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ALGUMAS PALAVRAS SOBRE TORTO ARADO

VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto arado. São Paulo: Todavia, 2019. 262 p.

Torto arado conquistou, em 2018, descendentes de escravizados, desta-


o LeYa, maior prêmio concedido a cando suas formas de culto, suas
romance inédito em língua portu- lutas por sobrevivência, trabalho e
guesa. Em 2020, recebeu o Jabuti de posse da terra.
Melhor Romance e também o Prêmio O romance centra-se na família
Oceanos. Aclamado pela crítica espe- de Zeca Chapéu Grande. Nascido
cializada e consagrado pelo público, o José Alcino da Silva, Zeca é, além de
livro escrito pelo baiano Itamar Vieira trabalhador rural, um líder religioso,
Júnior vem sendo traduzido em outros que recebe os espíritos dos “encan-
idiomas, a exemplo do búlgaro e do tados” e assume as funções de cuidar
italiano. Nascido em Salvador, em das pessoas, tratando os males de seus
1979, o autor obteve, na Universidade corpos e das suas almas. Morando na
Federal da Bahia, o título de Doutor Fazenda Água Negra durante muitos
em Estudos Étnicos e Africanos. anos, a família de Zeca Chapéu
Sua pesquisa sobre a formação de Grande identifica-se com a terra
comunidades quilombolas no interior onde vive e trabalha em regime de
do Nordeste brasileiro confere lastro servidão. Contidos em um relato que
sólido à sua ficção. Transcorrida na não apresenta marcadores temporais
Chapada Diamantina, a trama fala precisos, os eventos transcorrem em
sobre um grupo de trabalhadores período que se estende ao início do

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novo milênio. Como funcionário do Fazenda Água Negra, o filho de
INCRA, Itamar conviveu com pessoas Donana não consegue sufocar a
que vertem suor nas terras alheias, em dor. Ainda que encare a situação de
troca de moradia. Constatando que, servidão com o fatalismo inerente à
arrastado por todo o século XX, o cosmovisão vinda do Jarê – religião
legado do sistema escravocrata não foi específica da Chapada Diamantina –
superado, e que a desigualdade social Zeca é atravessado pela revolta. Essa
brasileira permanece no campo, como convivência de sentimentos díspares
se o tempo houvesse parado na escra- no interior do líder religioso é, sem
vidão, o autor de Torto arado concebeu dúvida, um dos elementos mais inte-
a figura de Zeca, riquíssima em suas ressantes do romance.
ambivalências íntimas. Com seus mitos e seus rituais,
Referência de trabalho para todos o Jarê terá sedimentado, ao longo
que o rodeiam, Zeca Chapéu Grande dos anos, um sentimento comunitário
carrega a liderança religiosa como um profundo que talvez facilite a luta
fardo que a mãe, Donana, recusou-se coletiva por bem-estar social. Em
a carregar. Com Donana, o filho entrevista concedida à TV Senado,
aprendeu a lidar com ervas que curam. Itamar Vieira Júnior define o Jarê como
No entanto, somente ao sentir a morte religião sincrética, uma forma híbrida
próxima, Zeca é capaz de aproximar-se que, tendo absorvido elementos do
da rebeldia materna, construindo a sua xamanismo, do catolicismo, das reli-
casa em ano bissexto e transgredindo, giões de matrizes africanas, tornou-se
desse modo, um dos preceitos de sua uma mitologia particular e específica
religião. Obrigado a vestir-se com da Chapada Diamantina. Guiado nas
trajes de mulher para ceder o corpo a matas por Oxossi e, nas águas, por
Santa Bárbara, um dos “encantados” Mãe D’Água, Zeca Chapéu Grande
surgidos nos rituais, Zeca Chapéu tem, em São Sebastião, o santo de sua
Grande sente o peso do desconforto e predileção. Reverenciando e recebendo
da vergonha, mas continua cumprindo Santa Bárbara, compreende a natureza
a sua missão. De forma similar, ao dos partos, da vida dos animais e das
entregar os melhores frutos de sua ervas que o mato oferece para a recu-
pequena roça aos proprietários da peração das almas e dos corpos.

