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A Confraria da Esquina:
O que os Homens de Verdade falam entre si em torno de uma carne queimando
Uma etnografia de um churrasco numa esquina do subúrbio carioca
RIO DE JANEIRO
Janeiro de 2003
2
A rapaziada
3
Sumário
Lista de fotos .................................................................................................................4
Epígrafe ..........................................................................................................................5
Dedicatória .....................................................................................................................6
Agradecimentos .............................................................................................................7
Introdução ......................................................................................................................8
4. Considerações finais
O que um churrasco num subúrbio carioca poderia nos dizer sobre masculinidade? .....95
Bibliografia.....................................................................................................................101
4
Epígrafe
Procedi, para como os judeus, como os judeus, a fim de ganhar os judeus; para os
que vivem sob o regime da Lei, como se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os que vivem
debaixo da Lei.
Aos sem Lei, como se eu mesmo o fosse, não estando sem Lei para com Deus, mas
debaixo da Lei de Cristo, para ganhar os que vivem fora do regime da Lei.
Fiz-me fraco para alcançar os fracos. Fiz de tudo para com todos, com o fim de, por
Dedicatória
Ao povo Negro que não conseguiu e não consegue adentrar uma Universidade e aos que
conseguiram superar as adversidades (e só nós sabemos quantas são) e chegar aqui, e apesar
da torcida contra, iremos cada vez mais longe.
Ao Povo do Coração Aquecido de Vila Isabel que me sustenta com carinho e Orações.
Aos malungos e malungas.
A minha orientadora que talvez ela nem imagine o quanto ela foi e é importante para minha
vida intelectual, quando eu crescer quero ser igual a ela.
A todos meus professores e professoras, em especial a professora doutora Nanci Vieira.
Aos meus alunos, que me fizeram professor.
A minha filhota Bartira que tanto amo e é o que eu fiz de melhor para este mundo.
Para meu presente de Deus, Cristhiane, que mesmo sem que eu mereça, Ele me completou
com esta parte maravilhosa!
A Jesus, que apesar de mim, mudou meu viver, me deu Sua Paz e me tornou um homem
melhor. Muito obrigado, Senhor!
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Agradecimentos
INTRODUÇÃO
Imagine você chegando sozinho num sábado, por volta das 11 horas da manhã, em
um lugar onde está reunido um grupo de aproximadamente 15 homens adultos e você não
conhece nenhum deles, aliás, conhece apenas um que não estava lá naquele momento. Estes
homens falavam alto, gesticulavam muito e suas gargalhadas podiam ser ouvidas a uma
distância razoável. De longe você poderia avistar uma churrasqueira de um lado da calçada,
onde estava a maioria destes homens e do outro lado, na outra calçada um trailer azul, e a
medida em que fosse se aproximando o cheiro da carne queimando1 invadia suas narinas.
entrada no meu futuro campo, eu sentia uma solidão que pouca diferença faria se eu estivesse
numa ilha trobriandesa, em Bali, Samoa ou numa esquina de um subúrbio da cidade do Rio
Janeiro, minha cidade natal. Percebia que estava entrando - como entraram outros/as
intrépidos/as exploradores - por campos nunca dantes etnografados. Passei pela apreensão que
creio ser comum a todo trabalho de campo etnográfico: os primeiros contatos! Ele é de
fundamental importância, pois afinal ou você é aceito pelo grupo ou simplesmente não há
via: um grupo de homens que comiam churrasco feito na rua tão à vontade como se
estivessem no quintal de suas casas (mais tarde eu descobriria que eles realmente estavam no
seu próprio quintal), pessoas passando para lá e para cá aparentemente indiferentes ao que se
passava, mas tomando o todo cuidado para não passar muito próximo do grupo, este cuidado
era maior por parte das mulheres. Os carros também faziam parte da paisagem no seu ir e vir
1
Churrasco. As categorias nativas serão colocadas em itálico e negrito.
8
constante e pareciam não incomodar ao grupo, o falatório parecia uma feira livre em torno da
Mas, antes que eu pudesse esboçar uma ordem na minha cabeça, minha
aproximação foi percebida pelo grupo e todos me olharam, neste momento eu bolei2, foi como
chegar mais cedo numa festa que um amigo te chamou para ir junto, mas você chegou mais
cedo que ele e você não conhece ninguém desta festa. Perguntei pelo meu amigo e me
disseram que William3 tinha ido ao campinho4 e voltaria logo, o que me trouxe um certo
alívio. Naquele momento fui tratado com total indiferença. Pedi um refrigerante para fazer
hora e poder ficar olhando o em torno, mas principalmente para disfarçar comigo mesmo
pouco e fomos para o meio da roda para que eu fosse apresentado ao grupo. Sendo
apresentado ao grupo como sendo seu primo, a recepção melhorou sensivelmente, todos me
agora eu era uma outra pessoa. De corpo estranho ao grupo, passei a ser o primo do William.
2
Este verbo é de difícil explicação. Neste contexto, significa apreensão por uma situação
desconhecida.
3
Negro, 43 anos, meu amigo desde dos meus 14 anos de idade e sempre nos apresentamos como
primos nos lugares que vamos juntos, professor de Educação Física e militante do Movimento
Negro, é também músico, já tendo participado da gravação de alguns CD’s. Foi percursionista de
algumas das mais conhecidas bandas Afro do Rio nos anos ’80 e ‘90, como por exemplo: Agbara
Dudu e Orunmilá. William foi meu principal informante e agradeço às informações que ele me
forneceu e até algumas dicas sobre alguns lugares que eu deveria fotografar, como por exemplo, o
cerveja e churrasco. Eu aceitei o churrasco, mas não a cerveja por não beber bebida alcoólica,
o que prontamente foi motivo de brincadeiras, na sua maioria, dirigidas a William pedindo
Nesta descontração, pude explicar para eles o motivo de eu estar ali: fazer uma
sociabilidade masculina. E me animando, falei sobre o que era uma etnografia e também um
pouco sobre a Antropologia, sobre mim e o porquê de meu interesse pessoal sobre este
conclusão do grupo foi clássica: - Ah, você vai escrever um livro sobre o lazer da rapaziada!
Durante a semana conversei com algumas pessoas sobre esta minha primeira
experiência de campo e muitos acharam engraçado ter como objeto de pesquisa um monte de
bombardearam de perguntas sobre quantos eram, suas idades, etnia, classe social, o que
falavam sobre as mulheres e gays e se havia algum gay no grupo. Até insinuaram jocosamente
que eu queria moleza por escolher um campo que eu já teria alguma afinidade por ter sido
Estas conversas serviram para me ajudar a pensar sobre estas questões, já que algumas delas
eu estava com dificuldades de formular e mesmo pensar melhor no critério de escolha tanto
Posso dizer que tudo começou quando em uma aula, de uma disciplina do
mestrado, nós, alun@s5 e professora, conversávamos sobre como alguns grupos eram mais
5
@ = O/a.
10
camadas menos favorecidos da população foram por muito tempo retratados como portadores
de uma cultura diferente, ou seja, o Outro. Ser este Outro é ser objeto de pesquisa, o que
política, econômica e culturalmente sempre foram esse objeto. Primeiro, os exóticos distantes:
A professora começou a nos instigar e perguntou por que nós não começávamos a
pesquisar grupos que dificilmente seriam reificáveis7, isso me soou como um provocante
desafio, afinal tais questões já haviam rondado minha cabeça em outras ocasiões: ao escrever
heterossexuais, independente de sua origem étnica e classe social, são um desses grupos que
não são reificáveis por serem identificados com o poder e opressão sobre mulheres e
homossexuais, com isso, a população masculina identificada como heterossexual não foi alvo
imaginar que este poderia ser meu objeto de pesquisa: construção da identidade masculina.
mulheres e esta construção que tem de ser validada por ambos; homens e mulheres têm papéis
onde é feita esta construção e qual o melhor lugar para realizar uma pesquisa sobre esta
6
Cabe observar que quando se fala em “grupos étnicos” pressupõem-se negros, às vezes, indígenas, no
caso do Brasil, excluindo-se os euro-brasileiros, estes raramente são vistos como um “grupo étnico”.
7
Reificável no sentido de ser objeto de pesquisa.
11
ser homem no Subúrbio da cidade do Rio de Janeiro tem significado diferente de, por
exemplo, ser homem em São Paulo, Minas Gerais, ou mesmo na Zona Sul do Rio de Janeiro.
Assim, para desenvolver meu trabalho de campo, comecei a freqüentar o Pagode da Tia Doca
que vêm da Zona Sul. O público é de adultos, na sua maioria afrodescendentes, tendo um
número equilibrado de homens e mulheres. Eu imaginava que ali seria um bom lugar para
observar a sociabilidade masculina. Mas, o lugar apresentava uma grande dificuldade para
observação por ser pequeno com um número muito grande de pessoas circulando, cantando e
ouvindo a conversa dos outros, percebi que um lugar era comum como ponto de encontro e
lazer de alguns homens que se reuniam ali: o churrasco8 aos fins-de-semana. Isso me chamou
a atenção e mais tarde conversando com William que freqüentava o lugar com uma certa
regularidade, falei com ele o estava fazendo ali, ele não só confirmou que o churrasco era um
local de lazer da rapaziada, como me convidou para ir a um que ele participava todo os
sábados. Gostei da idéia por se tratar de um grupo menor e lá eu não teria o problema de estar
no meio de conhecidos e também poderia fazer minha observação participante sem maiores
8
A palavra churrasco em destaque é uma categoria nativa que envolve a iguaria, o ato de preparar e
consumir, como também as atividades que ocorrem paralelamente, tal como o futebol e o encontro
com os amigos. A palavra churrasco normal é somente a carne bovina e/ou outro tipo cozida na
brasa.
12
ainda que este familiar (...) não se refira ao grupo que pertence o
compartilhados pelo grupo da esquina são parte de minha formação e, sem querer desfiar
recordações sentimentais sobre minha vida (...), mas situar-me, enquanto investigador, diante
do objeto de pesquisa (VELHO, 1975:7), vale dizer que passei a maior parte de minha vida
Imaginei que minha observação em nada ou quase nada afetaria o campo, pois
resolvesse pesquisar o grupo, talvez não percebesse que eu não era um nativo. Para o próprio
grupo da esquina, depois de algum tempo, passei a ser parte do grupo, facilitado pelo fato de
ser primo do William. Eu não sei se afetei o campo, já que eu me via e era visto como um dos
nativos, afinal sou homem e suburbano, porém, o campo de uma certa forma me afetou... Me
vi perante situações que me fizeram compreender qual era meu lugar naquele grupo.
amigo dele em Irajá, lá todos estavam acompanhados por suas respectivas esposas ou
13
namoradas, apenas eu estava só, ou, como diriam por lá, eu era o único que estava à pé9.
abertas e com as mãos sobre as genitálias, exceto eu, pois acho esta postura extremamente
grosseira, mas ali era um comportamento normal. Fiquei num impasse: se sentasse com as
pernas fechadas poderia atrair para mim brincadeiras que fariam chacota com este modo de se
sentar e se ficasse com as pernas escancaradas me sentiria mal por não ser este meu modo de
comportar-me. Porém, em Roma... Comecei a perceber que eu já não era tão nativo assim.
Outra situação foi em relação ao meu linguajar que, sem que eu percebesse, estava muito
vulgar. Passei a falar palavrões em lugares que normalmente não falaria. Não que eu não
falasse palavrões antes, mas não havia notado que estava falando de forma muito desbocada,
não conseguia tirar minha boca da esquina. Só percebi o quanto estava com a boca suja ao
comentar com minha namorada sobre o que havia se passado com William Foote-Whyte
(1993:303-304) que na sua tentativa de se aproximar ao máximo dos nativos foi chamado à
atenção, pelos próprios nativos, por estar falando palavrões e obscenidade, o que não era a sua
forma habitual de falar. Para minha surpresa minha namorada me disse que isto estava
acontecendo comigo, de imediato não quis admitir, mas depois de algum tempo, percebi que
não era apenas minha boca que estava suja, mas minha gestualidade também estava digna da
esquina.
Se antes eu acreditava que minha presença não afetaria o campo (não sei
sinceramente até onde isto é verdade), não tenho dúvidas que fui afetado por ele. Minha
objetividade. Além de ser uma pessoa mais madura intelectualmente, ela muitas vezes sem
saber, por ser mulher, branca e moradora da Zona Sul da Cidade do Rio de Janeiro, me
9
Sem companhia feminina.
14
emprestaria uma alteridade necessária para desenvolver meu trabalho: coisas que seriam sem
importância, óbvias demais para mim, chamavam sua atenção, com isso, surgiram questões
interessantes, às vezes, coisas que seriam imperceptíveis para quem está de fora deste
Concordo com Clifford quando ele diz que a experiência etnográfica obriga seus
todos que leiam um texto com uma experiência que tem muito de pessoal ao mesmo tempo
em que se faz ciência, é uma tarefa árdua. Árdua pela dificuldade de se criar um bom texto a
partir de uma observação de campo e prazerosa por ser a experiência etnográfica uma viagem
para os que ousam tentar navegar no universo do Outro, mas muito prazerosa.
que seriam, em alguns casos, impossíveis de serem transportados em palavras para o papel,
por isso as fotos não são ilustrações, elas ampliam o campo de observação, trazem elementos
15
que excedem o texto e devem ser consideradas parte integral do texto e como tal elas devem
Sendo assim, este texto está dividido em quatro partes. No primeiro capítulo, A
Esquina Como Território e seus Limites, falo sobre os homens que compõem o grupo da
esquina como eles preparam e constroem um território e seus limites10, compreendendo estes
limites como uma construção social do grupo, onde somente poucos podem estar em seu
interior e este espaço não é somente o imediatamente próximo à esquina, mas também o
falo sobre a construção e transformação de um espaço público num espaço masculino para
uso único e exclusivo de homens daquele grupo. No capítulo III, Sociabilidade Masculina
na Esquina, ouviremos o que estes homens conversam entre si e através destas conversas
tentaremos compreender a sua percepção sobre alguns temas e como o ethos masculino
num subúrbio carioca poderia nos dizer sobre masculinidade?, farei uma pequena
avaliação do trabalho como um todo e quais contribuições que este trabalho pode trazer para
as Ciências Sociais.
