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CRISTIANISMO DE LIBERTAÇÃO

E TEOLOGIA DA LIBERATAÇÃO:
INSPIRAÇÃO EVANGÉLICA E PENSAMENTO
MARXISTA NA GÊNESE DE UM CAPÍTULO
DA TEOLOGIA LATINO-AMERICANA*

ALESSANDRO RODRIGUES ROCHA**, WESLEY MELLO OLIVEIRA***

Resumo: refletir sobre as relações entre cristianismo de libertação e Teologia da Libertação,


no sentido de perceber como se encontram inspiração evangélica e pensamento marxista na
gênese da Teologia da Libertação é a intenção do presente artigo. Para tanto percorreremos
o seguinte caminho: em primeiro lugar apresentar o cristianismo da libertação como locus
da Teologia da Libertação, evidenciando a participação popular laica no movimento em-
brionário da Teologia da Libertação; em segundo lugar chamar a atenção para as tensões
acerca do cristianismo da libertação, a saber as forças divergentes dentro da Igreja Católica.

Palavras-chave: Cristianismo. Teologia. Libertação. Marxismo. Movimentos popularesrra.

R 
efletir sobre as relações entre cristianismo de libertação e Teologia da Libertação,
no sentido de perceber como se encontram inspiração evangélica e pensamento
marxista na gênese da Teologia da Libertação é a intenção do presente artigo.
Para tanto queremos propor um panorama que possibilite o leitor identificar o momento
que propicia o surgimento da Teologia da Libertação e os fatores que para isso cooperaram.
Além disso buscaremos evidenciar da melhor maneira possível os métodos pelos quais se dão
as ações dessa teologia e quais são os fundamentos que nortearão sua prática. Para tal, faz-se
necessário esclarecer que apesar da intensa ligação com os movimentos de esquerda e forte
influência de ideais socialistas e marxistas, esse movimento não poderá ser compreendido

* Recebido em: 04.10.2016. Aprovado em: 24.11.2016.


** Pós-doutor em Letras pela PUC-Rio. Doutor e Mestre em Teologia pela PUC-Rio. Especialista em Educação
pela PUC-Minas. Graduado em Teologia pelo CES/JF. Licenciado em Filosofia pela UCP. Professor na
FAECAD. Diretor do Instituto Interdisciplinar de Leitura da PUC-Rio. E-mail: alessandro-rocha@puc-rio.br
*** Especialista em História do Pensamento Cristão pela FAECAD Graduado em História pela UCP. E- mail:
wmo.work@gmail.com

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como um produto apenas ideológico, com o risco de se perder sua principal característica,
que consiste em não ser um trabalho de instrução e ação norteadas apenas pela materia-
lidade, mas sim, uma práxis fundamentada na ideia cristã de igualdade e justiça entre os
homens, cuja figura inspiradora é o próprio Jesus Cristo.
Perder de vista esta configuração do movimento é desvirtuá-lo e localizá-lo sem
distinção entre tantos outros (não menos importantes) movimentos de cunho marxista e
de ideal socialista. Essa explicação é necessária no sentido de se entender que essa teologia,
embora possa ser posta entre eles, por conta de algumas de suas características, não poderá
estar limitada às suas respectivas práxis. Uma vez entendido isso, pode-se dar o passo para a
apresentação do contexto histórico e social da Teologia da Libertação, bem como, do que ela
é e os princípios que a norteiam.

O CRISTIANISMO DA LIBERTAÇÃO: A PARTICIPAÇÃO POPULAR LAICA


NO MOVIMENTO EMBRIONÁRIO DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

A Teologia da Libertação, segundo Löwy (2000, p.56), “é um corpo de textos pro-


duzidos a partir de 1970 por intelectuais (teólogos e outros intelectuais que teorizaram sobre a
práxis libertadora) latino-americana”. A data sugerida por ele, no entanto, refere-se a um deter-
minado momento histórico, que é quando os primeiros escritos sobre o tema do “cristianismo
da libertação” começaram a ser produzidos. Esta denominação foi escolhida por este autor para
denotar uma luta que já acontecia para além das delimitações do campo institucional da Igreja,
no início dos anos 1960, quando, preocupados com as situações de pobreza no continente,
diversos movimentos sociais populares e com alguma identidade com a Igreja adotaram como
prática norteadora de sua fé a indignação frente às tantas situações de injustiça que se lançavam
sobre o povo latino-americano. Löwy, lançando mão de uma fala de Leonardo Boff, afirma:

A teologia da libertação é, ao mesmo tempo, reflexo de uma práxis anterior e uma reflexão
sobre essa práxis. Mais precisamente é a expressão de um movimento social que surgiu no
começo da década de 60, bem antes dos novos escritos teológicos. Esse movimento envolveu
setores significativos da Igreja (padres, ordens religiosas, bispos), movimentos religiosos
laicos (Ação Católica, Juventude Universitária Cristã, Juventude Operária Cristã, redes
pastorais com base popular, Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), bem como várias
organizações populares criadas por ativistas das CEBs; clubes de mulheres, associações
de moradores, sindicatos de camponeses ou trabalhadores, etc. (LÖWY, 2000, p.56).

