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DOI: 10.1590/s0103-4014.2023.37107.

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Torto arado e o Brasil profundo


Winifred Knox I e Miridan Britto Falci II

O 2018 pela editora Leya e em 2019 pe-


livro Torto arado foi publicado em tura e em três eixos considerados centrais
no livro. O cenário do livro é a fazenda
la editora Todavia, recebendo prêmios Águas Negras. O autor optou por não
cobiçados em literatura, o Jabuti, LeYa e ter um único narrador do início ao fim
o Oceanos, e está em primeiro lugar na da história. Adota um artifício literário
venda de livros em 2020 e em 2021. Es- interessante em que o texto é falado na
crito por Itamar Vieira Junior, geógra- primeira pessoa, mas são três narradoras,
fo com doutorado em estudos étnicos figuras femininas que se revezam entre si
pela UFBA, escritor de livros de contos com a sua presença narrativa. O resulta-
como Dias,1 e A oração do carrasco.2 Em do é a sensação de uma expressão única
algumas entrevistas diz ser o livro fruto de sentimento e pensamento da narração,
de suas pesquisas, de muitas horas de en- unificando nos diferentes personagens da
trevistas gravadas.3 trama visões do feminino, do divino, da
O livro se insere na característica de experiência silenciada e da voz que reivin-
(re)construção da história da colonização dica.
do Brasil. Trata da força e dos desman- Em relação à trama do texto ela tem
dos de proprietário rico a que a popula- como fio central um acidente com uma
ção pobre vivente das entranhas da terra faca quando duas crianças de 6 e 5 anos,
está à mercê, como é possível ver em vá- Bibiana e Belonísia, a colocam na boca
rios outros lugares. Tendo sido tão bem e uma tem sua língua decepada, mar-
escrito, descreve o sertão semiárido do cando-a no lugar de silenciada, e a outra
Nordeste, e ressalta a força da percepção tem somente cortes que serão suturados
da diferença do local, sertão da Bahia, na com auxílio médico, ocupando o lugar
região da Chapada Diamantina, próximo da voz que grita para sair da invisibilida-
à bacia hidrográfica do Rio Utinga. de e serão as duas primeiras vozes narra-
Traz a problemática do mundo rural tivas do texto.
brasileiro, as raízes profundas de nossa A estrutura textual é composta por
sociedade, relativamente às condições três grandes partes intituladas: Fio de
de trabalho e de acesso à terra, e muito corte, com 15 capítulos, Torto Arado,
acentuadamente a vivência da população com 24 capítulos, e Rio de Sangue, com
pobre, sem terra, sem direitos, que “vive 14 capítulos.
de morada”, no Nordeste, mas aplicável O acidente abre o capítulo inicial da
a várias outras regiões do Brasil. Mos- primeira parte, Fio de corte, assim como
trando a história e colonização do terri- está presente no capítulo que fecha a pri-
tório pelo lugar de fala dos que, em geral meira parte, com a memória do aciden-
não falam, não têm nome, ou não têm te, e a sua consequência para pelo menos
voz, na historiografia nacional. a que perdeu a língua – “a liberdade da
A análise do texto (Candido, 2005) prisão que pode ser o silêncio”.
se fará primeiro em aspectos gerais da Na segunda parte, Torto Arado, o
narrativa, do cenário e depois na estru- primeiro capítulo volta ao acidente de

