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Viagem de bonde

cidade e cotidiano nas crônicas de


Rachel de Queiroz
Emanuele Sales
As crônicas de Rachel de Queiroz são casos exemplares
de apropriação da situação da cidade pela cronista
adejante nas ruas do Rio de Janeiro. É como se ela
estivesse a olhar as cidades a bordo de um bonde,
a passear e a deter-se no que lhe interessa na paisagem
e nas pessoas.

Quando a escritora tornou-se cronista exclusiva de O Cruzeiro, em 1945, a


publicação já era a principal revista ilustrada do País e a pioneira em circulação
nacional (BARBOSA, 2002). Lá Rachel permaneceria até 1975, ano do
fechamento do veículo. As crônicas que analisaremos neste trabalho, as quais
compõem os livros A donzela e a moura torta (1948), Cem crônicas escolhidas
(1958), O brasileiro perplexo (1964) e As menininhas e outras crônicas (1976),
foram publicadas primeiramente em O Cruzeiro.
Ponto de partida

A crônica torna-se um gênero


atraente à medida que reúne
características de duas áreas:
Jornalismo e Literatura.

“Eu tenho dito que me sinto mais


jornalista do que ficcionista. Sempre.
Na verdade, minha profissão é essa:
jornalista” (QUEIROZ apud
FRANCESCHI, 1997, p.33)
1. O instante e a vida
Ninguém pode dizer se essa menina de olhos grandes
sentada aos pés de sua linda mãe terá na verdade a mesma
alma da senhora avó que equilibra o neto no joelho. Que é
que elas têm em comum?
(Rachel de Queiroz na crônica Neves de Antanho)
  

“Nasci numa casa de intelectuais –


meu pai, minhas tias, minha mãe”
(QUEIROZ In SALGADO, 1993, p.19),
Rachel costumava afirmar, quando
perguntavam sobre os primeiros
contatos com a Literatura e o Jornalismo.
Jornalismo e Literatura: espelhos
da palavra
Carlos Magno Araújo afirma ser a palavra a unidade básica de
aproximação entre as duas áreas, “porque sobrevivem do mesmo meio, a
palavra, e do mesmo fim, a conquista de leitores” (ARAÚJO In CASTRO &
GALENO, 2002, p.97).
Segundo Alceu Amororso Lima, “efêmero é tudo o que, literatura ou não,
é escrito ou falado sem poder de penetração na realidade interior ou externa,
visível ou invisível. Há literatura que fica e literatura que passa” (LIMA, 1990,
p.37).
A união entre as faces: vida
permanente em cada instante
“Ambígua, duma ambigüidade irredutível, de onde
extrai seus defeitos e qualidades, a crônica move-se
entre ser no e para o jornal, uma vez que se destina,
inicial e precipuamente, a ser lida na folha diária ou
na revista. Difere, porém, da matéria
substancialmente jornalística naquilo em que,
apesar de fazer do cotidiano o seu húmus
permanente, não visa à mera informação: o seu
objetivo, confesso ou não, reside em transcender o
dia-a-dia pela universalização de suas virtualidades
latentes (...). O cronista pretende-se não o repórter,
mas o poeta ou o ficcionista do cotidiano,
desentranhar do acontecimento sua porção
imanente de fantasia.” (MOISÉS, 1997, p.104).
2. O roteiro de um haver
encoberto
Pelo tempo marcada desde a origem – o termo vem do Grego
chronikós e do Latim chronica –, a crônica cumpre a sina que a
etimologia do nome determina. No percurso da evolução, mudou de
sentido algumas vezes: primeiramente significou o registro do passado
e de fatos na ordem em que aconteceram; depois, voltou-se para o
momento presente, o dia-a-dia. Porém, jamais deixou de ser
essencialmente resgate do tempo – o deus Chronos para os gregos –
em todas as suas dimensões e espaços.
Singelo e incorruptível frescor de
vida

Características da crônica:

Ambiguidade;
Efemeridade;
Subjetividade;
Brevidade.
Vida cotidiana e cidade: a
permanência das trocas
O mito de Babel – A cidade, imã que atrai as pessoas,
fragmenta-se para constituir-se em sua forma mais
representativa: as “várias” cidades. (ROLNIK, 1988, p.15).
A cidade escrita – As cidades invisíveis (1972), de Italo
Calvino, é um caso exemplar de expressão de “cidade” como
conceito essencialmente ligado à existência humana.
Cidade e cotidiano – a cidade é palco abrangente das
experiências e das trocas entre as pessoas. Essa ação é muito
mais intensa no ambiente urbano porque ele tem a capacidade
de atrair as pessoas, como um imã. Ampliam-se, portanto, na
cidade, as possibilidades de interação indireta e “corpo-a-
corpo” que denunciam a construção coletiva do cotidiano.
Cotidiano - Na perspectiva sociológica proposta por Agnes
Heller (1992), a vida cotidiana é a vida de todo homem.
3. Cidade, crônica de vida cotidiana
Rachel faz uso do cotidiano no Rio de Janeiro
escrito e inscrito nas crônicas para “desautomatizar” a
vivência de cada dia, dando importância aos
acontecimentos mais prosaicos. Assim, “na sua
despretensão humaniza”, como assinala Antonio
Candido (1992), a respeito da crônica.
 
