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Refere-se ao Art.

de mesmo nome, IV(1), 60-70, 1994 OPlNIÂO


Rev. Bras. Cresc. Des. Hum./ ATUALIZAÇÃO
S. Paulo, IV(1), 1994
OPINlON / CURIRENT COMENTS

A FAMÍLIA ESCRAVA BRASIEIRA NO SÉCULO XIX

THE BRAZILIAN SLAVE FAMILY IN THE 19th CENTURY

Maria de Fátima Rodriguus das Neves ¹

NEVES, M. P. R. A Família Escrava Brasileira no Século XIX. Rev. Bras, Cresc. Des.
Hum., São Paulo, IV(i), 1994.

Resumo: A partir de considerações sobre a fam~ia e^$crava brasileira no século X1X, a


autora analisa alguns aspectos importantes para sua compreensão. São discutidos elementos
favoráveis e contrários à formação da família escrava, bem como as caracteristicas formais
e informais de sua constituição. Concluindo, a autora apresenta a constituição do matrimônio
e a organização de famílias estáveis como forma de resistência à instituição escravista.

Palavras-Chave: fami1ia, escravidão, resistência.

Summary: From considerations about the Brazilian slave family in the l9th century, the
author analyses some important elements for its understanding. It is discussed the favourable
and unfavourable components of the development of the slave family, as well as the formal
and informal characteristics of its constitution. To conclude, the author analyses the
constitution of the matrimony and the organiza~on of stable families as a way of resistance
to slavery.

Key-Words: family, slavery, resistance.

1 Pcsquisadora do Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina/USP (CEDHAL), professora de Históna do
Brasil da Universidade Bandeirantes (UN1BAN) c da Organização Santamarinense de Educacão e Cultura (OSEC). Doutoran-
da em História Social do Departamento de História da FFLCH/USP.
End.: Caixa Postal 8105, São Paulo - SP, CEP: 05508-900 - Fone: (011) 818.374S.

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... o escravo tem fome de solidariedade. Ele preocuparam em formalizar, diante de Deus e dos
a busca e a encontra numa prática social homens, a união de seus escravos. Os próprios
extremamentc complicada, cujas engrena-
gens são ainda pouco conhecidas, mas que clérigos não seguiam as orientações das autorida-
passa por tudo aquilo que interessa à vida des religiosas, conforme elucida Stuart Schwartz:
de relação, de associação. Vida familiar, de
grupo, religiosa, comunidades dos rebeldes Em 1634, o padre Sebastião Vaz lamentou que
e dos fora-da-lei, são os sinais que nos per- a maioria dos cativos do Engenho Sergipe
mitem ler as assimilações bem logradas e as [pertencente aos jesuítas] eram solteiros, dis-
inadaptações graves... (MATOSO, 1982)** so rcsultando contínuos pecados contra a
moral e inquietação generalizada Um século
Os que estudaram a vida familiar cativa no mais tarde, na mesma propriedade, a situa-
ção permanecia a mesma. O padre Jerônimo
Novo Mundo concordam, em sua maioria, que, da Gama escreveu do engenho, em 1733, que
enquanto na América de colonização ibérica, a a maioria dos cativos não eram casados³.
constituição de famílias escravas foi um fenómeno
raro, nos estados escravistas dos Estados Unidos, A escravidão mostrava-se, então, no pas-
observou-se o empenho dos senhores em unir, pelo sado das populações latino-americanas, “como
matrimónio, os seus cativos, visando, em última uma força destrutiva que impediu ou desorgani-
instancia, promover a reprodução de seus plantéis. zou a vida familiar dos cativos e contribuiu para
É, portanto, comum afírmar-se que, no uma série de desordens na era pós-escravidão”4.
Brasil, os escravos passavam a infancia junto de Os estudiosos que defendem o caráter sua-
suas mães, senhores e demais escravos, por quem ve e paternalista da instituição escravista, visan-
eram criados e educados, sem sequer, na maioria do escamotear as atuais tensões raciais, afirmam
dos casos, conhecer seus genitores. A promiscui- que os cativos eram incorporados à família de seu
dade, o predomínio numérico dos homens sobre senhor. Alguns desses cativos, de acordo com di-
as mulheres nas unidades escravistas são falares versos autores, eram, desde bebês, criados nas
geralmente apontados para explicar o baixo índi- “casas-grandes” ou nos “sobrados”, onde brinca-
ce de nupcialidade entre os cativos em terras bra- vam com as crianças brancas, eram alimentados
sileiras, gerando uma enorme descendência ilegí- pelas carinhosas mãos das sinhás, ou Finados no
tima sem laços familiares. colo das tias solteiras5. Integrado, então, à família
Observando os engenhos da Bahia senhorial, no qual buscava, através da acomoda-
setecentista, Stuart Schwartz assinala que “as uni- ção ao paternalismo que mascarava a violência
ões normalmente sancionadas pela Igreja eram subjacente à escravidão, alívio para a dureza da
raras entre os cativos, e as taxas de ilegitimidade vida sob cativeiro, o escravo achava-se impedido
eram muito altas nessa populaçao’’¹. de constituir sua própria família.
Embora os níveis de ilegitimidade fossem Tal abordagem sobre a vida familiar dos
elevados para o conjunto da população brasileira, escravos não emerge unicamente nos trabalhos que
entre os escravos eles apresentavam-se muito su- tratam das áreas novo-mundistas de colonização
periores. Apesar das exortações da Igreja em fa- ibérica Eugene Genovese, em A Terra Prometida:
vor do casamento de escravos, conforme atesta a o mundo que os escravos criaram, objetivando
legislação eclesiástica consubstanciada nas Cons- eliminar das explicações sobre os atuais confli-
tituições Primeiras do Arcebispado da Bahia², os tos raciais nos Estados Unidos a argumento his-
proprietárias brasileiros, ao que parece, nunca se tórico 6, descreve o sul escravista como uma