Pautado nessa concepção de que a Teologia da Libertação possui um movimento que


a antecede – no que se refere aos escritos da década de 70 que lhe garantiriam tal nome -, Löwy
pondera que esse influxo não poderia ser de igual modo chamado de Teologia da Libertação
pelo motivo de não serem teólogos a maioria de seus ativistas e, por isso, não haveria ainda aí
uma teologia sistematizada em torno da prática libertadora, tal qual viria a ser. Deste modo,
outro nome que se costuma dar a essa mobilização seria “igreja dos pobres”; o que, segundo a
perspectiva do autor, não seria conveniente, pois o grupo estaria localizado para além dos li-
mites da igreja institucional, e dar-lhe o nome de “igreja dos pobres”, pode acabar por levar ao
entendimento de ser esse movimento um braço institucional. Löwy por esses motivos propõe
a denominação de (LÖWY, 2000, p. 57) “cristianismo da libertação” por ser mais abrangente

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no que tange a não remeter obrigatoriamente o movimento a um grupo de teólogos e, tam-
pouco, a um grupo filiado e tutelado pela Igreja Católica.
O cristianismo da libertação tem sua inspiração na longa história de testemunho
de cristãos em face aos enfrentamentos das questões sociais e políticas. Essa história foi de-
vidamente acolhida e orientada pelo Magistério da Igreja em forma de uma doutrina social.
Por doutrina social, pensamos, sobretudo, nas grandes encíclicas, nos documentos sociais dos
Papas e, nas Conferências Episcopais dos últimos cem anos que constituem, hoje, a expressão
sistematizada do Magistério no que tange os temas sociais1. Este conjunto de posicionamen-
tos da Igreja Católica mostrou-se uma fonte permanente para os movimentos leigos em seus
mais diversos engajamentos, para clérigos, numa ação mais especificamente teológica e, para
não religiosos, uma vez que tais posicionamentos reforçavam suas lutas em terreno laico.
Löwy evidencia que, apesar de abrigar diversos teólogos e um amplo número de
católicos, o movimento não exigia que seus componentes fossem cristãos, ao contrário,
fundamentava-se na participação livre de diversos indivíduos da sociedade - católicos ou
não, teólogos ou não -, o que permite a compreensão de ser a prática do cristianismo pro-
posto por esse grupo itens que não estarão murados por opções institucionais, mas pelo
sentimento comum da luta por justiça, sendo, portanto, a opção de estar na Igreja um fator
não obrigatório aos seus membros. A Teologia da Libertação – prosseguindo nos ideais
do cristianismo da libertação - foi um movimento que uniu religiosos e não religiosos na
luta por justiça para os latino-americanos e, no que se refere à sua prática, se orientará em
acordo com uma perspectiva teológica baseada em uma nova interpretação das escrituras
sagradas.
Bem como não se pode classificá-lo indiscriminadamente como apenas mais um
movimento de esquerda, como já dito, não se pode também configurá-lo por uma composi-
ção homogênea de cristãos, sendo este, todavia, um conjunto de pessoas norteado pela luta
por justiça social. A esse respeito, também afirma Leonardo Boff (2010, p. 14) que “a Teologia
da Libertação encontrou seu nascedouro na fé confrontada com a injustiça feita aos pobres”.
Esta afirmação contribui não apenas para a compreensão sobre o nascimento da Teologia
da Libertação, mas, de igual modo, para se depreender a dimensão da ação a que se propõe,
indicando que a opção pela Instituição Católica é secundária, frente ao motivo principal e
que norteia a prática dessa nova teologia que começa a se construir: a indignação diante da
pobreza e da injustiça. Nesse sentido, a prática cristã se dá pela tomada de consciência e na
luta por uma construção histórica que não admita a pobreza e a violência ao homem e à sua
liberdade – ainda que o agente dessa prática não seja cristão confessional -, por isso é que essa
incipiente teologia não se limita aos muros institucionais, por acreditar que uma nova cons-
trução histórica é trabalho para toda a humanidade, conforme dito por Gustavo Gutierrez
(2000, p. 90), em livro considerado inaugural da Teologia da Libertação:

Em outras palavras, o que está em jogo, sobretudo, é uma concepção dinâmica e histórica
do homem, orientado definitiva e criativamente para seu futuro. Atuando no presente
em função do amanhã. É a humanidade que [...] tomou nas mãos as rédeas da evolução.
A história, contra toda perspectiva essencialista e fixista, não é o desenvolvimento de
virtualidades preexistentes no ser humano, mas, a conquista de novas formas, qualitati-
vamente distintas, de ser homem; em vista de uma realização cada vez mais plena e total
de si mesmo, solidariamente com toda a coletividade humana.

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O caráter heterogêneo – do ponto de vista religioso - do cristianismo da libertação
possibilitou ao povo maior integração às lutas sociais que se propunham empreender. A ala cris-
tã bastante forte e até majoritária dentro do movimento em questão, deu a este a possibilidade
de angariar adeptos na medida em que se justificava por meio de sua fé (uma vez que se apro-
ximava de pessoas que outros movimentos sociais não conseguiam alcançar, ainda que tivessem
os mesmos ideais), indo contra as mazelas que castigavam a América Latina naquele momento,
compreendendo que a libertação humana deveria ser “plena e integral”, ou seja, não apenas da
alma ou após a morte, mas, o que Catão (1986, p. 63) chama de “libertação histórica”, dado
que a pobreza e a injustiça social são resultantes de um processo histórico. Esta ala compunha,
portanto, um grupo que se utilizava de uma perspectiva religiosa e se ia engajando politica-
mente; assim, os seus muitos militantes que eram oprimidos pelo sistema capitalista e afetados
pela pobreza, “tomavam consciência de sua condição de explorado e se organizavam para a luta
enquanto cristãos, associados à Igreja e norteados por uma fé” (LÖWY, 1991, p. 26).
O cristianismo da libertação - e a posterior Teologia da Libertação -, deste modo,
caminhava no sentido de tornar o pobre em agente de sua luta e de seu próprio destino, sen-
do este o conquistador de sua igualdade perante a sociedade. Neste processo, foram funda-
mentais os movimentos sociais como a Juventude Universitária Católica (JUC), a Juventude
Operária Católica (JOC), entre outros, que tiveram efetiva importância na organização e ação
da prática libertadora. Porém, a luta que travavam ao lado dos pobres, em muitos casos, fazia
com que seus componentes, em razão das convicções que iam adquirindo durante a luta, se
afastassem cada vez mais da estrutura eclesial pois passavam a discordar as posições da hie-
rarquia diante do cenário injusto que se estabelecia. Sobre isso Löwy (2000, p. 72) comenta:

