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07/12/2020 A família no Brasil colonial

A família no Brasil colonial


27 de novembro de 2015

Para o historiador, pesquisar sobre a família no Brasil Colonial não é um trabalho simples. Começa pela de nição
aparentemente óbvia do que é família. Daí seguem outras questões: o que se entende por família hoje é o mesmo que
no passado? Existem diferenças e semelhanças entre elas? Quais? Que mudanças ocorreram e por que?

Conceito de família
Há quem considere família um fenômeno natural/biológico mas isso não contempla os diversos modelos de família
constituídos em diferentes sociedades. O conceito ocidental mais difundido – o de família nuclear, composta por pai,
mãe e lhos e vinculada à coabitação – também é falho pois não dá conta dos múltiplos arranjos familiares existentes
hoje e no passado.

Trabalhar esse conceito em sala de aula requer, em primeiro lugar, que o professor evite tomar o modelo vigente na sua
própria sociedade como “normal” e, por extensão, considerar os outros tipos como “errados” ou de menor importância.
Além disso, uma mesma família pode sofrer novos arranjos em sua estrutura causados pela morte de seus membros,
separações, novos matrimônios, inclusão de lhos de outro casamento ou de outras pessoas consanguíneas ou não.
Esses arranjos evidenciam que o conceito de família não se de ne, necessária ou exclusivamente por laços de
parentesco consanguíneo e nem por unidade residencial ou doméstico. Um grupo de amigos pode coabitar em um
apartamento sem, contudo, constituir-se em uma família.

A diversidade de padrões familiares encontrados em diferentes sociedades e suas transformações ao longo do tempo
demonstram o caráter dinâmico e histórico desse conceito. O conceito de família como o de infância são ideias
historicamente construídas.

O jantar, Debret, c. 1820. Apesar da riqueza da família desse senhor, somente ele  come
com garfo e faca. A esposa só possui uma faca. As demais pessoas comiam com as mãos.

O modelo patriarcal

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Os estudos referentes ao tema da família na história do Brasil Colonial enfatizaram o modelo de família patriarcal,
normalmente compreendido como sinônimo de família extensa. Gilberto Freyre, em Casa-grande & Senzala (1933) foi o
grande idealizador da noção de família patriarcal considerando-o modelo e padrão do Nordeste açucareiro.
Posteriormente, Antônio Cândido estendeu esse padrão a todo território brasileiro denominando outros arranjos como
“não-familiares”.

Na década de 1980, a antropóloga Mariza Corrêa, fez duras críticas a Cândido e Freire. Segundo ela, a presença de
outras formas de organização familiar torna impossível reduzir a família unicamente ao contexto do engenho. Suas
críticas estenderam e aprofundaram as pesquisas levando os historiadores a pensarem a família no plural e com uma
variedade de arranjos.

Seja como for, a família foi a base da estruturação da sociedade colonial e sua presença e interferência na colonização
se sobrepôs ao Estado:

“A família e não o indivíduo ou o Estado, teria sido o verdadeiro fator colonizador do Brasil, exercendo a justiça,
controlando a política, produzindo riquezas, ampliando territórios e imprimindo o ritmo da vida religiosa através dos
capelães dos engenhos. Podia se sobrepor até mesmo ao rei de Portugal, que reinava sem governar no trópico. Nas
casas-grandes, os lhos, a mulher, os agregados e os escravos estariam inteiramente subordinados ao patriarca
onipotente. A família patriarcal era constituída a partir de casamentos legítimos, mas o domínio patriarcal se ampliaria
através da mestiçagem e de lhos ilegítimos, resultado do poder sexual do senhor sobre suas escravas e mancebas.”
(FARIA, 2001).

Castigos domésticos, Rugendas, 1822-1825. Enquanto a família do senhor se distrai entre si, o
senhor aplica o castigo da palmatória em uma escrava.

A gravura de Debret, “Funcionário público saindo de casa com a família”, tem servido para representar um certo tipo de
família em que o homem é o chefe e senhor de sua mulher, lhos e empregados. A ordem de precedência é reveladora
do modelo familiar. Ele segue na frente, depois os lhos mais novos, a mulher já esperando outra criança, sua criada de
quarto que leva a bolsa da senhora, as amas, o criado do patão e mais alguns escravos domésticos. Debret esclarece
que esse costume alterou-se durante sua estada no Brasil, passando os homens a dar o braço às mulheres. A cena diz
respeito à sociedade urbana do Rio de Janeiro, no início do século XIX, mas não devia ser muito diferente em outras
grandes capitais da colônia.

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Funcionário público saindo de casa com a família, Debret, c. 1820.