10
Preferi utilizar a palavra ”limite” ao invés de “froteira”, concordando com Élcio Fernandes, tradutor
Confraria [Do lat. med. confratria, pelo fr. ant. confrarie (atual
confrérie).]S. f.
3. Sociedade, associação.
A esquina onde realizo meu trabalho de campo fica entre os bairros da Vila da
Penha e do Quitungo, localizado na Zona da Leopoldina (Zona Norte do Rio Janeiro), bairros
que, apesar da proximidade, possuem status sociais muito diferentes. A Vila da Penha é um
bairro de classe média que passou por um boom imobiliário no início dos anos ’80 quando
foram construídos prédios de apartamentos de quatro a seis andares. Este boom deu início a
mudar por vários motivos: por não poder pagar o aluguel que teve um grande aumento; pela
venda de suas pequenas propriedades para as empresas construtoras; e, além disso, uma
vizinhança com maior poder aquisitivo que não possibilitava o estabelecimento de novos
laços de amizades, contribuiu mais ainda para esse “êxodo”. Houve o fechamento das ruas e
Com este processo, morar na Vila da Penha ou nos seus condomínios fechados passou a
conferir alto status. A palavra condomínio fechado é uma forma de se fazer distinção entre os
condomínios fechados sejam tão somente conjuntos habitacionais que, após colocarem muros,
acesso com guaritas e porteiro uniformizados, passam a ter o status de condomínio fechado,
Irajá tiveram parte de suas fronteiras diminuídas, por passarem a ser integrados socialmente à
morador” mais ilustre da Vila da Penha, quando na realidade ele morou no Quitungo, onde
parte de sua família ainda mora. Seu antigo endereço é bem longe da fronteira político-
18
administrativa dos bairros. Mesmo sendo no interior do bairro do Quitungo, o status pessoal
do jogador foi “transferido” para aquela parte do bairro e os moradores daquela rua não têm
dúvidas que ali é Vila da Penha. A imprensa também não faz distinção, numa reportagem
como sendo na Vila da Penha, não levando em conta que estes bairros, Penha e Vila da Penha,
Quitungo hoje tem dois conjuntos habitacionais que foram inaugurados em 1970:
que não moram neles se referiram aos que moram nestes conjuntos de forma pejorativas.
Como exemplos temos vários apelidos depreciativos como de Pombal (Quintino), Muquiço
(Marechal Hermes e Guadalupe), Inferno Colorido, Rebu (em Bangu), etc. Outro dado
comparativo importante entre os dois bairros é que a população negra do bairro do Quitungo é
muito maior que a da Vila da Penha, o que reforça mais ainda o estigma social do bairro.
E é exatamente no limite entre estes dois bairros que fica a esquina em que faço
minha observação.
um bairro suburbano da cidade do Rio de Janeiro, com idades que giram em torno de 30 a 45
anos, possuem médio poder aquisitivo, cujas profissões são motoristas de táxi, vendedores
consideram-se brancos. Eles se reúnem para preparar um churrasco, numa esquina, aos
sábados após os jogos de futebol, as peladas, que são jogadas com times formados por
componentes do grupo da esquina e outros moradores do bairro, os poucos que não são
Estes homens se encontram para fazer o churrasco que é compreendido por mim
como um ritual promovido por eles para celebrar a masculinidade, pois um ritual é, ele
mesmo, a essência [do] social, [são] as histórias que a sociedade conta de si própria (Geertz,
1989). Esta análise se desenvolve a partir do recorte que é realizado em torno de um grupo de
homens, que expressa (...) um determinado modo de ser da (...) masculinidade (Almeida.
1996:19).
A área total da esquina onde o grupo se reúne é de mais ou menos 30 m2, o ponto
azul, com um mictório ao lado, um tipo de trailer é bastante comum em bairros do subúrbio.
A esquina é um espaço que foi ocupado na mão grande12, sem que se perguntasse ao dono da
calçada onde a barraca foi instalada se aquele espaço poderia ser utilizado. Eu só o vi
pouquíssimas vezes: ele saia, olhava aquele grupo de homens em frente a sua casa, não
expressava contentamento, mas nunca soube dele ter reclamado. Apesar de ser o dono da
calçada, ele não fazia parte do grupo e por isso não participava do churrasco.
11
Tonico é um homem branco, de 44 anos, casado pai de dois filhos, filho de imigrantes portugueses
que chegaram ao Brasil foragidos da ditadura salazarista. Ex-jogador de futebol que jogou em times
barraca com a estrutura que esta possuía13, se haveria alvará ou licença, por se tratar de um
espaço público, ainda que seja informalmente privatizado pelo grupo, me foi dito que esta
liberação foi dada pelos poliça14 que moram ou moraram no bairro ou que mantêm relações
de amizade com alguns moradores. Estes policiais são responsáveis por manter a área limpa,
por isso não há maiores preocupações com possíveis roubos ou furtos, preocupação com
13
Água, energia elétrica – que não era paga, já que a instalação era clandestina, assim como o sistema
Este manter a área limpa significa proteção contra pequenos roubos ou furtos em
residências (roupas no varal, eletrodomésticos, etc.) ou automóveis, por exemplo. Não há uma
clara gradação entre os delitos, qualquer um deles é visto como sinal de degradação da ordem
local, quase a barbárie, pois significa que a área não tem dono, o que resultaria numa
emasculação dos moradores locais, já que estes são responsáveis pela segurança da rua, de sua
família e dos aliados potenciais no seu território, tal como descreve Gilmore,
not only brings respect to the bearer; it also brings security to his
De um modo geral, todo homem é responsável pela segurança da sua área, mas
quem de fato exerce o papel de segurança é quem realmente possui este poder, os policiais. O
com a posse e a manutenção da ordem local. Neste sentido, cabe aos homens do grupo da
esquina sustentar moralmente este poder, pois esta moral, ou para utilizar uma categoria
nativa, este fortalecimento é o que realmente sustenta o poder local. Os poliça, por sua vez,
exercem seu poder de estabelecer a segurança, mas sem se excederem neste exercício
15
Tradução livre: (...) a maior parte dos homens está profundamente comprometida com uma
imagem de virilidade porque ela é parte de sua honra ou reputação pessoal. Mas esta imagem não
traz apenas respeito para o portador; traz também segurança para sua família, linhagem, ou
cidade, uma vez que estes grupos, ao compartilharem uma identidade coletiva, refletem a reputação
obedecendo os parâmetros locais, pois por terem laços de lealdade, se extrapolarem teriam o
desprezo da comunidade, sendo decretado sua morte social. É justamente esta relação
lealdade entre os policiais e a comunidade que mantém um certo equilíbrio nesta relação de
poder.
Quando os autores de algum delito são pegos, raramente são levados à delegacia,
as questões são resolvidas interna corpore: pode ser dar uma idéia (dar uma advertência
gravidade do delito está diretamente ligada à maior ou menor consideração que o infrator
170).
A idéia básica é que houve uma ameaça à ordem local e tal ameaça deve ser
punida de forma exemplar, senão a área fica esculachada16 e área esculachada é área
emasculada... Tudo isto com conivência ou omissão da comunidade local, mas muito
16
É interessante ver a definição do verbo esculachar no Aurélio: Ver esculhambar (1 a 3). [De colhão,
Criticar ou repreender com violência; descompor, esculachar; 3. Criticar com mordacidade; zombar,
dificilmente sem que esta saiba de alguma coisa, já que como disse anteriormente, a ordem
Certo dia estava no campo de futebol com William, quando de repente ouvi um
pequeno alvoroço pela chegada de um certo Paulo. A princípio, eu pensei que ele fosse um
jogador de futebol em início de carreira ou algum pagodeiro, principalmente pelo seu modo
de se vestir (ostentava pulseiras e cordões de ouro, roupas esportivas caras), já que de vez em
quando passam por ali jogadores ou pagodeiros famosos. Todos faziam questão de falar com
ele. Perguntei a William quem era o cara e ele me disse que era um dos poliça que mantinham
a área limpa (os mesmos que protegiam a barraca do Tonico), ele e mais quatro irmãos, todos
policiais (militares, depois eu soube), eles eram respeitados por seus serviços prestados a
comunidada, em outras palavras, por intimidar, coagir ou mesmo matar os que estariam
roubando ou praticando qualquer delito que perturbasse a ordem local. Mesmo que estes
policiais estejam envolvidos em extorsões ou assassinatos (e baseado nos relatos que ouvi nos
bate-papos, tenho motivos para crer que estariam) são admirados e respeitados e me pereceu
que este tratamento de popstar fazia muito bem a este Paulo, que fazia questão de falar com
Embora o espaço da esquina seja público, ele é apropriado pelo grupo da esquina,
tornando-se, assim, um território de uso exclusivo deste grupo, pois ali é um lugar onde além
bebida, ou seja, onde se dá a sociabilidade, mesmo sendo numa rua movimentada onde carros
Foto 1. Ali é um lugar onde além do lazer é também onde se toma banho, se
encontram os amigos e se compartilha a comida e bebida
Seus limites tornam-se claro para qualquer pessoa que passe por ali, seja homem
ou mulher. Nunca presenciei qualquer pessoa passando no meio da roda onde o grupo fica: há
uma barreira invisível, mas perceptível por todos, seus limites são bem nítidos para todos que
uma mulher invade o espaço, a intrusa é intimidada, coagida a sair do espaço. Este convite de
retirada e os meios para que isto aconteça podem ser contadas piadas indecentes em voz alta,
uso de palavrões e/ou gestos bruscos. Vamos a um exemplo. Certa vez o orelhão que há na
esquina17 estava fazendo ligações diretas (sem utilização de cartão), com isso, uma fila
território da esquina e ocupou o lugar onde seria montado o mictório, por isso houve
barulhos e estardalhaços sem necessidade. Logo que a fila acabou, o telefone foi destruído por
17
Ver figura 1 e foto 2.
25
O mictório é uma estrutura de aço pintada de azul, como um biombo que pode ser
igualmente desmontável. Ele fica imediatamente ao lado da Barraca do Tonico, toda a sua
localização e “arquitetura” pressupõe que uma mulher jamais utilizaria suas instalações. Na
foto abaixo se pode ter uma idéia das distâncias entre o telefone, da barraca e o mictório.
Barraca do Tonico
Mictório
mesmo tempo que defendem a igualdade fraterna [e o território] dos membros do mesmo sexo
(Almeida, 1997:185-6).
seu uso, com outros territórios observados em trabalhos etnográficos sobre sociabilidade
Almeida (1995) para percebermos algumas diferentes formas de ocupação e manutenção dos
pode ocupar este espaço, qualquer que seja o lugar que more, a classe social, etc., é um espaço
público, cuja ocupação não implica em uma apropriação exclusiva dos jogadores de xadrez,
pois o espaço é aberto a qualquer homem que se aproxime, para jogar ou observar o jogo, os
limites deste espaço são permeáveis. A idéia de grupo está centrada no jogo na praça e não na
praça onde se joga. Há atividades comerciais e filantrópicas (idem:50) que são desenvolvidas
à medida que se cruzam no cotidiano (Lask, 2000:21). Ora, num espaço com as características
da praça do Largo do Machado é difícil manter limites rígidos, o que se pode é preservar,
timidamente se comparado com a esquina que pesquiso, uma parte do espaço e torná-lo um
longo banco de praça que eles usavam de improviso para jogar ou, o
era pior, nas mesas destinadas aos jogos. Eles não falavam nada nem
pediam para quem quer que fosse sair. Mas da mesma forma que me
meu).
uma praça (público) num bairro nobre da Zona Norte da cidade do Rio Janeiro, onde homens
não tendo nenhum jogo ou outra forma de lazer. A permanência neste espaço é restrita aos
componentes do grupo, há também veto às mulheres (Idem:39). Almeida (1995) não se detém
a um espaço específico, mas fala da importância do café para este tipo de sociabilidade, pois
neste local
masculina, um espaço público privatizado no seu uso, que é vetado tanto às mulheres quanto a
qualquer homem que não faça parte do grupo da esquina. Os poucos que se aproximam são
para uma brevíssima conversa que, após se despedir do amigo e cordialmente da rapaziada,
sai rapidamente. Quando um estranho pára por qualquer motivo, o tempo de permanência no
local é menor. Há um vendedor ambulante que passa aos sábados vendendo ovos de codorna,
e mesmo sendo ele conhecido por todos, nunca vi alguém oferecer um copo de cerveja a ele, o
que seria uma demonstração de boas-vindas, a conversa com ele limita-se ao produto vendido
grupo é oferecido um copo de cerveja e um pedaço de churrasco, que após, uma polida recusa,
somente o copo de cerveja é aceito, porém, mais uma vez, o tempo de permanência não se
estende muito, apesar de sempre haver um insistente convite para que se fique, mas na
Para fazer parte do grupo, transpor e se manter no interior deste limite, deve-se
compartilhar certos códigos, certo modo de conduta, que estabelecem quem fica dentro ou
fora, qual o tempo de permanência, quais os graus de hierarquia, quem os ocupa e etc., e para
ingressar nele a única forma é ser apresentado por alguém de dentro do grupo. Eu fui
apresentado por meu amigo William como seu primo, que após termos conversado sobre
que ele freqüenta há algum tempo. É importante destacar que o prestígio que William desfruta
na comunidade, por ser professor e trabalhar junto com Tonico em alguns projetos sociais no
campo de futebol próximo a esquina com as crianças que moram lá, facilitou minha entrada
18
Ver Introdução.
29
no grupo, pois todos os que freqüentem a esquina são moradores e vizinhos que se conhecem
há algum tempo, alguns, inclusive, são colegas de infância. Creio que se não fosse
apresentado por William, minha inserção no grupo teria sido mais complicada ou talvez nunca
acontecesse.
Após ser apresentado por ele ao grupo, me foi oferecido um copo de cerveja,
como não bebo nenhum tipo de bebida alcoólica, fui alvo de algumas brincadeiras..., pois para
eles é inconcebível um homem não beber, tanto que há um provérbio muito comum entre
homens (não só neste grupo) sobre homens que não bebem e que foi dito para mim que é:
“Quem não bebe, não fuma... não fode!”, o que faz com que se tenha uma idéia da associação
da compra, partilha e consumo da bebida alcoólica que um homem se faz mais homem
cerveja, muito raramente se consome bebidas destiladas, que lá são chamados de bola de
fogo. Consumir álcool é motivo de orgulho, todos bradam que bebem muito e conseguem
manter o controle de si mesmo, já ouvi em conversa que depois de ingerir álcool dirige-se
melhor ou que se tem mais disposição para se dar um trato19 na mulher. É comum ouvir
cervejas, onde cada engradado tem 24 garrafas de cerveja, dando uma média de 8 cervejas per
capita, embora ao se ouvir as conversas somos levados a imaginar que se consome muito
19
Bom desempenho por conhecer diferentes técnicas sexuais.
