesmas, mas recuperar a
marca primordial de uma pessoa educada, sua liberdade de pensar. Não
estou interessado em ajudá-lo a riscar os clássicos de uma lista ou melhor
prepará-lo para o name drop. 1 Não estou entregando a vocês uma lista de
“leituras obrigatórias”, um dos termos mais irritantes do cenário moderno
dominado pela mídia social. Uma jornada educacional não deve parecer
uma tarefa árdua ou imposta desde cima. Clássicos são clássicos porque
trouxeram alegria e compreensão para gerações ao longo dos séculos. Eles
são auto-recomendáveis e não precisam ser empurrados à força. É um
privilégio vivermos em uma sociedade onde não nos é proibido o acesso a
esses tesouros. Mesmo trinta anos após a queda do Muro de Berlim, ainda
há países que censuram o que é lido ou visto por seus cidadãos. Admito
que uma sociedade saudável apresentaria “alguma” censura, mas os tipos de
coisas que essa sociedade deveria censurar — acho que você sabe a que
estou me referindo aqui — são os que avidamente consumimos.
Temos uma quantidade virtualmente ilimitada de informações ao nosso
alcance. Ao realizar a pesquisa para este livro, fiquei surpreso com os
recursos que encontrei na internet. Um século atrás, ninguém, exceto talvez
Júlio Verne e H. G. Wells, poderia ter sonhado que o conteúdo de vastas
bibliotecas estaria disponível em dispositivos que cabem na palma da mão
de uma pessoa. Séculos antes, a maioria apenas sonhava em ter livros em
casa: os livros pertenciam a uns poucos privilegiados, ao clero e à realeza.
Cada mudança na tecnologia de comunicação resultou em mais pessoas
tendo acesso a informações e conhecimento. O que eles fizeram com esse
acesso é um outro tópico em si mesmo.
A internet expandiu tanto que Kevin Carey, em seu livro de 2015, The
End of College, previu que uma “Universidade de todos os lugares”
eventualmente surgirá na internet com cursos, especializações e diplomas
oferecidos por uma fração do custo de hoje. 2 Ainda não chegamos lá, mas
já existem recursos para qualquer pessoa com acesso à internet e motivação
suficiente para continuar seus estudos em qualquer área do ensino. Afinal,
como Carey acrescenta: “Se você leva seu significado a sério, a educação
liberal é o trabalho de toda uma vida”. 3
Esse projeto pode muito bem ser viciante. Esperemos que sim, se o
opiáceo for a beleza e a edificação. Depois que começar, você ficará eufórico
e não vai querer parar. Em algum lugar ao longo do caminho, você
perceberá que estar imerso em pensamentos proporciona um prazer
profundo e duradouro que tem poucos rivais na experiência humana. Você
lerá, por exemplo, A letra escarlate ou irá a uma peça de Shakespeare e dirá
a si mesmo: “Por que não fiz isso antes?”. Ao longo do caminho, você
aprenderá a discriminar. Assim como os estudiosos não confiam em tudo
que cai em suas mesas, você aprenderá a reconhecer a diferença entre o
trivial, o agradável, o necessário e o edificante.
A idade não deve ser uma preocupação — a mente é imaterial e, a
despeito das doenças, permanece disponível para o crescimento do aluno
de qualquer idade. O corpo e o cérebro envelhecem, é claro, então pode
haver teias de aranha para limpar, mas o exercício mental constante pode
ajudar a retardar o processo de envelhecimento. Os maus hábitos mentais
acumulados ao longo de muitos anos podem ser reconhecidos e corrigidos
lentamente. Qualquer hábito, seja físico ou mental, requer tempo para
mudar. Os hábitos podem ser alterados com algumas semanas de esforço
concentrado. Mas é mais importante considerar este projeto, como Kevin
Carey afirmou, o esforço de uma vida. Seus hábitos vão mudar, mas o que
irá cativá-lo será o prazer em retomar os clássicos.
Alguns hábitos de pensamento são inculcados em nós pelos czares da
cultura, que insistem para que vejamos o mundo do ponto de vista deles.
Essas opiniões muitas vezes estão carregadas de suposições, geralmente
erradas, sobre o propósito da vida e o que é mais necessário. Em alguns
ambientes, deixar de seguir cegamente a cartilha vigente pode colocá-lo na
linha de fogo. Você não será apenas considerado errado; você será taxado de
fanático por se recusar a aceitar a visão de mundo deles, por mais absurda
que seja. Um clima de intimidação permeia a maioria dos debates públicos
encontrados em muitas das faculdades e universidades de nosso país.
Infelizmente, a doutrinação ideológica também fez seu caminho na
educação primária.
Lembre-se de que a cultura é a escola que freqüentamos todos os dias.
Uso a palavra deliberadamente: “cultura”, em sua definição original, que
tinha a ver com veneração em um contexto religioso, não é o que temos
hoje. Sequer temos a compreensão de cultura que compartilha sua raiz com
“cultivar”, o ato de trabalhar para cultivar algo, como plantações. Não, aqui
utilizo o termo em sua acepção moderna reduzida, na qual se refere à
coleção massiva de normas, comportamentos, hábitos, suposições, artes,
entretenimento, instituições e interesses que definem um lugar e um
tempo. Essa “cultura” nós já temos, e há pouco do que nos orgulhar.
Faríamos bem em recuperar o significado original da palavra.
Se quisermos transformar a cultura, precisamos estar cientes de todos os
fatores que a criam e sustentam. O fator mais influente na formação da
sociedade é a educação, seguida de perto pela mídia em todas as suas várias
plataformas. Infelizmente, a religião tradicional desempenha um papel
relativamente pequeno e decrescente. Assim, as mensagens, atitudes e
valores daqueles que controlam as escolas, mídia e indústrias de
entretenimento são as fontes primárias da cultura moderna. A cultura
também é expressa por nossos costumes, como nos vestimos e como nos
comunicamos, mas mesmo estes estão sujeitos a regulamentação e
manipulação. Uma forte fé religiosa e uma cultura familiar distinta são os
melhores antídotos para evitar ser mais um produto de expectativas
culturais. A atenção aos clássicos pode ajudar a transformar sua cultura
dentro de casa.
A curiosidade estimulada por meu encontro com Platão e Sócrates deu
início a uma jornada que se tornou minha carreira. Ao longo do caminho,
conheci um de meus heróis intelectuais, Mortimer J. Adler, cujo exemplo
serviu como uma estrela guia. Tornamo-nos amigos e tive o privilégio de
ser um Adler Fellow no Aspen Institute por três verões no início dos anos
1990. Como leitor, aprendi com ele sobre o quão profundamente as
“grandes idéias” estavam enraizadas na história de nossa civilização. Percebi
que foi seu aprendizado prodigioso, levado de forma amena, que o
capacitou a escrever de maneira simples sobre idéias como verdade,
bondade, beleza, liberdade, igualdade e justiça. 4 Dr. Adler se irritava
quando alguém as chamava de “simplificadas”! Qualquer pessoa que tenha
lido os livros do Dr. Adler sabe que ele não trocou a verdade pela clareza.
Este livro é resultado do que aprendi com o Dr. Adler e das conversações
que compartilhamos.
Este livro é dividido em três partes: Beleza, Verdade e Bondade, três
aspectos transcendentais do ser. Cada um deles representa uma maneira ou
modalidade diferente de apreender tudo o que existe. A Verdade é o ser tal
como a mente o conhece. Bondade é o que desejamos corretamente pela
vontade. Beleza é o esplendor de todos os transcendentais unidos, um ímã
para os sentidos e o coração. Onde quer que se encontre um dos
transcendentais, também se encontrará os outros.
A Parte 1 é chamada “Beleza: o Cânone irresistível” porque os clássicos
resistiram ao teste do tempo — eles são irresistíveis porque aprendemos
mais com eles sobre nós mesmos, a vida que levamos como pessoas
humanas. Os clássicos levantam questões sobre como viver bem ou se
buscar uma boa vida é uma obrigação que todos compartilhamos. Também
apresento respeitosamente os benefícios de expandir o Cânone para incluir
o cinema e a música clássica: cineastas e compositores criaram suas próprias
obras-primas de expressão e exploração da experiência humana.
A Parte 2, “Verdade: más idéias em movimento”, começa lembrando o
leitor dos hábitos de atenção e do desapego necessários para se envolver
com os clássicos. Os clássicos são exigentes. Eles exigem distanciamento dos
insultos e brigas políticas das manchetes do dia. A contemplação é
necessária, não a polêmica. Tento desvendar as idéias pós-modernas que
agora dominam a academia, a educação, o discurso público e a mídia.
Argumento que essas idéias envenenaram a cultura ao rejeitar a verdade, o
conhecimento objetivo e a idéia de uma natureza humana compartilhada.
Com a rejeição do conhecimento objetivo, os argumentos pós-modernistas
baseiam-se no poder e não na razão ou nos fatos.
A Parte 3, “Bondade: o amor é a cruz”, começa revisitando o livro clássico
de C. S. Lewis, Os quatro amores. O amor, em todas as suas formas, é a base
de nossa vida moral. Em cada um dos quatro capítulos, justaponho livros,
filmes e música, comparando como cada amor é expresso e retratado. A
liberdade humana é crucial para o amor autêntico. A mãe ama seu filho
naturalmente, mas pode abandoná-lo livremente. As amizades são feitas
livremente e, embora Eros possa ser sentido como uma possessão, é
necessário escolher não ser arrastado por ele. Ágape, acima de tudo, requer a
liberdade de Deus para dar e do homem para receber.
Podemos começar? Escrevi este livro com uma sensação crescente de
alegria ao revisitar clássicos com os quais não me encontrava há muitos
anos e alguns que estava adentrando pela primeira vez. Se este livro instigar
você a começar sua própria exploração, terei sido bem-sucedido.

1 Name-dropping é a prática de citar e mencionar pessoas importantes ou


instituições dentro de uma conversa, argumento, texto ou exposição com o
intuito de impressionar os interlocutores e exibir uma fachada de erudição.
É uma espécie de argumento de autoridade, falácia lógica fundada no apelo
para a palavra ou reputação de alguma autoridade a fim de validar um
argumento — nt.
2 Kevin Carey, The End of College: Creating the Future of Learning and the
University of Everywhere. Nova York: Riverhead Books, 2015, p. 11.
3 Ibid., p. 254.
4 Mortimer J. Adler, Six Great Ideas. Nova York: Touchstone, 1997.
parte i

Beleza: o Cânone irresistível


capítulo i
Precisas mudar de vida

V ocê se lembra da primeira vez que visitou um grande museu, como a


Galleria degli Uffizi em Florença, ou uma magnífica igreja gótica,
como a Catedral de São Patrício em Nova York? Provavelmente viu
algo que o fez parar e ficar imóvel. Você admirou. Tornou-se consciente de
que estava fitando fixamente e talvez tenha olhado em volta para ver se
alguém notara sua presença. Mas você voltou a contemplar, sem se
importar com o que os outros pensam. Você se permitiu admirar até que
sua sede recém-despertada fosse saciada, pelo menos por um momento.
Pense em como você se sentiu naquele instante e nos pensamentos que
teve. Você se sentiu não apenas encantado, mas também desafiado? É difícil
de explicar, mas já senti esse desafio muitas vezes. Um professor de filosofia
da Universidade do Texas tocou a abertura “Kyrie” da Missa em Si Menor
de J. S. Bach e fui arrebatado por sua beleza. De repente, eu queria ter os
ouvidos do meu professor, por assim dizer, e seu conhecimento de música
clássica. Queria descobrir toda a beleza da música. Foi como minha
primeira leitura da Apologia a pedido do zelador da escola: uma porta foi
aberta para tesouros que enriqueceram minha vida desde então.
Tive a sorte de ter professores, amigos e familiares que me apresentaram o
que Matthew Arnold chamou de “aquilo que de melhor foi pensado ou
dito”. Não “captei” isso na primeira tentativa. Estranhamente, demorei um
pouco para me familiarizar com Beethoven, não as sinfonias, mas as sonatas
para piano e os quartetos de cordas. Mais tarde, percebi que meu ouvido
precisava de mais educação, do tipo que vem com muitas horas ouvindo o
repertório clássico. Pedir que um adolescente ouça um quarteto de cordas
de Beethoven é como lhe entregar o primeiro volume do romance Em busca
do tempo perdido de Marcel Proust. Mas uma vez que a conexão com
Beethoven é sentida, um sentimento de admiração nos invade, fazendo
você se perguntar como alguém poderia sentir aquilo com tanta
profundidade e expressá-lo em música. Essa admiração em si é um desafio:
sondar a profundidade da condição humana tão profundamente quanto o
compositor. O desafio vem na forma de uma pergunta: conseguirei
acompanhar? Sim, respondi, não por causa de alguma habilidade única de
minha parte, mas porque fui alegremente capturado, foi uma espécie de
amor à primeira vista.
O TORSO ARCAICO DE APOLO
Rainer Maria Rilke (1875–1926), considerado por alguns o maior poeta do
século xx, viveu quando jovem em Paris por vários anos, enquanto
trabalhava como secretário do famoso escultor Auguste Rodin. Rilke fazia
visitas regulares ao Louvre e a outros museus de Paris, mas um dia uma
escultura em particular, da Grécia Antiga, chamou sua atenção, inspirando-
o a escrever um poema: 1
archaïscher torso apollos (1908)
Wir kannten nicht sein unerhörtes Haupt,
darin die Augenäpfel reiften. Aber
sein Torso glüht noch wie ein Kandelaber,
in dem sein Schauen, nur zurückgeschraubt,
sich hilt and glänzt. Sonst könnte nicht der Bug
der Brust dich blenden, and im leisen Drehen
der Lenden könnte nicht ein Lächeln gehen
zu jener Mitte, die die Zeugung trug.
Sonst stünde dieser Stein entstellt and kurz
unter der Schultern durchsichtigem Sturz
and flimmerte nicht so wie Raubtierfelle;
und bräche nicht aus alien seinen Rändern
aus wie ein Stern: denn da ist keine Stelle,
die dich nicht sieht. Du musst dein Leben ändern.
torso arcaico de apolo
Não conhecemos sua cabeça inaudita
Onde as pupilas amadureciam. Mas
Seu torso brilha ainda como um candelabro
No qual o seu olhar, sobre si mesmo voltado
Detém-se e brilha. Do contrário não poderia
Seu mamilo cegar-te e nem à leve curva
Dos rins poderia chegar um sorriso
Até aquele centro, donde o sexo pendia.
De outro modo erguer-se-ia esta pedra breve e mutilada
Sob a queda translúcida dos ombros
E não tremeria assim, como pele selvagem.
E nem explodiria para além de todas as suas fronteiras
Tal como uma estrela. Pois nela não há lugar

Que não te mire: precisas mudar de vida. 2

O último verso de Rilke eclode como uma surpresa. Como se rompesse a


quarta parede no teatro, o poeta confronta o leitor com uma exigência:
“Precisas mudar de vida”. É a “cabeça inaudita” que falta na escultura,
especificamente seus olhos “onde as pupilas amadureciam”, que nos medem
enquanto olhamos de volta. Rilke descreve um momento em que os papéis
se invertem: a obra de arte está medindo o observador, “pois nela não há
lugar que não te mire”.
A surpresa da admoestação do poeta não estava no que ele disse, mas no
fato de que disse. É como se Rilke optasse por tornar explícito o que está
implícito em nossos encontros com a grande obra de um artista ou escritor.
Ele torna explícito o despertar daquilo que eu chamaria aspiração. O que é
aspiração senão o desejo de “mudar de vida?”. A raiz da palavra é a mesma
de “espírito”, que vem do aspirare latino, cujo significado é “respirar”. Quão
apropriado é, portanto, dizer que a beleza da arte é breathtaking, ou seja,
“de tirar o fôlego”!
Existem várias maneiras de explicar esse encontro, mas a que faz mais
sentido do que as outras é a consideração de que os seres humanos são uma
unidade de corpo e espírito. São Tomás de Aquino expressa essa conexão
em sua definição de beleza: “aquilo cuja visão agrada”. 3 “Visão” aqui
representa o poder de todos os sentidos quando encontram um objeto
aprazível. Esses objetos imediatamente se tornam objetos do apetite da
vontade. Do ponto de vista da vontade, qualquer coisa desejada é um
“bem” porque, ao possuí-la, experimentamos satisfação e realização.
Desejamos muitas coisas e acreditamos, certa ou equivocadamente, que
estas coisas estão conectadas ao Bem.
Por exemplo, compreender é um bem: no momento em que entendemos
algo melhor, digamos, o que aprendemos sobre o preconceito em O
mercador de Veneza de Shakespeare ou a natureza do amor romântico em
Romeu e Julieta, sentimos satisfação e esperança. Ficamos satisfeitos por
saber e esperançosos de que o mundo possa ser compreendido e de que
possamos sondar mais profundamente o coração do homem. Ninguém
quer andar em meio à escuridão dia após dia. É por isso que somos
naturalmente atraídos por finais felizes, onde a luta humana leva à
resolução: no final da Segunda sinfonia de Gustav Mahler, por exemplo,
somos elevados para ouvir algo celestial. Na conclusão de Oliver Twist de
Dickens, nos deleitamos com um menino sendo devolvido à sua família. E
em Rastros do ódio de John Ford, 4 ficamos aliviados quando a raiva
assassina de um homem por sua sobrinha é superada.
Esses momentos, obviamente, não se restringem aos finais felizes. Pense
nas tragédias que nos deixam mais sábios, mas menos satisfeitos, como
Édipo Rei de Sófocles, Macbeth de Shakespeare, Madame Bovary de
Flaubert e Metamorfose de Kafka. A percepção e o reconhecimento que o
leitor experimenta na tragédia, a catarse do terror e da piedade, é em si um
bem que desperta a aspiração por bens cada vez mais duradouros. 5 Junto
com os antigos, acredito que esse impulso está enraizado no desejo humano
natural de satisfação total, o Bem em si, que os gregos chamavam de
eudaimonia, e que costumava ser traduzido como “felicidade”, embora
recentemente seja traduzido amiúde como “bem-estar”.
O mesmo desejo interior que deleita em Keats, Mozart ou Spielberg só
será encorajado se buscar uma felicidade permanente, satisfatória e
duradoura. Desse modo, o torso arcaico de um homem, sem cabeça e sem
extremidades, pelo poder de sua forma é capaz de acenar para você,
impelindo-o a “mudar de vida”.
UMA CONFISSÃO
Quando jovem, mergulhei nos Great Books em busca do Bem, com os
olhos fixos em encontrar identidade e definição. Fui atraído pelos ideais
para a vida porque me faltava direção. Muitas das obras modernas
consideradas “clássicas” me desanimavam; sua escuridão me perturbava.
Decidi por mim mesmo que elas retratavam uma visão excessivamente
pessimista do mundo. Procurava por idéias e imagens para me guiar.
Naquela época, não podia tolerar muita ambigüidade e incerteza.
Por exemplo, o realismo devastador de filmes como Taxi Driver e
Apocalypse Now ia a lugares até os quais eu não podia acompanhar. Não
reclamava deles por serem deprimentes, como muitos faziam, mas por
serem ininteligíveis — seu niilismo não fazia sentido para mim. Isso
também se aplica aos célebres anti-heróis e heroínas artísticos dos anos 60,
como Dennis Hopper, Andy Warhol, Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Bob
Dylan, Herbert Marcuse, Gloria Steinem, Jean-Paul Sartre e Simone de
Beauvoir. Havia algo lá que eu não conseguia ver, que não conseguia
entender ou apreciar. Lolita de Nabokov, por exemplo, que agora é
considerada uma obra-prima, evitei ler por motivos religiosos até mais
tarde na vida, para só então descobrir que era um profundo conto moral. O
mesmo vale para Cem anos de solidão de Márquez — seu composto virtual
de fracassos humanos inicialmente me deixou indiferente. Por mais que eu
fique irritado com as pessoas que chamam os filmes sérios de
“deprimentes”, eu estava agindo da mesma maneira sem saber.
O tempo passou e abracei apenas aquelas obras que se encaixavam no
meu domínio de reconhecimento. Mas, anos depois, algo mudou: Taxi
Driver e Apocalypse Now tornaram-se filmes favoritos. Todo o gênero que
eu teria chamado de “lado negro” tornou-se reconhecível para mim. O que
havia acontecido? A vida aconteceu. Passei vinte e três anos na academia
como aluno ou professor. Quando comecei a ganhar a vida fora da
universidade, percebi o quão enclausurada havia sido minha vida. A
confusão de dirigir um negócio e me envolver na política nacional me
apresentou o outro lado da vida, um mundo mais amplo, onde a inveja, a
ira e a traição são comuns — em outras palavras, o mundo de Homero,
Virgílio, Dante e Shakespeare.

1 Rainer Maria Rilke, Requiem and Other Poems, trad. J. B. Leischman.


Londres: Hogarth Press, 1949, p. 115.
2 Tradução de Mário Faustino. Cf. Mário Faustino, Poesia completa, poesia
traduzida. São Paulo: Max Limonade, 1985 — nt.
3 Tomás de Aquino, Suma teológica, ia, q. 5, art. 4, ad. 1.
4 O título original do filme de 1956 é The Searchers — nt.
5 Aristóteles, Aristotle’s Poetics: A Translation and Commentary for Students
of Literature, trad. Leon Golden. Prentice-Hall Inc., 1968, p. 11.
capítulo ii
Há, sim, grandes livros

A queles clássicos chamados Great Books, os Grandes Livros, estão


intimamente associados a Mortimer J. Adler e Robert Hutchins. 1
Quando Hutchins se tornou presidente da Universidade de Chicago
em 1929, contratou Adler para ensinar filosofia na faculdade de direito e
no departamento de psicologia. Ao chegar, Adler, um tanto ousadamente,
recomendou a Hutchins um programa de estudos para alunos de graduação
usando textos clássicos. Adler havia ensinado no programa General Honors
da Universidade Columbia, iniciado em 1921 pelo professor John Erskine.
Hutchins pediu a Adler uma lista de livros para serem lidos em tal
programa. Quando Hutchins viu a lista, disse a Adler que não havia lido a
maioria deles durante seus anos de estudante no Oberlin College e na
Universidade Yale. Hutchins escreveu mais tarde que, se Adler não “fizesse
algo drástico, ele — Hutchins aqui se refere a si mesmo — teria encerrado
sua carreira educacional como um homem totalmente inculto”. 2 Hutchins
ainda foi presidente por mais dezesseis anos antes de servir como chanceler
até 1951 e, no ano seguinte, eles fizeram algo drástico.
Em 1952, Adler e Hutchins publicaram os Great Books of the Western
World em 54 volumes. 3 Adler e Hutchins incluíram os 714 autores que
consideraram mais importantes para o desenvolvimento da civilização
ocidental. 4 A influência do movimento dos Great Books na cultura
americana por várias décadas foi considerável e continua até hoje.
Sua seleção de livros de mais de meio século atrás resistiu muito bem à
passagem do tempo. Comparei-os, por exemplo, com a lista de 2007
publicada pelo jornalista e crítico cultural J. Peder Zane. Zane pediu a 125
escritores importantes que listassem suas obras favoritas de ficção. 5 Zane
descobriu que os vinte títulos mais comuns listados pelos escritores foram:
■ Anna Karenina, Liev Tolstói, 1877.
■ Madame Bovary, Gustav Flaubert, 1856.
■ Guerra e paz, Liev Tolstói, 1869.
■ Lolita, Vladimir Nabokov, 1955.
■ As aventuras de Huckleberry Finn, Mark Twain, 1884.
■ Hamlet, William Shakespeare, 1600.
■ O grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald, 1925.
■ Em busca do tempo perdido, Marcel Proust, 1913–27.
■ Contos de Anton Tchekhov, 1860–1904.
■ Middlemarch, George Eliot, 1871–72.
■ Dom Quixote, Miguel de Cervantes, 1602, 1615.
■ Moby Dick, Herman Melville, 1851.
■ Grandes esperanças, Charles Dickens, 1860–61.
■ Ulisses, James Joyce, 1922.
■ Odisséia, Homero, século ix a.C.
■ Dublinenses, James Joyce, 1916.
■ Crime e castigo, Fiódor Dostoiévski, 1866.
■ Rei Lear, William Shakespeare, 1605.
■ Emma, Jane Austen, 1816.
■ Cem anos de solidão, Gabriel Garcia Márquez, 1967.
Adler e Hutchins incluíram todos esses livros, exceto os dois de Nabokov
e Márquez. Apesar de sua ausência, a modernidade está bem representada
nos Grandes Livros de Bertolt Brecht, Samuel Beckett, William Faulkner,
entre outros.
A pesquisa de Zane refuta a afirmação de que as listas de “grandes nomes”
refletem apenas as opiniões de homens brancos de meia-idade. Os 120
escritores entrevistados por Zane satisfariam qualquer requisito de
diversidade. Se alguém perguntasse ao mesmo número de filósofos,
historiadores ou cientistas sobre seus livros favoritos, os resultados teriam
sido os mesmos: a nova lista conteria a maioria dos clássicos reconhecidos
com a adição de alguns livros mais recentes e especializados.
POESIA
A poesia clássica está bem representada nos Great Books — Homero,
Virgílio, Shakespeare, Dante, Milton e Eliot estão lá, além de outros. Mas a
poesia lida no contexto dos Grandes Livros pode ser abordada como uma
fonte de idéias ou como mais um elo na história das idéias. Isso é um erro.
A linguagem poética é uma fusão lingüística de forma e conteúdo, uma
criação que resiste a ser tomada por conceito para preencher a linha do
tempo do filósofo.
Alguém pode objetar a respeito da relevância contínua da poesia
argumentando que ninguém mais lê poesia, exceto quando solicitado em
uma sala de aula. No entanto, o poeta e crítico Dana Gioia relata que a
poesia passou por um renascimento cultural fora da academia, onde os
poetas freqüentemente encontram um salário fixo. Gioia chama de “um
conto de duas cidades”; uma nova geração de poetas que está encontrando
sua voz no mundo real:
Eles trabalham como baristas, cervejeiros e balconistas de livraria; eles também trabalham em
negócios, medicina e direito. A tecnologia tornou possível a publicação de livros sem suporte
institucional ou comercial. A mídia social conecta as pessoas de forma mais eficaz do que
qualquer sala de professores. Um jornal online requer nada além de tempo. Qualquer pessoa com
um iPhone e um laptop pode produzir um vídeo de poesia profissional. Qualquer livraria,
biblioteca, café ou galeria pode promover um sarau de poesia. 6

Um estudo de 2017 do National Endowment of the Arts mostra que


11,2% dos adultos americanos, 28 milhões de pessoas nos Estados Unidos,
ainda lêem poesia. 7 Mas os jovens adultos, em particular, com idades entre
18 e 24 anos, estão liderando o retorno, com 17,5% relatando leitura
regular de poesia, uma duplicação do interesse desde o último estudo desse
tipo em 2012 (8,2%). Independentemente de quantos livros de poesia você
tenha em suas prateleiras, ou quantos você veja na livraria local, a poesia
prospera. O ser humano precisa cantar, se expressar além dos limites do
raciocínio discursivo. Como a música, a linguagem poética envolve o leitor
em um nível emocional que não é tocado pelo raciocínio filosófico. Antes
dos filósofos, foi Homero quem instruiu os gregos sobre deuses e heróis.
Mas suas epopéias eram cantadas, não lidas. A Ilíada e a Odisséia foram
cantadas por bardos que as guardaram na memória por mil anos antes de
serem escritas.
WILFRED OWEN
Se alguém me incumbisse de apresentar a poesia aos neófitos, um dos
primeiros livros que indicaria a meus alunos seria a poesia de Wilfred
Owen (1893–1918). Sua vida foi curta porque ele lutou na guerra,
morrendo exatamente uma semana antes do final da Primeira Guerra
Mundial. Após a faculdade, Owen foi para Paris, onde ensinou inglês e
francês. Ele testemunhou o início da guerra e dois anos mais tarde voltou
para a Inglaterra, onde foi comissionado como segundo-tenente. Sua
experiência em batalha está registrada na poesia que foi inspirada, em parte,
pelo tempo passado em um hospital com o já consagrado poeta Siegfried
Sassoon. Owen poderia ter ficado em casa, mas voltou para as trincheiras
onde morreu quatro meses depois. É impressionante o que Owen escreveu
antes de completar vinte e seis anos. Em Disabled, ele escreve sobre um
soldado que voltou para casa sem as pernas, em uma cadeira de rodas,
assistindo ao futebol:
About this time Town used to swing so gay
When glow-lamps budded in the light blue trees,
And girls glanced lovelier as the air grew dim, —
In the old times, before he threw away his knees.
Now he will never feel again how slim
Girls’ waists are, or how warm their subtle hands;

All of them touch him like some queer disease. 8


A essa hora, a cidade costumava oscilar tão alegre
Quando lâmpadas brotavam nas árvores azul-claras,
E garotas luziam mais adoráveis conforme o ar escurecia, —
Naqueles velhos tempos, quando ainda tinha as pernas.
Agora, nunca mais sentirá quão finas são as cinturas
Das garotas, ou quão cálidas são suas mãos sutis;

Todos elas o tocam como a uma doença obscena. 9

Em Strange Meeting, Owen imagina um soldado pulando em uma cratera


numa terra de ninguém e encontrando o cadáver de um soldado inimigo
que olha para ele: “Por seu sorriso morto, eu sabia que estávamos no
Inferno”. O soldado vivo se dirige ao morto: “Estranho amigo”, disse eu,
“aqui não há motivo para lamentar”. Mas o cadáver interrompe:
“None”, said that other, “save the undone years,
The hopelessness. Whatever hope is yours,
Was my life also; I went hunting wild

After the wildest beauty in the world”. 10


“Nenhum”, disse o outro, “exceto os anos perdidos,
A desesperança. Qualquer que fosse sua esperança,
Foi minha vida também; me lancei à caça selvagem
Atrás da beleza mais selvagem do mundo”.

A glória da guerra contada por Homero, Virgílio, Heródoto, Tucídides e


César Augusto foi lida na escola por soldados de ambos os lados das
trincheiras. O que este soldado encontrou em vez disso foi “a pena da
guerra, a pena que a guerra destilou”. Com seus pensamentos de glória
extintos pela morte, ele se imagina de volta à batalha:
Then, when much blood had clogged their chariot-wheels,
I would go up and wash them from sweet wells,
Even with truths that lie too deep for taint.
I would have poured my spirit without stint
But not through wounds; not on the cess of war.
Foreheads of men have bled where no wounds were.
I am the enemy you killed, my friend.
I knew you in this dark: for so you frowned
Yesterday through me as you jabbed and killed.
I parried; but my hands were loath and cold.
Let us sleep now…
Então, quando muito sangue obstruísse as rodas da carruagem,
Eu subiria para lavá-las nas águas dos poços doces,
Mesmo com verdades profundas demais para serem maculadas.
Eu teria derramado meu espírito sem hesitação
Mas não através das feridas; não pela cessação da guerra.
Eu sou o inimigo que você matou, meu amigo.
Eu o conheci nesta escuridão: então você franziu a testa
Ontem, através de mim, enquanto apunhalava e matava.
Me defendi; mas minhas mãos eram repugnantes e frias.
Vamos dormir agora…

Um sentido espiritual permeia estas linhas: “Eu teria derramado meu


espírito sem hesitação”. As sangrentas “rodas de carruagem”, uma referência
à Ilíada de Homero, são limpas “de poços doces”, como o Poço de Jacó (Jo
4, 5–6), um local de peregrinação na antiga cidade de Nablus por séculos.
O soldado morto diz ao vivo: “Eu sou o inimigo que você matou, meu
amigo”, e então oferece a ele seu perdão com as palavras: “Vamos dormir
agora”. No final deste encontro lúgubre, Owen conclui com uma nota de
nobreza e causa comum. Ler Owen responde às nossas indagações sobre o
que os homens vivenciam na batalha, como são capazes de enfrentar a
morte e como lidam com a experiência da batalha. A melhor literatura nos
leva a lugares e circunstâncias que podemos apenas imaginar vagamente e
nos dá acesso à vida interior de pessoas que, de outra forma, nunca
conheceríamos.
ELABORANDO LISTAS
Um guia indispensável para os clássicos é O Cânone ocidental: os livros e a
escola do tempo, do erudito literário Harold Bloom. 11 Ele organiza seu livro
em torno de vinte e seis autores selecionados, entre os quais os poetas
Shakespeare, Dante, Chaucer, Milton, Goethe, Whitman, Dickinson,
Neruda e Pessoa. Seus apêndices, no entanto, incluem listas de outros livros
que ele considera catálogos canônicos por época — teocrática, aristocrática,
democrática e caótica — e por país. O livro de Bloom é uma das melhores
fontes que encontrei para ajudar alguém a se familiarizar com os nomes e
obras de escritores importantes em todo o mundo. Ele também publicou
um conjunto de listas extremamente útil para o leitor. 12
Embora textos clássicos estejam incluídos em alguns currículos de escolas
secundárias e faculdades, é raro o aluno que consegue apreciar
profundamente Rei Lear ou Macbeth quando adolescente ou jovem adulto.
A profundidade mundana de Madame Bovary de Flaubert ou A época da
inocência de Edith Wharton, por exemplo, não é apreciada, exceto por
alguns poucos adolescentes, assim como não foi apreciada por mim em
minha juventude. Livros como Moby Dick, A letra escarlate e O grande
Gatsby apresentam o mesmo desafio. Queremos apresentar os clássicos aos
jovens leitores, mas, francamente, estes, como muitos outros clássicos, são
livros para adultos.
Filosofia e teologia são centrais para qualquer versão dos Grandes Livros
— eles tratam discursivamente das questões que surgiram na vida de cada
pessoa desde Adão e Eva: sentido, moralidade, verdade, justiça, amor,
morte e eternidade. Alguns filósofos e teólogos, entretanto, são mais fáceis
de abordar do que outros. Sempre há termos técnicos que dominar; por
exemplo, na filosofia grega o conceito de Logos (“palavra”, “verbo”, “razão”
ou “ordem”), que também desempenha um papel central no cristianismo:
Jo 1, 1: “No princípio era a Verbo” (λόγoς, Logos). 13 Cada filósofo e
teólogo escreveu em uma tradição histórica. Os leitores que estudarem, por
exemplo, São Tomás de Aquino verão rapidamente que ele cita as
Escrituras, filósofos gregos, os Padres da Igreja, escritores romanos e
teólogos árabes. No entanto, com alguma paciência e acesso a obras de
referência online, os leitores podem adquirir conhecimento prévio
suficiente para ler São Tomás de Aquino de forma inteligente. Filósofos
posteriores, como Kant, Hegel e Heidegger, são mais difíceis e testam a
paciência do não-especialista. Com o leitor em mente, discutirei
principalmente os antigos e medievais. Essas obras são fundamentais para a
compreensão da civilização ocidental e sua influência é vista em toda a
filosofia e teologia posterior.
GRANDES E CLÁSSICOS
A grandeza pode ser medida de várias maneiras, e qualquer lista de grandes
nomes deve estar sujeita a críticas. Lembro-me de pedir ao meu reitor da
faculdade, em um jantar, para dizer o nome de seus dez romances
prediletos, e ele respondeu que listas dos “dez melhores” são absurdas. Um
pouco surpreso, respondi: “Mas são ótimas para iniciar uma conversa!”. Ele
concordou relutantemente, mas levantei um ponto mais importante do que
havia percebido na época. Listas confiáveis são a resposta para a pergunta:
“Para onde vou a seguir?”. Vamos imaginar uma situação que certamente
aconteceu repetidas vezes: você está ouvindo o rádio do carro, mudando de
canal; de repente, ouve um trecho de música que o faz parar, e então, ouve
encantado até o fim. (Isso já aconteceu comigo mais de uma vez). Você
espera para ouvir o locutor nomear a peça e o compositor. Então você
ouve: “Esse foi o Concerto para violino de Samuel Barber”. 14 “Quem é
Samuel Barber?”, você se pergunta. O que mais ele escreveu? Alguém mais
escreve música que soa assim? A internet tornou as respostas muito fáceis de
encontrar. Você pode ler sobre Samuel Barber (1910–1981), ver uma lista
de suas obras e as melhores gravações disponíveis. Pesquise mais e
encontrará outros compositores que, como Barber, escreveram música no
estilo “romântico tardio”. Boas listas são inestimáveis para me revelar o que
eu não sei.
O Concerto para violino de Barber me inspira a proclamar minha
descrição — e não definição — de grandeza. Um livro, um filme ou uma
composição musical é grandioso quando penso comigo mesmo: “Quero
ouvir todas as músicas (ou ler os livros e assistir aos filmes) deste
compositor imediatamente”. O leitor pode considerar isso muito subjetivo,
mas sei que não estou sozinho quando tenho esse pensamento após a
leitura de um Tolstói, Shakespeare, Dostoiévski, Proust, Homero, Dickens
ou Jane Austen; ouvir Brahms, Dvořák ou Stravinsky; ou assistir aos filmes
de Kurosawa, Welles ou Eisenstein. Como afirma o renomado professor de
literatura Harold Bloom: “Acho que o eu, em sua busca por ser livre e
solitário, em última análise, lê com um único objetivo: confrontar a
grandeza”. 15
Deixe-me esclarecer uma coisa: estou usando as palavras “grande” e
“clássico” como se fossem intercambiáveis. Existe uma diferença. Tomemos,
por exemplo, o livro Nada de novo no front, de Erich Maria Remarque. É
um romance clássico bem conhecido sobre a Primeira Guerra Mundial.
Remarque retratou o absurdo da guerra para os soldados de ambos os lados,
que deveriam “ir para cima” 16 dia após dia. O romance de Remarque,
publicado em alemão em 1928, teve a sorte de ser traduzido para o inglês
no ano seguinte. Em seguida, o romance foi transformado em um filme
vencedor do Oscar de 1930, All Quiet on the Western Front, dirigido por
Lewis Milestone. 17 O livro de Remarque ainda é muito legível, um
romance clássico sobre a guerra e a Primeira Guerra Mundial em particular.
No entanto, quando você compara o romance de Remarque com A
montanha mágica (1924) 18 de Thomas Mann, as limitações do romance de
Remarque se tornam evidentes. Enquanto Remarque explora a experiência
de vida nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, o escopo de Mann é
mais universal, possuindo várias camadas de significado sobre a destruição
da civilização européia como resultado da Primeira Guerra Mundial. A
montanha mágica retrata uma virada na cultura ocidental através do destino
de um homem, Hans Castorp, que viveu em um sanatório por sete anos
tentando recuperar sua saúde.
O critério mais importante a ser usado para determinar a grandeza é a
opinião de especialistas. Todos têm suas preferências pessoais —
argumentar sobre por que, digamos, um filme é melhor do que outro é
parte do deleite de ir ao cinema. Os especialistas, no entanto, estão
qualificados para tomar a difícil decisão: para responder à pergunta, qual é
a posição deste filme ou daquele livro em comparação com os outros?
Quando quero comprar um carro novo, peço a opinião do mecânico que
conserta meus carros há vinte anos. Qualquer um que saiba o que é
necessário para ser um especialista em qualquer coisa reconhecerá a
profundidade de conhecimento necessária para comparar um livro, um
filme ou uma composição musical com tudo o que veio antes.
Mas é preciso dizer que os especialistas nem sempre têm razão. Considere
a lista de vencedores do Prêmio Nobel de literatura. 19 O primeiro prêmio
de literatura, atribuído em 1901, foi para o poeta francês René François
Armand (Sully) Prudhomme (1839–1907) “em especial reconhecimento
pela sua composição poética, que evidencia um elevado idealismo,
perfeição artística e uma rara combinação de qualidades tanto do coração
quanto do intelecto”. Prudhomme foi uma escolha estranha diante da
competição. Na década anterior, Dostoiévski publicou Irmãos Karamázov
(1880). No ano seguinte, Henry James publicou Retrato de uma senhora
seguido por The Bostonians em 1896. Huckleberry Finn de Twain foi
publicado em 1854, Dr. Jekyll e Mr. Hyde de Robert Louis Stevenson em
1886, junto com Tess dos d’Ubervilles de Thomas Hardy. Além disso,
Tolstói publicou sua Sonata a Kreutzer em 1890. Procurando por
Prudhomme, encontrei apenas um de seus livros em tradução para o inglês,
o Les vaines tendresses (1875). 20
Imagine ser Sully Prudhomme quando recebeu uma carta do Comitê do
Nobel e percebeu que havia derrotado Dostoiévski, Tolstói, Twain,
Stevenson, Hardy e Henry James. Ele também pode ter pensado em outros
escritores ativos na época: Guy de Maupassant, Émile Zola, Rudyard
Kipling, W. B. Yeats, Paul Verlaine, Arthur Rimbaud, August Strindberg,
Henrik Ibsen e George Bernard Shaw. Na obra desses “perdedores”,
encontramos histórias inesgotáveis da condição humana, de âmbito
universal, todas contadas com um domínio impecável da linguagem. Todas
as listas que medem a grandeza estão sujeitas a reconsideração — os
verdadeiramente grandes permanecem na lista com o passar dos séculos.

1 Houve precursores aos Great Books de Adler e Hutchins. Por exemplo,


em 1886, Sir John Lubbock publicou sua lista de “Os cem melhores livros,
pelos melhores juízes” na Pall Mall Gazette. Ver W. B. Carnochan, “Where
Did Great Books Come From Anyway?”, em Stanford Humanities Review,
vol. 6, 1995, disponível em https://web.stanford.edu/group/SHR/6-
1/html/carnochan.html. A lista de Sir John pode ser encontrada aqui: Alex
Johnson, “The Book List: Meet Sir John Lubbock, Godfather of the must-
read list”, em Independent, 24 de abril de 2018, disponível em
https://www.independent.co.uk/arts-entertainment/books/features/sir-
john-lubbock-the-book-list-literatura-leitura-padrinho-mustread-listicle-
a8320811.html.
2 Mortimer J. Adler, Philosopher At Large: An Intellectual Biography. Nova
York: Macmillan Publishing Co., Inc., 1977, p. 129.
3 Mortimer J. Adler, Robert Hutchins, Great Books of the Western World, 54
vols. Chicago: Encyclopædia Britannica, Inc., 1952. Uma lista completa de
livros pode ser encontrada em “Adler’s Great Book List”, em
http://classicalcommonplace.com/knowledge-base/adler-great-books-list/.
4 Tive o privilégio de conhecer e trabalhar com o Dr. Adler mais tarde em
sua vida, e contribuí com vários ensaios para sua série de volumes, The
Great Ideas Today. Cf. bibliografia.
5 J. Peder Zane, The Top Ten: Writers Pick Their Favorite Books. Boston:
W.W. Norton & Company, 2007.
6 Dana Gioia e David Leheman, Best American Poetry 2018. Nova York:
Scribner, 2018.
7 Sunil Iyengar, “Taking Note: Poetry Reading Is Up — Federal Survey
Result”, 07/06/2018, disponível em https://www.arts.gov/art-
works/2018/taking-note-poetry-reading-federal-survey-results.
8 Wilfred Owen, The Collected Poems of Wilfred Owen. Nova York: New
Directions Publishing Company, 1993, p. 67.
9 Parte dos poemas da presente edição são de tradução nossa, exceto
aqueles que estão acompanhados de nota de rodapé com o nome do
tradutor e sua respectiva referência bibliográfica. Optei por manter o
poema original acompanhado da tradução quase literal, que tenta manter a
semântica e as imagens evocadas pelo poeta, sem, no entanto, tentar
reconstruir as rimas, a métrica, os acentos e a sonoridade. Assim o leitor
poderá apreciar a sonoridade e construção do poema original, enquanto as
traduções servirão aos propósitos de compreensão textual e da exposição do
autor — nt.
10 The Collected Poems of Wilfred Owen, p. 35.
11 Harold Bloom, The Western Canon: The Books and School of the Ages.
Nova York: Riverhead Books, 1994.
12 “Harold Bloom Creates a Massive List of Works in The ‘Western
Canon’: Read Many of the Books Free Online”, disponível em
http://www.openculture.com/2014/01/harold-bloom-creates-a-massive-
list-of-works-in-the-western-canon.html.
13 Oxford University Press fornece gratuitamente um pdf de termos
filosóficos fundamentais em “Glossary of Philosophical Terms”,
http://global.oup.com/us/companion.websites/9780199812998/studentres
ources/pdf/perry_glossary.pdf.
14 O Concerto para violino (1939) de Samuel Barber é um tesouro. Você
pode ouvir o violinista Gil Shaham tocando com o maestro David
Robertson e a bbc Symphony Orchestra: https://www.youtube.com/watch?
v=arZzczeU_0c.
15 Harold Bloom, The Western Canon: The Books and School of the Ages.
Nova York: Riverhead Books, 1994, p. 485.
16 A expressão “go over the top” ou “ir para cima” entrou em uso durante a
Primeira Guerra Mundial e servia para comandar a infantaria que atacasse
o inimigo ao sair de suas próprias trincheiras, ou seja, tomar terreno do
inimigo para ter um lugar melhor para lutar — nt.
17 Hilton Tims, Erich Maria Remarque: The Last Romantic. Nova York:
Carrroll & Graf Publishers, 2003, pp. 55–60, 69–72.
18 Der Zauberberg de Thomas Mann foi publicado em alemão em 1924.
Foi traduzido para o inglês em 1927 por H. T. Lowe-Porter com um
posfácio do autor, The Magic Mountain. Londres: Secker and Warburg,
1927. Uma nova versão em inglês altamente aclamada foi publicada em
1995: The Magic Mountain, tradução de John E. Woods. Nova York: Alfred
A. Knopf, 1995. (No Brasil o leitor conta com a tradução de Herbert Caro,
São Paulo: Companhia das Letras, 2016).
19 “All Nobel Prizes in Literature”, disponível em
https://www.nobelprize.org/prizes/lists/all-nobel-prizes-inliterature/.
20 Sully Prudhomme, The Vain Tenderness. Dead Dodo Vintage, 2012:
https://www.amazon.com/Vain-Tenderness-Annotated-Sully-Prudhomme-
ebook/dp/B0083V6B8I/ref=sr_1_3?
keywords=Sully+Prudomme&qid=1551387306&s=gateway&sr=8-3-spell.
capítulo iii
Expandindo o Cânone 1: música

T odos nós temos músicas favoritas, músicas que nunca deixam de nos
emocionar, principalmente quando associadas a pessoas especiais e
momentos significativos em nossas vidas. Minha lista de favoritas, no
entanto, se inclina para o clássico. Durante a faculdade, a música pop
perdeu completamente o controle sobre mim quando ouvi Prélude à l’après-
midi d’un faune de Debussy. 1 Como resultado, prefiro que Rhosymedre, 2 de
Ralph Vaughan Williams, seja tocado no meu funeral em vez de Blowing in
the Wind 3 ou, Deus me livre, On Eagles Wings. Se alguém trouxer uma
guitarra, espero que meus amigos peguem o caixão e fujam.
Antes que houvesse livros, havia música. A mais antiga arte visual
conhecida retrata o homem fazendo música. Os arqueólogos descobriram
uma variedade de instrumentos musicais no Egito, Suméria, Babilônia e na
Europa atual que eram utilizados para fins religiosos e sociais. 4 Lemos
sobre música nos poemas épicos de Homero (800–700 a.C.). Nos épicos,
os coros cantados desempenham um papel ritual crucial nos rituais
fúnebres. Depois que um corpo era exposto e preparado para o enterro, o
cortejo fúnebre começava com as mulheres lamentando sua dor enquanto
os músicos tocavam uma canção fúnebre. Nesta passagem da Ilíada,
Andrômaca lamenta a morte de seu marido, Heitor, pelas mãos de Aquiles:
No meio delas, Andrômaca de alvos braços iniciou o lamento,
Embalando entre as mãos a cabeça de Heitor homicida:
“Oh! Marido! Morrestes jovem para a vida e deixas-me viúva
No palácio. Teu filho não passa ainda de pequena criança,

Ele a quem tu e eu geramos, desventurados! 5


Os gregos também foram os primeiros a tratar a música teoricamente,
tentando entender seu poder de atrair e agradar o ouvido humano. O
crítico musical e historiador Robert R. Reilly descreve como Pitágoras
tomou uma única corda, dedilhou-a, anotou o tom e então começou a
dedilhar as cordas na metade do comprimento, ouvindo progressivamente
tons mais altos combinando com os anteriores — ele havia descoberto a
oitava. À medida que Pitágoras 6 dedilhava sua corda em vários
comprimentos, descobria todas as proporções, como 3:2 e 4:3, que
agradavam ao ouvido devido à sua consonância. 7 Essa consonância de sons,
ou notas, é chamada de “tonalidade”. O teorema de Pitágoras se baseia em
dois fatos: primeiro, que os sons permanecem consonantes uns com os
outros quando reproduzidos em proporções mensuráveis e, segundo, que o
ouvido humano reconhece naturalmente esses sons como agradáveis,
satisfatórios e belos.
Quando Pitágoras concluiu que “a música harmônica é expressa em
proporções numéricas exatas de números inteiros, ele concluiu que a
música era o princípio de ordenação do mundo”. 8 Como Reilly explica,
esse insight se tornou um ingrediente-chave da cosmologia, metafísica e
ética gregas. O que Pitágoras chamou de “a harmonia das esferas”
representava um princípio de ordenação universal que também deveria
governar as pessoas. Essa cosmologia é o que está por trás da afirmação de
Lorenzo no ato 5, cena 1 de O mercador de Veneza de Shakespeare: 9
O homem que música em si mesmo não traz,
Nem se comove ante harmonias de sons doces,
Está apto a traições, estratagemas e despojos;
Seus movimentos são maçantes como a noite
E suas afeições sombrias como o Érebo:

Que tal homem não seja confiável. 10

Se você não “se comove pelas harmonias de sons doces”, você não está em
harmonia com o universo, pelo menos, de acordo com Shakespeare. Em
1987, Allan Bloom, um respeitado professor de clássicos, aplicou esta visão
da música — também subscrita por Platão 11 — à música popular. Bloom
argumentou em The Closing of the American Mind que as vidas de seus
alunos estavam sendo diminuídas pela música que consumiam. A resposta
da academia e da mídia foi pura fúria. Como pode um professor de
clássicos, ainda por cima homem e branco, fazer juízos morais sobre música
popular de adolescentes?
Utilizei The Closing of the American Mind em meus cursos de introdução
aos cursos de filosofia, e lembro-me de uma aluna jogando seu livro contra
a parede. Talvez o que enfureceu os alunos e as elites foi sua descrição de
um menino de treze anos ouvindo rock com fones de ouvido ou assistindo
(na época um canal de videoclipes muito influente) mtv: “Em suma, a vida
é transformada em uma ininterrupta e comercialmente pré-embalada
fantasia masturbatória”. 12 Infelizmente, o livro de Bloom se tornou
profético ao invés de medicinal. A música popular só piorou com a política
e a ideologia adicionadas ao clássico “sexo, drogas e rock ‘n’ roll”, tornando
o resultado ainda mais detestável.
COMEÇANDO COM O ORGANUM
O que chamamos de “música clássica” começou com as melodias dos
cantos da Igreja primitiva e medieval, que em si eram iterações da música
do culto judaico. As Escrituras hebraicas estão repletas de canções de
louvor. Durante séculos, os cantos variaram de região para região e foram
cantados sem notação musical. No século v, uma schola cantorum foi
estabelecida em Roma para estudar e executar os cantos. O Papa Gregório
(540–604) reorganizou a schola e começou a codificar o canto: por essa
razão, este canto é freqüentemente chamado “gregoriano”. 13 Muito pouco
se sabe sobre a música popular ocidental até o início do século xii, quando
os poetas trovadores vagavam de corte em corte cantando canções de amor.
14
Durante o mesmo período, os compositores de música sacra começaram a
ser conhecidos pelo nome. Um dos primeiros compositores que
conhecemos é a abadessa beneditina Santa Hildegarda de Bingen (1098–
1179). Grande parte de sua música foi preservada, incluindo o drama
litúrgico Ordo Virtutum sobre a luta de uma alma para resistir à tentação. 15
No século seguinte, os compositores Léonin e Pérotin, na Catedral de
Notre-Dame de Paris, introduziram na música uma segunda linha
melódica, dando à sonoridade coral uma sensação de profundidade. 16 Duas
melodias distintas cantadas juntas eram chamadas de organum e davam à
música o que poderíamos chamar de perspectiva, análoga àquela que surgiu
na pintura de Cimabue (1251–1302) no início do Renascimento italiano.
A música sempre desempenhou um papel essencial em importantes ritos
de passagem — nascimento, morte, casamento, adoração, qualquer passo
dado de uma fase da vida para outra. A música também faz parte da nossa
recreação quando desfrutamos e celebramos nossa vida por si mesma.
Recreação, nesse sentido, é uma espécie de gratidão, um reconhecimento
de que a vida é uma dádiva e não deve ser tratada unicamente como meio
de obtenção de fins materiais. Na recreação, celebramos o momento e a
música é a sua expressão mais viva. A recreação é uma necessidade humana
e não deve ser considerada uma extravagância reservada para “quando
sobrar tempo”.
A música, como a palavra escrita e as artes visuais, é comunicativa. A
música diz algo que o ouvido escuta e traduz através da mente e da emoção
em significado humano. A música tem um poder único a esse respeito. Ao
estudar música, escreve o historiador Paul Henry Lang, “buscamos o ser
humano na plenitude de suas criações, sempre novas, mas tipicamente
relacionadas, porque descobrimos que cada melodia do passado desperta
um eco hoje em nós”. 17
O neurologista e cientista Dr. Oliver Sacks explora o poder da música
começando pelo modo como ela pode nos transportar inesperada e
imediatamente a um estado de consciência intensificada ou prazer
profundo. Em sua Musicophilia, o Dr. Sacks descreve uma experiência que
muitos de nós reconhecemos imediatamente:
Repentinamente, em meu passeio matinal de bicicleta até Battery Park, ouvi música enquanto
me aproximava da ponta de Manhattan. Então me juntei a uma multidão silenciosa que estava
sentada olhando para o mar e ouvindo um jovem tocar a Chaconne em Ré de Bach em seu
violino. Quando a música terminou e a multidão se dispersou silenciosamente, ficou claro que a
música trouxera um consolo profundo, de uma forma que nenhuma palavra poderia ter feito. A
música, única entre as artes, é completamente abstrata e profundamente emocional. Não tem
poder de representar nada particular ou externo, mas tem um poder único de expressar estados
ou sentimentos internos. A música pode perfurar o coração diretamente; não precisa de
mediação. 18
Sacks explora especificamente como esse poder se traduz em benefício
terapêutico para aqueles com problemas mentais — autismo, Parkinson,
demência e síndrome de Williams. Ele atribui esse poder à “mnemônica
proustiana da música, que evoca emoções e associações há muito
esquecidas, dando ao paciente acesso mais uma vez ao humor e às
memórias, pensamentos e mundos que aparentemente haviam sido
completamente perdidos”. 19
Longe de me desculpar por incluir música em nosso currículo, considero
um deleite, como convidar um amigo para se sentar e comer uma refeição
preparada com primor. Se você não está familiarizado com a música
clássica, prevejo que encontrará nela o tipo de alegria que surge na leitura
de uma grande obra literária. Boa música também é medicinal. Aos dez
anos, Pablo Casals, o grande violoncelista, começou a tocar todos os dias os
prelúdios e fugas de Bach ao piano depois de uma caminhada matinal. 20
Quando questionado por um repórter aos 85 anos de idade se seu hábito
diário havia se tornado enfadonho, ele respondeu: “Não”, tocar
diariamente “é uma nova experiência, um ato de descoberta”. 21 Isso me soa
como uma receita para a sanidade.
A música clássica nos aproxima da história; pode revelar a sensibilidade e
as aspirações da época em que foi criada. Os historiadores culturais
normalmente associam o cantochão — música com uma única melodia —
à piedade cristã e às instituições católicas da Idade Média. A história do
canto na liturgia da Igreja Romana está bem documentada, e diferentes
formas de canto permaneceram a principal forma de música litúrgica nas
igrejas que se separaram de Roma no século xii. A polifonia da Renascença
— várias vozes cantando versos equivalentes em harmonia — representa o
salto quântico no aprendizado científico e a aceleração do desenvolvimento
social durante esse período. A era barroca começou no final do século xvii
com as obras de Bach e Händel. Eles transformaram a polifonia em
homofonia: o contraponto foi moldado em uma única voz dominante
apoiada por uma ou mais vozes adicionais. O período barroco coincidiu
com o início do iluminismo, que foi o primeiro passo significativo para a
era moderna na filosofia, literatura e política. A era neoclássica de Mozart e
Haydn aperfeiçoou o uso da homofonia por meio do desenvolvimento da
forma sonata — exibição, desenvolvimento e recapitulação. A segunda
metade do século xviii marcou o ponto alto do iluminismo em obras como
a ópera A flauta mágica (1791) de Mozart, e o oratório A Criação de Haydn
(1797). Com a chegada da era romântica, compositores como Beethoven e
Schubert se voltaram em direção a uma maior expressão emocional e
experimentação musical. A dupla preocupação do romantismo, que era
explorar a si mesmo e celebrar a liberdade humana, foi expressa na música,
literatura e filosofia da época.
A era moderna, com seu protesto contra a tradição e crescente
fragmentação social, começou antes da catastrófica Primeira Guerra
Mundial. O motim ocorrido em 1913 na estréia de A sagração da
primavera, do compositor Igor Stravinsky, em Paris, foi profético sobre o
que estava por vir. 22 Artistas, escritores, filósofos, cientistas e radicais
políticos se voltaram contra todas as idéias e instituições estabelecidas:
realeza, tonalidade na música, narrativa linear na literatura, Sagradas
Escrituras (e a própria fé), bem como as especulações sobre a verdade,
moralidade e o Cânone da beleza.
O historiador da música Paul Henry Lang considera ridículo excluir a
música da escrita histórica: “É difícil entender por que alguns dos
historiadores mais eminentes de nossa era moderna, que, ao contrário de
seus antecessores, que não restringiam sua atenção a guerras, tratados e
dinastias reais, mas consideravam a história das artes e letras, política e
religião, economia e ciência como uma parte integrante, e talvez a mais
importante, da historiografia, ainda estão completamente desinformados
sobre o papel da música na história da civilização”. 23
Lang prossegue criticando um admirado historiador da Renascença que
“considera uma mera página, ou pouco mais, suficiente para lidar com uma
arte que agraciou a vida diária das pessoas, adornou as festividades das
cortes principescas, enobreceu o ritual místico da Igreja antiga e da vigorosa
liturgia da nova”. Para enfatizar seu ponto, Lang acrescenta um trecho
lúdico para lembrar os historiadores sobre um famoso organista da
Renascença italiana: “Quando Merulo tocava, a igreja precisava ser fechada
para evitar que as pessoas se esmagassem em sua ânsia por entrar”. Deixar
tais fatos de fora da história do Renascimento italiano é algo indefensável.
O MAGNUM MYSTERIUM
Assim como a música tem seu lugar na história, ela sempre foi parte
integrante da prática religiosa. Os compositores transformaram os textos
sagrados em obras de tamanha beleza que estas se enraizaram na memória.
A música se infunde em rituais religiosos e liturgias em todo o mundo. Mas
o dom da música para pessoas de fé não se limita aos clássicos, como a
Missa em Si Menor de J. S. Bach, o Messias de Händel e o Réquiem de
Mozart.
Houve uma abundância de música sacra escrita nos séculos xx e xxi. O
Magnum Mysterium, composto em 1994 por Morten Lauridsen (1943–),
tornou-se uma das peças de música coral mais executadas do mundo. 24 Sua
beleza reverente e extática está lado a lado com a música sacra mais
admirada do mundo antigo.
A beleza do Magnum Mysterium de Lauridsen é um grande contraste em
relação a grande parte da música clássica escrita desde a revolta contra a
tonalidade. Essa perversidade começou em 1908 com o Segundo quarteto de
cordas op. 10, 25 do compositor Arnold Schöenberg (1874–1951). 25
Depois da atonalidade, Schöenberg criou a dodecafonia, em que cada nota
tem o mesmo valor musical que outra — o resultado foi uma cacofonia
desumana. 26 Sem dúvida, o ataque à beleza após a devastação da Europa
pela Primeira Guerra Mundial causou desilusões entre artistas e escritores.
Alguns perderam sua fé religiosa e sua fé na civilização ocidental. Os
compositores expressaram seu distanciamento da tradição com uma
rejeição deliberada da tonalidade.
A escala tonal é um arranjo de sete notas construído sobre uma tônica,
usada por compositores desde a Grécia Antiga e, provavelmente, antes. É a
tonalidade que o ouvido humano reconhece instintivamente como
agradável. Em sua crítica do modernismo musical, John Bortslap escreve:
“O fenômeno da tonalidade é uma condição sine qua non para a criação da
música e para dar à música suas qualidades expressivas”. 27 O compositor
Leonard Bernstein fez da defesa da tonalidade o foco de suas conferências
Charles Norton Eliot de 1976 na Universidade de Harvard, The
Unanswered Question. 28 Em suas palestras transformadas em fitas de vídeo,
Bernstein explicou por que a tonalidade é a chave para o significado da
música. 29 Tanto Bortslap quanto Bernstein consideram a ruptura com a
tradição tonal mais do que uma questão estética — foi a manifestação de
uma crise espiritual no Ocidente. A tonalidade é o equivalente musical da
inteligibilidade na filosofia, da gramática na literatura e da estrutura
narrativa no cinema. Em teologia, é equivalente à morte de Deus.
SURPRESOS PELA BELEZA
Robert Reilly e Jens F. Laurson dedicaram um livro a compositores que,
como Morten Lauridsen, serviram à causa da beleza no século passado,
optando por rejeitar tanto a atonalidade quanto a música dodecafônica,
que se tornou moda após Schöenberg em meados do século xx. 30 Em
Surprised by Beauty, 31 Reilly e Laurson reescreveram a história da música
moderna, prestando ao mundo da música um excelente serviço ao expandir
e corrigir o Cânone da grande música do século xx. Entre os compositores
apresentados no livro estão John Adams, Malcolm Arnold, Samuel Barber,
Maurice Duruflé, Frank Martin, Roy Harris, George Rochberg, John
Kinsella, Edmund Rubbra, Gerald Finzi, Erich Korngold e Ralph Vaughan
Williams. São compositores cuja devoção à tonalidade fez com que lhes
fossem negados os elogios concedidos apenas a compositores da moda que
escreviam música inaudível. Tanto a atonalidade quanto a música
dodecafônica eram uma fantasia intelectualista que substituiu a beleza
musical pela teoria musical.
A inclusão em Surprised by Beauty de Erich Korngold, Bernard Herrmann
e Nino Rota, famosos compositores de trilhas sonoras, é um lembrete do
papel que os compositores de filmes desempenharam em manter a música
tonal diante do público entre os anos 1930 e 1980. Espero que a música do
cinema chegue a mais salas de concerto no futuro, como a música de Ennio
Morricone, John Barry, Henry Mancini, Elmer Bernstein, John Williams,
Miklos Rózsa, Franz Waxman, Max Steiner, junto com Herrmann,
Korngold e Rota. Como Reilly e Laurson demonstram, havia muita música
tonal escrita durante aqueles cinqüenta anos, mas os programas das
orquestras incluíam apenas uma pequena parte dela.
O Cânone da música no século xx está longe de ser estabelecido, mas em
relação à música anterior, os especialistas estão em acordo. Em seu livro
recente The Indispensable Composers: A Personal Guide, o crítico do New
York Times Anthony Tommasini escolhe Monteverdi, Bach, Händel,
Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Chopin, Schumann, Verdi, Wagner,
Debussy, Puccini, Schöenberg, Stravinsky e Bartók. 32 Tommasini poderia
facilmente ter incluído compositores como Brahms, Berlioz, Tchaikovsky,
Liszt, Strauss, Rachmaninov, Ravel, Mahler, Bruckner e Dvořák, entre
outros. Após minha descoberta da música clássica, meus primeiros itens
indispensáveis foram Debussy e Ravel. Mas eu não tinha amigos que
soubessem o suficiente para sugerir mais compositores até que eu fizesse a
pós-graduação. Eu segui meus ouvidos na época, mas fui muito ajudado
por The Lives of the Great Composers, de Harold C. Schonberg, que foi
publicado pela primeira vez em 1970. 33 Este livro continua sendo meu
favorito para indicar aos amantes da música iniciantes, embora deva ser
complementado por Surprised by Beauty. 34
Não há uma lista unânime das melhores composições clássicas, e por um
bom motivo: seria irremediavelmente aleatório. Como se escolhe, digamos,
entre as 555 sonatas para teclado de Domenico Scarlatti, as 106 sinfonias
de Haydn, as 216 cantatas de Bach, os 16 quartetos de cordas e 9 sinfonias
de Beethoven ou as obras-primas operísticas de Mozart? Os Prelúdios op. 28
de Chopin contam como uma peça ou vinte e quatro? Eis o problema. Não
é que algum nerd não possa chegar a uma lista plausível de, digamos, os
500 melhores. Mas tentar colocá-los em ordem seria tolice. Como se avalia
a classificação de uma ópera em relação a uma sonata para piano, um
oratório em relação a um trio de piano? Os amantes da música, no entanto,
não têm vergonha de fazer listas das melhores gravações de todos os
tempos. 35
NENHUM TREINAMENTO NECESSÁRIO
Qualquer um pode ouvir a grandeza da música; uma formação musical ou
educação especial não é necessária. O musicólogo vienense Victor
Zuckerkandl descreveu a música como “um aspecto místico da existência
humana” que atravessa todas as culturas. Em The Sense of Music, ele escreve:
Nunca é demais insistir na verdade da afirmação segundo a qual a experiência de uma boa música
não pressupõe um dom ou aprendizado especial. Isso é precisamente o que há de único na
música: ela fala uma linguagem que é compreendida sem aprendizagem, entendida por todos, não
apenas pelas pessoas ditas musicais. Se assim não fosse, a música folclórica não seria o fenômeno
universal que é. Fundamentalmente, Bach e Beethoven não falam outra língua senão a da canção
folclórica… Muitas pessoas sentiram o impacto total de uma grande obra de arte tonal e foram
movidas por ela dos pés à cabeça no primeiro encontro. Se não houvesse algum entendimento,
alguma comunicação, não teriam sentido o impacto, não teriam ficado tão emocionadas. 36

Descobri ser esse o caso em 1980, quando ministrei um de meus


primeiros cursos de nível universitário — história da música — na Prisão
Federal em Atlanta. Meus vinte alunos eram homens durões, dos
subúrbios, a maioria envolvida com o tráfico de drogas. Eu tinha poucas
dúvidas de que as grandes obras os afetariam. Como um amante autodidata
da música clássica, segui a trilha da beleza dos compositores do início do
século xx até o começo, o canto, e depois avancei novamente através de
todas as eras da história da música. Ao longo do caminho, fiz anotações
mentais das músicas que significavam mais para mim, as músicas que
possuíam o maior imediatismo. Foram essas músicas que escolhi
compartilhar com meus alunos, vários dos quais choraram quando toquei
um dos Salmos penitenciais de Orlando de Lassus, e fiquei muito choroso
quando toquei Pavane para uma princesa morta 37 de Ravel. Não houve um
período ou estilo de música, exceto o atonal, que não conseguiu se conectar
com esses homens. Foi facilmente uma das minhas experiências de ensino
mais memoráveis, porque a música apagou as diferenças sociais e culturais
entre nós. Como disse Zuckerkandl, a música “fala uma linguagem que é
compreendida sem aprendizagem”.
O neurologista e teórico musical britânico Oliver Sacks oferece um
exemplo de como a música clássica se conecta com o ouvinte comum.
“Dido’s Lament” é uma ária famosa da ópera Dido and Aeneas de 1688, do
compositor inglês Henry Purcell (1659–1695).
Não é preciso saber nada sobre Dido e Enéias para se comover com seu lamento por ele; quem já
perdeu alguém sabe o que Dido está expressando. 38 E há aqui, finalmente, um paradoxo
profundo e misterioso, pois enquanto tal música faz a pessoa sentir dor e tristeza mais
intensamente, ela traz ao mesmo tempo alívio e consolação. 39
Não há como confundir o luto expresso pela linha vocal de notas
ondulantes e descendentes, comunicando exaustão e tristeza
lingüisticamente incomunicáveis. As tentativas de Dido de se elevar acima
de si mesma e superar sua dor caem de volta na terra, sob a qual ela logo
será enterrada. A morte virá por suas próprias mãos.
MISSA EM SI MENOR
A única maneira de ganhar a vida como compositor no século xviii era
trabalhar na igreja ou na corte. Consideramos Johann Sebastian Bach como
um gigante entre os compositores, mas durante sua vida ele foi visto como
um organista, diretor coral e compositor altamente cobiçado, nada mais.
Bach trabalhou duro ao longo de sua vida servindo nas cortes em Weimar e
Köthen antes de assinar um contrato para servir como diretor musical
(Kapellmeister) na Igreja de São Tomás em Leipzig em 1723. Ele tinha 38
anos. Quando morreu em 1750, aos 65 anos, deixou para trás um corpus de
trabalho inigualável na história da música.
Há uma composição, no entanto, que se destaca dentre as demais — os
elementos da Missa em Si Menor foram compostos já em 1733, mas ela não
foi concluída até 1747. Não sabemos se Bach alguma vez ouviu sua obra-
prima ser executada. Sua singularidade reside nisto: a Missa em Si Menor é
uma obra católica. Bach era um luterano devoto, um compositor luterano
que durante toda a sua vida serviu nas igrejas luteranas no norte da
Alemanha. Mas sua Missa em Si Menor segue toda a Missa católica romana,
algo que nenhum outro compositor luterano havia feito antes. Como o
maestro e estudioso de Bach, John Eliot Gardiner, comenta ironicamente,
Bach escolheu “uma forma incomum para um compositor luterano”. 40
A liturgia luterana continha apenas a primeira parte da Missa católica —
o Kyrie e o Gloria. Em sua Formula missae de 1523, Martinho Lutero criou
o modelo para todo o culto luterano que se seguiu. O presente Serviço
Divino da Igreja Luterana inclui o Kyrie e o Gloria como parte do “Serviço
da Palavra”.
Por que Bach tomou esse caminho? Gardiner especula que “o Ordinário
da Missa permitiu que ele se concentrasse em temas universais em uma
linguagem envelhecida pelo tempo. Em todas as fases da história cristã, a
Missa proveu um ponto de referência e o meio central pelo qual os
indivíduos podem se encontrar e se redimir”. 41
A Missa de Bach não é uma composição inteiramente nova; é o que se
costuma chamar de “missa paródica”, significando que o compositor fez
uso extensivo de suas composições anteriores, algumas das quais eram obras
seculares. Bach não estava tentando cortar custos; ele escolheu a música que
melhor expressaria o texto da Missa, o que sugere que ele teria pensado
nesta peça como a súmula da obra de sua vida. 42 A Missa em Si Menor é
uma obra substancial que dura cerca de duas horas, apresentando dezoito
coros e nove árias — solo ou dueto — empregando cinco solistas, coro e
orquestra.
Como mencionei no capítulo i, quando ouvi o Kyrie de Bach pela
primeira vez em uma sala de aula da faculdade, fiquei embasbacado. Eu
tinha uma formação musical mínima, a maior parte da qual consistia em
ouvir lp’s de musicais da Broadway no porão da casa de minha família. O
que havia nessa música que, ao ser ouvida pela primeira vez, cativou a
mente e o coração de um estudante de dezenove anos da Universidade do
Texas?
Kyrie eleison, é claro, significa: “Senhor, tende misericórdia”. Aqueles que
a ouvem regularmente na Missa podem ter se acostumado tanto que as
palavras pouco registram de seu significado. A configuração musical que
Bach dá a essas palavras fará com que você as ouça como se estivesse
escutando-as pela primeira vez. A obra começa com a palavra Kyrie cantada
pelo refrão em acordes tão dramáticos que sua atenção é imediatamente
capturada: Kyrie eleison é cantada como a súplica de uma alma que
reconhece sua culpa e não tem outro lugar a recorrer senão à misericórdia
de Deus. Depois de menos de um minuto, a orquestra começa a repetir os
mesmos temas musicais do refrão, mas adicionando a complexidade das
vozes internas.
Após o interlúdio orquestral, uma fuga começa a se construir começando
com os tenores, e uma segunda fuga segue com os baixos, e de repente o
som da Missa torna-se mais rico, elevando as vozes para o alto. Gardiner
descreve isso perfeitamente: “um delineamento ascendente que aspira à
oração”. 43 Enquanto ouço, sinto a estrutura em fuga da música como
camadas de som acumulando sobre mim, me envolvendo totalmente, até
que eu esteja inteiramente imerso dentro da música. Depois de outro curto
interlúdio orquestral, os baixos entram, seguidos pelos tenores e ambas as
seções femininas — a música torna-se avassaladora em seu propósito,
levando-me a me perguntar: pode algum coração humano ser tão puro em
sua contrição? Se sim, como poderia Deus resistir?
Nos capítulos a seguir, abriremos um diálogo entre escritores,
compositores e cineastas. Se você quiser ver uma grande peça de escultura,
deve olhá-la de todas as direções. É como olhar para uma vida humana:
nenhum ângulo de visão conta a história toda.