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forma onírica e avança para imagens que ção daqueles Outros excluídos no limite,
somente no fim do livro as entendere- sem a possibilidade de construção de ca-
mos completamente. O sonho que se re- sas iguais aos donos (de alvenaria), sem
pete para a silenciada durante anos tem banheiros nas casas, sem sapatos, sem
no elemento central o punhal, somado luz elétrica, sem lugar nos planos dos
ao homem branco bem-vestido, a cerca novos donos da fazenda.
e o sangue que brota do chão. Somente a resistência ao ódio da ani-
Esses elementos constroem o conjun- quilação se mantém, seja através do rio
to de símbolos da história que contam de sangue e lágrimas, seja através da “vi-
as experiências com a terra, da exclusão ração”, da força dos entes sobrenaturais,
de quem nela trabalha, refletindo as re- ou mesmo supernaturais. A imanência da
lações conflituosas resultado da ausência força dessa voz n(d)a natureza e a trans-
histórica da reforma agrária. Aquela ine- cendência dos encantados parecem se
xistente que produz e mantém o arado reunir aqui para exibir uma força mágica,
velho rasgando a terra, o arado torto que mística que traria a justiça divina na terra.
se tornou a ausência de voz, reforçando Por fim, no último capítulo da tercei-
a ausência de coragem de gritar contra ra e derradeira parte evidencia-se uma
as injustiças, a massa de silenciados, as- desidentificação, descorporificação das
sim como de uma vida como gado, tra- meninas e uma corporificação com o so-
balhando sem ter nada em troca. E ainda brenatural, unindo assim as três perso-
as palavras tortas, os maus tratos com as nagens em uma só construção de ação
mulheres, preparadas para gerar novos narrativa. A construção das narrativas
trabalhadores para os senhores. Contra- ao longo do livro não reforça suficien-
balançado com a voz que grita sobre as temente a diferença entre essas, o que
injustiças, as lideranças e a condução das muitas vezes faz que o leitor não perceba
pessoas por caminhos incertos e tortuo- a transição entre elas. Assim parece que
sos. A segunda parte finaliza com a fenda a ausência de uma enfática diferenciação
aberta dos tempos que aparenta trazer dessas, ou mesmo a construção de dife-
novos ares, mas que continua a resolver rentes formas narrativas de modo a des-
os conflitos no fio do corte e no extermí- tacar as personalidades dos personagens
nio de lideranças. narradores faz-se de modo a deixar crer
A terceira parte, Rio de Sangue, traz que se trata de intenção do autor, que
a voz da experiência do divino, ou me- a construção da psique dos personagens
lhor dizendo, da voz sobrenatural divina narradores se faça não pela diferença,
e feminina. Uma voz encantada que fala que o discurso construirá entre elas, mas
da história de muitos séculos do rio de exatamente ao contrário. A narrativa se
sangue de nossa colonização e ocupação fortalece pela polarização entre o dito e
do território, da violência contra negros o não dito, pela interdição, uma concre-
e índios, mas também de mestiços traba- tamente, e outra socialmente, resultan-
lhadores, de pobres quase brancos, das do, no final, uma superação encantada,
“mulheres miúdas”, mulheres “pegas através da fusão das três vozes narrativas,
a dente de cachorro”, “mulher-peixe”, na construção da justiça terrena, na su-
um enredo onde os marcadores sociais peração da interdição para a construção
da diferença se consolidam na manuten- da afirmação. O dito, o não dito, afirma-

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do por puro instinto de preservação e a Atravessamentos de raça,
força do pensamento mágico. classe e gênero
Vivências A questão da raça é central no livro,
e experiências com a terra mas inusitadamente só na terceira parte
São inúmeras as referências da relação de Torto arado temos a certeza de que
com a terra como coisa e a sua oposi- Águas Negras, que tinha um rio da cor
ção, a terra como experiência de exis- das pessoas que lá trabalhavam, teria cer-
tência. Na primeira ideia descortina-se tamente sido um quilombo. No entan-
um conjunto de relações capitalistas e to, é na dialética da afirmação pela voz
colonialistas de dominação, como a es- que fala, e da negação pela interdição do
cavação pelos escravos da terra na busca segundo dono, “cor de areia ferrugem”,
de diamantes, vê-se também a extensão que temos a certeza.
da mercantilização da terra para os cor- Desde a vinda de Zeca do Chapéu
pos dos escravos, obrigados a morrer na Grande, filho de Donana, descendente
guerra que não é a deles. direta de escrava, parido o filho na lida,
No segundo caso, evidencia-se a terra no meio do milharal. Zeca, pai de Bi-
como experiência e coexistência trans- biana e Belonísia, tem o trabalho como
passando um conjunto de analogias em sina ininterrupta, horas intermináveis de
que a terra, o rio, a plantação reconhe-
trabalho, suas mãos são grandes, despro-
cem e respondem pela relação estabele-
porcionais “grossas de trabalho, como
cida com quem se lhes interpõe.
se tivesse muitas luvas de pele e de ca-
A diferença que se encontra na forma
los as calçando” (cap.17, Parte III). Na
de inserção produtiva é explicada “esta
terceira parte faz-se uma surpreendente
terra que cresce mato, que cresce caatin-
descrição das relações mesquinhas e vio-
ga, o buriti, o dendê não é nada sem tra-
balho. Não vale nada. Pode valer até para lentas, impostas pelo branco coloniza-
essa gente que não trabalha. Que não dor e a expulsão dos índios e negros das
abre uma cova, que não sabe semear e terras. A mesma ideia de exploração se
colher”, tanto quanto explica o entendi- estende às mulheres. As metáforas com
mento da terra como mercadoria. A terra as palavras tortas, os maus-tratos no ní-
é objeto de aprendizado, dá lições para vel do simbólico, “o arado velho rasgan-
produção de conhecimento, envolvendo do a terra”, “as mulheres da roça feitas
integralmente esses aprendizes ao que para gerar novos trabalhadores para os
uma das narradoras relembra os ensina- senhores”, assim como, a perda da sub-
mentos do pai: “ao movimento dos ani- jetividade, a falta de carinho, e a sujeição
mais, dos insetos, das plantas alumbrava nas relações familiares, como ainda es-
no horizonte quando me fazia sentir no cravizados fossem.
corpo as lições que a natureza havia lhe
dado” (cap.2, Parte II). O defeito físico
Cotidiano e êxtase
que impede definitivamente a fala para Zeca Chapéu Grande virou curador
Belonísia é comparado a um arado tor- por João Curador, que lhe ensinou os
to, uma anomalia da natureza que, como mistérios das ervas, da escuta dos do-
um grunhido estranho, faz também a au- entes, do cuidado dos encantados, da
sência de voz para gritar contra as injusti- atenção às obrigações de Deus; recebe
ças “de uma vida como gado, trabalhan- em sua casa como se lá fosse um hospi-
do sem ter nada em troca”. tal para os aflitos do corpo e do espíri-