30
O consumo de bebida alcoólica, qualquer que seja, requer muito cuidado, pois o
abuso pode significar mácula na imagem pública de homem que é duramente construída e em
constante avaliação pelo grupo. Tal transgressão pode demonstrar falta de auto-controle e isto
poderia torná-lo alvo de chacota do grupo ou, pior ainda, sua mulher poderia vir buscá-lo na
esquina, o que seria uma grande humilhação, há um ditado citado constantemente pelo grupo
da esquina que, embora muito vulgar, é bastante significativo: “Cu de bêbado não tem dono”,
este ditado demonstra que um bêbado pode chegar a tal nível de perda de auto-controle que
pode ser emasculado: ter sua parte traseira do corpo – parte que deve ser resguardada com
maior zelo, parte que não dever ser tocada por homem ou mulher – possuída por outro
Foi oferecido a mim um refrigerante, já que ali não podia se ficar de mão
abanando, logo que chegou o churrasco, eu fui servido com presteza, na condição de primo
do William, eu desfrutava de algum prestígio. Este prestígio, entretanto, por algum tempo me
permitiu ser um convidado bem-vindo, não um componente do grupo. Por algumas semanas
quando eu chegava, era bem recebido e convidado a ficar à vontade. Este ficar à vontade
significa para eles tirar a camisa, o calçado e pagar um pingoso20, me sentar no chão e comer
calor eram colocadas cadeiras de ferro do tipo que se usa em bar e de vez em quando alguém
do grupo da esquina se sentava para fica se molhando com a mangueira, isso é diferente do
pingoso, já que nada tem haver com limpeza, mas sim com se refrescar e, principalmente,
demarcar o território. O que difere o ato de se molhar na cadeira do pingoso é que este último
20
Tomar banho de mangueira de borracha, ver fotos 3 a 8 que demonstram o pingoso.
21
Ver foto que demonstra como se come o tira-gosto, pagina 44.
31
se tornar evidentes para mim, já que nem sempre quando me perguntavam alguma coisa era
esperada minha resposta. Eu até este momento ainda não tinha uma posição definida, o que
definiu minha posição foi um destes acontecimentos do acaso que nos colocam
definitivamente dentro do campo, ou seja, nos tornam aceitos pelo grupo, algo como a fuga e
perseguição que Clifford Geertz e sua mulher sofreram pela polícia em Bali (Geertz, 1989).
demarca a hierarquia no grupo. Por algum tempo minha permanência estava diretamente
ligada a presença de William, eu só me senti realmente aceito quando num belo dia João22 fez
22
Negro, 35/37 anos, vendedor autônomo.
32
uma brincadeira comigo e como nos diz Geertz, ser caçoado é ser aceito (1989:282), e isto é
tão verdade em Bali quanto numa esquina num subúrbio no Rio Janeiro, embora a forma de
várias vezes (idem), na esquina foi fazer um trocadilho. A partir deste evento posso dizer que
- Ai, meu cumpadi... tu que é (sic) um cara inteligente e parece bem informado,
de qual seria a resposta de João, pois todos os que estavam lá riram da minha resposta e ele
poderia se sentir humilhado. Fui “desafiado” e me saí bem, mas poderia botar tudo a perder se
- Porra, meu cumpadi, ele foi criado em Irajá e lá não tem otário, porra!!!
daquele momento começava numa nova fase de minha pesquisa de campo: Deixei de ser um
convidado para fazer parte da rapaziada, fui colocado dentro do grupo, passei a ter um lugar
objeto foi previamente alterado pelo próprio modo de visualizá-lo, o olhar etnográfico nos
colocar no interior [do grupo] e este olhar não é mera curiosidade diante do exótico23, ele nos
possibilita perceber que em torno do churrasco não estão reunindo apenas indivíduos, porém
pessoas, portanto seres sociais (idem). Tanto o ouvir quanto o olhar não podem ser tomados
poderia ser obtido por um ouvir todo especial, (...) para isso, há que se saber ouvir
Porém, a meu ver há um elemento que Oliveira não leva em consideração neste texto que é o
falar. Antes de estar próximo para o ouvir, é de fundamental importância conhecer certas
categorias e conceitos caros ao grupo que se observa e saber usá-los no momento oportuno.
23
Este exótico pode ser o familiar. O que tornaria o familiar em exótico é o olhar que constrói, Velho
(1975) nos coloca tal questão como parte integrante do fazer antropológico.
34
estranhar o familiar,
ainda que este familiar (...) não se refira ao grupo que pertence o
Sem dominar algumas categorias do grupo, como já disse acima, minha entrada no campo
seria muito difícil, senão impossível, mesmo sendo o primo de William. Sem pretender
desfiar recordações sentimentais sobre minha vida (...), mas situar-me enquanto investigador,
diante do objeto de pesquisa (Velho. 1975:7), reconheço que ter morado dois terços de minha
vida em Irajá, bairro vizinho do Quitungo e do mesmo estrato social, me possibilitou uma
aproximação um pouco mais tranqüila, afinal sendo socializado com o falar local e sabendo
que a perspicácia verbal é apreciada ali, sabia também o quanto a formalidade e o cultivo da
palavra (Almeida, 1996) são importantes, por isso quando fui “desafiado”, respondi à
que causou boa impressão entre os que ali estavam, dando margens para mais trocadilhos,
agora mais provocativos sem serem ofensivos, pois a intenção era saber se eu saberia segurar
servem para
provocar riso, sem ser por tolice (...), mas antes pela habilidade em
35
2.1. O Pingoso
após as partidas de futebol, para pagar um pingoso, ou seja, tomar um banho de mangueira de
borracha no meio da rua, alheio às pessoas e aos carros que passam, mesmo a rua sendo,
do espaço pelo grupo faz com que eles tomem banho ali tranqüilamente.
Há preocupações com a limpeza dos que estão naquele espaço, pois os que não
banhar ou não. Apesar do banho nunca ser tomado com sabonete, às vezes se usa sabão de
37
coco ou o sabão que é utilizado por Tonico para limpar alguns utensílios da barraca (louça,
espeto de churrasco, etc.), mas na maioria das vezes o banho é tomado sem nenhum sabão.
Lava-se a cabeça, as axilas, virilhas, genitália e as nádegas com jatos d’água dirigidos a estes
locais, obviamente variando a pressão da água para que não machuquem as partes mais
sensíveis. Estes banhos são individuais e a mangueira é passada de mão em mão (ninguém dá
banho no outro) e quando um passa a mangueira para o outro há sempre uma piada do tipo
“Pega na minha mangueira para você ficar todo molhadinho, he, he...” e quando o outro
pega, é dito “Ih, ele pegou mesmo, tu gosta, né? ah, ah...”. Ao terminar o banho, a mangueira
será passada para outro do grupo que falará algo semelhante, será mais ou menos assim até o
final do pingoso. E tudo isto, insisto, no meio da rua alheio aos passantes que, aparentemente,
entre os pares ou aqueles que se tornarão pares, entre os homens de verdade (Almeida,
Bourdieu, Gilmore, Nolascos, entre outros). O espaço onde os homens de verdade celebram,
reforçam e afirmam sua masculinidade não poderia ser jamais um espaço feminino e
Almeida (1995), num breve comentário, fala que o tempo também tem gênero:
uso exclusivo dos homens. Park (1979) nos apresenta seu conceito de região moral dizendo
que os indivíduos buscam as mesmas formas de diversão de acordos com suas afinidades, o
resultado disso é que (...) a população tende a se segregar não apenas de acordo com seus
interesses, mas de acordo com seus gostos e seus temperamentos (idem: 64), com isto
percebemos que esta região moral é à imagem e semelhança daqueles que as criam, já que ela
é construída de acordo com seus interesses, gostos e temperamentos, podemos imaginar que
os limites são construídos com base nos principais distintivos identitários do grupo da
certamente ouviríamos que é masculino, porque ali é lugar de homem, mas não de qualquer
homem, mas lugar para os homens de verdade. Esta região moral é um território que possui
limites que são construções sociais (Lask, 1997 e 2000) e estas só são perceptíveis ao nativo
ou a um olhar etnográfico (...) sensibilizado pela teoria disponível (Oliveira, 1998:19) que
40
possibilita compreender como são e até onde estas fronteiras vão, embora devamos ter em
mente que não existem fronteiras lineares, mas zonas fronteiriças, em que diferentes
dividir esta construção por etapas que começam com a ocupação do espaço, o pingoso e o
preparo e consumo do churrasco. Estas três etapas não obedecem a uma cronologia exata,
podem ser feitas concomitantemente, mas o ponto alto desta masculinização do espaço se dá
O mictório é um biombo com três partes, duas feitas com chapas de aço e uma
cortina plástica que serve toscamente de porta, dando uma mambembe privacidade (ver fotos
9 e 10), embora seja comum alguém estar dentro do mictório e continuar conversando com os
outros que estão de fora, não fazendo muita diferença a distância do interlocutor ou o assunto
que se converse. Este mictório obedece à arquitetura (?) interna de um botequim, mas não
qualquer botequim, um botequim que siga as normas do popular pé-sujo, já que ele é feito
pensado exclusivamente para quem urina em pé e os hábitos de higiene são bastante flexíveis,
não havendo onde lavar as mãos, luz, etc. Ele quando montado passa a ser um marco
episódio da destruição do orelhão deixa bem claro que o território deve ser protegido.
Conhecendo o ethos local, é fácil saber quem vai ao mictório: a alguns metros
antes de se entrar no mictório aperta-se e coça-se o membro, às vezes se tem impressão que
antes de chegar ao interior da mictório a genitália será exposta para se satisfazer a necessidade
fisiológica ali mesmo no meio da rua, mas é somente impressão, pois isso seria uma falta de
decoro grave, há regras de comportamento bem claras para os que pertencem ao grupo da
esquina.
41
Foto 9, visão externa. O mictório que é Foto 10, visão interna. A parte interna do
montado ao lado da barraca do Tonico. Feito mictório deixa bem claro que este lugar foi
por homens, para homens para fazer homens pensado exclusivamente para homens.
de verdade.
A preocupação que os membros do grupo têm com a limpeza não é somente com
seus corpos, o local onde eles permanecem a maior parte do tempo é abundantemente
molhado. Um olhar mais atento percebe que o chão onde o grupo da esquina é mantido
continuamente molhado, ou seja, a água garante a limpeza, e esta por sua vez garante a ordem
42
naquele espaço que até a pouco tempo atrás, antes da chegada deles, estava poluído,
absoluta: ela existe aos olhos de quem vê. (...) Tampouco nossas
pingoso. É sintomático que, logo após o pingoso, seja comum ouvir alguém dizer: “Tonico,
de preparar o churrasco!”. Tonico é quase sempre o primeiro a pagar o pingoso. Seria por
que ele é o responsável por preparar o churrasco ou por sua posição na hierarquia do grupo, ou
ambas? E como veremos adiante, quando o churrasco é servido todos sentam-se em cadeiras e
a comida é colocada sobre uma mesa (ver foto 14), diferente do tira-gosto que é servido e
comido com todos sentado no chão (ver foto 11). Eu já presenciei a utilização de um cesto de
lixo para apoiar o tira-gosto, não estou afirmando com isto que todos do grupo da esquina
reúnem formando um grupo maior e, enquanto o churrasco não está pronto, providencia-se o
tira-gosto, que pode ser um frango assado na televisão de cachorro24, comprado numa padaria
Foto 11. A partilha do tira-gosto (ovo de galinha) com todos sentados no chão antes do
churrasco, às vezes o tira-gosto que pode ser ovo de codorna. Ambos são vendidos por
ambulantes.
24
Forno com portas de vidros onde o frango assado fica à vista do freguês, muito comum em padarias
2.2.2. O Churrasco
A carne, carvão e demais materiais que se precisa para fazer o churrasco são
com uma quantia para comprar algo, às vezes o valor da cota é previamente estipulado, às
vezes não. O mais importante é que todos participem, mesmo que com valores diferentes, o
que é necessário é a participação neste sistema das prestações totais (Mauss, 1988: 56). A
relação com a bebida é diferente da que se tem com a carne, a bebida é vendida pelo Tonico,
quando o estoque acaba alguém pega um carro e vai comprar mais cerveja no bar mais
próximo, nessas situações, o Tonico também participa da vaquinha. O que deve se destacar é
que o que
27
Tradução livre: É particularmente notável no caso de carne, que no Ocidente esteja amplamente
ligada masculinidade. Pensa-se que "Homens de verdade" precisam de carne, particularmente carne
vermelha, como a maioria dos estudos (...) citados mostram (...). Ao contrário, é muito mais
O importante é que se participe deste sistema das prestações totais, é ele quem
garante o equilíbrio no interior do grupo da esquina fazendo com que todos participem
que vimos desde o início: a rua (pública) é transformada em cozinha (privada), é neste
momento que o que no privado é considerada uma atividade feminina (comprar e preparar
alimentos), no público passa a ser uma atividade masculina e exercida por quem tem uma
posição de destaque no grupo: Tonico é quem diz qual o artigo28 que será preparado e alguém
do grupo com notório saber em carne irá comprá-lá, na maioria das vezes William era quem
comprava a carne. Antes da compra havia uma conversa sobre a melhor carne para churrasco
e sobre as melhores condições para compra, inclusive qual o melhor açougue, e o melhor
balconista para comprar um bom corte de carne. Perguntei algumas vezes se nas suas casas
alguns deles faziam as compras ou escolhiam o que comprar e, unanimemente, a resposta foi
não.
por sua esposa e levado para esquina sempre por um dos seus filhos homens, sendo esta a
única vez que se vê qualquer tipo de ligação entre a casa de um membro do grupo da esquina
e a esquina, e, embora outros componentes do grupo morem próximo, nunca ouvi qualquer
menção ou sugestão de se pegar alguma coisa que não fosse na casa de Tonico. Por ele
desfrutar de prestígio entre os componentes do grupo da esquina ele tem uma margem de
manobra maior, podendo assim, transitar nestes dois espaços, casa e rua, sem que um
28
O cardápio, menu, no contexto aqui aplicado, o tipo de carne bovina, peixe ou frango que se come.