1 Aqui está a história da minha “conversão” à música clássica na faculdade:


Deal W. Hudson, How the Beatles, My Great Aunt, and Debussy Changed
My Life, disponível em http://www.thechristianreview.com/how-the-
beatles-my-great-aunt-and-debussy-changed-my-life/.
2 Ouça uma versão orquestral de Rhosymedre, baseada em uma melodia de
hino do final do século xix, aqui: https://www.youtube.com/watch?
v=kymJPJTUftY.
3 Um vídeo de Bob Dylan cantando Blowing in the Wind ao vivo na tv,
março de 1963, pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?
v=vWwgrjjIMXA.
4 O European Music Archaeology Project está reunindo todas as
informações e artefatos a partir de 40.000 a.C., o período do Paleolítico
Superior. Leia sobre o projeto em http://www.emaproject.eu.
5 Homero, Ilíada. Canto xxiv, 723–727.
6 Os textos originais de Pitágoras com traduções podem ser encontrados
em G. S. Kirk e J. E. Raven, The Presocratic Philosophers: A Critical History
With a Selection of Texts. Cambridge: Cambridge University Press, 1957,
pp. 217–231.
7 Robert R. Reilly e Jens F. Laurson, Surprised by Beauty: A Listener’s guide
to the Recovery of Modern Music. São Francisco: Ignatius Press, 2016, p. 17.
8 Ibid. pp. 17–18.
9 Ralph Vaughan Williams musicou as palavras de Shakespeare. Sua
Serenade to Music composta em 1938 foi escrita para orquestra e dezesseis
solistas. Uma gravação incrível encontra-se aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=QDYi4JgQA2I.
10 William Shakespeare, O mercador de Veneza, ato v, cena 1, versos 83–
89.
11 Platão, Republic, iii, 398–403, tradução de G. M. A. Grubbe.
Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1974, pp. 68–74.
12 Alan Bloom, The Closing of the American Mind: How Higher Education
Has Failed Democracy and Impoverished the Souls of Today’s Students.
Prefácio de Saul Bellow. Nova York: Simon and Schuster, 1988, p. 75.
13 Derrick Henry, A Listener’s Guide to Medieval & Renaissance Music.
Nova York: Facts On File, Inc. 1983, pp. 8–10.
14 Bernard de Ventadorn (1130–1190) é um dos trovadores mais
conhecidos. Aqui, seu Can Vei la Lauzeta Mover (Quando eu vejo uma
cotovia) é executado pelo Clemenic Consort, disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=e0JNIukJv1k.
15 Paul Senz, “Catholic Composers: Hildegard von Bingen”, em Catholic
World Report, 17 de setembro de 2018, disponível em
https://www.catholicworldreport.com/2018/09/17/catholic-composers-
hildegard-von-bingen/.
16 Ouça um exemplo de organum de Leonin:
https://www.youtube.com/watch?v=ngCRm7uLirA.
17 Paul Henry Lang, Music In Western Civilization. Nova York: W. W.
Norton & Company, Inc., 1941, p. 22.
18 Oliver Sacks, Musicophilia: Tales of Music and the Brain. Nova York:
Vintage, 2008, p. 329.
19 Ibid., p. 380.
20 Luis Claret, “Pablo Casals: Artist and Humanitarian”, em cellobello.org,
disponível em https://www.cellobello.org/legacy-cellists/pablo-casals-artist-
and-teacher/.
21 Musicophilia, p. 237, n. 13.
22 Modris Ekstein, Rites of Spring: The Great War and the Birth of the
Modern Age. Boston: Marriner Books, 2000, pp. 10–16 [cf. ed. brasileira: A
sagração da primavera: A Grande Guerra e o nascimento da era moderna,
editora Rocco, Rio de Janeiro, 1992].
23 Music In Western Civilization, p. 249.
24 Uma apresentação ao vivo de O Magnum Mysterium de Lauridsen pelo
Coro da Catedral de Westminster pode ser vista e ouvida aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=9y9yM53TowA&t=37s.
25 O quarteto de cordas nº 2 com soprano de Schöenberg foi escrito em
estilo romântico tardio, mas a virada do compositor para a atonalidade
começa no último movimento. Ela pode ser ouvida aqui, executada pelo
New Vienna String Quartet e pela soprano Evelyn Lear:
https://www.youtube.com/watch?v= eB5I5iU0OoE.
26 A Suite para piano, op. 25 (1921–1923) de Arnold Schöenberg foi uma
de suas primeiras peças dodecafônicas: pode ser “ouvida” aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=bQHR_Z8XVvI.
27 John Bortslap, The Classical Revolution: Thoughts On New Music In the
21st Century. Nova York: Dover Publications, 2017, p. 21.
28 Leonard Bernstein, The Unanswered Question: Six Talks at Harvard.
Boston: Harvard University Press, 1976.
29 O compositor e maestro Leonard Bernstein explica a tonalidade em
cinco minutos enquanto está sentado ao piano:
https://www.youtube.com/watch?v=Gt2zubHcER4&t=277s.
30 Robert Reilly e Jens F. Laurson, Surprised by Beauty: A Listener’s Guide to
the Recovery of Modern Music. São Francisco: Ignatius Press, 2016.
31 Surpresos pela beleza — nt.
32 Anthony Tommasini, The Indispensable Composers: A Personal Guide.
Nova York: Penguin Press, 2018.
33 Harold C. Schonberg, The Lives of the Great Composers, 3ª Edition. W.
W. Norton & Company, 1997. (Há edição brasileira: A vida dos grandes
compositores, Editora Novo Século, 2010).
34 Outro guia confiável é o de David Dubal, The Essential Canon of
Classical Music. North Point Press, 2003.
35 “The 50 greatest recordings of all time, The must-have classical
performances on disc”, 23 de Agosto de 2018, disponível em
http://www.classical-music.com/article/50-greatest-recordings-all-time.
36 Victor Zuckerkandl, The Sense of Music. Princeton: Princeton University
Press. 1959, p. 4, grifo do autor.
37 Aqui está a orquestração de Ravel da versão para piano de Pavane pour
une infante défunte (1899), tocada pela London Symphony Orchestra
conduzida por Andre Previn: https://www.youtube.com/watch?
v=ke7kwQ4CGCw.
38 “O Lamento de Dido” é apresentado aqui por Elin Manahan Thomas,
Orchestra of the Age of Enlightenment, e conduzido por Harry
Christophers. Segue-se à breve ária, Ah, Belinda:
https://www.youtube.com/watch?v=uGQq3HcOB0Y.
39 Musicophilia, pp. 329–30.
40 John Eliot Gardiner, Bach: Music In the Castle of Heaven. Nova York:
Vintage Books, 2015, p. 480.
41 Ibid., p. 481.
42 Wilfred Mellers, Celestial Music? Some Masterpieces of European Religious
Music. Woodbridge: The Boydell Press, 2002, p. 67.
43 Bach, p. 488.
capítulo iv
Expandindo o Cânone 2: filmes

O cinema como forma de arte é muito recente. No entanto, não é tão


novo quanto as pessoas supõem. O fã de cinema comum conhece os
filmes mudos, mas provavelmente sabe pouco sobre eles e tem
pouco interesse em assisti-los. Mas para entender o cinema como uma
forma de arte, vale a pena conhecer um pouco de sua história. Por
exemplo, antes que os filmes falados surgissem em 1928 com The Jazz
Singer, o negócio do cinema sempre foi um sucesso comercial e uma força
cultural.
O cinema como negócio começou em 1894 com a invenção do
cinetoscópio 1 de Thomas Edison. Quatro anos depois, em 1898, o cineasta
W. K. L. Dickson filmou doze cenas com o Papa Leão xiii no Vaticano, 2
que foram projetadas pela primeira vez no Carnegie Hall. 3 O público,
dizem, recebeu o filme com entusiasmo. Um crítico registrou que sua cena
favorita foi quando “Sua Santidade abençoou o instrumento que havia
gravado seus movimentos e, por meio dele […], aqueles que veriam a
imagem depois”. 4 Esta foi a primeira vez que uma bênção papal foi dada
usando tecnologia visual. Não é nenhuma surpresa que as cenas de Dickson
com o Papa foram particularmente bem-vindas em cidades como Boston,
com grande população irlandesa. Antes do início do século xx, os filmes
haviam entrado no mainstream da cultura americana.
VIAGEM À LUA
Esses curtas-metragens foram exibidos em cinemas até a chegada da cadeia
de cinemas Nickelodeon em 1905. O nome era uma combinação de
“níquel” (os programas custavam cinco centavos para ver) e a palavra grega
odeion, que designava as salas de música cobertas. Cinemas dedicados a
filmes começaram a brotar em todo o país como cogumelos. Em 1906,
havia oito mil Nickelodeons em todo o país, mas esse número dobrou
rapidamente e os filmes se tornaram um grande negócio. 5 Em 1907, mais
de dois milhões de pessoas iam diariamente a um Nickelodeon, e um terço
delas eram crianças. 6 Esse novo mercado suscitou a demanda de cinemas
maiores, que começaram a substituir os Nickelodeons, permitindo que
longas-metragens mais longos fossem exibidos para o público sentado
confortavelmente. Em 1930, mais de 65% da população freqüentava o
cinema semanalmente. 7
O primeiro grande sucesso da indústria cinematográfica veio em 1902
com o filme Viagem à lua, do pioneiro cineasta francês George Méliès.
Méliès foi chamado de “o primeiro diretor de cinema” por muitos críticos e
historiadores devido à sua habilidade de “fiar um tecido de ficção para as
telas”. 8 Viagem à lua dura de nove a dezoito minutos, dependendo da
velocidade de projeção, e é colorido à mão quadro a quadro. Baseado na
ficção do romancista Júlio Verne, o filme retrata uma expedição científica
lunar, a exploração da superfície da lua, um ataque de seus habitantes e
uma fuga ousada. 9
Os cineastas americanos não ficaram muito atrás: no ano seguinte, 1903,
o diretor Edwin Stanton Porter lançou O grande roubo do trem, que
superou a estréia de Méliès pelo uso de edição composta, movimento
freqüente de câmera e locações externas. 10 Porter também forneceu ao
público uma imagem da qual eles provavelmente se lembraram para o resto
de suas vidas: o líder dos ladrões apontava sua arma para a câmera e
disparava todas as seis balas do tambor. O público pulou aterrorizado para
se proteger. 11
No entanto, foi um americano do sul, D. W. Griffith (1875–1948), que
desenvolveu a gramática, ou o como, do cinema como forma de arte.
Griffith começou a fazer filmes em 1908, produzindo um total de quarenta
curtas-metragens com duração de quinze minutos cada. Sua produção
cresceu nos anos subseqüentes, mas seu primeiro média-metragem, Enoch
Arden, não foi realizado até 1911. Judith of Bethulia (1914), seu primeiro
longa-metragem, representa o “filme de transição mais importante do
cinema americano de curtas para longas”, de acordo com o historiador de
cinema Matthew Kennedy. 12 Mas foi seu marcante longa de doze rolos, O
nascimento de uma nação, que se tornou, e continua sendo, um dos filmes
mais lucrativos já feitos. 13 Com o sucesso deste filme, a cultura
cinematográfica americana se tornou ainda mais poderosa com a invenção
dos “movie palaces”, com seus interiores ao estilo das mil e uma noites,
sensação luxuosa, orquestra ao vivo e atendentes uniformizados.
INOCENTE PECADORA
Para explorar os filmes de Griffith, eu começaria com o que o diretor
chamou de “uma história simples de pessoas simples”, seu drama de 1920
Way Down East (Inocente pecadora), estrelado por duas das principais
estrelas do cinema mudo, Lillian Gish como Anna Moore e Richard
Barthelmess como David Bartlett. Anna é uma jovem bonita, mas pobre,
de uma aldeia da Nova Inglaterra. 14 Ela conhece Lennox, filho de uma
família rica que, querendo levá-la para a cama, manipula Anna induzindo-a
a um casamento falso. Uma vez grávida, Lennox a deixa e Anna dá à luz o
bebê — ela o chama de Trust Lennox. Lançada de volta na pobreza, Anna
vê seu filho morrer. Ela consegue um emprego com Squire Bartlett, cujo
filho, David, se apaixona por ela. Quando o Squire descobre sobre o bebê,
ele manda Anna embora durante uma furiosa tempestade de neve. Depois
de expor publicamente Lennox como o pai de seu filho morto, Anna acaba
presa em um bloco de gelo onde David tenta resgatá-la. As cenas no rio
congelado testam a capacidade de suspense do espectador. A cena é tão
apavorante quanto para os próprios atores que trabalharam no frio e no rio
fazendo pouco uso de dublês.
A câmera e a iluminação de Griffith fazem Gish parecer translúcida, com
uma inocência radiante que torna a traição de Lennox ainda mais
desprezível. A cena no quarto após o casamento mostra Gish em lingerie
colada como um cordeiro preparado para o abate. Inocente pecadora é um
exemplo perfeito de por que o “como” do fazer cinematográfico é mais
importante do que o “o quê”. O “o quê” deste filme é puro melodrama; a
gramática visual de Griffith elevou a história, tornando-a um dos melhores
filmes da era dos filmes mudos.
Em pouco mais de um século, o cinema se tornou a forma de arte
dominante no mundo. Ao mesmo tempo em que os filmes começavam a
atrair milhões, o presidente da Universidade de Harvard, Charles William
Eliot, publicou sua coleção de 51 volumes de grandes obras, os Harvard
Classics (1909). Ele disse a uma platéia de trabalhadores que uma estante de
cinco pés 15 cheia de bons livros poderia fornecer “um bom substituto para
uma educação liberal na juventude para qualquer um que os lesse com
devoção, mesmo que pudesse dispensar apenas quinze minutos por dia para
ler”. 16 O projeto de Eliot sugere que a educação clássica já estava perdendo
seu apelo e prestígio. Sem dúvida, era esse o caso: uma revolução cultural
estava em andamento. O ideal de educação por meio da leitura de livros e
apreciação da “arte erudita” estava sendo desafiado pelo surgimento de uma
cultura popular que adorava ir ao cinema. Assim que a mudança na
tecnologia disponibilizou a nova forma criativa, a lei da oferta e da procura
entrou em ação. Em 1909, o mesmo ano em que os Harvard Classics foram
publicados, o diretor de cinema D. W. Griffith produziu e lançou 140
bobinas para consumo público. 17 O ritmo da mudança estava apenas
acelerando.
FILME COMO ARTE
Em 1936, o filósofo alemão Walter Benjamin escreveu que os filmes foram
um desenvolvimento posterior do que havia começado com a invenção da
fotografia. Sua preocupação era como a tecnologia afetava a arte e a cultura,
argumentando que a adoção de novas tecnologias para criar arte pelos
artistas removeu sua “aura”. 18 Uma obra de arte que se torna tão
amplamente disponível não teria a permanência, a singularidade e a
autenticidade que definiram a arte erudita dos dois séculos anteriores. Sem
querer, os primeiros cineastas estavam subvertendo as tradições artísticas
que forneciam os elementos originais de sua forma de arte. Sem dúvida,
Benjamin estava no caminho certo. Mas ele não reconheceu que os
cineastas já estavam criando obras únicas, autênticas e permanentes.
Quando Adler e Hutchins 19 lançaram seu projeto The Great Books em
1952, os livros ainda reinavam supremos como indicadores culturais.
Naquele ano, o público em geral ficou deslumbrado com Cantando na
chuva, de Gene Kelly (que continha alguns comentários sobre a passagem
dos filmes mudos para os falados). Foi também o ano de Matar ou morrer, 20
Depois do vendaval 21 e O maior espetáculo da Terra, 22 que ganhou o Oscar
de melhor filme. Apesar das realizações artísticas significativas que esses
filmes agora clássicos representam, os filmes, em geral, ainda não eram
levados muito a sério como uma forma de arte entre a elite.
A crítica de cinema não conquistou muito respeito, embora a prática
tenha sido iniciada na era muda por escritores respeitados como Vachel
Lindsay e Carl Sandburg. Lindsay foi o primeiro nos Estados Unidos a
escrever sobre a estética do cinema em The Art of the Moving Picture, 1914.
23
Como um historiador do cinema observou: “O literato, possivelmente,
teve sua capacidade de compreender a linguagem cinematográfica cegada
por sua erudição; portanto, não é surpreendente que precisasse de um
poeta”. 24
Os estudos do cinema moderno só começaram na década de 1950; a
maioria dos grandes estúdios cinematográficos estava no mercado desde
pelo menos os anos 1920 — 20th Century Fox (fundada em 1935), rko
Pictures (1928), Paramount Pictures (1912), Warner Bros. (1923) e Metro-
Goldwyn-Mayer (1924). A produção do que é chamado de “sistema de
estúdio” impactou dramaticamente a cultura americana. Em 1930, de uma
população de 120 milhões, 80 milhões de americanos já haviam assistido a
um filme. 25 Até que a televisão começasse a chegar a um grande número de
salas de estar em meados dos anos 1950, visitar o cinema local era um
ritual americano para as famílias, especialmente para as crianças. Era
inevitável que, a cada década que passava, a importância dos filmes na
formação da cultura aumentasse exponencialmente, e não apenas nos
Estados Unidos.
A avaliação crítica e a classificação dos filmes começaram com um livro de
1968 de Andrew Sarris, The American Cinema: Directors and Directions
1929–1968. 26 A principal crítica de cinema da época, Pauline Kael, opôs-se
veementemente ao fato de Sarris tratar os filmes como uma forma de arte
séria: “Fala-se tanto agora sobre a arte do cinema que corremos o risco de
esquecer que a maioria dos filmes de que gostamos não são obras de arte”. 27
Kael era a favor de manter a noção de cinema tal como o público em geral
a considera: algumas horas de entretenimento. Na controvérsia que se
seguiu entre os críticos, a opinião de Kael não venceu, embora seus escritos
continuassem influenciando seus colegas e futuros críticos.
UM CÂNONE CINEMATOGRÁFICO
Listas de grandes filmes continuaram a aparecer desde que Sarris quebrou o
gelo, por críticos individuais, como Roger Ebert 28 ou Jonathan
Rosenbaum, 29 mas a lista mais reconhecida é publicada na revista do
British Film Institute, Sight and Sound. 30 Desde a primeira lista em 1999,
os resultados têm sido notavelmente uniformes. Examinando várias listas,
listei os vinte filmes mencionados com mais freqüência (sem nenhuma
ordem específica):
■ O encouraçado Potemkin, Sergei Eisenstein, 1925.
■ A paixão de Joana d’Arc, Carl von Dreyer, 1928.
■ Aurora, F. W. Murnau, 1929.
■ Um homem com uma câmera, Dziga Vertov, 1929.
■ Cidadão Kane, Orson Welles, 1941.
■ Ladrões de bicicleta, Vittorio de Sica, 1948.
■ Cantando na chuva, Stanley Donen e Gene Kelly, 1952.
■ Era uma vez em Tóquio, Yasujirō Ozu, 1953.
■ Os sete samurais, Akira Kurosawa, 1954.
■ Rastros de ódio, John Ford, 1956.
■ Um corpo que cai, Alfred Hitchcock, 1958.
■ 8 ½, Federico Fellini, 1963.
■ Andrei Rublev, Andrei Tarkovsky, 1966.
■ A grande testemunha, Robert Bresson, 1968.
■ 2001: Uma odisséia no espaço, Stanley Kubrick, 1968.
■ O poderoso chefão, Francis Ford Coppola, 1972.
■ O espelho, Andrei Tarkovsky, 1975.
■ Apocalypse Now, Francis Ford Coppola, 1979.
Muitos de nós temos fortes sentimentos não apenas a respeito dos filmes
que mais amamos, mas muitas vezes estendemos essa afeição para aqueles
que acreditamos serem “os maiores”. Sem dúvida, filmes como Rastros de
ódio, Cantando na chuva e O poderoso chefão soam familiares e devem
encorajar o leitor a experimentar o resto. Os sete samurais, por exemplo, é
tão divertido quanto qualquer faroeste de John Ford. A comparação não é
acidental: seu diretor, Akira Kurosawa, era um fervoroso admirador de
John Ford. A paixão de Joana d’Arc, de Carl Theodor Dreyer, é um dos mais
realistas e poderosos retratos da espiritualidade já criados. Os menos
conhecidos dos filmes acima, O espelho e Andrei Rublev, foram ambos
dirigidos por Andrei Tarkovsky (1932–1986). Nunca ouviu falar deles?
Nem eu, até que comecei a ver seu nome em várias listas de grandes filmes.
Sobre esse autor um tanto obscuro, Ingmar Bergman disse: “Tarkovsky
para mim é o maior [diretor], aquele que inventou uma nova linguagem,
fiel à natureza do filme, pois captura a vida como um reflexo, a vida como
um sonho”. 31 Depois de assistir Andrei Rublev, fui persuadido a acreditar
que Bergman estava certo. O desafio de filmes como O espelho é semelhante
ao de ler Dom Quixote, Middlemarch ou Guerra e paz: eles são divertidos,
mas longos e exigentes. A recompensa por se envolver com esses filmes é a
exposição a uma narrativa surpreendente e a uma beleza arrebatadora. 32
Essas obras-primas da produção cinematográfica já deveriam ter entrado
para o Cânone há muito tempo. A grande arte em todos os gêneros é,
como já discutimos, antes de mais nada, agradável em si mesma, mas
também é útil para a compreensão de uma era histórica. Alguns artistas
importantes comumente são associados a um tempo e lugar: o escultor
Praxíteles do século iv a.C. à Grécia Antiga; Lully e Rameau à cultura
francesa de Luís xiv; Picasso à Guerra Civil Espanhola; as pinturas de
Kaspar David Friedrich ao romantismo alemão; a pintura de Edvard
Munch O grito à idade moderna; arquitetura gótica à cultura medieval;
poetas como Wilfred Owen, Siegfried Sassoon, Edward Thomas, Isaac
Rosenberg e Rupert Brooke à Primeira Guerra Mundial.
Alguns filmes criaram raízes na imaginação do público e são vistos como
representações iluminadoras de épocas ou eventos históricos: O nascimento
de uma nação (1915) de D. W. Griffith e o Ku Klux Klan; O ditador de
Charlie Chaplin e Adolph Hitler; Metrópolis (1927) do diretor Fritz Lang
junto com 2001: Uma odisséia no espaço (1968) de Stanley Kubrick e o
impacto da tecnologia moderna; O franco atirador (1978) de Michael
Cimino e Apocalypse Now (1979) de Francis Ford Coppola e a Guerra do
Vietnã; O resgate do soldado Ryan de Spielberg (1998) e a Segunda Guerra
Mundial; O homem que não vendeu sua alma (1966) e a Igreja Católica; O
exorcista (1971) de William Friedkin e possessão demoníaca; Os dez
mandamentos (1956) de Cecil B. DeMille e os judeus fugindo do Egito; A
felicidade não se compra (1946) de Frank Capra e o significado do Natal.
Mesmo sem ter visto esses filmes, as imagens e clipes deles são usados com
tanta freqüência que se tornaram familiares. 33
O impacto, tanto financeiro quanto demográfico, da indústria
cinematográfica em todo o mundo é avassalador. Em 2018, 1.346.146.776
de ingressos de cinema foram vendidos em todo o mundo, com uma
bilheteria total de 12.074.939.346 de dólares. 34 As vendas de livros
impressos no mesmo ano foram de 695.000.000. 35 As vendas de filmes e
livros são fortes para seus respectivos meios; no entanto, quando os livros
comprados são uma fração do número de ingressos de cinema vendidos, a
diferença no impacto relativo é óbvia.
Não se preocupe com os livreiros — o negócio deles está forte e cada vez
mais forte: estudos mostram que em 2016, os americanos ainda liam uma
média de doze livros por ano e parece que a disponibilidade de e-books e
audiolivros está ajudando no aumento do número de leitores. 36 A explosão
na disponibilidade e popularidade do filme, ao contrário da crença comum,
não prejudicou as vendas de livros nem a leitura real. Acontece que o
avanço da mídia digital levou a adaptações por parte dos produtores de
filmes e livros: as editoras adicionaram e-books e audiolivros, e a indústria
do cinema está migrando para as plataformas de streaming para conquistar
públicos ainda maiores. Mas ao produzir filmes que vão direto para
plataformas online como a Netflix, como a recente premiada Roma, 37 o
futuro do cinema é colocado em dúvida.
DEFENDENDO O CÂNONE
A crítica à escolha de um Cânone cinematográfico foi abordada por Paul
Schrader, um dos diretores de cinema e roteiristas mais respeitados da
América. Seus vinte e quatro roteiros incluem filmes notáveis como Taxi
Driver, Gigolô americano, Touro indomável, Affliction e No coração da
escuridão. Ele escreveu e dirigiu Mishima: uma vida em quatro tempos
(1984), que está incluído na lista de grandes filmes do famoso crítico de
cinema Roger Ebert. 38
Os escritos de Schrader sobre cinema são tão agradáveis de ler quanto
reveladores. Em 2006, ele explicou por que nunca cumpriu sua promessa
de escrever o livro que seria o equivalente do gênero cinematográfico à
pesquisa de Harold Bloom sobre grandes obras literárias. 39 Qualquer um
desses cânones, escreve ele, seria “uma heresia do século xx”. Em vez de
perder tempo defendendo os padrões tradicionais para determinar quais
obras pertencem ao Cânone cinematográfico, Schrader oferece um Cânone
“sem julgamento” determinado pelos seguintes critérios: beleza, estranheza,
unidade de forma e conteúdo, tradição, repetibilidade e moralidade.
Você ficará surpreso, como eu, ao encontrar a moralidade entre os traços
relevantes para determinar as obras canônicas. “Os filmes sempre terão um
componente moral”, explica Schrader, porque sempre que um cineasta
conta uma história sobre a vida real, uma dimensão moral é inevitável. Ele
acha que qualquer grande filme terá “ressonância moral”, mas é “melhor
implícito do que explicado”, um ponto com o qual concordo plenamente.
Freqüentemente, os “filmes de mensagem” acabam parecendo estúpidos ao
colocar personagens de papelão caminhando por uma trama previsível para
um fim que todos sabem que está chegando.
Schrader quer “expandir os parâmetros” da beleza como um critério dos
filmes canônicos para incluir a “capacidade de transformar qualitativamente
a realidade”. Ele cita Picasso e Jackson Pollock como artistas que não
buscavam fazer algo bonito ou prazeroso, mas que queriam mudar o
mundo. Eu posso entender seu ponto de vista quando pensa sobre o
impacto que uma bela obra de arte pode ter em seu espectador — tal
experiência pode perturbar a autocompreensão de uma pessoa, estimular a
reflexão e pode, de fato, mudar sua vida. A estranheza de um filme pode
aumentar seu poder transformador, embora também possa limitar seu
impacto ao limitar seu público. Como atributo de uma obra de arte, a
estranheza pode fazer com que a elite e talvez as gerações seguintes
quebrem a cabeça, debatam e se maravilhem com ela.
Schrader também, sabiamente, inclui a tradição, porque os julgamentos
sobre um filme não devem se limitar ao filme per se, mas também devem
considerar seu lugar na história do cinema. (Eu acrescentaria que a
avaliação de qualquer forma de arte é impossível sem referência a outras
obras de arte notáveis, especialmente aquelas que foram consideradas
pontos de referência). A repetibilidade tem sido para mim o sinal seguro de
que um filme está em uma classe única: há alguns filmes que assisto pelo
menos uma vez por ano, e sempre me surpreendo com sua força expressiva.
Um filme canônico deve ter camadas de significado inesgotáveis.
O MUNDO É UMA TELA
O professor da New York University, Mitchell Stephens, argumenta que
essa transição das obras escritas para a mídia visual é epocal. 40 Stephens vê
na “ascensão da imagem” uma oportunidade de contrariar o sentimento de
desespero que inflige nossa época, apesar de sua abundância. A imagem, diz
ele, “fornece-nos as ferramentas — ferramentas intelectuais e artísticas —
necessárias para construir formas novas e mais resilientes de olhar para as
nossas vidas”. 41 Oxalá todos os artistas levassem a sério este sábio conselho,
para que esta orientação moral de bom senso se reflita em seu trabalho.
Ao absorver livros, música e filmes ao mesmo tempo, podemos testar a
tese de Mitchell sobre a imagem em movimento e suas “ferramentas” para
enriquecer a auto-reflexão, tornando-a menos vulnerável às correntes de
mudança. Enquanto nos lembra de que é um “leitor e escritor inveterado”,
Mitchell argumenta que o vídeo “se move facilmente, inelutavelmente para
uma distância irônica e pode, portanto, nos levar a quaisquer verdades que
estão além da distância irônica. Tem o potencial de nos apresentar novas
perspectivas mentais, de nos levar a novos lugares filosóficos, assim como a
escrita e o livro impresso faziam”. 42 Essa afirmação sobre o poder dos filmes
não é, creio eu, exclusiva dessa forma de arte. Mas, como explica Mitchell,
é da natureza da imagem filmada permanecer à distância, digamos, em
comparação com a leitura de um livro, o que atrai o espectador para um
filme sem que ele possa recuar para a segurança do que lhe é familiar.
Considerar os filmes como parte de um Cânone deixará de fora muitos de
seus filmes favoritos. Isso era de se esperar porque, assim como não
limitamos nossa leitura ou audição a clássicos, todos nós temos filmes que
gostamos de ver, como escreveu Pauline Kael, apenas por entretenimento.
Por outro lado, você pode se surpreender ao descobrir que alguns favoritos
populares são tidos em alta conta pelos críticos. Por exemplo, Quanto mais
quente melhor (Billy Wilder, 1959) estava na lista de melhores filmes de
todo mundo. Nunca pensei em Tony Curtis se fantasiando de mulher
como algo mais do que um truque para atrair Marilyn Monroe para seu
beliche no trem. Sim, há muito o que reconsiderar, e isso faz parte do
prazer.

1 Charles Musser, The Emergence of Cinema: The American Screen to 1907.


Berkeley: University of California Press, 1994, p. 1.
2 Dickson fez cinco filmes em 1898 com os títulos Pope Leo xiii Carried
Through the Vatican Loggia On His Way to the Sistine Chapel (35 mins);
Pope Leo xiii in His Carriage Passing Through the Vatican Gardens (40
mins); Pope Leo xiii, In His Chair (50 mins); Pope Leo xiii, Resting On his
Way to His Summer Villa (1 hour); Pope Leo xiii Walking Before Kneeling
Guards (25 mins):
https://anttialanenfilmdiary.blogspot.com/2018/06/1898-anno-tre-w-k-l-
dickson-and.html.
3 The Emergence of Cinema, p. 219.
4 Ibid., p. 220.
5 Ibid., p. 449.
6 A History of the Cinema, p. 42.
7 Catarina Cowden, “The Long-Term Movie Attendance Graph Is Really,
Really Depressing”, em https://www.cinemablend.com/new/Long-Term-
Movie-Attendance-Graph-Really-Really-Depressing-68981.html.
8 A History of Cinema, p. 4.
9 Viagem à lua pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?
v=CEQQefvfnk4.
10 The Emergence of Cinema, pp. 352–355.
11 The Great Train Robbery pode ser visto aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=zuto7qWrplc.
12 Matthew Kennedy, “Making History: D. W. Griffith on dvd”, em
https://brightlightsfilm.com/making-history-d-w-griffith-on-
dvd/#.XHG10C3Mx0I.
13 Richard Schickel, D. W. Griffith: An American Life. Nova York:
Limelight Editions, 1984, p. 281.
14 Uma cópia não-restaurada de Way Down East pode ser vista aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=MgYA4jUr4oO.
15 Aproximadamente um metro e meio de livros enfileirados — nt.
16 Adam Kirsch, “The Five-Foot Shelf Reconsidered”, em Harvard
Magazine, novembro–dezembro de 2001, disponível em
http://harvardmagazine.com/2001/11/the-five-foot-shelf-reco.html.
17 Richard Schickel, D. W. Griffith: An American Life. Nova York:
Limelight Editions, 1996, pp. 618–19.
18 Walter Benjamin, “The Work of Art in the Age of Mechanical
Reproduction” (1936), trad. Harry Zohn, disponível em
https://www.marxists.org/reference/subject/philosophy/works/ge/benjamin
.htm. (Há edição brasileira: A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica, lp&m pocket, 2017).
19 Quando tentei envolver o Dr. Adler em 1992 na questão de tratar os
filmes como “grandes livros”, ele objetou, embora tenha sido estimulado a
escrever um pequeno livro sobre arte, Art, the Arts and the Great Ideas.
Nova York: Scribner, 1994. Todas as “obras de arte” clássicas são tratadas,
mas nenhum filme é mencionado.
20 High Noon (1952), dirigido por Fred Zinnemann e estrelado por Gary
Cooper — nt.
21 The Quiet Man (1952), dirigido por John Ford, estrelado por John
Wayne, Maureen O’Hara — nt.
22 The Greatest Show on Earth (1952), produzido e dirigido por Cecil B.
DeMille, estrelado por Betty Hutton, Cornel Wilde, Charlton Heston,
James Stewart e Gloria Grahame — nt.
23 American Movie Critics: An Anthology from the Silents Until Now, edição
de Phillip Lopate. Nova York: Literary Classics of the United States, 2006,
pp. 3–26.
24 A History of the Cinema, p. 32.
25 Catarina Cowden, “The Long-Term Movie Attendance Graph Is Really,
Really Depressing”, em https://www.cinemablend.com/new/Long-Term-
Movie-Attendance-Graph-Really-Really-Depressing-68981.html.
26 Andrew Sarris, The American Cinema: Directors and Directions 1929–
1968. Nova York: Dutton, 1968.
27 Pauline Kael, “Trash, Art, and the Movies”, apud. American Movie
Critics: An Anthology From the Silents Until Now. Nova York: The Library of
America, 2006, p. 339.
28 A lista de grandes filmes de Roger Ebert pode ser encontrada aqui:
https://www.rogerebert.com/great-movies.
29 Jonathan Rosenbaum, Essential Cinema: On the Necessity of Film
Canons. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2004.
30 Ian Christie, “The 50 Greatest Films of All Time”, 30 de julho de 2018,
disponível em https://www.bfi.org.uk/news/50-greatest-films-all-time.
31 Peter Culshaw, “Andrei Tarkovsky — ‘a mystic and a fighter’”, 1º de
dezembro de 2007, disponível em
https://www.telegraph.co.uk/culture/film/starsandstories/3669621/Andrei-
Tarkovsky-a-mystic-and-a-fighter.html.
32 O escritor de ficção e crítico de cinema David Gilmour relata sua
experiência na qual permitiu que seu filho de 15 anos largasse o colégio se
concordasse em assistir a três filmes com ele por semana. Seu filho Jesse
concorda, e os resultados são notáveis e comoventes; cf. The Film Club: A
Memoir. Nova York: Twelve, 2007.
33 “All-Time Box-Office Top 100 Films”, disponível em
https://www.filmsite.org/boxoffice.html.
34 “Domestic Movie Theatrical Market Summary 1995 to 2019”,
disponível em https://www.the-numbers.com/market/.
35 “Unit sales of printed books in the United States from 2004 to 2018 (in
millions)”, disponível em https://www.statista.com/statistics/422595/print-
book-sales-usa/.
36 Andrew Perrin, “Book Reading 2016”, 1º de setembro de 2016,
disponível em http://www.pewinternet.org/2016/09/01/book-reading-
2016/.
37 Brian Tallerico, “Roma”, 21 de novembro de 2018, disponível em
https://www.rogerebert.com/reviews/roma-2018.
38 Roger Ebert, “Mishima: A Life in Four Chapters”, 5 de dezembro de
2007, disponível em https://www.rogerebert.com/reviews/great-movie-
mishima-a-life-in-four-chapters-1985.
39 Paul Schrader, “Canon Fodder: Paul Schrader’s Canon Criteria”, em
Film Comment, setembro/outubro de 2006.
40 Mitchell Stephens, The rise of the image and the fall of the word. Nova
York: Oxford University Press, 1998, p. 11.
41 Ibid.
42 Ibid., p. 12.
capítulo v
Livros, poesia, música e filmes

R ecentemente, fui a um concerto no qual se executava a Symphonie


Fantastique (1830) de Hector Berlioz. Berlioz escreveu essa obra
como uma espécie de carta de amor para conquistar o coração de
uma famosa atriz irlandesa, Harriet Smithson. 1 Ficou obcecado por
Smithson durante três anos após vê-la atuando no Hamlet de Shakespeare.
As tentativas de cortejá-la — aproximando-se dela e enviando-lhe uma
infinidade de cartas — falharam.
No quarto dos cinco movimentos da sinfonia, Berlioz retrata a execução
por decapitação de um artista pelo assassinato de sua amada. Eu me
pergunto o que se passava na cabeça de Berlioz para fazê-lo pensar que um
enredo como esse conquistaria Smithson. Contudo, a decapitação
funcionou. Depois que Smithson ouviu a sinfonia em 1832 — ela perdeu a
estréia — finalmente concordou em se casar com Berlioz. O casamento
durou apenas alguns anos; eles tiveram um filho, Louis, mas se separaram
logo depois.
Essa peça musical narrativa e pessoal atrai o ouvinte comum — atraiu a
Smithson — mas também diz algo sobre o artista e seu meio. Para
compreender um artista como Berlioz, devemos vê-lo como ele se via,
como uma espécie de herói romântico, uma figura importante do
movimento romântico que tomou conta da Europa nas primeiras décadas
do século xix. Isso é precisamente o que o Jacques Barzun fez em sua
monumental obra tardia em dois volumes Berlioz and the Romantic Century
(1950). 2 Barzun foi meu tutor em estudos interdisciplinares, enfoque de
aprendizagem que estamos colocando em prática neste livro. Quando
encontrei o livro de Barzun, eu era candidato ao doutorado em estudos
interdisciplinares e estava me preparando para escrever uma dissertação
com foco em três figuras-chave do século xix — Charles Baudelaire,
Friedrich Nietzsche e Søren Kierkegaard — a fim de traçar suas respostas
ao movimento romântico. 3 Cada um deles se considerava anti-romântico,
mas nenhum estava inteiramente isento das características essenciais do
romantismo — a preocupação consigo mesmo e a impaciência com a
tradição. Ao me concentrar na rejeição dos autores ao romantismo, fui
capaz de encontrar um ponto de partida para compará-los.
O trabalho de Barzun sobre Berlioz define o padrão do pensamento
interdisciplinar; a maneira como se move entre as formas de arte,
discutindo suas conexões, é fluida e natural. Barzun demonstra que
compreender um compositor e sua música envolve muito mais do que uma
análise musical e biográfica:
Em uma civilização elevada, todos os fatos e forças sociais tornam-se a matriz, e às vezes o
assunto, do trabalho do artista; nas formas e condições de uma arte coletiva como a música
encontramos o elemento de uma história familiar — política, econômica e outras lutas de grupos
humanos. 4

Barzun repudia a estreiteza dos estudiosos da música que se concentram


apenas na partitura de um compositor para medir sua obra. Um crítico de
arte, Barzun argumenta, pode comparar uma pintura realista com a vida
porque aquela contém objetos familiares como mesas e cadeiras. Quanto a
isso ninguém se opõe. Mas a fácil aceitação dessa comparação incorre no
risco de uma falsa pressuposição, a de que o pintor em questão acredita que
a vida pode ser retratada apenas copiando objetos reconhecíveis. Tanto a
vida quanto a arte são muito mais complicadas. Sendo a música um meio
menos representacional, como pode esta falar ao ouvinte sobre a vida? É
aqui que Barzun é esclarecedor: ele explica como a música pode conversar
com outras formas de arte: “Para o artista, a vida consiste em sensações, e
estas podem ser reproduzidas com efeito equivalente por meios físicos
amplamente diferentes. Um acorde, uma forma ou uma palavra são esses
meios. O significado nas chamadas artes representativas, portanto, surge de
contrastes, ritmos e evocações que correspondem exatamente aos
contrastes, ritmos e evocações na música”. 5
A própria vida é o lugar onde grandes livros, música e filmes se encontram. O
que todos têm em comum é o desejo humano e a necessidade de explorar
nossa experiência vivida. O que começa criativamente como um meio de
expressão é recebido pelo leitor/ouvinte/espectador atento como a
comunicação de um insight. Essa compreensão derivada de uma obra de
arte abre a porta para uma conversa com obras conceituais de filosofia,
história, crítica, biografia, ciência e ciências sociais. Cada um busca o tipo
de entendimento mais adequado à sua metodologia.
A PREOCUPAÇÃO ÚLTIMA
O objetivo de tal conversação é entender melhor a si mesmo, aos outros, à
sociedade, à moralidade, à política, à beleza, ao mundo e ao Absoluto. Paul
Tillich, um filósofo e teólogo de meados do século xx, propôs que,
independentemente de sua fé religiosa, todos têm uma “preocupação
última”. 6 Cabia a cada pessoa determinar por si qual era essa preocupação e
o grau de importância que ela teria em sua vida. Alguns notarão na teoria
de Tillich um eco da teleologia de Aristóteles: todos os seres humanos agem
para um fim “que é sempre desejável em si mesmo e nunca por causa de
outra coisa”. 7
Cada obra que consideraremos aqui é produto da preocupação última do
criador. Às vezes, o artista ou autor está ciente disso, às vezes não. O artista
que afirma que suas obras não têm significado além de si mesmas é
delirante, desonesto ou simplesmente burro. Em sua descrição da
preocupação última, Tillich ecoa o “coração inquieto” de Santo Agostinho 8
e o “desejo infinito de Deus” de São Tomás de Aquino. 9 Esta ânsia interior
em direção ao último está em cada pessoa, esteja ela ciente disso ou não.
Tillich coloca desta forma: “O coração humano busca o infinito porque é
aí que o finito quer descansar”. 10
Claro, algumas obras são criadas principalmente para produzir um prazer
ou deleite transitório (ou repulsa e insulto, em muitos casos), mas, por isso
mesmo, tal “arte” não se encontra na lista das grandes obras. Neste livro,
consideramos as peças de um quebra-cabeça, por assim dizer; embora ainda
não saibamos como as peças se encaixarão, sabemos o que esperamos
encontrar quando for completado — admirar, entender, ver e afirmar o que
realmente é, o que realmente existe. De séculos de reflexão sobre a existência
humana, a tradição ocidental derivou conceitos como direitos humanos,
dignidade humana, democracia, liberdade religiosa e bem comum. Seriam
eles apenas ficções convenientes usadas para “sinalizar a virtude” ou outras
formas de manipulação?
Aristóteles, Tomás de Aquino e Tillich nos lembram que cada pessoa
busca encontrar respostas para as questões fundamentais. Essas questões
não podem ser excluídas, apesar da ocupação e distração da vida moderna,
pelo menos não por muito tempo. Nossa existência compartilhada possui
uma vulnerabilidade, uma qualidade fragmentária, porque cada um de nós
está no processo de encontrar a totalidade.
RESPOSTAS
O poeta e crítico Dana Gioia descreve a poetisa britânica Elizabeth
Jennings (1926–2001) como a “melhor poetisa católica da Inglaterra desde
Gerard Manley Hopkins”. 11 A fé de Jennings informou diretamente sua
poesia, e ela escreveu muito: seus Collected Poems têm 1.100 páginas. 12
Jennings teve sucesso como poetisa tanto entre seus colegas quanto em
encontrar uma audiência, o que não ocorre com tanta freqüência.
Cinqüenta mil cópias de seus Selected Poems foram vendidas em 1979, uma
quantia fenomenal para um poeta. Ela, entretanto, não teve muito sucesso
na vida. Como explica Gioia, Jennings, aos quarenta anos, era pobre e
lutava tanto contra a doença mental que não conseguia manter um
emprego estável. 13
Neste poema, Jennings captura um dos momentos em que as “grandes
respostas” inevitavelmente nos confrontam, de modo que não podemos
mais nos esconder atrás do conforto das “pequenas respostas”.
answers
I kept my answers small and kept them near;
Big questions bruised me but still I let
Small answers be a bulwark to my fear.
The huge abstractions I kept from the light;
Small things I handled and caressed and loved.
I let the stars assume the whole of night.
But the big answers clamored to be moved
Into my life. Their great audacity
Shouted to be acknowledged and believed.
Even when all small answers build up to
Protection of my spirit, still I hear
Big answers striving for their overthrow

And all the great conclusions coming near. 14


respostas
Mantive minhas respostas pequenas e as mantive por perto;
As grandes perguntas me feriram, mas ainda assim deixei
As pequenas respostas serem um baluarte para meu medo.
As enormes abstrações as protegi da luz;
Coisas pequenas manuseei, acariciei e amei.
Deixo que as estrelas assumam a totalidade da noite.
Mas as grandes respostas clamavam por ocupar
Minha vida. Sua grande audácia
Gritava para ser reconhecida e crida.
Mesmo quando as pequenas respostas
Erguem-se a proteger meu espírito, ainda ouço
As grandes respostas lutando por sua queda
Enquanto as grandes conclusões se aproximam.

Há momentos na vida em que todos experimentamos a “grande audácia”,


em que questões fundamentais sobre a vida se tornam inevitáveis. Essas
“pequenas respostas” atrasam este encontro enquanto realizamos as tarefas
diárias. Mas, a poetisa escreve, há “grandes respostas lutando por sua
queda”. Jennings capta o momento em que nossos pensamentos são
atingidos pelo assombro, levando-nos para fora do momento e para um
lugar onde sentimos que “as grandes conclusões se aproximam”.
O ZERO E O INFINITO
Alguns eventos despertam uma geração inteira, obrigando muitos a
começar a busca pelas grandes respostas. Em 1940, o escritor britânico
Arthur Koestler publicou seu romance O zero e o infinito, ambientado na
Rússia comunista. O tópico era oportuno para os ingleses, já que a Grã-
Bretanha havia forjado uma aliança com a Rússia soviética contra Hitler e
os nazistas. Essa aliança serviu para encorajar mais intelectuais na Europa,
Inglaterra e Estados Unidos que estavam apaixonados pelo regime de
Stalin. Em Hollywood, o simpatizante comunista e roteirista Dalton
Trumbo mais tarde se gabaria de impedir que o romance anti-soviético de
Koestler fosse transformado em filme. 15 Os defensores do comunismo
ignoraram os relatos de Stalin executando membros do Partido e qualquer
outra pessoa que o desagradasse. Pelo menos 1.550.000 foram presos e um
milhão ou mais morreram no “Grande Expurgo” de Stalin de 1936–1938.
Stalin acreditava que, se acaso apenas 5% daqueles presos e mortos fossem
inimigos, isso já teria sido “um bom resultado”. 16
O livro de Koestler pôs fim a qualquer paixão por Stalin. Ele retrata o
absurdo do personagem principal, o camarada Rubashov, que foi
capturado, preso, interrogado e submetido a um “julgamento-espetáculo”.
17
O camarada Rubashov é um ex-líder do Partido agora acusado de traição
durante um dos expurgos de Stalin. Ao longo de todo o julgamento,
Rubashov tenta entender a situação, fracassando sempre, pois não há outra
maneira de entendê-la, senão como uma decisão do “Número 1” (Stalin).
Só depois que Rubashov finalmente assina uma confissão e recebe uma
sentença de morte é que ele acorda. Este momento descrito nas últimas dez
páginas de O zero e o infinito está entre os mais poderosos da ficção
moderna. É nessas páginas que lemos sobre Rubashov aceitando a realidade
do absurdo; ele passa a vê-la por aquilo que realmente é e assume a
responsabilidade pela mentira que estava vivendo.
Após sua sentença final, ele é levado de volta à sua cela na prisão para
esperar pelo carrasco. Rubashov está aliviado por “não ter mais que uivar
com os lobos”, 18 a matilha que caça e mata para o Número 1 sem se
importar com a humanidade. Ele se lembra de um discurso que
memorizou quando jovem: o discurso do revolucionário francês Danton no
tribunal, depois de ter sido condenado à morte. “A tirania avança, ela
rasgou o véu, ela vem com a cabeça erguida, ela caminha sobre nossos
cadáveres”. Então Koestler dá ao leitor uma visão dos pensamentos de
Rubashov enquanto ele contempla seu destino. Rubashov ainda tem “certas
perguntas para as quais gostaria de ter uma resposta, antes que fosse tarde
demais. Eram perguntas bastante ingênuas; elas diziam respeito ao
significado do sofrimento, ou, mais exatamente, à diferença entre o
sofrimento que fazia sentido e o sofrimento sem sentido”. 19
Querendo saber se a vastidão do sofrimento infligido pelo regime fazia
algum sentido, ele localiza a falha na lógica moral dos soviéticos: eles
pensavam na humanidade apenas como uma abstração, não “no verdadeiro
humano de carne, osso, sangue e pele”. 20
Rubashov sente uma “sensação oceânica” tomar conta dele, reconhecendo
que, como líder do Partido, ele a teria rejeitado, mas agora, “na morte, a
metafísica se tornou real”. Em outras palavras, ao enfrentar a realidade da
morte, questões sobre o ser, a existência, o tempo e a eternidade não podem
deixar de surgir. Observe aqui o corolário entre o insight de Rubashov e a
famosa piada de Stalin, possivelmente apócrifa: “Uma única morte é uma
tragédia, um milhão de mortes é uma estatística”. Rubashov lembra que
quando criança amava astronomia e se arrependia de não ter respondido à
pergunta de seu interrogador: “E o infinito?”. Essa é a fonte de sua culpa,
“poderia haver uma maior?”. O “sentimento oceânico”, ele percebe, é
“contra-revolucionário”. O Partido havia tirado seu livre-arbítrio, sua
capacidade de maravilhar-se, seu desejo de fazer perguntas sobre o bem e o
mal.
O Partido havia reduzido todos os problemas da humanidade à
“fatalidade econômica”, uma causa a que ele serviu fielmente por quarenta
anos. Não importa o quão cruéis eram as ações do Partido com base nessa
pressuposição, as pessoas não estavam em melhor situação do que antes.
Rubashov pondera: “As premissas da verdade incontestável levaram a um
resultado que era completamente absurdo”. Esperando em sua cela pela
chegada do carrasco, Rubashov diz a si mesmo: “Não, não se pode
construir um paraíso de concreto”.
A passagem de uma página em O zero e o infinito pouco antes do tão
antecipado momento em que o carrasco bate à porta atinge uma altitude
quase mística. Rubashov percebe que o princípio maligno segundo o qual
“o fim justifica os meios” foi a “bússola defeituosa” que definiu a direção do
Partido e, como resultado dessa constatação, ele imagina um novo partido
emergindo: “Talvez os membros do novo partido usarão capuzes de monge
e pregarão que apenas a pureza dos meios pode justificar os fins”.
Ao ler isso, você nunca poderia adivinhar que o próprio Koestler havia
sido membro do Partido Comunista. Após o expurgo de 1936–1938,
durante o qual muitos amigos e conhecidos desapareceram, ele deixou a
Rússia, levando consigo um conhecimento interno do comunismo
soviético e europeu. O crítico literário George Scialabba, do Boston Globe,
comenta que o romance de Koestler diminuiu para sempre o apelo do
comunismo entre os intelectuais e pode ter impedido os comunistas de
vencerem as eleições de 1946 na França. 21 Em 1973, o Arquipélago Gulag
de Aleksandr Solzhenitsyn, que revelou a natureza terrível e o escopo do
sistema prisional político soviético, terminaria o projeto de Koestler,
desferindo um golpe mortal nas defesas intelectuais do comunismo no
Ocidente.
É notável que O zero e o infinito certamente teve uma influência
considerável na política européia e na vida intelectual durante e após a
guerra, mas não podemos enfatizar o suficiente o efeito da intuição mais
pessoal revelada no clímax da história: “Na morte, a metafísica tornou-se
real”. Rubashov, como todos nós, eventualmente enfrenta questões sobre a
preocupação última. Freqüentemente, isso exige um momento de
tremendo medo ou resignação, como receber uma sentença de morte, para
quebrar nossa resistência. Koestler demonstra neste grande trabalho como o
caráter indireto da ficção, como outras formas de arte, pode causar um
golpe maior do que o discurso meramente descritivo. Instintivamente, nos
distanciamos frente ao discurso direto, mas ver o mesmo pensamento
incorporado em uma história convincente tem mais probabilidade de nos
alcançar onde a transformação ocorre, na interseção do coração e da mente.
O IMPACTO DOS FILMES
Embora seja verdade que grandes obras literárias tiveram por vezes efeitos
verdadeiramente transformadores na sociedade, precisamente por atingir as
pessoas onde elas vivem, longe das salas de aula e auditórios, outro meio
possui um alcance ainda maior, especialmente nos dias de hoje. Muitos
críticos e historiadores argumentam, por exemplo, que o filme é mais eficaz
em baixar nossa guarda do que qualquer outro meio, particularmente por
sua capacidade de unir outras formas de arte a serviço de uma única
história. O estudioso de cinema Stephen Apkon explica: “Mas a
combinação de imagem em movimento, palavra falada, texto e música —
além do modo como essa combinação penetra como uma agulha direto no
córtex cerebral — torna o filme o texto mais poderoso e atraente que já
criamos”. 22
O cinema, acrescenta Apkon, é o meio artístico que mais se aproxima do
“ideal de comunicação não-mediada”. 23 Parece correto na superfície, mas
podemos nos perguntar: o filme é realmente uma experiência “não-
mediada”? Afinal, os filmes contêm todos os tipos de elementos obviamente
mediados — fala, música, personagens, enredo, para citar alguns. Para que
algo não seja mediado, este algo deve se comunicar com o observador sem
nenhum pensamento intermediário; deve simplesmente, em certo sentido,
surgir na cabeça de alguém. (São Tomás de Aquino explicou o
conhecimento angélico como imediato e intuitivo, uma forma de
conhecimento que Descartes tentou adotar em suas Meditações). 24 Não,
considerando somente o grande aparato de produção necessário para criar
um filme e o cuidado do diretor em capturar perfeitamente uma cena, já é
o suficiente para demonstrar que o filme é tudo, menos uma “comunicação
não-mediada”.
Apkon tem em mente uma noção de imediatismo diferente daquela que
os filósofos consideram como tal. Os cineastas querem manter a construção
do filme oculta do espectador. Por exemplo, Apkon diz que o público deve
sentir, mas não estar ciente do movimento da câmera. 25 Ele propõe um
ideal de “edição contínua: realidade não-mediada, direta, pessoal e
imersiva”. 26 Não vejo como isso se difere de um bom romancista, poeta ou
compositor, todos os quais desejam que sua criação seja vivenciada como
um todo. Qualquer outra coisa é como usar um terno do avesso com todas
as costuras à mostra.
A visão de Apkon a respeito do imediatismo fílmico deve ter se
desenvolvida em um nível mais prático, a saber, a experiência imersiva de
assistir a um filme em comparação a ler um livro, ouvir uma música, ir ao
teatro ou olhar pinturas e esculturas. Nisso, concordo com ele com apenas
uma ressalva: uma coisa é assistir a um filme em um cinema escuro com
uma tela de 25 metros de largura e som Dolby enchendo seus ouvidos em
todas as direções, e outra bem diferente é assistir o mesmo filme em seu
tablet em casa. No primeiro caso há uma imersão total sem distrações,
enquanto no segundo a imersão é parcial, com distrações inevitáveis. A
direção que a indústria cinematográfica está tomando, em direção ao
streaming em dispositivos individuais, diminuirá a sensação de imersão e
imediatismo quase total, o que sem dúvida já está afetando o filme
enquanto forma de arte.
Apkon é mais útil em sua compreensão de como “redefinir a literacia”,
com o que ele quer dizer “a capacidade de compreender e ter facilidade nas
áreas que são consideradas críticas para que sejamos participantes plenos no
mundo”. 27 Isso é importante para compreendermos como os livros, a
música e a arte conversam.
Minha geração, o coração do “baby boom” pós-Segunda Guerra Mundial,
foi confrontada pela mídia visual; nossa babá era o aparelho de tv com três
canais, e acreditávamos em cada palavra que ouvíamos. Foi somente no
Vietnã e na era Watergate que começamos a perceber o quão acriticamente
tínhamos recebido as informações que nos eram fornecidas pelo novo meio.
Todo o treinamento em mídia visual foi obtido por tentativa e erro, em um
esforço para olhar por trás da imagem na tela. Ensinaram-nos a pensar
criticamente a respeito dos livros. Este novo mundo da televisão foi mágico
por um tempo — o imediatismo de uma World Series, uma convenção
política, o pouso de um homem na lua —, mas a mágica se perdeu quando
o público percebeu a manipulação do meio.
A educação visual pode ser entendida por analogia com o aprendizado nas
artes da linguagem. Aprendemos não apenas como ler um texto — para
entender seu uso de voz narrativa, metáfora, símile, símbolo, imagem,
enredo, personagem, ação, espetáculo e assim por diante —, mas
aprendemos como escrever, como criar um texto. Quando se trata de
literacia visual, há pouca educação formal oferecida pelo sistema
educacional americano, o que é difícil de entender, já que o cinema e
outras formas de comunicação visual se tornaram tão dominantes.
WAGNER COMO PRECURSOR
O meio cinematográfico, no entanto, teve um precursor importante, um
homem que conseguiu incorporar todas as formas de arte de sua época em
uma gigantesca obra de arte, uma ópera em quatro partes, O anel dos
nibelungos. Quarenta e cinco anos antes do primeiro filme falado, O cantor
de jazz (1927), o Ciclo do anel do compositor Richard Wagner foi
apresentado pela primeira vez entre 13 e 17 de agosto de 1882. Com essa
obra operística de dezessete horas, Wagner expandiu os limites tradicionais
não apenas da ópera, mas da própria arte moderna. Lembre-se de que o
teatro musical é uma das formas de arte mais antigas, surgindo primeiro na
Grécia Antiga, onde os coros eram parte integrante da narrativa. Após
muitas derivações culturais, a ópera, como a conhecemos agora, surgiu no
final do século xvi e gradualmente se tornou a forma de arte dominante na
maior parte da Europa. Seu ápice é visto nas obras de Mozart no século
xviii e nas de Puccini e Wagner no xix. No entanto, em ensaios publicados
pelo jovem Wagner em 1840, encontramos o desejo de criar o
Gesamtkunstwerk, uma obra de arte total em forma operística. A visão não
foi realizada até 1876, com O anel dos nibelungos, 28 quando foi executada
pela primeira vez na íntegra (partes dela foram encenadas, não inteiramente
de acordo com os desejos de Wagner, começando na década de 1860).
Com a obra completa, Wagner compôs dezessete horas de música para
uma grande orquestra, com cenários e figurinos elaborados, em uma obra
que seria apresentada ao longo de quatro dias. Aqueles que experimentaram
um desempenho do anel bem feito, como eu, atestarão seu poder único.
Começando com uma história carregada de emoção baseada na mitologia
nórdica, o Ciclo do anel de Wagner funde todas as artes disponíveis com
uma trilha romântica crescente de temas harmônicos alternados em uma
experiência que pode provocar um tipo de admiração que se aproxima do
religioso. Essa era precisamente a intenção de Wagner: substituir a fé
tradicional pelo êxtase espiritual de sua música.
ENSINE A SI MESMO
As abordagens interdisciplinares dos clássicos e das artes às vezes enfrentam
a acusação de que tais estudos limitam a profundidade que poderia ser
alcançada em uma única disciplina. Há alguma verdade nisso, mas apenas
alguma, pois pressupõe que a erudição autêntica é muito exigente para ser
distribuída entre as disciplinas. Em minha opinião, esses estudos
interdisciplinares também podem servir a mais pessoas, examinando as
disciplinas para obter uma melhor compreensão de uma era, uma idéia ou
um movimento. E o que almejamos neste trabalho não é a erudição em si,
mas sim iniciar um processo de educação clássica autodirigida, apaixonar-se
pelas maiores obras e, por meio desse processo, proteger nossa liberdade
intelectual e desenvolver os hábitos que fomentam a clareza de
pensamento. Sou grato ao biógrafo de Victor Hugo 29 e sei que ele não
ficaria irritado com o meu uso de sua biografia em benefício de uma visão
geral da cultura parisiense no século xix. Presumo que seja por isso que o
biógrafo estudou a vida de Hugo por tantos anos, para tornar uma
apreciação mais profunda de Hugo disponível a todos nós, não-
especialistas, e não apenas para outros acadêmicos.
Afinal, o aprendizado nunca ocorre da maneira prescrita. Não é assim que
as pessoas aprendem naturalmente! O seqüenciamento de cursos com base
em uma hierarquia de conhecimento funciona para alguns alunos, mas não
para todos. Claro, as crianças devem aprender a ler e escrever, assim como
devem aprender matemática básica, bem como a expressar claramente o
que estão pensando. Essas habilidades são necessárias antes que qualquer
educação abrangente possa ocorrer. Além desses blocos básicos de
construção, crianças mais velhas e adultos aprendem quando estão prontos
— quando se importam o suficiente. Isso vale para literatura, história ou
geografia, todas disciplinas que exigem o uso de habilidades adquiridas
anteriormente.
Da mesma forma, não se ensina um aluno a ser virtuoso apenas fazendo-o
memorizar as virtudes e outros ensinamentos morais. No entanto, esse fato
não torna essa educação básica opcional; memorização e envolvimento
direto com os textos morais mais fundamentais são necessários. Pensar
sobre moralidade nos permite avaliar nossas vidas e as de outras pessoas em
relação a um padrão ético, mas quando as virtudes são realmente
adquiridas, elas direcionam pensamentos, emoções e ações de uma forma
ordeira, o que é especialmente importante em circunstâncias difíceis. Os
clássicos retratam heróis e criminosos, vitórias e perdas espirituais, a
angústia da indecisão, o tédio da indiferença — nessas histórias vemos
espelhos de nós mesmos e da vida ao nosso redor. Ao observá-los, vemos
mais claramente.

1 “Berlioz’s Symphonie Fantastique”, disponível em


https://www.pbs.org/keepingscore/berlioz-symphonie- fantastique.html.
2 Jacques Barzun, Berlioz and the Romantic Century, 2 vols. Nova York:
Columbia University Press, 1969.
3 Deal W. Hudson, Three Reactions to Romanticism: Baudelaire, Nietzsche,
and Kierkegaard. The Graduate Institute of Liberal Arts, Emory University,
1978.
4 Berlioz and the Romantic Century, “Author’s Note”.
5 Ibid., p. 9.
6 Paul Tillich, Dynamics of Faith. Nova York: Harper Colophon Books,
1957, pp. 2–3.
7 Aristóteles, Nicomachean Ethics, 1097a 30–34, traduzido por Martin
Ostwald. Indianapolis: Bobb- Merrill, 1980, pp. 14–15.
8 “Fizeste-nos para Ti e inquieto está nosso coração, enquanto não repousa
em Ti”, Santo Agostinho, Confissões. Tradução de Maria Luiza Jardim
Amarante. São Paulo: Paulus, 1984, p. 5.
9 Summa contra gentiles, III, i, 48. Tradução de Vernon J. Bourke. Londres:
The University of Notre Dame Press, 1975, pp. 162–67.
10 Dynamics of Faith, p. 13.
11 Dana Gioia, “Clarify Me, Please, God of the Galaxies: In Praise of the
Poetry of Elizabeth Jennings”, First Things, Maio de 2018.
12 Elizabeth Jennings, Collected Poems, ed. Emma Mason. Manchester:
Carcanet Press, 2012.
13 “Clarify Me, Please, God of the Galaxies”.
14 The Oxford Book of Twentieth Century Verse, escolhidos por Philip
Larkin. Londres: Oxford University Press, 1973, p. 564.
15 Michael Weiss, “The McCarthyism canard”, em The New Criterion, 7 de
setembro de 2010, disponível em
https://www.newcriterion.com/blogs/dispatch/the-mccarthyism-canard.
16 Orlando Figes, Revolutionary Russia: 1891–1991. Nova York:
Metropolitan Books, 2014, p. 194.
17 Ibid., p. 195.
18 Arthur Koestler, Darkness at Noon, trad. Daphne Hardy. Nova York:
Macmillan Publishing Company, Inc, 1941, p. 254.
19 Ibid., pp. 254–55.
20 Ibid., p. 255.
21 George Scialabba, “Review of Arthur Koestler: The Homeless Mind by
David Cesarani”, em Boston Globe, 23 de janeiro de 2000, disponível em
http://georgescialabba.net/mtgs/2000/01/arthur-koestler-the-homeless-
m.html.
22 Stephen Apkon, The Art of the Image: Redefining Literacy In a World of
Screens. Prefácio de Martin Scorsese. Nova York: Farrar, Straus, and Giroux,
2013, p. 39.
23 Ibid.
24 Deal W. Hudson, “Adler from An Angel’s Eye”, em The Aspen Institute
Quarterly, inverno, 1995, vol. 7, no. 1, pp. 86–99.
25 The Art of the Image, p. 158.
26 Ibid., p. 69.
27 Ibid., p. 139.
28 Você pode ouvir e ver a primeira ópera do ciclo, Das Rheingold, regida
por Pierre Boulez na própria casa de ópera de Wagner, Bayreuth, em 1980:
https://www.youtube.com/watch?v=3ZP- yXsNV2E.
29 A melhor biografia é de Graham Robb, Victor Hugo: A Biography. Nova
York: W. W. Norton & Company, 1998.
capítulo vi
Maravilha

O poeta americano Wallace Stevens estudou no Harvard College, foi


para a New York Law School e começou a exercer a advocacia em
1904, aos 25 anos. Seu primeiro livro de poemas, Harmonium, não
foi publicado até 1923, quando tinha 44 anos.
Stevens viveu em dois mundos: em Hartford, onde depois de 1916 foi
advogado da Hartford Accident and Indemnity Company, tornando-se
vice-presidente em 1936; e em Florida Keys, que se tornou o cenário da
maior parte de sua poesia, a partir de 1922. 1 Em sua última visita a Keys,
Stevens brigou com Ernest Hemingway: “Então, tudo começou com
Stevens atacando a Hemingway, que, ainda de óculos, parecia cambalear
como um tubarão, e Papa 2 acertando-o com dois golpes e Stevens caindo
‘espetacularmente’, como Hemingway se lembraria mais tarde, em uma
poça de água fresca da chuva”. 3 Stevens, aliás, ganhou o Prêmio Pulitzer em
1955 por seus Collected Poems, dois anos após Hemingway, que era nove
anos mais jovem, e um ano depois do Prêmio Nobel, também de
Hemingway.
Você já esteve ali, parado na praia quando o crepúsculo se transforma em
noite, olhando para o céu nublado e o horizonte, pasmo com tamanha
beleza? Não temos palavras para descrever o que vemos, mas queremos
capturar o momento, para lembrá-lo ou comunicá-lo. É preciso ser um
poeta, suponho. Veja como Wallace Stevens captura a maravilha que esse
momento inspira:
fabliau of florida
Barque of phosphor
On the palmy beach,
Move outward into heaven,
Into the alabasters
And night blues.
Foam and cloud are one.
Sultry moon-monsters
Are dissolving.
Fill your black hull
With white moonlight.
There will never be an end

To this droning of the surf. 4

fabliau da flórida 5
Barca de fósforo
Na praia de palmeiras,
Movem-se rumo ao firmamento,
Dentro dos alabastros
E azuis noturnos.
Espuma e nuvem são uma.
Cálidos monstros-lunares
Se dissolvem.
Enche seu casco preto
Com o branco luar.
Nunca mais terá fim
O murmúrio dessa rebentação.