Para o cronista, o que interessa do prosaico é a
possibilidade de extrair-se dele o momento que
consagra os personagens como atores de uma
realidade em sua dinâmica. “A vida de todo homem”,
segundo o conceito proposto por Agnes Heller (1992),
é o que fornece matéria digna de registro e
representação.
Rio, cidade crônica
A cidade mostrada nas crônicas de Rachel é dicotômica tanto espacial
quanto temporalmente. Espacial porque apresenta duas cidades contidas na
grande cidade. Uma é a Ilha do Governador, ambiente que carrega em si a
ambigüidade do meio-termo.
 A Ilha é urbana porque se insere na cidade do Rio de Janeiro e rural
porque apresenta aspectos que fogem à “regra” do espaço urbano. Em plena
metade do século XX, a Ilha estava imersa num ambiente marcado pelas
vivências que denotam a presença de uma cultura ainda a salvo da
urbanização destruidora não só de edifícios, mas de costumes. Já o restante
do Rio de Janeiro é apresentado nas crônicas que relatam um cotidiano
oposto ao que se vive na Ilha do Governador. É o Rio do turismo, das praias,
de quem tenta a vida na cidade grande e da transformação moral advinda da
modernidade que atinge também a instituição da família. Em Rachel percebe-
se claramente a existência de duas cidades: a Ilha e o Rio de Janeiro.
As grandezas do que é miúdo
A marca da subjetividade 
As crônicas Diálogo das grandezas da Ilha do Governador, As chagas de Jó, Mimiro e Retrato de
um brasileiro mostram o olhar da cronista sobre a ilha onde fixou morada juntamente com o
marido, Oyama de Macêdo, em 1945.
 Em Diálogo das grandezas da Ilha do Governador, publicada em maio de 1944, Rachel escreve
sobre a visita à Ilha em busca de uma casa para comprar. Na verdade, a descrição da visita é
pretexto para falar das “grandezas” e peculiaridades da Ilha e as primeiras impressões que a
cronista tem do bairro.
O foco narrativo oscila entre primeira e terceira pessoa do singular;
É crônica-poema segundo a classificação de Massaud Moisés.
Em As chagas de Jó, de 1945, a autora principia o texto falando sobre o encontro, durante a espera
de um bonde, com um leitor o qual aponta um erro gramatical cometido por ela em uma crônica.
Tal encontro é pretexto para narrar aspectos da vida e personalidade do personagem, um homem
pobre, triste e culto, que mora na Ilha do Governador.
A ironia é utilizada pela cronista na descrição das ações do personagem;
A ênfase no acontecimento leva-nos a classificar o texto como crônica-conto;
Observamos uma ênfase na individualidade do personagem, tornando-a unitária;
O narrador é sempre o autor, segundo afirma Jorge de Sá (1997).
Na crônica Retrato de um brasileiro (1945), também salta aos olhos a figura do
personagem descrito pela narradora. É o retrato de um vigia noturno cujo hobby é criar galos-de-
briga. O cerne do enredo da crônica é o cotidiano do vigia morador da Ilha que toma posse da
qualidade de eleitor na perspectiva de vender o próprio voto, o da filha mais velha e o da
companheira, diante das dificuldades financeiras. A cronista descreve a família dele e os filhos
que lhe restaram dos amores passados, como o enteado “canhoto”.
Marcas da oralidade característica da crônica desde o Modernismo;
Presença de expressões regionalistas;
Tom de crítica social.

Em Mimiro (1946), ocorre a humanização do personagem na tentativa de se traçar um


perfil. A narrativa está em terceira pessoa do singular, embora a cronista faça comentários em
primeira pessoa no decorrer do texto. O perfil da vez é de um menino de treze anos,
aproximadamente, que se chama Casimiro, morador da Ilha, filho de seu Carlindo e dona
Pequenina. O garoto vive solto no ambiente rural da vizinhança, não estuda, desentende-se com
os vizinhos e arranja muita confusão – em síntese, é moleque criado solto, atrevido e astuto.
Há ambigüidade mesmo na identificação de um personagem;
Adequação da linguagem “ao clima da história narrada”: a essência do personagem em
questão demanda regionalismos e oralidade.
Tudo o que está escrito parece ter acontecido verdadeiramente.
A vida que pulsa sobre o imã
Leveza e simplicidade
Na cidade nunca se está sozinho (ROLNIK, 1987). É assim que o Rio de Janeiro é mostrado nas
crônicas de Rachel de Queiroz: cidade populosa, aglutinadora e atraente por sua urbanização,
modernidade e belezas naturais e rentáveis. Para esta análise, escolhemos as crônicas Turismo,
Praia do Leblon, Tragédia carioca e A Moça, por percebermos nelas o olhar da cronista fixado
em outra cidade refletida no espelho partido: a dos bairros urbanizados de Copacabana e Leblon.
Em Turismo (1974), ela escreve de forma bem-humorada sobre a “invasão” de Ipanema pelos
turistas, especialmente os paulistas. Aqui, o cotidiano descrito é o da espontaneidade, como a
onda que traz os turistas das cidades próximas às praias mais famosas do Rio.
A cronista reafirma sua posição de narrador que observa;
Ambiguidade no tipo de discurso;
Humor como recurso para quebrar o ar de seriedade do assunto.
Em Praia do Leblon (1971), a cronista posiciona-se como alguém que observa de perto um final
de tarde na praia do bairro.
Ar de prosa fiada;
Ironia nos comentários.
Em Tragédia carioca (1961) temos uma situação em que a cronista não só observa o
personagem, como conversa com ele, encontra-o pessoalmente. O exemplo é parecido com o da
crônica As chagas de Jó. A principal diferença é que, nesta crônica, o cronista-personagem quase
desaparece, deixando a narração por conta do interlocutor na conversa.
Inversão do “papel” do cronista: de contador de histórias a ouvinte;
Intertextualidade com João do Rio em Modern girls;
Tom de “prosa fiada”.