** MATTOSO, K. M. Q. Ser escravo no Brasl São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 123-124.


1 SCHWARTZ, S. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo, Cia das Letras/CNPq, 1988. p. 292.
2 Dizia o Canon 303, Livro Primeiro, Titulo LXXI das Consátuições “Conforme o direito Divino, e humano os escravos, e escravas
podem casar com outras pessoas cativas, ou livres, e seus senhores Ihes não podem impedir o matrimónio, nem o uso dele em
tempo, e lugar conveniente, nem pó esse respeito os podem tratar pior, nem vender para outros lugares remotos, para onde o outro
por ser cativo, ou por ter outro justo impedimento a não possa seguir, e fazendo o contrário pecam mortalmente, e tomam sobre
suas consciências as culpas de seus escravos, que por esse temor deixam muitas vezes estar e permanecer em estado de condena-
ção”. Constituiçoens Primeyras do Arcebispado da Bahia. Feytas, e ordenadas pelo Ilustrissimo, e Reverendíssimo Senhor D.
Sebastião Monteyro da Vide, Arcebispo do dito Arcebispado, & do Conselho de Sua Magestade, propostas, e aceytas em o
sínodo diocesano que o dito Senhor celebrou em 12 de Junho do anno de 1707. Lisboa Ocidental, Na Officina de Pascoal da
Sylva, Impressor de Sua Magestade, 1719.
3 SCHWAR1Z, S. (1988). Op. Cit. p. 292.
4 Idem. Idem, p. 311.
5 Esse aspecto da existência escrava fundamenta-se especialmente nas informações de FREYRE, G. Casa grande e senzala. 25 ed.,
Rio de Janeiro José Olympio, 1987.
6 Vale lembrar a costumeira justificativa para os conflitos raciais nos Estados Unidos dos nossos dias, segundo a qual estes prendem-sc
ao fato de que no sul do país a escravidão foi cruel face à “brandura” assumida pela instituição em outras áreas do Novo Mundo.

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sociedade de classes composta de senhores e es- Os senhores, de acordo com a historiografia


cravos, abrandada pelo paternalismo. De acordo sobre o tema, desestimulavam o casamento entre
com Genovese, o senhor integrava o escravo à os escravos em primeiro lugar por razões de natu-
sua família para obter serviços e obediência, ofe- reza moral.
recendo em troca alguma recompensa, tal como o Muitos desses senhores, conforme mostra-
reconhecimento de direitos usuais7. nos o jesuíta Antonil, justificavam sua relutância
No Brasil de tradição patriarcal, segundo em sacramentar as uniões de seus escravos por
nos revelam os trabalhos inspirados na obra de temerem que, “enfadando-se do casamento, se
Gilberto Freyre, os escravos eram facilmente in- metem logo com peçonha ou feitiços”11, já que o
corporados à família do senhor, que já contava matrim8mo criava um laço indissolúvel entre os
com tios, primos, sobrinhos, bastardos, afilhados, cônjuges. Além disso, os senhores negligentes no
agregados... Ká~ia Mattoso afirma: cumprimento de suas obrigações com a Igreja ar-
gumentavam que os escravos mantinham relações
Também os escravos fazem parte da família ilícitas após o casamento, o que era uma afronta a
Todos os escravos, pois o privilégio não é res- Deus.
trito aos domésticos (...) O chefe da casa c o
pai dc todos, c o escravo, como os outros Entretanto, Stuart Schwar~ considera que
membros da família, devem persuadir-se de a relut~ncia de alguns senhores em permitir o ca-
que é ‘cria’ da casa, filho menos privilegiado samento de cativos,
que os filhos, mas nem por isso menos filhos8.
... provavelmente baseava-se mais na
Dessa fonna, a família branca informava o consideraçao dos escravos como propriedade
comportamento do escravo, pois constituir-se em do quc no desejo de proteger a honra do esta-
do conjugal. Enquanto os calvos permaneces-
campo de experiências para ele. sem sem casamcnto, os religiosos podiam pro-
Apesar de alguns autores atribuirem ao testar contra o não-cumprimento das
paterna~ismo da sociedade escravista a ausência ob^ligaçoes morais porparte dos senhores uma
da família escrava, esta não é a explicação mais vez havendo o casamento na Igreja, porem,
recorrente para o fen8meno. Usualmente, é à re- passava a haver restrições i^tnperiosas na lei
canônica em favor do livre usufruto do
sistência do senhor em permitir a união formal de matrimónio. A separação dos cônjugcs por
seus cativos o elemento a que recorre a maioria venda ou outra razão qualquer era condenada
dos autores para explicar a infrequenc~a da for- como uma ofensa à caridade c à lei nahsral12.
mação de famílias escravas.
Florestan Fernandes, por exemplo, refere- Hermann Burmeister, alemão que visitou
se a uma, o Brasil em meados do século XIX, já havia per-
cebido isso:
... política central da sociedade senhorial c
escravocrata brasileira, que sempre procurou Os casamentos legítimos entre os escravos não
impedir o florescimento da vida social orga- são tolerados pelos senhores, dado que na^D
nizada e da família como instituição integra- po deriarn ser desfeitos totais tarde e assim
da no seio da população escrava9. prejudica~am a venda em separador13.

Com ele concorda Stuart Schwartz, afir- Mary Karasch concorda com 0 que disse
mando existirem indícios de várias espécies que, B urmeister, esclarecendo que “os senhores pare-
cem ter se oposto aos casamentos escravos por-
... indicam uma situação em que se negava que a família escrava era mais facilmente separa-
ou se desencorajava costumeiramente a união
de cativos perante a Igreja Observadores, na
da se os parceiros não fossem casados na igreja14.
maioria clérigos, registraram sua consterna- Há também indícios desse procedimento por
ção ante a recusa de senhores a incentivar ou parte dos senhores de escravos em outras regiões
permitir que seus escravos se casassem10. escravistas, conforme nos revela um texto do jesuíta

7 GENOVESE, EI ‘Nossa família negra’. In A terra prometida O mundo que os escravos criaram. São Paulo, Paz c Tena, 1988. p.
101-120.
8 MATOSO, K. M. Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1982. p. 124.
9 FERNANDES, F. Circuito fechado. São Paulo, Hucitec, 1976. p. 84.
10 SCHWAR1Z, S. (1988). Op. Cit. p. 314
11 AN1ONIL, A. J. Cultura e opulência no Brasil. B. Horizonte- tiaia, São Paulo, EDUSP, 1980. p. 90.
12 SCHWARTZ, S. (1988). Op. Cit. p. 316.
13 BURMEIS1ER, H. Viagem ao Brasil através das províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Bdo Horizonte São Paulo, Ita~aia-
EDUSP, 1980. p.72.
14 KARASCH, M. Slave live in Rio de Janeiro (1808-1850). Pnnceton, Princeton Universi~r Press, 1987. p. 290.