Cecília Meireles, em Romanceiro da Incon dência, relata um caso em que o poder do chefe de família estendia-se à vida
de seus membros. Conta a poeta que o rico minerador Antônio de Oliveira Leitão, morador de Vila Rica, mantinha sua
jovem lha fechada em casa, conforme os costumes da época. Procurava para ela um noivo de família importante,
quando descon ou que a lha estava apaixonada por um rapaz de condição social inferior. Passou, então, a vigiá-la
com mais rigor. Um dia, na véspera do Natal de 1720, viu a lha agitando um lenço que estendia no varal. Pensou que
era um gesto combinado, marcando um encontro com o rapaz. Continua a poeta:

“Ai de mim, que suspeitaram / que lhe estaria a acenar!

Sacudia o meu lencinho / para estendê-lo a secar.

Lencinho lavado em pranto, / grosso de sonho e de sal,

de noites que não dormira / na minha alcova a pensar,

– porque o meu amor é pobre, / de condição desigual.

“Era o mês de dezembro, / pelo tempo do Natal.

Tinha o amor na minha frente, / tinha a morte por detrás:

desceu meu pai pela escada, / feriu-me com seu punhal.

Prostrou-me a seus pés, de bruços, / sem mais força para um ai!

Reclinei minha cabeça /em bacia de coral.

Não vi mais as nuvenzinhas / que pasciam pelo ar.

Ouvi minha mãe aos gritos / e meu pai a soluçar,

entre escravos e vizinhos, / e não soube nada mais.

(Cecília Meirelles, Romanceiro da Incon dência.)

O patriarcalismo, onde imperou, deve ser matizado. A história registra muitas senhoras de engenho que, com a morte
do marido passaram a administrar os negócios e os escravos gozando de prestígio e respeito social como foi o caso de
Adriana de Holanda, matriarca de uma das mais importantes famílias da capitania de Pernambuco no século XVII.
Outro exemplo, Antônia de Meneses, do Recôncavo baiano, com a morte do marido, no ano de 1757, assumiu a che a
da família e do engenho onde viviam 130 pessoas entre lhos, agregados e escravos.

Houve, ainda, mulheres que, independente da morte do marido, tornaram-se chefes de família e de engenhos. Foi o caso
de Dona Elena, na região de Matoim, e de Dona Ana Sutil, na região de Beira Mar, ambas senhoras de engenho, na Bahia,
século XVIII, que ostentavam o título de Dona – marca de distinção hierárquica na sociedade colonial.

Outros modelos de família na história do Brasil


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Na cidade de São Paulo e algumas regiões de Minas Gerais, no nal do século XVIII e XIX, predominou a família nuclear,
constituída por pai, mãe e lhos. As pesquisas revelaram que um número signi cativo de residências eram che adas
por mulheres. A ausência do marido por longos períodos, envolvido nas bandeiras, na exploração do ouro ou no
comércio ambulante levava a mulher a administrar a casa, os escravos e a produção, a quitar dívidas e rmar
casamentos.

O censo por domicílios de 1774, no Tejuco, Minas Gerais, à época da célebre Chica da Silva, registrou o total de 510
residências, das quais 229 eram che adas por mulheres sendo que 197 eram negras forras e somente 32 eram
brancas.

A formação da família raramente se dava pelo casamento legal cujo acesso restringia-se à elite branca. A situação
mais comum era o casal passar a viver junto, constituindo família, independente da formalização do casamento.

A presença do concubinato, um grande número de crianças ilegítimas e abandonadas eram comuns e acabavam por
gerar outros arranjos familiares. Os homens, em geral, reconheciam seus lhos fora do casamento e, se fosse lho de
uma escrava, era comum conceder-lhes a alforria no momento do batismo.

Não eram raras as famílias juridicamente mistas, constituídas por escravas ou forras e homens brancos ou pardos
livres. Para se constituir laços familiares também não era necessário viver sob o mesmo teto. O sentimento parental ia
além das paredes da casa-grande e da senzala.

Família pobre em sua casa, Debret, c. 1820. A família se restringe à viúva pobre e sua
lha. A única escrava entrega à jovem o dinheiro obtido por algum serviço nesse dia.

Famílias de escravos no Brasil colonial


No período colonial no Brasil e também no período monárquico, o número de escravos homens sempre foi
proporcionalmente muito maior do que mulheres escravizadas. Mas o fato de não haver mulheres para todos os
homens, não signi cou que havia promiscuidade entre os cativos e nem que os laços afetivos fossem efêmeros.

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Ao contrário do que se supunha, os escravos no Brasil colonial, apesar da opressão do cativeiro, constituíam famílias
estáveis, havendo até aqueles que se casavam na igreja. Os estudos têm demonstrado, também, que famílias de
escravos podiam ter acesso à terra para o cultivo de roças e uma casa diferenciada das senzalas coletivas.