Os únicos desafios sérios para o leitor aparecem no primeiro e no último


verso. “Barca de fósforo”? Talvez você se lembre de ter lido “Para Helen”, de
Edgar Allan Poe, no qual ele descreve sua beleza, “como aquelas barcas de
Nicéia de outrora”. 6 Uma barca é um navio. Nós conhecemos
“fosforescente”, mas isso é o mesmo que “fósforo”? Confiando nisso,
passamos para o próximo verso e o restante do poema. O narrador está em
uma praia onde navios, no plural, “Movem-se rumo ao firmamento”,
entrando em uma matriz de cores azuladas. Então, tudo o que vemos se
une como se estivéssemos em um dos navios enquanto as cores se fundem
À
na escuridão — “espuma e nuvem são uma”. À medida que tudo escurece, o
luar é convidado a encher o barco; então o narrador estranhamente
comenta que o “o murmúrio dessa rebentação” nunca vai acabar.
O que ele quer dizer? O murmúrio das ondas ou o desaparecimento das
ondas sob um céu escuro? Não há referências a sons no poema. Acredito
que Stevens olha para além dos sentidos: “o murmúrio dessa rebentação”
pode significar o simples fato do ciclo interminável do ir e vir das águas, o
que todos nós vemos quando caminhamos em uma praia oceânica. O
murmúrio da rebentação torna-se uma imagem para “nunca mais terá fim”.
O poeta nos deixa pensando, mas não de forma agnóstica; já vimos o
suficiente através de seus olhos o que o maravilha no horizonte que
escurece. Parece haver um tom de arrependimento registrado ali. O
questionamento ousado de Stevens levanta questões, algumas das quais não
têm resposta imediata.
MÁXIMAS E AFORISMOS
Ao se engajar em uma nova obra de poesia, pode-se escolher entre ser
arrastado pelo ritmo e pela imagem, ou mergulhar na obra, buscando por
compreensão. Raramente um poema é abertamente descritivo, explícito
sobre seu significado, como se espera de um texto filosófico. A ponte entre
poetas e filósofos não é tão estreita como muitas vezes se descreve. Platão
escreveu na forma ficcional de diálogos, com personagens dando voz a
diferentes perspectivas, com seu protagonista Sócrates geralmente (nem
sempre) vencendo. É daí que se origina o termo “método socrático” de
diálogo e questionamento na educação, que também é a base para nossa
abordagem neste livro.
Não sabemos o que Sócrates pensava, exceto por meio de seu aluno,
Platão. Sócrates não era fã da escrita; para ele, a filosofia era
necessariamente uma obra de diálogo, que devia ser falada. Platão, para
nossa sorte, discordava. A tradição grega da oratória já estava bem
estabelecida quando Sócrates entrou em cena no século v a.C., assim como
sua história já estava registrada na poesia épica como a de Homero. Essa
reflexão “pré-socrática” mescla descrição e narrativa com o poético. Esse
modo eficaz de pensamento e comunicação reaparece ao longo da história.
O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard (1813–1855), por exemplo,
reconheceu o poder da “comunicação indireta” e expressou a maioria de
seus argumentos, como Platão, na forma de ficções filosóficas escritas sob
vários nomes para distinguir pontos de vista. Por “indireto”, se referia ao
falar por meio de personagens e de uma narrativa. 7
O classicista e filósofo Friedrich Nietzsche (1844–1900) experimentou
formas não-discursivas. Ele escreveu um romance filosófico, Assim falou
Zaratustra (1883–1891), e vários livros de aforismos. Geralmente se ignora
que Nietzsche, embora fosse alemão, preferia a cultura francesa. As
Máximas (1665) de François de La Rochefoucauld (1613–1680) o
estimularam a adotar o estilo de escrita aforística. La Rochefoucauld, ao
contrário de Nietzsche, não tinha a pretensão de ser um filósofo. As
Máximas, publicado anonimamente, contêm as percepções de um homem
sábio e mundano que observa a disputa por poder e privilégio na sociedade
da corte de Luís xiii e Luís xiv. É provável que hoje encontremos algo
semelhante em um livro de auto-ajuda.
20 — A constância do sábio é apenas a arte de conter sua agitação em seu coração. 8

25 — É preciso ter mais virtudes para resistir à boa sorte do que à má. 9
38 — Fazemos promessas de acordo com nossas esperanças e as cumprimos de acordo com
nossos temores. 10

PENSÉES
Blaise Pascal (1623–1662) estava escrevendo aforismos na mesma época.
Seus Pensées (Pensamentos) foram publicados em 1670, oito anos após sua
morte. O trabalho, constituído por fichas distribuídas aleatoriamente em
pilhas, teve de ser ordenado por seus editores. Ao contrário de seu
contemporâneo, usa seus aforismos para trabalhar nas questões perenes.
Polímata e gênio, Pascal desenvolveu uma máquina de calcular mecânica
(mais tarde chamada de “Pascaline”) aos dezenove anos. Ele tinha uma
aptidão de gênio para matemática, geometria, assim como para as ciências
naturais e sociais.
Apesar de suas inúmeras e duradouras contribuições à matemática e à
física atmosférica, Pensées é sua obra mais lembrada. Nascido católico em
uma França católica, Pascal sentiu-se atraído aos vinte e poucos anos pela
seita dos jansenistas, que enfatizava a Queda da raça humana e a
necessidade da graça para qualquer indivíduo agir de maneira meritória.
Cinco doutrinas do jansenismo foram condenadas pelo Papa Inocêncio x
em 1653. Pascal, no entanto, não se intimidou. Um ano depois, uma
experiência religiosa levou Pascal a escrever sobre sua fé nos Pensées. O tom
ali parece agressivo, impaciente, até mesmo zangado. Ele soa como um
homem em uma missão evangélica, um evangelismo que emprega as
ferramentas de sua imensa erudição. A maravilha, para Pascal, não está em
um pôr do sol sobre o mar: a maravilha nos ensina sobre nosso lugar no
universo. No pensée número 199, “A desproporção do homem”, 11 ele
compara o homem ao infinito e ao universo. Pascal pede que olhemos
primeiro para a natureza, depois para além da natureza, permitindo-nos ver
que “todo o mundo visível é apenas um ponto imperceptível no amplo seio
da natureza”. Percebendo sua insignificância, um homem se perguntará: “O
que é um homem perante o infinito?”.
A esta altura Pascal nos surpreende: não se apóia no céu amplo como sua
única metáfora. Ele quer “mostrar-lhe um novo abismo”, ou seja, a
“imensidão da natureza encerrada neste átomo em miniatura”. Isso deixa o
homem preso entre dois absolutos: o nada “de onde ele emerge” e o infinito
“pelo qual ele está envolvido”. Em seguida, Pascal revela a
complementaridade que ele, como cientista, encontra entre a ordem criada
e as verdades de sua fé. A curiosidade científica torna-se admiração,
tornando-o “mais disposto a contemplá-las em silêncio do que investigá-las
com presunção”. Ele conclui confessando: “O autor dessas maravilhas as
entende: ninguém mais”.
Pascal cita Aristóteles em concordância: “Pois é devido ao seu espanto que
os homens começam agora e começaram desde o princípio a filosofar”. 12
Aristóteles teria conhecido a história contada por Platão sobre como o mais
antigo filósofo conhecido, Tales, foi ridicularizado por uma serva trácia por
cair em um poço enquanto olhava as estrelas: “Ele estava ansioso para saber
as coisas do céu, mas o que estava ao redor dele e abaixo de seus pés
escapava de sua atenção”. 13 Essas palavras seriam para vários artistas um
emblema de honra, mas não há registro de como Tales as interpretou. A
maravilha 14 é a resposta humana natural ao que o céu representa, a
aparente vastidão das coisas.
A maravilha pode mudar a vida, como mudou a de Pascal. É a
consciência metafísica que está por trás da ode de Wallace Stevens ao céu
que escurece. Maravilha não é uma emoção, embora muitas vezes chegue
com emoções, provocando reverência, deleite ou até medo. A maravilha
começa quando os sentidos iluminam o intelecto, suscitando poesia,
música, metafísica e questões de interesse último.
MARAVILHA PRIMORDIAL
Denise Levertov mudou-se da Inglaterra para a América em 1947 e se
tornou uma das melhores poetisas da geração do pós-guerra. Ela publicou
vinte livros de poesia, mas seu primeiro, The Double Image (1946), ganhou
seu reconhecimento nacional no Reino Unido quando tinha apenas 21
anos. Sua coleção de 1959, With Eyes at the Back of our Heads, estabeleceu
sua reputação nos Estados Unidos. Durante os anos 50, Levertov foi
influenciada por transcendentalistas americanos, o que ajudou a liberá-la
para canalizar seu romantismo inato. Durante os anos 60, Levertov se
exauriu no ativismo antiguerra e no feminismo, e sua poesia, dizem alguns,
sofreu. Neste poema é Levertov, a romântica, que descreve como em meio a
“uma série de diversões” a mente pode ser inesperadamente visitada pelo
que ela chama de “maravilha primordial”. 15
primary wonder
Days pass when I forget the mystery.
Problems insoluble and problems offering
their own ignored solutions
jostle for my attention, they crowd its antechamber
along with a host of diversions, my courtiers, wearing
their colored clothes; caps and bells.
And then
once more the quiet mystery
is present to me, the throng’s clamor
recedes: the mystery
that there is anything, anything at all,
let alone cosmos, joy, memory, everything,
rather than void: and that, O Lord,
Creator, Hallowed One, You still,
hour by hour sustain it.
maravilha primordial
Os dias passam quando esqueço o mistério.
Problemas insolúveis e problemas que ofertam
suas próprias soluções ignoradas
se acotovelam por minha atenção, lotam sua antecâmara
junto a uma série de diversões, meus cortesãos, vestindo
suas roupas coloridas; bonés e sinos.
E então
mais uma vez o mistério silencioso
está presente para mim, o clamor da multidão
retrocede: o mistério
de que há alguma coisa, qualquer coisa,
para não mencionar o cosmos, alegria, memória, tudo,
ao invés do vazio: e isso, ó Senhor,
Criador, Santíssimo, Vós ainda assim,
hora a hora o sustentais.

Os eventos têm vidas posteriores longas e muitas vezes imprevisíveis. O


que parecia um momento de alegria anos atrás, pode voltar e o atingir
como um tapa na cara. Por exemplo, a memória do nascimento de uma
criança continuará circulando conforme ela envelhece, provocando mais
reflexões sobre a própria vida, sua direção e propósito, e sobre o que
poderia ter sido. Embutido nesse processo está um aspecto do
autoquestionamento e do auto-exame — você pode sondar as profundezas
ou pode resistir procurando por distrações. A maravilha é uma admissão de
finitude e mistério. Existem pessoas, infelizmente, que vivem na negação de
ambos. A maravilha pode se esgueirar sobre nós: “o mistério/ de que há
alguma coisa, qualquer coisa”.
Visto que Aristóteles observou que a filosofia começa com o espanto, não
devemos nos surpreender que ele coloque o hábito da contemplação no
topo de suas exigências para uma vida feliz. No livro x de sua Ética a
Nicômaco, Aristóteles argumenta que a felicidade requer o uso constante da
melhor parte de si mesmo, a inteligência, e esta deve ser aplicada ao
conhecimento buscado por si mesmo, o que leva à auto-suficiência, que
podemos entender como um certo tipo de liberdade pessoal. A
contemplação é uma atividade que requer tempo livre. Ele reconhece que
encontrar tempo é difícil para homens e mulheres dedicados a atividades
práticas — famílias, negócios, forças armadas, governo. Aqueles que vivem
para buscar diversão estão fadados a ser os menos contemplativos de todos.
16

Para nós que não vivemos na Grécia Antiga, o significado é claro: para
estudar, precisamos encontrar tempo e protegê-lo — tempo sem ser
perturbado pelas necessidades práticas da vida. De fato, Aristóteles
acreditava que tais exercícios de estudo eram nossa habilidade humana mais
distintiva, que é sua própria recompensa e confere prazer duradouro: “O
que é por natureza próprio a cada coisa será ao mesmo tempo o melhor e
mais agradável para ela. Em outras palavras, uma vida guiada pela
inteligência é a melhor e mais agradável para o homem, pois a inteligência
pertence somente ao homem. Conseqüentemente, esse tipo de vida é o
mais feliz”. 17
Assim, a fome por coisas superiores, provocada pela maravilha, deve levar
à contemplação real dessas coisas superiores. Para Aristóteles, maravilhar-se
é buscar respostas, e a felicidade pertence a quem as encontra. A maravilha
abre a mente e a contemplação focaliza a mente nas verdades possíveis e
reais. Também pode significar despir-nos de algumas pretensões adultas.
DIES NATALIS
O espírito infantil é um aspecto freqüentemente esquecido da admiração.
As crianças olham para o mundo com os olhos da inocência, lembrando os
adultos de sua própria inocência perdida, de maravilhas deixadas para trás.
Mas não precisa ser assim. Os poetas despertam maravilhas com palavras,
que evocam visceralmente maravilhas que conhecemos e maravilhas
invisíveis bem à nossa frente.
O poeta Thomas Traherne (1636–1674) pertence à escola metafísica do
século xvii, embora não seja tão conhecido como Donne, Herbert e
Marvel. Sua obra mais notável é a mística Centuries of Meditation. 18 É um
extenso poema em prosa de notável espiritualidade, profundidade e
misticismo.
Em uma seção intitulada “Wonder”, ele imagina uma criança entrando
no mundo, “Quando apareci pela primeira vez entre Suas obras”. O
compositor inglês Gerald Finzi (1901–1956) musicou esta seção, uma
cantata em cinco movimentos para voz solo e orquestra, Dies Natalis, que
estreou em 1939. Como Traherne, Finzi não é tão famoso quanto seus
contemporâneos, Gustav Holst e Ralph Vaughan Williams. Mas Finzi
possuía um dom notável para transformar as palavras em música. O crítico
musical e historiador Robert R. Reilly descreve Dies Natalis como uma
obra de arte em que “a alegria imaculada, o sentimento de admiração e a
celebração da criação são transmitidos com uma espontaneidade e êxtase de
tirar o fôlego”. 19
Finzi era por natureza um contemplativo e voltado para a celebração da
experiência da infância. Ele gostava de longas caminhadas pelo interior da
Inglaterra, cuja beleza estimulava sua composição. Ele teve a inspiração
inicial para adaptar o poema em prosa de Traherne em um passeio a pé por
East Anglia em 1927. Finzi viu o telhado de uma igreja do século xvi com
três camadas de anjos com asas abertas e lembrou-se da pintura de
Botticelli, A natividade mística. Depois, Finzi leu mais nos Centuries 20 e
escolheu um trecho para cada um dos quatro movimentos. Aqui está o
texto do segundo. 21
How like an angel came I down!
How bright are all things here!
When first among His works I did appear
O how their glory me did crown!
The world resembled His Eternity
In which my soul did walk;
And every thing that I did see
Did with me talk.
The skies in their magnificence
The lovely, lively air,
O how divine, how soft, how sweet, how fair!
The stars did entertain my sense;
And all the works of God, so bright and pure,
So rich and great, did seem,
As if they ever must endure
In my esteem.
A native health and innocence
Within my bones did grow,
And while my God did all His Glories show,
I felt a vigour in my sense
That was all Spirit. I within did flow
With seas of life, like wine;
I nothing in the world did know
But ’twas Divine.
Tal qual um anjo eu desci!
Quão brilhantes são todas as coisas aqui!
Quando surgi pela primeira vez entre Suas obras
Oh! Como a glória delas me coroou!
O mundo parecia Sua Eternidade
Na qual minha alma andou;
E tudo o que vi
Veio comigo falar.
Os céus em sua magnificência
O ar adorável e animado,
Oh! Quão divino, quão suave, quão doce, quão belo!
As estrelas entretinham meus sentidos;
E todas as obras de Deus, tão brilhantes e puras,
Tão ricas e grandes pareciam,
Como se devessem perdurar
Em minha estima.
Uma inocência e saúde nativa
No interior dos meus ossos cresceu,
E enquanto meu Deus mostrava todas as Suas Glórias,
Eu senti um vigor em meus sentidos
Que era todo Espírito. Por dentro fluí
Com mares de vida, como vinho;
Eu nada do mundo sabia
Mas era Divino.

A linha do tenor atinge um brilho extático com as palavras “com mares de


vida, como vinho”, que é enervante por sua beleza ousada. Sua declamação
direta de “Divino” no final deixa clara a intenção de Traherne, embora o
agnóstico Finzi não compartilhasse sua fé. Como Robert R. Reilly
comenta: “Em minha própria experiência com agnósticos, descobri que eles
costumam ser particularmente próximos de Deus — íntimos o suficiente
para guardar rancor pessoal”, particularmente em casos que envolvem o
sofrimento de crianças e a morte. 22 Finzi perdeu o pai aos sete anos; seus
três irmãos mais velhos e seu professor de música, Ernest Farrar, morreram
nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial quando ainda era adolescente.
Talvez sua experiência de morte tenha tornado seus encontros com a beleza
da natureza e da arte, ao contrário, ainda mais significativos e cativantes —
experiências extáticas que ele colocou em sua música. Ou, talvez, a
experiência do nascimento.
O CÉU MANDOU ALGUÉM
A maravilha requer desaceleração e tempo para olhar o entorno. Homens
fugindo da lei em um deserto implacável, ao contrário, provavelmente não
estarão com esse humor. No filme O Céu mandou alguém 23 (1948), de John
Ford, no entanto, encontramos três personagens que estão prestes a serem
surpreendidos e transformados pela maravilha. Estrelado por John Wayne
(Robert Hightower), Harry Carey Jr. (William Kearny) e Pedro
Armendáriz (Pedro), O Céu mandou alguém difere das narrativas
características de Ford sobre caras durões lutando. Em vez disso, Ford conta
uma história sobre a beleza e o poder de uma criança recém-nascida ao
transformar homens renegados.
Os três entram na cidade com a intenção de assaltar um banco, mas
param para rir da placa “B. Sweet” em uma cerca. Um homem, “Buck”
Sweet, interpretado por Ward Bond, levanta-se de trás da cerca e uma
conversa amigável começa. Ele é o xerife local que, sentindo algo suspeito
sobre os três, se despede deles dizendo: “Verei vocês de novo,
provavelmente”.
E eles o encontram novamente, enquanto fogem para fora da cidade após
assaltar o banco: Buck já está armado e organizando um destacamento.
Tendo escapado, eles param no deserto para descansar, encontrando um
buraco de bala em sua bolsa de água. Surpresos, vêem uma carroça coberta
parada sozinha no areal.
Esses três bandidos agora se parecem com os três reis magos que
encontraram uma mãe e um filho que não esperavam encontrar — eles
querem fugir, mas precisam parar. Robert diz aos outros dois que há uma
mulher sozinha na carroça e que ela está para ter um filho. Ele está zangado
porque o marido estúpido dela, que está ausente, dinamitou o poço
responsável pelo abastecimento de água daquela região desértica. Ela está
sozinha há dias e a água acabou. Pedro, também pai, vai ajudar no parto.
Pedro tira o chapéu, dirige-se para a retaguarda da carroça, enquanto a
música cria um clima de reverência.
A câmera filma Pedro de dentro da carroça. Seu rosto é emoldurado pela
cobertura da carroça como uma janela gótica, com várias árvores mortas
visíveis ao fundo, plantadas no alto da duna de areia. O rosto luminoso de
Pedro contrasta com o de Richard, que se afasta da câmera, se inclina em
direção ao chão, agitado, e cobre o rosto.
Ao pôr do sol, nasce o bebê. A cena mágica do diretor de fotografia
Winton C. Hoch mostra Robert e William a certa distância, observando o
vagão, ao passo que a luz do lampião aquece as sombras do crepúsculo e o
vento faz a areia subir.
Pedro surge, pedindo para que entrem na carroça dizendo: “Ela quer ver
vocês, todos nós, juntos”.
Robert interrompe: “O que ela teve?”.
“Um menino grande”, Pedro responde. Robert tira a arma de William,
depois a sua própria e seu chapéu. Seu comportamento fica mais suave. A
maravilha aguarda.
Dentro da carroça é o efeito da mãe e do filho em Robert que mais
interessa à câmera. Pedro diz que se chama Pedro Rocca Fuerte, sugerindo
São Pedro. Ela implora: “Por favor, salvem meu bebê”. Robert é o primeiro
a responder: “Sim, senhora, vou salvá-lo”. Pedro e William também
prometem. A fala da mãe para o bebê, antes de morrer, é de partir o
coração: “Você estará sozinho no mundo quando a mamãe o deixar… não
terá ninguém para colocá-lo na cama à noite”. Ela chora. Voltando-se para
eles diz: “Eu quero que vocês, todos vocês, sejam os padrinhos do meu
bebê”.
Eles ficam surpresos, mas aceitam. Robert ajuda a mãe a beijar o bebê e
então ela morre. Robert embala o bebê com força enquanto uma lâmpada
se apaga na frente da duna de areia.
Há uma cena de sepultamento. Todos os três padrinhos foram
transformados pelo espanto de uma nova vida, por seu amor pela criança e
pelas promessas feitas à mãe moribunda. Conforme a história avança, Ford
testa severamente a transformação: William morre de sede, recusando-se a
tomar a água da criança; Pedro se mata após uma queda com a criança;
Richard, com o bebê Pedro, se arrasta à cidade de Nova Jerusalém, no dia
de Natal, quase morto.
Embora repleto de alusões e imagens cristãs óbvias, a direção de Ford
evita que o filme pareça forçado. O crítico de cinema Joseph McBride
discorda: ele contrasta as cenas poderosas no deserto, “uma peregrinação
religiosa”, com a cena em que Robert, desorientado, encontra um burro
que o guia milagrosamente à Nova Jerusalém. 24 Para mim, a peregrinação
foi tão repleta de simbolismo religioso que eu teria ficado surpreso se as
ovelhas não tivessem aparecido quando Hightower estava perdido e em
desespero!
Na cena final, Hightower e o xerife estão jogando xadrez, esperando o
trem para levá-lo a uma prisão onde cumprirá uma pena curta. O xerife
brinca: “A prisão vai te fazer muito bem”. A cidade canta um hino quando
ele embarca no trem. Dado o sacrifício extraordinário de todos os
padrinhos, esse retorno à normalidade é desconcertante. Mas a maravilha
está presente: Buck ia enforcar Robert por assassinato, e a cidade estava se
preparando para isso. Agora, eles estão cantando.
Para experimentar a maravilha, a mente e o coração devem ser receptivos.
Na contemplação do Bem de Aristóteles e na “estima” de Finzi pela criação,
a receptividade é evidente. Mas Hightower era diferente; ele não era
receptivo, mas estava dominado pelo amor pela criança, apesar de si
mesmo. Todos os três, no entanto, sofrem alguma perda de si mesmos e,
com isso, ganham em vulnerabilidade, permitindo que a visão tome conta
de suas vidas. O maravilhoso desperta a consciência do novo ou recém-
reconhecido; é uma expansão da consciência humana, uma oportunidade
de transformação e transcendência. A receptividade é a chave para ver com
olhos inocentes, para se perder no deslumbramento de uma grande obra da
natureza ou da arte. Não devemos assumir que algum evento deslumbrante
abrirá nossos olhos.

Ao terminar este capítulo, fiz um breve discurso em um mesa que discutia
cultura e artes. Perguntei ao público quantos deles haviam lido ou visto
uma peça de Shakespeare no ano anterior. Disse a eles que estava
escrevendo um livro sobre como voltar aos clássicos. Depois, uma mulher
visivelmente emburrada me perguntou por que eu havia feito aquela
pergunta sobre Shakespeare. Tentei explicar que era um exemplo de como
voltar aos clássicos, mas ela não estava ouvindo. Ela parecia zangada, como
uma aluna sendo repreendida por não fazer o dever de casa. O que me
impressionou foi sua falta de piedade para com Shakespeare, como se
Shakespeare não tivesse mais nada a oferecer. Ela o leu, ela disse, e foi só
isso. Ela não reconheceu nas peças e na poesia de Shakespeare uma obra de
arte inesgotável. Talvez um dia ela se sinta curiosa o suficiente para se
aproximar, digamos, da Tempestade — se o fizer, acredito que seu senso de
maravilha será reacendido.
1 Michael Schmidt, The Lives of Poets. Nova York: Alfred A. Knopf, 1999,
pp. 626–29.
2 “Papa” era o apelido de Hemingway — nt.
3 Paul Mariani, The Whole Harmonium: The Life of Wallace Stevens. Nova
York: Simon&Schuster, 2016, p. 207.
4 Wallace Stevens, The Collected Poems of Wallace Stevens, ed. John N. Serio
e Chris Beyers. Nova York: Vintage Books, 2015, p. 25.
5 O fabliau é uma narrativa curta em verso, geralmente octossílabo, de 300
a 400 versos. Seu conteúdo costuma ser cômico ou satírico. Na França,
floresceu nos séculos xii e xiii e era popular na Inglaterra no século xiv.
Seu gênero literário mais próximo é a fábula, embora seja menos moral e
didático do que esta — nt.
6 No original: “Like those Nicéan barques of yore” — nt.
7 Søren Kierkegaard, The Point of View for My Work as An Author: A Report
to History. Tradução de Walter Lowrie, ed. Benjamin Nelson. Nova York:
Harper Torchbooks, 1962, pp. 5–27.
8 François de La Rochefoucauld, Maxims; La Rochfoucault, tradução de
Stuart D. Warner e Stépane Douard. South Bend: St. Augustine’s Press,
2001, p. 7.
9 Ibid., p. 8.
10 Ibid., p. 10.
11 Blaise Pascal, Pensées, tradução de A. J. Krailsheimer. Nova York:
Penguin Press, 1984, pp. 88–95.
12 Aristóteles, Metaphysics, 982b 11–983, The Basic Works of Aristotle, ed.
Richard McKeon, introdução de C. D. C. Reeve. Nova York: Modern
Library Classic, 2001, pp. 692–93.
13 The Presocratic Philosophers, nos. 74, 78.
14 De θαῦμα (thaûma), que significa maravilha, espanto, assombro. F. E.
Peters, Greek Philosophical Terms: A Historical Lexicon. Nova York: New
York University Press, 1967, p. 22.
15 Denise Levertov, “Primary Wonder”, em Selected Poems, ed. Paul A.
Lacey. Nova York: New Directions, 2002, p. 192.
16 Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1176a 30–1177b 25.
17 Ibid., 1178a 5–9.
18 Thomas Traherne, Centuries Thomas Traherne 1637–1674. S/l: The
Faith Press, 1960. O arquivo para download grátis se encontra aqui:
https://archive.org/details/centuries_of_meditations_1412_librivox.
19 Robert R. Reilly; Jens F. Laurson, Surprised by Beauty: A Listener’s Guide
to the Recovery of Modern Music. São Francisco, Ignatius Press, 2016, p.
107.
20 Centuries, “3º Century”.
21 Ouça James Gilchrist cantar Wonder com o maestro David Hill e a
Orquestra Sinfônica de Bournemouth: https://www.youtube.com/watch?
v=og4OoQbGjzA.
22 Surprised by Beauty, p. 106.
23 O título original do filme é 3 Godfathers — nt.
24 Joseph McBride, Searching for John Ford: A Life. Nova York: St. Martin’s
Press, 2001, p. 442.
parte ii

Verdade: más idéias em movimento


capítulo vii
Engajamento: do desapego à atenção

M uitos anos atrás, na faculdade, li alguns versos do poema Quarta-


feira de Cinzas de T. S. Eliot. 1 O poeta, dirigindo-se a Deus, busca
orientação no que considera um caminho espiritual muito
desafiador. Uma das bênçãos que pede é esta:
Teach us to care and not to care
Teach us to sit still.
Ensinai-nos a nos importar e a não nos importar
Ensinai-nos a ficar quietos.

“Não nos importar” foi um pensamento que agarrou minha mente:


sugeria liberdade. Aqueles anos, os últimos da década de 60, foram
carregados de pressão para nos conformar com as mudanças, o que era
irônico, pois as causas às quais deveríamos nos conformar eram a liberdade
e o não-conformismo. A pressão era para rejeitar “o estabilishment”. Tentei
aderir, sem muita convicção, mas sabia que essas causas não eram para
mim. Eu me preocupava com outras coisas, como minha aula de
Shakespeare, minha descoberta da poesia de Eliot ou como parecer legal
jogando frisbee no pátio. Mas no poema de Eliot, encontrei uma idéia que
me reorientou e me guiou por toda a minha vida. Eu poderia escolher o
que valorizar e com o que me preocupar. Talvez Eliot, afinal, tenha me
legado uma mentalidade hippie!
Descobri que a liberdade requer o hábito do desapego, a habilidade de
não ser arrastado pelo espírito da época. O termo “desapego”, como o uso
aqui, não é indiferença, o que os franceses chamam de ennui, ou o que os
moralistas cristãos chamam de preguiça. Queremos nos importar, devemos
nos preocupar, mas sobre o que realmente importa para nós. “Ensina-nos a
nos importar e a não nos importar”, escreve Eliot, e, devo acrescentar, com
o que se importar… ou não.
Sem desapego, a atenção de uma pessoa vagueia pelo que quer que esteja
nas notícias. Falamos como se estivéssemos seguindo um roteiro das
informações mais recentes do dia. Não é fácil sair do script e seguir seu
próprio caminho sem ser considerado estranho pelo entorno. Depois de
jogar golfe com um novo grupo de rapazes por quatro horas, um deles
geralmente pergunta o que eu “faço”. Quando digo a eles que lecionei
filosofia por quinze anos, eles me encaram sem saber o que dizer. Há, no
entanto, uma vantagem: quando um rosto se ilumina, sei que encontrei um
amigo em potencial.
A necessidade de desapego também é evidente quando tiramos conclusões
precipitadas. Considere a leitura das notícias diárias, que para muitos hoje
em dia vêm como um feed de mídia social. Quando você lê a manchete,
forma imediatamente uma opinião sobre o artigo com base na fonte, seja
cnn, fox, Washington Post, New York Times? À medida que os períodos de
atenção se tornam mais curtos, não perdemos tempo lendo senão as
manchetes ou pesando opiniões. Identificar e corrigir esse hábito é essencial
para formar sua opinião. Para fazer isso, é preciso considerar o balanço dos
fatos apresentados: reconhecer a escolha das citações e das palavras que
colorem a história. Você perceberá que muito do seu pensamento está
sendo feito por você sem que você perceba.
É notável a ausência desse desapego: é raro encontrar um intelectual,
escritor, repórter ou figura pública que o personifique. Em comparação
com os anos 60 e 70, o que era admirado nas figuras públicas mudou
drasticamente. Os embates extremamente cativantes do falecido intelectual
conservador William F. Buckley com seus convidados progressistas de
esquerda, como seu bom amigo John Kenneth Galbraith, 2 foram
substituídos pelos herdeiros do sentimental Phil Donahue, 3 que em seu
programa usava e abusava dos sentimentos de seus convidados da platéia do
estúdio. Seguiu-se uma longa linha de imitadores, culminando no cada vez
mais assustador reality show da televisão. Como resultado, predomina o
entretenimento baseado na conflagração de emoções e na efusão de piscinas
de lágrimas.
Observe que em Quarta-feira de Cinzas, Eliot pediu que nos fosse
ensinado “ficar quietos”. A pungência de um verso tão simples desafia o
hábito cotidiano. O estudioso de literatura Harold Bloom ressalta a
necessidade de silêncio: “A verdadeira leitura é uma atividade solitária”, 4 e a
buscamos “para ampliar a existência solitária”. 5 Bloom defende a
dificuldade de entender um grande livro ou obra de arte. Ele ridiculiza os
professores que não mais exigem dos alunos a leitura de peças como Júlio
César em sua totalidade, mas, em vez disso, indicam apenas algumas
passagens e os fazem confeccionar escudos e espadas de papelão em vez de
ensaios e dissertações sobre a genialidade da escrita de Shakespeare. Bloom
atribui a culpa aos acadêmicos, aqueles que “encorajam todos a substituir
os prazeres difíceis por prazeres universalmente acessíveis precisamente
porque são mais fáceis”. 6 Há aqui uma lição para todos nós.
WALDEN
A solidão é difícil para a maioria, uma espécie de exercício espiritual. Em
seus Pensées, Pascal escreveu: “Todos os problemas da humanidade derivam
da incapacidade do homem de se sentar silenciosamente em um quarto
sozinho”. 7 Deixando a sábia hipérbole de lado, uma educação séria requer
solidão e atenção constante. Um escritor que encontrou uma maneira de
obter a quietude foi Henry David Thoreau (1817–1862).
Fui para os bosques porque queria viver deliberadamente, enfrentar apenas os fatos essenciais da
vida e ver se conseguia aprender o que ela tinha a ensinar, para que não acontecesse de, quando
eu viesse a falecer, descobrir que não vivi. Não queria viver o que não fosse vida, viver é tão caro;
nem sequer queria praticar a resignação, a menos que fosse absolutamente necessária. 8

O Thoreau que conheci no colégio era uma espécie de monge/hippie


intelectual que desistiu da companhia da sociedade, retornando à natureza
por dois anos para buscar sabedoria em uma cabana à beira de um lago.
Como descobri mais tarde, Thoreau não viveu uma existência totalmente
monástica. Ele costumava caminhar um quilômetro até Concord, New
Hampshire, para visitar amigos ou dar uma palestra. Sua mãe lavava sua
roupa. Amigos e estranhos o visitavam na cabana que tinha apenas três
cadeiras; às vezes não havia sequer onde se sentar. Na cabana remota, ele
também protegeu escravos fugitivos. Embora Thoreau não possuísse um
iPhone, ele permaneceu conectado ao mundo exterior de uma forma que
qualquer um de nós faria em circunstâncias semelhantes.
Por manter tais laços, Thoreau foi criticado. Em um ensaio de 2015
intitulado “Pond Scum”, Kathryn Schulz escreve, “Thoreau não viveu
como ele descreveu, e nenhum princípio ético é mais vazio do que aquele
que não se aplica ao seu autor. A hipocrisia não é que Thoreau aspirasse à
solidão e à auto-suficiência, mas continuasse voltando para casa em busca
de biscoitos e companhia”. 9 A acusação de hipocrisia se estende às roupas
lavadas de Thoreau e suas incursões em Concord. Mas Schulz vai mais
longe: ela descreve o Walden de Thoreau como semelhante “em espírito a
Ayn Rand: desconfiada do governo, fanática pelo individualismo, egoísta,
elitista, convencida de que outras pessoas levam vidas patéticas, mas se
opõe categoricamente a ajudá-las. Não é apesar, mas por causa dessas
qualidades, que Thoreau se torna um herói nacional tão conveniente”.
Houve várias respostas espirituosas 10 ao ataque de Schultz a Thoreau, mas
nenhuma delas respondeu à insinuação sobre o caráter dos leitores
americanos — de que somos como os personagens dos romances de Ayn
Rand, isto é, narcisistas. 11 Schulz executa um floreio um tanto estranho e
totalmente sem fundamento. Ela caracteriza nossa apreciação por Thoreau
como um produto de leitores elitistas e egocêntricos. Basta conhecer um
pouco sobre Ayn Rand para saber que ela não passaria mais do que alguns
minutos na cabana de Thoreau — seu gosto seria ofendido. Por que
Schultz é incapaz de reconhecer o óbvio? Thoreau era um homem mal-
humorado, mas amigável; um escritor e pensador que descobriu que fazia
seu melhor trabalho sozinho. Não há razão para desacreditar do autor de
Walden, cuja passagem mais famosa ainda move o espírito:
Eu queria viver profundamente e sugar toda a medula da vida, viver de forma tão vigorosa e
espartana a ponto de desbaratar tudo o que não fosse vida, cortar uma faixa ampla e aparar rente,
conduzir a vida a um canto, e reduzi-la aos seus termos mais baixos e, se se mostrasse mesquinha,
obter toda sua genuína mesquinhez e publicar sua mesquinhez para o mundo; ou se fosse
sublime, sabê-la por experiência e ser capaz de dar um relato verdadeiro em minha próxima
excursão. 12

No que pretende ser um elogio, o estudioso literário Jeremiah Purdy


chama Thoreau de “um verdadeiro esquisitão americano” e defende seu
apelo, segundo o qual devemos encontrar tempo para dar atenção à vida
mesma, em vez de atentarmos apenas às tarefas diárias:
A maioria de nós se move, como ele, entre o engajamento e o desapego, entre sentir a justiça e os
erros de nossas comunidades como se fossem nossos e nos tornar insensíveis a eles. Thoreau não é
um modelo, mas é um interlocutor útil e difícil ao longo dos séculos, um amigo difícil por ser
um cidadão difícil. Ele não resolveu nenhum de nossos problemas, mas sentiu seus pólos
extremos tão agudamente que ainda hoje lança seu feixe de luz quebrado sobre eles. 13

Além disso, acredito que Thoreau nos fornece um poderoso lembrete de


duas coisas: tomar todas as medidas necessárias para pensar por si mesmo e
lembrar que, apesar da tecnologia, escrever continua sendo o ato de colocar
a caneta no papel.
ABERTO A TUDO
Às vezes, ouvimos falar em “reservar” tempo para o ócio, como se o ócio
fosse opcional, menos importante do que o tempo do qual deve ser
“reservado”. Em 1952, T. S. Eliot escreveu uma introdução a um livro do
filósofo alemão Josef Pieper, Leisure: The Basis of Culture, 14 recomendando
o livro por sua tentativa de realinhar a filosofia com “uma atitude que
pressupõe o silêncio, uma atenção contemplativa às coisas, na qual o
homem começa a ver o quão dignas de veneração elas realmente são”. 15
O “ócio” que Pieper explica é uma “forma de silêncio” contemplativa que
está “aberta a tudo”. 16 Na verdade, é um precursor do espanto, da
admiração. Pieper não escreve para uma elite educada: ele se dirige a todos,
independentemente de educação ou classe, que passaram a considerar o
tempo do ócio como meramente restaurador:
O ócio não se justifica pela expectativa de o funcionário exercer a sua atividade, na medida do
possível, sem transtornos e sem panes; a verdadeira meta é que o funcionário continue sendo um
ser humano (Newman diria: um gentleman), o que quer dizer que ele não se esgote na tentativa
de realizar-se no estreito campo parcial do meio funcional de seu ofício, e sim que mantenha a
capacidade de enxergar o mundo como um todo, para que possa realizar-se como um ente
destinado a possuir o ser em sua plenitude. 17

Por que Pieper afirmaria que o ócio é “a base da cultura”? A cultura, como
já disse, é a escola que freqüentamos todos os dias. Ela nos ensina o
conjunto dominante de valores e o modo de vida em nossa sociedade. Sim,
essas coisas nos são ensinadas mesmo se decidirmos rejeitá-las. Se nossa
cultura iguala o ócio à folga do trabalho, essa atitude será expressa por
vários meios: costumes, modos, estilo de vida e trabalho. Viver em uma
cultura é como respirar o ar. Fazemos isso todos os dias, mas quase não
percebemos. Somente pela reflexão a mensagem de uma cultura se torna
explícita.
Mas também usamos o termo cultura de uma forma normativa.
Chamamos de “culto” aquele que está familiarizado com história, línguas e
o tipo de livros, filmes e música que estamos discutindo aqui. É importante
manter a distinção desses usos. No sentido descritivo, em nossa cultura
atual, o ócio é equiparado ao relaxamento — brincadeiras, esportes,
exercícios, hobbies. Mesmo essas atividades são consideradas como um
desperdício de tempo em relação aos valiosos ou obrigatórios deveres do
trabalho e da família. Agora substitua aquilo que nos afasta do trabalho e
da família pela visão de ócio de Pieper — “Vou passar a tarde no quintal
lendo Guerra e paz”. Seria isso roubar tempo da família ou uma
necessidade para nutrir o seu bem-estar e o de sua família?
Muitas famílias estão tão acostumadas a se empanturrar de séries de tv ou
assistir ao próximo episódio de Star Wars que não percebem quantas velas
queimam de hora em hora nos altares do entretenimento estúpido. Não
precisamos nos preocupar com isso.
PENSAR LIVREMENTE
Você pode escolher o que ler, ouvir e assistir, em vez de se curvar à pressão
do que é popular. Isso também faz parte da formação de sua própria
opinião sobre como você gasta seu tempo e atenção. O recente vício de
olhar para telas está sendo desafiado pelos estudos de “captologia” que
explicam como esta tecnologia é projetada deliberadamente para manipular
e capturar nossa atenção. 18 Eu me pergunto quantas células cerebrais estão
morrendo por causa de horas de ininterrupta observação da tela.
São os “chefes da cultura” que determinam os fatos e valores expressos
pela mídia, entretenimento, políticos e partidos, educação e religião
popular. Eles nos querem amarrados às nossas telas. Esses chefes dominam
os marcadores culturais com suas manchetes, tweets, filmes, programas de
televisão, currículos, palestras e até mesmo sermões e ensino religioso.
Depois de tomar consciência de seu poder manipulador, você pode
“simplesmente dizer não”.
Tudo o que você vê impresso em papel, visualiza em uma tela ou ouve no
rádio, passa por um editor. Pode ser óbvio para a maioria, mas muitas
pessoas não percebem que há um editor entre você e qualquer informação
apresentada. Deixar de pensar criticamente significa que um editor se torna
dono de sua mente. O editor também é responsável pelo que não está
incluído. Os editores decidem qual notícia ou opinião pode ser vista por
seu público. Eles escolhem quem é convidado para o show, o assunto da
conversa e a duração de cada segmento. Resumindo, os editores escolhem o
que você aprenderá ou não em sua plataforma própria.
Torne-se seu próprio editor: pergunte a si mesmo sobre o que lê. Os fatos
e argumentos dão suporte à opinião do editor? Que informações ou
evidências essenciais estão faltando? Quais perguntas não foram feitas? A
apresentação é unilateral, com grande peso para um lado ou para o outro?
BONS LEITORES
Lembre-se da famosa alegoria da caverna de Platão, do livro vii da
República. 19 Os prisioneiros ficam sentados dentro da caverna,
acorrentados, vendo apenas sombras passando ao longo da parede de pedra.
Eles vêem o que está à sua frente e não conseguem virar a cabeça. Uma
chama acima e atrás deles envia a luz que passa por suas cabeças,
projetando-se em uma parede à sua frente. Entre o fogo e os prisioneiros,
há uma passarela. Sócrates pede a Glauco, seu interrogador, que imagine
pessoas carregando vários objetos ao longo da passarela de modo que a luz
projete uma imagem do objeto na parede frontal. Como não vêem mais
nada, os habitantes consideram somente aquilo que enxergam projetado na
parede como real.
Há uma boa razão para essa alegoria permanecer relevante em todas as
épocas. A predominância das telas leva diretamente à questão básica
colocada por Platão sobre o conhecimento. Nossa preocupação com as telas
nos torna prisioneiros voluntários. Segundo Nielsen, em 2016, o
americano médio passou mais de dez horas do dia olhando para uma tela. 20
Não precisamos de correntes ou alguém nos obrigando a assistir. Aceitar
tudo o que se lê na tela o torna um prisioneiro. Seu pensamento está sendo
feito por outra pessoa, um editor em quem você não deve necessariamente
confiar. Esse problema se multiplica de forma alarmante em uma sociedade
onde milhões estão fazendo o mesmo, tendo seus pensamentos e opiniões
formados por outra mente. Tornar-se seu próprio editor não significa
apenas questionar o conteúdo, mas também tomar consciência do meio
pelo qual o conteúdo é transmitido, seu poder de persuadir, criar
dependência, promover o vício ou até mesmo a auto-alienação.
Por exemplo, durante eventos ao vivo é alarmante observar a maioria da
platéia segurando seus telefones celulares para filmá-lo, enquanto seus olhos
se movem intercalando entre a imagem do vídeo e o próprio evento
filmado. Parece que quanto mais importante o evento, mais telefones
celulares são colocados no ar. Estar presente no evento, vivenciá-lo
plenamente, torna-se secundário em relação a registrá-lo. Essa atitude
narcisista, cujo fim é apenas poder dizer aos demais que “eu estava lá!”,
isola a pessoa de seu entorno imediato, tornando o registro do evento mais
importante do que a própria experiência vivida. Os vídeos substituem a
necessidade de memórias, assim como nossa crescente dependência de
dispositivos para lembrar coisas básicas, como números e datas, nos exime
de nossa capacidade de reconhecer essas e inúmeras outras coisas. A maioria
de nós está se tornando voluntariamente prisioneiro, construindo não
apenas nossas próprias correntes, como também a parede sobre a qual uma
versão escurecida da vida real é projetada.
Pergunte a si mesmo quais hábitos mentais você pode ter desenvolvido
em uma cultura dominada pela mídia social e intensa doutrinação cultural.
O uso das redes sociais diminuiu nossa capacidade de atenção, seja lendo,
vendo, falando ou ouvindo. Não é surpreendente a descoberta de um
estudo segundo o qual, entre os anos de 2000 e 2013, a média de atenção
caiu de doze para oito segundos, ou seja, o mesmo que um peixinho
dourado. 21 Outro estudo observa que o trabalhador de escritório médio
verifica e-mail trinta vezes por dia — quase oito vezes a cada hora de
trabalho. 22 A publicação online Slate Magazine fez uma pesquisa de quantos
de seus leitores lêem até o final um artigo. A maioria dos leitores chega ao
meio de um artigo e desiste rapidamente. A Slate concluiu que apenas cerca
de 5% das pessoas que acessam suas páginas estão realmente engajadas de
maneira significativa. 23
Hábitos de leitura online como esse desencorajam a leitura séria. Na
verdade, o tempo gasto em leitura pelos americanos diminuiu
drasticamente, apesar da venda de livros continuar forte. Talvez alguém
deva pesquisar a porcentagem de livros comprados que não foram lidos.
Um estudo de 2014 do us Bureau of Labor Statistics descobriu que os
americanos médios gastam dezenove minutos por dia lendo, enquanto
adultos entre 25 e 34 anos lêem oito minutos por dia nos fins de semana e
feriados e aqueles com idade entre 20 e 24 anos em média cerca de 10
minutos. 24 Qual é o destino da educação neste tipo de cultura? Caberá a
você, leitor, nadar contra a corrente da distração constante.
Um retorno sério aos clássicos requer atenção altamente focada. Em seu
recente e indispensável livro The Novel: A Biography, o crítico literário e
historiador Michael Schmidt repete o apelo de Eliot, Thoreau, Harold
Bloom e outros para “ficarmos quietos”:
Para se tornar um “bom leitor”, é necessário entregar-se a um regime de prazer concentrado. Não
se pretende ler um livro por dia (não há prazer necessário nisso), mas pode-se passar dois ou três
anos em um livro (como fiz com A montanha mágica de Thomas Mann), ler apenas partes de
outro, devorar um terceiro em uma única sessão. A leitura escolar é diferente da leitura que
fazemos para nós mesmos: voltada para os “resultados do curso”, ela implica ler sobre o romance
atordoado como uma criatura em um matadouro, enquanto uma classe rasteja sobre ele,
cutucando, avaliando, fatiando. 25

Bons leitores, acrescenta Michael Schmidt, desejam prolongar a leitura de


grandes livros. Somente no silêncio e na solidão a história se desenrolará e
seus significados começarão a jorrar. Textos complexos ou longos exigem
tempo e atenção, que a maioria dos leitores alega não ter o suficiente no
caso dos primeiros e, muitas vezes, realmente faltar no caso dos segundos.
Alegam que não “desfrutam” ou que ler o livro “parece trabalhoso”. “O que
eu ganho com isso?”. Se eles soubessem!
SPEM IN ALIUM
Achamos que a música exige menos da nossa atenção do que a leitura, mas
o mais provável é que a música que costumamos ouvir não exige nada de
nós: ritmos pesados de bateria, alguns acordes pegajosos de guitarra e um
cantor que balbucia uma letra, felizmente, inaudível. Os compositores
clássicos criaram obras altamente complexas e imediatamente atraentes,
mas trata-se de um apelo que faz o ouvinte querer escutar com mais
atenção. Esse é o caso de Thomas Tallis (1505–1585), um compositor
católico que serviu nas cortes de Henrique viii, Eduardo vi, Maria i e
Elizabeth i. Elizabeth não confiava nos católicos ao seu redor, mas Tallis
continuou a florescer sob seu reinado. Isso é surpreendente, já que, como
compositor católico, Tallis compôs brilhantemente no estilo polifônico que
Elizabeth desencorajou. A polifonia tornava as palavras da Escritura
ininteligíveis, de acordo com os críticos protestantes. Essa atitude em
relação à música sacra permeou a Europa protestante e se tornou uma
questão debatida pelos bispos católicos no Concílio de Trento (1545–
1563). Totalmente ciente da atitude de sua rainha em relação à polifonia,
Thomas Tallis compôs um moteto com quarenta linhas melódicas ou
partes. Spem in alium é corretamente considerada uma obra-prima
polifônica, mas não sabemos se Elizabeth a ouviu ou não. Sabemos apenas
que o compositor nunca foi enviado para a Torre.
As composições polifônicas geralmente contavam com quatro a oito
partes. Um moteto de quarenta partes está bem na sua cara; não há outra
maneira de colocar isso. Os resultados são espetaculares, como se Tallis
capturasse na música a visão do interior de uma catedral gótica. A música
floresce, expandindo-se cada vez mais para fora e para cima, enquanto por
dentro você ouve a interação contínua, chamada de contraponto, das
quarenta partes. Spem in alium 26 requer cinco coros de oito vozes cada —
cada corista cantando uma linha melódica separada, um grande desafio
para os cantores e o maestro.
O texto é incomum para um compositor da corte de Elizabeth i. Ele foi
tirado da passagem de Judite pouco antes de ela cortar a cabeça de
Holofernes: “Nunca coloquei minha esperança em outra pessoa que não
em Ti, Deus de Israel”. Tallis tinha visto algumas cabeças caírem enquanto
trabalhava na corte dos Tudor. Tallis tinha 20 anos quando São Thomas
More foi executado. Dada a atitude de Elizabeth em relação à polifonia, é
improvável que Tallis a tenha executado durante seu reinado. Os estudiosos
discordam; alguns dizem que foi executada em 1570, outros dizem que não
antes de 1610, quinze anos após a morte do compositor.
A boa música, como a grande poesia, facilita a atenção concentrada, assim
como no culto litúrgico a bela música nos ajuda a orar. A beleza, por sua
própria natureza, prende os olhos e os ouvidos. Talvez você tenha visto
vídeos de flash mobs no YouTube. Cantores e instrumentistas vestidos como
compradores comuns começam a cantar e tocar. Tudo começa com uma
única voz. Alguns clientes param e se viram para ouvir, enquanto outros
continuam andando, mas olham para trás. Então, outras vozes ou
instrumentos se juntam, e logo todos os clientes estão parados com grandes
sorrisos de espanto. O efeito é poderoso porque a beleza da música chega
inesperadamente e transforma uma viagem de compras comum com um
lampejo de alegria.

1 T. S. Eliot, “Ash Wednesday”, em The Poems of T. S. Eliot: The Annotated


Text, vol. 1, Collected and Uncollected Poems, ed. Christopher Ricks; Jim
McCue. Baltimore: Johns Hopkins Press, 2015, p. 97.
2 Firing Line funcionou por 33 anos (1966–1999) na pbs. John Kenneth
Galbraith, o principal economista de esquerda de sua época, estava
freqüentemente na linha de fogo com o apresentador William F. Buckley.
Nessa conversa de 11 de julho de 1996, eles discutiram: “Já aprendemos
alguma coisa sobre a boa sociedade?”, disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=vchsMpuf90g.
3 O Phil Donahue Show funcionou por 26 anos (1970–1996 em várias
redes). Olhando para os episódios, ele teve convidados muito interessantes
e provocantes de todos os pontos do espectro político. Mas sua maneira de
conversar com eles e interagir com o público muitas vezes explorava reações
emocionais em vez da razão. Aqui está um programa de março de 1993
sobre abuso sexual entre o clero católico com o Pe. Andrew Greeley, s.j.,
Barbara Blaine e Jason Berry: https://www.youtube.com/watch?
v=WBtUKALOvWA.
4 The Western Canon, p. 485.
5 Ibid., p. 484.
6 Ibid., p. 486.
7 Pensées, n.os 137, 67.
8 Walden não foi escrito enquanto Thoreau morava na cabana, mas sete
anos depois, em 1854. Henry David Thoreau, Walden; Or, Life in the
Woods. Dover Thrift Editions, 2016, loc. 1158 de 4224, Kindle.
9 Kathryn Schulz, “Pond Scum: Henry David Thoreau’s moral myopia”,
em The New Yorker, 19 de outubro de 2015, disponível em
https://www.newyorker.com/magazine/2015/10/19/pond-scum.
10 Donovan Hohn, “Everybody Hates Thoreau”, em The New Republic, 21
de outubro de 2015, disponível em
https://newrepublic.com/article/123162/everybody-hates-henry-david-
thoreau.
11 Depois de sua morte, Ayn Rand (1905–1982) angariou muitos
seguidores que abraçam a “virtude do egoísmo” de ambos os seus trabalhos
não-ficcionais e romances. Seus romances principais são A nascente (1943)
e A revolta de Atlas (1957). Desfrutei de ambos estes livros durante o
colegial, mas minha avaliação sobre eles caiu drasticamente à medida que
eu mergulhava nos clássicos.
12 Henry David Thoreau, Walden; Or, Life in the Woods. Dover Thrift
Editions, 2016, loc. 1158 of 4224, Kindle.
13 Jeremiah Purdy, “In Defense of Thoreau: He may have been a jerk, but
he still matters”, The Atlantic, 20 de outubro de 2015, disponível em
https://www.theatlantic.com/science/archive/2015/10/in-defense-of-
thoreau/411457/.
14 Há edição brasileira, Josef Pieper, Ócio e contemplação: Ócio e culto,
Felicidade e contemplação. Tradução de Alfred J. Keller. Campinas: Kírion,
2020 — nt.
15 Josef Pieper, Leisure: The Basis of Culture, introdução de T. S. Eliot,
tradução de Alexander Dru. Londres: Faber and Faber lts, 1952, pp. 20–
21.
16 Ibid., p. 53.
17 Ibid., p. 57.
18 Corentin Dautreppe, “The mind distracted: technology’s battle for our
attention”, 6 de março de 2019, disponível em
https://news.yahoo.com/mind-distracted-technologys-battle-attention-
034909034.html?soc_src=community&soc_trk=ma.
19 República, vii, 514–16, 168–69.
20 Jacqueline Howard, “Americans devote more than 10 hours a day to
screen time, and growing”, 29 de julho de 2016, disponível em
https://www.cnn.com/2016/06/30/health/americans-screen-time-
nielsen/index.html.
21 Kevin McSpadden, “You Now Have a Shorter Attention Span Than a
Goldfish”, time, 14 de maio de 2013, disponível em
http://time.com/3858309/attention-spans-goldfish/.
22 TJ. Ray, “The brain’s dwindling attention span”, em The Oxford Eagle,
23 de setembro de 2018, disponível em
https://www.oxfordeagle.com/2018/09/23/the-brains-dwindiling-
attention-span/.
23 Farhad Mojoo, “You Won’t Finish This Article: Why People Online
Don’t Read to the End”, Slate, June 6, 2013, disponível em
https://slate.com/technology/2013/06/how-people-read-online-why-you-
wont-finish-this-article.html.
24 Bijan Stephen, “You Won’t Believe How Little Americans Read”, em
time, 22 de junho de 2014, disponível em
http://time.com/2909743/americans-reading/.
25 Michael Schmidt, The Novel: A Biography. Boston: The Belknap Press at
Harvard, 2014, p. 9.
26 Existem muitas gravações excelentes de Spem in alium, mas sugiro
começar com esta do The Tallis Scholars, conduzida por Peter Philips:
https://www.youtube.com/watch?v=iT-ZAAi4UQQ.
capítulo viii
Relembrando: saber requer retaguarda

F oi só na casa dos cinqüenta anos que comecei a estudar história a


sério. Percebi que havia uma fraqueza em minha educação — a falta
de conhecimento histórico. Eu me via como uma pessoa com
educação clássica, um defensor dos Great Books de longa data. Sou formado
em filosofia e estudos clássicos pela University of Texas-Austin; cursei
Doutrina Cristã no Seminário Teológico de Princeton, bem como teologia
e literatura na Emory University. Fora da sala de aula, li os romances
clássicos do mundo todo, ouvi e estudei música clássica e, por fim, comecei
a assistir a filmes com a intenção de me familiarizar com a história do
cinema e todos os seus clássicos.
Como professor de filosofia, conhecia uma ampla cronologia da história
ocidental, mas não havia percebido minha necessidade de cavar mais
fundo, de fazer conexões que não aparecem apenas com uma visão geral.
Como muitos de nós, considerava a história como uma narrativa para fins
de memorização — uma série de épocas, cada uma com uma cultura
dominante; líderes e eventos importantes; idéias; formas de governo;
instituições; obras de arte — todas englobadas em uma linha do tempo
começando com sua ascensão, continuando com seu florescimento e
terminando com seu declínio e desaparecimento.
LIÇÕES DE HISTÓRIA
Uma lição que aprendi com o estudo histórico é que nenhum reino, não
importa quão dominante, dura para sempre. Lembre-se do apogeu dos
gregos, romanos, cartagineses, vikings, normandos e dos impérios da Grã-
Bretanha, Espanha, Alemanha e Portugal; as nações que chamamos de
Holanda, Espanha, França, Japão, Grécia, Itália e Rússia nasceram somente
no século xx.
Mais importante foi a compreensão de que a história ensinou um lado da
natureza humana diferente daquele que li na filosofia — chame-o de “lado
negro”. O que descobri com minhas leituras de história é simples — fui
ingênuo. Presumia que as pessoas geralmente fariam a “coisa certa”. A
leitura da filosofia de Platão, Aristóteles, São Tomás de Aquino e dos
tomistas modernos não me preparou para o que aprenderia sobre a
condição humana em meu “mergulho profundo” na história. Pode ser
devido à minha propensão filosófica, que enfoca o ideal para o homem e a
sociedade, o que todos devemos aspirar a ser e fazer. Mas quando leio, por
exemplo, sobre a conferência de paz em Versalhes após a Primeira Guerra
Mundial e suas conseqüências desastrosas, a teoria da virtude não é
suficiente. 1 O que foi o Tratado de Versalhes senão produto de “grandes
homens” com caráteres imperfeitos confrontando-se entre si por
reivindicações de idealismo, vingança, propriedade e culpa? Shakespeare,
não Aristóteles, teria me preparado para isso.
Li Shakespeare e Dostoiévski, mas não os havia levado muito a sério.
Minha única explicação é a seguinte: ao ler Irmãos Karamazov, Memórias do
subsolo, Macbeth, Ricardo iii e Rei Lear, não pensei em seus personagens
como contemporâneos, como pessoas do meu tempo ou comunidade.
Sentia-me distante deles, como se fossem personagens históricos, não-
fictícios. Por quê? Talvez eu tenha me distraído com o status desses livros
enquanto clássicos, ou seja, enquanto marcos da tradição ocidental. Ao
mesmo tempo, minha mente estava ficando profundamente marcada pelas
teorias da moralidade e das virtudes e não conseguia perceber a distância
existente entre os filósofos e os romancistas. Como um bom amigo uma vez
me disse: “Todos têm dentro si um pouco de mercenário”. Ele
provavelmente foi caridoso. É mais verdadeiro dizer que todos têm em si
um pouco de mercenário, mas alguns têm muito mais do que outros.
E quanto à minha fé cristã? O que ela me ensinou sobre a natureza
humana que me ajudaria a contextualizar os filósofos de uma forma mais
ampla: a primeira coisa que vemos a respeito do ser humano é sua Queda, e
alguns capítulos depois, ao ver a maldade dos homens, Deus inunda a
Terra (Gn 6, 5). Jesus Cristo é abandonado por todos — exceto um de seus
discípulos —, traído por Judas e negado três vezes por Pedro, a “rocha”. As
mesmas pessoas que o acolheram em Jerusalém com os ramos preferem
salvar Barrabás. Na própria história da Igreja, que contém todas as
reviravoltas de uma minissérie de dois mil anos, vemos períodos de
decadência e corrupção alternando-se com aqueles agraciados por uma
liderança sábia e sacrificial. Existe melhor exemplo de “homem de Deus”
pecador e imperfeito do que o Rei Davi? A história e a experiência humana
ajudaram a eliminar minha resistência em ver a natureza humana em
estado bruto.
Quero acrescentar, porém, outra razão, que foi motivada por um
comentário feito pelo escritor inglês John Cowper Powys (1872–1963) 2
sobre Dostoiévski: “Seu ideal é a santidade — não a moralidade”. 3 Pensar
demais no tema da moralidade, creio, privou-me de reconhecer a
espiritualidade dos personagens que pecam muito. Colocando de outra
forma: a condição moral de um personagem não é o que há de mais
importante a seu respeito. E é um erro comparar seus aspectos morais
positivos ou negativos com sua posição diante de Deus. Isso teria resultados
devastadores para todos nós.
BUSCANDO
Faço parte de uma geração que concebia a história como algo a se
memorizar — muitas datas, nomes, eventos e lugares. Se os fatos estivessem
associados a algo significativo, como as causas da Guerra Civil, eles seriam
lembrados. Embora minha geração estivesse ciente do significado daquilo
que memorizávamos, a educação moderna deixou de exigir a memorização
de cronologias, datas significativas e figuras históricas proeminentes. Os
alunos ainda precisam memorizar as tabelas de multiplicação, mas o
significado de anos como 1066, 1215, 1492, 1776, 1789, 1860, 1917 e
1963 já não importa mais. Por quê? Porque temos a internet. Alunos e
professores não reconhecem mais a necessidade de memorização nas
ciências humanas, mas passam por todo o currículo pesquisando no
Google.
Em sua crítica feroz à educação contemporânea, Daisy Christodoulou
afirma: “Não podemos depender apenas das buscas e pesquisas
superficiais”. 4 A autora parte do pressuposto de que a digitalização nos
livrou da necessidade de memorizar e criar um reservatório de memória de
longo prazo: “Quanto mais conhecimento temos, mais problemas podemos
resolver. A razão pela qual precisamos desse conhecimento na memória de
longo prazo e não podemos confiar que ele esteja no ambiente é que nossas
memórias operacionais são limitadas. A memória operacional pode conter
apenas três a sete novos pedaços de informação de cada vez”. 5
A memória operacional, que é a reflexão consciente no trabalho, é
limitada e depende da memória de longo prazo para evitar que se
sobrecarregue. A memória operacional se utiliza dos fatos guardados pela
memória de longo prazo. Digamos que você esteja lendo um artigo sobre
tumultos em Paris e o autor compara os manifestantes ao “Terror” e aos
“jacobinos”. A memória de longo prazo encaminha para a memória
operativa a compreensão de ambos os termos da Revolução Francesa. Você
pode continuar lendo sem ter que saltar a referência ou pesquisá-la.
Quando somos obrigados a buscar constantemente informações na
internet, esgotamos os recursos da memória operacional, o que “significa
que não temos aquele espaço disponível para processar a nova informação
ou combiná-la com outra informação preexistente”. 6
Como um mestre de xadrez, por exemplo, jogaria sem a combinação da
memória de longo prazo com a memória operacional?
A tecnologia coloca imediatamente uma enciclopédia inteira ao alcance de
nossas mãos, mas não substitui uma memória de longo prazo bem-
educada. A freqüência com que procuramos informações no computador
ou celular deve nos alertar para o quão pouco comprometemos nossa
memória e para a necessidade de conhecer os fatos em uma discussão séria.
No entanto, buscar um único fato isolado é como ter um mapa topográfico
mostrando apenas colinas e montanhas, mas sem as coordenadas que as
conectam. Pesquisas no Google não podem fornecer um amplo
conhecimento de retaguarda histórica.
Portanto, não há como contornar a memorização, prática que se tornou
tão impopular na educação atual. Os alunos precisam memorizar mais em
outras matérias além da matemática básica. A terceirização de nossa
memória para internet enfraquece o poder da memória e prejudica nossa
capacidade de distinguir fatos de ficção em fontes online.
A estudiosa de história cultural Camille Paglia defende o retorno aos
“cursos introdutórios de reforço com base na história e cultura mundiais,
indo da Antigüidade ao modernismo”. 7 Ela tem razão: os alunos de
qualquer idade precisam de um enquadramento histórico para entender sua
época. Pessoalmente, necessito de uma linha do tempo histórica para
entender o que estou pensando: digamos, a Guerra Civil Espanhola, ou um
diretor de cinema, ou mesmo uma idéia. Quando escrevi meu livro sobre a
felicidade, organizei minha pesquisa em torno da história da felicidade
enquanto idéia; só então pude ver onde as fissuras haviam aparecido,
permitindo-me focar mais intensamente na mudança essencial de seu
significado. 8
Paglia observa que a cultura pop substituiu pesquisas robustas de história,
tornando a educação refém de tudo que é frívolo, fugaz e meramente
reativo. 9 Qualquer um que tenha sido professor nos últimos trinta anos
sentiu a pressão dos alunos para incluir nas aulas o material que estão
consumindo, seja música pop, videoclipes, filmes de super-heróis ou o que
está em alta na tv. A referência à cultura atual, sem dúvida, também
pertence à sala de aula — não há como evitá-la e não há razão para isso —,
mas tais referências devem ser tratadas como dispositivos pedagógicos, não
como fins em si mesmos.
E. D. HIRSCH
Ninguém nos Estados Unidos fez mais para reformar a educação do que E.
D. Hirsch. Hirsch começou sua carreira como estudioso de literatura com
livros sobre poetas românticos, interpretação crítica e composição, trabalho
que o conduziu a uma disputada cadeira de literatura na Universidade da
Virgínia. O foco de sua pesquisa e de seus escritos mudou quando
começou a “sentir-se culpado” pelo curso de redação do primeiro ano da
uva, o qual considerava inadequado. 10
Para obter mais informações, dividiu uma turma de alunos em dois
grupos para um exame de compreensão de leitura: um composto de alunos
que já possuíam um amplo conhecimento de história e ciências humanas; o
outro com alunos sem esse conhecimento e que eram oriundos de lares
marcados pela pobreza e negligência. O primeiro grupo teve um
desempenho muito melhor do que o segundo. Hirsch encontrou então
“uma maneira de medir as variações na habilidade de leitura atribuíveis a
variações no conhecimento de base relevante do público em questão”. 11
Hirsch começou a compartilhar suas descobertas e suas preocupações
sobre o tipo de conhecimento que faltava a muitos alunos em seu ensaio
seminal “Cultural Literacy” na American Scholar, 12 seguido por seu livro
best-seller de 1987, Cultural Literacy: What Every American Needs to Know. 13
Este último continua sendo uma referência no debate sobre o que as
pessoas precisam saber.
Na época, como um jovem professor universitário, lembro-me da
polêmica que Hirsch despertou. Hirsch expôs uma falha na educação
americana em geral e a reação do sistema foi no mínimo previsível. Os
críticos o acusaram de impor a cultura européia aos alunos, ao mesmo
tempo que ignorava a diversidade racial e de classe. Os adeptos do
conservadorismo cultural — não aqueles que acreditava serem seus aliados
naturais — o abraçaram. Hirsch não se intimidou nem desanimou. Hirsch
não era um conservador: ele foi um democrata ao longo da vida, um
progressista cujo objetivo era beneficiar as pessoas de origens
desfavorecidas. 14 No ano seguinte, com a ajuda de dois co-autores, Hirsch
publicou uma resposta a seus críticos, The Dictionary of Cultural Literacy,
que vendeu mais de um milhão de cópias. 15
Hirsch escreveu na década de 1980, muito antes dos problemas suscitados
pelo aumento do uso constante da internet discutidos por Daisy
Christodoulou. Seus argumentos, no entanto, tornaram os estudiosos
posteriores aptos a reconhecer os perigos do excesso de confiança na
tecnologia. A preocupação imediata de Hirsch era o novo enfoque no
ensino de habilidades práticas em preparação para o mundo do trabalho,
enquanto os “estudos sociais” reduziam a história e os clássicos a uma
pequena parte do currículo. Segundo Hirsch, o que os professores não
perceberam é que os alunos estarão mais bem preparados para adquirir
habilidades quanto maior for a retaguarda de conhecimentos prévios
adquiridos.
Em outras palavras, usar o ambiente formal da escola para ensinar
habilidades sem qualquer conexão com algum corpo de conhecimentos
prévios não funciona. Por exemplo, eu poderia ensinar um menino a
rebater uma bola de beisebol, mas para jogar beisebol ele teria que aprender
as regras e muito mais. Jogar bem requer a assimilação profunda do
conhecimento de tal modo que este pareça instintivo: você está jogando na
terceira base, um rebatedor poderoso entra na caixa do rebatedor para
rebater. Para prever onde ele acertará a bola, é necessário ter consciência de
como o arremessador está jogando naquele dia; onde no campo um
rebatedor normalmente acerta a bola; se alguém está na base; observar cada
arremesso conforme chega à caixa do rebatedor; como o rebatedor se
inclina e assim por diante. O mesmo pode ser dito de todas as habilidades e
práticas; todas requerem um grande corpo de conhecimentos armazenados
na memória de longo prazo a fim de informar o momento presente.
Dê um passo adiante e pergunte a si mesmo quais conhecimentos gerais
são necessários para ser pai ou cidadão. Uma pessoa “letrada” e instruída
pode ler, digamos, O velho e o mar de Hemingway, e compreender seu
significado básico. Hirsch amplia a noção de literacia para ser aplicada a
toda a vida de uma pessoa dentro de uma cultura e de uma nação. A
literacia compartilhada permite a solidariedade humana, a compreensão
mútua e a cidadania responsável. Esta última não é uma preocupação trivial
— o conhecimento é necessário para que os cidadãos de uma república
democrática protejam suas liberdades e evitem o totalitarismo.
Esta é uma afirmação substancial que expandirei e defenderei em
capítulos posteriores. A falta de literacia — ou analfabetismo cultural — é
a única maneira de explicar — exceto por ignorância voluntária — o
número de pessoas que continuam a acreditar que o chamado à liberdade
para todos significa igualitarismo perfeito, uma espécie de Estado ideal.
Existem muitos exemplos agora que desmentem essa noção, exemplos de
profetas igualitários se voltando para o totalitarismo e fazendo uso de
prisões e assassinatos em massa por decreto ditatorial para garantir que sua
versão de “igualdade e justiça” vença. Modern Times: The World from the 20s
to the 90s, de Paul Johnson, descreve em detalhes chocantes e precisos
como o século xx se tornou o mais sangrento da história mundial graças
aos profetas da igualdade. 16
Embora a obra de Johnson esteja muito bem fundamentada em dados
históricos e análises, é, infelizmente, pouco conhecida: os jovens continuam
apaixonados por várias formas de coletivismo em grande parte porque não
aprenderam história alguma, incluindo a história de seu próprio país e seus
documentos de fundação. Mais recentemente, o apelo de alguns para
acabar com o colégio eleitoral prosseguiu sem qualquer referência aos
ferozes debates entre os Fundadores sobre as razões pelas quais os Estados
menos populosos deveriam ser protegidos da dominação dos maiores. O
governo, não a política, é talvez a área mais crucial em que falta literacia
cultural, porque afeta diretamente as razões pelas quais os cidadãos votam.
Um ano antes de publicar Cultural Literacy, Hirsch criou a Core
Knowledge Foundation partindo do pressuposto de que “todas as crianças
em uma democracia diversa merecem acesso a conhecimentos
capacitadores”. 17 O currículo recomendado pela fundação enfatizou a
importância de fornecer o conhecimento de base para entender como os
Estados Unidos são governados.
MENTALIDADES EMOCIONAIS
A preocupação com a reforma educacional continua. Greg Lukianoff e
Jonathan Haidt, professores autoproclamados “liberais à moda antiga”,
publicaram uma crítica à educação americana, que, surpreendentemente,
recebeu críticas muito positivas. Em The Coddling of the American Mind:
How Good Intentions and Bad Ideas Are Setting Up a Generation for Failure
[O afago da mente americana: como boas intenções e más idéias estão
preparando uma geração para o fracasso], os co-autores atacam as três
“grandes inverdades” da educação atual — “fragilidade”, “raciocínio
emocional” e a mentalidade do “nós contra eles”. 18 É óbvio que a
pressuposição de fragilidade exige menos do professor e menor dificuldade
— menos memorização, tarefas de leitura mais curtas, salpicos de cultura
pop e evitar desafios intelectuais diretos. Os autores têm uma visão oposta:
os jovens são “antifrágeis”; portanto, é preciso “preparar a criança para a
estrada, não a estrada para a criança”. 19
A cura dos autores para a fragilidade do aluno é a terapia cognitivo-
comportamental, cujo objetivo é reformular seus sentimentos para que
estes pareçam menos temíveis. Os exemplos são típicos: ao perder um
evento esportivo importante, o aluno deve se recompor logo em seguida
reformulando a derrota como “uma experiência de aprendizado” ou
dizendo a si mesmo “estarei mais bem preparado da próxima vez”.
O cerne do raciocínio emocional, ao contrário, é a suposição de que se
deve “sempre confiar em seus sentimentos”. Os campi das faculdades estão
alimentando o raciocínio emocional ao não convidar palestrantes que
causam ansiedade em alguns alunos ou oferecendo aconselhamento a
qualquer um que se sinta traumatizado pela mera presença de um
determinado palestrante. A atitude do “nós contra eles” permeia a cultura e
é endêmica entre os meios de comunicação, a quem os autores dão o
seguinte conselho: “Dê às pessoas o benefício da dúvida. Use o princípio da
caridade”. 20 Em outras palavras, faça um esforço “para interpretar as
declarações de outras pessoas da melhor ou mais razoável maneira possível,
não da pior ou mais ofensiva possível”. 21 A política de identidade,
acrescentam, deve ser monitorada nas escolas, pois pode levar a uma forma
de pensamento de grupo que denominam “política de identidade do
inimigo comum”. 22 Todas essas “inverdades”, tal como as chamam os
autores, constituem obstáculos para uma educação rigorosa e desafiadora
que requer memorização e o enfrentamento de matérias difíceis,
especialmente aquelas que desafiam as pressuposições mais básicas dos
alunos.
Camille Paglia insiste na adição de duas áreas de estudo às pesquisas
históricas — história militar e história das religiões. 23 História das religiões,
obviamente, uma vez que serviram de alicerces a todas as civilizações, sem
exceção. Em minha educação, a religião recebeu alguma consideração, e a
história militar parou na Guerra Revolucionária e na Guerra Civil. A
cobertura de ambas foi superficial. É estranho que os alunos nunca
ponderem a razão pela qual milhões de homens combatiam em meio a
metralhadoras, morteiros, artilharia e rifles inimigos entrincheirados em
bunkers e trincheiras. No primeiro dia da Batalha de Somme, 1 de julho de
1916, houve 57.470 baixas britânicas, 19.240 mortos, incluindo 60% do
corpo de oficiais. Após 141 dias de combate, houve 1,1 milhão de baixas
em ambos os lados. Após 150 dias, os britânicos avançaram dez
quilômetros. 24
Como alguém deve reagir ao tomar consciência das deficiências de sua
educação? O ponto de partida poderia ser este: tornar-se proficiente em um
único assunto — talvez um período ou pessoa que já desperte seu interesse.
Meu motivo para fazer essa recomendação é simples e direto: qualquer
pessoa que tenha adquirido conhecimento suficiente para se tornar
proficiente em qualquer assunto sabe que é preciso tempo, diligência e
paciência. Talvez o leitor já tenha adquirido algum conhecimento profundo
em alguma área. Neste caso, você sabe o tipo de exercício que tenho em
mente. O importante é que o conhecimento seja buscado por si mesmo e
não para fins pragmáticos.
Escolha algo que o intriga genuinamente. Sua curiosidade por si só o
puxará em momentos de distração, exaustão e confusão. Escrevi dois livros
motivado por um intenso interesse — um livro sobre a história da
felicidade 25 e outro sobre as interseções entre religião e política desde os
anos 1960. 26 Algo que cada um dos projetos me ensinou foi o quão pouco
eu sei. Alguns dos insights que acreditava serem meus, encontrei
posteriormente em livros publicados muito antes.
Como o leitor já deve ter percebido, cavar fundo o suficiente para se
tornar proficiente não é uma tarefa simples, mas acredite em si mesmo. Ao
escolher um projeto, a última coisa que deve atrapalhar é o medo. É natural
nos sentirmos inseguros quando enfrentamos uma tarefa nova e exigente.
Se você decidir correr uma maratona, fazer cem flexões, aprender um
idioma, aprender a jogar golfe ou a tocar um instrumento musical,
mergulhe verdadeiramente, deixando de lado todas as razões pelas quais
isso não pode ser feito.
Aceitar a dificuldade não é mais um hábito adquirido na maioria das
escolas e universidades. Como vimos, o relato de Greg Lukianoff e
Jonathan Haidt mostram como a educação americana é culpada por
“mimar” os alunos e “preparar uma geração para o fracasso”. 27 O
enfrentamento de um desafio intelectual é o modo pelo qual a mente cresce
e a compreensão adquire mais complexidade e nuances. À medida que o
poder da mente cresce com o exercício, aumenta também a capacidade de
olhar com maior profundidade os textos e a arte.
“Toda leitura é releitura”, disse um professor. Para escrever o livro que
você está lendo agora, reli todos os textos que discuto, alguns dos quais não
tocava há décadas. Mas, com toda a franqueza, nunca gostei tanto deles, ou
aprendi tanto com eles, como no ano passado, enquanto fazia minha
pesquisa. Pense nisso quando começar a vasculhar as caixas para encontrar
seus livros antigos.