Movimentos católicos laicos, tais como a Juventude Universitária Católica, a Juventude


Operária Católica e a Ação Católica [...] se comprometeram com as lutas populares,
reinterpretaram o Evangelho à luz de sua prática e, em alguns casos, foram atraídos pelo
marxismo. [...] Vários deles começaram a passar por uma dinâmica de autonomização,
semelhante à da JEC francesa (Juventude Estudantil Católica) analisada por Danièle
Hervieu-Léger: na primeira fase, os ativistas cristãos “assumiram plenamente” o meio
que pretendiam converter à palavra de Deus, identificando-se intensamente com suas
aspirações coletivas; a seguir surge o desejo de autonomia, na medida em que esses com-
promissos profanos não se encaixavam com as normas religiosas; finalmente, o conflito
com a hierarquia explodiu quando o movimento adotou publicamente uma posição
diferente da posição oficial da Igreja em uma ou outra questão social ou política.

Entre tantos outros grupos aliados ao cristianismo da libertação, há um que, para


Löwy, tornou-se fundamental na consolidação desse novo ponto de vista. Este é compos-
to, por sua vez, de intelectuais que estariam inteirados sobre os assuntos da modernidade,
inclusive, no que tangia às convulsões sociais que se iam acentuando nos contextos latino­-
americanos e que eram influenciados, por seu turno, também pelas conjunturas exteriores ao
continente. Esse grupo traria consigo a característica de forte influência marxista na aborda-
gem e compreensão histórica da realidade:

Esses economistas, sociólogos, planejadores urbanos, teólogos e advogados cons-


tituíam uma espécie de aparelho intelectual leigo da igreja, que introduzia na instituição os

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últimos acontecimentos nas ciências sociais – o que, na América Latina a partir da década de
sessenta, significava sociologia e economia marxistas (LÖWY, 2000, p. 72).
Outra característica importante na constituição da Teologia da Libertação será a
influência da teologia progressista francesa, isto é, a experiência trazida pelo padre Lebret (re-
ligioso francês envolvido com a luta dos operários na França) na organização de eventos aqui
no Brasil nos anos 1940, bem como a vinda de diversos missionários franceses, influenciando
muitos homens e mulheres, entre eles importantes figuras como Dom Hélder Câmara, Cân-
dido Mendes e Alceu Amoroso Lima. A teologia progressista vinda da França teria sido, com
isso, de grande importância para o crescimento da Teologia da Libertação, como sugere o tre-
cho escrito por Sandro Ramon Ferreira da Silva (2006, p. 36), em sua dissertação, ao discutir
a participação e o resultado da vinda dessa teologia europeia para o Brasil:

Os movimentos e grupos que aí surgiram teriam sido a base social da teologia da libertação.
Ao formar um laicato mais crítico em relação ao mundo no qual vivia, tais movimentos
despertaram o católico médio para os graves problemas sociais do país e do continente,
no qual praticava sua religiosidade.

É, contudo, importante lembrar que apesar de a Teologia da Libertação ter estado


em algum momento sob a influência francesa, sua formulação se deu por pessoas do con-
tinente latino-americano, sendo uma resposta aos problemas apresentados pelas realidades
respectivas ao continente onde nasceu, tornando-a resultado autêntico do pensamento e ação
latino-americanos. Sobre isso versa o trecho abaixo:

Essa observação [sobre a relação da TL com a teologia francesa] não poderia levar-nos
ao engano de considerar a Teologia da Libertação apenas como um apêndice da teologia
progressista francesa. [...] A Teologia da Libertação tem características autônomas e
surgiu como resposta à realidade latino-americana e não como importação de modelos
de teologia estranhos ao continente (SILVA, 2006, p. 36).

E ainda:

E como qualquer outro movimento social, cultural ou filosófico, a Teologia da Liber-


tação não surgiu por acaso na História da Igreja, no continente americano, não nasceu
no vácuo; antes, está profundamente enraizada numa determinada conjuntura e surgiu
como resposta aos impasses de um momento histórico específico (SILVA, 2006, p. 42).

Assim, ao se falar do cristianismo da libertação, é imprescindível que não se desvin-


cule a ação de alguns membros da Instituição Católica e ação laica cristã e não cristã. O laicato,
nesse sentido, possui grandiosa participação nessa construção, sobretudo, no que diz respeito à
prática que será teorizada futuramente pelos diversos teólogos e intelectuais da libertação que,
por seu turno, não estarão limitados somente à prática intelectual, mas que, de igual modo,
estarão presentes no movimento seja na luta ou na organização pela base do mesmo.
Este breve panorama sobre as origens sociais das organizações ao redor da causa da
Teologia da Libertação por grupos leigos, fez-se necessário para a compreensão da continui-
dade do processo até o momento em que se irá evidenciar a parte da Igreja Católica favorável
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a esta nova perspectiva teológica, bem como a parte que oferecerá resistência ao crescimento
da mesma.

