Você está na página 1de 5

RESENHA:

Passagens da Antiguidade para o Feudalismo – Primeira Parte


(Perry Anderson)

O tema central da obra são as divisões regionais do Mediterrâneo e da Europa, explorando o


mundo social e político da Antiguidade Clássica, a natureza de sua transição ao mundo medieval e
as resultantes estrutura e evolução do feudalismo na Europa. Baseia-se na leitura dos trabalhos
disponíveis de historiadores modernos.
Para melhor entender o texto, é importante conhecer um pouco mais o seu autor. Perry
Anderson é um historiador e ensaísta político marxista inglês, professor de História e Sociologia na
Universidade da Califórnia e editor da Left Review. Sua formação política data de 1956, quando
ingressou na Universidade de Oxford e passou a militar em grupos de esquerda na faculdade.
De uma forma geral, a transição da Antiguidade para a Idade Média e a configuração do
mundo feudal vinculou-se a crise do Império Romano e às invasões bárbaras. Contudo, Perry
evidencia as diferenças entre a Europa Ocidental e a Europa Oriental, com sua análise abrangendo
desde a Antiguidade Clássica até o sistema socioeconômico desenvolvido, com o sistema escravista.
Perry inicia a sua argumentação levantando questões sobre a limitação do Leste e do
Ocidente na Europa. Coloca que a Europa é uma criação da Idade Média, sendo confinada a metade
ocidental do continente, excluindo a análise da metade oriental.
Tratando do modo de produção escravo, o autor informa que a gênese do feudalismo
permaneceu sem estudo e ressalta que os predecessores do modo feudal de produção foram o modo
de produção escravo em decomposição e os modos de produção dos invasores germânicos.
Expõe que o modo de produção escravo foi uma invenção decisiva do mundo greco-romano.
Este modo de produção existiu sob várias formas no Oriente Próximo, como uma condição
juridicamente impura e não predominante. Assim, foram as cidades-Estado gregas que
transformaram a escravidão de sistema auxiliar para um modo sistemático de produção.
Na Grécia, os escravos foram utilizados pela primeira vez na manufatura, na indústria e na
agricultura, além da escala doméstica. A completa perda da liberdade formou uma subpopulação
que, inversamente, elevou a cidadania grega. Essa mudança jurídica foi o correlato social e
ideológico do sucesso econômico, liberando os proprietários de terra de suas raízes rurais.
O estado escravo separou a residência e o rendimento, pois o produto excedente da classe
possuidora podia ser extraído sem a sua presença na terra. A riqueza da classe urbana proprietária
repousava sobre o excedente que rendia a presença desse sistema de trabalho. Que pese a situação
do escravo, esse modo de produção proporcionou avanços no aparelhamento econômico.
A civilização clássica foi de caráter colonial, com as cidades-estados se reproduzindo pelo
povoamento e pelas guerras. O saque, o tributo e os escravos eram os objetos centrais do
engradecimento. A principal fonte de escravos era a guerra, por meio dos prisioneiros,
estabelecendo um mecanismo de dependência.
Tratando da Grécia, informa que depois do colapso da civilização micênica houve uma
regressão econômica e política. Contudo, com a lei aristocrática arcaica coincidiu o reaparecimento
do comércio e do prosseguimento da urbanização. O advento dos tiranos rompeu a dominação das
aristocracias, utilizando o ressentimento dos pobres e constituindo a transição para a pólis.
A nova ordem conteve o crescimento das propriedades nobres, estabilizando as pequenas e
médias propriedades, sendo acompanhada por uma nova administração política. Ganhou destaque
os hoplitas, grupo guerreiro advindo da classe média agricultora das cidades.
Esparta foi a primeira cidade-Estado a incorporar os resultados sociais da nova estrutura
política e econômica, tendo a sua constituição como a mais avançada socialmente de seu tempo,
com o primeiro direito de voto hoplita. Outras regiões foram mais lentas em seus progressos,
dependendo das tiranias como fase intermediária para o desenvolvimento.
A introdução da escravidão em escala maciça foi decisiva para o advento da civilização
clássica grega. O apogeu das cidades-Estado baseou-se na escravidão como mercadoria, valendo-se
do baixo preço, fazendo com que a pólis clássica tivesse uma volumosa população escrava, maior
que o número de cidadãos livres. Era a força de trabalho escravizada que suportava toda a forma e
substância da pólis e a sua marcha típica de expansão, por meio da conquista militar e do tributo.
Atenas se destacou pela democracia direta. Contudo, a estrutura social não foi suficiente
para gerar uma supremacia imperial. As minas de prata financiaram o seu poder naval e a produção
de moedas garantiram a superioridade monetária. Mais uma vez, verifica-se na história aspectos
econômicos e políticos atuando em proveito de uma dominação.
A ascensão do poder ateniense, nas costas e ilhas, gozava de simpatia das classes mais