1 Margaret Macmillan, Paris 1919: Six Months That Changed the World.
Nova York: Random House, 2002.
2 John Cowper Powys é pouco lido atualmente, mas merece ser conhecido
por qualquer um que admire boa escrita e narrativa. Seus romances, muitas
vezes infundidos pela mitologia galesa, são conhecidos por sua escrita
maravilhosa, sensibilidade à natureza e personagens sensuais: um bom lugar
para começar seria um destes: Wolf Solent (1929); A Glastonbury Romance
(1932); Maiden Castle (1936); Owen Glendower (1941); ou Porius (1951).
3 John Cowper Powys, One Hundred Best Books: With Commentary and an
Essay on Books and Reading. Nova York: G. Arnold Shaw, 1916, p. 36.
4 Daisy Christodoulou, Seven Myths About Education. Londres: Routledge,
2013, p. 49.
5 Ibid., 61.
6 Ibid., 64.
7 Provocations, p. 381.
8 Deal W. Hudson, Happiness and the Limits of Satisfaction. Lanham, md:
Rowman & Littlefield Publishers, 1995.
9 Provocation, p. 406.
10 Sol Stern, “E. D. Hirsch’s Curriculum for Democracy”, em City Journal,
outono, 2009, www.city-journal.org/html/e-d-hirsch’s-curriculum-
democracy-13234.html.
11 Ibid.
12 E. D. Hirsch, American Scholar, primavera, 1983: parte do artigo pode
ser encontrado aqui: https://3o83ip44005z3mk17t31679f-
wpengine.netdna-ssl.com/wp-
content/uploads/2018/03/From_Cultural_Literacy_1983.pdf.
13 Id., Cultural Literacy: What Every American Needs to Know. Nova York:
Vintage Books, 1988.
14 Eric Liu, “What Every American Should Know: Defining common
cultural literacy for an increasingly diverse nation”, em The Atlantic, 03 de
julho de 2015, disponível em
https://www.theatlantic.com/politics/archive/2015/07/what-every-
american-should- know/397334/.
15 E. D. Hirsch, Joseph Fand Kett e James Trefell, The Dictionary of
Cultural Literacy: What Every American Needs to Know. Boston: Houghton
Mifflin Harcourt; Revised, Updated edition, 2002. Publicado pela primeira
vez em 1988 e revisado em 1993.
16 Paul Johnson, Modern Times: The World from the 20s to the 90s.
Londres: Weidenfeld & Nicolson, 1983, pp. 413–31.
17 https://www.coreknowledge.org.
18 Greg Lukianoff, Jonathan Haidt, The Coddling of the American Mind:
How Good Intentions and Bad Ideas Are Setting Up a Generation for Failure.
Nova York: Penguin Press, 2018, p. 4.
19 Ibid., p. 237.
20 Ibid., p. 243.
21 Ibid., pp. 243–44.
22 Ibid., p. 244.
23 Provocations, p. 398.
24 Jörn Leonhard, Pandora’s Box: A History of the First World War.
Tradução de Patrick Camiller. Cambridge, Massachusetts: The Belknap
Press of Harvard University, 2018, p. 414.
25 Happiness and the Limits of Satisfaction [Felicidade e os limites da
satisfação]. O que despertou minha curiosidade foi ler como Aristóteles
equiparava a felicidade a uma vida virtuosa e não a um tipo de sentimento.
Procurei as razões pelas quais a felicidade se dissociava de uma vida moral.
26 Deal W. Hudson, Onward Christian Soldiers: The Growing Political
Power of Catholics and Evangelicals in the United States. Nova York:
Threshold Editions, 2010.
27 The Coddling of the American Mind, p. 9.
capítulo ix
Encontrando o ponto arquimédico:
a batalha pela natureza humana

N os últimos cinqüenta anos, vivemos o que é chamado de mundo


“pós-verdade”. 1 Este mundo tem um nome — pós-moderno. O
termo pós-modernismo tem sido usado para descrever mudanças na
arquitetura, pintura, música ou literatura. Muito mais grave é a rejeição
pós-moderna das noções clássicas ocidentais de verdade, objetividade e
natureza humana. O pós-modernismo não apareceu sem aviso — esteve em
desenvolvimento ao longo dos séculos. Com o Renascimento e a Reforma,
as certezas do mundo antigo e medieval começaram a ser contestadas por
céticos como Michel de Montaigne, Giordano Bruno, Francis Bacon,
Pierre Gassendi, René Descartes e, o mais importante, Thomas Hobbes. 2
Seu ceticismo, com suas implicações mais profundas, não se tornou parte
da corrente principal de pensamento até o século xix, principalmente na
obra de Friedrich Nietzsche e seu anúncio da “morte de Deus”.
Deus está morto, afirma Nietzsche, “porque nós o matamos”. 3 Nietzsche
não é um observador imparcial do declínio da fé religiosa; ele monta um
ataque intelectual à idéia de qualquer Absoluto. Nietzsche rejeita a
necessidade do falso conforto de um mundo eterno. Sua tarefa é erradicar a
religião, agir como um “machado que cortará pela raiz a ‘necessidade
metafísica’ dos homens”. 4
Assim, os expoentes do pós-modernismo 5 reviram os olhos para as noções
de verdade, incluindo a categorização por definição. O dicionário Merriam-
Webster define o termo de forma apropriada, embora de pouca ajuda, como
“a era após o modernismo” e “de, relacionada a, ou sendo uma teoria que
envolve uma reavaliação radical das pressuposições modernas sobre cultura,
identidade, história ou linguagem”. Se você considera essa definição menos
do que suficiente, você não está sozinho. Para entender como chegamos ao
ponto em que tantas pessoas crêem que toda verdade é relativa, entender o
pós-modernismo é crucial.
Pessoas comuns acreditam que a verdade existe e vivem suas vidas de
acordo com isso. Dois mais dois é igual a quatro, não fique parado nos
trilhos enquanto o trem se aproxima, e assim por diante. Se você chegar
atrasado ao trabalho muitas vezes, seu chefe tem o direito de demiti-lo,
apesar de quais possam ser suas teorias avançadas sobre tempo e espaço. E
não é que as pessoas que vivem uma vida simples e baseada na realidade
ignorem que os fatos podem ser interpretados de maneiras diferentes. Uma
formatura de segundo grau pode ser simultaneamente um evento público
necessário e um momento de reconhecimento de realizações; um momento
de profunda alegria para a família do formando e o fim de uma era para
um grupo de amigos.
Discordâncias sobre a interpretação de coisas e eventos não levam pessoas
normais a concluir que a verdade não existe. A realidade se mantém, e
podemos saber muito sobre ela. Pessoas comuns se apóiam em verdades de
vários tipos em tudo o que dizem ou fazem: imagine uma vida em que não
se pode confiar em mapas, relógios, termômetros, padrões, médicos,
professores, engenheiros, mecânicos de automóveis, as instruções sobre seus
medicamentos e assim por diante. Independentemente de quão originais e
estimulantes sejam suas idéias sobre “lugar”, o policial ainda lhe multará se
ultrapassar a velocidade permitida.
“ADEUS” À VERDADE
Os pós-modernistas, é claro, não estão preocupados com essas coisas —
eles têm que confiar nos marcadores da realidade como todo mundo. Eles
estão mais preocupados em reinterpretar verdades sobre a natureza
humana, a moralidade, as normas sociais e os valores. Em outras palavras,
eles querem revisitar e reconstruir o que significa ser humano. Da
perspectiva pós-moderna, os relatos tradicionais da natureza e do
significado humanos não se aplicam mais. As afirmações verdadeiras sobre
o certo e o errado não podem ser universalizadas: elas pertencem à época e
à sociedade que as articulou. A verdade, como todo conhecimento, é
criada, não descoberta. O conhecimento em si não tem valor objetivo, pois
é determinado por aqueles que estão no poder de uma época para outra.
Alguém pode perguntar: Por que entrar neste poço sem fundo? Por
“justiça” e “liberdade”, é claro. Uma vez que a cultura ocidental é
primariamente produto de homens brancos, principalmente heterossexuais,
para os pós-modernistas sua tradição é uma expressão apenas do ponto de
vista daqueles que estão no poder. Eles vêem as reivindicações de verdade
como expressões de poder, a tentativa de um grupo de definir a verdade
para outros que não são brancos, homens ou heterossexuais. Riqueza e
classe social também são fatores de sobreposição.
O pós-modernismo começou mais ou menos na metade do século xx nas
universidades, aqueles lugares únicos, protegidos do livre mercado de idéias
e do escrutínio moral, onde teorias e conceitos que negam a realidade
podem ser incubados. Sua aparição na esfera pública se deu na revolução
sexual, que começou em 1967 e que continua até hoje; suas manifestações
mais recentes, incluindo a “ideologia de gênero”, são um conjunto de
crenças que corromperam a academia e estão transformando quase todas as
instituições no Ocidente. De acordo com essa visão, gênero não é apenas,
como foi historicamente, uma característica das linguagens que possuem
traços masculinos e femininos. Os pós-modernistas na academia vêm há
décadas se apropriando dessa construção lingüística e tentando aplicá-la à
sexualidade humana real, alegando que até o gênero biológico é uma
construção cultural. E se isso for verdade, então a tradicional dualidade
biológica do sexo masculino e feminino é em si uma construção, criada
pelos poderes do homem branco para impedir que as pessoas descubram
toda a gama de gênero e sexualidade, uma ferramenta de opressão.
Não é difícil ver como o pós-modernismo levou a tal teoria e por que ela
ficou confinada nas universidades até o início do século xxi, quando
finalmente escapou do confinamento acadêmico e passou a afetar as
instituições e o discurso público. É impressionante como uma teoria obtusa
e obscura se tornou rapidamente uma causa moral tão importante, a ponto
de, já em 2015, a cidade de Nova York reconhecer oficialmente 31 gêneros.
6
No início de 2019, uma grande variedade de fontes coloca o número de
gêneros entre algo em torno de 2 e 121, mas parece que poucas publicações
importantes estão preparadas para oferecer um número específico.
Em sua encíclica Fides et Ratio [Fé e razão] de 1998, o Papa João Paulo ii
abordou a negação pós-moderna da verdade e a possibilidade ou não de
conhecermos a realidade. “Quer admitamos ou não, chega para todos o
momento em que a existência pessoal deve estar ancorada em uma verdade
reconhecida como final, uma verdade que confere uma certeza não mais
aberta a dúvidas”. 7 Temos de ser capazes de saber as verdades básicas com
alguma “certeza” (um alto grau de certeza) para viver, diz o Papa. Para
alguns, pode parecer irônico que foi necessário um homem da Igreja
lembrar ao mundo que a Igreja afirma a capacidade da mente humana de
conhecer a realidade, em maior ou menor grau. A encíclica apresenta um
ponto adicional sobre as conseqüências para a cultura: Como a própria
verdade é parte integrante da criação da cultura, uma cultura sem verdade
perde sua conexão com o passado, sua piedade, e separa a geração presente
da sabedoria acumulada por seus ancestrais.
Independentemente da sua fé, olhe ao redor e veja se isso não descreve o
que aconteceu conosco no mundo ocidental?
O pressuposto historicista pós-moderno, juntamente com seu uso
deliberado de técnicas desconstrutivas, colocou o trabalho das
humanidades em uma nova direção — dissecar grandes obras literárias e
reduzi-las a seus contextos históricos, culturais, sexuais e outros contextos
limitados. Fazer isso nos libertará dos grilhões das estruturas e normas
lingüísticas do passado (pós-estruturalismo), abrindo novas perspectivas
para o conhecimento e esforço humano. Os praticantes desses tipos de pós-
modernismo vêem a relevância como algo meramente ligado à cultura.
Shakespeare não foi o maior dramaturgo (e talvez poeta) da história da
civilização ocidental; ele era apenas um homem branco, heterossexual e
provavelmente católico, cuja prosa sedutora escravizou gerações com seu
sexismo opressor, racismo etc. A mesma desconstrução foi aplicada às obras
e aos criadores que compõem a maior parte do Cânone ocidental, deixando
os departamentos de humanidades cheios de estudantes de graduação que
não fazem nada senão projetar suas propensões sexuais nos clássicos e
condenar novamente os criadores em termos ainda mais severos.
O que descrevo aqui não apenas domina o ensino superior, mas também
fez parte do ensino público em todos os níveis. Os alunos que estudam um
poema, peça, romance, teoria, ciência, costumes ou leis estão sendo
instruídos a considerá-los como produtos culturais da classe social que os
criou. Dentro da classe social dominante, outros fatores também devem ser
considerados, particularmente raça, gênero, sexualidade, educação.
A PROLE PÓS-MODERNA
No que foi corretamente chamado de “segunda onda”, 8 o pós-modernismo
gerou outras áreas de pesquisa e escrita, que se tornaram privilegiadas na
academia: multiculturalismo, etnocentrismo, estudos pós-coloniais, estudos
queer, estudos de mulheres, estudos feministas e estudos lgbtq. Tudo isso
representa não apenas disciplinas acadêmicas, mas formas de ativismo
político que visam abordar a desigualdade e a injustiça. A voz pós-moderna
ouvida com mais freqüência pelo público em geral é apropriadamente
descrita na passagem a seguir. Pessoas bem-intencionadas que perguntam
por que a solução para a política de identidade não é um apelo a “todos nós
enquanto seres humanos” podem encontrar a resposta para essa pergunta
aqui: “A mudança epistêmica pós-moderna que ocorreu dentro desses
movimentos mudou o foco do liberalismo universal — todos merecem
direitos e liberdades iguais, independentemente de sua raça, sexo,
sexualidade, identidade de gênero, nacionalidade, credo, capacidade física
— para a política de identidade — os indivíduos são parte de vários
coletivos baseados em raça, sexo, sexualidade, identidade de gênero,
nacionalidade, credo, capacidade física, todos experimentam as coisas de
maneira diferente e a ação contra a desigualdade deve ser filtrada por meio
dessas identidades”. 9 Em outras palavras, como as pessoas sofreram
injustiças por causa de sua identidade como mulher, latino ou
homossexual, elas exigem que suas “queixas” sejam tratadas nos mesmos
termos.
Harold Bloom chama os vários ramos do pós-modernismo de “Escola do
Ressentimento”. 10 Seus praticantes, ele explica, se ressentem da grandeza
que veio antes deles e exigem atenção para si enquanto estudiosos. Virgílio,
Dante e Shakespeare só são considerados excelentes, quando muito, com
base apenas em seus valores estéticos. O ressentimento dos estudiosos pós-
modernistas eclode quando se espera que respeitem, ensinem e escrevam
sobre essa forma de grandeza, a qual eles rejeitam e não reconhecem. “Ou
existiam valores estéticos, ou existiam apenas a sobredeterminação de raça,
classe e gênero. Você tem de escolher”, diz Bloom. 11
Antes do pós-modernismo, os estudiosos não ignoravam fatores culturais,
históricos e biográficos ao estudar o passado. Veja a Revolução Francesa,
por exemplo. Poderíamos encher uma pequena biblioteca com os livros
sobre a miríade de fatores e números que causaram a queda de Luís xvi, da
República Francesa e que levaram ao Terror. 12 Uma influência direta sobre
a revolução foi a Declaração da Independência dos Estados Unidos, escrita
treze anos antes, que continha esta declaração notável: “Consideramos essas
verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados
iguais, que são dotados por seu Criador com certos Direitos inalienáveis,
entre eles a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade”. Em 1789, a
Declaração dos Direitos do Homem foi lida na Assembléia Nacional
Constituinte. O artigo 1 começa: “Os homens nascem e permanecem livres
e iguais em direitos”.
Muitos de nós entendem essas declarações como senso comum, prestando
pouca atenção à sua novidade no contexto do século xviii, quando as
monarquias ainda dominavam. No entanto, o que os historicistas e seus
descendentes intelectuais, os pós-modernistas, pensam delas? A igualdade e
os direitos humanos são verdades fundamentais evidentes sobre a existência
humana? Em seu livro seminal, Gramatologia, Jacques Derrida nega a
compreensão tradicional de racionalidade e verdade. “A ‘racionalidade’ […]
que rege uma escrita assim ampliada e radicalizada, não nasce mais de um
logos. Além disso, inaugura a desconstrução, não a demolição, mas a
dessedimentação, a desconstrução de todas as significações que têm sua
origem na do logos. Particularmente o significado de verdade”. 13 Por
“logos”, Derrida quer dizer a suposição clássica de que o mundo pode ser
conhecido por meio da razão como um todo abrangente. O pós-
modernismo não considera o mundo ou a existência humana como tendo
coerência ou propósito.
Como, então, podem defender os direitos humanos se toda verdade é
relativa e vinculada à época em que foi declarada? A segunda onda de pós-
modernistas politicamente ativos apela aos direitos humanos e aos
princípios de igualdade e justiça. Mas como, dadas suas premissas, eles
podem considerar as concepções de igualdade e direitos moralmente ou
legalmente obrigatórias? Os pós-modernistas negam verdades evidentes por
si mesmas. Em ambos os lados do Atlântico, as declarações foram escritas
por homens brancos das classes média ou alta. Como esses pensamentos
podem ser diretamente relevantes para homens e mulheres em qualquer
lugar e a qualquer hora?
Hoje, em um nível popular, testemunhamos pessoas usando expressões
como “minha verdade” e “sua verdade”. Como comenta o filósofo Julian
Baggini: “Discordar de alguém pode prejudicar seu direito à verdade
pessoal. A verdade tornou-se personalizada, com o soberano individual
sobre sua interpretação da realidade”. 14 Ou: “Quem é você para me oprimir
com sua verdade objetiva?”. A verdade costumava ser um padrão
independente procurado por todos para julgar opiniões diferentes sobre o
mesmo assunto. Agora, se você desafiar a “própria verdade” de alguém, você
será julgado culpado de “julgá-lo” — toda a conversa se torna uma espécie
de absurdo armado, cuja única resolução é ceder ao furioso ofendido. 15
Muitos de nós conhecemos a máxima de George Santayana pendurada
acima da porta do campo de concentração nazista de Dachau: “Aqueles que
não conseguem se lembrar do passado estão condenados a repeti-lo”. 16 Se
você é um pós-modernista, pode muito bem retirar essa placa. O
conhecimento histórico e os conceitos de virtude, como a justiça, não têm
nenhum significado ou pretensão de verdade que transcenda o tempo e o
lugar. Um dos fundadores do pós-modernismo, Jacques Derrida, 17 teve que
contradizer seus próprios ensinamentos para discutir a justiça como um
objetivo universal que se destaca dos pressupostos pós-modernos e
historicistas. Os pós-modernistas e seus muitos discípulos ativistas, no
entanto, continuam a exigir justiça. O que eles querem dizer com justiça?
Tenha cuidado ao perguntar: você provavelmente será atacado por exigir
uma definição opressora, bem como acusado de racismo e sexismo. A
justiça deles não é a justiça de Sócrates, Platão, Aristóteles, São Tomás ou
É
de qualquer outro homem branco morto. É uma exigência de submissão a
uma pura vontade de poder. É a justiça nietzschiana.
SOMOS TODOS DIFERENTES!
Deixando a inconsistência de lado, vamos examinar as implicações éticas
dos pressupostos pós-modernos. A natureza humana não é mais uma
“natureza” como normalmente é entendida, uma realidade fixa e imutável.
Não existe uma natureza comum a todos, nenhum bem comum para
dirigir as vidas humanas, apenas entendimentos das preferências sociais e
morais que diferem de época para época, de cultura para cultura, de nação
para nação. O conhecimento histórico fornece apenas construções das
verdades acreditadas em uma determinada época. Nenhuma outra verdade
está além disso.
Já me referi repetidamente à visão clássica da natureza humana. Em vez de
pressupor que tal visão exista com base apenas em minha palavra, quero
descrever o entendimento que foi desafiado pelo pós-modernismo e, em
particular, pela teoria feminista.
Vamos começar com Carl Linnaeus. Aposto que você nunca ouviu falar
dele, mas já ouviu falar do homo sapiens, ou “homem pensante”, a espécie
da qual todos os que lêem este livro são membros. Homo sapiens é um
termo tão conhecido que é natural pensar que suas origens são antigas. Sim
e não. Linnaeus foi um biólogo sueco do século xviii que primeiro cunhou
o termo homo sapiens para identificar os seres humanos como parte de seu
sistema de classificação de organismos. 18
Seu método, a nomenclatura binomial, era bastante simples. Usando
palavras latinas, Linnaeus criou categorias para diferentes seres biológicos,
atribuindo a primeira parte do nome de acordo com o gênero do
organismo e a segunda parte de acordo com sua espécie; ou seja, as espécies
dentro do gênero. Neste caso, o substantivo latino homō significa “homem”
ou “ser humano”, enquanto sapiens denota algo pensante.
Quando uma espécie é especificada dentro de um gênero, isso se baseia
em uma diferença dentro do gênero. Em outras palavras, o homem
pensante é diferenciado de nossos ancestrais por nosso pensamento (o homo
erectus referia-se às gerações que primeiro caminharam eretas). Mais
importante, o homem pensante é o único organismo em todo o mundo de
organismos considerado sapiens. Esta é uma visão essencialista da natureza
humana, pois a essência, a marca distintiva de um ser humano, é o seu
pensamento.
Então surge a questão: que diferença o pensamento faz? A resposta é:
toda; ele muda tudo. O pensamento — isto é, a capacidade de considerar e
conceituar o ambiente em torno — liberta os homens do determinismo do
instinto físico e da reação. Essa característica natural e essencial permite ao
ser humano escolher entre diferentes ações e entre os valores que motivam
essas ações. Também implica uma ética e moralidade naturais: a liberdade
nos torna responsáveis por essas escolhas e, pelo menos em parte, por suas
conseqüências. Notem minha qualificação: “pelo menos em parte”.
Somente um ser pensante pode considerar os níveis de responsabilidade e
os fatores que qualificam a responsabilidade.
É essa habilidade intelectual dos seres humanos que torna a cultura e a
civilização possíveis. O contraste freqüentemente surpreendente entre as
diferentes sociedades deve-se à liberdade única que os seres humanos têm
para atualizar sua natureza, que é sempre condicionada por sua resposta ao
ambiente. A liberdade de nossa natureza humana racional confere
variabilidade e diversidade entre e dentro das sociedades, ao longo da
história e ao redor do globo. Não desconto aqui o papel da “criação
adquirida” — isto é, até que ponto nós, seres pensantes, cuidamos e
moldamos uns aos outros dentro de uma cultura. Mas a liberdade implícita
na criação não destrói ou altera as necessidades fundamentais da natureza
humana, o que explica os valores transculturais discerníveis em diferentes
épocas e sociedades.
Reconhecemos que certas espécies de animais têm níveis mais elevados de
inteligência, mas continua sendo verdade que apenas os humanos podem
conceituar, por exemplo, o que seria um argumento moral para uma
determinada ação. Com a nossa inteligência, o modo como encaramos os
fenômenos naturais é radicalmente diferente dos animais não-pensantes,
embora mantenhamos nossas qualidades animalescas (necessidades físicas,
reações biológicas etc.). Uma característica única de nossa inteligência é
nossa capacidade de reconhecer e responder aos fenômenos naturais com
admiração — aquele momento em que algo inspira admiração em nós,
levando-nos a indagar as “grandes questões”. Esse momento nos ajuda a
perceber que a filosofia — o amor pela sabedoria e o desejo de
compreender — também é uma característica natural e única da
humanidade.
Entre as “grandes questões” estão questões sobre o propósito — por que
estou aqui? — e sobre a ética básica — essa ação é certa ou errada e por
quê? — Dentro do pensamento moral, surgem questões sobre se algo é
verdadeiro apenas para nós ou para os outros. A questão da justiça indaga:
é certo que alguns tenham mais do que outros? É certo que o governo
possa exigir que eu pague impostos? E o amor: seria um ato de amor punir
uma criança? Devo sempre perdoar as más ações? Afinal, o que é o amor?
A ciência nasce do mesmo impulso, da mesma resposta de admiração ao
perceber um evento na natureza e nos perguntarmos: por que as maçãs
caem no chão? Qual é a relação da Terra com o sol? Como o som pode ser
transmitido sem um fio condutor? E a beleza: o que torna algumas obras de
arte mais belas para mim do que outras? Por que a beleza causa uma alegria
tão repentina? O que move o artista a criar?
Nenhum outro ser vivo nesta Terra enfrenta essas questões. Culturas e
sociedades são os resultados cumulativos de uma era após outra em busca
de respostas. As respostas mudam conforme as culturas mudam, mas não
mudam em um aspecto crucial: as questões fundamentais são sempre as
mesmas e as respostas sempre se assemelham às de épocas anteriores.
Os pós-modernistas fixam-se nas diferenças; eles acreditam que toda a
extensão da experiência humana não pode ser reconciliada com uma
natureza humana fixa. A visão clássica, em contraste, pode explicar tanto a
diferença quanto a notável semelhança entre culturas e povos, aquelas
coisas que apontam para a verdadeira natureza humana, que compartilham
uma compreensão das potencialidades que são comuns a todos os indivíduos
da espécie, independentemente das muitas variações. Essas potencialidades
não são escolhidas, mas dadas. A natureza representa aquilo que é dado, não
feito. Um ser individual não pode escolher ser o que é; nós não decidimos
existir. No caso dos seres humanos, que podem refletir sobre a existência,
nos deparamos com o fato de que temos uma natureza e pertencemos a
uma natureza.
O que um indivíduo faz com essas potencialidades constitui uma
“segunda natureza”, de acordo com São Tomás de Aquino. 19 A segunda
natureza de uma pessoa é meramente o que ela fez com as potencialidades
possuídas no nascimento, o uso feito da liberdade concedida por ter um
intelecto racional. Quando contrastamos “natureza” com “criação”, 20 ou
seja, o “inato” com o “adquirido”, fazemos essa distinção, mas ela não se
esgota na distinção. A criação é como a vida de um indivíduo é moldada
pelo ambiente em que ele nasce — acima de tudo, como seus pais o criam.
Depois da criação adquirida, nossa segunda natureza é criada por nossas
escolhas — o que fazemos com as potencialidades de nossa primeira
natureza. A criação adquirida não determina as escolhas de um indivíduo
mais tarde na vida, embora possa limitá-las. Se uma criança não aprende
gramática ou como usar a linguagem, por exemplo, suas capacidades
lingüísticas serão limitadas.
Sem uma segunda natureza, seria difícil distinguir uma pessoa da outra.
Mas, mesmo por trás das vastas diferenças discerníveis entre indivíduos e
grupos, encontramos sempre aquele conjunto compartilhado de
capacidades pertencentes à sua natureza humana.
ALÉM DO MASCULINO E FEMININO
Vamos começar distinguindo a teoria feminista do movimento feminista.
Estudiosos feministas, como Vivian Gornick, 21 identificam três “ondas” do
movimento feminista. O movimento de sufrágio feminino começou com
Lucretia Mott, Elizabeth Cady Stanton e Susan B. Anthony na Conferência
de Seneca Falls com a “Declaração de Sentimentos” e cresceu até se tornar a
“primeira onda” formalizada do feminismo. O feminismo da “segunda
onda” deu origem à teoria feminista — uma confluência de acadêmicos e
líderes da ciência, literatura, história, psicologia, filosofia e política —,
todos focados em compreender “a insegurança por trás da necessidade da
sociedade em concordar que as mulheres vivam uma ‘vida pela metade’
para que os homens persigam uma ‘vida plena’”. 22 O que Gornick chama
de “anos visionários” do feminismo durou até o final dos anos 1980,
quando o feminismo foi reduzido “a um único problema central, o
problema do aborto em vez do sufrágio”. 23 Os direitos ao aborto foram
unificadores para as mulheres durante a revolução sexual, que não queriam
que o sexo resultasse em filhos, pois isso limitaria sua recém-conquistada
“liberdade”.
O feminismo da “terceira onda” deixou de lado seu foco único no aborto
e, como resultado, perdeu sua coerência como movimento, como diz
Gornick, voltando a se assemelhar “às jovens que se autodenominavam
mulheres livres na década de 1920”. 24 A Sra. Gornick não esconde seu
desapontamento com as descrições de feministas modernas, que organizam
“slutwalks”, 25 se vestem de forma provocante para provar seu
“empoderamento” e celebram a liberdade de fazer sexo sem qualquer
conexão emocional ou procriação. Ela conclui: “Neste momento, a
liberação das mulheres está estagnada — é improvável que recupere seu
ímpeto visionário na duração de minha vida”. 26
Embora o movimento feminista possa ter fracassado, a teoria feminista se
tornou um item padrão entre os intelectuais. O problema com uma
explicação essencialista da natureza humana, de acordo com a teoria
feminista, é sua teoria do conhecimento. As teóricas feministas, como boas
pós-modernistas, argumentam que todo conhecimento vem de um ponto
de vista, com o que querem dizer que um homem entende as coisas de um
ponto de vista masculino, a visão dominante da história ocidental. Os
homens usam conceitos associados a padrões de subordinação utilizando
termos como natureza, racionalidade e hierarquia. As teorias essencialistas
da natureza humana, começando com (aqueles homens!) Platão e
Aristóteles, entendem a existência humana sem levar em consideração a
história ou a cultura. Nenhum desses fatores muda a natureza humana.
Ambos acreditavam que a realidade é cognoscível e que há uma “natureza”
para certas coisas que não depende de uma época ou lugar em particular.
Os piores criminosos, segundo a teoria feminista, foram esses gregos, que
viam a mulher como inferior ao homem. Sobre isso, elas têm um ponto: a
inferioridade do feminino baseava-se na associação do conhecimento
racional com a masculinidade e do mundo natural com a feminilidade.
Pense em Zeus, rei dos deuses, e Hera, deusa da Terra. O que a razão faz?
Ela transforma, ordena e controla as forças naturais. A feminilidade é
identificada com o que a razão masculina precisa superar com seu poder de
abstrair essências.
Essa parte da crítica feminista é, como indicado acima, justa. Em todo o
mundo grego antigo, as mulheres eram subordinadas aos homens. Na
Teogonia de Hesíodo, a primeira geração de humanos era exclusivamente de
homens; mulheres foram criadas posteriormente como punição, por causa
do roubo do fogo por Prometeu. Pitágoras, o filósofo e matemático pré-
socrático, ilustrou isso com sua associação da feminilidade com maldade,
multiplicidade e escuridão. Para Pitágoras, masculinidade implicava
unidade, bondade e luz. 27
Em Aristóteles, durante a concepção, a forma ativa é masculina e a
matéria passiva é feminina. As mulheres também recebem os traços de
caráter apropriados a seres humanos que são mais corporais do que
intelectuais — mais sujeitos aos caprichos das paixões. Elas são
compassivas, sentimentais, ciumentas, argumentativas, iradas, desanimadas,
desesperadas, desavergonhadas. 28 O homem é por natureza o governante
superior, e a mulher, tendo uma desvantagem no reino da sabedoria
prática, não deve ser invocada para governar. 29 As mulheres, portanto, são
naturalmente subordinadas aos homens, assim como a mente deve
governar o corpo, e o senhor seu servo.
As feministas também rejeitam a visão judaico-cristã da mulher. Elas
rejeitam as implicações do que o Livro do Gênesis diz sobre Eva sendo feita
de uma costela de Adão (Gn 2, 22). Elas desprezam como os teólogos da
Idade Patrística e da Idade Média fundiram a visão grega da mulher como
destituída de razão com a história da criação das Escrituras. Por isso, eu não
as culpo. Teólogos cristãos viam o relato da criação como corroborante dos
relatos filosóficos dos gregos. Para o filósofo escolástico Pedro Abelardo,
famoso por seu relacionamento com Heloísa, não só as mulheres carecem
de intelecto, mas também da própria imagem de Deus. 30 De alguma
forma, Abelardo interpretou Gênesis 1, 27 referindo-se apenas a Adão:
“Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e
mulher ele os criou”.
São Tomás de Aquino suavizou essa subordinação sem rejeitá-la
inteiramente. Ao contrário de Pedro Abelardo, ele ensina que tanto o
homem quanto a mulher são igualmente imago dei, mas, interpretando São
Paulo (1Cor 11, 3), acrescenta uma qualificação: “o homem é o princípio e
o fim da mulher”. 31 Ele também rejeitou a associação de casamento e
procriação com a Queda; cada um era parte do propósito original de Deus
e não resulta do pecado original. 32 Todas as grandes correntes de influência
no Ocidente, desde os antigos e medievais até a Renascença e o
iluminismo, ofereciam um retrato consistente da mulher como
naturalmente subordinada ao homem. O consenso feminista sobre a
história das idéias é que a racionalidade foi concebida como uma
superação, uma transcendência do feminino.
Acadêmicas feministas fizeram importantes estudos para desvelar o
preconceito filosófico e teológico contra as mulheres. Além disso, textos
que foram amplamente ignorados nos estudos tradicionais estão se
tornando conhecidos. Por exemplo, mulheres da Idade Média, muitas delas
místicas, estão emergindo como figuras importantes: Hildegarda de
Bingen, Mechthild de Magdeburg, Beatriz de Nazaré, Hadewijch de
Antuérpia, Marguerite de Porete, Hrosvitha de Gandersheim, Elisabeth de
Schonau e Margery Kempe. Estamos aprendendo sobre mulheres que
foram pintoras 33 da Renascença, escritoras da Renascença ou compositoras
até então desconhecidas ou pouco conhecidas. 34
Ao insistir para que os intérpretes reconheçam como a cultura ocidental
considerou as mulheres inferiores aos homens, as estudiosas feministas
tornaram nossa compreensão do passado mais verdadeira; ou seja, mais
próxima da realidade. A teoria feminista, entretanto, separa o sexo do
gênero, tornando um uma construção biológica e o outro uma construção
cultural. Isso se tornou o primeiro princípio do pensamento feminista,
deixando muitos rapazes e moças sem saber seu gênero. Eles foram
ensinados a acreditar que o gênero é uma questão de escolha que não
precisa ser compatível com seus corpos naturais. Como qualquer primeiro
princípio, a distinção sexo-gênero estabelece as bases para todo o espectro
do pensamento feminista.
As implicações práticas da visão clássica da natureza humana são estas:
uma natureza humana comum estabelece a base para a compreensão da vida
moral e política dos seres humanos. Como Mortimer J. Adler escreveu: “Nada
além da uniformidade e consistência da natureza humana em todos os
tempos e lugares, desde o início do homo sapiens 45.000 anos atrás, pode
fornecer a base para um conjunto de valores morais que devem ser
universalmente aceitos”. 35 Ter um bem comum requer uma natureza
universal. O bem-estar do indivíduo e do Estado só pode ser conhecido
quando a natureza humana é considerada a mesma para todos. Sem esse
reconhecimento, a sociedade será governada por uma elite composta por
educadores, líderes da mídia, juízes, líderes financeiros, policiais e militares.
Um dos primeiros pós-modernistas americanos, Richard Rorty,
argumentou contra o conceito de uma natureza humana compartilhada:
“Não há nada no fundo de nós, exceto o que colocamos lá nós mesmos,
nenhum critério que não tenhamos criado no decorrer da criação de uma
prática, nenhum padrão de racionalidade que não seja um apelo a tal
critério, nenhuma argumentação rigorosa que não seja obediência às nossas
próprias convenções”. 36
Rorty e outros profetas do pós-modernismo, como Jacques Derrida e
Michel Foucault, trazem o legado do relativismo e do individualismo
radical à sua conclusão lógica. Em sua versão mais extrema, eles
argumentam que a maneira pela qual os indivíduos interpretam sua
experiência é a fonte de todo significado e valor.
Há muito tempo, o “bem comum”, reconhecido pela comunidade
humana e fundado nos fatos básicos da natureza humana, seria considerado
axiomático e minimamente necessário para se ter uma concepção de
justiça. Infelizmente, não é mais o caso. Até mesmo sugerir isso é, em
alguns círculos, considerado opressor, mais uma crença que, de alguma
forma, beneficia os que estão no poder. Essa visão é, para colocar de forma
gentil, menos do que convincente. Aqueles que acreditam na realidade da
natureza humana reconhecem que diferentes comunidades e sociedades
humanas são capazes de realizar suas potencialidades humanas de maneiras
diferentes. A “babel” das diferentes línguas atesta por si só esta diversidade.
Mas aqueles que estão excessivamente investidos na celebração da
diversidade cultural e que abraçam um conceito exagerado de
individualismo podem facilmente cegar-se para o ponto mais importante:
as próprias línguas são exclusivas da espécie humana e revelam um
potencial exclusivamente humano diferente em espécie, e não em grau, de
outros animais.

1 Julian Birkinshaw, “The Post-Truth World – Why Have We Had Enough


Of Experts?”, em Forbes, 22 de maio de 2017, disponível em
https://www.forbes.com/sites/lbsbusinessstrategyreview/2017/05/22/the-
post-truth-world-why-have-we-had-enough-of-experts/#7e19a0d154e6.
2 O melhor relato que conheço a respeito destes períodos é o de Friedrich
Heer, The Intellectual History of the West, tradução de Jonathan Steinberg.
Cleveland e Nova York: The World Publishing Company, 1966, capítulos
15–17.
3 Friedrich Nietzsche, The Gay Science: with a prelude of rhymes and an
Appendix of Songs, §125, tradução de Walter Kaufmann. Nova York:
Vintage Books, 1974, p. 181.
4 Friedrich Nietzsche, Human, All Too Human: A Book for Free Spirits, §37,
trad. Marion Faber e Stephen Lehmann. Lincoln, ne: University of
Nebraska Press, 1984, p. 42.
5 Uma data de início razoável para a chegada do pós-modernismo aos eua
é a palestra de 1969 do filósofo francês Jacques Derrida na Universidade
Johns Hopkins intitulada “Estrutura, signo e jogo no discurso das ciências
humanas”.
6 Bushrod Washington, “nyc Just Released a List of Officially Recognized
Genders”, 24 de maio de 2016, disponível em
https://thefederalistpapers.org/us/nyc-just-released-a-list-of-officially-
recognized-genders.
7 Papa João Paulo ii, Fides et Ratio, 14/09/1998, disponível em
http://www.vatican.va/content/john-paul-
ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_14091998_fides-et-ratio.html.
8 Helen Pluckrose, “No, Postmodernism is not Dead (and Other
Misconceptions)”, em Areo, 07 de fevereiro de 2018, disponível em
https://areomagazine.com/2018/02/07/no-postmodernism-is-not-dead-
and-other-misconceptions/.
9 Ibid.
10 The Western Canon, p. 492.
11 Ibid., p. 487.
12 Pierre Darmont, Damning the Innocent: A History of the Persecution of
the Impotent in Pre- Revolutionary France. Tradução de Paul Keegan. Nova
York: Viking Penguin Inc, 1986.
13 Jacques Derrida, Of Grammatology, tradução de Gayatri Chakravorty
Spivak. Baltimore: John Hopkins Press, 1976, p. 10.
14 Julian Baggini, A Short History of Truth: Consolations for a Post-Truth
World. Londres: Quercus, 2017, p. 71.
15 Jillian Kay Melchior, “Fake News Comes to Academia”, 5 de outubro
de 2018, disponível em https://www.wsj.com/articles/fake-news-comes-to-
academia-1538520950.
16 George Santayana, The Life of Reason: The Phases of Human Progress,
1905. A frase original pode ser encontrada aqui:
http://www.gutenberg.org/catalog/world/readfile?
fk_files=169068&pageno=115.
17 Jacques Derrida, The Other Heading, tradução de Pascale-Anne Brault e
Michel B. Haas. Bloomington: Indiana University Press, 1992, pp. 70–83.
18 Uma excelente fonte de informações sobre Carl Linnaeus pode ser
encontrada no site da Linnean Society of London:
https://www.linnean.org/learning/who-was-linnaeus.
19 Suma teológica, ia iiae, q. 32, art. 2.
20 O autor utiliza os termos nature e nurture, que podem ser traduzidos
como natureza e criação/nutrição/cultivo. A combinação complementar dos
dois conceitos aparece pela primeira vez no diálogo platônico Protágoras.
No sentido utilizado pelo autor, natureza é o que as pessoas pensam como
pré-programado e é influenciada pela herança genética e outros fatores
estruturais biológicos. A criação (nurture) é geralmente considerada como a
influência de fatores externos após a concepção, por exemplo, o produto da
exposição, experiência e aprendizagem de um indivíduo, mas também pode
se estender ao ambiente pré-natal — nt.
21 Vivian Gornick foi repórter do Village Voice de 1969 a 1977; publicou
onze livros; escreveu para o New York Times, The Nation e The Atlantic
Monthly; e lecionou redação na New School e University of Iowa.
22 Vivian Gornick, “Good Feminist”, em Boston Review, 8 de dezembro de
2014, disponível em https://bostonreview.net/books-ideas/vivian-gornick-
good-feminist-solnit-rhode-cobble-gordon-henry.
23 Ibid.
24 Ibid.
25 No Brasil, o movimento é conhecido como “Marcha das Vadias” — nt.
26 Ibid.
27 Aristóteles, Metafísica, i, 50, 986a22–35.
28 Aristóteles, História dos animais, ix, 1, 608b9-l3.
29 Aristóteles, Política, i, 5, 1254b6–14.
30 Elisabeth Gössman, “The Image of the Human Being According to
Scholastic Theology and the Reaction of Contemporary Women”, em
Ultimate Reality & Meaning, 11, 1988, pp. 187–88.
31 Suma teológica, ia, q. 93, art. 4.
32 Ibid., ia, q. 98, art. 2.
33 Elena Martinique, “10 Brilliant Female Artists of the Renaissance”, em
9 de janeiro de 2018, disponível em https://www.widewalls.ch/famous-
female-renaissance-artists/levina-teerlinc/.
34 Elaine V. Beilin, Redeeming Eve: Women Writers of the English
Renaissance. Princeton: Princeton University Press, 1987.
35 Mortimer J. Adler, Haves Without Have-Nots. Nova York: Random
House, 1996, p. 230.
36 Richard Rorty, Consequences of Pragmatism. Minneapolis: University of
Minnesota Press, 1981, p. xiii.
capítulo x
Expondo inverdades:
multiculturalismo e terapêutica

A primeira palavra que ouvimos sobre as mudanças em curso no


estamento educacional foi “multiculturalismo”. Aparentemente, não
há nada de questionável em aprender sobre outras culturas. Mas essa
nunca foi a única intenção dos multiculturalistas — o cântico: “Hey, hey,
ho, ho, Western Culture’s got to go!” 1 de alunos de Stanford em 1987
expressou claramente a intenção. A mídia noticiou que o ativista veterano
Jesse Jackson liderou o cântico, mas uma testemunha ocular tenta corrigir o
registro há anos. Jackson não liderou o canto, embora liderasse a marcha.
Quando o cântico começou, de acordo com a testemunha, Jackson
respondeu: “Não, não queremos nos livrar da cultura ocidental. Queremos
expandi-la e trazer novas vozes”. 2 Essa foi a atitude que tive quando era um
jovem professor universitário, mas, como o Reverendo Jackson, fui ingênuo
o suficiente para pensar que os manifestantes representavam um grupo
marginal.
O que começou como um slogan cantado tornou-se parte da agenda
multiculturalista que começou no ensino superior, e posteriormente se
estendeu às escolas públicas — tudo em nome das “novas vozes”. Como
isso aconteceu?
Na década de 1980, os teóricos da educação liderados por James A.
Banks, conhecido como o “pai do multiculturalismo”, começaram a
pressionar por mudanças nos currículos escolares para incluir textos de
grupos minoritários e de outras culturas. 3 Em suma, sustentavam que nós
deveríamos buscar conhecimentos que superem os limites de nossa própria
cultura. Como disse Banks:
Os principais objetivos da apresentação de diferentes tipos de conhecimento são ajudar os alunos
a compreender como o conhecimento é construído e como ele reflete o contexto social no qual é
criado, bem como capacitá-los a desenvolver os entendimentos e as habilidades necessárias para
se tornarem eles próprios construtores de conhecimento. Um objetivo importante da educação
multicultural é transformar o currículo escolar para que os alunos não apenas aprendam o
conhecimento que foi construído por outros, mas aprendam a analisar criticamente o
conhecimento que dominam e como construir suas próprias interpretações do passado, presente
e futuro. 4

Se alguma dessas coisas soa familiar, é porque já discutimos anteriormente


o pós-modernismo — o multiculturalismo é apenas uma derivação da
ideologia geral. Como Camille Paglia descreve, os multiculturalistas
rapidamente politizaram os currículos, deixando de lado quaisquer
questões de qualidade. Em vez da prometida compreensão mútua e
reconciliação entre as culturas, eles criaram divisões. 5
No início, Banks e outros multiculturalistas conquistaram a aprovação de
acadêmicos e líderes institucionais apelando para a idéia ocidental de
tolerância. Vamos dar uma olhada rápida em quando e onde esse ideal
surgiu para oferecer um exemplo de como os multiculturalistas mordem o
próprio rabo. A tolerância nasceu das lutas religiosas pós-Reforma que
envolveram a Europa e a América no século xvii. A Carta sobre a tolerância
de 1689, do filósofo John Locke, levou o Parlamento britânico a aprovar o
Ato de Tolerância no mesmo ano. Como a lei não se aplicava aos católicos,
ainda havia um caminho a percorrer. Demorou um século para que a
tolerância incluísse os católicos, o que nos mostra quão séria permaneceu a
divisão entre os reformadores e a Igreja Romana. As colônias americanas,
durante este período, estavam repletas de anticatolicismo.
A Declaração de Independência implicava uma tolerância que incluía
todas as crenças religiosas, mas não foi explicitada até a aprovação da
Primeira Emenda em 1791. A Declaração Francesa dos Direitos do
Homem (1789) era pura retórica. O artigo 10 diz: “Ninguém sofrerá
interferência por causa de suas opiniões, mesmo as religiosas, desde que sua
prática não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei”. Mas padres e
freiras católicos foram massacrados ao lado de outros obstáculos humanos à
“Liberté, égalité, fraternité”, derramando seu sangue na Madame Guillotine
pelos Champs-Élysées. Em cinco anos, a fé católica foi substituída pelo
deus do Ser Supremo, um dos momentos mais estranhos da história
ocidental.
O verdadeiro profeta filosófico da tolerância foi o filósofo judeu Baruch
Spinoza (1632–1677). No último capítulo, “Liberdade de pensamento e
expressão”, de seu Tractatus Theologico-Politicus (1670), ele escreve: “Os
homens devem ser governados de modo que possam ter opiniões diferentes
e contrárias abertamente, e ainda assim viver em harmonia”. 6 Spinoza
estende isso expressamente à opinião religiosa: governantes que tentam
controlar as crenças de seus súditos estão tentando o impossível —
“ninguém pode renunciar a isso, mesmo que queira”. 7
O que torna Spinoza particularmente relevante para esta conversa é óbvio:
ele defende a total liberdade de crença e opinião, o que necessariamente
amplia o conjunto de conhecimentos de uma sociedade. Os
multiculturalistas, quer pretendam ou não, usaram uma tática de bait-and-
switch: 8 “Vamos ampliar o conhecimento, então vamos dizer o que é
importante e o que não é”.
É irônico que os multiculturalistas tenham conseguido ainda mais
aprovação apelando para a necessidade de empatia, insistindo que não é
suficiente saber sobre outras pessoas, devemos também saber o que essas
pessoas pensam sobre si mesmas. Na década de 1980, a cultura americana
adotou o “emotivismo”, uma perspectiva filosófica do início do século xx
que equipara declarações de moralidade e valor a expressões de
sentimentos. 9 Ao contrário da tolerância, o emotivismo foi um passo na
direção errada. Esta foi a década em que os homens foram chamados a
explorar seu lado feminino e assim por diante. O emotivismo desencadeou
o hábito de expressar pensamentos de maneira assertiva e dramática, em vez
de logicamente por meio do uso de argumentos, a fim de influenciar as
pessoas. Basta a mera afirmação.
O TRIUNFO DA TERAPÊUTICA
Philip Reiff chamou isso de O triunfo da terapêutica, um livro no qual a
descrição de nosso futuro cultural se provou assustadoramente precisa:
“Espero que a sociedade moderna monte psicodramas com muito mais
freqüência do que seus ancestrais montavam peças de milagres”. 10 Ele viu
que os “psicologizadores” haviam libertado a cultura das restrições morais
de seu ensino religioso fundamentado nas Escrituras e expresso em toda a
tradição ocidental. Essa cultura já se enraizou tão profundamente que
vinculava “até mesmo os ignorantes de uma cultura à grande cadeia de
significado”. 11
Enquanto a tradição moral do Ocidente ensinou a necessidade das
virtudes, o que Reiff chama de “renúncia instintiva”, nossa cultura tem
como preocupação última a satisfação dos desejos individuais. Em vez de
valorizar a capacidade de um indivíduo conter e canalizar seu desejo, nossa
cultura aplaude a liberdade da “liberação dos impulsos”. O que costumava
ser considerado “desejo” agora é considerado “necessidade”. 12 Reiff estava
descrevendo o que ele observou acontecendo na cultura acadêmica dos
anos 1960. Isso adiciona uma dimensão importante para a compreensão de
por que o multiculturalismo se enraizou tão rapidamente. Os intelectuais já
haviam perdido a fé no passado, nos ideais e nos textos que haviam sido a
pedra angular de sua formação. É útil lembrar aqui que os Great Books de
Adler e Hutchins foram publicados em 1952, antecipando as batalhas
curriculares e guerras culturais que viriam. Philip Reiff, nascido em 1922,
testemunhou o que aconteceu na academia após a Segunda Guerra
Mundial, comentando: “A morte de uma cultura começa quando suas
instituições normativas falham em comunicar idéias de maneiras que
permaneçam interiormente atraentes, em primeiro lugar, para as próprias
elites culturais”. 13 Reiff era realmente “o profeta da anticultura”. 14
Querem mais provas de que Reiff previu o futuro? Em 2016, a
pesquisadora em educação Ashley Thorne mapeou a mudança na educação
após a adoção de metas multiculturais. Ela aponta que, em 1964, quinze
das cinqüenta principais universidades da América exigiam que os alunos
fizessem um teste sobre civilização ocidental. 15 Todas as cinqüenta
ofereciam o teste sobre civilização ocidental e quarenta e uma o ofereciam
como um pré-requisito para outras coisas. Em 1988, nenhuma das mesmas
cinqüenta melhores universidades exigia o teste sobre civilização ocidental,
e trinta e quatro delas sequer ofereciam o curso. Os multiculturalistas
exigiam a inclusão de novas vozes, ao mesmo tempo que exigiam a exclusão
daqueles que haviam feito parte da educação clássica nos Estados Unidos
desde o estabelecimento de suas primeiras faculdades e universidades.
Eles destruíram o que a classicista Mary Beard descreveu como “o diálogo
com aqueles que nos precederam e que estavam eles próprios em diálogo
com o mundo clássico”. 16 Beard menciona os escritores e artistas
considerados grandes: Dante, Rafael, Shakespeare, Gibbon e Picasso, entre
outros. Para muitas pessoas, o senso comum do nosso passado continua
sendo o senso comum do presente. No entanto, para muitos, esse tipo de
senso não é mais comum. Para os multiculturalistas, as atitudes padrão
mudaram, em particular, a constituição de um argumento, ou seja, a
abordagem racional para lidar com diferenças de opinião.
A mudança drástica é irônica e dúbia. A aprendizagem ocidental sempre
foi multicultural. Como Bernard Knox afirma, os textos clássicos gregos
“[sempre] foram inovadores, às vezes subversivos, até mesmo
revolucionários”. 17 Knox oferece o exemplo de um historiador antigo,
Heródoto (484–425 a.C.), o primeiro grande historiador e autor de
Histórias. 18 Heródoto narrou as histórias dos impérios grego e persa, as
culturas dos egípcios, lídios, babilônios, massagetas, indianos, árabes, citas,
líbios, trácios e peonianos, junto com as vidas de Ciro, Dario, Xerxes e
Cambises. Knox pergunta quem é “mais multicultural do que Heródoto?”.
19
Plutarco chegou a acusar Heródoto de “gostar demais de estrangeiros”. 20
Em minha própria experiência como estudante do ensino médio e
universitário, li textos dos mundos antigos do Oriente Médio,
Mesopotâmia, Grécia, Império Romano; das distintas culturas medievais
do que veio a ser chamado de Europa; das nações emergentes da jovem
Europa. A história das Américas foi incluída, Norte, Central e Sul, junto
com o estudo de seus povos indígenas. O que faltou durante aqueles anos
foi uma instrução séria sobre a história e a cultura do Japão, da China e do
resto da Ásia, o que teria tornado a Guerra do Vietnã mais compreensível.
Seria uma grande surpresa para mim mais tarde quando meu filho me
informou que um “romance” havia sido escrito no Japão muito antes do
primeiro romance europeu, Dom Quixote de Cervantes (1605–1615).
Murasaki Shikibu escreveu O conto de Genji no início do século xi. 21
FALSAS PROMESSAS
Se os multiculturalistas tivessem cumprido suas promessas, os currículos
escolares e universitários teriam sido enriquecidos pela inclusão da
literatura, idéias, valores e história de sociedades relativamente ignoradas
pela educação ocidental. Como Camille Paglia coloca, “o multiculturalismo
é, em teoria, uma causa nobre que visa ampliar a perspectiva nos eua, o
qual, por causa de sua posição física entre dois oceanos, pode tender para o
isolacionismo presunçoso”. 22
Em vez disso, é claro, os multiculturalistas usaram sua agenda não apenas
para ampliar nosso conhecimento, mas para denegrir os textos e tradições
que formam a civilização ocidental. A inclusão de conteúdo étnico não foi
suficiente; as escolas exigiam mudanças estruturais profundas. Se todos os
multiculturalistas desejassem realmente que as escolas ampliem seus
domínios, então não haveria necessidade de currículos multiculturais que
correspondessem à etnia dos alunos sentados em salas de aula americanas.
O multiculturalismo é muito mais excludente e prejudicial do que
qualquer forma de educação que o Ocidente jamais conheceu. Tanto o
currículo quanto a pedagogia estão sendo adaptados para servir aos
propósitos políticos de uma elite burocrática. Essa elite, entretanto, distrai
os alunos com protestos ruidosos que alegam preocupação com seu bem-
estar psicológico, fazendo com que não percebam a educação que estão
perdendo. Cito Paglia mais uma vez: “Nesta primeira década do novo
milênio, ainda não estou convencida de que os estudantes universitários
estão se formando até mesmo em escolas de elite com conhecimento mais
profundo ou mais amplo”, embora “eles sejam certamente bem tutorados
em sentimentalismo”. 23
Quando o multiculturalismo se fundiu com a terapêutica, surgiu a
demanda por uma nova forma de segregação, a auto-segregação. Por
exemplo, a designação de safe spaces — “espaços seguros” — em campi
universitários, eventos universitários somente para negros ou somente para
mulheres e palestras sobre “privilégio branco” e “masculinidade tóxica” para
a orientações de calouros. Uma coisa é um adulto ouvir essa bobagem
sendo espalhada por aí, mas um jovem de 18 anos pode ser facilmente
intimidado e acreditar nisso. Por muitos anos, várias histórias foram
expelidas da mídia, o que me fez pensar, apenas por um momento, se eu
não estava enlouquecendo. A cultura que tolera e encoraja o pensamento
pós-moderno não tem nenhuma semelhança com o mundo do pós-guerra
em que nasci e cresci até a idade adulta. Conforme descrito por Camille
Paglia: “A América está atualmente sofrendo nas mãos de uma pseudo-
intelectualidade cínica e estéril nas universidades, de uma rotação maníaca
de ciclos de notícias superficiais na mídia e uma hipocondria generalizada
na classe média profissional amortecida por tranqüilizantes, como mostra
sua preocupação com doenças e distúrbios relacionados ao estresse”. 24
Vivemos em uma época em que a liberdade de expressão é negada e os
professores universitários patrocinam atividades segregadas, enquanto
condenam uma raça inteira por seu “privilégio branco”. Embora desafiadas
diariamente por vários redatores de opinião, 25 essas atitudes são abraçadas
com tanta força pelos “chefes culturais” que os contra-argumentos passam
despercebidos. Como mencionei antes, a cultura de massa é a escola que
freqüentamos todos os dias. Faculdades e universidades continuam a
oferecer diplomas em humanidades, artes liberais e ciências, mas essas
marcas tradicionais foram viradas do avesso pela política de identidade pós-
moderna — multiculturalismo, teoria de gênero e etnocentrismo. Dê uma
olhada na lista de publicações encontrada na página pessoal de um
professor, especialmente você que está pagando pela educação de seu filho
ou neto.
Existem exceções notáveis: há professores, departamentos e algumas
faculdades que não sucumbiram. Também é verdade que alunos
inteligentes e ágeis podem escolher seu caminho durante quatro anos de
faculdade para minimizar o contato com a loucura da ideologia que
enlouqueceu.
Aqueles de nós que estão distantes, talvez muito distantes daquela época
em que éramos estudantes, encontramos essas idéias empacotadas em toda
a mídia, desde notícias e discurso político até nossas formas centrais de
entretenimento — televisão, filmes, música, revistas e livros. Militantes
feministas, gays, lésbicas e transgêneros são personagens que abundam, e
são sempre descritos como serenamente felizes e muito superiores aos
homens brancos e mulheres casadas com filhos.
Essas práticas dúbias transmitem mensagens sobre moralidade, política,
tradições, religião e sobre a nação. Algumas mensagens estão embutidas;
outras são flagrantes. Assim que essas mensagens ganham força, elas dão
origem a mais daquilo que Sócrates e Platão chamaram de “sofística”, a
fundamentação em argumentos falaciosos. 26 Os diálogos de Platão
registram como Sócrates expôs as falácias e superficialidade moral dos
professores proeminentes do século v a.C. Muitos desses sofistas, como
eram chamados, eram bons professores ou retóricos. Mas todos eles
corriam o risco de serem humilhados publicamente por um encontro com
a “mosca de Atenas”. O número crescente de humilhações entre os sofistas
mais proeminentes acabou gerando um ultraje que levou Sócrates a
julgamento e condenação à pena capital. É instrutivo lembrar o destino de
Sócrates. Quando a sofística é desmascarada, ela se torna pessoal. A reação
do sofista nunca é “compreendo seu ponto” ou “corrija-me”, mas sim um
ataque contra a pessoa que desmascarou. O destino de Sócrates ilustra até
onde pode chegar uma resposta ad hominem.

1 “Olê, olê, olá, a cultura ocidental tem que acabar!” — nt.