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to, os desesperados, evidenciando mais Notas
uma ausência de escuta dos excluídos. 1 Publicado em 2012 pela editora Caramu-
O Curador teria mesmo vivido o estado rê Produções.
alterado por visões, desespero. O Velho 2 Publicado pela editora Mondrongo em
Nagô, através de Zeca, mantém seu tra- 2017, finalista do 60º Prêmio Jabuti na
balho de muitas curas. As festas de Jarê categoria “conto”.
são comandadas pelo Velho Nagô. Há 3 Disponível em: <https://www.youtube.
também Oxossi, mãe d´água e da ven- com/watch?v=-CbV5BI9SM4>.
tania e várias entidades manifestadas nas
4 Disponível em: <https://www.cptna-
festas de Jarê, como Santa Rita Pescadei- cional.org.br/publicacoes/noticias/
ra. Essa última é a terceira voz da nar- conflitos-no-campo/4551-familias-ribei-
rativa e relata muitos séculos de história rinhas-do-rio-utinga-ba-sofrem-com-a-
dos sem história, os castigos, o sangue -falta-de-agua-e-pedem-socorro>.
escorrido pela terra. Aqui cotidiano e
êxtase são reunidos na ausência de in-
Referências
terdição. Miúda, o corpo da encantada
Pescadeira, pega a dente de cachorro, CANDIDO, A. Noções de análise histórico-
-literária. São Paulo: Associação Editorial
é uma mulher-peixe, tem uma relação
Humanitas, 2005.
com a água de encantamento, enfeitiça
os peixes, dorme de madrugada na beira JUNIOR, I. V. Torto arado. São Paulo:
d´água do rio. Imita o som dos peixes Todavia, 2019.
e dos pássaros. Não usa sapatos, molha
seus pés na beira dos rios. Pescadeira
Winifred Knox é professora de Sociolo-
denuncia o abuso desrespeitoso estabe- gia e Políticas Públicas da Universidade
lecido por séculos, a alteração da nature- Federal do Rio Grande do Norte e pós-
za do curso de rios, o desaparecimento doutoranda Na Universidade Federal
dos peixes maiores e dos próprios rios. Fluminense (RJ).
Encantamento, magia e realidade se fun- @ – winknox@hotmail.com /
dem com os relatos da região.4 https://orcid.org/0000-0002-4415-6213.
Enfim, o texto nos lembra livros épi- Miridan Britto Falci é professora de
cos da literatura acrescido de um realis- História pela Universidade Federal do Rio
mo próximo ao mágico. Lugar de fala de Janeiro, com doutorado na USP, e pós-
dos sem escrita sobre a dureza da reali- doutorado pela Escola de Altos Estudos,
dade brasileira, mostrando a luta por um Paris. @ – miridanbritto@gmail.com /
https://orcid.org/0000-0002-1968-0910.
sonho, o rio de sangue para consegui-
-lo, a resistência junto à religiosidade. A Recebido em 25.8.2021 e aceito em
secura da terra, a abundância d´água, a 31.8.2021.
apropriação desigual da terra, as estraté- I
Universidade Federal do Rio Grande do
gias de sobrevivência étnica para salvar o Norte, Programa de Pós-Graduação em
produzido da usurpação, a enunciação de Estudos Urbanos e Regionais, Natal, Rio
um padrão de séculos cujos marcadores Grande do Norte, Brasil.
estão fincados com raízes intocadas nas II
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
instituições deste Brasil profundo. Além Faculdade de História, Rio de Janeiro, Bra-
de uma literatura fluida, forte e bela. sil.

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