A interferência do senhor sobre a constituição de famílias entre seus escravos não era expressiva e praticamente se
limitava a impedir matrimônios entre escravos de donos diferentes. A escolha do cônjuge e dos padrinhos de crianças
era prerrogativa dos escravos e não dos senhores. Nem mesmo a suposta atuação paternalista dos senhores sobre
seus escravos no Brasil colonia, através do apadrinhamento foi comprovada pelos estudos mais recentes. Constata-se
que, em todo período de escravidão no Brasil, praticamente nenhum escravo foi batizado pelo seu senhor.

Interior de uma casa do baixo povo, Guillobel, c. 1820. Observe a cobertura de Casa de negros, Rugendas, 1822-1825. Em um único cômodo construído de sapê
pindoba, o chão de terra batida, o recipiente para água com as cuias e as redes e teto de folhas, mora a família de escravos. Ela dispõe de algumas galinhas e
uma pequena roça.

As famílias de escravos e libertos podiam ter outras formas de composição com ou sem casamento. Ana de Jesus,
escrava forra que vivia em Vila Rica, possuía bens e escravos e se casou, no dia 9 de janeiro de 1745, com Tomás de
Freitas, que era seu escravo, casamento que atesta a ocorrência de uniões estáveis entre a população negra da época.
Afra Joaquina Vieira Muniz, de origem africana, vivia em Salvador na condição de senhora, pois se casara em 1840 com
seu próprio senhor, Sabino Francisco Muniz, também de origem africana, que, uma vez liberto, tornara-se proprietário de
escravos.

Segundo a historiadora Júnia Ferreira Furtado que estudou as relações entre escravas e senhores na região
diamantífera de Minas Gerais no século XVIII, os relacionamentos da época se revestiam de uma aparência legal e
estável, ainda que informal e não sagrada pela Igreja. As relações consensuais eram, em geral mais estáveis e
duradouras que os casamentos legais mesmo quando os amantes viviam em domicílios separados.

Um dos relacionamentos amorosos mais célebres do Brasil colonial, o da escrava forra Chica da Silva com João
Fernandes de Oliveira, o contratador de diamantes, deu origem a uma família estável que alcançou a inclusão na
sociedade de Diamantina.

Durante dezessete anos, entre 1753 até 1770, ano em que João Fernandes voltou para Portugal, ele e Chica
mantiveram um relacionamento estável, do qual nasceram treze lhos, nove meninas e quatro meninos. A média de
um parto a cada treze meses faz desmoronar o mito da gura sensual e lasciva, devoradora de homens, ao qual Chica
esteve sempre ligada. João Fernandes jamais teve dúvidas sobre a paternidade dos rebentos, pois os legitimou e lhes
legou todo o seu patrimônio, apesar de em seu testamento demonstrar a esperança de que ainda pudesse vir a ter um
lho legítimo que o sucedesse.” (FURTADO, 2003, p. 121)

A relação entre João Fernandes e Chica apesar de ser uma união estável, não era legal. O Estado e a Igreja concediam
licenças de casamento baseado no princípio da igualdade. Não era permitido, portanto, a união de indivíduos de
condições desiguais; chegava-se a instaurar processos para averiguar a origem dos nubentes.

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Mesmo não tendo casado, Chica fez questão que todos seus escravos se casassem e que seus lhos recebessem
batismo – como, aliás, esperava-se de uma senhora cristã conforme a cultura branca portuguesa na época. Conseguiu,
também que suas lhas com João Fernandes casassem legalmente com homens brancos, apesar da condição de
lhas de ex-escrava.

Fonte
FARIA, Sheila de Castro. “Família”. In: VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001, p. 216-8.
________. “História da família e demogra a histórica”. In: CARDOSO, Ciro & VAINFAS, Ronaldo. Domínios da
História. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 241-58.
________.  A Colônia em movimento, fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
CORREA, Mariza. “Repensando a família patriarcal brasileira”. In: ALMEIDA, Maria Suely K. Colcha de retalhos:
estudos sobre a família no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 13-38.
NADER, Maria Beatriz & RANGEL, Livia Silveira. “Família”. In: COLLING, Ana Maria & TEDESCHI, Losandro Antonio
(orgs.). Dicionário crítico de gênero. Dourados, MS: Ed. UFGD, 2015. p. 233-38.
PRADO, Danda. O que é família. São Paulo: Brasiliense, 1981.
PRIORE, Mary del. A família no Brasil colonial. São Paulo: Moderna, 2000.
FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes. O outro lado do mito. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Incon dência. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993.

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