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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO

LLV 7733 Literatura e Cinema


Professor: Demétrio Panarotto
Aluno: Felipe José
2009.2

As cidades e a memória em Italo Calvino e Peter Greenaway

“Somente nos relatórios de Marco Polo, Kublai Khan conseguia discernir,


através das muralhas e das torres destinadas a desmoronar, a filigrana de
um desenho tão fino a ponto de evitar as moradias dos cupins.”

Italo Calvino

Em“As cidades invisíveis”, Italo Calvino sugere o poder descritivo de uma imagem a
partir da observação de uma ilustração contida num dos relatórios de viagem de Marco Polo
a propósito das cidades conquistadas ao Império Mongol, destinado ao rei Kublai Khan.
A organização tópica subjacente aos nove capítulos do livro é labiríntica – As cidades
e a memória 1. As cidades e a memória 2. As cidades e o desejo1. As cidades e a memória 3. As
cidades e a memória 4. Todos esses primeiros tópicos estão contidos no primeiro capítulo.A
cidade e a memória 5 está no segundo capítulo. Tal disposição é um claro convite à perda de
referências, mas não quanto à apreensão dos textos. Os textos se fixam à memória pelas
imagens descritas neles. A confusão se dá na tentativa de organização e compreensão das
partes do livro em busca de um ponto de intersecção entre eles.
“Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada;
mas sei que seria o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita
disso, mas das relações entre as medidas de seus espaços e dos
acontecimentos do passado;” “os rasgos nas redes de pesca e os três
velhos remendando as redes que, sentados no molhe, contam pela
milésima vez a história da canhoneira do usurpador...”[1]

Calvino não leva em consideração a contagem dos degraus dos quais são feitas as
ruas em forma de escadas porque, os estágios de um percurso não se fixam à memória
tão bem quanto os acontecimentos vividos nesse percurso. Na citação acima Calvino
articula uma idéia velada por detrás da imagem dos velhos remendando redes, sentados no
molhe. Para visualizar tal idéia “é preciso, dirigir o olhar para a imagem que só se revela por
uma visão indireta.”[2] O trecho citado sugere o remendar das redes como uma alegoria à
construção da memória coletiva da cidade, que por meio da oralidade se infla e já não é o
fato; passa a ser outra história.
“A cidade se embebecomouma esponja dessa onda que reflui das
recordações e se dilata.”[3]

