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A Vida e a Morte
(por Florbela Espanca,
aos 8 anos de idade)
Quando recebemos o convite para escrever este texto, fomos pegos de surpresa e
precisamos de algumas horas para confirmar. A surpresa se deu em dois sentidos: merecimento
e capacidade. Primeiro, não estávamos seguros se merecíamos mesmo tal presente, pois
tanto Fúlvia Rosemberg como a Revista Estudos Feministas são, para nós e para muitos/as,
referências de conhecimento e cultura e, portanto, escrever este texto não era tarefa para
qualquer um. Segundo, tínhamos dúvidas se seríamos capazes de desenvolver tal tarefa.
Neste caso, a dúvida era tanto em função da dor da perda (que se potencializa, à medida
que as memórias são acionadas ao elaborarmos um texto desta natureza), como também
pelo reconhecimento do nosso limitado conhecimento sobre a grande obra de Fúlvia. Enfim,
nossa primeira reação foi: há pessoas muito mais capazes e legítimas de tal honraria.
Continuamos com essa certeza, mas, conversando com uma amiga muito especial
que nos foi apresentada pelo feminismo (Márcia Laranjeira), decidimos aceitar o convite,
pensando que esta não será nem a única, nem a melhor homenagem a nossa Fúlvia.
“Vocês podem escrever um texto a partir do lugar em que vocês se sentem mais à vontade!”,
nos disse Márcia. Assim, aceitamos este convite e resolvemos escrevê-lo a partir do lugar
das boas recordações e do profundo afeto que nutrimos por Fúlvia.1
Precisamos começar dizendo que foram inúmeras as contribuições de Fúlvia para
nossas vidas, para o movimento feminista, para o campo de defesa dos direitos da criança,
2
O Mulherio tinha como editoras Fúlvia e Adélia Borges. O conselho editorial (informado na edição 0) era
composto por: Carmem Barroso, Carmem da Silva, Cristina Bruschini, Elizabeth Souza Lobo, Eva Alterman Blay,
Fúlvia Rosemberg, Heleieth Saffioti, Lélia Gonzales, Maria Carneiro da Cunha, Maria Moraes, Maria Malta
Campos, Maria Rita Kehl, Maria Valéria Junho Penha, Marília de Andrade, Marisa Correa e Ruth Cardoso. O
projeto gráfico era de Derly Barroso, e a jornalista responsável, Adélia Borges. O acervo deste periódico está
completamente disponível no site da FCC (www.fcc.org.br/conteudosespeciais/mulherio).
Mulherio, por sua vez, nada mais é do que “as mulheres” ou “uma grande porção de
mulheres”. É o que somos, é o que este jornal será. Sim, nós vamos nos assumir como
o Mulherio e, em conjunto, pretendemos recuperar a dignidade, a beleza e a força
que significam as mulheres reunidas para expor e debater seus problemas. De uma
maneira séria e consequente, mas não mal-humorada, sizuda ou dogmática.
Num depoimento publicado pela Fundação Carlos Chagas,3 Fúlvia expressa sua
paixão por aquele projeto e pelos efeitos que o Mulherio produziu:
Mulherio! O nome veio da Carmen da Silva, recuperar palavra desairosa sobre nós
mulheres. Dar uma piscadela para a irreverência, enquanto imprensa nanica, mas
guardando a seriedade de um projeto da Fundação Carlos Chagas. Muita ousadia
daquele grupo de pesquisadoras e de jornalistas, produzir um jornal feminista,
independente, com recursos escassos, menos nossa vontade de fazê-lo, pontualmente,
mantendo, se não a irreverência, pelo menos um bom humor. Adélia Borges e Inês
Castilho, corajosas ao embarcarem na experiência, davam o tom. Marlene Rodrigues,
diagramadora, compunha o visual. Miriam Tanus mantinha o cotidiano.
As reuniões de pauta eram fantásticas, com sugestões muito avançadas para a
imprensa militante mas que nem sempre puderam se concretizar.
A adesão de ativistas e acadêmicas foi imediata e calorosa, colaborando com artigos
e comentários. Algumas matérias são inesquecíveis e me voltam à memória, como
aquela sobre a velhice com sua dançarina viúva diante do espelho. Saudades do
mulherio!
3
http://www.fcc.org.br/conteudosespeciais/mulherio/depoimentofluvia.html
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Jorge foi seu orientando; Benedito, seu aluno.
