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Nobert Elias em seu livro “O Processo Civilizador” evidencia essa ideia dos conceitos de
infância no Antigo Regime. A forma como é concebida atualmente a infância é um
conceito ocidental moderno, que se transforma e é concebida no final do Antigo
Regime. Para nós pode parecer incomum, que uma criança de apenas 4 anos, aprenda
a tocar violino e cravo e aos cinco anos componha minuetos e outras peças complexas.
Mas, para Leopold Mozart, no século XVIII, era completamente aceitável e
interessante que fizesse com seu filho.
O pai de Mozart explorou todo o poder criativo de seu pequeno filho para adquirir
uma pequena fortuna. O que fez com que Mozart passasse a maior parte de sua
infância e adolescência viajando. Devido ao enorme sucesso, que Leopold obteve
exibindo o filho, levou-o a organizar uma tournée mundial pelos palácios e cortes da
Europa, apresentando o prodígio e levando toda família, mostrando a situação peculiar
enquanto outsiders.
“Tocava piano como um adulto, fazia todos os truques que lhe eram
pedidos como, por exemplo, tocar com o teclado coberto, ou com um
dedo apenas. Assim como as tournées de concerto dos artistas
contemporâneos, a viagem era um empreendimento comercial. Ao
mesmo tempo, para ele e para o filho, era uma fonte de completa
realização.” (pág 69)
Esta infância atribulada, porém, teve uma forte influência sobre sua personalidade.
Alegre e encantador, Mozart ficava a vontade logo após ser apresentado a alguém,
entretanto, achava muito difícil formar amizades mais duradouras e profundas. Sua
infância o tornara um homem superficial em suas relações.
É que não vás cedo para o túmulo, como o filho de Lubeck (pág 84)
Desde a infância Mozart vivia em dois mundos sociais- não cortesão, de seus pais e dos
aristocratas da corte. Ele nunca se sentiu confortável no mundo cortesão. Claramente
continuou um outsider, a experiência individual do artista que extrapolou as expectativas do
campo da produção e consumo de arte de seu tempo, nutrindo em relação a tal mundo um
antagonismo crescente e uma revolta em relação a Salzburgo e sua corte.
A corte que era sustentada pelo terceiro estado, só vivia de lazeres e festas, na maioria
das vezes, tendo assim a música como principal instrumento de entretenimento da
aristocracia. Ser um músico oficial da corte era, então, naquela época, o único meio
para se consolidar como músico. Um artista tinha que ser dependente, no caso da
nobreza, que ditava regras na Europa. A função inicial da música era agradar os
senhores e senhoras da elite. Ela tinha que se adaptar ao modo de vida dos grupos
estabelecidos. A obra de Mozart foi profundamente influenciada pela sociedade
aristocrática. Como um burguês a serviço da corte, Mozart lutou por sua emancipação
dos aristocratas, sendo eles seus patronos. Tentou isso com seu próprios recursos, não
obtendo grande êxito.
Leopold havia educado o filho para a carreira de músico em uma sociedade de corte,
mas não agradava a Mozart a se submeter a isso. Mozart não conseguia um emprego
em Paris e cada dia mais dependia de um aristocrata seu superior, que controlava seu
trabalho. Em Salzburgo um músico era considerado como um pasteleiro, cozinheiro ou
um criado do “libré”.
Em 1781 foi o ápice de sua revolta pessoal contra a subordinação como serviçal, o que
resultou no rompimento com o arcebispo. Ao abandonar a corte, decidiu tentar a vida
como um artista autônomo. Mozart assim deu um passo incomum para a época, mas
que foi fundamental para sua produção musical. Ele passa de arte do artesão em
Salzburg para a arte de artista autônomo em Viena.
Mozart estava correndo um grande risco quando rompeu com o seu patrono, pondo
em jogo seu reconhecimento social. Não fazia parte do aspecto comum da época um
músico trabalhar de forma independente. Ao fazer isso, ele não tinha planejado ser um
artista autônomo, isso foi uma consequência da sua insatisfação na corte em
Salzburgo.
