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Baixada Fluminense: uma fonte de literatura

Rebeca de Souza Marques


Graduanda em Letras - Português e Literaturas pela UFRJ

Pesquisar/procurar por uma literatura criada às margens das margens é tatear no


escuro por muitas vezes, mas quando encontramos as primeiras formas ou objetos, outras
formas e objetos vão aparecendo. Elas e eles existem.
Assim tem sido minha busca por escritores da Baixada Fluminense e que falam sobre
e por meio da Baixada Fluminense. Uma simples busca no Google de forma específica não
chega perto de ser suficiente para encontrar toda uma gama de artistas que fluem por
territórios esquecidos.
Há vozes dissonantes que se fazem ouvir, não há dúvidas em relação a isso, podemos
encará-las como exceções à regra ou potências que abriram brechas pelo caminho, seja lá o
sofrimento percorrido. Para continuar discorrendo acerca dessas vozes que destoam, tenho
como objetivo discutir o conto O senhor do nevoeiro, de Thiago Kuerques, produção que faz
parte do livro Território, primeira publicação em 2017 pela editora Chiado. O escritor
iguaçuano se propõe tecer diversas narrativas ambientadas nas cidades que formam a região
da Baixada Fluminense: Japeri, Nova Iguaçu, Mesquita, Nilópolis, Duque de Caxias, Tinguá,
Queimados, Belford Roxo, São João de Meriti, Magé, Paracambi, Seropédica, Itaguaí e
Guapimirim. Apenas passando os olhos por tantos nomes podemos ter uma noção da
multiplicidade de cidades, culturas e realidades.
Os contos assumem o papel de nos fazer conhecer um grande emaranhado de pura
vida pulsante, de localidades que provavelmente não veriam a luz do dia nas páginas-vitrines
mais aclamadas e vistas, no máximo migalhas aqui e ali, lugar de passagem em direção às
áreas mais centrais. Não que o autor só ambiente suas histórias na região metropolitana
baixadense, pelo contrário, algumas narrativas se passam em terras cariocas - em número
muito menor - mas a forma de tratamento deságua em subversão dos territórios “dominante”
e “dominado”, “centro” e “margens”. Essa manobra discursiva acontece em O senhor do
nevoeiro com roupagens distópicas.
O conto narra, em seis capítulos, dois acontecimentos alarmantes na cidade do Rio de
Janeiro: o Cristo Redentor tombou e uma névoa sem precedentes se alastra pela capital
fluminense. No início do primeiro capítulo, o leitor é exposto a dois homens de gerações
distintas que se vêem presos em uma gruta sem saber o que lhes ocorreu. Vítimas da queda
do Cristo.
As tragédias contadas zombam da identidade carioca, principalmente da zona sul, que
perde seu prestígio e seus habitantes buscam abrigo em territórios pouquíssimo imaginados
em sua antiga realidade: “Muitos moradores das zonas sul, norte e centro perpetuavam a
estadia em hotéis e motéis da Baixada Fluminense. [...] A ironia era as empregadas
hospedarem suas patroas. Com o tempo até poderiam usar as patroas de empregadas e as
empregadas de patroas.”. A antiga realidade e a nova realidade, a Zona Sul é a velha Baixada
e a Baixada é a nova Zona Sul.
Com esse jogo entre velho e novo, antigo e contemporâneo, a história apresenta o
embate geracional entre José Morialdo, o senhor, e José Patrício, o menino. O idoso, com
suas repetições e seus esquecimentos, irrita o jovem completamente, mas que ainda assim
precisa de seus conselhos e conhecimento de toda uma vida. O jovem, pouco vivido e
irritadiço, trai Morialdo, o deixando para morrer e salvando a própria pele. Por algum motivo,
eles se encontram novamente, ainda no nevoeiro. Estão no paraíso? Inferno? Lugar
intermediário? Entre reflexões sobre Deus, a existência, o perdão e o destino das mães
quando os filhos deixam o chinelo virado de cabeça para o chão, também percebemos que
ideias antigas como o amor e a felicidade se envolvem com as novas possibilidades de seguir
a jornada.
A relação entre a cidade maravilhosa e as cidades da Baixada possuem uma certa
oposição, a capital possui suas periferias e subúrbios, mas os municípios baixadenses
adquirem um caráter duplamente periférico para seus moradores, apesar de suas cidades
funcionarem de forma autônoma muitas vezes - questões para outras reflexões. Entretanto, o
acesso às artes e cultura possuem fronteiras bem delimitadas, assim como as possibilidades
de deslocamento e visibilidade. Há um apagamento das cidades além zona do norte carioca,
uma indiferença generalizada, tão perto e tão longe ao mesmo tempo, uma deslegitimação de
suas virtudes e potencialidades.
Jogando com essa estrutura, O senhor do nevoeiro inverte os pólos, transgride o
deslocamento Baixada > Zona Sul, Baixada > Rio de Janeiro, Baixada > Centro. Quem é o
verdadeiro Deus? Todos? Apenas um? Nenhum? Aqueles que eram já não são, aqueles que
não eram, se tornam. As possibilidades se estendem. Seria uma premonição como José de
quarenta e dois anos atrás escreveu? No fim das contas, a Baixada significa mais do que a
atribuem, no agora, no presente e também no mundo invertido escrito pelo autor.
Em uma live sobre literatura suburbana, Thiago Kuerques expressou seu
descontentamento em relação a violência exacerbada quando tratamos do locus
subalternizado na literatura, o que não abrange toda a vivência e existência das pessoas
periféricas. Dessa forma, o autor lança mão das problemáticas urbanas, como a lotação do
trem Japeri e da linha dois do metrô, a hierarquia dos e nos espaços, e das outras formas de
violência sem enraizar sua obra num cenário que é só uma parte dos vários panoramas de
pessoas, afetos, famílias, ruas, bairros, crenças e costumes. Em seus contos, as cidades são no
plural, os relacionamentos, os sonhos, as frustrações, as infâncias; com suas semelhanças e
diferenças. Assim, o livro Territórios se mostra como uma colcha de retalhos da Baixada. O
produto final é uma ilustração-prova de que se faz arte nesse território. Dessa fonte, há muito
mais.

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