pobres porque instalava regimes democráticos, embora não fossem incluídos no sistema político. As
contradições atenienses permitiram que cidades mais oligarcas do interior da Grécia se unissem, sob
a liderança de Esparta, contra a hegemonia ateniense. A falta de terras interiores enfraqueceu
Atenas, reduzindo a resistência a coligação de rivais terrestres.
Tratando do mundo helênico, o autor coloca que a ascensão da Macedônia deveu-se a
anexação de minas de ouro trácias, que garantiram o aporte financeiro, e o sucesso dos exércitos,
baseado em inovações como a renovação da cavalaria, ligada a infantaria leve com mobilidade. A
civilização helênica deu forma ao modelo histórico do Mediterrâneo oriental, tendo sido
estabelecida com soldados, administradores e mercadores gregos e macedônicos, com aumento das
transações comerciais, decorrente do investimento do ouro da Pérsia por Alexandre.
No império helênico, as cidades eram gregas no modelo, mas permaneciam orientais no
padrão. Os governantes helênicos herdaram a tradição autocrática das civilizações do Oriente,
introduzindo uma ideologia na autoridade real, com a divinização dos monarcas. Assim, nenhuma
lei impessoal poderia emergir onde a vontade arbitrária do governante era a fonte das decisões.
Para Perry, a ascensão de Roma marcou uma nova expansão urbana distinguindo-se pela
evolução constitucional da cidade. Contudo, lutas das classes possibilitaram a criação do tribunato
da plebe, uma representação corporativa da massa popular dos cidadãos. Tais lutas eram conduzidas
por plebeus enriquecidos, para promover seus próprios interesses.
Os pequenos proprietários jamais deixaram de existir, mas foram sendo empurrados para
locais mais remotos e precários, com os nobres expandindo seus domínios para o interior. A
introdução do latifúndio escravo em larga escala foi uma inovação econômica decisiva, abrindo o
Ocidente para a agricultura latina.
A mão de obra escrava para enormes explorações deu a Roma o poder sobre o mundo
Mediterrâneo. As guerras vitoriosas proporcionavam mais cativos que eram distribuídos às aldeias e
propriedades. Havia uma espécie de ciclo, pois enquanto que as guerras traziam terras, tributos e
escravos; os escravos, os tributos e as terras forneciam o aparato para a guerra.
No campo jurídico, o conceito de propriedade absoluta foi decisivo na criação de
jurisprudência distinguindo a mera posse (o controle factual de bens) e a propriedade (pleno direito
legal dos bens). No campo militar, o recrutamento constante reduziu a classe dos pequenos
proprietários; e o vínculo entre legionário e comandante passou a ter um viés de reabilitação
econômica para o primeiro e de avanço político para o segundo.
A última República foi marcada pela miséria dos camponeses e a desordem militar,
provocando o imobilismo do governo da nobreza romana na administração de seus preceitos sob as
províncias, tornando-o impróprio para dirigir um império cosmopolita.
A passagem da cidade-Estado para o império universal foi realizada com marcante êxito sob
o Principado. Neste, o exército foi reduzido e convertido a uma força profissional permanente,
tendo o recrutamento suspenso; o proletariado urbano foi apaziguado com distribuição de cereais;
um ambicioso programa de construção foi lançado; e um corpo de bombeiros foi criado.
O Principado significava a promoção de famílias municipais italianas às fileiras da ordem
senatorial e a mais alta administração, com o senado perdendo a autoridade central do Estado.
Preservava o sistema legal clássico romano, superpondo os novos poderes do imperador no campo
da lei pública, sendo subsequente a crescente provincialização do poder central do Império. O
Império foi consumado com a concessão da cidadania romana a quase todos os habitantes livres.
Paralelamente, a insuficiente mão de obra escrava era fornecida pela periferia bárbara. Nesse
contexto, o autor especula, por haver pouca evidência, que parte da deficiência de mão de obra foi
minimizada pela procriação de escravos. O modo de produção escravo não era desprovido de
progresso técnico. Sem grande repercussão, o moinho e a colheitadeira são exemplos de invenções.
O primeiro representou o uso de força inorgânica na produção e a segunda acelerou a colheita.
A superestrutura imperial proporcionou a infraestrutura da escravidão e impediu o
crescimento da empresa comercial. O Estado podia expandir-se, sendo, de longe, o maior
consumidor do império, levando pouco benefício para a economia urbana e um obstáculo para o
setor manufatureiro. O volume e o peso do Estado tendiam a sufocar a iniciativa comercial privada
e a atividade empresarial. Um Estado grande e pesado atrapalha o dinamismo econômico.
Prosseguindo, o autor informa que problemas políticos domésticos e as invasões estrangeiras
trouxeram sucessivas epidemias, enfraquecendo as populações do império já diminuídas pelas
guerras. Agravando o problema, as terras eram abandonadas e a escassez no abastecimento da