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Mongin, publicada em 1680, e recuperado por de famílias, comprometendo em definitivo as


Arlette Gautier, segundo o qual: possibilidades de crescimento vegetativo dos
plantéis. Enfim, o tráfico atlantico e a consti-
tuição de famílias seriam falares excludentes
... um interesse mais preciso opunha-se ao na demografia escrava anterior a 1850, estan-
casamento dos escravos: ‘Elcs não podem do a família cativa fora da lógica de funcio-
vender separadamente os escravos que forem namento e reprodução da escravidão no
casados... Eles não podem desfazer-se de um Brasill8.
negro que lhe seja inútil sem privar-se de um
outro que não é’15.
Um último elemento, usualmente empre-
Entretanto, não foram, ao que parece, pre- gado para justificar a prática senhorial de
ocupações de ordem moral as que prevaleceram desencorajamento à constituição de famílias en-
na opção dos senhores em não consentir frequen- tre os cativos, é a existência de
temente no casamento de seus cativos. De acordo
... uma política em geral não escrita mas am-
com diversos estudos, a lógica do escravismo plamente praticada de restringir o universo
moderno levou os senhores a não estimularem as social do ‘cativo, confinando o, quando pos-
uniões sacramentadas de seus escravos. sível, ao perí~metro do engenho, fazenda de
Assim, afirma-se nesses estudos que, nas cana ou unidade escravista. Tal política limi-
tava drasticamentc as oportunidades familia-
regiões regularmente abastecidas pelo tráfico de res para os escravos, especialmentc em pro-
africanos parecia mais lucrativo comprar negros priedades menores, onde havia poucos
adultos do que criar filhos de escravos: a mortali- parceiros disponíveis ou onde podiam ser pa-
dade infantil era grande e, além disso, era preciso rentes consangüíneos19.
esperar 10 ou 15 anos para que eles começassem
a produzir16. Alguns dos motivos até agora apontados
Por outro lado, o tráfico negreiro, ao privi- pelos estudiosos da escravidão no Novo Mundo
legiar o transporte de homens ao de mulheres, para a pequena frequência de casamentos e cons-
gerava um desequil~brio numérico entre os se- tituição de famílias entre os calvos, quer fossem
xos que diminuía drasticamente as possibilidades imperativos de natureza moral, quer fosse a lógi-
de todos os cativos formarem famílias. ca interna do regime escravista, relacionam o com-
No Brasil, então, portamento dos cativos diretamente ao poder dos
senhores, não deixando nenhum espaço para os
... a existência do tráfico atlantico antes de escravos como agentes. Mesmo a hipótese da in-
1850 teria levado os senhores a assumirem tegração do escravo à família patriarcal, ao mes-
outros padrões de calculo económico. Neles, mo tempo em que revela que estes, através do
a possibilidade de obter escravos baratos e
abundantes re sultou no não interesse em paternalismo senhorias, desenvolviam estratégias
incrementar as taxas endógenas de procnaçao, de resistência ao cativeiro, aponta para o poder
em nao oferecer melhores condições de vida do senhor em decidir sobre a vida dos escravos.
para os cativos etc. As taxas de procriação Alguns dos autores que resgataram as vi-
estariam particularmente comprometidas pela
alta moralidade entre os re cém-nascidos e
sões até aqui apresentadas, não se satisfizeram e
infantes em geral. buscaram recuperar 0 papel do escravo na orga-
Deve-se agregar, ainda, que o tráfico também nização de sua vida familiar. Conforme afirma
teria levado a um maior desequilíbrio na dis- Stuart Schwartz:
tribuição sexual do plantel, onde a média va-
riava de 2 a 3 homens por mulheri17. ... o desinteresse dos proprietárias c a escas-
sez de casamentos na Igreja não sao, de modo
Concluem Fragoso e Plorentino que: algum, uma medida da Validade escrava c da
capacidade dos cativos de criar e manter la-
Todos esses fatores, e sobretudo o predomí- ços de afeição, associação e sangue que ti-
nio de homens nos navios negreiros, levavam vessem um significado real e permanente em
os senbores a não promoverem a constituição suas vidas20.

15 Citado por PETIT-JEAN-ROGET, J. La société d ‘habitation à la Martinique, la période de formation (1635-1685). Paris, Thèse
d’État, 1978. Apud GAUTER, A. Les soeurs de solitude: la condition feminina dano l’esclavage aux Anilles dá XVlIº au XVXº
Siècle. Paris, EM C~bccnes, 1985. p. 69.
16 MATTOSO, K. M. Q. (1982). Op. Cit. p. 126.
17 FRAGOSO, J. La R; FLORENTINO, M. G. Um estudo sobre famílias escravas em Paraíba do Sul (183S - 1&72) In Estudos
Econômicos 17(2): 151-173, 1987.
18 Idcm. ldem.
19 SCHWARTZ, S. (1988). Op. Cit. p. 313.
20 Idcm. Idem.