46
contamine o outro. Aqui se percebe que a oposição casa e rua só fazem sentido quando
o que temos aqui é um espaço moral posto que não pode ser definido
por meio de uma fita métrica, mas – isso sim – por intermédio de
1997:16),
para o churrasco, que na esquina é feita por qualquer um do grupo da esquina. Se a preparação
é feita por Tonico, quase que exclusivamente, a lavagem e limpeza dos utensílios e do
ambiente podem ser feitas por qualquer um. Como vimos, limpeza e ordem estão diretamente
Após o espaço estar ordenado, a carne é servida. Este momento significa a tomada
total de posse do local e o estreitamento dos limites chega ao seu ponto máximo, somente
quem faz parte do grupo da esquina permanece no seu interior, em termos simbólicos, este é o
epicentro do território. É também neste momento que todos se sentam nas cadeiras e a comida
é colocada sobre uma mesa: à mesa somente a rapaziada, afinal uma pessoa não pode
compartilhar da comida preparada por outras pessoas sem compartilhar da natureza delas
(Douglas, 1976:155).
Se o tempo que havia para os outros antes era pequeno, agora é exíguo. Chega ser
dramática a impaciência com os vendedores, eles não chegam a ser maltratados, afinal, “eles
estão correndo atrás da bola!”29, mas são rapidamente despachados. Os conhecidos são
saudados de longe e os poucos que se aproximam param, mas rapidamente vão embora,
Neste horário, por volta do meio-dia, o fluxo de pessoas é enorme, pessoas que
gás, etc., isto faz com que o espaço fique menor, mais concorrido, mas não perdido, já que
quem passa por ali, à pé ou de carro, sabe que aquele espaço tem dono, é um território
demarcado.
Foto 15. O banho serve tanto para refrescar quanto para demarcar o espaço. A
linha branca pontilhada à esquerda simboliza um limite do território do
churrasco o outro é à direita ao lado do mictório. Os dois lados da rua são
ocupados. Para não invadir o território, os pedestres passam pelo meio da rua.
29
Trabalhando.
30
A palavra contexto tem o mesmo valor que consideração (cf página 19).
49
Vez por outra se dá uma volta para mostrar que aquele espaço está ocupado:
toma-se um banho rápido sentado na cadeira de ferro que sempre fica estrategicamente do
lado oposto de onde está sendo feito e comido o churrasco, embora a mangueira tenha
tamanho o suficiente para ir até bem próximo de onde está o resto do grupo, sem perigo de
molhá-los. Este banho para refrescar é sempre tomado de forma que o espaço do território
Foto 16. O banho serve tanto para refrescar quanto para demarcar o espaço.
Mantém os de fora, fora.
distinção que Rezende (2000) faz entre ter amizade e ter amigo, o que discutiremos melhor no
capítulo III, pois é esta distinção que cria as hierarquias, influencia o que se fala, com quem se
gestualidade vulgares e agressivos jamais imaginaria que ali há códigos que zelam pela boa
conduta, moralidade e pelos bons costumes e estes códigos são observados por todos os que
Ao chegar cumprimenta-se os que já estão com um aperto de mão, sendo que para
os mais próximos, aqueles com quem se tem mais intimidade, o cumprimento pode ser um
abraço ou mesmo um beijo no rosto, às vezes os dois em seqüência, e não apenas entre irmãos
ou parentes próximos, mas entre pessoas que se sabiam amigos, parceiro de frente e isto
significa mais que ser colega de alguém, ter apenas amizade, já que o colega (...) [é] em geral
companheiro de alguma sociabilidade, alguém por quem se tinha afeto, mas com quem não
tinha “se provado” amigo. É ser amigo, amigo verdadeiro era aquele que não só conhece o
outro e suas “intimidades”, mas que se envolve, que se cuida e se preocupa com o outro
(Rezende,2000).
Mas voltando ao beijo... isto me chamou a atenção, pois não imaginei que em tal
espaço este tipo de confraternização aconteceria. Eu estranhei quando vi pela primeira vez
este tipo de saudação, o que jogou por terra alguns estereótipos sobre o homem suburbano
But perpahps the most significant conclusion (…) is that Latino men
depicted in the traditional model. This suggests that there is not one
51
os testículos são constantemente tocados, mas não é somente tocar, mas tocar com vigor,
passam, ao se contar ou ouvir uma piada; e mesmo quando se está simplesmente distraído
observando uma pipa no ar. O peito quando é tocado, os ombros são jogados para trás, às
vezes um braço é aberto tornando bem demarcado o espaço pessoal, somente os parceiros de
frente podem se aproximar desses limites que os braços demarcam. As piadas e trocadilhos
são constantes, todos sabem que devem agüentar a brincadeira, mantendo-se dentro do ideal
de autocontrole e domínio próprio, todos fazem brincadeiras com todos, variando sempre com
grupo, evita-se quaisquer assuntos “polêmicos” como política partidária, religião ou racismo.
Estes assuntos quando entram na pauta de conversas são abordados de forma genérica. Sobre
política, por exemplo, fala-se das três instâncias de governo (federal, estadual e municipal) ou
dos três poderes (executivo, judiciário e legislativo) indistintamente, deixando claro a falta de
por um lado critica-se os corruptos, é a eles que se deve recorrer para se conseguir favores
31
Tradução livre: Mas talvez a conclusão mais significante (…) seja que homens latinos não
constituem uma massa homogênea, monolítica e invariável como descrito no modelo tradicional.
Isto sugere que não existe um modo de ser masculino, mas uma variedade de modalidades e
tornou comum em alguns bairros. Segundo dizem, uma parlamentar moradora de um bairro
tentativa de reprimir tais práticas. Sobre religião muito pouco se fala, no máximo, fala-se que
algum santo ajudou na resolução de algum problema, São Judas Tadeu e São Jorge são os
mais citados. O primeiro por ser o santo das causas impossíveis e por ser padroeiro do time de
futebol Flamengo, o segundo por ser muito popular entre os homens e também é associado à
Quanto ao racismo em relação aos negros, não pude perceber qualquer prática ou
o uso de expressões discriminatórias. Evita-se algumas palavras e a única vez que ouvi o uso
de uma expressão racista foi quando Joviano32 falou que a fome é negra, sendo prontamente
corrigido por William que disse que fome não tem cor, não sendo contestado por isso e
apoiado por outros do grupo. Os nordestinos têm tratamento diferente dos negros, pois o uso
de expressões e piadas depreciativas relacionadas a estes são uma constante, mesmo havendo
identificado como nordestino, como sua origem é alvo de expressões e piadas racistas, quanto
os outros dois, nunca são identificados como nordestinos ou se tornam alvo de tais
brincadeiras.
são diferentes. Willian é professor, tem formação superior e é ativista do Movimento Negro e
José não tem tal formação e trabalha prestando serviço como motorista de sua van em uma
escola particular próximo ao bairro. Nunca ouvi de sua parte qualquer manifestação de
32
Branco, 55/60 e aposentado.
53
portanto, interferem não só nos papéis sociais de cada um, mas hierarquizam suas posições no
envolver as mulheres de casa (esposa, filha, cunhada, etc.), pois sendo as mulheres
portadoras da honra da família, caber aos homens protegê-las a qualquer custo. Quando estes
temas surgem, são cortados com uma sacanagem, havendo uma acomodação, assim os temas
que pudessem gerar qualquer tipo de conflito são evitados entre piadas e brincadeiras,
qualquer possibilidade de tensão é acomodada. Está forma de dirimir conflitos nos remete a
(idem, 1989:136).
O único que tem direito de falar sobre a mulher de casa é o próprio marido e
somente ele. Uma vez César33, componente do grupo, começou a falar sobre suas
idiossincrasias e das modalidades sexuais que gostava de praticar com sua esposa, ele as
descrevia utilizando-se de metáforas de parte de um carro para falar do corpo de sua mulher.
Em um certo ponto, um interlocutor, tentando atenuar a tensão que tal assunto gera, falou da
dificuldade que se tem para conseguir praticar sexo anal com a esposa (sexo que, em tese não
se praticaria com a de casa), já que César fizera antes uma comparação do ânus de sua mulher
33
Branco, vendedor, 45 anos.
54
- Só que às vezes elas fazem jogo duro... fica meio enferrujado! Respondeu o
outro.
- Mas, com cuspe e jeito, vai! E não deu para enferrujar com 15 anos de uso!
Sendo tudo isto falado em alto e bom tom, acompanhado de vários palavrões. César é
considerado, para os padrões do grupo da esquina, desbocado. Porém, ele é considerado boca-
suja porque fala muitos palavrões ou porque não tem medidas sobre o que fala, já que o uso
Vários mecanismos são utilizados para observação e manutenção das normas além
daquele que vacilou34 sem esculachá-lo, e aquele que dá este toque é somente aquele que é
considerado, pois ele é quem pode falar sem que seja entendido como uma grave ofensa.
Outro mecanismo utilizado para a observação e manutenção destas normas é mandar fuleira:
contar um “caso” semelhante àquele que se quer chamar a atenção, sem citar nomes, com o
vacilão35, mas presente sem torná-lo alvo de chacota, o que seria problemático, pois seria
(Alvito:2000; Lins & Silva: 1990; Almeida: 1995). A fuleira é comparável ao conceito de
34
Cometeu a infração.
35
Cabe lembrar vacilão é quem cometer insistentemente a mesma infração mesmo depois de ter
masculinos, porém ao se quebrar está regra há uma ameaça à estabilidade do grupo. Vamos a
dois exemplos: uma pessoa foi citada numa conversa por não participar das despesas do
aluguel do campo (R$ 3,00 cada um), do pagamento da lavagem das camisas (R$ 3,00 cada
um) e por tomar cerveja sem pagar nenhuma, Tonico em meio a uma conversa dizia:
- Porra, é só abri uma cerveja que o cara coloca o copo primeiro, na hora do
churrasco o cara come que nem um desesperado! O cara nem é do grupo e vem com um papo
de quem chegou tarde só para jogar no segundo tempo, aí não paga... a gente deve ter cara
de otário!
Em outra conversa, Tonico cita outro exemplo de alguém que pagava mais do que
consumia, e isto era visto como igualmente problemático, pois também colocava em risco o
equilíbrio das relações no grupo da esquina: Ele reclamava porque achava injusto alguém se
- É sacanagem fica na aba36 dos outros sem dar forra! O vagabundo só bebe e
sai fora... Eu cheguei e dei um toque no cara, eu fico puto com isso. Eu falei pro cara:
Malandro, não dá mole, senão vagabundo vai montar nas suas costas, aí pra sair é foda...
Receber mais do que se dá é tão grave quanto se dar mais do que receber, num verdadeiro
36
Ficar em posição de tirar proveito indevido dos outros.
56
sistema de prestação totais que nos propõe Mauss (1988), havendo a obrigação de retribuir o
que se recebe. Esta é uma forma de criar laços de amizades cuja manutenção é fundamental
Os que não obedecem a essas regras, que são claras para os que são no grupo da esquina, são
ou mal e comparações com outras partidas. A conversa é sempre de brincadeira, jocoso, o tom
aparentemente agressivo nada mais é do que galhofa: Fala-se alto, gesticula-se muito, os
membros são brandidos, mas ninguém sai ofendido, afinal, é sábado e o que se quer é um
1999:464). Este falatório, às vezes, parece uma feira, um pregão da bolsa: todos falam do
mesmo e quem está de fora nada ou pouco compreende. A comparação com uma feira ou com
um pregão da bolsa é proposital. À primeira vista nada se compreende, mas a partir de uma
observação atenta, percebe-se que há valores sendo negociados: quem joga mais, quem é mais
comedor de mulheres, mais esperto, etc. O ideal é jogar no sentido de exibir, porém o mais
importante não é ganhar, o importante é o prazer de exibir estes valores e, porque não dizer,
os dotes? E é com isso que se ganha reconhecimento e status entre seus pares. De uma certa
forma este jogo de status nos lembra o que Geertz chama de jogo absorvente as brigas de
galos balinesas, e parafraseando o autor, os homens colocam seus valores onde eles crêem
estar seu status (Idem:300-309). Neste pregão os excessos de falas e gestos abruptos são
quase sufocantes para quem pretende fazer uma observação-participante, afinal em uma
observação-participante há que se tentar sistematizar o que se ouve e vê, e nesse campo fala-
57
se muito e alto e os assuntos variam sem uma preocupação em manter um discurso coerente,
os gestos acompanham o falar, e como disse anteriormente, os braços são abertos e fechados
continuamente, o membro viril é apertado, como que brandido, a todo o momento. Um gesto
que é muito característico e utilizado para dar ênfase a um assunto é bater com mão uma
aberta na lateral da outra fechada, este gesto tem um efeito sonoro muito característico, estes
Bem, até aqui falei sobre como se fala, agora vamos ver sobre o que se fala.
Apesar das conversas girarem em torno de mulheres ou carros, o tema central são os próprios
homens! Pode parecer estranha e contraditória tal afirmação, mas ao analisar as histórias que
são contadas histórias, percebemos que o personagem central não é a mulher, seja ela real ou
não, ou um outro homem com quem se disputa o prestígio, mas o centro da história é homem
que a conta. Quando o assunto é mulher, as mulheres são quase sempre as mesmas: as
mulheres da rua. As situações variam, os tempos podem ser um passado próximo ou muito
distante, mas as características são invariáveis: elas são sempre espertas, volúveis e só querem
dinheiro. O grande desafio é se dar bem em cima delas. Quanto aos homens em posição
antagônica, podem ser um cliente, um vendedor, colegas do trabalho, que são transformados
em adversários que, depois de uma odisséia que envolve vários personagens são vencidos
um filtro imaginário que permite ver e narrar sua vida de acordo com
meu).