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No filmeA Walk Through Hde Peter Greenaway o narrador está em busca de 92
mapas e percorre 1418 milhas até reuni-los.
A cidade desenhada no mapa é Contorpis, a 117 milhas de Astrogarth: ponto de
parida da viagem pelo H. O sangue na estrada do mapa é do tipo A e pertencia à mulher
que na companhia do convidado de crisma da filha mais velha do irmão do
narrador-personagem, roubara o quadro. Ao quebrá-lo escondido em seu xale, foi cortada
pelo vidro da moldura e desmaiou.
Esse é um momento no filme em que a história contada pelo narrador se integra
visualmente ao vermelho sobre a estrada branca do mapa, particularizando à narrativa
ficcional e deixando clara a arbitrariedade de seu discurso narrativo. A história do desenho
na condição de objeto adquirido se une a história da viagem pelo H. O narrador de
Greenaway é irônico ao incluir um desenho que pertenceu a sua tia entre os mapas, e ao
observar que a causa da morte dela foi intoxicação alimentar depois de comer uma omelete.
Essa é uma história que a principio só pertence ao universo do narrador assim como
a história do roubo do quadro do irmão e do sangue vermelho por cima das linhas brancas.
A viagem pelo H é uma viagem de perda e não de encontro. Os caminhos são tomados por
motivos irrelevantes ou até mesmo na ausência de um.
Tulse Luper é um Ornitologista ficcional criado por Greenaway. É Tulse que irá
motivar a viagem do narrador em busca dos 92 mapas. A motivação para a escolha numérica
em nenhum momento do filme é revelada. A presença das imagens de pássaros é constante
no filme. Tulse Luper é um cientista responsável pela contagem e catalogação de “alguns”
dos pássaros migratórios do Hemisfério Norte e ao final do filme aparece como escritor
ficcional de um livro também fictício chamadoSome Migratory Birds of the Northern
Hemisphere: 92 MAPS 1418 BIRDS IN COLOUR.
O caráter enciclopédico da pesquisa científica e a ironia diante da arbitrariedade das
escolhas são recorrentes na obra de Greenaway, e no caso de A Walk Through H, reforçam a
idéia labiríntica do título.
Os centros das cidades urbanizadas são diferentes das cidades de Calvino e das
cidades dos mapas de Greenaway, pois não há onde se perder por seus caminhos. Os sinais
universais de transito se aderiram à memória do homem. Todos os aeroportos são iguais em
resumo, e cada um se faz reconhecer em todas as suas partes. As empresas de turismo
vendem viagens padronizadas, de modo que não seja preciso adaptar-se à realidade de outra
cidade para permanecer nela durante alguns dias.
A concepção urbana do centro de uma cidade é a seguinte: uma zona comercial
onde o que é comercializado é visível ao público e se coloca numa condição de mercadoria
em função da demanda de um mercado. O consumo já está tão enraizado no cotidiano das
pessoas que já não há a necessidade de um centro nas grandes cidades, “não só porque as
cidades deixaram de crescer, mas porque as pessoas já não se deslocam mais por ela.”[4]
Nesse sentido os shoppings são mercadologicamente especializados em relação aos
antigos centros das cidades e de fato estão por aí para substituí-los.
Será que alguém já se perguntou o motivo pelo qual nos tetos dos pavimentos dos
shoppings não há qualquer relógio? Eles são estrategicamente projetados de modo a anular
qualquer tipo de orientação interna e externa de espaço e de tempo. Diferente do que
acontece com os antigos centros, que se por um lado não são como os bairros, se ligam a
eles através das vias de livre acesso.
Para Beatriz Sarlo, o shopping é como uma “cápsula espacial” em relação à cidade.

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Não é preciso sair de dentro dele para comer, para distrair-se facilmente e nem para
descansar. Ao contrário das ruas dos centros das grandes cidades, os corredores do shopping
não são interrompidos por outros espaços, se ligam a outros novos corredores que levam a
novos pavimentos dentro de uma lógica cíclica.
Em comparação a um labirinto o shopping seria o seu oposto. “ele não foi feito para
levar a um determinado ponto... O shopping é uma cápsula onde, se é possível não achar o
que se procura, é completamente impossível perder-se.” Talvez a melhor maneira de não se
reconhecer ou de perder-se dentro de um shopping seja dentro de uma das salas de cinema
na qual o filme em exibição é um fracasso de bilheteria.
Ainda no que diz respeito à memória, em As cidades e a memória 4 Calvino
descreve Zora: uma cidade que possuí algumas características do pensamento científico
reducionista.

“Essa cidade que não se elimina da cabeça é como uma armadura ou


um retículo em cujos espaços cada um pode colocar as coisas que
deseja recordar... Mas inútil foi a minha viagem para visitar a cidade:
obrigada a permanecer imóvel e imutável para facilitar à
memorização, Zora definhou-se e sumiu. Foi esquecida pelo
mundo.”

Aqui fica claro o valor dado por Calvino à perda das referências numa viagem,
seja dentro da ficção ou em visita a uma cidade, para entrar em contato com o
desconhecido é imprescindível perder-se.

[1] CALVINO, Italo. “As cidades e a memória 3” p. 14.Cap. 1. In: “As cidades invisíveis”: São Paulo.
Companhia das Letras, 1990.
[2] CALVINO, Italo.“Leveza”p. 16. In: “Seis propostas para o próximo milênio”: São Paulo. Companhia
das Letras, 1990.

[3] CALVINO, Italo. “As cidades e a memória 3” p. 14.Cap. 1. In:“As cidades invisíveis”: São Paulo.
Companhia das Letras, 1990.
[4] SARLO SABAJANES, Beatriz. “Um: Abundância e pobreza – Cidade.” In: “Cenas da vida
pós-moderna”: intelectuais, arte e vídeo-cultura na Argentina. Rio de Janeiro: UFRJ. 2000.

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