TENSÕES ACERCA DO CRISTIANISMO DA LIBERTAÇÃO:


FORÇAS DIVERGENTES DENTRO DA IGREJA CATÓLICA

Como já acima visto, o cristianismo da libertação será assim chamado por Löwy
para que se possa distinguir sistematicamente o momento de nascimento da Teologia da Li-
bertação que, segundo ele, se dá nos anos 1970 com publicações de diversos textos redigidos
por intelectuais sobre a temática da libertação da América Latina. Todavia, o autor estabe-
lece este marco para que estivesse compreendido que a Teologia da Libertação teria sido, na
verdade, herdeira de um movimento que começara bem antes, o já mencionado cristianis-
mo da libertação. Neste sentido, para além das participações leigas que, por sua vez, foram
fundamentais à elaboração dessa nova teologia, foi igualmente importante a participação de
homens e mulheres ligados(as) institucionalmente à Igreja, estes são os sacerdotes que, em sua
maioria, correspondem às inúmeras ordens religiosas católicas que se manifestaram apoiado-
ras do cristianismo da libertação e que, segundo Löwy (2000, p.73), estariam na vanguarda
dessa nova prática e pensamento religioso, sendo elas o grupo que “mais participa das novas
pastorais sociais e que mais cria comunidades de base”. Este empuxo só é possível, segundo o
sociólogo, graças a certa liberdade de que as ordens religiosas desfrutavam em relação às regras
de controle da hierarquia eclesial e a outro importante fator, que é característica fundamental
nas tantas ordens religiosas: o protesto – tanto contra o mundo quanto contra a Igreja – este,
muito presente na natureza da utopia monástica; e, ainda, o elevado potencial intelectual de
que dispunham.
De igual modo, outra categoria decisiva na formação da Teologia da Libertação
refere-se aos muitos clérigos estrangeiros – sobretudo de Espanha e França - que teriam vin-
do à América Latina com o fim evangelizador e acabaram por se identificar com a luta deste
povo, inclinando-se às suas causas e, por consequência, apoiando suas lutas por justiça, como
a já mencionada teologia francesa, vinda com o padre Lebret. Além disso, diversos padres
franceses que vieram para cá já teriam participado ou possuíam algum conhecimento da ex-
periência dos padres operários na Europa; assim como, os espanhóis teriam trazido consigo
a experiência da luta basca (LÖWY, 2000, p. 74). Por outro lado, a ida também de diversos
latino-americanos à Europa com o fim de estudarem - estes serão os futuros teólogos que
darão corpo teologicamente sistematizado ao cristianismo da libertação - contribuiu para a
disseminação de ideias revolucionárias e contestadoras na América-Latina. Deve-se registrar
o fato de que a Europa nesse momento passa também por situações onde alguns setores da
igreja estão se identificando e engajando em diversas lutas populares, o que futuramente tra-
rá à América - Latina novos ares, no tocante à novas percepções para o cristianismo. A esse
respeito, Dussel (1999, p. 52), quando discute sobre as mudanças eclesiais que indicam a
possibilidade do aparecimento e afirmação da Teologia da Libertação, informa:

Teologicamente a visão da Igreja muda. A colegialidade episcopal descortina novos


horizontes de convocação. [...]. Todos os capítulos da teologia se renovam, mas ainda a
inspiração procede da Europa. Mais ainda, os futuros teólogos vão estudar lá; os católicos
em sua primeira geração, na França preferentemente; os protestantes nos Estados Unidos.

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Aqui, a informação prestada por Dussel é importante para exemplificar que a
experiência dos futuros teólogos da libertação em território estrangeiro e o contato com
a realidade europeia nos anos antecedentes ao surgimento do cristianismo da libertação,
teria exercido forte influência na formação de seus respectivos pensamentos sobre a prá-
tica cristã e a teologia a ser aplicada e praticada na América Latina, assim, fazendo-lhes
questionadores da práxis teológica adotada até então no continente e que era pautada no
conservadorismo da tradição católica. Dessarte, ao segmento laico do cristianismo da liber-
tação cabia o enfrentamento e a discordância do poder secular sendo ele apoiado por alguns
representantes do clero; o “enfrentamento” interno à hierarquia, no entanto, deu-se por
meio desses teólogos que passaram a direcionar suas práticas coadunadas com o cristianis-
mo da libertação ou com uma ação que se aproximasse mais dos pobres do que das classes
opressoras. Deste modo, começa a configurar-se na Igreja uma distinção interna entre os
favoráveis e os não favoráveis ao impulso cristão libertador. Sobre esse impasse que se vai
desenhando, Löwy (2000, p. 58) desfere uma pergunta bastante sugestiva, a qual respon-
derá subsequentemente:

Poderíamos então dizer que há uma “luta de classes dentro da Igreja”? Sim e não. Sim,
na medida em que certas posições correspondem aos interesses das elites dominantes e
outras aos dos oprimidos. E não, na medida em que os bispos, jesuítas ou padres que
chefiam a “Igreja dos Pobres” não são eles próprios pobres. Sua dedicação à causa dos
explorados tem como motivos razões espirituais e morais inspiradas pela cultura religiosa,
pela fé cristã e pela tradição católica.

