livro Torto arado foi publicado em tura e em três eixos considerados centrais no livro. O cenário do livro é a fazenda la editora Todavia, recebendo prêmios Águas Negras. O autor optou por não cobiçados em literatura, o Jabuti, LeYa e ter um único narrador do início ao fim o Oceanos, e está em primeiro lugar na da história. Adota um artifício literário venda de livros em 2020 e em 2021. Es- interessante em que o texto é falado na crito por Itamar Vieira Junior, geógra- primeira pessoa, mas são três narradoras, fo com doutorado em estudos étnicos figuras femininas que se revezam entre si pela UFBA, escritor de livros de contos com a sua presença narrativa. O resulta- como Dias,1 e A oração do carrasco.2 Em do é a sensação de uma expressão única algumas entrevistas diz ser o livro fruto de sentimento e pensamento da narração, de suas pesquisas, de muitas horas de en- unificando nos diferentes personagens da trevistas gravadas.3 trama visões do feminino, do divino, da O livro se insere na característica de experiência silenciada e da voz que reivin- (re)construção da história da colonização dica. do Brasil. Trata da força e dos desman- Em relação à trama do texto ela tem dos de proprietário rico a que a popula- como fio central um acidente com uma ção pobre vivente das entranhas da terra faca quando duas crianças de 6 e 5 anos, está à mercê, como é possível ver em vá- Bibiana e Belonísia, a colocam na boca rios outros lugares. Tendo sido tão bem e uma tem sua língua decepada, mar- escrito, descreve o sertão semiárido do cando-a no lugar de silenciada, e a outra Nordeste, e ressalta a força da percepção tem somente cortes que serão suturados da diferença do local, sertão da Bahia, na com auxílio médico, ocupando o lugar região da Chapada Diamantina, próximo da voz que grita para sair da invisibilida- à bacia hidrográfica do Rio Utinga. de e serão as duas primeiras vozes narra- Traz a problemática do mundo rural tivas do texto. brasileiro, as raízes profundas de nossa A estrutura textual é composta por sociedade, relativamente às condições três grandes partes intituladas: Fio de de trabalho e de acesso à terra, e muito corte, com 15 capítulos, Torto Arado, acentuadamente a vivência da população com 24 capítulos, e Rio de Sangue, com pobre, sem terra, sem direitos, que “vive 14 capítulos. de morada”, no Nordeste, mas aplicável O acidente abre o capítulo inicial da a várias outras regiões do Brasil. Mos- primeira parte, Fio de corte, assim como trando a história e colonização do terri- está presente no capítulo que fecha a pri- tório pelo lugar de fala dos que, em geral meira parte, com a memória do aciden- não falam, não têm nome, ou não têm te, e a sua consequência para pelo menos voz, na historiografia nacional. a que perdeu a língua – “a liberdade da A análise do texto (Candido, 2005) prisão que pode ser o silêncio”. se fará primeiro em aspectos gerais da Na segunda parte, Torto Arado, o narrativa, do cenário e depois na estru- primeiro capítulo volta ao acidente de
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forma onírica e avança para imagens que ção daqueles Outros excluídos no limite, somente no fim do livro as entendere- sem a possibilidade de construção de ca- mos completamente. O sonho que se re- sas iguais aos donos (de alvenaria), sem pete para a silenciada durante anos tem banheiros nas casas, sem sapatos, sem no elemento central o punhal, somado luz elétrica, sem lugar nos planos dos ao homem branco bem-vestido, a cerca novos donos da fazenda. e o sangue que brota do chão. Somente a resistência ao ódio da ani- Esses elementos constroem o conjun- quilação se mantém, seja através do rio to de símbolos da história que contam de sangue e lágrimas, seja através da “vi- as experiências com a terra, da exclusão ração”, da força dos entes sobrenaturais, de quem nela trabalha, refletindo as re- ou mesmo supernaturais. A imanência da lações conflituosas resultado da ausência força dessa voz n(d)a natureza e a trans- histórica da reforma agrária. Aquela ine- cendência dos encantados parecem se xistente que produz e mantém o arado reunir aqui para exibir uma força mágica, velho rasgando a terra, o arado torto que mística que traria a justiça divina na terra. se tornou a ausência de voz, reforçando Por fim, no último capítulo da tercei- a ausência de coragem de gritar contra ra e derradeira parte evidencia-se uma as