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Em primeiro lugar, faz-se necessário aven- que os europeus não conseguiam enxergar, limi-
tar a possibilidade de o escravo não desejar for- tando-se a atribui-la à busca do prazer por parte
malizar sua união diante da Igreja. Observemos o dos homens: significações demográficas,
relato que nos deixaram Luiz e E lizabeth Agassiz econôrnicas e simbólicas, conforme afirma
de uma cerimónia de casamento de dois negros: Gautier:
O padre, um português de ar arrogante, olhar ... ela permite aos homens aumentar sua ri-
ousado, interpelou os noivos, e, com a preci- queza já que a ~ de terra que tinham direito a
pitação menos respeitosa, lhes dirigiu algu- cultivar depende da forca de trabalho da qual
mas rudes palavras sobre os deveres do dispunham, isto é, essencialmente do núme-
ma~imôruo, interrompendo-as várias vezes ro de suas mulberes24.
para censurar a ambos, e principalmente a ela,
porque não praticava os ritos com tanta rude- Dessa maneira, uma vez na América, os
za e brutalidade como ele. Mais com um tom
de impreca~ão do que de prédica, ordenou- negros não procuravam 0 casamento católico, pois
lhes que se ajoelhassem diante do altar, de- queriam “ter a liberdade de tomar e deixar todas
pois, tendo dado a bênc,ão, gritou um amém, as mulheres que lhes agradassem, sem serem obri-
jogou vaidosamente o livro das atações sobre gados a constituir uma famiia”25.
o altar, apagou os cheios e despediu os re-
cém-casados da mesma forma que teria ex-
Finalmente, deve-se atribuir também os
pulsado um cão para fora da igreja A moça poucos casamentos entre os escravos, especial-
saiu, sorrindo por balão de suas lágnmas21. mente na América Ibérica, ao falo de 0 direito ci-
vil não dar qualquer privilégio
O tratamento dispensado aos noivos que
aparecem nesta cena, que poderia repetir-se fre- ... aos casais confirmados pelo sacramento
quentemente em outras cerimónias, devia fazer religioso, pois o senhor podia continuar a se-
parar os que a Igreja uniu, vendendo ou do-
os escravos pensarem duas vezes antes de se de- ando sepa~damente pai, mãe, filhos. Compre-
cidirem a casar diante do padre. ende-se que muitos escravos não vissem
Além disso, deve-se admitir qualquer vantagem em casar-se26.

... a possibilidade de os africanos, provenien- Embora o casamento formal na Igreja não


tes de sociedades em que esterilidade, feiti- fosse comum entre os escravos, isso não significa
çaria ou outras causas justificavam o divór-
cio, serem infensos às limitações da
que eles não tivessem família ou que o parentes-
indissolubilidade do matrimónio católico22. co não fosse importante em sua vida.
De fato, a família escrava estável foi um
Os negros trazidos para a Aménca guarda- fenómeno raro na América, particularmente na
vam, certamente, boa parte de suas tradições. No porção colonizada por Portugal e Espanha. Con-
que se refere à organização familiar africana, de tudo, estudos recentes acerca da vida familiar dos
acordo com as informações de Kátia Mattoso, “ser cativos no Novo Mundo vêm propiciando um
primo ou irmão não implica qualquer vínculo conhecimento mais preciso sobre o relacionamen-
consanguíneo. Os membros de uma mesma etnia to senhor-escravo, as estratégias desenvolvidas por
consideram-se geralmente irmãos (...) O que de- ambos, os primeiros no sentido de manter a insti-
fine a família africana é o antepassado comum” tuição escravista, os outros para melhorar a vida
e, assim, as sociedades africanas fundavam-se na em cativeiro. Esses estudos, estimulados pelo de-
linhagem23. Seria, portanto, surpreendeste que as bate acerca do lugar dos escravos nas sociedades
escravos aceitassem passivamente a imposição do escravistas, permitem-nos entrever as atitudes de
casamento católico pretendida pela Igreja. acomodação e resistência assumidas pelos cati-
Arlette Gautier, por sua vez, acredita que a vos em seu cotidiano.
cultura trazida da África para a América pelos Tem-se verificado, a parar de diversos tra-
escravos levou-os, muitas vezes, a rejeitarem o balhos publicados desde os anos 1970, que, ape-
casamento católico. A poligamia (casamento de sar de raros, o casamento e a estabilidade familiar
um homem com várias mulheres), por exemplo, entre os escravos tiveram importante papel na luta
tinha, no continente africano, outras significações dos cativos por melhores condições de existência.

21 AGASSIZ, L; AGASSIZ, E. Viagem ao Brasil (1865 -1866). São Paulo, Cia Ed. Nacional, 1938. p. 175.
22 SCHWARIZ, S. (1988). Op. Cit. p. 317.
23 MATIOSO, K. M. Q. (1982). Op. Cit. p. 125.
24 GAUTIER, A. (1985). Op. Cit. p. 43.
25 Idem. Idem. p. 67
26 Maldoso, K. M. Q. (1982). Op. Cit. p. 126-127.

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Vale advertir, contudo, que o casamento observou-se, nas Antilhas francesas, a formula-
oficializado na Igreja não era somente pouco co- ção de uma política Fatalista por parte dos senho-
mum entre os cativos: as frequentes exortações res de escravos. Nesse momento, uma população
dos clérigos atestam que o sacramento do numerosa era vista como fonte de Aqueza e, por
matrimónio só era uma realidade observável en- isso, os propriet~rios de escravos impunham cas-
tre a elite brasileira do passado27. 0 falo de não tigos para os libertinos, favoreciam os casamen-
ser frequentemente celebrado diante do padre não tos, determinavam a construção de moradias in-
implica, absolutamente, que as uniões não fos- dividuais para os casais, oferecia liberdade à mãe
sem estáveis ou duradouras. que tivesse gerado uma prole numerosa.
O que se tem observado é que existiu uma Édouard Glissant, senhor de escravos nas
família escrava no passado das populações do Novo Anilhas, revela, em suas memórias, um interesse
Mundo, apesar de todos os obstáculos e resistênci- com a reprodução de seu plantel e a fórmula que
as à sua constituição e da sua não oficialização, e adotou para promovê-la: “Minha primeira deci-
que é equivocada a ideia de que as crianças cativas são foi juntar meus escravos que se achavam em
eram criadas pela comunidade sem muito cantata condic,ões de procriar. Veiome uma quinzena sem
ou influência dos pais, denotando uma instabilida- outras despesas’’31.
de das relações familiares entre os cativos. Por outro lado, viam os senhores, na cons-
Muitos senhores estimularam a formação tituição de famílias escravas, uma forma de obter
de famílias escravas (mesmo sem legitimá-la pe- o controle sobre sua força de trabalho. De acordo
rante a Igreja), objetivando, essencialmente, a re- com Stuart Schwartz:
produção de seus plantéis. Henry Koster assina-
lou que muitos cativos eram regularmente casados Os padres beneditinos sem dúvida vime na
po lética de equilíbrio entre os sexos e famíli-
de acordo com as normas da Igreja Católica da as ‘estáveis’ um meio de promover a dimi-
mesma forma como as pessoas livres. Comentou nuição dos pecados e melhorar a vida moral
também que os senhores encorajavam seus escra- dos cativos, mas o fato de escravos casados
vos ao casamento na esperança de aumentar o poderem ser menos indóceis ou propensos a
fugir provavelmente tombara não Ihes passa-
número de seus crioulos28. ra despercebido32.
Os beneditinos adotaram, de maneira sis-
temática, uma política em favor de proporções o que já assinalara o viajante Rugendas,
mais equilibradas entre os sexos, casamentos e quando de sua visita ao Brasil, em meados do sé-
condições propícias à reprodução, conforme nos culo Xá. Segundo ele,
revela o estudo de Stuart Schwartz29. Segundo ele,
... os colonos facilitam os casamentos entre
... ao contrário de muitos senhores de escra- escravos, pois sabem, por experiência, que é
vos no Brasil-colônia, os beneditinos parecem a melhor maneira de prendê-los à fazenda e a
ter incentivado a formação de unidades fami- mais forte garantia de sua boa conduta33.
liares (...) A capacidade dos beneditinos de Alguns proprietárias de escravos faziam
contar com crioulos nascidos em suas propri-
edades para acréscimos e reposições na mão- questão de transformar a cerimónia de casamento
de-obra cativa, supostamente uma consequên- de seus cativos num grande acontecimento, alme-
cia de seu incentivo aos casamentos de jando conquistar ou acentuar seu prestigio social.
escravos, chamou a atenção de seus Na opinião de Luciano Figueiredo, estudioso da
contemporaneos30.
família nas Minas Gerais do século XVIII,
A adoção de uma política que estimulasse ... O fausto das cerimónias acabava por se tra-
a procriação dos escravos através da formação de duzir em uma (re)afirnaçã~ social do proprie-
tário. Afinal, a não ser por motivo de prestigio
unidades familiares não foi exclusividade dos social dificilmente os grandes proprietárias em
beneditinos no Brasil. Informa-nos Arlette Gautier Minas Gerais veriam benefícios em consti-
que, durante o período de critica ao mercantilismo, tuir famílias de escravos34.