A pergunta e a imediata resposta de Löwy conclamam a mais uma vez se pensar o


caráter espiritual que norteia a prática do cristianismo da libertação e a Teologia da Liber-
tação. O autor deixa claro que mesmo que a teologia latino-americana se tenha utilizado de
ferramentas de análise marxista em sua formulação teórica, suas causas não podem se situar
somente sob esta reflexão, pois ela é, antes de mais nada, uma crítica ao modo de vida que
ganhara espaço no continente na época e, por consequência, afligia seus povos. A Teologia
da Libertação está - cabe mais uma vez dizer - dividida entre o plano da materialidade onde
se luta pela justiça e libertação do homem e o plano espiritual, onde por meio da justiça e
libertação do homem se poderá instaurar o Reino de Deus. Estando, pois, a reflexão teoló-
gica, nesse sentido, abrigada na premissa de se pensar o Reino divino já no tempo presente
e construí-lo ainda na materialidade. Talvez, resida aqui um dos principais embates entre a
Igreja tradicional e a Igreja da Teologia da Libertação. À Igreja tradicional, opostamente ao
cristianismo da libertação, cabia a compreensão de que a construção do Reino de Deus na
materialidade seria a destruição desse mesmo Reino, pois retirava dele todo o seu aspecto
guiado pela espiritualidade. O trecho abaixo exemplificará essa ambiguidade:

A esquerda católica teria então assimilado a obra de Marx sem lidar com essa ambigui-
dade encarada por Berdiaeff? Construir o Reino do pobre não seria então destruir o
Reino de Deus? Certamente não. Uma das palavras de ordem do pensamento da Igreja
popular daquela época era a construção do Reino de Deus aqui na Terra. E logicamente
esta construção se daria pelas mãos das classes camponesas e proletárias, do sertão, dos
subúrbios, das favelas (SILVA, 2006, p.50).

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Nesse ponto já se pode observar o quão divergente são as visões de cada uma das
compreensões quanto ao porvir - seja este entendido como o Reino de Deus – e tais diferen-
ciações tendem a se acentuar não só quando se pensa na construção do Reino, mas na prática
para alcançá-lo. Isso ocorre quando a Teologia da Libertação começa a adotar outros modos
que não os tradicionais utilizados pela Igreja para abordagem da vida e da realidade, a exem-
plo disso, pode-se apontar a simpatia de grande parte de seus adeptos da nova teologia pela
teoria marxista, a proximidade com os ideais socialistas, o incentivo ao pobre para que este
assumisse seu devido lugar na luta por sua liberdade, o questionamento ao sistema vigente e
que se impunha aos pobres, a crítica ao capitalismo, etc.
Esses caminhos pelos quais a Teologia da Libertação pretendeu andar carregam
consigo a intenção de, sobretudo, tornar o oprimido em um lutador, ou seja, alguém que lute
por sua libertação e que o faça de modo independente. Portanto, seu objetivo seria emancipar
o pobre de toda e qualquer forma de dominação, inclusive as que poderiam vir personificadas
na religião e na própria Igreja. Esta posição, por sua vez, é diretamente conflituosa com a
Igreja Católica no que diz respeito à concepção sobre a pessoa pobre. Segundo Löwy (2000,
p. 59):

Se tivéssemos de resumir em uma única fórmula a ideia central da teologia da libertação,


poderíamos nos referir à expressão consagrada pela Conferência de Bispos Latino-Ame-
ricanos de Puebla (1979): “a opção preferencial pelos pobres”. Mas é preciso acrescentar
que, para a nova teologia, esses pobres são os agentes de sua própria libertação e o sujeito
de sua própria história – e não simplesmente como na doutrina tradicional da Igreja,
objeto da atenção caridosa.

Este caráter de denúncia e protesto contra as injustiças feitas aos pobres é marca
imprescindível do movimento que se estuda aqui. Ainda segundo Löwy, apesar de haver dife-
renças, é fácil encontrar nos escritos dos teólogos da libertação uma série de princípios básicos
que nortearam a ação do movimento (para o qual produzem) e que, portanto, acabarão por
caracterizar uma doutrina em torno da atitude libertadora empreendida nele e que, por sua
vez, será radicalmente contrária à doutrina da Igreja Católica. Aqui serão citados alguns dos
pontos que Löwy enxerga como sendo norteadores dessa prática:

1. Libertação humana histórica como antecipação da salvação final em Cristo, o Reino


de Deus.
2. Uma nova leitura da Bíblia, que dá uma atenção significativa a passagens tais como a do
Êxodo, que é vista como paradigma da luta de um povo escravizado por sua libertação.
3. Uma forte crítica moral e social ao capitalismo dependente como sistema injusto e
iníquo, como uma forma de pecado estrutural.
4. Uso do marxismo como instrumento socioanalítico a fim de entender as causas da
pobreza, as contradições do capitalismo e as formas da luta de classes.
5. A opção preferencial pelos pobres e a solidariedade com sua luta pela autolibertação
(LÖWY, 2000, p.61).

Importa, todavia, pensar em como tais ideias teriam alcançado a esfera institucio-
nal da Igreja Católica. Sobre essa questão Löwy levanta duas correntes de análise do pro-

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cesso de abertura da Igreja a esses movimentos – abertura essa que se iniciará no Concílio
Vaticano II que será brevemente discutido adiante -, e como essas novas ideias ganharam
espaço na Igreja. A primeira das correntes analisadas pelo historiador é a de Thomas C.
Bruneau, que defende a ideia de que a abertura da Igreja deu-se do topo para a base, como
no trecho transcrito abaixo:

Segundo ele [Bruneau], essa igreja tem inovado porque deseja manter sua influência.
Confrontada com a concorrência de diversas correntes religiosas (protestantismo, seitas
etc.) ou políticas (movimentos de esquerda), o declínio das vocações, a crise das suas
finanças, a elite da igreja compreendeu que é preciso inovar, e se voltou para as classes
inferiores (LÖWY, 1991, p. 31).

