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ítalo calvino

g. cullen / k. lynch | prof. dr. carlos eduardo ribeiro


gaston bachelard
norberg schulz
jane jacobs
Cidades invisíveis*
Este livro é conhecido não apenas como uma obra literária

profunda e inspiradora, mas também como substrato para

reflexões e pesquisas do fenômeno urbano, e, ainda, como

ponto de partida didático para olhar e pensar sobre a cidade.

Estar em frente à cidade é algo muito mais complexo do que o

projeto de um edifício, e o universo urbano se estende muito

além até mesmo do que o “urbanismo” possa abarcar.


1. o urbano = matéria não manipulável, rebelde,
caprichosa, mas nem por isso menos fascinante.

2. à medida que Marco Pólo segue descrevendo as


cidades do império mongol, percebe-se que cada cidade
é única na sua paisagem e na construção do seu espaço
pelos seus habitantes, e que o número de possíveis
cidades é infinito.

3. salta aos olhos a riqueza de cidades da qual se compõe


a narrativa: Eudóxia, Zirma, Leônia e tantas outras são,
na verdade, arquétipos:

* Evandro  Ziggia,  Monteiro.  Disponível  em:  <h1p://www.vitruvius.com.br/revistas/


read/resenhasonline/08.085/3050>.    
“Dimensões ou imagens que servem a todas e a uma única
cidade ao mesmo tempo, sem que por isso não deixem de
servir como elementos diferenciadores que tornam,
paradoxalmente, cada cidade, única.”

Embora as cinquenta e cinco cidades do livro gerem uma


incontável multiplicidade de imagens e
simbolismos, nesse ponto é o próprio Calvino que nos
revela a chave para entendê-las e, até, classificá-las.

Mesmo tendo sido apresentadas “embaralhadas” na


narrativa, cada uma pertence a um dos onze grupos de
cinco cidades que recebem uma adjetivação comum do
tipo: “as cidades e a memória”, “as cidades ocultas”, entre
outras.
Para cada um dos onze grupos de cidades espalhadas pelo livro
há uma questão central que liga e permeia a descrição das
cidades de cada grupo, e há, ao mesmo tempo, uma senda
individual para cada cidade, que é a forma como ela lida com
aquela questão.
1. “As cidades e o nome” – identidade e sentido de lugar

remete à clássica afirmação de Aldo Rossi de que o sentido do


lugar emana do acontecimento e do signo que o fixou.

“Por longo tempo, Pirra foi para mim uma cidade encastelada
nas encostas de um golfo, com amplas janelas e torres, fechada
como uma taça, com uma praça em seu centro profunda como
um poço e com um poço em seu centro” (p.87).

Em Aglaura, essa identidade é definida pelo “estilo de vida” ou


“estado de espírito” dos habitantes; Leandra opta pelo intimismo
e pelo provincianismo da vida privada, pela negação à grande
cidade; Irene fabrica uma imagem forjada para a cidade e a usa
para convencer os cidadãos e o resto do mundo do seu papel; já
Clarisse procura compreender e incorporar a multiplicidade de
lugares como o verdadeiro sentido de lugar.
PIRRA – por Evandro Monteiro
2. “As cidades e a memória” – a presença do sítio e a
influência do passado

Em cada grupo de cidades costuma haver um “encantamento” e uma


“armadilha”. No caso de “As Cidades e a Memória”, o encantamento

prossegue no encontro com o passado como se ele fosse


sempre melhor que o presente e uma inspiração para o
futuro.
A armadilha está na decepção de que o passado não permanece
melhor ou nunca foi, e no seu esquecimento. Apresentadas quase
todas na parte um do livro, é possível indagar se Diomira, Isidora,
Zaíra, Zora e Maurília não estão assim situadas para que nos
esqueçamos delas ao fim da narrativa.
3. “As cidades e o desejo” – a motivação inconsciente e a
ação sobre a memória

Nelas há uma alusão insistente à contradição, à


dualidade do espírito humano. Intuitivamente somos
destinados à ordem e ao caos simultaneamente, e as
“cidades e o desejo” refletem o paradoxo em paisagens
regulares como Dorotéia e Anastácia ou dúbias como
Despina. Ou ainda múltiplas como Fedora, em que quase
nos perdermos nos infinitos caminhos que geramos para
cada uma de nossas escolhas.
4. “As cidades e os símbolos” – a linguagem da
subconsciência coletiva e a imagem da cidade

“Não existe linguagem sem engano.”

É a frase final de Ítalo Calvino (p. 48) após ter descrito as desventuras
de Marco em Ipásia, a quarta das “cidades e os símbolos”.

Nelas discute-se a imagem da cidade formada não só pela


composição de sólidos na luz e na sombra, mas também a
partir da sua ornamentação, dos sinais e dos seus significados.
Então a cidade passa a ser lida como densa e enigmática, já que é
muito mais do que apenas sua forma física.
4. “As cidades e os símbolos” – a linguagem da
subconsciência coletiva e a imagem da cidade

É possível evocar, a partir delas, o clássico Imagem da cidade de


Kevin Lynch, onde a questão central é a compreensão da cidade a
partir do seu vocabulário visual, sua linguagem.