27 Sobre a raridade dos casamentos sacramentados pela Igreja veja-se, por exemplo, SOUZA, L. M. ‘Os protagonistas da miséria’. In
Desclassificados do ouro. A pobreza mineira no século XVIII Rio de Janeiro, Graal, 1982. p. 141-213.
28 KOSTER, H. Viagens ao Nordeste do Brasil. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1942. p. 412.
29 SCHWARTZ, S. (1988). Op. Cit. p. 292.
30 Idem. Idem. p. 293.
31 GLISSANT, E. Le quatrième siècle. p. 146. Apud GAUTIER, A. (1985). Op. Cit. p. 59.
32 SCHWAR1Z, S. (1988). Op. Cit. p. 293.
33 RUGENDAS, J. M. Viagem pitoresca através do Brasil São Paulo, Martins-EDUSP, 1972. p. 140.
34 FIGUEIREDO, L. R. A. Barrocas famílias: vida faniliar em Minas Gerais do século XVIII. São Paulo, 1990. p. 100. Dissertação
de Mestrado FFLCH/USP].

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Todavia, parece que a formação de núcleosl já nas áreas de economia de subsistência, que apre-
familiares escravos estáveis, no Brasil, dependia sentavam um menor desequilibrio sexual, embora
muito mais das condições sócio-econômicas que os cativos casados ainda compusessem uma signifi-
de decisões individuais de senhores ou escravos. cativa parcela da população, o percentual de “casa-
Muitos autores acreditam que a dificulda- dos” era um pouco menor. Os dados levantados pe-
de para o estabelecimento de laços conjugais es- los autores comprovam sua hipótese: em Itu, área
táveis entre os os-. cravos advinha do desequilíbrio dedicada à agricultura de exportação, no ano de 1818,
sexual promovido pelo tráfico atdantico que sem- a razão de masculinidade observada era de 164,6
pre transportou muito mais homens que mulhe- enquanto a porcentagem de cativos casados, no
res. Schwart~ informa que “a tendência do tron- mesmo ano e cidade, rondava os 37%. Já a cidade
co africano a importar homens seguramente de São Paulo, cuja economia voltava-se para o mer-
dificultava o encontro de uma companheira”35, cado interno, apresentava, em 1808, uma razão de
idéia corroborada por outros estudiosos do masculinidade da ordem de 105,1, enquanto a por-
escravismo moderno, como Arlette Gau~der, por centagem de escravos casados era de 32% nesse
exemplo. Assegura a historiadora que, no Caribe, mesmo ano e cidade.
“o equilíbrio numérico entre os sexos desaparece Francisco Luna também observou que, nas
com o desenvolvimento das plantations e do trá- áreas dedicadas à agricultura de exportação, a
fico”, pois as mulheres foram preteridas no trans- participação de cativos casados ou viúvos na po-
porte de negros para a América pulação era superior à das fireas de agricultura de
subsistência, conforme ilustra a Tabela 138.
Ora, essa escolha é incompatfvcl com uma
politica de casamento cristão, visto que to- A explicação mais recorrente para esse falo
dos os homens não se poderão casar e prova- é a que relaciona a possibilidade de casamento
velmente cairão mais facilmente no pecado, entre os escravos ao tamanho do plantel. Dessa
mas igualmente com o desenvolvimento de forma, nos plantéis maiores, apesar da superiori-
casais não legitimados36.
dade numérica dos homens, havia mais chances
Era de se esperar, então, que os casamen- de se encontrar um companheiro. Quem primeiro
tos de escravos fossem mais frequentes nas áreas apontou nessa direção foi o historiador norteame-
onde o desequilibrio sexual fosse menor, isto é, ricano, Richard Graham, que estudou o umverso
naquelas onde o Abico negreiro não fosse a prin- escravo na Fazenda Santa Cruz, pertencente aos
cipal forma de reprodução da força de trabalho. jesuítas, constatando que, no meio rural, particu-
Isto, porém, segundo a recente historiografia so- larmente nos grandes plantéis, as famílias de es-
bre a vida familiar dos escravos, não ocorreu: ao cravos constituiam-se com alguma freqüência39.
contrário, em áreas onde o equilíbrio sexual era Seguindo a trilha aberta por Graham,
mais visível, a porcentagem de escravos casados Robert Slenes debruçou-se sobre a população es-
ou viúvos era menor, enquanto nas regiões de crava de Campinas, na segunda metade do século
mão-de-obra predominantemente masculina, ve- XIX, verificando que “26% das mulheres acima
rificou-se um maior índice de uniões. Tal de 15 anos eram casadas ou viúvas nos plantéis
constatação, à luz dos estudos que tratam do as- pequenas (com 1 a 9 escravos), e 67% nos médi-
sunto, não chega, contudo, a surpreender. os e grandes (com 10 pessoas ou mais)”40.
Ana Silvia Scott e Carlos Bacellar, por exem- Constatou ainda Slenes que a porcentagem de
plo, revelam, em seu trabalho sobre a vida familiar homens casados era inferior a das mulheres. Como
dos es~ravos em fazendas paulistas entre meados nos grandes plantéis a quantidade de homens era muito
do século XVIII e meados do Xá, que nas regiões maior que a de mulheres, boa parte deles não se casa-
paulistas detentoras de uma economia de exporta- va, pois não eram autorizados por seus senhores a se
ção, onde a razão de masculinidade era maior, o casarem com pessoas que não pertencessem ao mes-
número de escravos “casados”37 era também maior; mo senhor. Por essa mesma razão, o índice de ca-