Para Löwy, essa interpretação não dá conta de todo o processo social, na ordem das
estruturas eclesiásticas, contido no movimento impetrado pelo cristianismo da libertação e
pela Teologia da Libertação, futuramente. Ele refuta essa explicação pelo fato dela desconsi-
derar a alteração ocorrida na prática dentro da igreja dos pobres, isto é, se outrora esta prática
alinhava-se com o discurso conservador e de dominação por parte das elites, doravante, não
mais estaria o discurso pautado por este tom. A Igreja, tendo empreendido mudança tal qual
argumentada por Bruneau não teria alterado sua prática no sentido convergente com a prática
revolucionária como ocorreu na nova igreja, mas procuraria, uma vez que teria encabeçado
este movimento, manter o status quo vigente.
Além disso, quanto à atividade dos próprios clérigos e leigos que se envolveram com
as atividades da Teologia da Libertação, a explicação de Bruneau continua a deixar lacunas
quando, segundo Löwy (1991, p. 32), desconsidera os riscos de morte a que se submeteram.
Riscos estes que indicam uma atividade com autenticidade orgânica, ou seja, que é vivida e
levada adiante não pela estrutura institucional, como disse Bruneau, mas, no dia-a-dia dos
envolvidos nessa prática. Löwy, portanto, não assume a posição de explicar o surgimento do
cristianismo da libertação como sendo uma posição estratégica da Igreja institucionalizada
para garantir-se junto às estruturas de poder, o que conferiria a este a característica de ser um
movimento que acontece de cima para baixo.
Há, entretanto, outra teoria pela qual se procurou compreender a abertura da Igreja
ao cristianismo da libertação, esta, por sua vez, é o outro extremo da possibilidade levantada
por Bruneau. É a concepção romantizada da esquerda cristã que argumentará por meio do
discurso de que “a população tomou posse da instituição, converteu-a e a fez agir por sua
conta” (LÖWY, 1991, p. 32). Sem desconsiderar que este argumento possui suas verdades, o
autor faz outros questionamentos a esse respeito:

Como aconteceu que as classes populares tenham podido, a partir de um certo momento,
“converter” a Igreja à sua causa? Esse tipo de análise tende também a subestimar aquilo
que Leonardo Boff chama (contornando muito bem um conceito marxista) “a autonomia
do campo religioso eclesiástico”, isto é, as determinações sociais e culturais específicas à
Igreja, sem as quais a sua “abertura ao povo”, a partir dos anos 60 não é compreensível
(LÖWY, 1991, p. 32).

E estabelecendo parâmetro entre as duas hipóteses, conclui:


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Parece-me que a aproximação mais eficaz para dar conta do aparecimento na América
Latina do movimento social que é o cristianismo da libertação, e de sua expressão teo-
lógica, é aquela que parte da articulação ou da convergência entre as mudanças internas
e externas à Igreja ao final dos anos 1950 (LÖWY, 1991, p. 33).

Michel Löwy propõe, então, que a lente pela qual se deve avaliar o tema do sur-
gimento da Teologia da Libertação precisa levar em conta as conjunturas da sociedade que
a circundavam, tanto em âmbito eclesiástico quanto em ambientes externos à Igreja e inde-
pendentes de sua ação. Isto é, para que se compreenda o fato do cristianismo da libertação se
estruturando em uma Teologia da Libertação, será necessário analisar sua historicidade, não
dissociando o que é ação da Igreja Católica e as decisões por ela tomadas, dos tantos acon-
tecimentos seculares aos quais estava exposta a América Latina. Seria, portanto, impossível
discutir este tema sem antes estabelecer o elo entre Igreja e Sociedade e como, nestes termos,
um afeta o outro. Como o interno afeta o externo e vice-versa.
Isto posto, a compreensão de Löwy é de que a abertura da Igreja ou a sua perme-
abilização pelos ideais do cristianismo da libertação, não teria sido dada por movimentos
verticais, isto é, nem do topo à base, como afirmou Bruneau, e, tampouco da base para o
topo, como afirmaram os românticos da esquerda cristã. Para ele o movimento foi centrí-
fugo, tendo vindo da periferia para o centro, influenciados tanto por fatores sociais como
por fatores religiosos que levaram às transformações teológicas na Igreja. Assim, o histo-
riador (LÖWY, 2000, p. 69) sugere a hipótese de que o cristianismo da libertação seria “o
resultado de uma combinação ou convergência de mudanças internas e externas à Igreja
que ocorreram na década de 50, tendo se desenvolvido a partir da periferia e na direção do
centro da instituição”.
Tais mudanças estão, por seu turno, associadas, como já dito, aos fatores remetentes
às estruturas eclesiais - sejam estes entendidos, principalmente, como o Concílio Vaticano II, a
Conferência Geral do Episcopado da América Latina em Medellín (1968) e Puebla (1979) - e
o que tange à estrutura secular, como os acontecimentos sociais que balançarão os poderes
estabelecidos na América Latina nas décadas de 50 em diante, como por exemplo a Revolu-
ção cubana, em 1959 e os rumos tomados pelas potências que polarizavam o globo durante a
Guerra Fria. Importa perceber estes acontecimentos de tal maneira para que se possa, assim,
compor um cenário historicizado dessa nova teologia que se vai estabelecendo no continente.
Em linhas gerais – em um parecer breve sobre os fatores internos à Igreja que corro-
boraram para a consolidação da Teologia da Libertação-, o Concílio Vaticano II, que operou
profundas reformas na Igreja Católica, face à necessidade de adequar suas ações às exigências
do mundo moderno, trará novos ares quanto a compreensão dos momentos que o continente
atravessava à época, tendo um peso transformador na prática teológica que passou a vigorar
em parte considerável da Igreja latino-americana. Sobre o concílio, em artigo escrito pelo pro-
fessor e historiador católico, Orlando Fideli, enquanto analisava a abordagem de João Batista
Libânio, sobre esse mesmo tema, constata-se que as transformações no seio da Instituição
Católica (segundo a visão da Teologia da Libertação) possuem caráter de tal modo abrangente
que pôde abarcar as novas demandas da sociedade, denotando, assim, mudança de comporta-
mento em relação ao que se propunha a Igreja antes desse evento. Em decorrência, as reuniões
conciliares não se limitaram a deliberar apenas sobre classificações dogmáticas de sua prática,
todavia, a Igreja, a partir deste momento, se inclinaria às demandas externas à sua hierarquia,