Em outra crônica, A Moça (1960), Rachel traça o perfil de uma jovem mineira que veio ao
Rio tentar a carreira de atriz. A profissão podia ser ambicionada por muitas moças à época, mas
Rachel mergulha na apreensão da personagem. A crônica é mais uma das conversas de Rachel
com figuras que casualmente encontra na rua, na parada do bonde ou no próprio bonde.
Aproximação com o leitor através da atitude ou pensamento que poderiam vir de
qualquer pessoa;
O personagem ganha voz na crônica em detrimento da narração em primeira pessoa.
O olhar (de) dentro do bonde
O bonde é espaço de vivência e observação do cotidiano nas duas cidades. “De dentro
dele” a cronista observa o mundo ao seu redor; como numa viagem vai captando aspectos gerais
dos lugares por onde passa. “Nele”, ela encontra o outro, os personagens dos textos, e, como
quem não quer nada, inicia um “monodiálogo” consigo, com os personagens e com o leitor. É
também o bonde a agulha que costura a “cidade real” em seu itinerário tracejado, indo dos
bairros ricos aos populares e vice versa. Para a análise escolhemos quatro crônicas que mostram a
relação entre o tema da crônica e o espaço do bonde, são elas: O neto de Luís XIV (1945); Viagem
de bonde (1953); Saudades do carnaval (1945) e Os bondes (1975).
Em O neto de Luís XIV, a cronista ouve casualmente dois idosos sentados ao lado dela
conversando acerca de linhagens e genealogia. Um dos homens é supostamente neto do antigo
rei da França, Luís XIV.
Subjetividade e fuga da cena “real”;
Emprego da primeira pessoa do singular.
Na crônica Viagem de bonde (1953) a escritora aborda uma cena comum nos bondes do
Rio de Janeiro: a superlotação.
Tom humorístico;
Aproximação com o leitor através do dialogismo.
Em outra crônica, Saudades do Carnaval (1945), a cronista recorda os tempos do carnaval
na praça, com gente alegre e se divertindo de forma amena. Ela destaca o ambiente da Ilha do
Governador como lugar onde se conservam “muito do que se passou ou do que nunca houve
aqui no Rio”.
Recorte de uma situação atual para evocar o passado;
Memorialismo;
Cronista assume explicitamente no discurso a posição de observador.

O tempo passa, e os bondes vão-se embora. Em 1975, os líricos meios de transporte


urbano que se eternizaram nas crônicas de Rachel já não existem mais no Rio. Mas a cronista
alegra-se com a notícia veiculada pelos jornais de que o novo prefeito promete a volta dos
bondes. Eis o motivo de escrita da crônica Os bondes (1975).
Memorialismo;
Narração em primeira pessoa;
Tom que oscila entre a ironia e a melancolia.
Considerações finais
As crônicas de Rachel de Queiroz analisadas neste trabalho são constituídas por
um arranjo harmonioso do que há de melhor no texto cronístico: subjetividade,
linguagem poética e simples, clareza, humor e dialogismo. Sem dúvida, percebemos
no texto de Rachel as qualidades enumeradas por Antonio Candido pertencentes à
crônica brasileira “bem realizada”, a qual “participa de uma língua geral lírica, irônica,
casual, ora precisa, ora vaga, amparada por um diálogo rápido e certeiro, ou por uma
espécie de monólogo comunicativo” (CANDIDO, 1992, p.22). Riqueza tão grande
quanto a que se encontra na linguagem reside na temática do cotidiano na cidade, que
muitas vezes pode parecer cena secundária, vestida de saudosismo ou de crítica social.
Na crônica de Rachel, o personagem pode sim ser o foco central, e na maioria das
vezes é, em detrimento do que narraria o cronista sobre si próprio. Isso ocorre porque
a crônica permite o relato da história inerente a cada um; é retrato do cotidiano
humanizado pela Literatura, segundo Antonio Candido.
Se Fernando Sabino fica entre a crônica e o conto e Rubem Braga entre a crônica
e o poema, Rachel de Queiroz se estabelece entre a crônica e o perfil.

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