Ao falar de Mozart ouvimos sempre expressões como “gênio inato”, talvez por seu
despontamento em tenra idade e “capacidade congênita de compor”. Se dissermos
que uma característica é inata, queremos dizer que é geneticamente determinada[...]
Mas é simplesmente impossível para uma pessoa ter uma propensão natural,
geneticamente enraizada, de fazer algo tão artificial como a música de Mozart. (pág
58)
Para muitos isso é tido como obra divina, era como seu pai pensava e transmitia para
seu filho como algo inato\hereditário. Essas afirmativas não explicam a singularidade
de Mozart. A consciência não é inata a ninguém, e sim no mínimo o potencial humano
para formar uma capacidade para a consciência. Essa capacidade forma uma estrutura
específica através da vida de uma pessoa e sociedade. Essa consciência individual é
específica à sociedade em questão. Isto se vê na consciência artística de Mozart, em
uma sintonia peculiar com a sociedade de corte. Neste aspecto, sobretudo o trabalho
do sociólogo é importante para a leitura de uma biografia como a de Mozart. Para
compreender os elementos que estavam imbricados e limitados entre os indivíduos e
o contexto social. Sem dúvida seria melhor evitar este conceito de gênio inato.
Mozart não conseguiu realizar suas aspirações. Ele queria ser reconhecido ainda em
vida. Foi o que ele sempre sonhou, não cogitava ser reconhecido apenas em gerações
futuras. “A vida faz sentido ou não para as pessoas, dependendo da medida em que
elas conseguem realizar tais aspirações” (pag13)
Acrescido a essa sensação de não realização, Mozart também passava por uma fase no
casamento difícil. Assim, dois fatores privaram o sentido a vida de Mozart- a perda do
reconhecimento do público e o arrefecimento do afeto da esposa. No fim, Mozart vivia
em sentimento de solidão e intuía a morte. Talvez até a desejara e escreveu o Réquiem
para si mesmo.
“Mas não há dúvida de que sua solidão redobrou. Talvez ele tenha
simplesmente desistido. "O rápido declínio final de Mozart", escreveu um de
seus biógrafos, "após longos períodos de trabalho intenso raramente
interrompidos por doenças ou indisposições; sua breve agonia, quase
precipitada; sua morte súbita após um coma de apenas duas horas — tudo isso
pede uma explicação melhor do que a fornecida pela medicina tradicional.”
(pág 10)
Mozart faleceu aos 35 anos com uma sensação que sua existência foi um fracasso.
Podia ser um gênio em vida, mas ainda assim se sentia um perdedor. Com suas
características maníacas-depressivas e paranoides que não foram superadas ao longo
da vida e foram até se agravando, devido a seu contexto social. O que mais ele
desejava era ser reconhecido socialmente pelas pessoas. Devido a todo sofrimento em
Salzburgo, a vida corrida em Viena, ele não conseguiu se realizar como artista
autônomo e essa foi a grande frustração que pode ter ocasionado a sua morte
precoce.
“A tragédia de Mozart, que em parte foi deste tipo, fica facilmente oculta dos
ouvintes pelo caráter sedutor da música. Isto prejudica nosso envolvimento
com ele. Não pode ser muito correto separar desta maneira o artista do
homem, retrospectivamente. Deve ser difícil, afinal de contas, amar a arte de
Mozart sem sentir um pouco de amor pelo o homem que o criou.” (pág 14)
Essa é a tragédia da vida de Mozart, sua vida e obra tem grande importância mundial,
inclusive por ser percursor em atividades autônomas para músicos. Foi quem abriu
portas para Beethoven. Porém a sua genialidade, criatividade e perfeccionismo para o
campo musical, não incitaram autoconfiança, perdurando pela vida sua personalidade
difícil e o sentimento de fracasso. Com uma obra tão incrível que transpassa gerações
e com uma abordagem sociológica, não pretendo fazer essa dicotomia entre homem \
artista puramente. Prefiro supor, que muito dessa sensação de fracasso advinha do
fato de ele não conseguir transpor o que ele desejava devido aos limites de seu
contexto social. E sua personalidade tinha caráter mais corajoso ao tentar se
emancipar do que de derrotista.