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tendo assim, maior proximidade com as causas motivadoras das lutas empreendidas pela
Teologia da Libertação. Esta nova posição acabou projetando uma Igreja (ou parte dela) que
pôde se aproximar mais dos pobres, na medida em que se importou mais com seus assuntos,
entendendo suas necessidades e refletindo sobre elas; passou, assim, a integrar-se mais às ques-
tões concernentes aos membros leigos da Igreja do que propriamente com os métodos de sua
liturgia, como se vê no texto transcrito em sequência.

Enquanto os Concílios da Igreja foram sempre magisteriais, - foram concílios dogmáticos


por definirem dogmas e condenarem erros, o Vaticano II foi – e quis ser – um Concílio
interpretativo, não dogmático, mas apenas pastoral; o Vaticano II pretendeu interpretar
a doutrina de sempre e não definir dogmas, nem ensinar infalivelmente, nem condenar
ninguém. (FIDELI, 2007).

E ainda, como afirmou Eduardo Hoornaert, sobre o caráter inclusivo e pluralista


adotado no Concílio (HOORNAERT, 1995, p. 20): “efetivamente, o Vaticano II abre espaço
para o diálogo tanto com o Vodu do Haiti, quanto com o candomblé da Bahia, e supera de
longe o clima de apreensões em favor de um compromisso com os pobres”.
De igual modo, a Conferência Geral do Episcopado da América Latina (CELAM)
em Medellín (1968), deu sequência ao que fora decidido no Concílio Vaticano II, aprofun-
dando, inclusive, questões estruturais da sociedade latino-americana, como a pobreza. Como
afirma Leonardo Reichert (2011, p. 16), “Medellín foi a extensão do Concílio Vaticano II e
potencializou sua riqueza na América Latina”. A conferência aconteceu em um tempo onde
o continente experimentava um período de profunda exclusão das camadas pobres da socie-
dade, em face do desenvolvimento que beneficiava uma minoria abastada, ficando o pobre
– o agente para o qual a Teologia da Libertação se movimenta em socorro – suprimido pela
estrutura que se erigiu e impôs ao continente profunda opressão pelas ditaduras militares
que se levantaram na segunda metade do século XX. Neste sentido, em contraposição ao
status quo – acima relatado -, Medellín teria sido um posicionamento progressista da Igre-
ja latino-americana diante dos quadros de injustiças que se tornaram à época tão comuns.
Destarte, “Medellín torna-se relevante porque é voz profética, em que bispos denunciam as
grandes e gritantes injustiças e a violência institucionalizada responsável por tanta miséria”
(REICHERT, 2011, p.24). A Conferência foi, portanto, um evento que ficou marcado pelo
posicionamento de grande parte do clero latino-americano favorável às causas dos pobres no
continente.
A Conferência de Medelín foi importante por ter sido um espaço onde as alas mais
progressistas da Igreja no continente conquistaram maior espaço entre a estrutura eclesial, o
que fez com que a Igreja latino-americana assumisse – não na totalidade, mas em boa parte
sua hierarquia – uma posição que se inclinasse mais aos métodos de prática do evangelho
que remetiam à Teologia da Libertação, dando à Igreja traços de mais semelhança com o
ambiente da América-Latina, admitindo (de modo a pensar sobre) as contradições políticas,
sociais e econômicas que se apresentavam no continente e que, a partir de então, passariam a
ser pautas de discussão para ação da Igreja. A CELAM seria, então, responsável por institu-
cionalmente legitimar uma Igreja que se engajou em questões sociais e que buscou combater
a pobreza, além também de reconhecer a construção religiosa sobre a fé cristã que se havia
constituído na América Latina.
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Semelhantemente, a Conferência de Puebla, em 1979, aparece como outro fator
responsável por mudanças estruturais no seio eclesiástico latino-americano. Na afirmação de
Lucelmo Lacerda Brito (2010, p. 85), a Conferência ocorre em meio ao instante em que as
forças mais conservadoras da Igreja no continente estão em mobilização para deter os mo-
vimentos progressistas e o avanço da prática teológico libertadora e, para tanto, a eleição do
Papa João Paulo II foi decisiva no “combate” à Teologia da Libertação - personificada nos
clérigos de ideologia mais progressistas. Ainda segundo o mesmo autor (BRITO, 2010, p.85-
87), o evento toma proporções de embate político-ideológico no tocante ao que definiria o
modo pelo qual se guiaria a ação da Igreja dali em diante, desvelando, assim, uma clara divi-
são entre conservadores e progressistas no seio da Igreja, inclusive, com traços de boicote do
primeiro grupo sobre o segundo, conforme fragmento abaixo:

Outro importante ocorrido foi a proibição da presença dos teólogos assessores dos bispos,
num mecanismo de marginalização dos teólogos da libertação da confecção do texto final.
Esses teólogos haviam desenvolvido uma grande quantidade de pesquisas e reflexões que
compunham o quadro das manifestações teológicas das conferências episcopais, dioce-
ses, entre outros, constituindo um verdadeiro braço teológico desses bispos. Ao invés de
assumirem igual posição na Conferência, foram nomeados outros teólogos como peritos,
todos na linha conservadora do Vaticano (BRITO, 2010, p. 86).