35 SCHWARTZ, S. (1988). Op. Cit. p. 294.


36 GAUTIER, A. (1985). Op. Cit. p. 80.
37 Foram considerados os cativos oficialmente casados e aqueles que, na documentação devassada pelos autores, aparecem como tal.
SCOTT, A. S. V.; BACELLAR, C. Sobreviver na senzala estudo da composição e continuidade das grandes encravarias paulistas
(1798 - 1818). In NADALIN, S. O.; MARCÍLIO, M. L.; BALHANA, A. P. História e população. São Paulo, SEAD^E 1990. p.
213 - 217.
38 LUNA, F. V. Casamcnto etc escravos em São Paulo: 1776, 1804, 1829. In NADALIN, S. O.; MARC^fL10, M. L.; BALHANA, A.
P. História c população. São Paulo, SEADE, 1990. p. 226 - 236.
39 GRAHAM, R. Escravidão, reforma e imperialismo. São Paulo, Perspectiva, 1978. p. 57.
40 SLENES, R. ‘Escravidão c família: padrões de casamento e estabilidade familiar numa comunidade escrava. (Campinas, século
ÓNIX)’. In Estudos Económicos. São Paulo, 17(2):217-227, maio/agosto 1987. p. 219.

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quenos plantéis era muito baixo entre ambos os anos, 53% nos plantéis pequenas não tinham
sexos, pois havia uma grande dificuldade em se nenhum dos pais presentes, com dos com 19%
dos plantéis maiores43.
encontrar um parceiro adequado:
... os escravos praticamente não tinham aces-
so ao casamento religioso com pessoas que
A explicação para esse falo, segundo
não fossem do mesmo senhor. Pela mesma Slenes, reside no “impacto diferencial do tráfico
razão, o índice de casamento nos plantéis pe- interno de escravos, que incidia com mais peso
quenas era muito baixo41. nos pequenas plantéis”44.
Alida Metcalf, por sua vez, afirma que, “a
De qualquer modo, os dados levantados por vida familiar escrava foi profundamente afetada
Slenes sugerem que, ao menos nas grandes pro- pelo ciclo de vida dos senhores”. Seu trabalho
priedades, as crianças escravas, ao contrário do sobre a população escrava de Santana do
que freqüentemente se tem afirmado, eram cria- Parna~’ba durante o século XVIII revelou que “as
das por ambos os genitores até, pelo menos a ida- famílias escravas foram estáveis durante a vida
de de 15 anos, dado o elevado número de mulhe- dos senhores, mas não puderam reter sempre essa
res casadas nesses plantéis. estabilidade de uma geração para outra”45.
Os dados obtidas por Francisco Luna em As chances de estabilidade para as famíli-
seu estudo sobre o casamento de escravos na Ca- as escravas eram maiores nas grandes proprieda-
pitania/Provincia de São Paulo apontam na mes- des, pois, ao falecer 0 proprietário, a divisão da
ma direção indicada por Graham e Slenes, con- força de trabalho entre os herdeiros, respeitava,
forme nos informa a Tabela 2. em geral, os laços familiares. Também no momen-
Esses resultados, explica-nos Luna, ocor- to da venda de escravos, parece que se levava em
reram apesar da elevada razão de masculinidade consideração os laços familiares, particularmen-
existente nos plantéis acima de 20 cativos (...) A te, nas regiões que contavam com grandes pro-
causa provavelmente relaciona-se com a própria priedades.
composição dos plantéis. Retomando a hipótese Já o estudo de Fragoso e Florentino sobre
da tendencia às relações conjugais internas aos os escravos de Paraiba do Sul revela a “existên-
plantéis, ampliavam-se as oportunidades de uni- cia de um mercado de famílias na região”:
ões na proporção do aumento do número de es-
cravos42.
Assim sendo, nas regiões cuja economia Dos 1171 escravos comprados até 1872,
achavase voltada para o mercado externo, apesar inf~rmam-nos eles, nada menos que 33,6%
de se registrarem as mais elevadas razões de mas- estavam unidos por laços de parentesco de
primeiro grau (casais com filhos e mães sol-
culinidade, denotando um acentuado desequilíbrio teiras e seus rebentos)46.
sexual, observaram-se também as maiores propor-
ções de escravos vivendo conjugalmente, justa-
mente por serem tais áreas as que mais cativos Os dados apresentados pelos diversos au-
concentravam e que maiores plantéis apresenta- tores testemunham que era possível uma convi-
vam. vência duradoura entre os cativos, especialmen-
As famílias escravas, observadas por re- te, para aqueles pertencentes a grandes
centes estudos históricos, possuiam também cer- proprietárias. Todavia, a estabilidade da vida fa-
ta estabilidade, especialmente, as que se constitu- miliar dos escravos dependia de falares que se
íam nos grandes plantéis. O trabalho de Robert achavam fora do seu controle: 0 tráfico de africa-
Slenes, por exemplo, revela que, nos, os níveis de desenvolvimento económico da
região em que habitavam, os acontecimentos na
... das crianças de 1 a 9 anos de idade, 36% vida dos senhores. Todos eles “tinham um impac-
nos pequenas plantéis estavam sem mãe ou
pai pre sente, contra apenas 7% nos plantéis
to direto sobre a estrutura daquelas famílias”, con-
médios c grandes. Das crianças de 10 a 14 forme afirma Alida Metcalf47.