2 Reider, John Letter to the Editor, Chronicle of Higher Education,
21/11/2016, disponível em https://www.chronicle.com/blogs/letters/jesse-
jackson-didnt-lead-chant-against-western-culture/.
3 James A. Banks, “The Canon, Knowledge Construction, and
Multicultural Education”, em Educational Researcher, vol. 22, n. 5, jun.–
jul., 1993, p. 12.
4 Ibid.
5 Provocations, p. 408.
6 Benedictus de Spinoza, The Collected Works of Spinoza, vol. 2, iii/245,
20–21. Tradução de Edwin Curley. Princeton: Princeton University Press,
2016, p. 351.
7 Ibid., iii/238 19, 344.
8 Bait-and-switch é uma espécie de fraude, um método ilegal de venda no
qual um produto é anunciado a um preço muito baixo para atrair clientes e
estes são persuadidos a comprar um produto diferente a um preço mais
alto. Em muitos países a prática é ilegal — nt.
9 O emotivismo é mais freqüentemente identificado com um livro do
filósofo A. J. Ayer, Language, Truth and Logic. Londres: Victor Gollancz
Ltd., 1936.
10 Philip Reiff, The Triumph of the Therapeutic: Uses of Faith After Freud.
Nova York: Harper Torchbooks, 1968, p. 26.
11 Ibid., p. 3.
12 Ibid., p. 17
13 Ibid., p. 18.
14 David Glenn, “Prophet of the ‘Anti-Culture’”, em The Chronicle of
Higher Education, 11 de novembro de 2005, disponível em
https://www.chronicle.com/article/prophet-of-the-anti-culture/19703.
15 Ashley Thorne, “The drive to put Western civ back in the college
curriculum”, em New York Post, 29 de março de 2016, disponível em
https://nypost.com/2016/03/29/the-drive-to-put-western-civ-back-in-the-
college- curriculum/.
16 Mary Beard, Confronting the Classics: Traditions, Adventure, and
Innovations. Nova York: Liveright Publishing, 2013, p. 11.
17 Bernard Knox, The Oldest Dead White European Males and Other
Reflections on the Classics. Nova York: W. W. Norton & Company, Inc.,
1993, p. 15.
18 Heródoto (484–425/413 a.C.) é considerado o primeiro historiador
ocidental importante. Suas Histórias foram traduzidas muitas vezes para o
inglês e ainda são consideradas em geral confiáveis.
19 The Oldest Dead White European Males, p. 20.
20 Ibid.
21 Murasaki Shikibu, The Tale of Genji. Tradução de Royall Tyler. Nova
York: Penguin Classics, 2001.
22 Provocations, p. 407.
23 Ibid., p. 409.
24 Ibid., p. 414.
25 Estou pensando nos escritores conservadores do New York Post, do
Washington Times, do American Spectator, do New Criterion e do National
Review, entre outros.
26 Tenha em mente que muitos dos sofistas eram professores ilustres e não
fanfarrões ou egoístas. Assim, o termo sofisma pode ser enganoso por
incluir todos os sofistas sob um pejorativo.
capítulo xi
Desmascarando os gurus:
déspotas e ditadores

O s pais, nas últimas décadas, estão cada vez mais preocupados com o
efeito da educação pós-secundária sobre as crenças centrais de seus
filhos. Quando seu filho ou filha chega em casa para as férias
repetindo o jargão de seus professores sobre multiculturalismo,
desconstrução e teoria feminista, proclamando a falta de uma ordem
inteligível na realidade e rejeitando quaisquer verdades ou fatos derivados
de autores brancos do sexo masculino, os pais ficam compreensivelmente
alarmados. Isso vem acontecendo há tempo suficiente, no entanto, para
que os pais mais jovens reconheçam o que lhes foi ensinado.
Agora todos os clássicos são triturados nos moinhos da crítica motivada
pela preocupação com raça, gênero, etnia e classe social — diferentes
formas de política identitária. O termo foi cunhado na década de 1970 para
identificar grupos que, segundo afirmam, foram vítimas de opressão
deliberada, bem como de desigualdade social e econômica. Agora é mais
comum, porém, usar o conceito como uma espécie de “clube” intelectual
para derrotar os adversários, como um argumento no qual se invoca uma
determinada raça ou gênero para resolver uma disputa: “Você diz isso
porque você é uma mulher branca rica”, e assim por diante. A forma como
se usa a “política identitária” depende do quanto se acredita que esses
fatores, como raça, determinam nossos valores e opiniões.
Essa ideologia se tornou a vanguarda da doutrinação cultural. O que
muitas vezes é apresentado como uma espécie de relativismo — a idéia de
que valores e moralidade não têm status objetivo, mas são meramente
relativos a várias situações — rapidamente se torna absolutista: os valores
de certos grupos são irrelevantes ou, o que é pior, dependem da raça ou
sexo daquele que os está defendendo. Esses pressupostos extremamente
nocivos a respeito de nossas idéias mais básicas, incluindo a natureza
humana, moralidade, justiça etc., foram adotados e promulgados pela
maioria das instituições educacionais a tal ponto que a própria alegação de
que oferecem “educação” se tornou duvidosa. Ao escolher uma faculdade, é
aconselhável saber o que os professores dos cursos básicos obrigatórios (se
houver) ensinam aos seus alunos. As discussões em sala de aula são
dominadas pela política identitária? Cinqüenta anos atrás, um aluno ainda
podia assistir a uma aula sobre a República de Platão sem ser doutrinado a
respeito de seu “falocentrismo”.
A política identitária serve apenas para reforçar os chavões de um ou
outro lado do debate. O uso de rótulos é apenas outra forma de “pregar aos
convertidos”, de atribuir insidiosamente erros mentais e morais à pessoa do
outro lado do debate. A política identitária, ironicamente, é uma espécie de
imagem espelhada das caricaturas racistas do passado, que retratavam certos
grupos com base na cor da pele, sexo ou inferioridade moral atribuída,
igualmente sem base alguma.
No entanto, a promoção de políticas identitárias encoraja explicitamente o
uso do poder em vez da razão. Em outras palavras, deu origem ao
despotismo na educação, cultura e política. Como se costuma dizer, uma
cidadania educada é necessária para evitar o totalitarismo. No plano
cultural, não provamos a primeira nem evitamos este último. Esses abusos
de poder são geralmente mantidos ocultos tanto pelo perpetrador quanto
pela vítima; o primeiro não quer manchar sua posição moral e a última não
quer sofrer mais por sua desobediência. O abuso desse poder espalhou o
medo por toda a nação de que a eventual recusa em ceder a essas premissas
colocaria carreiras, reputações e finanças em perigo.
Esse poder resultou na aceitação do argumento ad hominem. Significando
literalmente “contra o homem”, os ataques ad hominem se tornaram tão
comuns que não são mais reconhecidos como a falácia lógica que são. Um
argumento ad hominem é um argumento “dirigido contra o argumentador
e não contra seu argumento ou conclusão de seu argumento”, afirma a
descrição do livro que usei para ensinar lógica informal. 1 Há uma distinção
importante a ser feita aqui. Por exemplo, se estivéssemos assistindo a um
programa com duas pessoas debatendo a segurança do tráfego aéreo e uma
pedisse à outra que explicasse seus conhecimentos sobre o assunto, isso
seria razoável. Agora, se no mesmo programa um dos interlocutores
apontasse que o outro já caiu com seu avião particular, isso seria um
argumento ad hominem — uma estratégia retórica com o objetivo de
constranger e silenciar o oponente. A maioria dos ataques ad hominem hoje
em dia se baseia em fatores muito caros aos pós-modernistas: gênero, raça,
nacionalidade, filiação a partidos políticos, riqueza, religião e até mesmo
localização residencial.
Os déspotas culturais podem não ser capazes de controlá-lo com
intimidação pessoal ou ameaça de notas ruins, mas podem criar um clima
social em que opiniões e atitudes específicas são moralmente inaceitáveis. O
poder da rejeição e da vergonha afeta até mesmo nossas sensibilidades mais
endurecidas. Pode causar uma perda dolorosa de amizades e exclusão de
comunidades que antes eram acolhedoras. O mesmo clima pode criar
divisões onde trabalhamos, oramos e nos divertimos. Os déspotas não
discordam, eles condenam. Argumentos ad hominem são eficazes, mas por
razões que nada têm a ver com as questões em si.
Devo fazer uma pausa para dizer que reconheço que o sexo, a raça, a etnia
e outras características de uma pessoa sem dúvida influenciaram como ela
pensa e age, mas não determinam seus pensamentos e ações no grau e
medida que os adeptos da política identitária insistem.
Ataques ad hominem muitas vezes não são contestados em público porque
aqueles que dominam a opinião pública acusam alguém de ódio e
ignorância se ele se opõe, digamos, ao ensino do transgenerismo (a idéia de
que uma pessoa pode ter uma “identidade de gênero” diferente de seu sexo
biológico, e pode escolher qualquer forma dessa identidade) para crianças
em idade escolar. Se a raça está envolvida, o racismo pode ser imputado,
mesmo que a raça não seja um problema.
Nessa visão perversa, apenas alguém carente de sensibilidade moral
esclarecida e compassiva desafiaria a sapientíssima exigência segundo a qual
crianças de oito anos da escola pública devem questionar seu gênero. Tal
criador de problemas deve ter uma deficiência de caráter e precisa ser
reeducado, talvez obrigado a participar de algum “treinamento”. Existem
poucas coisas mais poderosas em uma comunidade do que envergonhar
publicamente um de seus membros — lembre-se do “A” escarlate de Hester
Prynne em A letra escarlate de Nathaniel Hawthorne. A ameaça de
vergonha moral deve manter todos nós quietos ou obedientes.
Uma educação verdadeira prepara e permite que os alunos,
principalmente as crianças, pensem com liberdade, sem o constrangimento
da ideologia ou o medo do preconceito do professor. Por mais que as
faculdades e universidades imponham o pós-modernismo e a política
identitária a seus alunos, elas mutilam a liberdade de pensamento. A busca
do conhecimento por si mesmo é negada completamente. Nada tem
significado fora das categorias empregadas pelos pós-modernistas, e estas
provavelmente mudam mensalmente. Seus julgamentos apenas reforçam
suas suposições sobre os fatores decisivos de gênero, etnia e assim por
diante, exigindo obediência de todos — e ai de quem não obedecer. Não
existe o conhecimento per se, que é um valor em si mesmo.
Uma coisa é rejeitar essas ideologias de imediato, outra é entendê-las
criticamente. Como eu disse antes, o multiculturalismo — definido como
uma apreciação geral por culturas diferentes das nossas — deveria ter
enriquecido o aprendizado, expandindo a gama de culturas estudadas em
sala de aula. Esse tipo de educação esclarecida não é o que o
multiculturalismo oferece: nós agora vivemos em uma cultura onde todas
as divergências são imediatamente atribuídas à raça, etnia e classe de uma
pessoa, e daí à sua suposta posição moral.
Se essa discussão deixa você atordoado, saiba que ela é inevitável em uma
cultura como a nossa. Afinal, como Alice no País das Maravilhas, demos à
luz uma cultura que está de pernas para o ar e na qual o que passa por
discurso intelectual é, na maioria das vezes, um absurdo completo e
absoluto. As mudanças em nossa cultura parecem ter aparecido
repentinamente, mas se desenvolveram lentamente sob o manto de falsas
promessas. O controle intelectual da universidade e de outras instituições
por pós-modernistas nas últimas cinco décadas foi amplamente escondido
de doadores e ex-alunos até que seu domínio tornou as objeções obsoletas.
Assim que esses acadêmicos e administradores escolares tomassem o poder,
eles poderiam contratar quem quisessem, mudar o currículo como
desejassem e nomear membros do conselho que não os contestassem.
HISTÓRIA E VERDADE
A história ensina que as convicções das pessoas podem mudar rapidamente.
A aristocracia e a burguesia russas foram surpreendidas pelo que aconteceu
após o retorno de Lenin do exílio em 16 de abril de 1917. Elas se sentiram
compelidas a apoiar a formação da primeira República Russa em 1 de
setembro de 1917, sob Alexander Kerensky. Os partidários do czar
presumiram que a criação de uma república seria o suficiente para acalmar
a agitação social. Lenin imediatamente desafiou o governo liberal e apelou
a uma ação mais radical para devolver o governo ao “povo”. Em seis
semanas, a Revolução de Outubro começou, a República terminou, os
bolcheviques assumiram o comando e, por ordem de Lenin, a família
Romanov foi assassinada por camponeses armados.
Essa destruição completa de uma nação poderosa pela revolução ocorreu
há apenas um século. Retrocedendo um pouco mais, imagine ser um padre
católico francês em 7 de julho de 1790, quando a Assembléia Nacional
ratificou a Constituição Civil do Clero, declarando a Igreja subordinada ao
Estado. Todas as propriedades da Igreja foram confiscadas no ano anterior.
No mês de dezembro seguinte, a assembléia declarou que todos os padres e
bispos deveriam prestar juramento de lealdade perante o altar à república ou
sofreriam demissão, deportação ou morte. 2 Apenas alguns bispos fizeram o
juramento, mas metade do clero ativo o cumpriu. 3 Pouco mais de um ano
após a queda da Bastilha, o clero católico deixou de ser considerado uma
figura de autoridade e sabedoria para se tornar um funcionário de um
Estado sem Deus. No caos que se seguiu, milhares de padres e freiras foram
mortos, outros milhares foram forçados a se casar ou fugiram do país.
Quando o “Culto ao Ser Supremo” foi anunciado em maio de 1794,
apenas algumas paróquias permaneciam abertas.
Quem poderia prever que isso aconteceria em uma nação com uma
monarquia e antigas raízes católicas? Por que a Igreja francesa não estava
preparada para isso? E nós? Podemos vislumbrar o que está por vir?
O filósofo francês Bernard-Henri Levy nos lembra como pequenos e
insignificantes grupos de descontentes podem se tornar muito poderosos.
Levy se lembra de como a multidão que freqüentava as cervejarias de
Munique na década de 1920 ficava hipnotizada pelos delírios de um artista
fracassado chamado Hitler. “Começa com um grupo, uma seita e, dentro
dessa seita, uma aberração local, uma pequena novidade, que a princípio
ninguém imagina que passará do estágio de acidente, ou de anormalidade
aberrante, ou ambos — e que graças a um reforço rápido, por causa de
uma atração estranha, porém irresistível, logo afeta toda a história
mundial”. 4
Tanto a Revolução Francesa quanto a Russa têm uma proveniência
semelhante. Levy nos assegura que nós, nos Estados Unidos, não vamos
experimentar uma tomada de poder semelhante por aqueles que
anteriormente foram marginalizados. Sua cautela implica levar as idéias a
sério, não importa o quão tolas ou perturbadas elas pareçam.
Em qual momento judeus alemães perceberam o que os nazistas tinham
em mente? Entre eles estavam artistas, intelectuais, professores, artesãos,
famílias e instituições que floresceram por séculos. A ascensão dos nazistas
ocorreu lentamente no início. Hitler foi preso em 1924 pelo fracassado
“Putsch da Cervejaria” — uma tentativa fracassada de derrubar o governo
alemão. Mas ele usou sabiamente aquele ano para escrever Mein Kampf,
que lhe trouxe maior notoriedade e riqueza. Menos de dez anos depois,
Hitler se tornou chanceler da Alemanha. Dachau, o primeiro campo de
concentração, foi inaugurado no mesmo ano. Hitler tornou-se muito mais
que um chanceler; tornou-se ditador. Ao aprovar a Lei de Habilitação de
1933, 5 o Reichstag deu a Hitler e ao Partido Nazista o poder de promulgar
leis sem a aprovação do Reichstag.
Um dos principais escritores da Alemanha do período anterior a 1933 foi
Joseph Roth. Seu romance de 1932, Marcha Radetzky, é considerado o
melhor retrato fictício do Império Habsburgo em declínio sob o Imperador
Franz Joseph. 6 Ele escreveu vários romances de sucesso antes desse — Hotel
Savoy (1924), Die Flucht ohne Ende (1927) e Hiob (1930) —, todos
enquanto trabalhava como jornalista. A família de Roth era judia e ele
interrompeu sua educação para lutar na frente oriental na Primeira Guerra
Mundial. Seu trabalho no jornal começou quando voltou a Viena. De
acordo com seu tradutor inglês, Michael Hoffmann, trabalhou como
jornalista enquanto vivia entre Berlim e Paris. 7 Foi desde esta perspectiva
privilegiada que Roth viu a Europa marchar em direção à próxima guerra
mundial. Roth foi o primeiro jornalista a mencionar Adolph Hitler na
imprensa, em 1924, ano em que passou na prisão.
Em 1933, Roth escreveu um ensaio em Paris, “The Auto-da-Fé of the
Mind”. 8 As queimas de livros pelos nazistas começaram em Berlim 43 dias
após a Lei de Habilitação, em 6 de maio, com 20.000 livros queimados, e
cinco dias depois com outros 25.000. Livros de autores judeus eram a
maior prioridade. Roth chamou de auto-da-fé, fazendo referência a uma
queima pública geralmente reservada a criminosos e hereges, um
instrumento da Inquisição Espanhola. Aqueles que resistiram à ascensão de
Hitler assistiram a como a mentalidade da nação se tornava “a primeira
derrota”. Roth rastreia a causa da queima de livros na mentalidade
prussiana, representada por Otto von Bismarck, que dava primazia a tudo o
que é material sobre a vida do intelecto. Os militares, engenheiros,
químicos e professores também participam, mas entre eles o professor “é de
fato o inimigo mais perigoso (o mais dogmático) da civilização européia, o
inventor do equivalente filológico do gás venenoso”. 9 A condenação de
Roth aos professores foi baseada em sua experiência de como tantos foram
absorvidos, voluntariamente ou não, pela máquina de matar nazista. Roth
está se referindo à extraordinária capacidade que os intelectuais possuem de
racionalização, especialmente com base em servir a ideais abstratos como os
do Reich alemão.
Ao mesmo tempo, contudo, Roth reconhece o problema oposto da pura
ignorância, o resultado do materialismo representado por Bismark. Paul
von Hindenburg, o presidente que assinou o Ato de Capacitação e
entregou o poder a Hitler, confessou publicamente que “nunca tinha lido
um livro em sua vida”. 10 Roth previu isso em 1925: “Estaria um povo que
elege como seu presidente um ícone que nunca leu um livro tão longe de
queimar livros?”. 11 Roth comenta ainda que Hitler não teria sido tão
generoso em seus elogios a Benito Mussolini se tivesse “estudado história
romana mais de perto!”. 12
Roth termina seu ensaio com gratidão por ser judeu: mesmo que tentasse
colaborar — se a fraqueza moral o tivesse vencido —, ainda assim a repulsa
dos nazistas em relação aos judeus teria encerrado esse esforço. Joseph Roth
morreu aos quarenta e quatro anos, uma morte prematura provocada pela
devastação da bebida e pela vigília da morte da civilização, tal como ele a
conhecia.
LIÇÕES DO PASSADO
Déspotas surgem em muitas variedades. Eles podem assumir a forma de
manifestantes violentos que conseguem manter alguns oradores fora dos
campi universitários, como se tornou comum na última década. A violência
física tornou-se comum nesses protestos, e essa atividade criminosa não foi
desencorajada por políticos e comissários de polícia que ordenaram a
retirada da polícia. Mais recentemente, senadores de esquerda diante de
câmeras de tv humilharam cruelmente um indicado à Suprema Corte por
acusações infundadas de agressões sexuais para evitar que um juiz,
considerado conservador, ocupasse uma cadeira na corte.
Por enquanto, o leitor pode ter uma idéia geral observando como o uso
do poder é justificado por aqueles que afirmam ter maior esclarecimento e
propósito moral do que o resto de nós. Um exemplo é como os programas
lgbtq na educação pública são implementados apesar das objeções de pais
e grupos religiosos. 13 A pesquisa fornece os números para justificar esses
programas: de acordo com uma pesquisa de 2013 da glsen, uma
organização sem fins lucrativos nacional focada em fornecer espaços
educacionais seguros para alunos lgbtq, apenas 5% dos alunos lgbtq
relataram ter aulas de saúde que incluíam representações positivas de
tópicos relacionados a lgbtq. 14
Não importa se os pais não querem “representações positivas” dos
relacionamentos lbgtq porque isso contradiz seus valores religiosos. O que
quer que aconteça no topo da sociedade entre os líderes na academia,
mídia, política e negócios pode acontecer em qualquer nível abaixo, até na
família e em vários relacionamentos. A tentação de ditar como os outros
devem pensar e agir é promovida por formas de educação que tentam
destruir nossa liberdade de espírito.
Em 1953, o dramaturgo Arthur Miller (1915–2005) escreveu As bruxas
de Salém (The Crucible) em reação às audiências de McCarthy, o assédio do
governo a pessoas acusadas de serem membros do Partido Comunista. As
audiências levaram a uma “Lista Negra de Hollywood”, um acordo entre os
grandes estúdios de não empregar conscientemente um comunista ou
qualquer pessoa associada a um grupo que tentasse “derrubar o governo dos
Estados Unidos”. Como resultado, atores, diretores e roteiristas
proeminentes perderam sua renda e seu futuro. O reverenciado Charlie
Chaplin foi forçado a deixar os Estados Unidos em 1952 e jurou nunca
mais voltar. Em retrospecto, podemos ver que McCarthy estava certo sobre
a infiltração de espiões soviéticos no governo dos Estados Unidos, mesmo
que suas táticas extrapolassem o necessário e pessoas fossem
desnecessariamente prejudicadas. 15
A peça de Miller compara os anticomunistas aos envolvidos nos
julgamentos das bruxas de Salém em 1692. A simpatia de Miller na época
era com os comunistas. Independentemente das ideologias de Miller ou
McCarthy, As bruxas de Salém retrata como a histeria pode varrer uma
comunidade alimentada pela inveja ou ambição do ser humano. Os
personagens de Miller são modelados em figuras retiradas dos relatos
históricos de Salém: um clérigo frustrado e solitário tenta descobrir por que
sua filha não come e se depara com um incidente que irá desencadear a
caça às bruxas: quatro adolescentes dançando na floresta escura, cada uma
tentando negar, encobrir e culpar os outros por estarem lá. No final dos
anos 1600, a população de Salém acreditava em bruxas, e era nos bosques
que cercavam suas cidades e vilas que elas viviam. Assim, a linha das
árvores era literalmente uma linha de fronteira entre os cristãos e as forças
pagãs. À medida que a investigação se aproxima de expô-las, as jovens
começam a fazer vagas acusações de bruxaria, até mesmo alterando sua
aparência e comportamento para sugerir uma influência maligna.
Rapidamente, essas acusações são acatadas com veemência pelos habitantes
locais que, em nome de Deus, buscam a fonte do mal que atormenta os
aflitos.
Um clérigo é chamado para examinar os adolescentes acusados, para ver
se um exorcismo será necessário. Ele não percebe o que vários cidadãos
importantes perceberam imediatamente, que a epidemia está sendo usada
para acertar contas antigas, vingança e aquisição de terras, tudo motivado
pela inveja e ressentimento. As detenções são feitas e o representante do
governo chega para presidir o julgamento. Ele tenta realizar um inquérito
equilibrado, mas uma vez desafiado, seu orgulho o leva a cair na conversa
dos falsos acusadores. Vários dos cidadãos proeminentes cuja integridade
permaneceu intacta são executados porque eram eles que os acusadores
queriam roubar.
Esta peça é impressionante de ler e mais ainda de assistir. Miller é mais
conhecido por seu clássico A morte do caixeiro viajante de 1949, mas As
bruxas de Salém cresceu em relevância para a cultura americana —
regularmente vemos episódios de histeria em grupos, motivados por razões
insignificantes e nada razoáveis, mas capazes de arruinar vidas pelo simples
fato de gritarem mais alto.
SHOAH
Quem quiser saber aonde leva o despotismo, fará bem em assistir Shoah,
um documentário de nove horas sobre o Holocausto. O diretor Claude
Lanzmann levou onze anos para fazer este filme notável, filmando 350
horas de entrevistas com testemunhas, sobreviventes e até mesmo
perpetradores, além de visitas a campos de extermínio. Lanzmann criou
uma obra-prima, mas mais do que isso, ele criou a coisa mais próxima que
temos de um registro definitivo de um dos maiores males da história
humana. O leitor pode se perguntar como consegui assistir a este filme por
nove horas; respondo que não conseguia parar de assistir Shoah, pois o
filme não deixava. A Criterion Collection publicou uma versão
completamente restaurada do filme. 16 Assisti-lo é, em certo sentido, como
ler Os miseráveis — o leitor sente fome de justiça. Ao contrário do romance
de Hugo que inspirou a famosa peça musical, em Shoah a justiça nunca
vem, não há alívio. A única satisfação vem quando alguém reserva um
tempo para se lembrar e contar a história, como Lanzmann, sem piscar ou
desviar o olhar.
Um filme como este não é feito sem riscos. A Alemanha não gostou de ver
seu passado nazista apresentado de forma tão reveladora. Muito de seu
material foi coletado por meio de câmeras ocultas. Houve ameaças de
morte e um entrevistado atacou Lanzmann depois de descobrir um
microfone escondido. Lanzmann passou um mês no hospital se
recuperando.
Há uma cena que ainda me assombra: um judeu tcheco, Filip Müller, foi
designado para trabalhar nas portas das câmaras de gás. Em troca de seu
trabalho, Müller sobreviveu. Lanzmann pediu que ele descrevesse o que
viu:
Müller: Veja, uma vez que o gás foi despejado, funcionou assim: subiu do solo para cima. E na
terrível luta que se seguiu — porque era uma luta — as luzes foram apagadas nas câmaras de gás.
Estava escuro, ninguém podia ver, então as pessoas mais fortes tentaram subir mais alto. Porque
provavelmente perceberam que quanto mais alto ficavam, mais ar havia. Eles poderiam respirar
melhor. Isso causou a luta. Em segundo lugar, a maioria das pessoas tentou abrir caminho até a
porta. Foi psicológico; eles sabiam onde estava a porta; talvez eles pudessem forçar a saída. Foi
instintivo, uma luta mortal. É por isso que as crianças, os mais fracos e os idosos sempre acabam
ficando para trás. Os mais fortes estavam no topo. Porque na luta de morte, um pai não percebeu
que seu filho estava embaixo dele.
Lanzmann: E quando as portas foram abertas?
Müller: Eles caíram. As pessoas caíram como blocos de pedra, como pedras caindo de um
caminhão. 17

“Porque na luta de morte, um pai não percebeu que seu filho estava
embaixo dele”: nunca esqueci essa frase desde a primeira vez que a ouvi.
Sou obrigado a me perguntar o que se passava dentro de um homem como
Filip Müller, depois da guerra, que tem consciência suficiente para fazer
essa observação. A maioria dos entrevistados de Lanzmann confessou saber
o que estava acontecendo, mas continuou “fazendo seu trabalho”. Essa foi a
mesma desculpa usada pelos criminosos de guerra nazistas nos Julgamentos
de Nuremberg 18 e pelo arquiteto de Hitler, Albert Speer, 19 em suas
memórias.
Shoah foi chamado, merecidamente, de o melhor documentário de todos
os tempos e só pode ser comparado a The Sorrow and the Pity, de Marcel
Ophüls, de 1969. 20 O documentário de quatro horas e duas partes de
Ophüls sobre a colaboração do governo de Vichy na França com o Terceiro
Reich foi um avanço na produção de documentários, e é evidente que The
Sorrow and the Pity serviu de modelo para Lanzmann. Mas Shoah é um
filme diferente em tipo, não em grau, de The Sorrow and the Pity.
É ISTO UM HOMEM?
Existem muitos livros notáveis sobre o Holocausto. Entre eles, um tem um
lugar especial — as memórias de Auschwitz de Primo Levi, É isto um
homem? (1947). É uma exposição tão horrível da condição humana que
também é incomparável. 21 Nascido em 1919 em Turim, na Itália, Levi foi
criado em uma família judia culta. Sua juventude esteve ligada ao crescente
movimento fascista, do qual participou de forma nominal, preferindo
esquiar a praticar tiro ao alvo. Ele se tornou um químico após se formar na
Universidade de Turim.
Quando Benito Mussolini caiu do poder, a Itália alinhou-se com os
Aliados. O exército alemão avançou rapidamente para ocupar o norte da
Itália. Levi, apesar de sua aversão à guerra, juntou-se à resistência italiana,
mas foi capturado pela milícia fascista que trabalhava com os nazistas. Ele
seria baleado como guerrilheiro, mas quando Levi disse aos seus captores
que era judeu, eles o enviaram para um campo de internamento italiano.
Quando os nazistas ocuparam o campo, eles enviaram Levi e outros
prisioneiros judeus em caminhões para Auschwitz. Ele ficou preso em
Auschwitz por um ano, até que os soviéticos libertaram o campo em 1945.
Dos 650 judeus que chegaram com ele, apenas vinte sobreviveram. Como
um dos vinte sobreviventes, Primo Levi passou a contar a história.
Seu relato enfoca os próprios prisioneiros, como eles lutaram para se
adaptar ao cativeiro, à fome, ao trabalho escravo, aos espancamentos
constantes e ao medo da morte. Ele calmamente guarda suas palavras de
condenação apenas para os atos mais flagrantes de desumanidade. O relato
de Levi é distanciado em alguns lugares, falando como um cientista que
descreve um espécime, até o instante no qual aquilo que ele vê dissolve
toda a distância e sua voz grita em lamento.
O trem do campo de internamento pára; Levi é colocado em um
caminhão carregado com outros prisioneiros italianos e levado para
Auschwitz, onde são conduzidos a uma grande sala vazia. Ordenam que
formem fileiras de cinco e se desnudem. Seus sapatos são empilhados,
depois os prisioneiros são arrastados por uma porta aberta e o vento gelado
enche a sala. Quatro homens com navalhas entram vestindo calças listradas
e jaquetas com números costurados nelas. Depois de barbeados, os recém-
chegados são colocados em um banheiro com chuveiro sem lugar para se
sentar. Eles não recebem água para beber depois de viajarem por cinco dias.
Eles ficam de pé e tremendo. Outro homem de vestimenta listrada entra
falando italiano, dizendo que precisam ser desinfetados. Um sino toca
acordando o acampamento, depois cinco minutos de uma ducha quente.
Ainda molhados, eles recebem roupas e sapatos. Sem tempo para se vestir,
eles são conduzidos em meio ao gelo e à neve, de onde correm para um
quartel. Vestem-se e ficam em pé nas paredes — ninguém se olha. Levi
escreve:
Então, pela primeira vez, percebemos que faltam em nossa língua palavras para expressar essa
ofensa, a demolição de um homem. Em um momento, com intuição quase profética, a realidade
nos foi revelada: havíamos chegado ao fundo. Não é possível afundar mais baixo do que isso;
nenhuma condição humana é mais miserável do que esta, nem poderia ser concebivelmente
assim. Nada mais nos pertence; eles tiraram nossas roupas, nossos sapatos, até mesmo nosso
cabelo; se falarmos, eles não nos ouvirão, e se ouvirem, não compreenderão. Eles até tirarão o
nosso nome: e se quisermos mantê-lo, teremos que encontrar forças para fazê-lo, para administrar
de alguma forma que por trás do nome algo de nós, de nós como éramos, ainda permaneça. 22

O testemunho de Primo Levi, encontrado em É isto um homem? e seus


outros escritos, nos lembra do que pode acontecer quando se permite que
uma ameaça ignorada avance. Ele cometeu suicídio em 1987, pulando de
um patamar interno de seu prédio e caindo fatalmente no andar térreo. Era
bem conhecido entre seus amigos que ele sofria de depressão. Alguns
amigos acreditam que ele perdeu o equilíbrio, argumentando que, como
químico, Levi teria inventado uma maneira mais fácil de morrer. Um
companheiro sobrevivente do Holocausto, Elie Wiesel, entendeu melhor,
talvez, quando disse: “Primo Levi morreu em Auschwitz quarenta anos
depois”. 23
SINFONIA DAS CANÇÕES TRISTES
Em 1976, o compositor polonês Henryk Górecki (1933–2010) compôs
sua terceira sinfonia, A sinfonia das canções tristes. Em cada um de seus três
movimentos, uma soprano solo canta letras de textos cuidadosamente
escolhidos. No primeiro movimento, Górecki escolheu uma canção
folclórica da Silésia que descreve o lamento de uma mãe por seu filho
morto na guerra. O segundo movimento foi inspirado por um texto
encontrado na parede de uma cela de uma prisão da Gestapo em 1944,
escrito por Helena Wanda Blazusiakowna, de 18 anos: “Não, Mãe, não
chores, casta Rainha dos Céus. Ajude-me sempre. Ave Maria”. A melodia
de uma canção folclórica da Silésia é cantada no terceiro movimento, ao
texto da Virgem Maria falando a Jesus na cruz: “Ó meu filho, amado e
escolhido, compartilha as tuas feridas com a tua mãe”.
Esta sinfonia é uma homenagem linda, assustadora e hipnotizante às
vítimas da Segunda Guerra Mundial na Polônia: os soldados mortos, as
mães em luto, a busca de consolo espiritual na fé católica. A sinfonia
estreou em 1977 e foi considerada um fracasso. 24 Essa não foi a única
reação negativa ao trabalho, o que mostra como a vanguarda estava
arraigada na elite artística da época. Uma das principais figuras dessa elite
foi o compositor e maestro francês Pierre Boulez, que estava sentado ao
lado de Górecki. Seu único comentário foi “merde”. 25 Górecki estava
desafiando não apenas o sistema dodecafônico, mas também a atitude anti-
religiosa que prevalecia ali. As tentativas de descartar a sinfonia como
reacionária falharam devido a uma gravação comercial lançada em 1992. 26
A gravação de Nonesuch com a soprano Dawn Upshaw tornou a sinfonia
de Górecki mundialmente famosa. A gravação vendeu mais de um milhão
de cópias, o que não tinha precedentes para um compositor clássico
moderno. O produtor achou que teria sorte se vendesse de vinte a trinta
mil. 27 Se você já ouviu a Sinfonia das canções tristes, você entende sua
popularidade e, se ainda não ouviu, há um grande presente esperando por
você. 28 Quando a ouvi pela primeira vez, senti como se ela ultrapassasse os
limites do que considerava belo. O crítico musical Nicholas Kenyon, após
uma apresentação ao vivo em Londres em 1989, escreveu: “Foi como se
uma faísca tivesse sido acesa. A noite teve todos os sinais de um
acontecimento que pode mudar o rumo do nosso gosto musical”. 29
Incluí Sinfonia das canções tristes porque é um exemplo de criação artística
notável sendo rejeitada pela elite cultural por não estar de acordo com suas
expectativas. A lição aqui é que a sinfonia de Górecki conquistou as pessoas
com sua originalidade e beleza. Não houve qualquer pressão sobre o
público católico para “apoiá-lo” por razões não-musicais. Górecki escolheu
compor para o ouvido humano e não para a aprovação dos porteiros da alta
cultura. Eles difamam e atacam a música de grande beleza, com medo de
que ela chegue aos ouvidos do mundo. O poder da elite falhou, e todas as
músicas compostas para sua aprovação falharam com ela. Há uma diferença
importante, como ficou demonstrado, entre o público aplaudir uma obra
porque é o que se espera dele ou porque foi movido pela música que ouviu.
Górecki demonstra que o que a elite nos diz de que devemos gostar não
pode competir com a arte que revela beleza em termos humanos.

1 Robert J. Fogelin, Understanding Arguments: An Introduction to Informal


Logic. Nova York: Harcourt Brace Jovanovich, 1982, p. 96.
2 John McManners, The French Revolution & The Church. Nova York:
Harper Torchbooks, 1969, 38, p. 47.
3 McPhee, Peter. Liberty or Death: The French Revolution. Nova York: Yale
University Press, 2016, p. 124.
4 Bernard-Henri Levy, Left in Dark Times: A Stand Against the New
Barbarism, tradução de Benjamin Moser. Nova York: Random House,
2008, p. 208.
5 Volker Ullrich, Hitler: Ascent 1889–1939, tradução de Jefferson Chase.
Nova York: Alfred A. Knopf, 2016, pp. 440–41. A Lei de Capacitação de
1933, aprovada tanto no Reichstag quanto no Reichsrat, foi uma emenda à
Constituição da República de Weimar, assinada pelo presidente Paul von
Hindenburg, ex-comandante do exército alemão durante a Primeira Guerra
Mundial. Assim, a liderança política alemã abriu mão da liberdade do povo
alemão e criou uma ditadura de fato.
6 Joseph Roth, Radetzky March, tradução de Michael Hoffmann. Londres:
Granta Books, 2003.
7 “European Dreams; Rediscovering Joseph Roth”, em The New Yorker, 19
de janeiro de 2004, disponível em
https://www.newyorker.com/magazine/2004/01/19/europeandreams.
8 Joseph Roth, What I Saw: Reports from Berlin: 1920–1933, tradução de
Michael Hoffmann. Nova York: W. W. Norton & Company, 2003, pp.
207–217.
9 Ibid., p. 209.
10 Ibid., p. 211.
11 Ibid., p. 212.
12 Ibid., p. 213.
13 Jeanne Sager, “The Power of Inclusive Sex Education”, em The Atlantic,
17 de junho de 2017, disponível em
https://www.theatlantic.com/education/archive/2017/07/the-power-of-
inclusive-sex-ed/533772/.
14 Ibid.
15 Nicolas von Hoffman, “Was McCarthy Right About the Left?”, em
Washington Post, 14 de abril de 1996, disponível em
https://www.washingtonpost.com/archive/opinions/1996/04/14/was-
mccarthy-right-about-the-left/a0dc6726-e2fd-4a31-bcdd-5f352acbf5de/?
utm_term=.a1321b99a626.
16 Shoah, direção de Claude Lanzmann. 1985: Nova York: The Criterion
Collection, Inc., 2013, dvd.
17 Claude Lanzmann, Shoah: An Oral History of the Holocaust, The
Complete Text of the Film, prefácio de Simone de Beauvoir. Nova York:
Pantheon Books, 1985, p. 125.
18 Os Julgamentos de Nuremberg, realizados em 20 de novembro de 1945
e 1º de outubro de 1946, julgaram vinte e quatro líderes do Terceiro Reich
perante um Tribunal Militar Internacional. Todos os procedimentos oficiais
dos julgamentos de Nuremberg podem ser encontrados aqui:
http://avalon.law.yale.edu/imt/imtmin.asp.
19 Albert Speer, Inside the Third Reich, tradução de Richard e Clara
Winston. Nova York e Toronto: Macmillan, 1970. A edição alemã,
Erinnerungen, foi publicada em 1969.
20 The Sorrow and the Pity, direção de Marcel Ophüls. 1969;
Hertfordshire, uk: Arrow Academy. 2017, Blu-ray.
21 Primo Levi, If This Is a Man, tradução de Stuart Woolf, apud. The
Complete Works of Primo Levi, vol. 1. Nova York: Liveright Publishing
Company, 2015.
22 Ibid., 22–23.
23 Diego Lambetta, “Primo Levi’s Last Moments”, em The Boston Review,
1 de junho de 1999, disponível em https://bostonreview.net/diego-
gambetta-primo-levi-last-moments.
24 Luke B. Howard, “Laying the Foundation: The Reception of Górecki’s
Third Symphony, 1977–1992”, em Polish Music Journal, vol. 6, n. 2,
disponível em https://polishmusic.usc.edu/research/publications/polish-
music-journal/vol6no2/gorecki-third- symphony/.
25 Ibid., p. 216.
26 Depois de um concerto da Orquestra Sinfônica de Atlanta em 1986,
perguntei ao maestro convidado principal Louis Lane o que ele achava da
Terceira sinfonia de Górecki. Lane descartou com um aceno de mão. Isso
foi antes da gravação do Nonesuch. Tive a sorte de comprar um lp Erato
de um filme francês de 1985, Police, que usava a Terceira sinfonia como
trilha sonora.
27 William Robin, “How a Somber Symphony Sold More Than a Million
Records”, em The New York Times, 09 de junho de 2017, disponível em
https://www.nytimes.com/2017/06/09/arts/music/how-a-somber-
symphony-sold-more-than-a-million-records.html.
28 Este vídeo é uma apresentação impressionante da Terceira sinfonia de
Gorecki com a soprano Zofia Kilanowicz, o maestro Anton Wit e a
Orquestra Sinfônica da Rádio Nacional da Polônia em Katowice:
https://www.youtube.com/watch?v=rmDuqL23gN0.
29 Nicholas Kenyon, “Jump Up and Shout”, em Observer, 09 de abril de
1989.
capítulo xii
Jogando a culpa nos outros:
bárbaros e cães de palha

O autor e crítico literário Harold Bloom descreveu a leitura como a


forma de “ampliar a existência solitária”. 1 Alguns leitores podem
presumir que muito mais está em jogo. Eles podem considerar isso
parte da restauração de uma civilização que foi perdida. Ou podem
equiparar a educação clássica ao benefício moral. Existem boas razões para
tais associações, mas uma palavra de cautela é necessária. É comum creditar
à educação grega e romana a solução para salvar o Ocidente da barbárie.
Mas, tomada superficialmente, essa afirmação é falsa.
Os estudiosos apontam que foram os gregos antigos que primeiro
aplicaram o rótulo de bárbaros àqueles que não falavam bem o grego
devido ao balbucio. 2 Portanto, “bar-bar” era a alcunha zombeteira de quem
balbuciava, que se tornou mais tarde um rótulo para quem não sabia falar a
língua. Seguindo o exemplo, os romanos rotulavam qualquer pessoa que
vivesse fora das fronteiras de seu império como bárbaros. Não lhes
importava que as grandes tribos bárbaras muitas vezes vivessem de modo
semelhante aos romanos, embora em circunstâncias menos confortáveis.
Desde os tempos antigos, as pessoas eram consideradas bárbaras se falassem
uma língua estranha, vivessem em uma cultura desconhecida ou
ameaçassem a vida de outros grupos.
Uma vez rotuladas como bárbaras, essas pessoas eram freqüentemente
submetidas à crueldade desumanizante por aqueles que se consideravam os
guardiões da civilização: os franceses no Vietnã, os belgas no Congo, os
alemães na África Oriental, os britânicos na Índia, os espanhóis no México
e América do Sul, os americanos nos Estados Unidos com seus escravos
africanos e o tratamento horrível dos povos nativos.
Não quer dizer que todas as culturas são iguais em termos objetivos — é
compreensível que uma horda de tribos germânicas enfrentando as colunas
romanas evoque imagens que transcendem uma mera diferença de idioma e
geografia. É, antes de tudo, distinguir entre tais diferenças objetivas e a
maneira como certas culturas usavam suas vantagens, muitas vezes com
efeito desumanizador.
CORAÇÃO DAS TREVAS
Nenhum escritor retratou a realidade da vida sob o domínio colonial com a
visão implacável de Joseph Conrad. Em Coração das trevas, 3 o personagem
de Conrad, Marlow, narra sua história como capitão de um navio a vapor
dilapidado que atravessa um rio africano até o Congo para entrar em
contato com um homem chamado Kurtz. Marlow se destacou em entregar
cobiçadas presas de elefante para a The Company na Inglaterra. Embora seja
um marinheiro que viu muito do mundo, Marlow fica enojado com o que
vê sendo feito aos indígenas africanos que trabalham nas minas:
Estavam morrendo aos poucos… isso era óbvio. Não eram inimigos, não eram criminosos, já não
eram seres terrenos… não passavam de espectros negros de doença e fome, jazendo perplexos
naquela escuridão esverdeada. Trazidos de todos os cantos do litoral, dentro da legalidade total
dos contratos temporários, perdidos em ambientes hostis, alimentados com comida estranha,
adoeciam, tornavam-se ineficientes e, então, obtinham permissão para rastejar até ali e descansar.
4

No meio do rio, Marlow encontra o gerente da Estação Central, que


explica que “cada estação deve ser como um farol na estrada para coisas
melhores, um centro de comércio, é claro, mas também para humanizar,
melhorar, instruir”. 5
Na verdade, Kurtz, o chefe da próxima estação, Inner Station, nas
profundezas do Congo, é descrito pelo gerente como uma pessoa ideal para
esta missão, “um emissário da compaixão, ciência e progresso”, um homem
enviado “para conduzir a causa que nos foi incumbida pela Europa,
digamos, de uma inteligência superior, muita compreensão, unidade de
propósito”. 6
Chegando mais perto de seu destino, Marlow observa ao longo das
margens do rio e de repente vê “uma explosão de gritos, um rodopio de
braços negros, um punhado de mãos batendo palmas, pés batendo, corpos
balançando, olhos girando, à sombra da folhagem pesada e imóvel”. Então
percebe: “Não, não eram inumanos. Bem, os senhores sabem, isso era o
pior — a suspeita de que não eram inumanos. Tal noção surgia aos poucos.
Eles urravam e pulavam, e giravam e faziam caretas horrendas; mas o que
nos impressionava era, precisamente, a idéia de que eram humanos —
tanto quanto nós”. 7
QUEM SÃO OS BÁRBAROS?
O cenário do conto fictício vívido e sombrio de Conrad era bastante real.
No início do século xx, a colonização da África estava no auge: o enorme
continente estava dividido entre as potências européias. O Congo pertencia
ao Império Holandês e sofreu com as demandas desumanas de Leopoldo ii
para a produção de borracha. O Império Britânico reivindicou grandes
áreas da África: Serra Leoa, Gold Coast, Nigéria, África do Sul,
Basutolândia, Suazilândia, Rodésia do Norte e do Sul, Quênia, Uganda,
Sudão e Egito. Os maus tratos aos povos nativos foram possíveis devido ao
pressuposto de que uma nação estava “civilizando” outra. Não sei como
seria possível civilizar um povo tratando-o de modo sub-humano. O
motivo por trás da ocupação militar organizada de várias regiões era o
lucro, embora exploradores, cientistas e missionários legítimos muitas vezes
abrissem o caminho.
O filósofo francês Alain Finkielkraut resume o motivo pelo qual um
grupo rotula outro como bárbaro: “Todo mundo quer governar todo
mundo e, portanto, é inimigo de todos”. 8 Os bárbaros, de acordo com essa
visão, não são os conquistados, mas os conquistadores. Ele cita um discurso
proferido na unesco pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss: “O
bárbaro é antes de tudo um homem que acredita na barbárie”. 9
Finkielkraut, com grande força, argumenta ironicamente que os bárbaros
são aqueles que descrevem os outros como bárbaros.
Os leitores devem lembrar que, no século xx, foram os intelectuais que
celebraram o governo de Lenin e depois de Stalin como os líderes do
“progresso”. Vários deles continuaram sua adulação mesmo depois que as
provas dos expurgos, campos de concentração, execuções em massa e a
fome na Ucrânia de Stalin — 5,5 milhões foram mortos nos anos 1932–
1933 10 — foram tornadas públicas. Já em 1927, Julian Benda havia
narrado o auto-engano dos intelectuais europeus que apoiaram Stalin no
influente La trahison des clercs (1927), traduzido como A traição dos
intelectuais. 11 Até hoje, Lenin e Stalin não receberam a devida condenação
devido à influência contínua da esquerda política em nossa cultura. Todo
estudante da oitava série sabe sobre os males de Hitler e o Holocausto, mas
quase nenhum sabe que na lista dos ditadores mais assassinos Hitler está
em terceiro lugar, depois dos comunistas Mao Zedong da China e Stalin, e
pouco antes de Lenin. Enquanto isso, o simbolismo soviético é
abertamente abraçado pelos atuais manifestantes violentos “antifascistas”.
Matthew White catalogou os piores massacres da história da humanidade,
e dezoito de sua lista dos cinqüenta maiores morticínios ocorreram no
século xx. 12 Além do número de mortos durante as duas guerras mundiais
e no Vietnã, aquele século produziu quarenta milhões de mortos na China
devido à vontade de Mao Zedong. O reinado de Joseph Stalin de 1928 a
1953 resultou em vinte milhões de mortes, todas deliberadas. Isso foi
depois que dez milhões morreram na própria Guerra Civil Russa. Outros
dez milhões morreram no início do século na guerra pelo Estado Livre do
Congo.
Segundo a visão judaico-cristã, a natureza humana não mudou desde a
Queda, embora os cristãos acreditem que a Encarnação de Cristo iniciou o
processo de restauração da natureza humana. A evidência prática de tal
restauração, entretanto, é escassa. Nós nos consideramos mais civilizados
do que épocas anteriores, mesmo quando nos rebaixamos a um paganismo
que nega fatos científicos básicos, como as origens genéticas das diferenças
entre homens e mulheres. Temos em nossas mãos dispositivos tecnológicos
que nos fazem sentir inteligentes, hiperconscientes e no controle de nossas
vidas, mesmo quando encontramos maneiras de ignorar o genocídio
silencioso do aborto legalizado. Esse fator humano — que os cristãos
chamam de “pecado original” — está sempre presente, escondido sob a
pátina da civilização. Entrando no século passado, a elite acreditava que o
progresso era inevitável, que o mundo moderno prometia iluminação e paz.
Em vez disso, foi a era dos piores genocídios da história humana. Uma
reavaliação sobre o quanto progredimos além da “barbárie” ainda está por
fazer.
Por que devemos presumir que o século xxi será melhor? Já testemunhamos o
11 de setembro, atrocidades em massa, terrorismo, guerras, ameaças
nucleares, nações falidas, o ressurgimento do autoritarismo na Rússia e a
ascensão de uma China economicamente poderosa que mantém seu
governo autoritário e tem ambições militares regionais. Enquanto isso, o
Oriente Médio continua a incendiar ódios antigos, chegando cada vez mais
perto de explodir em um conflito mundial. Se você perguntar por que
menciono atrocidades do século xx, como os catorze milhões mortos por
Hitler e Stalin entre 1933 e 1945, é porque concordo com o historiador
Timothy D. Snyder: “Hoje há um consenso geral de que o assassinato em
massa do século xx é da maior importância moral para o século xxi”. 13
Nos Estados Unidos, o conflito social está aumentando e os lados já se
formaram para a batalha sobre imigração, aborto, mudança climática,
casamento, sexualidade e a própria Constituição. Esses conflitos não se
limitam à esfera pública — eles se tornaram parte da vida diária.
O conflito não é apenas global — tornou-se muito pessoal. Por exemplo,
crianças do ensino fundamental estão sendo tratadas como peões na
batalha. O estabelecimento educacional agora dita que certos valores e
atitudes devem ser impressos nos alunos. Assim, os pais descobrem que
seus filhos estão aprendendo valores opostos aos seus, não apenas em
escolas públicas, mas também em escolas religiosas, supostamente fundadas
na ortodoxia religiosa.
A mídia social tornou essa batalha um assunto de todos, acelerando a
longa marcha através das instituições, tornando-a uma verdadeira corrida.
Os “aplicativos” sociais ocupam dezenas de milhões de pessoas todos os dias
enquanto examinam suas telas a qualquer hora e em todos os lugares. Com
o surgimento da interação digital, as boas maneiras e a gentileza básica
foram quase totalmente esquecidas. Atores digitais agem online como
motoristas ziguezagueando e buzinando no trânsito, sem se importar com
sua grosseria, porque são anônimos. E então, há aqueles que
orgulhosamente colocam seus nomes ao lado de sua última diatribe
obscena.
Aqueles que se consideram “bem-educados” enfrentam um dilema: sua
tentativa de engajamento nesses debates, tomando o “caminho certo”,
encontra somente desprezo. Os cavalheiros descobrem que as boas
maneiras atrapalham o engajamento do inimigo nas redes sociais. O que
fazer? Muitos desistiram de ter uma conversa inteligente sobre diferenças.
Alguns capitularam adotando as táticas do agressor da tv — xingamentos,
ultraje moral e agressão verbal.
A educação faz diferença? Tenho observado em mim mesmo uma
tendência de não querer ver aspectos de uma obra de arte que desafiem
diretamente minhas convicções e inclinações mais profundas. Percebi que
estava procurando por concordância, me afastando do que não queria ver.
Quando li o lamento de Kurtz, “O horror, o horror”, não entendi. A
mesma coisa aconteceu quando vi a obra-prima Apocalypse Now de Francis
Ford Coppola, baseada no romance de Conrad, quando Marlon Brando,
como Kurtz, pronunciou a frase. 14 Em ambos os casos, eu não conseguia
entender o “coração das trevas” porque na época não combinava com a
minha compreensão da natureza humana. Eu sabia desde menino sobre a
Queda de Adão e Eva, mas ainda não havia me apropriado totalmente de
seu significado. “O horror” ganhou significado mais tarde, à medida que
fui crescendo e percebi que minha resistência estava enraizada na falta de
autocompreensão.
AS FLORES DO MAL
Charles Baudelaire (1821–1867) foi, de acordo com T. S. Eliot, o maior
poeta cristão desde Dante. 15 A vida do poeta francês, no entanto, não
resistiria ao escrutínio de um moralista cristão, muito menos sua poesia, em
que pecadores superam em número os santos. É por isso mesmo que os
pensadores morais raramente apreciam a espiritualidade dos poetas. No
caso de Baudelaire, seu livro de obras reunidas, o qual chamou de As flores
do mal, começa com um poema, “Ao leitor”, que inverte a primeira
impressão dada pelo título. Longe de glorificar o mal, o poeta segura um
espelho para o leitor. Assim começa:
La sottise, lérreur, le péché, la lésine,
Occupent nos esprits et travaillent nos corps,
Et nous alimentons nos aimables remords,
Comme les mediants nourrissent leur vermine.
Nous péchés sont têtus, nos repentirs sont lâches;
Nous nous faisons payer grassement nous aveaux,
[…]
A tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez
Habitam nosso espírito e o corpo viciam,
E adoráveis remorsos sempre nos saciam
Como o mendigo exibe sua sordidez.
Fiéis ao pecado, a contrição nos amordaça;

Impomos alto preço à infâmia confessada, 16


[…]

Quem procura emoções baratas veio ao lugar errado — Baudelaire está se


dirigindo ao leitor abaixo de suas pretensões superficiais, por trás do rosto
que apresenta ao mundo, para além das mentiras que diz a si mesmo sobre
ser uma “boa pessoa”. O poeta não desiste, não retrai seu soco; seu leitor,
que se esconde por trás de suas lágrimas, na verdade, está aliado ao Diabo:
Et nous rentrons gaiment dans le chemin bourbeaux,
Croyant par de vils daver toutes nos taches.
Sur l’oreiller du mal c’est Satan Trimégiste
Qui Berce longuement notre esprit enchanté,
Et le riche metal de notre volonté
Est tout vaporisé par ce savant chimiste.
E alegres retornamos à lodosa estrada,
Na ilusão de que o pranto as nódoas nos desfaça.
Na almofada do mal é Satã Trimegisto
Quem docemente nosso espírito consola,
E o metal puro da vontade então se evola
Por obra deste sábio que age sem ser visto.

Isso pode parecer para alguns leitores uma espécie de relativismo violento,
uma forma de dizer: “Eu sou tão mau que você também deve ser!”.
Olhando a passagem de perto, pode-se ver a franqueza agostiniana de
Baudelaire sobre a fraqueza da vontade humana. Mesmo que o poema seja
dirigido “ao leitor”, a quem, precisamente, ele está falando? E aqueles que
pensam que o poeta está apenas “rapsodeando” metaforicamente sobre o
Maligno, só precisam seguir a leitura:
C’est le Diable qui tient les fils qui nous remuent!
Aux objets répugnants nous trouvons des appas;
Chaque jour vers l’Enfer nous descendons d’un pas,
Sans horreur, à travers des ténèbres qui puent.
Ainsi qu’un débauché pauvre qui baise et mange
Le sein martyrisé d’une antique catin,
Nous volons au passage un plaisir clandestin
Que nous pressons bien fort comme une vieille orange.
É o Diabo que nos move e até nos manuseia!
Em tudo o que repugna uma jóia encontramos;
Dia após dia, para o Inferno caminhamos,
Sem medo algum dentro da treva que nauseia.
Assim como um voraz devasso beija e suga
O seio murcho que lhe oferta uma vadia,
Furtamos ao acaso uma carícia esguia
Para espremê-la qual laranja que se enruga.

Desejar um “seio murcho” é comparado a espremer o suco de laranjas


velhas — por que o leitor continua lendo este poema? Por que não jogar o
livro contra a parede? O leitor não faz isso porque reconhece a verdade no
retrato do poeta. Existe outra dimensão em nosso ser, algo supostamente
oculto:
Serré, fourmillant, comme un million d’helminthes,
Dans nos cerveaux ribote un peuple de Démons,
Et, quand nous respirons, la Mort dans nos poumons
Descend, fleuve invisible, avec de sourdes plaintes.
Si le viol, le poison, le poignard, l’incendie,
N’ont pas encor brodé de leurs plaisants dessins
Le canevas banal de nos piteux destins,
C’est que notre âme, hélas! n’est pas assez hardie.
Espesso, a fervilhar, qual um milhão de helmintos,
Em nosso crânio um povo de demônios cresce,
E, ao respirarmos, aos pulmões a morte desce,
Rio invisível, com lamentos indistintos.
Se o veneno, a paixão, o estupro, a punhalada
Não bordaram ainda com desenhos finos
A trama vã de nossos míseros destinos,
É que nossa alma arriscou pouco ou quase nada.

Sim, o leitor teve desejos violentos, impulsos para quebrar regras, anular
leis e viver imoralmente. O poeta incita o leitor que está se perguntando:
“Eu sou tão mau assim?”. É isso que o poeta espera suscitar com suas
palavras. Mas então Baudelaire surpreende o leitor: ainda pior do que toda
essa miséria, há um mal que “em um bocejo imenso engoliria o mundo”.
Mais parmi les chacals, les panthères, les lices,
Les singes, les scorpions, les vautours, les serpents,
Les monstres glapissants, hurlants, grognants, rampants,
Dans la ménagerie infâme de nos vices,
Il en est un plus laid, plus méchant, plus immonde!
Quoiqu’il ne pousse ni grands gestes ni grands cris,
Il ferait volontiers de la terre un débris
Et dans un bâillement avalerait le monde;
C’est l’Ennui! — l’œil chargé d’un pleur involontaire,
Il rêve d’échafauds en fumant son houka.
Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat,
— Hypocrite lecteur, — mon semblable, — mon frère!
Em meio às hienas, às serpentes, aos chacais,
Aos símios, escorpiões, abutres e panteras,
Aos monstros ululantes e às viscosas feras,
No lodaçal de nossos vícios imortais,
Um há mais feito, mais iníquo, mais imundo!
Sem grandes gestos ou sequer lançar um grito,
Da Terra, por prazer, faria um só detrito
E num bocejo imenso engoliria o mundo;
É o Tédio! — O olhar esquivo à mínima emoção,
Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado.
Tu conheces, leitor, o monstro delicado
— Hipócrita leitor, — meu igual, — meu irmão!

Existem duas surpresas nas linhas finais deste poema. O leitor não
antecipa que o “tédio” está na raiz do alvoroço moral, nem espera o abraço
fraterno do poeta:
— Hypocrite lecteur, — mon semblable, — mon frère!
— Hipócrita leitor, — meu igual, — meu irmão!

O poeta não fala ex-cathedra como Papa, mas como uma pessoa que
compartilha plenamente, talvez mais, da pecaminosidade do leitor. Mas
este poema acusatório adiciona uma espécie de contexto, de um credo para
tudo o que se segue. Escritor e leitor habitam o mesmo círculo do Inferno,
por assim dizer. O que quer que seja dito a respeito de bárbaros, déspotas
ou fraudes, nenhum de nós pode presumir que vive em uma base moral
mais elevada. No final, queremos ver e isso inclui olhar para nós mesmos.
CÃES DE PALHA
O filósofo John Gray usa o evocativo descritivo “Straw Dogs” para
representar o fracasso da educação em criar uma sociedade melhor e mais
moral. 17 “Qualquer pessoa que busque pensadores liberais clássicos para
livrar o Ocidente de suas dificuldades atuais está fixada em um passado
irrecuperável”. 18 Os humanos, argumenta Gray, não são muito diferentes
dos outros animais. Ele relata que os humanos agora estão menos abastados
nutricionalmente do que na Idade da Pedra. 19 A crença predominante no
progresso humano é um mito — a história apenas conta a mesma história
repetidamente. Viver livremente em uma nação ordenada pelo império da
lei é o que Gray chama de “liberalismo” (que não tem nada a ver com o uso
contemporâneo da palavra em um contexto político americano). 20 O que
ele quer dizer é que nosso atual modo de vida algum dia será considerado
apenas uma era na história mundial, uma era criada pela crença
monoteísta, os Dez Mandamentos e o Sermão da Montanha. Os filósofos
do iluminismo tentaram encontrar uma base não-religiosa para a
moralidade em um mundo cada vez mais secular, mas desde então os
valores liberais lentamente perderam seu domínio nas nações ocidentais.
Com pleno conhecimento da carnificina dos últimos cem anos, Gray
observa sombriamente: “Muito provavelmente olharemos para o século xx
como uma época de paz”. 21 Impérios jamais duram para sempre.
Dada a realidade de uma civilização em declínio, Gray sugere que a
educação deve servir à contemplação, um objetivo mais modesto do que
uma busca por absolutos: “Simplesmente enxergar” deve ser a tarefa. 22 Já
enfrentei esse argumento antes. Quando jovem, presumi que uma boa
educação era necessária para estabelecer o caráter moral e continuar a
construir nossa civilização. Então, na pós-graduação, li um ensaio, “Para
civilizar nossos cavalheiros”, do crítico literário George Steiner, que me
assombra desde então. 23 Steiner aponta que os oficiais da ss nazista eram
produtos do ginásio alemão, sem dúvida um dos sistemas educacionais
mais rigorosos do mundo, a educação liberal por excelência. Observando a
aparente contradição, Steiner coloca a questão: “Certamente devemos nos
perguntar: as humanidades são humanas e, se sim, por que falharam antes
do Holocausto?”. 24 Steiner, um dos homens mais eruditos de nosso tempo,
ainda pergunta “se o estudo e o prazer que um homem tem em ler
Shakespeare o tornam menos capaz de organizar um campo de
concentração”. 25
Os fornos de Auschwitz foram projetados e freqüentemente
administrados por homens altamente educados que liam Goethe e ouviam
Bach à noite, após um dia de trabalho. Homens e mulheres altamente
educados cometeram alguns dos maiores crimes da história. Não seria
difícil compilar uma longa lista de homens e mulheres que leram os antigos
em grego e latim, mas se tornaram traidores, sádicos, torturadores, ladrões
e assassinos. Lenin e Stalin tiveram educação clássica. Lenin estudou como
filho de um inspetor escolar, e Stalin, que gostava especialmente de Victor
Hugo, foi educado pelos jesuítas. 26
Precisamos ter sempre em mente que tantos homens e mulheres
primorosamente educados colaboraram de boa vontade com o Holocausto,
até mesmo com entusiasmo.
Apesar disso, Steiner resistiu ao caminho percorrido por muitos
intelectuais contemporâneos, que optaram pela visão pós-moderna de que
por trás de qualquer reivindicação de uma hierarquia de valores está um
opressor voluntário. Em seu apelo pela afirmação de um significado que
transcende o relativismo das fronteiras culturais e pontos de vista
interpretativos, Steiner se apega ao princípio iluminista segundo o qual a
comunicação significativa sobre a existência é possível: “Estou apostando,
tanto na veia cartesiana quanto pascaliana, na pressão informativa de uma
presença real nos marcadores semânticos”. 27 Steiner usa a frase “presença
real” para emprestar o significado católico da presença de Cristo na
Eucaristia. A aposta de Steiner, como ele diz, é que a linguagem possui
significado.
Sem uma linguagem da “presença real”, como Steiner coloca, as
reivindicações morais e éticas básicas perdem sua base ontológica (realidade
essencial) e se tornam pragmáticas (uma questão de mera escolha). A
menos que haja uma compreensão compartilhada da própria realidade e da
realidade das reivindicações morais a partir das quais surge a indignação
moral legítima, a indignação contra a injustiça ou atrocidade pode ser
recebida com uma rejeição jovial: “Não é da sua conta”. Mais do que
Descartes ou Pascal, Steiner argumenta com um viés tomista. Assim como
Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles, ele afirma que há verdades sobre a
pessoa humana que ignoramos por nossa conta e risco, verdades
subjacentes a qualquer argumento moral.
A cooperação entre as nações não pode ser realizada sem algum acordo
filosófico sobre a natureza humana, mesmo que seja apenas um consenso
prático sobre uma lista de direitos humanos. Tal abordagem para o diálogo
e a organização transcultural tornou-se necessária para eliminar o ceticismo
cada vez maior sobre uma natureza humana universal que se desenvolveu
desde os séculos xviii e xix. Durante este período de “progresso” além das
visões “antiquadas” de uma natureza humana universal, vimos os maiores
genocídios da história. Agora, a natureza humana é negada e a pessoa é
reduzida a sua raça, sexo, etnia e contexto cultural. Com a ascensão do
nacionalismo, as nações lideradas por ditadores procuraram justificar seu
desejo de dominação, distinguindo-se como um povo [Volk] daqueles
menos humanos. Dos bárbaros.
O que torna a educação clássica tão importante se ela não nos torna
pessoas melhores? As respostas são relativamente simples e, penso eu,
persuasivas: primeiro, devemos reformular a questão com a qualificação
adequada: uma educação clássica não garante por si mesma a posse de
virtude e bom senso. Para quem deseja engajar-se na cultura e passar
cultura autêntica para a próxima geração, o estudo dos clássicos é essencial.
Dito isso, esse tipo de educação é necessário, mas não suficiente para
derrotar as idéias destrutivas desta ou de qualquer época.
Em segundo lugar, a educação clássica também é inestimável para libertar
a mente dos preconceitos de uma época ou ideologia. Sem liberdade de
espírito, o pensamento permanece servil, alimentado por quaisquer
mensagens que estão moldando os pensamentos de uma pessoa e
estimulando suas paixões. Na maioria das vezes, as pessoas não pensam por
si mesmas — seus pensamentos dependem dos pensamentos dos outros,
elas assumem as paixões do momento, elas se tornam o que Søren
Kierkegaard chamou de parte da “multidão”. 28
Terceiro, a virtude não é um aplicativo que pode ser baixado, para usar
uma metáfora moderna. Cada indivíduo que constantemente escolher agir
corretamente desenvolverá as virtudes. O conceito de virtude pode ser
ensinado estudando os clássicos, mas não vejo muitas evidências de que
conhecê-lo, ou qualquer outro sistema moral, necessariamente leva a uma
vida virtuosa.
Se seguirmos John Gray, um estudo dos clássicos permite enxergar. E,
pode-se argumentar por sua vez, ao enxergar, a justificativa para as virtudes
se torna aparente e um modelo pode tomar forma na mente. Quando
vemos vários tipos de vida, somos apresentados a escolhas, se devemos
preferir um tipo de vida a outro. Também temos a opção de não fazer nada.
Os vícios também são encontrados na literatura, no cinema, na tv e em
outras mídias. Em nosso mundo pós-verdade, o que tradicionalmente tem
sido considerado vício passa despercebido. Eu qualifico esta observação pela
seguinte razão: luxúria, avareza e, até certo ponto, a gula são reconhecidas,
mas aquelas mais facilmente ocultas — preguiça, ira, inveja e orgulho —
vagam livremente por nosso mundo. Outra aspiração possível surge, e é
perversa. Os clássicos como um todo retratam os atos humanos em um
mundo moralmente ordenado, mas sujeito à tragédia. Em outras palavras,
coisas ruins acontecem a pessoas boas. Alternativamente, a boa sorte vem
para aqueles que não merecem. Mas pelo menos sabemos quem eles são.
Os clássicos nos apresentam diferentes modos de vida, mas permanecem
baseados na mesma cosmovisão ocidental clássica gerada pelo encontro
histórico do cristianismo com Grécia e Roma.
Então, o que podemos dizer sobre o benefício da educação clássica? Um
resultado, pelo menos, é plausível: liberdade de espírito. Aqueles que
possuem liberdade de espírito não são servis. Mas a liberdade de espírito
requer que o mundo seja fundamentalmente inteligível, o que, como vimos,
é negado pela forma dominante de filosofia, o pós-modernismo.

1 The Western Canon, pp. 484–85.


2 The Oldest Dead White European Males, p. 13.
3 Joseph Conrad, The Heart of Darkness and Selected Short Stories. Nova
York: Barnes & Noble Books, 2008. Conrad começou sua serialização de
Coração das trevas em 1899 antes de publicá-lo como um livro em 1902.
4 Ibid., p. 53.
5 Ibid., p. 72.
6 Ibid., p. 62.
7 Ibid., p. 76.
8 Alain Finkielkraut, Em nome da humanidade: reflexões sobre o século xx,
tradução de Judith Friedlander. Nova York: Columbia University Press,
2000, p. 18.
9 Ibid., 16
10 Timonthy D. Snyder, Bloodlands: Europe Between Hitler and Stalin.
Nova York: Basic Books, 2010, p. 55.
11 La trahison des clercs de Benda foi publicado pela primeira vez em 1927
e publicado em 1928 em uma tradução de Richard Aldington. O livro foi
reimpresso com uma introdução de Roger Kimball, disponível em
https://www.amazon.com/Treason-Intellectuals-Julien-
Benda/dp/1412806232/ref=sr_1_1?
keywords=julien+benda&qid=1552501637&s=books&sr=1-1. (Há
tradução brasileira: A traição dos intelectuais. São Paulo: Peixoto Neto,
2007).
12 Matthew White, The Great Big Book of Horrible Things. Nova York:
W.W. Norton & Company, 2012, pp. 528–529.
13 Bloodlands, p. 10.
14 Apocalypse Now de Francis Ford Coppola foi lançado em 1979. Roger
Ebert escreve: “Apocalypse Now é o melhor filme do Vietnã, um dos
melhores de todos os filmes, porque vai além dos outros, para os lugares
sombrios da alma. Não se trata tanto de guerra, mas de como a guerra
revela verdades que preferiríamos nunca descobrir”. Roger Ebert, Apocalypse
Now, 28 de novembro de 1998, disponível em
https://www.rogerebert.com/reviews/great-movie-apocalypse-now-1979.
15 T. S. Eliot, “Baudelaire”, em Selected Essays, tradução de Roy Campbell.
Nova York: Harcourt, Brace, & World, 1964, p. 373.
16 Tradução e notas Ivan Junqueira. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2012. pp. 70–71 — nt.
17 “Nos antigos rituais chineses, os cães de palha eram usados como
oferendas aos deuses. Durante o ritual, eles foram tratados com o maior
respeito. Quando tudo acabou e eles não eram mais necessários, eles foram
pisoteados e jogados de lado… Se os humanos perturbarem o equilíbrio da
Terra, eles serão pisoteados e jogados de lado”, John Gray, Straw Dogs:
Thoughts on Humans and Other Animals. Nova York: Farrar, Straus &
Giroux, 2007, pp. 33–34.
18 John Gray, “Deluded liberals can’t keep clinging to a dead idea”, em
Unherd, 03 de outubro de 2018, disponível em
https://unherd.com/2018/10/deluded-liberals-cant-keep-clinging-dead-
idea/.
19 Straw Dogs, p. 157.
20 A denominação liberal nos Estados Unidos se refere aos progressistas de
esquerda, particularmente os eleitores e simpatizantes do Partido
Democrata — nt.
21 Ibid., pp. 181–182.
22 Ibid., p. 199.
23 George Steiner, “To Civilize our Gentlemen”, em The George Steiner
Reader. Nova York: Oxford University Press, 1984, pp. 25–36.
24 Ibid., p. 35.
25 Ibid.
26 Daniel Kalden, Dictator Literature: A History of Despots Through Their
Writings. Londres: Oneworld Publications, 2018, p. 4 (Lenin) e pp. 40–43
(Stalin).
27 George Steiner, Real Presences. Chicago: The University of Chicago
Press, 1989, p. 215.
28 Kierkegaard descreve a multidão como sendo apenas uma abstração e
que “não demora muito para que essa abstração se torne Deus”. Søren
Kierkegaard, The Sickness Unto Death: A Christian Psychological Exposition
for Upbuilding and Awakening, tradução de Howard V. Hong e Edna H.
Hong. Princeton: Princeton University Press, 1980, p. 118.
parte iii

Bondade: o amor é a cruz


capítulo xiii
Amor parental

Q uando li pela primeira vez Os quatro amores de C. S. Lewis, fiquei


surpreso com o que parecia ser a sabedoria descomplicada de Lewis
impressa em cada página. Um dos mais respeitados estudiosos da
Idade Média e da Renascença de seu tempo, Lewis demonstrava seu saber
de forma leve. Ele tinha o dom único de escrever um ensaio envolvente,
que, no espaço de vinte e poucas páginas, podia deixar o leitor surpreso.
Lewis leu pela primeira vez os ensaios de Os quatro amores em 1958, em
programas de rádio da bbc. 1 O livro foi publicado pela primeira vez em
1960 e, desde então, foi imediatamente considerado um clássico. Os únicos
livros do século xx sobre o amor que eu colocaria ao seu lado em minha
estante são os de Josef Pieper, Denis de Rougemont, Jean Guitton, Dietrich
von Hildebrand e Hans Urs von Balthasar. 2
Lewis retira sua estrutura dos quatro amores dos antigos gregos: Storge
(amor entre pais e filhos), Philia (amizade), Eros (desejo) e Ágape (caridade
ou amor divino). O capítulo que mais me surpreendeu foi Storge — a
conexão afetiva natural entre pais e filhos. Antes de ler Lewis, eu nunca
havia encontrado um tratamento sério desse tipo de amor, além dos
comentários sobre o nascimento de Cristo.
Ele caracteriza Storge como “o mais humilde e amplamente difundido dos
amores, o amor em que nossa experiência parece menos diferir de um
animal”. 3 A princípio, estremeci ao ler isso, mas depois me lembrei de
como ferozmente, por vezes até a morte, mães animais e humanas lutam
por seus filhotes. Ao longo do capítulo, Lewis traduz Storge como “afeto,
especialmente dos pais para com os filhos”, de acordo com seu dicionário
grego. Lewis consegue evocar o mesmo sentimento sobre o qual escreve: “A
imagem com a qual devemos começar é a de uma mãe amamentando seu
bebê, uma cadela ou um gato com uma cesta cheia de cachorrinhos ou
gatinhos, todos em um amontoado gritando e aconchegando-se,
ronronando, lambidas, conversa de bebê, leite, calor, o cheiro da vida
jovem”. 4
TELÊMACO
As discussões sobre Storge, compreensivelmente, tendem a se concentrar no
amor das mães e de seus filhos pequenos. A ferocidade de Storge, no
entanto, não pode ser limitada a esta manifestação clara de amor parental.
A Odisséia de Homero contém uma representação poderosa de Storge.
Quando este clássico perene aparece na cultura moderna, geralmente é para
relembrar as provações enfrentadas pelo Rei Odisseu em seu retorno a Ítaca
(após a Guerra de Tróia e outras aventuras) e os anos de provações que ele
foi obrigado a suportar. Os três primeiros livros do segundo épico de
Homero (depois da Ilíada) são sobre o filho de Odisseu, Telêmaco, e o
amor de Telêmaco por seu pai e sua mãe, a Rainha Penélope.
A Odisséia começa com uma invocação da Musa para cantar “o hábil
varão que tanto vagueou em seu longo extravio”. Depois de reclamar com
Zeus sobre o julgamento de Odisseu e seu destino, a deusa Atena “calçou as
sandálias flexíveis, de ouro sempre brilhante, que voam sobre as ondas e a
terra sem limites” e voou para Ítaca, o reino de Odisseu (1: 96–97).
Telêmaco é o primeiro a notar sua presença: “Saudações, estranho! Aqui em
nossa casa encontrarás uma recepção real”. Ela se senta entre os
“pretendentes arrogantes” (1: 145) que, na ausência do rei e na incerteza
sobre seu destino, assumiram o controle da corte e, ao longo dos anos,
consumiram livremente a riqueza e os recursos materiais da família real.
Telêmaco confidencia à deusa disfarçando sua raiva para com os homens
que “se alimentam de bens alheios e ficam impunes” (1: 160). Como os
demais, ele não sabe se Odisseu está vivo ou morto e pede ao estranho
notícias de seu pai.
Atena diz que Odisseu não está morto e profetiza que ele retornará em
breve. Ainda oculta, diz que é “vergonhoso!” que Telêmaco nada tenha
feito a respeito dos pretendentes, lembrando-o de como seu pai os teria
vencido. O poderoso estranho aconselha Telêmaco a equipar um barco e
passar um ano em busca de seu pai: “Pois não deves entregar-te a atitudes
infantis — para tal já passaste da idade” (1: 295–96). Telêmaco, provocado,
reconhece a verdade quando a ouve e concorda imediatamente.
Telêmaco declara à sua mãe: “Eu tenho as rédeas do poder nesta casa” (1:
414), o que significa que se tornará o homem da casa e enfrentará os
pretendentes. Os pretendentes o ignoram quando exige que saiam, e o
ameaçam quando anuncia que partirá em busca de seu pai. Ignorando suas
ameaças, Telêmaco finaliza seus planos de partir no dia seguinte. A esta
altura, percebe que o estranho era na verdade “a deusa imortal” (1: 324).
Em menos de vinte e quatro horas, o filho indefeso assume a postura de seu
famoso pai:
Logo que a aurora, de dedos de rosa, surgiu matutina,
Alça-se o filho do divino Odisseu de seu leito lavrado;
Veste-se e no ombro, depois, deita a espada de gume cortante;
Calça, a seguir, as formosas sandálias nos pés delicados
E sai do quarto, no aspecto semelho a de um dos deuses eternos.