Algum tempo depois, Fúlvia nos surpreendeu quando, de modo bem sutil, escalou-se
para ir conosco ao “Segundo ato”, barzinho que ficava ao lado da PUC, onde íamos com
outros colegas do curso celebrar a vida e falar das agruras de viver e de estudar em São
Paulo.5 Naquela ocasião, pudemos conversar sobre o primeiro encontro e brindamos uma
amizade que alimentou vários outros encontros, sempre marcados pelo bom humor, por vezes
ingênuo, por vezes mais ácido, pelo carinho de um bom abraço, pela transparência de
posições e pela escuta e disputa de argumentos.
Foi Fúlvia quem nos apresentou as leituras, as pessoas e as instituições de maior
referência no feminismo brasileiro e internacional. Foi ela quem nos falou, com vigor, que
ciência, arte e política são campos com regras e processos particulares, mas que dialogam
e se afetam mutuamente. Foi ela quem nos apresentou Johannes Vermeer, um pintor holandês
que teve uma vida curta (1632-1675) e uma produção pequena, mas de beleza rara e
estilo, cor e luz inconfundíveis.
Foi ela quem nos apresentou a Fundação Carlos Chagas, onde encontramos os
textos que nos ajudaram a definir, na época, nossos objetos de pesquisa. Também nos
apresentou a organização Não Governamental ECOS – Comunicação em Sexualidade, na
época coordenada por uma de suas ex-orientandas (Silvia Cavasin). Nas ECOS, conhecemos
pesquisadores/as que tinham o prazer do encontro e o desejo de produzir uma ciência
comprometida com a transformação social, entre eles/as alguns/mas que têm por Fúlvia
muito carinho e gratidão, tais como: Margareth Arilha, Leandro Andrade, Elizabete Franco
(que foram seus orientandos) e Sandra Unbehaum.
Foi Fúlvia também quem nos incentivou a fundar o Instituto PAPAI e o Gema/UFPE e a
seguir no desenvolvimento de pesquisa e outras intervenções políticas sobre homens e
masculinidades, a partir da perspectiva feminista de gênero.
Na verdade, foi ela quem idealizou o PAPAI, incentivando-nos a apresentar nosso
primeiro projeto ao edital da MacArthur, quando finalizávamos nossas dissertações (em
1997). Apresentamos um esboço muito capenga e ela, depois de um café e um cigarro,
voltou com “gosto de gás” (como se diz por aqui) e embarcou conosco na viagem.
Ela elaborou conosco o projeto e desenhou as principais linhas de ação, que
envolviam ensino, pesquisa e extensão, já no seu primeiro esboço. Nos indicou pessoas de
contato. Nos ajudou a escolher o nome da instituição e a pensar a ideia do boneco
gigante de Olinda como dispositivo cultural que poderia promover a visibilidade de cenas
de cuidado promovidas por homens. Até a viagem feita de São Paulo a Recife para articular
parcerias foi paga com as milhas dela.
Foi ela quem nos ajudou a definir o “cuidado” como princípio ético norteador das
ações com/sobre homens a partir da perspectiva feminista de gênero, dando visibilidade
à ideia de que, em nossa cultura, o cuidado é tanto desvalorizado como radicalmente
atribuído às mulheres, menos como direito e mais como obrigação, ao passo que os homens
são alijados e muitas vezes se alienam da possibilidade dessa experiência.
Quem teve o prazer de ler as produções de Fúlvia e conviver com ela, há de concordar
conosco que Fúlvia era, na mesma medida, exigente e cuidadosa. Apaixonada e
apaixonante. Gostava de quem tinha paixão pela vida, como ela.
Fúlvia foi 100% educadora. Alguns episódios nos fazem recordar sua disponibilidade
em aprender e ensinar, questionando certezas e provocando reflexões e deslocamentos, seja
em sala de aula, quando nos provocava e nos exigia a definição de um objeto e uma
pergunta de pesquisa inteligível, seja em momentos mais informais, como o dia em que ela
5
Vera Menegon, Luiz Rala, Érico Renteria (e Esperanza, sua companheira), Vania Neri, Elaine Laviola, Leandro
Feitosa e tantos outros/as amigos/as compartilharam destes agradáveis encontros e difíceis momentos.
nos relatou sobre a decisão de manter o sobrenome do seu ex-marido (com quem ela sempre
manteve respeitosa e carinhosa relação, mesmo após a separação). Como ela costumava
dizer: “Fúlvia Rosemberg foi criada por mim. Não pelo meu casamento”. Muito simplista essa
ideia de que retirar o sobrenome do marido seria uma forma de contrapor-se à ordem patriarcal.