41 Idem. Idem.
42 LUNA, F. V. (1990). Op. Cit. p. 233.
43 SLENES, R. (1987). Op. Cit. p. 220-221.
44 Idem. Idem. p. 221.
45 METCALF, A. ‘Vida familiar dos escravos em São Paulo no século XVIII: o caso de Santana te Parnafba’. In Estudos Econômicos.
São Paulo, 17(2):229-243, maio/ago.1987. p. 235.
46 FRAGOSO, J. L.; FLORENTINO, M. (1987). Op. Cit. p. 164.
47 METCALF, A. (1987). Op. Cit. p. 232.

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Essa é também a conclusão à que chega Em algumas fazendas brasileiras, os escra-


Robert Slenes, apontando que: vos usufru~am livremente de sua vida familiar,
conforme observou Maria Graham em sua visita
... era possível, nos plantéis com dez escra- pelo Brasil:
vos ou mais, para a grande maioria das mu-
lheres, se não dos homens, formar uniões se- Cada fazenda de açúcar, ou engenho (...) tem
xuais, e criar famflias, relativamente estáveis sua pequena comunidade de escravos em tor-
no tempo. O fala de a grande maioria dos es- no; c nas suas cabanas podem usufruir algu-
cravos casados pela Igreja terem conjuges ma coisa semclhante às bêncãos da liberda-
pertencestes ao mesmo senhor indica, indire- de, nos laços e benefícios da família, que eles
tamente, que não era comum nesses plantéis não estão impedidos de manterá51.
a separação dos esposos por venda ou pela
partilha das heranças. Também os dados so-
bre a presença ou ausência dos pais indicam Koster, administrador de um engenho em
que, nos plantéis médios e grandes era possí- Pernambuco durante a primeira década do século
vel para os escravos manterem a unidade da passado, informa-nos que “os negros eram muito
família nuclear na grande maioria dos casos, afeiçoados às esposas e filhos’’52, o que também
pelo menos até que as crianças chegassem aos
15 anos de idade (...) A maioria das crianças foi observado por Dutert, nas Antilhas:
nesses plantéis passava boa parte de seus anos
formativos na companhia de seus dois pais. Quando os pais e mães voltam do trabalho, a
Foi neste contexto, e não em famílias ‘que- primeira coisa que fazem é chamar seus fi-
bradas’, sem pai presente ou nem mesmo co- lhos ou ir procurá-los nos vizinhos e nao co-
nhecido, que estas crianças foram socializa- mem até que os tenham achado (...) Os ne-
das48. gros amavam seus filhos com tanta ternura
que tiravam um pedaço de alimento da boca
para lhes dar (...) Não sabiam também vê-los
As informações obtidas por Stuart castigar ou ouvi-los chorar sem que, imedia-
Schwartz, para a Bahia do século XVIII, confir- tamente, corressem e mostrassem um extre-
mam as palavras de Slenes. Segundo Schwartz, mo desprezes do mal que Ihe faziam, pois eles
no engenho jesuítico de Santana, preferiam que lhes batessem que em seus fi-
lhos53.
... a maioria dos escravos vivia em unidades
que incluíam um homem e urna mulher de- Os senhores, por vezes, respeitavam a vida
clarados como parceiros sexuais ou com ida- familiar de seus cativos, ainda que não tivesse sido
des que tornavam tal relacionamento prová- sancionada pela Igreja. De acordo com 0 depoi-
vel (...) Quase metade dos gnupos residenciais
(46,5%) e mais de 60% (61,0%) dos escravos mento do viajante Tschudi:
viviam em unidades duplamente chefiadas, ou
seja, com um homem e urna mulher adultos ... os negros casados vivem em recintos me-
presentes49. nores devidamente separados. É muito raro
haver entre os negros casamentos celebrados
na igreja, mas 0 fazendeiro pennite que os
Dessa forma, as elevadas taxas de ilegiti- pares, que se unem segundo oportunidade ou
midade detectadas, não só por Schwartz nos en- sorte, vivam juntos54.
genhos baianos, mas por uma infinidade de estu-
diosos da vida sob cativeiro, não significavam Nas cidades, contudo, raras eram as opor-
necessariamente “que o pai estava ausente duran- tunidades dos escravos manterem-se unidos se-
te os anos de formação da criança escrava”. De gundo sua vontade e criarem, pai e mãe, seus fi-
acordo com Schwartz: lhos. Nos núcleos urbanos, a propriedade escrava
era reduzida e, comprovada a preferência dos se-
... embora os grupos residenciais encabeça- nhores em permitir somente as uniões entre es-
dos por mulheres não fossem incomuns, não
eram, de maneira alguma, a forma dominante cravos de seu plantel, a instabilidade caracteriza-
de organizacão familiar (17,2% das unidades, va as relações amorosas e familiares entre os
agregando 20,4% dos indivíduos)50. cativos que neles residiam. Stuart Schwar~ assi-
nala que:
48 SLENES, R. (1987). Op. Cit. p. 223.
49 SCHWARTZ, S. (1988). Op. Cit. p. 323.
50 Idem. ldem. p. 18.
51 GRAHAM, M. Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos anos de 1821, 1822 c 1823. São
Paulo, Cia Ed. Nacional, 1956. p. 174.
52 KOSTER, H. (1942). Op. Cit. V, II. p. 242.
53 DUTERT. Histoire de I ‘établissement des colonies françaises dans les iles de Saint-Christophe, Guadaloup, Martiniquc et
autue, et de ce qui se passe dans les voyages de l’Amérique. Paris, 1654. p. 375. Apud GAUTIER, A. (1985). Op. Cit. p. 68.
54 TSCHIJDI, J. J. V. Viagem às províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. Belo Horizonte-Itatiaia, São Paulo, EDUSP, 1980. p. 56.