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Os focos do romance incidem Na tensão existente entre ligação
principalmente sobre duas filhas de à terra e tentação de migrar, repercute
Zeca. Na mala da avó Donana, Bibiana um aspecto que soa alto na lite-
e Belonísia encontram uma faca com ratura brasileira, pelo menos desde
cabo de marfim. Fascinadas pela Os Sertões (1902). Euclides da
beleza do instrumento e pelo brilho Cunha viu, no apego do sertanejo a
da sua lâmina, as irmãs provocam seu meio, uma força fatídica que o
um acidente. Ambas se ferem, mas levava a remigrar, aprisionando-o.1
apenas uma delas tem a língua Respondendo a essa visão fata-
decepada. Passando a apresentar lista, Graciliano Ramos situou, nos
dificuldade de fala, a menina prefere momentos finais de Vidas secas, um
emudecer. Desenvolvendo profunda casal de sertanejos movendo-se para
captação de tudo que a cerca, a parte a cidade desconhecida, em busca de
silenciada depende da outra, para uma condição humana.2 Itamar Vieira
estabelecer uma comunicação com Júnior retoma e revigora o debate.
o mundo. A aliança entre as irmãs De alguma maneira, a fuga de Bibiana
será, todavia, rompida com o tempo. assemelha-se à do casal acossado pela
Ao se tornarem mulheres, Bibiana e seca, pelo soldado amarelo e pela explo-
Belonísia disputam a atenção do primo ração. Por outro lado, Torto arado traz
Severo e distanciam-se. Além disso, nova perspectiva. Obtendo informação,
embora compartilhem do mesmo
contexto violento e opressor, as filhas 1 Observando que “os homens não se
afeiçoam às calamidades naturais que os
mais velhas de Salu e de Zeca Chapéu rodeiam”, Euclides da Cunha sinaliza que
o sertanejo constitui uma exceção à regra:
Grande assumem atitudes diversas, em “A seca é um complemento à sua vida
relação à opressão. Bibiana rebela-se e tormentosa, emoldurando-a em cenários
tremendos […] Acaba-se o flagelo, ei-lo
resolve deixar o meio rural, esperando de volta. Vence-o a saudade do sertão.
achar, na cidade, uma via de libertação. Remigra”. Euclides da Cunha, Os Sertões
in Silviano Santiago (org.), Intérpretes
Atada à terra que abriga a sua avó – e do Brasil, Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
2002, v.1, p. 287.
imersa no caldo de cultura que recebeu
2 A comparação é realizada com mais
dos ancestrais – Belonísia não aceita o minúcias em Mirella Márcia Longo
Vieira Lima, Cenas de amor em romances
afastamento da irmã e a consequente
do século XX, Salvador: Quarteto, 2017,
quebra do pacto entre elas. pp. 129-156.

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diploma de professora, consciência da trabalhar, a preservação da cultura é,
sua condição de quilombola, Bibiana geralmente, deixada com as mulheres.
compreende que as relações de trabalho O romance divide-se em três
no meio urbano também são injustas. partes que se comunicam: “Fio de
Assim, ela remigra – não para repetir corte”. “Torto arado”. “Rio de sangue”.
o ciclo observado por Euclides – mas, Mais do que estabelecer a cronologia
para fazer com que a sua gente passe da trama, os três momentos aludem a
a clamar por direitos e também para núcleos de força que impelem as vozes
tentar recompor o pacto com a irmã. ao ato de narrar. A faca que Donana
No ínterim, Belonísia, mergulhada em roubara na Fazenda Caxangá – e que
revolta, não sucumbe. Longe das letras fora usada para matar o marido que
e das leis, recorre a recursos de defesa violentara a sua filha Carmelita – cons-
usados por suas ancestrais. São dois titui um primeiro sinal de resistência
modos de responder ao quadro opressor pela violência. No centro do “Fio de
que, no romance, abarca fortemente corte”, situa-se a faca, instrumento
questões de gênero. Vivendo em um que, cortando a língua de uma das
sistema patriarcal, as mulheres são irmãs, simbolicamente comenta a
levadas a buscar estratégias para sobre- aparição de diferenças necessárias à
viver e manter a integridade interior. complementariedade das suas opções
Geógrafo, estudioso de antropo- e das suas ações mais decisivas. Uma
logia, Itamar Vieira Júnior elegeu a lite- das meninas destina-se à aquisição da
ratura como meio mais eficaz de chegar consciência social; outra fica próxima
à alteridade. Apostando na empatia e na da natureza e da cosmovisão inerente
ficção como vias de acesso ao universo ao Jarê. No desfecho, quando o pacto
do outro, o romancista entrega a tarefa é refeito, cada uma das irmãs doa,
de narrar a três vozes femininas. à outra, porções do específico poder que
Às vozes de Bibiana e de Belonísia, adquiriu. Violada década após década,
acrescenta-se a de Santa Rita Pescadeira, a rotina da comunidade quilombola
uma “encantada”. Trabalhando com concentra-se na imagem do “Torto
quilombolas durante mais de 15 anos, arado”, instrumento que, ao abrir a
o autor declara ter percebido que, até terra de modo inadequado, também a
por força da migração dos homens para esteriliza. Por último, a trama caminha