Embora o grupo da esquina seja pequeno, ele não é homogêneo, há dois principais
subgrupos porque durante todo o churrasco outros subgrupos se formam, porém não têm a
força de atração dos dois principais. Estes dois subgrupos são formados por afinidades que,
em geral, são laços de amizade estabelecidos fora da esquina: no trabalho, antiga vizinhança,
colegas do tempo de escola, etc. Há o subgrupo que é formado por dois irmãos (Carlos e
Júlio) e um amigo de infância (Pedro). Júlio e Pedro atualmente estudam juntos numa
faculdade em Madureira. O outro subgrupo é formado por William, Tonico e Zé37, que tem a
estrutura semelhante ao outro: dois irmãos (Tonico e Zé) e um amigo (William). William e
Tonico trabalham num projeto social no campinho onde acontecem as peladas com as
crianças que moram próximo. Os outros homens gravitam por entre os subgrupos, alguns
deles não moram mais no bairro e/ou só aparecem nos finais de semana para jogar a pelada,
mas que vão logo embora, ficando somente para o churrasco, mas não ficam até o final da
tarde, não têm mais fortes vínculos com os outros homens para que possam formar um
subgrupo mais consistente. Utilizando uma metáfora astronômica, eu diria que estes seriam
como satélites que são atraídos por astros maiores, que seriam os dois principais sub-grupos,
estes dois sub-grupos são o epicentro do grupo da esquina, são eles que aglutinam os homens
37
Irmão de Tonico, branco, 45 anos, motorista de táxi.
59
e formam a confraria por terem mais consideração. Os outros homens gravitam participando
maior tempo de fala e maior atenção: contam-se histórias e casos, havendo vários apartes que
geralmente corroboram com o que é falado, há tempo inclusive para performances ricas em
a uma feira-livre, e este falatório não está restrito ao grupo: conhecidos que estejam passando
no momento são chamados, aos gritos, para comentar o assunto em pauta, dar opinião, etc. Os
que têm menor consideração, têm pouco ou nenhuma atenção: quase sempre que alguém com
totalmente díspare e qualquer que seja o assunto, não é levado a sério, vira brincadeira. Pode
também acontecer de se começar a contar um caso e outro que tenha mais consideração
tomar a palavra dando uma versão diferente e trazer para si a atenção e deixar o bola
murcha38 de fora. Esta técnica serve também, para decretar a banimento de alguém do grupo,
mas nesta situação há um acirramento das brincadeiras e interrupções, mas sem ofender
diretamente a quem fala, pois isso poderia gerar conflitos de grandes proporções. Outra
técnica é o silêncio do grupo, demonstrando desaprovação pelas pessoas e/ou tema abordado,
pois entre os que gravitam há os que têm grande prestígio no grupo. Estes às vezes chegam,
pagam uma cerveja, tomam um copo, comem um churrasco e vão embora, agindo com o
requinte e a fineza que a etiqueta local exige. A sua consideração é percebida pelos
38
Pessoa de pouco prestígio.
60
comentários elogiosos que os que ficam fazem em torno de sua pessoa. E o que se fala sobre
eles?
malandra, nunca abertamente desonesta – roubar ou traficar, por exemplo, não são sinônimos
casado deve comportar-se segundo regras de equilíbrio, excesso de predação poria em causa
a estabilidade familiar, o que seria pernicioso para prestigio do homem (Almeida, 1995:49).
Sobre os mais novos que são solteiros, ao contrário, o que é alvo de admiração é a predação
Este deve ter um comportamento sexual predatório e de certa maneira, “gastá-la” antes do
casamento (idem, ibidem), nesta fase não ter dinheiro não é um grande problema, pois, a sua
capacidade de obter companhia feminina e seus favores sexuais são mais importantes que ter
dinheiro, tanto que entre os homens do grupo da esquina é comum contar casos e peripécias
dos tempos de solteiros ou adolescência, tempo este que não haveria necessidade de dinheiro.
colar com uma mina maneira40, entretanto este tipo de mulher é difícil de encontrar, porque
só tem pirata41, afinal, “Hoje em dia para colar ‘tá ruim porque elas só querem cara de
39
Obter companhia feminina.
40
Estabelecer um relacionamento estável com uma mulher amigável e compreensível com tal situação.
41
Mulher cujo comportamento sexual é agressivo e interesseiro. Somente preocupado com bens
materiais caros (carro, moto) e freqüentar lugares igualmente caros e que promova status. A Barra
da Tijuca quase sempre é citado como um lugar onde as minas piratas freqüentam.
61
carro!” A exceção seria se o cara duro colasse com uma mina com bala na agulha42 para
casado. O fato de ser casado é desvantajoso porque esta situação é vista como um limitador
dos prazeres da vida em função, entre outras coisas, do trabalho duro, vida sedentária e a
monogamia. A esposa seria uma Eva que faz o homem perder o paraíso da vida livre,
idealizado, tempo em que não haveria maiores preocupações com dinheiro e que era possível
ir para onde se quisesse, e, principalmente, não haveria mulheres para dizer quando regressar
e aonde ir. Entre os homens do grupo da esquina percebe-se que há uma utopia social de
esposa, na busca do prazer, sem responsabilidades económicas (idem). Nas conversas que
ouvi, um tema que se repetia com insistência: o tempo bom que não volta mais!
mais velhos: hoje os mais novos não dão às mulheres o que ela gostam a contento, em uma
palavra: sexo. E hoje em dia os caras só sabem dar uma de galo44, não sabem fazer sexo bem
feito, coisa que só eles saberiam dar. O sexo feito pela molecada de hoje em dia não é bem
feito, pois eles não sabem tratar a mulher com carinho, ou como se diz na esquina, não sabem
42
Boa condição financeira.
43
Manter economicamente.
44
Dar uma de galo é considerado um sexo de baixa qualidade por ser egoísta, porque a parceira
trabalhar a mulher. Este saber trabalhar a mulher é muito mais que ter relações sexuais, é
dominar técnicas de estimulação do prazer, que consistem em tocar e manipular com as mãos
e a boca algumas partes do corpo feminino, ou seja, uma relação com muita sacanagem. As
partes tocadas são descritas com detalhes ricos em metáforas culinárias, as partes dos corpos,
principalmente as erógenas, são comparadas a alimentos: das mulheres à frutas; dos homens à
legumes. São melões, limões uvas entre outras. Os homens, pepinos e cenouras, a única
exceção é a banana. Os cheiros e gostos são enfatizados, ouvem-se expressões tais como
comer, cheirar, lamber, mordiscar, chupar, os outros sentidos também são considerados
importantes: o tato para sentir arrepios e audição para ouvir sussurros inaudíveis. Estas
Como já disse anteriormente, para eles as mulheres antes eram mais pudicas e
vagabundo ficava maluco. Todo mundo queria sair com a mina. Para deixar botar o pau
nas coxas, porra! Só com muita idéia... E pra comer alguém só na Zona [de prostituição].
Nesta fala percebemos as dificuldades que havia para se obter favores sexuais na
época de adolescência, o recurso fácil para se obter tais favores era ir à antiga zona de
Zona do Mangue45 ou Vila Mimosa. É bom lembrar que aqui já não se trata de “favores”,
Segundo o que se fala na esquina, hoje a rapaziada teria mais facilidades em obter
favores sexuais, pois há uma maior liberalidade das mulheres de hoje em dia. O problema é
45
Atual Cidade Nova, onde se encontra a sede da administração do município, o Piranhão, que foi
que mesmo com as mulheres atualmente sendo mais dadivosas, os jovens só querem saber se
endoidar46 e não querem saber de mulher, com isso, há um suposto47 aumento do numero de
homossexuais masculinos o que faria que com as mulheres estivessem dando mais por haver
homens de verdade, por que tinham os elementos fundamentais para merecerem este título:
potência ou virilidade;
Neste tempo ideal havia também riscos ao se dobrar a vontade de uma mulher e
obter favores sexuais: era igual à lei da selva, matou tem que levar, ou seja, se chegasse ao
conhecimento dos pais que a filha estava mantendo relações sexuais, teria que se casar. Pois,
aí entra em jogo a honra da casa e o pai deve zelar pela honra da família, afinal the chastrity
and purity of his “own” women (i.e., wives, mothers, daughters) must be protected at all cost,
even if the cost is death. (Mirandé, 1998:40, grifo meu)48. Acontece, no entanto, que ao
conversarmos um pouco mais, ouvimos histórias (ou estórias?) que desmentem algumas das
46
Usar droga.
47
Este suposto sou eu quem diz, para o grupo isto é fato.
48
Tradução livre: a castidade e a pureza de “suas” mulheres (i.e., esposas, mães, filhas) devem ser
que são ouvidas ali. Histórias que falam de filhos não-reconhecidos e não são poucas as
histórias sobre abortos. Já ouvi, por exemplo, a história de um membro do grupo da esquina
que teria uma filha que ele não reconhece e nem manter contato com ela por que sua esposa
não permite, por esta filha ser fruto de um relacionamento extra-conjugal. O tom oscilava
entre o pilantra e o arrependido, passando pela vanglória malandra, o que tornava tal
malandragem era o único que parecia aceitável, já que ser malandro, de uma certa forma era
ser justo, o que é de fácil compreensão para quem conhece os valores que são compartilhados
pelo grupo em questão: ninguém mais fraco deve sair ferido, ou pelo menos muito ferido;
deve haver convencimento e jamais forçar (utilizar a força bruta) alguém a aceitar o que se
Na idealização dos tempos de juventude a união dos jovens era maior, pois a
rapaziada só queria curti49, não tinha esse negócio de pó50 e maconha, só a malandragem
fumava. Os bailes eram pacíficos, raramente tinham brigas, pois os caras iam ao baile com a
rapaziada para curtir e arranjar uma mina. Como supostamente havia minas para todos não
tinha por que brigar, afinal só há briga em festa que só tinha homem. E esta tese era
confirmada quando se lembrava das festinhas americanas, festas que aconteciam na casa de
mulheres, a comida. Havia tolerância com as mulheres que não levassem a sua parte, o
implícito é que elas por si só já eram parte da cota, se levassem uma amiga, melhor. Havia um
cálculo semelhante com os homens: os que levassem uma companhia feminina, desde de que
49
Aproveitar os prazeres da vida.
50
Cocaína.
65
não fosse sua mina, poderiam ficar isento de levar a bebida. Os homens que levassem outros
homens viravam alvo de chacota. As festas consideradas ruins eram aquelas que havia pouca
mulher e muito homem, pelo perigo de terminar em bebedeira e briga. Não havia droga
masculino quanto feminino) e da violência é por que hoje os homens não estão mais
preocupados com mulher, conseqüência do uso abusivo de drogas. Esta linha de raciocínio,
- O cara se endoida e não quer mais saber de mulher, aí fica valente e só quer
saber de porrada. (...) fica direto malhando o dia todo nessas academias cheias de boiolas
que ficam patolando52 os caras no banheiro. Só anda em bando para brigar... dão porrada
até em mulher! (...) Esses caras só querem ficar com uma montão de homem, ficar doidão.
Não querem saber de mulher, por isso que a gente vê tanto viado! Hoje em dia os caras só
querem saber de brizola53 e porrada, (...) o número de sapatão tá aumentando por causa
A droga é pela falta de desejo por mulher ou a falta de desejo é por causa da
droga? Ou a droga motiva a violência que, por sua vez, baixa o interesse sexual? Ou será que
a droga e a violência somadas levam à falta de desejo sexual que levaria ao aumento do
51
Cheirava.
52
Segundo o Aurélio: Gíria. Segurar firmemente com a mão; aferrar; bolinar com a mão. Geralmente é
utilizado para indicar uma prática homossexual masculina que seria comum em banheiros públicos,
em especial de cinemas e academias. O prefeito César Maia na sua primeira gestão ao fechar alguns
cinemas “poeirinhas”, os últimos que restavam, alegou que estes lugares eram um antro onde gays
iam para lá para patolar garotos que saíam da escola e freqüentavam estes cinemas eram patolado.
53
Cocaína.
66
número de homossexuais masculino e feminino? Nas conversas na esquina estas hipóteses são
as mais correntes e algumas das vezes eram defendidas ao mesmo tempo pela mesma pessoa.
A infidelidade feminina é um assunto que sempre está na pauta. Contam-se piadas e casos
ouvi uma história que envolveu dois membros do grupo da esquina: um foi o ricardão54 e
outro, o corno. Quando se tocava no assunto, que sempre era contada entre gargalhadas pelos
outros, Júlio, o ricardão encenava um falso constrangimento com a história e dizia que não foi
o único a comer e só comeu porque o cara não era parceiro de frente. O corno - era assim que
se referiam ao marido traído, nunca se pronunciava seu nome – era conhecido do grupo e após
descobrir que estava sendo traído passou a beber demasiadamente, arrumar confusões e brigar
na rua, for fim, tentou assaltar um banco e hoje cumpre pena por tal crime, e, segundo se diz,
fez isso porque estava revoltado com o chifre. Em tom de galhofa, Júlio é alertado que o
corno sairá da cadeia em breve, e ele por ser o principal responsável do infortúnio do marido
e sendo a infidelidade feminina um dos principais temores entre homens, seria de se estranhar
que um tema tão sério fosse tratado com excessiva jocosidade. Entretanto, ao que parece tal
jocosidade é justamente para quebrar a tensão que este assunto inspira. O que significa para
adequadamente seu papel de homem, pois deixou sua mulher fora de seu controle, mostrando,
54
Este nome está escrito com letra minúscula por não se tratar de um substantivo próprio, sim de um
se um calça-frouxa. A calça é onde se guarda os colhões, que junto com o pênis, são os
depósitos simbólicos da virilidade, e se ela está frouxa é porque o homem não está sendo
capaz de sustenta-lá. Ou seja, se a mulher deu para outro, foi por que este homem não foi
provedor tanto de bens materiais (alimentos, conforto, etc.) quanto de segurança e trolha55,
abrindo assim, espaço para outro homem, cedendo para o rival parte de sua honra. Em outras
homem, pois o estigmado (sic) com a transgressão feminina é o homem (Fonseca, 2000:153),
como já disse, algo a ser defendida sob duríssimas penas. Para o ricardão
(Nolascos, 2000:101),
com isso ele come a honra, come como em um ritual de antropofágico, onde a força vital do
homem comido passa para o comedor. Aliás, o verbo comer no português tupiniquim
Quanto ao corno, já que não foi capaz de manter sua honra, é desprezado. Esta
55
Segundo Aurélio: Chulo. Membro viril avantajado; pé-de-mesa. Aqui, satisfação sexual que tal
assim o porquê da forma nada solidária, até mesmo cruel, com que é tratado o infortúnio do
marido traído: ele não se mostrou digno de ser chamado de homem de verdade. Mas por que
brigar e assaltar?