Mas exploram também a utilização dos símbolos como marcação de


territórios e hierarquias, classes, posturas ou ainda propositalmente
como mensageiros do engodo. São, nesse sentido, cidades em que
de alguma forma o discurso, ou os ícones, não correspondem às
suas verdadeiras dinâmicas, ocultas ou dissimuladas.
5. “As cidades delgadas” – a busca pelo desprender
da terra, a negação da imobilidade

Calvino cita motivos diversos para que cada uma das


“cidades delgadas” seja descolada da terra.
A ideia geral é de paisagens urbanas que se projetam para
cima, ou se isolam da terra firme por algum artifício
geológico ou construído: Isaura está no chão mas na
verdade sobre um profundo lago negro extinto; Zenóbia
sobre palafitas em um lago seco; em Armila não há as
massas construídas; Sofrônia são duas meias cidades em
que a cidade pesada é itinerante e a cidade leve é fixa; e
finalmente, Otávia uma cidade teia-de-aranha pendurada
sobre o abismo.
5. “As cidades delgadas” – a busca pelo
desprender da terra, a negação da imobilidade

Através das “cidades delgadas” é possível verter a muitas


paisagens da cidade moderna, como a verticalidade ou a
transfiguração cíclica de seus espaços.

Também nelas talvez se incluísse o próprio urbanismo


modernista, as imagens de uma cidade-máquina baseada
no movimento, ou o espírito etéreo de uma Ville
Radieuse. Ou ver as “cidades delgadas” como buscas
coletivas, através da técnica, para transcender o peso da
superfície do planeta, ou para abandonar uma paisagem
urbana feita apenas de pedras.
6. “As cidades e as trocas” – as relações entre os
habitantes

Estas são como um preâmbulo das “Cidades Contínuas”. Nelas


emerge a questão da circulação na cidade, com analogias com fios
(Ercília) e redes (Esmeraldina) superpostas; e a própria mobilidade e
mutabilidade urbanas, que lhe dão o caráter de um ser mutante,
ainda que de pedra.
“As cidades e as trocas” também abordam a tessitura do território, as
camadas de atores no espaço urbano (Esmeraldina) e o embate
entre rotina e mudança (Eutrópia).
7. “As cidades e os olhos” – a visão individual e os
engodos

Estas são exemplos dúbios, em que se discute o referencial do qual


se olha a cidade.
Em termos de paisagem, são cidades descritas com um lado positivo
que enche os olhos, cheio de cores, sabores, tentações. Em
Zemrude o enfoque são as visões particulares, e o autor sugere que
a maioria dessas visões tende a buscar mais o chão e as
profundezas do que o céu, com o passar do tempo. As cidades e os
olhos parecem evocar análises mais contemporâneas dos
fenômenos urbanos, como em “A Cidade de Quartzo” e sua
descrição dos bastidores dos guetos e seus embates.
8. “As cidades e os mortos” – engessamento, ciclo, fim de
ciclo

Embora em algumas das “cidades e os mortos” sua paisagem seja


mais literal, referindo-se a uma espécie de campo santo, ou um
duplo, e muitas vezes desafiando as profundezas da terra, há uma
questão que permeia todas.
Aborda-se a ideia do ciclo como presença estruturadora, como um
moto motiv do ser-cidade, para onde ele a leva, ou não leva.
As “cidades e os mortos” evocam a temática onde a questão principal
passa a ser os ciclos “inescapáveis” do planeta e das nossas cidades
civilizadas, e sobretudo a busca do sentido que os move.
9. “As cidades ocultas” – a natureza humana e sua
dualidade

São as cidades mais tardiamente apresentadas no livro, o que faz


das “cidades ocultas” um espelhamento das “cidades e a memória”,
quase todas apresentadas na primeira parte.

São cidades tão complexas quanto à natureza humana, e


necessariamente contraditórias.
As cidades ocultas exploram essas contradições na forma de
dualidades intrínsecas, como o dentro e o fora de Olinda, a cidade
feliz e a infeliz de Raíssa, os ratos e as andorinhas de Marósia, os
homens e as bestas de Teodora, e os injustos e os justos de
Berenice.
10. “As cidades contínuas” – antropofagia, destruição do
meio

Em “as cidades contínuas” Calvino reúne os casos extremos de


cidades: a metrópole, ou ainda, a sua aberração, a megalópole, e a
possibilidade da humanidade ser um câncer assolando o planeta.

São exemplos que aludem ao debate sobre as questões ambientais,


mas também sobre o subúrbio e o planejamento regional.
E de novo às utopias modernistas e às visões deformadas que delas
restaram, no legado dos grandes conjuntos habitacionais.
11. “As Cidades e o Céu” – o ideal de perfeição e o
cosmos

Opondo-se às “cidades e os mortos”, cidades como Tecla e Ândria


não são apenas as antíteses de sua paisagem, buscando elevar-se
do solo e negando a terra.
Também buscam a antítese do ciclo, na ideia de uma permanência
transcendental.
Sonhos de todos os utopistas desde os antigos até Ledoux e além
dele.
São descritas como lugares urbanos de paisagem harmônica, e, às
vezes, imutável.
REFERÊNCIAS

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. 1.ed. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

MONTEIRO, Evandro Ziggiatti . Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/


revistas/read/resenhasonline/08.085/3050>.

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