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A FÉ E A ROCHA: AS IGREJAS ESCAVADAS DE LALIBELA

Nas montanhas setentrionais da Etiópia, na cidade de Lalibela, 11 igrejas


escavadas revelam parte da trajetória histórica e religiosa deste povo, considerado um
dos mais antigos da humanidade. Conti Rossini, historiador italiano, descreve a Etiópia
como um “museu de populações”. Isto nos dá uma direção da complexidade e a
antiguidade das etnias que habitaram e habitam o território etíope.

Dentre várias histórias sobre a origem deste país, uma conta que a Etiópia foi
fundada por um descendente direto de Noé, cujo filho criou a primeira cidade etíope,
Axum. Instituiu-se uma poderosa dinastia, cuja monarca mais conhecida é a rainha
Maqueda, ou rainha de Sabá, Interessada nos conhecimentos e na famosa sabedoria do
rei Salomão, a referida monarca viajou rumo a Jerusalém. Esta visita é retratada no texto
Bíblico 1 Reis, capítulo 10 v1:3.

Maqueda teria retornado ao seu país convertida ao judaísmo e grávida do próprio


rei Salomão. Ela deu a luz à Menelik. Ao atingir a maioridade, Menelik foi conhecer o
pai em Jerusalém. E trouxe na bagagem de volta a Arca da Aliança, relíquia sagrada que
abriga em seu interior as tábuas dos 10 Mandamentos, dadas por Deus a Moisés.
Acredita-se que a Arca se encontra até hoje na cidade de Axum, na Igreja Santa Maria
do Sião.

Com a morte da rainha, Menelik assumiu o trono com o título de Imperador e rei
dos reis da Etiópia, fundando a dinastia salomônica.

No século XII, o príncipe Agaw apoderou-se do trono etíope, dando assim


origem à dinastia Zagwe, que governou entre 1137 e 1270. A capital Zagwe, Roha, foi
posteriormente chamada de Lalibela em homenagem ao rei mais conhecido desta
dinastia, Gebre Mesqel Lalibela, que governou entre 1185 e 1225. Foi no plano
religioso que os Zagwes se destacaram, sendo atribuída àquele rei a construção das 11
igrejas escavadas de Lalibela, verdadeiros monumentos ao cristianismo.

Os cristãos tinham por tradição peregrinar a Jerusalém pelo menos uma vez na
vida, como os mulçumanos fazem a peregrinação à Meca. Porém, durante o reinado de
Lalibela, Jerusalém estava dominada pelos árabes e se tornara perigoso aos cristãos
seguir a tradição. O rei decidiu, então, construir uma réplica de Jerusalém em seu reino.
Foi assim que ordenou a construção das Igrejas de Lalibela. De acordo com a
hagiografia do rei, Lalibela esculpiu as igrejas durante um período de vinte e quatro
anos, com a ajuda de anjos.

Afresco de Gebre Mesqel Lalibela

Esculpido num complexo rochoso localizado a 2630 metros acima do nível do


mar, na base do Monte Abuna Yosef, o complexo consiste em dois grupos principais de
igrejas ao norte do rio Jordão: Biete Medhani Alem (Casa do Salvador do Mundo),
Biete Mariam (Casa de Maria), Biete Maskal (Casa da Cruz), Biete Denagel (Casa das
Virgens), Biete Golgotha Mikael (Casa do Golgotha Mikael, onde está enterrado o
corpo do rei Lalibela); e ao sul do rio, Biete Amanuel (Casa de Emmanuel), Biete
Qeddus Mercoreus (Casa de São Mercoreos), Biete Abba Libanos (Casa do Abade
Libanos), Biete Gabriel Raphael (Casa de Gabriel Rafael), e Biete Lehem (Casa do Pão
Santo). 