Baseado no que lemos acima, vemos que este homem foi ferido de morte na sua
honra, não lhe restava outra reação senão partir para cima de seu oponente, morrendo junto
com ele ou pelo menos ferindo-o gravemente. Leal (1992) fala sobre como o suicídio é
Quando impossibilitados de trabalhar, para estes gaúchos esta morte [é] um ato de
dignidade, arrogância e liberdade. O trecho de uma poesia gaúcha sobre galo de rinha, onde
o poeta faz uma metáfora da situação do gaúcho incapaz de prover-se, com isso perde sua
Para este marido traído todos os homens que sabiam ou não da traição sofrida
seriam seus oponentes, reais ou imaginários, e a violência é um recurso usado para transmitir,
ou pelo menos, tentar convencer, que se tem disposição56 (Alvito, 2001:252), que ele ainda é
desesperado para tentar restaurar sua imagem pública, pois é no espaço público, na rua, que se
56
Estar pronto para defende ao grupo ou a si mesmo, independente do perigo que se apresente a sua
frente.
57
Brigar.
58
Se embriagar.
69
constrói e reconhece um homem de verdade. O assalto, por sua vez, foi o ato derradeiro de
bravura, é para quem tem disposição, coisa de sujeito-homem. No espaço carcerário este
delito que é respeitado e tratado com deferência pela ousadia de se enfrentar a segurança
bancaria fortemente armada no mundo carcerário. Aí, eu fico pensando: o marido traído
queria realmente levar a cabo o assalto ou queria ser pego e com isso restabelecer sua imagem
de sujeito-homem num novo mundo totalmente diferente do que o que ele vivia antes de sua
mulher traí-lo?
homem. Esta lógica faz com que os homens busquem sistematicamente inserção em práticas
coletivas através das quais irá, pelo desempenho, garantir para si visibilidade e status social. A
lealdade é uma destas experiências coletivas de que deve ser respondida publicamente, é o
que se espero num relacionamento entre homens. Uma história que ouvi na esquina nos
quanto sua família era importante para ele exaltando a união de seus parentes, principalmente
entre os irmãos. E de todos os sobrinhos e sobrinhas, havia uma que ele gostava de forma
especial por ser filha de uma irmã que era mais chegada a ele, esta irmã morou na sua casa
por um período quando estava passando por dificuldades econômicas, tal período fez com que
sua filha tivesse mais afinidades com a prima do que com as irmãs, e o com ele, tio que com o
pai, sendo seu confidente nas horas difíceis. Sua irmã e seu cunhado o procuram para pedir
conselhos e orientações quando acham que ela esta precisando. Pois bem, eis que um dia esta
59
Microempresário, aproximadamente 40 anos.
70
amada sobrinha foi apresentar seu namorado ao tio, segundo ele, seu primeiro namorado,
ambos tinham mais ou menos 15 anos. O zeloso tio preocupou-se em aconselhar sua sobrinha
que ele tanto amava, sobre os cuidados que ela deveria ter agora que estava namorando,
advertia: - Não dá mole, não; senão ele só vai querer te comer e sair fora, falava também de
cuidados sexuais, uso de camisinha, anticoncepcionais, gravidez, etc., mas ele fez questão de
nos dizer que fez tudo isso sem atrasar o lado do cara! Um cara que ele não conhecia bem,
Creio que este exemplo ilustra qual o significado da lealdade entre os homens –
um dos componentes da identidade masculina – pelo menos para o grupo da esquina. Escolher
entre uma mulher amada e um homem estranho não é tarefa fácil se a lealdade masculina ficar
em xeque. A lealdade ao grupo é total, os que não são leais são excluídos do grupo com
oportunidades de apostar sua masculinidade, já que está não se consegue de forma definitiva,
ela tem de ser testada e aprovada dia-a-dia para si e para os outros homens de seu grupo. No
confronto com outros homens ele pode aumentar seu prestígio se conseguir tomar a
masculinidade de outro, como já vimos acima. Porém, isto acarreta riscos, pois ela pode
também ser tomada pelo adversário. Afinal, vento que venta lá, venta cá.
Segundo Nolascos,
meu).
pública, onde se está exposto para avaliação, aferição e aprovação, ou não, de seu
desempenho, é vencendo-se pequenas batalhas com honra e louvor (idem: 97), o que obriga o
homem a estar sempre alerta, sempre ligado, na atividade60, estas pequenas batalhas que são
batalhas é através da troca de elogios e histórias (ou estórias) que todos contam e igualmente
acreditam, Giddens (1992:71) nos lembra que os homens querem status perante os outros
masculina, mas nem tudo são flores... há que se estar atento, pois, o perigo está a espreita! E
ele se insinua nos jogos de palavras que, se não se estiver atento, pode se cair em contradição.
Além do exemplo que dei acima na disputa que tive que empreender com João
para conquistar meu espaço no grupo da esquina, há aqueles que não se percebe se não se
estiver ligado, na atividade, descreverei abaixo alguns diálogos que são primorosos:
O jogo minho calá soa como minhoca lá. A minhoca é uma referência ao pênis e
seu discurso, por não ser de alcance de todos (por ser assunto de difícil domínio, polêmico,
etc.), por ser um assunto considerado chato pelo grupo ou porque o interlocutor quis estender
o tempo de fala além de seu prestígio pessoal. Qualquer que seja o motivo, o interlocutor deve
60
Ambas expressões querem dizer mais ou menos estar em estado de alerte.
61
Melhor calar.
72
estar atento e saber responder ao desafio, sob risco de ser desmoralizado perante o grupo e,
Esta frase é acompanhada de uma gestualidade que é fundamental para que ela
tenha sentido: a mão deve se estar sobre o pênis, ou pelo menos ter um dedo apontado para
indicar o aqui, local que o interlocutor deveria sentar-se, isto exige estar atento não apenas ao
que se fala, é preciso estar atendo principalmente ao tom com que se fala, é extremamente
importante estar ligado nos gestos durante a fala. Semelhantemente ao tracadilho: - O calor
que está fazendo até cavalo na bunda sua! A linha de raciocínio é a mesma.
Ao se perguntar alguma coisa deve se evitar o pronome como, pois na esquina ele
- Pau de gomo!
Este pau é mais uma vez referência ao pênis e o gomo, aos testículos.
Há uma infinidade de frases e palavras que poderiam ser elencadas aqui, mas cito
estes exemplos para se ter uma idéia dos meios para vencer as pequenas batalhas do dia-a-
dia, para ser digno de ser um homem de verdade perante a seus pares e, com isto, merecer
Dos vários dramas que são relatados ali, mudanças que o corpo sofre com o passar
As histórias são contadas como ouvi falar, me disseram, etc. O tom da conversa é
sempre anedótico, talvez por ser um assunto muito sério para o grupo, o riso pode exorcizar o
medo que tal tema inspire. Os casos são contados sempre se passando com uma amante que
tratar deste assunto, como um caso que foi narrado de um homem que após ter tido problemas
contínuos de disfunção erétil, se castrou, alegando que já que seu membro não prestava para
nada o melhor era cortar e dar ao gato... E isso contado às gargalhadas. Sinceramente eu
entre alguns membros do grupo, o Viagra. O nome da pílula não era pronunciado, falava-se a
que alguém havia comprado e dividido as pílulas com outros do grupo. A pílula era partida
em quatro partes que era tomada e quando iam sair com uma menininha62. O único que eu
ouvi falar abertamente que tomou o Viagra foi Sérgio63, que descrevia com riqueza de
detalhes o efeito do Viagra em seu membro, a descrição era feita de forma tão vigorosa e
prazerosa que chegava a ser patética. Alguns riam e outros ouviam atentamente ao relato,
porém, a maior preocupação era mostrar para os pares que ele tinha conseguido poderes
inimagináveis através de uma poção mágica, ao final do relato químico-anatômico, o tom era
triunfal. Triunfo sobre a mulher que sempre chega com vantagens no ato sexual. E em torno
das mulheres há um mito popular que diz que elas demoram mais a atingir ao orgasmo,
exigindo maior empenho e desempenho por parte do homem, este deve conhecer bem as
técnicas de controle sobre o corpo, tanto do seu quanto da mulher. Todas estas técnicas
sexuais que se compartilha ali têm como meta principal retardar o gozo masculinoe antecipar
62
Mulher jovem.
63
Taxista, branco, 36 anos aproximadamente.
74
o feminino, pois segundo reza a crença, se goza logo vai deixar a mulher na mão, porque elas
Por que uns tratavam o Viagra como se fosse uma droga ilícita, falando
reservadamente, enquanto um outro falava abertamente de seus efeitos? Creio que pelo fator
etário. Os que tratavam o Viagra às escondidas eram justamente os mais velhos do grupo, algo
em torno de 45/50 anos. Falar abertamente sobre o Viagra é mais grave do que admitir que se
faz uso de droga ilícita, é admitir em público que está impotente, ou sob risco iminente e
eminente de ficar impotente – o que para aquele grupo seria a mesma coisa, e, como já vimos,
perante tal situação somente um ato dramático, e às vezes, trágico, pode remediar
parcialmente a vergonha. Afinal es preferible morrir parado que vivir de rodillas64 (Mirandé,
1998:87), pois, estar castrado ou impotente é muito próximo. Sobre Sérgio na faixa dos 35
anos, não pairaria sobre ele o espectro da impotência, pelo menos em tese. Ele dizia que
pra tirar uma onda e ver qual é! Tal declaração não causaria dano a sua imagem de sujeito-
O partir da pílula teria pelo menos dois significados que creio valer a pena
destacar aqui. Este gesto gera uma comunhão pela cumplicidade, afinal ao aceitar um pedaço
é porque se necessita tanto quanto quem oferece, por isso, será criado um pacto de silêncio,
somado a isso, fica a impressão de que na realidade só é necessário ¼, pois ainda não se está
morto e, como diz Sérgio, é só pra tirar uma onda e ver qual é, e não por necessidade.
Há entre estes homens uma preocupação com uma invasão do público no privado.
O que estou chamando de invasão do público no privado, é certo um mal-estar que é gerado
64
Tradução livre: É preferível morrer de pé que viver de joelho.
75
nestes homens por não se saber o que fazer perante o aparato público que interfere na esfera
privada de suas vidas, notadamente na família, a relação entre marido e mulher e entre os pais
e seus filhos. A Delegacia de Mulheres é um exemplo do público que gera um mal-estar entre
os homens do grupo da esquina. Para alguns ainda é válido o dito popular que diz que em
briga de marido e mulher ninguém mete a colher. O lar para estes homens é a expressão
que as relações privadas são políticas, e que as relações opressivas entre homens e mulheres
se fazem presentes nas várias esferas da vida, e por isso deve haver leis que regulem estas
relações. Uma vez ouvi um membro do grupo falar com tom de reclamação:
- Hoje em dia não se pode nem dar um corretivo na mulher que tá arriscado
É bom lembrar que naquele grupo nunca ouvi alguém falar de forma positiva
sobre agressões físicas às mulheres, em especial a esposa. Para o grupo agressões físicas
podem acarretar alguns perigos maiores que ser preso: ser corneado em represália. Isto era
dito explicitamente àqueles que vez por outra tocavam no assunto de forma positiva. Esta
linha de raciocínio é a mesma de Fonseca (1991), no seu excelente artigo, Cavalo amarrado
também pasta, onde a autora mostra que na periferia de Porte Alegre, Rio Grande Sul, esta
expressão é utilizada com esta finalidade: o marido que não cumprisse seus deveres estaria
sujeito a represálias de suas mulheres e, que entre outras, ganhar uma guampa (os chifres)
seria uma delas, o fato de serem casadas (amarradas) não impediriam que tivessem outros
relacionamentos (pastar). E como se não bastasse este problema, a mulher tem um fórum
legítimo para defendê-la do pretenso todo-poderoso chefe da família, há agora uma ameaça ao
65
Ser preso.
76
dizer indignado que seu filho havia pedido o telefone da ABRAPIA66, pois, seus direitos de
criança estavam sendo violados porque seu pai havia dado umas palmadas nele. Segundo o
pai, o filho aprendeu ouvindo uma entrevista de alguém desta instituição na TV. O pai se
sentiu diretamente ameaçado, pois era sua autoridade paterna que estaria em jogo.
Suburbano Suburbano
adjetivo 1.relativo ou pertencente a subúrbio. Do lat. suburbanu.]. Adj. 1.Pertencente ou relativo a
adjetivo e substantivo masculino subúrbio. 2. Que mora em subúrbio. 3. Bras. Deprec.
2.que ou aquele que vive em subúrbio Que tem ou revela mau gosto. S. m. 4. Aquele que
3. Derivação: por extensão de sentido. Uso: mora em subúrbio. 5. Bras. Deprec. Indivíduo
pejorativo. que ou aquele que é pouco suburbano.
refinado, que revela ou tem mau gosto; Aurélio Eletrônico, Versão 3.0 novembro 1999, grifo
saquarema, cafona, brega. meu.
Houaiss Eletrônico, 2000, grifo meu.
A oposição Subúrbio x Zona Sul é marcante nos papos na esquina. Ela é sempre
apontada como o lugar dos ‘menos homens’. Por quê? Para respondermos seria interessante
É de domínio público, para cariocas e para os que aqui vivem, que ao se falar em
subúrbio, esta se falando de um espaço específico dentro da cidade do Rio de Janeiro, espaço
este que fica compreendido na parte norte da cidade e, principalmente os bairros que são
cortados pelas linhas férreas da Central do Brasil e da Leopoldina, ao mesmo tempo, além da
geográfica, o subúrbio também é uma categoria social, sinônimo de pobreza, mau gosto,
66
Associação Brasileira de Proteção da Infância e Adolescência.
77
subúrbio com aquele praticado no Rio de Janeiro, foi suficiente para que (...) formulasse a
Fernandes (idem) nos mostra que outros autores sempre que utilizavam a palavra
diferença com o fato de, nos EUA e na Europa, tanto os trens quanto
ibidem)
linha férrea; e
2. nunca ser utilizado para periferias de alto status situada na Zona Sul
subúrbio, seja pelo linguajar comum, seja pela imprensa. Para Fernandes esta situação
eu discordo, pois a história da ocupação recente da Barra da Tijuca ratificaria a sua “inclusão”
na Zona Sul. Na Barra da Tijuca não há trens e é um bairro de alto status social, o que é
bastante coerente com o conceito carioca de subúrbio. Embora Zona Sul e Barra da Tijuca
tenham status diferentes é bom lembrar que, enquanto a Zona Sul ainda mantém seu status
tradicional, a Barra da Tijuca rivaliza com a Zona Sul, por ter uma significativa concentração
relações pessoais, comunitárias e as tradições seriam mais fortes. Em seu trabalho sobre
Rio Janeiro.