Há muitas formas mais efetivas de fazê-lo. E pode ter certeza que Fúlvia o fez.
Lembramos também o dia em que nos revelou que era irmã do polêmico (termo que
diz muito pouco sobre) Luiz Mott, numa mesa de bar, em que alguém enunciava uma crítica
a ele. Poderia ter ficado calada, ouvir tudo e só depois se manifestar, mas, de modo ético,
preferiu adiantar a informação de modo a não gerar constrangimento e, de algum modo,
colocar todos na mesma condição de pessoas informadas.
Mais recentemente, quando ela esteve em nossa casa, em Recife, preparamos um
prato especial, daqueles que se pensa com bastante antecedência e que tarda uns dois
dias para preparar. Após algumas taças de vinho, risadas e atualização de informações,
ao sentar à mesa ela nos faz uma pergunta intrigante: “Vocês são meus amigos?” Mesmo
sem entender o motivo da pergunta, respondemos prontamente que sim. Essa foi a forma
delicada (que poucos são capazes) de nos dizer que entre amigos não deve haver
constrangimentos. Foi a forma carinhosa de ela dizer que não gostava de bacalhau.
Memórias e momentos de aprendizagem são tantos e tão intensos quanto a saudade.
Por isso, ao encerrar este texto, surge uma terceira resistência que não se mostrou tão evidente
quando recebemos o convite para produzi-lo, mas que agora dói quando materializamos
uma certeza: não mais nos encontraríamos com ela no final de setembro de 2014, como
havíamos planejado e desejado. Não poderemos mais convidá-la para fazer o prefácio de
um livro sobre memórias que estamos concluindo. Não poderemos mais abraçá-la, “tirar
onda” com ela, discutir com ela, aprender com ela, senti-la... Nem poderemos mais comer o
carneiro com cuscuz marroquino servido na bela tajine, acompanhado de um delicioso
vinho tinto, que ela nos ofertava em seu apartamento com tanto carinho; não poderemos
mais pedir-lhe cópia do conto erótico que ela escreveu e com o qual ganhou um concurso,
no qual teve que usar, na época, um pseudônimo; não poderemos mais ofertar-lhe uma
simples gérbera.6
Assim, assumindo a incapacidade de escrever aqui as “últimas palavras”,
agradecemos a Carmem Barroso, que, com sua manifestação de afeto, ajudou-nos a
encontrar as belas palavras com as quais gostaríamos de finalizar essa especial
homenagem da Revista Estudos Feministas à grande mulher, Fúlvia Rosemberg, pois, como
diz a poetisa feminista portuguesa Florbela Espanca (que inspirou a epígrafe deste texto e
que foi retratada num filme que nos acalentou no dia seguinte à partida de nossa amiga):
“Há uma Primavera em cada vida. É preciso cantá-la assim florida”.
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Compartilhamos com Gabriela Calazans um desses memoráveis momentos em que esta flor fez um sentido
especial para nós.
A jovem que voltava de Paris com um vivo interesse nos estereótipos sexuais
nos livros infantis.
Nossa afinidade imediata com uma causa comum.
A seriedade ao considerar nosso convite para se juntar à Carlos Chagas.
O trabalho da bibliografia anotada.
O senso de humor ao lidar com os egos
O rigor na metodologia
A disciplina na execução.
Produção
Para quem quiser acessar uma lista das produções acadêmicas de Fúlvia
Rosemberg, recomendamos uma visita ao seu currículo Lattes: Fúlvia Maria de Barros Mott
Rosemberg, atualizado pela última vez a um pouco mais de um mês (em 14/08/2014).
Neste currículo, ela se apresenta da seguinte forma:
Possui graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo (1965) e doutorado
em Psychobiologie de l’Enfant - Ecole Pratique des Hautes Etudes /Université de Paris
(1969). Atualmente é pesquisadora consultora da Fundação Carlos Chagas, professora
titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde coordena o Negri
(Núcleo de Estudos de gênero, raça e idade). Tem experiência na área de Psicologia,
com ênfase em Psicologia Social e Estudos Sociais da Infância, atuando, principal-
mente, nos seguintes temas: relações raciais, relações de gênero, relações de
idade, ação afirmativa, educação e educação infantil.
Jorge Lyra
Universidade Federal de Pernambuco
Benedito Medrado
Universidade Federal de Pernambuco