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para o “Rio de sangue”. Regressando Afinal, tendo experimentado políticas
para a Fazenda Água Negra, Bibiana direcionadas à diminuição do seu
e Severo, agora casados, lutam pelo mal-estar social, o Brasil não as concre-
reconhecimento dos direitos da comu- tizou com suficiência e sustentabilidade
nidade de quilombolas. No entanto, impeditivas do confronto violento
Severo é assassinado e o processo que figurado como um “Rio de sangue”.
buscava os culpados por sua morte é Em seu núcleo ficcional – aliança
encerrado de modo abrupto e grotesco. entre uma irmã emudecida e a outra,
Belonísia, que absorve da irmã o que lhe empresta voz – o romance
hábito da leitura, transfere a Bibiana a Torto arado reencena e, simultanea-
capacidade de lutar com a faca; assim mente, põe em tensão um traço impor-
como, no passado, Donana lutara contra tante do moderno projeto cultural
a ferocidade do marido. Bibiana e brasileiro. Trata-se da intenção de
Belonísia passam a receber o espírito vocalizar demandas e desejos vindos
da “encantada” Santa Rita Pescadeira. dos setores silenciados numa sociedade
Resultando no incêndio da casa grande, tragicamente desigual. Maximamente
o pacto entre as três narradoras resulta enfatizada nos anos 1930, a proposta
também na morte de seu novo proprie- foi posta em xeque desde as últimas
tário, Salomão. Ele levara a opressão ao décadas do século passado, quando
extremo, ao negar, aos mortos da comu- novas vozes irromperam no espaço
nidade de negros quilombolas, o direito público, reclamando seus direitos.
de repousar na terra onde repousavam A autoimagem do intelectual brasileiro
os seus ancestrais. pareceu ter sofrido, desde então, um
O desfecho do romance parece ponto de clivagem. Segundo Ismail
sugerir que, no Brasil contemporâneo, Xavier, o cineasta baiano Glauber
consciência social e força continuam Rocha já trouxera, no filme Terra
imprescindíveis para compor as estra- em transe (1967), “a reflexão sobre
tégias de sobrevivência e de afirmação o fracasso”. No centro da reflexão,
de territorialidades culturais. Agradando Xavier aponta o reconhecimento de
ao leitor que tende a aderir afetivamente uma “alteridade que não correspondia
às duas irmãs, os eventos que encerram à imagem do povo solicitada pela
a trama dão conta da tragédia brasileira. teoria da revolução”. Dez anos depois,

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Clarice Lispector apresentou, em do seu romance, uma poesia sugerida
A hora da estrela, a figura de um por cadências, marcando, com as
escritor angustiado e relutante ante luzes de uma específica oralidade,
a tarefa de inventar uma nordestina o seu estilo pessoal. Há nítida
destinada a perecer no Rio de Janeiro. confiança nessa poesia como meio
Seguindo essa via, a ficção nacional adequado para levar o leitor a escutar
mais recente tem sido pródiga em mundos diferentes do seu. Como
tramas protagonizadas por escritores propôs Machado de Assis, em 1873,
da classe média, muitos deles imersos o escritor mergulha em traços locais e
em crises que contemplam conside- neles apreende tensões humanas que
rações acerca do esvaziamento de seu extrapolam fronteiras. Reconhecendo
papel social. O romance de Itamar esses traços e o seu vasto alcance
Vieira Júnior toma distância em expressivo, o júri do Prêmio LeYa,
relação a essas tramas. Renunciando observou que, tendo o seu “ponto de
a mimetizar a fala do morador da partida em uma realidade concreta,
Chapada Diamantina, o autor de Torto a narrativa encontra um plano alegórico
arado transporta, para a linguagem que ganha contornos universais”.

Mirella Márcia Longo Vieira Lima


Universidade Federal da Bahia

doi: 10.9771/aa.v0i64.46522

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