(2: 1–5) 5

Antes de partir, Telêmaco defende sua mãe Penélope contra os


pretendentes que a culpam pela pilhagem que vêm praticando de seus bens,
basicamente acusando-a de ser uma provocadora. Telêmaco diz aos
pretendentes que sua mãe não é culpada por seu comportamento
vergonhoso, acrescentando: “Não é possível, Antínoo, expulsar com
violência de casa quem me deu vida e educou” (2: 130–131). Aqui,
Telêmaco, agora um homem, declara seu Storge para sua mãe. Aqui, o
homem promete zarpar, apesar das ameaças do pretendente de detê-lo.
Atena ajuda mais uma vez, colocando todos em um sono profundo,
permitindo que o navio partisse para o continente da Grécia sem
contendas.
Telêmaco, ainda na companhia da disfarçada Atena, visita primeiro o Rei
Nestor, um dos mais sábios e bravos soldados que lutaram em Tróia ao lado
de Odisseu. Ele descobre como Nestor chegou em casa com segurança, mas
pouco sabe sobre o destino de seu pai. Nestor o exorta a visitar seu inimigo,
o Rei Menelau de Esparta: “Tu próprio deves pedir-lhe que fale conforme a
verdade” (3: 327). Quando Telêmaco chega, descobre que Menelau e
Helena se reconciliaram após os anos de luta contados na Ilíada. Ele se
dirige ao casal real sobre seu pai:
[…] que a mãe concebeu como ser desditoso.
Nada atenues por pena, talvez, ou até mesmo, respeito,
Mas tudo conta sem falha, tal como tu próprio o observaste.
(3: 95–98)

O filho aprendeu que Storge exige suportar todo o sofrimento necessário


para encontrar seu pai e libertar sua mãe.
Este momento ilustra o que Lewis diz sobre Storge como uma combinação
de “Amor-Necessidade” e “Amor-Doação”. O primeiro é o amor motivado
pela necessidade do eu; o último é o amor dado gratuitamente pelo eu aos
outros e a Deus. No caso de Telêmaco, seu amor pelos pais continha todas
as necessidades de um bebê que crescia até a idade adulta, incluindo, como
vimos, atingir a maturidade. Seu Amor-Doação se expande muito além da
afeição de abraços e se torna uma resolução firme de salvar a vida de
ambos.
Storge, como aparece na Odisséia, destaca um aspecto do amor dos pais
que Lewis luta para explicar; a saber, como uma mãe precisa do amor de
seu filho: “A necessidade e o Amor-Necessidade dos filhotes são óbvios,
assim como o Amor-Doação da mãe. Ela dá à luz, dá de mamar, dá
proteção. Por outro lado, ela deve dar à luz ou morrer. Ela deve amamentar
ou sofrer. Dessa forma, sua afeição também é um Amor-Necessidade. Esse
é o paradoxo. É um Amor-Doação, mas que precisa ser necessário”. 6
Ao reler Lewis, percebi como sua palavra para amor parental, afeição,
pode ser interpretada de forma tão ampla; não é muito adequada para
descrever o amor compartilhado entre pais e filhos. Lewis passa grande
parte deste capítulo falando sobre a afeição que “se estende muito além da
relação entre mãe e filho”. 7 Quando ele retorna às distorções do amor de
uma mãe, a palavra afeição não pode fazer justiça ao que Lewis retrata na
personagem “Sra. Fidget”. Pobre Sra. Fidget. Sua morte não entristeceu sua
família, mas os libertou de sua custódia. Lewis disseca a falecida Sra.
Fidget. Não é algo agradável de assistir, mas é a verdade. Tenho certeza de
que os leitores estão familiarizados com uma mãe que em nome do “viver
para sua família” cuidava deles como um guarda prisional. “Ela sempre
ficava acordada para ‘dar as boas-vindas’ a quem ficasse fora até tarde da
noite; duas ou três da manhã, não fazia diferença; você sempre encontraria
o rosto frágil, pálido e cansado esperando, como uma acusação silenciosa”. 8
Aqui está um exemplo da “necessidade de se sentir necessário” se tornando
soberana, desconectada do bem da criança. A Sra. Fidget quer que seus
filhos continuem dependentes, mas é frustrada pela morte.
Lewis não limita o Amor-Necessidade ao egoísmo, embora, como ele
aponta, possa se tornar exatamente isso. Como apologista cristão, Lewis
reconhece que as pessoas nascem necessitadas e assim permanecem por
toda a vida. A necessidade de amizade e a necessidade de amor divino são
partes integrantes de nossa natureza. Cada um surge do mais fundamental
de todos os amores, nosso Eros natural, o desejo que impulsiona nossa
jornada, nossa busca pela realização humana, o que São Tomás de Aquino
chamou de desejo natural de Deus. 9
Mas às vezes Lewis parece à beira de separar o Amor-Necessidade do
Amor-Doação, tornando sempre suspeita a preocupação consigo mesmo. É
em momentos como este que o protestantismo de Lewis se manifesta: a
profunda suspeita de que a natureza humana decaída não pode agir
benevolentemente sem a ajuda divina.
Em Love’s Sacred Order: The Four Loves Revisited, Erasmo Leiva-Merikakis
desenvolve uma visão mais completa de Storge do que aquela que o quadro
conceitual de Lewis permite. Leiva-Merikakis observa que “na bela ordem
que Deus estabeleceu na natureza, a família é o fundamento de todas as
outras relações humanas, incluindo aquela entre Deus e o homem”. 10 Ele
vincula Storge explicitamente ao amor de Deus, mas essa conexão se
enquadra no princípio articulado por São Tomás de Aquino: “A graça não
destrói a natureza, mas a aperfeiçoa”. 11 Esse ponto sobre a graça tem sido
um obstáculo entre católicos e protestantes desde a Reforma, a verdadeira
relação entre a ordem natural e a sobrenatural em uma única realidade.
Como Leiva-Merikakis coloca, em relação a Storge, “o Pai celestial não
suplanta, mas constrói a partir da experiência do amor de um pai e uma
mãe terrenos por seu filho”. 12
Como teólogo, Leiva-Merikakis usa as Escrituras para apoiar seu
argumento, combinando Storge e Philia na palavra Philostorgoi. No 12º
capítulo, versículo 10, de sua Carta aos Romanos, São Paulo está, de
acordo com Leiva-Merikakis, “forçando seu grego” para descrever a
qualidade única do amor cristão. 13 Segundo essa visão, a graça de Deus leva
os amores humanos à perfeição em sua própria ordem. Em outras palavras,
“quanto mais diviniza, mais humaniza”. 14
Que a perfeição de uma pessoa na graça seja descrita como sendo
plenamente humana tem enormes conseqüências para as representações da
vida cristã nas artes e humanidades. Isso significa que um artista ou filósofo
pode acompanhar o crescimento das pessoas como humanos, não como um
complemento sobrenatural. 15 O problema com muitas tentativas de criar
uma arte especificamente cristã é que o artista não pode se contentar em
contar uma história — ele insiste em contar a moral também. Qualquer
obra de arte, como todo ser humano, deve ser tratada como um fim em si
mesma, não transformada em megafone para a evangelização. A pregação
destrói a arte e seca o profundo manancial da beleza.
IDÍLIO DE SIEGFRIED
Richard Wagner era um homem horrível e um anti-semita virulento.
Tratava seus amigos terrivelmente; sua esposa Cosima tinha sido a esposa
de seu amigo e maestro mais importante de sua obra, Hans von Bulow.
Von Bulow aquiesceu e permitiu que Wagner tomasse Cosima como sua
amante e futura esposa, tornando a traição não menos cruel. Na verdade, o
compositor foi tão complacente que adotou o primeiro de seus filhos
ilegítimos, a menina Isolde. A própria Cosima foi a terceira filha ilegítima
do pianista e compositor Franz Liszt, que por fim se tornou amigo íntimo
de Wagner.
Como costuma acontecer, as criações de um artista são melhores do que
seu criador. Apesar de seu narcisismo e traições, o Idílio de Siegfried de
Wagner continua sendo uma das expressões mais diretas de Storge na
música. Composto para o 33º aniversário de sua esposa, o Idílio de Siegfried
foi interpretado pela primeira vez por quinze músicos na véspera de Natal
na escadaria sob a janela de seu quarto em Tribschen, sua casa de campo
nos arredores de Lucerna com vista para o Vierwaldstattersee (Lago dos
Quatro Cantões). A pura beleza da obra confunde os ouvintes
familiarizados com a vida do compositor e sua personalidade miserável.
Como o crítico musical Anthony Tommasini comenta: “Como uma
música tão sublime veio de um homem tão distorcido? Talvez a arte
realmente tenha o poder de desenterrar o que há de melhor em nós”. 16
Mas, e se não foi a arte a fonte de inspiração de Wagner? E se fosse o
amor por seu filho recém-nascido combinado com sua paixão por Cosima?
Devido a problemas financeiros, Richard e Cosima concordaram em não
trocar presentes naquele Natal de 1870. Seus primeiros quatro anos em
Tribschen foram felizes. Siegfried, apelidado de “Fidi”, seu terceiro e último
filho, nasceu em Tribschen em 6 de junho do ano anterior. Todos os filhos
de Wagner, incluindo Isolde (1865) e Eva (1867), nasceram fora do
casamento — não se casaram até 25 de agosto de 1870, ano em que nossa
história começa.
Na manhã de Natal, Cosima foi acordada pelo som de uma música na
porta de seu quarto. Como ela escreve em seu diário:
Domingo, 25 de dezembro de 1870. Quando acordei ouvi um som, que aos poucos ficava cada vez
mais alto. Já não podia me imaginar em um sonho, pois era música que soava, e que música!
Depois que ela silenciou, R. veio até mim com os cinco filhos e colocou em minhas mãos a
partitura de sua “Saudação Sinfônica de Aniversário”. Eu estava chorando, e toda a casa também;
R. montou sua orquestra na escadaria e assim consagrou nossa Tribschen para sempre!

Abrindo a porta, Cosima viu os músicos da Orquestra Tonhalle de


Zurique dispostos na escadaria e seu marido, de batuta na mão, regendo a
bela peça musical que ela nunca ouvira, que veio a ser conhecida como o
Idílio de Siegfried. Com duração de cerca de vinte minutos, o Idílio de
Siegfried foi planejado para ser uma composição privada para sua amada.
Wagner foi solicitado a compor a obra imediatamente após o nascimento
de seu filho, utilizando um quarteto de cordas inédito e leitmotivs de seu
renomado Ciclo do anel.
A melodia vinha do som de um pássaro que cantava pela manhã quando
o sol fazia sua aparição. Siegfried nasceu às quatro, enquanto o pássaro
começara a cantar às três e meia. “Foi o pássaro de Siegfried, que anunciara
sua chegada e agora veio perguntar por ele”, disse Wagner. 17
Embora composto para apenas quinze instrumentistas, o Idílio de
Siegfried nos acerta em cheio. O historiador da música Robert Philip o
descreve como um “poema sinfônico para orquestra de câmara”. 18 As
performances gravadas variam muito, dependendo da interpretação do
maestro: alguns querem tratá-la como uma peça de câmara para um grupo
pequeno, outros querem liberar suas sonoridades mais robustas.
Mesmo em uma primeira audição do Idílio de Siegfried, percebe-se a
intenção extática de Wagner. 19 Começando com um tema de acalento em
seus compassos de abertura, ouvimos o canto dos pássaros espalhado por
toda parte, e o uso de uma canção de ninar alemã no meio da peça. Há
também o tema do “sono” emprestado de uma ópera do seu Ciclo do anel,
As Valquírias, e um tema de sopros, que é uma variação do tema de
acalento anterior, retirado da ópera Siegfried, “O Siegfried, Herrlich! Hort
der Welt!” [Ó Siegfried glorioso! Tesouro do mundo!]. 20 A estrutura do
Idílio de Siegfried pode ser ouvida claramente na transcrição do lendário
pianista Glenn Gould, que a gravou pouco antes de sua morte em 1982. 21
O tributo de Wagner a seu filho e esposa é terno, gentil, tranqüilizador e,
finalmente, pacífico. É a criação de um homem que realmente mereceu sua
horrível reputação. Ainda assim, diante de um filho recém-nascido e de
uma esposa por quem estava perdidamente apaixonado, seu amor natural
por seu filho emerge e é lindamente expresso na música.
SONATA DE OUTONO
Muitos filmes, sejam os bons ou os excelentes, conseguem retirar o verniz
que muitas vezes encobre a vida familiar. Um filme que vem imediatamente
à mente é o dolorosamente honesto Ordinary People (1980), 22 o primeiro
filme dirigido por Robert Redford. A interpretação de Mary Tyler Moore
da mãe enlutada e zangada, Beth, é alucinante, dada a sua reputação de
comediante. O mote de Ordinary People é a morte de Buck, o filho mais
velho, que morre em um acidente de barco, enquanto seu irmão mais
novo, Conrad, sobrevive ao ocorrido. A preferência de Beth por Buck em
vez de seu filho mais novo, Conrad, a impede de consolá-lo, exacerbando
sua culpa, o que leva à sua tentativa de suicídio. A incapacidade de Beth de
reconhecer o ponto de vista de outra pessoa, ou ter empatia com o
sofrimento de seu marido e filho, faz com que ela os abandone
completamente.
Ingmar Bergman revela o sofrimento da família em um nível ainda mais
profundo em Sonata de outono (1978). Vê-lo pela primeira vez me deixou
emocionalmente abalado. As visualizações subseqüentes não amenizaram o
golpe. É o tipo de filme, creio eu, que muitos achariam “deprimente” e
abandonariam sem hesitar. O grande feito de Bergman como roteirista e
diretor em Sonata de outono, no entanto, é descobrir o fluxo de lava
subterrânea das memórias de infância que permanecem abrasadas sob a
superfície incrustada.
O filme inteiro, exceto algumas cenas externas, se passa na casa de Viktor
(Halvar Björk), o pastor da vila, e sua esposa, Eva (Liv Uhlmann), que toca
órgão na igreja e piano em casa por prazer. Eva envia uma carta-convite
para sua mãe, Charlotte (Ingrid Bergman), uma famosa pianista concertista
que ela não vê há sete anos. Devido às constantes viagens e apresentações
de sua mãe, Eva e Viktor ficam surpresos quando ela aceita o convite para
uma visita. Também mora na casa paroquial a irmã mais nova de Eva,
Helena (Lena Nyman), que desde o nascimento sofre de uma deficiência
que a mantém em uma cadeira de rodas e uma cama. Não querendo cuidar
dela, Charlotte colocou Helena em uma instituição e nos anos seguintes
nunca a visitou. Dois anos antes do convite a Charlotte, no entanto, Eva e
Viktor trouxeram Helena do hospital para casa para morar com eles. Na
carta-convite, Eva não disse a Charlotte que Helena também estaria lá.
Na cena de abertura do filme, vemos uma sala onde Eva está escrevendo o
convite para sua mãe. Viktor se vira e se dirige diretamente à câmera, nos
contando sobre seu casamento e a dificuldade de sua esposa em aceitar o
amor: “Não consigo encontrar as palavras certas para dizer que ela é amada
de todo o coração”. Embora ele não diga isso, ele nos diz que estamos indo
para mares tempestuosos se Charlotte aceitar. Ele sabe que Eva quer se
reconciliar com a mãe, mas isso não vai acontecer: Eva trouxe dor e
problemas. Ele não parece surpreso quando, ouvindo do topo da escada,
mãe e filha se enfrentam em uma longa discussão que expõe o ódio furioso
de Eva por sua mãe e o ódio gélido da mãe por sua filha.
Típica da maestria de Bergman em retratar a sutileza do relacionamento
mãe-filha é a cena em que Charlotte percebe, depois de chegar, que estava
apenas falando sobre si mesma e não havia perguntado à sua filha sobre sua
vida. Quando Charlotte pergunta, Eva responde que recentemente fez um
recital de órgão para as crianças da aldeia. A resposta rápida de sua mãe é
perturbadora por sua insensibilidade: “Sim, acabei de fazer cinco concertos
em la com três mil crianças em cada concerto”. Eva fica
compreensivelmente magoada, mas escolhe esse momento para contar à
mãe que Helena mora com eles. Charlotte vocifera: “Você deveria ter me
contado!”, mas Eva a recorda que isso já lhe havia sido relatado em uma
carta enviada há dois anos. Charlotte, é claro, nunca leu a carta: seu rosto
se enfeia e então se desculpa: “Eu não tive escolha, algumas pessoas são tão
ingênuas”.
“Eu?”, pergunta Eva. “Se a carapuça servir”, vem a resposta zangada.
Charlotte quer ver Helena imediatamente, aparentemente para acabar
com a situação desagradável o mais rápido possível. A mãe faz o possível
para demonstrar afeto pela criança que não vê há vinte anos, desde que foi
enviada para morar em uma “casa”. Helena fica radiante, estendendo a mão
para a mãe: “Mamãe! Mama!”. Ela mostra mais alegria e reconhecimento
do que sua mãe mostra a ela. O júbilo de Helena causa-lhe dor física
quando Eva explica que sua irmã quer ser tocada. É Charlotte quem parece
estar com dor, curvando-se para tocar em Helena. Ela pergunta à filha se
ela está com dor. “Não”, responde Helena. No que deveria ser um
momento de ternura, Charlotte olha para o pulso de sua filha e não vê
nenhum relógio, tira o dela e o coloca em seu braço. Ao levantar-se, o
semblante de Charlotte aparenta o alívio de uma dívida paga, como se o
presente de um relógio caro a absolvesse de toda vergonha em relação a
Helena. Eva está chocada com a falsidade de sua mãe.
Este é Storge retorcido em inúmeros nós, desfazendo apenas um dos quais
leva ao próximo; parecem nunca ter fim, e não têm. Nos termos de C. S.
Lewis, pode-se dizer que Charlotte dera à luz duas filhas, mas não foi
tocada pelo milagre do nascimento, o presente da vida que ela deu, ou a
subseqüente necessidade de amor de suas filhas. O desapego de Charlotte
faz com que ela pareça vazia e não natural; o único afeto que ela sente é por
seu empresário, pelos amantes do passado e, acima de tudo, por suas
memórias de atuação.
O estudioso de cinema Farran Smith Nehme comenta que em Sonata de
outono, o último longa para os cinemas de Bergman, “com Charlotte,
Ingmar Bergman conseguiu retratar o monstro plenamente humano e, em
última análise, trágico que ele queria”. 23 Não tenho certeza se “plenamente
humano” é a melhor maneira de expressar o que Nehme provavelmente
queria dizer. Desde 1936, quando fez sua estréia americana em Intermezzo,
Ingrid Bergman teve um desempenho magnífico em todos os gêneros
cinematográficos, nenhum papel parecia estar fora de seu alcance. Mas,
exceto por alguns filmes feitos na década de 1950 com o diretor Jean
Renoir e seu marido Roberto Rossellini, os personagens de Bergman, até
mesmo sua Joana d’Arc, brilhavam com a pátina do glamour de
Hollywood. Em Sonata de outono, Bergman deixou Hollywood bem para
trás. Sua Charlotte parece mais “plenamente humana” no sentido de que a
complexidade sombria de sua vida interior é revelada na tela. Sua nudez
virtual nos choca porque nada fica escondido e todos os seus segredos estão
expostos. Sim, Charlotte é uma espécie de monstro moral, mas o escritor e
diretor Ingmar Bergman não a condena. Em vez disso, sua orientação evoca
nossos sentimentos de simpatia por uma mulher egocêntrica, cuja
crueldade marcou profundamente a vida de suas duas filhas.
LADRÕES DE BICICLETA
O crítico de cinema Jonathan Rosenbaum captura o que acredito ser a
essência do grande filme Ladrões de bicicleta (1948), dirigido por Vittorio
de Sica: “Esta é possivelmente a melhor representação de uma relação entre
pai e filho na história do cinema, e é um destruidor de corações incrível. Se
você colocá-lo ao lado de algo como A vida é bela [o filme italiano de
sucesso de 1997], você terá uma noção de quanto o cinema mundial
convencional e sua relação com a realidade foram infantilizados ao longo
do último meio século”. 24
A obra-prima de Vittorio De Sica tem sido altamente valorizada desde seu
lançamento, recebendo um Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1949.
Em 1952, quando Sight & Sound publicou sua primeira pesquisa de
cineastas, Ladrões de bicicleta ficou em primeiro 25 lugar e permaneceu entre
os cinqüenta primeiros desde então. Em 2014, o crítico de cinema J.
Hoberman o chamou de “certamente o filme mais elogiado universalmente
já produzido em qualquer lugar do planeta Terra”. 26 Conta a história
simples de uma família lidando com a pobreza na Itália após a Segunda
Guerra Mundial. De Sica usa não-atores em uma técnica que ficou
conhecida como neo-realismo, um rótulo usado para descrever muitos dos
principais filmes italianos do final dos anos 40 e início dos anos 50. São
filmes despojados de todo glamour cinematográfico. Eles exibem todo o
empobrecimento da vida nas cidades italianas bombardeadas, com pessoas
vivendo sob a ocupação nazista em meio aos escombros.
Esses são filmes sobre sobrevivência. Em Roma, cidade aberta (1945), de
Roberto Rossellini, a imagem de uma mãe (Anna Magnani) que corre pela
rua para resgatar seu filho de um caminhão nazista, uma vez vista, é
inesquecível e merecidamente se tornou um ícone na história do cinema.
Eric Rhode vê os clássicos neo-realistas de De Sica, como Umberto D
(1952), Milagre em Milão (1951) e Vítimas da tormenta (1946) como
“alguém faminto por amor em um mundo sem amor”. 27
Ladrões de bicicleta coloca o amor da família, particularmente o amor
compartilhado pelo pai e pelo filho, contra o pano de fundo de um mundo
que é indiferente a eles. Fotografando nas ruas de Roma, De Sica também
cria imagens que nos perseguem por muito tempo depois de vê-las. Este
não é um filme que possa ser resumido com citações dos diálogos
importantes; tudo é contado visualmente, uma reminiscência dos filmes
mudos.
A trama é simples: o pai, Antonio Ricci (Lamberto Maggiorani), precisa
de um emprego. Maggiorini é bastante bonito de um jeito clássico italiano,
mas sua beleza não afasta o espectador porque exala gentileza. Sem trabalho
por dois anos, ele fica na fila dia após dia até que seu nome é finalmente
chamado e recebe uma oferta de emprego para colocar cartazes nas ruas.
Ele precisa de uma bicicleta, a qual, no entanto, não possui, mas mesmo
assim aceita o trabalho prometendo obter uma. Seu filho Bruno (Enzo
Staiola) fica perto de seu pai, olhando-o com os olhos cheios de amor, um
olhar que seu pai sempre retribui. Kenneth Turan descreve Staiola, cujos
pais eram donos de um carrinho de verduras em Roma, como tendo “uma
das faces infantis mais expressivas da história do cinema”. 28
O espectador pode sentir o amor que os une. Sem dizer nada ao marido, a
esposa, Maria (Lianella Carell), leva seu dote de linho fino para a casa de
penhores e volta com o dinheiro para a bicicleta. Antonio compra a
bicicleta, mas, no primeiro dia de trabalho, ela é roubada enquanto está
sobre uma escada colocando um pôster de um filme de Rita Hayworth,
Gilda. Antonio persegue o ladrão, que foge com a ajuda de comparsas que
o despistam para a direção errada. Junto com Bruno, o pai continua
procurando, mas é humilhado na frente do filho por uma multidão que se
volta amargamente contra ele quando captura o ladrão. O coração de
Bruno, se não está partido, no mínimo está gravemente ferido. Seu pai tem
vergonha do que percebe no olhar do filho. Isso deixa Antonio perto do
pânico, e então manda Bruno ir embora, pois irá ao seu encontro mais
tarde. O pai vê uma bicicleta sem vigilância e planeja roubá-la. É um
choque para o espectador que um homem tão bom tenha dado esse passo.
Afinal, homens bons dão péssimos ladrões, e Antonio é pego
imediatamente pela polícia, enquanto Bruno observa. O proprietário
percebe que Bruno está próximo e pede à polícia que liberte o pai.
Esse inesperado momento de gentileza de um estranho contrasta
fortemente com a indiferença de seu patrão e os maus-tratos que Antonio
recebeu nas ruas. Agora livre, Antonio olha para o filho e começa a chorar.
O filho pega sua mão e eles se afastam da câmera, se misturando à
multidão. Foi apenas um golpe de sorte? Ou será que o rosto de Bruno
transmitiu uma mensagem, como uma luz repentina que irrompe em uma
típica cena de rua de uma grande cidade? O dono da bicicleta apenas olha,
sem hesitar um momento para dizer à polícia para soltar o pai. O amor
compartilhado entre pais e filhos cria uma forte tensão.
Quando um amor tão poderoso enfrenta a morte, todos os sistemas caem.
Em Ala de tratamentos especiais, 29 o poeta Dana Gioia retrata o pesadelo de
todos os pais diante da morte de um filho. A morte de uma criança é um
evento que beira a falta de palavras. Gioia, que perdeu ele mesmo um filho,
consegue pôr em palavras a dor inimaginável. Como leitor, considero tal
feito quase impossível. Mas o poeta encontra as palavras e muito mais.
special treatments ward
i
So this is where the children come to die,
hidden on the hospital’s highest floor.
They wear their bandages like uniforms
and pull their IV rigs along the hall
with slow and careful steps. Or bald and pale,
they lie in bright pajamas on their beds,
watching another world on a screen.
The mothers spend their nights inside the ward,
sleeping on chairs that fold out into beds,
too small to lie in comfort. Soon they slip
beside their children, as if they might mesh
those small bruised bodies back into their flesh.
Instinctively they feel that love so strong
protects a child. Each morning proves them wrong.
No one chooses to be here. We play the parts
that we are given — horrible as they are.
We try to play them well, whatever that means.
We need to talk, though talking breaks our hearts.
The doctors come and go like oracles,
their manner cool, omniscient, and oblique.
There is a word that no one ever speaks.
ala de tratamentos especiais
i
Então é aqui que as crianças vêm para morrer,
escondidas no andar mais alto do hospital.
Eles usam suas bandagens como uniformes
e puxam seus dispositivos iv ao longo do corredor
com passos lentos e cuidadosos. Carecas e pálidas,
deitam em luzentes pijamas em suas camas,
assistindo a outro mundo em uma tela.
As mães passam as noites dentro da enfermaria,
dormindo em cadeiras que se dobram em camas,
muito pequenas e inconfortáveis. Logo se embrenham
o lado de seus filhos, como se pudessem incorporar
os pequenos corpos machucados novamente em sua carne.
Instintivamente sentem que um amor tão forte
protege uma criança. Cada manhã comprova seu engano.
Ninguém escolhe estar aqui. Cumprimos os papéis
que recebemos — por mais horríveis que sejam.
Tentamos cumpri-los bem, seja lá o que isso signifique.
Precisamos conversar, ainda que a conversa parta nosso coração.
Os médicos vêm e vão como oráculos,
suas maneiras são frias, oniscientes e oblíquas.
Há uma palavra que ninguém fala jamais.

Nenhum pai ou amigo quer estar no lugar onde os filhos “vêm para
morrer”. A Ala de tratamentos especiais está “escondida” no último andar:
escondida talvez por causa de um desejo inconsciente de proteger o resto
do hospital da dor dilacerante dos pais e seus filhos. É um horror
intensamente privado — a morte de uma criança amada. Os pais que
precisam falar, mas são frustrados pela equipe, que permanece em seus
personagens. Os médicos performam o conceito, eles “vêm e vão como
oráculos,/ suas maneiras são frias, oniscientes e oblíquas”. E para completar
o fingimento, a palavra “morte” nunca é pronunciada. Mas a morte é a
razão pela qual todos estão aqui. A pretensão é destruída por imagens de
crianças em “luzentes pijamas” que “puxam seus dispositivos iv ao longo do
corredor”.
Raramente o amor de uma mãe por seu filho foi retratado com tal
imediatismo, “Instintivamente sentem que um amor tão forte/ protege
uma criança”. Aqui está o amor dos pais em sua forma mais nítida e
vulnerável. As mães dormem em cadeiras, nunca vão embora. Cada mãe
inevitavelmente se embrenha na cama ao lado de seu filho adormecido. Ela
quer dar a vida novamente como antes, mas pela manhã, tudo foi em vão.
Doze anos se passam antes que Gioia conclua as últimas seções do poema.
ii
I put this poem aside twelve years ago
because I could not bear remembering
the faces it evoked, and every line
seemed — still seems — so inadequate and grim.
What right had I, whose son had walked away
to speak for those who died? And I’ll admit
I wanted to forget. I’d lost one child
and couldn’t bear to watch another die.
Not just the silent boy who shared our room,
but even the bird-thin figures dimly glimpsed
shuffling deliberately, disjointedly
like ancient soldiers after a parade.
Whatever strength the task required I lacked.
No well-stitched words could suture shut these wounds.
And so I stopped…
But there are poems we do not choose to write.
ii
Coloquei este poema de lado há doze anos
porque não suportava relembrar
os rostos que evocava, e cada verso
parecia — ainda parece — tão inadequado e sombrio.
Que direito tinha eu, cujo filho partira,
de falar pelos que morreram? E admitirei,
queria esquecer. Perdi um filho
e não suportaria assistir outro morrer.
Não só o menino silencioso que compartilhava nosso quarto,
mas mesmo os vultos esguios espiavam vagamente
misturando-se deliberadamente, deslocados
como soldados antigos após um desfile.
De qualquer força que a tarefa exige eu carecia.
Nenhuma palavra bem costurada poderia suturar essas feridas.
E então eu parei…
Mas existem poemas que não escolhemos escrever.

Gioia sente o peso da sobrevivência: “Que direito tinha eu, cujo filho
partira/ De falar pelos que morreram?”. Mas ele não consegue se livrar das
memórias do menino que dividia o quarto com seu próprio filho e de
“vultos esguios” que “vislumbravam vagamente” caminhando pelos
corredores. Ele duvidou de sua capacidade de escrever este poema e sabia
que suas palavras não curariam ninguém, “Mas há poemas que não
escolhemos escrever”.
iii
The children visit me, not just in dream,
appearing suddenly, silently —
insistent, unprovoked, unwelcome.
They’ve taken off their milky bandages
to show the raw, red lesions they still bear.
Risen they are healed but not made whole.
A few I recognize, untouched by years.
I cannot name them — their faces pale and gray
like ashes fallen from a distant fire.
What use am I to them, almost a stranger?
I cannot wake them from their satin beds.
Why do they seek me? They never speak.
And vagrant sorrow cannot bless the dead.
iii
As crianças me visitam, não apenas em sonho,
aparecendo subitamente, silenciosamente —
insistentes, incausadas, indesejadas.
Tiraram as bandagens leitosas e mostram
as lesões vermelhas e cruas que inda padecem.
Ressuscitadas estão curadas, mas não plenas.
Algumas eu reconheço, intocadas pelos anos.
Não posso nomeá-las — seus rostos pálidos e cinzentos
como cinzas caídas de um fogo distante.
Que uso tenho eu para elas, quase um estranho?
Não consigo acordá-las de suas camas de cetim.
Por que elas me procuram? Elas nunca falam.
E a errante tristeza não pode abençoar os mortos.

Ele ainda vê as crianças que faleceram, “não apenas em sonho”. Estas não
são visões noturnas obscurecidas pela noite; ele vê “as lesões vermelhas e
cruas que ainda apresentam”. Elas vêm ao poeta “incausadas, indesejadas”
porque não há nada que possa fazer por elas; ele vê que elas “estão curadas,
mas não plenas”. Ele não pode curá-las: “Que uso eu tenho para elas (?)”.
Como poeta e pai, que também perdeu um filho, sua “errante tristeza não
pode abençoar os mortos”.
Storge é o amor humano mais próximo de Ágape. É o mais confiável, o
mais sacrificial, o mais vulnerável. Ao contrário de amantes e amigos, pais e
filhos se conhecem muito bem para se safar usando uma máscara. Não
importa a idade de cada um, há um conhecimento intuitivo entre eles que
não pode ser enganado, e o mesmo acontece entre irmãos que cresceram
juntos. É um amor que pode ser quebrado, mas nunca totalmente
amputado. Entre os membros da família, seu sangue gritará (Gn 4, 10).
Recomendações
Livros
Sophocles, Antígona, 441 a. C.
William Shakespeare, Rei Lear, 1623.
Jane Austen, Razão e sensibilidade, 1811.
Mary Shelley, Frankenstein, 1818.
Gustave Flaubert, Madame Bovary, 1856.
Liev Tolstói, Guerra e paz, 1867.
Giovanni Verga, Os Malavoglia, 1881.
Thomas Hardy, O Prefeito de Casterbridge, 1886.
Junichiro Tanizaki, As irmãs Makioka, 1936.
Arthur Miller, Morte do caixeiro viajante, 1949.
Jean Guitton, Ensaios sobre o amor humano, 1951.
Eugene O’Neill, Longa jornada noite adentro, 1956.
Han Urs von Balthasar, Love Alone: The Way of Revelation, 1970.
Joseph Pieper, About Love, 1974.
P. D. James, Os filhos dos homens, 1992.
Músicas
G. W. F. Händel, Messiah, 1741.
Robert Schumann, Kinderszenen, 1838.
Hector Berlioz, L’Enfance du Christ, 1854.
Carl Nielsen, Saul og David, 1901.
Gustav Mahler, Kindertotenlieder, 1905.
Herbert Howells, Hymnus Paradisi, 1951.
George Rochberg, Symphony No. 5, 1986.
Filmes
Charlie Chaplin, The Kid, 1921.
Buster Keaton, Steamboat Bill, Jr, 1928.
King Vidor, The Champ, 1931.
Leo McCarey, A cruz dos anos, 1937.
Yasujirō Ozu, Pai e filha, 1949.
Yasujirō Ozu, Era uma vez em Tóquio, 1953.
John Ford, Rastros de ódio, 1956.
Ingmar Bergman, Morangos silvestres, 1957.
Piero Pasolini, Mamma Roma, 1962.
Francis Ford Coppola, O poderoso chefão ii, 1974.
Robert Redford, Gente como a gente, 1980.
Jean-Pierre and Luc Dardenne, O filho, 2002.

1 “Lewis on Love”, em The Official Website of C. S. Lewis, disponível em


http://www.cslewis.com/lewis-on-love/.
2 Eles estão listados em “recomendados” no final do capítulo.
3 Four Loves, p. 42, grifo nosso.
4 Ibid.
5 Tradução de Carlos Alberto Nunes. Cf. Homero, Odisséia, tradução de
Carlos Alberto Nunes. 4ª ed., Rio de Janeiro: Ediouro, 2001 — nt.
6 Four Loves, p. 43.
7 Ibid.
8 Ibid.
9 Suma contra os gentios, III, i, 48, 162–67.
10 Erasmo Leiva-Merikakis, Love’s Sacred Order: The Four Loves Revisited.
São Francisco: Ignatius Press, p. 50.
11 Suma teológica, ia, q. 1, art. 8.
12 Love’s Sacred Order, p. 51.
13 Ibid., p. 56.
14 Ibid., p. 57.
15 É preciso esclarecer que a expressão “plenamente humana” (fully human
no original), referente à perfeição do indivíduo na graça, deve ser entendida
como “especificamente humana” e não “exclusivamente humana”, pois a
graça santificante é um dom sobrenatural, ou seja, de origem
exclusivamente divina e não-humana — nt.
16 Anthony Tommasini, “Richard Wagner, Musical Mensch”, em New
York Times, 10 de abril de 2005.
17 https://web.archive.org/web/20071211050734/,
http://francisbarnhart.com/projects/siegfried- idyll/.
18 Classical Music Lover’s Companion, p. 882.
19 Eu recomendo a gravação feita por Herbert von Karajan com a
Filarmônica de Viena em 1988: https://www.youtube.com/watch?
v=A9orH2uqBsY.
20 Ibid., p. 883.
21 Áudio de Gould reproduzindo sua transcrição de Idílio de Siegfried pode
ser encontrado aqui: https://www.youtube.com/watch?v=FIjesjmMq_g.
22 No Brasil o filme foi lançado com o título Gente como a gente — nt.
23 Ibid., p. 199.
24 Jonathan Rosenbaum, “The Bicycle Thief ”, em Chicago Reader, 01 de
maio de 1999, disponível em
https://www.jonathanrosenbaum.net/2017/06/the-bicycle-thief-2/.
25 Roger Ebert, “Bicycle Thieves”, 19 de maio de 1999, disponível em
https://www.rogerebert.com/reviews/great-movie-the-bicycle-thief--bicycle-
thieves-1949.
26 Kenneth Turan, Not To Be Missed: Fifty-Four Favorites From a Lifetime of
Film. Nova York: Public Affairs, 2014, p. 100.
27 A History of Cinema, p. 443.
28 Not To Be Missed, p. 103.
29 Dana Gioia, 99 Poems: New & Selected. Port Townsend, wa: Graywolf
Press, 2017, pp. 69–71.
capítulo xiv
Amizade

L i a Ética a Nicômaco de Aristóteles pela primeira vez aos trinta anos.


Gostaria de ter lido muito antes. Aristóteles teria me salvado de
muitas distorções emocionais e reviravoltas pela perda de amizades
que eram importantes para mim.
Pense em pessoas que você acreditava serem amigas íntimas no colégio, na
faculdade ou nos lugares em que morou ou trabalhou, mas que saíram de
sua vida. Quando você tenta contatá-las, elas respondem de maneira
morna, se é que respondem. Amigos, colegas de classe, colegas de trabalho,
vizinhos, companheiros de equipe — todas as pessoas que compartilharam
partes significativas de sua vida, com quem você poderia baixar a guarda e
ser você mesmo — não sentem mais nenhuma conexão com você. Pode ser
doloroso encontrar apenas apatia ao procurar alguém por quem você ainda
tem afeto.
ÉTICA A NICÔMACO
Lendo o livro 8 da Ética, encontrei uma forma de entender essas perdas.
Quase quatro décadas depois, ainda me refiro à descrição de Aristóteles dos
três tipos de amizade, com base nos motivos que unem os amigos.
O primeiro tipo de amizade é baseado na utilidade, em que “os que se
amam por causa de sua utilidade não se amam por si mesmos, mas em
virtude de algum bem que recebem um do outro”. 1 Em outras palavras,
cada uma das partes encontra vantagens em conhecer o outro. O segundo
tipo também é uma forma de vantagem mútua, ou utilidade, mas é
baseado no “prazer que obtêm disso”. 2
Este foi o meu momento “Eureca!”: uma vez que tanto a utilidade como o
prazer entre duas pessoas podem ser perdidos, o mesmo pode acontecer
com a própria amizade. Como isso se perde é matéria de inúmeras histórias
contadas em todas as épocas. Mas eu nunca li um romance nem vi um
filme em que algum personagem puxasse Aristóteles da prateleira e
descobrisse o porquê. Imagine um filme onde isso aconteça: uma mulher
tenta se reconectar com sua colega de quarto da faculdade, mas recebe
apenas respostas concisas e frias. Frustrada e chateada, ela se pergunta se
alguma vez foram verdadeiramente amigas. Ela duvida da autenticidade de
suas boas lembranças da faculdade e do caráter de sua colega de quarto.
Então se depara com a Ética de Aristóteles na estante e lembra que
continha algo sobre amizade. Começa a ler o livro 8, seguindo suas
próprias marcações a lápis e passagens sublinhadas. Em seguida, encontra
uma frase em que colocou uma etiqueta colorida ao lado: “A afeição cessa
assim que um parceiro não é mais agradável ou útil para o outro”. 3
Eu não sou roteirista, obviamente, e não tenho idéia de como prosseguir a
partir daqui. Duvido que mande a passagem para sua colega de quarto, mas
ela pode se perguntar sobre as amizades que duram anos, valorizando-as de
uma maneira nova, e talvez fique mais alerta para o potencial, ou falta dele,
em outros relacionamentos.
O vizinho que se muda, o colega que se forma, o colega que desiste do
esporte, o colega que troca de emprego, a amante que troca você por outro,
o amigo que se volta para o álcool e as drogas ou o amigo que
simplesmente se casa — muitas vezes essas relações perdem seu
imediatismo, distância e tempo estabelecidos, até que não há mais nada
além de uma memória. O foco de Aristóteles nos motivos que criam
amizade me levou a um inventário de todas aquelas com cuja perda eu
sofri, só que agora eu entendo o motivo. Ninguém teve culpa. Não era
necessariamente algo que faltava em mim, ou que faltava neles; tudo se
resumia às circunstâncias, proximidade e acaso.
Aristóteles acrescenta que é típico dos jovens fazer amizades baseadas no
prazer porque suas vidas são guiadas pela emoção: “Os jovens fazem e
perdem amizades no mesmo dia”. 4 O que é então a verdadeira amizade, de
acordo com Aristóteles?
A forma perfeita de amizade é aquela entre homens bons que são iguais
em excelência ou virtude. Pois esses amigos desejam o bem uns dos outros
porque são bons homens e sua amizade é um bem em si. 5
Aristóteles está argumentando que na amizade perfeita a bondade é
essencial, e não acidental. Sua amizade persistirá. O filósofo não nos deixa,
entretanto, pensar que tais amizades consistem em uma espécie de
sociedade empedernida de admiração mútua. Amigos verdadeiros são
benéficos e aprazíveis. 6 Sua utilidade e prazer mútuos não implicam, no
entanto, na precariedade de amizades menores, porque a utilidade e o
prazer são baseados nas “ações de homens bons”. Assim, o que os
verdadeiros amigos têm em comum é o que Aristóteles chama de excelência
e virtude. As virtudes são disposições firmes para a excelência, para vários
tipos de ação, como buscar a justiça, pensar e julgar com prudência,
enfrentar o perigo de frente com coragem, mostrar temperança no gozo do
prazer.
Por mais excelente que seja o relato do filósofo sobre a amizade, ainda
apresenta falhas. Por conta dele, a verdadeira amizade não poderia
acontecer entre um homem e uma mulher, pois ele considera as mulheres
menos racionais. A fêmea é um macho defeituoso e, como afirma
Aristóteles, assim como os animais, fica em melhor situação quando
treinada por um ser humano: “Novamente, o macho é por natureza
superior, e a fêmea inferior; e um governa, e o outro é governado”. 7
Contudo, as mulheres livres se saem melhor do que os escravos do sexo
masculino, já que estes não têm nenhuma habilidade racional. 8 Outras
barreiras para a verdadeira amizade incluem classe, riqueza, fortuna e
reputação. Homens cujas vidas diferem acentuadamente em qualquer um
desses pontos não possuem a igualdade que é a pré-condição para que suas
virtudes se fundam em amizade.
Dando um passo atrás na discussão de Aristóteles sobre amizade, resta
pensar mais sobre o que ele acerta e o que não. Mesmo os melhores
professores são freqüentemente limitados pelo tempo e lugar em que
vivem, como descobrimos com a aceitação acrítica do filósofo da escravidão
e da desigualdade dos sexos.
SINFONIA Nº. 9
Ludwig van Beethoven não gostava de homens individualmente, mas
amava o ideal de “amizade universal”. Despojado de humildade, o grande
compositor se sabia um gênio e, isolado pela surdez, não se importava
muito com as pessoas ao seu redor, com poucos relacionamentos que
poderiam ser caracterizados como amizades. Mesmo assim, ele dedicou sua
maior obra, certamente uma das maiores da história da música, ao ideal de
“todos os homens se tornando irmãos”. A letra foi retirada de um poema de
Friedrich Schiller, An die Freude ou Ode à alegria.
Beethoven não estava sozinho ao se considerar um gênio. A Europa do
início do século xix é caracterizada por uma fascinação, quiçá uma
obsessão, pelos “grandes” — com Napoleão liderando o caminho. A
população em geral queria heróis e os encontrou não apenas em generais,
mas também em artistas e escritores. Johann Wolfgang von Goethe (1749–
1832) foi o gênio alemão do mundo literário, enquanto na Inglaterra,
George Gordon (Lord) Byron (1788–1824) pode não ter sido o melhor
escritor, mas foi a figura mais romântica. Aristóteles se sentiria em casa em
uma sociedade em que uma classe específica de homens — necessariamente
homens — fosse considerada como existindo acima das massas. Mas é
duvidoso que Aristóteles tivesse colocado a coroa de louros na cabeça de
um artista, não importa quão grande. Afinal, os artistas não contemplam;
eles fazem. Se o filósofo estivesse na estréia da Nona sinfonia, no entanto,
ele poderia ter reconsiderado a conexão entre a contemplação e a criação
artística.
O crítico musical do New York Times Anthony Tommasini argumenta
que a diminuição gradual do prestígio da música clássica entre o público
torna mais fácil a abordagem às “obras arrogantes” de Beethoven em vez de
tratá-las como “mensagens de um oráculo transmitidas para as salas de
concerto”. 9 No entanto, a Nona sinfonia tem vida própria, como se pode
ver quando é executada em ocasiões importantes como o concerto de
Leonard Bernstein que celebra a queda do Muro de Berlim.
Ao pedir aos meus leitores que ouçam a Nona de Beethoven, percebo que
essa obra pode ser-lhes muito familiar, como o Messiah de Händel, e talvez
seja vista como a mais icônica por quem não está familiarizado com o resto
da música do compositor. No entanto, ao ouvir obras tão conhecidas, é
melhor colocar todas as expectativas de lado, especialmente as questões
como “será que vou compreender isso?”, e ouvir a música ingenuamente
como se a estivesse escutando pela primeira vez. 10
Como afirma o crítico
musical da bbc Robert Philip:
O que você descobre, depois de conhecer toda a sinfonia, é que há uma sensação de
inevitabilidade em seu progresso, que surge da maneira como Beethoven relacionou os temas dos
diferentes movimentos. Depois de perceber isso, você descobre que a Ode à alegria, quando
finalmente chega, não é apenas uma melodia aleatória tirada do nada, mas o resultado lógico do
que aconteceu antes. 11

Se os ouvintes de Beethoven acompanham com alguma atenção “o que


aconteceu antes” do famoso triunfo coral do movimento final, eles não
correm o risco de ouvi-lo como um complemento ou como um floreio
açucarado de um compositor surdo e doentiamente excêntrico. Não, o
milagre é que o movimento final culminante atinge esse nível de
idealização, apesar de tudo o que veio antes nos três primeiros movimentos.
Neles, o compositor expressa uma gama de emoções humanas cruas —
medo, raiva, desejo — que derrotam a muitos. Mesmo assim, ele avança
para o momento em que o barítono entra com a palavra Freude [Alegria]!
É como se, para sublinhar o ponto do que deve ser superado, o barítono
cantasse: “Oh amigos, esses sons não! Em vez disso, vamos criar outros
mais agradáveis e alegres!”. Nos poucos compassos antes de iniciar o
movimento, a orquestra retorna aos compassos de abertura da sinfonia, um
“som sinistro”, 12 conforme descrito pelo estudioso de música Harvey Sachs.
Ele continua, “a crueza, o vazio, a fragmentação dos compassos de abertura
da Nona, sua brutalidade amoral ou amoralidade brutal”. Dentro do
primeiro movimento estão dois temas musicais que impulsionam e desviam
a obra. Robert Philip os descreve como uma luta entre o “motivo irregular
e retumbante e o motivo suave de ascensão e queda”. 13 Esses temas
recortados e suaves, evidentes para quem os escuta, reaparecem no segundo
e terceiro movimentos.
O primeiro movimento, muitas vezes sombrio, ansioso e turbulento,
carrega consigo um reflexo da miséria do compositor, a qual infligiu a
outros. Beethoven era um homem difícil, rude com os demais, mesmo com
os que lhe eram próximos, uma falha que era agravada por sua surdez.
Conforme os anos passavam e sua audição piorava, ficava cada vez mais
isolado e irritado com quaisquer exigências de sociabilidade. Aqueles que o
conheciam faziam o possível para serem pacientes, percebendo que a
música que fluía da caneta de Beethoven era extraordinária.
O segundo movimento, um scherzo, marcado como “muito vivo”, é mais
confiante e menos carregado de dúvidas sobre para onde vai a música. Há
explosões, como Sachs as descreve, de ameaça, fúria e ira que se dissolvem
em uma linda melodia, um legato que “se funde em um hino estonteante,
sem palavras, semelhante a um órgão”. 14 O fim repentino do movimento,
entretanto, lembra ao ouvinte que muito mais está por vir.
Sobre o terceiro movimento, Sachs escreve: “Nada mais belo do que este
movimento já foi escrito para uma orquestra sinfônica”. 15 Poderíamos
fechar o livro de Sachs neste ponto, pensando que sua paixão pelo assunto
foi longe demais e ele se tornou, por assim dizer, um guia não-confiável.
Afinal, não é o grande movimento coral que todos reverenciam tanto? Mas,
reconsiderando a beleza dolorida do terceiro movimento, somos tentados a
simpatizar com o resumo de Sachs: “Uma vida pode terminar lindamente à
medida que este movimento diminui tranqüilamente até a inexistência.
Beethoven está em paz; o mundo está em paz”. 16
O que vem a seguir jamais fora ouvido antes na história da música —
uma sinfonia com palavras, um texto musicado para quatro solistas e um
coro completo. Pode-se argumentar que, de todas as descobertas inovadoras
da peça, essa é a maior. Mas não seria apenas por seu uso inovador do texto
de Schiller, mas pela escandalosa intenção de Beethoven de mudar o
mundo.
Por que Beethoven escolheu este texto em particular? Como era de se
esperar, há muito mais por trás dessa escolha do que as próprias palavras
transmitem. Beethoven tinha vinte e quatro anos quando Schiller publicou
sua obra mais conhecida, Cartas sobre a educação estética do homem (1794).
Para os leitores modernos, o título é enganoso — a idéia de Schiller a
respeito da educação estética é baseada na beleza “porque é somente por
meio da Beleza que o homem pode abrir seu caminho para a liberdade”. 17
Trabalhando dentro da tradição do idealismo alemão de Kant e Hegel e da
poética de Goethe, Schiller argumenta que a beleza pode harmonizar a
tensão entre a carne e o espírito, entre a natureza e a cultura, sem sucumbir
ao rígido autoritarismo racionalista — que coloca o artista entre as
exigências da monarquia de um lado e o mero divertimento do outro. Para
Schiller, estar em um “estado totalmente estético” é atingir todo o potencial
humano. 18
Assim, o uso da estética por Schiller tem pouco a ver com o cultivo do
gosto. A estética representa uma integração do ser humano — corpo, razão
e vontade — resultando na liberdade de se tornar “cidadão do mundo”. 19
Os artistas devem abrir o caminho, escreveu ele, deixando de lado todas as
noções de utilidade: “Esse tipo de arte deve abandonar a realidade e elevar-
se com ousadia acima de nossos desejos e necessidades; pois a arte é filha da
liberdade e recebe suas ordens da necessidade inerente às mentes, não das
exigências da natureza”. 20 Isso descreve o que Beethoven está buscando com
sua música, especialmente sua última e mais magnífica sinfonia. Como a
música era a linguagem de Beethoven, seu hino à amizade mundial
assumiu forma musical, com o texto de um poema que ele considerou
adequado para o momento.
O último movimento começa com um “chamado às armas”, que é uma
das coisas mais radicais que Beethoven já escreveu, “literalmente
interrompendo a progressão natural da sinfonia e trazendo-nos de volta aos
nossos horizontes de um só golpe”. 21 Após uma revisão dos três primeiros
movimentos, ocorre uma avassaladora efusão de beleza quando o coro
retorna às palavras iniciais do barítono, “Freude, schöner Götterfunken”
[Alegria, bela centelha dos deuses], revelando os mais profundos apelos
espirituais de Beethoven, elevando a alma do ouvinte a um patamar que só
a grande arte é capaz de conduzir. Na verdade, somos inevitavelmente
atraídos, talvez desejando cantar “Freude” com o coro também.
Neste instante, parece que a “irregularidade” dos movimentos anteriores e
toda a sua miséria foi superada — uma vitória foi conquistada. Mas não
tão rápido; a sinfonia ainda não acabou. Philip escreve:
As últimas notas que a orquestra martela não são o tema lírico suave, mas as quintas irregulares
que começaram e terminaram o primeiro movimento. Beethoven reuniu esses dois elementos: o
lírico e o pacífico podem ser triunfantes, mas o “agressor” foi trazido para o redil: toda a
humanidade será fraterna, não apenas os amantes da paz. 22

Qual é a amizade universal que o compositor tinha em mente? Aristóteles


tinha a amizade pessoal em mente, enquanto Beethoven pensava em termos
de uma “amizade” impessoal de igualdade social perante a lei e a
autoridade. Como um republicano comprometido e revolucionário
silencioso, Beethoven, como Schiller, queria romper as barreiras sociais
tradicionais para exaltar o paradigma da “fraternidade universal”, uma pré-
condição para ampliar o espectro de relacionamentos em um nível pessoal.
Em outras palavras, Beethoven mantinha o desprezo popular de sua época
pelos tipos de distinções de classe que dividiam as pessoas, as distinções que
a Grécia de Aristóteles abraçava e que sua teoria sobre a amizade exigia.
Beethoven tinha em mente a condição da Europa após a Revolução
Francesa, especificamente a restauração da monarquia na França e a
presença dominante das famílias reais da Europa no Conselho de Viena
(1815) após a derrota de Napoleão. A rejeição de Liberté, égalité, fraternité e
seu espírito revolucionário deixou Beethoven em uma situação difícil. Ele
dependia de comissões e estipêndios da aristocracia e eleitores, mas já fazia
dezoito anos desde a publicação da Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão pela Assembléia Nacional Constituinte da França (1789).
Ele foi um homem do iluminismo, mas como Diderot e os outros
philosophes, Beethoven viu a revolução na França como o resultado natural
da época e esperou que seu espírito se espalhasse pela Europa. Napoleão,
eleito primeiro cônsul da República Francesa em dezembro de 1799,
parecia trazer uma nova liberdade para a Europa, começando com a derrota
do exército austríaco em 1800, a Concordata de 1801 com o Papa Pio vii,
a nova Constituição Francesa de 1802, e o Código Civil de março de 1804.
Evidentemente, como é o caso de tantas grandes revoluções ao longo da
história, as gerações seguintes sofreram pelos pecados e erros de seus
primeiros defensores. A Revolução Francesa não só deu origem a um
espírito de nova igualdade, mas encharcou essa igualdade com o sangue de
dezenas de milhares, dos Champs-Élysées à Vendéia, e centenas de milhares
mais nos campos de batalha entre a França e a Rússia. Quando Napoleão
foi proclamado imperador dois meses depois, Beethoven riscou seu nome
na página de rosto de sua terceira sinfonia, Eroica [Heróica].
Como explica o historiador da música Harvey Sachs, há um “fio
condutor” que conecta Beethoven a outros românticos britânicos e
europeus de sua geração, como Byron e o poeta alemão Heinrich Heine:
“Esta busca pela liberdade: liberdade política das condições repressivas que
então dominaram a Europa, e a liberdade de expressão, certamente, mas
acima de tudo a liberdade de pensamento e espírito”. 23
Essas são questões que Aristóteles nunca enfrentou diretamente. Como
professor do jovem Alexandre, o Grande, ele influenciou seu aluno a tratar
os povos estrangeiros que conheceu com respeito por suas próprias
tradições. Mas Aristóteles nunca questionou o governo absoluto de sua
realeza. Nem os professores de Aristóteles — Sócrates e Platão. A república
ideal de Platão não é republicana nem democrática: a estratificação social
permanece firmemente estabelecida. Sócrates foi preso por embaraçar
sofistas prestigiosos e influentes: suas chamadas “opiniões políticas
subversivas” nada tinham a ver com revolução política. Aristóteles escreveu
em uma época e em um lugar onde a amizade só era possível entre um
seleto grupo de pessoas — aquelas pessoas livres do gênero masculino com
tempo de ócio suficiente para permitir não apenas a contemplação, mas
com tempo suficiente para se tornar um contemplativo.
O que um filósofo e um compositor como Aristóteles e Beethoven podem
ter a dizer um ao outro sobre a verdadeira natureza da amizade, dados seus
diferentes campos, nacionalidades e os períodos em que viveram e
trabalharam? As diferenças de tempo, lugar e mídia fazem pouca diferença
quando mentes criativas exploram a condição humana, seja qual for o
meio. A reflexão e as expressões dessas verdades fundamentais nunca terão
fim — elas são revisitadas e encontradas nos clássicos ao longo dos séculos.
HUCKLEBERRY FINN
Existem muitas amizades memoráveis na literatura que colocaram
Aristóteles à prova: Didi e Gogo em Esperando Godot; Robinson Crusoé e
Friday; Davi e Jônatas no Livro de Samuel; Gilgamesh e Enkidu em
Gilgamesh; Aquiles e Pátroclo de Homero na Ilíada; Horácio e Hamlet de
Shakespeare; Elizabeth Bennett e Charlotte Lucas em Orgulho e preconceito,
de Jane Austen; Cathy e Heathcliff de Emily Brontë em Morro dos ventos
uivantes; o protagonista homônimo de Cervantes e Sancho Pança em Dom
Quixote. Dada a visão de Aristóteles sobre a escravidão, no entanto, vamos
olhar para os personagens de Mark Twain, Huck e Jim.
Grandes afirmações são feitas sobre a influência do clássico de Mark
Twain, As aventuras de Huckleberry Finn, publicado pela primeira vez em
1885 nos Estados Unidos. Talvez o elogio mais ousado venha de Ernest
Hemingway: “Toda a literatura americana moderna vem de um livro de
Mark Twain chamado Huckleberry Finn. A escrita americana vem daí. Não
havia nada antes. Não houve nada tão bom desde então”. Um grande
elogio, de fato, vindo de alguém considerado um dos grandes. Dada a
mudança de sensibilidade, imagino que muitos que leram As aventuras de
Huckleberry Finn hesitariam em admitir isso nos dias de hoje. As
controvérsias geradas por sua inclusão nos programas de cursos de literatura
do ensino médio e universitário — pelo uso daquela palavra com “N” —
aparecem com freqüência.
O romance continua amado e, mais importante, lido. Existem pelo
menos três razões para o apelo duradouro de Huckleberry Finn, além de seu
status de clássico. Primeiro, a história imediatamente captura o leitor —
nós nos importamos com o que acontece com Huck e Jim. Em segundo
lugar, o diálogo brilha, especialmente as divagações de Huck sobre questões
de significado da vida. E, finalmente, o surgimento de uma amizade
crescente entre o menino branco e a escravo negro, ambos fugitivos.
Huck e Jim se conhecem porque moram com a Srta. Watson, que está
determinada a “civilizar” Huck. Jim é escravo da Senhorita Watson, sua
“propriedade”. Eles inesperadamente se encontram em uma ilha no Rio
Mississippi, onde Huck está escondido após fingir sua morte para fugir de
seu pai violento e bêbado. Jim também está escondido para evitar ser
vendido a alguém no Sul, uma transação que o afastaria da família. No
início, Jim tem medo de Huck: “Num me machuca — não! Nunca fiz mar
nenhum prum fantasma”. 24 Ele havia sido acusado do assassinato que
Huck encenou. Demorou um pouco para que Jim percebesse que está feliz
em vê-lo. “Não tava mais sozinho agora”. 25 Eles se acolhem como
companheiros, achando útil a camaradagem, cada um escapando da cidade,
ao mesmo tempo fria e solitária. Essa utilidade se multiplica quando eles
decidem se aventurar rio abaixo juntos em uma jangada. Huck, no entanto,
está perfeitamente ciente da diferença entre sua própria situação e a de Jim,
que quebrou a lei para escapar da Srta. Watson, a única pessoa que mostrou
bondade a Huck. Ele constantemente luta consigo mesmo sobre a
moralidade de ajudar Jim a escapar da Srta. Watson. Huck acredita
firmemente que Jim é propriedade da Srta. Watson — era uma questão
clara de fazer a coisa certa para ajudar a capturar Jim. Finalmente, ele
escreve uma carta para a Srta. Watson, dizendo onde ela pode encontrar seu
escravo fugitivo.
Tava num aperto. Apanhei o papel [a carta para a Srta. Watson] e fiquei com ele na mão. Tava
tremendo, porque tinha que decidir, pra sempre, entre duas coisas, e sabia disso. Pensei por um
minuto, meio que prendendo a respiração, e então disse a mim mesmo: “Tudo bem, então, vou
pro Inferno!” — e rasguei o papel. Era um pensamento terrível, e palavras horríveis, mas foram
ditas. E deixei elas assim pronunciadas; e nunca mais pensei em me reformar. 26

Durante a maior parte da viagem, Huck e Jim são, sem dúvida, amigos
ligados pela utilidade mútua, embora cada vez mais encontrem prazer na
companhia um do outro. A amizade deles está em constante evolução
durante suas aventuras flutuando no Mississippi, e eles são forçados a fazer
escolhas, cada uma de grande importância, como a decisão de Huck de
entregar Jim ou não.
No final do capítulo onze, fica bastante claro que Huck e Jim são amigos
de verdade. Por exemplo, assim que Huck ouve que Jim é suspeito de
assassinato, rapidamente o avisa. Ele também se identifica intimamente
com Jim, porque ambos estão na mesma situação: são fugitivos.
E comecei a pensar sobre nossa viagem rio abaixo; e vejo Jim diante de mim, o tempo todo: de
dia e de noite, às vezes ao luar, às vezes em meio às tempestades, e nós flutuando, conversando,
cantando e rindo. Mas não sei como, não conseguia encontrar nenhum lugar para endurecer meu
coração contra ele, só em coisas de outro tipo. Eu o via fazendo o meu turno de vigia depois de
completar o dele em vez de me chamar para que eu continuasse dormindo; e via como ele ficou
feliz quando voltei do nevoeiro; e quando eu voltei pra balsa no pântano, lá onde tinha aquela
rixa; e outros tempos semelhantes; e sempre me chamava de “meu fio” e me mimava, e fazia tudo
o que pudesse imaginar por mim, e como ele era sempre bom; e finalmente lembrei-me daquela
vez que consegui salvá-lo contando pros homens que a gente tinha varíola a bordo, e ele ficou
muito agradecido e disse que eu era melhor amigo que o velho Jim já teve no mundo, e o único
que ele tinha agora. 27

Ao resenhar um livro sobre Huckleberry Finn, a crítica do npr Linda


Holmes descobre menos uma amizade transformadora entre Huck e Jim do
que a manutenção do status quo. Ela escreve:
Huck Finn está cheio de contradições: Huck passa a apreciar a bondade de Jim e, no final das
contas, mostra-se disposto a “ir para o Inferno” para libertá-lo — mas ele trata Jim como
excepcional, uma pessoa digna porque ele não se comporta da maneira que Huck espera que um
homem negro se comporte. Como ele diz depois de Jim mostrar compaixão por Tom Sawyer:
“Eu sabia que ele era branco por dentro”. Por um lado, é uma extensão de respeito. Por outro
lado, é igualar integridade com brancura. Seu racismo básico e seu fio de compreensão são reais;
ambos estão sentados ali. 28

“Igualar integridade com brancura” é o ponto de vista do narrador através


do romance. A generosidade de Huck é imaginar Jim como um homem
branco.
A romancista e crítica Jane Smiley, vencedora do Prêmio Pulitzer, causou
sensação ao escrever um artigo sobre o romance depois de lê-lo pela
primeira vez desde seus dias de escola. 29 Smiley declara que Huckleberry
Finn não é um “grande romance”; na verdade, ela argumentou, é inferior à
Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe, que deveria tomar o lugar
do primeiro nos currículos escolares. Ela certamente está correta ao dizer
que Twain e Huck “nunca foram responsabilizados por sua escolha de
descer o rio em vez de atravessá-lo”. 30 Ao norte está o Illinois livre, ao sul
estão os estados escravagistas, incluindo o Mississippi, onde Jim foi
comprado e separado de sua família. Jim e sua família são enviados para o
Missouri, mas para diferentes “proprietários”. O fato de durante o romance
Huck e Jim se tornarem amigos, de acordo com Smiley, contrasta
fortemente com a falta de preocupação de Huck em levar Jim para a
liberdade: “Se Huck se sente positivo em relação a Jim, o ama e pensa nele
como um cara, então isso é o suficiente. Ele não tem que agir de acordo
com seus sentimentos”. 31
Posso imaginar Aristóteles concordando com essa avaliação. Voltando
para sua Ética, lembramos sua afirmação de que as barreiras sociais e
atitudes criadas pela escravidão são intransponíveis. Embora Twain crie
uma evolução em sua amizade para aprofundar o afeto mútuo, em sua
opinião, é evidente que o menino branco e o escravo negro nunca se
movem completamente além de seus estratos sociais em direção ao que
Aristóteles chama de amizade verdadeira.
Contos clássicos como As aventuras de Huckleberry Finn desafiam a
suposição básica de Aristóteles; a saber, que as diferenças de sexo, classe,
educação e virtude não podem ser superadas para alcançar a forma mais
elevada de amizade. Por exemplo, Aristóteles insiste que a lacuna entre ricos
e pobres não pode ser transposta porque a verdadeira amizade requer mais
do que igualdade de espírito — os bens importam. Em geral, achei sua
estrutura esclarecedora na compreensão do ir e vir dos relacionamentos e
de, especialmente, por que as amizades que considerava importantes
murcharam. Esta passagem da Ética de Aristóteles, como todas as obras do
Cânone, suscita introspecção. Essas obras abordam a condição humana:
elas nos surpreendem, frustram nossas expectativas e nos fazem trabalhar
para encontrar sentido. Como resultado, podemos nos tornar pessoas
diferentes depois de experimentá-las. Em alguns casos, o efeito é mais do
que trivial.
A REGRA DO JOGO
A questão das incompatibilidades que podem afetar a amizade está no
cerne de A regra do jogo (1939), de Jean Renoir, um filme considerado pela
maioria dos críticos como um dos maiores de todos os tempos. 32 Vimos na
teoria da amizade de Aristóteles como descrever as fronteiras sociais que
demarcam as relações. No filme de Renoir, veremos esses limites testados.
A história surge de um grupo diversificado de personagens que chegam
para uma festa em uma extravagante casa de campo do Marquês Robert de
la Cheyniest e sua esposa, Christine. O “jogo” em questão é a navegação
por estratos sociais, casamentos frágeis, casos amorosos e o peso da tradição
trazido à história por seu cenário e seus jogadores. Assim, o jogo é
multifacetado, emprestando uma pátina de farsa a uma triste história
subjacente sobre duas pessoas de diferentes classes e origens encontrando o
limite de sua amizade — Christine, interpretada por Nora Gregory, e
Octave, interpretado pelo próprio diretor.
Octave está tendo um caso com a empregada de Christine, a atrevida e
travessa Lisette, cujo marido é o guarda-caça, Schumacher (Gaston
Modot). Em uma das cenas de abertura, ainda em sua casa em Paris,
Christine levanta o assunto da amizade com Lisette, perguntando se ela
tem amigos do sexo masculino. “Com um homem?! Quando os porcos
criarem asas!”.
Também a caminho da casa está um famoso e ousado aviador, André
Jurieux, que ama Christine. Aprendemos que, embora Christine tenha
encorajado sua atenção amorosa, sua ambivalência é óbvia — ela não vai
encontrá-lo no campo de aviação como prometido. “Dizer mentiras é um
enorme fardo”, diz ela a Lisette, a respeito de André.
Cercado por centenas de parisienses entusiasmados, dez anos após o vôo
de Lindbergh, André recebe um microfone de rádio de um apresentador
que aguarda uma declaração profunda do herói. Em vez disso, ele fica
perturbado: “Ela não está aqui… Fiz tudo por ela… estou muito infeliz.
Fiz este vôo por uma mulher. Ela não está aqui”. Sua voz é ouvida no rádio
por Christine quando ela entra no quarto do marido. Tornar público seu
amor por uma mulher casada, mesmo na Paris dos anos 1930, quebrava “as
regras”. Octave liga para sua amiga Christine, implorando para que convide
o agora suicida André para a festa em casa — outra violação das regras
(observe que nem todas as regras são injustas — algumas fazem muito
sentido). No caminho para a propriedade, Octave tenta consolar André,
lembrando-o: “Ela é uma mulher da alta sociedade, e as mulheres da
sociedade têm regras rígidas”. De fato. O que acontecerá, pergunta o
espectador, para aqueles que seguem as regras e para aqueles que não as
obedecem, como André?
A cena muda para Robert e Christine chegando em sua propriedade rural,
La Colinière; os rituais logo começarão. As complicações e as desigualdades
abundam: Christine vem de uma família alemã de classe alta e seu pai é um
célebre regente de orquestra. Octave, seu querido amigo, é um compositor
pobre dependente da caridade do Marquês. Eles se conheceram enquanto
Octave estudava na Áustria com seu pai, e o relacionamento durou anos,
mantido pelo amor compartilhado pela música e pela alta cultura. Octave
valoriza sua rica formação cultural, mas o comportamento de Christine e a
herança alemã, ficamos sabendo, têm sido uma barreira social — afinal, a
França e a Alemanha estavam prestes a entrar em guerra quando o filme
estreou. Os tendões aristotélicos de utilidade e prazer estão presentes em
sua amizade, sendo sua desigualdade uma aparente fonte de tensão.
Robert, o marido de Christine, é um comerciante muito rico, conhecido
da alta sociedade, apesar de sua ascendência judaica em um país onde o
anti-semitismo floresceu por muito tempo. Seu judaísmo é discutido entre
seus convidados, até mesmo seus próprios servos, mas nunca na sua frente.
Ele adora brinquedos de corda caros — o tipo em que sinos são tocados
por figuras movidas mecanicamente —, que funcionam tanto para exibir
sua riqueza quanto para distraí-lo do caos crescente do fim de semana,
especialmente os dois homens — o amigo e o amante — que estão
pressionando sua esposa por atenção. Ao longo do filme, Robert é quem,
acima de tudo, segue as regras com um encanto imperturbável até, como
veremos, diante da morte — uma morte que ele poderia ter evitado.
Aprendemos rapidamente que a amante astuta de Robert, Genevieve
(Mila Parely), de quem ele gostaria de se livrar, também deve comparecer, o
que decepciona Christine. Robert diz à esposa que o caso acabou. Lisette,
por sua vez, começa a flertar com um caçador, Marceau (Julien Carette),
que, ao ser pego no ato de caça furtiva, atrai a atenção de Robert, que o
contrata como criado. O expansivo Robert coloca o braço sobre o ombro
de Marceau como se fossem amigos para a vida toda, mas, previsivelmente,
não será assim. “As regras do jogo” terão a última palavra.
Em uma cena que revela a crueldade das regras, Renoir encena uma
caçada, como era comum nessas festas. 33 Os convidados, adornados com
seus melhores trajes de tweed para atirar, ficam parados com servos que
fornecem cartuchos e empilham carcaças, enquanto uma dúzia de homens
bate no chão da floresta para atrair todos os animais o mais próximo
possível dos atiradores. O diretor mostra closes dos animais sendo atingidos,
caindo e um coelho encolhendo-se para morrer. Apenas Christine e Octave
negam sua aprovação à carnificina, mas tudo é feito de “boa forma” e de
acordo com as regras. Quando o tiroteio termina, Robert pergunta
mecanicamente: “Devemos exibir a matança?”.
A certa altura, Christine é encorajada a olhar através de binóculos para o
que parece ser seu marido Robert beijando e acariciando sua “ex” amante,
Genevieve. Ela não sabe que Robert disse a Genevieve que tudo acabou,
que não a ama e que ela deve deixá-lo em paz. O que Christine vê é a
amante agarrada a Robert, e ele, sempre cavalheiro, tentando resistir. Em
um baile de máscaras naquela noite, Christine se oferece para sair com
André imediatamente. André diz que deve contar a Robert, e ela fica
horrorizada: “Mas, já que estamos apaixonados, que diferença isso faz?”.
André, para nossa surpresa, responde: “Mas existem regras”. Christine
pensa consigo mesma que ela ofereceu a ele seu amor e ele se preocupa com
“convenções”.
Enquanto a mascarada entretém os convidados, Schumacher fica
obcecado com o esforço de Marceau para seduzir sua eminentemente
sedutora esposa, Lisette. Ele pega a arma e começa a caçá-lo, disparando
tiros dentro da casa, assustando os convidados. Tomado pela cólera,
Schumacher não consegue acertar ninguém, mas é demitido por Robert,
junto com Marceau.
Nesse ínterim, Christine mudou seu afeto de André para Octave e planeja
fugir com ele. Lisette desaprova, dizendo que todas as aventuras românticas
até agora foram “apenas por diversão”. Juntos na estufa, Christine e Octave
decidem partir no trem das 3h. Schumacher e Marceau os estão
observando da floresta, mas erroneamente pensam que Christine é Lisette
porque ela está vestindo seu casaco com capuz. Octave volta em casa para
pegar seu casaco, mas o empresta para André pedindo que traga Christine
de volta da estufa. Mas a farsa de identidades equivocadas cede à tragédia
quando Schumacher mata André, pensando que ele é Octave fugindo com
sua esposa, Lisette.
Renoir encerra o filme rapidamente, com Robert se dirigindo aos
convidados do lado de fora da casa, de pé nos degraus sobre os quais o
corpo de André acaba de ser carregado para dentro de casa. Robert disfarça
friamente o assassinato acidental chamando-o de “acidente de caça”, o que
rapidamente subjuga e acalma a todos. As “regras do jogo” se mantiveram
firmes. Robert diz sobre André, com leviandade: “Estamos de luto por este
amigo adorável, que nos fez esquecer que é famoso”, e pede aos seus
convidados que saiam do frio.
Octave, que já saiu do chateau com Marceau, disse no início do filme o
que se tornou sua frase mais famosa: “A coisa horrível da vida: todos têm
suas razões”. Ele fala de razões, não de regras. As regras para Octave seriam
apenas mais um conjunto de “razões” para as ações de alguém. Existem
também “razões” para quebrar as regras e razões para encobrir um
assassinato.
A estréia do filme em 28 de junho de 1939, no Colisée Theatre, foi um
desastre, uma reminiscência da estréia de Stravinsky, 26 anos antes,
também em Paris, de A sagração da primavera. Brigas começaram; pessoas
gritaram para o filme parar; vaias foram dirigidas ao diretor; assentos foram
quebrados. Um homem tentou incendiar o teatro ateando fogo em seu
jornal. O escândalo e o caráter miserável dos jogadores foram longe demais
para alguns. O filme fechou após três semanas. Renoir ficou arrasado com a
recepção e, em entrevistas posteriores, sua decepção ainda era aparente. “Os
louros chegaram tarde demais”, disse em uma dessas entrevistas. 34
Neste filme, Renoir narra o declínio e a decadência da aristocracia
francesa e da classe alta, que fingem obedecer às regras, pelo menos quando
são vantajosas. A estratificação da Grécia de Aristóteles estava firmemente
estabelecida no século v a.C., mas a sociedade parisiense pouco antes da
Segunda Guerra Mundial havia se tornado porosa, com uma indefinição
das linhas entre a velha aristocracia e os novos ricos. Apesar de sua fluidez e
de fingir o contrário, nenhuma nova amizade se forma ou se aprofunda
nesta minissociedade reunida em La Colinière. A cena final, depois que
Robert e seus convidados voltam para casa, ressalta esse fracasso. Octave e o
caçador furtivo/engraxate, Marceau, estão caminhando pela calçada e
enquanto se despedem mencionam a possibilidade de se verem novamente.
Octave, agora realista, responde: “Provavelmente não”, e vai embora.
“Provavelmente não” dá ao filme um final triste, mas realista. Nós vimos
um grupo de pessoas muito díspares ser colocado em uma grande mansão
para dias de festividade ritualizada. As intimidades são criadas rapidamente
e, com a mesma rapidez, deixadas de lado. Desejos românticos que
pareciam ardentes se extinguem quando surgem dificuldades. Tudo o que
aconteceu em La Colinière logo será esquecido, até a morte do inocente e
sincero André. “Provavelmente não” lança uma nulidade sobre toda a
história, onde nada de substancial foi formado para durar.
Este filme, acredito, confirma a distinção de Aristóteles entre amizades de
uso e prazer e aquelas seladas pelo compartilhamento de crenças firmes
sobre uma vida bem vivida. Apenas Christine e Octave tocaram nessas
questões mais profundas, mas a amizade que poderia ter surgido foi
desviada por sua paixão por ela e sua insatisfação com sua própria vida.
Nenhum deles teve a serenidade de focar a conversa no que tinham em
comum: um profundo amor pela música.
Recomendações
Livros
William Shakespeare, Hamlet, 1623.
Jane Austen, Orgulho e preconceito, 1813.
Emily Brontë, Morro dos ventos uivantes, 1847.
Louisa May Alcott, Mulherzinhas, 1868–1869.
Ford Maddox Ford, O bom soldado, 1915.
D. H. Lawrence, Mulheres apaixonadas, 1920.
F. Scott Fitzgerald, O grande Gatsby, 1925.
Evelyn Waugh, Memórias de Brideshead, 1945.
Samuel Becket, Esperando Godot, 1953.
Fred Uhlman, Reencontro, 1971.
Músicas
W. A. Mozart, Così fan Tutte, 1790.
W. A. Mozart, A flauta mágica, 1792.
Georges Bizet, Pescadores de pérolas, 1863.
Richard Wagner, Os mestres cantores de Nuremberg, 1867.
Giacomo Puccini, La Bohème, 1895.
Filmes
Charlie Chaplin, City Lights, 1931.
Tod Browning, Freaks, a parada dos monstros, 1932.
Jean Renoir, A grande illusão, 1937.
Orson Welles, Cidadão Kane, 1941.
William Wyler, Os melhores anos de nossas vidas, 1946.
John Schlesinger, Perdidos na noite, 1969.
Michael Cimino, O franco atirador, 1979.
Louis Malle, Atlantic City, 1980.
Sergio Leone, Era uma vez na América, 1984.
Alain Resnais, Melodia infiel, 1986.
Frank Darabont, Um sonho de liberdade, 1994.
Terrence Malick, Além da linha vermelha, 1999.
Claire Denis, Beau Travail, 2000.
Steven Spielberg, A. I. — Inteligência artificial, 2001.