A décima primeira igreja, Biete Ghiorgis (Casa de São Jorge), fica a oeste do
grupo sul, porém conectada por trincheiras. A passagem por este sistema de trincheiras
e túneis traz uma dimensão espiritual à caminhada física: as subidas e descidas fazem
uma alusão à jornada humana de descida ao inferno e subida ao céu.
A estrutura das igrejas e seus sistemas hidráulicos foram parcialmente
determinados pela geologia da região. O maciço rochoso é principalmente composto por
dois tipos de basalto vulcânico. Os blocos monolíticos foram esculpidos de cima para
baixo, com uso de ferramentas simples como cinzéis, machados e lâminas. Conta-se que
os trabalhadores primeiro isolaram o perímetro, escavavam o entorno, para então
estruturar a construção principal. Trabalhavam na área externa para depois trabalhar no
interior da igreja. Para evitar inundações de rios subterrâneos e lençóis freáticos, os
construtores escavaram canais de drenagem e trincheiras. Os telhados das igrejas
monolíticas inclinam-se no mesmo ângulo das rochas nas quais foram esculpidas,
promovendo ainda mais a drenagem.

Biete Ghiorgis, a mais conhecida das igrejas e única cruciforme


As igrejas seguem o costume ortodoxo de ter uma porta em cada um dos lados
oeste, norte e sul, exceto onde as formações geológicas forçaram modificações.
Algumas portas e janelas possuem estilos arquitetônicos característicos do império
Aksumite, que reinou ao norte da Etiópia e na Eritréia até o século VIII, antecedendo a
dinastia Zagwe. Este renascimento arquitetônico no século X em Lalibela pode ter
surgido para legitimar o governo dos reis da dinastia Zagwe, fazendo uma ligação visual
com o império anterior. A igreja Biete Amanuel demonstra o estilo de esculpir da
arquitetura Aksumite: construção em camadas, vigas horizontais com argamassa e
pedras, criando uma alternância na superfície. Janelas e portas são emolduradas por
vigas de madeira, outra forte característica da arquitetura Aksumite e a janela central
ganha a forma de estela.1

Biete Amanuel, com estilo de esculpir da arquitetura Aksumite

Embora a maior partes das igrejas possuam apenas decoração geométrica, o


Biete Golgotha Mikael exibe entalhes em baixo relevo de figuras humanas e o Biete
Mariam tem a figura de cavalheiros, interpretados como santos ou o próprio rei
Lalibela. Esta igreja mantém também cenas bíblicas de cores vivas. Quase todas as
igrejas delimitam seus espaços internos usando molduras e cordas, ou ainda tapetes nos
chão, rudemente talhado, aumentando ou diminuindo a altura, para delinear diferentes
áreas sagradas.

1
monumento monolítico feito em pedra vertical.
Interior de Biete Mariam com decoração geométrica

Pinturas no interior da igreja

Até os dias atuais, Lalibela é um centro de peregrinação, lar de uma grande


comunidade de padres e freiras ortodoxos. Mas não é somente o caráter religioso que
atrai milhares de visitantes anualmente a Lalibela. Foco de grandes esforços de
conservação e manutenção, as igrejas escavadas são, desde 1978, Patrimônio Mundial
da Unesco. O início da civilização etíope se funde com o início de toda a humanidade.
REFERÊNCIAS

BIBLIA, A.T. Gêneses, 1 Reis. Bíblia King James. São Paulo: Sociedade Bíblica Ibero
Americana, 2001.

BRANCO, Alberto Manuel Vara. Do Reino de Axum ao Reino da Etiópia (século I DC


ao século XVII): a força e o isolamento do Cristianismo na África do Norte e Nordeste.
Millenium, 2015.

NIANE, Djibril Tamsir. História Geral da África, IV: África do século XII ao XVI. 2ª
edição. Brasília: Unesco, 2010.

SOPOVA, Jasmina. Roha The Wonderfull. Unesco Digital Library. 2008.

WINDMULLER-LUNA, Kristen. The Rock-hewn Churches of Lalibela. Department


of Art and Archaeology, Princeton University. New Jersey. Setembro, 2014. Disponível
em: https://www.metmuseum.org/toah/hd/lali/hd_lali.htm. Acesso em 01 Mar. 2021.

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