injustiças, a massa de silenciados, as- desidentificação, descorporificação das sim como de uma vida como gado, tra- meninas e uma corporificação com o so- balhando sem ter nada em troca. E ainda brenatural, unindo assim as três perso- as palavras tortas, os maus tratos com as nagens em uma só construção de ação mulheres, preparadas para gerar novos narrativa. A construção das narrativas trabalhadores para os senhores. Contra- ao longo do livro não reforça suficien- balançado com a voz que grita sobre as temente a diferença entre essas, o que injustiças, as lideranças e a condução das muitas vezes faz que o leitor não perceba pessoas por caminhos incertos e tortuo- a transição entre elas. Assim parece que sos. A segunda parte finaliza com a fenda a ausência de uma enfática diferenciação aberta dos tempos que aparenta trazer dessas, ou mesmo a construção de dife- novos ares, mas que continua a resolver rentes formas narrativas de modo a des- os conflitos no fio do corte e no extermí- tacar as personalidades dos personagens nio de lideranças. narradores faz-se de modo a deixar crer A terceira parte, Rio de Sangue, traz que se trata de intenção do autor, que a voz da experiência do divino, ou me- a construção da psique dos personagens lhor dizendo, da voz sobrenatural divina narradores se faça não pela diferença, e feminina. Uma voz encantada que fala que o discurso construirá entre elas, mas da história de muitos séculos do rio de exatamente ao contrário. A narrativa se sangue de nossa colonização e ocupação fortalece pela polarização entre o dito e do território, da violência contra negros o não dito, pela interdição, uma concre- e índios, mas também de mestiços traba- tamente, e outra socialmente, resultan- lhadores, de pobres quase brancos, das do, no final, uma superação encantada, “mulheres miúdas”, mulheres “pegas através da fusão das três vozes narrativas, a dente de cachorro”, “mulher-peixe”, na construção da justiça terrena, na su- um enredo onde os marcadores sociais peração da interdição para a construção da diferença se consolidam na manuten- da afirmação. O dito, o não dito, afirma-
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do por puro instinto de preservação e a Atravessamentos de raça, força do pensamento mágico. classe e gênero Vivências A questão da raça é central no livro, e experiências com a terra mas inusitadamente só na terceira parte São inúmeras as referências da relação de Torto arado temos a certeza de que com a terra como coisa e a sua oposi- Águas Negras, que tinha um rio da cor ção, a terra como experiência de exis- das pessoas que lá trabalhavam, teria cer- tência. Na primeira ideia descortina-se tamente sido um quilombo. No entan- um conjunto de relações capitalistas e to, é na dialética da afirmação pela voz colonialistas de dominação, como a es- que fala, e da negação pela interdição do cavação pelos escravos da terra na busca segundo dono, “cor de areia ferrugem”, de diamantes, vê-se também a extensão que temos a certeza. da mercantilização da terra para os cor- Desde a vinda de Zeca do Chapéu pos dos escravos, obrigados a morrer na Grande, filho de Donana, descendente guerra que não é a deles. direta de escrava, parido o filho na lida, No segundo caso, evidencia-se a terra no meio do milharal. Zeca, pai de Bi- como experiência e coexistência trans- biana e Belonísia, tem o trabalho como passando um conjunto de analogias em sina ininterrupta, horas intermináveis de que a terra, o rio, a plantação reconhe- trabalho, suas mãos são grandes, despro- cem e respondem pela relação estabele- porcionais “grossas de trabalho, como cida com quem se lhes interpõe. se tivesse muitas luvas de pele e de ca- A diferença que se encontra na forma los as calçando” (cap.17, Parte III). Na de inserção produtiva é explicada “esta terceira parte faz-se uma surpreendente terra que cresce mato, que cresce caatin- descrição das relações mesquinhas e vio- ga, o buriti, o dendê não é nada sem tra- balho. Não vale nada. Pode valer até para lentas, impostas pelo branco coloniza- essa gente que não trabalha. Que não dor e a expulsão dos índios e negros das abre uma cova, que não sabe semear e terras. A mesma ideia de exploração se colher”, tanto quanto explica o entendi- estende às mulheres. As metáforas com mento da terra como mercadoria. A terra as palavras tortas, os maus-tratos no ní- é objeto de aprendizado, dá