Havia (...) uma forte preocupação por parte dos meus informantes de
ressaltavam também as diferenças entre as formas de sociabilidade entre Subúrbio e Zona Sul.
Diz William:
- Playboy da Sul não curte churrasco. Não conhece quem mora do lado. Para
E complementa Zé:
79
- E só se juntam para fazer rodinha pra... Fazendo gesto como quem segura um
canudo com uma mão para cheirar na outra, simulando consumir cocaína.
segundo eles estas normas morais são mais maleáveis, diferentemente dos padrões morais
suburbanos, onde os papéis sexuais seriam rígidos e bem definidos, onde homem é homem,
mulher é mulher... Na esquina são contadas várias histórias sobre maridos da Zona Sul que
entregam suas mulheres para outros homens para praticarem voyeurismo e, não raramente, os
cara também dão68. A maior parte destas histórias é contada na 3a pessoa, as únicas exceções
são os taxistas que contam suas histórias na 1a pessoa em tom de bravata. Vamos a duas delas,
a primeira de Sérgio, o mesmo que fala dos efeitos do Viagra e a segunda é contada por
Mauro69:
Outro dia, conta Sérgio, peguei um passageiro em Copacabana que queria ir até
o Centro, logo que o cara entrou percebi que o cara era viado. Ele sentou na frente e pelo
rabo-de-olho vi que o cara queria me palmear70, dei uma de bobo para ver qual era a dele...
Aí, ele puxou papo e veio com uma conversa mole pra cima de mim e mandou logo uma
dizendo que queria pagar um boquete e me pagaria um galo71... Como eu já estava no Aterro,
virei ali no Monumento aos Mortos [da II Segunda Guerra], o cara pagou o boquete dele e eu
peguei o meu galinho... Ele me disse que foi a melhor viagem de Copa ao Centro que ele fez,
que viadinho sem vergonha, né? Porra! Ô lugar para dar viado é Copacabana!
Faturei um galinho mole, mole. Por trintinha eu deixava ele pagar um boquete,
68
Têm contatos sexuais com aqueles homens que estariam transando com sua esposa.
69
Branco, 30 anos aproximadamente.
70
Neste contexto, sinônimo de patolar.
71
R$50,00
80
A história de Mauro:
quando dois viados fizeram sinal para mim: Um traveco72 e outro de [vestido] homenzinho.
Queriam uma corrida até o Galeão para pegar uma amiga, que devia ser outro viado. No
meio do caminho o que parecia homenzinho começou a me butucar73 e eu fiz de conta que
não estava vendo. De repente o cara me patolou e eu deixei para ver até aonde o cara ia...
ele conseguiu abrir minha barriguilha e pegar meu pau com uma mão só! Porra, que
habilidade! Ai ele começou a bater uma bronha74 em mim. Aí eu peguei o braço do cara e
perguntei qual era a dele e sabe o que ele me disse? Que só queria se distrair durante a
viagem. Eu perguntei o que eu ganharia com isso e ele disse que me daria trinta pratas. O
traveco ficava só olhando. De repente, o traveco começou a dar faniquito por que estava
atrasada.
Quando cheguei, estava ruim de estacionar, quando deu para parar o cara me
deu uma perna75 e queria troco... a corrida deu quarenta merréis76, mais os serviços de
bordo - eh, eh, eh –, ficava setenta pratas. O viado queria troco, mas eu não estava a fim de
dar troco nenhum. Aí falei que quando eles voltassem com a “amiga”, me davam mais dez
merréis e eu levava todo mundo de volta para Copa. Ele topou e assim que os dois entraram
e aquela porta automática do aeroporto fechou, eu saí fora... Pô, era uma Quarta-feira, dia
72
Travesti masculino.
73
Olhar enfaticamente.
74
Masturbar.
75
R$100,00
76
R$40,00
81
O fato de estes homens terem tido contato sexual com outros homens não afeta em
nada sua imagem pública de homem, estas histórias eram contatas e ouvidas com
naturalidade. Este tipo de contato sexual não contamina a imagem pública masculina no meio
do grupo da esquina por não ter havido durante o ato uma inversão de papéis sexuais. Afinal,
Sérgio e Mauro não assumiram um papel que os emasculassem, uma vez que foram eles que
tiveram os pênis tocados, o que garantiria a manutenção de sua virilidade. Para eles também
não haveria homossexualismo neste ato sexual: este é sexo feito por iguais o que para estes
homens isto não aconteceu, já que homem que se feminiliza não é um igual. Porém, o mais
importante nestas narrativas era que eles tinham levado vantagens com uso da malandragem
segundo o grupo da esquina, por não haver controle de vizinhos, ao contrário do Subúrbio,
onde as vizinhas fofoqueiras teriam este papel controlador, elas saberiam quem entra e quem
sai da rua, e a que horas. Saberiam também quem está comendo quem e quem está dando para
quem, estabelecendo controle sobre a moral e os bons costumes dos moradores da localidade.
Nas conversas na esquina, a Zona Sul aparece sendo o lugar onde as tradições que
mantêm vivo o espírito carioca não existem, entre outros motivos, por influência de costumes
77
Futebol de salão.
82
o porquê de tantas aventuras sexuais serem descritas acontecendo na Zona Sul, em especial
em Copacabana. Talvez este mito babilônico de Copacabana seja, em parte, por este bairro ser
famoso por abrigar várias boates e áreas de prostituição tanto feminina, quanto masculina
(Gaspar, 1985) e possuir uma das maiores redes hoteleiras do país, e ao mesmo tempo ser um
bairro do Subúrbio. O anonimato e a impessoalidade que Simmel (1979) nos aponta como
característica da metrópole possibilita uma liberdade que não seria possível em cidades
No grupo da esquina há um morador da Zona Sul e como ele gosta de dizer: Sou
Sendo alvo de brincadeiras por ser originário da Zona Sul. Ele também gosta de
repetir que tem uma pensão do governo da Itália por ter cidadania daquele país. Ao falar desta
pensão sempre faz críticas ao Brasil dizendo que aqui é uma bagunça, que o povo não reage
por que não tem educação. Ele mesmo exalta suas qualidades: sua ascendência européia, ser
da Zona Sul e sair com mulher bonita. E como reage o grupo da esquina a estas vantagens que
Ângelo teria para vencer as pequenas batalhas do dia-a-dia que são travados na esquina?
Após falar de como a Itália é boa com seus concidadãos, embora nunca tenha ido
lá, alguém do grupo pergunta por que então ele ainda está aqui no Brasil. Quando ele fala da
Zona Sul, lembram-no sempre que, apesar de todas as maravilhas de lá, ele está todos os
sábados no Subúrbio para bater um pelada. Quando Ângelo fala das mulheres do subúrbio,
diz que elas são sem modos e não tem trato estético (falam alto, falam palavrão e cospem no
chão) e físico (têm marca na perna de mosquito e de andar descalços) e deste jeito só podem
83
arrumar homem no Subúrbio... A resposta dada é: Não! Às vezes elas arrumam um otário da
Fazendo referência direta à situação de Ângelo que é casado com uma ex-
moradora dali, ela faz questão de passar os fins-de-semana com sua família, sendo este o
principal motivo dele freqüentar a esquina. Mas, segundo os homens do grupo, o motivo dele
estar ali todo fim-de-semana é por não haver este tipo de sociabilidade na Zona Sul. Uma vez
Eu, uma vez conversando com William, comentei que estava procurando uma
casa para mim e, logo, me deram várias indicações de onde eu poderia encontrar casa ou
apartamento próximo dali, porém, sempre com recomendações de que eu não fosse morar nos
conjuntos, como veremos mais abaixo. Os motivos que foram apresentados para morar ali
foram sedutores, foram descritas qualidades daquela localidade que beiravam ao paraíso: As
pessoas são amigas, todos se conhecem, só precisaria tomar cuidado com algumas senhoras
pescoçudas78, mas elas também ajudavam a manter a segurança, já que sabem quando uma
pessoa estranha está por ali; as coisas são baratas e há várias opções de lazer, sem falar nas
mulheres que me dariam molinho79 por eu seria carne nova no pedaço, porque as minas não
estão de bobeira, não! Por tudo isso eu não sairia mais dali, a exemplo de outros que
Há uma distinção feita pelo grupo da esquina e os moradores dos conjuntos80 que
carrega consigo estigmas que são claramente ditos nas conversas. Há um repertório de termos
78
Fofoqueiras.
79
Demonstrariam interesse sexual em mim.
80
Conjunto habitacional ou COHAB, como é mais conhecido, inaugurado nos anos ’70.
84
entre os homens do grupo da esquina que desclassificam os moradores dos conjuntos, o mais
utilizado é favelado e, segundo o grupo da esquina, o maior problema dos conjuntos seria a
criminalidade. A todo o momento comenta-se que lá o crime acontece sem que nenhum
morador faça nada, e não o fazem por impotência ou conivência. Esta linha de raciocínio é de
homens do grupo da esquina, o espaço em que eles moram são extensão de suas casas, e
emasculado, por que os homens que moram lá por não serem capazes de proteger seu
território por isso, são dignos de desprezo. Das várias histórias que ouvi sobre criminalidade
nos conjuntos uma se tornou conhecida pela opinião pública através de jornais: durante um
certo período ninguém que morasse ou visitasse os conjuntos poderia usar roupa vermelha
por proibição direta dos traficantes que estavam dominando a área por ser a cor de uma
facção criminosa rival. A área imediatamente fora dos conjuntos que compreende o
campinho, onde se joga a pelada faz parte da esquina e território de outros homens também,
não estava sujeito a esta ordem. Será porque os traficantes sabiam que realmente o campinho
não era seu território ou eles sabiam que naquele território havia outros homens que zelavam
pela ordem local e tentar impor seus ditames poderia dar início a uma briga que não seria boa
para seus negócios ilícitos? De qualquer forma, meses depois que eu terminei meu trabalho de
campo, houve uma carnificina após invasão de uma quadrilha rival à que domina os
sobre os conjuntos.
interna do grupo. Quando se sabe ou suspeita-se que uma mulher seja moradora dos
gracejos diretamente em voz alta, o que não é um comportamento usual naquele espaço. Elas
85
não são vistas como mulheres de homens de verdade, somente eles se vêem como dignos de
ostentarem tal título, para eles, elas estão sempre disponíveis, sexualmente falando, e, à
princípio todas as mulheres que moram nos conjuntos estão sob suspeição, excetuando as que
são conhecidamente esposa, filha ou namorada de algum contexto dos homens do grupo da
esquina.
Por volta das 10:30h, os homens que vão lá para participar somente da pelada já
estão a caminho de suas casas: uns pagam um pingoso, outros vão sem banho sendo, como já
vimos, alvo de críticas jocosas por não tomarem banho antes de ir embora, que segundo o que
autonomia que um homem tem perante a sua esposa, e, como avalia Zé, os que não ficam é
porque não tem culhão82 para ficar na rua até mais tarde e o mesmo comenta:
Esses cara são tremendo otário (sic)... Ficam fazendo o que a mulher manda...
depois que a mulher monta, não sai mais... Aí, compadre, é foda, não sai mais!!!
gestualidade: ele coloca os dedos em forma de “V” invertido na parte de cima do pescoço,
simulando alguém montado e curvando um pouco as pernas para dar a idéia de que a montaria
é pesada, tudo isso acompanhado de uma expressão facial que enfatizado o peso da montaria.
81
Título inspirado no subtítulo do filme “Alcatraz: fuga impossível”, estrelado por Clint Estwood.
82
Culhões, testículos como área que carrega simbolicamente a masculinidade.
86
Muita das vezes ouvem-se brincadeiras dizendo que suas mulheres não permitem
que fiquem até mais tarde porque estariam na rua sub judice83, "liberdade condicional" ou
"liberdade vigiada" e os que ficam, permanecem em estado de vigília por se julgarem alvo de
possíveis investidas para captura por parte de suas esposas. Eu chamo de estado de vigília
aparecer vou dizer para ele falar que não me viu..., ou seja, a todo o momento demonstra-se a
expectativa de uma iminente invasão do território por alguma mulher. E para confirmar tais
masculino) se aproxima discretamente para falar algo, podendo ser algum pedido de dinheiro,
aviso de que o almoço está pronto, avisar que a mãe vai a algum lugar, chamado para ir fazer
compras ou algo parecido. Para o grupo, porém é sempre a patroa85 chamando para dentro de
casa, lugar que deve ser evitado por ser um espaço feminino e feminilizante por excelência,
onde, sob domínio da mulher, ele se tornaria uma figura sem vontade, emasculada, ou como
se diz na rua, um babaca86. A casa contrasta com a rua, espaço onde a masculinidade é
encenada, perante esta ameaça há somente duas alternativas: ser um homem de verdade ou um
verdade, honrando as calças que veste, afinal el hombre debe tener ‘los calzones’87
(Mirandé, 1998:89).
83
Sob apreciação judicial, ou seja, dependente de uma decisão de sua esposa.
84
O filho.
85
Esposa ou companheira.
86
O babaca, na escala de valores é o nível mais baixo. No Aurélio babaca é também sinônimo de
vulva.
87
O homem deve vestir ‘as calças’ na família. Tradução minha.
87
próprias mulheres como que empurram os homens para fora da casa (Almeida:185) e, este
sai, por ver o espaço doméstico como ameaça potencial a sua masculinidade, assim
Nas conversas quando se fala das artimanhas para se sair de casa é uma narrativa
de uma odisséia, há sempre uma estratégia e muita astúcia para enganar suas mulheres, e estas
estratégias são elaboradas e contadas com riqueza de detalhes, elas podem contar com a
colaboração de um amigo que telefona ou vai ao portão chamar ou os filhos que também
podem ser cúmplices voluntários ou não, tanto confirmando alguma estória, quanto sendo
pretexto para saída: o pai diz que vai assistir a um jogo de futebol do filho, por exemplo.