1 Nicomachean Ethics, 1156a 10–13, p. 218.


2 Ibid., 1156a 15, p. 220.
3 Ibid., 1156a20–21, pp. 218–219.
4 Ibid., 1156b2–3, p. 219.
5 Ibid., 1156b7–10, p. 220.
6 Ibid., 1156b12–18, p. 220.
7 Aristoteles, Politics, i, 4, 1254 b10–14, The Basic Works of Aristotle, p.
1132.
8 Ibid., i, 13, 1260a12–14, The Basic Works of Aristotle, p. 1144.
9 Indispensable Composers, p. 173.
10 Um bom lugar para fazer isso é assistir a um vídeo do show de Bernstein
em Berlim no dia de Natal de 1989, que é bastante notável:
https://www.youtube.com/watch?v=IInG5nY_wrU.
11 Robert Philip, The Classical Music Lover’s Companion to Orchestral
Music. New Haven: Yale University Press, 2018, p. 81.
12 Ibid., p. 133.
13 Ibid.
14 Ibid., p. 143.
15 Ibid., p. 145.
16 Ibid., p. 149.
17 Friedrich Schiller, Essays, ed. Walter Hinderer e Daniel O. Dahlstrom.
Nova York: Continuum, 1998, p. 90.
18 Ibid., pp. 10–11.
19 Ibid., p. 89.
20 Ibid., p. 88.
21 Esses comentários sobre a Nona sinfonia foram enviados para mim em
um e-mail privado do compositor irlandês John Kinsella em 24 de março
de 2019. As onze sinfonias de John Kinsella possuem um uso mais criativo
da beleza tonal do que qualquer outro compositor escrito no mesmo
período. Ele compôs sua Sinfonia nº 1 em 1984, ano em que completou 52
anos. Sua poderosa Elegy for Strings (2011) é um excelente lugar para
começar a se familiarizar com o trabalho de Kinsella:
https://www.youtube.com/watch?v=t_RBv6P6ejA.
22 Ibid.
23 Harvey Sachs, The Ninth: Beethoven and the World in 1824. Nova York:
Random House Trade Paperback Edition, p. 95.
24 Mark Twain, The Adventures of Huckleberry Finn. Amazon Classics
Edition, 2016, loc. 591 de 4604, Kindle.
25 Ibid.
26 Ibid., loc. 3376 de 4603, Kindle.
27 Ibid., loc. 3341 de 4604, Kindle.
28 Linda Holmes, “In Huckleberry Finn’, A History In Echoes”, 30 de
dezembro de 2014, disponível em
https://www.npr.org/2014/12/30/373834635/in-huckleberry-finn-a-
history-in-echoes.
29 Jane Smiley, “Say it ain’t so, Huck; second thoughts on Mark Twain’s
‘masterpiece’”, em Harper’s Magazine, 1996, disponível em
https://www.enotes.com/topics/adventures-of-huckleberry-finn/critical-
essays.
30 Ibid.
31 Ibid.
32 The Rules of the Game, direção de Jean Renoir. 1939. Nova York: The
Criterion Collection, Inc., 2011, Blu-ray.
33 The Shooting Party, 1985, dirigido por Alan Bridges, estrelado por James
Mason, baseado em um romance de Isobel Colgate. Como em As regras do
jogo, um grupo de aristocratas que fica em uma propriedade rural vai atirar,
mas sua intensa competição para ver quem consegue matar mais leva a uma
morte.
34 Suplemento em vídeo da edição Criterion Collection de The Rules of the
Game, direção de Jean Renoir (1936; Nova York: The Criterion Collection,
Inc., 2011), Blu-ray.
capítulo xv
Eros

juliet:

How cam’st thou hither, tell me, and wherefore?


The orchard walls are high and hard to climb,
And the place death, considering who thou art,
If any of my kinsmen find thee here.
romeo:

With love’s light wings did I o’erperch these walls,


For stony limits cannot hold love out,
And what love can do, that dares love attempt:
Therefore thy kinsmen are no stop to me.
julieta:

Como vieste aqui, diga-me, e por quê?


As paredes do pomar são altas e difíceis de escalar,
E o lugar da morte, considerando quem tu és,
Se algum dos meus parentes te encontrar aqui.
romeu:

Com as asas leves do amor ultrapassei esses muros,


Pois os limites pedregosos não podem conter o amor,
E o que o amor pode fazer é o que o amor ousa tentar:
Portanto, seus parentes não são um obstáculo para mim.
(Shakespeare, Romeu e Julieta, ato ii, cena 2)

C om essas palavras, “E o que o amor pode fazer é o que o amor ousa


tentar”, Shakespeare descreve tanto a bondade natural de Eros quanto
sua capacidade de destruição. O que começa com a beleza simples do
desejo despertado entre dois adolescentes termina em um suicídio duplo,
“Pois nunca houve uma história mais dolorosa/ Do que esta de Julieta e seu
Romeu”. 1
São histórias de amor que capturam nossa imaginação para o resto da
vida, histórias de casais cujos desejos os levam ao desastre: Adão e Eva,
Orfeu e Eurídice, Davi e Betsabéia, Páris e Helena, Antônio e Cleópatra,
Enéias e Dido, Lancelot e Guinevere, Abelardo e Heloísa, Tristão e Isolda,
Paolo e Francesca. Nós os encontramos em obras canônicas como Os
sofrimentos do jovem Werther, Anna Karenina, Madame Bovary, A letra
escarlate, O morro dos ventos uivantes, A era da inocência, O sol também se
levanta, Servidão humana e Lolita. Essa lista, como o leitor sabe, é infinita.
Ao contar histórias de amor — de Eros, Philia, Storge ou Ágape —,
retratamos a condição humana. Todas as histórias, de uma forma ou de
outra, são histórias de amor.
Animado como é pela paixão e pelo drama, Eros fornece o quadro mais
rico para o contador de histórias. Suas “asas leves” podem voar em qualquer
direção, sem respeitar limites — “E o que o amor pode fazer é o que o
amor ousa tentar”. Na modernidade, as representações de Eros foram
reduzidas ao amor romântico, erotismo ou desejo sexual. Como veremos, a
idéia de Eros era originalmente, até a Idade Média, 2 um impulso irresistível
que precisava transcender o físico para encontrar seu objeto final.
Eros entrou na tradição literária ocidental em seu estágio inicial — como
um deus da mitologia grega. Os primeiros filósofos, entretanto, trataram
Eros como uma idéia do desejo humano por plenitude, um lugar de
descanso onde o desejo pode encontrar seu verdadeiro fim.
O BANQUETE
Em seu grande diálogo sobre o amor, O banquete, Platão apresenta a
narrativa de Sócrates a um pequeno grupo de amigos participando de um
banquete, onde o vinho será servido e bebido em abundância. Agatão, um
renomado poeta trágico, hospeda o evento quando Sócrates anuncia que
cada um dos convidados deve fazer um discurso em louvor a Eros. O
resultado são sete pontos de vista expressos, em ordem, por Fedro,
Pausânias, Eurímaco, Aristófanes, Agatão, Sócrates e Alcibíades, muito
bêbado. Cada um desses homens proeminentes de Atenas aborda Eros
desde pontos de vista diferentes: jurídico, médico, mítico, político, cômico,
poético e pessoal.
À medida que o argumento avança, Sócrates afirma o ponto básico
segundo o qual um amante sente a falta daquilo que deseja: “Agora, uma
pessoa que sente saudade anseia pelo que não está ao seu alcance, pelo que
ela não é e por aquilo de que carece”. 3 Enquanto o vinho flui, a conversa
animada dos amigos segue previsivelmente em direção a Eros como o desejo
por beleza física. Sócrates, como costuma fazer, redireciona a conversa. Ele
conta aos convivas como Diotima, uma antiga filósofa e profetisa da
Grécia, o instruiu sobre a genealogia de Eros. Era típico da ironia socrática
ter seus ensinamentos vindos da boca de outro personagem e, neste caso, de
uma mulher. Diotima apresenta o esboço básico do que se tornou
conhecido como “amor platônico”. Lembre-se de que Sócrates não era fã da
palavra escrita, então conhecemos seus ensinamentos a partir dos escritos
de seu maior aluno, Platão.
Platão usa a beleza (kalós) para descrever o objeto em direção ao qual se
ascende. Não se confunda; a beleza é aquilo pelo qual o bem nos atrai. A
beleza acalma o apetite. Simultaneamente, eleva a mente acima da
cotidianidade, e vemos com os olhos elevados a um poder superior.
Diotima explica que o amor pela beleza do corpo de outra pessoa é apenas
o começo do amor. Eros desperta um desejo mais elevado, o de amar a
beleza das almas — essa ascensão pode ser descrita como subir uma “escada
do amor”. Essa escada se tornou a base da metafísica neoplatônica,
encontrada nas obras dos neoplatônicos, como o pagão Plotino,
culminando no Paraíso da Divina Comédia de Dante.
O último passo descrito por Diotima é a visão da própria Beleza: “[A
beleza] existe por si mesma, eternamente, e em uma única forma, e todas as
outras coisas belas participam dela de tal maneira, que o nascimento e a
morte delas todas em nada diminuem ou lhe acrescentam nem causam o
menor dano”. 4
O Eros de um indivíduo deve se submeter à sublimação para que a força
de Eros nos impulsione constantemente em direção ao nosso objetivo final,
nossa felicidade (eudaimonia). 5 Sublimar significa elevar algo a um nível
superior, 6 neste caso, redirecionar o desejo físico para buscar um objeto
não-físico. A sublimação não é natural para todos. Alguns reconhecem que
o amor físico cria uma fome por algo mais. Outros não. As virtudes que
ordenam pensamentos, emoções e ações são necessárias para inclinar um
indivíduo para a sublimação.
Que Eros decorre do desejo natural, concordam os antigos filósofos e
teólogos dos períodos patrístico e medieval. Esse desejo vem com a
condição humana, um desejo inato que você possui, saiba disso ou não.
Mas os primeiros teólogos cristãos diferiam decisivamente dos gregos: os
platônicos e os aristotélicos consideram esse fim o Bem (agathon), que
permanece abstrato e conceitual, um ideal. Na visão cristã, esse ideal foi
substituído por uma pessoa, Jesus Cristo. Quando os cristãos olham para a
história ou a eternidade, eles encontram uma pessoa, o Deus Trino de
amor, não um ideal abstrato.
CANÇÕES DE AMOR
Amantes cantam. Eles cantam espontaneamente para expressar uma
admiração inexprimível por palavras faladas (a não ser, é claro, que um
amante seja um poeta proficiente). As baladas de amor remontam ao
compositor inglês John Dowland (1563–1626). O cantor Sting deve
concordar — ele gravou um conjunto de canções de Dowland em seu cd
de 2006, Songs from the Labyrinth. 7 Um convertido católico, Dowland
passou grande parte de sua vida compondo fora da Inglaterra elisabetana,
onde os “papistas” eram freqüentemente tratados com rudeza. Após oito
anos servindo na corte do Rei Christian iv da Dinamarca, ele retornou à
Inglaterra, encontrando emprego com o tolerante James i. De 1592 a
1612, Dowland compôs noventa e seis canções para alaúde e voz.
Essas canções permanecem frescas para os ouvidos mais de quatro séculos
depois. Entre as músicas, sugiro começar com “Dear, if you change” 8 e
“Come away, come sweet love”, 9 ambos do primeiro livro de canções de
Dowland (1597). Diretas e melódicas, com letras elaboradas poeticamente,
são o tipo de música que, segundo a opinião de muitos, jamais foi superada
— eram jóias naquela época, como são até hoje. Elas abrangem todas as
experiências familiares a todos os amantes: do desejo e decepção à
melancolia e pura alegria.
As canções de Dowland costumam soar como uma nota de tristeza,
provavelmente devido a vicissitudes em sua vida pessoal. Ele nunca
alcançou a proeminência que sentiu que merecia em sua vida, talvez por
causa de sua fé, mas a história corrigiu todos os erros. Se sua música o
fisgar, experimente ouvir as cerca de noventa composições para alaúde solo
tocadas por Paul O’Dette. 10 Combinada com as gravações da Academy of
Ancient Music de Anthony Rooney, ambas legaram a esta geração
praticamente todas as músicas de Dowland em performances excelentes. 11
Ouvir suas canções de amor nos faz perceber que Eros não mudou nos
últimos cinco séculos.
UM CORPO QUE CAI
Os pecados de Eros são recontados continuamente em canções, versos,
ficção e filmes: a tristeza após um caso de uma noite, a depressão do
aventureiro sexual, a súbita decepção ao se descobrir que o que pensávamos
ser amor era apenas paixão — todas essas experiências são comuns.
“Procuramos amor em todos os lugares errados”, ou pelo menos de todas as
maneiras erradas.
Em Um corpo que cai, o espectador testemunha um verdadeiro
descarrilamento de Eros. 12 Neste clássico filme de 1958, Alfred Hitchcock
cria uma parábola moderna inigualável da paixão desordenada, na qual um
ídolo é feito da beleza feminina e uma cruz do desejo masculino. 13 Cada
elemento de Um corpo que cai é essencial — o script, técnicas
cinematográficas, uso de filtros de cores, animação e, em particular, a trilha
sonora do compositor Bernard Herrmann. A trilha de Herrmann está em
12º lugar na lista das melhores trilhas de filmes do American Film
Institute. 14 É tão essencial para Um corpo que cai quanto foi seu trabalho
em Psicose (1960). Quem poderia esquecer daquelas cordas estridentes da
cena do chuveiro?
Situado em São Francisco, Um corpo que cai é sobre um policial recém-
aposentado de Los Angeles, Scottie, interpretado por James Stewart, que
concorda em ajudar um velho amigo, Gavin Elster (Tom Nelmore),
seguindo sua esposa, que ele teme estar enlouquecendo. Sua esposa,
Madeleine, interpretada por Kim Novak, acredita que está sendo possuída
pelo espírito de Carlotta Valdes, uma mulher que morreu um século antes.
Scottie não queria o trabalho inicialmente, mas Elster prepara uma
armadilha para garantir o interesse de Scottie. Naquela noite no Ernie’s
Restaurant, Scottie está sentado no bar. A câmera dá um panorama
horizontal a partir de Scottie pelo restaurante até que vemos as costas de
uma linda mulher loira relaxando com Elster. Ouvimos o memorável tema
“Madeleine” de Hermann (1.12). 15 A câmera volta para o bar de onde
Scottie vê o casal se levantar da mesa. Madeleine se levanta com um vestido
decotado de veludo preto com uma capa verde escura pendurada nos
ombros. Enquanto ela caminha em direção a ele no bar, vemos Scottie
tentando não ser pego espiando.
Tudo em Madeleine, como Hitchcock a apresenta, é irresistível — até
seus movimentos são sedutoramente felinos. Hitchcock a faz parar e ficar
noventa graus em relação à câmera e ao olhar de Scottie. A câmera
permanece no perfil dela e depois em Scottie. Quando a câmera retorna
para Madeleine, o revestimento vermelho escuro da parede tem um novo
brilho de fogo, que serve para enquadrar sua beleza e alertar o observador.
Se Scottie está atordoado com sua beleza, seu rosto não o trai, mas
apostamos que ele está, porque Hitchcock garantiu que nós ficássemos. O
espectador não fica surpreso que a câmera corta para Scottie sentado em
seu carro em frente ao prédio de Madeleine, onde ela mora longe de seu
marido agora afastado. Ele aceitou o trabalho ao qual não conseguia resistir.
Scottie agora é um prisioneiro — não da bela mulher, mas de Eros. À
medida que o enredo desagradável se desenrola, o espectador aprende mais
sobre como Scottie foi cuidadosamente escolhido pelo marido de
Madeleine e manipulado para participar involuntariamente de seu esquema
sombrio. Em um ponto crucial, vemos Scottie novamente dominado pela
vertigem, intensificada no filme por uma espiral descendente animada e a
trilha sonora de Hermann.
Como eu recomendo fortemente este filme para o espectador maduro,
vou poupar você de spoilers, exceto talvez esta dica, já que lança luz sobre
Eros deformado. A certa altura, Scottie fica tão perturbado que passa um
ano em um hospital psiquiátrico, recuperando-se para tentar entender sua
perda. Ele encontra nas ruas movimentadas de São Francisco uma bela
mulher que é a cara de Madeleine, mas com cabelo e estilo diferentes.
Scottie fica obcecado por ela, até mesmo coagindo-a a adotar o estilo e o
vestido de Madeleine. Ele está tão consumido pelo desejo erótico e pela
miséria que não se preocupa com a mulher, Judy, como pessoa.
Então Hitchcock orquestra cuidadosamente uma cena em que Scottie e
Judy, em um pânico vigoroso, se confrontam.
Scottie: Oh Judy, estou dizendo que esses últimos dias foram os mais felizes que eu tive em um
ano.
Judy: Eu sei, eu sei porque eu lembro você dela, mesmo que muito pouco.
Scottie: Não, é você também, há algo em você que… (Scottie envolve o rosto dela entre as
mãos, mas a solta e começa a se virar).
Judy: Você nem quer me tocar.
Scottie: Sim, sim, eu sei.

Nesta cena, Hitchcock ilumina Scottie e Judy de maneira diferente: o


rosto de Scottie está frio, um azul gelado com sombras agourentas. O rosto
de Judy está calorosamente iluminado, sua pele brilha com afeto e
submissão. Dizendo: “Certo, farei isso. Eu não me importo mais comigo”,
ela entra no banheiro. Voltando, Scottie diz que seu cabelo não está “preso”
como o de Madeleine. Ele pede que ela volte. Ela obedece. Saindo do
banheiro, Judy/Madeleine atravessa por uma bruma, vestindo um traje
cinza que Madeleine usava. O crescendo da música francamente erótica de
Hermann não é sutil. Ela tenta sorrir enquanto caminha até ele. Ele fica
apaixonado. Com uma técnica que seria usada em muitos filmes
românticos, a câmera gira em torno deles enquanto eles se abraçam e se
beijam por mais de um minuto e a famosa Scène d’amour de Hermann se
intensifica (4.57). 16 O fundo fica escuro conforme a câmera gira, e a sala se
enche com a luz verde da placa do hotel. 17
Eros desenfreado ainda é a força dominante, e uma cena que em alguns
filmes pode ter indicado uma volta em direção a um amor mais real entre
as pessoas, que sobe “a escada”, é usada por Hitchcock como prenúncio de
uma conclusão trágica e irônica. A desorientação associada ao medo de cair
é uma metáfora apropriada, e a abordagem visionária de Hitchcock para a
tragédia do Eros despersonalizado é tudo menos uma glorificação da luxúria
e do sexo.
Como tantas outras grandes obras, Um corpo que cai foi menosprezado
pela maioria dos grandes críticos de cinema de sua época, mesmo sendo
hoje considerado um dos melhores filmes de todos os tempos. No final dos
anos 1950, os homens e mulheres não estavam prontos para ver seus casos
de amor exibidos na tela, ou a história era sombria demais? Não é fácil
assistir ao romântico e sublime virado do avesso, mas a grande arte nunca
se refere ao caminho mais curto e direto para o que é verdadeiro, bom e
belo. Muitas vezes somos levados a inferir o que é bom a partir de um
reconhecimento sóbrio do mal em uma tragédia que chega a uma
conclusão sombria e lógica.
FOLHAS DE RELVA
Ao ler Folhas de relva de Walt Whitman, fico continuamente impressionado
com a sensação de Eros, a fome descarada pelo universo, que ressoa desta
clássica obra poética. Na história do amor, Whitman retém o Eros do
platonismo e do cristianismo, mas sem seus absolutos. Whitman vive em
um mundo onde não existe Deus, mas ele expressa uma gratidão
apaixonada pela natureza; isto é, tudo o que existe.
Folhas de relva tem uma história de publicação complicada: publicado
pela primeira vez em 1855, continha doze poemas. Cada vez que Whitman
republicava uma edição, incluía novos poemas e algumas revisões de outros
mais antigos, passando por seis ou até nove edições, dependendo do
especialista a que você perguntar. A última, a edição do “leito de morte”,
foi publicada em 1892, dois meses antes da morte de Whitman. Ela
contém mais de quatrocentos poemas.
Whitman e sua poesia foram controversos desde o início, em parte devido
ao seu tratamento de Eros e da sexualidade. Suas descrições francas do
impulso erótico e da celebração do corpo nu assustaram o público leitor em
meados do século xix. Em 1860, caminhava por Boston com seu primeiro
apoiador, Ralph Waldo Emerson. Emerson tentou convencer seu amigo a
cortar algumas das linhas sexuais mais explícitas não apenas em Eu canto o
corpo elétrico, mas também na seção Filhos de Adão. Whitman recusou o
conselho de seu amigo.
Um exemplo do que perturbou Emerson pode ser visto em um dos doze
poemas originais da edição de 1855, começando com a linha de abertura:
“Os corpos de homens e mulheres me envolvem e por mim são
envolvidos”. Na edição de 1867, Whitman adicionou o título Eu canto o
corpo elétrico, 18 o que apenas sublinha a celebração entusiástica do corpo
humano. Experimente estes versos da edição de 1891–1892:
I believe the likes of you shall stand or fall with my poems, and that they are my poems,
Man’s, woman’s, child’s, youth’s, wife’s, husband’s, mother’s, father’s, young man’s, young woman’s
poems,
Head, neck, hair, ears, drop and tympan of the ears,
Eyes, eye-fringes, iris of the eye, eyebrows, and the waking or sleeping of the lids,
Mouth, tongue, lips, teeth, roof of the mouth, jaws, and the jaw-hinges,
Nose, nostrils of the nose, and the partition,
Cheeks, temples, forehead, chin, throat, back of the neck, neck-slue,
Strong shoulders, manly beard, scapula, hind-shoulders, and the ample side-round of the chest, […]
Womanhood, and all that is a woman, and the man that comes from woman,
The womb, the teats, nipples, breast-milk, tears, laughter, weeping, love-looks, love-perturbations and
risings […].
Creio que as tuas semelhanças hão de se manter ou terminar com as semelhanças da alma (e com
o fato de que elas são a alma)
Creio que as tuas semelhanças devem se manter ou terminar com meus poemas e com o fato de
que elas são os meus poemas,
Poemas de mulheres, de crianças, de jovens, de esposas, de maridos, de mães, de pais, de moços e
moças,
Cabeça, pescoço, cabelo, ouvidos, diafragma e tímpano dos ouvidos,
Olhos, franjas dos olhos, íris dos olhos, sobrancelhas, e o abrir e fechar das pálpebras,
Boca, língua, lábios, dentes, céu da boca, maxilares, e as juntas dos maxilares,
Nariz, narinas, e a divisória das narinas,
Bochechas, têmporas, testa, queixo, garganta, nuca, entorno do pescoço,
Ombros fortes, barba masculina, omoplata, juntas dos ombros e a ampla parte lateral da caixa
torácica, […]
A feminilidade e tudo o que é mulher — e o homem que vem da mulher,
O útero, os seios, os mamilos, leite materno, lágrimas, risada, lamentos, olhares amorosos,
perturbações amorosas e excitações […]. 19

Lido em voz alta no Banquete de Sócrates, Folhas de relva teria recebido


pouco ou nenhum aplauso. O Eros de Whitman celebra o físico, focando o
leitor nos detalhes da forma do corpo e da sexualidade. Onde os gregos
teriam começado a subir a escada em direção ao ideal abstrato, Whitman se
inclina e olha ainda mais de perto. Em sua vida pessoal, deve-se acrescentar,
Whitman desaprovava a pornografia e a libertinagem sexual. 20
Conforme Whitman envelhecia, as Folhas de relva cresciam e também
mudavam. Na edição de 1872, o estudioso de Whitman David S. Reynolds
vê uma mudança na voz de Whitman — seu “eu” se torna aquele que
expressa “um desejo urgente de escapar para o reino espiritual”. 21 Em
Passagem para a Índia, encontramos Whitman aparentemente tentando
escapar da Terra, da fisicalidade que celebrou. O poeta e sua alma, o “nós”
do poema, estão prestes a “lançar-se em mares sem trilhas” e navegar “em
ondas de êxtase” cantando “nossa canção de Deus”, uma exploração
espiritual.
O we can wait no longer,
We too take ship O soul,
Joyous we too launch out on trackless seas,
Fearless for unknown shores on waves of ecstasy to sail,
Amid the wafting winds, (thou pressing me to thee, I thee to me, O soul,)
Caroling free, singing our song of God,
Chanting our chant of pleasant exploration.
Ó não podemos mais esperar,
Nós também tomamos navios, ó alma,
Joviais, nós também nos lançamos nos mares abertos,
Sem medo dos litorais desconhecidos, em ondas de êxtase, para navegar,
Em meio aos ventos flutuantes (tu trazendo-me para ti, eu trazendo-te para mim, ó alma),
Cantando livremente, cantando nossa canção de Deus,
Cantando nosso canto de prazerosa exploração.
A alma espera entrar em contato com o divino: “Banha-me, ó Deus, em
ti”. O poeta de Whitman busca nada menos do que estar imerso — um
batismo no divino. Nessa esperança, eles continuam sua jornada.
O soul thou pleasest me, I thee,
Sailing these seas or on the hills, or waking in the night,
Thoughts, silent thoughts, of Time and Space and Death, like waters flowing,
Bear me indeed as through the regions infinite,
Whose air I breathe, whose ripples hear, lave me all over,
Bathe me O God in thee, mounting to thee,
I and my soul to range in range of thee.
Ó alma, tu me satisfazes e eu a ti,
Navegando nestes mares ou nas montanhas, ou despertando durante a noite,
Pensamentos, pensamentos silenciosos, de Tempo e Espaço e Morte, como águas fluentes,
Sustenta-me, realmente, através de regiões infinitas,
Cujos ares eu respiro, cujas ondulações eu ouço, lava-me todo,
Banha-me, ó Deus, em ti, ascendendo para ti,

Eu e minha alma para subir nas tuas alturas. 22

Em seguida, o poeta se dirige a Deus como “Ó Tu, transcendente,/ Sem


Nome”, como a fonte de luz e design cósmico e uma “fonte moral e
espiritual”. O poeta “murcha no pensamento de Deus,/ Na Natureza e em
suas maravilhas”, mas espera que a alma faça uma reconciliação harmoniosa
com essas forças.
O Thou transcendent,
Nameless, the fibre and the breath,
Light of the light, shedding forth universes, thou centre of them.
Ó Tu, transcendente,
Sem nome, a fibra e o sopro,

Luz das luzes, derramando universos, tu, o centro de todos eles. 23

Observe como Whitman alterna entre o pessoal, “Banha-me”, e o


impessoal, “Ó Tu, transcendente”, um transcendente aberto com um Tu
maiúsculo. Estamos ambos nos perdendo em uma visão mística? Não,
porque o poeta é dominado pelo medo e volta a contemplar apenas “a
vastidão do Espaço”.
Swiftly I shrivel at the thought of God,
At Nature and its wonders, Time and Space and Death,
But that I, turning, call to thee O soul, thou actual Me,
And lo, thou gently masterest the orbs,
Thou matest Time, smilest content at Death,

And fillest, swellest full the vastnesses of Space. 24


Ligeiramente, murcho no pensamento de Deus,
Na Natureza e em suas maravilhas, Tempo e Espaço e Morte,
Mas eu, voltando-me, clamo por ti, ó alma, tu que na verdade és o meu Eu,
E, vê, gentilmente dominas os orbes,
Dominas o Tempo, sorrindo satisfeita na Morte,

E enches e te avultas na plena vastidão do Espaço. 25

O que o leitor deve fazer com isso? Whitman deu meia-volta? Não, o
poeta e sua alma não fogem da Terra, mas procuram seu centro. A jornada
não transcendeu os limites da natureza, dentro do mundo que Whitman
celebrou sua vida inteira. Whitman propôs uma espiritualidade do
naturalismo, que um século depois foi empregada e banalizada pelos gurus
da Nova Era.
UMA SINFONIA MARÍTIMA
O que acontece quando um compositor da mesma sensibilidade coloca as
palavras de Whitman acima em música? Em Uma sinfonia marítima, o
compositor inglês Ralph Vaughan Williams (1872–1958) multiplica o
poder das palavras de Whitman, interpretando-as de uma forma que revela
mais significado do que simplesmente lê-las.
Esta obra não é familiar para a maioria dos leitores, mas merece fazer
parte do repertório regular de orquestras de concerto em todo o mundo. É
uma obra-prima e, em seu contexto histórico, é altamente inovadora. A Sea
Symphony foi executada pela primeira vez em 1910 com o próprio Williams
regendo. É um trabalho longo, com duração de setenta minutos na maioria
das gravações, para grande orquestra, coro e dois solistas — um barítono e
uma soprano. Todos os textos são retirados de Folhas de relva. Ele foi
apresentado a Whitman em 1892 por um colega de graduação, Bertrand
Russell, que se tornaria um filósofo mundialmente famoso. Williams se
importava tanto com Folhas de relva que manteve o livro no bolso
enquanto servia na Primeira Guerra Mundial. 26
Sobrinho-neto de Charles Darwin, Williams era um cético religioso. Seu
pai, um pastor anglicano, morreu quando ele tinha dois anos e meio de
idade, praticamente eliminando a possibilidade de uma direção religiosa
firme. Em suas memórias, sua segunda esposa, Ursula, descreve Williams
como “um agnóstico alegre, embora nunca tenha sido um cristão professo”.
27
Assim, ele compartilha algo com Whitman: ambos foram criados como
cristãos, se distanciaram da religião institucional e procuraram expressar
uma espiritualidade sem dogma, apenas um anseio por um princípio
universal, independentemente do nome usado para descrevê-lo. Essa
espiritualidade não-religiosa ou imanente mais tarde se tornaria comum no
Ocidente, à medida que a fé cristã tradicional recuava.
Uma sinfonia marítima consiste em quatro movimentos. 28 O quarto, “Os
exploradores”, tem trinta minutos de duração. A princípio, “Os
exploradores” parecem estar subindo a escada do amor descrita no
Banquete. A visão de Whitman e Williams, ao contrário de Platão, não é
dualista. Seus exploradores não querem deixar o mundo; querem ver mais
profundamente nele. Há um panteísmo escondido logo abaixo da
superfície do poema de Whitman e do cenário orquestral de Vaughan
William. Alguns estudiosos de Whitman se referem a isso como
“misticismo invertido”. 29 Os três primeiros movimentos da sinfonia são
sobre a terra, o físico; com o quarto, o poeta de Whitman e sua alma foram
transportados, “agora é o próprio planeta e seu contexto cósmico que são
abordados”. 30
O coro, a orquestra, o barítono e a soprano combinam-se em uma
melodia contínua e desdobrando-se com uma sensação de movimento
ascendente impulsionado por todos. Quase no meio do quarto movimento,
o barítono e a soprano se lançam em um dueto arrebatador, cheio de uma
sensação de admiração com o que está no final da jornada, com o barítono
Ó
declamando: “Ó não podemos mais esperar,/ Nós também tomamos
navios, ó alma,/ Joviais, nós também nos lançamos nos mares abertos”. A
soprano entra aqui cantando a mesma linha assim que o barítono termina.
Essa estrutura de sobreposição em Cânone é usada em toda parte, como as
ondas que rebentam contra a encosta, como os movimentos dos amantes.
Quando o barítono canta “Ó alma, tu me satisfazes e eu a ti”, a música
começa a crescer em intensidade, aumentando a tensão lentamente, uma
antecipação da visão que está por vir. “Despertando durante a noite”
intensifica nossa expectativa, mas as vozes nos frustram, vagando
sonhadoramente, como se flutuando, até chegarem ao verso: “Suporta-me
realmente como por regiões infinitas”. Então, com uma grande inspiração,
eles cantam em uníssono: “Cujo ares eu respiro, cujas ondulações eu ouço,
lava-me todo”, como se a represa estivesse prestes a estourar, e isso
acontece, com a soprano entrando em “Banha-me, ó Deus, em ti”, unindo-
se em alguns compassos ao barítono, com um apelo extático a Deus para
que os permitisse em Sua presença. Após um momento de descanso, o
barítono entra com grande nobreza, e está claro que foi permitido que
subissem a um nível mais alto, “ascendendo para ti”. De repente, outra
explosão de emoção é liberada quando o barítono se junta à soprano
subindo uma escada de notas em um tom agudo, cantando “e minha alma
para subir nas tuas alturas”.
O que se segue é um daqueles momentos na música que deixa o ouvinte
sem palavras, deslumbrado por uma beleza aparentemente além do poder
de um artista humano criar. Em “Ó Tu, transcendente”, as duas vozes
sobem e se fundem em uma das passagens mais sublimes da música, até o
final da estrofe, “Luz das luzes, derramando universos, Tu, o centro de
todos eles”. A música é climática, devastadora e consegue transmitir o
poder único da voz poética de Whitman.
O que o poeta de Whitman e sua alma encontraram em sua visão
representada por Vaughan Williams? A beleza de Platão ou a pessoa do
Deus revelado vista “face a face”? Eles não encontraram nenhum. Whitman
tem um entendimento do ser no qual o físico e o espiritual podem ser
distinguidos na linguagem, mas não na realidade. 31 Eu diria que Whitman,
ajudado por Vaughan Williams, vai tão longe quanto Eros pode ir sem
ajuda, mas ambos devem recuar porque sem fé não há pessoa para recebê-
los.
O que torna Eros tão poderoso? Por um lado, é parte integrante de nossa
natureza humana e não pode ser removido. Eros é a existência nos
empurrando para frente. Negue Eros e você permanecerá no escuro sobre o
que e quem você é. Eros naturalmente move nossa vontade em direção a
qualquer coisa considerada bela e boa. Deliciar-se com cada flor da
primavera é revigorante e inofensivo. Encantar-se com a beleza dos rostos
que passam na rua também, a menos que você seja um Scottie procurando
uma substituta para um amor perdido. Neste mundo, povoado por pessoas
como nós, de natureza decaída, muitos homens e mulheres tratam o Eros
como uma espécie de droga, e a pessoa a quem se dirige como um objeto
útil.
AMOR ROMÂNTICO
O amor romântico foi inventado no século xii, de acordo com Denis de
Rougemont em seu clássico O amor e o Ocidente. 32 Os poetas trovadores
que atuavam nas cortes francesas compunham e cantavam canções de amor
sobre mulheres inatingíveis. Suas canções representavam o que é chamado
de “Mito de Tristão”, um amor caracterizado pelo desejo por alguém que
não pode ser possuído. A intensidade do amor romântico cresce à medida
que o objeto de desejo é negado. A maioria concordaria que isso é o oposto
de como o amor cresce em um relacionamento ordenado. Mas no amor
romântico, as emoções inflamadas são valorizadas como um tipo ideal de
amor e paixão. Aqui, De Rougemont descreve a relação entre Tristão e
Isolda contada pelo escritor medieval do século xii Béroul: “Tristão e Isolda
não se amam. Eles dizem que não, e tudo ocorre de um modo que
comprova isso. O que eles amam é amar e estar apaixonados”. 33
É a ferocidade do amor sentido e do desejo que é admirada, em vez do
amor “monótono” diário de, digamos, um casamento maduro. Esse amor
não foi deixado para trás no século xii — ele permanece tanto na vida
quanto na ficção. Os escritores preferem o amor infeliz porque “o amor
feliz não tem história”, observa Rougemont. 34 Ele explica: “O romance só
existe onde o amor é fatal, malvisto e condenado pela própria vida. O que
leva os poetas líricos aos seus melhores vôos não é o deleite dos sentidos
nem o contentamento fecundo do casal estabelecido; não a satisfação do
amor, mas sua paixão. E paixão significa sofrimento”. 35
Aqui, Rougemont exagera em seu caso, embora sua análise da doença da
paixão permaneça verdadeira. Vimos isso nitidamente em Um corpo que
cai. Uma comparação pode ser feita com Folhas de relva: o desejo erótico de
Whitman floresce na própria jornada — chegar ao destino não importa.
Seu Eros é como o dos poetas dos trovadores, cujo ardor se intensifica ao ser
negado à mulher cujos elogios ele canta. Essa mudança de atenção do
objeto amado para o sujeito que ama se tornou central durante o
Renascimento e, especialmente, na era romântica. A virada para o sujeito
tornou-se um tema presente em toda a filosofia moderna, à medida que
mais e mais dúvidas eram lançadas sobre o conhecimento que temos do
mundo exterior. O próprio conceito de felicidade lentamente mudou para
se tornar um estado psicológico, o prazer da caça, mas não a captura. 36
O autor existencialista francês Albert Camus descreveu o desfecho nada
feliz dessa jornada em seu Mito de Sísifo (1942). Usando um personagem
da mitologia grega, Camus conta a história de Sísifo, que passa a vida
rolando uma pedra colina acima para vê-la rolar novamente. Mas Sísifo
nunca pára de empurrá-la montanha acima. No entanto, Camus conclui
que “está tudo bem” e, de fato, que “deve-se imaginar Sísifo feliz”. 37 O
Sísifo de Camus representa o niilismo que resulta de perseguir a
perseguição, de seguir em frente após cada captura, porque após a captura
vem a diminuição imediata do desejo; o ar escapa e desinfla do balão.
Podemos discordar do retrato severo de Camus da existência humana ao
ver seu ponto: isso é o que acontece quando o amor humano busca apenas
o Ser. Camus nos faz pensar nas conseqüências daquilo em que acreditamos
e nas maneiras como nossas crenças afetam o modo como vivemos e
amamos. O Eros humano nos coloca em um caminho específico de vida.
Em algum momento, espero que cada um de nós pare, se olhe no espelho e
pergunte: “O que é isso que estou buscando?”. Esse momento é o início da
sabedoria.
Recomendações
Livros
Antigo Testamento, Cântico dos Cânticos.
Platão, Fedro, 370 a.C.
Andreas Capellanus, A arte do amor cortês, 1184.
São Tomás de Aquino, “Tratado das Paixões da Alma”, Suma teológica,
1265–1274.
William Shakespeare, Sonetos, 1609.
Johann Wolfgang von Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther, 1774.
Stendhal, Do amor, 1822.
Søren Kierkegaard, As obras do amor, 1847.
Martin Buber, Eu e tu, 1923.
Anders Nygren, Agape e Eros, 1930–1936.
Jose Ortega y Gasset, Estudos sobre o amor, 1940.
M. C. D’Arcy, The Mind and Heart of Love: Lion And Unicorn, A Study In
Eros And Agape, 1945.
Hans Urs von Balthasar, Só o amor é digno de fé, 1966.
Robert G. Hazo, The Idea of Love, 1967.
Dietrich von Hildebrand, The Nature of Love, 1971.
Músicas
Giovanni Pierluigi da Palestrina, Canticum Canticorum (coro do Cântico
dos Cânticos), 1584.
W. A. Mozart, Le Nozze di Figaro, 1786.
Franz Schubert, Die Schöne Müllerin, 1823.
Frédéric Chopin, Concerto para Piano nº 1, 1830.
Hector Berlioz, Symphonie Fantastique, 1830.
Richard Wagner, Prelude and Liebestod, de Tristão e Isolda, 1859.
Georges Bizet, Carmen, 1875.
Giacomo Puccini, La Boheme, 1895.
Arnold Schöenberg, Transfigured Night, 1899.
Richard Strauss, Der Rosenkavalier, 1910.
Leoš Janáček, Quarteto de Cordas No. 2 (“Intimate Letters”), 1928.
Frederick Delius, Idyll (com texto de Walt Whitman), 1933.
Leonard Bernstein e Stephen Sondheim, West Side Story, 1957.
Filmes
F. W. Murnau, Aurora, 1927.
Kenji Mizoguchi, The Story of Last Chrysanthemums, 1939.
Marcel Carné, O Boulevard do crime, 1945.
David Lean, Breve encontro, 1945.
William Wyler, Os melhores anos de nossas vidas, 1946.
Douglas Sirk, All That Heaven Allows, 1955.
Billy Wilder, O apartamento, 1960.
Ken Russell, Mulheres apaixonadas, 1969.
Krzysztof Kieślowski, Não amarás, 1988.
Krzysztof Kieślowski, O Decálogo, 1989–1990.
Martin Scorsese, A época da inocência, 1993.
Wong Kar-wai, Amor à flor da pele, 2000.

1 William Shakespeare, Romeo and Juliet, ato v, cena 3, versos 309–310,


The Riverside Shakespeare, ed. G. Blackmore Evans. Boston: Houghton
Mifflin Company, 1974, p. 1093.
2 Conforme discutido em um capítulo posterior, a noção de amor
romântico, amor por si mesmo, surge no século xii com o surgimento dos
poetas trovadores e o mito de Tristão e Isolda; cf. Denis de Rougemont,
Love In the Western World, tradução de Montgomery Belgion. Nova York:
Harper Colophon Books, 1972.
3 Platão, The Symposium of Plato, tradução de Suzy Q. Groden. Boston:
University of Massachusetts Press, 1070, p. 77.
4 O banquete, 211b.
5 A eudaimonia não é um sentimento ou simples satisfação psicológica, está
mais intimamente relacionada com a bem-aventurança e o florescimento, e
pertence àqueles cujo Eros é dirigido pela virtude. Cf. Happiness and the
Limits of Satisfaction, 64–65.
6 https://en.oxforddictionaries.com/definition/sublimate.
7 Sting canta algumas canções de Dowland e explica sua escolha de gravá-
las aqui: https://www.youtube.com/watch?v=8QkqXvLLDRo.
8 O Dear, if you change de Dowland cantada por John Elwes e interpretada
por Matthias Spaeter no alaúde pode ser ouvida aqui:
www.youtube.com/watch?
v=7ReVhLys278&list=PLwFq8431xj18AnpTSyfUEMCylvkpbMP8&inde
x=18&t=0s.
9 A canção de Dowland, Come away, cantada por Emma Kirkby e Joel
Frederiksen, acompanhada pelo Ensamble Phoenix Munich, pode ser
encontrada aqui: https://www.youtube.com/watch?v=UjWYw-
w9rKg&list=RDUjWYw-w9rKg&start_radio=1
10 Pode-se ouvir Paul O’Dette tocando as “Lachrimae” de Dowland ao
alaúde: www.youtube.com/watch?v=zSzSNN7ETvM.
11 Todo o The Firste Booke of Songes (1597) de Dowland é interpretado por
The Consort Of Musicke e conduzido por Anthony Rooley, e pode ser
ouvido aqui: www.youtube.com/watch?v=_TbIE1JNj2I&t=2s.
12 Vertigo, direção de Alfred Hitchcock. 1958; Universal City, CA:
Universal Pictures Home Entertainment, 2014, Blu-ray.
13 Em 2012, Um corpo que cai substituiu A regra do jogo como o filme nº 1
de todos os tempos na pesquisa Sight and Sound de 2012 com mais de
1.000 críticos de cinema.
14 “afi’s Greatest 25 Film Scores of All Time”,
www.afi.com/100Years/scores.aspx.
15 O tema “Madeleine” de Bernard Herrmann começa 24 segundos neste
clipe do filme Vertigo, disponível em https://www.youtube.com/watch?
v=Beac86mN8XM.
16 Ibid.
17 Uma parte da cena de Um corpo que cai pode ser vista aqui:
www.youtube.com/watch?v=tesqTwX7cpc.
18
https://whitmanarchive.org/criticism/current/encyclopedia/entry_9.html.
19 Walt Whitman, Folhas de relva, tradução de Luciano Alves Meira. São
Paulo: Editora Martin Claret, 2005. pp. 118–119 — nt.
20 David S. Reynolds, Walt Whitman’s America: A Cultural Biography.
Nova York: Alfred A. Knopf, 1995, p. 195.
21 Ibid., p. 500.
22 Ibid., p. 405 — nt.
23 Ibid., p. 406 — nt.
24 Walt Whitman, Walt Whitman: Complete Poetry and Collected Prose.
Nova York: Literary Classics of the United States, 1982, pp. 537–38. Seção
8, Passage to India. Passage to India foi publicado pela primeira vez na
edição de 1872.
25 Ibid. — nt.
26 Bryon Adams, Program Notes, American Symphony Orchestra,
disponível em http://americansymphony.org/wp-
content/uploads/2018/10/10-17-ASO-Final.pdf.
27 Ursula Vaughan Williams, R.V.W.: A Biography of Ralph Vaughan.
28 Exorto o leitor a assistir a esta performance de vídeo completa de A Sea
Symphony: https://www.youtube.com/watch?v=Lp4G5vtdSWc&t=1202s.
É impossível avaliar a realização de Vaughan Williams a partir de uma
descrição verbal.
29 Walt Whitman, America, p. 244.
30 Ibid., p. 144.
31 Ibid., p. 244.
32 Love In the Western World, p. 41.
33 Ibid., itálico no original.
34 Ibid., p. 15.
35 Ibid.
36 Happiness and the Limits of Satisfaction, p. 73.
37 Albert Camus, The Myth of Sisyphus & Other Essays, tradução de Justin
O’Brien. Nova York: Alfred A. Knopf, 1955, p. 91.
capítulo xvi
Ágape

1CORÍNTIOS 13, 1–13

A seguir, consideraremos um texto que provavelmente influenciou a


compreensão ocidental do amor mais do que qualquer outro, o
tributo de São Paulo ao Amor de sua Primeira Carta aos Coríntios.
Escrita por volta de 53 d.C., esta carta contém as palavras mais
amplamente conhecidas sobre o amor já escritas, como: “Ainda que eu
falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, sou como o
bronze que soa, ou como o címbalo que retine”. Embora as palavras sejam
eloqüentes, para São Paulo o amor é ação, não palavras, mesmo que ditas
pelos maiores poetas ou filósofos. No próximo versículo, diz que sem amor,
independentemente de nossas realizações, não somos “nada”. E qualquer
ação sem amor, não importa o quão sacrificial, “de nada valeria” (v. 3).
Todas as referências de São Paulo ao amor apontam para o ἀγάπην, Ágape.
São Paulo descreve este amor como o fundamento necessário para toda
ação moral — sem a caridade, nada que é feito tem mérito. Na verdade, a
palavra grega Eros não é usada de forma alguma no Novo Testamento,
enquanto os outros amores — Storge e Philia — são encontrados ao lado
de Ágape.
No versículo 4, o Apóstolo começa a descrever os atributos do amor
verdadeiro: “O amor é paciente e bondoso; o amor não é ciumento ou
orgulhoso; não é arrogante ou rude. O amor não insiste em seu próprio
caminho; não é irritável ou guarda rancor; não se alegra com o errado, mas
se alegra com o certo. O amor tudo desculpa, tudo acredita, tudo espera,
tudo suporta” (13, 4–7).
“O amor não guarda rancor” — literalmente, ninguém faz isso, mas a
intenção de São Paulo é clara: os erros do passado devem ser deixados de
lado, reconciliados de alguma forma, para que o amor continue e prospere.
Na verdade, é por isso que “o amor nunca acaba” (v. 8). Ágape como a
realização perfeita da vontade de Deus substitui tudo que é imperfeito —
incluindo profecias, línguas e conhecimento (v. 8–10). Por meio desse
amor nos tornamos adultos, o homem substitui o filho: “Quando me
tornei homem, eliminei as coisas de criança” (v. 11).
No versículo 12, lemos uma passagem que lembra Platão: o Apóstolo
dirige nossos olhares para o alto: “Pois agora vemos obscuramente em um
espelho, mas depois face a face”. A semelhança com a ascensão de Platão à
Beleza está lá, mas São Paulo imediatamente qualifica a visão que descreve:
“Então, conhecerei plenamente, assim como sou plenamente conhecido”
(ênfase minha). O Bem de Platão não olha para trás e não busca reconhecer
o amante. Em um universo cristão, entretanto, cada um de nós é
“totalmente conhecido” por Deus, quer o busquemos ou não.
Esta caracterização de Ágape por São Paulo reverbera tão profundamente
na memória coletiva da civilização ocidental que se tornou um ponto de
referência padrão para o amor altruísta. Ágape é o amor que “nunca falha”
(v. 8), mas, como vimos, Eros é um amor que pode dar errado, e de
inúmeras maneiras. O Ágape de São Paulo deve ser considerado como o
corretivo para o Eros irrestrito e não-rdimido, bem como para os defeitos
em Storge e Philia.
OS JUSTI
É uma questão intrigante: Qual grande obra musical evoca melhor o
sentido do amor Ágape, o “amor perfeito” que desce de Deus para sua
amada criação? Imediatamente surgem algumas opções possíveis: Duruflé,
Ubi Caritas; Victoria, O Magnum Mysterium; Byrd, Ave Verum Corpus;
Fauré, Réquiem; Haydn, Criação; Mozart, Réquiem; Bach, Missa em Si
Menor, Elgar, O sonho de Gerôncio. A lista pode continuar — há séculos de
música sacra e clássica dedicadas ao amor de Deus e ao nosso amor por Ele.
Um critério guiou minha seleção de livros, músicas e filmes: cada uma das
obras do Cânone tem um significado especial para mim. Gosto muito de
todas as músicas listadas acima, mas conheço outra peça musical que me
parece puro Ágape: estou falando sobre o moteto Os Justi (1879) 1 de Anton
Bruckner (1824–1896).
Desde a primeira vez que ouvi Os Justi (A boca do justo), quarenta anos
atrás, como estudante de pós-graduação em Atlanta, considerei isso a coisa
mais próxima que eu poderia imaginar de como soa o amor de Deus. A
performance de Robert Shaw e seu coro me chocou completamente.
Quando volto a esta obra, ela jamais perde seu brilho. As palavras deste
moteto, um canto gregoriano executado/orado em ambientes litúrgicos
durante séculos, não se referem diretamente ao amor: o texto do Salmo 37
fala de um “homem justo”: a sabedoria, o julgamento e o amor divino que
ele tem “em seu coração”. Mas a música, a meu ouvido, expressa em som o
presente transbordante do amor de Deus às suas criaturas.
Anton Bruckner era um católico fervoroso. O historiador da música
Derek Watson diz sobre Bruckner: “Para ele, Deus e o mundo do espírito
transcendente eram realidades que nunca questionou”. 2 Bruckner escreveu
onze sinfonias, embora apenas nove delas sejam numeradas. Sua inacabada
Nona sinfonia foi dedicada a Deus. O historiador e crítico musical Paul
Henry Lang descreve Bruckner como uma “alma medieval que viveu no
século xix, lutando com o problema de encontrar um relacionamento
artístico com Deus”. 3
Bruckner começou sua carreira musical como menino do coro no
Mosteiro de São Floriano, perto de sua casa em Ansfelden, Áustria. Após
alguns anos como professor, Bruckner voltou para São Floriano, onde se
tornou um dos melhores organistas da Europa, com uma reputação de
improvisação estupenda. De lá, Bruckner voltou para Linz e começou o
treinamento composicional. Assim que começou a compor para orquestra,
Bruckner foi nomeado professor de harmonia e contraponto na
Universidade de Viena. Ele nunca se casou, embora tivesse o hábito de
propor casamento a mulheres muito mais jovens. Jamais conseguiu;
Bruckner não era nem um pouco predatório, mas era alvo de muitas
fofocas contundentes. Bruckner não parecia ser um grande partido; sua
simplicidade e aparência desleixada não se encaixavam facilmente na
sociedade vienense. Mas, para seu crédito, ele não se isolou. Seu biógrafo,
Derek Watson, relata que Bruckner dançava bem e ia aos bailes de carnaval
até atingir a casa dos cinqüenta anos. 4
Há momentos transcendentes em toda a obra de Bruckner. Às vezes
ocorrem em meio a uma sinfonia de noventa minutos, outros visitam seu
ouvido brevemente e você fica se perguntando como tal sublimidade é
possível. Um dos maestros mais celebrados da nossa era, Colin Davis, disse:
“Bruckner poderia criar uma melodia que é como um arco do céu”. Sobre a
Terceira sinfonia de Bruckner, Davis disse ao entrevistador: “Se não
consegui transmitir a você por que acho que a passagem que começa na
marca de 11:57 nesta apresentação se assemelha a um arco do céu, então
perdi meu tempo”. 5
Tudo nos cinco minutos de Os Justi acontece rapidamente. Escrito como
uma peça de oito partes para um coro misto à capela, o moteto usa textos
do Salmo 36, versículos 30 e 31: “A boca do justo medita a sabedoria, e a
sua língua fala o que é justo. A lei de seu Deus está em seu coração e seus
passos não serão suplantados. Aleluia”. Derek Watson comenta: “Apesar da
severidade dessas restrições, este moteto é profundamente emocional em
seus efeitos”. 6
A peça começa simplesmente com o coro cantando em harmonia através
dos primeiros dois compassos: “Os justi, meditabitur sapientiam”. No
terceiro compasso, a mesma linha é repetida com as vozes masculinas mais
baixas entrando na primeira palavra os. Em seguida, as vozes femininas
mais agudas surgem exatamente como os homens que cantaram sti. Até
agora, a música é adorável, mas direta. Mas assim que as mulheres
terminam o justi, as vozes dos homens aumentam rapidamente no
meditabitur, criando um acorde inesperado, correspondido pelas mulheres
quando começam a mesma palavra. O acorde cria tensão, com uma pitada
de discórdia não-resolvida, mas então algo mágico acontece. Em
sapientiam, as notas descendentes do coro criam quatro compassos de
beleza surpreendente, sua queda sugere uma sabedoria (sapientia) vinda do
alto, não feita pelo homem.
Em uma carta pessoal, o estudioso de música Francis O’Gorman escreveu:
“O que é impressionante sobre aquele primeiro ‘sapientiam’ é que é um
momento proeminente de uma discórdia resolvida. O naipe de contraltos
tem uma figura expressiva em ‘pi’, mas em ‘en’ está repentinamente em um
conflito de tons com as sopranos, um choque que é lindamente resolvido
na escala descendente de quatro notas para ‘tiam’. A clareza e a
simplicidade dos agudos contrastam expressivamente com este movimento
interno”. 7 Em Os Justi, Bruckner tornou o amor de Deus audível na
música.
O que todos os amores têm em comum é o desejo de unidade com o
outro, seja uma pessoa ou Deus. Nós vimos isso com o amor de uma mãe
por seu filho; na amizade entre amigos; e em Eros, que, a partir do físico,
sobe na escada do amor em direção à Beleza perfeita, o próprio Bem.
Ágape pode ser descrito de duas maneiras, desde cima e desde baixo. Visto
de cima, o amor de Deus desce e se transforma como um ato de graça.
Visto de baixo, Ágape é o amor humano tão surpreendente e poderoso que
não podemos explicá-lo sem apontar para o mistério ou o milagroso. Em
ambos os casos, Ágape é um amor que supera nossos recursos. Nós nos
perguntamos de onde vem, a menos que tenhamos fé.
Para o crente, Ágape não se origina de baixo, mas desce de Deus, “de tal
modo Deus amou o mundo” (Jo 3, 16). Os não-crentes reconhecem atos
de amor extraordinários, que parecem milagrosos e misteriosos para eles.
Mas, sem um ponto de referência transcendente, seu reconhecimento não
pode compreender totalmente o significado mais profundo contido em atos
de extremo auto-sacrifício, heroísmo, bondade e transformação pessoal.
Compare Ágape então com Eros grego. No caso de Eros, o amante almeja
o Belo e o Bem, mas esses ideais não retribuem o amor. Só uma pessoa
pode amar em troca. O sentido de unidade alcançado pelo Eros espiritual,
embora satisfatório, permanece uma visão da possibilidade, do que poderia
ser: o Bem nunca se atualiza da maneira como os cristãos acreditam que foi
com a Encarnação.
O Ágape cristão é o culminar do que C. S. Lewis chamou de “Amor--
Doação”, porque Deus não tem necessidade de dá-lo. Aqueles que recebem
pela fé necessitam e precisam amar em troca. O amor humano por Deus só
é plenamente realizado quando uma pessoa ama a si mesma por amor a
Deus — esta foi a visão teológica de São Bernardo de Claraval e outros
teólogos místicos da Idade Média. 8
Ó
MEMÓRIAS DE MARY ANN
A escritora do sul dos Estados Unidos, Flannery O’Connor (1925–1963),
escreveu uma introdução a um livro de não-ficção sobre uma garota
chamada Mary Ann. Mary Ann Long nasceu com um tumor cancerígeno
desfigurante no rosto. 9 Quando ela tinha três anos, o médico disse a seus
pais que Mary Ann teria apenas seis meses de vida. Ela foi morar com um
grupo de dezessete irmãs 10 dominicanas na Casa de Câncer Nossa Senhora
do Perpétuo Socorro em Atlanta. Mary Ann recebeu amor e carinho das
irmãs até morrer aos doze anos.
Vários anos depois, uma das irmãs dominicanas escreveu a O’Connor
sobre a notável vida e santidade de Mary Ann, sugerindo que ela escrevesse
um romance sobre ela. O’Connor, que morava perto de Milledgeville,
Geórgia, respondeu com a sugestão de que as irmãs lhe enviassem suas
memórias de Mary Ann, que ela editaria em um livro e escreveria a
introdução. A carta da irmã incluía uma foto: “Seu rostinho era limpo e
brilhante de um lado. O outro lado era protuberante, o olho enfaixado, o
nariz e a boca ligeiramente deslocados. A criança olhou para seu observador
com evidente felicidade e compostura. Continuei a olhar para a foto muito
depois de pensar ter terminado com aquilo”. 11
Depois de olhar a foto de Mary Ann, a introdução se tornou uma reflexão
de dezoito páginas sobre amor, sofrimento e fé. O’Connor comenta sobre o
funeral de Mary Ann, onde o bispo naturalmente falou com sua família.
Mas “ele não poderia estar pensando neste mundo, muito mais distante,
mas presente em toda parte, no qual não se deve perguntar por que Mary
Ann morreria, mas por que ela, em primeiro lugar, deveria ter nascido”. 12
O’Connor reconhece que o sofrimento de uma criança é freqüentemente
usado para desacreditar Deus e sua bondade. O sofrimento não se encaixa
em uma cultura terapêutica onde as pessoas se apegam ao conforto. Onde o
conforto é primordial, surgirá inevitavelmente a pergunta: por que alguém
como Mary Ann, “em primeiro lugar, deveria ter nascido”?
Tal pergunta surge porque, “nesta piedade popular, marcamos nosso
ganho em sensibilidade e nossa perda de visão”. 13 A visão da fonte da vida
está se perdendo. Vivendo durante a Segunda Guerra Mundial, O’Connor
já havia feito a conexão de como a idéia da morte como solução resulta da
perda da crença: “Quando a ternura é separada da fonte da ternura, seu
resultado lógico é o terror. Termina em campos de trabalhos forçados, na
fumaça da câmara de gás”. 14 Escrevendo em 1961, Flannery O’Connor
anteviu uma cultura que aceita que os pais descartem seus filhos, uma vida
recém-concebida. O amor não livra do sofrimento eliminando o sofredor:
o amor, como escreve São Paulo, “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera,
tudo suporta” (1Cor 13, 7).
UMA HISTÓRIA REAL
Podemos descrever Ágape desde baixo sem qualquer referência a Deus?
O’Connor muito provavelmente diria que é pura tolice tentar. Mas aqui
vou eu: vamos começar prestando atenção às narrativas nas quais ocorre
um evento que deslumbra os espectadores e os deixa sem palavras ou cheios
de alegria. Eles podem chamá-lo de mistério ou milagre, mesmo que não
acreditem neles. Eles podem agradecer ao Deus que não crêem existir. Um
exemplo particularmente notável disso pode ser uma mudança repentina de
caráter ou uma transformação moral completa. Por exemplo, em Ladrões de
bicicleta, por que o homem na multidão daquela rua de Roma decidiu
deixar o pai ir? Rossellini não celebra essa decisão se concentrando no
homem do grupo, mas sim no pai e no filho voltando para casa, reunidos e
livres de perigo. Não houve tal mudança de caráter em As regras do jogo,
Um corpo que cai ou Sonata de outono, não importa o quanto esperássemos
por ela.
Para um personagem passando por uma mudança transformadora, vamos
chamá-la de metanóia 15 não-religiosa, não consigo pensar em nenhum
exemplo melhor do que Uma história real (1999), 16 dirigido por David
Lynch. Lynch é mais conhecido por sua alucinante série de tv Twin Peaks
(1991–1993) e seu mito retratando a América dos anos 1950, Veludo azul
(1986). Lynch mostrou, no entanto, que pode fazer filmes brilhantes em
qualquer gênero. Seu primeiro grande sucesso, O homem elefante (1980),
demonstrou que um americano de 34 anos de Missoula, Montana, poderia
fazer um clássico dirigindo alguns dos melhores atores britânicos, incluindo
Anthony Hopkins, John Gielgud e Wendy Hiller.
O cenário de Uma história real é o mais distante que se pode chegar da
Londres do século xix de O homem elefante, de colarinhos engomados e
espartilhos femininos. Alvin Straight (Richard Farnsworth), de setenta e
três anos, mora em Laurens, Iowa, e ouve que seu irmão mais velho Lyle
(Harry Dean Stanton), que mora a quinhentos quilômetros de distância,
teve um derrame. Alvin decide que precisa vê-lo, embora eles não se falem
por dez anos depois que uma discussão os deixou separados. Alvin não
possui carteira de motorista ou carro, então ele sai em seu cortador de
grama, puxando um carrinho carregado com o essencial para uma longa
viagem.
David Lynch chamou Uma história real de seu “filme mais experimental”.
17
Lendo isso, primeiro me perguntei se o famoso diretor excêntrico estava
brincando, mas depois levei em consideração a simplicidade e ousadia da
história. Em uma entrevista para a televisão, Lynch explica que queria fazer
o filme porque se apaixonou pelo roteiro. Ele reconheceu e sentiu as
grandes emoções da história e queria levar essa emoção para a tela, como só
o cinema pode fazer. 18 O roteiro, aliás, é baseado em uma história verídica.
19