Porém, embora a Conferência de Puebla tenha tido evidente caráter de disputa


político-ideológica - trazendo à tona, em linhas bem claras, as posições relativas a cada ala do
clero latino-americano – e tenha havido “vitória” da ala conservadora, ainda assim, em con-
cordância com Lucelmo Lacerda (BRITO, 2010, p. 87), houve relativo avanço do lado pro-
gressista no que concerne ao documento final de Puebla, onde a Igreja continuaria mantendo
como norteadora de sua prática a “Opção Preferencial pelos Pobres”, que seria ainda uma
afirmação da Conferência de Medellín e do Concílio Vaticano II que, nestes termos, tiveram
muito mais participação progressista em suas decisões do que Puebla.
Fora do campo estritamente religioso, outro fator importantíssimo e que influen-
ciou o cotidiano da América Latina de modo a abrir campo para atuação da Teologia da Liber-
tação, teria sido a instabilidade que se desencadeou no continente após a Revolução cubana
em 1959, que resultou na deposição do então presidente de Cuba e no rompimento de relações
diplomáticas entre o país e os Estados Unidos que mantinha interesses econômicos no local.
Receoso de que o exemplo cubano se pulverizasse entre os demais países latino­­-americanos, a
resposta norte-americana viria por meio da intervenção política nesses países, onde foram
depostos diversos governos que não se alinhavam plenamente com seus interesses. Esta ação
radicalizou no continente a violência contra quaisquer opositores dos governos autoritaristas
que se levantaram, bem como cerceou direitos civis e acentuou a pobreza em razão das políti-
cas econômicas que passaram a vigorar junto ao projeto desenvolvimentista.

CONCLUSÃO

Löwy argumenta que não se pode ignorar a dinâmica existente entre os assuntos e
ações para as quais se voltaram a hierarquia da Igreja dos movimentos que aconteciam fora de
seus muros para que se possa traçar o que possibilitou o nascimento da Teologia da Liberta-

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ção, o autor refere-se ao concílio e às conferências eclesiásticas e, aos impasses que se vinham
estabelecendo a partir dos conflitos ideológicos que se apresentavam em consequência do
momento histórico que se impunha ao globo pela Guerra Fria, e conduz o leitor a pensar em
como esses itens fervilhavam na sociedade latino-americana.
Assim, como dito ainda no início deste artigo, a Teologia da Libertação é o resul-
tado dos escritos acadêmicos sobre a prática que já havia algum tempo estava presente no
cristianismo da libertação. Ela surge, assim, como uma abordagem e interpretação teológica
que terá como fim o combate às injustiças e o ideal de se consolidar uma sociedade forte na
promulgação de justiça entre os homens e mulheres. Tais características farão da Teologia da
Libertação uma força de grande importância nos combates às ditaduras militares que, para
conter o avanço de novas experiências inspiradas no povo cubano, se levantarão e escreverão
aquilo que, segundo o olhar de muitos estudiosos sobre o tema, foi um dos instantes mais
sangrentos pelos quais passou o continente.

CHRISTIANITY OF DELIVERANCE AND LIBERATION THEOLOGY:


EVANGELICAL INSPIRATION AND MARXIST THOUGHT IN THE GENESIS
OF A CHAPTER OF LATIN AMERICAN THEOLOGY

Abstract: reflect on the relationship between Christianity and liberation theology of liberation,
in the sense of understanding how are Evangelical inspiration and Marxist thought in the gen-
esis of the theology of liberation is the intention of this article. To this end we will go through
the following path: first introduce the Christianity of liberation as locus of liberation theology,
popular participation in the embryonic movement of secular liberation theology; second call
attention to tensions about the Christianity of liberation, namely divergent forces within the
Catholic Church.

Keywords: Christianity. Theology. Liberation. Marxism. Popular movements.

Nota
1. Para um aprofundamento sobre o tema da doutrina social é adequado ler o Compendio da Doutrina Social
da Igreja, organizado pelo Pontifício Conselho “Justiça e Paz”. (VVAA, 2004).

Referências

BOFF, Leonardo. Como fazer Teologia da Libertação. Petrópolis: Vozes, 2010.


BRITO, L. Medellín e Puebla: epicentros do confronto entre progressistas e conservadores
na América Latina. Revista Espaço Acadêmico. N. 111, p. 81-89.
CATÃO, Francisco. O que é Teologia da Libertação. São Paulo: Nova Cultural; Brasiliense,
1986.
DUSSEL, Henrique. Teologia da Libertação - um panorama de seu desenvolvimento. Petrópo-
lis: Editora Vozes, 1999.
FIDELI, Montfort. Associação cultural. Disponível em: <http://www.montfort.org.br/old/
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de maio de 2007.
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2000.
HOORNEART, Eduardo. História da Igreja na América Latina e no Caribe, 1945-1995.
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LÖWY, Michel. Marxismo e Teologia da Libertação. São Paulo: Cortez, 1991.
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REICHERT, L. A influência da conferência de medellín na vida eclesial da arquidiocese de
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