Talvez pelo contexto da esquina ser um contexto onde não há a disputa evidente
um batalha com as mulheres, onde a astúcia é uma das qualidades mais admiradas. Quanto
mais elaborada e inteligente for a desculpa, mais admiração desperta entre os componentes do
grupo da esquina. O autoritarismo para sair não está descartado, entretanto já ouvi
- O cara fica tratando a mulher assim, depois não sabe porque a mulher some ou
o ricardão aparece...
ou
88
- Hoje em dia não dá para tratar a mulher assim, se não, está arriscado ir parar
na Delegacia Mulheres.
possibilidade dele fazer parte do grupo, no entanto para uma mulher, jamais para o grupo da
esquina. Elas são vistas como uma ameaça à amizade entre homens, já que elas querem
sempre separar os homens mantendo-os dentro de casa e para isso elas utilizam elaborados
estratagemas: mandar o filho chamar para casa; para comprar alguma coisa; fazer companhia
Os limites entre a casa e a rua não são tão nítidos, pois eles são fronteiras sociais,
logo são móveis de acordo com os valores que o grupo estabelece. Numa conversa em que se
falava sobre uma pessoa que era conhecida por todos e que havia tempos que não era visto por
lá, lembravam o seu mau comportamento por ter levado uma de suas amantes para a rua (ou
Pô, esse cara era um vacilão! Lugar de amante é fora daqui é lá na rua!!!
Ele falava isso e gesticulava apontando para fora da esquina, para onde era na
realidade o lado de fora da a rua, não a rua geográfica, mas a rua social, lá sim era lugar de
tais transgressões, transgressões estas que poderiam comprometê-los com suas respectivas
famílias. O mapa social do território da esquina tem um plano segmentado que só conhecendo
melhor o grupo da esquina seria possível ter uma idéia de seus limites nos possibilitando
visualizar sua cartografia afetiva (Niemeyer, 1998) deixando claro que entre a casa e a rua
pais os chamam, mas sua permanência é rápida, os poucos que por ali ficam são os filhos de
Tonico,os filhos de outros homens do grupo muito raramente eram vistos, senão de passagem,
e falam com seus pais rapidamente. Esta distância talvez seja pelo fato de o jovem dever
89
obediência ao pai, o que em público torna sua relação tensa, uma vez que sua imagem
masculina é confrontada com a de outro homem que ele não pode ou não deve enfrentar que é
o seu pai. Sempre que um filho está junto do grupo da esquina um homem adulto, não
sexual, colocando o jovem à prova, esperando-se que ele saiba se sair bem nas respostas, pois
é assim que se forja um homem de verdade para que um dia ele possa ter a honra de fazer
homens, esta competição acontece porque os homens do grupo sentem o risco de ter sua
masculinidade perdida, conquistada por outro homem, deixando, assim, de ser um homem de
verdade, e, conseqüentemente, não terem mais a honra de fazer parte do grupo da esquina. Há
aqueles que mesmo não sendo integrantes do grupo podem transitar no seu interior, estes
homens são como membros honorários, os considerados ou contextos, eles são poucos e sua
Os outros homens, os que não fazem parte do grupo da esquina, são sempre vistos
como adversários ou inimigos potenciais. Porém, é importante salientar que os outros homens
que formam seus grupos próximos são tratados com respeitos, mesmo sendo adversários na
disputa da masculinidade eles são ao mesmo tempo, aliados potenciais contra aqueles que
moram fora da área. Numa disputa com os de fora, todos se unem contra os inimigos comuns.
em que no momento da partida a honra da área do grupo está sendo defendida. Quando os
times jogam entre si, se formam por afinidades diversas, tais como compadrio, parentesco,
amizades de trabalho ou escola, etc. Quando vem um time de fora, todos se juntam contra o
adversário comum, pois como já disse, é a honra da área que está em jogo e por isso os
aliados potenciais se reúnem contra o inimigo real. Não se aumenta nem se diminui o status
numa partida de futebol, mas durante o jogo, apenas durante o jogo, aposta-se tudo. Pelas
acaloradas discussões, tem-se a impressão que haverá uma briga generalizada a qualquer
momento. A tensão do clima é proporcional à distância que o pessoal do time mora, pois para
Durante a partida o campo é invadido pelo técnico e pela torcida, a pressão sobre
o juiz é enorme, mesmo sendo ele morador dali, não é poupado pela torcida local, muito
menos pelos visitantes, que sempre se acham injustiçados pela arbitragem. Ao final da partida
tudo volta a paz, uns poucos reclamam mais demoradamente, mas tudo termina em
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confraternização no bar do Kapau regado a churrasco e cerveja. Após isso o grupo da esquina
vai para seu território, a esquina, para fazer seus comentários e contar suas bravatas.
Foto 18. Durante a partida o campo é invadido pelo técnico e pela torcida.
Foto 19. Durante a partida o campo é invadido pelo técnico e pela torcida. O juiz
é homem de cabelos brancos e camiseta azul ao fundo. Com um copo de cerveja
na mão, um membro do grupo da esquina mostra qual o local correto do pênalti.
sendo eles os jogadores que representam a área ou não, são exaltadas as qualidades do grupo
e as mancadas dos adversários. Nestas conversas, os homens do grupo da esquina falam dos
outros em tom de galhofa e desprezo, eles são sempre os otários, e, como vimos ser otário
92
deslealdade, etc.
sociabilidade: no primeiro nível estão os que eles chamam de parceiros de frente o segundo
nível são os colegas que, em geral, são companheiros de alguma sociabilidade, alguém por
quem se tem ‘amizade’, mas não intimidade. Estes níveis vão determinar as conversas e as
atividades fora da esquina. Uma ida a um prostíbulo tem gradações de acordo com o nível de
amizade: todos podem ser chamados para tirar uma onda. Em inúmeras vezes eu fui
convidado para fazer parte destes passeios, porém, quando se tratava de ir a um prostíbulo em
que o cafetão ou a cafetina, ou uma prostituta eram conhecidas, e, com isso, não se paga nada
ou paga-se com desconto – uma cortesia da casa, somente os amigos mais próximos eram
chamados. Nesta relação há outros valores além de sexo por dinheiro, há o prestígio
conseguido pela relação que se estabeleceu neste local. Este prestígio pode ser ostentado e
dividido com os amigos, os que mais ostentavam este tipo de prestígio eram os taxistas, que
segundo os mesmos:
amizade e o pessoal convida a gente para ir na parada sem cobrar nada, às vezes é um
Nas relações estabelecidas na esquina o dinheiro serve para nivelar a todos por
igual: amigos e colegas. A preocupação com os gastos no churrasco nos demonstra isso. No
entanto, quando são atividades fora do espaço da esquina, as diferenças são estabelecidas: o
lazer com a família, uma ida a um puteiro sem pagar, somente os parceiros de frente são
4. Considerações finais
O que um churrasco num subúrbio carioca poderia nos dizer sobre masculinidade?
Ao longo deste trabalho meu intuito foi ressaltar como um churrasco na esquina é
muito mais que um grupo de homens que se reúne depois de partidas de futebol para
conversar, beber e comer carne. Estes encontros de homens numa esquina, muito comuns nos
finais de semana nos subúrbios da cidade do Rio de Janeiro, para olhos mais desatentos
podem não significar muita coisa a não ser um momento de lazer de homens que durante a
semana trabalharam, que cumpriram seus papéis de marido, pai, trabalhador, e que com seus
descontração nos revela um momento tão importante e duro quanto suas obrigações semanais:
constantemente colocada à prova, pois ela é uma construção social que precisa ser
Aqueles homens nos revelam que não é possível ser homem sozinho, já que a
masculinidade além de não ser de posse definitiva é também coletiva, ela não tem valor em si
mesma, ela tem de estar exposta à inspeção do grupo, sendo revalidada continuamente,
mesmo que com isso se esteja sobre o risco – real ou imaginário – de perdê-la ou tê-la tomada
por outro homem. Ser homem significa sempre correr riscos e não há alternativa para isso.
Neste sentido, para o grupo da esquina, ser homem para eles, entre outras coisas, é estar em
espaço público, na esquina, para avaliar e ser avaliado constantemente pelos seus pares.
masculinidade não poderia ser jamais um espaço feminino e/ou feminilizante, como o interior
homens do grupo da esquina poderiam realizar o churrasco em seu quintal, pois moram
próximo do campinho e os membros daquele grupo não são pessoas estranhas e em casa,
teriam mais conforto e melhor estrutura. No entanto, faz-se necessário a demarcação física e
disputam o espaço. Ainda quando numa festa na casa de um dos membros do grupo da
território masculino, onde nenhuma das mulheres que estava na festa entrava, pois ali havia
gestos, conversas, gargalhadas que sinalizavam a quem pertencia aquele pequeno espaço
dentro da festa.
verdade; passa a ser um espaço com gênero masculino na medida em que este espaço é
lavado, cercado e recheado de elementos masculinos, que não apenas os próprios homens,
mas símbolos diacríticos para estes homens que masculinizam o espaço. Estes homens ficam
num espaço que é especialmente preparado por eles para este fim, eles não poderiam ficar em
um espaço qualquer. Há outros espaços em que os homens são maioria e nem por isso são
territórios exclusivamente masculinos, pois eles não foram preparados para este fim. A
esquina é preparada para isto e seus limites são criados para deixar evidente quem pode ficar
dentro e quem deve ficar de fora do território. O que encontramos na esquina são símbolos
que excluem de dentro para fora: gestualidade espaçosa; palavras e falares chulos e em alto
tom, cadeiras estrategicamente espalhadas, etc, ou seja, coisas de homem, pelo menos
identificadas como tal tanto pelo grupo da esquina quanto pelos transeuntes. Nos espaços
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homens competem com outros homens, numa tentativa de conseguirem honra e louvor. Nesta
competição são criados limites que deixam claro quem pode ou não permanecer ou pertencer
conforme pôde ser observado no grupo da esquina, identidades como, por exemplo, de gênero
grifo meu).
Por isso, internamente, para “Nós” – os homens de verdade – estes limites são
reforçados e mantidos sob forma de celebração e exaltação ao grupo, lembrando sempre que
estar ali é um privilégio para poucos, somente para os homens de verdade. Para “Eles” – os
outros homens que não são de verdade – gestos, palavras e algumas barreiras físicas, como a
água do pingoso, as cadeiras, a mesa do churrasco e os próprios corpos são utilizados para
homem de verdade é leal aos outros homens, mas acima de tudo, leal aos homens de seu
grupo de sociabilidade.
Uma vez na esquina, a interação com o grupo levou-me a perceber que para tentar
compreender o que é ser um homem de verdade para aquele grupo, eu teria de prestar atenção
compartilhadas pelo grupo e saber, com isso, quando uma apalpada na genitália – gesto
comum entre alguns grupos de homens em espaços públicos – não é somente uma coceira ou
contrário do que aparenta os gestos e palavras. Algumas dessas demonstrações são estranhas a
quem não está atento aos códigos do grupo: empurrões e palavras de provocações são às vezes
demonstração de afeto e carinho, porém estes afeto e carinho podem ser demonstrados com
beijos e abraços, o que causariam incredulidade ao mais ortodoxos, porém isto deixa claro que
é do que valores que lhes são atribuídos. Com isso podemos dizer que ninguém é
Para o grupo da esquina somente eles e uns poucos membros honorários são
moram nos conjuntos, são alvo de desconfiança e descrédito, pois eles não tiveram e não
terão a oportunidade de demonstrar seus valores e mesmo que mostrem, estarão sob
suspeição. Estes homens moram próximo, e por isso são aqueles que competem pela
masculinidade, eles são justamente os principais alvos de críticas e têm sua masculinidade
questionada. Segundo os membros do grupo da esquina, eles não são capazes de manter a
ordem no local onde moram e também não são capazes de prover suas famílias de bens
O perigo que paira sobre estes outros homens é que sua virilidade pode ser tomada
a qualquer momento por outro homem, ameaça que, aliás, paira sobre qualquer homem,
colocando-os em constante competição entre si. Um dos mais temidos resultados do mau
desempenho da masculinidade é que sua mulher pode sair de controle e deixar que outro
98
homem se aproxime dela. Esta ameaça é a todo tempo lembrada no grupo da esquina através
de brincadeiras ou por casos contados sobre traição de esposas que destruíram a reputação de
outros homens. Na competição pela masculinidade, quem perde a batalha fica sem o que é
considerado o bem mais importante para um homem: sua honra. E esta, uma vez perdida, o
Como a prova pública de masculinidade é na rua entre seus pares, os homens são
levados a demonstrar que honram as calças que vestem, que não são um calça froxa – o
afinal el hombre debe tener ´los calzones` en la família88 (Mirandé, 1998:89), pouco lhe resta
sobre mulher e futebol, o grupo da esquina faz este mito cair por terra, pois o discurso
essencialmente narcísico: eles falam de si para si. Em outras palavras, os homens do grupo da
esquina falam sobre homens para outros homens, mesmo quando falam sobre mulheres, eles
necessários para que se saiba como deve se comportar um homem de verdade, as várias
conversas que ouvimos nos dão uma idéia disso. Nestas conversas o Subúrbio da cidade do
Rio Janeiro é idealizado como locus ideal para se construir a masculinidade, por exemplo. A
Zona Sul, cujo paradigma é Copacabana, é o território de homens que têm comportamento
88
Tradução livre: O homem tem que vestir ‘as calças’ na família.
99
experiência que vivi na esquina, nem a experiência real dos membros do grupo da esquina,
mas uma interpretação baseada em minha observação de campo. Assim, neste texto procurei
demonstrar que há uma masculinidade que é idealizada por praticamente todo homem e que
na prática, como vimos, os papéis não são tão rígidos assim e no cotidiano eles podem se
cotidiana, na esquina ele é lembrado e afirmado a cada sábado em encontros em torno de uma
churrasqueira. A necessidade desta ritualização a cada sábado é por ser a masculinidade frágil
e vigiada, tanto por homens quanto pelas mulheres, criando uma contínua expectativa do que
um homem de verdade é ser como Sísifo: todo o tempo ele tem que rolar uma pedra morro
acima, mas como o peso da pedra é maior que o dele, o empurra para baixo, tendo com isso
masculinidade: com sal, fogo e carne se faz o churrasco; com palavras, gestos e corpos
ao se comer a carne preparada por outros homens o que está sendo comido é a essência destes
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