produção agrícola aumentava. Como uma solução ao problema, o recrutamento foi reintroduzido.
Grande número de bárbaros incorporaram ao exército, suprindo muitos regimentos de elite.
Esta situação deslocou a aristocracia senatorial do papel tradicional no sistema político, passando o
poder imperial para o oficialato profissional do exército. O processo foi auxiliado pela mobilidade
social advinda das novas vias de promoção militar. O centro do poder político deixou de ser a
capital mudando para o campo militar de áreas fronteiriças, tendo como razão o papel das
províncias balcânicas no fornecimento de recursos humanos para o exército. O vigor militar e
burocrático dos novos governos completou a estabilização do Estado imperial.
O senado aumentou e criou uma nova elite patrícia dentro de si. A expansão do Estado foi
seguida por um retraimento da economia, evidenciada pelo declínio estatístico na população e pelo
abandono de terras já cultivadas. Estava havendo uma gradual ruralização do império. Com a crise,
o relacionamento entre o centro e a periferia se inverteu, o primeiro procurava persuadir o segundo.
Nas condições recessivas do império, o trabalho escravo se tornava cada vez mais raro e
incômodo, sendo convertido pelos proprietários de terras em servidões dependentes do solo,
resultando no surgimento e na ocasional predominância do rendeiro camponês (colono). Com a
formação do colonato, o sistema econômico corria basicamente ao longo do relacionamento entre o
produtor rural dependente, o senhor e o Estado, não resultando em impulsos tecnológicos. Contudo,
a escravidão não desapareceu, pois era imprescindível para o sistema imperial, que se assentava,
ainda, sobre o fornecimento desse tipo de mão de obra.
As cidades do oriente eram mais numerosas e preservavam sua vitalidade comercial em
extensão maior que as do ocidente, refletindo, de certa forma, a diferença existente entre as classes
de proprietários que existiam em cada região. De certa forma, essas diferenças contribuíram para o
fato do Oriente não ter guerras civis, enquanto o Ocidente passava por repetidas lutas internas. Estes
levantes combinavam rebeliões contra a escravidão e o colonato.
Ao tratar do cenário germânico o autor expõe que as tribos germânicas possuíam um modo
de produção comunal, desconhecendo a propriedade privada. Com o comércio com os romanos
surgiu uma influência que promoveu disputas entre as tribos e acelerou diferenciações sociais e
níveis mais elevados de organização militar e política. Nesse contexto, vários guerreiros germânicos
se voluntariaram para compor os regimentos romanos.
Sobre as invasões, Perry informa que elas assolaram o Império Ocidental se desdobrando em
duas fases sucessivas, fragmentando a unidade econômica, política e militar da região. As invasões
não se limitaram às regiões diretamente contíguas às suas regiões originais. A principal questão das
comunidades invasoras era a da disposição econômica das terras, afetando pouco a estrutura da
sociedade romana.
A comunidade romana manteve o seu aparelho administrativo e sistema jurídico. Com isso,
dois códigos jurídicos subsistiam, aplicados a cada respectiva população. Além disso, a religião
cristã consagrou o abandono do mundo subjetivo do clã, adotando o arianismo. Com relação à
escravidão, ela foi preservada junto com outras instituições rurais, incluindo o colonato.
A segunda onda de invasões germânicas diferiu da primeira, de vida curta, em seu caráter,
pois determinou o mapa do feudalismo ocidental. A sedimentação cultural da segunda onda de
conquistas foi mais profunda e duradoura que a primeira, pois dispunham de volume e de espaço
para construir formas sociais mais complexas e duradouras no Ocidente.
A mudança da grande propriedade agrária foi, provavelmente, maior na segunda onda de
invasões. Contribuiu para isso o colapso do governo romano, que minou a estabilidade do
instrumento básico de colonização rural latina. Contudo, não é possível estimar a proporção da
combinação de propriedades nobres germânicas, de arrendamentos dependentes, de pequenas
propriedades camponesas, de terras comunais e da escravidão rural.
Politicamente, a segunda onda de invasão marcou o fim das leis e administrações dualistas,
desmoralizando o legado jurídico romano. O abandono das tradições da Antiguidade clássica levou
a uma regressão do nível de desempenho dos Estados. Como exemplo, a cunhagem de moedas de
ouro desapareceu, como consequência das deficiências de comércio endêmicas com o Leste
bizantino e também das conquistas árabes.
Por fim, a colisão e dissolução dos dois modos primitivo e antigo de produção produziu a
ordem feudal que se disseminou por toda a Europa medieval, O feudalismo foi a síntese histórica do
que ocorreu no período de domínio greco-romano, sendo o resultado específico, na Europa
Ocidental, de uma fusão dos legados romano e germânico, após séculos de pacífica absorção pelos
povos germânicos. O mundo romano foi gradualmente conquistado.

Você também pode gostar