Graduanda em Letras - Português e Literaturas pela UFRJ
Pesquisar/procurar por uma literatura criada às margens das margens é tatear no
escuro por muitas vezes, mas quando encontramos as primeiras formas ou objetos, outras formas e objetos vão aparecendo. Elas e eles existem. Assim tem sido minha busca por escritores da Baixada Fluminense e que falam sobre e por meio da Baixada Fluminense. Uma simples busca no Google de forma específica não chega perto de ser suficiente para encontrar toda uma gama de artistas que fluem por territórios esquecidos. Há vozes dissonantes que se fazem ouvir, não há dúvidas em relação a isso, podemos encará-las como exceções à regra ou potências que abriram brechas pelo caminho, seja lá o sofrimento percorrido. Para continuar discorrendo acerca dessas vozes que destoam, tenho como objetivo discutir o conto O senhor do nevoeiro, de Thiago Kuerques, produção que faz parte do livro Território, primeira publicação em 2017 pela editora Chiado. O escritor iguaçuano se propõe tecer diversas narrativas ambientadas nas cidades que formam a região da Baixada Fluminense: Japeri, Nova Iguaçu, Mesquita, Nilópolis, Duque de Caxias, Tinguá, Queimados, Belford Roxo, São João de Meriti, Magé, Paracambi, Seropédica, Itaguaí e Guapimirim. Apenas passando os olhos por tantos nomes podemos ter uma noção da multiplicidade de cidades, culturas e realidades. Os contos assumem o papel de nos fazer conhecer um grande emaranhado de pura vida pulsante, de localidades que provavelmente não veriam a luz do dia nas páginas-vitrines mais aclamadas e vistas, no máximo migalhas aqui e ali, lugar de passagem em direção às áreas mais centrais. Não que o autor só ambiente suas histórias na região metropolitana baixadense, pelo contrário, algumas narrativas se passam em terras cariocas - em número muito menor - mas a forma de tratamento deságua em subversão dos territórios “dominante” e “dominado”, “centro” e “margens”. Essa manobra discursiva acontece em O senhor do nevoeiro com roupagens distópicas. O conto narra, em seis capítulos, dois acontecimentos alarmantes na cidade do Rio de Janeiro: o Cristo Redentor tombou e uma névoa sem precedentes se alastra pela capital fluminense. No início do primeiro capítulo, o leitor é exposto a dois homens de gerações distintas que se vêem presos em uma gruta sem saber o que lhes ocorreu. Vítimas da queda do Cristo. As tragédias contadas zombam da identidade carioca, principalmente da zona sul, que perde seu prestígio e seus habitantes buscam abrigo em territórios pouquíssimo imaginados em sua antiga realidade: “Muitos moradores das zonas sul, norte e centro perpetuavam a estadia em hotéis e motéis da Baixada Fluminense. [...] A ironia era as empregadas hospedarem suas patroas. Com o tempo até poderiam usar as patroas de empregadas e as empregadas de patroas.”. A antiga realidade e a nova realidade, a Zona Sul é a velha Baixada e a Baixada é a nova Zona Sul. Com esse jogo entre velho e novo, antigo e contemporâneo, a história apresenta o embate geracional entre José Morialdo, o senhor, e José Patrício, o menino. O idoso, com suas repetições e seus esquecimentos, irrita o jovem completamente, mas que ainda assim precisa de seus conselhos e conhecimento de toda uma vida. O jovem, pouco vivido e irritadiço, trai Morialdo, o deixando para morrer e salvando a própria pele. Por algum motivo, eles se encontram novamente, ainda no nevoeiro. Estão no paraíso? Inferno? Lugar intermediário? Entre reflexões sobre Deus, a existência, o perdão e o destino das mães quando os filhos deixam o chinelo virado de cabeça para o chão, também percebemos que ideias antigas como o amor e a felicidade se envolvem com as novas possibilidades de seguir a jornada. A relação entre a cidade maravilhosa e as cidades da Baixada possuem uma certa oposição, a capital possui suas periferias e subúrbios, mas os municípios baixadenses adquirem um caráter duplamente periférico para seus moradores, apesar de suas cidades funcionarem de forma autônoma muitas vezes - questões para outras reflexões. Entretanto, o acesso às artes e cultura possuem fronteiras bem delimitadas, assim como as possibilidades de deslocamento e visibilidade. Há um apagamento das cidades além zona do norte carioca, uma indiferença generalizada, tão perto e tão longe ao mesmo tempo, uma deslegitimação de suas virtudes e potencialidades. Jogando com essa estrutura, O senhor do nevoeiro inverte os pólos, transgride o deslocamento Baixada > Zona Sul, Baixada > Rio de Janeiro, Baixada > Centro. Quem é o verdadeiro Deus? Todos? Apenas um? Nenhum? Aqueles que eram já não são, aqueles que não eram, se tornam. As possibilidades se estendem. Seria uma premonição como José de quarenta e dois anos atrás escreveu? No fim das contas, a Baixada significa mais do que a atribuem, no agora, no presente e também no mundo invertido escrito pelo autor. Em uma live sobre literatura suburbana, Thiago Kuerques expressou seu descontentamento em relação a violência exacerbada quando tratamos do locus subalternizado na literatura, o que não abrange toda a vivência e existência das pessoas periféricas. Dessa forma, o autor lança mão das problemáticas urbanas, como a lotação do trem Japeri e da linha dois do metrô, a hierarquia dos e nos espaços, e das outras formas de violência sem enraizar sua obra num cenário que é só uma parte dos vários panoramas de pessoas, afetos, famílias, ruas, bairros, crenças e costumes. Em seus contos, as cidades são no plural, os relacionamentos, os sonhos, as frustrações, as infâncias; com suas semelhanças e diferenças. Assim, o livro Territórios se mostra como uma colcha de retalhos da Baixada. O produto final é uma ilustração-prova de que se faz arte nesse território. Dessa fonte, há muito mais.