lições para vel do simbólico, “o arado velho rasgan- produção de conhecimento, envolvendo do a terra”, “as mulheres da roça feitas integralmente esses aprendizes ao que para gerar novos trabalhadores para os uma das narradoras relembra os ensina- senhores”, assim como, a perda da sub- mentos do pai: “ao movimento dos ani- jetividade, a falta de carinho, e a sujeição mais, dos insetos, das plantas alumbrava nas relações familiares, como ainda es- no horizonte quando me fazia sentir no cravizados fossem. corpo as lições que a natureza havia lhe dado” (cap.2, Parte II). O defeito físico Cotidiano e êxtase que impede definitivamente a fala para Zeca Chapéu Grande virou curador Belonísia é comparado a um arado tor- por João Curador, que lhe ensinou os to, uma anomalia da natureza que, como mistérios das ervas, da escuta dos do- um grunhido estranho, faz também a au- entes, do cuidado dos encantados, da sência de voz para gritar contra as injusti- atenção às obrigações de Deus; recebe ças “de uma vida como gado, trabalhan- em sua casa como se lá fosse um hospi- do sem ter nada em troca”. tal para os aflitos do corpo e do espíri-
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to, os desesperados, evidenciando mais Notas uma ausência de escuta dos excluídos. 1 Publicado em 2012 pela editora Caramu- O Curador teria mesmo vivido o estado rê Produções. alterado por visões, desespero. O Velho 2 Publicado pela editora Mondrongo em Nagô, através de Zeca, mantém seu tra- 2017, finalista do 60º Prêmio Jabuti na balho de muitas curas. As festas de Jarê categoria “conto”. são comandadas pelo Velho Nagô. Há 3 Disponível em: <https://www.youtube. também Oxossi, mãe d´água e da ven- com/watch?v=-CbV5BI9SM4>. tania e várias entidades manifestadas nas 4 Disponível em: <https://www.cptna- festas de Jarê, como Santa Rita Pescadei- cional.org.br/publicacoes/noticias/ ra. Essa última é a terceira voz da nar- conflitos-no-campo/4551-familias-ribei- rativa e relata muitos séculos de história rinhas-do-rio-utinga-ba-sofrem-com-a- dos sem história, os castigos, o sangue -falta-de-agua-e-pedem-socorro>. escorrido pela terra. Aqui cotidiano e êxtase são reunidos na ausência de in- Referências terdição. Miúda, o corpo da encantada Pescadeira, pega a dente de cachorro, CANDIDO, A. Noções de análise histórico- -literária. São Paulo: Associação Editorial é uma mulher-peixe, tem uma relação Humanitas, 2005. com a água de encantamento, enfeitiça os peixes, dorme de madrugada na beira JUNIOR, I. V. Torto arado. São Paulo: d´água do rio. Imita o som dos peixes Todavia, 2019. e dos pássaros. Não usa sapatos, molha seus pés na beira dos rios. Pescadeira Winifred Knox é professora de Sociolo- denuncia o abuso desrespeitoso estabe- gia e Políticas Públicas da Universidade lecido por séculos, a alteração da nature- Federal do Rio Grande do Norte e pós- za do curso de rios, o desaparecimento doutoranda Na Universidade Federal dos peixes maiores e dos próprios rios. Fluminense (RJ). Encantamento, magia e realidade se fun- @ – winknox@hotmail.com / dem com os relatos da região.4 https://orcid.org/0000-0002-4415-6213. Enfim, o texto nos lembra livros épi- Miridan Britto Falci é professora de cos da literatura acrescido de um realis- História pela Universidade Federal do Rio mo próximo ao mágico. Lugar de fala de Janeiro, com doutorado na USP, e pós- dos sem escrita sobre a dureza da reali- doutorado pela Escola de Altos Estudos, dade brasileira, mostrando a luta por um Paris. @ – miridanbritto@gmail.com / https://orcid.org/0000-0002-1968-0910. sonho, o rio de sangue para consegui- -lo, a resistência junto à religiosidade. A Recebido em 25.8.2021 e aceito em secura da terra, a abundância d´água, a 31.8.2021. apropriação desigual da terra, as estraté- I Universidade Federal do Rio Grande do gias de sobrevivência étnica para salvar o Norte, Programa de Pós-Graduação em produzido da usurpação, a enunciação de Estudos Urbanos e Regionais, Natal, Rio um padrão de séculos cujos marcadores Grande do Norte, Brasil. estão fincados com raízes intocadas nas II Universidade Federal do Rio de Janeiro, instituições deste Brasil profundo. Além Faculdade de História, Rio de Janeiro, Bra- de uma literatura fluida, forte e bela. sil.
LITERATURA EM VIDAS SECASCom , este título resume de forma sucinta o conteúdo do documento, que trata de questões literárias relacionadas à obra em questão