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... quanto maior a propriedade e mais distan- de mães negras - tarimbem a menor porcen-
te c menos íntimo o relacionamento com o tagem do distrito - não eram casadas.
senhor, mais liberdade tinham os escravos de O bairro rural de N. Sra. da Penha de Franca
tomar suas próprias decisões e fazer seus pró- incluía somente 33,3% de domicílios bran-
prios arranjos. Assim, os escravos do campo cos, mas a proporcfio de mães não-casadas
teriam estado menos sujeitos a interferência também eramuito baixa - 19%. Mães brancas
que os cativos domésticos, e os de unidades - não-casadas perfaziam somente 8,6% das
maiores teriam tido mais sorte a esse respeito mães brancas e mães negras não-casadas in-
do que os escravos urbanos ou os de proprie- cluíam 33,3% do total de mães negras58.
dade de lavradores c pequenas agricultores55.
O estabelecimento de uniões entre os es-
Leila Mezan confirma as observações de cravos, oficializadas ou não pela Igreja, instáveis
Schwartz, acrescentando ainda que: ou duradouras, e a constituição de núcleos fami-
liares, não dependiam, porém, exclusivarnente do
... o ambiente urbano, dada a sua natureza consentimento ou pão dos senhores e das condi-
heterogênea, e ao tamanho reduzido da pro-
priedade escrava, deveria dificultar tais uni- ções oferecidas pelo regime escravista. Os cati-
ões, isto c, casais com filhos vivendo sob um vos viram, no usufruto da vida em família, uma
mesmo teta. Por outro lado, essa mesma forma de suavizar o cativeiro em que se encon-
^lealidade urbana facilitava o cantata entre travam.
escravos de outros senhores e estimulava os
encontros amorosos56.
Mary Karasch, por exemplo, afirma que:
Independentemente de seus senhores, os afri-
O que se verificava, então, nas cidades, é a canos geralmente zombavam uniões
presença marcante de mães solteiras, particular- consensuais que não tinham o seccionamento
da igreja ou de seus pão prietários. Muitas
mente mães negras, vivendo sozinhas com seus delas eram relações estáveis quê produziam
filhos ilegitimos. Conforme aponta Elizabeth filhos (...) O casamento, pelo seu significado
Kuznesof, após uma análise detalhada dos padrões social era, muitas vezes, buscado pelos escra-
de casamento na cidade de São Paulo do inicio vos os quais, par esse expediente, procura-
vam estabelecer a legitimidade de suas
do século XIX, nos núcleos urbanos do passado famflias59.
brasileiro, eram visíveis as dificuldades para a
constituição de famílias escravas nucleares, está- Na Bahia, Stuart Schwartz observou o
veis e duradouras. Por outro lado, prossegue mesmo fénômeno:
Kuznesof, nas cidades, eram maiores as possibi-
... embora os proprietárias detivessem o po-
lidades das mães solteiras encontrarem trabalho der máximo na determinação das oportuni-
para sustentarem-se a Si e a seus rebentos57. Ten- dades de vida c das disposições familiares dos
do em conta a proporção de mães solteiras em escravos, estes não eram completamente in-
relação ao número total de mães para as paróqui- capazes de infiue]nciar as decisões que afe-
as da Sé (urbana), Santa Ifigênia (suburbano) e tavam suas vidas. No relacionamento senhor-
escravo havia espaço para manobras60.
Nossa Senhora da Pen’na (rural), segundo a cor,
em 1836, constatou a autora: Acrescenta o Autor que, a formação de fa-
mílias no seio da população escrava baiana atua-
A paróquia urbana da Sé, com uma média de
70% dos domicílios encabeçados por pessoas va como elemento de resistência negra à escravi-
brancas, contava com cerca de 33% de mães dão. Segundo ele,
solteiras das quais 26% eram brancas e 52%
negras (...) A secção suburbano de Santa ... em face da implacável demografia da es-
Ifigênia possuía uma população que incluía cravidão baiana e das limitações impostas pela
54,2% de domicílios brancos com uma pro- instituição às opções e oportunidades de vida
porção de 18,6% de mães nãocasadas. O nú- para os que sofriam o cativeiro, os escravos
mero de mães solteiras brancas nesta secção procuraram criar formas sociais e culturais
foi o mais baixo no distrito da cidade - 8,6% que lhes proporcionassem consolo e apoio
de mães brancas - enquanto somente 30,6% naquele mundo hostil61.

55 SCHWAR1Z, S. (1988). Op. Cit. p. 318.


56 ALGRANTI, L. M. O feitor ausente. Estudos sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro, 1808 -1822. Petrópolis, Vozes, 1988. p. 151.
57 KUZNESOF, E. ‘llegitimidade, raça e laços de família no Brasil do século XIX: uma análise da informação de censos c de
badismos para São Paulo e Rio de laneiro’. Ia NADALIN, S.; MARC^fLIO, M. L.; BALHANA, A. P. História e população. São
Paulo, SEADE, 1990. p. 164-174.
58 Idem. Idem. p. 169-170.
59 KARASCH, M. (1987). Op. Cit. p. 287 e 296.
60 SCHWAR1Z, S. (1988). Op. Cit. p. 318.
61 Idem. 1dem. p. 310.

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Assim, a família escrava brasileira matrimônio e à organização de fantasias estáveis


es~uturou-se, ao longo do século XIX, mais fre- como forma diminuir o peso da escravidão, re-
quentemente do que se costuma afirmar, depen- sistindo, portanto, à instituição escravista.
dendo certamente do desejo dos cativos e de uma
conjuntura favorável à sua concretização.
No entanto, os escravos recorreram inúme- recebido em: 11/05/94
ras vezes, mesmo contra a vontade do senhor, ao aprovado em: 20/08/94

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Refere-se ao Art. de mesmo nome, IV(1), 60-70, 1994 Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, IV(1), 1994

Tabela 1: Razão de masculinidade e participação de escravos casados oi viúvos (%)

Tabela
Tabela2:2:Tamanho
Tamanhodo
doplantel
planteleeparticipação
participaçãode
deescravos
escravoscasados
casadosou
ouviúvos
viúvos(%)
(%)

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