Uma história real é a história de uma jornada onde aprendemos sobre


Alvin. Alvin não é um homem religioso; 20 não discute a fé com estranhos
durante sua viagem. Outrora agricultor, um ex-alcoólatra e brigão de bar,
teve quatorze filhos, dos quais apenas sete sobreviveram. Apesar de uma
vida difícil, o que mais o impactou foi quando acidentalmente atirou em
um colega soldado quando era atirador durante a Segunda Guerra
Mundial. Retornando da guerra, tornou-se dissoluto. Ouvir sobre as
origens de Alvin é importante. O rosto do ator Richard Farnsworth, e
especialmente seus olhos azuis, o fazem parecer quase um santo. 21
Em algumas paradas ao longo da estrada, Alvin ajuda alguns estranhos a
resolver sérias dificuldades — a adolescente grávida que fugiu de casa e os
dois irmãos, ambos mecânicos, que não param de discutir um com o outro.
Quando questionado sobre o porquê de fazer esta viagem, Alvin responde
que quer ver seu irmão, acrescentando: “Quero sentar-me com ele e olhar
para as estrelas, como costumávamos fazer, há muito tempo”. Walt
Whitman teria apreciado esse comentário, enquanto a câmera faz uma
panorâmica de árvores, milho e campos de trigo soprados pelo vento.
À medida que o cortador de grama passa, a câmera geralmente se abre
para captar a natureza ao seu redor: sua beleza é reconfortante, refletindo a
disposição pacífica e reconfortante de seu excêntrico capitão.
Quando Alvin chega à cabana de seu irmão, ambos falam muito pouco
um com o outro. A profundidade da emoção é comunicada pelo calor do
abraço entre irmãos. Isso não é apenas “Estou feliz em ver você”, mas
“Estou tão feliz em ver você, meu irmão, depois de todos esses anos”. Mais
diálogo teria enfraquecido o efeito da cena. Na última cena, os irmãos estão
sentados na varanda da frente olhando para o vale e para o céu. Isso é um
milagre? Pense nisso: um homem de setenta e três anos, tendo se
desentendido com seu irmão há dez anos, dirige seu cortador de grama por
quinhentos quilômetros para se reconciliar. Sim, é um milagre.
Nunca descobrimos exatamente por que Alvin mudou de atitude em
relação a Luke, mas sabemos que algo aconteceu. Talvez fosse apenas a
notícia da doença de seu irmão, mas a mudança vem de seu âmago. Esse
tipo de transformação inexplicável aponta apenas para Ágape.
ORDET
O filme dinamarquês Ordet, de Carl Theodor Dreyer, de 1955, traduzido
como “A palavra”, é sobre o amor cristão e a possibilidade dos milagres. 22
Não há ironia; o filme é completamente representativo. Apesar de seu tom
quase bíblico, o filme de Dreyer ganhou elogios de críticos de todo o
espectro. Classificado em vigésimo quarto lugar entre os cinqüenta
melhores filmes já feitos na enquete de Sight and Sound de 2016, 23 Ordet,
de acordo com Roger Ebert, “se destaca completamente sozinho e sem
medo… Muitos espectadores se afastarão dele. Persevere. Vá até ele. Ele
não virá até você”. Glenn Erickson, outro grande crítico, exclama: “Pois
esta é nada menos do que uma história de milagre. Talvez tenha sido um
feitiço cumulativo, mas no final de Ordet fui transportado e experimentei
um pequeno milagre dramático por conta própria”.
Como Dreyer consegue isso, quando tantos filmes sobre religião se
tornam kitsch ao retratar o sobrenatural? Ele havia feito isso antes em seu
filme mais famoso, A paixão de Joana d’Arc (1928), classificado em nono
lugar na pesquisa Sight and Sound. A partir de 1919, Dreyer se tornou
mundialmente famoso como diretor de cinema mudo, muitas vezes
retratando histórias religiosas; preocupações religiosas também informaram
três de seus cinco filmes “falados”, Vredens Dag [Dia de ira] (1943), Ordet
(1955) e Gertrud (1964). Estranhamente, embora tenha sido criado como
luterano, Dreyer não era muito religioso.
Então surge a questão de como esse homem pode fazer alguns dos filmes
mais realistas e investigativos sobre fé e espiritualidade. Talvez o fato de ter
algum distanciamento de seu assunto, como fez o agnóstico Mark Twain ao
escrever sua maravilhosa biografia de Santa Joana d’Arc, tenha permitido a
Dreyer o tipo de retrato objetivo que dá a esses filmes tanto poder. Dreyer
não manipulou seu material, procurando um efeito dramático adicional;
ele apenas contou a história. Com Ordet, ele estava determinado a
permanecer fiel à peça na qual o filme foi baseado, I Begyndelsen var Ordet
de Kaj Munk [No princípio era a Palavra). 24 Munk, um herói nacional
dinamarquês, foi martirizado pelos nazistas por seus sermões condenando
os invasores. Dreyer se encontrava regularmente com a viúva de Munk para
assegurar a ela e a si mesmo que sua adaptação era fiel à peça de seu
marido.
Dreyer foi meticuloso em suas escolhas estéticas para o filme. Seu elenco
dos personagens principais é astuto, especialmente Henrik Malberg como
Morten, o patriarca da família Borgen, cujo rosto sai diretamente de uma
obra-prima de Rembrandt: olhando em seus olhos profundos e expressivos,
acreditamos que este é um homem de fé. Seus três filhos — Mikkel (Emil
Hass Christensen), Johannes (Preben Lerdorff Rye) e Anders (Cay
Kristiansen) — não são do mesmo tipo físico, eles são gravados
individualmente. O filho mais velho incrédulo, casado com a santa e
grávida Inger (Birgitte Federspiel); Johannes, o segundo filho, que vagueia
pela aldeia proclamando-se Jesus Cristo depois de enlouquecer estudando
teologia; e o jovem Anders, que quer se casar com Anne Petersen (Gerda
Nielsen), única filha do alfaiate local.
O diretor considerou Johannes o personagem principal, o homem
aparentemente louco que sai de seu quarto em transe, constantemente
citando as Escrituras como se fosse o homem que primeiro disse as
palavras. Dreyer explica: “Do personagem do homem Johannes, o filme
encontrará seu verdadeiro estilo. Devo derramar na Palavra uma atmosfera
em que um milagre seja possível. Vida — Vida deve ser a palavra de
ordem”. 25 Em outras palavras, o diretor quer que Johannes seja um idiota
sagrado que perturba todos os presentes.
A escolha de cenários de Dreyer também é intencional: filmou todas as
cenas externas em uma parte árida da Jutlândia perto da igreja do Pastor
Munk, autor da peça original. A ambientação de Ordet é esparsa, filmada
em preto e branco, sem qualquer toque de luxo. As tomadas externas
revelam uma paisagem nítida, mas bela — um vento constante dobra os
juncos altos e a areia sopra nas dunas.
Em seguida, apesar do cenário simples, o diretor de fotografia, Henning
Bendtsen, filma cenas de extraordinária beleza — Dreyer, porém, conteve a
si mesmo e ao diretor de fotografia para que o esplendor visual não
prejudicasse a história. Na cena culminante, Bendtsen filma o que foi
chamado de uma das cenas mais excepcionais da história do cinema: “Um
filme tardio, de quase três minutos, dá uma panorâmica em torno do
personagem, possivelmente louco, Johannes, e sua sobrinha Marren, com
medo da morte de sua mãe [Inger]. Embora a câmera não pare por um
único momento sua rotação lenta em torno dos dois, nunca vemos suas
costas; eles giram sutilmente junto com a câmera”. 26 Isso foi três anos antes
da famosa tomada em espiral em Um corpo que cai de Hitchcock.
Enfatizando a sensação de isolamento, e fazendo como que uma
homenagem à sua origem teatral, a maior parte do filme se passa na sala
principal da ancestral casa da família, e em um quarto. Não há nada
exterior que venha distrair das questões levantadas sobre a crença e a
descrença. Os fios da trama se entrelaçam de tal modo a culminar no caixão
aberto de Inger, uma bela jovem, esposa e mãe de dois filhos. Parado à beira
está um homem segurando a mão de uma jovem, orando por um milagre.
Depois que os personagens estão estabelecidos, a trama de Ordet
rapidamente se concentra em uma fonte de conflito: a luta para salvar a
vida de Inger e seu bebê durante o parto. O conflito inicial é criado pelos
pais de Anne, Peter e Kristin, que se opõem ao casamento entre sua filha e
Anders porque acreditam que apenas evangélicos como eles são verdadeiros
cristãos. Morten, o patriarca cuja fé é mais alegre, fica indignado ao saber
que seu filho foi rejeitado. Morten corre para a casa dos Petersen, onde a
conversa fica feia quando Peter se recusa a reconsiderar. Quando Morten
está saindo, o telefone toca, chamando-o para casa devido à piora do estado
de Inger. Frustrado porque Morten não vai se converter, Peter dá as boas-
vindas à notícia da possível morte de Inger porque isso trará Morten à
verdadeira fé. Morten dá-lhe um soco, sai com Anders, e vemos a
carruagem correndo pela noite.
Neste ponto do filme, o espectador viu um pai importunando seu filho
mais velho sobre sua falta de fé; um jovem levado à loucura pelo estudo da
teologia; duas famílias se separando por causa de diferentes versões de seu
cristianismo; e o personagem mais simpático, Inger, lutando por sua vida.
Os filmes de Dreyer levantam questões tanto para os céticos quanto para os
religiosos.
Quando pai e filho chegam em casa, ouvimos seus gritos de dor, vemos a
quase histeria de Mikkel e Morten começa a questionar a Deus, enquanto
Johannes implora freneticamente à sua família para orar por um milagre. O
médico, um cético, chega para ajudar Inger e faz um aborto para salvar sua
vida. Após uma breve manifestação, Inger morre, o que Johannes previu
após ter uma visão de Grim Reaper, para o desprezo de seu pai. A família
fica de luto enquanto Johannes continua dizendo a Morten para ter fé o
suficiente e pedir por um milagre. Morten acena para ele.
Morten está de pé no caixão aberto. Os Petersen chegam para se desculpar
com o Morten; eles se abraçam. Anne e Anders podem se casar, acrescenta
Peter. Johannes decide orar pessoalmente pelo milagre. Todos entram na
sala zombando de Johannes, mas ninguém tenta impedi-lo de orar para que
Inger volte à vida. Sua primeira tentativa falha. Ele percebe que não
confiou inteiramente em Deus e passa por uma transformação. Sua
insanidade o deixa. Uma filha pega sua mão e ora com ele. Nesta imagem,
há uma alusão ao ensinamento de Jesus: “Sempre que dois estiverem
reunidos em meu nome, Eu estarei com eles” e “a menos que vocês se
tornem crianças, não entrarão no Reino de Deus”. Inger volta à vida.
Dreyer queria desafiar a rejeição da fé por intelectuais modernos como o
médico: “Para mim, os melhores crentes são a criança e pessoas
perturbadas, já que suas mentes não são racionais e são limitadas por fatos
comprovados como os nossos. Eles têm um universo mais amplo, onde tais
coisas são possíveis”.
Ordet confronta o espectador com um milagre literal — não há dúvidas
sobre seu significado, nenhuma explicação secreta. Dreyer retrata o
significado literal da história de milagres enquanto usa sua arte para contar
essa história ao público — isso, para mim, denota grandeza.
PARAÍSO
Séculos de debates teológicos freqüentemente controversos foram
dedicados a explicar como Ágape (“o amor perfeito”) se conecta com os
amores humanos. É um dos debates que dividiu a Igreja entre católica e
protestante. A questão é esta: é a natureza humana capaz de cooperar de
alguma forma com a graça de Deus? Essa pergunta leva a enumerar os
efeitos da Queda. A natureza humana se tornou tão corrompida depois de
ser expulsa do Éden que a graça nunca realmente penetrou no caráter
humano? A graça, ao contrário, é um meio de reconciliar Deus e o homem
por meio do sacrifício de Cristo. O homem é, portanto, justificado diante
de Deus, mas seus caminhos permanecem os mesmos — não há infusão de
graça nos hábitos humanos onde a vontade permite que a graça aperfeiçoe
suas ações.
Esta última frase foi o argumento dos reformadores protestantes originais
— Martinho Lutero, Ulrico Zuínglio e João Calvino. Henrique viii não é
um reformador nesse sentido. A Igreja da Inglaterra que ele criou por uma
declaração em 1534 substituiu o pontífice romano, mas não a substância
do ensino moral católico tradicional. Os primeiros protestantes geralmente
concordavam que Ágape é uma graça dada inteiramente pela benevolência
de Deus e dada a uma criatura cuja natureza é corrompida demais para
reivindicar qualquer mérito.
Em 1520, Lutero escreveu uma carta pública, Discurso à nobreza da nação
alemã, 27 que anunciava a necessidade de a Alemanha se libertar do poder
romano. Em seu próximo tratado do mesmo ano, O cativeiro babilônico da
Igreja, Lutero proclama que é somente pela fé que somos justificados diante
de Deus. 28 Isso era muito mais do que uma doutrina; Lutero e seus
seguidores estavam se separando da Igreja Católica e da autoridade do
Papa.
Teólogos católicos há muito afirmam que Storge, Philia e Eros
desempenham um papel ao serem infundidos com Ágape e elevados a um
poder superior. Um dos princípios fundamentais de São Tomás de Aquino
é que “a graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa”. 29 Lutero, como um
monge agostiniano bem-educado, teria conhecido esse ensinamento, assim
como Zuínglio e Calvino, e estaria perfeitamente ciente de que estava
rejeitando um dogma. Quando Lutero foi a Augsburgo para ser examinado
por um núncio apostólico, o núncio não era outro senão o principal
erudito tomista de sua geração, o erudito dominicano Tomás Caetano. 30
Eles conversaram por três dias, apenas os dois, mas não conseguiram chegar
a um acordo — Lutero tentou fugir de Augsburg rapidamente naquela
noite, mas encontrou os portões da cidade já trancados. Finalmente, um
amigo encontrou uma chave e o deixou sair. 31
A divisão sobre questões religiosas que gerou tamanha turbulência na
Europa no século xv vinha se agravando há muito tempo. Por exemplo, a
discussão sobre natureza e graça já circulava quando Dante Alighieri
(1265–1321) escreveu sua Divina Comédia. Dante nasceu em Florença
nove anos após a morte de São Tomás, situando-se entre o fim de um
mundo e o começo de outro. A Idade Média continuaria em outras partes
da Europa por mais um século, mas em Florença, uma nova era estava
nascendo, com um interesse renovado pela Antigüidade, o Ocidente pré-
cristão. As elites buscavam mais liberdade para o indivíduo em relação à
autoridade da Igreja, bem como novos paradigmas para as artes, poesia,
música, escultura, pintura e arquitetura.
O escritor mais identificado com o que ficou conhecido como
Renascimento italiano foi o poeta Petrarca. Ele nasceu em 1301, quando
Dante já tinha 36 anos e já havia publicado sua primeira grande obra, La
Vita Nuova. O fato de Dante ter defendido a escrita em vernáculo em vez
do latim marca-o como um homem que não procurou imitar seus
predecessores. Ele foi eLivros de sua Florença em 1302 por simplesmente se
identificar com uma facção política que não estava mais no poder. Dante
nunca mais voltou.
Sua obra-prima, portanto, foi concebida e concluída no exílio. Dante
começou a trabalhar no poema épico em 1306, terminando um ano antes
de sua morte em 1320. Como a Suma teológica de São Tomás de Aquino, a
obra de Dante foi uma espécie de suma: nas três partes de sua Comédia —
Inferno, Purgatório e Paraíso — ele combina a jornada espiritual de um
homem na vida após a morte com um comentário sobre toda a história
ocidental conhecida durante sua vida. Filósofos, escritores, teólogos
famosos, figuras das Escrituras e líderes políticos são colocados não apenas
no Inferno, Purgatório ou Paraíso, mas em um círculo ou nível específico.
Cada nível corresponde a um grau de pecado mortal, a purgação de
diferentes pecados veniais ou a intensidade do amor a Deus.
Os círculos infernais, por exemplo, correspondem aos “sete pecados
capitais” da luxúria, gula, avareza, preguiça, ira, inveja e orgulho;
classificados por graus de rebelião destrutiva pelo poeta. O Purgatório
reflete a mesma ordem, exceto que eles estão em processo de purificação
por várias punições. No Inferno, só há punição; os condenados não
buscaram redenção ou desejaram por ela.
O peregrino de Dante desce ao Inferno, uma cova onde Satanás está preso
no gelo, batendo suas asas impotente por toda a eternidade. No Purgatório,
Dante sobe uma escada de pedra em seu círculo até que o peregrino alcance
o paraíso terrestre e o primeiro círculo do Paraíso. Até chegar ao Paraíso,
seu guia é o mais sábio dos pagãos, o poeta Virgílio. Mas o poeta da
Eneida, não sendo cristão, não pode entrar no Paraíso. Aqui é onde o
peregrino conhece sua Beatriz, o nome da mulher florentina cuja beleza na
vida real atingiu profundamente o coração de Dante.
Os círculos do Paraíso se alargam, ao contrário dos do Inferno, à medida
que o peregrino é conduzido para cima, como as pétalas de uma rosa.
Quanto mais perto ele chega do círculo mais externo, o Primum Mobile,
mais perto se aproxima da visão de Deus.
No canto 3, o peregrino encontra freiras, que lá estão “por certa
negligência/ em nossos votos, deixados vãos a um canto”, 32 e pergunta se
“entre os que estão por cá felizes,/ de mais alto lugar tereis já rogo/ e de
mais ver e mais amar precises?” 33 (3, 55–66). Uma irmã responde,
Frate, la nostra volontá quieta
Virtú di caritá, che fa volerne
Sol quel ch’avemo, e d’altro non ci asseta. (3, 70–72)
Irmão, nossa vontade é satisfeita
pela virtude que nos faz querer

só o que temos, e mais querer enjeita. 34

Dante começa a entender a graça de Deus, pois o lugar de cada um no


Paraíso corresponde ao seu amor por Ele. O amor Ágape concedido no
Paraíso traz a todos uma realização espiritual, embora cada um permaneça
ciente de sua distância relativa ao círculo mais externo.
Chiaro mi fu allor come ogne dove
In cielo è paradiso, etsi la grazia
Del sommo ben d’un modo non vi piove.
Ma sì com’elli avvien, s’un cibo sazia
E d’un altro rimane ancor la gola,
che quel si chere e di quel si ringrazia (3, 88–93)
Entendi então que em todos se promove,
seus céus, o Paraíso, embora a Graça
do sumo Céu diversamente chove.
Mas como quando, embora satisfaça
nova iguaria, quer-se ainda a primeira

que esta se pede e doutra já se passa. 35

Os pecados da vida terrena, mesmo quando redimidos e purificados,


limitam a capacidade de receber a plenitude do amor de Deus, Ágape. Isso
não quer dizer que as freiras sintam alguma carência; elas não sentem —
estão cheias da visão divina na medida em que suas vidas tornaram isso
possível. A explicação da freira sem dúvida irritou Martinho Lutero, que
considerava a vida de uma pessoa terrena obliterada pelo perdão de Deus.
Todos no Céu, para Lutero, deveriam estar sentados à mesma distância de
Deus — seu mérito humano relativo não faz diferença.
Depois que o poeta ganha uma nova compreensão, “Que tal se pede e a
agradecer-se passa”. No canto 7, a conversa entre Beatriz e Dante se volta
para o ato de expiação de Cristo, especificamente “mas, como Deus
quisesse, inda duvido,/ a nossa redenção dessa maneira” (7, 56–57). Por
causa da Queda e do exílio de Adão e Eva do Éden, a humanidade sofreu
uma perda de “nobreza” (7, 79). A condição da humanidade assume um
status criminal do ponto de vista da justiça divina. Beatriz explica que
existem apenas duas maneiras de a nobreza ser recuperada: “Ou que o
Senhor, só por sua cortesia/ a perdoasse, ou que o homem tivesse,/ por si
só, satisfeito à sua ousadia” (7, 91–93). Se Deus perdoasse os pecados da
humanidade, Ele estaria ignorando as exigências da justiça divina. Assim,
Deus, no ato do amor divino, pagou a dívida que a humanidade não pode
pagar. Apesar de sua santidade extraordinária, os santos não podem se
redimir ou ganhar por si mesmos seu caminho para o Céu.
A visão de Dante sobre a satisfação — expiação — deriva do que é
chamado de “teoria da satisfação”, 36 de Santo Anselmo da Cantuária
(1033–1109). A morte de Jesus Cristo é entendida para satisfazer a justiça
de Deus. Satisfação aqui significa restituição, consertar o que foi quebrado
e pagar dívidas. Nessa teoria, Anselmo enfatiza a justiça de Deus e afirma
que o pecado é uma injustiça que deve ser equilibrada. Santo Anselmo
propôs sua interpretação em resposta à “teoria do resgate”, que sustentava
que a morte e ressurreição de Cristo foi um pagamento a Satanás, em vez
de uma satisfação da justiça de Deus. O pressuposto desta teoria é que a
Queda e os pecados subseqüentes colocaram a humanidade sob o reinado
de Satanás. Como reféns, a humanidade deve ser resgatada de volta.
Anselmo, por outro lado, argumentou que a dívida pertence a Deus, não a
Satanás. Anselmo via a teoria do resgate como logicamente falha, porque o
que Deus deve a Satanás? Portanto, em contraste com a teoria do resgate,
Anselmo ensinou que é a humanidade que deve a Deus, não Deus a
Satanás.
Beatriz explica que o pagamento de Deus por meio da morte de Seu Filho
para obter perdão fez de Sua graça um ato de amor que jamais poderá ser
superado.
Né tra l’ultima notte e ‘l primo die
Sì alto o sì magnifico processo,
O per l’una o per l’altra, fu o fie:
Ché più largo fu Dio a dar sé stesso
Per far l’uom sufficiente a rilevarsi,
Che s’elli avesse sol da sé dimesso; (7, 112–17)
Nem entre a última noite e o primo dia
ato, numa ou outra via, tão elevado
aconteceu nem aconteceria,
que maior foi si próprio Deus ter dado
pra ao homem permitir de se elevar,

que só ele o houvesse tão só perdoado; 37

“Ao dar-se a si mais largo excesso”, este é o Amor-Doação incomparável.


No canto final, o peregrino atinge seu objetivo, a visão de Deus. Até
agora, o peregrino estava subindo, mas de repente ele se viu sendo movido,
sua vontade e desejo transformados por outro poder, Ágape.
Qual è ‘l geomètra che tutto s’affige
per misurar lo cerchio, e non ritrova,
pensando, quel principio ond’elli indige,
tal era io a quella vista nova:
veder voleva come si convenne
l’imago al cerchio e come vi s’indova;
ma non eran da ciò le proprie penne:
se non che la mia mente fu percossa
da un fulgore in che sua voglia venne.
A l’alta fantasia qui mancò possa;
ma già volgeva il mio disio e ‘l velle,
sì come rota ch’igualmente è mossa,
l’amor che move il sole e l’altre stelle. (33, 133–45)
Qual geômetra que com fé segura,
volta a medir o círculo, se não
lhe acha o princípio que ele em vão procura,
tal estava eu naquela nova visão:
buscava a imagem sua corresponder
ao círculo, e lhe achar sua posição.
Mas não tinha o meu vôo um tal poder;
até que minha mente foi ferida
por um fulgor que cumpriu Seu querer.
À fantasia foi-me a intenção vencida;
mas já a minha ânsia, e a vontade, volvê-las
fazia, qual roda igualmente movida,

o Amor que move o Sol e as mais estrelas. 38

O verso “Mas não tinha o meu vôo um tal poder” lembra a escada
platônica do amor pela qual a vontade humana sobe, puxada para o alto
pela beleza que vem de cima. Há mais aqui do que a atração da Beleza; este
é um ato de ser dominado pelo amor de Deus.
Essa visão extática, como um encontro e envolvimento no amor divino,
ancora a cosmovisão dos cristãos. Outras religiões monoteístas têm visões
semelhantes da eternidade. Mas generalizar sobre a cosmovisão do não-
crente é algo perigoso, pelo fato de que alguns abraçaram uma
espiritualidade que contém resquícios de várias religiões, incluindo aquelas
que são animistas, politeístas e pagãs. Essas espiritualidades ecléticas
oferecem suas próprias formas de consolo, capacitação e auto-realização.
Quer concordemos com elas ou não, essas crenças são expressões da
preocupação fundamental. Essas crenças podem consternar os cristãos
ortodoxos, mas é um erro esquecer o desejo natural por Deus em sua raiz.
Nenhum de nós tem o ponto de vista vantajoso a partir do qual possa
julgar em termos absolutos onde o amor de Deus está agindo e onde não
está.
Aqueles que não têm nenhuma crença religiosa reconhecem, no mínimo,
que alguns fatores são mais benéficos para a vida humana do que outros.
Quando as crianças crescem e se tornam adultos autodestrutivos, a
primeira pergunta que se faz é a respeito de sua educação. A que tipo de
pais, família, educação, nutrição, saúde e comunidade eles pertenciam?
Esses fatores externos tão determinantes do futuro de uma criança podem
ser vistos como análogos à graça cristã, significando aquele fator que molda
e direciona uma vida para o bem-estar. Na verdade, é comum que homens
e mulheres adultos expressem sua gratidão por terem essas vantagens —
esses fatores externos são vistos como presentes.
Assim, a tensão entre o poder da natureza e a criação adquirida repete a
questão da natureza e da graça em outro nível. Em vez de perguntar qual
parte de uma boa vida atribuímos à graça de Deus, o descrente pergunta
que tipo de fatores na educação inclinam uma pessoa a viver bem. Uma
boa educação se torna uma espécie de graça natural que traz ordem à
natureza.
Para um cristão, no entanto, a graça de Deus é o principal fator
considerado e abrange todos os fatores de criação adquirida mencionados
acima. Os cristãos também são gratos, mas não apenas por terem sorte, mas
pelo Deus cujo próprio Ser é Amor.
Cada criança nasce com um desejo natural por tudo o que é bom, pelo
próprio Deus. Mas cada criança nasce em circunstâncias incertas. É
impossível saber com antecedência se o desejo natural de uma criança será
respeitado e nutrido. O futuro de qualquer criança depende antes de tudo
de Storge, o amor de uma família. Em seguida, vêm as experiências de
Philia, que são centrais para a formação do caráter em jovens adultos,
muitas vezes determinando como uma pessoa lida com os impulsos de Eros.
Se Ágape desempenhará um papel nesses amores, cumprindo todos os três
amores em si mesmo, eis o mistério mais decisivo da vida.
Recomendações
Livros
Bernardo de Clairvaux, Sobre o amor de Deus, 1128.
São Tomás de Aquino, “Tratado sobre a caridade”, Suma teológica, 1265–
1274.
William Shakespeare, Conto de inverno, 1623.
Victor Hugo, Les Misérables, 1862.
C. S. Lewis, Alegoria do amor: um estudo da tradição medieval, 1936.
Georges Bernanos, Diário de um pároco de aldeia, 1936.
Harper Lee, O sol é para todos, 1960.
Shūsaku Endō, Silêncio, 1966.
Dietrich von Hildebrand, A natureza do amor, 1971.
Bento xvi, Deus Caritas Est, 2006.
Músicas
Tomás Luis de Victoria, O magnum mysterium, 1572.
William Byrd, Ave verum corpus, 1605.
Johann Sebastian Bach, Paixão segundo São Mateus, 1727.
George Frideric Händel, Messiah, 1741.
Wolfgang Amadeus Mozart, Réquiem, 1791.
Joseph Haydn, Criação, 1798.
Gabriel Fauré, Réquiem, 1890.
Edward Elgar, The Dream of Gerontius, 1900.
Ralph Vaughan Williams, Five Mystical Songs, 1911.
Maurice Duruflé, Réquiem, 1948.
Stephen Edwards, Requiem for My Mother, 2017.
Filmes
Marcel Carné, Boulevard do crime, 1945.
Frank Capra, A felicidade não se compra, 1947.
Yasujirö Ozu, Ikiru, 1953.
Robert Bresson, A grande testemunha, 1966.
Krzysztof Kieślowski, A igualdade é branca, 1994.
Paul Thomas Anderson, Magnolia, 1999.
Xavier Beauvois, Des hommes et des dieux, 2010.
Terrence Malick, A árvore da vida, 2011.

1 Aqui está um vídeo de uma excelente apresentação do Bavarian Radio


Chorus conduzida por Michael Gläser: www.youtube.com/watch?
v=I7MjBNDuNd0.
2 Derek Watson, Bruckner. Nova York: Schirmer Books, 1996, p. 49.
3 Music in Western Civilization, p. 918.
4 Ibid., p. 46.
5 R. J. Stove, “Anton Bruckner and God”, em Catholic World Report, 02 de
Agosto de 2015, disponível em
www.catholicworldreport.com/2015/08/02/anton-bruckner-and-god/.
6 Bruckner, p. 93.
7 E-mail do Prof. Francis O’Gorman para o autor, 3 de fevereiro de 2019.
8 São Bernardo de Clairvaux, Treatises ii: The Steps of Humility and Pride &
On Loving God, tradução de Robert Walton o.s.b. Kalamazoo: Cistercian
Publications, 1980, pp. 119–21.
9 Lorraine V. Murray, “Saying ‘Yes’ to God: Flannery O’Connor and Mary
Ann”, em Georgia Bulletin, 27 de maio de 2011, disponível em
https://georgiabulletin.org/news/2011/03/saying-yes-to-god-flannery-
oconnor-and-mary-ann/.
10 As Irmãs Dominicanas de Hawthorne foram fundadas em 1900 por
Rose Hawthorne, filha do famoso escritor, para assistir pacientes com
câncer incurável: https://hawthorne-dominicans.org/about- us.html.
11 A Memoir of Mary Ann By the Dominican Nuns Who Took Care of Her.
Introdução de Flannery O’Connor. Nova York: Farrar, Straus and Cudahy,
1961, pp. 5–6.
12 Ibid., p. 18
13 Ibid., p. 19.
14 Ibid.
15 A palavra grega para “conversão”.
16 The Straight Story, direção de David Lynch. 1999; Burbank, ca: Walt
Disney Pictures, 2000, dvd.
17 Christopher Runyon, “The David Lynch Retrospective: ‘The Straight
Story’”, 26 de julho de 2013, disponível em
http://moviemezzanine.com/the-david-lynch-retrospective-the-straight-
story/.
18 Entrevista do American Film Institute com David Lynch, 13 de agosto
de 2009, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=O8qM05l9tIs.
19 Roger Ebert, “The Straight Story”, 15 de outubro de 1999, disponível
em https://www.rogerebert.com/reviews/the- straight-story-1999.
20 Este trailer original de Uma história real de 1999 dá uma pequena
amostra do filme: www.youtube.com/watch?v=e0zb_baTzkk.
21 Este clipe do filme mostra Alvin dizendo a sua filha, Rosie, que deve
viajar para ver seu irmão e mostra o poder do rosto e da atuação de
Farnsworth: www.youtube.com/watch?v=aCzAetSFRC8.
22 Ordet, direção de Carl Theodor von Dreyer. 1978; Londres: The British
Film Institute, 2015, Blu-ray.
23 “The 50 Greatest Films of All Time”, disponível em
https://www.bfi.org.uk/news/50-greatest-films-all-time.
24 Norman Berdichevsky, “Pastor Kaj Munk: Martyr of the Danish
Resistance: Why Christians Must Never be Pacifists in the Face of Evil”,
11/2015, disponível em
https://www.newenglishreview.org/Norman_Berdichevsky/Pastor_Kaj_Mu
nk:_Martyr_of_the_Danish_Resistance/.
25 Jan Wahl, Carl Theodor Dreyer and Ordet: My Summer with the Danish
Filmmaker. Lexington: The University of Kentucky Press, 2012, p. 26.
26 “Henning Bendtsen, 1925–2011”, disponível em
www.criterion.com/current/posts/1751-henning-bendtsen-1925-2011.
27 Mark Greengrass, Christendom Destroyed: Europe 1517–1648. Nova
York: Viking Penguin, 2014, p. 332.
28 Richard Marius, Martin Luther: The Christian Between God and Death.
Boston: The Belknap Press of Harvard University, 1999, p. 253. Para uma
fonte primária, ver Martinho Lutero, The Bondage of the Will, vol. xiv,
tradução de J. I. Packer e O. R. Johnston. Grand Rapids, mi: Baker
Academic, 2012, pp. 235–38.
29 Suma teológica, ia, q. 1, art. 8.
30 Heinz Schilling, Martin Luther: Rebel In an Age of Upheaval, tradução
de Rona Johnston. Oxford: Oxford University Press, 2017, pp. 150–151.
31 Ibid., p. 151.
32 No original: Però n’è data, perché fuor negletti/ li nostri voti, e vòti in
alcun canto — nt.
33 …voi che siete qui felici,/ disiderate voi più alto loco/ per più vedere e per
più farvi amici? — nt.
34 Os excertos em português da Divina Comédia na presente edição foram
extraídos da tradução de Italo Eugenio Mauro. Dante Alighieri, A Divina
Comédia: Paraíso, tradução e notas de Italo Eugenio Mauro. São Paulo:
Editora 34, 1998, p. 27 — nt.
35 Ibid., p. 28 — nt.
36 Anselmo da Cantuária, The Major Works: Including Monologion,
Proslogion, and Why God Became Man, ed. Brian Davies e G. R. Evans.
Oxford: Oxford University Press, 2008, pp. 260–356.
37 Ibid., p. 55 — nt.
38 Ibid., p. 234 — nt.
capítulo xvii
O humano

W illiam Shakespeare e Miguel de Cervantes morreram em 1616.


Seu período de escrita real foi quase o mesmo, 1588–1615. No
Ocidente, Shakespeare é considerado o maior dramaturgo que já
existiu. Harold Bloom vai mais longe, chamando Shakespeare de “o
inventor do humano”. 1 As peças de Shakespeare oferecem “exemplos
extraordinários não apenas de geração de significado, em lugar de sua mera
repetição, como, também, de criação de novas formas de consciência”. 2
Aqui, Bloom utiliza a expressão “o humano” com o mesmo significado que
nós atribuímos ao termo “humanidade” no mundo moderno. Bloom está
dizendo que em suas peças Shakespeare criou a estrutura para narrar o
drama humano, uma estrutura dramaticamente diferente daquela que o
precedeu no século xvi, antes das mudanças provocadas pelo Renascimento
e pela Reforma.
Cervantes, dizem, inventou não só o romance, mas toda a ficção ocidental
com Dom Quixote. Como diz o famoso crítico literário Lionel Trilling a
respeito de Cervantes: “Pode-se dizer que toda ficção em prosa é uma
variação do tema de Dom Quixote”. 3
É intrigante que esses dois gigantes tenham aparecido ao mesmo tempo.
Isso nos leva a nos perguntarmos se havia algo no mundo ocidental no final
do século xvi e no início do século xvii que provocou tamanha invenção
intelectual. Bem, houve: o tumulto da Reforma. No século xvi, a Europa se
dividiu em duas, uma adotando uma forma de cristianismo em protesto
contra a Igreja Católica (“protestante”), a outra mantendo sua antiga fé
católica. A primeira metade do século viu Martinho Lutero excomungado
em 1521, seguido no ano seguinte pelo Rei Henrique viii da Inglaterra.
Lutero logo conquistou seguidores na maior parte do norte da Europa e da
Escandinávia. A nova Igreja da Inglaterra de Henrique também se tornou a
religião da Escócia, juntamente com partes das colônias americanas. A
Irlanda obstinadamente manteve seus laços com Roma, prometendo mais
divisão no Reino Unido.
Os reformadores, incluindo não apenas Lutero, mas João Calvino e
Ulrico Zuínglio, iniciaram um período de guerra religiosa e perseguições
que durou até meados do século seguinte, e além. Quando Maria i, filha de
Henrique viii, se casou com Filipe da Espanha e tentou reimpor o
catolicismo na Inglaterra, a perseguição aos protestantes começou e Sir
Thomas Wyatt liderou uma revolta sem sucesso. Em 1558, Elizabeth i
devolveu a Inglaterra ao protestantismo, levando a décadas de intriga com a
Espanha, culminando com a derrota da Armada Espanhola em 1588. A
Espanha já estava em guerra com a Holanda desde 1546, um ano antes do
nascimento de Cervantes. A Guerra dos Oitenta Anos entre a Espanha e a
Holanda não terminou até 1648.
Aqueles que perguntam por que algumas das peças de Shakespeare, como
Titus Andronicus (1589), 4 Cymbeline 5 e Rei Lear (1608) 6 são tão
sangrentas, precisam apenas olhar mais de perto para seu tempo e lugar.
Entre seus colegas dramaturgos, Christopher Marlowe foi assassinado,
Thomas Kyd torturado e Ben Jonson marcado a ferro quente em seu dedo.
Shakespeare foi mais discreto. Como veremos, a violência e a crueldade são
proeminentes em Dom Quixote; seu autor, um soldado, experimentou tudo
em primeira mão.
O que havia sido a única autoridade moral do mundo ocidental desde o
século xi 7 agora tinha um rival: líderes religiosos que proclamavam que a
verdade das Escrituras era acessível a qualquer pessoa que pudesse ler.
(Observe o papel desempenhado pela tecnologia; antes da imprensa de
Gutenberg, as Bíblias eram copiadas à mão por estudiosos para muito
poucos proprietários). Agora, a Palavra de Deus não precisava de mediador,
fosse um padre ou o Papa; sua verdade estava disponível a todos. As pessoas
ficaram naturalmente confusas: haviam sido informadas de que havia
apenas uma verdade, e agora outra versão da verdade estava sendo
proclamada e se espalhando rapidamente. O ceticismo resultante logo
encontrou um eloqüente defensor em Montaigne, cujos Ensaios apareceram
em 1580, na véspera da ascensão de Shakespeare à glória. Como o
historiador Michael Buckley aponta, os Ensaios “permearam o intelecto da
Europa” com um ceticismo tão profundo que levou à tentativa de
Descartes nas Meditações de encontrar uma base para a certeza
epistemológica. 8
Com o ceticismo, veio a secularização: crentes outrora fervorosos
perceberam que, se um rei (Henrique viii) e um monge agostiniano
(Lutero) podiam ignorar a autoridade papal, então por que não eles
próprios? Algumas facções dentro da Igreja tentaram restaurar seu domínio
pela força — guerra, perseguição e a Inquisição —, embora, verdade seja
dita, cada uma delas tivesse mais relação com a fratura política do que com
a doutrina.
Os Papas Leão x (1513–1521) e Clemente vii (1523–1534) não queriam
que as Escrituras fossem traduzidas para o vernáculo. Assim, quando John
Tyndale publicou sua primeira tradução da Bíblia para o inglês em 1525,
ele se tornou um homem marcado. Em 1535, Tyndale foi julgado e
executado em um tribunal do Sacro Imperador Romano a pedido de
Henrique viii. Para ter uma noção de como as coisas estavam mudando
rapidamente, basta considerar que dentro de quatro anos suas traduções
estavam sendo publicadas por Henrique viii, agora declarado chefe da
Igreja na Inglaterra. As traduções de Martinho Lutero para o alemão
começaram a aparecer ao mesmo tempo, mas a essa altura ele tinha a
proteção dos príncipes alemães, que preferiam ficar longe do controle do
Papa e do Sacro Imperador Romano. (Deve-se notar que, antes da tradução
de Lutero, havia dezoito traduções completas para o alemão das Escrituras
católicas). 9
Adicione a essa confusão religiosa a descoberta feita em 1543 por
Copérnico de que a Terra girava em torno de outros corpos no céu. 10 A
Terra não era mais o centro do universo. Para os protestantes, o Papa não
era mais o chefe da Igreja. A Terra tornou-se menor no esquema cósmico
das coisas. O Papa também encolheu em estatura. Quando a Igreja
considerou Galileu culpado de heresia, uma linha foi cruzada para muitos
entre a elite: a Igreja não detinha mais o monopólio da erudição e do
aprendizado. Por volta de 1611, traduções inglesas da Bíblia, incluindo a
Bíblia King James, e da Ilíada, de Homero, por George Chapman, 11
permitiram que esses livros fundamentais fossem lidos por outras pessoas
que não os treinados em grego e latim.
Nascido em 1564, William Shakespeare foi criado em uma Inglaterra de
intrigas, guerras e traições. Seis anos antes, Elizabeth i se tornara rainha da
Inglaterra, prometendo restaurar o protestantismo de seu pai, Henrique
viii. Com esse retorno, veio uma perseguição aos católicos que superou a
anterior em alcance e derramamento de sangue.
O jovem William cresceu em Stratford, recebendo uma educação em
literatura latina que o expôs à poesia e ao drama. Provavelmente deixou a
escola aos quatorze anos, o que era comum, mas não sabemos nada a seu
respeito até que se casou com Anne Hathaway, quatro anos depois, aos
dezoito anos. A próxima vez que ouvimos falar de Shakespeare é em 1592,
quando aparece em Londres. Ali atuou, escreveu e produziu para o teatro
até 1611 antes de se aposentar para viver em Stratford, onde morreu cinco
anos depois, aos 52 anos.
Suas 38 peças, escritas ao longo de 24 anos, refletem o tumulto da era
elisabetana-jacobina, mas não são limitadas por ele. Como discutimos
anteriormente, a iconoclastia acadêmica moderna não poupou Shakespeare,
cujas obras foram descartadas como meros produtos da época, escritas por
um homem branco morto, com pouca ou nenhuma relevância para nosso
próprio tempo. Para aqueles estudiosos que vêem Shakespeare como
meramente um produto de sua época, o estudioso de Shakespeare A. D.
Nuttall responde que suas peças são representadas, com sucesso, em vários
cenários históricos, todos muito diferentes daqueles descritos pelo
dramaturgo. Nuttall chama Shakespeare de “viajante natural do tempo”. 12
Seu período histórico, eu acrescentaria, foi um tempo de pensamento
global; viagens e exploração tornaram-se comuns na Inglaterra elisabetana:
outros mundos mais novos estavam sendo descobertos e elementos de sua
cultura trazidos para casa por exploradores.
O Conto de inverno de Shakespeare se passa na Sicília e na Boêmia, locais
não muito exóticos, mas distantes o suficiente para dar asas à imaginação.
Uma de suas últimas peças, Conto de inverno foi apresentada pela primeira
vez no Globe Theatre de Londres em maio de 1611. 13 É preciso pouco
esforço para se conectar com seu enredo e personagens. A história de
Shakespeare pertence a todas as idades e públicos, retratando o fel do
ciúme, com toda sua cegueira e sua cólera. Conto de inverno não é sobre o
ciúme de um homem comum, mas de um rei: a ordem de um reino pode
ser destruída por um rei cujos pensamentos se voltam para o niilismo e a
necessidade de vingança.
No início da peça, Polixenes, o rei da Boêmia, está há nove meses como
visitante da corte de seu amigo de infância, Leontes, rei da Sicília. Polixenes
diz a Leontes que deve voltar para casa imediatamente. 14 Leontes o
encoraja a ficar mais tempo, talvez uma semana. Polixenes recusa
firmemente: “Não insistais, por favor, assim tanto. Voz nenhuma, no
mundo inteiro, sim, me poderia convencer como a vossa, o que sem dúvida
agora se daria, caso houvesse qualquer motivo urgente em vossos rogos e
em mim fortes razões para esquivar-me” (1.2.19–20). Leontes se vira para
sua rainha grávida e pergunta se ela está “com a língua presa” para falar. Ela
responde: “Tentais vencê-lo com frieza excessiva”, e recomenda a Leontes
uma abordagem mais delicada. Mas sem esperar pelo marido, ela toma a
frente e, bajulando Polixenes, pede sua presença de “empréstimo” por uma
semana. Ele se recusa, duas vezes, com um enfático “em verdade, é
impossível”. Então Hermione habilmente apresenta a ele uma alternativa.
De forma alguma. Esse “de forma alguma” pronunciado por uma dama é tão potente como se
dito por um rei. Não resolvestes ainda? Então, forçada sou a deter-vos como meu prisioneiro, não
como hóspede. Pagareis, desse modo, ao vos partirdes, vossa estada entre nós sem esbanjardes os
agradecimentos. Que dizeis? Hóspede ou prisioneiro? Pelo vosso terrível “em verdade” é
inevitável: tereis de ser um ou outro. (1.2.50–57)

Polixenes concorda em ficar mais uma semana, em minha opinião,


porque está encantado com a justa verbal de Hermione e com o incentivo
do rei. Como veremos, o rei percebe motivos diferentes para sua mudança
de idéia. Leontes, que estava cuidando de outros assuntos, se vira e
pergunta a Hermione: “Ele já ganhou?”. Quando Hermione afirma que
sim, Leontes se assusta e seu humor muda abruptamente. Um ciúme
despertado se inflama, e ele não tenta contê-lo. Sua raiva aumenta:
“Recusou-se a ficar a meu pedido. Hermione querida, nunca a ponto falaste
como agora” (grifo do autor). Hermione pergunta inocentemente:
“Nunca?”, o que abre a porta para Leontes comparar seu cortejo de
Polixenes ao seu noivado: “Nunca, mas uma vez”, acrescenta:
Ora, foi quando três azedas luas mui demoradamente se finaram, antes de eu conseguir que essa
mão branca se abrisse e confirmasse o teu afeto, depois do que, em resposta, me disseste: “Sou
vossa para sempre”. (1.2.101–4)

Leontes descreve seus três meses de namoro como “azedos”, comparando


seu namoro com a rapidez com que Hermione mudou a opinião de
Polixenes. Hermione, sem perceber que a mente de seu marido está
confusa, confirma a equivalência:
Sim, foi graça. Falei bem duas vezes, não é certo? Uma, para alcançar o real esposo; outra, a fim
de reter um pouco o amigo. (1.2.105–8)

Existe um limite para o que um leitor de uma peça pode entender de seu
significado apenas com o texto — essas são palavras destinadas a serem
encenadas. Por exemplo, o que Leontes faz no palco neste momento é
crucial para acompanhar a progressão de sua loucura. Leontes, interpretado
pelo ator Anthony Sher, não se afasta de Hermione até este momento. 15 O
rosto de Sher se torna uma máscara, com sua boca aberta sem dizer uma só
palavra; sua cólera aumenta. Após um longo silêncio, solta a mão de
Hermione, vira-lhe as costas e caminha em direção ao público. Ele olha
para trás para ver Hermione e Polixenes dançando. O dramaturgo não
prescreve isso, mas, ao fazê-los dançar, o diretor Robin Lough adiciona um
ponto de referência visual para a imaginação desequilibrada de Leontes e
sua raiva. Agora, todas as brincadeiras amigáveis entre sua esposa e
Polixenes corroboram seu julgamento precipitado. Leontes diz em um
aparte:
Muito quente! Muito quente! Unir as afeições de tal maneira é unir, também, o sangue. Estou
sentindo “tremor cordis”; o coração me dança, mas não é de alegria. O acolhimento pode ficar de
rosto descoberto, condescender, até, em liberdade, por generosidade e exuberância, mesmo, do
coração. Até aí, concedo. Mas baterem palminhas, beliscarem-se os dedos, como o fazem neste
instante, permutarem sorrisos estudados, como em frente do espelho e, após, suspiros soltarem,
como toque de buzina que a morte propalasse do veadinho… Oh! Tal acolhimento é-me
contrário, visceralmente, ao peito e ao sobrecenho. Vem Mamillius; és meu filho? (1.2.108–17)

O jovem príncipe Mamillius está por perto, mas não percebeu a mudança
em seu pai quando o ouve perguntar: “És meu filho?”. Afinal, Polixenes
está com eles há nove meses. Mamillius não sabe que seu pai agora duvida
de que ele seja seu filho. Pelas próximas vinte e seis linhas, Leontes
continua na mesma veia raivosa com seu filho ainda por perto. “Então és
meu novilho?”. Ele pergunta, e seu filho responde: “Se vos agrada tal coisa,
meu senhor”. 16
Ao longo do ato i, a loucura de Leontes aumenta enquanto sua esposa,
Polixenes, seu filho e sua corte, desnorteados, temem o que ele fará a seguir.
Teríamos alguma pista da causa mais profunda de sua mente quebrantada?
Anteriormente, Polixenes havia falado com Hermione sobre sua amizade de
infância com Leontes:
Pois não, formosa soberana, moços que criam sempre ter diante de si dias em tudo iguais e que
haveriam de ser sempre rapazes. (1.2.62–64)

Hermione interrompe sua descrição idílica com uma pergunta direta:


“Não era meu senhor, decerto, dos dois o mais terrível?”. Polixenes se
esquiva, sugerindo que os dois começaram suas amizades como inocentes:
“Permutávamos nossa inocência pela inocência”. Mas ele admite que
perseguições menos inocentes se seguiram:
Se tivéssemos continuado a viver dessa maneira, sem que nossos espíritos ingênuos, pelo sangue
levados, se exaltassem, com ousadia ao Céu nos fora lícito responder: “Inocentes”, excetuando-se
nossa herança mortal. (1.2.71–74)

Hermione rapidamente pergunta: “De onde concluímos que tropeçastes,


desde então, por vezes”.
Polixenes se esquiva de novo, lembrando-lhe que, durante aqueles anos,
ela e sua esposa eram meninas. Hermione insiste, querendo saber se algum
deles “pecou” ou “escorregou com qualquer um que não fosse nós”.
Polixenes é salvo de responder quando Leontes volta para fazer a pergunta
fatal: “Convenceste-o?”. Com essa breve conversa, ficamos sabendo que
Leontes e Polixenes eram os amigos mais próximos e, à medida que
cresciam, seu “sangue mais forte” crescia. Em outras palavras, eles
enfrentaram tentações de adultos, mas ele não fornece detalhes.
Dado o vínculo estreito entre esses dois reis, é evidente que Leontes está
duplamente ferido. Seu melhor amigo agora parece mais íntimo de
Hermione do que de si mesmo. Um amigo que passa nove meses em sua
casa, com quem você compartilha as memórias idílicas da infância, junto
com as de atividades pós-púberes, é mais do que um amigo, mas quase um
irmão. “Irmão” é como Polixenes chama Leontes quando eles entram na
sala, ao que Leontes responde “irmão” algumas linhas depois. Embora o
mergulho de Leontes na loucura não tenha fundamento, os laços que ele
sente quebrados estão nas profundezas de seu coração.
Depois que Hermione, Polixenes e seu filho saem da sala, Leontes ferve:
Se os maridos de esposas infiéis desesperassem, enforcar-se-ia, certamente, a décima parte da
humanidade. Não há cura para esse mal. Influência é de um planeta lascivo, que revela seus
efeitos onde é predominante, parecendo-me que a leste, a oeste, ao norte e ao sul tem força. Em
conclusão: não pode haver barreiras que a entrada a um ventre impeça. Ficai certos do seguinte: o
inimigo elas permitem sair e entrar com armas e bagagens. Milhares dentre nós sofrem da
doença, sem que suspeitem disso. (1.2.198–207)

Para Leontes, o mundo se tornou “obsceno”, um décimo de todas as


esposas trai seus maridos, e contra essa “doença” não há remédio. Leontes
condena sua esposa, seu amigo, a feminilidade e o próprio mundo. Este é o
primeiro passo que Leontes dá em direção ao niilismo puro e a uma
vingança assassina desenfreada. Ele ordenará a morte de sua esposa e de
seus dois filhos. Antígono, seu súdito, recebe a árdua tarefa de levar a filha
do rei à praia para deixá-la lá para morrer. Mamillius morre fora do palco
depois que sua mãe é presa. Com a notícia da morte de seu filho, Leontes
começa a voltar aos seus sentidos: “Acreditei demais nas minhas próprias
suspeitas” (3.2.151).
Harold Bloom fala sobre observar “como novos modos de consciência
surgem”, e, na figura de Leontes, encontramos um deles. O amante
ciumento é encontrado na literatura antes de Shakespeare, mas não aquele
cuja interioridade se revela tão plenamente e cuja inteligência, estimulada
pelo impulso, se volta contra tudo de bom em sua vida. O Conto de inverno
prefigura contos semelhantes em O eterno marido, de Dostoiévski, Tess dos
d’Urbervilles, de Thomas Hardy, A Sonata Kreutzer, de Tolstói, Fim de caso,
de Graham Greene e Herzog, de Saul Bellow.
DOM QUIXOTE
Cervantes nasceu na Espanha dezessete anos antes de Shakespeare, em
1547. Ele passou grande parte de sua vida como guerreiro e marinheiro
profissional.
Antes de entrar para o exército, passou um ano em Roma (1569–1570),
no mesmo ano em que a excomunhão de Elizabeth i estava sendo
preparada. Foi reconhecido por sua bravura na Batalha de Lepanto (1572),
levando duas bolas de arcabuz 17 no peito e uma na mão esquerda,
deixando-a inutilizada. 18 Foi capturado pelos turcos otomanos em 1575 (os
“piratas berberes”) e mantido prisioneiro na Argélia por cinco anos. Após
quatro tentativas de fuga, Cervantes foi resgatado após um árduo esforço de
sua família e, com a ajuda de dois Trinitários, retornou à Espanha em
1580.
Passou o resto de sua vida na Espanha escrevendo e ganhando a vida
fazendo vários trabalhos, incluindo o de comissário de suprimentos para a
Armada Espanhola em Sevilha. 19 Serviu por um breve período como espião
em Portugal. 20 Casou-se com Catalina de Salazar y Palacios em 1584, mas
não teve filhos. No mesmo ano, antes de se casar, Cervantes teve um caso
com a atriz Ana Franca de Rojas, com quem teve uma filha, Isabel de
Saavedra. Conseguiu que Ana Franca se casasse com um amigo e, quando
ficou viúva em 1599, Cervantes reconheceu a criança e acolheu as duas em
sua casa: Ana Franca tornou-se criada. Cervantes foi excomungado
brevemente em 1587 por ser um cobrador de impostos e foi preso duas
vezes, tanto em 1592 quanto em 1597, considerado culpado pelo dinheiro
desaparecido das contas do rei. Cervantes, é seguro dizer, era uma espécie
de pícaro.
Eu poderia imaginar um homem como Cervantes, depois de todos os seus
erros e decepções na vida, tornando-se amargo e fechado para o mundo.
Em vez disso, durante sua segunda sentença de prisão em Sevilha, ele
concebeu uma história ambientada em um espaço entre o mundo da
cavalaria medieval e seu presente inglório. Com o que eu chamaria de
espírito alegre, até travesso, ele despejou toda sua experiência na criação de
personagens nunca antes vistos na literatura ocidental.
Antes de publicar sua obra-prima, Dom Quixote, Cervantes escreveu cerca
de vinte peças, todas perdidas, e um romance pastoral, La Galatea, em
1585. Nada sobreviveu de sua escrita que antecipasse a criação de uma
nova forma de literatura. Dom Quixote foi publicado em duas partes: a
Parte 1 em 1605 (o ano em que Shakespeare escreveu Rei Lear) e a Parte 2
em 1615. 21 A obra viajou rapidamente para o exterior, com a primeira
parte traduzida para o inglês em 1616 e a segunda parte em 1620. 22 As
traduções para outras línguas se seguiram rapidamente, tornando Dom
Quixote conhecido em todo o mundo ocidental em 1650. 23 É agora a obra
literária mais publicada da história. 24
Quando pego um livro como Dom Quixote, uma obra de literatura longa
e altamente reverenciada, procuro um ângulo que me ajude a me
estabelecer nele mais rapidamente. Desde a minha primeira leitura, lembro
de Dom Quixote como uma série de travessuras loucas dentro e fora de
aldeias e hospedarias, brigas com moinhos de vento e ovelhas, a lealdade de
um servo camponês, todas as desventuras de um homem idoso que passou
muito tempo mergulhado nos livros sobre a era passada da cavalaria. Mas
um livro recente de William Egginton, O homem que inventou a ficção:
como Cervantes inaugurou o mundo moderno, me curou dessa caricatura.
Egginton me fez ver que não havia apreciado o papel de Sancho Pança: “A
introdução deste vizinho robusto e simples muda tudo”. 25
Quando a história começa, o velho com a armadura de um cavaleiro é
tratado com escárnio por quase todos que encontra, mas Sancho Pança
reage de maneira bem diferente. Quando seu novo mestre desafia os
moinhos de vento para uma luta, chamando-os de “gigantes”, Sancho
calmamente explica que eles não são gigantes. Dom Quixote ignora o
aviso. Sancho observa seu mestre chamar os gigantes e, com a lança na
mão, espora seu cavalo Rocinante em direção ao moinho. Tanto o cavalo
quanto o cavaleiro são pegos pelas velas do moinho de vento e jogados no
chão. Você pode imaginar Sancho Pança chamando-o de maluco e indo
para casa. Não, Sancho opta por aceitá-lo e acreditar em sua visão. “Por
Deus, senhor Dom Quixote — disse Sancho —, creio tudo que Vossa
Mercê me diz; mas olhe se se endireita um poucochinho, que parece ir
descaindo para a banda; há de ser do trambolhão que apanhou”. 26
Para o resto de sua jornada, Sancho Pança avisa Dom Quixote sobre os
problemas que está criando, mas defende o cavaleiro independentemente
das conseqüências. Isso lhes custa algumas surras severas que quase os
matam.

É
É em parte a empatia de Sancho Pança por Dom Quixote que nos
convence a continuar virando as páginas do livro. Ele transforma o que
poderia ter sido um esquete de Monty Python em uma história que
investiga o que significa ser humano, servir a um ideal, falhar nesse serviço.
Egginton escreve: “Essa capacidade de experimentar realidades diferentes e
às vezes contraditórias sem rejeitar uma ou outra é uma das principais
razões pelas quais somos tão atraídos pela ficção, em todas as suas formas”.
27
Na criação da relação entre Dom Quixote e Sancho Pança, Cervantes
criou um espaço imaginativo onde nós, leitores, podemos experimentar
diferentes identidades, perspectivas e moralidades com total segurança.
Egginton se refere a isso como usar uma máscara 28 para dizer a verdade,
“verdades sobre quem somos, que podemos descobrir apenas imaginando-
nos de outra forma”. 29
Outro motivo pelo qual continuamos lendo é o próprio Sancho Pança.
Nós o conhecemos quando Dom Quixote cavalga até uma fazenda próxima
à procura de um escudeiro. Sancho é um fazendeiro pobre com mulher e
filhos, mas é persuadido por Dom Quixote a servir como seu escudeiro.
“Dizia-lhe entre outras coisas Dom Quixote, que se dispusesse a
acompanhá-lo de boa vontade, porque bem podia dar o acaso que do pé
para a mão ganhasse alguma ilha, e o deixasse por governador dela. Com
estas promessas e outras quejandas, Sancho Pança (que assim se chamava o
lavrador) deixou mulher e filhos, e se assoldadou por escudeiro do fidalgo”.
30

Já na estrada, Sancho começa a lembrar ao mestre a promessa de torná-lo


governador. Dom Quixote, sendo um cavaleiro cavalheiresco, promete-lhe
mais: um reino, se um cair em suas mãos. Sancho pergunta se sua esposa
seria rainha, mas sua intenção não é o que pensamos: “Duvido eu —
replicou Sancho Pança — porque tenho para mim que, ainda que Deus
chovera reinos sobre a Terra, nenhum assentaria bem na Maria Gutierres.
Saiba, senhor meu, que ela para rainha não vale dois maravedis; lá condessa
muito melhor acertara, e assim mesmo com a ajuda de Deus”. 31
Sancho Pança revela-se muito mais interessante do que um mero servo
leal; ele é meio malandro, como o autor. Suas conversas subseqüentes
revelam sua amizade cada vez mais profunda, que teria deixado Aristóteles
perplexo. Sancho Pança mostra-se articulado, defendendo seu realismo com
tanta eloqüência que várias vezes recebe elogios de seu mestre que o chama
de “filosófico”.
Como leitores, nossa experiência é como a de Sancho Pança: começamos
a nos perguntar sobre seu mestre; quem é esse idiota? E por que estou
lendo sobre ele? Não é apenas um velho cuja cabeça tem estado tão
ocupada com contos de cavalaria que agora acredita estar vivendo em um?
O narrador de Dom Quixote já o avaliou como tal:
Afinal, rematado já de todo o juízo, deu no mais estranho pensamento em que nunca jamais caiu
louco algum do mundo; e foi: parecer-lhe convinhável e necessário, assim para aumento de sua
honra própria, como para proveito da república, fazer-se cavaleiro andante, e ir-se por todo o
mundo, com as suas armas e cavalo, à cata de aventuras, e exercitar-se em tudo em que tinha lido
se exercitavam os da andante cavalaria, desfazendo todo o gênero de agravos, e pondo-se em
ocasiões e perigos, donde, levando-os a cabo, cobrasse perpétuo nome e fama. 32

Os jovens naturalmente sonham com a glória, mas é raro que um homem


de “cerca de cinqüenta anos” embarque em tal busca. Para um homem
dessa idade, é um ato de pura tolice ou grande coragem. A conquista
literária de Cervantes é permitir ao leitor acreditar em ambos, mantendo-os
em contradição até o capítulo final. O mesmo é verdade para alguns
personagens do romance.
Na Parte 2, capítulo 59, Dom Quixote e Sancho param em uma pousada
para jantar e pernoitar. O cavaleiro ouve uma conversa entre dois homens
na sala ao lado discutindo se deve ou não ler a Parte 2 de Dom Quixote.
Dom Quixote sabe que o livro é falso e os chama para fora. (Havia uma
versão falsa da Parte 2 publicada antes de Cervantes escrever a sua). Com a
ajuda de Sancho, Quixote os convence de que o livro foi escrito por outra
pessoa. Assim, o leitor se depara com o Dom Quixote fictício falando com
estranhos que leram a Parte 1 e estão prestes a ler uma Parte 2 falsa. Mas há
outra camada de complicação: no início da Parte 1, o leitor é informado de
que o livro não foi escrito pelo autor, mas dado a ele por um mouro (um
muçulmano). Sim, círculos dentro de círculos.
Os dois estranhos, Dom Juan e Dom Jerónimo, vêem o cavaleiro errante
através de uma espécie de óculos bifocais que criam uma única imagem:
“Foi sumo o contentamento que os dois cavaleiros tiveram, ouvindo contar
a Dom Quixote os estranhos sucessos da sua história; e ficaram tão
admirados dos seus disparates, como do modo elegante por que os
expunha. Umas vezes consideravam-no discreto, e outras vezes supunham-
no mentecapto, sem saber determinar que grau lhe dariam entre a discrição
e a loucura”. 33
Essa dimensionalidade de personagem e cenário é o que torna Dom
Quixote tão único e o aspecto do romance que mudou a natureza da ficção
para todos os que o seguiram. Ao aceitar a complexidade psicológica e
moral do cavaleiro, nós a reconhecemos em nós mesmos. Nossas próprias
ficções, aquelas que nos ajudam a lidar com a infelicidade, estão olhando
para nós enquanto as lemos. As múltiplas perspectivas em jogo nos tornam
conscientes das contradições, irônicas e humorísticas, que fazem parte de
nossas vidas. Por exemplo, como costumamos usar a narração de histórias
para esconder nossos tropeços e quedas. Para Cervantes, não há vergonha
nisso; em vez disso, é necessário e deve ser fonte de risos, não de
arrependimento.
Duvido que eu seja o único leitor que desejou, como Sancho Pança, que
Dom Quixote tivesse permanecido um cavaleiro errante até o fim. Antes de
morrer, Dom Quixote renuncia a todo o seu idealismo cavalheiresco e
retoma o seu verdadeiro nome, Alonso Quixano. Lendo as páginas finais,
senti a magia desaparecer, mas foi assim que o autor pretendia. Em seu
quarto entram o médico para tomar seu pulso, o padre para ouvir sua
confissão e um escriba a quem o moribundo pode ditar sua vontade.
Sancho Pança implora a que “não morra Vossa Mercê, senhor meu amo,
mas tome o meu conselho e viva muitos anos, porque a maior loucura que
pode fazer um homem nesta vida é deixar-se morrer sem mais nem mais,
sem ninguém nos matar, nem darem cabo de nós outras mãos que não
sejam as da melancolia”. 34
Mas Cervantes não permitirá que esta seja uma cena triste. Dom Quixote
dita os termos de seu testamento; entre os beneficiários estão sua sobrinha,
sua governanta e seu fiel escudeiro. Depois, ele desmaia e desaba na cama,
ainda vivo: “Andava a casa alvorotada; mas, com tudo isso, a sobrinha ia
comendo, a ama bebendo e Sancho Pança folgando, que isto de herdar
sempre apaga ou consola no herdeiro a memória ou a pena, que é de razão
que o morto deixe”. 35
Talvez Cervantes achasse que o final deveria remontar ao início, antes da
transformação de Alonso Quixano. Seguimos Dom Quixote e Sancho
Pança em um mundo de gigantes, magos, castelos e donzelas em perigo;
quando saímos do outro lado, a errância do cavaleiro é rejeitada e as
súplicas do leal escudeiro são seguidas por uma dor amenizada pelo
dinheiro.
Mas a vida, eu observo, é assim mesmo. Quão precioso, então, é este vôo
para um mundo onde um homem estava disposto a morrer por amor,
honra, lealdade e para manter uma promessa. A vida também pode ser
assim. Em Dom Quixote, o mundo das nossas aspirações é reunido com o
mundo das mentiras, promessas não-cumpridas, violência e fracasso.
Juntos, os dois mundos formam uma realidade, aquela em que vivemos.

Como obras como essas podem evitar que você perca a cabeça? Afinal,
Dom Quixote perdeu a cabeça lendo livros. Como podemos saber se não
estamos repetindo seu erro? Acho que a resposta é esta: o que lemos,
ouvimos e vimos nos mergulha mais profundamente na condição humana.
Assim como aprender uma língua: aprendemos melhor quando estamos
imersos nela, quando somos forçados a aprender para viver o dia-a-dia.
Recuperamos a sanidade e reencontramos nossas cabeças, por assim dizer,
quando nos conectamos com o real, quando pensamos além do roteiro da
mídia e rejeitamos o catecismo do pós-modernismo. No último século,
incontáveis milhões de pessoas perderam a cabeça por várias formas de
utopia, em busca de uma Terra que nunca existiria. Sob a influência de
acadêmicos delirantes, muitos trataram a natureza humana como se ela
pudesse ser reconstruída. Infelizmente, muitos continuam a tentar hoje de
maneiras cada vez mais perversas. Não se submeta a eles.
Os efeitos desse ataque à natureza humana — em grande parte perpetrado
pelo obscurecimento do que é bom, verdadeiro e belo — foram múltiplos e
extremos. Nas obras apresentadas, e em outras do Cânone, no entanto,
descobrimos que a pessoa individual pode mudar, com rapidez
surpreendente, sua orientação fundamental para o Céu ou para o Inferno.
Os seres humanos têm liberdade, mas podem perdê-la quando sua
racionalidade se desintegra — pense em Leontes e Scottie.
Em um dia típico de uma vida agitada típica, muitas vezes perdemos
momentos que nos afetam com o luto do poeta Dana Gioia, a alegria
extática de Dies Natalis de Finzi, o erotismo frenético de Um corpo que cai,
o amor heróico de Telêmaco, ou um testemunho humano de depravação
como a descrita por Joseph Conrad. Essas obras, e outros clássicos do
cinema, música e literatura, aumentam a realidade do que retratam,
gravando suas impressões em nossa memória. Chega um momento em
todas as nossas vidas em que precisamos nos lembrar dessas coisas — tanto
anjos como demônios aparecem de repente.
A ficção, como a música e o cinema, pode ter sucesso em nos ensinar
onde as explicações-padrão falham. Em Conto de inverno, somos colocados
na mente de um homem insanamente ciumento e ouvimos, com horror,
seus pensamentos enquanto ele se volta contra todos aqueles que o amam.
A descrição do ciúme por um psicólogo não vai horrorizá-lo ou deixá-lo
com a experiência sentida de sua destrutividade. Para a maioria de nós, as
representações artísticas são lembradas por mais tempo do que as
definições. É por isso que Jesus falou em parábolas e as igrejas fazem uso de
pinturas, esculturas e vitrais.
Na próxima vez que você encontrar alguém que defende o comunismo,
você pode se lembrar da história de Rubashov de O zero e o infinito. Se
alguém lhe disser que “as pessoas nunca mudam”, você se lembrará de
Alvin em Uma história real ou de Hightower em O Céu mandou alguém. Se
um amigo reclamar de todas aquelas pessoas horríveis do mundo, você
pode refletir sobre o fato de que todos nós estamos caídos, como Baudelaire
retrata em As flores do mal. Para aqueles que se esqueceram do sacrifício de
nossos soldados, apresente-os à poesia de Wilfred Owen.
Em um mundo que fez todo o possível para apagar ou obscurecer a
memória civilizacional do Ocidente, lembrar se torna uma obrigação moral
e uma chave para recuperar nossa sanidade. Às vezes, essas memórias são
mais abstratas e emocionais do que descritivas. Há encontros com os
clássicos que são facilmente lembrados porque não se trata de acertar as
palavras exatas: a Ode à alegria de Beethoven da Nona sinfonia, o momento
em que Inger volta à vida ou Telêmaco enfrentando os pretendentes na
corte de seu pai.
O que lembramos chega até nós por meio de todo o nosso corpo, não
apenas do intelecto. Veja outro exemplo: São Tomás de Aquino define o
amor como “querer o bem a alguém”. 36 O que você lembrará com maior
facilidade, essa definição ou as palavras de São Paulo na Carta aos
Coríntios?
QUAL DELES TEM A MAIOR CHANCE DE MUDAR SUA VIDA?
Cervantes nos diz uma verdade sobre a vida humana: somos capazes de
servir e sofrer por causas nobres, mas muitas vezes falhamos porque não
temos o que é necessário para enfrentar um mundo crivado de campos
minados e imprevistos. Cervantes reconhece isso com um suspiro, mas
também com uma risada. O riso de Sancho Pança é o som da esperança —
levantamo-nos e tentamos de novo.
Lembre-se do que Aristóteles disse: “Todos os homens, por natureza,
desejam saber”. 37 E o que Tomás de Aquino afirma: desejamos conhecer
mais do que as coisas finitas; desejamos conhecer a Deus. 38 Perdemos
nossas cabeças quando esse desejo é desviado, quando somos seduzidos por
visões de mundo simplórias, desequilibradas ou invertidas. As falsas
narrativas se desenvolvem de duas maneiras. Ou o sofrimento que causam
leva a um despertar, como vimos no personagem de Leontes, ou
permanecem obstinadamente no lugar, e o sofrimento que causam é
voltado para fora, exigindo reconhecimento, aprovação e, como vimos em
O zero e o infinito, conformidade. Miser amor companorum. A miséria adora
companhia.
Meu objetivo neste livro é reatar você, leitor, com os clássicos e, com
sorte, incitar uma nova paixão pela grandeza que está tão perto de nós. Só
precisamos escolher um e começar a ler, ouvir ou assistir. Tentei facilitar a
sua reconciliação eliminando as inverdades que dominam a conversa
pública e lembrando-o de preparar um ambiente onde sua mente possa
trabalhar com o mínimo de distração. Eu o alertei contra os gurus culturais
e os déspotas pós-modernos que querem dizer a você o que pensar e como
sentir. Armei você com argumentos sobre uma natureza humana que é
compartilhada por todos. Defendi a Verdade, a Bondade e a Beleza como
aspectos transcendentais do ser, e temos testemunhado isso nos filmes,
músicas e livros discutidos. E vimos como as grandes obras falam umas às
outras e a nós sobre o humano e seu lugar no universo.
Precisamos continuar procurando conexões dentro de nosso Cânone
expandido. Espero que aqueles que têm experiência para incluir outras
disciplinas, como ciência e psicologia, e outras formas de arte, como
pintura, escultura e dança, mostrem o caminho. Foi um privilégio para
mim escrever este livro porque aprofundou meu amor e gratidão pelos
homens e mulheres que deixaram para trás obras que chamamos de
clássicos e de grandes. Terei encontrado o sucesso se os leitores
empreenderem a jornada a partir daqui, por conta própria, talvez
inspirados por alguma sabedoria ou prazer que possam ter encontrado
neste livro.

1 Harold Bloom, Shakespeare: The Invention of the Human. Nova York:


Riverhead Books, 1998, p. 18.
2 Ibid.
3 Lionel Trilling, The Liberal Imagination: Essays on Literature and Society,
ed. Pascal Covici. Nova York: Viking, 1950, p. 203.
4 No palco, várias partes de corpos são cortadas, juntamente com estupro,
canibalismo e uma pessoa enterrada na areia até o pescoço e deixada para
morrer.
5 Prefigurando O poderoso chefão, a jovem Imogen acorda na cama
pensando que está ao lado de seu amante, e logo encontra Cloten, seu
meio-irmão, decapitado.
6 No ato 3, cena 7, os olhos de Gloucester são arrancados no palco por
Cornwall e Regan. Cordélia é enforcada fora do palco, Goneril envenena
Regan e Goneril se mata.
7 Em 1054, a Igreja Católica se dividiu em Igreja Católica Romana no
Ocidente e Igreja Ortodoxa no Oriente.
8 Michael J. Buckley, S.J., At the Origins of Modern Atheism. New Haven:
Yale University Press, 1987, p. 69.
9 Cf. http://pblosser.blogspot.com/2004/09/luthers-bible-translation.html.
10 Nicolau Copérnico, De revolutionibus orbium coelestium, 1543.
11 Esta tradução foi chamada de “Chapman’s Homer”, a qual inspirou um
poema de 1816 de autoria de John Keats, “On First Looking into
Chapman’s Homer”. O poema pode ser lido aqui:
https://www.poetryfoundation.org/poems/44481/on-first-looking-into-
chapmans-homer.
12 A. D. Nuttall, Shakespeare the Thinker. New Haven: Yale University
Press, 2007, p. 22.
13 O texto completo de A Winter’s Tale pode ser lido online aqui:
http://shakespeare.mit.edu/winters_tale/full.html.
14 Uma gravação de áudio com Sir John Gielgud como Rei Leontes de The
Winter’s Tale pode ser ouvida aqui: https://www.youtube.com/watch?
v=6h3Uv8SILj4.
15 The Winter’s Tale, direção de Robin Lough. New Hope, pa: Kultur
Video, 1999, dvd.
16 Leontes chamando seu filho de “novilho” me levou a pensar sobre a
história de Abraão sendo ordenado por Deus para matar seu filho Isaac (Gn
22, 1–19). Se Shakespeare pretendesse a alusão, teria sido um contraste
grotesco entre um pai que age em obediência a Deus e um pai tentado a
quebrar a lei divina e matar seu filho.
17 Um arcabuz é uma das primeiras formas de rifle longo.
18 William Byron, Cervantes: A Biography. Garden City, ny: Doubleday &
Company, Inc., 1978, p. 132.
19 Ibid., p. 323.
20 Ibid., pp. 255–56.
21 A Parte 1 é dividida em três partes: A Primeira Saída (capítulos 1–5); a
Destruição da biblioteca de Dom Quixote (capítulos 6 a 7) e a Segunda
Saída, que tem seis subseções. Esta Saída começa com o capítulo 11 e vai
até o final, capítulo 52. A Parte 2, publicada dez anos depois, contém a
Terceira Saída.
22 No ano da morte de Shakespeare em 1616, apareceu a primeira
tradução inglesa de Dom Quixote, feita por Thomas Shelton. A segunda
parte de Dom Quixote apareceu em 1615 com a tradução para o inglês de
Shelton publicada em 1620.
23 Eis um fascinante artigo sobre a história de Dom Quixote em suas
traduções: Ilan Stavans, “One Master, Many Cervantes”, em Humanities
(setembro/outubro de 2008) vol. 29, n. 5, disponível em
https://webarchive.library.unt.edu/eot2008/20080916011930/http://neh.g
ov/news/humanities/2008-09/OneMaster.html.
24 William Egginton, The Man Who Invented Fiction: How Cervantes
Ushered in the Modern World. Nova York: Bloomsburg, 2016, p. 27.
25 Ibid., pp. 18.
26 Miguel de Cervantes, Dom Quixote de La Mancha. Tradução de
Viscondes de Castilho e Azevedo. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 56 —
nt.
27 The Man Who Invented Fiction, p. 19.
28 Ibid., p. 164.
29 Ibid.
30 Miguel de Cervantes, Dom Quixote de La Mancha. Tradução de
Viscondes de Castilho e Azevedo. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 53 —
nt.
31 Ibid., p. 54.
32 Ibid., p. 30.
33 Ibid., p. 549.
34 Ibid., p. 602.
35 Ibid., p. 603.
36 Suma teológica, ia iiae, q. 26, art. 4, disponível em
http://www.newadvent.org/summa/2026.htm#article4.
37 Aristóteles, Metafísica, 1.1.980a, 689.
38 Suma contra os gentios, III, i, 48, 162–67.
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Elogios a
Como não perder a cabeça

Reivindicar a busca pela Verdade, Bondade e Beleza em nossa cultura atual


é uma tarefa urgente, necessária para trazer a cura em uma sociedade
quebrada pela polarização e aprisionada pelo crescente isolamento
emocional. Ao esboçar e explorar uma ampla variedade de arte, história,
literatura e cinema, Deal Hudson aponta para o poder dos três desejos
transcendentais de expressar a pessoa humana para além dos meros fatos e
de compreender o mundo para além de meras asserções. Pois, na busca por
esses transcendentais, a alma humana é comunicável e inteligível de uma
maneira que debates políticos, palestras em faculdades ou perfis públicos
não podem imitar. Ao nos renovarmos nas obras clássicas de nossa
ancestralidade comum, podemos nos preparar novamente, não apenas para
ouvir, mas também para escutar e compreender de maneira mais profunda.
— D. Thomas J. Olmsted, Bispo da Diocese de Phoenix

Deal Hudson ama o Cânone, os clássicos e os Great Books. No entanto, ele


deseja que este Cânone se expanda. Mas se o ama, por que alterá-lo? Que
critério utilizará? Será que dispensará o finado e branco Bardo de Avon para
dar lugar a alguma desconhecida camponesa guatemalteca de cor? O que
acontecerá se ele ignorar os tropos politicamente corretos de inclusão,
diversidade e multiculturalismo e, em vez disso, julgar uma obra por sua
capacidade de instigar e suscitar admiração? E se ele expandir o Cânone
para incluir ótimos filmes e música clássica? E se ele nos ensinar como nos
separar do tênue, mas implacável, mundo da polêmica digital e usar o
poder de nossa atenção para redescobrir o mundo do bom, do verdadeiro e
do belo? Então eu diria que, com São Paulo, ele sabe que nos
transformamos naquilo que contemplamos. “Todos nós, pois, vendo de
cara descoberta como num espelho a glória do Senhor, somos
transformados na mesma imagem”. O que prende nossa atenção nos
aprisiona. A cultura do pós-modernismo quer você, sua sanidade e sua
liberdade. Hudson quer que você escape do magnetismo entorpecente da
mídia moderna e entre nessa grande tradição da criatividade humana que
nos desafia a expor falsidades, enfrentar o mal e o sofrimento, viver
livremente e cultivar as inúmeras nuances do amor responsável. Deixem o
Cânone expandido de Deal Hudson mostrar a vocês como não perder a
cabeça.
— Al Kresta, Presidente/ceo da Ave Maria Communications

e apresentador de Kresta in the Afternoon, ewtn radio

O que ansiamos está bem diante de nós, não importa nossa idade ou
posição na vida. O livro de Deal Hudson é um convite para alimentar o
coração, a mente e a alma. Como podemos esquecer de algo assim? Adiar o
que há de mais satisfatório na vida? No entanto, é exatamente isso que nós,
humanos, tendemos a fazer. O livro de Deal Hudson é um convite para
viver plenamente, para se apaixonar pelo que é verdadeiro e belo, para
saciar nossa fome espiritual, física e emocional. Como benefício
secundário, trata-se da melhor lista de leitura, música e filmes que se possa
imaginar.
— Marjorie Dannenfelser, Presidente da Susan B. Anthony List

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